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Georg Simmel talvez seja o último dos sociólogos a ser reconhecido como

“clássico”, estatuto que o incorpora ao cânon ocidental das ciências sociais,


não para convertê-lo em uma nota erudita no rodapé da sua história, mas em
referência obrigada e comum de todos os sociólogos – desde que as razões
que demoraram sua consagração acadêmica, são as mesmas que hoje o
tornam pasmosamente atual e fazem imprescindível a leitura deste livro, para
emoldurar a pesquisa social de nossos dias. Sua primeira edição em língua
portuguesa constituirá, por isso, um marco na recepção da obra simmeliana
no mundo lusófono e, sobretudo, no Brasil. Graças ao enorme esforço que
significou o trabalho de tradução empreendido por Raúl Enrique Rojo, o leitor
brasileiro disporá não só de um dos grandes livros da sociologia, mas também
poderá finalmente ler em sua própria língua o trabalho mais sistemático e
sociologicamente ambicioso de Simmel.

Editora Fundação Fênix


SOCIOLOGIA
Estudos sobre as formas de sociação
Série Filosofia

Editor
Agemir Bavaresco

Conselho Científico

Agemir Bavaresco – Evandro Pontel


Jair Inácio Tauchen – Nuno Pereira Castanheira

Conselho Editorial

____________________________________________________________

Augusto Jobim do Amaral Lucio Alvaro Marques


Cleide Calgaro Nelson Costa Fossatti
Draiton Gonzaga de Souza Norman Roland Madarasz
Evandro Pontel Nuno Pereira Castanheira
Everton Miguel Maciel Nythamar de Oliveira
Fabián Ludueña Romandini Orci Paulino Bretanha Teixeira
Fabio Caprio Leite de Castro Oneide Perius
Fábio Caires Coreia Raimundo Rajobac
Gabriela Lafetá Renata Guadagnin
Ingo Wolfgang Sarlet Ricardo Timm de Souza
Isis Hochmann de Freitas Rosana Pizzatto
Jardel de Carvalho Costa Rosalvo Schütz
Jair Inácio Tauchen Rosemary Sadami Arai Shinkai
Jozivan Guedes Sandro Chignola
GEORG SIMMEL

SOCIOLOGIA
Estudos sobre as formas de sociação

Tradução científica de
Raúl Enrique Rojo

Prefácio de
Danilo Martuccelli

Editora Fundação Fênix

Porto Alegre, 2021


Direção editorial: Agemir Bavaresco
Diagramação: Editora Fundação Fênix
Capa: Editora Fundação Fênix

Tradução baseada na edição espanhola de Sociologia. Estudios sobre las formas de


socialización, tradução de José Pérez Bances para a Revista de Occidente (Madri,
1926-1927), a partir da primeira edição alemã de Soziologie. Untersuchungen über die
Formen der Vergesellschaftung realizada por Dunker & Humblot (Leipzig, 1908).

O padrão ortográfico, o sistema de citações, as referências bibliográficas, o


conteúdo e a revisão de cada capítulo são de inteira responsabilidade de seu
respectivo autor.

Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os direitos da
Creative Commons 4.0 –
Http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

A revisão da tradução deste Ebook contou com o apoio CAPES/PROEX no âmbito do


projeto PPG Sociologia da UFRGS.

Este livro foi editado com o apoio financeiro do Ministério das Relações Exteriores
da República Federal da Alemanha através do Serviço Alemão de Intercâmbio
Acadêmico (DAAD).

Série Filsofia – 80

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Georg Simmel

SIMMEL, Georg. SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação. Tradução


Raúl Enrique Rojo. Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2021.

827p.
ISBN – 978-65-81110-33-8

https://doi.org/10.36592/9786581110338
Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br
CDD – 340
_______________________________________________________________
1. Sociologia. 2. Georg Simmel. 3. Formas sociais. 4. Sociação.

Índice para catálogo sistemático – Sociologia – 301


Sumário1

Palavras liminares
Acerca desta tradução
Raúl Enrique Rojo ............................................................................................................. 9

Prefácio
Simmel, o clássico ambivalente
Danilo Martuccelli ..........................................................................................................15

Prefácio
Sociologia
Estudos sobre as formas de sociação ..........................................................................33

I. O problema da sociologia...........................................................................................35
Digressão sobre o problema: como é possível a sociedade? ...................................59

II. A quantidade nos grupos sociais .............................................................................79

III. A subordinação ...................................................................................................... 165


Digressão sobre a submissão das minorias às maiorias ...................................... 218

IV. O conflito ............................................................................................................... 279

V. O segredo e a sociedade secreta ........................................................................... 371


Digressão sobre o adorno ........................................................................................ 399
Digressão sobre a comunicação escrita ................................................................. 412

VI. O cruzamento dos círculos sociais ...................................................................... 437

1
Esta nota é de Simmel: Cada um dos presentes capítulos contém uma série de exposições mais ou
menos afastadas do problema mencionado em seu título, que colabora, por além de sua relação com
essa expressão inicial, à problemática global de maneira relativamente autônoma. A intenção final e
a estrutura metodológica desses estudos exigiam tanto sua divisão num número reduzido de
conceitos fundamentais, como uma grande liberdade nas questões particulares tratadas na
abordagem desses conceitos. Por isso os títulos dos capítulos apenas abrangem de forma muito
imperfeita o conteúdo que só é indicado pelo índice que figura no final do segundo volume.
VII. O pobre .................................................................................................................. 493
Digressão sobre o caráter coibente de certos comportamentos coletivos .......... 513

VIII. A autopreservação dos grupos sociais .............................................................. 535


Digressão sobre os cargos hereditários ................................................................. 556
Digressão sobre a psicologia social ........................................................................ 601
Digressão sobre a fidelidade e a gratidão ............................................................... 627

IX. O espaço e a sociedade ........................................................................................ 659


Digressão sobre a fronteira social ........................................................................... 669
Digressão sobre a sociologia dos sentidos ............................................................ 692
Digressão sobre o estrangeiro ................................................................................. 733

X. A ampliação dos grupos e a formação da individualidade .................................. 761


Digressão sobre a nobreza ...................................................................................... 784
Digressão sobre a analogia entre as relações psicológicas individuais e as
relações sociais ........................................................................................................ 816
Palavras Liminares
Acerca desta tradução

Raúl Enrique Rojo


Por que traduzir ao português esta obra que o leitor tem entre as suas mãos e
que nos comprazemos em apresentar à comunidade acadêmica e ao público em
geral? Acreditamos que há duas boas respostas que intuitivamente surgem a nosso
espírito. A primeira é que, transcorrido mais de um século após a sua primeira edição
em alemão, não existia até hoje nenhuma tradução completa dela em língua lusa,
seja ela de origem portuguesa ou brasileira. A segunda diz respeito à necessidade de
subsanar essa carência o quanto antes em mérito à importância do autor e desta, a
sua obra prima, para o hodierno estudo e compreensão das sociedades humanas.
Ambas as questões têm sido tratadas, com acuidade e brio, por Danilo Martuccelli
no prefácio deste livro. Por isso, só frisaremos a condição de clássico de Georg
Simmel, talvez o último dos sociólogos a ser reconhecido como tal, estatuto que o
incorpora ao cânon ocidental das ciências sociais, não para convertê-lo em uma nota
erudita no rodapé da sua história, mas em referência obrigada e comum de todos os
sociólogos – desde que as razões (tão pertinentemente analisadas por nosso
prefaciador), que demoraram sua consagração acadêmica, são as mesmas que hoje
o tornam pasmosamente atual e fazem imprescindível a leitura deste livro para
emoldurar a pesquisa social de nossos dias. Livro que representa (como bem diz
Martuccelli) “o trabalho mais sistemático e sociologicamente ambicioso de Simmel”,
que urgia por isso verter ao português. No entanto, por que decidimos assumir,
justamente nós, essa tarefa – titânica até para quem tem o português como língua
materna? Antes de qualquer coisa, porque junto com o exigente prazer de lecionar no
Brasil desde 1993 aceitamos o desafio que representava valer-nos com correção da
“última flor do Lácio” como veículo de ensino e comunicação. Depois, porque nessa
caminhada aprendemos a gostar e querer das gentes que a falam e que integram a
sua academia, em primeiro lugar dos nossos colegas e alunos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Finalmente, porque foram eles os que nos
convenceram com benevolência de que a empreitada não só valia a pena, senão que
estava ao nosso alcance. Vai dedicado a eles, então, o fruto de cinco anos de árduo
labor durante os quais (como recomendava Plínio) não houve nulla dies sine línea.
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Esta tradução lusa se baseia no texto da edição espanhola de Sociologia.


Estudios sobre las formas de socialización, que traduziu ao castelhano José Pérez
Bances para a Revista de Occidente (Madri, 1926-1927), a partir da primeira edição
alemã de Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung
realizada por Dunker & Humblot (Leipzig, 1908) – a única aparecida em vida de
Simmel, que faleceu, aliás, na Estrasburgo ainda germânica em 28 de setembro de
1918.
Gostaríamos de acrescentar agora, em homenagem ao leitor, algumas
precisões sobre a tradução propriamente dita. Simmel (como todos os clássicos em
geral) quase não acompanha seu texto de notas de rodapé nem de citações
bibliográficas. Quanto às notas, acreditamos que nosso autor (que era um notório
intelectual, dono de uma impressionante erudição), com esse otimismo próprio das
grandes almas, talvez pensasse que seus leitores compartiam a sua ilustração, que
incluía o domínio das principais línguas ocidentais modernas e clássicas, bem como
das literaturas latina, alemã e comparada; a história da Antiguidade e da Idade Média
(notadamente a germânica, mas também a chinesa); de geografia, filosofia e
antropologia, e até de teologia, física, música e artes plásticas, sem cujo auxílio
certas metáforas brilhantes poderiam resultar incompreensíveis. No entanto, se tal
confiante atitude podia estar justificada nos círculos que Simmel frequentava na
virada do século XX, estaria fora de lugar em nossos dias, quando outros,
infelizmente, são os parâmetros da formação universitária e até os interesses
pessoais do largo público que almejamos para a presente obra. Decidimos, assim,
acompanhar a nossa tradução de um conjunto de citações, reduzido a sua mínima
expressão, mas acreditamos que suficiente para a compreensão do original
simmeliano. As ditas notas foram identificadas com as iniciais “NT”, que as
diferenciam das de Simmel, seguidas das letras “NS”. No que tange à falta de
citações bibliográficas, que pode causar espanto ao leitor contemporâneo, como
dissemos, era de praxe nos autores da têmpera de Simmel. Numerosas são suas
transcrições ou alusões a diversas passagens literárias, filosóficas ou históricas (de
Ibsen a Kant, passando por Goethe e Bryce) que frequentemente se acham entre
aspas, mas sem menção de sua procedência ou são apenas atribuídas a “um dos
melhores conhecedores da América do Norte”, a “um dos melhores conhecedores do
Raúl Enrique Rojo | 11

parlamento inglês”, a “um historiador da época”, ou a um autor de quem só se


menciona o sobrenome, sem referir a obra da qual foi tirado o parágrafo citado (como
ocorre, por exemplo, com Stubbs e Maculay). Em todos esses casos procuramos
(geralmente com bom índice de sucesso) identificar o autor e a obra, dando
preferência à edição que, pela data, poderia ter sido consultada por Simmel. É bom
que se diga que muitos desses textos estão transcritos, no texto alemão de Simmel,
na língua de seus autores. Assim sendo, optamos por traduzir o texto transcrito e
manter a língua original em nota de rodapé. Simmel também utiliza, amiúde e com
muita naturalidade, expressões em língua latina, em grego clássico e francês que,
logicamente, conservamos tal como o autor as consignou, explicando seu
significado, se preciso, em nota. E quando aparecem no original escritas com
caracteres gregos, para evitar problemas tipográficos, decidimos transliterá-las com
caracteres latinos, respeitando a sua fonética. Por fim, nos pareceu temerário
traduzir as citações que Simmel faz das Escrituras, preferindo extraí-las diretamente
da Bíblia de Jerusalém (São Paulo, Paulus, 1985), texto traduzido a partir de estudos
feitos pela Escola Bíblica de Jerusalém, com autoridade legítima, e cujo sistema de
abreviaturas para os livros bíblicos igualmente adotamos.
Traduzir implica com frequência escolher as palavras que expressam melhor
a ideia que o autor traduzido utilizou na sua língua, dentre um repertório mais ou
menos extenso de sinônimos da língua do tradutor. Tal escolha se complica em uma
tradução científica. Quanto mais importante é o termo para o pensamento do autor
e maior é o peso na disciplina tratada na sua obra, mais cuidadosa deve ser a
preferência por uma ou outra palavra. Essa opção também não permite ignorar a
história do termo na disciplina de que trate o texto a traduzir, nem as ambiguidades
que um ou outro termo possa criar. Essas considerações introduzem as razões que
nos moveram a traduzir pelo neologismo “sociação” a palavra alemã
Vergesellschaftung. Tal vocábulo, que figura já na capa do original do presente livro
(desde que integra seu subtítulo), e se repete inúmeras vezes ao longo de todo o texto
na língua original do autor, significa “interações sociais de reciprocidade” – e,
consequentemente, trata-se de uma variante da palavra “relação”, a qual, segundo o
próprio Simmel, é “a palavra mais especificamente sociológica que existe”. Isso
porque, para nosso autor, uma sociedade se forma a partir do momento em que os
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atores sociais criam relações de interdependência, sem necessidade de que exista


convergência de interesses entre eles. Para verter em espanhol Vergesellschaftung,
Pérez Bances, em 1926, optou pela voz “socialización”. Esse termo (como seu
equivalente português “socialização”) não é ruim, em si, para traduzir a ideia
expressa pela mencionada palavra alemã: um e outro termos permitem
intuitivamente entender do que se fala e, a partir deles, forma-se uma “família de
palavras”, que inclui um verbo (“socializar”) com flexões que permitem expressar
detalhes qualitativos ou quantitativos internos da ação denominada pelo substantivo
respectivo. No entanto, a partir dos anos 1940 a então hegemônica sociologia norte-
americana, de cunho estrutural-funcionalista, designou (diríamos que quase
definitivamente) com esse vocábulo o processo através do qual um indivíduo se
torna membro funcional de uma comunidade, assimilando a cultura que lhe é própria.
É fácil imaginar o equívoco que a convivência de dois conceitos tão diferentes pode
gerar para definir a ação que denomina o substantivo “socialização” – erro de
interpretação que pudemos comprovar pessoalmente na academia francesa, em que
o termo “socialisation” serve para ambos os casos. Existe, porém, uma alternativa
consagrada pacificamente entre os cientistas sociais de expressão lusa ou hispânica
nos últimos anos. Referimos-nos à voz: “sociação” (ou seu equivalente espanhol
“sociación”), que já tem sido empregada na tradução de outras obras de Simmel no
Brasil e Portugal e nos cada vez mais numerosos trabalhos dedicados a nosso autor
que vieram à luz recentemente. Não é tão transparente como “socialização”, não se
pode criar a partir dela um verbo minimamente eufônico, mas soluciona a contento
o problema e, sobretudo, não cria uma opção dissociadora na trabalhosa
unanimidade que “sociação” tem conseguido até agora. Essa foi, portanto, a nossa
escolha – ainda que, para sermos consequentes com ela, tivéssemos que substituir
o inexistente verbo derivado por uma perífrase, quando foi o caso.
Há, finalmente, outra escolha vocabular que gostaríamos de aludir e que foi
motivada por um prurido de desambiguação. É sabido que o adjetivo “positivo”
qualifica em português (e também em espanhol) o “que coincide com a noção de
bem”, mas também o “que afirma”. O mesmo pode-se dizer de seu antônimo
“negativo”, que adjetiva o “que é nocivo ou prejudicial”, mas igualmente o “que coíbe,
proíbe ou reprime”. Confessamos que nos levou algum tempo, quando de nossa
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primeira leitura da presente obra de Simmel na sua versão castelhana, darmos conta
de que a voz: “positivo”, estava despojada geralmente de toda valoração ética, e a
significar apenas: “afirmativo, que faz uma asserção” – como ocorre, por exemplo,
no Capítulo V, lugar em que a tradução hispânica fala da finalidade “positiva” da
mentira ou de seu caráter de “tática positiva”. “Negativo” tem efeito anfibológico
similar, como se pode perceber (superada uma primeira perplexidade) na digressão
única do Capítulo VII. Nesse caso, a versão espanhola fala (desde o próprio título) da
“negatividad” de certos comportamentos coletivos, aludindo a sua capacidade de
coibir ou reprimir, ou de expressar negação ou recusa. Felizmente, a língua
portuguesa possui dois bons adjetivos para qualificar o afirmativo e o impeditivo,
respectivamente, como: “assertivo” e “coibente”, sem deixar dúvidas acerca de seu
alcance semântico. Foi esse, por consequência, o caminho escolhido na nossa
tradução – apoiada, como ao longo de todo o trabalho, no Dicionário da Língua
Portuguesa e no Dicionário de Elementos Mórficos de Antônio Houaiss, reunidos na
sua versão eletrônica (Rio de Janeiro, Objetiva, 2009).
Realizar esta tradução, com suas numerosas vicissitudes, nos pareceu
alguma vez uma luta solitária e sem fim. De fato, porém, o projeto e a sua
concretização contaram com o auxílio, material e espiritual de várias pessoas e
algumas instituições. Dentre estas últimas, destacamos o Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que
nos ofereceu o espaço institucional necessário para o presente trabalho, e dispôs de
uma parcela de seus magros recursos para cobrir parcialmente as despesas da
revisão idiomática – que também contou com a ajuda econômica do Centro de
Estudos Europeus e Alemães (CEDEA), sediado em Porto Alegre, e a quem muito
agradecemos a sua valiosa colaboração. Rendemos tributo igualmente à Editora
Fundação Fênix, na pessoa do excelente Jair Inácio Tauchen que, sem poupar
esforços, conseguiu pilotar o projeto editorial deste livro. No entanto, se há alguém
que, desde o princípio, apoiou com seus conselhos e experiência a nossa tradução
foi a dileta e distinta colega Clarissa Eckert Baeta-Neves, que se tornou assim numa
grande animadora deste empreendimento acadêmico. Faltam-nos palavras para
expressar-lhe aqui o nosso sincero agradecimento. Que estendemos a Danilo
Martuccelli, que consentiu prefaciar a tradução em um tempo extraordinariamente
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curto, entre seus deslocamentos acadêmicos a um lado e outro do Atlântico, dando-


nos de presente uma preciosa amostra da sua erudição. Recém mencionávamos a
revisão idiomática da tradução. Ela foi garantida com notável competência e
detalhista atenção pela professora Bianca Pasqualini, do Instituto de Letras da
UFRGS. Ficamos imensamente gratos por sua generosa entrega profissional e pela
receptividade constantemente demonstrada para conciliar precisão terminológica
com português de boa casta. Muitos poucos revisores teriam sido capazes de fazê-
lo com a sua idoneidade.
Finalmente, mas não por último, expressamos nosso carinhoso
reconhecimento a Constanza Gutierrez Rojo, nossa esposa e companheira de mais
de quatro décadas. Ela acompanhou este projeto um pouco louco e nos escorou com
a sua solicitude, dedicação e encorajamento; assumindo muitas vezes sozinha as
pesadas exigências do lar, mas prestando sempre seu ouvido atento às nossas
dúvidas e incertezas. Sem ela esta tradução não teria sido possível.

Raúl Enrique Rojo


Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
.
Prefácio
Simmel, o clássico ambivalente
Danilo Martuccelli

Muitas vezes, falou-se do injusto destino da obra de Georg Simmel (1858‘-


‘1918), de sua carreira acadêmica marcada pela falta de reconhecimento, do quanto
foi esquecido e dos redescobrimentos parciais – quase sempre tendenciosos e
bastante opostos entre si. Todavia, é preciso reconhecer a parte de responsabilidade
que cabe ao próprio Simmel nesta difícil posteridade: seus estudos atravessam com
ousadia as fronteiras disciplinares, seus temas (apesar da permanência de algumas
de suas grandes obsessões) se caracterizam pela extrema variedade; ele próprio
evolui intelectualmente de maneira ostensiva ao longo da vida, passando de uma
forma de kantismo, inclusive de positivismo, para o relativismo e à filosofia da vida,
antes de insinuar na última obra (publicada logo após sua morte) uma provável
guinada existencialista. Resultado: embora ninguém conteste o estatuto de Georg
Simmel como clássico da sociologia, quer dizer, a condição de autor comum e
obrigatoriamente partilhado entre os sociólogos, sua obra não deixa, porém, de
suscitar reações singulares.
A edição em língua portuguesa do livro Sociologia de Simmel, publicado pela
primeira vez em 1908, constituirá, com certeza, um marco na recepção de sua obra
no mundo lusófono e, sobretudo, no Brasil.. Graças ao enorme esforço que significou
o trabalho de tradução empreendido por Raúl Enrique Rojo, o leitor brasileiro disporá
não só de um dos grandes livros da sociologia, mas também poderá finalmente ler
em sua própria língua o trabalho mais sistemático e sociologicamente ambicioso de
Simmel. Muitos dos grandes temas de sua obra (que já haviam sido formulados,
sobretudo na Filosofia do dinheiro, de 1900, e que conhecerão mais tarde outras
expressões na sua fase mais vitalista) são abordados aqui com maior profundidade
analítica e rigor. Pelo menos parcialmente isso se deve ao fato de que Simmel (um
autor que teve um percurso profissional muito difícil e que só tardiamente alcançou,
em Estrasburgo, um cargo de professor titular) esperava obter, com essa reunião e
sistematização de trabalhos, uma cátedra universitária. Daí, provavelmente, os
esforços de definição que acompanham o livro. Daí também a nova abordagem de
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diferentes assuntos que ele já examinara previamente – uma estratégia temática que
não foi alheia a sua condição de privatdozent, espécie de docente independente cuja
remuneração variava com o número de alunos.
O que está dito acima dá conta da especificidade relativa de Sociologia no
conjunto dos trabalhos de Simmel. Contudo, o esforço de sistematização presente
neste livro não conseguirá dissipar completamente as críticas ou restrições
expressadas amiúde relativamente a Simmel: a de ser um ensaísta, autor mais
preocupado com as ideias do que com as demonstrações, animado por uma
sensibilidade ao encontro da modernidade que, por vezes, nos faz lembrar Baudelaire
e seus textos de crítica dedicados à ideia de beleza moderna. Mesmo que não seja a
questão central dos trabalhos aqui reunidos, é possível reconhecer, para além da
curiosidade que leva nosso autor a abordar muitos dos temas desenvolvidos, uma
representação específica da modernidade. No entanto, é certo que a modernidade é
muito menos diretamente relevante na determinação do objeto de Sociologia. Porque
não há dúvidas de que o grande propósito desse livro, através de uma sucessão
vertiginosa e cambiante de olhares e explorações, é delimitar o que é próprio da
perspectiva sociológica, definir a disciplina, balizar seu campo.
Ainda que em Sociologia, Simmel não deixe de recorrer em algumas ocasiões
ao impressionismo, seu projeto explícito é assentar os fundamentos básicos da
sociologia como disciplina científica. Se a posteridade tem privilegiado a
interpretação de Simmel da modernidade (e a intenção de examinar as razões
objetivas de todas as inquietações subjetivas da modernidade), em Sociologia se
encontra sua verdadeira e específica visão da disciplina.

As formas sociais e a sociação

A afirmação central a partir da qual se organiza Sociologia, era tudo menos


uma evidência na virada do século XX. Simmel recusa uma concepção global da
sociedade em benefício de uma noção dinâmica, constante e recíproca da inter-
relação entre os indivíduos: a sociação. Constituída por processos múltiplos, a
sociação se faz e se desfaz sem cessar através de um fluxo e de uma permanente
efervescência que se cristalizam em certas formas sociais. Por vezes foi sublinhada
Danilo Martuccelli | 17

a imprecisão desse último conceito, mas, na verdade, é óbvio que para Simmel a
noção de forma designa uma representação e uma organização da experiência, bem
como uma manifestação, mais ou menos consolidada, de algumas práticas sociais
ou culturais. As formas (que outras escolas, e desde diferentes coordenadas
teóricas, também denominam instituições) são concretizações – figuras autônomas
e enquadramentos duradouros – que permitem articular o agir recíproco dos
indivíduos. A sociedade se desfaz como conceito total em benefício de toda uma
série de formas de sociação – mais ou menos duráveis, mais ou menos efêmeras,
mais ou menos antagônicas entre si. No entanto, se os aspectos dinâmicos são
indissociáveis das formas institucionalizadas, a dinâmica das relações sociais se
mostra reticente a toda formalização definitiva.
Aqui reside a base do gênio sociológico de Simmel, mas também uma parte
dos mal-entendidos que o acompanharam por toda a vida, mantendo-se até hoje.
Para Simmel, a sociedade é um conceito por demais contundente que erroneamente
produz uma imagem excessiva e totalizante da vida social, silenciando a dinâmica
efetiva das relações sociais. Mais ainda, a noção de sociedade não possui as
qualidades necessárias para revelar as particularidades da sociologia como
disciplina – porquanto, no fim das contas, todas as ações humanas se desenvolvem
na sociedade. O que define a sociologia é o estudo das maneiras nas quais os
indivíduos interagem reciprocamente e constituem uma unidade permanente ou
temporária através de diversas formas de sociação.
Essas formas produzidas na e pela própria vida social são o objeto privilegiado
da sociologia, que deve tentar isolá-las dos seus conteúdos (estados de espírito,
pulsões, interesses, objetivos dos indivíduos). Embora a subjetividade se encontre
na base de muitas das interpretações de Simmel, as formas de sociação são
irredutíveis a qualquer imagem que se forme sobre elas em sociedade. Daí (como o
leitor irá descobrir) a importância das reflexões digressivas de Simmel sobre a
psicologia social ou as analogias possíveis entre as relações psicológicas
individuais e coletivas. Essa separação analítica dá conta do fato de que uma
diversidade de comportamentos possa ter lugar no âmbito de quadros formalmente
idênticos, bem como de que um mesmo conteúdo ou interesse possa manifestar-se
em uma pluralidade de formas sociais. Na melhor das hipóteses (concede Simmel) a
18 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

soma dessas formas sociais é o que pode ser chamado, por abstração, de sociedade.
No entanto, são as formas (modelos de sociação variados e constantes), as que dão
conta da regularidade das práticas humanas.
Por vezes, essa perspectiva tem sido denominada de sociologia formal. A
designação não é excessiva, desde que se reconheça a dinâmica dos processos
metamórficos e contraditórios por trás das formas sociais. Na verdade, a sociologia
formal de Simmel insiste tanto ou mais nos processos e nos mecanismos que a cada
instante recriam a sociedade, do que em uma classificação das principais formas da
vida social.
Desse modo, o problema da sociologia é explicitamente abordado desde o
primeiro capítulo, e aprofundado em torno de uma pergunta singular: como é possível
a sociedade? Simmel expõe aqui uma intuição que desenvolveu ou retomará várias
vezes ao longo da vida: a sociedade se produz através de seus indivíduos. Daí a
necessidade de estudar os processos que ocorrem nos indivíduos e que condicionam
a sua existência como membros da sociedade. Nosso autor afirma inclusive a
possibilidade de estudar as formas sociais independentemente dos estados
psíquicos dos indivíduos e nunca deixar de procurar compreendê-las em relação às
configurações concretas individuais. Simmel examina detalhadamente os três a
priori dessas formas de sociação. Primeiro, a vida social baseia-se em abstrações,
em imagens parciais dos outros. Só percebemos as demais pessoas através de
generalizações ou caracterizações, pelos papéis desempenhados dentro de
contextos específicos. Em segundo lugar, mesmo se o indivíduo é caracterizado
pelos papéis que representa, Simmel lembra-nos que todo indivíduo também é mais
qualquer coisa, que não se reduz apenas a sua dimensão social. Não há possibilidade
de “sociação total” do homem: as interações sociais e as relações de
interdependência não esgotam o ser humano em si mesmo, na sua dimensão ampla
e fundamental. Uma parte dele fica sempre de fora da vida social, o que permite
compreender que, para Simmel, o indivíduo é sempre mais do que a soma de todas
as suas manifestações. Em cada interação, o indivíduo é apreendido apenas sob um
aspecto sem que as suas outras determinações pessoais sejam minimamente
consideradas. E, por último, a vida em sociedade se desenvolve igualmente como se
todos os elementos estivessem predeterminados por posições objetivas na
Danilo Martuccelli | 19

hierarquia social, seja qual for o genuíno desejo dos indivíduos. Nas sociedades
modernas, as pessoas são cada vez mais dependentes do agir de um número sempre
crescente de indivíduos e, ao mesmo tempo e de igual modo, são cada vez mais
independentes de cada indivíduo em particular. Uma dimensão coerciva da vida
social que Simmel retomará anos mais tarde, já no quadro de referência do vitalismo,
como uma oposição entre o objetivo e o subjetivo, que considerará característica da
tragédia da cultura moderna.
O tempo apagou a profunda originalidade de tal proposta. Como acontece
tantas vezes com os clássicos (eis onde reside seu estatuto e sua qualificação), esse
olhar modela hoje em profundidade a sociologia. Por isso, o leitor não deve esquecer
que está diante daquilo que é, com certeza, uma das primeiras versões do que anos
mais tarde (e através de uma criativa recepção da obra de Simmel em Chicago)
tornar-se-á o paradigma interacionista – e, de maneira mais ampla, uma
preocupação pelo cotidiano ou a microssociologia. No entanto, o leitor deve, acima
de tudo, ser sensível ao fato de que, ao fixar o seu olhar na vida social do começo do
século XX, Simmel arvora-se como um dos primeiros sociólogos a definir o objeto da
sociologia independentemente da sociedade e, por conseguinte, do Estado Nação – e
do quase monopólio dos problemas que afetam o Estado ou que o Estado define e
impõe. Sem descurar a dimensão estatal, Simmel se interessa por outra grande
família de problemas e de experiências. Isso constitui a principal originalidade de sua
obra, sem dúvida o seu talento único entre os clássicos, e também o que lhe valeu,
curiosamente, uma reputação de longa data como ensaísta.
É sua visão da sociedade como produto das interações dos indivíduos
(concebidos como atores sociais) o que explica tanto sua maneira de analisar os
fenômenos grupais, como a diversidade de práticas ou formas sociais que se tornam
objeto de sua avaliação crítica. Inclusive quando analisa, por exemplo, a questão do
pobre, seu olhar descentraliza a temática, desenvolvendo um particular interesse
pelas maneiras em que o pobre é produzido (através de uma infinidade de formas de
sociação – na verdade, de tipos de intervenção social), e pela dupla significação do
distanciamento do desvalido a respeito do coletivo – que esclarece à luz da metáfora
kantiana da “exterioridade” do espaço a respeito da consciência. Acuidade que, além
disso, encontramos na observação atenta que Simmel dedica em outros capítulos à
20 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

subordinação, às relações entre maiorias e minorias, e ao cotejo entre as lógicas


grupais e as condutas individuais.
Também se deve ler nesses termos um conjunto mais alargado de outras
análises de Sociologia: o significado do conflito como parte indispensável de toda
unidade, as sociedades secretas e o segredo enquanto expressões da necessidade
de opacidade específica dos homens e dos grupos ou, mais importante ainda, a
transcendência que o nosso autor outorga ao papel do terceiro no aumento, nos
indivíduos de uma comunidade, do sentimento coletivo ou do espírito de
solidariedade social e de cooperação. Podemos mesmo dizer, sem que tal implique
uma interpretação desarrazoada dos textos, que a pluralidade de análises
desenvolvidas em Sociologia, (esclarecidas pela dinâmica entre as formas e as
sociações) permite igualmente compreender muito do que Simmel tinha exposto até
então e do que exprimirá depois – que, no entanto, aqui é manifestado com um grau
mais elevado de consistência.
Porque em Sociologia (sem que tal perspectiva se torne necessariamente
mais importante que outras), as relações entre o espaço e a sociedade reúnem
muitas das análises de Simmel, como testemunham as suas digressões sobre a
sociologia dos sentidos, a fronteira ou, naturalmente, a questão do estrangeiro,
magnificamente abordada em um dos mais célebres excursos que surgem ao longo
de todo o livro, Detenhamo-nos um momento nessa figura.
Para fazê-lo, há que recolocar previamente esse texto dentro do projeto mais
geral que está por trás de Sociologia. O estrangeiro é uma figura de síntese entre a
vida errante e o apego a determinado lugar, quer dizer, uma forma de mediação do
grupo com ele mesmo. Ao contrário daquilo em que essa figura se transformou para
muitas leituras ulteriores (a saber, em um símbolo da marginalidade), para Simmel o
estrangeiro é sinônimo de intermediação, indivíduo que, nas suas relações com os
outros estabelece uma ligação entre o desapego e a objetividade. O estrangeiro não
é definido nem por seu deambular, nem pelo sedentarismo, mas por existir de
permeio, por situar-se entre essas duas características. Dentro de uma comunidade,
seu papel, é, acima de tudo, o de um mediador através do qual se instala uma rede
completa de reciprocidades entre os indivíduos. É a partir daí que se configura a
associação (que pode parecer abusiva, por momentos) do estrangeiro com muitas
Danilo Martuccelli | 21

características do dinheiro – e, sobretudo, com aquilo que é seu principal símbolo, a


mobilidade. Certamente, como se pôde observar, a figura do estrangeiro aparenta ser
a concreção de uma das facetas da modernidade, mas isso não deve levar a
desconhecer que o estrangeiro é sempre, aos olhos de Simmel, uma forma de
interação recíproca, uma sociação. Se o estrangeiro (homem sem “raízes”) interage
com os indivíduos que o rodeiam não tem, no entanto, vínculos orgânicos com eles.
Dada a sua isenção (porque carece do lastro dos particularismos e das paixões
partidárias do grupo) pode recorrer a modelos mais objetivos, e por isso está menos
obrigado a se curvar perante a tradição. É também por isso que com o estrangeiro
estabelecemos, acima de tudo, relações mais abstratas – que interpretamos
servindo-nos de categorias mais gerais. Com ele, as semelhanças genéricas
predominam sobre as relações particulares. O estrangeiro é um símbolo da
mediação, dentro do grupo, entre o interno e o externo. Como o dinheiro (em analogia
com a moeda), o estrangeiro circunscreve o que há de mais universal dentro de um
grupo e, simultaneamente, por isso mesmo, não pode haver com ele completa
privacidade. Eis porque é sempre mais um “tipo” que um “indivíduo”. Chegamos
assim a outra das questões centrais do livro.

O indivíduo, a sociação e os grupos

Presente em várias partes e exposições de Sociologia, o problema das


relações entre os indivíduos e os grupos é abordado explicitamente por Simmel no
último capítulo da obra que nos ocupa. Aliás, a definição sociológica que ali
encontramos do indivíduo impressiona por seu rigor: o indivíduo é indissociável de
um conjunto de formas de sociação – que, por definição, são recíprocas e
consequentemente o situam no cruzamento de múltiplos vínculos e círculos sociais.
Nesse ponto, o interesse que Simmel atribui ao processo de diferenciação
social, desde os primeiros trabalhos (no início dos anos 1890) como grande fator
estrutural das sociedades modernas, é indissociável da sua visão e da importância
dada ao individualismo de seu tempo. Se ambas as questões são comuns a muitos
outros sociólogos – de Durkheim a Weber –, no caso de Simmel esse par de
conceitos alcança um grau de coerência infinitamente maior. Para o nosso autor, a
22 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

diferenciação não se remete nem à divisão do trabalho, nem à versatilidade dos


valores, mas será compreendida, sobretudo, na sua relação profunda com o processo
de individuação. A esse respeito, a interpretação simmeliana será constante e
profundamente original: quanto mais círculos sociais um indivíduo transpõe, mais
possibilidades – inclusive ambivalentes – de emancipação e singularidade ele
possui. Por isso, Simmel estabelece a correlação entre as extensões do grupo e do
espaço oferecido à individualidade, bem como a correspondência entre o alcance
desses dois movimentos da alma e a extensão de sentimentos cosmopolitas. O
indivíduo surge para Simmel como um conjunto de atributos que constitui a
originalidade de um ser humano, no cruzamento de diferentes círculos. É a
combinação do singular e do estrutural que explica precisamente a diferença entre
os indivíduos. No entanto, situado em um cruzamento de círculos desse tipo, o
indivíduo pode também encontrar-se apanhado entre diferentes tendências, como,
por exemplo, ao pertencer simultaneamente a grupos violentamente opostos entre
si. De resto, como Simmel torna preciso, o número e a variedade dos vínculos sociais
também são fatores de subordinação e poder.
O individualismo não nasceu com a sociologia, nem muito menos foi uma
preocupação exclusiva de Simmel entre os clássicos. No entanto, nele a
problemática atinge uma formulação quase definitiva. O que favorece as relações
diferenciadas é a individualização estrutural das formas da vida, bem como a
desagregação consecutiva dos vínculos originários. Se de um ponto de vista espacial
essa situação cria as condições para o afastamento do homem dos círculos mais
próximos e uma aproximação aos mais longínquos, de um ponto de vista temporal,
isso permite tirar proveito de contingências que quebram a monotonia da existência
e possibilitam viver outras experiências – como diz Simmel no ensaio que consagrou
à aventura.
Estamos diante de um dos grandes temas recorrentes de Sociologia. Cada
capítulo retoma e aprofunda essa dinâmica, demonstrando que a relação em
aparência monolítica do indivíduo com a sociedade se quebra em proveito de uma
multiplicidade descentrada e heterogênea de formas e relações diferentes entre
indivíduos e grupos sociais,
Danilo Martuccelli | 23

Para além dos termos utilizados, trata-se da mesma estrutura de


interpretação que está presente noutros dos seus ensaios, por exemplo, ao analisar
a inversão das relações entre amor e casamento. Embora inicialmente o amor, às
vezes, fosse uma consequência do casamento, doravante o casamento se tornará
um resultado do amor. A evolução, partindo do interesse social e da norma, ergue
progressivamente o interesse do indivíduo no único e exclusivo princípio para avaliar
pessoas, coisas e situações – dando forma a novas relações recíprocas entre os
indivíduos. Assim, o casamento como aliança entre dois patrimônios cede passagem
à união de duas individualidades. No mesmo sentido, deve-se compreender a leitura
de nosso autor da moda na sua dupla orientação: voltada à imitação social e à
distinção individual.
Ainda que Simmel insista mais (e certamente melhor) sobre esse aspecto em
trabalhos subsequentes, especialmente na sua fase mais abertamente vitalista, está
claro que, já no âmbito da sua sociologia formal, a dinâmica multíplice das formas
de sociação significa o fim de qualquer possibilidade de uma ordem social
harmoniosa e preestabelecida. Em sua obra não existe nenhum recurso aos artifícios
da razão ou à mão invisível. Simmel aceita o caráter inevitável da fragmentação da
vida social, participa inclusive desse processo de diversificação com sua escrita e
com a variedade das suas temáticas, sem nunca ver nisso um óbice intransponível
para a vida social. Porque a vida social (como os indivíduos que a constituem) está
sempre dominada por uma vontade de relação ou encadeamento entre os domínios,
objetos e acontecimentos, bem como pela capacidade permanente de perceber
diferenças e descompor em diversas partes o mundo, introduzindo assim.
Incansavelmente, a necessidade de uma nova relação lógica ou causal entre as
ações.
Certamente, essa fratura entre o indivíduo e o mundo implica o desejo, às
vezes irresistível, de recompor a unidade perdida. No entanto, Simmel, ao contrário
de muitos outros autores modernos (e apesar das tensões presentes em muitos de
seus trabalhos) nunca cedeu analiticamente ao canto das sereias da saudade da
harmonia primitiva ou à promessa da totalidade reencontrada. A diferenciação social
é a grande gramática estrutural da modernidade. Naturalmente, tal perspectiva
acarreta ambivalências e incômodos. No entanto, é um fato insuperável da época, a
24 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

razão final por detrás do estudo da vida social – que só se pode compreender a partir
das variadas formas de sociação.

Sobre o ensaísmo de Simmel

Verdadeiro esforço de sistematização de um olhar analítico específico e de


uma definição singular da disciplina, Sociologia não fugiu, contudo, às críticas
habituais que foram feitas a Simmel e a seu ensaísmo. Não há dúvida de que Simmel,
por momentos e em algumas passagens, coloca em um segundo plano o problema
da verdade empírica de algumas das suas afirmações – embora nunca se
desinteresse completamente dessa questão. Às vezes seu raciocínio baseia-se em
uma profusão de exemplos mais ou menos análogos (extraídos de sociedades muito
desiguais), nos quais a forma prima sobre a historicidade dos fenômenos; bem como
em outros casos, serve-se de profundas e originais interpretações para abordar
dimensões subjetivas do agir coletivo, sem que jamais fique muito clara a origem
dessas análises. Tais críticas são justificadas. Todavia, por trás da sua denodada e
famigerada tendência ao ensaísmo é possível perceber um modo sistemático de
argumentação que, mesmo sendo escassamente empírico, não está desprovido de
rigor e personalidade.
Com o objetivo de desenvolver a tese central de Sociologia, quer dizer, o
caráter essencial e determinante das formas e sociações, Simmel se serve de um
número impressionante de explicações, comentários e interpretações. Configuração
habitual durante o século XIX e nos primórdios do XX, a sua realidade se tornou
progressivamente menos frequente. Nesse sentido, a enorme erudição dos clássicos
da sociologia – sobretudo a de Weber, e o leitor descobrirá que a de Simmel não fica
atrás – contrasta frequentemente com o que passou a ser prática comum entre a
maioria dos sociólogos contemporâneos. Se a erudição ainda está presente em
certas áreas como a sociologia histórica ou comparada, em muitos outros domínios
a sociologia normalizada se afasta de exigências desse tipo. Outros objetivos se
impuseram, sobretudo de índole metodológica: certo tipo de administração da prova
e de desenvolvimento do discurso argumentativo (padronizado pelas revistas
Danilo Martuccelli | 25

especializadas em quatro etapas – estado da arte, hipótese, método e resultados), o


recurso a um aparelho atualizado de notas bibliográficas, etc.
Não há qualquer dúvida de que a obra e a escrita de Simmel estão
profundamente afastadas de tudo isso. Assim sendo, seu ensaísmo (que já foi objeto
de críticas na sua época) tornou-se um epíteto ritualizado no momento de qualificar
sua obra. Ensaísmo que não seria, por outro lado, alheio ao seu interesse em
debruçar-se de maneira dispersa sobre temas cotidianos e aparentemente triviais
– como a moda, o coquetismo, o adorno ou a comunicação escrita. Um bocado de
leitores partilhará talvez dessas críticas ao ler Sociologia. No entanto, muitos outros
não concordarão, de modo algum, com elas.
Vamos por partes. É verdade que Simmel explora e analisa dimensões
subjetivas, colocando-se frequentemente na posição de quem olha “de dentro” as
reações dos indivíduos, adotando, por conseguinte, uma perspectiva enunciativa que
nenhuma base empírica justifica plenamente. O problema, naturalmente, não é
exclusivo de Simmel, pois é visível também, para dar um só exemplo, em Erving
Goffman. Contudo, quando Goffman recorre a essa perspectiva enunciativa,
amortece o seu oportunismo metodológico – sem eliminá-lo completamente –
alimentando livremente a sua interpretação com citações de passagens de
romances, observações da vida cotidiana, testemunhos pessoais, releituras de
exemplificações extraídas da literatura acadêmica, etc. Nada disso está presente na
obra de Simmel. A sua heurística e a forma de lidar com as metáforas são amiúde
pura e simplesmente brilhantes. Simmel é capaz de fazer de “a ponte e a porta” um
potente analisador da sociedade moderna; de perceber, com um talento literário
inegável, o húmus diferencial das cidades (Roma, Florença ou Veneza); e de extrair
de uma escultura de bronze de Rodin toda a dinâmica cultural da sua época.
É verdade também que é difícil justificar a origem dessas interpretações
simmelianas. O talento do autor prevalece evidentemente sobre o método. Mas não
sobre seu discurso argumentativo. Pelo contrário, o que explica (às vezes com uma
espantosa naturalidade) a pluralidade de exemplificações históricas e sociais a que
recorre Simmel (e a não menos assombrosa plausibilidade elucidativa de muitas de
suas melhores metáforas) é a vontade de fazer atingir a esses recursos persuasivos
sua máxima expressão interpretativa. Simmel argumenta através de analogias,
26 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

estabelecendo pontes entre grupos sociais e fenômenos distantes no tempo e no


espaço. E a multiplicidade de exemplos que traz a baila (que denotam tanto uma
erudição surpreendente como uma curiosidade insaciável) é uma garantia da
razoabilidade de suas interpretações.
Geração após geração, o apreço por Simmel e por sua obra terminaram
inconcludentes. A admiração coabita com a reticência. Às vezes essas duas
considerações valorativas se alternam no tempo, mas em um mesmo e único autor.
Outras vezes, essa dualidade coexiste simultaneamente, sem que, afinal, muitos
saibam que atitude privilegiar. Para entender o destino e a posteridade de Simmel
deve-se partir dessa opinião contraditória. Por um lado, seu discurso argumentativo
fez com que se acabasse por reconhecer sua rara sensibilidade, a responsabilidade
que lhe compete na abertura da sociologia para novas temáticas da vida cotidiana e,
sem dúvida, o fato de ser o autor de uma das visões mais substantivas, originais e
entusiastas da condição moderna. No entanto, esse reconhecimento não é
desprovido de certo sentimento de desconforto, como se, lá no fundo, a disciplina
não soubesse realmente o que fazer com sua obra. A crítica do ensaísmo serve,
assim, de expressão laudatória e simultaneamente pejorativa da perspectiva
simmeliana.
Alguns autores, contudo, preferiram deixar a ambiguidade para trás, e
tomaram uma posição mais unilateral. Para eles, qualquer que tenha sido o papel de
Simmel nos inícios da sociologia, nossa disciplina só se tornou científica quando se
livrou do fardo do ensaísmo. Com o tempo e com esforço, a sociologia deixou de ser
uma disciplina de salão (intuitiva, ensaística, sem produção e discussão de dados),
e se converteu em um ramo do conhecimento no qual o rigor metodológico, a
comunicação entre pares através de artigos em revistas indexadas, a afirmação de
um ideal cumulativo do saber e a repetição dos protocolos de investigação se
traduziram progressivamente em uma especialização intensiva e no predomínio de
amplos projetos de pesquisa conjunta. Em face dessas tendências, Simmel aparece
como um sociólogo inevitavelmente démodé, representativo de uma concepção
romântica e artística do autor, inseparável de um tipo de escrita pessoal, inspirado
por uma visão larga e global da vida social, mas ao mesmo tempo por um viés
impressionista.
Danilo Martuccelli | 27

O predomínio indiscutível da primeira tendência (digamos do blockbuster


sobre o cinema de autor) é hoje um posicionamento compartilhado por número
significativo de jovens sociólogos e é, sem dúvida, a visão hegemônica da disciplina
em todo o lado. Uma atitude que, na América Latina – e talvez principalmente no
Brasil –, está no centro de grandes discussões sobre a identidade da sociologia. Se
já no passado a sociologia nunca se confundiu completamente com o ensaio, a
distinção entre uma e outro é hoje, com certeza, muito mais clara e firme. Contribui
para isso a necessária especialização de nossa disciplina, sua crescente (embora
insuficiente) profissionalização, e as exigências de prova e de rigor metodológico que
são doravante indispensáveis na interação cotidiana dos sociólogos. No entanto,
essas louváveis exigências acadêmicas conduzem, por vezes, a certo reducionismo,
à perda evidente da imaginação sociológica, a uma prática da disciplina que espera
poder compensar com o cumprimento formal de alguns estereótipos metodológicos
a falta de pertinência no momento de se compreender e delinear os grandes desafios
do nosso tempo, a um positivismo mais declarativo que provado ou preditivo, à
insignificância e banalidade de tantos retratos e monografias que o jargão da
disciplina não pode esconder. Destarte (e para colocá-lo sem rodeios), contra isso
tudo e para sempre, Simmel é um antídoto precioso.
Tudo depende, na realidade, de quão conscientes somos de que a sociologia
é, desde suas origens, uma disciplina em tensão entre múltiplos talantes. Disso
deriva, ainda hoje, a liberdade e originalidade que a caracterizam no concerto das
ciências sociais. A sociologia, durante todo o seu decurso histórico tem sido o
resultado do encontro improvável (e com ênfase diferenciada) de quatro atitudes de
interesse. Em primeiro lugar, a sociologia sempre tem estado animada por uma
aspiração de cientificidade – tão crucial para Durkheim –, quer dizer, por um projeto
de fundação de uma ciência dura e rigorosa do social. Em segundo lugar, sem
desmerecer o anterior, a sociologia também não deixa de ser um diálogo
pormenorizado e erudito com a área das humanidades – algo evidente na obra de
Weber. No entanto, a sociologia foi e continua a ser igualmente uma disciplina
movida por inegável interesse prático, pelo desejo de intervenção social, por vezes
mesmo como complemento da ação política – dimensão que raramente foi tão
evidente como no caso de Marx. Finalmente, e muito em particular, a sociologia dá
28 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

vazão, no meio de numerosas frustrações e tergiversações, a uma incontestável


paixão literária e artística – tendência na qual, sem dúvida, a obra de Simmel exceleu.
Na realidade, embora cada sociólogo possa preferir um talante sobre os
outros, em todos os autores (e nomeadamente nos clássicos) a tensão entre essas
quatro tendências está sempre presente, apesar de não serem todas vividas com a
mesma intensidade. A sociologia, na sua variante ordinária, continua a viver
(certamente muito mais do que a maioria gostaria) dos conflitos entre esses quatro
talantes. Nem todos os sociólogos, naturalmente, conseguem articular com a mesma
eficácia tais atitudes, mas em cada um deles (com suas respectivas aptidões e com
maior ou menor consciência) o estresse é visível. Às vezes a tensão é expressa em
termos negativos, e isso explica por que tantos sociólogos são amiúde científicos
aborrecidos, humanistas incultos, políticos frustrados e, com certeza, escritores sem
qualquer talento. No entanto (segredo indecifrável da disciplina), baseados naquela
acumulação de limitações, e graças a elas, há mais de um século que os sociólogos
seguem fitando um dos olhares mais perspicazes sobre o mundo moderno.
Cremos, ou gostaríamos de pensar, que Simmel concordaria face ao exposto.
A razão é simples: ele procurou, à sua maneira, fundamentar a especificidade da
sociologia, foi um excelso humanista, esteve inspirado por um inegável talante
artístico, e por acréscimo foi também alguém que (apesar de o seu percurso social e
profissional o afastar das lutas políticas) fez variadas interpretações críticas sobre a
classe operária, o Estado, os pobres ou o feminismo. É verdade, evidentemente, que
a obra de Simmel é ensaística para o melhor e o pior, mas nela também transparecem
as principais dimensões da sociologia. Isso é o essencial. Porque, bem vistas as
coisas, quando o juízo definitivo se impõe, a verdadeira linha divisória não passa
entre a sociologia científica e a sociologia ensaística, nem entre a sociologia
quantitativa e a sociologia qualitativa, mas entre a boa sociologia e a má sociologia.
E a de Simmel (parece desnecessário dizê-lo perante o juízo do tempo e da
posteridade) é sociologia da boa, um constructo excelente e brilhante.
Talvez esteja aí a raiz do problema. Raymond Aron escreveu com agudeza de
espírito que os sociólogos nunca perdoaram a Tocqueville pelo fato de escrever bem,
bem demais. Pensamos que os sociólogos seguem sem perdoar a Simmel, um
século após a sua morte, por seu brilhantismo intelectual.
Danilo Martuccelli | 29

O legado de Simmel

Por todas essas razões, é impossível acabar nossa apresentação da obra e do


autor sem questionar a estranha posteridade de Simmel. Celebrado, marginalizado,
esquecido, redescoberto repetidas vezes. Durante toda a sua vida, esse foi seu
destino: os primeiros elogios de Durkheim e Weber suscitaram, com o tempo, juízos
infinitamente mais críticos. György Lukács, que reconhece a influência fundamental
de Simmel em seus primeiros e talvez melhores trabalhos (notadamente na Teoria
do romance) é quiçá o melhor exemplo dessas críticas tardias. A centralidade de
Simmel na escola de Chicago contrasta, até a caricatura, com a radical indiferença
que Parsons teve relativamente a sua obra – e que depois expressaram a seu
respeito tantos outros sociólogos que quiseram tratar a sociologia como uma
“verdadeira ciência”. Se os sinais de sua ascendência sobre muitos sociólogos são
evidentes (de Elias a Giddens, de Coser a Touraine, de Goffman a Bauman), essa
filiação nem sempre foi explicitada posteriormente sem margem para ambiguidades,
e inclusive, às vezes, tem sido escamoteada.
No entanto, ponderando tudo, o mais duradouro de seus legados é de outra
natureza e consiste curiosamente no que muitas vezes lhe foi criticado: Simmel é
uma caixa de ferramentas inesgotável para qualquer sociólogo que se preze. Dela,
todos se serviram de uma maneira ou outra. As suas intuições iniciais, por exemplo,
caracterizam clara e explicitamente muitas das principais manifestações da
denominada sociologia do conflito. Sem esquecer que as suas intuições também são
muito valiosas para os sociólogos da pobreza, bem como as suas poderosas (e
magníficas) metáforas sobre a modernidade, o estrangeiro, o dinheiro, o blasé, a
ambivalência, a mediação, a metrópole, e muitas outras.
Simmel é por isso um clássico ambivalente, aquele que acaso tenha,
curiosamente, a maior posteridade em conjunto – paradoxo que não deveria
desagradar-lhe. Certamente (se ignorarmos algumas influências e proveniências
reconhecidas), não existe uma escola simmeliana – pelo menos da forma que
existem escolas e conjuntos de seguidores que explicitamente reconhecem inspirar-
se nas obras de Durkheim, Weber ou Marx. No entanto, isso não priva a seu legado
de especificidade única. Pode-se dizer, de fato, justamente, que Simmel evidenciou
30 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

com argúcia ímpar as causas, natureza e particularidades da modernidade;


diagnóstico que se mantém até aos nossos dias. É igualmente verdade que Simmel
propôs um conjunto de reflexões teóricas e epistemológicas sobre aquilo que é
característico do olhar sociológico, e que continuam a ser de grande atualidade.
Ninguém contesta, por fim, que Simmel, desde o próprio nascimento da sociologia,
alargou os horizontes da nova disciplina, sugerindo para ela uma pauta temática
diversificada, que ele mesmo abordou com paixão e rara maestria. Porém, Simmel
foi, sobretudo, um admirável explorador, um precursor cuja liberdade heurística está
ainda muito viva na sociologia atual.
Ninguém que leia Sociologia vai precisar converter-se às ideias do autor.
Diferentemente de muitos outros clássicos da sociologia, que frequentemente são
usados apenas como instrumento da legitimação de certas estratégias intelectuais
ou se tornaram o monopólio acadêmico daqueles que se limitam a fazer pequenos
comentários sobre grandes autores, a impressão deixada por Simmel entre seus
leitores é de outro tipo: uma caixa de ferramentas para múltiplos usos possíveis, um
convite à curiosidade, um exemplo de liberdade a serviço da descoberta e da
investigação dos fatos sociais. Nos seus estudos (dos quais o presente livro é
exemplo paradigmático), a unidade coabita com a diferença, o interesse pela
modernidade condiz com a erudição histórica, e a disposição para aproveitar ao
máximo o agora se nutre do conhecimento profundo da vida. O objetivo da sociologia
é interpretar (repetida e incessantemente) o mundo valendo-se das formas de
sociação. Ao longo do tempo, as representações da sociologia e a descrição de suas
feições características têm variado, mas a definição e as preocupações fundadoras
de Simmel nunca abandonaram o melhor da disciplina.
O legado de Simmel é, por isso também, um dever. Amanhã, para além da sua
obra, mas nos seus ombros de gigante, a boa sociologia terá (contra tudo e contra
todos) que preservar a vida dessa tradição.

