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© 1978 – LOU CARRIGAN

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Ltda.


Título original: “¡MUERTE A LOS NEGROS!”
Tradução de Luiz Osvaldo Cunha
Capa de Benicio
® 530206
ENCONTRO DE AMOR
O contraste entre o casal não podia ser maior. Ele era
negro. Impossível ser mais negro que Kobo Makebo. Alto,
forte e bonito. Mas negro até o ponto máximo de negrura que
um homem pode atingir, Ela se chamava Isa Verkavaa e era
branca. Branquíssima. Sua pele não apresentava o menor
sinal dos efeitos do sol intenso da África do Sul. Era de uma
brancura imaculada. Como o leite. E bela. Os olhos azul-
claros combinavam com os cabelos de um louro quase
albino. O corpo maravilhoso não podia ser mais branco.
Sim. O contraste entre a pele de Kobo Makebo s a de Isa
Verkavaa não podia ser maior. Notava- se, ainda mais, pelo
fato de estarem abraçados, amando-se sob a copa de uma
árvore frondosa, perto do rio. Ela enterrava os dedos brancos
e finos nas costas dele, negras como o ébano. Os gemidos de
prazer ecoavam junto com o murmurar das águas do rio
turvo e agitado. Ao redor dos dois, tudo era silêncio e sol.
Isa Verkavaa emitiu um gemido mais profundo e suas
mãos se cravaram com mais intensidade nas costas
musculosas de Kobo Makebo. Um instante mais tarde,
produziu-se um estalido seco no corpo de ambos. Isa
Verkavaa abafou um grito, agitou-se, tornou a gemer e
retesou o corpo. Finalmente, relaxou. Ficou com a cabeça
caída de lado, vendo a vegetação da margem do rio. Kobo
Makebo sorriu. Beijou a orelhinha delicada da amante e
sussurrou:
— Tudo bem?
— Claro, meu amor — respondeu ela, movendo a cabeça
para o olhar nos olhos.
Beijaram-se novamente. A boca negra e vermelha de
Kobo Makebo apoderou-se dos lábios rosados que se
destacavam no rosto imaculado e belo de Isa Verkavaa. Foi
um beijo longo que reacendeu neles o desejo de recomeçar
aquele combate sensual e amoroso. Voltaram ao início.
Desta vez, o amor prolongou-se um pouco mais. As mãos
alvas como lírios de Isa deslizavam lentas pela pele de
ébano, tensa, dura e forte de Kobo.
Depois da segunda vez, ficaram em silêncio, imóveis,
saboreando o prazer que os dominara.
— Está ficando tarde — sussurrou ela, ao fim de alguns
minutos. — Preciso voltar para Nokobi, querido.
— Quando posso telefonar de novo?
— Não sei. Talvez me estejam vigiando. Meu telefone
será censurado a qualquer momento.
— Sim — balbuciou ele, sombrio. — Devemos levar em
conta esse perigo.
— Oh, meu amor! Você não pode levar a vida fugindo de
um lado para outro. Acabarão por encontrá-lo, por encurralá-
lo. E aí eles o matarão.
— É possível que isso aconteça — murmurou Kobo
Makebo. — Se demorarem alguns dias, porém, tudo poderá
se ajeitar.
— Como?
— Não confio em ninguém, Isa. Nem mesmo nos da
Comissão. Por isso, pedi ajuda a... Bem, pedi uma ajuda
especial. Muito poderosa. Que não pode falhar.
— Que tipo de ajuda? A quem?
— É melhor você não saber.
— Isso é absurdo, Kobo! Não há razão para continuar
arriscando a vida, escondendo-se como uma fera!
— Eu tenho algo que eles querem. Para conservá-lo,
preciso continuar escondendo-me, esperando por essa ajuda
especial.
— Se o matarem antes, isso que você tem de nada servirá.
Está tão escondido, que jamais poderá ser encontrado.
Suponhamos que eles o matem, querido. As informações que
você obteve continuarão no esconderijo, apodrecendo. Seria
o preço da sua vida. E não teriam utilidade para pessoa
alguma. Diga onde estão e eu me encarregarei delas, caso lhe
aconteça qualquer coisa. Prometo entregá-las à pessoa que
você me indicar. É o mais sensato que temos a fazer.
Kobo Makebo contemplou a belíssima Isa Verkavaa.
Sorriu e beijou-a na boca. Acariciou- lhe os seios. O
contraste entre suas mãos e os seios branquíssimos era
enorme. Isa também o acariciou, excitando-o.
— Oh, não — exclamou a branca, interrompendo as
carícias. — Outra vez, não!
— Não gosta? — murmurou Kobo, sorrindo.
— Seu corpo me enlouquece, querido. Bem sabe como
gozo em seus braços. Mas está ficando muito tarde. Não
quero viajar à noite por essas estradas.
— Compreendo — disse ele, sério. — É melhor nos
despedirmos.
— Onde deixou o carro?
— Deixei-o na margem do rio, bem longe daqui, e vim a
pé — explicou ele, rindo. — Quando nos despedirmos,
meterei o que é meu num saco de plástico e nadarei até o
ponto onde ficou o carro. Talvez você ache excesso de
precaução, mas é preciso. Afinal, podem encurralar-me
como uma fera.
— Todas as precauções ainda são poucas — admitiu ela.
— Bem, se me disser onde estão as informações e a quem eu
devo entregar no caso de... Oh, meu amor, não quero sequer
mencionar sua morte, mas você se transformou num fora-da-
lei, não é mesmo?
Kobo Makebo ficou pensativo durante alguns segundos.
Tornou a beijar Isa. Acariciou-a e levantou-se. Era
gigantesco. Um colosso. Os cabelos negros pareciam arame
retorcido.
— Tenho algo para você — murmurou em seguida.
Dirigiu-se para o ponto onde havia deixado as roupas.
Meteu-as na sacola de plástico. Em seguida, apanhando uma
pistola automática munida de silenciador, apontou-a para a
bela jovem branquíssima.
— Não creio que lhe agrade — murmurou o negro,
sorrindo.
— Kobo! Que significa...
As palavras morreram na garganta de Isa. Os tiros
ecoaram abafados. Quatro furos pequenos surgiram no seio
esquerdo de Isa Verkavaa. A mulher branca estremeceu
violentamente a cada impacto. O último deixou-a estendida
no chão, ainda quente de amor. Kobo a contemplou
fixamente. Os quatro furos escuros transformaram-se em
manchas vermelhas. Tudo em Isa sempre 'ora pálido. Sua
pele, naquele momento, porém, parecia ainda mais branca.
Uma contração de dor e de espanto tomou conta de sua
fisionomia.
Os olhos muito azuis ficaram abertos, voltados para o céu
que já começava a cobrir-se com as primeiras sombras do
crepúsculo.
Estava espantosamente bela. E tragicamente morta.
Kobo Makebo enrugou a testa. Deu de ombros e guardou
a pistola na bolsa de plástico. Em seguida, inteiramente nu,
encaminhou-se para a margem do rio. Em silêncio. Com a
agilidade e a cautela de um felino.
Isa Verkavaa ficou para trás. Branquíssima. Morta.
As manchas de sangue que brotavam dos furos feitos
pelas balas formavam em seu peito uma enorme rosa
vermelha.

CAPITULO PRIMEIRO
A vida é uma joia preciosa

— Rosas vermelhas — exclamou a senhorita Montfort.


— Oh, tio Charlie! Não precisava ter tido o incômodo de
trazê-las pessoalmente.
— Não é a primeira vez que o faço — resmungou Charles
Alan Pitzer, chefe do setor Nova York da CIA, olhando ao
redor com desconfiança. — Não vejo por que esse espanto
todo. Há muitos anos as rosas vermelhas são as suas flores
preferidas.
— Sim, sim. De qualquer modo, foi muita gentileza,
querido. Que foi? Procura alguma coisa?
— Minello não está por aqui? — rosnou Pitzer.
Brigitte Montfort soltou uma gargalhada. Ela era uma
jornalista famosa no mundo inteiro.
Prêmio Pulitzer. Viajante incansável, sempre endeusada
pelos amigos. Chefe da Seção Internacional do Morning
News, o jornal nova-iorquino de maior prestígio no
momento, exatamente por contar entre seus colaboradores
com a maravilhosa senhorita Montfort. Sendo tudo isso, era
também a agente da CIA. Implacável, Infalível. Mortal.
Quando a senhorita Montfort ria, porém, parecia que
todos os anjos do céu estavam entoando melodias suaves e
tranquilizantes. A risada foi um tônico para os nervos de
Pitzer. O Chefe da CIA desenrugou a testa e parou de olhar
para os lados, com ar de desconfiança.
— Tem tanto medo assim de Frankie? — exclamou a
divina.
— Medo, não. Mas estou farto das brincadeiras desse
camarada! Não me surpreenderia que uma delas fosse estar
escondido em algum canto do salão.
— Reviste tudo, se quiser — sugeriu Brigitte, tomando a
rir. — Frank não apareceu hoje. Se quiser, posso contar uma
das piadas infames que ele costuma contar.
— Nada de brincadeiras — disse Pitzer, sério, sentando-
se numa poltrona diante de Brigitte. — E, depois, as piadas
de Minello são detestáveis!
— Tudo na vida tem sua graça. O importante é sabermos
descobri-la. Por que não quer saber de brincadeiras?
Pitzer contemplou fixamente a rainha da espionagem
mundial. Achou-a linda como sempre. Usava um roupão
curto e encantador. Ainda cheirava a sais de banho. Os
cabelos negros e longos estavam presos à nuca por uma fita.
Os olhos azuis pareciam dois pedaços de céu claro. Pitzer
conhecia bem o funcionamento do cérebro da espiã
internacional. Captou, portanto, a pergunta muda que havia
nas pupilas da divina. Por isso, balançou a cabeça num
movimento negativo e murmurou:
— Não se trata do que está pensando. Não mataram
nenhum de seus Johnnies. Felizmente, não recebemos
informação alguma sobre o assassinato de agentes da CIA.
— Então, o caso não deve ser grave — suspirou Brigitte.
— Fale. De que se trata?
— Um de nossos homens solicita sua presença na África.
— Na África? Em que ponto da África?
— Em Southland.
— Ah, sim! Esse país simpático onde os direitos
humanos têm servido de motivo de riso?
— Os direitos dos negros — esclareceu Pitzer. De
repente, atalhou: — Já sei! Já sei que são seres humanos! O
que quis dizer é que em Southland os direitos humanos dos
brancos são perfeitamente respeitados. Ou seja: os direitos
dos brancos não têm servido de motivo de riso.
— Mas os dos negros, sim.
— Ora, isso são problemas de política de alto nível.
Como sabe, o Presidente Carter esteve por lá nos últimos
dias, interessando-se por esses problemas.
— Sei. Fiquei tentada a ir à África para fazer umas
reportagens sobre essa viagem presidencial, mas desisti.
Cheguei à conclusão de que as reportagens, embora sejam
informativas, nada solucionam. Por isso, preferi ficar aqui,
descansando. Pensei em ir passar uns dias no Brasil, mas
mudei de ideia. Enfim, para quê um de meus queridos
Johnnies solicita minha presença em Southland?
— Pelo jeito, alguém de lá quer entrar em contato direto
com você.
— Comigo ou com a CIA?
— Com a agente “Baby”.
— Contato pessoal? Quem é essa criatura?
— Um negro chamado Kobo Makebo. Nosso chefe em
Southland nos deu informações sobre ele. Kobo Makebo é
jovem, de mentalidade moderna. Trabalhou até pouco tempo
atrás no Ministério do Interior de Southland. Órgão dirigido,
como você deve saber, por Karl De Hoven, como
complemento a seu cargo presidencial naquele país.
— Sim, sei perfeitamente que Karl De Hoven. Além de
Presidente de Southland, ocupa ó cargo de Ministro do
Interior do país. Conheço bem a biografia desse... cavalheiro.
Continue falando de Kobo Makebo.
— Não há muito a dizer. Além do que já expliquei,
poderíamos ressaltar ainda o aspecto pessoal. Kobo Makebo
é um grande atleta de seu país. Um camarada fora de série
em questão de atletismo. Em várias especialidades.
— Deve ser um belo exemplar — murmurou Brigitte,
esboçando um sorriso. — Que aconteceu com ele?
— Segundo tudo indica, fez algo que não devia,
relacionado com seu obscuro trabalho no Ministério do
Interior. É agora um fugitivo. Todas as forças armadas de
Southland o estão rastreando. Acossando-o
implacavelmente. Não sabemos o que ele fez quanto ao
problema do trabalho. Fomos informados, porém, de que
cometeu assassinato na pessoa de Isa Verkavaa.
— Quem era ela?
— Uma bela jovem pertencente à classe alta da minoria
branca de Southland. O cadáver foi encontrado, nu, perto do
rio Nobo, a trinta e poucos quilômetros da capital, Nokobi.
Tudo indica que tivera relações sexuais antes de ser
assassinada.
— Com Kobo Makebo?
— Parece. De acordo com a versão oficial do governo, só
pode ter sido com ele. Essa versão informa que Makebo a
violentou e a assassinou em seguida com quatro balas.
— Que barbaridade! — balbuciou Brigitte. — E esse
homem quer uma entrevista pessoal comigo?
— Exato. Makebo conhece dois de nossos homens em
Nokobi. Entrou em contato com eles e disse-lhes que
enviassem à Central da CIA o pedido dele de uma entrevista
com a agente “Baby”.
— Não explicou o motivo?
— Não.
— Espero que não seja para violar-me e meter-me quatro
balas no corpo, tio Charlie.
— Francamente! — resmungou. Pitzer. — Não me
parece que isso seja motivo para brincadeiras.
— Tem razão. Concordo com você. Essa história é
verdadeira? Makebo matou mesmo a moça branca, depois de
violentá-la?
— Na versão oficial, é. Nada mais sabemos a respeito.
Nossos rapazes continuam investigando, mas nada apuraram
até agora. Isa Verkavaa manteve relações sexuais com
alguém. Isso ficou provado. E foi encontrada morta com
quatro balas no peito. Ignoramos como o pessoal de
Southland chegou à conclusão de que fora obra de Makebo.
— Os dois se conheciam? Kobo e a moça?
— Sim. Conheciam-se. Isa pertencia à classe elevada,
como já lhe disse. Alguns repórteres lembram-se de tê-la
visto em companhia de Makebo. Ela visitava frequentemente
a Casa da Presidência. Na certa, os dois se conheceram lá.
Quanto ao tipo de relações existentes entre Kobo e Isa
Verkavaa, nada há de preciso. O assunto daria margem a
muitas suposições.
— Foram vistos sozinhos?
— Que se saiba, não. Por quê?
— Que poderia fazer Isa Verkavaa sozinha com Makebo
a trinta e poucos quilômetros de Nokobi? Ele a teria
sequestrado e levado para aquele lugar, a fim de violentá-la e
matá-la? Ou ela teria comparecido ao encontro por sua livre
e espontânea vontade?
— Não sabemos.
— Tem alguma fotografia da moça e de Makebo?
— Dela, não. Não acharam necessário enviar fotos de Isa
à Central. Mas temos algumas de Makebo.
Pitzer entregou um envelope a Brigitte. A divina extraiu
dele algumas fotografias onde aparecia Kobo Makebo em
vários ângulos. Algumas de perto, outras de longe. Havia
fotos de competições esportivas de países africanos em que
ele tomara parte. A divina espiã levou quase um minuto
examinando as fotografias. Quando as devolveu a Pitzer,
murmurou:
— Partirei hoje mesmo para Nokobi.
<><><>
Por volta das cinco da tarde do dia seguinte, um Boeing
727 da Southland Airlines pousou sem novidades no
Aeroporto Internacional de Nokobi. Um quarto de hora mais
tarde, o homem que estivera aguardando na saída dos voos
internacionais ficou um instante apatetado. Logo, sorriu.
Sem a menor hesitação, aproximou-se de uma das
passageiras chegadas naquele avião.
— Olá — disse ele, em inglês. — Eu me chamo Johnny.
A formosíssima passageira de olhos azuis, que levava
como bagagem uma mala e uma maletinha vermelha,
encarou-o sorridente e respondeu:
— Johnny... que mais? Johnny Guitar, Johnny
Hollyday...?
— Prefiro ser apenas Johnny-Nokobi — exclamou o
agente da CIA.
Saíram do aeroporto, rindo. Chegaram ao carro do chefe
da CIA em Southland. Acomodaram-se no veículo e
iniciaram o trajeto para a capital do país africano. Durante
dois minutos, Brigitte ficou imóvel, calada, contemplando a
paisagem áspera e empoeirada que margeava a estrada.
Finalmente, perguntou:
— Alguma novidade?
— Sim. Consegui fazer contato com Kobo Makebo.
Disse a ele que você não viria a Noboki, se ele não
oferecesse algo mais preciso. Expliquei que a agente “Baby”
não se desloca para qualquer parte do mundo só pelo fato de
alguém assim o desejar.
— Mas você sabia que eu estava a caminho, não sabia?
— Sim. Fiz o possível, porém, para pressionar esse negro
orgulhoso. Quem ele se julga, afinal? Pede um contato
pessoal com nossa agente mais famosa e atendem o pedido.
— Conseguiu alguma coisa, pressionando-o?
— perguntou Brigitte, sem se alterar.
— Kobo Makebo tem umas informações, uns
documentos. Assegura que são importantíssimos. Os
documentos, pelo jeito, foram elaborados no Ministério do
Interior de Southerland, pelo próprio presidente do país, Karl
De Hoven.
— De que tratam esses documentos?
— Não quis dizer. Insisti, pedi para examiná-los, mas
Kobo negou-se a fazê-lo. Afirmou que só o poria nas mãos
da agente “Baby”. Garanto que o camarada preferia morrer a
mudar de opinião.
— Muito bem — murmurou a divina.
— Marcamos um encontro entre vocês.
— Certo.
— Não sei — rosnou Johnny. — Para ser sincero, não
estou gostando disso.
— Acha que possa ser uma armadilha para mim? — disse
Brigitte, sorrindo. — Fale com franqueza. Pensei a mesma
coisa. Mas afastei essa ideia.
— Por quê?
— Porque não vejo o que possa ter a agente da CIA com
um país como Southland. Do ponto de vista da espionagem,
é claro. Em troca, poderia ter muito, do ponto de vista...
humano. Kobo Makebo talvez conheça minha posição diante
do problema racial. Sabe, sem dúvida, que sou antirracista.
Logo, podemos chegar a uma conclusão: ele descobriu que
não tenho preconceitos nesse sentido e me escolheu para
ajudá-lo em algo relacionado a esse assunto.
— Relacionado ao problema racista do país?
— Evidente.
— Chegou a conclusões muito simples, permita-me dizê-
lo.
— Nem sempre devemos complicar a vida, querido. Que
mais circula sobre o assassinato da moça, dessa tal Isa
Verkavaa?
— Nada de novo. Foi violentada e assassinada com
quatro balas. Procuram Kobo Makebo por ambos os crimes.
Não descobrimos em que se baseiam para acusá-lo, nem
porque a pequena e Makebo estariam na margem do rio. Se é
que foi Makebo quem esteve com ela, é lógico.
— Onde e quando será o encontro? — perguntou a
divina, após uma ligeira reflexão.
— Agora. Vamos para lá. Se você estivei de acordo com
as condições.
— Que condições?
— Dentro de alguns minutos, abandonaremos a estrada
de Nokobi e seguiremos por uma mais estreita. Se, ao
chegarmos a determinado cruzamento, você descer, Kobo
Makebo aceitará a entrevista e aparecerá. Se você não descer
de meu carro, ele compreenderá que preferiu recorrer a outro
processo. Em tal caso, ele nos chamará para marcar outro
encontro. É o que você vai fazer, sem dúvida, hem?
— Não.
— Escute com atenção. Se eu a deixar nesse cruzamento,
podem crivá-la de balas, atirando de diversos pontos ao
mesmo tempo. É uma loucura aceitar isso!
— Sempre fui uma louca — disse Brigitte, com um
amplo sorriso.
— Não quis dizer isso.
— Eu sei, querido. Raciocine, sim? Por muito pouco
esperto que seja esse tal Kobo Makebo, deve ter calculado
que a CIA não deixaria a agente “Baby” numa encruzilhada,
assim sem mais nem menos, sem a devida proteção. A CIA
não o assusta, já que eu aceitei o contato. Por isso, se
comparecer ao encontro, saberá que a CIA me estará
protegendo e que nada haverá, se ele fizer jogo limpo.
Compreende?
— Sim. Mas acontece que nós não preparamos uma
proteção no tal lugar, porque tínhamos certeza de que você
haveria de querer fazer contato de outro modo.
— Santo Deus! Então vocês me preparam um encontro e
não montam um sistema de proteção do local?
— Posso marcar um encontro em condições muito mais
tranquilizadoras para você.
— Não, não. Vamos para lá. Observarei, os arredores,
enquanto passamos de carro, e verei o que vou decidir.
— Mas...
— O tempo vale ouro, Johnny — cortou a divina.
— Mas a vida é mais preciosa — retrucou o espião.
CAPÍTULO SEGUNDO
Vamos entrar na brincadeira

