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Introdução
Caso Clínico
Dolores procurou os serviços do Hospital São Paulo, há alguns anos, por uma
infecção urinária persistente e, após vários exames, detectou-se um constante sangue na
urina. Os médicos não têm qualquer explicação para este fato que, acreditam, não trará
grandes conseqüências para a saúde da paciente. De tanto tomar antibiótico para estas
infecções urinárias, Dolores desenvolveu uma gastrite e procurou um gastroenterologista
que lhe pediu mais exames, descobrindo no exame de sangue uma elevada taxa de
colesterol. Como “quem procura, acha”, em uma destas peregrinações ao Hospital, Dolores
descobriu que sofria da Síndrome do Cólon Irritado e também de fibromialgia,
acrescentando assim mais dois diagnósticos para o seu “currículo”. E como um especialista
leva a outro especialista que, presume-se, tenha alguma resposta para suas “dor no coccis”,
dor nos braços, cefaléia, insônia, taquicardia, pressão alta, desânimo, tontura, etc... Dolores
percorreu uma verdadeira romaria pelo Hospital até que, descontentes com as poucas e até
ausentes evidências de um substrato físico para seus sintomas, supuseram alguma
contribuição de ordem emocional e encaminharam-na para a Psiquiatria, mais
especificamente para o Ambulatório de Somatizadores. Como Dolores, inúmeras pacientes
freqüentam o Hospital visitando as mais diversas especialidades, de acordo com o tipo de
dor que sentem, a tal ponto que o Hospital chega a transformar-se numa “segunda casa”.
Passam a conhecer os funcionários, os professores, conseguem driblar a burocracia da
instituição para serem atendidas na hora e com quem escolherem. Enfim, suas vidas passam
a girar em torno de suas queixas somáticas conferindo-lhes uma identidade: paciente.
Após dois anos de atendimento clínico no Ambulatório, Dolores foi encaminhada
para um grupo de psicoterapia no qual não conseguiu permanecer devido, segundo ela
mesma, a dificuldades de se colocar num grupo. Pediu para sair do grupo e ser atendida
individualmente, chegando assim, até mim. Iniciamos nosso trabalho em agosto de 2000.
Na primeira entrevista Dolores diz achar que estas dores que sente relacionam-se de
alguma forma com “nervosismo”, e acha que tudo começou, ou, melhor dizendo, piorou,
quando perdeu um filho de vinte e quatro dias de idade, por um problema de pedras nos
rins, há vinte anos atrás. Segundo a paciente, ela já era preocupada, ansiosa, mas depois
deste episódio “nunca mais teve sossego”. Dolores tem quarenta e um anos, e é a penúltima
filha de uma prole de sete. Nasceu em Mato Grosso e sempre viveu na roça. Lembra que,
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aos quatro anos, dormiam no mesmo quarto ela, seu irmão mais novo e seus pais, quando
uma noite seu pai deu um grito de dor e faleceu imediatamente, provavelmente de um
ataque do coração. Sua mãe passou a criar os filhos sozinha. Dolores diz ter tido uma
infância muito ruim e, com lágrimas nos olhos, não consegue dizer mais do que isto. Aos
quinze anos casou-se e em seguida, sua mãe também encontrou um companheiro. Lembra-
se que passou a morar numa casa vizinha à de sua mãe e entre as duas casas havia um
chiqueiro. Á noite os porcos gritavam e Dolores não conseguia dormir. Assim começou sua
insônia. Gerou quatro filhos, três meninos, sendo o terceiro este que faleceu, e uma menina,
através da qual, segundo a paciente, recuperou um pouco da confiança na vida. Sua vida
sempre foi difícil e sacrificada, chegou a passar fome. Em busca de melhores condições e
oportunidades de trabalho, mudaram-se para São Paulo onde seu marido trabalha como
pedreiro.
