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O começo do fim é o começo do começo

PERSONAGENS:

Alcides

Um (pronome masculino)

Dois (pronome neutro)

Três (pronome feminino)

Três amig_s andam atrás de um carro, tod_s de máscara. Há um sol se pondo do lado
esquerdo do palco. O carro não possui frente. Um na ponta da esquerda, dois no meio, três
na direita. Momento de silêncio em que o carro está andando.

Em dado momento o carro para.

El_s se olham e riem. Tiram as máscaras como se fossem uma brincadeira, uma invenção.

Silêncio, el_s vão mudando de feição. Cada um_ indo para algum lugar internamente.

Um vai ficando caótico, ansioso, indignado.

Um - eu acho extremamente injusto.

Dois (acordando de seu transe, gentilmente) - ah sim, eu não tenho dúvida.

Três (acordando mais calmamente e um pouco desconfiada) - eu não sei, o que você quer
dizer?

Um sai do carro

Um - O MUNDO TÁ ACABANDO!!!!!!!!!!

Três sai do carro

Três - O mundo ou ESSE mundo? Porque normalmente pra gente é mais fácil acreditar que
tudo ta acabando do que só essa forma de vida.
Dois (ainda sentade estátique) - mas se por esse modo de vida você quer dizer vida
humana eu não quero que acabe.

Um (indignadíssimo) - os bilionários vão fugir!!!! A humanidade vai se perpetuar a partir do


seu nicho mais podre!!!

Três - eu não quis dizer os seres humanos. Quis dizer este modo de vida.

Um - mas com tudo isso de gente morrendo, guerras, milícias, mil e uma fobias, ditadores,
genocídios e genocídios, de gente, de bicho, de mata, de chão, de céu, de tudo!

Os polos vão derreter, a gente não vai mais ter água pura pra beber. O que que EU faço pra
evitar a destruição perpétua AAAAAHHHHH (grita e cai no chão se encolhe chorando meio
desesperadamente).

Fica um silêncio com o choro dele

Blackout rápido, quando acende não existe mais carro, dois está sentade numa pedra. Um
permanece no chão chorando baixinho, do outro lado da cena, três agora sentada de perna
de índio olhando para o céu. Há poucas estrelas presas a fios no teto em cima dela. O sol
que estava se pondo foi mais pra baixo, mas agora há um segundo sol se levantando do
lado direito do palco. Depois de um tempo dois vai olhando pra trás, sentiu alguma coisa,
uma presença, e levanta bruscamente, botando a mão no pescoço, como se tivesse
recebido um sopro, mas antes que pudesse se virar, três começa a rir e _s outr_s a olham
rapidamente, dois se levantando, assustade. Três para de rir, e percebe que está sendo
observada. Olha para el_s e diz:

Três - o quê?

Um - é estranho isso.

Três - e ta errado?

Um - é estranho, machuca a gente.

Três (levantando-se) - a gente ou você?

Um - A GENTE!

Três (bem pragmática e já com raiva) - dois, isso te machuca?

Dois (processando) - ah...

Um - idaí, mesmo se não machucar elu, ME machuca!


Três - para de usar suas causas pessoais como se fossem coletivas, ISSO MACHUCA AS
PESSOAS (fala mega debochando apesar de séria).

Um - as causas pessoais são coletivas sim! E você ta defendendo aí sua causa pessoal de
ser estranha.

Três - eu não to defendendo nada.

Um - ninguém não defende nada!

Dois (em outro tempo del_s) - eu to tão cansade.... (fala sofrendo, deitando-se e colocando
as mãos no rosto)

Começa a tocar bem baixinho uma música sem vocal. Que começa a aumentar bem aos
poucos. Um e três reparam na música e vão, aos poucos, se sentando. Dois permanece
em sua posição, como se a música viesse delu. Deixar pelo menos 2 minutos e meio de
música, até que:

Três - eu to com medo.

Um - do que?

Três aponta para algo absurdo na paisagem: os dois sóis.


Um (se levanta, olhando pros sóis) - será que a gente pula?
Três (se levantando também) - por quê?