Danilo Martuccelli.
Université de Paris 5 – Universidad Diego Portales.
Prefácio1

Quando um estudo se produz em consonância com os fins e métodos


reconhecidos de uma ciência já existente, ele encontra por si mesmo o lugar que lhe
corresponde, sem precisar que o autor fundamente seu propósito, bastando-lhe
partir daquele que lhe é pacificamente reconhecido. Mas se um estudo carece desse
nexo, que tornaria indiscutível a legitimidade de sua problemática, se a linha traçada
por entre os fenômenos não encontra fórmula própria em nenhum domínio científico
reconhecido, então, evidentemente, determinar seu lugar no sistema das ciências,
discutir seus métodos e seus possíveis frutos constitui uma tarefa nova e
independente, que excede os limites de um prefácio e precisa ser cumprida na
primeira parte do próprio estudo.
Encontra-se nessa situação a tentativa aqui empreendida de dar ao conceito
vacilante da sociologia um conteúdo inequívoco regido por um problema e bases
metodológicas firmes. Por consequência, rogamos ao leitor que não abandone nunca
esse problema exclusivo que desenvolve o primeiro capítulo. De outro modo, estas
páginas poderiam dar-lhe a impressão de uma acumulação de fatos e de
considerações incoerentes, sem relação entre si.

1
O Prefácio foi escrito por Georg Simmel. (NT)
SOCIOLOGIA
ESTUDOS SOBRE AS FORMAS DE SOCIAÇÃO
I. O problema da sociologia

Se for verdade que o conhecimento humano se desenvolve a partir de


necessidades práticas, porque conhecer a verdade é munir-se de um dos apetrechos
necessários à luta pela existência – tanto contra o resto da natureza como na
concorrência dos homens entre si –, é preciso reconhecer que, há muito tempo, o
dito conhecimento não está ligado a essa procedência e deixou de ser um simples
meio para os fins da ação, tornando-se um fim último. Todavia, mesmo na forma
autônoma da ciência, o conhecimento não rompe todas as relações com os
interesses da prática, ainda que agora estes interesses já não apareçam como meros
resultados da prática, mas como ações mútuas de duas esferas independentes. Pois
o conhecimento científico não se manifesta apenas na técnica, na realização de fins
alheios à vontade, mas – desde outro ponto de vista – as situações práticas, tanto
internas como externas, suscitam também a necessidade de uma compreensão
teórica. Às vezes aparecem novas direções do pensamento, cujo caráter abstrato não
fez mais que refletir os interesses de novos sentimentos e soluções dos problemas
suscitados pelas mais variadas formas da vida intelectual. Assim, as ambições
habituais da ciência sociológica não são mais que o prolongamento e os reflexos
teóricos do poder prático que as massas conseguiram durante o século XIX em
detrimento dos interesses do indivíduo. Com efeito, hodiernamente as classes
subordinadas têm dado a sensação de revestir de maior importância e despertar
maior atenção das classes dominantes. E se este fato parece basear-se no conceito
de sociedade, é porque a distância social entre umas e outras faz os subordinados
aparecerem aos dominantes não como indivíduos, mas como uma massa uniforme
sem outra conexão essencial com eles que a de formar, juntos, uma sociedade. A
partir do momento em que – como consequência das relações de poder – as classes
(cuja eficácia não consiste na importância visível dos indivíduos, mas em sua
natureza social) atraíram sobre si a atenção intelectual, o pensamento advertiu que,
em geral, toda existência individual está determinada por inumeráveis influências do
ambiente humano. E este pensamento adquiriu força retroativa. Ao lado da
sociedade presente, a sociedade passada apresentou-se como a substância que
engendra as existências individuais, da mesma forma que o mar engendra as ondas.
36 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Pareceu, pois, descoberto o substrato nutriente de cujas energias resultavam


explicáveis as formas particulares dos indivíduos. Essa direção do pensamento
encontrava sustento no relativismo moderno e na tendência a descompor em ações
recíprocas o individual e o substancial. O indivíduo era só o lugar em que se
amarravam fios sociais e a personalidade não era mais do que a forma particular em
que isto se tornava realidade no tempo e no espaço. Adquirida a consciência de que
toda atividade humana transcorre dentro da sociedade, sem que ninguém possa
furtar-se a seu influxo, tudo o que não fosse ciência da natureza exterior tinha que
ser ciência da sociedade. Assim a sociedade surgiu como o domínio universal em
que se encontravam a ética e a história da cultura, a economia e a ciência da religião,
a estética e a demografia, a política e a etnologia, já que os objetos dessas ciências
têm a sociedade como quadro de referência. A ciência do homem devia ser a ciência
da sociedade.
A essa concepção da sociologia como ciência de tudo o que é humano,
contribuiu seu caráter de ciência nova. Por ser nova se atribuíram a ela todos os
problemas imagináveis que não se sabia bem a que disciplina eles incumbiam.
Ocorreu o mesmo com os territórios recém-descobertos quando apareceram como
o eldorado para todos os apátridas e desarraigados, pois foi inevitável que no
princípio suas fronteiras não pudessem ser fixadas nem defendidas, autorizando a
todo o mundo a ali se estabelecer. Todavia, se olhamos mais de perto, o fato de
misturar problemas antigos não significa descobrir um novo território do saber. O
que ocorreu foi, simplesmente, que se misturaram num caldeirão todas as ciências
históricas, psicológicas, normativas, e se colocou uma etiqueta que dizia:
“sociologia” no recipiente. Em realidade, ganhara-se não mais do que um nome novo,
mas o designado por este nome ou já estava determinado em seu conteúdo e
relações ou se produziu dentro dos domínios conhecidos da pesquisa. Se o fato de
que o pensamento e a ação humanos se realizem na sociedade e sejam
determinados por ela nos autorizasse a afirmar que isso converte a sociologia numa
ciência que os abrange por inteiro, por que não considerar também a química, a
botânica e a astronomia como capítulos da psicologia, já que seus objetos, em última
análise, só adquirem realidade na consciência humana e estão submetidos a suas
condições?
Georg Simmel | 37

O erro se baseia em um fato mal interpretado, sem dúvida, mas muito


importante: o reconhecimento de que o homem está determinado em todo seu ser e
em todas suas manifestações pela circunstância de viver em ação recíproca com
outros homens tem de trazer certamente uma nova maneira de considerar o
problema nas chamadas ciências humanas. Hoje já não é possível explicar os fatos
históricos (no sentido amplo da palavra), os conteúdos da cultura, as formas da
ciência ou as normas da moralidade por meio do indivíduo, de seu entendimento e
de seus interesses e, se essa explicação não fosse suficiente, recorrer logo a causas
metafísicas ou mágicas. A propósito da linguagem, por exemplo, já não nos
encontramos na disjuntiva de acreditar que tem sido inventada por indivíduos geniais
ou que foi dada por Deus aos homens. Na religião já não cabe colocar o dilema entre
a invenção de astutos sacerdotes e a súbita revelação, etc. Hoje cremos
compreender os fenômenos históricos pelas ações recíprocas e conjuntas dos
indivíduos, pela adição e sublimação de incontáveis contribuições individuais, pela
encarnação das energias sociais em entidades que estão além do indivíduo e que se
desenvolvem por cima dele. Consequentemente, em sua relação com as ciências
hoje existentes, a sociologia é um novo método, um auxiliar da pesquisa para chegar
por novas vias aos fenômenos que se dão naqueles campos do saber. Mas esse
papel que desempenha a sociologia não é essencialmente distinto do que
desempenhou a indução quando no século XVII penetrou como um novo princípio de
pesquisa em todas as ciências possíveis, adaptou-se a elas e ajudou-as a encontrar
novas soluções para os problemas já existentes. Mas assim como a indução não
constitui uma ciência particular, e ainda menos universal, a sociologia também não
é uma ciência pelas mesmas razões. Mesmo se ela repousa na ideia de que o homem
deve ser compreendido como um ser social, e que a sociedade é a base de todo
acontecimento histórico, a sociologia não contém nenhum objeto que já não tenha
sido tratado pelas ciências existentes, representando somente uma via nova para
todas elas, um método científico que, justamente por ser aplicável à totalidade dos
problemas, não constitui uma ciência por si.
Mas, qual pode então ser esse novo objeto próprio cujo estudo faça da
sociologia uma ciência autônoma e claramente delimitada? É evidente que, para que
se legitime como uma nova ciência, não faz falta descobrir um objeto cuja existência
38 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seja até agora desconhecida. Tudo o que designamos em geral como objeto é um
conjunto complexo de determinações e relações, cada uma das quais, mesmo
aparecendo numa pluralidade de objetos, pode converter-se, por sua vez, em objeto
de uma nova ciência. Toda ciência repousa sobre uma abstração, porque considera,
em cada um de seus aspectos e desde o ponto de vista de um conceito cada vez
diferente, a totalidade de uma coisa que nenhuma ciência nos permite abranger
como uma unidade. Diante da totalidade da coisa e das coisas, toda ciência nasce
de uma divisão do trabalho que descompõe esta totalidade em qualidades e funções
particulares, após encontrar um conceito que permite isolar estas últimas e
comprovar metodicamente sua presença nas coisas concretas. Assim, por exemplo,
os fatos linguísticos que ora são compreendidos como o material da linguística
comparada, estavam presentes desde há muito tempo em fenômenos submetidos a
estudo cientifico, mas a ciência especial da linguística comparada surgiu com a
descoberta do conceito graças ao qual esses fatos, antes dispersos em diversos
conjuntos linguísticos, passaram a constituir uma unidade e aparecer regulados por
leis particulares.
Da mesma maneira, a sociologia, enquanto ciência particular poderia achar
também seu objeto particular, dispondo segundo uma nova abordagem, certos fatos
perfeitamente conhecidos como tais, só que sem ter sofrido até então o efeito desse
conceito que permitiu compreender que o aspecto desses fatos correspondente a tal
abordagem é comum a todas as abordagens e constitui uma unidade cientifico
metodológica. Em face dos fatos extremamente complexos da sociedade histórica,
impossíveis de serem abrangidos sob um único ponto de vista científico, os
conceitos de política, economia, cultura, etc. produzem séries epistemológicas deste
tipo. Isso se dá de dois modos: por um lado, vinculando certas partes desses fatos e
apartando (ou utilizando apenas de uma forma acidental) os outros e, por outro lado,
dando a conhecer agrupamentos de elementos (ora individuais) que encerram uma
estrutura intemporal necessária. Se quisermos que a sociologia exista como ciência
particular, será necessário que o conceito de sociedade como tal submeta os dados
socio-históricos a uma abstração e reorganização novas, de sorte que (sem
contentar-se em reunir exteriormente esses fenômenos) algumas de suas
determinações, que até então só tinham sido consideradas em muitas outras
Georg Simmel | 39

combinações, sejam reconhecidas como conexas e consequentemente como


objetos de uma única ciência.
Ora, esse ponto de vista é o resultado de uma análise do conceito de
sociedade, que se caracteriza pela distinção entre forma e conteúdo. Tendo presente
que em realidade não se trata mais do que uma metáfora para designar
aproximadamente a oposição dos elementos que se desejam separar, essa oposição
terá que entender-se com o seu sentido peculiar, sem se deixar levar pela
significação que tais designações provisórias têm em relação a outros aspectos.
Para chegar a esse objetivo partimos da mais ampla concepção imaginável da
sociedade procurando evitar quando possível toda discussão sobre suas definições.
A sociedade existe ali onde vários indivíduos entram em ação recíproca. Esta ação
recíproca nasce sempre de certas pulsões ou para determinados fins. Pulsões
eróticas, religiosas ou simplesmente sociais, fins de defesa ou de ataque, de jogo ou
aquisição de bens, de ajuda ou de ensino, e infinitos outros, todos eles levam o
homem a entrar em relações de convivência, em ação conjunta, em correlação de
circunstâncias com outros homens, quer dizer, a exercer influências sobre o próximo
e sofrer seus efeitos. A existência dessas ações recíprocas significa que os
sustentáculos individuais daquelas pulsões e finalidades que os moveram a unir-se
se têm convertido em uma unidade, quer dizer, em uma sociedade. Pois que unidade
em sentido empírico não é mais do que ação recíproca de elementos: um corpo
orgânico é uma unidade porque seus órgãos têm entre eles relações de troca de suas
energias muito mais íntimas que com qualquer outro ser exterior. Um Estado é um
porque há entre seus cidadãos a mesma relação de influências recíprocas. Mais
ainda: não poderíamos dizer que o universo é um se cada uma de suas partes não
influenciasse de algum modo todas as outras, se em algum ponto se interrompesse
a reciprocidade das influências.
Aquela unidade ou sociação pode ter diversos graus segundo a classe e a
intimidade da ação recíproca: da reunião efêmera com objetivo de um passeio, até a
família, de todas as relações “provisórias” até a constituição de um Estado, desde a
convivência fugidia dos clientes de um hotel até a profunda solidariedade de uma
guilda medieval. Por sua parte, identificamos aqui o conteúdo ou matéria da sociação
com quanto existe nos indivíduos (portadores concretos e imediatos de toda
40 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

realidade histórica) e seja capaz de originar a ação sobre outros ou a recepção de


suas influências – se chame pulsão, interesse, fim, inclinação, estado ou movimento
psíquico. Em si mesmas essas matérias com que se preenche a vida, estas
motivações, não são ainda algo social. Nem a fome, nem o amor, nem o trabalho,
nem a religiosidade, nem a técnica, nem as funções e obras da inteligência
constituem sociação quando essas matérias se dão ainda imediatamente e em
estado puro. A sociação só se apresenta quando a coexistência isolada dos
indivíduos adota formas determinadas de cooperação e colaboração que integram o
conceito geral de ação recíproca. A sociação é então a forma, realizada de diversas
maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade fundada sobre a base de
determinados interesses – materiais ou ideais, momentâneos ou duráveis,
conscientes ou inconscientes, que impulsionam causalmente ou induzem
teleologicamente – e dentro da qual esses interesses se realizam.
Em todo fenômeno social o conteúdo e a forma sociais constituem uma
realidade unitária. A forma social não pode alcançar uma existência se é desligada
de todo conteúdo, do mesmo modo que a forma espacial não pode subsistir sem
uma matéria de que seja forma. Tais são justamente os elementos (inseparáveis na
realidade) de todo ser e acontecer sociais: um interesse, um fim, um motivo e uma
forma ou maneira de ação recíproca entre os indivíduos pela qual ou em cuja figura
aquele conteúdo alcança realidade social.
Ora, são as diversas classes de ação recíproca às quais nos temos referido as
que fazem da “sociedade”, em quaisquer dos sentidos da palavra, justamente uma
sociedade. Um grupo qualquer de seres humanos não se torna uma sociedade
porque se possa isolar em cada um deles um conteúdo vital objetivamente
determinado ou que o leve a agir individualmente. Será preciso que a força viva
desses conteúdos tome a forma de influência recíproca, em que um exerça um efeito
seguro sobre os outros – imediatamente ou por meio de um terceiro –, para que a
simples coexistência espacial de homens ou ainda sua sucessão cronológica se
converta em uma sociedade. Se quisermos então que haja uma ciência cujo objeto
seja a sociedade e só ela, unicamente pode se propor como fim de seu estudo estas
ações recíprocas, estas maneiras e formas de sociação. Pois tudo o demais que pode
ainda achar-se dentro da ”sociedade”, tudo o que se realiza por ela e é emoldurado
Georg Simmel | 41

por ela, não é a sociedade em si, mas simplesmente um conteúdo que se constitui
ou que é constituído por essa forma de coexistência, e que só produz com ela essa
estrutura concreta que habitualmente chamamos “sociedade” no sentido mais
amplo e usual. A abstração científica separa estes dois elementos indissoluvelmente
unidos na realidade: as formas da ação recíproca ou da sociação só podem ser
reunidas e submetidas a um ponto de vista científico unitário se o pensamento as
separa dos conteúdos, os que somente se tornam conteúdos sociais graças a elas.
Eis, segundo nosso parecer, o único fundamento que torna plenamente possível uma
ciência especial da sociedade como tal. Dessa forma e graças a ela os fatos que
designamos com o nome de realidade sócio-histórica seriam verdadeiramente
projetados sobre a tela do puramente social.
Todavia, ainda que semelhantes abstrações – as únicas que permitem
produzir ciência a partir da complexidade e até da unidade do real – tenham surgido
das necessidades próprias do conhecimento, é preciso, porém, que elas tenham
alguma legitimação proveniente da própria estrutura do objeto. Pois só a existência
de alguma relação funcional com os fatos pode evitar o perigo dos questionamentos
estéreis e o caráter aleatório da formação dos conceitos científicos. Mesmo se um
naturalismo ingênuo se engana considerando que o dado na realidade contém os
princípios de ordenação, analíticos e sintéticos, graças aos quais essa realidade
dada pode ser conteúdo de ciência, não é menos certo que as determinações que
pertencem verdadeiramente ao dado são mais ou menos flexíveis e se acomodam
mais ou menos àquelas regras: assim, por exemplo, ainda que um retrato transforme
fundamentalmente a figura natural humana, há, porém, figuras que mais bem se
acomodam que outras a esta transformação radical. Observando este critério
podemos, consequentemente, definir a maior ou menor legitimidade dos problemas
e métodos científicos. Assim, o direito de analisar os fenômenos histórico-
sociológicos em função de suas formas e de seus conteúdos, e de fazer a síntese
dos primeiros, repousará sobre duas condições que só os fatos permitirão verificar.
Por uma parte, é preciso que uma mesma forma de sociação se apresente com
conteúdos totalmente distintos para fins completamente diversos, e por outra, é
necessário que os mesmos interesses apareçam realizados em diversas formas de
sociação – bem como as mesmas formas geométricas se encontram nas mais
42 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

diversas matérias e que a mesma matéria se apresenta nas formas espaciais mais
diversas (o que também sucede com as formas lógicas a respeito dos conteúdos
materiais do conhecimento).
Ora, ambas as coisas são de fato inegáveis. Encontramos as mesmas relações
formais de uns indivíduos com outros em grupos sociais que por seus fins e por toda
a sua significação são absolutamente diversos. Subordinação, concorrência,
imitação, divisão do trabalho, parcialidade, representação, solidariedade interna
acompanhada de fechamento a tudo o que vem de fora, e infinitas formas
semelhantes se encontram tanto numa sociedade política como em uma
comunidade religiosa, em um bando de conspiradores como em uma cooperativa
econômica, em uma escola de arte e em uma família. Por variados que sejam os
interesses que levam a essas sociações, as formas em que se apresentam podem
ser as mesmas. Por outra parte, um mesmo interesse pode mostrar-se em sociações
de formas diversas. O interesse econômico, por exemplo, se realiza tanto pela
concorrência como pela organização planificada dos produtores, às vezes fechando-
se a outros grupos econômicos, à vezes associando-se a eles. Os conteúdos da vida
religiosa permanecem idênticos do ponto de vista da doutrina, e adotam algumas
vezes uma forma de comunidade liberal, e outras, uma forma centralizada. Os
interesses baseados nas relações sexuais se satisfazem na pluralidade quase
incalculável das formas familiares. O interesse pedagógico conduz a uma relação
liberal entre o mestre e os alunos ou a uma forma despótica, pois produz ações
recíprocas individualistas entre o mestre e os discípulos, e também estabelece
relações mais coletivas entre eles. Por consequência, a forma com que se realizam
os mais distintos conteúdos, pode ser única e, da mesma maneira, permanecer única
a matéria assim como a convivência dos indivíduos em que a matéria se apresenta.
Em compensação, essa matéria pode ser oferecida em uma grande diversidade de
formas. Daí resulta que, na realidade a matéria e a forma dos fatos constituem uma
inseparável unidade da vida social, e que podemos extrair dela essa legitimação do
problema sociológico que reclama a determinação, ordenação sistemática,
fundamentação psicológica e evolução histórica das formas puras de sociação.
Este problema é totalmente oposto ao procedimento pelo qual se têm criado
as diversas ciências sociais existentes. Com efeito, a divisão do trabalho entre elas
Georg Simmel | 43

está absolutamente determinada pela diversidade dos conteúdos. A economia


política e o sistema das organizações eclesiásticas, a história do ensino e a dos
costumes, a política e as teorias da vida sexual, etc. distribuem-se o campo dos
fenômenos sociais entre si e de tal modo, que uma sociologia que pretendesse
abrangê-los em sua totalidade constitutiva de forma e conteúdo não seria mais que
uma soma de aquelas ciências. Enquanto as linhas que traçamos através da
realidade histórica, para distribuí-la em campos de pesquisa distintos, unirem
apenas aqueles pontos que apresentem os mesmos conteúdos de interesses, não
haverá espaço nessa realidade para uma sociologia independente. O que se precisa
é uma linha que, cruzando todas as outras anteriormente traçadas, isole o fato puro
da sociação (que se apresenta com diversas formas em relação aos mais diversos
conteúdos) e forme com ele um campo especial. Desse modo a sociologia será uma
ciência independente, no mesmo sentido – salvando as claras diferenças de
métodos e resultados – em que o tem conseguido a epistemologia, abstraindo da
pluralidade dos conhecimentos singulares as categorias ou funções do
conhecimento como tal. A sociologia pertence àquele tipo de ciências cuja
especialização não deriva do fato de que seu objeto esteja compreendido junto a
outros dentro de um conceito mais amplo (como a filologia clássica e germânica ou
como a óptica e a acústica), mas de considerar desde um ponto de vista especial o
campo total dos objetos. O que a diferencia das demais ciências histórico-sociais
não é seu objeto, mas seu modo de olhá-lo, a abstração particular que ela realiza e
que a distingue das outras ciências histórico-sociais.
O conceito de sociedade recobre duas significações que devem ser mantidas
estritamente separadas para um tratamento científico ser possível. Por um lado, a
sociedade é o complexo de indivíduos que criam relações de interdependência ou
estabelecem contatos e interações sociais de reciprocidade. É o material humano
socialmente conformado que constitui toda a realidade histórica. Mas por outro lado
a “sociedade” é também a soma daquelas formas de relacionamento por meio das
quais a sociedade em seu primeiro sentido surge dos indivíduos. Analogamente,
atribui-se o nome de “esfera”, de um lado, a uma matéria conformada de certo modo,
mas também, em sentido matemático, a mera figura ou forma da qual a esfera no
primeiro sentido resulta da simples matéria informe, Quando se trata de ciências
44 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sociais naquele primeiro sentido, seu objeto é tudo o que ocorre na e com a
sociedade. A ciência social no segundo sentido tem por objeto as forças, relações e
formas por meio das quais os homens (enquanto atores sociais) se relacionam,
constituindo a “sociedade” senso stritissimo. Coisa que não aparece desvirtuada
pelo fato de que o conteúdo, as modificações especiais de seu fim e o interesse
material da sociação decidam amiúde ou sempre sobre sua conformação. Seria
totalmente errôneo objetar que todas estas formas (hierarquias e corporações,
concorrências e formas matrimoniais, amizades e usos sociais, governo de um ou de
muitos) não são mais que acontecimentos produzidos em sociedades já existentes,
porque se não existisse de antemão uma sociedade faltaria o pressuposto e a
ocasião para que surgissem as formas. Tal crença provém do fato de que, em todas
as sociedades que conhecemos, há grande número de formas de relações de
interdependência atuando, isto é, de sociação. Embora só ficasse uma delas,
teríamos ainda “sociedade”, de maneira que todas elas podem parecer
acrescentadas ou nascidas dentro de uma sociedade já acabada. Mas se
imaginássemos desaparecidas todas as formas singulares de sociação, já não
restaria nenhuma sociedade. Só quando se criam estas relações de
interdependência, por certos motivos e interesses, surge a sociedade. Por via de
consequência, pois, e ainda que a história e as leis das organizações totais assim
surgidas sejam coisa da ciência social em sentido amplo, tendo em conta que esta
ciência se tem já cindido nas ciências sociais particulares, podemos afirmar que
cabe uma sociologia em sentido estrito, com um problema especial: o problema das
formas abstratas, formas que, mais que determinar, constituem a própria sociação.
Dessa maneira, a sociedade, no sentido que interessa à sociologia, ou sob o
conceito geral abstrato que abarca todas estas formas, é o gênero do qual elas são
espécies, ou a soma dessas formas ativas que age em cada caso. Outra
consequência desse conceito é que um número dado de indivíduos pode ser
sociedade em maior ou menor grau. A cada aumento de estruturas sintéticas, a cada
criação de partidos, a cada união para uma obra em comum, a cada distribuição
precisa do mando e da obediência, a cada comida em comum, cada vez em que a
gente se atavia para os outros, o mesmo grupo se torna mais “sociedade” do que era
antes. Não há uma sociedade pura que seria a condição para o surgimento dos
Georg Simmel | 45

diferentes fenômenos de relacionamento, já que não há ação recíproca pura, senão


modos particulares de ação recíproca cuja aparição determina a existência da
sociedade, modos de ação que não são nem sua causa nem sua consequência, mas
a própria sociedade. Só a riqueza e diversidade infinitas com que estas formas de
ação recíproca agem a cada momento conferem ao conceito geral de sociedade uma
aparente realidade histórica autônoma. Acaso essa hipóstase de uma simples
abstração fosse a causa da curiosa indeterminação e insegurança associadas ao
conceito geral de sociedade imediatamente real nos estudos de sociologia geral
feitos até agora, da mesma forma que o conceito de vida não progrediu realmente
enquanto a ciência se limitou a considerá-lo como um fenômeno unitário. Com efeito,
a ciência da vida só adquiriu uma base firme diante de estudos que levaram em
consideração que a soma e a trama dos diferentes processos internos dos
organismos constituíam a vida, quando se reconheceu que a vida consistia nesses
processos particulares e nas relações entre os órgãos e as células.
Assim podemos compreender o que na sociedade é realmente “sociedade”, da
mesma maneira que a geometria determina o que é verdadeiramente a especialidade
das coisas espaciais. A sociologia, como teoria do ser social na humanidade (que
pode também ser um objeto de ciência em outros sentidos inumeráveis) tem então
com outras ciências particulares a mesma relação que a geometria tem com as
ciências físicas e químicas da matéria. A geometria considera a forma graças à qual
a matéria se torna corpo empírico, forma que em si mesma só existe na abstração. É
o mesmo que sucede nas formas de sociação. Como a geometria, a sociologia deixa
para as outras ciências o estudo dos conteúdos que se manifestam nas suas formas,
ou aquele das manifestações totais.
Parece óbvio dizer que essa analogia com a geometria limita a nossa tentativa
de esclarecer o problema radical da sociologia que aqui temos colocado. A geometria
tem sobretudo a vantagem de dispor em seu domínio de modelos extremamente
simples, aos quais se podem reduzir as figuras mais complexas: assim todo o
conjunto das formas possíveis pode ser construído a partir de um número
relativamente restrito de determinações fundamentais. Contrariamente, não se pode
esperar reduzir as formas da sociação, mesmo de modo aproximativo, a elementos
simples em um tempo previsível. Disso resulta que se queremos definir as formas
46 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sociológicas com alguma precisão, só poderemos validar um número relativamente


reduzido de fenômenos. Assim, por exemplo, quando se afirma que as relações de
dominação e de subordinação são uma forma que se encontra em quase toda
sociação humana, este conhecimento geral não nos diz nada de mais. É preciso ao
contrário deter-se nos modos particulares da dominação e da subordinação e nas
formas específicas de sua realização, pois que, naturalmente, quanto mais
determinadas sejam, mais se aplicam a um número menor de fenômenos.
Hoje toda ciência é frequentemente colocada diante de uma alternativa: ou ela
se encaminha à descoberta de leis intemporais ou bem pretende explicar e
compreender processos singulares, históricos e reais. Disjuntiva que, para além, não
exclui inumeráveis fenômenos de mediação dentro do trabalho científico real. Pois
bem, o conceito do problema que temos estabelecido não requer de modo algum a
prévia resolução da dita alternativa. Este objeto abstraído da realidade pode, por uma
parte, ser considerado em função de leis puramente situadas na estrutura objetiva
dos elementos, para os quais é indiferente que elas se realizem no tempo e no
espaço: trata-se apenas de leis, que podem vigorar nas realidades históricas uma ou
mil vezes. Mas, por outro lado, essas formas de sociação também podem ser
consideradas em função de sua aparição em lugar e momento determinados, em
função de seu desenvolvimento histórico dentro de grupos específicos. Ouvimos
falar da concorrência, por exemplo, nos mais diversos domínios: há incontáveis
casos na política, na economia, na história das religiões e na da arte. Trata-se então,
em todos estes casos, de determinar o que significa a concorrência como forma pura
da conduta humana, em que circunstâncias se apresenta, que modificações
experimenta pela singularidade de seu objeto, por quais características formais e
materiais de uma sociedade resulta potencializada ou diminuída, como a
concorrência dos indivíduos se distingue da concorrência entre os grupos; em
síntese, o que é a concorrência como forma de relação dos homens entre si, forma
que pode aceitar toda sorte de conteúdos, mas que como se manifesta sempre da
mesma maneira a pesar da grande diversidade desses conteúdos, prova que
pertence a um domínio regulado por leis próprias e susceptíveis de abstração. Nos
fenômenos reais complexos, o uniforme fica destacado por uma espécie de corte
lateral, enquanto o heterogêneo, quer dizer, os interesses que constituem o conteúdo,
Georg Simmel | 47

fica paralisado.
De igual maneira, deve ser o procedimento com todas as grandes relações e
ações recíprocas que formam a sociedade: com os partidos, com a imitação, com a
formação de classes, círculos e divisões secundárias, com a maneira em que certas
ações sociais recíprocas se encarnam em entidades particulares de natureza
objetiva, ideal ou pessoal, com a aparição e o papel que desempenham as
hierarquias, com a “representação” de comunidades por indivíduos, com a
importância de um inimigo comum para a coesão interna do grupo. Outros fatos se
acrescentam aos problemas maiores desse tipo: fatos, aliás, que são às vezes mais
específicos ou mais complexos, e contêm a forma determinante dos grupos, dentre
os quais citaremos como exemplo dos primeiros a significação do “terceiro
imparcial”, a do “pobre” como membro orgânico da sociedade, a da determinação
numérica dos elementos do grupo, a do primus inter pares e a do tertius gaudens.
Poderíamos ainda citar processos mais complexos, como por exemplo, o
cruzamento de múltiplos círculos em pessoas individuais, a função especial do
“segredo” na constituição de círculos, a modificação dos caracteres dos grupos
segundo a abrangência de indivíduos que se encontrem na mesma localidade ou de
elementos separados, e outros inumeráveis.
Como indicamos, prescindimos aqui da questão sobre a existência de uma
absoluta igualdade de forma com diversidade de conteúdo. A igualdade aproximada
em circunstâncias materiais muito distintas – assim como o contrário – que as
formas oferecem é suficiente para considerá-la em princípio possível. O fato de que
essa igualdade não se realize por completo demonstra justamente a diferença entre
o acontecer histórico-espiritual, com suas flutuações e complicações irredutíveis, à
plena racionalidade, e a capacidade da geometria para extrair com plena pureza de
sua realização material as formas submetidas a seu conceito. Tenha-se também em
conta que tal igualdade na forma da ação recíproca, qualquer que seja a diversidade
do material humano e real, e vice-versa, não é, por enquanto, mais do que um meio
auxiliar para realizar e justificar a distinção científica entre forma e conteúdo nos
diversos fenômenos complexos. Metodologicamente, essa distinção seria
necessária mesmo se os conjuntos reais dos fatos tornassem impossível o
procedimento indutivo que consiste em separar o igual do diverso, da mesma
48 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

maneira como a abstração geométrica da forma espacial de um corpo seria legítima


ainda que esse corpo só existisse uma vez no mundo. Há que reconhecer, porém, que
isso representa uma dificuldade de procedimento. Assim, por exemplo, em fins da
Idade Média certos mestres de corporação se viram levados, pela extensão das
relações comerciais, a adquirir materiais, a empregar oficiais, e utilizar novos meios
para atrair à clientela. Esses meios já não eram compatíveis com os antigos
princípios corporativos, segundo os quais cada mestre deveria ter a mesma
remuneração (congruente com seu sustento) que os outros, razão pela qual trataram
de sair do estreito quadro da antiga união. Desde o ponto de vista sociológico puro,
desde o ponto de vista da forma, que faz abstração de todo conteúdo especial, isso
significa que o alargamento do círculo ao qual está vinculado o indivíduo produz uma
afirmação mais forte das individualidades, uma maior liberdade e diferenciação dos
indivíduos. Mas, ao nosso parecer, não existe nenhum método seguro para extrair
daquele factum complexo este sentido sociológico. Que forma puramente
sociológica, que relação mútua entre os indivíduos (abstraída de seus interesses e
instintos e das condições puramente objetivas) o acontecimento histórico contém?
O processo histórico pode ser interpretado em diversos sentidos: nada mais
podemos fazer do que apresentar em sua totalidade material os fatos históricos que
testemunham a realidade das formas sociológicas. Isso porque carecemos de um
meio que permita, em todas as circunstâncias, discernir claramente o elemento
material do sociológico-formal. O mesmo ocorre com a demonstração de um
teorema geométrico em face da inevitável contingência e imperfeição de uma figura
desenhada. Mas o matemático pode contar com o fato de que o conceito da figura
geométrica ideal é conhecido e considerado como o único sentido essencial dos
traços de tinta ou giz. Em compensação, em nosso domínio não pode distinguir-se
entre a pura sociação e o total fenômeno real na sua complexidade.
É preciso assumirmos (apesar das possíveis objeções) que o processo
intuitivo é um termo perigoso – por mais longe que estejamos de toda intuição
especulativa e metafísica. Nossa referência alude a uma particular disposição do
olhar, graças à qual se realiza a distinção entre forma e conteúdo. Só podemos nos
acostumar a essa intuição, entretanto, apresentando exemplos até que ela caiba em
métodos conceitualmente exprimíveis e seguros. A essa dificuldade se acrescenta,
Georg Simmel | 49

não só a carência de uma base indubitável para lidar com o conceito fundamental de
sociologia, mas também os muitos aspectos dos acontecimentos em que a
subordinação a este conceito ou ao de conteúdo segue sendo arbitrária, mesmo em
caso de operar com ele de modo eficaz. Em que medida, por exemplo, o fenômeno da
“pobreza” é de natureza sociológica, isto é, um resultado das relações formais dentro
de um grupo, condicionado pelas correntes e mutações gerais que necessariamente
se produzem na coexistência dos homens, ou bem, simplesmente, uma
determinação material de certas existências particulares, exclusivamente desde o
ponto de vista do interesse econômico? Em geral, os fenômenos históricos podem
ser considerados a partir de três pontos de vista fundamentais: 1) em função das
existências individuais, que são os sujeitos reais das circunstâncias; 2)
considerando as formas de ação recíproca, que ainda que só se realizem entre
existências individuais, não são estudadas desde o ponto de vista das próprias ações
recíprocas, mas dos pontos de vista de sua coexistência, sua colaboração e ajuda
mútua; e 3) do ponto de vista dos conteúdos exprimíveis conceitualmente, das
situações ou dos acontecimentos nos quais se tem em conta, agora, não seus
sujeitos ou as relações que estes mantêm entre si, mas seu sentido puramente
objetivo expressado na economia e na técnica, na arte e na ciência, nas formas
jurídicas e nos produtos da vida sentimental.
Esses três pontos de vista se misturam continuamente. A necessidade
metodológica de distingui-los esbarra sempre na dificuldade de ordenar cada um
deles em uma série independente dos outros, e no anseio de obter uma imagem única
da realidade que compreenda todos seus aspectos. Além do mais, não se pode
determinar para cada um dos casos a profundidade com que eles se interpenetram,
de sorte que, por grande que seja a clareza e o rigor metodológicos, não se pode
evitar esta ambiguidade. O estudo dos problemas particulares parecerá pertencer
tanto a uma como a outra categoria e, ainda dentro de uma delas não se pode mantê-
la com segurança fora do processo da outra. Confiamos, todavia, que a metodologia
sociológica que aqui oferecemos resulte mais segura e ainda mais clara nas
exposições dos problemas particulares que nesta fundamentação abstrata. Com
efeito, no mundo das ideias não é estranho – diríamos que até é corrente tratando-
se de problemas gerais e profundos – que isso que uma metáfora inevitável nos
50 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

obriga a chamar de alicerces não seja tão sólido como o edifício construído sobre
eles. A prática científica, especialmente nas áreas até agora inexploradas, também
não poderá prescindir de certa dose de processo intuitivo, cujos motivos e normas
só depois virão a ser perfeitamente conscientes e conceitualmente elaborados. E
ainda sendo certo que o trabalho científico não pode em nenhuma esfera fiar-se
plenamente de procedimentos pouco claros até este momento, instintivos, que só
agem imediatamente no estudo de casos particulares, seria condená-lo à
esterilidade exigir-lhe uma metodologia plenamente acabada desde o primeiro
passo, quando aborda problemas novos1.
Dentro do campo dos problemas propostos, que distinguem, por uma parte, as
formas de ação recíproca produto das interações entre os indivíduos (concebidos
como atores sociais), e por outra, o fenômeno total da sociedade, certas partes dos
estudos aqui propostos se situam já quantitativamente fora dos problemas em geral
reconhecidos como sociológicos. Com efeito, a partir do momento em que nos
perguntamos sobre as influências recíprocas dos indivíduos cuja adição produz a
coesão constitutiva da sociedade, logo aparece uma série e até um universo dessas
formas relacionais que, no momento, não têm sido integradas à ciência social ou que,
quando integradas, permanecem sem que se perceba seu significado fundamental e
vital. Em geral, a sociologia se tem limitado a estudar aqueles fenômenos sociais nos
quais as forças de ação recíproca dos indivíduos têm cristalizado já em unidades,

1
Se tivermos em conta a infinita complexidade da vida social, e considerarmos que os conceitos e
métodos com os quais ela deve ser dominada intelectualmente acabam de sair de sua rudeza
primitiva, seria louca presunção pretender propor neste momento da pesquisa questões
suficientemente claras para conseguir compreender acabadamente os problemas e obter respostas
exatas. Mais digno nos parece confessar isto de antemão, pois desta forma, quando reconhecemos
sem reservas o problema, enquanto declarando perfeita esta ciência, tornaríamos questionável
inclusive o sentido de tais tentativas. Nesta ordem de ideias, os capítulos deste livro só devem ser
considerados- como exemplos no que tange ao método e, quanto ao conteúdo, como fragmentos do
que entendemos por ciência da sociedade. Em ambos os sentidos parecia apropriado escolher os
temas mais heterogêneos, misturando o geral e o especial. Se o que propomos aqui não forma um
conjunto sistematicamente coerente, se suas diferentes partes estão muito distantes umas das
outras, tanto mais amplo aparecerá o círculo dentro do qual uma sociologia mais acabada unirá os
pontos que já hoje podem fixar-se isoladamente. Se sublinharmos, nós mesmos, o caráter
fragmentário e incompleto deste livro, não quer dizer que pretendamos nos defender com fácil
precaução de objeções desse gênero. Pois, se a arbitrariedade indubitável na escolha dos problemas
particulares e dos exemplos parecesse uma falta, isso provaria apenas que não conseguimos fazer
compreender com suficiente clareza nossa ideia fundamental. Só se trata aqui do começo e guia para
um caminho infinitamente longo, pelo que pretender a plenitude sistemática seria, enganar-nos a nós
mesmos. Neste ponto, para o indivíduo, a plenitude completa só é possível num sentido subjetivo,
quer dizer comunicando quanto se tem conseguido ver. (NS)
Georg Simmel | 51

quando menos ideais. Estados e sindicatos, clerezia e formas de família, dispositivos


econômicos e organizações militares, corporações e municípios, formação de
classes e divisão industrial do trabalho, estes e outros grandes órgãos e sistemas
análogos dão a impressão de constituir exclusivamente a sociedade e preencher o
campo de sua ciência. Parece evidente que quanto mais importante e dominante seja
um domínio social de interesse ou uma orientação da ação, tanto mais facilmente
terá lugar a transformação da vida imediata e interindividual em organizações
objetivas, em uma existência abstrata além dos processos individuais e primários.
É preciso, porém, acrescentar um complemento importante em dois sentidos.
Além dos organismos visíveis que se impõem por sua extensão e importância
externa, existe um número imenso de pequenas formas de relação e de ação
recíproca humanas, que nos casos particulares podem parecer negligenciáveis, mas
que se oferecem em quantidade incalculável e são as que produzem a sociedade tal
como a conhecemos, insinuando-se entre as formações sociais mais amplas,
oficiais, por assim dizer. Limitar-se aos fenômenos sociais aparentes e de maiores
dimensões seria imitar a antiga medicina interna, que se dedicava exclusivamente a
certos órgãos, grandes e bem determinados: coração, fígado, pulmão, estômago, etc.,
deixando de lado os incontáveis tecidos que careciam de nome popular ou que eram
desconhecidos, mas sem os quais os outros órgãos mais visíveis não poderiam
jamais constituir um corpo vivo. Seria absolutamente impossível compor a vida real
da sociedade, tal como se apresenta na experiência, a partir das entidades que temos
mencionado e que constituem os objetos tradicionais da ciência social. Sem a
intercalação de incontáveis sínteses pouco extensas, às quais se consagrarão a
maior parte dos presentes estudos, ela ficaria cindida numa pluralidade de sistemas
descontínuos. A razão da dificuldade para estabelecer cientificamente essas formas
sociais de escassa visibilidade é também o que as torna infinitamente importantes
para uma compreensão mais acabada da sociedade: em geral elas não estão
assentadas ainda em estruturas sólidas, supraindividuais, manifestando-se nelas a
sociedade em status nascens – naturalmente não em sua origem primeira,
impossível de estudar historicamente, mas naquele que trazem consigo cada dia e
cada hora. A sociação não cessa constantemente de ligar, de desligar e de religar
seus laços entre os homens, num contínuo ir e vir, que vincula aos indivíduos, ainda
52 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que não chegue a formar organizações propriamente ditas. É um pouco a mesma


coisa que os processos microscópicos moleculares dentro do corpo humano, os
quais, não por serem ínfimos deixam de ser o verdadeiro processo, que constitui
essas unidades e sistemas macroscópicos sólidos por encadeamentos e hipóstases.
Os homens se olham; têm ciúmes uns dos outros; se escrevem cartas ou comem
juntos; têm contatos plenos de simpatia ou antipatia além de todo interesse
perceptível; a gratidão suscitada por um ato altruísta se prolonga entre eles criando
um vínculo indissolúvel; perguntam por seu caminho aos outros; se vestem e se
enfeitam uns para os outros, e todas essas mil relações momentâneas ou
duradouras, conscientes ou inconscientes, efêmeras ou fecundas que se dão entre
as pessoas e das quais extraímos arbitrariamente estes exemplos, nos ligam
incessantemente uns com os outros. A cada momento se dispõem os fios desta
urdidura, abandonam-se, retomam-se, se os substitui e se lhes tece com outros.
Essas são as ações recíprocas que se produzem entre os átomos da sociedade, aos
quais só o microscópio psicológico permite ter acesso, mas que engendram toda a
solidez e elasticidade, a heterogeneidade e unidade da vida social tão clara e porém
tão enigmática.
Estamos tratando de aplicar à coexistência das ações sociais o princípio dos
efeitos infinitamente numerosos e infimamente pequenos que tivera resultado tão
eficaz para as ciências de sua evolução no tempo: a geologia, a teoria biológica da
evolução e a história. São os passos infimamente pequenos os que criam a coesão
da unidade histórica. As ações recíprocas de pessoa a pessoa, a despeito de sua
pouca visibilidade, estabelecem a coesão da unidade social. Todos os contatos
físicos e psíquicos, as trocas de prazer e de dor, as conversações e os silêncios, as
manifestações de interesses (comuns ou opostos) incessantemente produzidas: eis
o que determina a prodigiosa solidez do tecido social, mas também sua vida
flutuante, com a qual seus elementos ganham, perdem e transformam seu equilíbrio.
Talvez esse ponto de vista proporcione à ciência social o que o microscópio
representou, em seus começos, para a ciência da vida orgânica. Nesta última, as
pesquisas se limitavam aos grandes órgãos corporais, claramente individualizados,
cujas formas e funções se oferecem a olho nu. Mas com o microscópio o processo
vital apareceu vinculado a seus elementos menores, às células, e idêntico nas suas
Georg Simmel | 53

inumeráveis e incessantes relações mútuas. Sabendo como as células se


reproduzem ou se destroem umas às outras, como se aglomeram ou se influenciam
quimicamente, compreendemos aos poucos de que modo o corpo cria sua forma, a
conserva ou a modifica. Sem compreender como esses elementos fundamentais da
vida e suas ações recíprocas se reúnem para formar as existências e atividades
separadas dos grandes órgãos, não seria possível compreender a coesão da vida
nem descobrir que a vida fundamental propriamente dita está constituída por
aqueles processos inumeráveis que ocorrem entre os elementos menores e que se
combinam depois para formar os macroscópicos. Muito além de toda analogia
sociológica ou metafísica entre as realidades da sociedade e do organismo, essa
analogia é fruto da consideração metódica de seu desenvolvimento: trata de
descobrir os fios delicados das relações mínimas entre os homens, cuja repetição
contínua funda todas aquelas grandes formações que se têm tornado objetivas e que
oferecem uma verdadeira história. É preciso, assim, submeter à observação formal,
não só os processos e organizações mais elevados e complexos, mas também os
processos absolutamente primários que formam a sociedade a partir de um material
imediato e individual. Será necessário perguntar-se a respeito de diversas ações
recíprocas, que o olhar histórico não está habituado a encontrar nessas proporções,
se não estamos em presença de formas constitutivas da sociedade, partícipes da
sociação. Estudo que se faz tanto mais necessário porque a sociologia passa amiúde
por alto essas classes de relações aparentemente insignificantes.
Mas justamente porque tomam essa direção, os estudos que projetamos aqui
parecem ser apenas capítulos da psicologia ou, em todo caso, da psicologia social.
Não cabe dúvida que todos os acontecimentos e instintos sociais têm seu lugar na
alma, que a sociação é um fenômeno psíquico e que sua característica
fundamental.(o fato de que uma pluralidade de elementos se converta em uma
unidade), não tem analogia na realidade física, já que nesta última tudo está fixo na
descontinuidade insuperável do espaço. Seja qual for o acontecer externo que
identifiquemos com o nome de social, ele seria para nós um jogo de marionetes não
mais compreensível nem mais significativo que a confusão das nuvens ou o
entrecruzamento dos ramos das árvores se não reconhecêssemos o que é o mais
essencial daquelas exterioridades, quer dizer se não determinássemos os sujeitos
54 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

delas, pois o que mais interessa para nós são as motivações, os sentimentos, os
pensamentos e necessidades da alma. Por consequência, poderíamos dizer que
chegamos à inteligência causal de qualquer acontecer social quando, partindo de
certos dados psicológicos desenvolvidos conforme a “leis psicológicas” (por
problemático que seja este conceito), chegássemos a deduzir plenamente esses
acontecimentos. Também não cabe dúvida que apenas compreendemos da
existência histórico-social certos encadeamentos psíquicos que reconstruímos com
o auxílio de uma psicologia (por vezes instintiva e por vezes metódica), de tal sorte
que temos a convicção interior de que os desenvolvimentos em questão são
plausíveis ou psiquicamente necessários. Nesse sentido, toda história, toda
descrição de um estado social é um exercício de psicologia, com uma ressalva
decisiva e de extraordinária importância para as ciências humanas em geral, a saber:
o tratamento científico dos fatos psíquicos não compete exclusivamente à
psicologia. Ainda nos casos em que fazemos uso ininterrupto de regras e
conhecimentos psicológicos, ainda nos casos em que a explicação de cada fato
isolado só é possível por via psicológica – como ocorre, aliás, na sociologia –, não
é preciso que o sentido e a intenção dessa abordagem sejam referidos forçosamente
à psicologia, quer dizer à lei do processo psicológico, mas ao conteúdo mesmo e às
configurações do dito processo. Temos aqui apenas uma diferença de grau a
respeito das ciências da natureza exterior que, afinal de contas e como fatos da vida
psíquica que são, também se produzem dentro da alma. O descobrimento de
qualquer verdade astronômica ou química, assim como a reflexão sobre elas, é um
fato da consciência que uma psicologia poderia deduzir exclusiva e inteiramente dos
processos e desenvolvimentos psíquicos. Todavia, na medida em que seu objeto não
sejam apenas os processos psíquicos e passem a sê-lo o conteúdo e as relações
destes processos, as ciências em questão se constituem da mesma maneira em que
interpretamos um quadro em função de sua significação estética e histórico-
artística, e não pelas vibrações físicas que constituem ademais suas cores,
expressando toda a existência real do quadro.
A realidade é sempre impossível de abarcar cientificamente em sua
integridade imediata: temos que apreendê-la desde diversos pontos de vista
separados, criando assim uma pluralidade de objetos científicos independentes uns
Georg Simmel | 55

dos outros. Ora, a mesma abordagem se impõe para aqueles fatos psíquicos cujos
conteúdos não se reúnem em um mundo espacial independente, e que não
respondem de maneira visível à sua manifestação psíquica concreta. Por exemplo,
as formas e as leis de uma língua (que se têm formado evidentemente pelas energias
da alma e para os fins dela), são objeto, porém, de uma ciência da linguagem que
prescinde completamente daquela realização de seu objeto, que expõe, analisa ou
constrói por seu conteúdo objetivo e pelas formas que se dão nesse conteúdo. O
mesmo acontece com os fatos da sociação. O fato de que os homens se influenciem
reciprocamente, que alguns deles façam ou sofram algo ou se transformem porque
outros existem, se manifestam, obram ou sentem, naturalmente é um fenômeno da
alma, e a produção histórica de cada caso individual só pode compreender-se
reconstruindo psicologicamente, por meio de séries psicológicas plausíveis, por
interpretação, graças a categorias psicológicas, certos fatos exteriormente
observáveis. Porém, um propósito científico particular pode negligenciar
completamente esse fato psíquico tal qual ele se apresenta, e seguir seus conteúdos
separadamente, analisando-os, relacionando-os do mesmo modo em que eles
entram no conceito de sociação.
Assim, podemos constatar, por exemplo, que a relação de um poderoso com
outros mais fracos, quando tem a forma do primus inter pares, tende tipicamente a
converter-se em uma posição de poder absoluto do primeiro suprimindo
gradualmente os elementos de igualdade. Ainda que a realidade histórica seja um
processo psíquico, o que nos interessa desde o ponto de vista sociológico é como a
estes casos sucedem os diversos estádios de dominação e de subordinação, até que
ponto a dominação em certos sentidos é compatível com a igualdade em outras
relações, em que medida a dominação aniquila esta igualdade, assim como se a
união e a possibilidade de cooperação são maiores nos estádios anteriores ou
posteriores desta evolução, etc. Ou bem se descobre que as inimizades são mais
assanhadas quando surgem sobre a base de uma comunidade ou uma afinidade
anterior ou que está presente ainda de alguma maneira, da mesma forma que amiúde
se diz que o ódio maior é o que se dá entre parentes. Esse resultado só poderá
conceber-se e descrever-se de forma psicológica. Mas, se o consideramos desde um
ponto de vista sociológico, o que interessa não é a série psíquica que se desenvolve
56 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

em cada um dos indivíduos, mas sua reunião sob a categoria da unidade e da


dualidade: até que ponto a relação entre dois indivíduos ou partidos pode conter
hostilidade e solidariedade para que o conjunto conserve ainda uma aparência de
solidariedade ou se converta em hostilidade? Que classe de comunidade tem que ter
existido para que agindo como lembrança ou por instinto inapagável proporcione os
meios mais adequados para produzir ao inimigo um dano mais cruel e uma ferida
mais profunda do que em pessoas estranhas? Por outras palavras: como representar
esta observação como realização de formas de relação entre os homens? Que
particular combinação de categorias sociológicas expressa? Isto é o que aqui
importa ainda que a descrição singular ou típica do próprio processo tenha que ser
forçosamente psicológica.
Retomando uma observação anterior e guardando as devidas distâncias, isso
pode ser comparado com a dedução geométrica em um quadro-negro no qual há
figuras desenhadas. As únicas coisas que se nos oferecem e que podem ser vistas
aqui são os traços físicos de giz. Quando falamos em termos geométricos, não nos
referimos a eles, mas à significação que lhes outorga o conceito geométrico, que é
algo completamente diferente da figura física expressa pelo agregado de partículas
de giz. Por outro lado, a forma física destas partículas pode também ser classificada
dentro das categorias científicas, e sua origem psicológica, sua composição química
ou sua imagem ótica, por exemplo, podem ser objeto de estudos particulares. Dessa
maneira, os dados da sociologia são processos psíquicos cuja realidade imediata se
oferece primeiramente nas categorias psicológicas. Mas essas categorias, ainda que
indispensáveis para a descrição dos fatos, são alheias ao fim da consideração
sociológica, a qual consiste apenas na objetividade da sociação sustentada em
processos psíquicos, únicos meios, às vezes, para descrevê-la. Analogamente ao
que passa com uma peça de teatro, que não contém desde o princípio até o fim
unicamente processos psicológicos, que só pode ser entendida psicologicamente,
mas cuja intenção não é contudo proporcionar conhecimentos psicológicos senão
as sínteses que constituem os conteúdos de fatos psicológicos desde o ponto de
vista da tragédia, da forma artística e dos símbolos vitais2.