Há três anos sua mãe contraiu um câncer de pele, separou-se do marido e veio
tratar-se em São Paulo. Dolores acompanhou a mãe no tratamento e nesta época piorou de
seus sintomas, que ficaram mais agudizados e constantes. Seu estômago piorou, insônia,
fadiga, preocupação excessiva com o corpo,... A paciente sente muito medo de ser igual à
mãe, não apenas no que diz respeito à doença, mas na maneira como a mãe lida com isto:
vive preocupada, resmungando, gemendo, cheia de dores, preocupadíssima com sua saúde,
não reconhece a ajuda dos filhos, nunca está satisfeita,... Dolores admite-se muito parecida
com a mãe, mas, apesar de não saber como, “gostaria de ser diferente”. Por exemplo, a
mãe sempre teve cismas com comida e orientava Dolores a não misturar manga com leite;
desde criança Dolores testava ingerir manga com leite para verificar se não faria mesmo
mal. Até os dias de hoje, se sua mãe diz que alguma comida faz mal, Dolores faz o teste.
Escolhi esta ordem de apresentação da paciente, pois penso que reflete o modo
como ela mesma se apresenta nas sessões: inicia a sessão falando de sintomas somáticos e a
partir de algumas pontuações minhas, Dolores abre seu mundo subjetivo, possibilitando a
atribuição de um sentido psíquico para estas dores. Por exemplo, uma sessão que começa
com queixa de dores no abdômen, síndrome do cólon irritado, seguida da narrativa de toda
peregrinação feita no hospital até este diagnóstico e de mil explicações médicas, Dolores
lembra que as dores começaram no dia em que sua mãe mudou-se da casa de seu irmão
para sua casa, passando a refletir o quanto a presença de sua mãe resmungona, crítica e
exigente, a irrita.
Selecionei, a seguir, alguns trechos de uma sessão para ilustrar o modo de se
apresentar da paciente, assim como seu funcionamento psíquico. Dolores inicia a sessão
queixando-se “Não estou bem. Minha cabeça parece que vai explodir. Acho que é da gripe.
Já estou melhor da gripe, mas aqui tá tudo congestionado. Pode ser da sinusite, né?! Aí não
quero nem ir ao médico porque ele vai passar antibiótico que eu sei, e aí vai me atacar o
estômago.A dor de cabeça começou a semana passada, mas ontem piorou. Estes médicos
não ajudam. Ontem vi uma reportagem mostrando que os residentes daqui, do Hospital São
Paulo, têm que atender os pacientes com um supervisor do lado, porque eles ainda estão
aprendendo. Mas isto não está acontecendo, eles atendem sozinhos. Imagina cair na mão de
um destes! Os médicos ou são da rede pública e ganham pouco e têm muita gente para
atender e não atendem direito, ou são de convênio e aí querem faturar. Meu marido foi ao
médico um dia, por causa das varizes. Eu que levei, porque gosto de ir em médico. O
médico resolveu internar. Era um sábado e meu marido tinha um churrasco no domingo.
Perguntou para o médico se não dava para esperar até segunda para ele não perder o
churrasco. O médico disse que não dava para esperar e internou. Meu marido ficou doze
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dias no hospital e o médico não dizia o que ele tinha e, aí, ele deprimiu, a barriga inchou e
ele foi parar na UTI. O médico não queria me deixar entrar na UTI e eu comecei a brigar
porque não era nem caso de UTI, o médico queria faturar. O médico disse que eu era mal
educada e falei que eu era mesmo, analfabeta e mal educada. Mas ele que tinha estudo era
pior. Médico de convênio é assim. No final meu marido saiu do hospital e foi trabalhar no
dia seguinte. Não tinha nada. Que nem a filha da minha vizinha. Uma garota de 21 anos que
tinha um bebê de dez meses. Um dia acordou com dor no braço, foi ao médico e ele
internou dizendo que era coluna. Depois de quatro dias mandou ela para casa. Ela queria ir
cuidar do filho. Chegou em casa num dia, no dia seguinte acordou paralítica das pernas e
morreu. A família acha que foi o remédio que o médico deu que a matou. Fizeram B.O. e
tudo, mas não descobriram do que ela morreu”. Neste momento interrompi a paciente para
colocar que ela cria uma verdadeira novela com os médicos, que por um lado representam
figuras protetoras, que podem ajudá-la, mas por outro são criminosos mercenários, que dão
medo.
Dolores respondeu: “Tenho medo mesmo. Imagina, você chega num hospital para
ser salva e o médico te mata. Fico pensando nestas coisas o tempo todo. Minha cicatriz do
períneo não cicatrizou direito ainda, tem um lugar que fica sangrando. Passei a noite toda
sem dormir, pensando: vou ao médico ou não vou ao medico. A noite inteira acordada.”