Um - para acabar com isso.

Três - com o que?


Um - com o medo.
A música para.
Breve silêncio
Três - eu não acho que eu tenho vontade de pular só por coragem. Eu tenho vontade por
ira.

Um - ira do quê?

Três - eu não sei. Eu nasci com isso. Com essa vontade de quebrar vidro com meus
dentes.
silêncio
Um - Será que a gente conhece algo só por estar vivendo?
Dois - (olhando pra coisa absurda que agora muda, o sol a esquerda se põe completamente
e outro que sobe começa a ficar maior, e arroxeado, mas não ilumina, a noite começa a
chegar....) definitivamente não.

silêncio

A noite vai caindo


silêncio
Um - a noite às vezes é aliviante né?

Respiro

Dois - às vezes é horrível.

Três - mas o horrível é melhor que o insosso.

Começa a tocar Romanian Folk Dances, Sz 56 III. Pe-loc – Andante, de Bela Bartók. Uma
pessoa que mora na rua e é médium aparece falando sozinho, Alcides, uma figura entre
idoso e criança, acompanhado de um cachorro sem coleiras, atravessando a cena. _s três
param e o observam.

El_s o observam como se vissem um filme, ao mesmo tempo que não dão muita bola, até
que Alcides para do outro lado da cena, a música vai parando, _s olha fulminantemente, e
fala algo que _s hipnotiza:

A natureza não é imortal, mas é infindável, as coisas existem acima de tudo, o existir é a
potência máxima das coisas. A morte existe. O escuro existe. O que não vemos existe. A
possibilidade existe. O impossível existe. O que sentimos existe. Mesmo daqui trilhões de
séculos quando este universo que fingimos que conhecemos colapsar, nunca haverá
apenas ausência, e se houver apenas ausência, ela existe, e ela compõe tudo que foi, que é
e que será. E imaginemos só o que há de ser.

Falamos da possibilidade e impossibilidade das coisas com a prepotência de que se sabe


de coisa alguma. Se o que se sabe é o que se sente, e o que se sente é dor, fome, raiva, e
medo, o que dita a impossibilidade do encadeamento de nossas ações em revolta à isso?

Não, eu não sei também qual a solução e ainda bem que tenho a coragem de assumir que
não sei. Não tenho um manual e meu manifesto é constantemente mutável, é
completamente livre. Sabemos o que não queremos e sabemos quem nos força a engolir
nosso afogamento, sabemos o cistema e a forma de vida que perpetua tudo que segue
destruindo sem piedade, afogando sem tempo de ar. Sabemos porque sentimos.

Sabemos porque sentimos.


Sabemos porque sentimos.

Sabemos porque sentimos.

E tenho a ousadia de manifestar que saberemos o livre quando o sentirmos também. Tenho
a ousadia de manifestar que desconfiamos da sua possibilidade, mesmo sem sabermos o
caminho. Mesmo sem sabermos de onde virá o impulso.

Tenho a ousadia de manifestar que o caminho já é traçado hoje. Ele existe hoje. Aqui.
Nesse teatro. Agora. Enquanto eu e vocês respiramos. É traçado sim ao lado de outro
caminho muito mais triste. Mas é real da mesma forma. E não falo de utopia. Falo de física.
Falo de fato. O desejo é palatável. O desejo existe. O desejo é o começo de tudo.

Ao fim, Alcides olha o cachorro como se desligasse o modo vidente e acordasse de um


transe. Vai-se indo embora para trás do palco, como se nem tivesse visto _s três em
primeiro lugar, e segue falando sozinho coisas indecifráveis até sumir no breu.

_s três se sentam novamente e se estranham como se tivessem acabado de cair de volta


no mundo depois de uma viagem astral.

Um - eu to morrendo.

Três - como assim? morrendo como?

Um - morrendo, morrendo. Tenho certeza, meu corpo tá dizendo.

Três - ah, todos nós.

Um - não, mas, agora. tá acontecendo agora.

Três - da onde você tirou isso?

Um - eu to sentindo, eu tenho certeza.

Três - quem tem certeza é louco. quem é são, sempre dúvida.