— É Uma loucura — resmungou Johnny, muito pálido.


Brigitte sorriu. Pegou a maletinha vermelha, abriu a porta
do carro e desceu. Fez um sinal ao agente da CIA e ele
reiniciou a marcha, afastando-se da encruzilhada. Quando o
carro perdeu-se de vista, o silêncio tornou-se inacreditável.
As árvores eram enormes. A divina aproximou-se do
indicador do cruzamento e observou tudo a seu redor, com
um olhar inquisitivo. Seu ouvido agudíssimo captou um
ligeiro ruído à retaguarda. Voltou-se naquela direção,
levando a mão ao decote, como se fizesse um gesto casual.
Não viu ninguém. O pó levantado pelo carro de Johnny
ainda não havia baixado de todo, na estrada de terra batida.
Tomou a ouvir o mesmo ruído. Desta vez, seu olhar voltou-
se para o alto. Para uma das árvores frondosas, de folhas
grandes. De um dos galhos, pulou um negro gigantesco,
atlético. Deixou-se cair no chão com elasticidade e firmeza.
.
Brigitte não se mexeu. Contemplou-o, enquanto se
aproximava. Pelas fotografias que tio Charlie lhe mostrara
em Nova York, identificou o gigante de ébano. Era Kobo
Makebo, sem a menor dúvida. Usava calça e camisa escuras
e sapato esporte. Deteve-se a três passos da espiã e
exclamou, sorrindo:
— Olá, senhorita! Não sabe que caminho seguir?
— Mais ou menos — respondeu ela, devolvendo o
sorriso ao ouvir a pergunta feita num inglês perfeito, embora
com um leve sotaque sul- africano. — Estava examinando o
sinal do cruzamento à procura de uma indicação do caminho
para Meca.
— Está muito longe de Meca — murmurou Kobo
Makebo, rindo. — Mas não importa. Afinal todos os
caminhos conduzem a Meca, não é mesmo?
— Claro — balbuciou Brigitte. E acrescentou logo: —
Mora lá em cima?
— Não — respondeu Makebo, olhando para a árvore de
onde pulara pouco antes. — Estava vigiando para ver se
alguém fizera jogo sujo ou limpo. Nunca se sabe o que a
CIA vai decidir e que tipo de arranjos fará com o governo
dos outros países. Logo, tratei de tomar certas precauções.
— Temia uma cilada de minha parte?
— Não — disse Makebo, ficando sério de repente. — Da
sua parte, não. Mas não confio na CIA. Podiam ter dado uma
resposta afirmativa, dizendo que iam entrar em contato com
você, e me terem vendido a Karl De Hoven. Por isso, vim
para cá antes do dia amanhecer, subi nessa árvore e fiquei
esperando. Se fosse uma cilada, eu veria lá de cima e... os
caçadores de negros esperariam por mim em vão. Quando
eles desistissem e caíssem fora, compreendendo que eu não
acudiria ao encontro marcado, desceria da árvore e iria
embora tranquilamente.
— Bem pensado. Passou mais de doze horas lá em cima?
— Procurei uma posição confortável e me acomodei. Que
tal darmos uma voltinha?
Apontou o matagal. Brigitte acompanhou o gesto do
negro e tornou a encará-lo. Balançou a cabeça numa resposta
afirmativa. Sem acrescentar uma só palavra, começou a
andar. Kobo Makebo colocou-se ao lado dela. Foram
andando em silêncio até chegar a um lugar sombreado por
outra árvore gigantesca, igual à outra de onde o negro havia
pulado. O zumbido de alguns insetos era o único ruído que
se ouvia ao redor. Makebo sentou-se junto ao tronco da
árvore frondosa. Ficou olhando para a espiã americana, que
o contemplava fixamente.
— Sei em que está pensando — disse o negro, sorrindo.
— Deve estar dizendo com seus botões: foi num lugar como
este que ele assassinou Isa Verkavaa? Hem? Deve estar a par
dos acontecimentos, é claro.
— Foi você?
— Eu o quê?
— Foi você quem violou e assassinou Isa Verkavaa?
— Fui. Matei-a, mas não a violentei. Ela ofereceu o corpo
em troca de algo que desejava obter. Valorizou-se demais.
— Você tem os tais documentos?
— Exatamente — respondeu o negro, com um brilho
mais intenso nos olhos faiscantes. — Eu e a senhorita
Verkavaa já nos conhecíamos. Ela sabia que eu a admirava
muito e...
— Você a amava? — murmurou Brigitte, vendo-o deixar
a frase pela metade.
— Sim — sussurrou ele, suspirando. — Amava-a. E ela
sabia disso. Jamais confessei meu amor. Não me teria
atrevido a tanto. As mulheres, porém, conseguem captar
certas coisas, mesmo sem palavras.
— É verdade — concordou a divina.
— Quando fugi com os documentos, ela usou de recursos
indiretos para fazer-me saber que estava preocupada comigo.
Fiquei surpreso. Senti, ao mesmo tempo, uma profunda
alegria. Seria possível? Dei um jeito de telefonar para a casa
dela em Nokobi. Pedi-lhe para não se preocupar e afirmei
que estava bem. A voz dela soou tão doce. Parecia tão
sincera! Acabou confessando seus sentimentos em relação a
mim. Telefonei outras vezes. De lugares diferentes.
— Finalmente, ela disse que queria vê-lo.
— Sim. Marquei encontro junto ao rio Nobo. Ela foi.
Verifiquei logo que algo não estava certo. Ela insistiu
demais, falando nos documentos que eu tinha roubado.
Compreendi também que não viera sozinha. Devíamos estar
cercados de soldados, de policiais ou de componentes de
algum Corpo Especial. Felizmente, eu havia tomado
precauções para chegar ao local do encontro e preparara
muito bem minha partida. Não queria que ninguém a visse
comigo. Nós nos amamos fisicamente naquele lugar, é
verdade. Por que não? Eu adorava o corpo muito branco de
Isa. E o possuí. Eu a amava e a tive. Foi minha. Inteiramente.
— Não se torture mais — disse Brigitte, vendo a
expressão dolorida que cobriu o rosto do gigante negro. —
Ela desejava algo de você: sua vida. Quando você tivesse
entregue os documentos ou dito onde se encontravam, ela
teria chamado os soldados para matá-lo.
— Sem dúvida. Fiz mal em antecipar-me, matando-a?
— Não. Ela jogou e perdeu.
— Seria capaz de confiar em mim? — perguntou Kobo
Makebo, fixando os olhos azuis da espiã.
— Não sei. Diga-me o que deseja e veremos qual será a
minha decisão.
— Quero entregar os documentos. Tratam da situação dos
cidadãos negros de Southland, sua influência no país, suas
possibilidades de um dia tomar o poder definitivo e um
estudo sobre o modo de cometer o maior genocídio de toda a
história da África.
— A que se refere?
— Karl De Hoven e seus especialistas planejaram um
modo de eliminar, a curto prazo, mais de três milhões de
pessoas de raça negra neste país.
— Está falando a sério? — exclamou Brigitte Montfort,
empalidecendo.
— Nunca falei tão sério em minha vida. Não a chamei
para dizer bobagens. Os dirigentes desta nação usam e
abusam dos negros. Decidiram, agora, eliminar três milhões
de pessoas. Contra o abuso, podemos lutar, aceitando certas
derrotas enquanto nos encaminhamos para a vitória final.
Contra o segundo item, não sei o que fazer. Quando consegui
esses documentos e os li, tive a impressão de que ia morrer
de angústia. Não queria acreditar. Mas os documentos
estavam em minhas mãos. Tinha diante dos olhos os estudos
para a execução do genocídio, com todos os detalhes.
— Qualquer um pode ter escrito esses documentos,
senhor Makebo. Quem sabe se faz parte de uma jogada
estranha que...
— Acredita nisso — cortou Kobo, com voz firme. —
Vou mostrar os papéis. Verá a assinatura de Karl De Hoven
em todos eles. Dispõe de excelentes calígrafos, não é
mesmo? Dispõe de todos os meios imagináveis para verificar
a autenticidade ou a falsidade de uma assinatura, não é
assim?
— Claro.
— Muito bem. Deixarei os documentos em suas mãos.
Faça o que quiser para assegurar-se de sua autenticidade.
Depois, suplico, diga o que podemos fazer para evitar esse
genocídio.
— Poderia ter apresentado esses documentos a outras
pessoas, senhor Makebo. Não só em Southland, como em
outros países. Poderia lê-los apresentado à ONU. Não
pensou nisso?
— Pensei.
— Mas escolheu a mim. Por quê?
— Em meu trabalho, no Ministério do Interior, tive
ocasião de ler alguns documentos relacionados com nosso
serviço de espionagem que a mencionavam. Devido a esse
mesmo trabalho, tive oportunidade de conhecer alguns
agentes secretos de diversos países: russos, ingleses,
alemães, franceses. Um dos temas prediletos de suas
conversas era a agente “Baby” da CIA. Partindo dessas
conversas, tirei minhas conclusões sobre a senhorita.
— Que conclusões?
— Pensei o seguinte: se os russos, os alemães, os ingleses
e outros espiões falavam a seu espeito com tanta admiração,
a senhorita devia ser algo muito sério. Refleti sobre isso e
observei um detalhe. O que a diferençava dos outros é que,
ao fazer um trabalho, não beneficiava exclusivamente a CIA.
Também se preocupava com quem necessitava de ajuda,
com quem estava em perigo de ser maltratado. Acha
censurável o projeto de assassinato de três milhões de
negros?
— Quero ver esses documentos.
— Aí está o problema.
— Explique-se, por favor.
— Não vai ser fácil consegui-los. Pelo menos para mim,
não será fácil.
— Não os tem? Onde estão?
— Em meu apartamento em Nokobi. Deixei-os lá, ao sair
para procurar um meio de entrar em contato com um dos
agentes da CIA. Felizmente escondi-os bem. Quando voltei a
meu apartamento, ele havia sido invadido. Percebi, ao me
aproximar de carro, que algo de anormal estava acontecendo
por ali. Apareceram muitos soldados de arma na mão e me
mandaram parar. Calculei logo que haviam descoberto tudo.
Já sabiam que eu roubara os papéis.
— Roubou os documentos ou fotocópias deles?
— Os originais.
— Que aconteceu, ao ver os soldados?
— Fugi. Joguei o carro sobre eles. Afastei-os de meu
caminho e fugi. Atiraram, mas consegui escapar.
— E os documentos continuam em seu apartamento?
— Sim. Tenho certeza disso. Se os tivessem encontrado,
não teriam sacrificado a beleza imaculada de Isa, para reavê-
los. Devem ter revistado o apartamento, mas nada
encontraram. Talvez não tenham procurado direito,
imaginando que eu não iria esconder um roubo tão valioso
em minha própria residência.
— É possível — admitiu Brigitte. — Sendo assim, além
de persegui-lo, devem ter aborrecido uma porção de amigos
seus, senhor Makebo.
— Sim. Mas nada de grave aconteceu. Também
incomodaram os da Comissão.
— Que comissão?
— A nenhum outro agente eu diria — murmurou Kobo,
encarando a divina com um olhar penetrante e sincero. — Só
à senhorita. Existe na Southland um grupo de negros
dedicados ao estudo de leis e dispositivos sobre os direitos
da população negra do país. Esse grupo de homens de raça
negra chama-se Comissão. Tudo se faz no maior sigilo
possível e espero que muito breve a Comissão tenha
terminado a relação da Whiteblack Law para apresentá-la ao
Governo.
— Lei Branco e Preto — murmurou Brigitte, sorrindo. —
Muito interessante. O presidente Karl De Hoven e seus
companheiros de governo sabem disso?
— Naturalmente. Por isso, pela iminência da
apresentação da Whiteblack Law com suas exigências e
direitos para os negros, prepararam a toda a pressa o
genocídio. Claro que sabem! Tentaram, inclusive, perturbar
o processo de criação da Whiteblack Law, lançando mão de
vários sistemas. Sabem que essa lei será justa para os
brancos e para os negros. Por esse motivo, passaram à
contraofensiva. Querem antecipar-se à culminação dessa lei.
Não estão dispostos a conceder igualdade de direitos aos
negros, em relação aos brancos. O meio mais simples de
evitá-lo, que ocorreu a Karl De Hoven e seus seguidores, foi
a extinção em massa da população negra do país.
— Como pretendem realizar esse massacre? Que meios
pensam utilizar e quando?
— Como sabe, em todos os lugares e em todas as raças
existe gente que procura apenas o lucro pessoal. Por
exemplo: se um branco pudesse enriquecer repentinamente,
colocando-se ao lado dos negros contra os brancos, talvez
não hesitasse em fazê-lo. O mesmo acontece entre os negros.
Karl De Hoven sabe que há chefes negros de três tribos
dispostos a apoiá-lo em troca de promessas especiais.
— Como esses chefes de tribos apoiariam o presidente?
— Karl De Hoven oferecerá privilégios a cada um dos
três chefes para que eles ataquem as outras tribos. Mesmo
sendo negros, pertencemos a diversas tribos diferentes. Há
uma rivalidade imbecil entre todas essas tribos. Karl De
Hoven oferecerá a cada uma das tribos, secretamente, armas
e todos os tipos de facilidades. Cada um dos três chefes
pensará que foi o único escolhido. Resultado: os grupos de
raça negra se enfrentarão uns aos outros, causando a morte
de três milhões de seres de todos os grupos, sem distinção de
sexo ou idade. Depois disso, a raça negra de Southland ficará
à mercê da raça branca durante mais de um século.
— Se estiver querendo enganar-me com essa história,
senhor Makebo, não sobreviverá durante muito tempo, ouviu
bem? — disse a divina, depois de refletir um instante. —
Posso morrer numa armadilha. Mas, pouco depois, você
seria transformado em picadinho. Sabe disso, hem?
— Suas palavras não me impressionam, porque não estou
querendo enganá-la.
— Muito bem. Não me parece fácil recuperarmos os
documentos escondidos em seu apartamento, em Nokobi.
— Exato. O apartamento está vigiado. Pensei em reunir
um grupo de amigos e atacar de frente, mas cheguei à
conclusão de que teria poucas probabilidades de recuperar os
papéis. E muitas de matarem meus amigos. Por isso, desisti.
Confio na senhorita.
— Bem, não sou invisível, senhor Kobo.
— É evidente — murmurou o negro, sorrindo . — Mas
disseram que é infalível. Oh, vamos. Não estou falando com
uma mulher comum e sim com uma espiã que há muitos
anos obtém tudo o que deseja. É encantadora, doce, parece
inofensiva... mas é a agente “Baby”. Não me deixo, portanto,
enganar pelas aparências. Quem fez o que tem feito até agora
não vai falhar no que estou pedindo. E o que a senhorita fez
até agora, ninguém mais fez.
— Sua confiança em mim é comovedora. Convenceu-me,
confesso. Como acabou de dizer, tenho muitos anos de
espionagem. Logo, perdoe-me, se me reservo uma margem
de dúvida. Compreende?
— Sim.
— Portanto, agiremos a meu modo. Estou disposta a
arriscar a vida para conseguir essas informações. E, depois
de lê-las, enviá-las ao Conselho de Segurança das Nações
Unidas. Enquanto eles examinam os papéis, darei uma lição
no senhor De Hoven e em seus amigos. Também ajudarei a
Comissão a concluir essa Whiteblack Law, que me parece
maravilhosa. Também está disposto a arriscar a vida, senhor
Makebo?
— Já o estou fazendo, não acha?
— Muito bem. Direi exatamente como devemos agir.
Chamarei meu companheiro da CIA que está aqui perto com
o carro. O senhor se transformará em nosso prisioneiro. Vai
deixar-se desarmar e amarrar, Dirás então, onde fica seu
apartamento de Nokobi e eu irei até lá em busca das
informações, cujo esconderijo também me fornecerá. Se eu
conseguir reaver os documentos, ou mesmo que não os
consiga, e se notar que não houve cilada alguma de sua
parte, o senhor continuará vivo. Mesmo que eu morra. Serão
as instruções que darei a meus colegas da CIA. Mas se eu, de
seu apartamento, chamar meus companheiros, prevenindo-os
de que se tratava de uma armadilha para me agarrarem, sua
situação se tornará crítica, senhor Makebo.
— A senhorita pode enganar-se. Há vigias em torno do
prédio. Se a matarem ou se a capturarem, como ficaria
sabendo quem foi o causador dessa morte ou dessa captura?
Eu, ou os soldados do governo. De De Hoven?
— Será obrigado a correr esse risco, senhor Makebo —
murmurou a espiã, sorrindo. — Pode aceitar minha proposta
ou recusá-la.
— Aceito — disse Kobo, respirando fundo.
— Acalme-se — acrescentou a divina. — Saberei
defender-me, se enfrentar uma vigilância direta e normal ou
de uma cilada, acredite.
— Por que se preocupa tanto? — perguntou o negro,
esboçando um sorriso. — Conseguirá apanhar as
informações e sair de meu apartamento. Tenho certeza!
Brigitte respondeu com um movimento afirmativo de
cabeça. Tirou da maletinha vermelha o rádio portátil e fez a
chamada.
— Pronto? — quase gritou Johnny-Noboki pelo
aparelhinho.
— Venha recolher-nos no cruzamento, querido.
Entraremos na brincadeira.