Dolores precisou fazer uma cirurgia para levantar a bexiga que caiu devido ao fato de os
partos de seus quatro filhos terem sido normais. Notei nesta fala um deslocamento do afeto,
pois este simples sangramento, comum após uma cirurgia como esta, não justifica passar a
noite acordada. Comentei isto com a paciente acrescentando que “talvez pensar nestas
coisas desvie seu pensamento de questões mais difíceis de resolver”.
Neste momento Dolores se deprime, no sentido kleiniano do termo, muda seu
discurso, deixa de acusar o mundo por sua mazelas e revela seu mundo subjetivo, aquilo
que dele possa estar implicado nestas mazelas: “Às vezes eu queria virar um mendigo.
Penso: pra que viver, pra que lutar, pra que comer. Acho que por isto esta gente vira
mendigo: desilusão. Eu luto, luto, luto e não consigo o que quero. Aí desisto de tudo, tenho
vontade de morrer. Penso: porque não fico logo doente. Aí as dores aparecem e começo a
cuidar delas.”
C.A.: “As dores fazem lembrar que você está viva.”
Dolores: “É verdade (sorri), e ao invés de desistir eu continuo lutando. É, eu queria
voltar a ter sossego, voltar a meu normal.”
C.A.: “E quando foi a última vez que se sentiu normal e sossegada?”
D.: “Foi antes daquele meu filho morrer. Eu levava a vida mais leve, não me
preocupava tanto. Depois que ele morreu eu fiquei irritada, tensa, tudo me
incomodava. Se meus filhos engolissem saliva eu ficava brava. Tudo tinha de ser do
meu jeito, gostava de tudo em ordem, no lugar.”
C.A.: “Você viveu uma situação muito traumática, de extremo desamparo. Seu filho
doente, você mesma, na UTI, correu risco de vida. As coisas aconteciam à sua
revelia e você não tinha como controlar nem evitar nada. Parece que depois disto
passou a tentar ordenar e controlar as coisas, na tentativa de evitar uma outra
catástrofe.Você passou a tentar prever as coisas para se precaver.”
D.: “Prever e precaver. É isso mesmo. Até hoje sou assim, fico tentando adivinhar
as doenças e qualquer coisinha eu corro pro médico.”
C.A.: “Parece uma tentativa de evitar o sofrimento pelo qual passou.”
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D.: “É, meu filho morreu e eu fiquei meio doida. Minha cama ficava encostada na
parede, e do lado de fora da parede tinha um poço artesiano e eu achava que o chão
ia ceder e eu ia cair dentro do poço. Fiquei doida.”
C.A.: “E poço te lembra alguma coisa?”
D.: “Lembro que quando eu estava grávida do segundo filho, do Marcelo, o mais
velho tinha dois anos e caiu dentro de um poço. Corri feito louca, pulei dentro do
poço e tirei ele lá de dentro.”
C.A.: “Este você conseguiu salvar.”
D.: “Eu não conseguia cuidar do meu filho que morreu, sinto remorso.”
C.A.: “Porque não conseguia?”
D.: “Não sei. Ele chorava muito, a gente tinha que correr para o Pronto Socorro.
Meu marido cuidava dele, eu não conseguia. Ele perdeu muito peso, os médicos não
sabiam porque, era doente. Eu sentia rejeição por ele. Ao mesmo tempo eu gostava
dele, era meu filho. Até hoje sinto remorso.”
C.A.: “Outra ferida não cicatrizada.”
D.: “Que coisa, né... depois de tanto tempo.”
Na sessão seguinte, Dolores diz que após esta sessão descrita, parara de se
preocupar com seu sangramento, que, no dia seguinte, estancara.