2
Quando se inicia uma nova maneira de considerar os fatos, há que sustentar os distintos aspectos
de seus métodos em analogias tiradas de campos já conhecidos; mas unicamente o processo (acaso
Georg Simmel | 57

Afirmar que a teoria da sociação enquanto tal, distinta de todas as ciências


sociais determinadas por um conteúdo particular da vida social, é a única que tem o
direito a ser chamada “ciência da sociedade” em geral não é uma conclusão trivial.
O importante, contudo, não radica na questão do nome, mas no descobrimento desse
novo conjunto de problemas particulares. A polêmica em torno da significação
própria da sociologia não parece assim interessante na medida em que se trate
apenas da atribuição deste título a problemas já existentes e estudados. Mas, se
escolhemos para essa coleção de problemas o título de sociologia com a pretensão
de abranger plena e unicamente com ele o conceito desta ciência, será preciso então
justificá-lo diante de outro grupo de problemas que indubitavelmente pretende
estabelecer, por cima das ciências sociais, certas afirmações sobre a sociedade
como tal e como um todo.
Da mesma forma que as ciências exatas encaminhadas à compreensão
imediata do dado, a ciência social está flanqueada por duas disciplinas filosóficas.
Uma delas se ocupa das condições, conceitos fundamentais e premissas de toda
pesquisa parcial – problemas estes que não podem ser tratados em cada ciência em
particular, pois são pelo contrário seus antecedentes necessários. A outra disciplina
filosófica aperfeiçoa a pesquisa parcial vinculando-a a conceitos que não têm lugar
no mundo da experiência e no saber objetivo imediato. A primeira dessas disciplinas
é a epistemologia, a segunda, a metafísica. De fato, esta última abrange em verdade
dois problemas que amiúde são confundidos, com razão, no exercício real do
pensamento. Por um lado, o sentimento de insatisfação que produz o caráter
fragmentário dos conhecimentos parciais, e o prematuro fim das afirmações
objetivas e das séries demonstrativas levan a completar estas imperfeições pela
especulação – meio este que justamente serve para satisfazer o desejo paralelo de
solucionar a desconexão daqueles fragmentos, reunindo-os na unidade de um tudo.
Mas junto com essa função metafísica que atende ao grau do conhecimento, há
outra que visa uma dimensão diferente da existência, na qual reside a interpretação
metafísica de seus conteúdos: nós a chamamos o sentido ou a finalidade, a

infinito) em virtude do qual o princípio se realiza dentro da pesquisa completa (realização que
demonstra seu grau de fecundidade), pode tornar supérfluas tais analogias e mostrar a igualdade de
forma oculta sob a diversidade de matérias. Este processo só eliminará evidentemente todo risco de
equívoco na medida em que torne as ditas analogias supérfluas. (NS)
58 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

substância absoluta entre os fenômenos relativos e o valor ou significado religioso.


A propósito da sociedade, esta atitude intelectual propõe questões do tipo: a
sociedade é o fim da existência humana ou um meio para o indivíduo? Ou ainda: e se
em vez de ser a sociologia um meio para o homem, fosse até um obstáculo? Seu
valor reside em sua vida funcional ou na produção de um espírito objetivo, ou nas
qualidades éticas que produz nos indivíduos? Manifesta-se uma analogia cósmica
nos estádios típicos da evolução social, de modo que as relações sociais dos
homens teriam que se ordenar numa forma ou ritmo geral que, ainda sem
manifestar-se nos fenômenos, seria o fundamento de todos eles, dirigindo também
as forças dos fatos materiais? As coletividades podem ter, em geral, um sentido
metafísico religioso ou este fica reservado às almas individuais?
Todavia, todas estas e outras incontáveis questões semelhantes não nos
parecem conter a independência substantiva, nem a relação peculiar entre objeto e
método, que lhes permitiria fundar legitimamente a sociologia como uma nova
ciência ao lado das já existentes. Todas elas são questões puramente filosóficas, e
o fato de que tenham escolhido por objeto a sociedade só significa que estendem a
um novo domínio um modo de conhecimento que, por sua estrutura, existia já de
antiga data. Ademais, pouco importa que se reconheça a filosofia em geral como
ciência ou não, pois que o certo é que não existe nenhuma razão para que se subtraia
da filosofia da sociedade as vantagens ou desvantagens que lhe outorga seu caráter
filosófico para se constituir como uma ciência particular da sociologia.
O mesmo ocorre com o tipo de problemas filosóficos que não têm, como os
anteriores, a sociedade por condição, mas pelo contrário se perguntam pelas
condições da sociedade. Não se entenda isso em sentido histórico, como se se
tratasse de descrever a aparição de uma sociedade determinada, ou as condições
físicas e antropológicas necessárias para que surja a sociedade. Também não se
trata das pulsões particulares que levam ao sujeito a realizar, em contato com outros
sujeitos, aquelas ações recíprocas cujas classes são descritas pela sociologia. O que
se trata de determinar é: se existe tal sujeito, quais são as condições que implicam
sua consciência de ser um ente social? A sociedade não está em si e por si nos
fragmentos evocados precedentemente. Em compensação, ela existe realmente nas
formas de ação recíproca: quais são, então, as condições e princípios internos que
Georg Simmel | 59

dotam os indivíduos de tais pulsões para que produzam a sociedade? Qual é o a priori
que possibilita e conforma a estrutura empírica do indivíduo como ser social? Como
são possíveis, não só as elaborações individuais produzidas empiricamente e
incluídas no conceito universal de sociedade, mas também a sociedade em geral
como forma objetiva de almas subjetivas?

Digressão sobre o problema: Como é possível a sociedade?

Se Kant pôde formular a pergunta fundamental de sua filosofia: “como é


possível a natureza?” e respondê-la, foi porque para ele a natureza não era outra
coisa que a representação da natureza. E isto, não só no sentido de que “o mundo é
minha representação”, e de que só podemos falar da natureza enquanto conteúdo de
nossa consciência, mas no sentido de que isso que chamamos natureza é uma
maneira particular que tem nosso intelecto de reunir, ordenar e dar forma às
sensações. Essas sensações “dadas” (cores e gostos, sons e temperaturas,
resistências e cheiros) que perpassam nossa consciência na sucessão casual do
acontecer subjetivo, não são ainda “natureza”, mas se apresentam como tal na
medida e graças à atividade do espírito que as combina, convertendo-as em objetos
e séries de objetos, em substâncias e propriedades, em relações causais. Tal como
se nos dão imediatamente os elementos do mundo, não existe entre eles, segundo
Kant, aquele vínculo graças ao qual se produz a unidade racional e regulada da
natureza ou, mais precisamente, o vínculo é justamente o que têm de natureza
aqueles fragmentos, por si mesmos incoerentes e que se nos apresentam
desordenadamente.
A imagem kantiana do mundo surge assim deste singular paradoxo: enquanto
as impressões sensoriais são puramente subjetivas, pois dependem de nossa
organização psicofísica (que poderia ser distinta em outros seres) e do acaso das
excitações, ainda que se convertam em “objetos” quando são recolhidas pelas
formas de nosso entendimento (que lhes conferem regularidade e estabilidade para
constituí-las em uma imagem coerente da “natureza”), essas mesmas sensações
são, por outro lado, o dado realmente, o conteúdo invariável do mundo tal como ele
se nos apresenta e a garantia da existência de um ser independente de nós.
60 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Justamente por isso, quando nosso intelecto transforma as ditas sensações em


objetos e conjuntos coerentes e necessários, nos aparecem como subjetivas, como
sendo nossa contribuição em oposição ao que recebemos da existência – de forma
tal que as funções do próprio intelecto, apesar de invariáveis, poderiam formar com
outro material sensível uma natureza distinta.
Para Kant, pois, a natureza é uma maneira determinada de conhecimento, uma
imagem do mundo produzida por nossas categorias cognitivas e nelas nascida. Por
conseguinte, a pergunta: como é possível a natureza? (isto é: que condições são
precisas para que exista uma natureza?), se resolve, segundo ele, investigando as
formas que constituem a essência de nosso intelecto e que produzem assim a
natureza como tal.
Pareceria oportuno tratar de modo análogo a questão das condições a priori
em virtude das quais é possível a sociedade. Também neste caso nos são dados
elementos individuais (como as sensações) que em certo sentido subsistem
diferenciados, e que só chegam à síntese da sociedade graças a um processo de
consciência que põe em relação o ser social de cada elemento com aquele do outro
em formas determinadas e seguindo regras estabelecidas. Mas a diferença essencial
entre a unidade de uma sociedade e aquela da natureza reside em que esta última –
no suposto kantiano aqui aceito – só se conforma no observador, só se engendra
por obra deste sujeito que a produz a partir de instrumentos sensoriais desconexos,
enquanto que a unidade social não precisa de um sujeito espectador, sendo realizada
simplesmente por seus elementos, que são conscientes e sinteticamente ativos.
Aquela afirmação de Kant, segundo a qual não pode existir relação alguma entre as
coisas, já que só o sujeito pode produzi-la, não se aplica à relação social que, pelo
contrário, se realiza, de fato, imediatamente entre essas “coisas” que são aqui as
almas individuais. Evidentemente, como síntese que ela é, a dita relação continua
sendo puramente psíquica, sem paralelismo algum com as configurações espaciais
e suas influências recíprocas. Mas a unificação não precisa aqui de nenhum fator
estranho a seus elementos, pois cada um destes exerce as mesmas funções que a
energia psíquica do observador cumpre em face do exterior: a consciência de formar
uma unidade com os demais é aqui, de fato, toda a unidade em questão. Isso não
supõe naturalmente a consciência abstrata do conceito de unidade, mas apenas
Georg Simmel | 61

incontáveis relações individuais, o sentir e saber que nós determinamos a outros e


que, por nosso lado, somos determinados por eles. O que não exclui que um terceiro
observador possa realizar entre as pessoas em questão uma síntese que só
estivesse fundada nele, como a que ele poderia efetuar entre elementos espaciais.
Quanto a saber que domínios da realidade externa e visível é preciso reunir em uma
unidade, isso não depende de seu conteúdo imediato e objetivo, mas das categorias
do sujeito e suas necessidades de conhecimento. A sociedade, ao contrário, é a
unidade objetiva que não precisa de um observador exterior a ela.
Por uma parte, as coisas da natureza estão muito mais separadas do que as
almas. Essa unidade de um homem com outro, essa união que se verifica no amor,
na compreensão ou na obra comum não tem analogias no mundo espacial, em que
cada ser ocupa um lugar no espaço que não pôde simultaneamente compartilhar
com nenhum outro. Mas, por outra parte, na consciência do espectador os elementos
da realidade espacial se reúnem para formar uma unidade em nada comparável à
reunião dos indivíduos. Pois, como neste caso os objetos da síntese são seres
independentes, centros espirituais ou unidades pessoais, eles resistem a essa fusão
absoluta na alma de outro sujeito. Fusão à qual em compensação, as coisas
inanimadas têm que se submeterem por carecer de personalidade. Por essa razão,
um grupo de homens é uma unidade muito mais realiter, mas muito menos idealiter
do que uma mesa, várias cadeiras, um sofá, um tapete e um espelho constituem o
“mobiliário” de uma habitação, ou uma campina sulcada por um rio, algumas árvores
e uma casa formam uma “paisagem” ou a reprodução de suas formas naturais numa
teia possa ser um “quadro”. Se dissermos que “a sociedade é nossa representação”
(o que quer dizer que brota da atividade de nossa consciência) temos que tomar o
dito em um sentido absolutamente distinto de quando dizemos que “o mundo
exterior é nossa representação”. A alma alheia tem para nós a mesma realidade que
nós mesmos: uma realidade que se diferencia muito da de uma coisa material. Por
mais que Kant assegure que os objetos exteriores são exatamente tão certos como
nossa própria existência, isso só é verdade quando nos referimos aos conteúdos
particulares de nossa vida subjetiva. Pois o fundamento da representação em geral,
o sentimento do Eu, tem um caráter mais absoluto e mais inabalável que qualquer
representação particular de uma coisa material exterior. Mas para nós, é justamente
62 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

esta certeza, susceptível ou não de fundamentação, que o Tu também possui. Como


causa ou como efeito desta certeza, sentimos o Tu como algo independente da
representação que dele nos formamos, como algo que é para si exatamente como
nossa própria existência. Todavia, este “ser para si” do outro não nos impede de
convertê-lo em nossa representação. O fato de que algo que não se resolve
acabadamente em nossa representação possa converter-se em conteúdo, quer dizer,
em produto dela, constitui o mais profundo problema psicológico e lógico da
sociação. Dentro de nossa própria consciência distinguimos perfeitamente entre o
caráter fundamental do Eu, condição de toda representação, que não participa do
caráter problemático de seus conteúdos – ainda que nunca se o possa descartar
completamente – e estes próprios conteúdos que, de uma forma geral – aparecendo
ou desaparecendo, sempre susceptíveis de dúvida ou correção –, se apresentam
como simples produtos desta força absoluta e última de nosso ser espiritual. Em
compensação, temos que trasladar à alma alheia – ainda que ela seja para nós uma
representação – essas mesmas condições (ou, melhor dizendo,
incondicionalidades) do próprio Eu. A alma alheia tem para nós aquele sumo grau de
realidade que pode ter nosso Eu em face de seus conteúdos.
Nessas condições, a questão:“como é possível a sociedade? adquire um
sentido metódico distinto que a questão: como é possível a natureza? Pois, se as
formas do conhecimento pelas quais o sujeito realiza a síntese dos elementos dados
para formar a “natureza” respondem a esta última questão, na primeira delas são as
condições a priori contidas nos próprios elementos as que se vinculam
concretamente para formar a síntese “sociedade”. Em certo sentido, todo este livro
tal como se desenvolve a partir deste primeiro princípio, é um começo de resposta a
esta questão. Pois pretende descobrir os fatos que se realizam em definitivo nos
indivíduos e condicionam sua “socialidade” (o seu “ser-da-sociedade”), não como
causas antecedentes no tempo, mas como processos inerentes à síntese que
resumimos pelo termo de “sociedade”.
Mas é preciso entender essa questão em um sentido ainda mais importante.
Temos dito que a função de realizar a unidade sintética, quando se refere à natureza,
repousa no sujeito espectador, e quando se refere à sociedade se traslada aos
elementos desta. É verdade que o indivíduo não tem in abstracto a consciência de
Georg Simmel | 63

formar parte de uma sociedade, mas em todo caso cada um sabe que o outro está
vinculado a ele, mesmo quando este saber acerca das formas ou modos pelos quais
ambos se relacionam, todo este conhecimento da totalidade como sociedade, é
obtido de forma ordinária em relação a conteúdos individuais e concretos. Talvez
ajamos a esse respeito da mesma maneira que atuamos de acordo com a “unidade
do conhecimento” nos processos conscientes: encadeando um conteúdo concreto
em outro sem ter, apesar disso, outra consciência particular desta unidade que a
surgida de raras e posteriores abstrações. A questão se nos apresenta agora deste
modo: quais elementos gerais e a priori servirão de fundamento, que pressupostos
têm que agir, para que os processos singulares concretos da consciência do
indivíduo sejam verdadeiros processos de sociação? Que condições contidas neles
tornam possível que seu resultado seja – em termos abstratos – a produção de uma
unidade social, a partir de elementos individuais? Os fundamentos a priori
sociológicos terão a mesma e dupla significação que aqueles que “fazem possível”
a natureza. Por uma parte, determinarão de maneira mais ou menos perfeita os
processos reais de sociação como funções ou atividades do mundo das ideias;
enquanto por outra, serão os pressupostos ideais lógicos da sociedade perfeita
– ainda que talvez nunca realizada com essa perfeição. Um pouco como a lei da
causalidade, que por um lado vive e age nos processos efetivos do conhecimento e,
por outro, constitui a forma de verdade como sistema ideal dos conhecimentos
perfeitos – independentemente de que essa forma seja realizada ou não por esta
dinâmica, temporal e relativamente aleatória do mundo das ideias, e com abstração
da distância existente entre a verdade realmente conseguida e a verdade idealmente
pensada.
Quanto a saber se o estudo das condições do processo de sociação deve ou
não ser qualificado de epistemológico, trata-se a nosso ver de uma mera questão de
designação terminológica, pois, no fundo, os produtos resultantes e determinados
por essas condições não são conhecimentos, mas processos práticos e realidades.
Todavia, isso do qual falamos, o conceito geral de sociação, cujas condições
devemos estudar, tem algo de epistemológico: a consciência que os atores sociais
têm de seu mútuo relacionamento, de estar estabelecendo contatos e interações
sociais de reciprocidade. Talvez fosse mais justo chamá-la de conhecimento
64 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

imediato que de saber, pois o sujeito não se encontra aqui em face de um objeto do
qual vai adquirindo gradualmente uma ideia teórica, uma vez que é a consciência da
sociação a que imediatamente sustenta e contém em si seu sentido interno. Trata-
se de processos de ação recíproca que para o indivíduo significam o fato – não
abstrato, mas em todo caso capaz de ser abstratamente expressado – de estar
envolvido em relações de interdependência que ele próprio tem criado. Quais são as
formas fundamentais necessárias, ou ainda que categorias específicas o homem
deve apresentar para que surja esta consciência, e por conseguinte, quais são as
formas que deve ter esta consciência uma vez formada (a sociedade constituída
como fato sabido)? Eis o que bem pode constituir uma epistemologia da sociedade.
No que segue tentaremos de esboçar, como exemplo de tal estudo, algumas dessas
condições ou formas de sociação que agem a priori, ainda que não possam ser
designadas, como as categorias kantianas, com uma palavra só.
1) A imagem que uma pessoa tem de outra, graças ao contato pessoal, está
condicionada por certas deformações que não são simples erros devidos a uma
experiência incompleta ou a uma falta de acuidade visual ou a preconceitos
favoráveis ou desfavoráveis, mas a mudanças radicais na estrutura do objeto real. E
essas deformações vão, em princípio, em duas direções. Vemos o outro em certa
medida como o resultado de uma generalização, porque somos incapazes de nos
representar plenamente uma individualidade diferente da nossa. Toda imagem que
uma alma tem de outra está determinada pela semelhança. E ainda que não
estejamos diante da única condição do conhecimento espiritual (já que, por uma
parte, parece necessária uma desigualdade simultânea para que exista distância e
objetividade e, por outra, uma capacidade intelectual que se mantenha além da
igualdade ou desigualdade do ser), um conhecimento perfeito pressuporia, porém,
uma igualdade perfeita. Pareceria que cada homem tivesse em si um ponto profundo
de individualidade que não pudesse ser imaginado interiormente por nenhuma outra
pessoa em quem esse mesmo ponto fosse qualitativamente diverso. E se esta
exigência não é compatível logicamente com a distância e apreciação crítica
objetivas nas que repousa nossa representação do outro, isso prova somente que
nos é negado o conhecimento perfeito da individualidade alheia, e que as variações
dessa deficiência determinam todas as relações dos homens entre si. Ora, seja qual
Georg Simmel | 65

for sua causa, em todo caso sua consequência é uma generalização da imagem
espiritual do outro, uma imprecisão de contornos que põe essa imagem em relação
com outras, ainda que devesse ser única. Para os efeitos de nossa conduta prática,
imaginamos a todo homem como o tipo “homem” ao qual sua individualidade lhe faz
pertencer. Apesar de sua singularidade, o homem é pensado como parte de uma
categoria que decerto não coincide inteiramente com ele – circunstância que
diferencia esta relação daquela que existe entre o conceito geral e os casos
individuais incluídos nele. Para conhecer o homem não o vemos em sua
individualidade pura, mas amparado, elevado ou, às vezes também, rebaixado pelo
tipo ideal ao qual supomos que ele pertence. Ainda quando essa transformação seja
tão imperceptível que não possamos já reconhecê-la imediatamente, mesmo que os
habituais conceitos característicos não nos pareçam apropriados (como moral ou
imoral, livre ou servo, senhor ou escravo, etc.), isso não nos impedirá de designar o
homem, no fundo de nós mesmos, em função de certo tipo inexprimível em palavras
e com o qual não coincide seu ser individual.
E isso nos conduz mais longe ainda. A partir da total singularidade de uma
pessoa construímos uma imagem dela que não é idêntica a seu ser real, mas que
também não representa um tipo geral, senão a imagem que apresentaria essa
pessoa se fosse ela mesma plenamente, se realizasse, para o bem ou para o mal, a
possibilidade ideal que existe em todo ser humano. Todos somos fragmentos, não
só do homem em geral, mas também de nós mesmos. Somos esboços, não apenas
do tipo humano absoluto, não somente do tipo do bom ou do mau, mas também da
individualidade única de nosso próprio Eu, que como desenhado por linhas ideais,
contorna nossa realidade perceptível. Mas o olhar do outro completa esse caráter
fragmentário e nos converte no que não somos nunca pura e acabadamente. Não
podemos nos limitar a ver nos outros apenas esses fragmentos reais justapostos,
mas da mesma maneira como em nosso campo visual completamos o ponto cego
fisiológico sem nos dar conta dele, assim também com esses dados fragmentários
construímos uma alheia individualidade íntegra. A prática da vida nos obriga a formar
a imagem do homem a partir das únicas coisas concretas que sabemos
empiricamente dele. Mas é justamente por isso que essa imagem repousa naquelas
66 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

modificações e complementos, na transformação que sofrem os fragmentos dados


quando se transformam no tipo geral e na plena personalidade ideal.
Esse método fundamental, que na realidade raras vezes é levado a sua
perfeição, age dentro da sociedade existente como o a priori das ações recíprocas
que posteriormente se entretecem entre os indivíduos. Dentro de um círculo
vinculado pela comunidade de profissão ou de interesse, cada membro vê o outro,
não de um modo puramente empírico, mas a partir de um a priori que esse círculo
impõe a todos os que nele participam. Nos círculos dos oficiais, dos crentes, dos
funcionários, dos intelectuais, da família, a visão do outro depende da condição
prévia de que ele seja um membro do círculo. Da base vital comum partem certas
suposições, através das quais os indivíduos se veem uns aos outros como por trás
de um véu. Esse véu não se limita a encobrir a peculiaridade pessoal, mas lhe confere
nova forma, fundindo a sua consistência individual com aquela do círculo. Não
vemos os demais exclusivamente como indivíduos, mas também como colegas,
camaradas de regimento ou correligionários, em uma palavra: como habitantes de
um mesmo mundo particular. E esse pressuposto é inevitável, absolutamente
automático e um dos meios que o homem tem de dar a sua personalidade e a sua
realidade, na sua representação do outro, a qualidade e a forma requeridas pela
sociabilidade.
É evidente que isto pode aplicar-se também às relações que os membros dos
distintos círculos mantêm entre si. O civil que faz conhecimento com um oficial não
pode prescindir da ideia de que este indivíduo é um oficial. E, ainda que sua condição
de oficial possa fazer parte de sua individualidade, não vai ser do modo estereotipado
que sua imagem oferece na representação do outro. O mesmo ocorre com o
protestante a respeito do católico, com o comerciante a respeito do funcionário, com
o laico a respeito do clérigo, etc. Em toda parte achamos que a realidade fica
encoberta pela generalização social, com véus que excluem em princípio seu
descobrimento dentro de uma sociedade de grupos claramente diferenciados. Desse
modo, o homem encontra na representação do homem certas deformações,
supressões e acréscimos – pois a generalização é sempre e ao mesmo tempo mais
e menos que a individualidade – que provêm de todas estas categorias a priori, de
seu tipo como homem, da ideia de sua própria perfeição, do grupo social ao qual
Georg Simmel | 67

pertence. Sobre tudo isso paira, como princípio heurístico de conhecimento, a ideia
de sua determinação concreta, absolutamente individual. Mas, ainda que pareça que
unicamente quando tenhamos apreendido essa determinação individual poderemos
estabelecer nossa relação justa com o outro, essas modificações e transformações
que impedem seu conhecimento ideal são, justamente, as condições graças às quais
resultam possíveis as únicas relações que conhecemos como sociais – pouco mais
ou menos do mesmo modo que em Kant as categorias do entendimento, que
convertem as intuições dadas em objetos completamente novos, permitem que o
mundo dado seja cognoscível.
2) Existe outra categoria na qual os sujeitos se veem a si mesmos e aos outros
como construtores e formadores da sociedade empírica. Tal categoria pode
formular-se na afirmação aparentemente trivial de que cada elemento de um grupo
não é unicamente uma parte da sociedade, nem outra coisa diferente. Este fato age
como um a priori social na medida em que a parte do indivíduo que não está
orientada para a sociedade ou que não se confunde com ela não é simplesmente
deixada de lado, sem relação com a parte que tem sentido social, como algo que está
fora da sociedade, e ao qual esta última deve deixar espaço, quer queira quer não. O
fato de que o indivíduo em certos aspectos não seja um dos elementos da sociedade
constitui ao contrário a condição positiva para que ele seja um deles em outros
aspectos de sua natureza, de sorte que sua índole de incluído em certas relações de
interdependência está determinada, em parte, por sua condição de marginalizado de
outras interações sociais de reciprocidade. Nos estudos que seguem veremos
alguns tipos cujo sentido sociológico fica estabelecido em sua essência e
fundamento justamente pelo fato de estarem excluídos de certa forma de uma
sociedade para a qual, todavia, é importante sua existência: é o caso do estrangeiro,
do inimigo, do criminoso e ainda do pobre. Mas isso pode aplicar-se, com incontáveis
variantes, não só a estes tipos gerais, mas a toda existência individual. O fato de que
em todo momento nos vejamos envolvidos em relações com outros homens e direta
ou indiretamente determinados por essas relações, não depõe em nada contra isso,
já que a coletividade social se refere justamente a seres que não são inteiramente
abrangidos por ela. Sabemos que o funcionário não é somente funcionário, que o
comerciante não é apenas comerciante, que o oficial não é só oficial; no entanto, aos
68 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

olhos de todos aqueles que se deparam com eles, esse ser extrassocial – quer dizer,
seu temperamento e os reflexos de seu destino, seus interesses e o valor de sua
personalidade – mesmo que não altere significativamente suas atividades
burocráticas, mercantis e militares, imprime ao homem uma nuance particular de
forma que sua imagem social é modificada por imponderáveis extrassociais.
O trato dos homens dentro das categorias sociais seria distinto se cada um
aparecesse ao outro unicamente como o que ele é na categoria correspondente,
como sujeito do papel social que lhe tem sido atribuído. Os indivíduos, como as
profissões e as posições sociais, se distinguem segundo o grau em que admitem
junto com seu conteúdo social aquele outro elemento “estranho ao social”. Na série
desses graus, um dos polos pode estar constituído pela relação de amor ou de
amizade. Nesse tipo de relação, o que o indivíduo reserva para si mesmo, além da
atividade dedicada ao outro pode aproximar-se quantitativamente ao valor-limite
zero. Contemplando ou vivendo a relação amorosa desde dentro, a partir de seu
princípio (o terminus a quo do sujeito), mas também desde o ponto de vista de seu
fim, da entrega,(o terminus ad quem do ser amado), observa-se que não existe nessa
relação mais que uma vida única, que o ser amado assume inteiramente. Em outro
sentido, o sacerdote católico permite apreciar um fenômeno formalmente similar, por
quanto sua função eclesiástica recobriu e fez ficar totalmente sumida sua realidade
individual. No primeiro desses casos extremos, quando o elemento “alheio” à
atividade sociológica desaparece, é porque seu conteúdo se tem esgotado
totalmente na entrega ao outro; enquanto que no segundo caso isso é devido, em
princípio, ao desaparecimento dos conteúdos da atividade não social. O polo
contrário poderia ser representado pelas manifestações da civilização moderna
determinadas pela economia monetária, na qual o homem, considerado como
produtor, comprador ou vendedor, como trabalhador e, portanto, agente econômico,
se aproxima ao ideal da objetividade absoluta. Salvo nas posições de poder muito
elevadas e diretivas, a vida individual e a tonalidade da personalidade global estão
ausentes da atividade econômica. Os homens não são mais do que sujeitos de um
equilíbrio entre prestações e retribuições segundo normas objetivas, e tudo o que
não pertença a esta objetividade desaparece delas. O elemento “não social” atrai
para si a personalidade com sua coloração particular, sua irracionalidade e sua vida
Georg Simmel | 69

interior, e só restam para as atividades sociais as energias específicas necessárias.


As individualidades sociais evoluem entre os extremos, de tal maneira que as
energias e determinações que convergem para o centro íntimo têm importância e
sentido para as atividades e sentimentos dedicados aos demais. Pois, ao rigor,
mesmo a consciência de que esta atividade ou sentimento social constitui algo
distinto do resto não social (algo que não admite na relação sociológica nenhum
elemento “não social”), exerce um influxo positivo sobre a atitude que o sujeito adota
em face dos demais e que os demais assumem em face dele. O a priori da vida social
empírica afirma que a vida não é completamente social. Não só construímos nossas
relações mútuas com a reserva negativa de que uma parte de nossa personalidade
não entra nelas, mas, por acréscimo, a parte não social de nossa pessoa não age
somente por conexões psicológicas gerais sobre os processos sociais da alma: é
justamente o fato formal de essa parte estar fora do social o que determina a
natureza de sua influência.
O fato de que as sociedades estejam constituídas por seres que se encontram
simultaneamente dentro e fora delas constitui igualmente a base de um dos mais
importantes fenômenos sociológicos, a saber: que entre uma sociedade e os
indivíduos que a formam pode existir uma relação similar à que existe entre dois
partidos e, inclusive, que provavelmente este seja sempre o caso, de maneira
declarada ou latente. A sociedade cria talvez assim a figura mais consciente (e com
certeza a mais universal) de uma forma fundamental da vida: a alma individual não
pode estar em um nexo sem estar ao mesmo tempo fora dele, nem pode estar
incluída em nenhuma ordem sem encontrar-se ao próprio tempo confrontada a ela.
Isto pode aplicar-se tanto às conexões transcendentes e mais universais, quanto às
singulares e casuais. O homem religioso se sente plenamente envolvido pelo ser
divino, como se não fosse mais que um latejo da vida divina, se entrega ao absoluto
sem nenhuma reserva, até mesmo numa fusão mística. Todavia, para que essa fusão
tenha sentido, o homem tem que conservar de alguma forma um ser próprio, uma
alteridade pessoal, um Eu separado, para quem esta fusão na totalidade divina seja
um projeto inacabado, um processo que metafisicamente seria impossível de realizar
e religiosamente impossível de sentir se não partisse de um sujeito com realidade
própria. Ser um com Deus só tem sentido quando se é distinto de Deus.
70 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Se prescindirmos desta exaltação transcendente, a relação com a natureza


como totalidade, que o espírito humano reivindica ao longo de sua história, oferece
a mesma forma. Por um lado, sabemos que formamos parte da natureza, que somos
um de seus produtos – que com os demais é um igual entre iguais. Temos
consciência de ser apenas um ponto que as matérias e energias naturais abordam e
quitam, por onde elas circulam como na água que corre e nas plantas que florescem.
E, no entanto, a alma tem o sentimento de uma existência própria, independente de
todos os nexos e relações, independência que se designa com o conceito tão
logicamente inseguro de liberdade, e que opõe a todo esse processo (do qual nós
mesmos somos um elemento) um rotundo desmentido que culmina na afirmação
radical de que a natureza só é uma representação da alma humana.
Mas, assim como a natureza, apesar de suas inegáveis leis próprias e sua
sólida realidade, fica incluída no Eu, esse Eu, com toda sua liberdade e existência real
e independente, com toda sua oposição à natureza, não deixa de ser um membro
dela. Justamente, o caráter transcendente do nexo natural consiste nisto: em incluir
dentro de si esse ser independente e com frequência hostil. Pois, aquilo que ainda
por um veemente sentimento vital se situe fora da natureza, resta, no entanto,
necessariamente um de seus elementos. Ora, essa fórmula não é menos aplicável à
relação entre os indivíduos e os círculos particulares de seus vínculos sociais ou – se
resumimos estes no conceito ou sentimento da sociação em geral – à simples inter-
relação dos indivíduos. Por uma parte sabemos que somos produtos da sociedade.
A série biológica dos antepassados, suas adaptações e determinações, as tradições
de seu trabalho, seu saber e sua fé, todo o espírito do passado, cristalizado em
formas objetivas, determina as disposições e conteúdos de nossa vida, até o ponto
de aventar a questão de se o indivíduo pode ser algo mais do que um recipiente no
qual se misturam em quantidades variáveis elementos preexistentes. Pois ainda que
em última instância tais elementos tenham sido produzidos por indivíduos, a
contribuição de cada um constitui quantidade inapreciável, engendrando apenas por
sua confluência genérica e social os fatores cuja síntese têm constituído logo a
individualidade. Mas, por outra parte. sabemos que somos membros da sociedade.
Nós, com nosso processo vital e o sentido e fim deste, nos sentimos tão imbricados
na coexistência como na sucessão social. Na condição de seres naturais não
Georg Simmel | 71

constituímos uma realidade separada: o ciclo dos elementos naturais passa por nós
como seres totalmente impessoais, e a igualdade perante as leis naturais reduz
nossa vida a um mero exemplo de sua necessidade. Da mesma maneira, em nossa
condição de seres sociais não vivemos em torno de um centro autônomo, mas a todo
momento somos conformados por relações recíprocas com os outros, sendo
comparáveis à substância corporal que, para nós, só existe como a soma de
múltiplas impressões sensoriais, mas não como existência em si e por si.
Todavia, sentimos que essa difusão social não dissolve inteiramente nossa
personalidade. Ademais não se trata apenas das reservas já mencionadas, de
conteúdos individuais cujo sentido e evolução se baseiam, certamente, na alma
individual e não têm lugar algum dentro do contexto social. Também não se trata
unicamente da formação dos conteúdos sociais, cuja unidade de alma individual não
é, por sua vez, integralmente social, do mesmo modo que não pode deduzir-se da
natureza química das cores a forma artística que as manchas cromáticas de um
quadro adquirem na teia. Antes de tudo, trata-se do conteúdo social da vida, mesmo
que possa ser explicado acabadamente pelos antecedentes e interações sociais, e
de que seja considerado simultaneamente também sob a categoria da vida
individual, como vivência do indivíduo e orientado exclusivamente a ele. Essas são
diversas categorias sob as quais se considera um e o mesmo conteúdo
comparativamente, à maneira como uma mesma planta pode ser considerada desde
o ponto de vista de suas características biológicas ou atendendo a sua utilidade
prática ou a seu valor estético. O ponto de vista a partir do qual a existência do
indivíduo é ordenada e compreendida pode situar-se dentro ou fora do indivíduo. A
totalidade da vida, com todos seus conteúdos deduzidos das condições sociais,
pode ser considerada como o destino central do ser que a vive, mas pode considerar-
se também, apesar de todas suas partes reservadas ao indivíduo, como produto e
elemento da vida social.
Por conseguinte, o fato da sociação coloca o indivíduo na dupla situação da
que partimos: ele faz parte dela e ao mesmo tempo se encontra em face dela. Ele é
um membro de seu organismo sem deixar de ser um todo orgânico e fechado, um ser
para a sociedade e um ser para si mesmo. Mas o essencial e o que dá sentido ao a
priori sociológico é que a relação de interioridade e de exterioridade entre o indivíduo
72 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

e a sociedade não são duas determinações que subsistam justapostas, uma à outra
– ainda que em ocasiões assim ocorra e possam chegar até a hostilidade recíproca –
, mas que ambas caracterizam a posição unitária do homem que vive em sociedade.
A existência do homem não é parte social e parte individual com cisão de seus
conteúdos, mas se encontra sob a categoria fundamental, irredutível, de uma unidade
que só podemos expressar mediante a síntese ou simultaneidade das duas
determinações logicamente opostas: o de ser ao mesmo tempo parte e todo, produto
da sociedade e elemento da sociedade, o viver pelo próprio centro e o viver para o
próprio centro. Como vimos precedentemente, a sociedade não está integrada por
seres que só se envolvem parcialmente em suas relações de interdependência, mas
por seres que se sentem como existências plenamente sociais e, por outro como
existências pessoais, sem por isso mudar de conteúdo. Não estamos dando conta
aqui de dois pontos de vista coexistentes, ainda que sem relação entre eles (como
ao considerarmos o mesmo corpo atendendo a seu peso ou a sua cor), mas de dois
aspectos que constituem a unidade disso que denominamos o ser social, a categoria
sintética – da mesma forma que o conceito de causa constitui uma unidade a priori,
mesmo que contenha em si dois elementos totalmente distintos, o do causativo e o
do causado. Consequentemente, um dos a priori da sociedade empírica, uma das
condições que fazem possível sua forma tal como a conhecemos, é essa faculdade
que possuímos de construir o conceito de sociedade a partir de certos seres
(capazes de sentir-se princípio e fim de suas próprias evoluções e destinos),
sociedade que tem em conta esses indivíduos, mas que também é conhecida, como
o princípio e fim dessas vidas e determinações.
3) A sociedade é constituída a partir de elementos díspares. Pois que ainda
nos casos em que certas tendências democráticas ou socialistas pairem ou
consigam certa “igualdade”, esta é sempre uma equivalência das pessoas, as
prestações e posições, e nunca a igualdade dos homens em sua estrutura, suas vidas
e destinos. Mesmo quando uma sociedade escravizada parece não constituir mais
que uma massa, como ocorre nos regimes despóticos orientais, essa igualdade de
todos com todos se refere unicamente a certos aspectos de sua existência (políticos
ou econômicos, por exemplo), mas não a sua totalidade, já que as qualidades
congênitas, as relações pessoais, os destinos vividos, têm inevitavelmente algo de
Georg Simmel | 73

único e intercambiável, não só na dimensão privada da vida, mas também no que


tange às inter-relações com outras existências. Se representarmos a sociedade
como um esquema puramente objetivo, ela aparece como uma ordem de conteúdos
e atividades, relacionados uns com os outros pelo espaço, o tempo, os conceitos e
os valores que, em certa medida, nos permitem prescindir da personalidade, da forma
do Eu, que sustenta seu dinamismo.
Ora, se aquela desigualdade dos elementos permite que toda realização ou
qualidade apareça dentro dessa ordem como algo individualmente caracterizado e
que ocupa um lugar claramente determinado, a sociedade se apresenta então como
um cosmos de diversidade incalculável quanto a seus seres e movimentos, mas no
qual cada ponto só pode estar constituído e desenvolver-se de determinada maneira
se toda a estrutura do conjunto não varia. Com referência à estrutura do mundo em
geral, diz-se que nem um grão de areia poderia ter outra forma ou situação sem que
se produzisse uma mudança na estrutura inteira. Isso pode ser repetido para a
estrutura da sociedade considerada como um entrelaçamento de fenômenos
determinados. Esta imagem da sociedade encontra uma analogia em miniatura,
infinitamente simplificada e de certa maneira estilizada, na burocracia. Com efeito,
esta burocracia consiste em uma ordem determinada de “posições”, de funções, que
independentemente de quem em cada caso as desempenhe, constituem uma
estrutura ideal, dentro da qual cada recém-chegado encontra um lugar claramente
demarcado, que de alguma forma estava aguardando e com o qual tem que
harmonizar suas aptidões. Naturalmente, trata-se de uma determinação consciente
e sistemática de conteúdos e tarefas que corresponde, na sociedade global, a um
inextricável emaranhado de funções. As posições não são o resultado de uma
vontade construtiva, mas só podem ser definidas por vida e obra dos indivíduos.
Apesar da enorme diferença, e malgrado o grau de irracionalidade, imperfeita e
condenável, que se encontra desde um ponto de vista valorativo na sociedade
histórica, sua estrutura fenomenológica – a soma e relação das existências e tarefas
que oferece social e objetivamente cada elemento – não deixa de ser uma ordem em
que cada um desses elementos ocupa um lugar individualmente determinado, uma
combinação de funções e de centros funcionais plenos de sentido objetivo e social,
ainda que nem sempre de valor. Aqui desconsideramos o puramente pessoal, o
74 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

intimamente produtivo, os impulsos e reflexos do Eu propriamente dito. Ou, por


outras palavras, a vida da sociedade transcorre – não psicológica, mas
fenomenologicamente, desde o exclusivo ponto de vista de seus conteúdos sociais –
como se cada elemento estivesse predeterminado para sua posição no conjunto.
Quaisquer que sejam as disfunções a respeito das exigências ideais, a vida social
discorre como se todos seus membros estivessem numa relação unitária, de maneira
que cada um deles – precisamente por ser este e não outro – dependesse de todos
os demais e, analogamente, todos os demais dependessem dele.
A partir desse ponto, reconhecemos qual é o a priori sobre o qual vamos falar
agora e que representa para o indivíduo o fundamento e a “possibilidade” de
pertencer a uma sociedade. A qualidade própria de cada indivíduo lhe atribui um
lugar determinado dentro de seu meio social: que este lugar que lhe corresponde
idealmente esteja também presente no todo social, eis a condição primeira para que
o indivíduo viva sua vida social, que poderíamos também denominar de “valor
universal” de sua individualidade. Este pressuposto é independente de sua mais ou
menos clara e consciente concepção, assim como de sua realização no curso efetivo
da vida – da mesma maneira que o caráter a priori da lei causal, que é a condição
necessária para a formação da consciência, é independente da questão de saber se
a consciência a formula em conceitos claros e se a realidade psicológica procede
sempre conforme ela ou não. Nossa vida cognitiva repousa na condição de uma
harmonia preestabelecida entre nossas energias intelectuais (por individuais que
sejam) e a existência exterior, objetiva. Pois que esta última é sempre a expressão
do fenômeno imediato, ainda que esse fenômeno seja posteriormente referido,
metafísica ou psicologicamente, à produção da existência pelo próprio intelecto. Da
mesma maneira, a vida social depende de uma harmonia fundamental entre o
indivíduo e o todo social, sem que isso impeça as estridentes dissonâncias da vida
ética e da vida eudemonista. Se a realidade social se conformasse a esse
pressuposto fundamental, sem dificuldades nem quebras, teríamos uma sociedade
perfeita – mais uma vez, não no sentido de uma perfeição ética ou eudemonista, mas
conceitual. Seria não a sociedade perfeita, mas a perfeita sociedade. Enquanto o
indivíduo não realize ou não encontre realizado este a priori de sua existência social
– a plena correlação de seu ser individual com os círculos que lhe rodeiam, a
Georg Simmel | 75

necessidade de sua vida pessoal interior para a vida do todo – não poderá dizer-se
que participa da sociedade como produto das interações individuais, nem será a
sociedade esse conjunto contínuo de ações recíprocas que enuncia seu conceito.
A categoria da profissão representa consciência particularmente acentuada
desse estado de coisas. A Antiguidade clássica não conheceu esse conceito no
sentido da diferenciação pessoal e da sociedade organizada pela divisão do trabalho.
Mas seu fundamento, quer dizer, o fato de que a atividade social eficaz é a expressão
unívoca da qualificação interior, a ideia de que a subjetividade encontra sua
objetivação prática nas funções sociais, foi patrimônio também dos antigos. Só que
essa relação se verificava para eles num conteúdo continuamente uniforme. Seu
princípio aparece na frase de Aristóteles segundo a qual alguns por natureza estão
destinados a ser escravos e outros, senhores. Quando se elabora de uma maneira
mais fina o conceito, aparece nele uma estrutura particular. Por um lado, a sociedade
cria e oferece uma “posição” que, ainda que diferente das demais em conteúdo e
limites, pode em princípio ser ocupada por muitas pessoas, o que faz dela
consequentemente algo anônimo. .Mas, por outra parte, apesar desse caráter de
generalidade da posição, ela é ocupada por um indivíduo em razão de uma “vocação”
interior, de uma qualificação percebida como absolutamente pessoal. De uma
maneira geral, não podem existir profissões sem que de uma maneira ou outra exista
também essa espécie de harmonia entre estrutura e processo vital da sociedade, de
um lado, e disposições e pulsões individuais, de outro. Finalmente, é sobre ela que
repousa como condição universal a representação de que a sociedade oferece a cada
pessoa uma posição e um labor para os quais a pessoa tem sido “destinada”, e a
correlata e imperativa obrigação de buscá-la até encontrá-la.
A sociedade empírica só é “possível” graças ao a priori que culmina no
conceito de profissão, ainda que tal a priori, analogamente aos já tratados, não pode
designar-se por uma simples palavra-chave, como sucede com as categorias
kantianas. Os processos de consciência pelos quais se cumpre a sociação – a
unidade de muitos, a determinação recíproca dos indivíduos, a importância mútua do
indivíduo para a totalidade dos outros e desta totalidade para o indivíduo – se
verificam com uma condição fundamental que não é consciente em abstrato, mas
que assim se expressa na realidade da prática: o individualismo de cada um em
76 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

particular encontra uma posição na estrutura da universalidade, assim como esta


estrutura é, em certa medida, antecipadamente adequada à individualidade e
prestações apesar do caráter imprevisível do indivíduo. O conjunto de relações
causais que entretece cada elemento social com o ser e o fazer de todos os demais
(produzindo assim a rede exterior da sociedade) se transforma em concatenação
teleológica tão logo é considerado desde o ponto de vista dos indivíduos, seus
produtores – que se sentem pessoas isoladas e cujo comportamento está enraizado
no terreno da personalidade que existe e se determina por si. Tal fenômeno global se
submete à finalidade dessas individualidades que o abordam de certa forma por fora;
pois oferece ao processo vital do indivíduo, determinado do interior, a posição em
que sua particularidade se torna um elemento necessário na vida do todo. Eis aí uma
categoria fundamental que dá à consciência individual a forma necessária para
tornar-se elemento social.
Afigura-se destituído de sentido perguntar-se se os estudos de epistemologia
social – dos que esta digressão deveria servir de exemplo – pertencem à filosofia
social ou à sociologia ou se por acaso constituem um território fronteiriço entre
ambas. Mas, como antes já havíamos indicado, o problema sociológico e sua
delimitação com respeito ao filosófico não sofre em nada por isso, como também
não sofrem os conceitos de dia e noite porque exista o pôr do sol, nem os de homem
e animal porque talvez cheguem a encontrar-se graus intermediários que vinculem
as características dos dois de tal sorte que não possamos obter deles conceitos
separados. O problema sociológico se propõe tão somente abstrair o que é realmente
sociedade (quer dizer, sociação), no fenômeno complexo que chamamos de vida
social. A sociologia toma esse conceito em sua máxima pureza, distanciando dele
tudo aquilo que, ainda que só na sociedade possa obter sua realização histórica, não
constitui porém a sociedade como tal, como forma de existência única e autônoma.
Encontramo-nos, pois, com o âmago de problemas inconfundíveis. Poderia ser que
a periferia desse círculo de problemas entre em contato, efêmero ou permanente,
com outros círculos. E até que as determinações fronteiriças resultem duvidosas.
Nem por isso o centro permanece menos fixo em seu lugar.
Passamos agora a demonstrar a fecundidade do conceito e do problema
central em estudos parciais. Sem pretender nem remotamente esgotar o número das
Georg Simmel | 77

formas de ação recíproca que constituem a sociedade, esses estudos se limitam a


sinalizar o caminho que poderia conduzir à determinação científica da extensão que
corresponde à “sociedade” na totalidade da vida. E o sinalizarão dando os primeiros
passos por ele.
II. A quantidade nos grupos sociais