CAPÍTULO TERCEIRO
A negra velha

Anoitecera há mais de duas horas, quando a negra velha


apareceu na Manners Street, andando vagarosamente. Era
uma zona agradável, com belos edifícios brancos e de cor
ocre, com terraços floridos. Quase não se via gente branca
por ali. A não ser na viatura militar, em cujo interior devia
haver uma boa quantidade de soldados . Os soldados, de
certo modo, não eram tão perigosos assim, pois operavam
abertamente. Como os dois que passeavam pelas imediações
do número 220, um prédio de categoria superior aos da
maior parte daquela zona.
A velha contabilizou três pares de soldados armados de
fuzil e mais os que estivessem na viatura fechada. Os poucos
homens de raça branca que passassem por ali poderiam ser
inimigos. Esses, porém, seriam facilmente identificáveis. Os
negros constituíam o maior perigo. Qualquer um deles talvez
estivesse vendido ao poder branco, ao dinheiro branco.
Qualquer negro inofensivo podia ser a corda que se
enroscaria no pescoço de quem se atrevesse a entrar no
número 220.
Quem, entretanto, se preocuparia com a presença de uma
negra velha, encurvada, caminhando com dificuldade,
apoiada a uma bengala?
A anciã atravessou a rua, subiu para a outra calçada e foi
direto ao vestíbulo do prédio. Nada aconteceu. Entrou e
observou a rua, através da porta de vidro. Nenhuma
novidade. Os dois soldados continuavam seu passeio, depois
de observá-la com indiferença. A viatura militar continuava
fechada. Ninguém se aproximou. Ninguém se interessou pela
velha.
Com passos lentos, dirigiu-se à escada. O prédio não
tinha elevador. Subiu os degraus, apoiando-se à bengala.
Nada aconteceu. Um silêncio absoluto dominava o edifício.
A anciã levou quase quatro minutos para chegar ao terceiro
pavimento. Surgiu no patamar, respirando com dificuldade.
Olhou para a direita e para a esquerda. O corredor estava
absolutamente vazio. A velha gastou alguns segundos
recuperando o fôlego. Enquanto isso, seus olhos miúdos e
vivos movimentaram-se nas órbitas, sob as pálpebras
enrugadas.
Ao reiniciar a marcha, não bateu com a bengala no chão.
Procurou não fazer o menor ruído. Nem sequer tossiu mais.
Parou diante da porta onde havia a letra C. Parou como se
quisesse apenas descansar. Seus olhos tornaram a girar em
todas as direções. Em seguida, mais calma, abriu a bolsa
preta, pendurada no ombro, meteu a mão dentro dela,
remexeu um pouco e retirou uma chave. Tornou a olhar para
os lados. Meteu a chave na fechadura e girou-a. Empurrou a
porta e deu um passo para entrar no apartamento.
— Não se mexa — gritou uma voz em inglês.
A velha deu um gritinho de susto e voltou-se para a
retaguarda, de onde viera a ordem. Seus olhos se
arregalaram, ao deparar com os dois homens brancos que se
aproximaram, apontando para ela as pistolas de calibre
pesado. A porta do apartamento vizinho escancarou-se e
mais dois homens avançaram para o corredor. Um deles era
negro. Todos de armas em punho. À paisana. Nada de fardas.
— Deixe cair a bolsa e encoste-se na parede — ordenou o
homem mais próximo.
A velha começou a gemer e a suplicar, balbuciando
palavras que os brancos não entenderam. Na porta de outro
apartamento, o negro enrugou a testa, também sem entender
o que a anciã estava dizendo. Com gestos rápidos, um dos
homens apalpou a velha, passando as mãos ágeis pelo corpo
encurvado.
— Examine a bolsa — rosnou o companheiro, sempre em
inglês. — Que diabo espera encontrar no corpo dessa pobre
velha?
— Nunca se sabe.
A anciã, realmente, nada carregava escondido no vestido
marrom que lhe batia pelos tornozelos. Deixando a negra de
lado, o homem agarrou a bolsa e abriu-a. Observou o
conteúdo. Encontrou um livro em inglês, lenços, um maço de
cigarros, fósforos, óculos, uma tesourinha, um rádio
transistor de fabricação americana, um saquinho de
bombons. O homem ficou com a bolsa pendurada no braço
esquerdo, com o livro na mão do mesmo lado, e a pistola na
direita.
— Fala inglês? — perguntou, encarando a velha e
agitando o livro.
A anciã respondeu com um grunhido. Estava apavorada.
Não se entendia uma só de suas palavras. Notaram,
entretanto, que ela se esforçava para falar inglês.
— Pare de gemer — gritou o homem. — Ou lhe
arrebento os dentes com um murro. Entendeu?
A velha emudeceu. Os olhos estavam arregalados,
observando os dois homens a seu lado. Voltou a atenção para
os que permaneceram na porta do outro apartamento.
— Quem lhe deu esta chave? — perguntou o que estava
sem a bolsa. — Kobo Makebo?
— Foi ele? — insistiu o que a revistara, empurrando-a de
encontro à parede. — Foi Makebo?
— Não — respondeu a velha, soluçando.
— Quem foi então? De onde a tirou e o que veio procurar
aqui? Quem é você?
— É melhor entrarmos — disse o primeiro, apontando a
porta aberta do apartamento G. — Acenda a luz.
O segundo empurrou a anciã para o interior do
apartamento. O companheiro os seguiu. Fez um sinal aos que
estavam na porta do apartamento vizinho e bateu a porta,
furioso. Dirigindo- se à negra velha, rosnou.
— Vamos ver quantos dentes restam nessa boca.
A velha abriu a boca e os dois homens ficaram
espantados, ao depararem com uma dentadura branca,
intacta, perfeita, maravilhosa.
— Impossível! — resmungou o que segurava a bolsa da
prisioneira.
— Não seja idiota — cortou o outro. — É uma dentadura
postiça, não está vendo logo? Mas de qualidade. Logo, a
avozinha tem dinheiro. Não deve ser uma morta de fome.
Claro. Makebo é amiguinho dela! Mãe dele não é. Talvez
seja tia ou avó. Uma parenta qualquer. Conhece Makebo?
— Não — respondeu a anciã, tremendo.
— Acabará nos obrigando a lhe dar umas bordoadas —
ameaçou o da bolsa. — É o que você quer? Que tiremos suas
tripas pela boca, a patadas, negra asquerosa?
A velha recuou. Os dois homens se aproximaram mais,
encarando-a com uma expressão sinistra e divertida ao
mesmo tempo.
— Com o primeiro pontapé, vou aumentar esse buraco
fedorento que você tem entre as pernas! Entendeu? Depois...
— Não! Não! — balbuciou a prisioneira. — Foi ele, foi
ele!
— Kebo Makebo lhe deu a chave?
— Sim, sim, sim!
— Para quê? Que veio procurar aqui?
— Apanhar uma coisa — respondeu a velha, quase sem
voz. — Uns papéis. .
— Que papéis?
— Não sei. Ele me disse onde estão e preciso levá-los.
Ele garantiu que nada me aconteceria.
— Esta nojenta está mentindo — cortou o da bolsa. —
Revistamos o apartamento cem vezes e nada encontramos
que valha a pena.
— Onde estão os tais papéis? — insistiu o segundo.
— Atrás de um quadro — sussurrou a anciã.
— Que quadro?
— Um que há na sala — disse ela, assustada. — Uma
paisagem africana onde aparece um rio com uma árvore.
Num dos galhos da árvore, há um macaco pendurado.
Os dois homens trocaram um olhar de entendimento.
Lembravam-se de ter visto um quadro como aquele, na sala.
Empurraram a velha pelo corredorzinho e ela teria rolado
pelo chão, se não se apoiasse à bengala. O da bolsa acendeu
a luz da sala de estar, jogou a bolsa no sofá e correu para o
quadro que a anciã descrevera. Examinou-o rapidamente e
voltou-se para a prisioneira, com um olhar assassino.
— Está dentro do quadro — murmurou ela, trêmula.
Bateu com o quadro na quina de uma cadeira, espatifando
o vidro. Retirou a gravura. Por trás dela, protegida pelo forro
de papelão que fechava o quadro por trás, havia realmente
uns papéis.
— Finalmente — exclamou o homem, satisfeito. —
Conseguimos! Tome. Guarde os documentos e tratemos de
cair fora daqui. A vovozinha nos dirá onde Makebo está
escondido. Não é mesmo, velha?
— Eu não sei. Não sei onde ele está. Ficou de me chamar
pelo telefone.
— Veremos isso depois. Bem, não foi perda de tempo
vigiarmos o apartamento. Siga na frente, vovó. Vamos levá-
la para um lugar onde logo recuperará a memória. Andando,
lixo!
O segundo homem guardou os documentos no bolso
interno do paletó. Riu, ao ver o companheiro erguer o pé
para dar um chute na bunda da velha. Mas o riso congelou-se
em seus lábios. Em primeiro lugar, o pé do colega não
atingiu as nádegas da anciã, porque ela se afastou com uma
agilidade espantosa, numa atitude elegante. Ao se afastar,
girou num dos pés, enquanto o outro avançou como um raio
para o homem que ia chutá-la. O pé, calçado com um sapato
resistente, enterrou-se nos órgãos genitais do sujeito,
arrancando-lhe um grito de dor e obrigando-o a encolher-se,
pálido, sem forças.
A reação atrasada do que guardara os documentos foi
levar a mão ao peito para sacar a arma. Também nada
conseguiu de positivo. A velha avançou para ele, com a
bengala em posição horizontal. De dentro do bastão, saiu
uma lâmina de aço, comprida e afiada. O homem
empalideceu e ficou petrificado. A mão continuou apoiada
ao peito, sendo atravessada pelo estilete agudo que penetrou
em sua carne até atingir o coração. O homem revirou os
olhos, a boca acabou de se escancarar, uma palidez ainda
maior cobriu suas feições. A anciã soltou a bengala-estilete.
O homem recuou, caiu sentado numa poltrona e rolou para o
tapete, ficando de costas, com os olhos querendo saltar das
órbitas.
A negra voltou-se para o outro adversário, que continuava
encolhido e gemendo, e murmurou:
— Vocês são só papo! De espião, não possuem nem as
unhas. Oh, meu Deus, estou morrendo de calor!
Tirou a peruca branca e o vestido, sob o qual usava outro
mais leve e muito mais elegante, numa tonalidade azul-claro.
Tirou o segundo vestido e soltou a faixa que lhe apertava os
seios. Libertou-os, deixando-os soltos, rijos, empinados,
redondos como duas maçãs maduras e apetitosas. Brigitte
Montfort passou a mão por eles, suspirando de alívio.
— Coitadinhos — murmurou, dirigindo-se aos seios. —
Maltrato tanto vocês, meus amores! Desculpem, sim?
Despiu-se inteiramente, tirou da bolsa dois lenços.
Ensopou-os na colônia que havia num frasquinho e
massageou o rosto. As rugas desapareceram rapidamente.
Mas a pele continuou escura. Em menos de um minuto, a
anciã transformou-se numa negra esbelta, linda, de cabelos
compridos e sedosos. Tornou a vestir o vestido azul, pegou
suas coisas, meteu-as na bolsa. Apanhou os documentos no
bolso interno do paletó do morto e guardou-os também.
Retirou o estilete do peito do cadáver. Limpou-o na roupa do
homem e meteu-o na bengala, resmungando:
— Nunca mais quebrará os dentes de nenhuma negra
asquerosa.
Aproximou-se do outro inimigo que continuava
encolhido, gemendo de dor. Tomou-lhe a pistola que caíra
pouco antes e encaminhou-se para a saída. Passou a bengala
para a esquerda e manteve a pistola na direita. Com dois
dedos, girou a maçaneta, abriu a porta e passou para o
corredor, depois de verificar se a porta do apartamento
vizinho estava fechada. Retirou a chave de Kobo Makebo,
guardou-a, atravessou o corredor e bateu à porta em frente.
Três ou quatro segundos depois, o negro apareceu, dizendo:
— Já chamamos a...
Sua cabeça estalou sob o impacto do golpe dado com a
culatra da pistola. O negro caiu de costas, ainda com os
olhos arregalados pela surpresa que teve. O outro homem
apareceu no portal e parou, ao ver a arma apontada para o
centro de seu peito.
— Não estou interessada em saber quem vocês chamaram
— disse a bela negra, com ar amável. — Mas quero que
levem uma mensagem a Karl De Hoven. Digam a ele que as
informações estão em poder de Mabua Luna. Sou eu. Sugiro
que fique quietinho até eu entrar em contato com ele.
Amanhã, talvez. Qualquer iniciativa que o senhor De Hoven
tomar antes de ter conversado comigo, será um desastre para
ele e para seus planos. Se esperar até entrarmos em contato,
tudo pode se resolver ainda melhor do que ele planejou.
Compreendeu bem a mensagem?
— Sim.
— Vire de costas para mim e ponha as mãos na nuca.
O homem obedeceu. Vacilante. Assustado. Sabia o que ia
acontecer e revoltava-se intimamente pela ideia de receber
uma pancada na cabeça e por estar nas mãos da negra
amaldiçoada. Tratou, portanto, de se preparar para revidar,
quando ela estivesse bem perto. Seu ouvido, porém, não era
suficientemente apurado, pois não percebeu quando Mabua
Luna se colocou às suas costas. Ao receber a pancada, uma
explosão de estrelas luminosas invadiu sua mente. Nada
mais pôde fazer, exceto cair de bruços, mergulhado numa
escuridão profunda, que se seguiu à explosão luminosa.
Um minuto mais tarde, Mabua Luna saiu do edifício,
andando com graciosidade, apesar de levar escondida sob a
saia a bengala-estilete. Mal deu dois passos na calçada,
deparou com o par de soldados. Os lábios da jovem e bela
negra se apertaram e sua fisionomia endureceu.
— Negra — disse um dos soldados, plantando-se diante
dela. — Você é espetacular. Eu seria capaz de matá-la de
mordidas se a apanhasse nuazinha em cima de uma cama!
Mabua Luna esquivou-se do soldado. Passou junto do
outro e continuou a se afastar. Mais adiante, encontrou nova
dupla de soldados.
Também a contemplaram com olhares libidinosos e
esfomeados. A viatura militar continuava no mesmo lugar.
Imóvel. Sombria. O soldado balançou a cabeça, ao ver
Mabua Luna passar. Estalou a língua e trocou um olhar com
o colega, perguntando:
— Que tal a, negra?
— Se todas fossem iguais a essa, eu passava para o lado
dos mortos de fome — respondeu o outro, rindo.
— Eu também. Pena é que há poucas como essa aí. Viu a
velha que entrou no prédio há pouco?
— Deus me livre — exclamou o segundo Soldado,
cuspindo enojado.
— Bem, vamos continuar a ronda. Embora não acredite
que Makebo tenha coragem de dar as caras por aqui.
CAPITULO QUARTO
Uma negra espetacular