(Um começa a ficar com falta de ar e tonto e senta no chão)

Dois - não acredita na sua mentira, se você fosse morrer agora eu já estaria morte.

(um tenso tendo um pouco de pânico)


Um - como você sabe?
Dois - você come muito mais verde que eu.

Um - (se acalmando) isso é verdade.

(Um pensa algo aterrorizante)


Um - mas isso não quer dizer que você é mais resistente e eu rasgo fácil?

Dois fica sem palavras

Um - ta na esquina.

Três começa a pular, quando de repente olha para cima e vê que caíram mais estrelas
presas a fios, por todo o teto e há uma projeção de um cometa brilhoso que atravessa a
cena, da esquerda para a direita, até que bem grande e realista.

Três - OLHA!

Um e dois olham imediatamente, e um esquece imediatamente o que estava sentindo

Um - que lindo…

Dois permanece de costas para a cena, olhando aquele cometa absurdo, encantade e
hipnotizade.

Três - me assusta, mas eu consigo respirar agora.

Um - é muito lindo (e começa a chorar)


Três - eu to apaixonada (e começa a rir)
o choro e a risada vão se intensificando e ficando histéricos
Três - EU ESTOU MUITO FELIZ DE ESTAR AQUI!

Um - EU TO SOFRENDO MAS EU TO MUITO FELIZ

El_s se olham e algo se rompe nas sensações. três começa a chorar (ainda muito feliz) e

um começa a rir (ainda sofrendo).

Enquanto isso dois, ainda olhando pro cometa, começa a colocar as mãos pra frente pra
ele, como se quisesse cumprimentá-lo, tocá-lo.

Três e um deitam no chão olhando para o teto e se dão as mãos, em um acolhimento


espontâneo, compartilhando aquele momento Epifânio.

Em um dado momento três olha para um rindo, vai parando de chorar e vira de lado para
ele.

Três - você sofre muito né?

Sem responder um vira de barriga pra cima e volta a olhar pro teto, três repara que tem
algo em seu peito, toca e começa a sair uma gosma verde, ao som de Romanian Folk
Dances, Sz 56 III. Pe-loc – Andante, de Bela Bartók, a gosma gruda em suas mãos, e três
fica olhando aquilo, assustada, mas um pouco maravilhada. Um também vê, três vai tocar,
simultaneamente dois toca o cometa, que libera detritos que atravessam a cena
completamente, explodindo e, simultaneamente, a gosma desaparece bruscamente sem
deixar traços, ao que a música também para.

Três e um também escutam a explosão. Reagem, mas não se desesperam.

Três - (voltando ao assunto, meio indignada) você viu o que você fez?

Um - eu fugi….

Dois - “fugir é morrer de um lugar”

Barulho sutil de grilos e projeção delicada de vaga lumes entre as personagens

Um – quem que falou isso mesmo?

Dois – eu, ué

Três (para um) - Pelo menos você percebeu.


Um (indignado e irônico) - pelo menos, pelo menos.
Delicadamente o barulho e a projeção vão se
extinguindo
dois se vira e vai pra beirada do palco/ abismo/ varanda
Breve silêncio

Dois - vocês sabiam que o ser humano conhece menos do fundo do mar do que do
universo inteiro?

Três - (brincando com algum objeto, distraída) não sabia….

Dois - é que a pressão é muito intensa... nem as máquinas conseguem ir até o chão do
fundo do mar.

Objeto que três brinca vira um peixe.

Dois - eu pessoalmente acho muito interessante isso. o céu não tem pressão, o mar tem
demais, o ser humano fica no meio.

O peixe começa a ter vida e a nadar em volta de três, que se diverte

Dois - se tem pressão demais a gente implode e vai se apequenando até sumir, se tem de
menos a gente explode e se espalha por todo lugar

O peixe explode em várias estrelas-bolhas


Três - é muito bonito mesmo…

Pequeno silêncio
Um - eu gosto da vida aqui.
Um abre a boca e sai uma
flor silêncio
Um “acorda”, sai da poesia da flor, a cospe e faz uma expressão de “eca”

Um - Que calor! Ceis tão com sede?