Vamos examinar uma série de formas de convivência, de unificação e de ação


recíproca entre os indivíduos atendendo somente ao sentido que tem o número
daqueles que estabelecem os contatos ou interações sociais de reciprocidade nas
ditas formas. Com antecedência, e partindo das experiências cotidianas, será preciso
reconhecer que um grupo quando possui certa extensão toma resoluções, cria
formas e órgãos para sua conservação e proteção dos que antes não precisava; e
que, por outra parte, os círculos mais limitados têm qualidades e realizam ações
recíprocas que desaparecem inevitavelmente quando sobrevém uma ampliação
numérica. Um duplo significado deve, então, conceder-se à quantidade. O primeiro é
negativo: certas formas (necessárias ou possíveis em virtude das condições vitais)
só podem realizar-se aquém ou além de determinado número limitado de seus
elementos. O outro é positivo: certas formas resultam diretamente das modificações
quantitativas sofridas pelos grupos. Naturalmente, as modificações quantitativas
não se apresentam sempre em todos os casos, pois dependem de outras
determinações do grupo; o decisivo, entretanto, é que as formas em questão
unicamente podem produzir-se sob a condição de alcançarem determinada
extensão numérica.
Assim, por exemplo, podemos comprovar que até agora as organizações
socialistas, ou que se aproximam do socialismo, só se realizam em círculos muito
pequenos, tendo fracassado nos grandes. A tendência interna dessas organizações
(a justiça na distribuição de trabalho e lazer) realiza-se bem em um grupo pequeno
em que pode ser observada e controlada pelos indivíduos – o que seguramente é
muito importante. O trabalho de cada um para a comunidade e a retribuição da
comunidade pelo trabalho feito ficam nesse caso muito claros, o que facilita a
comparação e a equiparação. Contrariamente, em um círculo amplo essa
distribuição dificulta a incontornável diferenciação entre as pessoas por suas
funções e pretensões. Um número muito grande de homens só pode constituir uma
unidade impondo decididamente a divisão do trabalho, não apenas por óbvias razões
de técnica econômica, mas porque a divisão do trabalho pode produzir os vínculos
de ingerência e dependência recíproca, de relação de cada um com os outros, criando
80 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

inumeráveis elos intermediários para prevenir o perigo de decomposição, ameaça


constante dos grupos extensos. Por essa razão, quanto mais estreita a unidade
exigida, mais escrupulosa tem que ser a especialização dos indivíduos e, por
conseguinte, mais incondicional a dependência do indivíduo em relação ao todo, e
do todo ao indivíduo. O socialismo exigiria uma maior diferenciação das pessoas
num círculo muito amplo, diferenciação esta que deveria, naturalmente, estender-se,
além de seu trabalho, a sua sensibilidade e desejos. Entretanto, isso dificultaria
extremamente a comparação das prestações e das retribuições, bem como o
equilíbrio entre ambas; ao passo que nos círculos pequenos – e por isso
indiferenciados – subsiste a possibilidade de um socialismo aproximativo.
Esses grupos ficam condenados a certo número de membros em uma
civilização avançada, devido à necessidade de obter bens que os indivíduos não
podem produzir ou procurar sozinhos, dadas as condições de produção. Que nós
1
saibamos, na Europa atual , só existe uma organização aproximativamente
socialista2: o familistério de Guise. Trata-se de uma grande fábrica de objetos de
ferro, fundada em 1880 por um discípulo de Fourier, sob os princípios de assistência
plena a cada trabalhador e sua família, garantia de um mínimo vital, cuidados
médicos e educação gratuita dos filhos e produção coletiva dos meios de
subsistência. Para 1890, a comunidade ocupava aproximadamente a 2 mil pessoas

1
Lembremos que a primeira edição deste livro data de 1908. (NT)
2
A confiança que pode merecer o material histórico que utilizam estes estudos está determinada por
duas circunstâncias. Atendendo ao serviço que este material devia prestar, teria sido necessário
selecioná-lo em tantos e tão heterogêneos campos da vida histórico-social, que o trabalho de apenas
uma pessoa não poderia alcançar a dar conta do essencial, a menos que se valesse de fontes
secundárias. Fontes estas que, aliás, só poucas vezes poderiam ser confirmadas por uma pesquisa
pessoal dos fatos. Por outra parte, o trabalho teria que estender-se durante uma longa série de anos.
Compreende-se, por consequência, que nem todos os fatos puderam ser confrontados com o estado
momentâneo da pesquisa imediatamente anterior à publicação do livro. Se a exposição de fatos
sociais efetivos fosse o objeto – ainda que secundário – deste livro, não seria admissível essa
margem aqui concedida para afirmações não provadas ou errôneas. Mas este livro intenta mostrar a
possibilidade de uma nova abstração científica da existência social. Por consequência, o essencial
consiste em levar adiante esta abstração sobre alguns exemplos, mostrando que não carece de
sentido. Se se nos permite expressarmos com algum exagero em proveito da clareza metodológica,
diremos que o importante é que os exemplos sejam possíveis, e não que sejam reais. Pois sua verdade
não está (mais que em poucos casos) destinada a demonstrar a verdade de uma afirmação geral,
senão que, ainda nos casos em que a expressão pudesse fazê-lo crer, é simplesmente o objeto (em
si indiferente) de uma análise. A justeza e fecundidade dessa análise (e não a verdade acerca da
realidade de seu objeto) é o que nos propomos e é o que determina nosso sucesso ou fracasso. Em
princípio, o estudo poderia ilustrar-se inclusive com exemplos fictícios, de laboratório, apelando, para
dar-lhe sentido real, ao repertório de fatos conhecidos pelo leitor. (NS)
Georg Simmel | 81

e parecia ser viável. Mas isso se devia sem dúvidas ao fato de estar rodeada por uma
sociedade que vivia em condições completamente diferentes e por meio da qual
podia satisfazer as necessidades que sua própria produção não lhe permitia
evidentemente suprir. As necessidades humanas, por seu caráter aleatório ou
imprevisível que só permite satisfazê-las a condição de produzir por acréscimo
inúmeras coisas irracionais e inutilizáveis, não podem ser racionalizadas como a
produção. Por consequência, um círculo que pretenda evitar isto e se proponha à
plena sistematização e adequação de suas atividades a seus fins só poderá ser um
círculo pequeno, porque, assim, poderá receber de outro círculo maior que o abranja
tudo quanto precise para poder viver satisfatoriamente de acordo com certo nível de
cultura admissível.
Existem, além disso, grupos de índole confessional cuja estrutura sociológica
lhes impede de incorporar um grande número de membros, tais como valdenses,
menonitas e hussitas. Há seitas cujo dogma proíbe, por exemplo, o juramento, o
serviço militar ou a aceitação de cargos públicos. Em outras, questões tão pessoais
como o exercício de uma profissão, a organização da jornada e até o casamento
devem ser regradas pela comunidade. Isso para não falar de outras ainda em que os
fiéis têm uma vestimenta especial destinada a distingui-los dos demais homens e a
designá-los como membros da mesma comunidade. Ademais há comunidades cuja
experiência subjetiva de uma relação imediata com Jesus constitui enfim o seu nexo
propriamente dito, em que não cabe a menor dúvida de que sua extensão a círculos
mais amplos romperia o vínculo que mantêm unidos seus membros e que repousa
em grande parte justamente na atitude excepcional e de oposição adotada pelo
conjunto. Neste aspecto sociológico, ao menos, não deixa de estar justificada a
pretensão dessas seitas de representar o cristianismo primitivo, cuja expressão de
uma unidade ainda indiferenciada de dogma e vida, só foi possível em pequenas
comunidades contidas em outras maiores, as quais satisfaziam suas necessidades
vitais externas, permitindo, por oposição a elas, tomar consciência da singularidade
do grupo. Por essa razão, a extensão do cristianismo ao Estado todo modificou
completamente seu caráter sociológico, e não menos seu espírito e conteúdo.
Não cabe dúvida de que as corporações aristocráticas só podem ter uma
extensão reduzida, pelo mero fato de serem organizações baseadas em privilégios
82 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de um grupo de indivíduos que detém o monopólio do poder. No entanto, para além


dessa evidência que resulta da posição dominante dos corpos aristocráticos em face
das massas, parece impor-se uma limitação de número que, ainda que oscile dentro
de limites bastante variáveis, é absoluta a sua maneira. Queremos dizer que não só
existe certa relação numérica entre as partes que torna possível o aumento
proporcional da aristocracia dominante quando os súditos se fazem mais
numerosos, mas que há também um limite absoluto, além do qual a forma do grupo
aristocrático vira insustentável. Tal limite está determinado por circunstâncias
exteriores e psicológicas.
Para que um grupo aristocrático possa agir enquanto totalidade, é preciso que
cada um de seus membros tenha uma visão de conjunto dele, conheça pessoalmente
todos os outros, de maneira que os parentescos e cruzamentos se ramifiquem por
toda a corporação e sejam facilmente visualizáveis. Por isso, o fato de que as
aristocracias históricas, desde Esparta até Veneza, manifestarem uma tendência a
limitar o número de seus membros quanto for possível, não se deveu apenas à
repugnância egoísta de compartilhar o poder, mas ao conhecimento instintivo de que
as condições vitais de uma aristocracia somente se cumprem com um número
relativa e absolutamente limitado de seus membros. A aplicação sem restrições do
direito de primogenitura, que é de natureza aristocrática, constitui um meio para
impedir tais expansões. É, sem dúvida, sobre ele que repousava a antiga lei tebana
que proibia aumentar o número de propriedades rurais, assim como a lei coríntia que
mantinha sempre o mesmo número de famílias. É característico nesse sentido o fato
de que, em uma ocasião, Platão, falando dos oligoi no poder, chamasse-os de mé
polloi (não numerosos). Quando uma corporação aristocrática deixa o caminho
aberto às tendências democrático-centrífugas, que frequentemente aparecem
quando se produz a passagem para comunidades maiores, sucumbe às
contradições de seu próprio princípio vital, como ocorreu com a nobreza da Polônia
anterior às partições territoriais do século XVIII. No melhor dos casos, essa
contradição se resolve simplesmente com a transição para uma forma de sociedade
unitária e democrática. Assim, por exemplo, na Alemanha da Alta Idade Média, as
comunidades camponesas livres – cujos membros desfrutavam de completa
igualdade interpessoal – eram absolutamente aristocráticas, mas aquelas que
Georg Simmel | 83

continuaram nas cidades se transformaram em fonte da democracia. Para evitar isso


não há outra solução que fixar um limite rigoroso ao crescimento do grupo e opor um
numerus clausus a todos os elementos que pretendam nele entrar e que, por acaso,
tenham direito de ingresso. Amiúde, é só nesses momentos que a natureza
conscientemente aristocrática de uma corporação aparece pela oposição comum à
vontade de alargamento. Assim, a antiga comunidade gentílica romana transformou-
se em uma verdadeira aristocracia cada vez que alguma população alógena
pretendeu irromper nas gens em número muito elevado para ser admitida
gradualmente nessas agrupações de parentesco. Frente a este alargamento do
grupo, as comunidades gentílicas, essencialmente limitadas, só puderam manter-se
de forma aristocrática. Do mesmo modo, em Colônia, a guilda Richerzeche estava
originariamente constituída pela totalidade dos cidadãos livres, mas, quando
aumentou a população, converteu-se em um corpo aristocrático fechado a todos os
intrusos.
É verdade que a tendência das aristocracias políticas de “não ser numerosas”
não conduz ordinariamente a sua conservação, mas a diminuição e extinção. E isso
não apenas por motivos fisiológicos, pois, diferentemente dos grandes grupos, os
grupos pequenos e fechados serão destruídos pelo mesmo destino que
frequentemente fortalece e renova os de maior tamanho. Uma guerra desafortunada
arruína uma pequena cidade-estado e pode regenerar um Estado grande. Não só
pelas razões externas, facilmente compreensíveis, mas porque a relação entre as
forças de reserva e as energias atuantes é muito diferente em ambos os casos. Com
efeito, os grupos pequenos e de organização centrípeta mobilizam e empregam
habitualmente todas as forças de que dispõem, ao passo que, os grandes grupos têm
muitas forças em estado latente, não só em sentido relativo, mas também absoluto.
O conjunto do grupo não açambarca constante e totalmente a todos os membros
com suas exigências, mas pode retirar do uso social determinadas energias que, em
caso necessário serão evocadas e atualizadas. Por isso, mesmo quando as
circunstâncias excluem os perigos que exigem que certas energias sociais fiquem
intactas, medidas como a limitação numérica da procriação podem ser
perfeitamente adequadas. Nos planaltos do Tibete prevalece a poliandria, com
vantagem para a sociedade, como reconhecem inclusive alguns missionários. A terra
84 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

é tão pouco fecunda nessas montanhas que um crescimento rápido da população


produziria miséria, sendo a poliandria um excelente meio para preveni-la. Quando
ouvimos dizer que a terra é tão estéril que entre os bosquímanos as famílias devem
separar-se, nos parece extremamente apropriada a regra que limita as famílias a um
tamanho compatível com a disponibilidade de meios adequados de subsistência, até
mesmo no interesse de sua unidade e significação social. Nesse caso, as condições
exteriores de vida do grupo e seus efeitos sobre a estrutura interna dele previnem
dos perigos da limitação quantitativa.
Quando um círculo pequeno integra as pessoas à sua unidade de forma
suficientemente importante – em especial em grupos políticos – a tendência é a
adotar, por causa desse caráter unitário, uma conduta mais decidida em face das
pessoas, dos problemas reais e dos outros grupos; coisa que um círculo maior, cujos
elementos são múltiplos e diversos, demanda e suporta muito menos. A história das
cidades gregas e italianas, assim como a dos cantões suíços, revela que as
comunidades pequenas, próximas umas das outras, se não chegam a reunir-se em
confederações, frequentemente vivem em hostilidade aberta ou latente. A própria
conduta e o direito da guerra são ali muito mais duros e, sobretudo, mais radicais do
que entre os grandes Estados. É precisamente por causa de sua falta de órgãos, de
reservas e de elementos indeterminados ou de transição que fica mais difícil entre
elas mudarem e adaptar-se. Em razão disso, enfrentam com mais frequência
questões relacionadas à sua própria existência como grupo – não só em razão de
suas condições exteriores, mas especialmente por sua configuração sociológica
fundamental.
Em face das feições típicas dos círculos pequenos, ressaltamos – em uma
seleção necessariamente arbitrária – os seguintes traços, dentre muitos outros, que
caracterizam sociologicamente os grandes círculos. Partimos do fato de que os
grandes círculos, comparados aos pequenos, parecem ter atitudes menos radicais e
resolutas. Mas isso nos obriga a introduzir uma restrição. É justamente quando
grandes massas se põem em movimento – em assuntos políticos, sociais,
religiosos – que elas manifestam um radicalismo cego, impondo a vitória dos
partidos extremos sobre os moderados. Isso se explica, em primeiro lugar, pelo fato
de que as grandes massas só podem ser movidas e conduzidas por ideias simples,
Georg Simmel | 85

pois para que algo seja comum a grande número de pessoas tem que ser acessível
até aos espíritos mais toscos e primitivos. Aliás, mesmo entre as personalidades
mais refinadas e distintas, não encontraremos muitas que coincidam com ideias e
impulsos complexos e muito elaborados, identificando-se apenas com ideias
relativamente simples e universais. Ora, como as realidades em que se devem
verificar praticamente as opiniões da massa são sempre complexas e se compõem
de grande número de elementos muito díspares, as ideias simples só têm
oportunidade de agir de um modo fanático, brutal, radical. Esse caráter se acentuará
ainda mais quando se trate da conduta própria de uma multidão arrebanhada. Em
tais casos, as incontáveis incitações que percorrem o agrupamento social produzem
extraordinária agitação nervosa que, com frequência, arrasta sem dar-se conta os
indivíduos que formam parte dele, engrossando em ondas os estímulos e
convertendo a multidão em presa da mais apaixonada das personalidades em
presença. Por essa razão, diz-se que a regra que estabelecia que o voto do povo
romano se verificasse por grupos fixos – tributim et centuriatim descriptis ordinibus,
classibus, aetatibus, etc. – era um meio de moderar a democracia, diferenciando-se
assim os quirites das democracias gregas que votavam unitariamente sob a
impressão imediata do orador. Naturalmente, essa fusão das massas em um
sentimento que suspende toda peculiaridade e reserva das pessoas é, em seu
conteúdo, de um radicalismo tão absoluto, tão alheio a toda mediação e ponderação,
que só poderia conduzir a resultados irrealizáveis e destrutivos, se na maior parte
das vezes a consequência desse excesso fanático não estivesse já compensada por
decaimentos interiores e derrotas. Acrescente-se a isso que a massas – no sentido
que demos ao termo – têm pouco a perder, mas acreditam, em compensação, ter
tudo a ganhar. Eis a situação em que amiúde são derrubados todos os obstáculos
que se opõem ao radicalismo. Por outro lado, os grupos se esquecem (com mais
frequência que os indivíduos) de que seu poder tem limites, e olvidam-no tanto mais
facilmente quanto mais desconhecidos são os membros do grupo entre si, como
sucede numa multidão reunida por acaso.
Independentemente deste radicalismo de caráter puramente afetivo,
sobretudo nos grandes grupos, observa-se que, por via de regra, os partidos
pequenos são mais radicais que os grandes – naturalmente dentro dos limites da
86 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ideologia constitutiva de cada partido. O radicalismo de que estamos aqui a falar é o


sociológico, quer dizer, aquele que se funda na entrega sem reservas do indivíduo à
tendência do grupo; aquele que pressupõe a rigorosa delimitação do grupo em
relação às formações vizinhas, por necessidades de autoconservação; aquele que se
baseia na impossibilidade de incluir dentro de seu quadro exteriormente estreito uma
pluralidade de aspirações e de pensamentos mais amplos. O verdadeiro radicalismo
de conteúdo, porém, não tem nada a ver com isso. Observa-se que na Alemanha
atual3 os elementos conservadores e reacionários se viram na obrigação de moderar
o radicalismo de suas pretensões precisamente devido a sua força numérica. Isso
porque eles estão compostos por tantas e tão diversas capas sociais, que se veem
impedidos de levar até as últimas consequências suas brutais orientações por receio
de ferir os sentimentos ou interesses de alguma parte de seus aderentes. Igualmente,
o partido socialdemocrata à medida que aumentava sua importância quantitativa se
tem visto obrigado a diluir seu radicalismo qualitativo, a conceder certa margem aos
desvios doutrinários e a consentir – se não expressamente ao menos de fato –
algum compromisso pontual que abrandasse sua irredutibilidade dogmática.
A absoluta coesão dos elementos, que torna o radicalismo sociologicamente
possível, é tanto mais difícil de manter quanto mais variados sejam os elementos
individuais que traz consigo o crescimento numérico. Por isso, certos sindicatos
profissionais cujo fim é melhorar as condições de trabalho de seus membros, sabem
muito bem que, quando ganham em extensão, eles perdem em coesão interna. Mas,
nesse caso, o crescimento em número tem enorme importância, pois cada adesão
de um novo membro livra o sindicato de um competidor que pode rivalizar com ele e
ameaçar sua existência. Com efeito, está claro que surgem condições de vida
absolutamente especiais para aqueles grupos constituídos em outro grupo maior
com a ideia de reunir no seu seio todos os possíveis membros que correspondam a
seus postulados e cuja existência só faz sentido à luz desse objetivo. Em
semelhantes casos, vigora com frequência o provérbio “quem não está em meu favor
está contra mim”. As pessoas que pertencem idealmente ao grupo, segundo as
pretensões deste, causam um prejuízo real com sua mera indiferença e ausência

3
De começos do século XX. (NT)
Georg Simmel | 87

– seja porque competem com ele, como sucede no caso dos sindicatos de
trabalhadores, seja porque isso prova às pessoas de fora os limites do poder do
grupo, seja porque o grupo precisa integrar-se para que existam todos os elementos
de sua área de atuação ou interesse, como no caso de certos cartéis industriais. Por
consequência, quando surge para um grupo a questão – que não se aplica de modo
algum para todos – de sua completude (quer dizer a questão de saber se ele contém
verdadeiramente todos os membros que idealmente se conformam a seu princípio),
cabe distinguir cuidadosamente as consequências que se derivam da completude
daquelas que advêm do tamanho. Evidentemente, se o grupo está completo será
maior que se estivesse incompleto. Mas o que tem importância para certos grupos
não é a simples quantidade (expressão de seu tamanho), mas o problema de saber
se, com essa quantidade, fica preenchida certa área de competência prefixada.
Assim, no caso dos sindicatos de trabalhadores, as desvantagens acarretadas pelo
mero aumento numérico (a raiz da perda de coesão e de unidade), são compensadas
pelas vantagens opostas que resultam da aproximação à totalidade de membros
possíveis.
Em geral, as instituições dos grandes círculos explicam-se como
compensações ou substitutos da coesão pessoal e imediata que caracteriza os
círculos pequenos. Trata-se de órgãos que organizam e instrumentalizam as ações
recíprocas dos membros, agindo como sustentáculos da unidade social diante da
ausência de relações pessoa a pessoa. Com esse objeto surgem os cargos e as
representações do povo, as leis e os símbolos da vida social do grupo, as
organizações e os conceitos sociais gerais. Este livro trata em numerosas passagens
da formação e funcionamento destas instituições. Bastará aqui indicar sua relação
com o ponto de vista numérico. Essencialmente, todas essas formas se dão apenas
em estado puro e alcançam pleno desenvolvimento nos grandes círculos como
forma abstrata do nexo social, já que as formas concretas de coesão do grupo não
podem subsistir quando este atinge certa extensão. Sua finalidade, que se ramifica
em milhares de qualidades sociais, repousa em última instância sobre pressupostos
numéricos. O caráter de impessoalidade e objetividade, que em face dos indivíduos
apresentam essas encarnações das energias sociais, procede precisamente da
grande quantidade de elementos individuais ativos. A abundância e profusão de tais
88 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

elementos neutraliza o que eles têm de individual com tal sucesso que sua dimensão
universal se descola e distancia tanto que pode aparecer como algo que existe por si
só, que não necessita do indivíduo e que, muitas vezes, se nos afigura como algo
antagônico a ele. De maneira análoga ao que passa com o conceito que, reunindo o
que há de comum em fenômenos singulares e diversos, está tanto mais distante de
cada um deles quanto maior seja o número de fenômenos que o conceito em questão
abranja. (É por isso que os conceitos mais gerais, os que dominam um maior círculo
de individualidades – as abstrações metafísicas – adquirem uma vida à parte, cujas
normas e desenvolvimentos são frequentemente estranhos e até hostis aos do
indivíduo tangível). Por consequência, o grande grupo somente conseguirá sua
unidade – tal como ela se expressa em seus órgãos, em seu direito, em seus
conceitos políticos e em seus ideais – pagando o preço de uma grande distância
entre todas essas estruturas e o indivíduo, suas ideias e necessidades – enquanto
na vida social de um círculo pequeno estas atitudes mentais e exigências podem
imediatamente ser postas em prática e tidas em conta pelos indivíduos. Assim se
explicam as frequentes dificuldades que experimentam as organizações que
abrangem uma série de associações menores, fruto de uma contradição maior: as
situações reais são mais bem conhecidas e tratadas com cuidado mais próximo,
enquanto as relações justas e regulares entre todas as unidades são mais bem
determinadas longe do órgão central. Tal dualismo se apresenta constantemente,
por exemplo, na política de beneficência, nos sindicatos e na administração escolar.
As relações pessoa a pessoa, que constituem o princípio vital dos círculos pequenos,
são incompatíveis com a distância e a frieza das normas objetivas e abstratas, sem
as quais, porém, os grandes círculos não podem subsistir4.

4
Surge aqui uma dificuldade típica das relações humanas Em nossas atitudes teóricas e práticas a
respeito de todos os objetos possíveis, nos vemos constantemente impelidos de estar
simultaneamente dentro e fora deles. Por exemplo, quem argumenta contra o uso do tabaco teria que
fumar para saber do que está falando e, por outro lado, está claro que não deveria fazê-lo. Com efeito,
se não fuma lhe faltará o conhecimento dos prazeres que condena, e se fuma, não será legítimo que
condene o que pratica. Para formular uma opinião sobre as mulheres “em geral”, será necessária a
experiência que proporcionam as relações íntimas com elas, mas também será preciso estar livre e
longe das ditas relações que deformam sentimentalmente o juízo. Só quando estamos junto a uma
coisa, dentro dela, no seu mesmo nível, podemos chegar a seu conhecimento e compreensão, mas só
quando a distância suprime o contato imediato em todos os sentidos, possuímos a objetividade que
é tão necessária como a proximidade para julgar. Este dualismo da proximidade e da distância que é
preciso para ter um comportamento unitário e justo, pertence, de certa maneira, às formas
fundamentais de nossa vida e sua problemática. O fato de que um único e mesmo assunto só possa
Georg Simmel | 89

As diferenças estruturais produzidas pelas simples diferenças quantitativas


dos grupos resultarão ainda mais claras se atendemos ao papel que desempenham
certos elementos eminentes e influentes. Com efeito, se resulta evidente que certo
número de tais elementos adquire um sentido distinto em um círculo grande que em
outro pequeno, isso não é tudo: a modificação quantitativa do círculo muda também
a ação dos elementos significativos ainda que sua própria quantidade aumente ou
diminua na mesma proporção que a do círculo. O papel desempenhado por um
milionário em uma cidade de 10 mil habitantes, a situação econômica média e a
fisionomia que esse vizinho empresta à cidade são completamente distintos da
significação que 50 milionários ou cada um deles têm em uma cidade de 500 mil
habitantes, ainda que a relação numérica entre o milionário e seus convizinhos (que
parecia ser a única e determinante) siga sendo a mesma. Se em um bloco
parlamentar de 20 representantes há quatro deles que criticam o programa do
partido pelo qual têm sido eleitos ou estão dispostos a abandoná-lo, isso terá uma
importância muito diferente para a ideologia e a prática do partido que se a mesma
agremiação política possuísse 50 representantes e fossem 10 os rebeldes. Em geral,
e ainda que a proporção numérica permaneça igual em ambos os casos propostos,
será maior a importância dos dissidentes no bloco parlamentar mais numeroso. Para
terminar, diz-se que quanto maior a população sobre a qual uma tirania militar
imponha seu jugo, mais fácil será mantê-lo, coeteris paribus5. Com efeito, supondo
que o exército contenha em si 1% do conjunto de habitantes, custará menos dominar
uma população de 10 milhões de almas com um exército de 100 mil homens, que
uma cidade de 100 mil habitantes com 100 soldados, ou um povoado de 100 aldeões
com apenas um fardado. Nesses casos, os números absolutos do grupo total e dos
elementos influentes nele determinam diversamente as relações dentro do grupo
mesmo que sua proporção numérica permaneça idêntica. Esses exemplos, que
poderíamos multiplicar à porfia, demonstram que as relações entre os elementos
sociológicos dependem não só das quantidades numéricas relativas, mas também
das absolutas. Se designarmos os elementos desse gênero chamando-os “partido”

ser tratado corretamente dentro de um grupo pequeno por uma parte, mas que por outra deva sê-lo
também por um grande grupo, é uma contradição sociológica que constitui um caso particular do
caráter contraditório da condição humana em geral. (NS)
5
Coeteris paribus é uma expressão em latim que significa “mantido inalterado tudo o mais”. (NT)
90 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

dentro do grupo, diremos então que a proporção do partido em relação à totalidade


se modifica não só quando o partido aumenta ou diminui mantendo constante o
resto do conjunto, mas também quando essa modificação afeta na mesma medida
o tudo e a parte. Fica assinalada assim a importância sociológica da maior ou menor
dimensão do próprio círculo total perante as relações numéricas dos elementos, que
parecem, à primeira vista, serem as únicas que dariam um significado ao número
para as trocas sociais dentro dos grupos.
A diferença formal que introduz a dimensão quantitativa do grupo na conduta
social dos indivíduos ultrapassa seu aspecto puramente factual para cair também
no âmbito da norma, do dever ser. A expressão mais clara de apreço a isso situa-se
talvez na diferença entre o costume e o direito. Afirma-se que entre os povos indo-
europeus, os primeiros vínculos que ligam o indivíduo a uma organização de vida
supraindividual nasceram de um instinto ou conceito primário que significa preceito,
conveniência, dever ser em geral. Tal regulação normativa indiferenciada se
apresenta, por exemplo, no darma dos indianos, na temis dos gregos ou no fas dos
latinos. Os ordenamentos particulares nas esferas da religião, a moral, as
convenções e o direito são ramificações desse instinto normativo que é a unidade
primordial de todas essas formas diferenciadas.
Em oposição a opinião segundo a qual a moral, o costume e o direito se têm
desenvolvido como brotos paralelos daquele germe originário, acreditamos que o
que se chama costume constitui a forma atual do mencionado instinto normativo
primário que representa aquele estado indiferenciado desde onde as formas do
direito e da moral surgem com suas respectivas feições. A moral só nos interessa
aqui como representação da conduta do indivíduo confrontado a outros indivíduos
ou comunidades, quer dizer, na medida em que revela o mesmo conteúdo que o
costume e o direito. A diferença consiste no fato de que esse outro sujeito (que se
desenvolve no indivíduo, em face do confronto, sob a forma da conduta moral) reside
no próprio indivíduo. Assim como o indivíduo se cinde quando diz: “eu sou”
– confrontando-se a si mesmo como sujeito que sabe e como objeto sabido –,
cinde-se também quando diz: “eu devo”. A relação de dois sujeitos, relação que
aparece como imperativa, se repete na alma individual graças à capacidade
fundamental de nosso espírito de contrapor-se a si mesmo ao ver e tratar-se como
Georg Simmel | 91

se fosse outro. (Não trataremos aqui do problema da transposição de relações


empíricas interindividuais anteriores que migram ao terreno da alma individual, nem
da possibilidade de esse imperativo brotar da pura espontaneidade). Por outra parte,
uma vez que as formas de regulação normativa se têm apoderado de determinados
conteúdos, eles se emancipam de seus primitivos sustentáculos sociológicos e se
elevam até adquirir uma necessidade própria, autônoma, que é preciso qualificar de
ideal. Se tais conteúdos – maneiras de conduzir-se ou estados internos dos
sujeitos – são então valiosos por si mesmos, eles devem ser, e o fato de que tenham
natureza ou alguma importância sociais não decide exclusivamente sobre seu
caráter imperativo que, em vez disso, surge de seu valor e de seu sentido objetivo e
ideal.
Mas nem aquela figura pessoal da moral, nem essa evolução das três ordens
no sentido da importância objetiva e suprassocial impedem que seus conteúdos
sejam considerados aqui como finalidades sociais e aquelas três formas como o
“contrasseguro” de sua realização pelo indivíduo. São realmente formas da relação
interna e externa do indivíduo com um grupo social, pois o idêntico conteúdo dessa
relação adota historicamente uma ou outra dessas formas ou motivações. O que em
uma época ou em determinado lugar era costume, converte-se em outro lugar ou
mais tarde em direito estatal ou foi confiado à moral pessoal. O que estava garantido
pela lei se transforma logo em mero costume. O que tinha sido confiado à
consciência do indivíduo tem sido frequentemente exigido mais tarde legalmente
pelo Estado, etc. Os polos extremos dessa série são o direito e a moral, entre os quais
o costume – do qual têm nascido aqueles – ocupa, por assim dizer, o centro. Com a
lei e seus órgãos executores o direito dispõe de aparelhos estatais diferenciados que
lhe servem para circunscrever com exatidão seus conteúdos e para exigir
coercitivamente seu cumprimento. Mas por essa razão limita-se aos supostos
absolutamente indispensáveis da vida social: o que a coletividade pode exigir
incondicionalmente ao indivíduo é o que ela deve limitar-se a exigir. Ao contrário, a
livre moral do indivíduo não possui outra lei que a que ele mesmo se dá
autonomamente desde sua própria intimidade, nem outro órgão executor que a
própria consciência. Por isso seu domínio abrange por princípio a totalidade de sua
92 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ação, ainda que esteja claro que, na prática e vista de fora, ela tem em cada caso
limites particulares, aleatórios e variáveis6.
Por meio do costume, cada círculo assegura o comportamento adequado de
seus membros ali onde a coerção do direito não pode aplicar-se e a moral individual
não é garantia suficiente. Dessa maneira, o costume funciona hoje como
complemento das duas ordens restantes, assim como ele era a única regulação da
vida nos tempos em que não existiam ou ainda germinavam as outras formas
diferenciadas das relações interna e externa do indivíduo com um grupo social. Fica
indicado destarte o lugar sociológico que ocupa o costume: entre o grande círculo
no qual os membros estão submetidos ao direito, e a individualidade absoluta, único
sustentáculo da moralidade livre. Pertence, pois, aos círculos mais estreitos, às
formações intermédias entre os grupos amplos e o indivíduo. Quase todos os
costumes são de classe ou profissão. Seus modos de expressão como o
comportamento exteriorizado, a moda, a honra, dominam apenas em cada uma das
subdivisões do grande grupo em que impera o direito, mas em cada um desses
subgrupos têm já outro conteúdo7. Por exemplo, confrontado a uma violação dos

6
O direito e a moral surgem pari passu em um meandro da evolução social. Isso se reflete no sentido
teleológico de ambos, que se remetem um ao outro mais do que à primeira vista se poderia pensar.
Quando a conduta estrita do indivíduo, que implica toda uma vida regulada pelo costume, dá lugar às
normas gerais do direito, que se distanciam muito de todo o individual, é de interesse social não deixar
livre à sua sorte a liberdade assim conseguida. Os imperativos morais complementam então os
jurídicos, preenchendo as lacunas produzidas pela desaparição do costume, regulador geral da vida.
Mas, em face do costume, as outras duas formas de regulação normativa, moral e direito, superam
em muito o indivíduo quando estabelecem o padrão que deverá orientar sua ação, ao mesmo tempo
em que atingem a recôndita intimidade dele. Pois, quaisquer que sejam os valores pessoais e
metafísicos que representem a consciência e a moralidade autônoma, seu valor social – único que
aqui nos interessa – radica em sua enorme utilidade profilática. O direito e o costume afetam a
atividade da vontade em sua manifestação exterior agindo preventivamente e pelo medo. Para tornar
supérfluo este motivo, um e outro necessitam na maioria das vezes – mas não sempre – serem
acolhidos a posteriori na moral pessoal. Conseguirão então estar na origem mesma do ato e modificar
a convicção profunda do sujeito até que ele chegue a realizar por si mesmo a atividade considerada
justa sem o sustento dessas forças externas? Ora, a sociedade não tem nenhum interesse na
perfeição puramente moral do sujeito, só se importa com ela – e a fomenta – na medida em que
representa a maior garantia imaginável para a realização por esse sujeito das ações consideradas
socialmente desejáveis. Com a moral individual, a sociedade cria um órgão que não só é muito mais
eficaz que o direito e o costume, mas que por acréscimo poupa os gastos e embaraços às instituições.
Por fim, essa tendência da sociedade a pagar o menos caro possível por aquilo que ela precisa, fez
aparecer a “tranquilidade de consciência” com a qual o indivíduo se recompensa a si mesmo por suas
boas ações, prêmio que, se ele não se outorgasse, deveria provavelmente ser-lhe concedido de uma
ou outra maneira pelo direito ou pelo costume. (NS)
7
Vide a discussão sobre a forma sociológica da honra nos capítulos consagrados à autoconservação
dos grupos e ao cruzamento dos círculos. (NS)
Georg Simmel | 93

bons costumes, o círculo estreito daqueles a quem a ofensa tem afetado ou que têm
sido testemunhas dessa ofensa, só reage enquanto uma violação da ordem jurídica
suscitar a reação de toda a comunidade. Como a opinião pública e certas reações
individuais que derivam imediatamente dela constituem o órgão executor do
costume, é impossível que seja administrada por um grande círculo. É fato que não
precisa de maior explicação, que os costumes dos comerciantes permitem ou
ordenam coisas distintas que os da aristocracia, e que os de um círculo religioso não
têm o mesmo alcance que os de um círculo literário, etc. Isso revela que o conteúdo
do costume consiste nas condições particulares necessárias a todo círculo reduzido,
o qual não dispõe para garanti-las nem do poder coercitivo do direito estatal, nem de
impulsos morais autônomos dignos de absoluta confiança.
Esses círculos têm simplesmente em comum com os primitivos (quando para
nós começa a história social) o escasso número de seus membros. As formas vitais
que bastavam então ao círculo, dada sua forte coesão, transladam-se a suas
subdivisões à medida que o círculo total foi crescendo. Nessas subdivisões estão,
com efeito, contidas aquelas possibilidades de relações pessoais, a igualdade
aproximada dos membros e a comunidade de interesses e ideais necessárias para
ancorar a regulação social a normas tão precárias e elásticas como as do costume.
Mas,quando o número de membros cresce de tal forma que eles se tornam
necessariamente autônomos, essas condições desaparecem para o círculo total. A
singular força vinculativa do costume resulta então pequena demais para o Estado e
excessivamente grande para os indivíduos, enquanto seu conteúdo, pelo contrário,
resulta exagerado para o Estado e escassamente significativo para os indivíduos O
primeiro reclama, assim, maiores garantias, ao passo que os segundos reivindicam
uma maior liberdade e, por isso, cada elemento só se encontra submetido ao
costume nos aspectos em que pertence ainda a círculos médios.
Se o grande círculo exige e autoriza (melhor que os de porte mediano e
pequeno) o severo e objetivo ordenamento normativo que se cristaliza no direito é
porque seus elementos dispõem de uma maior liberdade, mobilidade e
individualização. Se graças ao direito a coerção socialmente necessária fica
determinada com exatidão e tem que ser observada escrupulosamente, em
compensação, a força exercida pelo Estado resulta mais suportável para o indivíduo
94 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

porque, além dessas obrigações imprescindíveis, se concede aos elementos do


grupo uma margem de manobra maior. Isso fica bem mais claro quando o direito
– ou a norma que tende a sê-lo – tem um caráter impeditivo ou proibitivo. Entre os
aborígenes do Brasil, o casamento com a irmã ou com a filha do irmão está
geralmente proibido. Mas esse preceito se observa de forma tanto mais rigorosa
quanto maior seja a tribo, enquanto nos pequenos bandos, que vivem no isolamento,
é frequente a união entre irmãos e irmãs.
O caráter proibitivo da norma – mais próprio do direito que do costume –
adéqua-se melhor aos grandes círculos que aos pequenos, porque os primeiros
oferecem muitas mais compensações positivas do que os segundos. Por outro lado,
observa-se que o crescimento do grupo favorece a conversão de suas normas em
formas jurídicas, tão bem que muitas associações de pequenos grupos para formar
uma entidade maior se têm concretizado frequentemente com o propósito de facilitar
a administração de justiça, colocando sua unidade sob o signo exclusivo da
submissão ao direito uniforme. Assim, o county8 dos estados da Nova Inglaterra não
era em seus começos mais que aggregation of towns for judicial purposes9.
Há, porém, aparentes exceções a esse nexo que vincula a diferença entre a
forma social do direito e do costume ao tamanho diverso dos círculos. As unidades
primitivamente étnicas das tribos germânicas – sobre as quais foram edificados os
grandes reinos inglês, sueco ou franco, por caso - souberam reservar-se, durante
muito tempo, à administração de justiça, que só passou relativamente tarde a ser
atributo do Estado. Por outra parte, as relações internacionais modernas estão
largamente regidas por costumes que, apesar disso, não têm podido adquirir um grau
de consolidação suficiente para converter-se em direito, enquanto dentro de cada
Estado particular há algumas formas de conduta consagradas pelo direito interno,
mas que foram abandonadas nas relações internacionais (quer dizer, dentro do
maior de todos os círculos) em favor da forma mais flexível do costume. Todavia, a
solução da aparente contradição é simples. O tamanho do círculo só favorece a

8
Cada um dos estados nos Estados Unidos está subdividido administrativamente, em territórios
chamados condados (em inglês: county) – com exceção do Alasca, onde tais divisões são chamadas
de distritos (em inglês: boroughs), e da Louisiana, onde são chamadas de paróquias (em inglês:
parishes). (NT)
9
Uma reunião de cidades com fins judiciais. (NT)
Georg Simmel | 95

forma jurídica na medida em que a pluralidade de seus elementos se reúne numa


unidade. Se apenas um número de contatos desagregados e não uma centralização
firme permite atribuir ao círculo sua pretensa unidade, então esse caráter se revela
claramente relativo. A unidade social é um conceito que admite graus. Por isso,
mesmo que certa forma de regulação pareça corresponder ao tamanho do círculo ou
a determinada quantidade de seus membros, pode suceder que a um número
diferente desses elementos do círculo corresponda também à mesma forma, e que,
apesar de ser idêntica a quantidade de seus membros, seja distinta a respectiva
forma de regulação. Tudo dependerá do diferente grau de unidade que sustente o
círculo e que esteja por trás dele. Por conseguinte, não se menospreza a importância
das relações numéricas pelo fato de que um grande círculo, a raiz de sua especial
condição, possa ou deva renunciar à forma jurídica de suas normas, coisa que
normalmente só é possível para um pequeno círculo. Aquelas entidades políticas
flexíveis dos primeiros tempos germânicos não possuíam ainda essa coesão dos
elementos que, quando existe nos grandes grupos, é tanto causa como efeito de sua
constituição jurídica. Da mesma forma, nas relações coletivas e individuais entre os
Estados modernos certas normas se apresentam simplesmente sob a forma do
costume porque nesse caso falta a unidade sobre as partes que é o suporte de uma
ordenação jurídica, que em círculos pequenos ou mais flexíveis é substituída pela
ação recíproca e imediata de seus membros. Ora, a forma de regulação que
corresponde aos círculos pequenos e pouco coesos é justamente o costume. Dessa
forma, podemos ver como são precisamente as aparentes exceções as que
confirmam a conexão que existe entre o costume e o direito, por um lado, e o tamanho
dos círculos, por outro.
É claro que os conceitos de grande e pequeno círculo são instrumentos
científicos extraordinariamente toscos e indeterminados, que no fundo só servem
para pôr em evidência quão dependente é, normalmente, a forma sociológica do
grupo de seu tamanho; sem chegar todavia a demonstrar a proporção efetiva que
deve existir entre forma e quantidade. Contudo, talvez não seja impossível, em certos
casos, determinar com maior precisão essa proporção. Certamente, constituiria uma
empresa notável para a evolução possível de nosso saber poder reduzir a valores
numéricos exatos às formações e relações que acabamos de considerar
96 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

precedentemente. Dentro de limites mais modestos já se podem indicar hoje alguns


dos traços das sociações que têm lugar entre um número limitado de pessoas e que
se caracterizam por essa limitação. Enumeraremos, destarte, alguns casos que
podem servir de exemplo da região intermédia entre a indeterminação e a
determinação numéricas totais, casos nos quais a quantidade tem já alguma
importância sociológica, sem que se possa chega ainda a sua fixação detalhada.
1) O número funciona assim como um princípio de divisão do grupo, quer dizer,
as partes dele, às que se chega por divisão, são consideradas como unidades
relativas. Mais tarde insistiremos na importância especial de alguns números, mas
aqui nos limitaremos a definir o princípio. O fato de que um grupo, que de alguma
maneira tem o sentimento de ser um, se divida e o faça, não só entre superiores e
inferiores ou entre dominantes e dominados, mas também entre membros de igual
condição, constitui um dos mais imensos progressos da humanidade; é a estrutura
anatômica em que se fundam os mais elevados processos orgânico-sociais. O ponto
de partida dessa divisão pode ser a linhagem de cada um, ou associações
contratuais voluntárias, ou a similitude de ocupações, ou a reunião em distritos
geográficos. Princípios aos quais se acrescenta o numérico, que permite dividir a
soma de homens ou famílias existentes por certo número, formando assim
subdivisões iguais em quantidade, cada uma das quais terá aproximadamente com
o todo a mesma relação que ela mantém com cada um dos indivíduos que a
compõem.
Ora, tal princípio é tão esquemático que para chegar a realizar-se prescinde
de outro mais concreto: as divisões iguais em número estavam compostas por
pessoas de certo modo próximas (parentes, amigos, vizinhos), parecidas ou com
diferenças complementares. Mas o elemento decisivo é que a igualdade numérica
constitui o princípio formal dessa divisão – mesmo que nunca seja o único elemento
decisivo, pois seu papel oscila entre um máximo e um mínimo. Assim, por exemplo,
as tribos nômades que carecem de outros conteúdos vitais estáveis, frequentemente
não têm outra possibilidade de organização além do princípio numérico. Ainda hoje
a estrutura dos exércitos está determinada pela importância do número para uma
multidão em marcha. E essa organização prossegue amiúde naturalmente na divisão
de um país conquistado ou na colonização de terras recentemente descobertas.
Georg Simmel | 97

Nesses casos, no começo, quando faltam critérios objetivos de organização, o


princípio da divisão por grupos iguais em número é dominante; critério que imperava,
verbi gratia, na mais antiga constituição da Islândia. Aplicando esse princípio em
toda sua pureza, Clístenes realizou uma das maiores reformas da história das
sociedades, quando instituiu o Conselho de 500 membros, divididos nas 10 phylai
(tribos), a razão de 50 por cada uma, permitindo que todos os demos obtivessem um
número de postos de conselheiro correspondente a seu número de habitantes. A
ideia racional de instituir uma corporação representativa da totalidade do grupo,
segundo o princípio do número, aparece aqui como uma fase superior de evolução
que está por cima da centúria típica – da qual falaremos mais adiante – e utiliza pela
primeira vez a divisão estritamente numérica para que a unidade de governo funcione
como símbolo da população.
2). Até agora só tratamos da igualdade numérica de distintas subdivisões.
Mas o número pode servir também para caracterizar, dentro de um grupo, um círculo
particular constituído por pessoas dirigentes. Assim, frequentemente, eram
designados os chefes de corporação por seu número. Em Frankfurt, os dirigentes dos
tecedores de lã eram chamados de os Seis, e os dos padeiros, de os Oito. Na
Barcelona medieval, a autoridade de autogoverno municipal da cidade era
denominada o Conselho de Cem, etc. É extremamente curioso que com esses
números indeterminados, indiferentes a toda qualificação, fossem designadas
justamente as personalidades mais eminentes. O fundamento disso nos parece
consistir no fato de que com um número, por exemplo com o seis, não se designava
seis elementos individuais, isolados, um ao lado do outro, mas uma síntese deles.
Seis não era “um mais um”, “mais um”, etc., mas um novo conceito resultante da
reunião desses elementos e que não foi alcançado segundo uma proporção
determinada de cada um deles. Com frequência designamos neste livro a ação
mútua, viva e funcional de elementos, como sua unidade, superando assim sua
simples adição e em contraposição sociológica a ela. Mas nestes casos,
identificando um grupo dirigente, uma comissão, etc., por sua mera expressão
numérica, pensa-se em realidade em sua reunião funcional, e no que torna essa
denominação possível, a saber, justamente o fato de que o número significa já em si
mesmo uma unidade feita de unidades. Por consequência, no caso evocado, os Seis
98 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

não estão espalhados dentro de um círculo homogêneo: eles representam ao


contrário uma sólida e bem definida articulação do círculo, graças à qual se
destacam dentro dele seis pessoas que se reúnem em uma unidade diretiva. O
caráter impessoal e neutro da designação numérica é, neste caso, muito significativo,
pois indica, com mais clareza que qualquer conceito formal, que os indivíduos não
são pensados aqui como pessoas, mas como partes de um organismo puramente
social. A estrutura do círculo exige que sua instância dirigente esteja integrada por
certo número de membros, mas o conceito estritamente numérico revela a
objetividade pura da forma, indiferente a todo aspecto pessoal do membro isolado, a
quem se exige apenas que seja um dos Seis. Acaso não haja forma mais
impressionante de expressar a alta posição social de um indivíduo, e ao mesmo
tempo de marcar a total insignificância do que ele é como pessoa, fora de sua função.
A unidade de agrupamento, que se manifesta quando os elementos se reúnem
para constituir um número maior, resulta particularmente acentuada por um fato que
aparentemente fornece uma prova em contrário. Aquela autoridade municipal da
Barcelona medieval que se chamava o Conselho de Cem acabou tendo, de fato, mais
de uma centena de membros, alcançando até o dobro sem mudar por isso de nome.
O mesmo fenômeno se produz quando o número não age como um princípio de
distinção, mas de divisão. Por exemplo, nos povos em que vigorava a divisão por
centúrias (da que falaremos logo) esse número de membros não foi quase nunca
respeitado em cada divisão, como bem podemos comprová-lo no caso das antigas
centúrias germânicas. O número se torna, assim, sinônimo de pertença a
determinado grupo que, em princípio, abrangia, ou deveria abranger, apenas um
círculo de uma centena de indivíduos. Este fato aparentemente insignificante
demonstra a enorme importância da determinação numérica para a estrutura do
grupo. O número é inclusive independente de seu conteúdo aritmético, expressando
unicamente o caráter numérico da relação dos membros com o conjunto ou, por
outras palavras, o número – que se estabilizou em certo ínterim – representa essa
relação. Segue vigente a ideia que preside a divisão por cem, ainda que na prática só
seja realizada de um modo mais ou menos exato. Dizer que as centúrias germânicas
somente expressavam uma pluralidade indeterminada, entre o indivíduo isolado e a
totalidade dos membros, equivale a designar o tipo sociológico que aqui se postula:
Georg Simmel | 99

a vida do grupo exige uma instância mediadora entre o indivíduo e a totalidade, um


