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Curso: Pós-Graduação em Psiquiatria | Disciplina: Casos Clínicos Interpretados II

CASO 17 [adaptado a partir de um caso real]

Identificação: MDS, 48 anos, solteira, natural e procedente do interior de São Paulo, está no 3º
período de curso técnico em enfermagem, desempregada, evangélica, mora com os filhos de 23
e 26 anos.

Motivo da consulta: "Estou comendo muito."

História da doença atual:


M. refere que em 2016 notou mudança em seu hábito alimentar. Estava comendo mais
que o habitual, fazia grandes refeições, sempre repetia e depois comia doces. Na época,
trabalhava como quitandeira e salgadeira, e relata que "era raro na minha casa não ter um doce
ou roscas". Conta que em certas ocasiões fazia um bolo em um período de 30 minutos comia 4
a 5. pedaços.
Afirma que começou a ingerir alimentos descontroladamente: "se deixasse comia o dia
inteiro". Relata que em vários episódios nem mesmo sentia fome e comia o que tivesse disponível
em grandes quantidades. Mesmo descontente com o peso, não conseguia parar de comer.
Chegava a passar mal, com queixas de dispepsia, "sentia a comida voltando na garganta". No
entanto, isso também não a impedia de continuar comendo. Narra que por algumas vezes induzia
vômitos para aliviar, o desconforto gástrico e no final tinha sensação de prazer, pensando "comi,
mas não vou engordar”.
Descreve a preferência por doces, mas em algumas ocasiões não se importava, "era o
que tivesse na frente”. Diz que às vezes almoçava na casa de algum familiar, repetia o prato e
quando voltava para sua casa comia novamente. "Quando eu percebia já estava comendo",
afirma M.
Relata que tais episódios tornaram-se cada vez mais frequentes, passando a acontecer
semanalmente. Sentia-se mal por não conseguir controlar o quanto comia e em um período de
um ano engordou cerca de 10 kg. Com a autoestima muito abalada, começou a fazer dieta e
atividade física e eliminou os 10kg a mais em 2017. No entanto, M. refere que isso não durou
muito, "voltei a comer compulsivamente já no início de 2018". Expõe que voltaram a ocorrer os
episódios em que comia de forma exagerada e incontrolável, e que esses episódios foram mais
frequentes, cerca de 3 vezes por semana. Também voltou a induzir vômitos quando sentia dor
no estômago. Alega que induzia os vômitos de forma ocasional por volta de uma vez a cada 2
meses. Menciona que “ninguém da sua família sabe disso” (vômitos). Em pouco tempo, engordou
novamente, atingindo 82 kg.
M. relata que na mesma época percebeu-se mais irritada, impaciente, triste e com choro
frequente. Descreve que passou a ficar isolada, não queria contato nem mesmo com os filhos.
Deixou de sair de casa, visitar os familiares, ir à igreja. Perdeu vaidade, já não se arrumava mais,
"às vezes não queria nem tomar banho". Sentia-se muito desanimada a maior parte do tempo,
"só ia para o curso e com muito esforço”. Tinha dificuldade para concentrar-se e memorizar
conteúdos. Quando estava em casa, ficava sozinha no quarto, dormia em excesso e começou a
comer ainda mais. Não cuidava dos afazeres domésticos. Conta que de forma recorrente sentia
"vontade de sumir", "não tinha mais alegria".
Narra que também ficava muito ansiosa, angustiada e teve piora importante do seu "medo
de lugar fechado" de longa data. Apresentava angústia, sensação de sufocamento, dispneia e
um medo intenso de ficar presa quando encontrava-se em locais fechados. Relata que mantinha
portas e janelas abertas em sua casa e evitava ao máximo sair. Usava o banheiro de casa com
a porta aberta. "Sentia presa até dentro da roupa". Não conseguia andar de elevador e saia de
casa mais cedo para encontrar local "estratégico" no ônibus.
M. conta que permaneceu com tais queixas por cerca de 4 meses até que procurou
atendimento psiquiátrico, principalmente, devido a piora do medo. Foi prescrito escitalopram 10
mg/dia. Relata que 3 meses depois percebeu melhora importante da tristeza, irritabilidade, das
crises de choro, do padrão de sono e da disposição, porém mantinha medo de lugares fechados,
continuava isolada, com baixa autoestima e comendo excessivamente.
Passou por novo atendimento e o escitalopram foi ajustado para 15 mg/dia e prescrito
topiramato 50 mg/dia. Não tolerou o topiramato, queixando-se de parestesia em membros
inferiores. Com o ajuste do escitalopram, notou benefício nas queixas de falta de interesse,
isolamento e medo. "Até voltei a andar de elevador”, relata M. Considera que com esse
tratamento teve melhora de 80% de suas queixas. M. relata que desde o início do tratamento, há
cerca de 1 ano, o uso da medicação tem sido irregular, pois suspende a substância quando
considera que está bem. Nos períodos sem medicamento, percebia retorno de todas as queixas.
Alega uso adequado do escitalopram na dose de 15mg/dia há 3 meses, com aumento
para 20 mg/dia há 3 dias. Nessa ocasião, paciente ainda queixou-se de ter episódios de
descontrole na ingestão de alimentos, cerca de uma vez por semana, além de persistir com
vômitos ocasionais (último há uma semana). Relatou baixa autoestima, dificuldade de controle
do apetite e alimentação, além de não ter vontade de sair de casa e relacionar-se com as pessoas
por causa do peso. Sente vergonha de sua aparência. "Não acho que sou a mesma pessoa
quando olho no espelho, não me reconheço”, diz M. Isso é o que mais a incomoda atualmente.
Há 3 dias também reiniciou o uso de topiramato na dose de 25 mg/dia. Até o momento mantem
os sintomas relatados acima.