As cores ficam mais vivas e quentes, el_s suam de forma monótona

Dois sai da beirada e vai pegar algo pra tomar fora do palco

Dois - não (respondendo um, e começa a tomar isso que pegou fora do palco).

Um (de longe, para dois) - você devia tomar, faz anos que não prova o gosto da água.

Dois pensa em algo longe, está silenciade pelos pensamentos e só balbucia um som
afirmativo.

Três volta e se senta, olhando exatamente para onde os olhos de dois miram.

Três - A gente devia tentar.

Dois - Será?

Três (levianamente) – Ah, a gente sobe, vê o que tem e volta.

Dois - E se não tiver nada?

Três - E se tiver?

Dois - E se for muito?

Um (de longe) - Ninguém sabe.

A esse ponto o cometa já atravessou a imagem toda, e ocorre um barulho profundo de


explosão.

Blackout

Breve silêncio

Luz

Um levanta abruptamente, inquieto.


Algo cai do céu-teto e se espatifa no chão, ao lado de um, um pega os pedaços e come o
vidro, morde come morde, como bicho desesperado, enquanto dois fala:

Dois - eu to cansade, eu to cansade, cansade….

(quando um termina de comer a barriga dele incha como um grávido, e ele se desespera)
Um - mas eu nem transei! (e entra em processo de parto)
dois extremamente racional e apática dá instruções como uma médica.
Dois - respira, faz força, solta… deixa sair deixar sair deixa sair
PARTO de um objeto
Um a princípio fica maravilhado, segurando o que foi parido, junto com dois que viu um
parto milagroso

Subitamente um grita:

Um - MAS EU NÃO QUERO SER MÃE

De súbito joga a coisa parida no chão, que se espatifa como algo líquido
Dois se assusta, olhando pro líquido
Um - EU NÃO QUERO SER MÃE, EU NÃO QUERO SER MULHER EU NÃO QUERO SER
MULHER EU NÃO SOU MULHER

Dois continua o pensamento de um, em tom baixo:

dois - não quer ser nada.. não quer ser nada mas quer achar o prazer.

Um escuta dois, se comove, e começam a se pegar.

Três (como se estivesse fora dessa realidade del_s, começa a rir) - gente ceis são muito
louco!

Um e dois subitamente param de se beijar, silêncio esquisito, e um fala como se

tivesse atropelado dois:


Um - eita, foi mal
Dois abre a boca em menção de responder algo do tipo “não, eu também queria!”, mas três
e interrompe ainda pensando sobre um não querer ser mulher:

Três - é que a gente precisa matar o que já está morto. Mesmo que tudo o que se rompa,
mesmo que sangre.

Um ainda olhando a cor no chão, concorda

Silêncio
Um - foi ontem que eu palavriei que… eu fico me vendo
Dois - e isso lá é um problema?
Um - quando é de olhos abertos é sim.

Três - eu sinto que me vigio o tempo todo.

Um - exatamente.

Breve silêncio

Um – Às vezes no trabalho eu me imagino caindo. Só caindo com tudo no chão. Pá. Não
tem mais como trabalhar.

Três - não é que eu quero morrer, na verdade é o contrário.

Dois – sempre que eu to trabalhando muito parece que eu nunca consigo alcançar uma
camada um pouco mais funda do pensamento, fica sempre numa espécie de superfície,
mesmo as coisas mais profundas, como a morte.

Um- eu quero morrer. Não exatamente morrer de morte morta, mas morrer como ação.
Quero vomitar um líquido pegajoso preto e cair no chão com tudo. Sem desculpas, sem
drama, sem romance, só morte. Morte como alívio Dois – como se deixar cair... pra
andar...

Silêncio

Três - acho que depende do trabalho né? Tem trabalhos que podem chacoalhar as
profundezas.

Toca ‘'marche pour la cerimonie des turcs” com diversas imagens de grandes quadros
considerados degenerados na exposição nazista alemã.