Kobo Makebo contemplou espantado a linda negra


parada à sua frente. Não estava sonhando, é claro. A negra
tinha a voz da famosa agente da CIA e lhe entregara os
papéis com as informações sobre os planos de Karl De
Hoven. Ouviu-a explicar, com simplicidade, o que se passara
no apartamento. Quando a negra terminou a narrativa,
Makebo murmurou:
— Foi tão fácil assim?
— As coisas simples são sempre as mais fáceis —
respondeu Mabua Luna, sorrindo. — Não acha?
— Sim, mas...
— Preste atenção, senhor Makebo. O quarteirão estava
cercado. Há soldados a pé e numa viatura parada na esquina.
Na certa, puseram homens nos pátios internos dos prédios.
Qualquer plano elaborado, por muito audacioso que fosse,
teria custado inúmeras vidas. Sabe onde se deve atacar o
inimigo?
— Onde?
— Em suas posições mais sólidas. Seria loucura tentar
atacar, procurando não ser vista. Nada teria conseguido,
garanto. Realizando um ataque direto, frontal, nem me
deram importância.
Kobo Makebo estava no apartamento de um dos agentes
da CIA, para onde fora levado após o encontro na
encruzilhada. Quando a divina apareceu, Kobo foi libertado
das cordas que o prendiam.
— É fantástico! — exclamou o gigante de ébano, rindo.
— Conseguiu reaver os documentos! Já os leu, sem dúvida,
não é mesmo? Com toda a certeza, até já tirou cópias em
xerox.
— É evidente. Bem, senhor Makebo, já tem os papéis.
Que faremos agora?
— Que faremos? — exclamou Makebo, espantado. —
Estou à espera de ouvi-la dizer qual o melhor modo de
utilizarmos estas informações.
— Perfeitamente — murmurou Brigitte. — Se dissesse
qualquer outra coisa, nossas relações sofreriam uma ligeira
alteração. Fica decidido, então, que resolvo o que se deve
fazer.
— Por isso, recorri à senhorita. Ei, por que não tira essa
pintura negra. Estou ficando nervoso de ver uma negra de
olhos azuis.
— Não é pintura. Permanecerei negra durante mais três
quartos de hora. Minha pele é autenticamente negra, senhor
Makebo.
— Não compreendo. Explique, por favor.
— Quando viajo, levo na bagagem uma substância
fabricada por um colega da CIA, chamada Blackcolor.
Injeta-se essa substância sob a pele e a pigmentação torna-se
negra. Dependendo da dose, o efeito pode durar alguns
minutos ou vinte e quatro horas.
— Está brincando — balbuciou Makebo, sorrindo.
— Não — respondeu a divina, balançando a cabeça.
— Por que não pede a seu amigo para inventar algo
parecido, mas com efeito oposto, que sirva para tornar
branca a pele dos negros?
— Por que quer ser branco?
— Não quero — respondeu Makebo, sem hesitar. — Eu
me conformaria se respeitassem meus direitos de ser
humano, sendo negro ou não!
— Cuidaremos desse problema — disse Mabua Luna. —
Gostaria de dar uma olhada em todos os artigos, parágrafos e
todos os detalhes que pretendem incluir na Whiteblack Law.
— Ótimo — apoiou Makebo. — Vamos a isso. Mas
como?
— Não é amigo dos componentes da Comissão?
— Não sou coisa alguma nesse setor, acredite. E tire da
cabeça a ideia de que a Comissão permitirá que faça um
exame da Lei, antes da publicação oficial. Não confiarão
numa agente americana.
— Compreendo — murmurou Brigitte. — Mas você é
amigo deles e está arriscando sua vida.
— Esqueça isso. A Comissão me trata amistosamente.
Como um amigo fiel, é verdade. Mas, no fundo, pelo simples
fato de eu estar trabalhando ao lado dos brancos no
Ministério do Interior, cargo que poucos de minha raça
conseguem, não sou muito bem visto. Apesar de se dizerem
meus amigos, não confiam muito em mim.
— Que contratempo! Não desistirei de ler o conjunto de
disposições da Whiteblack Law, senhor Makebo.
— E tenho certeza de que acabará atingindo seu objetivo
— balbuciou ó negro, dando de ombros. — Mas não graças a
mim, nem com a minha ajuda. Não confiarão em mim,
repito.
— Poderia, ao menos, colocar-me em contato com algum
membro da Comissão?
— Posso.
— Os componentes da Comissão sabem dos propósitos
de Karl De Hoven, isto é, conhecem o conteúdo destes
documentos?
— Não. Falei com dois membros da Comissão. Sugeri
algo a respeito, mas não disse claramente o que De Haven
está tramando. Preveni-os, porém, de que a situação está
indo de mal a pior. Perguntaram que provas eu tinha para
falar assim. Quando declarei que possuía documentos,
ficaram encantados e ansiosos para lê-los. Desculpei-me,
explicando que os papéis ainda não estavam em minhas
mãos. Aí, eles me pediram para tornar a procurá-los, quando
as provas estivessem comigo.
— Pois chame-os e diga que já recuperou as informações.
Proponha uma troca. Permitiremos que eles leiam os papéis,
se nos deixarem dar uma olhada nos textos da Whiteblack
Law.
— Não aceitarão — balbuciou Makebo, desanimado. —
Vão achar que estamos fazendo chantagem com eles. Que
estamos tentando coagi-los.
— E estamos — exclamou Mabua Luna, rindo. — Há um
ditado que diz: quem quer algo, deve pagar. Chame um
desses cavalheiros e diga que, se não aceitar nossa proposta,
o caso passará diretamente para as mãos da CIA, com todas
as consequências que possa acarretar.
— Não pode fazer isso!
— Não. Mas posso dizer que farei.
— Telefono daqui mesmo? — perguntou Makebo, após
uma ligeira hesitação.
— Claro. Não há perigo de localizarem o telefone e
coisas parecidas. Isso é coisa de cinema. Além do mais, não
estou lidando com espiões e sim com homens... de leis. Faça
a ligação. Oh! Parece que bateram à porta, Johnny.
— Sim — concordou o inquilino do apartamento,
encaminhando-se para o hall de entrada.
Mabua Luna apontou o telefone. Makebo pegou o
aparelho e começou a discar. Mal disse duas palavras,
Johnny reapareceu na sala, em companhia de outro agente
americano que até então não havia interferido. O segundo
Johnny trazia uma pasta. Ao vê-lo, Brigitte ficou de pé.
— É o que pedi? — perguntou, encaminhando- se para o
recém-chegado.
— É.
— Esplêndido! Vamos examinar todo esse material.
Fique com Makebo, Johnny, para ajudá-lo, caso ele precise
de qualquer coisa.
Fez um sinal a Johnny-Nokobi, que se apressou a ir para
junto dela. Passaram para o quarto. A divina sentou-se na
beira da cama. O agente puxou uma cadeira e sentou-se
diante dela. Abriu a pasta e tirou fotografias, folhas
datilografadas e recortes de jornais. A negra de corpo
espetacular examinou tudo com atenção. Em silêncio.
Começou pelas fotos e pelos recortes, que também
continham fotografias. Karl De Hoven aparecia em quase
todas. Era um homem de quarenta e poucos anos. Alto,
louro, atraente, atitude orgulhosa, olhos claros, queixo firme,
boca decidida. Um homem seguro de si. O triunfador
implacável.
A família era simpática. A esposa, também loura,
aparecia em algumas fotos, ao lado dos filhos. Aparentava
ser seis ou sete anos mais jovem. Do casal de filhos, a moça
tinha uns quatorze anos e o menino onze ou doze. Bonitos e
decididos como o pai. Ambos louros, de olhos claros e pele
branquíssima.
Brigitte deixou de lado as fotografias e dedicou-se à
leitura das folhas datilografadas. Sem pressa. Sempre em
silêncio. Kobo Makebo apareceu na porta do quarto. Abriu a
boca para dizer qualquer coisa, mas desistiu, diante do gesto
autoritário de Johnny-Nokobi, pedindo-lhe para esperar um
pouco.
— Bom trabalho, Johnny — disse a espiã, quando
terminou a leitura.
— Não tem grande importância — murmurou o agente da
CIA. — A maior parte do material é do nosso arquivo.
— Deseja alguma coisa, senhor Makebo? — perguntou a
divina, vendo o negro parado na porta do quarto.
— Um dos membros da Comissão está ao telefone.
Concorda com uma entrevista amanhã, por volta das onze
horas?
— Não pode ser esta noite?
— Não creio. Ele deve falar com os outros, é evidente.
— Está certo. Amanhã. É até bom, porque assim poderei
dormir algumas horas. Preciso descansar da viagem. E agora,
senhor Makebo, tenha a bondade de esperar-me na sala, sim?
— Seu pedido indica que não devo ouvir o que estão
conversando aqui?
— Exatamente.
— Ainda não confia em mim?
— Confio, mas não quero que saiba o que estou
tramando, quando formos falar com os membros da
Comissão, amanhã cedo. Não se trata de desconfiança sobre
sua sinceridade e sim sobre sua capacidade de hermetismo.
— Não entendi muito bem. Na certa, me dará explicações
no momento oportuno. Até logo.
Makebo saiu do quarto. Após alguns segundos de
silêncio, Mabua Luna espalhou as fotografias em cima da
cama. Pegou as folhas datilografadas e voltou-se para o
homem da CIA, que a contemplava, boquiaberto, diante de
tanta beleza.
— Muito bem — murmurou ela. — Segundo estas
informações sobre...
CAPÍTULO QUINTO
A Comissão

