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Trabalho de Psicologia Médica

Anamnese Psicológica

Isabele Puga de Abreu Leandro

M6 - 2016.2

DRE: 114022170

Profª: Lina Rosa Morais

Rio, 23/11/2016
Identificação: J L M M, masculino, 60 anos, negro, casado, autônomo, residente em
Anchieta, natural do Rio de Janeiro, ensino fundamental completo.

Queixa Principal: “Dor na barriga há 10 anos”

História da Doença Atual: Refere quadro de cólica intestinal difusa de ocorrência


esporádica, associada a diarréia líquida há dez anos. Em fevereiro de 2016, iniciou
vômitos de grande monta sem restos alimentares, sangue ou muco, associado a pico
hipertensivo (PA sistólica 220mmHg). Procurou o serviço de emergência que prescreveu
remédios (não soube dizer quais) e retornou para casa. Manteve quadro de vômitos
esporádicos com mesmas características e relata ter feito diversos exames (não soube
especificar quais) sem diagnóstico. Em março de 2016, iniciou quadro de dor aguda em
pontadas em fossa ilíaca direita, de alta intensidade, aliviada ao uso de dipirona e sem
evento desencadeador, de caráter constante com piora esporádica, além de persistência
dos demais sintomas. A dor manteve suas características, migrando da fossa ilíaca
direita para a fossa ilíaca esquerda, e atualmente se mantém em hipocôndrio esquerdo
com irradiação para região lombar esquerda. Relata ter perdido mais de 10kg desde
fevereiro, além de episódios também esporádicos de diarreia líquida com acolia fecal e
urina de aspecto colúrico que persistem por poucos dias. Apresentou também um
episódio de edema em membros inferiores de resolução espontânea, e outro episódio no
qual “ficou amarelo”. Refere um episódio isolado de enterorragia na última semana. No
momento, encontra-se internado no HUCFF para elucidação diagnóstica.

Faz uso de Omeprazol 20mg/1x/dia, Atenolol 25mg/1x/dia, Hidroclorotiazida


25mg/1x/dia, Losartana 50mg/1x/dia, Dipirona SOS

Anamnese Dirigida: Pirose intensa e dor aguda em pontadas de forte intensidade em


epigastro com melhora ao uso de Omeprazol 20mg 1x/dia por conta própria.
Dificuldades para engolir alimentos com sensação de “entalo” (disfagia baixa? Não
diagnosticado). Episódios esporádicos de dor aguda intensa “por todo o corpo”, nos
quais não consegue se movimentar ou falar, sentindo-se “endurecido” (sic) que duram
alguns minutos, após os quais sente-se extenuado, com dor difusa não localizada
abrangendo todo o corpo. Nega problemas nos demais sistemas. Refere também
episódios ocasionais de “calores”, com sudorese intensa e taquicardia, de resolução
espontânea, sem agravante ou desencadeante.

História Patológica Pregressa: Correção de hemorróidas há 30 anos. Hipertensão


Arterial Sistêmica tratada há 10 anos. Cefaléia tipo tensão crônica. Nega cirurgias,
transfusões, pneumonia, tuberculose ou outras comorbidades.

História Fisiológica: NDA

História Familiar: Mãe falecida aos 40 anos CA de mama. Pai falecido aos 93 anos por
causa desconhecida. Dois irmãos, duas filhas, esposa e três netas, todos hígidos.

História da Pessoa: Residência própria, mora com a esposa no mesmo terreno que as
filhas, seus maridos e suas netas, cada um com residência própria. Não possui animais
de estimação. Trabalha com encomendas, entrega e instalação de estruturas de vidro,
como vitrines, há 30 anos. Refere carga de trabalho intensa (+ de 12h, 6x na semana) e,
por conta disso, muitas vezes não almoça ou faz apenas um lanche (salgado de forno +
refresco). Seu café da manhã é metade de um copo contendo café preto puro, e seu
jantar uma refeição completa, dormindo pouco tempo após. Bebe pouca água (não
soube especificar quanto), substituindo-a por refrigerante de cola quando tem sede.
Dorme cerca de 5 horas por noite. Ex-tabagista 30 maços/ano (1 maço/dia/30 anos),
parou há seis anos. Ex-etilista social (cerveja).