Um (debochado) - hmmm não hein. (música para) acho que mesmo um trabalho na teoria
criativo, quando vira TRABALHO do que jeito que a gente inventou e conhece,
imediatamente vira uma corrida sem linha de chegada.

Dois (com ódio) - tá e o que eu vou fazer?! Parar de trabalhar?!? Eu preciso comer!

Três - acho que por hora eu sei rir.

IMPROVISAÇÃO MUDA PALHAÇESCA CAÇOANDO DA AUTORIDADE - REVOLTA À


SERVIDÃO
Após a cena, mais estrelas “caem” do nada para em cima da cena,
presas a fios
Ao olharem pra cima, _s três sorriem
Um - sabe, eu tenho uma relação sagrada com o
vento… Dois e três o observam.
De repente, um vento forte entra e ouvimos o som de portas e janelas batendo.

Dois, envolvide por essa verdade assume em alto e bom tom:

Dois - eu tenho nojo de coisas que eu sou. eu fico tentando chorar pra ver se me expurgo.
eu espero que o esforço seja uma forma de expurgar.

Uma espécie de espinho verde vai envolvendo dois de baixo pra cima, i prendendo e i
sufocando, até fechar sua boca e seus olhos.

Tempo

Um, delicadamente e pacientemente, tira o espinho só dos olhos de dois e diz:

Um - tem gente aqui.

Dois entende isso do seu jeito e começa a querer se desfazer do sufoco, rindo. Uma música
começa a tocar no fundo (improvisação d_s atrozes - piano e vozes)
Com o riso que começa quase imperceptível e vai se destacando, dois começa a ser
libertade dos espinhos e começa a dançar.

Três dança junto.

Um para e observa com ternura _s amig_s dançando, por um tempo, em torno de 2


minutos, até que dois percebe que está sendo observade por um primeiro, e em seguida
pela plateia, e para de frente indagade.

Silêncio
Um - desde criança eu saio correndo na sala de algo
imaginário
Imagem projetada da boca de um, que quando abre sai sua língua geográfica.

Dois - correndo de algo que eu mesme criei


Três (aflita) - eu me assusto com a beleza das
coisas
Um fala num grande desabafo/ vômito/ verdade:
Um - eu tenho muito medo da liberdade. muito
medo de virar a pá, de enlouquecer. de me tornar
incomunicável, me sinto o tempo todo traduzindo,
e perdendo demais das coisas que eu realmente
sinto, que eu realmente vejo, na fala (dois vai se
afligindo, se levantando, querendo se remexer
pra expurgar) não sei se eu só sou mais sensível
que todo mundo ou se eu mesmo fico criando as
coisas. é verdade o que eu crio? o outro dia eu vi
a lua no céu roxa e eu tinha certeza de que o céu
era finito e de que todo mundo que eu via passar
na rua era só uma ilusão, uma existência de
mentira, como se eu tivesse caído no lugar
errado, como se fosse pra eu ter nascido em
outro mundo, com outro corpo e outra voz
(começa a tocar um instrumento de percussão de
forma bizarra, que vai fazendo dois se
chacoalhar violentamente em torno de um que
está parado sentado no chão só tagarelando) se
é verdade o que eu crio porque eu só não vivo do
que eu crio? como eu posso ter tanto medo de
algo que eu mesmo pari? eu sou quem tem medo
ou sou quem cria? e se eu sou os dois como eu
existo? do nada eu sinto um vácuo apertado e
doído no peito que eu tenho certeza de que é a
morte, (no movimento dois esbarra em alguns
momentos em um, vai esbarrando cada vez
mais, mas um permanece desligado do corpo) de
que é algum fim, e fico tentando poetizar e se for
fim, que morra, há algo que precisa morrer em
mim, mas eu fico cansado de tanta morte eu
queria só nascer, mas nascer dói também,
parece que tudo dói, até o belo,
PRINCIPALMENTE o belo, o belo é uma
violência. ou será que o mundo está doente e
tudo isso que penso e sinto deveria só ser levado
pelo tempo e eu fico monstrualizando porque me
sinto coibido a falar? porque me sinto
completamente sozinho? (dois tropeça muito
forte em um) PORRA será que você pode
parar?!?!?
Dois se assusta e para sem olhar pra um, olhando pra frente, meio paralisade
Um - eu vou comer.
Dois e três (acordam e se viram pra um) - NÃO!