Às onze horas da manhã seguinte, o carro de Johnny-


Nokobi dirigido por Kobo Makebo parou no lugar do
encontro. Diante do carro, havia uma casa de madeira, velha
e descuidada, que ficava no final de um caminho estreito,
poeirento e margeado de vegetação abundante. Um cachorro
magro olhou para o carro, de um dos ângulos da casa, mas
não latiu, nem avançou.
— Tem certeza de que é aqui? — perguntou Brigitte.
Makebo respondeu com um movimento afirmativo de
cabeça, voltando-se para a linda mulher sentada a seu lado.
Já não era morena de olhos azuis, nem a bela negra da
véspera. A agente da CIA era, naquele momento, uma loura
de olhos verdes, cheinha de corpo, aparentando mais de
quarenta anos.. Seu aspecto era tão diferente dos dois
anteriores que uma dúvida surgiu no espírito de Makebo:
qual das três versões seria a verdadeira?
— Vamos — murmurou a loura, suspirando. — Espero
que sua opinião sobre essas pessoas esteja certa, Kobo.
— Está, acredite. Podem fazer coisas ruins, como todo o
mundo, mas, se concordaram com o encontro, não tentarão
uma jogada suja. Desde que nós não tentemos, é claro.
A loura pegou a maletinha vermelha e saiu do carro pelo
lado direito. Makebo desceu pelo outro lado. Encaminharam-
se para a casa. O cachorro começou a latir. Brigitte captou
um movimento por trás dos vidros de uma das janelas. A
porta abriu-se, quando estavam a poucos passos dela. Um
negro alto e robusto apareceu. Tinha os cabelos inteiramente
brancos. Como algodão. Usava uma camisa colorida, velha e
remendada, calça cáqui presa na cintura por uma corda e
estava descalço.
— Venham — disse ele, em inglês. — Estão à espera dos
dois.
Recuou, ficando junto da porta. Brigitte e Makebo
entraram na casa velha. Viram os quatro homens de pé, no
fundo da sala que servia ao mesmo tempo de cozinha. Todos
eles observaram a loura com enorme atenção. A divina, por
sua parte, fotografou-os mentalmente com um só olhar. Os
quatro vestiam-se com uma elegância severa. Calçavam
sapatos de boa qualidade. Dois estavam de gravata. A idade
oscilava entre cinquenta e sessenta anos. Tinham uma
expressão viva e inteligente.
— Bom-dia, cavalheiros — exclamou a loura. —
Obrigada por terem concordado com esta entrevista.
— Eu me chamo Uro Nboko — disse um dos negros,
avançando um passo. — Falei com Kobo ontem à noite pelo
telefone. Não se aborrecerá pelo fato de não apresentar meus
companheiros, por enquanto, não é mesmo?
— Não, não me aborreço. Eu sou “Baby”, da CIA.
— Como podemos ter certeza disso? — perguntou Uro,
após um pequeno silêncio.
— Uro disse muito bem — interferiu outro negro. — Se
tivéssemos certeza de que a senhorita é quem diz ser, nossa
atitude seria menos reservada.
— Confiariam na agente da CIA?
— Exato. A ideia de Makebo, recorrendo a você, foi boa.
Todos nós concordamos quanto a esse ponto.
— Agradeço suas palavras — murmurou a loura,
sorrindo. — Podemos sentar?
Indicaram uma cadeira de palha. Ela sentou- se. Os
negros a imitaram. Ocuparam cadeiras parecidas, ficando
diante da espiã.
— Trouxe as informações das quais Makebo nos falou?
— Sim — respondeu a loura, com naturalidade. —
Trouxeram os esboços da Whiteblack Law?
— Sim. Ainda não chegamos a uma redação definitiva.
Temos muitos dias de trabalho para podermos dar o projeto
como concluído.
— Ficarei satisfeita, lendo o que trouxeram.
Ninguém se mexeu. Os olhares de Nboko e dos
companheiros voltaram-se para Makebo. Em seguida, para a
loura que os contemplava com uma expressão indefinida.
— Não estou aqui para perder tempo, senhor Nboko —
disse ela, finalmente. — Nem os senhores, suponho. Não
confiariam num agente americano, bem sei. Pensei que
confiariam em “Baby”. Eu sou “Baby”. Decidam se
acreditam ou não, mas por favor, resolvam de uma vez.
— Gostaríamos que também confiasse em nós.
— Está querendo dizer que gostariam de ler, antes, as
informações obtidas por Makebo. Só depois me permitiriam
dar uma olhada na Whiteblack Law?
— Sim.
— Não vejo inconveniente algum.
A loura abriu a maletinha, pegou o original das
informações e entregou-o a Uro Nboko. O negro folheou os
papéis rapidamente e examinou a última página.
— Atreveram-se a incluir os nomes dos criadores do
plano, hem? — murmurou Nboko, arqueando as
sobrancelhas.
— Posso dar uma explicação sobre esse detalhe — disse
Makebo, tomando a palavra. — A ideia partiu de Karl De
Hoven. Para realizar o plano, porém, precisava de ajuda.
Ajuda desses homens cujos nomes estão no final do projeto.
Se o plano falhasse, Karl De Hoven ficaria numa situação
difícil, pois todos negariam ter tomado parte nele. Por isso, o
presidente exigiu a inclusão das assinaturas. É uma
confirmação do compromisso. Aceitam as consequências. O
sucesso ou o fracasso.
— Em minha opinião, é uma imprudência — comentou
Nboko. — Uma loucura desses homens. Mas compreendo.
— De Hoven e os outros não podiam esperar que eu
tomasse conhecimento dessa trama e muito menos que
conseguisse apossar-me dos papéis. Mas minhas orelhas são
muito grandes. Quando percebi o que se passava, roubei as
informações do cofre forte do gabinete do presidente e fugi.
Não ignoram que estou sendo acossado como uma fera,
hem?
— Também estamos passando momentos difíceis —
retrucou Nboko. — Somos obrigados a trabalhar
clandestinamente, escondidos. Não temos muitos homens
capazes de elaborar a Whiteblack Law. Precisamos recorrer a
inúmeras medidas de segurança. Se nossos homens fossem
descobertos e sofressem uma repressão, voltaríamos à estaca
zero.
— Não me parece acertado discutir entre vocês —
murmurou a divina. — Cada um está lutando pela causa, à
sua maneira. Se tudo o que sei até agora é certo, estou do
lado de vocês. Que tal harmonizarmos nossas forças, em vez
de gastá-la, com discussões estéreis?
Os negros se entreolharam. Uro Nboko ajeitou a cadeira
de modo a facilitar aos companheiros uma visão dos papéis
que passou a examinar. Brigitte Montfort ficou atenta,
observando-os. Notou que empalideceram, sentiram arrepios,
estremecimentos. A leitura durou cerca de dez minutos.
Quando terminaram, voltaram-se para a espiã internacional e
Uro Nboko tomou a palavra:
— Não mencionam aqui o nome dos chefes das três
tribos que fariam a jogada para Karl De Hoven.
— Notei esse detalhe — respondeu a divina. — Breve
ficaremos sabendo.
— Acha? Talvez ainda não tenha compreendido bem o
problema das tribos, senhorita. Existem várias na Southland.
Cada uma delas está dividida em grupos. Cada grupo possui
um chefe. Existem, portanto, chefes de grupos e chefes de
tribos espalhados por todo o país.
— Parece-me mais conveniente que tivessem um poder
central capaz de fazer frente ao dos brancos — murmurou a
loura, sorrindo. — Haveria uma possibilidade maior de
introduzir a Whiteblack Law na legislação da Southland.
Como esse poder negro central não existe, devemos aceitar
as coisas conforme estão no momento.
— Para mim, o mais importante seria localizarmos esses
chefes dispostos a seguir o jogo de De Hoven. Quando os
encontrássemos, trataríamos de tirá-los de circulação.
— Eliminá-los?
— Que outra solução existe para acabar com os traidores?
A loura demorou alguns segundos para responder.
Quando o fez, sua voz soou meio velada:
— Matei um homem ontem à noite. Deixei outro meio
morto e dois com a cabeça quebrada. Matar para mim não é
novidade, senhor Nboko. Continuarei a matar quando for
necessário afastar um bicho, em benefício de seres humanos.
Mas tenho sempre a esperança de poder resolver os
problemas por métodos mais suaves, usando a inteligência.
— Não duvidamos de sua inteligência. Acredita mesmo
que este caso possa ser resolvido assim?
— Gostaria de tentar e queria ter a certeza de que as
pessoas a quem estou ajudando aceitam esse meu desejo.
Sempre há tempo para matar, senhor Nboko.
— Aceitarei encantado qualquer solução sem sangue, que
nos propuser. Tem essa solução?
— Creio que sim.
— Qual é?
— Concedam-me vinte e quatro horas. Se, no fim desse
prazo, meu plano não tiver dado resultado, começaremos a
matar.
Os negros da Comissão se entreolharam mais uma vez.
Nboko balançou a cabeça numa afirmativa, devolveu o plano
de De Hoven a Brigitte e tirou do bolso algumas folhas de
papel datilografadas, que a espiã apressou-se a receber.
— É um resumo das leis básicas — murmurou Nboko. —
Os detalhes estão sendo estudados no momento. Temos
conosco nossos melhores homens de leis. Gente que estudou
na Europa e na América. Não são muitos e seus recursos não
são precisamente brilhantes. Mas a intenção é boa.
Brigitte também balançou a cabeça afirmativamente.
Examinou os papéis. Mas não empalideceu, nem se arrepiou.
Seu rosto não expressou a menor reação. Quando terminou a
leitura, um brilho de aprovação iluminou seus olhos.
Respirou fundo e disse:
— Apoiarei a Whiteblack Law, cavalheiros. Ouçam,
agora, minha proposta definitiva: tirarei cópias deste resumo
e submeterei o projeto a pessoas que entendem de leis e de
expressões legais. Se essas pessoas confirmarem minha
opinião favorável, vocês receberão ajuda profissional e dez
milhões de dólares em dinheiro para poder procurar os
recursos necessários de segurança. Esperem vinte e quatro
horas, antes de tomar qualquer atitude de caráter violento.
Entenderam bem?
— Está falando a sério?
— Claro.
— Compreendemos. E aceitamos.
A loura sorriu. Guardou na maletinha vermelha os papéis
com as informações, encaminhou- se para a porta e voltou-se
para dizer:
— Bom-dia, cavalheiros.
Segundos depois, Kobo Makebo acomodou-se ao volante
e reiniciaram a volta para Nokobi.
— Controla sempre com tanta habilidade todas as
situações? — perguntou ele, intrigado.
— Dou um jeito das coisas acontecerem conforme acho
melhor que elas aconteçam — respondeu a divina. — Às
vezes, sou obrigada a recorrer à violência. Mas só quando se
toma inevitável.
— Desta vez, será obrigada a isso. Pelo menos na parte
referente a Karl De Hoven, seus cúmplices e a esses chefes
negros. Não espera controlar e convencer De Hoven com a
mesma facilidade com que o fez com a Comissão, hem?
Brigitte Montfort não respondeu. Tirou o rádio da
maletinha e apertou o botão de chamada, murmurando:
— Johnny?
— Pronto — ecoou a voz de Johnny-Nokobi.
— Sinto muito, mas não há novidades.
— OK. Até logo.
Desligou o radinho e tornou a guardá-lo.
— Não posso saber o que você e seus companheiros da
CIA estão tramando? — perguntou Makebo.
— Ainda não.
— Permitirá que eu dê uma olhada no projeto da
Whiteblack Law, quando revelar os microfilmes?
— Naturalmente.
— Já é alguma coisa — murmurou Makebo.
— Vamos para o apartamento. Johnny revelará as
microfotos.
<><><>
— Feito — disse o agente da CIA que morava no
apartamento onde Brigitte instalara sua base de operações.
— Daqui a três horas, nosso técnico de Nokobi estará aqui
com mais três companheiros. Ele mesmo os chamará,
comunicando-se com as cidades de Cabo, Johannesburgo e
Lourenço Marques.
Kobo Makebo, que estava lendo uma das cópias
fotográficas do projeto de Whiteblack Law, ergueu a cabeça
e exclamou:
— Para que precisamos desses técnicos? Tudo isso está
suficientemente claro, me parece.
— Penso do mesmo modo — admitiu Brigitte. — Mas
quero a opinião desses técnicos da CIA, não só quanto à
veracidade do conteúdo, como sobre as possibilidades desse
projeto ser levado a bom termo.
— Possibilidades? — disse Makebo, agitando as fotos
que tinha na mão. — Se Karl De Hoven tiver conhecimento
do conteúdo desta lei, começará a cortar cabeças a torto e a
direito. Jamais aceitará o que está proposto aqui.
— Será obrigado a isso. Muito breve. Quando tomar
conhecimento do conteúdo do projeto da Whiteblack Law.
— Que disse? — gaguejou Makebo. — Acha que algum
traidor da Comissão informará De Hoven?
— Não. Não pensei em traidores — respondeu a divina,
sorrindo. — Eu irei entregar uma cópia da Whiteblack Law
ao senhor De Hoven.
Makebo ficou de boca aberta, atordoado, como se
acabasse de receber uma pancada na cabeça. O radinho de
Brigitte começou a zumbir. Ela pegou o aparelho e apertou o
botão, admitindo o chamado.
— Ação realizada — disse Johnny Nokobi pelo alto-
falante do radinho.
— Alguma baixa, algum contratempo? — perguntou a
espiã mais perigosa do mundo.
— Nada — respondeu Johnny, quase rindo. — Foi
facílimo!
— Já esperava por isso. De qualquer modo, alegro-me de
saber. Breve, você receberá mais notícias minhas, querido.
— Faço votos para que também consiga o que deseja. Até
logo.
A divina desligou o radinho, guardou-o, pegou sua
maletinha vermelha e levantou-se.
— Aonde vamos agora? — perguntou Kobo Makebo,
fazendo menção de se levantar também.
— Você ficará com Johnny aqui no apartamento —
respondeu a divina, sem se alterar. — Não pode
acompanhar-me ao lugar aonde vou, Kobo. Se fosse, seria
crivado de balas, sem a menor dúvida.
CAPÍTULO SEXTO
O sequestro

O agente secreto da segurança levantou-se do banco onde


apanhava sol, ao ver o carro parar diante do portão. Do carro,
desceu uma loura alta, cheinha, que se encaminhou para as
grades com andar lento, como se seus sapatões pesassem
toneladas. O criado negro aproximou-se do portão, falou
com a loura e dirigiu-se a casa. O agente de segurança
observou o jardim. Viu os dois companheiros passeando em
sua ronda habitual. Sem titubear, o agente foi ao encontro do
negro, perguntando em voz baixa:
— Que é?
— Aquela senhora quer falar com a senhora De Hoven —
explicou o criado.
— Quem é ela?
— Chama-se Erika Schenk e diz que foi colega de escola
da senhora presidenta. Está de passagem por Nokobi e deseja
cumprimentá-la.
— Muito bem. Previna à senhora.
O negro entrou em casa e reapareceu pouco depois. O
agente secreto tornou a interrogá-lo, estranhando sua
expressão.
— Algum problema?
— A patroa receberá a visita — informou o criado. —
Mas não se lembra de colega alguma chamada Erika Schenk.
— Eu me encarrego dela — murmurou o agente.
Aproximou-se do portão de grades e abriu-o, sorrindo. —
Entre, senhorita Schenk. A senhora presidenta a receberá.
— Felizmente. Fiquei com receio de não encontrá-la em
casa.
— Está à sua espera. Permita-me carregar sua maletinha?
— Oh, não, obrigada — exclamou a visitante. — Pesa
muito pouco.
— Eu lhe ficaria grato, se me permitisse verificar o
conteúdo, senhorita Schenk. Meus companheiros e eu somos
agentes de segurança da senhora De Hoven. E ela não se
recorda de colega alguma chamada Erika Schenk.
— Não se lembra? — balbuciou a loura, espantada.
— Há de lembrar-se, ao vê-la — atalhou o agente. — De
qualquer modo, devo examinar sua maletinha.
Aproximaram-se do banco onde o agente estivera
sentado. Ele pousou a maletinha vermelha e abriu-a. Sorriu,
ao verificar qual era o conteúdo. Objetos de uso feminino e
nada mais. Coisas absolutamente inofensivas. Fechou a
maletinha e devolveu-a à sua dona. Sorriu para a visitante e
apontou a porta da casa. Pararam um instante na varanda. O
agente murmurou uma desculpa formal e afastou-se, indo
cochichar qualquer coisa com os companheiros. Voltou para
junto de Erika, enquanto os dois agentes se afastaram em
direção às grades do jardim. Entraram na casa. Atravessaram
o amplo vestíbulo, encaminhando-se para a porta da direita,
indicada pelo agente da segurança.
— Ulla tem uma linda casa — murmurou Erika.
O homem sorriu e bateu à porta. Empurrou-a e disse para
o interior da sala:
— A senhorita Schenk está aqui.
Ulla De Hoven foi receber a visitante.
— Não se lembra mais de mim? — perguntou Erika,
sorrindo, diante do ar de dúvida da anfitriã.
— Para ser sincera, não — respondeu a senhora De
Hoven, com um sorriso cortês. — Lamento muito.
— Está bem — exclamou Erika, rindo. — Contarei umas
coisinhas capazes de refrescar sua memória. Vai ver como se
lembra de mim, embora eu esteja bastante mudada. Mas não
posso falar diante deste cavalheiro. São coisinhas íntimas,
compreende?
— Pode retirar-se, Jeffrey — disse Ulla, fazendo um sinal
ao agente da segurança.
O homem hesitou um instante, mas obedeceu. Erika
Schenk entrou na saleta e olhou ao redor, exclamando;
— Você tem muito bom-gosto, querida!
— Obrigada — murmurou Ulla. — Se tivesse chegado
um pouco antes, eu a teria convidado para almoçar. Aceita
um café?
— Não, não.
— Oh, sente-se, por favor.
Erika Schenk sorriu. Foi até à porta, fechou-a e só então
acomodou-se numa confortável poltrona. Ulla De Hoven
sentou-se diante da loura, com ar de quem não está
entendendo coisa alguma.
— Não se esforce mais, senhora De Hoven — disse
Erika, com suavidade. — Nunca me viu até este momento.
Nem eu a vi, exceto em fotografia. Nunca fui sua colega de
colégio. Esta é a verdade.
— Não compreendo. Quem é você? Deseja algo de mim?
— Sabe o que vamos fazer, senhora De Hoven? Sairemos
daqui, entraremos no carro que deixei lá fora e iremos
embora. Só isso.
— Para onde? — perguntou Ulla, sem conter seu espanto
diante da proposta daquela desconhecida.
— Ao lugar onde seus filhos a estão esperando.
— Que disse? — murmurou a esposa do presidente da
Southland, empalidecendo.
— Uns amigos meus sequestraram seus filhos, há pouco.
Eles estão bem. Não pretendemos fazer-lhes mal algum.
Acalme-se. Não se preocupe com os agentes da segurança
que os vigiavam. Foram atacados com gás narcótico e
mergulharam num sono profundo. Mas acordarão. Não se
trata de um sono eterno, compreende?
— Está louca — balbuciou a presidenta.
Erika Schenk abriu a maletinha e pegou um maço de
cigarros. Puxou um deles. No mesmo instante, uma voz de
homem ecoou na sala, vinda do maço.
— Pronto.
— A senhora De Hoven está ouvindo — disse Erika, com
naturalidade.
— Ah, sim. Já entendi — respondeu a mesma voz de
homem.
Erika estendeu para a dona da casa o radinho camuflado.
Ulla permaneceu imóvel, petrificada. Só se mexeu, ao ouvir
uma voz juvenil:
— Mamãe? Sou eu, Pia. Está ouvindo?
— Pia — sussurrou a senhora De Hoven, fazendo um
esforço titânico para falar. — Você está bem? E Oskar?
— Estamos bem, mamãe. Dois homens nos sequestraram.
— Mamãe — chamou a voz infantil de Oskar De Hoven.
— Não se preocupe. Estamos bem, sim. Não nos
machucaram. São muito gentis, acredite. Dão tudo que
pedimos.
— Mas quem são? — perguntou Ulla, procurando
manter-se calma. — São negros?
— Não. São brancos. Um é louro...
Erika Schenk arrebatou o radinho das mãos de Ulla de
Hoven e baixou o cigarro, cortando a comunicação e as
explicações dadas pelo menino.
Guardou o maço na maletinha vermelha e levantou-se,
dizendo:
— Vamos, senhora De Hoven. Não fique preocupada. Só
tenho uma dúvida a seu respeito. Qual é a sua opinião sobre
os negros?
— Os negros? Bem... os negros são negros. Isso é tudo.
— Compreendo — murmurou Erika, endurecendo
levemente a fisionomia. — A partir deste momento, a
senhora deve fazer o que eu disser. Caso contrário, todos nós
teremos dificuldades. Sairemos daqui com ar natural.
Obedeça e poderá ir para junto de seus filhos. Então? Vem
comigo ou não?
— Sim. Eu a acompanharei.
Erika Schenk encaminhou-se para a porta e abriu-a.
Conforme esperava, Jeffrey estava no vestíbulo, passeando
de um lado para o outro. Voltou-se, ao ouvir que a porta se
abria, e acalmou-se, vendo as duas mulheres aparecerem.
— Vai sair, senhora De Hoven? — perguntou, ansioso,
ao notar a atitude da dona da casa.
— Vou — respondeu Ulla, num murmúrio.
— Prepararei seu carro para...
A mão direita de Erika Schenk movimentou-se de um
modo extraordinário. O fortíssimo e bem medido impacto do
shuto de caratê acertou em cheio a lateral do pescoço do
agente, pouco abaixo da orelha esquerda. O homem caiu aos
pés das mulheres. Ulla olhou para Erika, apavorada e pálida.
— Não é nada — explicou a loura, sorrindo. — Voltará a
si dentro de alguns minutos. Vá para a varanda e chame os
outros dois agentes. Há mais algum?
— Não.
— Tenha juízo, senhora De Hoven. Se eu não voltar, seus
filhos também não voltarão para casa.
— São só três homens. Juro!
— Chame os que estão no jardim.
Os dois agentes acudiram ao chamado da presidenta.
Quando entraram no vestíbulo, ficaram petrificados, diante
da pistolinha que a loura empunhava, apontada para eles.
— A senhora De Hoven e eu vamos dar um passeio —
explicou Erika, num tom amável. — Vocês ficarão aqui. No
fim de cinco minutos, liguem para o gabinete presidencial.
Digam ao senhor De Hoven que a esposa dele foi reunir-se
aos filhos que nós sequestramos. Acrescentem o seguinte:
minha companheira Mabua Luna irá conversar com ele,
daqui a uma hora e meia. Entenderam?
Os dois agentes voltaram o olhar apatetado para Ulla, que
se apressou a murmurar:
— Obedeçam. Obedeçam em tudo. Nada tentem fazer,
quando sairmos daqui. Se essa mulher morrer, os
sequestradores matarão meus filhos.
Os dois homens ficaram petrificados. Como duas
estátuas. Erika guardou a pistolinha e apontou a porta. As
mulheres saíram. O criado negro abriu o portão de grades, a
um gesto da patroa. Viu as duas entrarem no carro da loura.
O carro afastou-se numa velocidade normal, dobrando a
primeira esquina.
Isso foi tudo o que aconteceu.
CAPÍTULO SÉTIMO
Negros até na sopa