Curva vital:
M. é a quarta filha de uma prole de 7. Desconhece alterações em seu desenvolvimento
neuropsicomotor ou patologias na infância. Relata que viveu na zona rural com a família até os
17 anos de idade. Descreve uma infância feliz e conta que por ser a única menina entre os filhos,
era "egoísta, não sabia dividir'. Nega dificuldades na aprendizagem ou interação social durante
a infância e adolescência. O relacionamento familiar era bom.
Quando M. tinha 14 anos, encontrou a mãe morta após cometer suicídio. Sofreu muito
com isso e refere que toda a relação familiar mudou. Teve que assumir os cuidados da casa e
começar a trabalhar. A convivência com o pai tornou-se difícil, sentia raiva dele pela morte da
mãe.
Aos 17 anos começou a trabalhar como doméstica e foi morar na cidade. Nessa época,
teve seu primeiro relacionamento amoroso. Tempos depois, já com 21 anos, M. conheceu o pai
de seus filhos. Conta que logo no início do namoro ficou grávida. Não gostava do rapaz, porém,
diante da gestação não planejada, foram morar juntos. Parou de trabalhar porque o companheiro
não permitia. Conta que ele era "alcoólatra" e, 5 anos depois do início da relação, o enlace
chegou ao fim.
Relata que daí em diante não teve qualquer ajuda do homem em relação ao cuidado das
crianças, nem mesmo financeira. Criou os filhos sozinha e com muito esforço. Voltou a trabalhar,
passando por diversos empregos. Trabalhou algumas vezes como doméstica, foi salgadeira em
uma lanchonete e por último em uma fábrica de sorvetes. Seu maior tempo de permanência em
um emprego foi de 2 anos. Alega que tinha bom desempenho e relacionamento com colegas,
porém, sempre "enjoava do trabalho ou tinha algo que incomodava", então pedia demissão.
M. afirma que sempre foi pessoa de fácil convivência e comunicativa, gostava de sair,
reunir-se com amigos. Era bastante ativa nas atividades da igreja. Teve mais dois namoros
longos, sendo que o último foi há 5 anos. Relata que separaram-se porque o homem tinha um
"amor doentio" e não gostava de seus filhos.
Há 1 ano e meio iniciou curso técnico em enfermagem e por isso parou de trabalhar. Os
filhos têm mantido a família financeiramente, o que lhe gera intensas preocupações, contribuindo
com a piora do quadro descrito no início deste ensejo.

Hábitos de vida:
Nega etilismo, tabagismo e uso de drogas ilícitas. Sedentária.
Antecedentes pessoais patológicos:
Alopecia androgênica. Nega outras comorbidades. Nega histórico de TCE e convulsões.

Constelação familiar:
Mãe cometeu suicídio. Avó materna apresentou quadro de alteração do comportamento
(paciente não sabe de maiores detalhes).

Exame físico:
BEG, corada, hidratada, acianótica, anictérica, afebril. IMC: 34,42 kg/m²
ACV: RCR, 2T, BNF s/ sopros. PA: 110x70mmHg.
AR: MVF s/ RA, eupneica.
Abdome: atípico, RHA+, normotenso, indolor à palpação, sem visceromegalias ou massas
palpáveis.
Membros: sem edema, panturrilhas livres.

Exame psíquico:
Apresentação: vestes em alinho, higiene pessoal adequada, colaborativa com a entrevista.
Plano intelectivo: consciência, orientação, atenção, inteligência, memória, linguagem e
sensopercepção normais. Pensamentos recorrentes de culpa.
Plano afetivo: humor eutímico. Nexos afetivos preservados. Sem alteração da consciência do eu.
Insight presente.
Plano volitivo: vontade normal. Hipopragmatismo. Sugestionabilidade e impressionabilidade
normais. Perda de controle de impulsos. Psicomotricidade normal.

Medicações em uso:
Escitalopram 20 mg/dia;
Topiramato 25 mg/dia.

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