Um se assusta, tod_s ficam paralisad_s, e subitamente um vai entendendo o que está


prestes a acontecer, porque já aconteceu outras vezes. de repente um barulho altíssimo de
helicóptero passa e distrai dois e três, que olham pra cima, ouvindo)

Três - eles estão aqui.

Um aproveita a distração e sai correndo pra cozinha, dois e três acordam e correm atrás,
um pega um bolo numa geladeira, e começa a comer brutalmente com as mãos, dois
começa a tentar tirar o bolo de um a força, e três começa a segurar um, um e dois
começam a puxar o bolo que cai no chão, se olham, e um desce pra comer do chão, mas
dois é mais forte e começa a tirar da boca de um, com três o segurando. um começa a
chorar e desiste.

Um - INFERNO! (levanta e sai)

Dois (pegando os pedaços de bolo juntando e jogando no chão fora do palco) - é pelo seu
próprio bem.

Terminam, sentam _s três de frente pro público. Dois e três limpando as mãos com panos
de prato.

Um (se acalmando do choro, e enxugando as lágrimas) - eu sinto que preciso romantizar a


dor. se não fica só dor.

Três - e com o romance vira o que?

Um - vira uma história.

silêncio

Dois - eu acho que eu to apaixonada.

Um - eita! Pelo quê?


Três (debochando) - ou por quem né!

Um - quem disse que vai ser alguém? Que coisa mais chata, eu já me apaixonei por tanta
coisa.

Três - menos por gente né? (ri meio maliciosamente)

Um (fica magoado, fala baixinho) - eu já me apaixonei por gente……


Três (debochada) - DUVIDOO!!
Um (mudando de assunto) - ta, dois, pelo o quê ou por quem você ta apaixonade?

Dois (meio perdide, com fogo no peito) - por aquele Alcides…


Três - aquele que veio aqui e falou tudo aquilo?
Dois - sim…

Três - mas como? Você nunca nem falou com ele.

Dois - mas ele falou comigo… (breve silêncio) sei lá, eu senti que foi comigo.

Um (lembrando de algo particular) - é, eu sei como é isso.

Três (se estranhando) - eu não sei se eu sei… - (meio desesperada, tentando se


reconhecer) - como é???

Dois - é meio insuportável na verdade.

Um - mas também é uma delícia. Uma delícia que até tira a fome da gente porque a gente
já se sente cheio.

Dois - é, às vezes eu tento enfiar umas coisas na boca pra ver se passa, mas só me faz
chorar.

Três - umas coisas tipo o que?

Dois - todo tipo de coisa mesmo. Todo tipo.

Um - eu acho que eu também faço isso… fico tentando enfiar calda de nuvem ou pata
peluda com garra na goela pra tentar esquecer o que eu realmente quero. (silêncio) ou pra
ter coragem de buscar o que eu quero.

Três – como eu faço isso se eu não tenho noção do que eu quero? Se eu vivo querendo
coisas que eu nunca nem consegui imaginar? Eu quero me parir, eu quero me parir, eu
quero me parir, eu quero fugir de mim mesma, quero fugir da minha cabeça, quero correr
em campo livre, quero correr num sonho mas quero estar acordada e viva e inesquecível,
quero me afundar no fundo das coisas, quero conhecer o subsolo de tudo, onde tudo nasce
Um - apesar que muitas vezes eu consigo dançar na superfície, eu consigo dançar na
superfície das coisas, mesmo que do nada o chão que eu tava dançando desapareça, por
que afinal de contas, ele é feito de nuvem.........

Quebra da viagem

Dois – enfim gente. (recapitulando) Tá doendo agora.

Três - mas por quê?

Dois - porque ele foi embora…

Um (sobe na pedra e declama) - “ah, abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau
cheiro da memória.”

Começa a tocar “Henry Lee”, de Nick Cave e PJ Harvey, apenas a parte sonora do começo,
muda a luz pra algo mais avermelhado e azulado.