Anamnese Psicológica: J L M M nasceu na Comunidade do Jacaré e passou a


infância no município de Ricardo de Albuquerque, próximo à região metropolitana do Rio
de Janeiro. Morava com seus pais e 3 irmãos e todos se davam bem. A mãe adoeceu
devido a um CA de mama, cujo tratamento foi bastante complicado e custoso
emocionalmente para os filhos devido a múltiplas internações. A mãe faleceu quando ele
tinha 11 anos, e apesar de seu pai deixar a casa parcialmente arrumada quando saía
para trabalhar como motorista de ônibus, ele cuidava dos irmãos mais novos (um irmão
de 8 anos e uma irmã de 6 anos) e das tarefas de casa, ajudando no que conseguia.
Começou a trabalhar aos 13 anos em uma fábrica de café e biscoitos, com carteira
assinada, ajudando na produção. Trabalhava de segunda a sexta, e nos finais de
semana podia brincar com as outras crianças da rua. Disse nunca se importar pelas
outras crianças brincarem e ele ter que trabalhar, uma vez que sabia que nos finais de
semana teria seu tempo livre e que era uma necessidade da família. Além disso, não
gostava de frequentar a escola (parou de estudar após o primário. Tentou fazer o
supletivo anos depois, mas não conseguiu conciliar com a rotina de trabalho). Seu pai
voltou a se casar algum tempo depois, e ele manteve boa relação com sua madrasta.
Saiu de casa aos 23 anos, para casar com a esposa, que na época tinha 21. Moraram
em casa alugada em Ricardo de Albuquerque até herdarem um terreno em Anchieta de
seu falecido sogro alguns anos depois, onde construíram as casas onde vivem hoje com
suas filhas, os maridos delas e suas netas. Nega ter tido qualquer problema para criar as
filhas, inclusive financeiro. Refere excelente relação com todos. Diz que as filhas são
suas amigas, e as netas sua fonte de alegria.
Sobre a vida profissional, após sair da fábrica, continuou fazendo bicos (alguns
deles como vigilante) até que um amigo o indicou para uma vaga em uma empresa
especializada em fabricar vidros sob encomenda. Trabalhou dez anos na empresa, após
os quais foi mandado embora e continuou no ramo mais 20 anos por conta própria.
Atualmente, sua rotina de trabalho envolve sair para trabalhar às 7h da manhã, com
horário flexível para retornar à casa, por vezes chegando às 2h da manhã seguinte, de
segunda à sábado e às vezes, no domingo também. O número de clientes por dia varia
muito, e ele precisa dirigir grande parte do dia para encontrar clientes ou entregar
encomendas. Gosta do que faz, mas eventualmente se estressa com atrasos na entrega
de encomendas ou pagamentos dos clientes. Já teve assistente fixo, mas devido a
desentendimentos, optou por trabalhar sozinho, contratando temporários para serviços
extensos. Se alimenta mal (vide História da Pessoa), dorme pouco. A esposa é “do lar”.
Nem sempre a família compreende o horário de trabalho, e já houveram atritos por conta
da alimentação e horário de chegada.
Sempre negligenciou a saúde e se considerava “muito saudável”. Não se recorda
de doenças na infância, e o único problema por muitos anos foi a intensa “dor de
estômago” que por indicação de amigos tratava com omeprazol diário. Nunca sofreu
nenhum acidente, nem mesmo de trabalho. Se considerava “sortudo” e, segundo ele,
tinha “excesso de confiança e se descuidou”. Em fevereiro/2016, quando os sintomas se
intensificaram, tomou consciência de que deveria procurar um médico por estar
preocupado com seus sintomas. Achou que faria um tratamento com um om médico e
sairia curado, nem imaginava precisar de internação. Se sentiu triste e preocupado ao
receber esta notícia, mas não fez objeção. Encontra-se internado há 20 dias na
enfermaria 01 do setor B do nono andar do HUCFF. Se dá bem com seus colegas de
enfermaria, só tendo problemas uma vez com um médico de plantão noturno que não
prestou a devida assistência durante uma de suas crises álgicas, dizendo apenas para
ele “se acalmar” que a dor passaria. J L M M atribuiu a conduta médica a racismo,
mesmo sem o médico ter dito algo que remetesse a isso, e também a uma espécie de
implicância com o paciente uma vez que a enfermagem “acordou o médico que estava
dormindo no plantão por causa dele”. Quanto a sua relação com a equipe que o
acompanha diariamente e a internação, diz confiar na opinião médica e conduta, mas se
sente impaciente pelo tempo indefinido para obtenção de resultados e não haver
previsão de alta. É questionador e sempre busca informações, mas se sente em uma
posição passiva perante a equipe, uma vez que diz não ter conhecimento suficiente para
entender completamente seu caso, nem mesmo a linguagem utilizada pelos médicos, ou
argumentar a conduta médica. Está cansado de esperar pela definição de um
diagnóstico e acha um absurdo a quantidade de exames que já fez não ter sido
suficiente, chegando a levantar a hipótese de que a equipe estaria escondendo dele a
gravidade de seu caso e ludibriando-o para dar cuidados paliativos. O sentimento de
impotência diante de seu caso o desanima e torna a internação muito “chata” e sem
sentido, o que lhe dá vontade de deixar o hospital por conta própria. Refere só não ter
feito isso ainda por conta do apoio e preocupação da família, que são companhia
constante na enfermaria, se revezando para que ele não fique sozinho em momento
algum. Diz se sentir mal por lhes dar tanto trabalho, mas feliz ao mesmo tempo por ver
sua preocupação com ele, pois prefere a presença delas a ficar sozinho.

Conclusão: Acompanho o Sr J L M M desde seu primeiro dia de internação.