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produzida pela necessidade”.4Assim, sempre que presente esta necessidade e sua decorrente
excitação, o psiquismo disporá de um impulso que irá catexizar a imagem mnemônica da
percepção o que seria uma tentativa do psiquismo de restabelecer o estado de satisfação
original. “Um impulso desta espécie é o que chamamos de desejo: o reaparecimento da
percepção é a realização de desejo e o caminho mais curto a essa realização é uma via que
conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo a uma catexia completa da
percepção”.5Este seria o caso da alucinação. Esta primeira atividade psíquica produz uma
identidade perceptiva, “algo perceptivamente idêntico à experiência de satisfação... A
amarga experiência da vida deve ter transformado esta primitiva atividade do pensamento
numa atividade secundária mais conveniente”.6O princípio de realidade trata de impedir
que a regressão do aparelho seja completa, a ponto de haver uma catexia total da percepção
que produz uma alucinação, uma vez que este funcionamento mental mostra-se incapaz de
satisfazer nossas necessidades em relação ao mundo exterior. Assim, no lugar do desejo
alucinatório, aparece o pensamento. O desejo é a força motriz de nosso aparelho mental,
produtor dos sonhos e pensamentos. Os sonhos que utilizam a regressão à percepção
alucinatória são uma amostra desta atividade primária do aparelho, “o sonho é um pedaço
da vida mental infantil que foi suplantado”7, com exceção das psicoses. Graças à censura
existente entre o pré-consciente e o inconsciente, é impedida a regressão do aparelho à
percepção, o que produz o pensamento e a ação motora voluntária capaz de conduzir-nos à
satisfação de necessidades.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade infantil, 1905, Freud introduz o
termo Trieb (pulsão), cuja origem pode ser encontrada nas noções de excitação somática e
interna. Freud utiliza o mesmo exemplo, da nutrição do bebê, que ao mamar satisfaz os dois
grandes grupos de pulsões, que são as de autopreservação e as sexuais. Ao mamar o bebê se
nutre, satisfazendo a pulsão de autopreservação e logo descobre o “prazer sensual de
sugar”... “de início, a atividade sexual se liga a funções que atendem à finalidade de auto-
preservação e não se torna independente delas senão mais tarde.” 8
Mais adiante na obra, Freud retoma este tema reafirmando que a sexualidade infantil
apóia-se nas principais necessidades orgânicas, “sugar o seio materno é o ponto de partida
de toda vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação sexual ulterior, ao qual a
fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de necessidade”.9A vida psíquica composta
por fantasias, pensamentos, devaneios e sonhos apóia-se inicialmente, no orgânico, descola-
se conquistando uma certa independência e oferece-se como continente de excitações,
capaz de tramitá-las simbolicamente.
Assim Freud foi delineando este conceito “algo obscuro” da psicanálise, “...situado
na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se
originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à
mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo.” 10 Freud
destaca dentre as diversas pulsões dois grupos primordiais, pulsão do ego e pulsões sexuais.
As sexuais são numerosas, “emanam de uma grande variedade de fontes orgânicas, atuam
em princípio independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou menos
completa em etapa posterior”.11 Ilustramos acima, com o exemplo extraído dos Três
ensaios, a fonte orgânica na qual emana a pulsão oral; ao longo de sua obra, Freud foi
detectando outras fontes pulsionais, tais como anal e fálica, que num desenvolvimento sem
acidentes de percurso, portanto ideal, sintetizar-se-iam em torno da primazia dos genitais.
A teoria da libido amplia-se ainda mais com o conceito de narcisismo. Freud
percebeu que a fase do narcisismo e as afecções a ela ligadas, por exemplo, a hipocondria,
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eram mais comuns do que ele imaginava, incluindo-a então no desenvolvimento normal da
libido.
Portanto, se tudo correr de forma ideal, as pulsões encontrarão no psiquismo um
substrato representacional, inclusive do próprio corpo, capaz de contê-las, adiar a obtenção
imediata de prazer, e direcioná-las para a realidade externa, no sentido de uma satisfação
segura e madura. Assim o indivíduo seria capaz de amar e trabalhar. Mas, como a vida não
é ideal, as pulsões sofrem vicissitudes, desvios desfavoráveis, tais como a reversão em seu
oposto, retorno em direção ao próprio eu do indivíduo (narcisismo), recalque e sublimação,
como sugere Freud em Os instintos e suas vicissitudes, de 1915. Não nos deteremos a
especificar ou aprofundar estes destinos da pulsão, mas suas implicações clínicas.