órgão de funções determinadas, que nem um nem outra estariam em condições de
realizar, e que leva o nome de sua determinação numérica. Não são as funções
– múltiplas e variáveis – as que dão o nome; o único permanente é a reunião de uma
porção da comunidade em uma unidade de determinado tamanho. A dimensão que
haverá de ter esta porção em cada caso concreto resta incerta, mas a permanência
da designação numérica demonstra que a relação é considerada como o essencial.
É assim que surge no campo sociológico um fenômeno cuja forma psicológica
se apresenta também em outras esferas. Parece que as distintas moedas russas
derivam de um antigo sistema de pesos, no qual toda unidade superior valia dez
vezes mais do que a unidade inferior. Historicamente, tratava-se de pedaços de
metal com determinado peso que, com o correr do tempo, adquiriam o formato de
disco plano. Este, até alguns séculos atrás, não possuía limites fixos, motivo pelo
qual era frequente o recorte da moeda pelo seu dono antes da peça ser passada com
todo seu valor nominal. Depois de certo tempo a quantidade de metal variava, as
moedas ficavam obviamente menores e seu valor metálico mudava, apesar de suas
relações de valor permanecerem imutáveis uma vez introduzidas na ordem
numérica. Destarte, enquanto mudavam as relações reais de valor metálico, as
moedas legalmente, ainda carregavam o mesmo valor nominal, e o serviço que
deviam prestar aos negócios (precisamente pela imutabilidade de seu valor nominal)
ficava sinalado pelo fato das primeiras relações históricas dos pesos serem as que
proporcionavam permanentemente nomes e símbolos para as mencionadas
transações nominais. Em outras ocasiões o número se converte também no
representante da coisa que ele relaciona e, em tais casos, o essencial – ou seja,
determinada relação entre o todo e a parte – é indicado pelo fato de que o conceito
numérico das relações primeiras designa também as modificações posteriores.
Assim, na Espanha do século XVI, o imposto sobre os metais era chamado de o
quinto, porque consistia originariamente na quinta parte do valor dos metais
extraídos. Conservou, porém, esse nome mais tarde, apesar de as proporções
mudarem. Analogamente, a palavra dízimo 10 , que apareceu entre os antigos

10
Dar o dízimo foi uma prática que começou segundo o Antigo Testamento, quando o “Povo de Deus”
recebeu a ordem de dar a décima parte das suas colheitas e rebanhos como instrumento de auxílio
100 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

israelitas e, mais tarde, foi adotada por outros povos, passou a designar o tributo em
geral – assim como a centúria é a divisão por excelência. A relação quantitativa, que
constitui a essência tanto do imposto como da divisão social, tem substituído
psicologicamente à determinação de seu conteúdo, como claramente se vê no fato
de a determinação numérica originária ter se cristalizado e designar todas as
modificações exteriores da proporção.
3) A determinação numérica, como forma de organização, adquire um lugar de
destaque dentro da evolução social. Com efeito, a divisão numérica aparece
historicamente como substituto ao princípio do clã. Em muitos povos os grupos
estavam compostos de subgrupos constituídos por laços de parentesco, cada um
dos quais era de fato uma unidade econômica, penal, política e de outras ordens.
Essa organização, bem fundada internamente, foi porém substituída pela repartição
em grupos de 10 ou 100 homens, constituídos para a realização dessas mesmas
tarefas solidárias. Semelhante substituição pode parecer à primeira vista algo
singular, uma esquematização carente de vida interior. Em vão buscaríamos nos
princípios imanentes que dão coesão àqueles grupos algo que justifique essa
substituição da raiz orgânica original por essa base mecânica e formalista. De fato,
a razão não pode estar mais que na totalidade composta por esses grupos, cujas
exigências são independentes dos princípios vitais de suas partes. À medida que a
totalidade, como unidade, vai obtendo mais conteúdo e poder, as partes (ao menos
no começo e antes de alcançar o grau superior de evolução) perdem sua própria
significação, transferem à totalidade o sentido que tinham por si mesmas, e se
adéquam mais a sua finalidade quanto menos ideias próprias vivem nelas e quanto
mais se organizam em partes mecânicas que só adquirem posição e importância por
sua contribuição à totalidade11. Todavia, isso não é verdade em certos tipos muito
aperfeiçoados de evolução. Há certas instituições sociais que, justamente porque
têm um tamanho considerável e estão perfeitamente organizadas, podem conceder
ao elemento individual a maior liberdade para sua realização pessoal ao viver
segundo normas particulares e formas próprias. Por outra parte, há outras

social, notadamente para os levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas. A palavra “dízimo” vem da palavra
hebraica malaser e da palavra grega dekate, que traduzida significa “um décimo”. (NT)
11
Vide o desenvolvimento desta ideia no capítulo sobre o cruzamento dos círculos. (NS)
Georg Simmel | 101

instituições que precisam que seus elementos tenham uma vida própria
extremamente intensa e diversificada para que sua força de conjunto alcance sua
máxima expressão. A transição do clã para a centúria caracterizou esse estádio
médio em que a falta de sentido e de caráter peculiar dos membros constitui um
progresso para a totalidade. Com efeito, só assim, em determinadas circunstâncias,
foi possível controlar facilmente os elementos individuais e dirigi-los segundo
normas simples sem que essa resistência que se desenvolve facilmente em todo
subgrupo que se sente fortemente coeso, se opusesse contra o poder central.
Quando a constituição ou ação dos grupos está determinada numericamente
– desde a antiga centúria até o moderno reinado das maiorias –, a individualidade é
subjugada. Eis um ponto no qual se manifesta muito claramente a profunda
discrepância entre a ideia verdadeiramente democrática da sociedade e o princípio
liberal e individualista. Constituir uma soma com um número “arredondado” de
pessoas e operar com elas sem ter em conta as particularidades dos indivíduos que
integram o conjunto resultante; contar os votos em lugar de ponderá-los; fundar as
instituições, as disposições, as proibições; as prestações e as concessões, desde um
primeiro momento, no número de pessoas que as aprovam, pode produzir
despotismo ou democracia, mas em todo caso supõe reduzir a verdadeira
personalidade individual ao fato formal de que ela é apenas uma. Quando um
indivíduo ocupa um posto em uma determinada organização unicamente pelo
número, seu caráter de membro do grupo domina completamente sua condição de
indivíduo diferenciado. A divisão em subgrupos numericamente iguais poderá ser tão
rústica e variável como nas centúrias dos germanos, dos peruanos ou chineses, ou
tão afinada, adequada e exata como a de um exército moderno, ela sempre revelará
de um modo claro e implacável a lei formal do grupo (que existe para si, ora como
tendência nova e ainda em estado permanente de luta e compromisso com
tendências diferentemente orientadas, ora impondo-se como autoridade absoluta).
O caráter supraindividual da agrupação e a plena emancipação da forma a respeito
de todo conteúdo da existência individual nunca imperam de modo tão absoluto e
radical como diante de princípios de organização reduzidos a relações estritamente
aritméticas. Por sua vez, a medida – muito variável – em que cada grupo se aproxima
102 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

desses princípios aritméticos indica até que ponto a ideia de agrupação em sua
forma mais abstrata absorve a individualidade de seus fatores.
4) Finalmente, existem outras importantes consequências sociológicas
vinculadas à determinação numérica – ainda que as quantidades eficazes dos
elementos sejam muito distintas segundo as circunstâncias. Referimo-nos a certas
ocasiões em que atribuímos ao adjetivo “social” o sentido de “próprio da vida
mundana”. Nesse sentido, é preciso convidar quantas pessoas para que elas
constituam uma “reunião social”? As relações qualitativas entre o anfitrião e os
convidados não decidem nada, e o convite de duas ou três pessoas que interiormente
não têm relação conosco não parece suficiente para dar forma a uma “reunião
social”. Uma reunião social se constitui, em compensação, quando, por exemplo,
convidamos os nossos quinze amigos mais íntimos. O decisivo é sempre o número,
ainda que a quantidade dependa em cada caso, naturalmente, da classe e intimidade
das relações entre os elementos. Três condições (as relações do dono da casa com
cada convidado, as que os convidados mantêm entre si e a maneira com que cada
participante sente essas relações) formam a base sobre a qual o número de
convidados pode definir se é reunião social ou mero encontro – amistoso ou
determinado por fins objetivos. Por conseguinte, em todos esses casos uma
modificação numérica produz uma transformação notável na categoria sociológica,
ainda que não possamos estabelecer a medida dessa modificação com nossos
meios psicológicos. Todavia, até certo ponto as consequências sociológicas
qualitativas da causa quantitativa poderão ser descritas.
Em primeiro lugar a “reunião social” exige um aparato externo determinado.
Aquele indivíduo com um círculo de conhecidos de umas 30 pessoas, por exemplo,
mas que convida não mais do que uma ou duas, não precisa fazer cerimônia. Mas se
convida as trinta ao mesmo tempo, imediatamente surgirão para ele novas
preocupações vinculadas à comida, à bebida, à roupa, às formas de comportamento
e, muito provavelmente, vai se dedicar com grande empenho a satisfazer o prazer
dos sentidos. Eis um exemplo que demonstra claramente como o simples fato de
formar parte de um conjunto numeroso de pessoas rebaixa o nível de seus
integrantes. Em uma reunião de poucas pessoas, a recíproca adaptação conformada,
as coincidências que constituem o conteúdo da relação social, podem incluir tantas
Georg Simmel | 103

e tão elevadas partes de suas individualidades que haverá um marcado caráter


intelectual, permitindo vicejar as energias mais diferenciadas e desenvolvidas da
alma. Porém, quanto mais pessoas se reúnem, tanto menores serão as
probabilidades de que coincidam nos aspectos mais preciosos e íntimos do ser, e
tanto mais baixo deverá ser o ponto de concordância dos impulsos e interesses
comuns12.
Ainda que a quantidade dos convidados reunidos não deixe espaço para o
desenvolvimento do lado individual e espiritual, será preciso compensar a falta desse
atrativo com o acréscimo dos excitantes externos e sensuais. Sempre existiu estreita
conexão entre o número de pessoas congregadas em uma festa e o luxo e mero
prazer sensual de sua convivência. No fim da Idade Média, o luxo das bodas, medido
apenas pelo séquito dos noivos, cresceu de tal modo que as autoridades, por meio
das leis suntuárias, prescreveram – às vezes de maneira minuciosa – o número
máximo de pessoas que podiam integrar o cortejo nupcial. Se a comida e a bebida
costumam ser o meio mais apropriado para reunir amplos círculos (que em outras
circunstâncias teriam dificuldade de achar atmosfera e interesse comum), será
preciso então que nas “reuniões sociais” se destaquem os prazeres sensuais,
aqueles mais fáceis de compartilhar, ao preço de o numeroso conjunto de pessoas
assim reunidas excluírem toda comunidade e comunicação de sentimentos mais
refinados e espirituosos.
Outra feição característica da “reunião social”, por sua diferença numérica em
face da reunião de poucos, consiste em que não se pode – nem se deve – conseguir
na primeira, como se consegue na última, a unidade de sentimentos, coisa que, aliás,
não é o fim perseguido em uma “reunião social”. Contrariamente – e eis aqui outra
diferença –, a “reunião social” facilita a formação de grupos parciais dentro dela. O

12
Por essa razão aqueles que se queixam da trivialidade que reina na grande vida mundana dão
mostra de uma total incompreensão sociológica. Não pode, em princípio, elevar-se o nível
relativamente baixo que oferece sempre uma multidão considerável. Todos os produtos elevados e
refinados têm caráter individual e não podem ser o apanágio das comunidades. Em compensação,
podem ter um efeito de sociação quando se trata alcançar a unidade por meio da divisão do trabalho,
mas isso só é possível em escassa medida dentro de uma “reunião social”, pois que elevado a
proporções maiores somente conseguiria destruir o caráter essencial da referida reunião. Por isso,
quando uma individualidade – por forte e agradável que ela seja – se faz remarcar pessoalmente em
uma “reunião social” é com um instinto sociologicamente muito acertado que se considera isso como
uma leve falta de tato. (NS)
104 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

princípio vital da convivência amistosa entre poucas pessoas é, por exemplo,


manifestamente relutante em admitir que, enquanto esse convívio se dê, o pequeno
grupo resultante se divida em dois ambientes sociais ou sequer acolha
simultaneamente duas conversações particulares. Em compensação, podemos dizer
que estamos em presença de uma “reunião social” desde o momento que, em vez de
um centro único, se produzam dois tipos de unidades: a unidade centralizada e geral,
muito elástica e baseada só no externo ou no compartilhamento de um espaço (pelo
qual as reuniões sociais em uma mesma classe social seriam tanto mais parecidas
entre si quanto maiores elas fossem, mesmo se as pessoas se renovam sem cessar),
e as unidades parciais, pequenos centros de conversação, humor e interesses
comuns, mas cujos membros mudam constantemente. Isso faz os invitados das
grandes reuniões sociais viverem a alternativa constante de perceberem-se
alternadamente como engajados ou livres, segundo a sensibilidade do sujeito
– sucessão que é sentida por uns como insuportavelmente superficial, e por outros
como um ritmo lúdico a lhes provocar um grande prazer estético.
Esse tipo sociológico formal se apresenta em sua forma mais genuína nos
bailes modernos, nas reuniões festivas cuja finalidade principal é a dança, que
chegam a deparar a cada casal de dançarinos uma relação momentânea de grande
intimidade, neutralizada, porém, pela troca constante de parceiros. Esta
promiscuidade física entre pessoas estranhas é possível porque todas elas têm o
caráter de convidadas de um mesmo anfitrião (pois, mesmo que a relação com ele
seja fraca, há certa garantia de legitimação recíproca), e pelo caráter impessoal e em
certa medida anônimo da relação (conferido pela dimensão da reunião e que acarreta
o formalismo dos comportamentos). Evidentemente, tais traços das reuniões sociais,
que no baile aparecem sublimados e quase caricatos, se dão apenas quando há um
número suficiente de participantes. Pode-se então constatar, às vezes, certo
fenômeno interessante: basta que uma única pessoa se una a determinado círculo
íntimo de poucos indivíduos para que o comércio cordial e amistoso adquira
subitamente o caráter de “reunião social”.
Há todavia um caso – que concerne, é verdade, a um material humano
infinitamente menos complexo – em que parece mais fixa e determinada a
quantidade numérica necessária para engendrar nova figura sociológica. Nas mais
Georg Simmel | 105

diversas regiões, a família patriarcal consta de 20 a 30 cabeças, mesmo ante


condições econômicas absolutamente díspares. De sorte que essas condições não
poderiam determinar – pelo menos de forma exclusiva – a magnitude numérica que
nos ocupa. Em compensação, parece verossímil que as ações recíprocas internas
constituintes da organização da família patriarcal só criem as proporções
necessárias de promiscuidade e distância em determinados limites. Em todas as
partes a família patriarcal caracterizou-se pela grande intimidade e solidariedade,
cujo eixo e centro eram o pater famílias, e pela tutela exercida sobre as atividades de
todos, no interesse coletivo e no próprio. Daí a existência de um limite superior, pois
esse tipo de coesão e de controle em nível de evolução psicológica, não poderia
abranger maior número de elementos. Por outro lado, era preciso fixar o limite inferior
para que um grupo tão fechado sobre si mesmo pudesse se autossustentar e
manter-se engendrando certas realidades psíquico-coletivas que normalmente só
existem acima de determinado limite numérico. Tais realidades são, por exemplo, a
segurança que cada integrante do grupo terá para ficar pronto a agir, ofensiva e
defensivamente, no interesse da família, com a confiança dos apoios e suprimentos
necessários para isso. Mas, sobretudo, o sentimento religioso, cuja elevação e
espiritualidade só superarão a experiência individual – ou ajudarão ao próprio
indivíduo a superar-se – se contribuições suficientemente numerosas chegam a
unir-se, apagando reciprocamente sua particularidade individual. O número aqui
mencionado assinala, talvez por experiência, a margem aproximada fora da qual o
grupo não pode assumir as feições da família patriarcal. Dissera-se que, com o
aumento da individualização e após esse estágio cultural, os fenômenos alusivos
aos atos, pensamentos ou sentimentos mais íntimos de cada um ficaram confinados
a círculos cada vez mais restritos, ao passo que os fenômenos baseados na grande
dimensão da família patriarcal foram exigindo círculos cada vez maiores. As
necessidades que, partindo dos extremos do leque oferecido por esse material
numérico preciso, se satisfaziam com ele, começaram a diferenciar-se, algumas
exigindo um número menor e outras um número maior, de modo que, com o correr
do tempo, não se pôde encontrar nenhuma forma social que chegasse a satisfazê-
las todas, como as satisfazia a família patriarcal.
106 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Deixando de lado esses casos singulares, todas as questões semelhantes


sobre o número necessário de pessoas para constituir uma “reunião social” têm um
aspecto sofístico. Quantos soldados constituem um exército? Quantos
simpatizantes são necessários para fundar um partido político? Quantos revoltosos
devem tomar parte para que uma sublevação se torne um motim? Parece repetir-se
aqui o enigma clássico: quantos grãos de trigo formam um montão? Não há dúvidas
que um, dois, três ou quatro grãos não formam com certeza um acúmulo que mereça
esse nome, mas que mil grãos, sem dúvida, sim. Consequentemente, deve existir
entre esses números um limite, a partir do qual bastaria acrescentar um só grão para
obter um “montão”. Mas, na prática, ninguém é capaz de identificar esse limite
contando os grãos um a um, separadamente. O fundamento lógico dessa dificuldade
reside em que nos encontramos diante de uma série quantitativa que, à raiz das
escassas dimensões de cada um de seus elementos, eleva-se continuamente, sem
degraus. Isso ocorre apesar do emprego de um conceito qualitativo novo claramente
distinto do até então aplicado a partir de um de seus pontos (a determinar), Ora, eis
sem dúvida uma exigência contraditória, pois a continuidade não pode justificar por
si uma súbita transformação por seu próprio conceito13.
Todavia, a dificuldade sociológica apresenta uma complicação adicional,
ausente nos casos mencionados pelos antigos sofistas. Com efeito, nesses casos
pode-se entender a denominação de “montão de grãos”, ora como uma acumulação
– desde que houvesse uma camada superior e outra inferior –, ora como uma
quantidade, e então nada justificaria que um conceito hesitante e indeterminado
como o de “montão” fosse aplicado a realidades determinadas e inequivocamente
delimitadas. Nos casos sociológicos, porém, a situação é outra. O aumento de
quantidade cria novos fenômenos totais específicos, que não parecem existir, nem
mesmo proporcionalmente, em quantidades menores: um partido político tem uma
significação qualitativa distinta de uma pequena facção, alguns curiosos reunidos
oferecem traços totalmente diferentes de uma manifestação, etc. Mas talvez seja
possível pôr fim à insegurança de que padecem esses conceitos, por conta da
impossibilidade de fixar numericamente as quantidades correspondentes. É evidente

13
Como resulta das críticas ao clássico “paradoxo sorites” ou “do montão”, atribuído a Eubulides de
Mileto, filósofo grego da escola megárica, que viveu no Século IV a.C. (NT)
Georg Simmel | 107

que a dúvida se refere às quantidades médias, pois certos números muito pequenos
não constituem ainda com certeza a coletividade em questão, ao passo que outros
números muito elevados já representam uma comunidade, sem sombra de dúvidas.
Ora, na medida em que esses grupos numericamente insignificantes (a reunião
pequena, que não chega a ser “social”, o pelotão de soldados que está longe de
constituir um exército, os patifes que não são ainda um bando) apresentam algumas
qualidades sociológicas em contraposição às que são próprias das coletividades
maiores, deve-se considerar o caráter das agrupações que numericamente se
encontram entre as demasiado pequenas e as grandes como um composto de
ambas – de maneira que cada um desses dois tipos de coletividades possa ser
antevisto de maneira rudimentar em certos traços isolados, que, às vezes, surgem e,
às vezes, desaparecem ou se tornam latentes nas estruturas situadas na zona
numérica média. Na medida em que objetivamente elas participam também, paralela
ou alternativamente, do caráter bem definido das estruturas que estão situadas
acima ou abaixo, fica bem exposta a incerteza subjetiva de sua determinação. Não
se trata, pois, de fazer surgir de súbito uma característica sociológica absolutamente
precisa representada por uma figura carente de qualidades sociológicas sem que se
possa dizer o momento em que a transformação foi produzida. Trata-se de pôr em
presença, sob certas condições quantitativas, duas formas diversas, (cada uma com
certo número de feições próprias, qualitativamente diferenciadas, de uma entidade
social que elas compartilham em proporções diversas). Assim, pois, a questão de
saber a qual das duas formas o grupo pertence não só é alheia às dificuldades
epistemológicas das séries contínuas, mas se trata simplesmente de uma questão
mal colocada14.

14
Mais exatamente a situação é a seguinte: a cada número determinado de elementos corresponde,
segundo o fim e o sentido de sua combinação, uma forma sociológica, uma organização, uma solidez,
uma relação do todo com as partes, etc. A cada elemento que se agrega ou desagrega essa forma
sociológica sofre uma modificação, mesmo que seja infinitamente pequena e indeterminável. Mas,
como não temos uma expressão especial para esses infinitos estados sociológicos, ainda que
possamos apreciar seu caráter, muitas vezes não temos outro recurso que pensá-los como
compostos por dois estados, um dos quais diz mais e outro menos. Não há, nesses casos, fusão,
como também não há tal coisa no caso dos sentimentos divididos de amizade e amor, de ódio e
desprezo, de prazer e dor. Há aqui – e disso voltaremos a nos ocupar mais adiante –, na maioria das
vezes, um estado sentimental unitário, para o qual não temos nenhum conceito imediato, e que, por
conseguinte, preferimos circunscrever que descrever por meio da síntese e limitação mútua dos
outros dois. Aqui, como em muitos casos, não podemos compreender a unidade verdadeira do ser,
tendo que dividi-la em dois elementos, sem que nenhum coincida completamente e na íntegra com a
108 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

5) Essas considerações se referiam, portanto, a figuras sociológicas que,


certamente dependem do número de elementos que obram conjuntamente, mas sem
que possamos formular essa relação de dependência com a clareza suficiente para
tirar de certos números determinados e concretos suas consequências sociológicas.
Todavia, isso não está forçosamente excluído, contanto que não nos contentemos
com figuras muito simples. Se começamos assim pelo limite inferior da série
numérica, aparecerão certas quantidades específicas como pressuposto inevitável
de determinadas formas sociológicas.
As figuras numéricas mais simples, passíveis de serem consideradas ações
recíprocas sociais, aparentemente são aquelas que concernem a dois elementos. Há,
porém, uma figura que pode ser considerada sociológica e que, se observada desde
o exterior, é mais simples ainda. Essa figura é – por paradoxal e contraditório que
pareça – a do homem individual e isolado. Nesse sentido, os processos que dão
forma à reunião de dois elementos são frequentemente mais simples daqueles que
são requeridos para a caracterização sociológica do número um. É que neste último
caso, trata-se fundamentalmente de dois fenômenos: da solidão e da liberdade. O
simples fato de que um indivíduo não esteja em nenhuma relação recíproca com
outros indivíduos não constitui, com certeza, uma realidade sociológica, mas
também não esgota totalmente o conceito de solidão. Isso porque a solidão ao se
destacar e alcançar verdadeira importância para a vida interior passa não só a
significar ausência de toda companhia, mas precisamente a presença de uma
companhia que, sendo oferecida de algum modo, é imediatamente rejeitada. A
solidão adquire um sentido indiscutivelmente positivo pelo efeito longínquo da
sociedade – seja como um eco de relações passadas ou antecipação de relações
futuras, como saudade ou afastamento deliberado. O homem solitário não é o único

realidade, para logo fazer renascer essa unidade na imbricação de ambos. Mas essa não é mais que
uma análise que se realiza posteriormente e que não reproduz o processo de evolução real, a realidade
própria daquelas unidades. Por conseguinte, quando os conceitos das unidades sociais (reunião de
amigos e reunião social, pelotão e exército, facção e partido, adesão pessoal e escola, grupelho e
reunião de massas) não encontram aplicação porque o material humano de que se trata parece pouco
para um e demais para outros, existe todavia uma figura sociológica unitária que corresponde à
quantidade numérica, nem mais nem menos que naquelas figuras definidas. O que sucede
unicamente é que na falta de um conceito próprio para dar conta dessas infinitas nuances, devemos
designar suas qualidades como uma mistura das formas que correspondem às figuras de menor e de
maior número. (NS)
Georg Simmel | 109

habitante da Terra desde o começo dos tempos: seu estado está determinado
também pela sociação, ainda que esta envolva um signo negativo. Tanto o prazer
como o pesar da solidão são reações a influências sociais. A solidão é uma ação
recíproca da qual um de seus membros se afasta concretamente sob o efeito de
certas influências, e continua a viver e agir só de forma ideal no espírito do outro
sujeito. Como, aliás, se vê em certos casos de solidão física efetiva, raras vezes o
sentimento da solidão emerge com tanta violência e tão radicalmente, como ao
sabermos sós e sem relações, apesar de estarmos entre pessoas próximas de nós,
em uma reunião, no trem, na barulheira da rua de uma grande cidade. Para a
configuração de um grupo é essencial saber se ele favorece ou, ao menos, torna
possível, tal tipo de solidão entre os seus membros. É verdade que as comunidades
estreitas e íntimas rara vez consentem espaços intersticiais deste tipo em sua
estrutura. Mas, assim como falamos de déficit social (em determinadas proporções
a respeito das condições de conjunto) na produção de certos fenômenos antissociais
– como a delinquência, a prostituição, o suicídio e a depravação moral em geral –,
também temos que admitir que certas quantidades e qualidades de vida social criam
determinado número de existências temporária ou cronicamente solitárias, de cujo
número a estatística tem dificuldade a dar conta.
A solidão adquire outro sentido sociológico quando não consiste em uma
relação que se produz dentro de um indivíduo, entre ele mesmo e certo grupo ou na
vida social em geral, mas aparece como uma pausa ou uma diferenciação temporária
dentro de uma mesma e única relação. Isso é especialmente importante nas relações
destinadas, por seu princípio fundamental, à negação permanente da solidão, como,
o casamento monogâmico, em primeiro lugar. Na medida em que se expressam na
estrutura do casamento os mais delicados matizes interiores, processa-se uma
diferença essencial entre um casamento em que marido e mulher, apesar da perfeita
felicidade do convívio, têm sabido preservar o prazer da solidão, e um casamento em
que a relação nunca ê interrompida, seja porque o hábito da convivência arrebatou-
lhe seus encantos, ou a falta de confiança interior no amor mútuo deixa aos cônjuges
receosos de que tais interrupções acabem conduzindo à infidelidade – o que ainda é
pior. Assim a solidão, aparentemente limitada ao sujeito isolado, é um fenômeno que
consiste em rejeitar a sociabilidade, mas que tem, todavia, importância sociológica
110 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

positiva, não só desde o ponto de vista do sujeito, como sentimento consciente de


certa relação bem determinada com a sociedade, mas também pelo caráter
claramente definido que sua aparição, como causa ou como efeito, oferece aos
grupos amplos e às relações mais íntimas.
Também a liberdade, entre todas suas significações sociológicas, tem um
aspecto que convém aqui estudar. Ela aparece igualmente à primeira vista como a
simples negação do vínculo social, já que todo vínculo estabelece um
relacionamento de dependência, uma coação. O homem livre não constitui unidade
com outros, na medida em que ele é, em si mesmo, uma unidade. Ora, talvez exista
uma liberdade que consista nessa falta de relações, na simples ausência de toda
limitação por outro ser. Um eremita cristão ou hinduísta, um anacoreta na solidão
dos bosques germânicos ou americanos, pode desfrutar da liberdade, no sentido de
que sua existência está inteiramente satisfeita por conteúdos não sociais. É igual
que uma entidade coletiva, família patriarcal ou Estado que viva em total isolamento
insular, sem vizinhos nem relações com outras entidades. Para um ser que esteja em
relação cm outros, a liberdade tem um sentido muito mais positivo. Ela é um modo
particular de relação com o entorno, um fenômeno de correlação que perde seu
sentido quando o sujeito não tem interlocutor. A liberdade em tal caso tem dois
significados extremamente importantes para a estrutura profunda da sociedade.
1) Para o homem social a liberdade não é um estado primário, dado em si só,
nem uma propriedade substancial, permanente, adquirida de uma vez para sempre.
A primeira razão disso é que, por princípio, cada desejo particular que compromete
todas as energias do indivíduo em determinada direção tem tendência a prolongar-
se sem limites. Quase todas as relações – entre Estados, partidos, de caráter familiar,
amistoso, ou erótico – estão longe de ser estáveis e, desde que elas são entregues a
si mesmas, tecem sua teia de exigências para nela aprisionar o homem por inteiro, a
quem oferecem frequentemente a ingrata visão de uma esfera ideal diante da qual o
indivíduo teria que constituir e delimitar suas reservas de forças, de sentimentos e
interesses.
Não é apenas pelo caráter extensivo destas exigências que o egoísmo social
de toda sociação ameaça a liberdade de seus elementos, mas também pela falta de
mesura com que todas as relações contraídas colocam suas exigências. Cada uma
Georg Simmel | 111

delas reclama seu direito implacavelmente, com indiferença total aos demais
interesses e deveres, sem preocupar-se se harmonizam ou se incompatibilizam com
eles. Esse caráter das ditas relações, não menos que sua extensão quantitativa,
limita consequentemente a liberdade do indivíduo. Diante dessa forma de nossas
relações, a liberdade aparece como um processo permanente de libertação, e não
como um combate apenas pela independência do eu, senão pelo direito de assegurar
que em todo momento (mesmo na dependência) a vontade livre se mantenha.
Combate que é preciso renovar a cada vitória. Por conseguinte, a ausência de
vínculos coercitivos (esses comportamentos sociais negativos) não é quase nunca
uma possessão tranquila, mas um contínuo desligar-se de ataduras que, sem cessar,
limitam realmente a independência do indivíduo ou intentam limitá-la idealmente. A
liberdade não é o hábito de um indivíduo solitário, é uma atividade sociológica, não é
um modo de ser limitado ao número singular de um sujeito único, mesmo se a
considerássemos desde o ponto de vista desse único sujeito,
2) Como em seu aspecto funcional, a liberdade é em seu conteúdo algo mais
que a negação de relações se a reafirmação da intangibilidade da esfera individual
por outras esferas imediatas deriva da muito simples ideia de que o homem não só
quer ser livre, mas também utilizar sua liberdade para algo. Muito amiúde, porém,
esse uso consiste no domínio e aproveitamento de outras pessoas. Para o indivíduo
social, quer dizer, para aquele que vive em constante e recíproca relação com outros,
a liberdade não teria conteúdo nem fim algum se não desse a possibilidade ou o
direito de estender sua vontade aos outros. Em nossa língua, damos conta com
bastante propriedade de determinadas indelicadezas e violências quando dizemos
que “se tem tomado certas liberdades” com alguém (em particular com uma mulher),
da mesma forma que em outros idiomas o termo “liberdade” tem igualmente o
sentido de “direito” ou de “privilégio”. O sentido simplesmente negativo da liberdade
como relação do sujeito com si mesmo, complementa-se em ambas as direções com
algo positivo. A liberdade consiste, por um lado, em um processo de libertação e, por
isso ela se ergue contra um vínculo ou relação de dependência, e só como reação
contra ele adquire sentido, consciência e valor. Mas também é uma relação de poder
que se exerce sobre os demais, possibilidade de obrigar ou submeter os outros,
graças ao que alcança todo seu valor e aplicação. Por conseguinte, a liberdade
112 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

quando se limita ao sujeito em si e por si não é mais que uma espécie de linha de
demarcação entre suas duas significações sociais: o sujeito é obrigado pelos outros,
e o sujeito impõe uma obrigação aos outros. O sujeito, para dizê-lo de outro modo,
se aniquila, se reduz a nada, para revelar o verdadeiro sentido da liberdade como
relação sociológica ambivalente, ainda que ela seja apresentada como uma
qualidade do indivíduo.
Ora, como as conexões que dão consistência sociológica a formas como a
solidão e a liberdade são frequentemente nexos indiretos e muito variados, nos
parece que a forma sociológica mais simples desde o ponto de vista do método é a
que se produz entre dois elementos. Ela proporciona o esquema, a matriz e o material
de inumeráveis e eventuais formações de vários membros, embora sua significação
sociológica não repouse apenas em suas ulteriores ampliações e multiplicações. Ao
contrário, ela mesma é já uma sociação, na qual não só se realizam clara e
caracteristicamente numerosas formas sociais, senão que sua limitação a dois
membros é inclusive a condição que faz possível a aparição de toda uma série de
formas de relação. Formas essas, cuja típica natureza sociológica se manifesta
então não só pelo fato de que a infinita variedade das individualidades e dos motivos
de reunião não altera a similitude dessas formações, mas também porque, às vezes,
elas se dão tanto entre dois grupos (famílias, Estados, associações de diversos tipos)
como entre dois indivíduos.
A vida cotidiana demonstra como o número de dois coparticipantes dá um
caráter particular a uma relação. Um destino comum, uma empresa, um acordo, um
segredo, quando se limita a dois é bem distinto de quando se estende a três. Talvez
seja no segredo que isso fique mais visível, já que a experiência geral parece indicar
que quando o que se oculta só é sabido por apenas dois é justamente quando se
consegue a máxima garantia de sigilo. Os membros de uma sociedade secreta
político-religiosa – que se formou em começos do século XIX na França e Itália –
estavam organizados de acordo com uma ordem hierárquica, de tal sorte que os
segredos verdadeiramente importantes da associação só eram conhecidos pelos
titulares dos graus superiores. Que, por sua vez, unicamente podiam falar sobre a
questão sigilosa em reunião de dois. Tão decisivo parece, pois, o limite do número
dois para a manutenção do segredo que, quando não pode limitar-se a dois, é preciso
Georg Simmel | 113

conservar a quantidade daqueles que o conhecem para os que dele falem! Em termos
gerais, a diferença entre a relação dual e as outras consiste em que a relação entre a
unidade de seus membros e cada um deles se apresenta de uma maneira muito
diferente no grupo de dois que nos outros. Com efeito, embora o grupo de dois
apareça em face de um terceiro como uma unidade independente, distinta das
pessoas que a compõem, normalmente não ocorre o mesmo com seus
coparticipantes, pois nesse caso cada um deles se sentirá diante do outro, mas não
confrontado a uma coletividade superior a ambos. O organismo social repousa
diretamente sobre cada um dos dois membros. Por isso, a desaparição de um deles
acarreta a destruição do todo. Porque, faltando um dos dois, é impossível para o
membro subsistente perceber esse tipo de vida suprapessoal independente dele e do
indivíduo desaparecido. Em uma associação de três, o grupo pode subsistir apesar
da desaparição de uma pessoa.
Os grupos de dois dependem, pois, da cabal individualidade de cada um de
seus membros, e esta dependência faz a representação de seu fim acompanhar a de
sua existência mais imediatamente e de maneira mais sensível que no caso de outras
associações, nas quais cada membro sabe que depois de sua própria separação ou
morte a associação pode continuar existindo. Como a vida do indivíduo, a das
associações adquire determinada cor segundo o modo de representação de sua
morte. Por “representação” entendemos aqui não só um pensamento teórico,
consciente, mas uma parte ou modificação de nosso ser. A morte não se nos
apresenta como um acontecimento fatal que surgirá em dado momento, mas que até
então só existe como ideia ou profecia, como temor ou esperança, sem penetrar na
realidade de nossa vida. Ao contrário; o fato de que vamos morrer constitui uma
qualidade inerente a nossa vida desde seu começo. Em toda nossa viva realidade
existe algo que, depois, permitirá achar sua última fase ou revelação em nossa morte:
desde nosso nascimento somos seres destinados a morrer. Obviamente, somos
destinados a morrer de modo diverso. Não só pela distinta forma de reagirmos diante
da finitude humana e da maneira como nos representamos subjetivamente essa
condição e seu efeito derradeiro, mas também pelo modo altamente diferenciado
com que esse elemento de nosso ser se entretece com seus outros elementos. O
mesmo acontece com os grupos. Todo grupo de mais de dois membros pode, em
114 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua ideia, ser imortal, o que confere a cada um de seus membros – seja qual for sua
relação pessoal com a morte – um sentimento sociológico absolutamente
particular15. Mas o fato de que uma associação de dois dependa de cada um de seus
elementos, não tanto quanto a sua vida, mas quanto a sua morte – pois ela precisa
do segundo membro para viver e não para morrer –, deve determinar também a
atitude do indivíduo em face da morte, mesmo que nem sempre de um modo
consciente e regular. Como não sentir nessas associações um matiz de perigo e de
coisa insubstituível que pode torná-las sede de tragédias sociológicas, mas também
de problemáticas e sentimentos elegíacos?
Essa emoção acompanhará todos os fenômenos em que o término da
associação tem raízes orgânicas em sua estrutura positiva. Temos recentemente
ouvido falar de uma estranha “Confraria do prato partido”, fundada em uma cidade
do Norte da França. Alguns anos atrás se reuniram vários industriais em um
banquete. Durante o jantar um prato caiu no chão e se fez em cacos de louça. Um
dos comensais notou que, por acaso, o número dos cacos em que se tinha partido o
prato era exatamente igual ao número de pessoas presentes. Esse sinal
– aparentemente fatídico – ensejou que os comensais formassem uma confraria em
que cada um passaria a dever proteção e amparo aos outros. Cada um dos presentes
ficou com um pedaço quebrado do prato, e firmou-se o acordo que, quando um deles
morresse, se remeteria seu caco ao presidente, que estava encarregado de colar os
pedaços recebidos, O último sobrevivente teria que colar o último caco e então o
prato assim reconstituído seria enterrado. A “Confraria do prato partido” seria então
definitivamente dissolvida. Com certeza, o tom sentimental que reinava no seio
dessa associação e que animava cada um dos seus membros teria sido totalmente
distinto se se houvesse aceitado novos membros que perpetuassem
indefinidamente a vida do grupo. O fato de estar destinados de antemão a morrer,
confere um tom particular a certos grupos – que as associações de dois possuem
desde sua constituição, pela limitação numérica de sua estrutura.
É pela mesma razão estrutural que, de fato, só as relações de dois estão
expostas a essa carência de colorido ou realce que designamos com o nome de

15
Vide a este respeito às explicações que damos no capítulo sobre a “Autoconservação dos grupos”.
Georg Simmel | 115

trivialidade. Porque quando se requer a singularidade de um fenômeno ou ação, sua


ausência faz nascer uma impressão de trivialidade. Não acreditamos que se tenha
observado suficientemente até que ponto as relações de conteúdo corriqueiro
adquirem um tom particular graças à representação de seu caráter infrequente ou
raro. A ideia de que “nunca existiu algo igual” não só influencia as relações amorosas,
que por conta desse convencimento passam a ter um significado especial, pleno de
insinuações e que supera de longe seu conteúdo ou valor – aliás, previsível. Talvez
não exista nenhum objeto externo de posse cujo valor – econômico ou não – deixe
de estar determinado, consciente ou inconscientemente, pela raridade ou fartura dos
objetos análogos. Da mesma maneira, também não deve haver possivelmente para
seus elementos nenhuma relação cujo significado profundo independa do fator
“quantas vezes?” – tendo em conta que esse fator pode expressar também as
repetições dos mesmos conteúdos, situações e emoções dentro da própria relação.
A sensação de trivialidade é acompanhada por certo grau de frequência, a saber, a
consciência da repetição de um conteúdo vital cujo valor está condicionado
justamente por algum grau de raridade. Ora, pode parecer que, na vida de uma
unidade social supraindividual – ou na relação do indivíduo com ela – não se levante
nunca essa questão. Dissera-se que nesse caso, quando o conteúdo da relação
supera à individualidade, sua unicidade ou raridade não joga nenhum papel, e sua
ausência não passa por trivialidade. Contrariamente, nas relações de dois – amor,
casamento, amizade –, ou ainda em alguma de mais de dois quando não constituem
uma entidade superior (como amiúde sucede no convívio) o tom de trivialidade é com
frequência desesperadoramente fatal. Estaríamos diante da prova da especificidade
sociológica das formações duais nas quais cada um dos elementos se atém à
instantaneidade da ação recíproca, frustrando a constituição da unidade
supraindividual que está ao seu alcance e da qual poderiam participar.
O fato de que o processo sociológico permaneça dentro dessa relação de
dependência recíproca, sem chegar à formação de um todo superior aos elementos
– como ocorre em princípio nos grupos de dois –, constitui por acréscimo a base da
“intimidade”. O caráter “íntimo” de uma relação nos parece fundado na inclinação,
em princípio individual, de considerar a distinção de cada um de nós em face dos
outros como nossa qualidade individual, o cerne, valor e fundamento principal de
116 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nossa existência – pressuposto este que nem sempre tem fundamento, pois muitas
vezes o típico, o compartilhado com muitos, é o essencial e substancial de uma
personalidade. O mesmo se pode dizer das associações. Elas também têm tendência
a fazer do elemento mais específico de seus conteúdos (esse que seus membros só
compartilham entre si e nunca com uma pessoa estranha ao grupo) o âmago e
sentido próprio da coletividade. Esta última, todavia, é a forma da intimidade. Com
certeza, em toda relação se misturam ingredientes que seus membros só encontram
nela, com outros elementos que não são exclusivos dessa relação e que o indivíduo
compartilha – de igual ou similar maneira – com outras pessoas. Mas, a partir do
momento em que se estima que o essencial da relação é aquela dimensão interna,
assim que sua estrutura afetiva põe o acento naquilo que cada um só dá ou exibe a
uma única pessoa, surge essa tonalidade particular que chamamos intimidade.
Qualidade esta que, porém, não repousa no conteúdo da relação. Duas relações
podem ser idênticas por conta da mesma proporção em que se misturam os
conteúdos individuais exclusivos e aqueles que se difundem também em outras
direções, mas, íntima, entretanto, será unicamente aquela em que os primeiros
apareçam como a base ou o eixo da relação.
Inversamente, se ante certas situações ou estados de ânimo somos levados
por vezes a fazer a uma pessoa relativamente estranha manifestações ou
confidências muito pessoais, daquelas que reservamos habitualmente aos mais
próximos, sentiremos claramente que esse conteúdo “íntimo” não basta para tornar
à relação íntima: pois, em sua substância e sentido, nossa relação habitual com essa
pessoa só repousa em seus elementos genéricos e não individuais.
Consequentemente, aquela comunicação de informações ou segredos, acaso jamais
revelados a ninguém, não será suficiente para incluir ao confidente no círculo de
nossos “íntimos” porque a confidência não constitui a base de nossa relação com
essa pessoa.
Essa nota essencial da intimidade se revela com frequência perigosa para
relações duais muito próximas, especialmente para o casamento. Os cônjuges
comunicam entre si as “intimidades” irrelevantes do dia, as amabilidades ou
baixarias da hora, as fraquezas cuidadosamente ocultas aos demais. E isso os leva
a pôr o acento e a substância da relação justamente nessas circunstâncias
Georg Simmel | 117

individuais, mas sem importância objetiva, enquanto aquela outra parte do eu, que é
compartilhada com os demais, e que talvez desde certa perspectiva seja o mais
importante da personalidade – o espiritual, a generosidade, a preocupação com o
interesse geral, as qualidades objetivas –, será considerada alheia ao casamento e
perderá gradualmente relevância pata os cônjuges,
Podemos ver agora com clareza como o caráter íntimo das relações de dois
está vinculado a sua especificidade sociológica que consiste em não constituir uma
unidade superior a seus elementos individuais. Pois essa unidade, ainda que suas
bases concretas não fossem nunca outras que os dois partícipes, representaria, em
certo modo, um terceiro que viria a interpor-se entre os dois. Quanto mais extensa
seja uma comunidade, tanto mais facilmente se formará uma unidade objetiva por
cima dos indivíduos, que será menos íntima. Estes dois caracteres estão
intimamente unidos. A condição da intimidade é que a relação consista apenas em
estar um em face do outro sem sentir, ao mesmo tempo, como existente e ativo
qualquer organismo supraindividual. Essa condição raras vezes se apresenta, porém.
Assim, o que caracteriza a fina estrutura dos grupos de dois é que seu sentido mais
intenso ficaria frustrado por um terceiro, ainda que a unidade fosse constituída pela
associação de dois. Este princípio vigora de tal modo que a intimidade se interrompe
inclusive no casamento tão logo nasça um filho. Pensamos que vale a pena explicar
em algumas palavras as uniões entre dois elementos.
O dualismo constitui a forma habitual de nossos conteúdos vitais e nos
conduz a conciliações cujo sucesso ou fracasso evidenciam com muita clareza o
papel da complementaridade dos opostos. Como primeiro exemplo ou modelo do
que dizemos, lembraremos que o masculino e o feminino tendem a uma forma de
união que somente é possível pela oposição de ambos e que, precisamente pela
paixão com que é procurada, aparece como algo profundamente inatingível. Em
nenhum outro caso a impossibilidade do eu de possuir real e absolutamente o não-
eu é mais bem sentida, apesar de as oposições parecerem criadas para completar e
amalgamar estas relações. A paixão procura acabar com os limites do eu e fundir um
ser no outro para formar o filho, a nova unidade que aparece: condição singularmente
dual da geração – proximidade sobre a qual resta um distanciamento e que não pode
alcançar o apogeu que a alma quer, distanciamento que, todavia, se aproxima da
118 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

fusão em um único ser no infinito – que situa o ser engendrado entre seus genitores,
de acordo aos variados sentimentos do casal e reagindo ora à primeira, ora ao
segundo. Assim sucede aos casamentos frios, nos quais os cônjuges são
interiormente estranhos um ao outro e não desejam filhos porque eles os
vinculariam. É que sobre o fundo dessa indiferença dominante aparece sua função
unificadora tanto mais ativa, quanto mais indesejada. Mas, outras vezes, são
casamentos muito apaixonados e unidos os que também não desejam filhos, porque
os filhos os separam. A unidade metafísica que ambos os cônjuges só apeteciam
constituir um com o outro escapa como água entre as mãos e se transforma em um
terceiro, um ser físico, que intervém entre eles. Esta intervenção, porém, aparece
como uma separação àqueles que procuravam unidade imediata, da mesma forma
que uma ponte, embora una duas margens, permite perceber a distância que existe
entre elas. E onde toda intervenção aparentava ser supérflua, pode ficar ainda pior
do que supérflua.
Todavia, o casamento monogâmico deveria talvez ser uma exceção a esse
caráter sociológico que temos considerado essencial nos grupos de dois: a falta de
unidade supraindividual. O fato nada raro de que personalidades de grande valor se
unam em casamentos decididamente maus e que, em compensação, pessoas cheias
de defeitos tenham conformado alguns muito bons, indica que esta instituição,
mesmo dependendo dos parceiros, pode ter um caráter que não corresponda a
nenhum deles. Quando, por exemplo, algum dos esposos padece de complicações,
dificuldades ou fraquezas, mas sabe, por assim dizer, guardá-las para si, dando só o
melhor e mais puro de seu ser à relação conjugal, que ele preserva de todos os
defeitos de sua pessoa, poderá pensar-se em um primeiro momento que sua atitude
é apenas uma forma de comportamento que enaltece sua pessoa. Mas depois
provavelmente perceber-se-á que o casamento é algo que vai além da pessoa, algo
valioso e sagrado por si mesmo, que está acima das mazelas capazes de afligir cada
um dos elementos. Na medida em que em uma relação cada membro só se
reconhece quando está junto ao outro e se conduz sempre em função dele, as
próprias qualidades – sem deixar evidentemente de ser suas – adquirem um tom,
sentido e posição completamente distintos dos que teriam se essas qualidades
unicamente formassem parte do conjunto complexo referidas ao próprio eu. Nesse
Georg Simmel | 119

sentido, na consciência de cada um desses dois seres, a relação pode cristalizar-se


em uma essência exterior a eles, que é maior e melhor que eles – mas também, em
certos casos, pior –; algo a respeito do qual eles têm obrigações e do qual derivam
para eles ônus e bônus, como em uma sociedade objetiva.
No que tange ao casamento, duas condições facilitam a construção da
unidade do grupo sobre o mero eu e o mero tu. Em primeiro lugar, sua intimidade
ímpar. O fato de que dois seres tão intrinsecamente diferentes como o homem e a
mulher constituam uma associação tão íntima sem que seu egoísmo individual
prevaleça, e que isso seja feito em benefício da relação do conjunto – que
compreende os interesses familiares, a honra da família e, sobretudo, os filhos –,
constitui um verdadeiro milagre que só pode ser atribuído às bases do indivíduo
situadas além do eu consciente e que resultam inexplicáveis por motivos racionais.
É a mesma coisa que se expressa na distinção entre a unidade e seus singulares
membros constituintes. Dizer que cada um desses elementos experimenta a relação
como algo dotado de uma vida e forças próprias, é uma forma de expressar que ela
é incompatível com nossa representação habitual de um eu pessoal e por si mesmo
compreensível.
Em segundo lugar, a unidade do grupo vê-se muito favorecida pela
supraindividualidade das formas matrimoniais, no sentido de sua regularidade social
proveniente da tradição histórica. Por muito distintos que possam ser o caráter e o
valor dos casamentos – tão ou mais diferentes que os indivíduos particulares –,
nenhum casal inventa por conta própria sua forma de união. Pelo contrário, ela vigora
em cada âmbito cultural em que é considerada como algo relativamente estável,
alheio ao capricho dos contraentes, insensível às nuances ou à incerteza e
indeterminação individuais. Nesse sentido, na história do casamento surpreende o
importante – e, com certeza, sempre tradicional – papel que desempenham terceiras
pessoas (que frequentemente nem sequer são parentes dos nubentes) para pedir a
mão da noiva, negociar o convênio sobre o dote e precisar as formas costumeiras da
cerimônia de casamento, até chegar ao sacerdote que consagra a união. Essa
iniciação não individual da relação simboliza notadamente a estrutura sociológica
peculiar do casamento, a saber, que a mais pessoal das instituições é assumida e
dirigida por instâncias histórico-sociais e supraindividuais, tanto do ponto de vista
120 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

do interesse de seu conteúdo como de sua elaboração formal. Essa inclusão de


elementos tradicionais na relação conjugal contrapõe o casamento à liberdade
individual que se dá, por exemplo, na relação amistosa. O casamento só tolera
aceitação ou renúncia, e não admite modificações. Tudo isso favorece
evidentemente o sentimento de que o casamento é o lugar de uma elaboração
objetiva e de uma unidade supraindividual. Ainda que cada um dos dois cônjuges só
tenha diante dele o outro, experimenta, apesar de tudo, o mesmo sentimento que
tomaria conta dele em face de uma coletividade: aquele de ser um mero sustentáculo
de uma instituição supraindividual que, em sua essência e normas, é independente
dele.
Parece que a cultura moderna, individualizando mais e mais o caráter de cada
casamento, deixa intato, todavia, a supraindividualidade que constitui o cerne de sua
forma sociológica, e que chega até a ser fortalecida em mais de um aspecto. A
múltipla diversidade das formas de casamento – determinada pela escolha dos
contraentes ou proveniente de sua diversa posição social –, tal como podemos
encontrá-la em elevadas culturas do passado e em outras menos evoluídas,
aparenta ser a resposta individualizada e mais bem adaptada à singularidade dos
casos isolados. Todavia, em realidade, o oposto é verdadeiro. Cada uma dessas
classes de casamento é algo socialmente predeterminado e superior ao indivíduo, de
maneira que seu princípio de diferenciação as torna muito mais estritas e
vinculativas do que outras formas mais genéricas e permanentes, cuja natureza mais
abstrata concede margem maior às diferenças pessoais. Este é um fenômeno
sociológico constante: existe maior liberdade para a conduta individual quando a
estruturação social se refere ao comum, e quando uma mesma forma social se impõe
a quaisquer relações, que quando os estatutos sociais se especializam em uma
variedade de formas particulares por querer em aparência melhor acomodar-se a
situações e necessidades individuais. Em este último caso o elemento individual é o
mais prejudicado, pois a liberdade para manter toda sorte de diferenciações é maior
quando a coação se atém aos traços mais genéricos16.