Três começa a chorar.


Tudo fica azulado.
Dois (cuidando dela) - o que foi?
Três - sei lá, dói nunca ter sentido isso. E saber que existe.

Um (já fora da pedra) - pra mim dói que faz tanto tempo e hoje eu sinto que desaprendi.

Dois - pra mim dói esse agora. (silêncio) dói pra um caralho inclusive. Não é que dói só, é
que tem uma coisa constante e descontínua no meu peito. Essa coisa insuportável,
terrivelmente fora de qualquer controle. Eu começo a entender as pessoas que criam vícios
pra fugir, fugir das paixões, das milhares formas de paixões que podemos sentir. Sabe por
quê? Porque o desejo é insaciável. É infinito, mas as vezes eu sinto só como
insuportavelmente inextinguível, em constante guerra, as milhares de eletricidades que
acenderam dentro do meu peito em guerra entre si, entre mim.

Dentro de poucos segundos: trovão, luz de raio, um e três riem violentamente, dois grita
assustade.

Volta a iluminação de antes, com alguma alteração, personagens voltam para um estado
mais contido.

Três - eu to me assustando muito com a efemeridade das coisas.


Um – eu to acreditando na efemeridade, ela tá aí, é meio inevitável.
Dois – e começo a acreditar na minha própria efemeridade.
Três - é que eu ainda tô angustiada, eu tinha essa ideia da materialidade das coisas, eu
tinha essa ideia da minha materialidade, eu tinha essa ideia de mim... essa ideia... uníssona

Acorde único de órgão

Um – eu ainda não aceitei.

Dois - mas também... o que acontece se a gente aceita completamente?

Projeção do céu a noite, estrelado, com a lua vermelha, durante um eclipse, com nuvens
passando no seu tempo, acompanhada de barulho de grilos e sapos ao redor e a música
Romanian Folk Dances, Sz 56 III. Pe-loc – Andante, de Bela Bartók, dessa vez por mais
tempo que os outros momentos que tocou.

Alcides entra em cena - sai a projeção - as coisas ficam alaranjadas, três vê ele, cutuca
um ansiosa e feliz pra mostrar, um para de falar imediatamente e também fica feliz e
ansioso. três fala para dois meio brincando:

Três - acho que seu agora pode mudar hein, dois.

Dois (vira pra perguntar) - que? – (vê Alcides e dá um pulo)

Três e um vão para o fundo da cena e ficam vendo animad_s fofocando. Alcides está
andando e ainda não viu dois. Dois vai até ele e para na sua frente, interrompendo seu
caminho.

Dois (nervose e vermelhe) - oi.

Alcides fica quieto, estranhando, tranquilo.

Dois – brigade por tudo que você falou, foi uma grande verdade pra mim. Ou uma das
verdades, ainda não sei hahaha.

Alcides continua olhando pra elu, quieto.

Dois vai passando da ansiedade boa para um nervosismo meio estranho.

Dois - desculpa, você lembra de mim?

Alcides - não… - (e volta a caminhar seu caminho, gentilmente)


Dois cai de joelhos no chão, um e três vão até elu.
Três - o que aconteceu??

Dois (fala, desolade) - ele não lembrava de mim.

Um (emputecido) - nossa, que GROSSO!!!


Dois (completamente perdide e tomade por seus sentimentos) - gente, vocês lembram
dele?

Três - eu não lembro na verdade...

Um - eu também não…, mas eu já esqueci tanta coisa importante, até meu nome, eu acho
que não era um.

Dois (mais perdide ainda) - será que eu inventei tudo isso?

Blackout - batida estrondosa bizarra - feixes de luz azul e roxa aleatórios passando
rapidamente pela cena, dá pra ver que há movimento mas não dá pra ver o que. Quando
volta a luz, um, dois e três estão debaixo de um enorme tecido azulado, como se
estivessem debaixo d’água, tod_s rindo e meio correndo, meio nadando. De repente o
tecido desce até seus pés, el_s param e olham rapidamente pra cima, vêem algo grande.

Blackout total

fim da peça

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