A presente exposição destacou, não por acaso, a histeria e as neuroses atuais, pois a
conversão e a somatização, sintomas de desvios pulsionais, são as hipóteses que estabeleço
como possíveis para a compreensão dos sintomas de Dolores. Acrescento a hipocondria,
também efeito de um desvio pulsional, narcísico, como possibilidade de compreensão de
nossa paciente.
I – Somatização
excitação”.13 Nota-se que em 1915, ao listar os possíveis desvios da pulsão, Freud não
retoma este descrito para as neuroses de angústia.
Na neurastenia, a etiologia encontra-se numa descarga inadequada da libido,
enquanto que a neurose de angústia, resulta de fatores que impedem que uma excitação
somática possa ser psiquicamente exercida. A excitação é desviada do psiquismo, que por
“insuficiência”14 não pode contê-la, e gasta de maneira inadequada, por exemplo, através da
ansiedade. Há uma “alienação entre as esferas psíquica e somática”.15 Assim, os sintomas
das neuroses atuais são substitutos da ação adequada para descarga da excitação e afetam o
indivíduo no plano somático.
Freud mantém estas entidades nosográficas até o fim de sua obra, mas raramente as
cita novamente. Em 1914, ao introduzir o conceito de narcisismo e teorizar sobre os
mecanismos psíquicos da hipocondria, acrescenta-a ao conjunto das neuroses atuais.
Voltaremos à hipocondria mais adiante.
II – Conversão
Segundo Laplanche, a conversão consiste “... numa transposição de um conflito
psíquico e numa tentativa de resolução deste em sintomas somáticos, motores (paralisias,
por exemplo) ou sensitivos (anestesias ou dores localizadas, por exemplo). O termo
conversão é para Freud correlativo de uma concepção econômica: a libido desligada da
representação recalcada é transformada em energia de inervação. Mas o que especifica os
sintomas de conversão é sua significação simbólica: eles exprimem pelo corpo,
representações recalcadas.”22
Em 1910, Freud apresenta um exemplo clínico que ilustra o mecanismo da
conversão (11). Trata-se da cegueira histérica. Freud percebe que, apesar de não enxergar, a
paciente, acometida pela cegueira, emociona-se diante de determinados estímulos ópticos, o
que sugere uma cegueira psicogênica. A dissociação entre consciência e inconsciente,
própria da histeria, permite que o estímulo, não decodificado pela consciência, atinja o
inconsciente da paciente. Idéias relacionadas a esta perturbação da visão foram recalcadas,
retiradas da consciência, por serem incompatíveis com o ego da paciente. Um conflito entre
idéias gera o recalque, e como “a oposição entre idéias é apenas uma expressão das lutas
entre os vários instintos”23, Freud supõe um conflito entre as pulsões sexuais e pulsões do
ego. As idéias ligadas às pulsões sexuais são recalcadas, mas as pulsões insistem na sua
busca de satisfação, que se dá, disfarçadamente, através do sintoma. O olho é um órgão,
assim como todos os outros, que serve à satisfação das duas classes de pulsão: ele tanto
percebe o mundo externo, o que auxilia na preservação da vida, como percebe o objeto de
amor. Quando o prazer sexual de olhar entra em conflito com os ideais do ego “as idéias
através das quais seus desejos se expressam sucumbam à repressão e sejam impedidas de se
tornarem consciente; nesse caso haverá uma perturbação geral da relação do olho e do ato
de ver com o ego e a consciência. O ego perderia seu domínio sobre o órgão, que ficaria,
então, totalmente à disposição do instinto sexual reprimido...o ego se recusa a ver outra
coisa qualquer, agora que o interesse sexual em ver se tornou tão predominante”. 24 O
instinto sexual por sua vez, domina totalmente o órgão em questão.
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Nota-se neste exemplo as noções de recalcado sexual infantil, uma vez que a esta
altura Freud já havia formulado a teoria da libido dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade. Nota-se ainda a oposição entre idéias (representação) e pulsão (afeto), sendo
que na histeria a representação é recalcada e o afeto dela desligado através do recalque
converte-se em energia somática.
III – Hipocondria
Freud, em 1914, define hipocondria como uma manifestação patológica do
narcisismo, na qual o interesse (pulsão de autoconservação) e a libido (pulsão sexual) são
retirados do mundo externo e catexizados num órgão supostamente enfermo. Ocorre,
portanto um represamento da libido no ego, que excessivo, causa desprazer.