16
Destas correlações tratamos detalhadamente no último capítulo. (NS)
Georg Simmel | 121

Por isso, a unidade na forma matrimonial moderna oferece uma margem maior
de liberdade para figuras particulares do que a pluralidade de formas socialmente
predeterminadas do passado – na medida em que sua generalidade aumenta
extraordinariamente o caráter objetivo e o valor autônomo da obrigação em face de
todas as modificações individuais das que se trata agora para nós17.
Algo análogo poderia descobrir-se também em um negócio cujos associados
sejam dois. Ainda que a fundação e exploração do negócio estejam baseadas na
colaboração de ambas as personalidades, o objeto da dita colaboração, quer dizer, o
negócio ou a “firma”, é uma realidade objetiva, a respeito da qual cada um dos
componentes tem direitos e deveres, da mesma forma e aspectos como poderia tê-
los um terceiro. Todavia, isso tem um sentido sociológico distinto do caso do
casamento. O “negócio”, como consequência do caráter objetivo da economia, é
certamente e desde o início algo distinto da pessoa do proprietário, seja ele
fisicamente um ou vários. A finalidade da relação recíproca dos coparticipantes está
fora de ela, ao passo que no casamento consiste nela mesma. No primeiro caso, a

17
Esta peculiar fusão entre o caráter subjetivo e objetivo, do pessoal e do supraindividual que o
casamento oferece, existe já no processo fundamental da relação sexual, que é o único traço comum
a todas as formas de casamento historicamente conhecidas. Pois que talvez nenhuma outra
determinação se encontre entre todas elas, sem exceção. Esse processo é sentido, por uma parte,
como o mais íntimo e pessoal, e por outra, como o geral e absoluto que submete a individualidade ao
serviço da espécie, à exigência orgânica geral da natureza. Nesse duplo caráter do ato, que é
plenamente pessoal, por um lado, e supraindividual, por outro, reside seu segredo psicológico.
Compreende-se assim por que esse ato pode ser a base da relação matrimonial, a qual precisamente
reproduz esse duplo caráter em um grau sociológico mais alto. Produz-se, porém, uma complicação
formal muito singular na relação do casamento com o ato sexual. Ainda que não seja possível uma
definição positiva do casamento, dada a heterogeneidade de suas formas, pode afirmar-se que existe
uma relação entre o homem e a mulher que não é casamento: a relação puramente sexual. Seja o que
o casamento for, ele é sempre e em toda parte algo mais que a relação sexual. Por muito divergentes
que sejam as direções em que o casamento transcende a relação sexual, pode se dizer que esse
transcender do sexual é o que constitui o casamento. Sociologicamente essa é uma estrutura quase
única. O exclusivo ponto que todas as formas matrimoniais têm em comum é, simultânea e
justamente, o que todas têm que superar para produzir um casamento. Só analogias muito longínquas
se poderiam encontrar em outros campos. Assim, os artistas, por heterogêneas que sejam as suas
tendências estilísticas ou imaginativas, têm que conhecer escrupulosamente os fenômenos naturais,
não para ficar neles, mas para cumprir sua missão artística específica, ultrapassando-os. Assim
também, todas as variedades históricas e individuais de cultura gastronômica têm em comum
satisfazer as necessidades fisiológicas, não para deter-se nisso, mas justamente para superar com
os mais diversos estímulos essa necessidade geral. Mas, dentro das formas sociológicas o
casamento parece ser o único exemplo ou, ao menos, o mais puro exemplar deste tipo, que podemos
caracterizar do seguinte modo: os distintos casos de um mesmo conceito social não contêm mais
que um elemento realmente comum a todos, mas unicamente chegam com ele à realização do dito
conceito quando acrescentam a esse elemento comum algo mais, quer dizer, algo que inevitavelmente
é individual e distinto nos diferentes casos. (NS)
122 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

relação se estabelece como meio para obter certos resultados objetivos, enquanto
no segundo, o objetivo é só um meio para a relação subjetiva. Tanto mais notável
resulta, pois, que no casamento, a objetividade e autonomia do grupo – das que
amiúde carecem os outros grupos de dois – cresçam, no entanto, psicologicamente
em relação à subjetividade imediata.
Existe, porém, uma característica de extrema importância sociológica, ausente
nos grupos de dois e que os de vários podem em princípio possuir sempre.
Referimos-nos ao fato de incumbir à entidade impessoal da responsabilidade de
seus próprios deveres, fato que caracteriza com tanta frequência a vida social, e não
precisamente em sua vantagem... Isso acontece em duas direções. Em toda
comunidade que seja algo mais que a mera justaposição física de dados indivíduos,
a indeterminação de seus limites e de seu poder é tal que seus membros facilmente
tendem a exigir que ela assuma toda sorte de tarefas que, em verdade, incumbiriam
a cada um deles individualmente. Essas tarefas são descarregadas sobre a
sociedade, da mesma forma que, em uma tendência psicológica comparável, se as
adia para seu próprio futuro, cujas possibilidades nebulosas deixam espaço livre
para tudo. Espera-se que o futuro, com forças espontâneas resolva tudo aquilo que,
no momento presente, não se deseja realizar. Em face do poder do indivíduo que,
mesmo evidente em suas relações, é claramente limitado, alça-se o poder sempre
um pouco místico da comunidade e da qual se espera que faça não só o que o
indivíduo não pode fazer, mas também tudo aquilo que ele não tem vontade de fazer.
E isso ocorre na crença de que a mencionada transferência dos encargos é
perfeitamente legítima. Um dos melhores conhecedores da América do Norte atribui
à fé no poder da opinião pública grande parte das fraquezas e obstáculos ao
funcionamento da máquina do Estado. Segundo ele, o indivíduo confia que a
coletividade reconhecerá e fará o que é justo, diminuindo assim sua iniciativa
pessoal a respeito dos interesses públicos. Esse sentimento, todavia, pode exaltar-
se até o ponto de chegar a constituir um fenômeno positivo que o mesmo autor assim
descreve: “quanto mais tempo tenha governado a opinião pública, tanto mais fácil
será que a autoridade da maioria se torne absoluta; e quanto mais difícil seja que
Georg Simmel | 123

surjam minorias enérgicas, tanto mais inclinados se sentirão os políticos a


preocupar-se de não formar opinião, mas de descobri-la e obedecê-la logo depois”18.
Porém, a pertença a uma comunidade pode revelar-se tão perigosa para o
indivíduo no aspecto da ação, como no que tange à omissão. Não se trata apenas,
no caso, do aumento da impulsividade e da anulação das inibições morais que se
produzem quando o indivíduo forma parte de uma multidão e que frequentemente
conduzem aos delitos de massa, em que é discutível a responsabilidade penal dos
coparticipantes. Preferimos evocar os casos nos quais o interesse – real ou
presumido – de uma comunidade autoriza ou obriga ao indivíduo a cometer atos de
cuja responsabilidade ele não estaria disposto a arcar se agisse por si mesmo e de
maneira isolada. As associações econômicas têm exigências de um egoísmo tão
desaforado, as autoridades administrativas toleram abusos tão irritantes, as
corporações de natureza política ou científica atentam de forma tão escandalosa
contra os direitos individuais, que o indivíduo, se tivesse que responder por esses
atos a título pessoal, não poderia fazê-los – ou, ao menos, não sem corar de
vergonha. Todavia, como membro de uma corporação ele faz tudo isso com
consciência tranquila e coração leve, porque agindo desse modo ele fica no
anonimato, acobertado – ou mesmo encoberto – pela coletividade cujos interesses
acredita representar, ao menos formalmente. Há poucos casos nos quais, a distância
entre a unidade social e seus elementos constituintes, apareça e aja com tal força
deletéria e de forma tão caricatural.
Era preciso indicar a degradação dos valores pessoais que com frequência
promove a inclusão do indivíduo em um grupo, a fim de assinalar sua ausência nos
grupos de dois. Com efeito, já que nesses grupos cada elemento só tem a seu lado
um único elemento individual, e não uma pluralidade que possa eventualmente
constituir uma unidade superior, a dependência em que se acha o conjunto a respeito
do indivíduo, e a responsabilidade dele em todos os atos coletivos aparecem
perfeitamente claras. É certo que um dos indivíduos constituintes pode pretender

18
Esta citação pretence a James Bryce, The American Commonwealth, Vol. 3, The Party System &
Public Opinion, Nova Iorque, Macmillan, 1899. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “The
longer public opinion has ruled, the more absolute is the authority of the majority likely to become, to
less likely are energetic minorities to arise, the more are politicians likely to occupy themselves, not in
forming opinion, but in discovering and hastening to obey it.” (NT)
124 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

descarregar sua responsabilidade sobre o companheiro restante (como


frequentemente ocorre), mas este último saberá em tal caso rejeitá-la de maneira
mais imediata e resoluta do que um conjunto anônimo que careceria tanto da energia
do interesse pessoal, quanto de um representante legítimo para circunstâncias de
este tipo. E, da mesma maneira que nenhum dos dois pode amparar-se por trás do
grupo pelo que faz, também não poderá confiar nele pelo que omita. Nos grupos de
três ou mais, as forças grupais superam o indivíduo, de um modo muito
indeterminado e parcial, mas também muito sensível. No grupo de dois, porém, essas
forças não podem, como nas grandes associações, compensar a insuficiência
individual. Pois, ainda que dois indivíduos unidos possam fazer mais que dois
separados, não é menos certo que cada um deve fazer efetivamente algo e que, se o
deixasse de realizar, só se poderia recorrer ao outro, e não a uma força
supraindividual, como acontece nas associações de três.
Todavia, a importância dessa determinação não reside apenas em seu
aspecto negativo, a saber, no que ela exclui. Ao contrário, ela também está na origem
de um tom particular, que podemos chamar de a intimidade dos vínculos nas
associações de dois. Precisamente, o fato de que cada elemento saiba que só pode
contar com o outro e com mais ninguém, confere aos grupos duais – por exemplo,
ao casamento, à amizade, e também a associações menos íntimas como a aliança
política de dois grupos –, uma aura particular: cada elemento se encontra (pelo que
tange a seu destino sociológico e suas consequências), diante da alternativa de tudo
ou nada, com maior frequência que nas associações mais amplas. A intimidade
peculiar aparece com toda clareza ao contrapomos os grupos de dois às
associações de três. Com efeito, nestas últimas cada um dos elementos aparece
como um contorno ou instância mediadora entre os outros dois, e oferece a dupla
função de todo intermediário: vincular e separar. Quando os três elementos A, B e C,
formam uma comunidade, a relação imediata, por exemplo, entre A e B, se
complementa pela relação mediata que eles mantêm graças à C. Trata-se de um
enriquecimento sociológico formal: os dois elementos A e B, ademais do vinculo em
linha reta, a mais curta, estão também unidos por uma linha quebrada. Pontos com
os quais esses elementos não podem ter contato imediato entram em relação mútua
por meio do terceiro elemento, que tem uma face para cada um dos dois outros,
Georg Simmel | 125

reunindo-os ao mesmo tempo na unidade de sua personalidade. Rupturas que os


elementos interessados não podem solucionar por si mesmos são resolvidas pelo
terceiro, até porque fazem parte de um conjunto mais vasto em que se dissipam.
Mas o vínculo indireto também pode perturbar o vínculo direto. Em toda
associação de três, por íntima que seja, há ocasiões em que um dos três elementos
é sentido como intruso pelos outros dois, ainda que sua presença se limite a
determinado ambiente, sobretudo quando a intensidade ou delicadeza de um
conjunto de circunstâncias morais e psicológicas que vinculam a dois, excluem a
participação (e até o próprio olhar) de um terceiro, embora se trate de um membro
do grupo. Toda união sensível de dois se irrita ante um espectador. Também se
observa a raridade de três pessoas compartilharem um mesmo estado de espírito
visitando, por exemplo, um museu ou contemplando uma paisagem, coisa que entre
duas ocorre com relativa frequência. A e B podem valorizar e experimentar sem
obstáculos o interesse m, que lhes é comum, porque o interesse n, que A, não partilha
com B, e o interesse x, que B não partilha com A, são sentidos naturalmente como
uma reserva individual, como se estivessem situados em outro patamar. Quando se
acrescenta um C, que tenha em comum com A o interesse n, e com B o interesse x,
então, mesmo nessa situação que é ainda favorável para a unidade do conjunto,
ficará destruído o princípio de unidade do sentimento. Enquanto duas pessoas
podem formar realmente um só partido, ou não cogitar sequer a questão do partido,
três pessoas, nas relações mais delicadas, constituirão logo três partidos – de duas
pessoas cada um –, suprimindo assim a relação unitária que vinculava cada pessoa
a cada uma das outras duas.
A estrutura sociológica da associação de dois carece não só do reforço do
terceiro ou de um quadro social superior a ambos, mas também dessa perturbação
ou desvio da pura e imediata reciprocidade. Todavia, em muitos casos, justamente
essa deficiência pode tornar mais intensa e forte a relação dos elementos. Porque o
sentimento de depender exclusivamente um do outro, sem esperança de outras
forças unificantes que as originadas na ação recíproca imediata, reanimará certas
forças da comunidade procedentes de apartadas reservas psíquicas que em outro
caso não teriam sido desenvolvidas, e incitará a evitar cuidadosamente as
dificuldades e perigos que amiúde sobrevêm quando o sujeito confia em um terceiro
126 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ou na comunidade. Pois que essa intimidade para a qual tendem as relações entre
duas pessoas frequentemente está na origem de todos os ciúmes.
Trata-se de outra manifestação do mesmo fenômeno sociológico
fundamental que se constata na observação dos grupos de dois. Os conjuntos de
dois únicos coparticipantes, pressupõem uma maior individualidade que – coeteris
paribus – aqueles formados por muitos elementos. O essencial, neste sentido, é que
nas associações de dois não há maioria capaz de impor-se ao indivíduo, coisa que
pode produzir-se ao se acrescentar um terceiro. Porém, naquelas relações em que é
possível que uma maioria seja capaz de coagir o indivíduo, não só a individualidade
se degrada, mas, na medida em que tais relações sejam voluntárias, elas serão
evitadas pelas individualidades muito marcadas. É verdade que convém neste ponto
distinguir dois conceitos que frequentemente se confundem: a individualidade
marcada e a individualidade forte. Há pessoas e coletividades dotadas de acentuada
individualidade, mas que carecem da força necessária para defender sua
singularidade contra as imposições que pretendem reprimi-las ou nivelá-las; ao
passo que a personalidade forte, amiúde se afirma precisamente em meio às
oposições, na luta para impor sua particularidade e resistir a todas as tentações de
adaptação e mistura. A primeira, a individualidade meramente qualitativa, evitará as
relações em face de uma maioria eventual, mas em compensação, poderíamos dizer
que ela está como que predestinada para as mais diversas associações de dois,
porque suas diferença e vulnerabilidade obrigam-na a procurar um complemento. O
outro tipo, a individualidade que se manifesta com mais intensidade, preferirá, ao
contrário, ver-se diante de uma pluralidade cuja superioridade numérica pode
permitir a conservação de sua superioridade dinâmica.
Essa predileção se justifica pelas que chamaríamos de “razões técnicas”. O
Consulado trino19 será muito mais cômodo a Napoleão do que uma dualidade. É que
ele, só necessitava ganhar para sua causa a um só de seus colegas – coisa que a
natureza mais forte consegue facilmente – para dominar legalmente o outro, que

19
O Consulado foi o regime político vigente na França revolucionária desde o golpe de estado de 18
de brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799), que pôs fim ao regime do Diretório (1795-1799), até
o início do Primeiro Império, em 1804. O governo era exercido por três cônsules – Jean Jacques Régis
de Cambacérès, Charles-François Lebrun e Napoleão Bonaparte – embora a ascendência de
Napoleão fosse indiscutível. (NT)
Georg Simmel | 127

dizer, os outros dois, de fato. Todavia, a relação de dois, no seu conjunto, favorece
mais a individuação relativamente mais intensa dos parceiros que a de vários, uma
vez que ela anula, por outro lado, a necessidade de sufocar a própria individualidade
para acomodá-la a um nível médio. Nessa ordem de ideias, se fosse verdade que as
mulheres constituem o sexo menos individualizado, se fosse certo que nelas as
diferenciações se apartam menos do tipo genérico que entre os homens, explicar-
se-ia a opinião, muito difundida, aliás, de que elas seriam, em geral, menos inclinadas
à amizade que os homens. Pois a amizade é uma relação que se baseia
exclusivamente na individualidade dos elementos, ainda mais até que o casamento,
que contém muitos elementos supraindividuais, independentes da peculiaridade
pessoal, da causa de suas formas tradicionais, de sua estrutura social e de seus
interesses reais. Com efeito, a diferença fundamental na qual repousa o casamento
não é em si mesma individual, mas se refere à espécie. Em compensação, a amizade
repousa sobre uma diferenciação puramente pessoal, compreendendo-se assim, por
um lado, por que as amizades verdadeiras e duradouras são em geral raras nos níveis
fracos de desenvolvimento pessoal e; por outro lado, por que a mulher moderna,
muito diferenciada, apresenta capacidade e inclinação extraordinárias para as
relações de amizade, tanto com os homens como com as mulheres. A diferenciação
absolutamente individual se impõe assim à da espécie, e vemos estabelecer-se uma
correlação entre a mais acentuada individualidade e uma relação que, neste nível, se
limita exclusivamente a dois – o que naturalmente não exclui que a mesma pessoa
mantenha simultaneamente diversas relações amistosas.
As relações de dois têm, pois, traços específicos. Demonstram-no não só o
fato de que a chegada de um terceiro as modifica totalmente, mas ainda mais outro
fato frequentemente observado: que as relações plurais, quando continuam a se
estender a quatro ou mais membros não seguem modificando-se em proporção.
Assim, por exemplo, o casal com um filho tem um caráter totalmente distinto da
união sem filhos, mas já não se diferencia tanto do casal com dois ou mais filhos.
Com certeza, a chegada de um segundo filho acarreta uma diferença que é, por sua
vez, mais considerável da que o terceiro filho introduz. Mas isso não contradiz a regra
enunciada, pois o casal com um único filho é também, em certo sentido, uma relação
de dois membros: os pais, como unidade, por um lado, e o filho pelo outro. O segundo
128 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

filho não é só o quarto elemento, mas também, desde o ponto de vista sociológico, o
terceiro membro da relação capaz de produzir seus próprios efeitos, pois dentro da
família, quando os filhos são crescidos, os pais constituem uma unidade efetiva com
mais frequência que o conjunto dos filhos.
O essencial na esfera das formas matrimoniais é também saber se
verdadeiramente se trata de monogamia ou se o marido tem uma segunda mulher.
No último caso, a terceira ou vigésima mulher carece, relativamente, de importância
para a estrutura do casamento. Dentro dos limites assim traçados, a escolha de uma
segunda mulher tem, ao menos em um ponto, muitas mais consequências que a
união posterior com mais mulheres. A presença de duas esposas pode ocasionar
vivos conflitos e grandes dificuldades na vida do homem, o que não ocorre quando o
número aumenta. Com efeito, nesse caso as mulheres sofrem degradação e
desindividualização tão radicais, a relação é tão abertamente reduzida a seu aspecto
físico (já que o espiritual é sempre de natureza individual) que, por via de regra, o
homem não se sente confrontado com os grandes transtornos que acompanham
uma relação dupla.
A afirmação de Voltaire a propósito da utilidade política da anarquia religiosa
está inspirada nesse:mesmo motivo fundamental, pois que duas seitas rivais dentro
de um Estado causariam inevitavelmente mais dificuldades e distúrbios do que
duzentas de seu gênero. A importância do dualismo de um dos elementos, em uma
associação de vários membros, não é menos específica e eficaz quando serve
precisamente para assegurar a relação de conjunto e não para impedi-la. Por isso
afirma-se que a colegialidade dos dois cônsules romanos preveniu os apetites
monárquicos com mais eficácia que o sistema ateniense dos nove magistrados
supremos. É a própria tensão da dualidade que age, ora para destruir, ora para
conservar, segundo as restantes condições da associação global. O essencial é que
essa última tem caráter sociológico totalmente distinto se a função em questão é
exercida por uma única pessoa ou por um número de elementos superior a dois. Da
mesma forma que os cônsules romanos, os colegiados dirigentes com frequência
compõem-se de dois membros, tal como ocorria nos casos dos dois reis de Esparta
– cujas constantes desavenças eram consideradas verdadeira garantia para a
segurança do Estado –, dos dois chefes militares supremos da Confederação
Georg Simmel | 129

iroquesa das Cinco Nações, ou dos dois burgomestres 20 do Augsburgo medieval


– onde a aspiração a uma função unificada de burgomestre era castigada
severamente. Os atritos peculiares entre os elementos dualistas de uma estrutura
suficientemente grande mantêm e sustentam o statu quo da respectiva função. Em
compensação, nos exemplos citados, sua fusão em uma unidade teria dado origem
ao predomínio individual, enquanto sua extensão a grande número de elementos se
transformaria facilmente na supremacia de uma facção oligárquica.
Para além do tipo no qual a dualidade dos elementos é tão decisiva que ela
não muda significativamente com o aumento do número, mencionaremos dois fatos
muito singulares, mas também muito importantes, como tipos sociológicos. A
posição política da França na Europa experimentou uma transformação radical à raiz
de sua aliança com a Rússia21, sem que a adição de um terceiro ou quarto aliado,
uma vez acontecida essa modificação essencial, produzisse qualquer mudança
fundamental. Os conteúdos da vida humana se diferenciam grandemente conforme
o primeiro passo tenha sido o mais difícil e ousado – e os posteriores fiquem de
importância secundária – ou não signifique nada por si mesmo, e seja preciso dar
outros passos para que possam ser realizadas as transformações que o primeiro
passo não fez mais do que antecipar. As relações numéricas da sociação
apresentam abundantes exemplos dessas duas formas, como posteriormente
constataremos. Para um Estado cujo isolamento está por trás da perda de seu
prestígio político, o fato de selar uma aliança pode ser decisivo, enquanto, outras
vezes não é possível antever determinadas vantagens econômicas ou militares se
não se tem chegado a constituir um círculo de relações, das quais nem sequer uma
pode faltar para que se produza o efeito desejado. Entre esses dois tipos está,
evidentemente, aquele no qual o caráter e sucesso da relação serão proporcionais
ao número dos elementos engajados, como geralmente ocorre na reunião de grandes
massas.

20
Primeiro magistrado municipal de certas cidades da Alemanha e de outros países europeus,
equivalente a prefeito, no Brasil, e a presidente da Câmara, em Portugal. (NT)
21
O autor se refere à Aliança Franco-russa, que foi uma aliança militar entre a Terceira República
Francesa e o Império Russo que decorreu de 1892 a 1917. A aliança terminou com o isolamento
diplomático da França e prejudicou a supremacia do Império Alemão na Europa. (NT)
130 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O segundo tipo compreende uma experiência bem conhecida, nos termos da


qual as relações de mando e subordinação mudam substancialmente de caráter
quando, em vez de um único empregado doméstico, criado ou serviçal, se empregam
dois. As donas da casa preferem às vezes – sem falar da questão dos gastos – ser
ajudadas somente por uma empregada para evitar os problemas que acarreta um
número maior de servidores. O empregado único, movido pela necessidade natural
de amparo, procurará aproximar-se à esfera pessoal e ao círculo de interesses de
seus senhores e a integrar-se, mas a mesma necessidade induzi-lo-á, em presença
de um eventual segundo doméstico, a tomar partido contra os patrões, pois nesse
caso cada um dos empregados pode encontrar amparo no outro. O sentimento de
classe, com sua oposição latente ou consciente aos patrões, só se efetiva diante do
segundo servidor, porque então se revela aquilo que ambos os subordinados têm em
comum. Em síntese: a relação sociológica entre superiores e subordinados muda
absolutamente a partir do momento em que o terceiro elemento intervém. Em lugar
da solidariedade aparece em primeiro termo a defesa de interesses setoriais, e em
vez de sublinhar-se o que une servidor e senhor, ressalta-se aquilo que os separa,
porque a comunidade se aproxima pelo lado do companheiro e, naturalmente, os
subalternos se encontrarão no plano que os opõe ao superior comum.
Mas também é fundamental a transformação da diferença numérica em
qualitativa ante uma consequência inversa para o elemento dominante da
associação. Com efeito, pode ser mais fácil manter à distância desejada de dois
subordinados que de um só, da mesma forma que o superior pode manipular os
ciúmes e a emulação dos subalternos e tornar esses sentimentos um instrumento
de domínio do qual não poderia servir-se em face de apenas um servidor. Um velho
ditado alemão diz que “quem têm um único filho é escravo dele, mas quem tem dois
é o senhor de ambos”. Em todo caso, a relação de três se distingue da de dois como
uma figura absolutamente nova caracterizada por ter uma diferença específica para
trás com a relação de dois, mas não para diante com aquelas de quatro ou mais
elementos.
Mudaremos agora para as formações particulares de três elementos ao,
estudarmos a diversidade das características do grupo que aparecem quando ele se
divide em dois ou três partidos principais. Em tempos conturbados, toda a vida
Georg Simmel | 131

pública se desenrola em geral seguindo o provérbio: “quem não está comigo, está
contra mim”. A consequência dessa situação é a necessária divisão dos elementos
em dois partidos. Todos os interesses, convicções e impulsos que nos põem em
relação positiva ou negativa com os outros geralmente se definem em relação ao
princípio enunciado e podem ser organizados em uma série que vai da exclusão
radical de todo meio termo e de toda atitude imparcial, até a tolerância dos pontos
de vista contrários, como visões igualmente justificadas, incluindo uma escala de
opiniões mais ou menos de acordo com a nossa. Toda decisão que guardar relação
com o círculo mais vasto ou mais limitado em que vivemos e que nos atribua uma
posição que implique cooperação interna ou externa, benevolência ou simples
tolerância, desengajamento ou ameaça; toda resolução enfim dessa classe ocupa
determinado posto naquela escala. Cada uma delas desenha em torno de nós uma
linha ideal que inclui ou exclui firmemente as demais, que deixa lacunas nas quais
nem se suscita a questão de dentro ou fora, e que é traçada de forma a possibilitar a
inclusão ou a exclusão parcial ou um mero contato. A questão de saber se o dilema
do “comigo ou contra mim” será aventado (e, em seu caso, com que rigor será) não
depende somente da exatidão lógica de seu conteúdo, nem sequer da paixão com
que a alma possa aderir a esta alternativa, mas igualmente da relação que mantenha
quem formula a questão com seu círculo social. Quanto mais íntima e solidária essa
relação, menos o sujeito poderá coexistir com outros, como companheiros de igual
opinião. Quanto mais uma reivindicação ideal reúna todos os membros de uma
unidade, mais se encontrará cada um deles em face da brutal questão do pró ou
contra. O radicalismo com que Jesus formula esse dilema obedece ao sentimento
infinitamente forte da unidade entre todos os que têm recebido sua Boa-nova22. Em
face da notícia de salvação, a alternativa não se limita a pedir que seja aceita ou
rejeitada, mas pretende que seja admitida ou combatida. Eis a expressão mais forte
da unidade absoluta dos discípulos e da exclusão incondicional dos que não fazem
parte deles. O conflito pelo antagonismo é sempre uma relação: revela certa unidade
interna que, ainda pervertida, é mais forte que a coexistência indiferente ou a
tolerância das atitudes mornas. Esse sentimento sociológico fundamental irá

22
“Quem não está a meu favor, está contra de mim, e quem não ajunta comigo, dispersa” (cf.Mt 12,
30; Lc 11, 23). (NT)
132 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

incentivar, pois, a divisão de todos os elementos em dois partidos. Mas, quando falta
desse sentimento apaixonado que aspira a abarcar tudo, e obriga cada um a entrar
em uma relação positiva – de aceitação ou de combate – com a ideia ou exigência
que se apresenta; quando cada grupo parcial se conforma com sua existência, sem
pretender seriamente reunir a coletividade inteira no seu seio, então o terreno é
favorável à formação de uma pluralidade de partidos, à tolerância, aos partidos
mediadores, e a uma escala de mudanças progressivas. Se as épocas em que
nasceram os movimentos de massa foram favoráveis ao dualismo dos partidos, à
exclusão do indiferentismo e à diminuição da influência dos partidos de mediação,
isso se pode explicar pelo radicalismo que anteriormente reconhecemos como
característica dos grandes movimentos coletivos. Com efeito, a simplicidade das
ideias com que as massas são dirigidas favorece a abordagem das questões de seu
interesse na forma de um simples e peremptório “sim” ou “não”23.
O radicalismo que caracteriza os movimentos de massa não impede que, às
vezes, ele passe de um extremo a outro. Inclusive, é fácil entender que isso possa
acontecer em decorrência de motivos fúteis e desproporcionados. Imaginemos que
um evento X qualquer, que corresponde a um estado de ânimo a, se verifica diante
de uma massa reunida. Nessa reunião encontramos certo número de indivíduos, ou
apenas um, cujo temperamento e paixão natural tendem para a. O evento X afeta
vivamente esses indivíduos, diríamos até que “leva água a seu moinho”. Então,
podemos compreender que os indivíduos tomem a direção da massa, a quem o
evento X predispõe em favor de a, o que significa seguir destarte as sugestões
exageradas pela ocasião e provenientes do estado de ânimo desses indivíduos.
Enquanto isso, os indivíduos que por natureza se inclinam ao estado de ânimo b, o
contrário de a, guardam silêncio diante de X. Mas se surge algum evento Y, que
justifique b, aqueles que primeiro tinham tomado a direção da massa agora terão que
se calar, repetindo-se então o jogo na direção de b, com a mesma emergência

23
Através de toda a história, as tendências democráticas que conduziram os grandes movimentos
preferiram as regras, leis e princípios simples. À democracia lhe resultam antipáticas todas as
práticas complicadas, em que entram várias considerações e nas quais se têm em conta diversos
pontos de vista. Pelo contrário, a aristocracia abomina as leis fundamentais, universais e vinculantes,
concedendo a mais ampla margem às particularidades dos elementos individuais – das pessoas, dos
lugares e dos negócios. (NS)
Georg Simmel | 133

exagerada. Esta exageração emerge da natureza de indivíduos que em toda massa


tendem a levar a seus extremos a disposição de ânimo suscitado na multidão. E
como esses indivíduos são no momento os mais fortes e influentes, arrastam a
massa na direção por eles desejada; enquanto aqueles que sustentam a disposição
de ânimo oposta (durante o tempo que persista esse movimento, que não lhes
oferece nem a eles nem ao conjunto incitações em sua direção), se mantêm
passivos. Por outras palavras: é o radicalismo formal das massas, com suas
reviravoltas fáceis, que impede (a partir de seus elementos dispostos de diversas
maneiras) a obtenção de uma resultante, de uma linha média, em proveito do
predomínio momentâneo de uma das direções que reduz completamente ao silêncio
os representantes da outra, e bloqueia toda contribuição conjunta e proporcional de
ambas à ação da massa. Graças a isso, a direção que em cada momento domina não
encontra nenhum obstáculo para alcançar seu ponto extremo. Diante dos problemas
práticos fundamentais não há, ordinariamente, mais que dois pontos de vista
simples, enquanto podem existir muitos mistos ou intermédios. Analogamente, no
geral, todo movimento apaixonado dentro de um grupo (desde a família até o grupo
político, passando por todas as comunidades de interesses) tenderá a dividir o
conjunto em pura dualidade. O ritmo cada vez mais acelerado de evolução dos
interesses e de encadeamento das faces de desenvolvimento incita sempre a novas
decisões e divisões. Todas as mediações exigem tempo e moderação: as épocas
tranquilas e estáveis, nas que não se aventam questões vitais, imersas na rotina dos
interesses quotidianos, favorecem as transições imperceptíveis e deixam espaço
para certa indiferença entre as pessoas; essa estabilidade conduziria indivíduos de
uma corrente mais apaixonada a necessariamente se opor nos partidos principais. A
diferença típica dessa estrutura sociológica radica na existência de dois ou de três
partidos principais. É certo que a função do terceiro, que consiste em servir de
mediação entre dois extremos, pode repartir-se por degraus entre vários, mas este
caso é apenas uma espécie de ampliação ou de refinamento da efetivação técnica
do princípio, segundo o qual a transformação radical, a que muda fundamentalmente
a forma, fica realizada pela adição do terceiro partido.
Temos esboçado assim, nas suas grandes linhas, não só o papel que
representa o terceiro, mas também as figuras que produzem três elementos sociais.
134 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O número dois representava tanto a primeira síntese e unificação, quanto, também,


a primeira divisão e antítese. A aparição do terceiro significa a transição, a
reconciliação, o abandono da contradição absoluta, ainda que às vezes possa estar
na origem de uma oposição. A tríade provoca, a nosso ver, três formas típicas de
agrupação que, por uma parte, não são possíveis com dois elementos, e que por
outra, quando superior a três ficam excluídas ou se limitam a ser quantitativamente
mais, sem que seu tipo formal mude.
1) O imparcial e o mediador. A relação comum de vários elementos isolados
confrontados a uma potência exterior a todos eles, relação que cria entre os ditos
elementos uma unidade, é um fato sociológico muito importante cujas
manifestações vão desde a aliança de vários Estados, concertada para defender-se
de um inimigo comum, até a Igreja invisível, que reúne a todos os fiéis em uma
unidade fundada na igual relação de cada um deles com Deus. Mas a função
mediadora dessas interações sociais com um terceiro elemento será objeto de
estudo mais adiante, sob outro motivo. O terceiro elemento se encontra aqui a tal
distância dos outros dois, que não existem ações recíprocas sociológicas
propriamente ditas entre os três elementos, senão apenas formas duais, já que ou
bem é a relação entre os dois que se reúnem a sociologicamente questionada, ou é
a relação de unidade que eles constituem com o centro de interesses a que ambos
se referem. Todavia, trata-se aqui de três elementos tão próximos, ou tão perto dessa
proximidade, que eles constituem, duradoura ou momentaneamente, um grupo.
No caso mais importante das uniões duais, no casamento monogâmico, o
filho ou os filhos são frequentemente o terceiro elemento cuja função é manter a
coesão do conjunto. Em muitos povos arcaicos, o casamento não se considera
realmente aperfeiçoado ou indissolúvel até que nasça um filho; e mesmo nas
culturas mais evoluídas, um dos motivos pelos quais os casais se acham mais
profunda e estreitamente ligados é evidentemente que os filhos se tornam ali
independentes relativamente tarde e têm então necessidade que se ocupem mais
tempo deles. O primeiro desses fatos se explica naturalmente pelo valor que o filho
tem para o homem, e na sua tendência, sancionada pela lei e o costume, de repudiar
a mulher estéril. Mas o resultado efetivo é que só a chegada do terceiro elemento
fecha propriamente o círculo, ligando entre si aos outros dois. Isso pode ocorrer de
Georg Simmel | 135

duas maneiras. Por um lado, a existência do terceiro elemento pode fundar ou


consolidar a unidade dos outros dois – como, por exemplo, quando o nascimento de
um filho acrescenta o amor mútuo dos esposos ou pelo menos o do marido pela
mulher. Por outro, a relação de cada um dos dois com o terceiro pode instaurar entre
eles uma relação nova e indireta – os cuidados comuns dedicados pelo casal ao filho
representam um vínculo que transcende a mesma criança e que amiúde dá lugar a
uma atração que não poderia surgir sem uma estação intermédia como essa. Tal
sociação interior entre três elementos, à que se opunham isoladamente os dois
primeiros, constitui a base do fenômeno antes sinalado de que muitos casamentos
desavindos não desejam ter filhos. Esses casais sabem instintivamente que a
criança fecharia um círculo dentro do qual os cônjuges ficarão mais estreitamente
vinculados – não só exteriormente, mas também nas camadas mais profundas da
alma – do que eles desejam.
Outra classe de mediação se produz quando o terceiro age como elemento
imparcial, papel que poderá desempenhar de duas formas. Na primeira, procurado
acordo entre as duas partes hostis, ficando fora de seu conflito e limitando-se a
conseguir que os elementos opostos se vinculem indiretamente. Na segunda,
atuando como árbitro e, tomando para si as pretensões contraditórias, buscando
harmonizá-las e fazer desaparecer o que tenham de incompatíveis. As desavenças
entre operários e patrões têm produzido, sobretudo na Inglaterra, ambas as formas
de solução. Nas câmaras paritárias as partes eliminam os motivos de dissentimento
por negociações celebradas sob a presidência de uma pessoa imparcial. Com
certeza, um mediador desse gênero, só chegará a um acordo se cada parte está
convencida de sua conveniência sopesando os motivos da disputa e as vantagens
da paz. De outra forma, quando a situação concreta recomenda o ajuste formal, a
grande possibilidade de que as partes cheguem a essa crença pela atuação do
mediador imparcial se deve a que ele – sem levar em conta a remoção de
desinteligências e os conselhos equilibrados que possa oferecer –, na apresentação
que faça a cada uma das partes das razões e pretensões da outra, suprime o tom
apaixonado e subjetivo que as demandas têm em sua formulação partidária, para
não estimular a réplica similar e emotiva do outro lado.
136 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O que em tantas outras ocasiões se revela lamentável, é aqui salutar: que o


sentimento que acompanha um conteúdo psicológico para um primeiro sustentáculo
com frequência se enfraquece significativamente quando passa para um segundo.
Por essa razão, as recomendações e certificados que devem em princípio passar por
numerosos intermediários são, repetidas vezes, ineficazes, ainda que seu conteúdo
objetivo chegue incólume à instância decisória. A transmissão lhes faz perder, com
efeito, esses imponderáveis matizes afetivos que não só servem para completar as
razões objetivas insuficientes, mas também para conferir às suficientes o ímpeto
necessário para sua realização prática. Tal fato (muito importante quando se trata
do desenvolvimento de influências exclusivamente espirituais) determina no simples
caso de um terceiro elemento mediador, que os acentos afetivos que acompanham
às reivindicações desapareçam repentinamente quando essas demandas são
formuladas por uma pessoa imparcial, evitando-se assim o círculo funesto que
impede todo acordo, e faz que a violência de um provoque a do outro, aumentando
por sua vez à do primeiro, e assim sucessivamente sem nenhum limite. Acrescente-
se que cada parte não só ouve assim razões mais objetivas, mas também que ela
deve expressar-se com mais objetividade que em uma confrontação direta. Isso
porque precisa ganhar igualmente o mediador para sua própria causa, coisa que
unicamente poderá conseguir fundando-se em razões objetivas, sobretudo quando
o mediador não se comporta como árbitro senão como diretor das deliberações. Com
efeito, neste caso o mediador está obrigado a se manter distante da decisão
propriamente dita, diferentemente do árbitro que se coloca em definitivo do lado de
uma das partes. Dentro da técnica sociológica não há nada que possa melhor servir
à avença das partes do que a objetividade, quer dizer, a exposição concreta e
logicamente plausível das queixas e demandas – em termos filosóficos, o espírito
abstraído do ponto de vista parcial –, de maneira que as pessoas apareçam somente
como seus indiferentes porta-vozes. A forma pessoal em que os conteúdos objetivos
se animam subjetivamente tem, é certo, mais calor, mais cores, mais profundidade
sentimental, mas deve pagar essas vantagens com a violência dos antagonismos em
caso de conflito. É preciso rebaixar o tom pessoal para que a avença e a reconciliação
dos adversários sejam possíveis e, sobretudo, porque é a única maneira de cada
parte compreender quais são em realidade os pontos nos quais a outra deve se
Georg Simmel | 137

manter irredutível. Em termos psicológicos, busca-se a redução da forma volitiva do


antagonismo a sua forma intelectual: encontramos a razão no princípio da
reconciliação, sob cuja égide se reúne o que resta inconciliável no terreno do
sentimento e da última decisão da vontade. A tarefa do mediador consiste então em
conduzir essa redução, e converter, de certa maneira, sua própria pessoa na
representação dela. Quer dizer, o mediador precisa constituir uma espécie de
estação central em que a matéria do conflito, qualquer que seja sua forma, entre de
um lado e, só saia do outro lado com uma forma objetiva, e guarde tudo o que sobrou,
o que fosse capaz de demonstrar que a ausência de mediação manteria inutilmente
o conflito.
Para a análise da vida coletiva é muito importante ter presente que o fenômeno
que acabamos de descrever se produz constantemente em todos os grupos que
constem de mais de dois elementos, ainda que o mediador não tenha sido
especialmente designado e não se dê conta de que faz a mediação. O grupo de três
deve ser entendido aqui como simples tipo e esquema, já que, em última instância,
todos os casos de mediação podem reduzir-se a ele. Não há nenhuma comunidade
de três, desde o passatempo de uma hora até a vida em família, em que não surja
entre dois dos membros – sejam quem forem – um conflito mais ou menos
insignificante ou grave, momentâneo ou duradouro, teórico ou prático, em que o
terceiro não aja como mediador. Esse fenômeno se produz incontáveis vezes de
maneira absolutamente rudimentar, concebido apenas em suas linhas gerais,
misturado a outras ações, recíprocas ou não, e nas quais é impossível identificar
claramente a função do mediador. Nem sequer é preciso que tais mediações se
expressem em palavras. Basta um gesto, uma forma de escuta, a atitude de um
indivíduo para atrair a disposição favorável de duas outras pessoas malquistas, para
fazer sentir a convergência essencial por baixo de uma profunda falta de
entendimento, para dar ao enfrentamento uma forma mais fácil de apaziguá-lo.
Também não é necessário que se trate de um verdadeiro conflito ou luta. Pelo
contrário, as mil e uma opiniões mais ou menos contraditórias, os primeiros sinais
de um antagonismo natural, a aparição de oposições momentâneas entre interesses
ou sentimentos avivam intensa e continuamente as plásticas formas da vida em
comum, cujo decurso será determinado pela presença de um terceiro que exercerá,
138 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de maneira quase que inevitável, a função de mediador. Essa função deve ser
cumprida alternadamente pelos três elementos, já que o fluxo e refluxo da vida
comum dará existência concreta a essa forma em todas as combinações possíveis.
A imparcialidade requerida pela mediação pode basear-se em dois pré-
requisitos O mediador é imparcial quando é alheio aos interesses e conflitos
contraditórios, sem ser atingido por eles, como ao participar igualmente de ambos.
O primeiro caso é o mais simples e acarreta menos dificuldades. Nos conflitos entre
operários e patrões ingleses, por exemplo, recorre-se frequentemente a uma pessoa
imparcial que não deveria ser nem operário nem patrão. É notável o rigor com que,
nesse caso, se realiza a separação referida entre os elementos concretos e os
elementos pessoais do conflito. O papel do mediador imparcial exige como condição
prévia que ele não tenha nenhum interesse pessoal no assunto objeto da divergência.
Os conteúdos concretos das opiniões das partes se apresentam ao mediador como
se ele fosse um intelecto puro, impessoal, sem afetar nenhum dos níveis de sua
subjetividade. Em compensação, em face das pessoas e dos conjuntos de pessoas
que são o sustentáculo desses conteúdos antagônicos – teóricos para o mediador –
o terceiro deve sentir por eles um interesse subjetivo, já que em caso contrário não
assumiria as funções de mediador. Introduz-se, assim, um tipo de mecanismo
puramente objetivo que funciona sob o impulso de um pendor subjetivo. O
distanciamento pessoal a respeito do sentido objetivo do conflito e o simultâneo
interesse por sua significação subjetiva caracterizam assim a posição do mediador
imparcial. Que será tanto mais a propósito para sua função, quanto maior sucesso
tenha em desenvolver separadamente cada um desses dois aspectos, e ao mesmo
tempo conseguir que eles coexistam na diferença.
A posição do terceiro imparcial tende a se complicar quando ele deve sua
qualificação para agir como mediador ao fato de participar de igual forma de
interesses opostos, e não a manter equidistância de ambos. Mediações desse tipo
ocorrem frequentemente quando uma pessoa pertence localmente a um círculo de
interesses distinto aos da sua profissão. Assim, os bispos podiam intervir, às vezes,
entre o poder secular reinante em sua diocese e o papa; assim, o funcionário
administrativo, que conhece perfeitamente os interesses especiais de seu distrito,
será o mediador indicado quando se produza uma colisão com os interesses gerais
Georg Simmel | 139

do Estado do qual ele é servidor; da mesma maneira sucede com frequência que a
boa combinação de imparcialidade e de interesse se dê em pessoas que provindo de
um grupo geograficamente situado, moram em outro lugar, o que as predispõe à
função de mediação entre dois grupos geograficamente distintos. Nesses casos a
posição do mediador é difícil porque não se pode apreciar o equilíbrio perfeito de sua
atitude com absoluta certeza, nem a semelhança do seu interesse por ambos os
contendores, o que, finalmente e com frequência, provoca suspeitas entre as duas
partes. Mas, a situação mais delicada – e às vezes trágica – surge quando o terceiro
não tem interesses concretos em comum com uma e outra parte, mas é sua
personalidade por inteiro a que está próxima das duas. Esse caso assume sua forma
extrema quando o assunto que provoca o conflito não pode objetivar de forma
eficiente o sentido real da disputa, que não é propriamente mais do que o pretexto ou
a ocasião de dar livre curso aos rancores pessoais mais profundos. Nesse caso, o
terceiro, ligado intimamente às duas partes, seja pelo amor, pelo dever, pelo destino
ou pelo hábito, pode resultar muito mais dilacerado interiormente pelo conflito do
que se ele mesmo escolhesse um campo. Tanto mais que, nesses casos, o equilíbrio
dos interesses do mediador, que lhe impede inclinar-se de um ou de outro lado,
também não lhe permite reduzir o conflito a uma simples contraposição objetiva.
Este é um dos muitos tipos de conflitos familiares. Enquanto o mediador imparcial, a
raiz da igual distância que mantém a respeito das partes adversas, pode fazer justiça
com relativa facilidade às duas, aquele que se desempenha como tal, por estar
igualmente próximo de ambas, terá muitas mais dificuldades e cairá pessoalmente
nas alternativas mais dolorosas. Por isso, quando se escolhe um mediador é
preferível – mantendo-se inalterados todos os outros aspectos – aquele que é
igualmente desinteressado ao igualmente interessado. Assim, por exemplo, na Idade
Média, algumas cidades italianas procuravam frequentemente seus juízes em outras
cidades, para assegurar a imparcialidade em face das disputas internas.
Isso nos conduz à segunda forma de acordo pela intervenção de um terceiro
imparcial: a arbitragem. Ao agir como simples mediador o terceiro coloca término do
conflito nas próprias mãos das partes. Mas, ao eleger um árbitro, as partes se
desprendem desse poder decisório, e projetam, de certa forma, sua vontade de
conciliação fora de si, encarnando-a na pessoa do árbitro. O árbitro então adquire
140 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

particular relevo e notória força em face dos elementos antagônicos. O recurso


voluntário a um árbitro, a quem nos submetemos a priori, supõe maior confiança
subjetiva na objetividade de seu julgamento que em qualquer outra forma de decisão.
Pois, mesmo perante um tribunal estatal, somente a ação do demandante baseia sua
confiança em uma decisão justa (por justa ele entende aquela que lhe favorecerá), já
que o demandado deve integrar o processo acreditando ou descrendo da
imparcialidade do juiz. A arbitragem só é possível, como temos dito, quando esta
confiança é compartilhada por ambos os contendores. Em princípio, a mediação se
diferencia claramente da arbitragem pela distinção evocada; e quanto mais oficial
seja a ação conciliatória tanto mais será respeitada esta diferença, desde os conflitos
entre empresários e trabalhadores, antes aludidos, até os da grande política, na qual
os “bons ofícios” interpostos por um governo em um conflito que opõe outras duas
nações, são coisa muito distinta da arbitragem, confiada às vezes ao chefe de Estado
de um terceiro país. Na vida privada de todos os dias, onde os típicos grupos de três
põem constantemente um dos membros em dissidência expressa ou latente, total ou
parcial, a respeito dos outros dois, encontram-se amiúde graus intermédios, fruto da
inesgotável variedade das relações possíveis. Assim, o apelo das partes a um
terceiro que toma voluntaria ou mesmo impositivamente a iniciativa da
reconciliação, colocará com frequência este em uma posição muito difícil de
identificar como a de um elemento mediador ou de um árbitro. Para entender o
emaranhado real das relações humanas em sua profusão e animação indescritíveis,
o essencial será aprimorar a própria capacidade de observação para descobrir os
inícios e transições, para advertir as formas que apenas esboçadas desaparecem,
suas figuras embrionárias e fragmentadas. Os exemplos puros de cada um dos
conceitos correspondentes a estas formas de relação são, com certeza,
instrumentos indispensáveis da sociologia. Porém, diante da vida real da sociedade,
comportam-se como as formas espaciais e aproximadamente exatas que servem
para exemplificar os teoremas geométricos em face da infinita complicação das
realidades materiais.
No conjunto, tudo isso nos mostra que a existência do terceiro imparcial serve
à conservação do grupo. Como representante em cada caso da energia intelectual
em face dos partidos dominados momentaneamente pela vontade e o sentimento,
Georg Simmel | 141

ele de alguma forma é um complemento para arrematar a unidade espiritual que


habita na vida do grupo. Ele é freio contemporizador diante da paixão dos outros e
comporta e dirige o movimento do grupo em conjunto quando o antagonismo dos
outros dois elementos ameaça paralisar suas forças. Todavia, o sucesso pode se
transformar no contrário. Pelas razões indicadas, os elementos mais inteligentes de
um grupo serão os mais inclinados à imparcialidade, porque o frio entendimento
acha amiúde luzes e sombras de ambos os lados, além disso, porque seu sentido
objetivo de justiça impedirá que fechem apoio absoluto a um só dos campos em
disputa, Dessa forma, às vezes, os elementos mais inteligentes são mantidos longe
da decisão dos conflitos, justamente quando sua intervenção seria mais
conveniente. Os elementos inteligentes deveriam ser os que, quando os grupos têm
que decidir entre o sim e o não, inclinassem a balança a favor do lado justo. Por isso,
quando a imparcialidade (que se vincula com a intelectualidade) não serve para a
mediação prática, se confia a decisão aos elementos mais insensatos, ou pelo menos
aos mais interessados do grupo. Assim sendo, se o comportamento imparcial é
desaprovado – como tem ocorrido tantas vezes desde Sólon –, deve-se muito mais
a um instinto social saudável (que provém de um profundo sentimento do que seria
melhor para o conjunto) do que à suspeita injusta de covardia que com frequência
atinge à imparcialidade.
A imparcialidade compreendida como afastamento equidistante ou como
interesse igual a respeito dos adversários pode combinar-se com as mais variadas
relações entre o terceiro e os outros dois, ou com a totalidade do grupo. Por exemplo,
o fato de que o terceiro (incluído em um grupo com os outros, ainda que alheio até
então a seus conflitos) consiga manter um ar de autonomia a respeito dos partidos
já constituídos, apesar de ser arrastado a seu confronto, pode servir muito à unidade
e equilíbrio dos grupos. É sob essa forma sociológica que se produz em Inglaterra a
primeira participação do terceiro estado nos assuntos do governo. Desde a época de
Henrique III membros do terceiro estado estavam irrevogavelmente vinculados à
colaboração dos grandes barões, a quem competia, junto aos prelados, consentirem
os tributos. Essa circunstância tornava o conjunto desses dois estados tão poderoso
– e às vezes mais – que o próprio rei. Porém, em vez de uma colaboração profícua
entre eles e a coroa, surgiram incessantes discussões, abusos, alternativas de poder,
142 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

choques. Chegou o momento em que ambos os partidos sentiram que somente o


ingresso de um terceiro elemento, constituído pelos vassalos e homens livres dos
condados e cidades que até então tinham sido mantidos longe de toda intervenção
nos assuntos do governo, poderia pôr remédio à situação. Reunindo seus
representantes em conselhos – antecedentes da Câmara dos Comuns – o terceiro
elemento exerceu dupla função: converteu o governo em um reflexo real da totalidade
do Estado, e funcionou como instância que se opunha de forma objetiva aos partidos
que governavam até então, contribuindo a dirigir harmonicamente as duas forças
que antes se desgastavam em lutas recíprocas ao serviço do Estado.
2) O “tertius gaudens”. Nas combinações até aqui enumeradas, a
imparcialidade do terceiro elemento servia ou prejudicava o grupo como totalidade.
Tanto o mediador como o árbitro querem salvar a unidade do grupo do perigo da
fragmentação Mas o terceiro imparcial pode, evidentemente, aproveitar a relativa
superioridade de sua posição em prol de interesses puramente egoístas. Enquanto
nas duas primeiras figuras se comportava como meio para os fins do grupo, aqui,
pelo contrário, converte as relações recíprocas entre os partidos e entre ele mesmo
e esses partidos em um meio para seus próprios fins. Não se trata sempre, neste
caso, de organizações anteriormente consolidadas, de cuja vida social surja este
acontecimento junto a outros. Muitas vezes a relação entre as partes e o terceiro
imparcial é criada ad hoc. Elementos que em outras circunstâncias não formariam
unidade de ação recíproca podem entrar em conflito. Um terceiro até então sem
relação com os antagonistas pode aproveitar espontaneamente as oportunidades
que o conflito lhe oferece como elemento imparcial para produzir uma ação recíproca
fugitiva, cuja vivacidade e riqueza de formas para cada elemento não guardam
proporção com a brevidade de sua existência.
Mencionaremos duas formas do tertium gaudens sem entrar em detalhes,
porque nessas formas não aparece de um modo suficientemente característico e
claro a ação recíproca dentro dos grupos de três cujas formações típicas são objeto
deste desenvolvimento. Talvez o que as distinga seja, pelo contrário, certa
passividade, dos dois contendores e do terceiro elemento. Pode ocorrer, com efeito,
que a vantagem obtida pelo terceiro consista em que os outros dois se neutralizem
reciprocamente, permitindo que se aposse de um benefício que, de outro modo, lhe
Georg Simmel | 143

teriam disputado. Nesse caso a desavença produz a paralisia de forças que, se


pudessem, se voltariam contra o terceiro. A situação, em realidade, suprime aqui a
ação recíproca entre os três elementos em lugar de criá-la, sem que se deixe de
produzir importantes resultados para todos. Estudaremos o caso em que tal situação
é provocada intencionalmente na seguinte configuração ternaria. Pode ocorrer, em
segundo lugar, que o terceiro obtenha vantagem porque a ação de um dos
contendores, ainda que dirigida à obtenção de seus próprios fins, se produza sem
que o favorecido necessite tomar iniciativa alguma. O exemplo típico deste caso são
os benefícios que um partido outorga a um terceiro só para fustigar o partido
contrário. Assim as leis inglesas de proteção aos operários foram votadas em sua
origem, quando menos em parte, pelo rancor dos tories contra os industriais liberais.
Também se explicam com esse motivo muitas ações de beneficência devidas a uma
pugna por popularidade. Fazer o bem a um terceiro para molestar um segundo supõe
intenção particularmente mesquinha e perversa. Poucos exemplos como este de
exploração do altruísmo sublinha tão claramente a indiferença a respeito do caráter
moral do benefício aos outros. E é duplamente significativo que a finalidade de
molestar o adversário possa conseguir-se tanto favorecendo a seus amigos como a
seus inimigos.
As formações mais importantes para nosso propósito se produzem quando o
terceiro, por seu lado, se dirige a uma das outras partes para prestar-lhe ajuda prática
(quer dizer, não apenas em uma atitude puramente intelectual e objetiva, como o
árbitro) e obter assim uma ganância mediata ou imediata. Dentro dessa forma
podemos encontrar duas figuras fundamentais: às vezes duas partes são inimigas e,
por sê-lo, rivalizam entre sim pelo favor do terceiro; ou duas partes buscam o favor
do terceiro e, por esta razão, ficam inimigas. Esta diferença é particularmente
importante para o desenvolvimento ulterior da figura. Com efeito, se uma
animosidade preexistente leva ambas as partes a procurar o favor do terceiro, o
resultado dessa concorrência, quando o terceiro se pronuncia por uma das partes,
significa o começo do conflito. Pelo contrário, quando dois elementos se esforçam
independentemente por obter o favor de um terceiro e isso constitui o fundamento
de seu antagonismo, a atribuição final deste favor – aqui objeto e não meio de luta –
põe fim ao conflito: este é o veredito, e o prosseguimento das hostilidades carece de
144 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

objetivo prático algum. Em ambos os casos, a vantagem da imparcialidade com que


o tertium gaudens se apresenta inicialmente aos outros dois permite que ele
imponha suas condições para resolver o conflito. Quando por qualquer motivo não
pode fazê-lo também não poderá tirar completo proveito da situação. Assim ocorre
em um dos mais frequentes casos do segundo tipo: a rivalidade entre duas pessoas
do mesmo sexo para obter o favor de uma pessoa do sexo oposto. A decisão desta
última não depende nesse caso, comumente, de sua vontade da mesma maneira que
no caso de um cliente que deve decidir entre várias ofertas ou pelo favor de um
príncipe entre suplicantes rivais. Em compensação, ela vem determinada aqui por
sentimentos que independem, geralmente, da própria vontade e que, de antemão,
inibem toda escolha. Por isso, ainda nos casos excepcionais em que se dão nesta
suposição encaminhamentos de ofertas para determinar a escolha, o terceiro cujo
favor se procura – apesar de achar-se em posição de tertium gaudens – não
aproveita amiúde a sua situação. O exemplo mais acabado de tertium gaudens é o
oposto à clientela em uma economia fundada na livre concorrência. A disputa dos
produtores para conquistar o comprador coloca a este numa posição de quase
independência a respeito dos fornecedores individuais – mesmo que ele seja
absolutamente dependente do conjunto dos fornecedores que, em caso de coligar-
se, podem reverter a relação – e permite que condicione sua compra à satisfação de
suas exigências de qualidade e preço das mercadorias. Sua situação tem por
acréscimo a singular vantagem de pôr os produtores na obrigação de adiantar-se,
inclusive, a essas exigências, de procurar adivinhar os desejos ainda não
expressados e inconscientes do consumidor, sugerindo-lhe outros que não tem ou
habituando-lhe a eles. Partindo assim do primeiro dos casos mencionados – o da
mulher cortejada por dois pretendentes, que frequentemente não impõe condições
nem explora a posição em que se encontra porque sua decisão depende mais da
personalidade dos próprios rivais do que de sua conduta – nos encontramos com
uma série contínua de formas, que chegam até a moderna circulação das
mercadorias, em que a importância da personalidade desaparece completamente e
a vantagem de quem escolhe chega tão longe que as partes lhe permitem maximizar
suas exigências. Este último caso representa a forma mais proveitosa da situação
do tertium gaudens.
Georg Simmel | 145