Karl De Hoven levantou-se, quando um dos secretários


introduziu Mabua Luna no gabinete privado do presidente da
Southland. Os presidentes anteriores haviam preferido residir
fora da Casa Presidencial e ele os imitara. Naquele
momento, lamentava profundamente não ter instalado a
família na sede do governo. Se o tivesse feito, teria a mulher
e os filhos constantemente a dois passos de seu gabinete de
trabalho e ninguém os poderia sequestrar.
Contemplou a bela negra vestida de azul-claro parada do
outro lado da escrivaninha. Esforçou-se para encontrar nela
as características étnicas das tribos da Southland. Mas não as
encontrou. Aquela negra era diferente. Os traços
fisionômicos não correspondiam aos da raça negra.
— Posso sentar-me? — perguntou ela.
De Hoven apertou os lábios e sentou-se. Mabua Luna
ocupou uma das poltronas colocadas diante do chefe da
nação. Karl De Hoven era alto, atraente, louro e branco.
Governava um país cuja maioria da população pertencia à
raça negra.
— Para o bem de todos, espero que minha família esteja
bem, senhorita Luna — balbuciou ele.
— Não se encontra em condições de fazer ameaças —
respondeu a negra, sorrindo. — Mas compreendo seu estado
de espírito. Se quiser, pode certificar-se que estão todos bem.
Acreditaria, se ouvisse isso dos lábios de sua esposa e de
seus filhos?
— Naturalmente.
Mabua Luna pousou a maletinha nos joelhos, abriu-a e
tirou o maço de cigarros. Ergueu um e, no mesmo instante,
uma voz de homem ecoou no gabinete:
— Pronto?
— O senhor De Hoven está ouvindo — disse Mabua.
— Muito bem.
A negra inclinou-se e colocou o radinho camuflado em
cima da mesa do presidente. De Hoven segurou-o com a mão
trêmula e balbuciou:
— Ulla? Ulla?
— Karl? — soou a voz da esposa. — Não se preocupe.
Estamos juntos, os três. Não parecem querer fazer mal
algum. Não se inquiete, querido. Estamos bem. De verdade.
— As crianças, Ulla?
— Também estão bem, Karl. Estes cavalheiros são muito
delicados. Garantiram que nada nos acontecerá, se você for
razoável.
— Está certo. Não se preocupe, Ulla. Darei um jeito
nisso. Seja lá como for.
— Não creio — murmurou Mabua Luna, tornando a
inclinar-se para recolher o radinho. — Não resolverá o
problema, seja como for. Vamos resolvê-lo juntos, conforme
eu disser.
Sustentou o olhar carregado de ódio do presidente. Em
seguida, tirou uma cópia fotográfica e a estendeu a Karl De
Hoven, perguntando:
— Reconhece isto?
De Hoven examinou os papéis. Reconheceu neles os que
Kobo Makebo havia roubado. Apertou os lábios e enrugou a
testa, sem conseguir disfarçar sua inquietude.
— Reconhece, não é mesmo? — murmurou a negra, sem
se alterar. — Mas não conhece estes outros. Tenho o prazer
de lhe dar uma cópia fotográfica do projeto básico da
Whiteblack Law. Está interessado? Pode lê-la com calma.
Gaste o tempo que desejar.
O interesse de Karl De Hoven foi evidente. Tomou as
cópias e começou a ler com ansiedade. De vez em quando,
seus lábios finos crispavam-se ligeiramente. Quando
terminou a leitura, pousou as cópias na escrivaninha e disse,
num tom sarcástico:
— Os negros se esqueceram de uma coisa.
— Qual foi? — perguntou a Mabua Luna, arqueando as
sobrancelhas.
— Esqueceram-se de exigir para um deles o cargo de
presidente da nação.
— Isso virá depois — murmurou a negra, sorrindo. —
Por enquanto, o ponto de vista deles me parece sensato,
moderado e humano. Não está de acordo?
— Não. São apenas negros. Como você.
— Uma das coisas mais importantes que aprendi em toda
a minha vida, senhor De Hoven, foi a não desprezar, nem
diminuir as pessoas. Chegou a hora do senhor também
aprender essa lição, como eu a aprendi. Será mais útil, para o
futuro, mudar de atitude, acredite.
— Jamais aceitarei essa lei grotesca, que iguala os
brancos e os negros. Jamais!
— Não os iguala em tudo — atalhou Mabua Luna. —
Apenas no que se refere aos direitos humanos. Quanto ao
mais se quiser continuar julgando-se superior aos negros, é
problema seu. Meu conselho pessoal é que não faça isso. A
superioridade não está na cor da pele. É determinada por
outros fatores bem diferentes. Mas não vamos discutir isso
agora. O importante é aceitarem a Whiteblack Law.
— Não aceito.
— Muito bem — balbuciou a negra, sorrindo. —
Façamos outro acordo. Que tal a vida de sua esposa e de seus
filhos, em troca dos nomes dos chefes das três tribos que
estão dispostos a seguir a jogada criminosa exposta nesses
papéis?
— Se eu concordar em fornecer os nomes, devolverá
minha família?
— Claro. Já que não consigo convencê-lo a aceitar a
Whiteblack Law, tentaremos retirar de circulação os homens
que secundariam os planos de massacre de três milhões de
negros. Há um ditado que diz o seguinte: Tire o que for
possível de uma causa perdida.
— Darei os nomes — murmurou De Hoven, após uma
ligeira hesitação.
— Por escrito, sim? E indique claramente onde podem
ser encontrados no momento.
Karl De Hoven abriu a gaveta central da escrivaninha e
tirou um caderno de capa metálica, com fecho. Virou as
folhas até chegar à que procurava. Retirou-a com cuidado,
tomou a fechar à chave o caderno de capa metálica, guardou-
o na gaveta e estendeu a folha para a visitante negra. Mabua
Luna examinou-a rapidamente, aprovou com um gesto
amável, guardou a folha na maletinha vermelha e levantou-
se.
— Quando quiser, podemos ir buscar sua família.
— Devo ir também?
— Naturalmente. Se tem receio de uma armadilha,
engana-se. Pode levar quantos homens quiser para escoltá-lo.
Civis ou militares. Só que, nesse caso, prevenirei meus
companheiros antes, para darem o fora de lá. Compreende
minha precaução, não é assim?
— Claro. Iremos bem acompanhados.
— Perfeitamente. Vou chamar meus companheiros —
disse Mabua Luna, erguendo o radinho camuflado num maço
de cigarros. Puxou um deles com os dentes e logo uma voz
masculina ecoou no gabinete:
— Pronto?
— O senhor De Hoven e eu chegamos a um acordo
parcial. Preparem a evacuação do local, pois vamos para aí.
Levando tropas, possivelmente.
Mabua Luna cortou a ligação e guardou o rádio no
decote. Apontou os telefones que havia na escrivaninha e
perguntou:
— Qual deles tem linha direta com o exterior do palácio?
O presidente indicou o aparelho. Mabua pegou o fone,
discou um número, colocando-se entre o disco e o olhar
inquisitivo de De Hoven. Quando atenderam, murmurou:
— Sou eu, querido. Kobo Makebo está aí?
— ...?
— Claro. Diga a ele para ir juntar-se a nós. O senhor De
Hoven e eu passaremos pela Central Avenue, escoltados por
soldados, suponho. Diga a Kobo para não ter receio algum e
para se aproximar de nós. A vida dele está incluída no
convênio que eu e o presidente acabamos de fazer.
— Exato. Adeus, querido.
Desligou e ficou olhando para Karl De Hoven. O
presidente estava com cara de idiota, como se não
acreditasse em tudo que acabara de ouvir.
— Já sei em que está pensando — disse a negra. —
Descanse quanto a isso. Sou incapaz de assassinar inocentes.
Nada farei em relação à sua família. Estou satisfeita, por
enquanto, com os nomes dos chefes das tribos que o senhor
me forneceu.
— Preciso dar instruções para prepararem a escolta —
balbuciou o presidente, levantando-se.
— Perfeitamente. Mas não se esqueça de um detalhe: se
me acontecer qualquer coisa, a situação se complicará
bastante para sua família. Está bem claro, hem?
— Sim — rosnou De Hoven. — Não se preocupe.
— Ótimo — exclamou a negra. — De qualquer modo,
ficarei ao seu lado em todos os momentos. Quero ouvir suas
instruções. Não se esqueça de incluir nelas uma ordem
referente a Kobo Makebo. Ninguém deverá incomodá-lo,
quando ele aparecer. Nem impedi-lo de entrar em nosso
carro.
<><><>
Kobo Makebo viu a comitiva presidencial aparecer na
Central Avenue, conforme ficara determinado. Observou o
carro e a escolta de motocicletas e de viaturas com soldados.
Deu de ombros, finalmente, desistindo de entender o que
estaria planejando a agente da CIA. Saiu do portal onde
estivera abrigado e foi para a beira da calçada. O carro parou.
A escolta também. Makebo viu numa das janelinhas o rosto
delicioso de Mabua Luna. Ela abriu a porta e ele entrou,
sentando-se à esquerda da negra.
— Pode seguir — disse ela, dirigindo-se ao motorista.
Pressionando o joelho de Makebo com os dedos delicados,
acrescentou: — Um trabalho muito duro o aguarda, Kobo.
Precisa convencer a Comissão a se reunir novamente. Desta
vez, quero mais homens e o projeto da Whiteblack Law,
inteiramente concluído. Diga que o presidente De Hoven não
está disposto a aceitar a Whiteblack Law, mas que eu
consegui o nome de três homens e quero transmitir a eles.
— Você e todos esses doidos da Comissão deviam estar
mortos — rosnou o presidente.
— Acha mesmo, senhor De Hoven? — perguntou
Brigitte, sem se alterar.
— Claro. A existência de gente desse tipo só serve para
complicar as coisas. Depois de tomar conhecimento desse
projeto de lei, não tenho mais dúvidas. Esses homens
estariam melhor mortos.
Mabua Luna observou o presidente um instante,
inexpressiva. Voltou sua atenção para Makebo e disse, com
voz firme:
— Consegui a lista com os nomes dos chefes das três
tribos que iam ajudar o senhor De Hoven. Cuidaremos deles
mais tarde. O importante, no momento, é reunirmos a
Comissão. Quero ter uma entrevista pessoal com seus
membros e apresentar-lhes os colaboradores que prometi. Já
devem ter chegado a Southland.
— Sim, já chegaram — murmurou o negro. — Estão com
seu amigo, estudando o projeto de Whiteblack Law.
— Ótimo. Chamarei daqui a pouco e direi que se
preparem para o encontro com a Comissão. Pode ser no
mesmo lugar do que tiveram comigo.
— Perfeitamente — respondeu Kobo. — Mas pode
explicar o que está acontecendo, afinal?
— Meus amigos e eu sequestramos a família do senhor
De Hoven. Como chegamos a um entendimento e ele me
forneceu o nome dos três chefes traidores, vamos ao
encontro da senhora De Hoven e dos filhos. Depois, nos
ocuparemos da Comissão e dos três chefes de tribo.
— E deixará De Hoven ir embora tranquilamente?
— Claro. Antes, porém, vou ter uma longa conversa com
ele.
— Que de nada adiantará — cortou o presidente. — O
que tinha a dizer já foi dito.
— Veremos — murmurou Mabua Luna, sorrindo.
— Para quando marco o encontro com a Comissão? —
perguntou Makebo.
— Para quando puderem. O mais depressa possível.
— E como a avisarei?
— Não sei exatamente onde vou estar — disse Mabua
Luna, pensativa. — Podem surgir imprevistos, compreende?
Façamos o seguinte: eu lhe darei um radinho e você me
chamará por ele, quando estiver tudo combinado.
A bela negra abriu a maletinha, pegou um radinho portátil
e entregou-o a Makebo. Aproveitou para entregar também a
lista com os nomes dos chefes das tribos.
— Conhece algum deles? — perguntou em seguida.
— Alguns — respondeu Makebo, depois de ler
rapidamente. — Que faremos com eles?
— Pensarei com calma — respondeu Mabua, tornando a
guardar a lista. — Ah, para convencer melhor os membros
da Comissão, diga-lhes que tentarei persuadir o senhor De
Hoven a acompanhar-me. Talvez eles consigam fazê-lo
enxergar melhor a situação.
— Está louca — rosnou o presidente.
— Pode ser. Essa ideia, pelo menos, servirá para
convencer os membros da Comissão a concordarem com a
entrevista. — Inclinando-se para o motorista, ordenou com
voz firme: — Pare, por favor.
O motorista obedeceu. Kobo desceu do automóvel
presidencial. Afastou-se sem o menor contratempo. Mabua
Luna sacou do decote o maço de cigarros que camuflava um
rádio e ligou-o.
— Pronto — ecoou a voz masculina.
— Mabua Luna falando. Desocupem o ponto número um
e esperem no número dois. Enviem o guia com a motocicleta
para a estrada que me indicaram. Estaremos lá dentro de dez
minutos, mais ou menos.
— De acordo.
Mabua Luna desligou o radinho e tomou a metê-lo no
decote.
— Está bem organizada — comentou De Hoven, com
ironia.
— É uma questão de hábito — respondeu a negra,
sorrindo. — Quando junto nas mãos as peças do jogo, não
deixo pedra alguma fora do lugar. Não tenho a pretensão de
afirmar que seja impossível qualquer falha, senhor De
Hoven.
— Você é muito inteligente e muito atraente. Mas está
desperdiçando suas qualidades. Poderia tirar maior lucro de
sua inteligência, se a utilizasse para ficar ao lado dos
ganhadores.
— Está querendo fazer alguma proposta, senhor
presidente? — murmurou Mabua Luna, enrugando a testa.
— Sim. Seria muito mais lucrativo, se trabalhasse a meu
lado.
— Estaria disposto a contratar uma pessoa de raça negra?
— perguntou ela, sorrindo.
— Se me pudesse ser útil, não hesitaria. É o seu caso.
— Mesmo usando meus serviços e pagando-me bem,
continuaria a desprezar-me, não é assim?
— Costumo tratar bem meus colaboradores.
— Compreendo sua atitude... que me parece
absolutamente desprezível. Não, senhor De Hoven. Jamais
aceitaria trabalhar para o senhor.
— Neste caso, por mais que faça, continuará sendo
apenas uma negra imunda.
— Acho melhor acostumar-se a ter negros à sua volta —
disse Mabua Luna, com suavidade. — Vai encontrá-los até
na sopa, como se costuma dizer.