Normalmente, e numa certa medida, as pessoas prestam atenção em seu próprio
corpo e nos sinais que ele transmite, sem que isto signifique uma hipocondria. Porém, esta
atitude narcisista não é de modo algum objetiva, uma vez que o corpo anatômico não
corresponde necessariamente ao corpo psíquico, libidinal, o que pode gerar algumas
distorções de percepção corporal. Como ilustra Fernandes25, o corpo de alguns pacientes
portadores de doenças graves não apresenta absolutamente nenhum sinal da afecção, ao que
ela chamou de silêncio dos órgãos. Outros apresentam sinais (por exemplo, através de
sonhos cujo recolhimento narcísico facilita a observação do corpo, o que confere aos
sonhos um caráter hipocondríaco), mas o paciente não os escuta. Segundo Fernandes, a
hipocondria revela um investimento libidinal no corpo, ainda que exagerado e
desprazeroso. O silêncio dos órgãos revelaria uma anestesia do corpo libidinal.
Uma mãe, capaz de escutar e interpretar o próprio corpo será capaz de escutar e
interpretar os sinais do corpo de seu bebê, ajudando-o a tolerar sensações desagradáveis e a
“transformar esse corpo de sensações em um corpo falado”.26
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Discussão
estado emocional. Quando a mãe adoece Dolores volta a “enlouquecer”, como ela mesma
diz. Novamente fica identificada com alguém doente, pois diante da doença da mãe passa a
controlar seu corpo, seus sinais, temendo que alguma doença terrível a mate. Esta “novela”
que cria com os médicos seria uma maneira de reviver estas situações, uma tentativa de
elaboração psíquica.
Recentemente Dolores veio a uma sessão dizendo que quase não vinha, pois deixara
sua mãe sozinha em casa. Trabalhamos o quanto é difícil para ela separar-se de sua mãe
para levar sua própria vida, e seguimos com associações que hora diferenciavam as duas,
hora as misturavam como se fossem uma só. Por um lado, Dolores mantém a ilusão de
fusão com a mãe, na qual sente-se completa, sem frustrações, por outro, deseja distanciar-
se, tornar-se distinta. Daí a dúvida vir ou não para a análise. Para Dolores separar-se
implica em morte. Pensou em não vir à sessão pois sente medo de sair na rua, de atravessar
a rua, pois um carro pode atropelá-la, tem medo das pessoas estranhas. E sua mãe sozinha
em casa poderia precisar de “alguma coisa” e não encontrar socorro. Ao mesmo tempo,
Dolores sente necessidade de separar-se, por isto vem à análise.
Assim, estamos diante de uma identidade um tanto indiferenciada, e que por isto
mesmo precisa o tempo todo verificar se existe, se está viva. As dores trazem esta sensação
de estar viva, de existir. Ao ingerir manga com leite para contestar a mãe, numa atitude
ambivalente com o próprio corpo, Dolores tenta diferenciar-se da mãe, ao mesmo tempo
em que corre um risco de vida do qual sai ilesa, viva.
Porque Dolores elegeu esta forma sintomática, sentir dor? Uma dica que a paciente
nos dá é que sua mãe sempre foi muito preocupada com doenças, e esta poderia ser uma
forma de oferecer-se à mãe como objeto de seu interesse. Esta forma de relação estaria hoje
atualizada na relação com os médicos. Neste sentido a dor estaria sendo vivida como
prazer.
Todas estas questões levantadas supõem um retorno da libido ao próprio eu da
paciente, numa tentativa de restauração deste narcisismo ferido.
Dissemos acima que, pela riqueza psíquica de Dolores, provavelmente não estamos
diante de uma neurose mal mentalizada. Agora, entre a mal mentalizada e a bem
mentalizada existe uma gradação infinita. No caso de Dolores, pelo menos no que diz
respeito à representação psíquica de seu corpo, encontramo-la a meio caminho, entre a
concretude e a simbolização, provavelmente devido a estas falhas narcísicas, a esta
indiferenciação do próprio eu, que é antes de mais nada um eu corporal.
14
Notas