Quanto à outra figura, aquela na qual um conflito obriga os contendores a


rivalizar para obter o auxilio de um terceiro que originariamente não estava
concernido por ele, a história de todas as alianças, desde as que se formam entre
Estados até as que se produzem entre membros de uma família, nos oferece
numerosos exemplos. Este simples processo modelar pode, porém, apresentar um
interesse sociológico particular quando o terceiro procura esta situação vantajosa
sem o acréscimo de força ou poder que ele deve proporcionar seja particularmente
importante em relação aos meios de que cada uma das partes hostis pode dispor.
Pelo contrário, a medida deste acréscimo está determinada exclusivamente pela
relação em que os recursos dos dois antagonistas estejam uns com outros. O que
importa é, evidentemente, que a intervenção do terceiro, ao lado de um dos dois
contendores, configure o predomínio. Por conseguinte, quando os dois poderes
hostis são quase iguais, basta com frequência um mínimo de incremento para decidir
definitivamente a questão em favor de uma das partes. Assim sucede muitas vezes
que pequenos partidos parlamentares adquiram grande influência, nem tanto pelo
grau de sua própria importância, mas apenas pelo equilíbrio aproximativo das forças
dos grandes partidos. Onde quer que decidam as maiorias e onde, por consequência,
tudo dependa, às vezes, de um só voto, existe a possibilidade de que partidos
absolutamente insignificantes impunham as condições mais abusivas em troca de
seu apoio. O mesmo pode acontecer na relação dos pequenos Estados com as
grandes potências em conflito. Com efeito, a única coisa que amiúde conta é que as
forças dos dois elementos antagônicos se neutralizem reciprocamente, de forma que
a posição do terceiro ainda não engajado, por fraca que seja, adquira um valor
decisivo.
Elementos por si mesmos fortes, não se aproveitarão menos, como é natural,
dessa situação. Todavia, isto se tem tornado mais difícil em algumas coletividades,
como por exemplo, nos grandes partidos. Estes, com efeito, têm uma vida claramente
definida, de forma que suas relações com outras formações de porte similar estão
frequentemente regradas por critérios fixos e objetivos que lhes impedem de
aproveitar a plena liberdade de decisão necessária para obter as vantagens
decorrentes da posição do tertius gaudens. Por exemplo, unicamente graças a
146 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

circunstâncias particulares muito favoráveis o Partido Alemão do Centro 24 pôde fugir


dessa limitação nos parlamentos germanos das últimas décadas do século XIX. A
sua posição foi favorecida pelo conjunto de suas convicções filosóficas, políticas e
sociais que apenas impunham uma orientação precisa a respeito de alguns poucos
assuntos parlamentares. No tocante aos demais, ele podia decidir com plena
liberdade tanto em um ou outro sentido, pronunciando-se, por exemplo, a favor do
protecionismo ou do livre-comércio, pró ou em contra à legislação trabalhista,
patrocinando ou combatendo as reivindicações militares, sem ficar tolhido por seu
programa político. Por essa circunstância ele era em todos os casos o tertium
gaudens entre os partidos, do qual cada um podia esforçar-se por conseguir seus
favores. Nenhum membro das organizações agrárias25 teria procurado então o apoio
dos socialdemocratas para impor um tributo alfandegário ao trigo, pois que se sabia
que eles se oporiam visto que o Partido Social Democrata 26 era contrário aos tributos
em questão. Por essa mesma razão nenhum liberal pediria sua ajuda contra tais
tributos porque ele também saberia que, de todas as maneiras e pela sua posição
partidária, os socialdemocratas estariam de acordo com eles. Em compensação, os
agraristas e os liberais poderiam acudir ao Zentrum, cuja liberdade de opinião sobre
essa questão deixá-lo-ia em condições de pôr preço à sua decisão.
Por outra parte, esta situação de tertium gaudens resulta frequentemente
proveitosa para um elemento já de si poderoso, porque lhe poupa o empenho máximo
e efetivo de suas forças. As vantagens do tertium gaudens resultam então, não só de
um enfrentamento real, mas simplesmente de uma relação tensa ou do antagonismo
latente entre as outras duas partes. Ele agira assim como tal pela mera possibilidade
que tem de decidir em favor de um ou de outro, ainda que não se chegue a uma

24
O Deutsche Zentrumspartei (Partido Alemão do Centro ou simplesmente Zentum) foi um dos
partidos mais antigos da Alemanha, datando de 1870. Estava orientado pelos valores católicos e foi
um dos mais importantes no sistema político do Império Alemão. (NT)
25
A Alemanha do século XIX conheceu um agrarismo de massas focalizado em duas organizações: o
Bund der Landwirte (BdL), de tendência conservadora, criado em 1892 e a Federação dos Círculos
Camponeses Cristãos Alemães, organização católica criada em 1900 para reagrupar os diferentes
círculos que se desenvolviam no nível dos Länder desde três décadas atrás. (NT)
26
Em 1863 emergia na Alemanha a socialdemocracia. A 7 de agosto de 1869 August Bebel e Wilhelm
Liebknecht fundaram o Partido Social Democrata dos Trabalhadores (SDAP) com a meta de abolir o
Estado de classes e implantar um "Estado livre e popular". Em 1890, o partido transformou-se em
Partido Social Democrata da Alemanha (SPD). Era um partido de orientação marxista, revolucionário,
anticlerical e pacifista. (NT)
Georg Simmel | 147

confrontação séria. Na transição da Idade Média para a Moderna, a característica da


política inglesa era de não buscar no continente território ou senhorios, mas dispor
de uma força que, potencialmente, pudesse decidir entre as dos reinos europeus
além-Mancha. Já no século XVI, se dizia que a França e a Espanha eram os pratos
da balança europeia, mas que a Inglaterra era the tongue or the holder of the
balance27. Os bispos de Roma tinham desenvolvido cuidadosamente esse princípio
formal bem antes já de Leão o Grande28, obrigando as partes rivais dentro da Igreja
a reconhecer-lhes a posição de árbitros. De fato, os bispos que tinham desavenças
dogmáticas ou de outra ordem requeriam, desde muito cedo, o auxílio do colega
romano, quem, por princípio, era favorável ao suplicante. Ao contraditor não lhe
restava, pois, outro recurso que dirigir-se também ao bispo de Roma, para não o
predispor contra ele. Deste modo, o bispo romano foi adquirindo a prerrogativa
tradicional de ser a instância decisória. Nesse caso, desenvolve-se com particular
intensidade e rigor, no sentido do tertium gaudens, o que poderíamos chamar de
lógica sociológica dos três elementos, quando dois deles estão em conflito.
Mas, a vantagem que o terceiro obtém da relação de igual independência a
respeito dos outros dois elementos, não deriva necessariamente da eventual
hostilidade que possa reinar entre estes dois últimos. Basta que sejam diferentes um
do outro, que exista entre eles certa diversidade e determinado dualismo qualitativo.
Tal é propriamente a forma geral do tipo, do qual a hostilidade entre os elementos
não é mais do que um caso particular, ainda que talvez seja o mais frequente. O
exemplo seguinte, no qual a vantagem de um terceiro provém da simples dualidade
de seus parceiros, é muito característico e esclarecedor. Se B é devedor de uma
prestação claramente determinada em favor de A, quer dizer, se está obrigado a
executar um fato prometido a A, e esta obrigação (podendo ser cumprida por
qualquer pessoa com a mesma habilidade de B) passasse de B para C e para D, entre
os quais terá que repartir-se, é fácil que A se sinta tentado a impor a cada um deles
um pouco mais da metade da prestação, para desfrutar de algo mais que antes,

27
O fiel da balança ou seu dono. (NT)
28
Leão o Grande foi o primeiro papa (e, por conseguinte, o primeiro bispo de Roma) a levar este nome
e a merecer o epíteto indicado. Governou a Igreja entre 29 de setembro de 440 e sua morte em 10 de
novembro de 461, sendo canonizado pouco depois. Leão foi muito importante para a centralização da
autoridade espiritual na Igreja e na reafirmação da autoridade papal. (NT)
148 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

quando a obrigação recaia em uma pessoa só. Em 1751, o governo da Boêmia proibiu
durante repartição das terras entre camponeses, que os proprietários fundiários
(partilhando as corveias 29 associadas ao conjunto da terra), impusessem a cada
parcela uma carga de corveia maior do que a parte proporcional a seu tamanho na
prestação total anterior. Quando uma tarefa é repartida entre dois elementos, a ideia
preponderante é que cada um deles deveria fazer menos do que antes fazia o único
elemento sobre quem recaia a prestação por inteiro, deixando em segundo plano o
cálculo exato da quota atribuída a cada novo prestador, apuração facilmente
deturpável.
Se no caso precedente a vantagem do terceiro resultava do simples fato
numérico da dualidade, da quantidade das partes, no caso seguinte essa vantagem
se produziu em virtude de uma dualidade determinada por diferenças qualitativas.
As faculdades judiciárias do rei de Inglaterra depois da conquista normanda tiveram
extensão inaudita para a Idade Média germânica. Aconteceu que Guilherme, o
Conquistador encontrou estabelecidos os direitos da população anglo-saxônica que,
em princípio, tinha que respeitar, enquanto seus normandos traziam consigo os
direitos de sua pátria. Todavia, era muito difícil harmonizar esses dois complexos
jurídicos, pois não chegavam a constituir um ordenamento normativo unitário que o
povo pudesse arvorar em face do rei, pois que graças a objetividade de seus
interesses, o monarca podia colocar-se entre anglo-saxões e normandos e anular
em grande medida as prerrogativas jurídicas dos súditos. O absolutismo achou,
assim, um ponto de apoio no antagonismo das duas nações – não só porque lutavam
constantemente entre si, mas porque sua diversidade dificultava a afirmação comum
do direito – começando, por isso também, a decrescer tão logo as duas
nacionalidades se fundiram realmente em uma só.
A situação favorável do terceiro desaparece, assim, geralmente, no momento
em que os outros dois se unem para formar uma unidade, quer dizer, quando na
relação em questão o grupo de três passa a ser de novo de dois. É muito instrutivo
observar, não só para esse problema particular, mas também para a vida dos grupos

29
A corveia era uma obrigação que consistia na prestação de serviços nas terras ou instalações do
senhor feudal. Assim, vários dias por semana o servo era obrigado a cumprir diversos trabalhos como,
por exemplo, fazer a manutenção do castelo, construir um muro, limpar o fosso da fortaleza, limpar o
moinho, ou realizar trabalhos de plantio e colheita no manso senhorial. (NT)
Georg Simmel | 149

em geral, que este resultado pode ser obtido também sem união pessoal ou fusão de
interesses, quando o objeto do antagonismo é subtraído ao conflito das pretensões
subjetivas com a fixação objetiva do motivo de desavença. O caso seguinte nos
parece especialmente esclarecedor. A indústria moderna conduz a uma constante
confusão de limites entre os diversos ofícios, e cria novas tarefas que não pertencem
historicamente a nenhum ofício existente, circunstância que produz, especialmente
na Inglaterra, frequentes conflitos de competência entre as diversas categorias de
operários. Nas grandes empreitadas os carpinteiros estão em constante disputa com
os marceneiros, os encanadores com os ferreiros, os caldeireiros com os funileiros,
os pedreiros com os telhadores, para saber a quem se deve confiar determinada
tarefa. Cada ofício abandona o trabalho no momento que acredita que outro interfere
minimamente nas suas respectivas competências. A contradição insolúvel provém,
nesse caso, do fato de atribuir direitos subjetivos claramente delimitados a objetos
que estão, por natureza, sujeitos à mudança. Semelhantes conflitos têm
comprometido amiúde gravemente a posição dos trabalhadores diante dos patrões.
Pois, se por um lado, os empresários aproveitam a vantagem moral decorrente de
sua posição de vítimas de uma greve declarada pelos trabalhadores como
consequência de dissensões internas das quais são alheios, por outra parte, as
desavenças permitem pressionar à vontade qualquer dos grupos profissionais
ameaçando-o com a contratação de outro igualmente competente para realizar a
tarefa em questão. O interesse econômico de cada categoria de operários em não
deixar que diminua seu trabalho corresponde ao temor de que o competidor o faça
por um preço menor e eventualmente provoque o abatimento do salário. Por isso as
associações profissionais propuseram como único remédio possível de fixar
conjuntamente com os patrões unidos o salário médio para cada tipo de trabalho,
deixando depois ao arbítrio dos empregadores determinar que classe de
trabalhadores contratarão para cada tarefa. Assim, o excluído não teme dano ao seu
interesse econômico, enquanto a objetivação do motivo do conflito priva o patrão de
alguma vantagem. Com efeito, o empregador não pode agora provocar o
rebaixamento do salário opondo os distintos grupos de operários, ainda que lhe reste
a escolha entre as diferentes categorias profissionais – que ora não lhe serve para
nada. O fator pessoal e o fator objetivo saem de seu antigo estado de indeterminação,
150 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

e apesar que o patrão continue na situação formal do tertium gaudens, a fixação


objetiva do salário impede explorar as vantagens dessa situação.
Inúmeras vezes, o predomínio do terceiro e sua possibilidade de obter
vantagem provêm apenas de sua estabilidade durante as diversas etapas do conflito
e da distância do objeto desse desentendimento que tanto mexe com as partes.
Quanto mais violenta e longa seja a luta que abale a posição dos contendores, mais
proeminente, respeitada e consolidada será, coeteris paribus, a situação do terceiro,
pelo fato meramente formal de sua robustez e permanência. Não há, com certeza,
maior exemplo dessa figura – observável em diversos casos – que a Igreja católica.
Foi precisa no Medievo a conjunção de muitos dos conflitos mencionados aqui e na
figura seguinte para que, elevando-se acima das forças seculares da época, a Igreja
aparecesse e chegasse a consolidar sua posição de força. No estado de agitação e
conflito constante entre as grandes e pequenas unidades políticas, o único poder
estável, venerado e temido por todas as partes, tinha forçosamente que adquirir um
predomínio incomparável. É preciso ainda acrescentar, para caracterizar de maneira
geral o tertium gaudens, que entre as causas de seu predomínio figura a simples
diferença das energias espirituais que o terceiro e os outros investem na relação.
Trata-se do que dissemos anteriormente a respeito do mediador imparcial, no
sentido de que ele representa preferencialmente a inteligência, enquanto os
contendores são a imagem do sentimento e da vontade. Isso confere ao terceiro,
quando ele quer explorar egoisticamente a situação, uma posição dominante e ideal
especialmente para aqueles que não se comprometem afetivamente e procuram
obter vantagens objetivas em toda situação complexa. Mesmo quando o terceiro não
se digne a tirar proveito prático de sua imparcialidade nem de suas forças ainda não
engajadas na luta, a situação lhe oferece ao menos o sentimento de uma leve e
irônica superioridade sobre as partes, que põem tanto em jogo por tão indiferente
prêmio.
3) Divide et impera. Em todas essas combinações de três tratava-se de um
conflito existente ou nascente entre dois elementos, do qual um terceiro tirava
proveito. Resta considerar agora um caso particular que se distingue dos anteriores
apenas por uma nuance cuja importância nem sempre chega a ser apreciada. É o
caso em que o terceiro produz voluntariamente a desavença para ficar em situação
Georg Simmel | 151

dominante. Notemos também que o número três só representa a quantidade mínima


necessária de elementos para que essa formação se materialize e possa servir de
esquema básico. Nela, dois elementos estão originariamente unidos ou dependem
um do outro em face de um terceiro que consegue contrapor uma contra a outra as
forças coligadas contra ele. Como resultado, os dois elementos aliados ficam em
equilíbrio, de maneira que o terceiro persiga seu próprio proveito sem que nenhum
dos dois fique em seu caminho; ou enfraquecem-se mutuamente de tal sorte que a
resistência de qualquer deles ao predomínio do terceiro seja impossível. Vamos, por
ora, definir alguns graus da escala em que os fenômenos em questão se ordenam.
O caso mais simples é aquele no qual um poder superior impede a união de
elementos que ainda não aspiram a ser fortes, mas que talvez poderiam sê-lo no
futuro. Figuram, sobretudo, nesse grupo as proibições legais de associações
políticas, tanto das associações propriamente ditas como das uniões de grupos que,
individualmente, até estariam autorizados. Todavia, na maioria das vezes, o receio
carece de fundamento. Não se tem demonstrado que essas associações
representem qualquer ameaça ou perigo visível para o poder dominante. O temido,
contudo, é a forma da associação capaz de adquirir um conteúdo perigoso. Plínio, o
Moço diz expressamente, em sua correspondência com o imperador Trajano, que os
cristãos eram perigosos porque constituíam uma comunidade, mas afora isso eram
absolutamente inofensivos. O fato empírico de que as tendências revolucionárias (ou
mais genericamente endereçadas a mudar a ordem estabelecida) adotaram a forma
de associação pelo maior número possível de simpatizantes produz a proposição
inversa – logicamente errônea, mas psicologicamente explicável – segundo a qual
todas as associações tendem à hostilidade frente aos poderes dominantes. É
possível dizer então que sua proibição se funda numa possibilidade de segundo grau:
não somente as associações proibidas a priori são apenas possíveis (já que não
existem sequer, às vezes, nem na mente dos indivíduos), mas também os perigos em
nome dos quais se formula a proibição ficariam no domínio do possível mesmo se a
associação se concretizasse. Na forma dessas proibições de associações, o
princípio divide et impera representa a medida preventiva mais sutil que se possa
imaginar de parte de um elemento contra todas as eventualidades que poderia
acarretar a associação dos outros elementos. Esta forma preventiva pode repetir-se
152 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sob uma configuração similar quando a pluralidade que se apresenta em face de um


poder central constar dos diversos elementos de uma e mesma personalidade. Por
exemplo, a monarquia anglo-normanda zelava para que, na época feudal, os
senhorios dos príncipes se disseminassem tudo o que fosse possível, de modo que
alguns dos mais poderosos vassalos tiveram que se estabelecer em 17 e até em 21
condados (shires). Tal princípio de divisão geográfica impedia que os feudos dos
vassalos da Coroa se consolidssem ao patamar de grandes senhorios soberanos
como no continente. Assim, quando nos primeiros tempos terras foram repartidas
entre os filhos dos monarcas, a tradição pretendia que as diferentes partes de cada
um se misturassem da forma mais arbitrária possível para impedir uma secessão. A
ideia de um Estado unitário pretendia salvar sua soberania desse destino ao
fragmentar cada poder parcial que, em caso de dispor de um território unido,
facilmente ficaria separado.
Os obstáculos dispostos de modo a evitar as associações ficam mais radicais
quando já existe uma reivindicação vinculada a elas. Esse esquema explicaria o fato
– por trás do qual, com certeza, encontramos também outras motivações – de que,
no geral, os patrões se negam a negociar em matéria de salários ou de outras
questões litigiosas com intermediários que não pertençam ao quadro de efetivos de
sua empresa. Isso não só impediu que os trabalhadores se fortalecessem,
associando-se com uma pessoa que nada tinha que esperar ou temer dos patrões,
mas dificultaram a ação unitária dos operários que trabalhavam em diferentes
empresas quando, por exemplo, tal ação se propôs a implantação de uma tabela
salarial única. Rejeitando o intermediário que poderia negociar simultaneamente
pelos trabalhadores de numerosas empresas, o patrão entendia afastar a ameaça
que para ele significaria a associação dos operários. Não deve estranhar, assim, que
diante da aspiração dos trabalhadores de criar uma agremiação desse tipo, as
organizações patronais considerassem tão importante impedi-lo a tempo que, com
frequência, impuseram a seus membros a obrigação estatutária de isolar seus
operários durante as greves e negociações. Os sindicatos ingleses obtiveram assim
uma vitória extraordinária ao conseguir frear, durante o terceiro quarto do século XIX,
a prática do divide et impera pelos patrões, graças à intervenção de uma instância
impessoal. Dos dois lados, com efeito, reconheceram-se como válidas, além dos
Georg Simmel | 153

casos individuais, as arbitragens de pessoas imparciais a quem se recorria em caso


de litígio. Logo derivou-se então uma regra geral de aplicação crescente a
numerosas negociações entre patrões e operários, ainda que estas fossem
conduzidas individualmente. Desse modo, foi desaparecendo a prática do divide,
mesmo que só se tratasse de uma etapa intermediária para alcançar a convenção
coletiva de trabalho aplicável em todo o âmbito das respectivas categorias
(econômica e profissional), compreendendo todos os interessados.
As tentativas dos governantes constitucionais foram muito além de esta
simples prevenção, para impedir, por meio de dissensões no Parlamento, a formação
de maiorias incômodas. Só mencionaremos aqui um exemplo, de interesse
fundamental por seu radicalismo. Durante o reinado de Jorge III era usual que a corte
da Inglaterra declarasse que toda sorte de partidarismo era, de fato e por natureza,
intolerável e incompatível com o bem do Estado, a pretexto de que só a pessoa
isolada e sua capacidade individual podiam prestar serviços políticos. Definindo as
leis e os decretos de caráter genérico e abstrato como ações específicas dessa
pluralidade de indivíduos, se exigia men, not measures30. Contrapunha-se, assim, ao
papel prático das individualidades as ações dos grupos, pretendendo-se, com essa
identificação um tanto desdenhosa da pluralidade social com a universalidade
abstrata, dissolver as ações dos grupos em seus átomos, como se eles só fossem
reais e eficazes individualmente.
A separação dos elementos toma uma forma mais ativa, e não mais
meramente proibitiva, quando um terceiro faz surgir os ciúmes entre eles. Não nos
referimos ainda aos casos em que o terceiro se vale do enfrentamento dos outros
dois para iniciar, às suas custas, uma nova ordem de coisas. Aludimos às frequentes
tendências à conservação que se manifestam quando o terceiro pretende manter a
supremacia que ele já possui, evitando por meio dos ciúmes que se produza a temida
coalizão dos outros dois, ou pelo menos que ela não progrida além de seus primeiros
passos. Essa técnica teria sido aplicada com particular sutileza no antigo Peru.
Dividir as tribos conquistadas em duas metades aproximadamente iguais e impor a
cada uma um chefe, com uma pequena diferença hierárquica entre os dois era uma

30
Homens, e não medidas. (NT)
154 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

prática corrente entre os incas. De fato, esse era o meio mais adequado para
provocar rivalidade entre eles, impedindo toda ação conjunta contra os
conquistadores no território submetido. Pois que a igualdade ou mesmo uma grande
diferença hierárquica teriam sido mais favoráveis para à ação comum. No primeiro
caso, porque a paridade teria facilitado a partição efetiva da chefia, e a subordinação,
quando precisa, ocorreria pela submissão dos iguais, menos reticentes por entendê-
la como necessidade técnica. E no segundo caso, porque a chefia de um só não teria
esbarrado na oposição do outro. Em compensação, uma leve diferença hierárquica
dificultaria a relação orgânica e satisfatória na união temida, pois um dos elementos
não deixaria de arguir sua vantagem relativa para reivindicar a supremacia absoluta,
ao passo que a desvantagem do outro não seria suficientemente grande para impedir
de alimentar a mesma ambição.
O princípio da repartição desigual de quaisquer bens, utilizado como meio para
que os ciúmes provocados suscitem a figura do divide et impera, é uma técnica muito
aplicada contra a qual, aliás, certos estados sociológicos oferecem proteção
– também em princípio. Tem-se procurado assim encorajar as tensões entre os
aborígines australianos distribuindo entre eles presentes distintos, para dominá-los
mais facilmente. Mas esse expediente costuma fracassar ante o comunismo
primitivo dos clãs, que redistribuíam imediatamente os presentes entre todos seus
membros sem ter em conta quem os tinha recebido. Todavia, é sobretudo da
desconfiança mais até que dos ciúmes que se lança mão como meio psicológico
para os mesmos fins. É que a desconfiança, contrariamente ao ciúme, permite
desvelar grandes conspirações. Quem se valeu com maior eficácia desse
estratagema foi o governo da República de Veneza ao estimular os meios para incitar
os cidadãos a denunciar qualquer pessoa suspeita. Ninguém estava seguro de que
seu mais íntimo amigo não estivesse a serviço da polícia da Sereníssima. Cortaram-
se pela raiz os planos revolucionários (que pressupõem sempre a confiança
recíproca de grande número de pessoas), de tal forma que na história de Veneza
apenas se registram rebeliões declaradas.
A forma mais brutal do divide et impera, o surgimento impetuoso de um estado
positivo de confronto entre dois elementos, é frequentemente o resultado intencional
da relação do terceiro elemento com ambos ou com objetos alheios a eles. Isso
Georg Simmel | 155

ocorre, por exemplo, quando um dos três pretendentes a um cargo consegue


envenenar as relações dos outros dois entre si que, graças às murmurações e
calúnias que eles mesmos fazem circular, um a respeito do outro, se inabilitam
reciprocamente. Assim sendo, a arte do terceiro se revela em todos esses casos na
distância que sabe manter da ação desencadeada por ele mesmo. Quanto mais
habilidade ele tenha para conduzir o conflito movendo fios invisíveis e para manter
acesso o fogo sem ter que atiçá-lo, tanto mais provável será que o conflito que opõe
os outros dois prossiga violenta e abertamente até seu mútuo aniquilamento e até
que o preço da luta e os objetos valiosos que estavam em jogo caiam em suas mãos
sem esforço aparente. Os venezianos também se revelaram mestres dessa técnica.
Para ficar com os bens dos nobres da terra ferma 31 , seu método consistiu em
outorgar títulos da alta nobreza a cavalheiros jovens ou de origem um pouco inferior.
A indignação provocada entre os nobres antigos e mais distinguidos suscitou
constantes brigas e enfrentamentos entre ambos os grupos, que criaram a
oportunidade para o governo de Veneza confiscar de forma perfeitamente legal as
propriedades dos culpados. Nesses casos, em que a união dos elementos
antagônicos contra o opressor comum seria de evidente utilidade, aparece com toda
clareza a condição geral do divide et impera, a saber, que o conflito de interesses
materiais não é a única razão suficiente das inimizades. Quando existe na alma um
desejo geral de hostilidade (um antagonismo ainda em busca de seu objeto) é fácil
substituir um adversário por outro completamente distinto contra o qual a inimizade
teria sentido e finalidade. O divide et impera exige que seus virtuoses provoquem,
caluniem, adulem, despertem falsas esperanças, etc., É preciso produzir esse estado
geral de excitação e esse desejo de luta para insinuar outro adversário que não seja
apropriado, tornando a forma do combate absolutamente independente de seu
conteúdo razoável. .O terceiro, sobre quem a hostilidade dos outros dois elementos
deveria focalizar-se, de fato pode, assim, tornar-se invisível, de modo que o choque
não seja então contra ele, mas entre os dois restantes.

31
Veneza se estende sobre uma série de 119 ilhas que emergem da ampla lagoa marítima situada
entre o continente e o mar aberto. Todavia, sua base geográfica, na época que nos ocupa, se estendia,
além de suas possessões marítimas, à terra ferma, territórios continentais que hoje pertencem à Itália
e Croácia. (NT)
156 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Mas, quando o terceiro não visa um objeto senão o domínio imediato dos
outros dois elementos, há dois pontos de vista sociológicos essenciais:
1) Certos elementos estão constituídos de tal maneira que só podem ser
combatidos eficazmente por outros do mesmo gênero. Assim, quando a vontade de
submetê-los não acha imediatamente um ângulo de ataque, não resta outro recurso
que dividi-los e manter entre suas partes uma luta, que só pode ter lugar com armas
semelhantes, até que ambas estejam suficientemente enfraquecidas para cair nas
mãos do terceiro. Da Inglaterra diz-se que só pôde conquistar a Índia pela Índia, da
mesma maneira que Xerxes tinha reconhecido muito antes que os gregos eram a
melhor arma contra a Grécia. Aqueles vinculados por interesses similares a outros
são os que melhor conhecem as fraquezas e pontos vulneráveis dos que se parecem
com eles, de sorte que o princípio do similia similis – a destruição de um estado
qualquer pela suscitação de outro análogo – pode repetir-se aqui em larga escala.
Assim como uma diferença qualitativa é em certa medida o melhor meio para que
determinados elementos se ajudem reciprocamente e se unifiquem (para enriquecer
mutuamente, crescer juntos e viver uma vida organicamente diferenciada), pareceria
que uma semelhança qualitativa é a forma mais segura de alcançar a destruição
recíproca (salvo naturalmente no caso em que uma das partes tenha uma força tão
superior em termos quantitativos que resulte indiferente a parecença das
estruturas). Se toda essa hostilidade, que culmina na luta fratricida, adquire caráter
destrutivo radical é porque a experiência e o conhecimento compartilhados, assim
como os instintos derivados da mesma origem comum proporcionam as armas mais
mortíferas a cada uma das partes para ferir o adversário. Aquilo que funda a relação
entre semelhantes – o conhecimento mútuo da situação exterior e a compreensão
simpática interior – é também o meio de infligir ao próximo as feridas mais
profundas, sem economizar esforços até chegar a sua destruição completa. Por essa
razão, combater o igual pelo igual, cindindo o adversário em duas partes
qualitativamente homogêneas é um dos maiores feitos do divide et impera.
2) Quando ao opressor não é possível deixar seu trabalho ao exclusivo cuidado
de suas vítimas e ele próprio tem que intervir no conflito, o esquema resultante é
bastante simples: ele dará apoio a uma das partes até que a outra seja esmagada,
tornando o sobrevivente uma presa fácil. O procedimento mais eficaz será favorecer
Georg Simmel | 157

quem de todas as formas já é o mais forte, tática que pode instrumentalizar-se por
omissão, como quando os mais poderosos são poupados em um conjunto de
elementos que se pretende dominar. Assim Roma, quando submeteu Grécia, impôs
uma ostensível reserva em face de Atenas e Esparta. Tal procedimento engendra
amiúde rancor e ciúmes em uma das partes, assim como arrogância e confiança
excessiva na outra, divisão que facilita a tarefa do opressor. A técnica está a serviço
de um desejo de poder do dominador e consiste em proteger o mais forte de dois
elementos interessados em resistir à opressão de um terceiro, até a destruição do
mais fraco por esse terceiro, que trocará logo de frente para atacar e submeter ao
elemento que ficou isolado. O esquema é empregado na fundação de grandes
impérios e em uma rixa de gangues de rua, de igual modo na manipulação dos
partidos políticos por um governo, que nos casos de concorrência econômica capaz
de confrontar um importante financista ou industrial a dois competidores menos
importantes, mas incômodos para o primeiro e desiguais entre si. O primeiro, para
impedir uma coalizão dos dois outros contra ele concluirá então um acordo, que lhe
assegure consideráveis vantagens ao mais forte dos competidores e sirva para
esmagar o mais fraco, sobre preços ou produção. Assim que consiga o acordo, o
poderoso já poderá prescindir de seu aliado e, achando-lhe indefeso, arruiná-lo
fazendo baixar os preços ou por qualquer outro método.
Passaremos de momento a outro tipo completamente distinto de formação
sociológica condicionada pelo número de seus elementos, Nas associações de dois
ou de três tratávamos da vida interna do grupo que se desenvolvia com todas as
nuances, sínteses e antíteses próprias, A questão não concernia ao grupo em seu
conjunto, em sua relação com outros grupos ou com um grupo maior do qual podia
formar parte, mas à relação imanente e recíproca de seus membros. Se, ao invés, nos
perguntássemos sobre a significação que a determinação numérica passa a ter para
a vida externa do grupo, diremos que sua função essencial é possibilitar sua divisão
em subgrupos diferentes. Como acima explicado, o sentido teleológico dessa divisão
é que o grupo total, quando dividido, resulta mais fácil de controlar e dirigir. Dividir
torna-se amiúde, assim, o primeiro gesto para organizar – diríamos que
mecanicamente – o grupo, pois, de um ponto de vista formal, permite manter a
estrutura, o caráter e as instituições dos subgrupos independentes do
158 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

desenvolvimento quantitativo do grupo total: os elementos administrados pelo grupo


conservam sempre a mesma qualidade sociológica e o aumento do tudo só faz
multiplicar seu número. Essa é, por exemplo, a enorme utilidade da divisão numérica
dos exércitos. Graças a ela, seu aumento ocorre com relativa facilidade técnica, já
que se produz como repetição constante do quadro orgânica e numericamente
determinado de antemão.
Essa vantagem está vinculada, evidentemente, a toda determinação numérica
em geral, e não só a determinados números. Todavia, existe um grupo de números
anteriormente mencionado com grande importância histórica no estabelecimento
das divisões sociais: o dez e seus derivados. O motivo principal da reunião de dez
membros em obras de responsabilidade solidária, a razão principal destes grupos
decenais que aparecem em muitas civilizações antigas, foram, sem dúvida, os dedos
da mão. Mesmo com pouca competência aritmética, o número de dedos proporciona
um primeiro princípio de orientação para determinar certa quantidade de unidades e
ilustrar suas frações e suas adições. Mas esse sentido geral, muitas vezes
sublinhado, da divisibilidade por cinco e por dez se potencializa na sua aplicação
social pelo fato de que os dedos são a imagem precisa das associações de
indivíduos – têm uma relativa independência mútua e um movimento autônomo,
apesar de estarem reunidos de um modo inseparável (na França se diz de dois
amigos que ils sont unis comme deux doigts de la main32), e adquirirem seu sentido
próprio unicamente por sua colaboração. Não se simboliza de modo mais claro a
unidade e a peculiar cooperação dos subgrupos nas grandes coletividades. Ainda
nos anos 1870, a sociedade secreta tcheca “Omladina” se constituiu segundo o
princípio do número cinco: a direção correspondia a várias “mãos” formadas cada
uma delas por um “polegar” (o chefe) e quatro “dedos” ou sequazes 33. A importante

32
“Estão unidos como dois dedos da mão” (NT)
33
Considerada desde outro aspecto mais geral, a divisão pelo número de dedos pode ser incluída na
tendência típica que consiste em utilizar a este fim sociológico os fenômenos que têm certo ritmo
natural e evocam, pelo menos por seu nome e símbolo, uma sequência de unidades compostas por
certo número de elementos e sua relação hierárquica. Durante o reinado de Luis Filipe da França se
constituiu uma sociedade secreta que levava o nome de “As Quatro Estações”. Seis membros sob a
direção de um sétimo chamado “Domingo”, formavam uma “semana”, quatro “semanas” um “mês”,
três “meses” uma “estação”, e quatro “estações” integravam a unidade superior que estava sob o
comando de um chefe supremo. Apesar do caráter lúdico dessas denominações tinha-se também o
sentimento de reproduzir uma forma unitária, composta de diferentes elementos, sugerida pela
natureza. Simbolismo favorecido pela coloração mística que frequentemente tinge as sociedades
Georg Simmel | 159

força de coesão e de unidade que o número dez pressupõe dentro de um grupo


suficientemente grande tem sido percebida desde a mais remota antiguidade, como
demonstra o costume de “dizimar”, quer dizer, de provocar a morte de um indivíduo
em cada grupo de dez, nos corpos armados comprometidos em casos de motim,
deserção, etc. Considerava-se o número dez como uma unidade que, em caso de
castigo coletivo, podia ser representada por um só indivíduo. Percepção à qual se
acrescentava a vaga ideia de que para dez homens havia em média um líder ou
cabeça.
A divisão de um grupo total em dez partes numericamente iguais, ainda que
conduzisse visivelmente a um resultado distinto e sem nenhuma relação concreta
ou prática com a divisão em grupos de dez indivíduos, nos parece, apesar de tudo,
partir psicologicamente da mesma operação. Quando os judeus regressaram do
segundo exílio (em número de 42.380, com seus respectivos escravos), foram
distribuídos de tal forma que uma décima parte deles, designada por sorteio, se
instalou em Jerusalém, enquanto os outros nove décimos foram para o interior do
país. Todavia, os que ficaram na capital eram poucos e logo foi preciso aumentar os
habitantes de Jerusalém. O princípio decimal como base da divisão social pareceu
poderoso o suficiente para impedir os judeus de ver as necessidades da prática.
A centúria, deriva do princípio decenal e é essencialmente um método de
divisão: o mais importante da história, aliás. Já mencionamos que seu conceito
substitui diretamente toda espécie de divisão, de sorte que seu nome ficou associado
ao subgrupo, com muitos mais ou muitos menos membros. O número cem aparece
de alguma forma – talvez pelo grande papel que desempenhou na administração da
Inglaterra anglo-saxônica – como a ideia mesma do subgrupo, cuja imperfeição
externa não afetava o sentido interno. Nessa ordem de ideias, achamos um exemplo
extremamente característico no Peru pré-colombiano. As centúrias pagavam
voluntariamente seu tributo aos incas, empenhando todas suas forças, mesmo
quando seus efetivos tivessem ficado reduzidos a uma quarta parte. O fato
sociológico fundamental reside no fato dessas comunidades serem percebidas
como unidades distintas da individualidade de seus membros. Mas como a

secretas, o que podia levar a pensar na transferência de uma força criadora cósmica à estrutura
arbitrária. (NS)
160 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

obrigação de pagar os impostos não se aplicava aparentemente à comunidade, mas


aos cem membros que originariamente a compunham, o fato de que os vinte e cinco
membros restantes tenham assumido essa obrigação demonstra com clareza que a
centúria significava uma unidade absoluta e naturalmente solidária.
Por outro lado, é inevitável que a divisão em centúrias contrarie muitas
relações orgânicas de elementos e de agregados de elementos – relações de
parentesco, vizinhança ou simpatia – pois é sempre um princípio mecânico-técnico
e teleológico, não produzido por instintos naturais. Há ocasiões em que a divisão
decimal se combina com outra de caráter mais orgânico. Assim, na Idade Média, o
exército do Império alemão estava organizado em função de etnias, ainda que
também saibamos de uma divisão por grupos de mil homens que devia
forçosamente quebrar e superar aquela ordem mais natural, e determinada pelo
terminus a quo 34 .. Porém, o marcado centralismo próprio da organização em
centúrias induz a procurar seu sentido em um aspecto distinto da finalidade desta
divisão, que é algo externo e ao serviço do grupo maior que a abrange. Com efeito,
independentemente desta finalidade acontece efetivamente que o número de cem
membros, como tal, dá certa importância e dignidade ao grupo. Na cidade de Locri
Epizifiri, na Sicília, a aristocracia remontava a sua origem a nobres mulheres
pertencentes às “cem casas” que teriam fundado a colônia magno-grega, seu
primeiro povoamento. Da mesma maneira, dizia-se que as colônias primitivas que
fundaram Roma com sucesso se compunham de cem gentes latinas, cem gentes
sabinas e outras cem gentes de diversas procedências. O número cem imprime
aparentemente certo estilo ao grupo, um contorno claramente delimitado em face do
qual outro número, menor ou maior, pareceria algo incerto e impreciso. O número
cem tem uma unidade e organização internas que particularmente o adéquam aos
mitos genealógicos, pois que confere uma associação singular de simetria mística e
sentido racional da que costumam carecer os demais números de elementos, sempre
algo aleatórios, desprovidos, de coesão interna e, por isso, variáveis em sua
estrutura. A relação particularmente adequada com as categorias de nosso
entendimento e a facilidade com que ela pode ser controlada fazem da centúria um

34
Ponto de partida, lugar de origem. (NT)
Georg Simmel | 161

princípio apropriado de divisão, além de apresentá-la como reflexo de uma


peculiaridade objetiva do grupo procedente dessa determinação numérica.
A qualificação que acabamos de mencionar é absolutamente diferente das
que tratamos até agora. Nas associações de dois e de três, o número determinava a
vida interna do grupo, mas não como quantidade. Todos esses fenômenos
observados no grupo não decorriam da dimensão total dele, mas da ação recíproca
de cada elemento com outro ou com outros dois elementos. Não acontece o mesmo
nos grupos derivados do número de dedos: ali, a razão da síntese acha-se na
facilidade de controle, organização e direção, quer dizer, não no próprio grupo, mas
no sujeito que tem que lidar com o grupo na teoria ou na prática.
Por último, uma terceira significação do número de membros está vinculada
ao fato de que o grupo, objetivamente e em sua totalidade – Isto é, sem distinguir as
disposições individuais dos elementos –, só apresente certas qualidades quando
esteja acima ou abaixo de certo número. De uma maneira geral tratamos disso
quando nos referimos às diferenças entre grupos grandes e pequenos. Mas agora
nos perguntamos se um número preciso de membros não produz certas feições do
grupo total. Naturalmente, as ações recíprocas entre os indivíduos continuam sendo
o fenômeno real e decisivo, mas por ora o objeto de nosso problema não são essas
ações em sua individualidade senão sua reunião em um todo. Os fatos que abonam
o sentido da quantidade coletiva pertencem todos a um tipo único: aos preceitos
legais sobre o número mínimo ou máximo de membros das associações para
reivindicar certas funções ou direitos e cumprir certas obrigações. A razão é simples.
É verdade que as qualidades especiais que as associações desenvolvem em virtude
do número de seus membros (e que justificam essas disposições legais) seriam
sempre as mesmas para o mesmo número de elementos, se não houvesse diferenças
psicológicas entre os homens e se a ação de um grupo dependesse exatamente de
sua quantidade de membros como do efeito da energia sobre uma massa de matéria
homogênea em movimento. Mas as incontestáveis diferenças individuais entre os
membros tornam completamente ilusória toda exata determinação prévia. Elas
podem dar causa a que a mesma força ou imprudência, a mesma concentração ou
descentralização, a mesma autonomia ou dependência, apareçam como qualidades
de um grupo de determinado tamanho e de outro muito menor ou muito maior. Mas,
162 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

os preceitos legais que determinam as qualidades que as associações devem reunir


não podem ter em conta tecnicamente tais variações e obstáculos produzidos pelos
acidentes da matéria humana, senão exigir um número preciso de membros, que se
considerará condição prévia para determinados direitos e obrigações. O fundamento
de todas essas especificações repousa na suposição de que só se produz certo
espírito comunitário, um ambiente, força e tendência favoráveis entre pessoas
associadas quando têm alcançado determinado nível numérico. Segundo esse
resultado seja desejado ou temido, a exigência será um número mínimo ou será
permitido um número máximo.
Citaremos em primeiro lugar alguns exemplos desse último caso. Na Grécia
antiga existiam prescrições legais que proibiam à tripulação dos navios exceder
cinco homens, para evitar a pirataria. Por temor aos grêmios de artesãos, as cidades
renanas decretaram em 1436 que estava proibido mais de três operários circularem
juntos vestidos de modo semelhante, Nesse sentido, as mais frequentes foram as
proibições políticas. Em 1305 Filipe, o Belo, proibiu quaisquer assembleias com mais
de cinco pessoas, de qualquer condição social, independentemente da forma que
adotassem. Durante o Ancien Régime era proibida a reunião de 20 nobres, mesmo
para se consultar, sem a permissão do rei. Napoleão III proibiu as associações de
mais de 20 pessoas sem autorização especial. Na Inglaterra, sob Carlos II, o
Coventicle Act reprimia toda reunião religiosa de mais de cinco pessoas em uma
casa; e a começos do século XIX, a reação inglesa proibiu todas as assembleias de
mais de 50 pessoas que não tivessem sido anunciadas com muita antecedência.
Durante os estados de sitio estão amiúde proibidas as reuniões na rua de mais de
três ou cinco pessoas, e a começos do século XX, o tribunal civil de Berlim decretou
que, aos efeitos legais, a presença de oito pessoas constituía já uma reunião,
devendo, em tal caráter, se informar â polícia. Este mesmo critério se manifesta no
domínio econômico. Por exemplo, na lei inglesa de 1708, adotada a instâncias do
Banco de Inglaterra, que proibiu às associações legais dedicadas às transações
monetárias de ter mais de seis membros. Isso indica a existência entre as
autoridades da convicção de que só em grupos do tamanho enunciado se encontra
a coragem ou a imprudência, a audácia ou a leviandade suficientes para cometer
certos atos que o governo quer impedir. Vê-se isso com mais clareza nas leis
Georg Simmel | 163

moralizadoras. Limitando o número de pessoas que podem tomar parte em um


banquete ou ser acompanhantes de um cortejo ou comitiva, etc. parte-se da
convicção empírica de que nos grandes agrupamentos de indivíduos os impulsos
sensuais ganham predomínio, o mau exemplo se propaga rapidamente e o senso de
responsabilidade individual fica paralisado.
Com o mesmo fundamento, mas em direção oposta, as prescrições que
exigem um mínimo de coparticipes são orientadas para que se produza determinado
efeito jurídico. Assim, na Inglaterra, toda associação econômica pode conseguir
direitos corporativos se está composta ao menos de sete membros. E o direito exige
pelo mundo afora um número mínimo de juízes – ainda que este número seja
extraordinariamente variável – para proferir uma sentença válida, a tal ponto que, em
alguns lugares, certos tribunais colegiados se chamam, simplesmente, “os sete”. No
que concerne ao primeiro fenômeno, supõe-se que somente com esse número de
membros estariam dadas as garantias suficientes e as solidariedades ativas sem as
quais os direitos corporativos representariam um perigo para a economia. No
segundo exemplo, pareceria que o número mínimo prescrito é necessário para que
os erros e as opiniões extremas dos magistrados se equilibrem mutuamente e a
opinião coletiva atine com uma decisão objetivamente justa. Essa exigência de um
número mínimo aparece particularmente nas formações religiosas. As reuniões
regulares dos monges budistas de determinada região, destinadas à realização de
exercícios espirituais e de confissão, exigiam a presença de quatro monges no
mínimo. Esse número era assim, de certa forma, necessário para constituir o sínodo
no qual cada membro do colegiado tinha uma significação distinta do que como
monge individual. Do mesmo modo, os judeus devem ser pelo menos dez para orar.
E na constituição que Locke redigiu para a Carolina do Norte, qualquer igreja ou
comunidade religiosa podia estabelecer-se, contanto que tivesse, no mínimo, sete
membros. Por essas disposições supõe-se, pois, que a força, a concentração e a
estabilidade próprias de uma crença religiosa comum só podem produzir-se a partir
de certo número de membros que assegure a coesão e a elevação mútua dos fiéis.
Resumindo: quando a lei prescreve um número mínimo é porque confia na
pluralidade e desconfia das energias individuais isoladas; simetricamente, quando
164 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

prescreve um número máximo é impulsionada pela desconfiança na pluralidade,


receio que não alcança os elementos individuais que a compõem.
Porém, seja com a proibição de um máximo ou com a autorização de um
mínimo, o legislador não duvida que os resultados que deseja ou teme se produzem,
só em média e com relativa incerteza, dentro dos limites prefixados. Sobre este
ponto, entretanto, a arbitrariedade da determinação é tão inevitável e justificável
quanto a de fixar o momento em que as pessoas adquirem os direitos e obrigações
da maioridade. Obviamente, a capacidade interna aparece antes em uns do que em
outros, e nunca de uma vez no exato minuto fixado pelo legislador. Mas a prática
precisa de um critério fixo que só se pode conseguir interrompendo a série etária
contínua em duas seções que recebem um tratamento completamente diverso,
mesmo que sua natureza objetiva não justifique de maneira alguma tal
comportamento. Por isso, resulta tão extraordinariamente instrutivo constatar o fato
de que, nos casos das determinações a que se referem os exemplos mencionados,
não se tenha para nada em conta a qualidade particular das pessoas a quem o
preceito se refere, apesar de ser esta qualidade que determina cada caso singular.
Todavia, como essa disposição individual não é tangível deve-se por isso recorrer ao
número. Este seria o fator decisivo, no entendimento generalizado, se as diferenças
individuais não anulassem seus efeitos que, precisamente por essa razão, estão
seguramente contidos no fenômeno final.
III. A subordinação