CAPÍTULO OITAVO
A aldeia

A motocicleta apareceu quando já se encontravam fora


dos limites de Nokobi. Mabua Luna mandou o motorista do
carro seguir o homem branco que manobrava a moto. Karl
De Hoven enrugou a testa. Jamais conseguiria identificar o
sujeito de capacete e de óculos enormes, que se colocou
diante do automóvel. A moto detinha- se de vez em quando,
adaptando-se à marcha do carro presidencial, da escolta
motorizada e das viaturas do exército cheias de soldados. A
comitiva seguiu o motociclista durante mais de meia hora.
Quando o homem de capacete e óculos parou, voltou-se no
selim e agitou o braço. Mabua Luna assomou à janelinha e
acenou para ele. O motociclista entrou pelo campo, saindo
da estrada e afastou-se rapidamente.
— Estamos quase chegando — disse Mabua Luna.
— Não há cidades por aqui — murmurou o presidente,
inquieto. — Não vejo construção de espécie alguma.
— Oh, senhor presidente! — exclamou a negra,
espantada. — Está muito mal informado sobre a nação que
tão indignamente preside.
Deu ordem ao chofer para reiniciar a marcha. Um minuto
depois, ao fazerem uma curva, avistaram a aldeia. Karl De
Hoven contraiu ainda mais a fisionomia, ao contemplar as
choças de teto de palha que formavam uma pequena praça,
na qual algumas crianças negras brincavam
despreocupadamente. Os adultos, de pé à porta das choças,
acompanhavam com o olhar a chegada do carro presidencial
com sua escolta.
— Estamos numa aldeia da Southland, chamada Nkada
— disse Mabua Lima, em voz baixa.
— Trouxe minha esposa e meus filhos para cá? —
perguntou o presidente, inquieto.
— Achei que seria proveitoso eles verem como vivem os
negros de seu país. Uma coisa é conhecer os negros que
trabalham como criados e que comem relativamente bem e
os negros a quem se nega permissão para subir num ônibus
de brancos. Além dos outros males que lhes causam, é
lógico.
— Não tinha o direito de fazer isso — protestou De
Hoven.
— Se vamos falar em direitos, a conversa será muito
longa, senhor De Hoven. Bem, podemos descer.
O carro havia parado no centro da praça formada pelas
choças. As viaturas militares pararam à retaguarda e os
motociclistas ao redor do automóvel presidencial. Mabua
Luna e Karl De Hoven desceram. As moscas começaram a
zumbir em torno dos dois. Os cães não pararam de ladrar.
Eram cinco horas da tarde, mas o sol ainda queimava com
vontade. Inclemente.
— Sua esposa e seus filhos estão naquela choça — disse
a negra, indicando a porta onde acabara de surgir um homem
branco, também de capacete e de óculos de motociclista.
Os dois se encaminharam para a entrada da choça. Os
soldados permaneceram nas viaturas e os motociclistas nos
selins, com um pé no chão. Todos olhavam com indiferença
para as mulheres de seios à mostra. A poeira baixou um
pouco. Só o zumbido das moscas quebrava o silêncio que
dominava a aldeia.
Mabua Luna foi a primeira a entrar na choça. De Hoven
seguiu-a. Precisou fazer um esforço sobre-humano para não
vomitar com o cheiro que havia no interior. Sentadas no
chão, mulheres e crianças arregalaram os olhos, fixando-os
nos recém-chegados. Mulheres e crianças de raça negra. Não
havia um só branco. Exceto o homem de capacete.
— Que significa isto? — perguntou De Hoven, voltando-
se para Mabua Luna.
Sua atenção, porém, tornou a voltar-se para o grupo
reunido no centro da cabana, ao ouvir uma voz infantil
murmurar:
— Papai! Papai, somos nós!
O olhar de Karl De Hoven percorreu o grupo ali reunido.
Todos eram de raça negra. Notou que uma das mulheres
tinha os cabelos louros e estava chorando, com o rosto
escondido nas mãos.
— Papai! — gemeu a filha, encarando-o.
Como um robô, o presidente aproximou-se do grupo. A
luz do sol entrava por uma abertura no teto e pela porta, cuja
cortina de palha fora suspensa, quando eles entraram. O
presidente ficou imóvel, olhando para a mulher que
soluçava. Para a negra de cabelos louros. Estava vestida
como as outras, com os seios à mostra. Junto dela, agarrados
a seus braços, estavam uma mocinha e um menino. A
mocinha também era loura, embora a pele fosse tão negra
quanto a do resto do grupo. O menino tinha olhos azuis.
Algo começou a falhar no raciocínio de Karl De Hoven.
Não podia ser. Tudo aquilo era um pesadelo, do qual
acordaria muito breve. Não existiam negros de olhos azuis e
de cabelos louros. E muito menos com as feições de seu filho
Oskar e de sua filha Pia. Nem aquela mulher banhada em
lágrimas podia ser Ulla.
— Karl — balbuciou a mulher que chorava. — Veja o
que fizeram conosco!
Karl De Hoven voltou a cabeça para Mabua Luna, com
um olhar interrogativo. Estava tão atordoado, que não
encontrava as palavras para se expressar. Mabua Luna
apontou os três negros de cabelos louros e disse, sem se
alterar:
— Conforme combinamos, devolvo-lhe sua família,
senhor De Hoven. Podem ir embora quando quiserem.
De Hoven não conseguia raciocinar. Abriu passagem por
entre o grupo de negros ali reunidos, tomou nos braços a
negra de cabelos louros e a ergueu, observando os seios
desnudos que ele tão bem conhecia. Mas os conhecia
brancos e não pretos. A mulher resistiu. Queria esconder o
rosto nas mãos, debatendo-se histericamente.
— Ulla — balbuciou o presidente. — É você? Pia, minha
filha... Oskar... são vocês?
A moça começou a chorar.
— Pessoalmente, não considero uma tragédia tão grande
assim ser negro — disse Mabua Luna, impassível. — A não
ser pelo modo como são tratados. Bem, vou deixá-los
entregues às suas emoções. Feliz volta ao lar, senhor De
Hoven.
Mabua Luna retirou-se da choça. Acendeu um cigarro e
sentou-se numa pedra, observando as crianças negras que
haviam interrompido as brincadeiras. De Hoven também saiu
da cabana. Aproximou-se de Mabua, parou diante dela e
perguntou, com a voz embargada:
— Que fez com eles?
— Não se preocupe — respondeu ela, sorrindo. — Pintei-
os com uma tinta negra.
— Mentira! Não se trata de pintura. Verifiquei isso. Não
é pintura. A pele deles tornou-se negra!
— Era o que eu queria que o senhor comprovasse —
murmurou Mabua, ficando de pé. — Não se trata de pintura
e sim de uma substância injetável que transforma a pele
branca em pele negra. Não se trata de um truque, acredite. É
uma descoberta maravilhosa, obtida por um cientista genial.
Ele levou anos para encontrar a fórmula do Blackcolor. É o
nome dessa substância interessante que muda a pigmentação
da pele humana.
— Não é possível — gaguejou o presidente.
— Não vamos discutir sobre isso. Bem, deveriam ir
embora...
— Não — cortou De Hoven. — Jamais exporei minha
família em público... nesse estado! Não sairão, enquanto não
voltarem a ser como eram antes.
— Nunca mais voltarão a ser como antes, senhor De
Hoven — disse a negra, arqueando as sobrancelhas, — O
processo é irreversível.
— Vou mandar matá-la — gritou o presidente, fora de si.
— Mandarei meus homens esquartejá-la. Primeiro, eles a
violentarão e depois lhe cortarão a cabeça!
— De que adiantaria? Seus soldados podem fazer comigo
o que quiserem. Sua família, porém, continuará como está
neste momento. Continuará sendo negra. Logo, procure
acostumar-se a essa ideia.
— Deve haver uma solução — urrou De Hoven.
— Há, realmente. Uma. Mas não sei se o senhor
permitiria que lhe injetassem o Blackcolor para se
transformar num negro. Poderia assim viver com sua família,
sem maiores dificuldades, não acha? Bem, não sei se poderia
continuar sendo o presidente da Southland, senhor De
Hoven. Seus cúmplices racistas permitiriam? Ou acharão
preferível eliminá-lo discretamente? O senhor e sua família?
— Santo Deus!
— A que deus se refere? — perguntou Mabua Luna,
implacável. — Ao deus dos negros ou ao dos brancos?
Certamente, não têm o mesmo deus, é claro!
— Cale-se!
— Como quiser. Permita-me recordar, porém, que
fizemos um trato. Combinamos trocar sua família pelo nome
de alguns homens. Ambos cumprimos o trato. Posso retirar-
me?
— Não sairá daqui enquanto não tiver solucionado este
problema.
— O senhor é teimoso, hem? Já expliquei que o processo
é irreversível. Mas podemos suavizar um pouco a situação.
A volta de sua família para casa não será muito agradável. O
senhor, por seu lado, não quer transformar-se em negro. No
seu caso, eu agiria de modo a ajeitar as coisas o mais
depressa possível. E de maneira a não sair prejudicado.
— Que posso fazer?
— Por que não gasta uns minutinhos conversando com a
Comissão sobre a Whiteblack Law?
— Não!
— Essa lei favorece os negros, mas não prejudica os
brancos. Reflita, senhor De Hoven. Se conseguir introduzi-la
na Constituição da Southland, sua esposa e seus filhos, entre
muitos negros, seriam beneficiados.
— Não farei isso!
— A escolha é sua. Posso ir embora?
— Está louca! Pensa que vou deixá-la escapar com vida
desta situação?
— Se tocar num fio de meus cabelos, alguns negros
abrirão fogo contra seus soldados. Os soldados responderão
ao fogo, naturalmente. Não deixarão negro algum com vida.
Já se esqueceu que sua esposa e seus filhos tornaram-se
negros? Seus soldados não perceberiam esse detalhe. Sua
família não escaparia do morticínio.
— Maldita — rosnou De Hoven, com ódio na voz e no
olhar.
— Em sua opinião — retrucou Mabua Luna, sem se
alterar. — Há quem pense de outro modo. Muita gente me
acha um anjo. Um anjo negro, é claro. Bem, não quero forçar
situações sangrentas. Estou farta de morte, senhor De Hoven.
Esforço-me cada vez mais para evitar derramamentos de
sangue. Como agora, por exemplo. Como sabe, tenho razão.
Reflita um pouco. Se precisar de mim, é só chamar. Estarei
brincando com as crianças.
Mabua Luna encaminhou-se para o grupo de meninos e
meninas e acocorou-se junto deles, murmurando com um
sorriso:
— Olá. Falam inglês?
Os negrinhos ficaram apatetados, olhando para ela.
— Não? — prosseguiu Mabua. — Também não devem
falar francês, nem italiano, nem alemão, é lógico. Muito
menos russo. Mas nunca é tarde para se aprender. E vocês
ainda são muito novinhos. Vamos, portanto, à nossa primeira
lição de inglês. Não digo que seja o melhor idioma do
mundo, queridinhos. Mas é o que falam os brancos com os
quais vão conviver. Logo, comecemos. Vocês são crianças.
Eu sou mulher. Certo? — prosseguiu, apontando o grupo e a
si mesma. — Crianças... mulher...
Karl De Hoven deixou-se cair na pedra onde estivera
pouco antes a espiã mais implacável do mundo. Escondeu o
rosto nas mãos e ficou pensativo. Inquieto. Tentando
encontrar uma solução para aquele pesadelo absurdo.
<><><>
Acordou com o canto de um galo. Não conseguira
dormir. Passara por madornas inquietas, das quais acordava
ansioso e aflito. Passara a noite praticamente deitado de
costas, vendo as estrelas pela abertura do teto. Acostumara-
se ao cheiro da cabana. Ergueu a cabeça. Olhou para a outra
extremidade da choça. As crianças estavam lá. A esposa,
deitada ao lado dele, ainda dormia. Ficaram naquela cabana,
juntos. Não comeram a refeição nojenta que lhes serviram.
Nem água podiam beber, pois ela era trazida do rio e vinha
suja e barrenta.
Os soldados haviam acampado fora da aldeia, aguardando
a decisão do presidente. Surpreenderam-se, quando a decisão
de Karl De Hoven foi passar a noite ali, numa choça. Por que
não tirava a família e a levava para Nokobi de uma vez?
Karl De Hoven viu as primeiras claridades do dia
surgirem no céu, pela abertura do teto da choça. Tomou a
ouvir o cacarejar dos galos.
— Não saiam daqui — murmurou, dirigindo- se à esposa
e aos filhos.
Levantou-se e passou por entre os negros deitados no
chão e enrolados em cobertores imundos. Chegou à porta da
cabana. O sol havia aparecido, mas soprava um ventinho
frio. Olhou para a direita. Viu o acampamento dos soldados,
as viaturas e as motocicletas. Encaminhou-se para o riacho,
com passos decididos. Sentou-se perto da margem e não
conteve um arrepio, ao ouvir uma voz a seu lado, dizendo:
— Bom-dia, senhor presidente.
Voltou os olhos e fixou-os em Mabua Luna, que estava
sentada numa pedra, de frente para o sol. Limpa, penteada,
com um cheiro gostoso. Ainda segurava o espelhinho que
usara para fazer sua toalete matinal. A seus pés, encontrava-
se a maletinha vermelha com seus objetos de uso pessoal.
— Em que condições se realizaria o encontro com a
Comissão? — perguntou De Hoven, de testa enrugada.
— Não respondeu ao meu cumprimento.
— Bom-dia — rosnou o presidente.
— O sol está lindo — exclamou Mabua Luna, captando
no espelhinho alguns raios alegres que se refletiram em seu
rosto maravilhoso. — Às vezes, tenho vontade de ser pagã
para poder adorar o astro-rei. Eu o adoro, é claro, mas não
posso considerá-lo meu deus.
— Qual é seu deus?
— Por que fez essa pergunta há pouco, presidente? Em
que condições? Ora essa! Nas condições usadas por pessoas
sensatas quando se reúnem para discutir algo importante para
todos os seres humanos. Talvez a conversa seja demorada. O
senhor vai opor-se a alguns artigos da Whiteblack Law.
Ambas as partes deverão ceder um pouco. Além disso,
lembre-se de um detalhe: estará lidando com negros. Negros
que também são seres humanos.
— Quando será a reunião?
— Depende da Comissão. Se quiser, posso comunicar-me
com meus amigos e pedir para apressarem as coisas. Basta
usar meu maço de cigarros que fala.
— Se usar esse rádio, Kobo Makebo a ouvirá, não é
assim?
— Não — murmurou Mabua Luna. — Com os sinais
feitos com este espelhinho, acabo de indicar a meus amigos
que troquem a onda normal pela combinada anteriormente.
Resta agora mudar a de meu aparelho.
Desfez o maço de cigarros, deixando os transistores à
mostra. Com uma pressão minúscula, movimentou duas
plaquinhas. Recolocou tudo nos lugares e ergueu o cigarro
que abria o contato.
— Olá — soou uma voz de homem. — Lindo sol, hem?
Como passou a noite?
— Razoavelmente, Johnny. Vão para o ponto dois e
falem com os especialistas em leis que chegaram ontem.
Peçam para prepararem tudo. Máquinas de escrever,
ditafones, livros de consulta, o que acharem importante para
uma reunião séria. Instalem-se depois na casa de que lhes
falei e onde tive meu primeiro contato com a Comissão. As
instruções complementares não mudam.
— Certo. De Hoven entregou os pontos?
— Não. Refletiu um pouco, apenas. Espero que ele e os
cavalheiros da Comissão cheguem a um acordo satisfatório.
Não tome a chamar, pois devo recolocar o rádio na onda de
Makebo.
Mabua Luna desligou o radinho e guardou-o.
— Estou satisfeita com o modo de conduzir este caso —
murmurou a divina espiã, sorrindo para o presidente da
Southland. — Tudo se resolverá praticamente sem
derramamento de sangue.
— Haverá muito sangue derramado, se não amarrarem os
pés de Makebo — disse De Hoven, empalidecendo.
— Não se preocupe — balbuciou a negra friamente. — Já
previ tudo. Há um detalhe, porém, que não me agrada: deixar
o senhor com vida. Segundo minhas normas, deveria morrer
porque é um bicho ruim. Levando em conta as
circunstâncias, não posso matá-lo, porque sua ajuda é
necessária para as negociações com a Comissão e para
assinar a Whiteblack Law, integrando-a na Constituição da
Southland. Depois disso, não verei inconveniente em deixá-
lo continuar vivendo. Desde que respeite o pacto a ser
concretizado daqui a algumas horas, é claro. Se tiver a infeliz
ideia de planejar qualquer manobra criminosa, considere-se
morto, senhor De Hoven. Entendeu?
— Quem é você?
— Uma negra inteligente — respondeu Mabua, sorrindo.
— Nem tanto, pois não previu absolutamente tudo. Posso
dizer-lhe algo capaz de surpreendê-la e de assustá-la —
murmurou o presidente, com um brilho enigmático nos
olhos.
— Não creio.
— Trate de acreditar. Caso contrário, ninguém sairá vivo
dessa reunião. Com meus soldados, porém...
— Não preciso de seus soldados. Meta o seguinte na
cabeça, senhor De Hoven: tudo que me possa dizer, já sei. Se
tinha alguma dúvida, suas palavras as dissiparam. Estou
habituada a lidar com mentes retorcidas e isso me ensinou
muita coisa. O senhor e eu iremos à reunião, sozinhos. Sem
soldados. Se receia cair em sua própria armadilha,
tranquilize-se. Tenho tudo preparado para quando Kobo
Makebo me chamar. E quando digo: tudo preparado, é
porque está mesmo tudo preparado. Acredite.
CAPITULO NONO
A Lei