Conversamos todos os dias, e sou responsável por fazer seu exame físico e evolução
diariamente, Ao longo desse tempo, desenvolvi muito boa relação tanto com ele quanto
com sua esposa, que é sua acompanhante mais frequente, e procuro sempre mantê-los
informados de sua situação atual, tanto no que se refere a conduta quanto diagnóstico,
no mínimo que me é permitido como aluna de 6º período. Tenho consciência de que não
possuo o treinamento adequado e nem a experiência ideal para lidar com os anseios e
angústias de uma pessoa que ao longo desses 20 dias internado passou a receber
nutrição paraenteral, se tornou restrito ao leito e descobriu que possui tumorações em
diversos órgãos. Seu caso é complexo, seus problemas são múltiplos, e desde o início
me prontifiquei a estar ali para ouvi-los e ajudar no que puder, uma vez que para fazer o
exame físico diário a equipe conta com outras 15 pessoas além de mim. Nesse tempo,
me esforcei para que ele se sentisse confortável com a ideia de conversarmos, e
sinceramente, me senti um pouco triste quando percebi hoje suas respostas curtas no
que se refere ao trabalho e histórico de vida, e um desabafo muito longo e espontâneo
quanto à conduta médica e internação. Pude perceber que não consegui cumprir como
pensava minha ideia de ser apoio e fornecer informações quando eles precisassem
assim que ele me falou sobre sua conduta passiva quanto à equipe e como o
incomodava muitas vezes não entender o que falávamos. Além disso, acompanhando-o
todo dia consegui perceber melhor as falhas da equipe no atendimento, e como o que é
percebido pelo aluno do 6º periodo, que é a pessoa da equipe mais próxima do paciente
no que se refere a parar e ouvi-lo diariamente, muitas vezes é negligenciado. Hoje
mesmo, um residente percebeu um sinal clínico que felizmente não é relevante para seu
tratamento, mas para o qual eu já os alertava desde o momento da internação.
Saindo um pouco do foco do Sr J L M M, falarei de minha experiência com a
medicina interna. Com certeza você não me ouvirá dizer que estou feliz por cursar a
parte clínica, apesar desta ser consideravelmente mais agradável do que o ciclo básico.
Já que o conteúdo disciplinar absorvido foi pouco (meu rendimento anda muito ruim pelo
cansaço e desânimo com o curso), fazer parte de uma equipe de enfermaria esse
período só serviu para me dar duas certezas: eu não quero trabalhar em internações e
não quero ser uma médica como os que eu acompanhei esse período.
O trabalho em internações é muito superficial. Você faz uma anamnese (quando
faz. Isso se não aproveitar a de outro setor) na qual coleta pouquíssimas informações,
somente as que podem ter alguma relação com o caso agudo que levou o paciente ali.
Trata da questão aguda, muitas vezes nem olha as comorbidades do paciente (a não ser
que elas o desestabilizem), e o envia de volta para o atendimento ambulatorial. Ou seja,
você não trata, não cuida, não ouve, não se envolve, não tem ideia do que está
acontecendo ali dentro daquela pessoa (emocional e, muitas vezes, literalmente), só
estabiliza e deixa alguém ser médico no seu lugar. Eu certamente não vou passar por
seis anos de faculdade para no final das contas ser apenas alguém que supre uma
pequena necessidade do paciente em um mar de outras que afetam muito mais sua
vida.
A equipe que trabalha nas internações muitas vezes parece esquecer que
paciente também é gente. São cinco pacientes por enfermaria, eles chegam 8:30, e
todos os pacientes tem que estar com evolução pronta o quanto antes para liberar a
prescrição e a enfermagem fazer corretamente seu trabalho. 10H é muito tarde, e é
impensável que nesse horário tenha algum paciente que não tenha sido evoluído. Sendo
assim, os residentes delegam o exame aos internos, que fazem o básico, totalmente
direcionado para o paciente, e as perguntas padrão. Não existe sentar para conversar,
somente quando alguém (e normalmente é um aluno de 6º período que faz isso) vem
dizer para a equipe que o paciente está triste ou confuso ou quer ir embora por não ter
informações sobre seu caso. Eles são só números, só ocupam leitos que precisam ser
esvaziados o mais rápido possível, utilizados pela equipe para adquirir mais experiência
profissional. Claro que estou falando com base na minha experiência pessoal, e não
estou considerando a precariedade de leitos e material (tanto instrumental quanto
humano) de nosso hospital, mas infelizmente, conversando com colegas de outras
enfermarias, pude perceber que todos estamos em situações semelhantes. Também
tenho consciência de que falho muito nessa parte, e frequentemente, mesmo com o
paciente cansado, com dor, acabo insistindo para ter um ganho de conhecimento, uma
atitude puramente egoísta, mas que é a base de nossa formação acadêmica nesse
hospital precário onde faltam até pacientes.
Finalmente, concluo muito feliz e agradecida a todos que entraram na minha vida
esse semestre e me deram a oportunidade de aprender algo ou tomar um rumo.
Agradeço também à oportunidade dada pela matéria de psicologia médica de expressar
meus descontentamentos e visão da realidade em que vivo, que costumo compartilhar
muito pouco, seja em textos ou conversas.

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