Karl De Hoven dirigia o carro, seguindo as instruções


dadas por Mabua Luna, sentada a seu lado. O presidente,
porém, mudara de aspecto. Usava roupas velhas, sandálias e
um gorro imundo cobria sua cabeça altiva. Ninguém
reconheceria o presidente da Southland, naqueles trajes.
— Estamos chegando — disse a negra. — Pare o carro
diante da casa. O mais perto possível, de modo a descermos
e entrarmos imediatamente.
De Hoven obedeceu. Dirigiu o carro pelo caminho
estreito e margeado de árvores frondosas. O cão latiu do
canto da casa. A porta abriu-se e um negro de cabelos
brancos apareceu. Afastou-se um passo, permitindo a entrada
de De Hoven e de Mabua Luna.
A reunião estava mais concorrida que a anterior. Havia
nove ou dez negros na sala. Mais mesas, também, com
papéis, ditafones, máquinas de escrever, garrafas, copos,
canetas, etc. Todos os olhares voltaram-se para Mabua Luna.
— Cavalheiros — disse ela, sorrindo. — Conforme Kobo
Makebo lhes disse, obtive a colaboração do presidente.
Senhor De Hoven, apresento-lhe o senhor Uro Nboko, único
nome que conheço, e os restantes membros da Comissão.
Uro estendeu a mão para o presidente. Os dois trocaram
um cumprimento formal. Em seguida, o negro passou a
enumerar os nomes dos companheiros. O presidente trocou
novos apertos de mão. Quando as apresentações terminaram,
Mabua Luna apontou os três homens brancos e disse:
— Podem chamá-los de Lourenço, Johann e Cabo.
Espero que eles lhes sejam úteis. Mas só como conselheiros.
Vocês é que devem tomar as decisões sobre a Whiteblack
Law. Uma última advertência: cuidem do trabalho e não se
assustem, aconteça o que acontecer.
Mal a negra acabou de falar, os tiros ecoaram do lado de
fora, acompanhados de gritos e de urros. A casa estremeceu,
ao receber inúmeros impactos. Algumas balas estilhaçaram
vidros das janelas.
— Todos deitados no chão — ordenou Mabua.
Mas o tiroteio terminou em seguida. Conforme começara,
acabou-se. O silêncio voltou a imperar. Os negros deitados
no chão entreolharam-se inquietos. Voltaram-se para Mabua
e para o presidente, com expressões inquisitivas.
Compreenderam que não se tratava de uma armadilha
preparada por De Hoven, nem pela negra, pois ambos
estavam dentro da casa.
— Creio que já terminou — disse ela, sentando-se.
— O quê? — perguntou Nemu Soro, um dos membros da
Comissão.
— O ataque realizado pelos três chefes de tribo reunidos
por Kobo Makebo. Pretendiam acabar com todos nós. Não
sabiam, é claro, que o senhor De Hoven está aqui conosco.
Com licença, um minutinho, sim? — Ergueu o cigarro do
maço especial e murmurou: — Johnny?
— Pronto — respondeu uma voz de homem.
— Tudo bem. Tudo controlado. Completamente. Foi
fantástico!
— Ótimo — exclamou a negra. Desligando o radinho,
suspirou fundo e guardou o aparelho na maletinha vermelha.
— Que aconteceu lá fora? — perguntou Uro Nboko.
— Fizemos alguns prisioneiros — explicou a divina. —
Os tiros foram iniciados pelos chefes de que lhes falei. Os
que deveriam apoiar os planos do senhor De Hoven. Tudo se
modificou, porém, quando o presidente chegou comigo a
certa aldeia e viu algo que o fez mudar de ideia. Acho
melhor começarmos pelo princípio. O senhor De Hoven e
Kobo Makebo estavam de comum acordo em tudo. Era Kobo
quem deveria dirigir os três chefes de tribo, se o genocídio se
tivesse realizado. Tratava-se de uma contraofensiva em
represália à Whiteblack Law. Quem concederia direitos
igualitários aos negros, se esses se lançassem uns contra os
outros e contra os brancos e precisassem ser combatidos pelo
exército? Depois de preparar todos os detalhes, Kobo decidiu
tomar conhecimento do projeto da Whiteblack Law. Queria
saber quais os membros da Comissão que o haviam redigido.
Tramou, em combinação com o presidente, aquela farsa do
roubo dos documentos. Kobo sabia, porém, que nem assim a
Comissão lhe mostraria os estudos feitos para a Whiteblack
Law. Teve, então, uma ideia genial: recorreu à agente da
CIA. A “Baby”.
— A quem? — balbuciou Hoven, estremecendo.
— Oh, desculpe minha reserva, senhor presidente —
murmurou a espiã mais perigosa do mundo. — Nesse ponto,
ainda não havia sido sincera. Sim, eu sou “Baby”.
— Mas a agente da CIA é de raça branca! — exclamou
Karl De Hoven.
— Tendo controlado Kobo, ele não pôde comunicar-se
com o senhor para informá-lo a meu respeito — respondeu a
divina. — Ele me enganou no começo, confesso. Desconfiei
dele quando, ontem no carro, o senhor afirmou que todos os
membros da Comissão deveriam estar mortos. Refleti sobre
isso e cheguei a uma conclusão: o senhor deu instruções a
Makebo. Ordenou a ele que avisasse os três chefes de tribo e
nos atacasse quando estivéssemos reunidos aqui. Ordenou a
morte de todos os membros da Comissão E a minha,
também. Mas meus companheiros da CIA estavam
esperando, bem escondidos. Quando os negros, sob o
comando de Kobo Makebo, apareceram, meu pessoal agiu.
Não com balas. Usaram as mesmas armas com as quais
sequestraram seus filhos, senhor presidente. Lançaram
ampolas de gás narcótico. Os três chefes, neste momento,
dormem um sono profundo. Só acordarão no fim de duas
horas, aproximadamente.
— Tem certeza de que Makebo estava do lado do
presidente? — perguntou Uro Nboko, após um breve
silêncio.
— Tenho. O próprio senhor De Hoven confirmou minhas
suspeitas, hoje de manhã, quando o surpreendi com minhas
disposições. Kobo Makebo fora nomeado Supervisor da
População Negra da Southland. Cargo muito bem
remunerado e importante. Makebo enriquecia, seguindo as
diretrizes do presidente. Não é mesmo, senhor De! Hoven?
— É — disse o presidente, num sussurro.
— Mas Kobo Makebo andava fugido — protestou um
dos membros da Comissão. — Perseguiram-no. Atiraram
nele.
— Tudo planejado com antecedência, meu amigo. Para
dar maior veracidade aos fatos, Makebo preparou o
assassinato de Isa Verkavaa. Ela e o homem que matei no
apartamento de Makebo foram vítimas inocentes dessa
jogada que tinha a finalidade de atrair a agente “Baby”.
Metendo-me no caso, Makebo tinha certeza de obter a
confiança da Comissão e tomar conhecimento do texto da
Whiteblack Law.
— Um momento — disse um dos membros da Comissão.
— Os papéis roubados por Kobo Makebo estavam assinados
por diversos nomes.
— Os documentos foram preparados como isca para me
atrair, meu caro senhor. Eram falsos.
— Claro — concordou Karl De Hoven. — Eu não seria
imbecil de assinar um papel comprometedor como aquele.
— Oh! Tudo isso é absurdo! — disse outro membro da
Comissão.
— Não — retrucou Mabua Luna. — O plano era perfeito.
O documento pelo qual se podia acusar o senhor De Hoven e
seus homens de confiança do governo era falso. Explicaram
tudo direitinho a Kobo Makebo. Quando vocês o
apresentassem como prova de acusação, diriam que se
tratava de um truque para derrubar o governo atual. A
Comissão seria apontada como a instigadora de um golpe de
estado para tomar o poder, apoiada na justificativa de estar
impedindo uma revolta sanguinária. Ninguém acreditaria que
De Hoven e sua gente tivessem redigido semelhante
documento. Além do que, a falsidade dos papéis logo ficaria
provada. Acusariam a Comissão e os negros. Só uma pessoa
poderia dizer de onde provinham os papéis, embora sendo
falsos: Makebo. Mas quando ele tivesse realizado a sua parte
na brincadeira seria eliminado. Não é isso, senhor
presidente?
— Sim.
— Que restaria então? A Whiteblack Law, em poder de
De Hoven. Ele a estudaria para verificar como derrubá-la,
caso algum membro da Comissão escapasse com vida. E
restaria a agente “Baby”, que, manobrada por Kobo Makebo,
diria ao mundo o que ele quisesse. Acontece, porém, que
Makebo brincou com um brinquedo grande demais para ele:
uma espiã. Não demorou a perder meu ritmo de trabalho.
Ficou para trás. Desligado de tudo. Quando percebeu, não
teve mais tempo para coisa alguma. Só para ouvir a ordem
desesperada do senhor De Hoven, dada, de um modo
disfarçado, no carro onde nos encontrávamos. A ordem para
me matar junto com a Comissão. Mais alguma dúvida,
cavalheiros?
Um silêncio sepulcral tomou conta da sala. De repente,
um dos negros mais jovens levantou-se transfigurado e disse,
sem hesitar:
— Recuso-me a tratar deste caso com... com o presidente.
Não contem comigo.
Mabua Luna consultou com o olhar todos os outros
membros da Comissão. Ninguém abriu a boca. Ela, então,
retomou a palavra:
— Compreendo a atitude de vocês. Em política e em
espionagem, essas coisas acontecem, de vez em quando.
Num minuto, inimigos de morte; no minuto seguinte,
colaboradores. A sobrevivência do senhor De Hoven
interessa mais a vocês que a ele próprio. Por isso não o
matei. Ele servirá para incluir a Whiteblack Law na
Constituição do país.
Fez uma pausa, apanhou na maletinha vermelha a pistola
de cabo de madrepérola e prosseguiu:
— Se preferem vê-lo morto, não vejo inconveniente
algum em matá-lo. Qual é o veredicto?
— Morte! — disse o negro mais jovem. — Não foi da
cabeça dele que saiu o plano de morte para os negros? Pois
que morra ele!
— Cale-se, Nimo — exclamou Uro Nboko. —
Precisamos desse homem com vida.
— Não trabalharei ao lado dele.
— Então, retire-se. Será só o que fará. Vai privar-nos de
sua preciosa ajuda, companheiro.
O jovem negro mordeu os lábios. Baixou a cabeça e
permaneceu no lugar, como uma estátua.
— Por que o senhor presidente mudou de atitude em
relação a nós? — perguntou outro membro da Comissão. —
Que aconteceu?
— Refletiu e verificou que é conveniente para ele ditar
leis que garantam o bem-estar dos negros — disse Mabua
Luna. — Não é assim, senhor presidente?
— É.
— Muito bem — exclamou a espiã, sorrindo.
— Redijam e assinem aqui mesmo os documentos
preliminares para o compromisso de estudar e pôr em
funcionamento a Whiteblack Law. Em seguida, procurem um
lugar mais confortável para concluir o projeto da lei. Que tal
a Casa da Presidência, senhor De Hoven?
— Está bem.
— Ótimo.
Bateram na porta. Mabua Luna olhou para o negro com a
cabeça como algodão e fez um sinal para ele ir abrir. Dois
homens entraram. Ambos usando capacete e óculos de
motociclistas.
— Estão todos amarrados — informou o primeiro,
parando diante da negra de corpo escultural. — Que fazemos
com eles?
— E Makebo?
— Também.
— Tragam-no para cá e o deixem encostado à parede.
Ninguém se pronunciou, quando Makebo foi trazido para
a sala. Deixaram-no sentado a um canto, encostado à parede.
Sua cabeça pendeu para o peito, vencida pelo sono profundo
provocado pelo gás narcótico.
— Chegou a hora de me retirar, cavalheiros — murmurou
Mabua Luna, lançando um olhar a De Hoven. — Passarei
pelo lugar onde deixamos os soldados. Mandarei que
venham recolher os prisioneiros. Devem ficar bem
guardados, pois são capazes de se lançarem em outro
movimento de rebelião. Depois, enquanto vocês assinam o
compromisso para a inclusão da Whiteblack Law na
Constituição da Southland, irei à aldeia buscar a família do
senhor De Hoven e a levarei pessoalmente para casa. Tudo
com discrição, presidente. Nada receie.
— E que faremos depois? — perguntou De Hoven,
arrasado. — Não poderemos mais viver como até agora.
Você destruiu a minha vida e a de minha família.
— Assine o compromisso e volte para sua casa, senhor
De Hoven — murmurou Mabua Luna. — Espero que a lição
lhe seja proveitosa. Bem, adeus a todos.
Os olhares fixaram-se em Mabua Luna.
— Por que trouxe Makebo para cá? — perguntou o
jovem negro, com ódio no olhar.
— Porque achei que você talvez se acalmasse, matando
alguém. Como não podemos eliminar o senhor De Hoven, é
possível que se contente com Makebo. Quer minha pistola?
— Como? — balbuciou o negro, arregalando os olhos. —
Acha-me capaz de atirar a sangue-frio num homem
adormecido?
— Por que não? — disse Mabua Luna, sorrindo. Tirou da
maletinha sua pistola de cabo de madrepérola, apontou-a
para Makebo e acrescentou: — Assim. Veja.
Puxou o gatilho. Kobo Makebo mal estremeceu, ao
receber a bala no peito. Tudo continuou igual. Exceto pela
manchinha vermelha que se formou em sua camisa.
Após um segundo de silêncio macabro, as palavras de
Mabua Luna tornaram a ecoar:
— Três pessoas morreram: uma mulher branca, um
homem branco e um homem negro. A vida do ser humano é
um tesouro precioso. Foi dado por Deus e só ele tem o
direito de pedi-lo de volta. Todos nós perdemos com essas
mortes. Eu também. Adeus.

ESTE É O FINAL
Volta ao lar

Karl De Hoven chegou a casa, quando o dia estava


amanhecendo. Ao entrar, já não pensava mais que havia
assinado um compromisso com os negros e que um trabalho
puxado o aguardava nas próximas semanas, até ficar tudo
estabelecido em relação à Whiteblack Law. Pensava na
família que ia tomar a ver. Uma família que, como ele,
sempre se sentira superior aos negros. Que sempre sentira
desprezo pelas outras raças. Para quem a única digna de
consideração era a branca. Como poderiam viver agora?
Ulla, tão branca, tão bonita, transformara-se numa negra. O
mesmo acontecerá com Oskar e com Pia. E ele continuava
branco. Protegera o futuro de sua família, transformada
numa família negra. Mas que vida levariam os quatro
naquela casa?
Foi para o salão, disposto a tomar um uísque antes de
subir para o quarto e encontrar a esposa negra na cama.
Espantou-se, ao deparar com eles no salão. Não estavam nos
quartos, conforme imaginara. Ulla e Pia, sentadas no sofá.
Oskar, encolhido numa poltrona, cochilando. Seu espanto,
porém, não teve limite, ao verificar que tinham voltado a ser
brancos.
Karl De Hoven ficou imóvel, olhando para seus entes
queridos. Não pestanejava, sequer. Aproximou-se, em
seguida, sem fazer ruído, temendo que tudo não passasse de
imaginação sua. Ao chegar junto do sofá, encontrou o
envelope encostado aos joelhos de Ulla. Abriu-o com mãos
trêmulas. Tirou uma folha escrita a mão. Poucas linhas. E
diziam o seguinte:
Você é o primeiro criminoso a quem permito
continuar vivendo. Aproveite essa oportunidade em
benefício de todos. Caso contrário, voltarei para
acertarmos contas.
“Baby”.

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