No geral, a ninguém interessa que sua influência sobre outro determine a esse
outro, mas que a determinação do outro reverta sobre o determinante. Por isso existe
uma ação recíproca naquele desejo abstrato de domínio que se dá por satisfeito
diante da ação ou a passividade do outro ou quando seu estado positivo ou negativo
aparece ao sujeito como produto de sua própria vontade. É verdade que esse
exercício solipsista de um poder dominador, cujo sentido se reduz a quem exerce a
posição dominante com consciência de sua atuação, não é mais que uma forma
sociológica rudimentar que não produz mais sociação da que existe entre um artista
e a sua estátua, ainda que esta reaja sobre o escultor na consciência de seu poder
criador. Ademais, as ânsias de domínio não significam suprema desconsideração
egoísta, nem sequer nesta forma sublimada cuja finalidade não é em realidade a
exploração do outro, mas simplesmente a consciência de sua possibilidade. Pois se
as ânsias de domínio querem quebrantar a resistência interior do submetido
(enquanto o egoísmo se contenta ordinariamente com a vitória sobre sua resistência
exterior), não é menos certo que o ansioso continua, apesar de tudo, a sentir pelo
outro certo interesse já que este representa algum valor para ele. Somente quando o
outro é perfeitamente indiferente e se converte em um simples instrumento para
alcançar fins alheios a ele, desaparece a última aparência de colaboração ou
interação social de reciprocidade. O princípio formulado pelos juristas romanos
tardios, segundo o qual a societas leonina não pode considerar-se como um contrato
de sociedade, explicita a ideia de que o conceito de sociedade é suprimido quando
uma das partes é privada de toda significação. Do mesmo modo, referindo-se aos
trabalhadores das grandes empresas modernas – nas que é impossível toda
concorrência eficaz entre patrões rivais no recrutamento da mão de obra – diz-se
que a diferença entre a posição estratégica dos operários sem qualificação e a de
seus patrões é tão grande, que o contrato de trabalho celebrado entre eles deixa de
ser um verdadeiro contrato no sentido corrente da palavra, porque uns estão à mercê
dos outros. Dessa forma, a máxima moral segundo a qual nunca se deve utilizar um
ser humano como um simples meio aparece como a fórmula de toda sociação.
Quando a importância de uma das partes se torna tão pouco significativa que sua
166 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

própria personalidade não é levada em conta na relação, não se pode falar de


sociedade, assim como não se pode dizer que exista sociedade entre o marceneiro e
sua bancada.
Em realidade, esse grau de dependência na relação de subordinação é mais
raro do que se costuma deduzir da expressão popular que insiste em falar de
“coação”, de “não ter outra opção”, de “necessidade absoluta”. É que subsiste
sempre uma quantidade considerável de liberdade pessoal até mesmo nas relações
de submissão mais opressoras e cruéis. Acontece que não nos damos conta dela
porque, em tais casos, afirmá-la custaria sacrifícios que geralmente não estamos
dispostos a fazer. A coação absoluta que o mais cruel tirano exerce sobre nós está
em realidade sempre condicionada por nossa vontade de evitar as penas e outras
consequências de nossa desobediência. Estritamente falando, a relação de
subordinação só aniquila a liberdade do subordinado no caso de coerção física
imediata. Nos demais casos, tal relação se limita a exigir de nossa liberdade um
preço que não estamos dispostos a pagar: o círculo de condições exteriores para que
essa liberdade tenha lugar pode, com certeza, estreitar-se mais e mais, mas não
chega nunca a aniquilá-la totalmente, salvo no citado caso de violência física. Não
nos interessa aqui o aspecto moral dessas considerações. Apenas nos importa a
face sociológica do fenômeno, por meio da qual se pode ver que a ação recíproca
(quer dizer, a ação mutuamente determinada que só se produz do ponto de vista das
pessoas) subsiste ainda nos citados casos de dominação completa e faz dessa
subordinação uma forma “social”, mesmo nas hipóteses em que a opinião popular
considera que a “coação” de uma das partes impede a outra exercer a sua livre
vontade, privando dessa forma ao comportamento do agente das características de
uma verdadeira “ação” recíproca.
Considerando o enorme papel que as relações de subordinação representam
na vida social, é sumamente importante – para a análise da existência social –
perceber claramente o grau de independência moral e capacidade de ação que o
sujeito subordinado conserva e que, com frequência, fica oculto nas representações
mais superficiais. Isso que chamamos “autoridade” supõe a liberdade do submetido
em muito maior grau do que amiúde se acredita, pois mesmo no caso em que a
autoridade pareça “oprimir”, ela se reduz ao constrangimento e à simples obrigação
Georg Simmel | 167

de obedecer. A forma propriamente dita de “autoridade”, tão importante para a vida


social em seus mais variados graus (desde o mero indício até seu exagero, em suas
formas agudas como nas crônicas) parece produzir-se de duas maneiras. Uma
pessoa superior por seu valor e sua energia inspira fé e confiança aos indivíduos que
a rodeiam de perto ou de longe, atribuindo às suas opiniões um peso que lhes confere
o caráter de instância objetiva. Tal indivíduo consegue, assim, para suas decisões,
preponderância e confiança axiomáticas que superam o valor sempre variável,
relativo e sujeito a crítica da personalidade subjetiva. Quando um homem é
considerado “detentor de autoridade”, a quantidade de sua importância se
transforma em uma nova qualidade e adquire para seu entorno o caráter de algo
objetivo. Pode, porém, chegar-se ao mesmo resultado pelo caminho inverso: um
poder supraindividual, o Estado, a Igreja, a escola, organizações como a família ou o
exército conferem, por iniciativa própria, autoridade (ou seja, certa esfera de
obediência, acatamento ou poder de decidir em última instância) a uma pessoa que
talvez nunca se teria beneficiado dessa dignidade por sua própria individualidade.
Nesse caso, a “autoridade” – que por natureza permite que a decisão de um homem
se imponha com essa segurança e obrigação de reconhecimento que racionalmente
só deveria corresponder aos axiomas ou às deduções suprapessoais e objetivas –
de alguma maneira tem descido e “pousado” sobre uma pessoa, enquanto no
primeiro caso ela emanava das qualidades da pessoa como por generatio æquivoca1.
No ponto em que se produz a transformação e conversão é evidentemente onde se
deve inserir a crença mais ou menos voluntária de quem se submete à autoridade,
pois aquela transferência entre o valor suprapessoal e o valor da pessoa, aquela
mudança que adiciona ao valor pessoal um acréscimo (por pouco que seja) sobre o
que racionalmente lhe corresponde, é realizada por quem acredita na autoridade e
constitui-se em um acontecimento sociológico que exige a colaboração espontânea
do próprio elemento subordinado. Ainda mais: o fato de que uma autoridade seja
sentida como “opressora” ou “tirânica” demonstra que a autonomia do outro está
implícita e nunca se pode anular por completo.

1
Geração espontânea. (NT)
168 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Devemos distinguir da autoridade essa variante da superioridade que


chamamos de prestigio. Neste último falta por completo o elemento da significação
supraindividual, a identificação da pessoa com uma força ou norma objetiva. Trata-
se aqui, pelo contrário, de uma energia absolutamente individual e decisiva para o
reconhecimento da liderança ou espírito de chefia e que permanece consciente de si
mesma. Em face do tipo médio do chefe no qual se dá sempre certa mistura de
elementos pessoais e elementos objetivos, o prestígio emana exclusivamente da
pessoa, assim como a autoridade nasce da objetividade de normas e poderes. Ainda
que a essência desse tipo de superioridade consista em sua “atração”, em sua
capacidade para levar atrás de si um séquito incondicional de indivíduos e massas
– mais do que a autoridade, cujo elevado ainda que frio caráter normativo deixa lugar
a críticas por parte do submetido –, o prestígio aparece como uma espécie de
homenagem voluntária ao superior. Em realidade, talvez o sujeito conserve no
reconhecimento da autoridade uma liberdade mais profunda do que quando é
fascinado pelo prestígio de um príncipe ou de um sacerdote, de um guia militar ou
espiritual. Todavia, aquele que é assim guiado tem o sentimento de que não é a
mesma coisa: frequentemente não podemos nos defender da autoridade, mas
sempre acreditamos identificar uma manifestação espontânea no impulso que nos
arrasta a esteira de um homem prestigioso. A atração se refere a um conjunto de
características e qualidades pessoais: justamente por isso parece brotar do fundo
da personalidade e de sua liberdade imprescritível. Com certeza, o homem se engana
inúmeras vezes quando estima o grau de liberdade com que realiza alguma ação,
porque o conceito consciente que permite analisarmos esse fato interno carece de
clareza e segurança absolutas. Mas, qualquer que seja o sentido que demos à
“liberdade”, podemos afirmar que ela existe – ainda que não seja na medida em que
supomos – quando temos o sentimento e a convicção de possuí-la2.

2
Aqui – e algo análogo sucede em muitos outros casos – o importante não é definir o conceito de
prestígio, mas apenas constatar a presença de certa variedade de interações entre os homens, sem
levar em conta qual seria sua denominação. Sucede às vezes que a pesquisa começa, como deve ser,
por aquele conceito que, segundo o uso da língua, melhor convém à relação que se estuda. Isto produz
a impressão de que o método se limita a definições, quando em realidade o que aqui fazemos não é
procurar o conteúdo de um conceito, mas descrever um conteúdo real que às vezes terá a fortuna de
concordar mais ou menos com um conceito já existente. (NS)
Georg Simmel | 169

A atividade desenvolvida pelos elementos em aparência passivos é ainda mais


positiva ante relações como a do orador com seu auditório ou a do professor com
sua classe. Ambos, em cada caso, parecem ser os únicos diretores, os superiores
momentâneos. Porém, todo aquele que se encontra em semelhante situação logo
experimenta a reação determinante e orientadora dessa massa que parece ser
receptiva e passiva. E isso não ocorre só no caso de uma relação face a face, sem
nada ou ninguém de permeio. Todos os chefes, por sua vez, recebem ordens e, em
incontáveis casos, o senhor é o escravo de seus escravos. “Tenho que segui-los, já
que eu sou seu chefe” teria dito referindo-se a seus partidários um dos maiores
políticos alemães 3 .Isso aparece muito claro no caso do jornalista que dá um
conteúdo e uma orientação às opiniões de uma massa muda, mas que deve ao
mesmo tempo escutar, combinar e adivinhar quais são, de fato, as tendências dessa
multidão, o que ela deseja ouvir, o que quer ver confirmado, para onde ambiciona ser
conduzida. Dir-se-ia que o público está sob a influência do jornalista, mas, em
realidade, o jornalista sofre a sugestão do público. Portanto, além da aparente
superioridade total de um dos elementos e da obediência passiva do outro se
esconde uma ação recíproca extremamente complexa, cujas forças espontâneas
adotam diversas formas. Em relações pessoais cujo sentido e conteúdo põem uma
das partes a serviço exclusivo da outra, essa dedicação integral está vinculada,
muitas vezes, à plena entrega que a outra parte faz de si mesma à primeira, mesmo
que seja em outro nível da relação. Assim diz Bismarck de suas relações com
Guilherme I: “As leis determinam certo grau de zelo, e as convicções políticas
impõem a observância escrupulosa das práticas inspiradas por esse zelo. Além
deste grau de engajamento é preciso certo sentimento pessoal de reciprocidade
entre o senhor e seu servidor. Minha adesão estava fundada, em princípio, em uma
sincera convicção monárquica, mas o caráter especial de meu apego [ao cáiser] só
era possível em presença de certa reciprocidade”.
Talvez o caso mais característico seja a sugestão hipnótica. Um distinguido
hipnotizador sublinha que em toda hipnose há uma ação – não fácil de determinar –

3
“Il faut bien que je les suive, puisque je suis leur chef”. Contrariamente ao que afirma Simmel, estas
palavras são atribuídas a Alexandre-Auguste Ledru-Rollin, homem político (republicano social)
francês que as teria pronunciado durante as jornadas revolucionárias de 1848. (NT)
170 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

do hipnotizado sobre o hipnotizador, sem a qual não se conseguiria o efeito


procurado. Apesar da aparência das coisas, da influência absoluta de uma pessoa
sobre outra que suporta essa sugestão sem reservas, esse fenômeno oculta também
uma ação recíproca, uma troca de influências, que transforma a dominação e
subordinação unilaterais em uma forma sociológica.
Vamos apresentar ainda mais alguns exemplos de subordinação, tomados da
experiência jurídica. Nesses casos se descobre sem dificuldade a existência de uma
ação recíproca real, além da aparência da ação exclusiva de uma só das partes.
Quando, em um regime de despotismo desenfreado, o soberano vincula suas ordens
à ameaça de uma pena ou à promessa de uma recompensa, isso quer dizer que ele
mesmo consente em ficar obrigado pelo decreto de sua autoria que concede ao
súdito o direito de exigir algo dele, já que, fixando uma pena, por horrenda que seja,
o déspota se compromete a não impor outra maior. Que depois, de fato, conceda a
recompensa prometida ou limite a pena às proporções por ele fixadas, é já outra
questão. Mas o sentido da relação é que, mesmo quando o dominante determina
totalmente o dominado, pode reconhecer a esse último um direito que possa
doravante ser aceito ou desistido, de maneira que possamos achar alguma
autonomia no subordinado mesmo na forma tirânica de relação.
Em uma teoria medieval do Estado, o motivo da ação recíproca se manifesta
(em singular transposição) dentro da subordinação aparentemente mais unilateral e
passiva. Com efeito, segundo a teoria em questão, o Estado se origina na mútua
obrigação, contraída pelos homens, de submeter-se a um chefe comum. O soberano
– inclusive o absoluto – obtém seu poder em virtude de um contrato celebrado pelos
súditos entre si. Esta teoria, pois, preconiza a ideia de que a reciprocidade não reside
na relação de dominação – como afirmam as doutrinas contemporâneas do contrato
entre o soberano e o povo – e passa a ser o fundamento mesmo dessa relação. A
obrigação para com o príncipe é considerada uma mera forma, expressão e técnica
de uma relação de reciprocidade entre os indivíduos do povo. Destarte, se para
Hobbes o soberano não pode nunca, qualquer que seja sua conduta, iludir em suas
expectativas a seus súditos, já que não tem celebrado nenhum contrato com eles, da
mesma maneira o súdito que se rebela contra o soberano também não deixa de
cumprir alguma obrigação contraída com ele, pois o único contrato que infringe em
Georg Simmel | 171

tal caso é o acordado com os demais membros da sociedade e que consiste no pacto
de deixar-se governar por aquele soberano.
A desaparição do elemento de reciprocidade explica por que a tirania de uma
comunidade sobre um de seus próprios membros pode ser muito pior que a de um
príncipe. Quando a comunidade (e não nos referimos apenas à política) não vê seus
integrantes como distintos dela, mas como partes ou órgãos de si mesma, dá lugar,
muitas vezes, a manifestações de uma brutalidade muito distinta da crueldade
pessoal de um déspota. O fato de os elementos se verem como dois (mesmo
enfrentados e ainda que o segundo apareça como subordinado) pressupõe uma ação
recíproca que, em princípio, acarreta uma limitação também dos dois – salvo em
alguns casos individuais excepcionais. Cada vez que a relação com o subordinado
ostenta essa brutalidade específica – própria de uma comunidade avassaladora –
também deixa de existir a mencionada contraposição cuja ação recíproca permitia a
ação espontânea dos dois elementos, e consequentemente a limitação de ambos.
Isso se expressa com muita propriedade no primitivo conceito romano de lei.
A lei, em seu sentido mais estrito, exige submissão que não pressupõe voluntária
aquiescência ou resposta alguma de parte daquele que se encontra subordinado a
ela. O fato de que o regido pela lei tenha, por exemplo, participado de sua elaboração
ou inclusive que se haja dado a si mesmo a norma, carece aqui de toda importância.
Nesse caso, cinde-se simplesmente o subordinado em sujeito e objeto da legislação,
e a determinação da lei que vai do primeiro ao segundo não altera seu sentido porque
ambos coincidam em uma mesma pessoa física. Todavia, os romanos incluíram a
ideia de ação recíproca no conceito de lei desde o começo. Em sua origem, com
efeito, lex significava contrato, o que quer dizer também, evidentemente, que as
condições desse contrato são fixadas por quem o propõe, cabendo à outra parte
apenas sua adoção ou rejeição en bloc. Assim, originariamente, os termos lex publica
populi romani significavam que o rei tinha proposto a lei e o povo a tinha aceito.
Dessa forma, o conceito que parecia excluir resolutamente a ação recíproca
retornava a ela, pelo menos linguisticamente. A expressão propunha, com efeito, uma
imagem reduzida do processo de formação da lei e do papel privilegiado que cabia
ao rei romano, o único autorizado para falar ao povo. Tal prerrogativa significava,
sem dúvida, a unidade zelosamente exclusiva de seu poder (assim como na
172 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

antiguidade grega o direto de cada um dirigir-se ao povo definia a democracia


perfeita), mas era também uma forma de reconhecer a importância de falar ao povo
e, por conseguinte, do povo mesmo. Isso significa que o povo era parte contratante,
ainda que só consentisse a ação unilateral e que o direito de contratar com ele
estivesse reservado a uma pessoa só.
Com essas observações preliminares nos propusemos apenas demonstrar o
caráter verdadeiramente sociológico, constitutivo da sociedade, das relações de
subordinação, mesmo nos casos em que havia uma relação meramente mecânica
onde parecia haver relação social na qual o subordinado se apresentava privado, em
aparência, de toda autonomia, sendo simples objeto ou meio nas mãos do superior.
Não foram poucos os casos, porém, em que acreditamos ter tornado visível uma
interatividade sociologicamente determinante escondida por trás da influência
unilateral.
Os modos de subordinação podem ser classificados seguindo um critério
puramente externo, mas cômodo para a exposição, e baseado nos elementos que
podem impor a dependência. Estes, em princípio, são três: um indivíduo, um grupo
ou um poder objetivo, que por sua vez pode ser social ou ideal. Estudaremos apenas
algumas significações sociológicas destas possibilidades.
A subordinação de um grupo a uma única pessoa tem como consequência
principal uma considerável unificação do grupo, que quase equivale à subordinação
nas suas duas formas características. Quando o grupo constitui um todo com seu
chefe, certamente em decorrência da primeira, as forças dispersas de seu coletivo se
reúnem e são conduzidas na própria direção do conjunto, de modo que a
subordinação só signifique, de fato, que a vontade do grupo acha no chefe uma forma
unitária de expressar-se ou de adquirir materialidade. Quando o grupo se opõe em
bloco a seu chefe e toma partido contra ele temos o resultado da segunda
subordinação. No que tange ao primeiro caso, o mais superficial estudo de um tema
sociológico é suficiente para demonstrar as inúmeras vantagens de um poder
centralizado para a coesão e direção criteriosa das energias coletivas.
Mencionaremos apenas dois fenômenos de subordinação comum que, ainda que
muito diferentes em seu conteúdo, revelam como a subordinação contribui de forma
insubstituível à unidade do conjunto.
Georg Simmel | 173

A sociologia das religiões tem um princípio distintivo: a questão de saber se é


a reunião dos indivíduos em um grupo a que produz um deus comum, para simbolizar
e santificar sua união (como ocorre em muitas religiões primitivas), ou se é a ideia
de Deus que reúne e unifica os elementos que, caso contrário, estariam dispersos ou
muito pouco próximos. Não é preciso explicar até que ponto teve lugar no
cristianismo esta última forma, nem insistir no caso de certas seitas cujos membros
se sentem estreitamente unidos pela relação absolutamente subjetiva e mística que
cada um deles estabelece (com completa independência dos demais e da
comunidade) com a pessoa de Jesus. Inclusive diz-se dos judeus que, em oposição
às religiões surgidas na mesma época (nas quais o parentesco vinculava em primeiro
lugar a cada membro com cada um dos outros e só depois à comunidade com o
princípio divino) a relação contratual comum com Jeová (que derivava da promessa
feita a Abraão e sua descendência, mas que concernia a cada um imediatamente)
era sentida como a força e o sentido verdadeiros da coesão nacional. O feudalismo
medieval, com suas complicadas e imbricadas relações de dependência e de
“serviço” pessoal, encontrou frequentes ocasiões de repetir essa estrutura formal.
As corporações dos “ministrais”, servidores domésticos e palacianos que estavam
em relação íntima e puramente pessoal com seu senhor talvez foram as mais
características. Tais corporações não tinham nenhuma base material, como as
comunidades de servos rurais com suas possessões contíguas. As pessoas que as
formavam estavam empregadas em serviços completamente distintos, tinham
domicílios diversos, mas apesar de tudo formavam corporações fechadas, sem cuja
autorização ninguém podia ser admitido ou sair delas. Desenvolveram um direito
próprio, de família e das coisas, desfrutavam entre si de liberdade contratual e de ir
e vir, e exigiam reparações por alterações à paz do lar. Todavia, essa estreita unidade
não tinha outro fundamento que a identidade do senhor, a quem todos serviam, que
a todos representava e que agia por todos.
Como no caso já mencionado das religiões, a subordinação a um poder
individual não é (como em outros muitos casos, sobretudo políticos) a consequência
ou expressão de uma comunidade orgânica ou econômica preexistente. Pelo
contrário, a subordinação a um único senhor é a causa da criação de uma
comunidade que não está fundada em nenhuma outra relação e que, de outro modo,
174 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

não se constituiria. De resto, não é a igualdade das relações entre todos os


subordinados com o chefe dominante, mas sua desigualdade que reforça uma forma
social assim definida. A diferente distância entre os subordinados em relação ao
chefe cria entre eles uma gradação firme e definida, ainda que, com frequência, a
inveja, a repulsão e a arrogância sejam a face oculta dessa distância social. O nível
social de cada casta indiana está determinado pela relação com os brâmanes. O
brâmane aceitaria um presente de seus membros? Receberia sem hesitar um copo
d’água das mãos deles? Aceitaria com dificuldade? Rejeitaria com asco? O fato de
que a singular solidez da hierarquia em castas disso dependa é significativo para a
forma social que tratamos, porque precisamente a simples existência de um chefe
supremo constitui um elemento ideal que determina a relação estrutural de cada
elemento e, por consequência, do conjunto. Com certeza, essa casta suprema está
formada por muitos indivíduos, mas isto não tem nenhuma importância para o caso,
porque a forma sociológica de sua ação é aqui exatamente a mesma que se fosse
uma pessoa só, pois a relação com “o brâmane” é o decisivo. Por conseguinte, a
forma característica da subordinação a uma única pessoa pode também produzir-se
mesmo ante várias pessoas dominantes. O sentido sociológico específico dessa
pluralidade aparece com toda clareza em outros fenômenos.
O efeito unificador da subordinação a um único poder dominante aparece
também e não com menos intensidade quando o grupo se opõe à força. No grupo
político, na fábrica, na aula na comunidade religiosa, observa-se que a organização
piramidal com um chefe à sua frente contribui à unidade do conjunto, não só para a
harmonia, como também para a oposição. A oposição obriga o grupo ainda mais a
“cerrar fileiras” e se manter coeso. Adversários comuns são, no geral, um dos meios
mais poderosos para obrigar os indivíduos ou os grupos a unir-se; efeito que se
intensifica ainda mais quando o inimigo comum é ao mesmo tempo o senhor
comum. Ainda que não seja de maneira clara e efetiva, esta combinação, sem dúvida,
está em toda parte, ao menos em forma latente, pois em certa medida ou de algum
modo, o senhor é sempre um adversário. No seu íntimo, o homem mantém uma
relação dupla com o princípio de subordinação: quer ser dominado, já que a maioria
dos indivíduos é incapaz de viver sem acatar uma direção, e procura o poder superior
que liberará da própria responsabilidade, os limites e regras rigorosas que protegerão
Georg Simmel | 175

dos outros e também de si. Porém os homens igualmente precisam se opor ao poder
dirigente, para ocupar, graças a essas ações e reações, o lugar que lhes convém no
sistema vital dos que obedecem. Estamos tentados a dizer que a obediência e a
oposição constituem dois aspectos de uma mesma conduta, orientados em direções
diferentes e que se apresentam como dois instintos autônomos. O caso mais simples
é o da política, na qual a comunidade, por muitos e adversos que sejam os partidos
que a integram, tem o interesse comum de limitar – senão de reduzir – as
competências da Coroa, mesmo que as considere indispensáveis e até sinta alguma
ligação sentimental. Na Inglaterra, muitos séculos depois da Carta Magna, se
mantém vivo o convencimento de que certos direitos fundamentais deviam ser
conservados e acrescentados para todas as classes, que a nobreza não podia
consolidar suas liberdades sem afirmar ao mesmo tempo a liberdade das classes
mais fracas, e que um direito comum para os nobres, os burgueses e os camponeses
era o corolário dos limites impostos ao governo pessoal. Devemos ressaltar que a
nobreza manteve esse objetivo final da luta, amiúde com o povo e o clero a seu lado.
E que, mesmo quando não se chega a esse tipo de unificação, surge graças à
dominação de uma pessoa – ao menos para os submetidos – um terreno de luta
comum onde os dominados se dividem entre os que estão junto e os que são
contrários ao senhor. Não há esfera sociológica submetida a um chefe supremo, em
que este pro et contra dos elementos não suscite vivas ações e relações recíprocas.
Frequentemente esses conflitos – apesar dos ódios, atritos e desgraças da guerra –
têm um poder de unificação largamente superior, em última análise, a muitas
coexistências pacíficas, mas também desprovidas de atrativos.
Como não se trata aqui de construir séries dogmáticas unilaterais, mas de
mostrar os processos fundamentais cujas medidas e combinações infinitamente
variadas desenvolvem suas manifestações superficiais em sentidos frequentemente
opostos, devemos assinalar que a submissão comum a um poder dominante conduz
não só à unificação, mas que às vezes, esbarrando em certas disposições, produz
resultados contrários. No século XVII, a legislação inglesa estabeleceu contra os
4
“não-conformistas” (isto é, fundamentalmente contra os presbiterianos e

4
Os protestantes não-conformistas ou dissidentes eram homens ligados às várias correntes ou
seitas protestantes não-anglicanas (batistas, anabatistas, quacres, congregacionais ou
176 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

igualmente contra os católicos e os judeus) uma série de medidas e exclusões que


se referiam ao serviço militar e ao direito de voto, à possessão de bens e aos
empregos de funcionário. Ficou claro, assim, que os adeptos à religião oficial
(anglicana) se valiam de suas prerrogativas para expressar seu ódio contra todos os
demais. No entanto, o resultado disso não foi a união dos oprimidos, porque a
profunda e comum aversão aos anglicanos foi superada pelo ódio mútuo de
puritanos e católicos. Parece termos atingido aqui uma curiosa manifestação do
“limiar psicológico”. Como temos dito, há um grau de inimizade entre diversos
elementos sociais que desaparece diante de uma opressão comum permitindo que
a malquerença possa virar unidade externa e até interna. Se esta hostilidade excede,
porém, certo limite, a opressão comum produz o efeito contrário. Isso ocorre, em
primeiro lugar, ao se experimentar um vivo rancor claramente direcionado, capaz de
aumentar (contra toda razão aparente) a inimizade e todo outro ressentimento, ainda
que proceda de distinta fonte, que corre agora ingovernável e alarga o já profundo
leito das primeiras mágoas. Por acréscimo, embora seja verdade que o sofrimento
em comum aproxime os que padecem, também é certo que, precisamente, esta
proximidade forçada deixa mais claro aos grupos subordinados seu distanciamento
interior e o grau de tenacidade dos ódios. Quando a tendência à unificação,
independentemente de sua origem, não é capaz de vencer um antagonismo, o status
quo ante não poderá ser mantido, mas intensificará a oposição, pois é bem sabido,
em todas as esferas, que o contraste fica mais agudo e consciente quanto mais se
aproximam os objetos contrastados.
Outro tipo mais visível de antipatia está fundado na subordinação exercida
sobre todos os sujeitos por meio dos ciúmes. Essa forma constitui o correlato
negativo da forma que acabamos de tratar. Se o ódio comum é um vínculo coletivo
muito mais poderoso quando a pessoa odiada coletivamente é simultaneamente o
senhor, também o amor comum, capaz de tornar os seus súditos em inimigos pelo
ciúme, vincula coletivamente de modo mais concreto e real quando o amado comum

independentes e presbiterianos – particularmente numerosos na Escócia) que se constituíram no


século XVI e, em meados do século XVII (1648-1660), promoveram a Revolução Puritana, que aboliu
a monarquia e conduziu Oliver Cromwell ao poder. Logo em seguida à Restauração da monarquia e
da dinastia Stuart, o rei Carlos II iniciou um processo de perseguição aos protestantes não-anglicanos
comparável ao que por razões distintas e desde antes, limitava os direitos de católicos e judeus (NT)
Georg Simmel | 177

é ao mesmo tempo o senhor comum. Um bom conhecedor da Sublime Porta5 relata


que os filhos do harém, quando eram de distintas mães, tinham sempre
comportamentos reciprocamente hostis. Os ciúmes seriam o fundamento dessas
manifestações de agressividade, incentivadas pelas mães que vigiavam as
expressões de amor do pai a respeito dos filhos de outras mulheres do serralho. A
nuance particular dos ciúmes quando se referem ao poder a que estão as partes
subordinadas tem a ver com saber ganhar para si mesmo o amor da pessoa
disputada e, por acréscimo, triunfar sobre o seu rival em um sentido e com um poder
particular. O imenso prazer de dominar o rival tirando o máximo partido do
sentimento do ciúme significa dominar o senhor justamente pela reciprocidade que
decorre da comunidade de senhorio.
Deixemos de lado, por ora, as consequências dissociadoras que a
subordinação a um poder individual traz consigo, e voltemos às consequências
unificadoras. Ressaltemos antes de tudo que as dissensões entre as partes se
solucionam mais facilmente quando elas estão submetidas a um mesmo poder
superior de quando são independentes.
Quantas cidades-estados gregas e italianas não teriam evitado os conflitos
que causaram sua perda se houvessem sido dominadas e mantidas unidas por um
poder central ou alguma instância superior que impedisse essa consequência
desastrosa! Quando essa instância falta, o conflito entre vários elementos tende
fatalmente a resolver-se por um enfrentamento imediato das forças presentes.
Trata-se, desde um ponto de vista geral, de um dos efeitos do conceito de
“instância superior” que se difundem, adotando formas muito diversas, a quase
todos os modos de convivência humana. Constitui assim um critério sociológico
formal de primeira magnitude saber se existe ou não uma “instância” com essas
características em uma sociedade ou para ela.
Não é preciso que esta instância seja um soberano no sentido ordinário ou
literal do termo. Assim, por exemplo, sobre relações e controvérsias fundadas em
interesses, instintos e sentimentos, o reino do intelectual constitui sempre uma

5
Sublime Porta, Porta Otomana ou simplesmente Porta, era a designação corrente dada entre 1718 e
1922 ao governo do Império Otomano. O termo é uma tradução da expressão turca dada ao
monumental portão de entrada no palácio que alojava a corte otomana. (NT)
178 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

instância superior, com seus conteúdos particulares e suas representações


momentâneas. A intelectualidade pode resolver apenas de um modo parcial e
insuficiente a disputa, assim como suas decisões poderão ou não ser respeitadas,
mas sempre o mais inteligente em um grupo de vários membros será a instância
superior – da mesma forma que a lógica é a instância superior que paira sobre os
conteúdos contraditórios de nossas representações, inclusive quando não
pensamos logicamente. O que evidentemente não impede que, em casos concretos,
a vontade enérgica ou a sensibilidade atenciosa de uma pessoa seja capaz de
pacificar a hostilidade dos membros do grupo. No entanto, o específico da “instancia
superior” a que recorremos para conseguir o compromisso, ou a cuja intervenção
nos submetemos com o sentimento de que ela é legítima, reside em sua dimensão
intelectual.
Eis ainda outro modo de unificação das partes discordantes, particularmente
favorecido pela presença de uma instância superior. Quando é aparentemente
impossível basear a união procurada nas qualidades efetivas dos elementos em
conflito ou que convivem indiferentes e estranhos entre si, consegue-se, às vezes,
que deponham sua atitude colocando-os em uma nova situação que favoreça a
união ou fomente neles novas qualidades em virtude das quais a união se produza.
Frequentemente, apaga-se o descontentamento, ao fazer nascer interesses
recíprocos e criar vastos terrenos de encontro – tanto nos jogos das crianças como
entre os partidos religiosos ou políticos –, acrescentando uma novidade aos motivos
e propósitos existentes, divergentes ou indiferentes, em que todos possam coincidir
para unir o que estava separado. Também, muitas vezes, chega-se por meio da
conciliação indireta de qualidades diretamente irreconciliáveis à condição de
evoluírem além de seu estado atual ou de modo a permitir que se acrescente um
novo elemento que modifique o fundamento de sua posição. Assim, por exemplo, a
homogeneidade das antigas províncias galas foi facilitada por sua latinização sob a
dominação romana. É evidente que a “instância superior” é decisiva para esse tipo
de unificação, porque um poder que esteja acima das partes e as domine, mais
facilmente interiorizará interesses e determinações que as situem em um campo
comum que talvez nunca tivessem encontrado se ficassem abandonadas à própria
sorte, tolhidas pela a obstinação, o orgulho, ou a incapacidade de superar o conflito.
Georg Simmel | 179

Frequentemente se reconhece o mérito da religião cristã de “pacificar” os ânimos. O


fundamento sociológico desse fato é com certeza o sentimento de subordinação
comum de todos os entes ao princípio divino. O crente cristão está convencido de
que essa instância suprema está acima dele e de seu adversário – seja ele crente ou
não –, e esta convicção enfraquece nele a tentação de medir violentamente suas
forças com as de seu inimigo. Se o Deus cristão pode ser um vínculo, compreendido
de antemão na “paz cristã” para círculos tão largos, é justamente porque se acha a
uma distância tão desmesurada acima de todas suas criaturas, que o indivíduo
encontra nele, sempre e junto aos outros, sua “instância superior”.
A unificação por subordinação se manifesta de duas formas: nivelação ou
hierarquia. Quando certo número de homens está submetido uniformemente a um
único poder, são iguais. Há muito tempo que se reconhece a correlação entre o
despotismo e o igualitarismo. Ela não resulta apenas dos intentos do déspota para
nivelar seus súditos – do que falaremos a seguir –, mas também, em sentido
contrário, da facilidade com que uma nivelação radical leva à implantação de formas
despóticas. Todavia, isso não se aplica a toda classe de “nivelações”. Quando
Alcibíades diz que as cidades sicilianas estavam formadas por “variegadas massas
populares”6, quis indicar que seriam presa fácil para o conquistador. De fato, uma
cidadania uniforme oferece maior resistência à tirania do que a população composta
de elementos divergentes e, por consequência, desconexos. A nivelação que o
despotismo vê com melhores olhos é a que elimina as diferenças hierárquicas e não
as de natureza. Uma sociedade de caráter e tendências homogêneas, mas ordenada
em diversas classes hierárquicas, resistirá energicamente à tirania. Contrariamente,
será menor a resistência à opressão oferecida por elementos de diversa natureza,
que coexistam em igualdade, mas sem hierarquia orgânica. Ora, o motivo
fundamental que impulsiona o poder solitário a suprimir as diferenças de classe é
que a existência de relações de subordinação muito acentuadas entre os súditos
disputa a primazia de sua própria e despótica dominação – em sentido real e
psicológico. Por outro lado, mesmo prescindindo disso, classes oprimidas demais
são tão perigosas para o déspota quanto classes com excesso de poder, pois que

6
Segundo relata Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso. (NT)
180 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

um levante das classes subjugadas contra os poderes intermediários chegaria


facilmente (como se uma força de inércia prolongasse seu movimento) a derrocar o
poder supremo, – caso não se pusesse à frente da revolta ou não prestasse seu
apoio. Por essa razão, certos déspotas orientais combateram amiúde a formação de
aristocracias, procurando manter – como o sultão turco – sua supremacia absoluta
sobre a totalidade de seus súditos, sem nenhuma mediação. Como todos os poderes
do Estado procediam dele e a ele voltavam depois da morte de seus depositários, não
se formava aristocracia hereditária alguma, e a absoluta proeminência do soberano
resultava correlata à nivelação dos súditos. Essa tendência diz respeito ao fato de
que os tiranos prefiram os serviços de homens de medianas luzes, como teria sido o
caso de Napoleão I. Conta-se que um príncipe alemão perguntou a um ministro se
era indispensável um funcionário que solicitava permissão para passar ao serviço de
outro Estado. Tendo escutado que, efetivamente, se tratava de um servidor
imprescindível, o príncipe teria respondido: “Então o deixaremos partir. Não gosto
dos servidores indispensáveis”. Mas como, evidentemente, o tirano também não quer
servidores de ínfimo valor, podemos ver claramente a correlação entre despotismo e
nivelação. Tácito assim se refere a propósito da tendência de Tibério de se rodear de
servidores medíocres: ex optimus periculum sibi, a pessimis dedecus publicum
metuebat (TAC. Lib. 1. Ann 14)7. É significativo, que quando o poder de um só perde
as conotações do despotismo, logo que essa predisposição recua, até é substituída
pela tendência oposta, como dizia Bismarck de Guilherme I, que não só suportava ter
um servidor prestigioso e poderoso, mas que ainda se sentia engrandecido por isso.
Todavia, quando o soberano não impede de imediato, como o sultão turco, a
formação de poderes intermediários, trata amiúde de produzir uma nivelação relativa
ao encorajar a aspiração das classes inferiores de igualar-se às mais elevadas em
direitos. A história medieval e moderna oferece numerosos exemplos pertinentes. Na
Inglaterra, o poder real tem deliberada e energicamente mantido, desde a época dos
normandos, a correlação entre sua própria onipotência e a igualdade jurídica dos
súditos. Guilherme, o Conquistador rompeu o vínculo que até então existia – como
no continente – entre a aristocracia imediatamente vassala da Coroa e os vassalos

7
“Temia que os melhores representassem um perigo para ele e que os piores fossem uma desgraça
para o Império” (NT)
Georg Simmel | 181

desses senhores8, suseranos aos quais impôs a obrigação de prestar juramento de


lealdade diretamente ao rei. Impediu, assim, que os grandes feudos da Coroa
aumentassem seu poder até adquirir soberania e, por outro lado, colocou as bases
de uma organização jurídica uniforme para todas as classes. A monarquia inglesa
dos séculos XI e XII funda seu extraordinário poder na submissão uniforme e sem
exceção de toda a propriedade livre às mesmas obrigações militares, jurídicas,
econômicas e de polícia. O mesmo processo se desenvolveu no Império Romano. A
República não pôde subsistir porque já não era possível manter a supremacia jurídica
ou efetiva da cidade de Roma sobre a Itália e as províncias. O Império conseguiu
restabelecer o equilíbrio porque, privando aos cidadãos civis romanos (quirites) de
seus privilégios, equiparou-os em direitos aos povos submetidos, o que possibilitou
uma legislação imparcial para todos os cidadãos, quer dizer uma nivelação jurídica
cujo corolário foi a absoluta proeminência e unicidade do soberano.
É desnecessário advertir que, nesse sentido, a “nivelação” deve ser entendida
como uma tendência muito relativa e limitada em sua execução. Uma ciência
fundamental das formas sociais tem que formular os conceitos e as conexões entre
os conceitos com uma propriedade e abstração cuja realização histórica nunca se
deu. Mas a intelecção sociológica, que quer apreender o conceito fundamental de
sociação em seus sentidos e formas singulares, e analisar os complexos em que os
fenômenos apresentam-se até descobrir neles regularidades indutivas, só pode
consegui-lo valendo-se de linhas e figuras absolutas, que nos fatos sociais
concretos se encontram apenas em forma de realizações parciais, esboços e
fragmentos continuamente interrompidos e modificados. Em cada uma das
configurações que se apresentam na história social age uma quantidade
provavelmente incalculável de elementos, o que nos impede de decompor sua forma
em todos seus fatores parciais, e logo recompô-la ao reunir esses fatores (do mesmo
modo que a figura de um fragmento de matéria não pode nunca decompor-se e
recompor-se exatamente nas figuras ideais de nossa geometria, mesmo que ambas
as operações sejam em princípio possíveis diferenciando e combinando as formas
científicas). Para que uma realidade histórica seja conhecida sociologicamente, ela

8
Sorte de vassalos de vassalos, conhecidos como suseranos e até então vinculados ao monarca
apenas indiretamente, pela mediação de seus respectivos senhores. (NT)
182 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

tem que ser transformada de tal modo que sua unidade se divida em uma série de
conceitos e de sínteses determinados de maneira unilateral, e sequenciados de tal
sorte que um deles constitui geralmente a característica principal. Assim é possível,
por mútua limitação e desvio, projetar, com crescente exatidão, a imagem daquele
fenômeno social no novo plano da abstração, por exemplo, a da dominação do sultão
sobre súditos sem direitos; a do rei de Inglaterra sobre um povo, que depois de 150
anos da morte de Guilherme, o Conquistador se levanta corajosamente contra o rei
João; a do imperador romano que, de fato, não era mais do que o chefe das
comunidades mais ou menos autônomas que constituíam o Império. Todos esses
exemplos mencionados são formas monárquicas extraordinariamente diversas,
assim como era distinta a “nivelação” dos respectivos súditos. Todavia, essa
correlação deriva de um motivo comum presente em todas elas, de maneira tal que
a diversidade ilimitada dos fenômenos materiais imediatos deixa lugar a uma
espécie de linha ideal que desenha aquela correlação – que certamente, em sua
limpidez e regularidade, é uma figura científica abstrata.
A mesma tendência à dominação por meio da nivelação está presente em
fenômenos aparentemente opostos. É um comportamento típico que observamos
em Filipe, o Bom, duque de Borgonha, que trata de acabar com as liberdades das
cidades holandesas, mas que, por outro lado, concede importantes privilégios a
numerosas corporações. Pois, na medida em que todas essas diferenças de direitos
se originavam no puro arbítrio do soberano, elas denotavam a uniformidade da
submissão na qual se encontravam, a priori, os súditos. No exemplo citado, é
característico que os privilégios jurídicos, muito amplos em seu conteúdo, fossem de
duração muito breve, pelo que não se separavam jamais de sua fonte e origem.
Assim, o privilégio, que é aparentemente o contrário da nivelação, se revela em
alguns casos como forma superlativa da uniforme sujeição, espécie de correlato da
dominação absoluta.
Censurou-se incontáveis vezes à dominação de um só pelo contrassenso que
representa, por outras palavras, pela desproporção quantitativa entre o senhorio
individual e a pluralidade dos dominados, pela indignidade e injustiça na proporção
do que cada uma das partes investe nessa relação. A solução de tal contradição
oferece um conjunto muito singular e fecundo de elementos sociológicos
Georg Simmel | 183

fundamentais. De fato, a estrutura de uma sociedade na qual um só domina e a


grande massa tolera a dominação, só adquire sentido normativo na medida em que
a massa, quer dizer, o elemento dominado, somente investe na relação uma parte de
cada personalidade integrante, ao passo que o senhor investe sua personalidade
inteira. O senhor e cada um dos indivíduos dominados não entram na relação com a
mesma quantidade de personalidade. A “massa” se constitui em razão de muitos
indivíduos reunirem frações de sua personalidade, determinados instintos,
interesses e forças unilaterais. O que cada personalidade é, como tal, fica fora desse
plano de nivelação e não entra na “massa”, isto é, naquilo que o senhor único
verdadeiramente domina. Não parece necessário sublinhar que é apenas por falta de
um símbolo melhor que essa forma quantitativa expressa esta nova proporção, na
qual a personalidade inteira do senhor é contrapesada pelos múltiplos fragmentos
das personalidades dominadas. Enquanto tal, a personalidade escapa
absolutamente a toda expressão aritmética, de maneira que, quando falamos da
personalidade “inteira”, de sua “unidade” ou de uma “parte” dela referimo-nos a algo
interiormente qualitativo, a algo que unicamente pode ser vivido como intuição da
alma. No entanto, como não temos nenhuma expressão direta para designar isto,
devemos nos valer de elementos lexicais provenientes da ordem quantitativa, tão
insuficientes como indispensáveis. Toda relação de dominação entre um indivíduo e
muitos outros (obviamente, não só no domínio da política), repousa nessa cisão da
personalidade. Sua aplicação às relações de subordinação não é mais do que um
caso especial do sentido que ela tem em todas as ações recíprocas em geral. Mesmo
em uma associação tão estreita como a do casamento pode dizer-se que não se está
nunca inteiramente casado, mas que, na melhor das hipóteses, só se investiu no
casamento parte da personalidade, por maior que seja. De igual modo, não se é
nunca inteiramente cidadão de uma cidade, nem parceiro econômico ou membro de
uma igreja. Essa cisão da pessoa humana, que vai implícita na dominação de um
indivíduo sobre muitos outros, foi reconhecida por Hugo Grócio 9 . Respondendo à
objeção de que o poder não pode ser alienado, já que se refere a homens livres, Grócio

9
Hugo Grócio, Hugo Grotius ou Huig de Groot (1583 – 1645) foi um jurista holandês a serviço da
República dos Países Baixos. É considerado o fundador, junto com Francisco de Vitória e Alberico
Gentili, do Direito Internacional, com base no Direito Natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta
e um grande nome da apologética cristã. (NT)
184 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

distinguiu entre subjetio (submissão) privada e pública. A subjetio pública não


suprime, como a subjetio privada, o sui juris esse10. Quando um populus é alienado,
o objeto da alienação não são os indivíduos, mas o jus eos regendi qua populus
sunt 11 . Uma das mais delicadas tarefas da arte política – incluindo a política
eclesiástica, a familiar e toda política de dominação – consiste em reconhecer, isolar
e dispor aqueles aspectos que levam os homens a formar uma “massa” (mais ou
menos nivelada, em face da qual o senhor pode situar-se a uma mesma distância
hierárquica de todos seus integrantes), distinguindo-os dos aspectos, que só
constituem a personalidade do subordinado quando reunidos, e que pertencem
necessariamente ao âmbito da liberdade individual.
Os grupos se distinguem uns dos outros de um modo muito característico
segundo a relação 12 estabelecida entre a totalidade e o investimento que os
membros fazem na personalidade para formar a “massa”. Dessa relação depende a
maior ou menor governabilidade, no sentido de que quanto menor o investimento de
cada um dos indivíduos objeto da subjectio na personalidade total da massa, mais
fácil será para um só dominar radicalmente o grupo. Quando a unidade social contém
em si uma parte muito considerável da personalidade de seus membros e a ligação
é íntima (como ocorria nas cidades gregas ou medievais), a dominação de um só
resulta contraditória ou irrealizável. Tal relação fundamental, simples em seu
princípio, se complica pela ação de dois fatores: a maior ou menor extensão do
círculo dos subordinados, e o grau em que os subordinados estão diferenciados
dentro dele. Quanto maior um círculo, menor a coeter paribus a extensão dos
pensamentos e interesses, dos sentimentos e qualidades contidos na “massa”. Por
consequência, na medida em que a dominação se estenda sobre o que os
subordinados têm em comum, uma maior dimensão de círculo permite que a
dominação seja mais facilmente suportada pelos subordinados. Com isso em mente,
compreende-se o significado fundamental da dominação de um só, assim
formulado: quanto mais numerosos os dominados pelo senhor único, menor o
domínio sobre a parte de cada indivíduo.

10
Ser independente. Diz-se da capacidade da pessoa livre de determinar-se sem depender de outrem.
(NT).
11
O direito de governá-los, que faz deles um povo. (NT)
12
No sentido de: “cotejo entre duas quantidades mensuráveis”. (NT)
Georg Simmel | 185

Em segundo lugar, é também de importância decisiva saber se os indivíduos


estão suficientemente diferenciados em sua estrutura espiritual para distinguir
prática e sentimentalmente entre os elementos de seu ser que ficam no campo de
ação da dominação e os que ficam fora dele. Só quando isso coincida com a arte
política – anteriormente mencionada –, e o senhor também saiba distinguir dentro
dos indivíduos os elementos susceptíveis de domínio dos elementos que escapam
dessa esfera, resolver-se-á a contradição entre submissão e liberdade, o que
significa a desproporcionada preponderância de um sobre muitos. Em tal caso, a
individualidade poderá desenvolver-se livremente mesmo em grupos governados
despoticamente. Advirta-se que a individualidade moderna começou a se formar sob
os regimes despóticos do Renascimento italiano. Aqui, como em outros casos – por
exemplo, sob Napoleão I –, o soberano tem interesse em conceder a maior liberdade
possível a todos os aspectos da personalidade que não pertencem à “massa”, quer
dizer, àqueles fora do campo de ação política da dominação. Compreende-se bem,
assim, por que em círculos muito pequenos (nos quais essa distinção se confunde e
turva a raiz da íntima fusão dos seus elementos e da estreita solidariedade que os
une) fica muito difícil manter os dois aspectos separados, e as relações de domínio
degeneram facilmente em insuportável tirania.
Tal particularidade dos círculos pequenos se associa frequentemente à falta
de habilidade das pessoas preponderantes e produz muitas vezes relações
extremamente insatisfatórias, como por exemplo, no caso de pais e filhos. Amiúde
os pais cometem o grave erro de impor autoritariamente uma norma de vida
inexorável a seus filhos, até naquelas coisas em que os jovens podem-se mostrar
inflexíveis. O mesmo acontece quando um sacerdote, saindo da esfera na qual ele
poderia tentar manter unida a sua comunidade, pretende mandar nos fieis e ditar
como devem passar os dias, esquecendo que na vida privada os paroquianos têm
um comportamento diferenciado em face da comunidade religiosa. Em nenhum
desses casos se tem feito a justa seleção dos aspectos da personalidade que
pertencem à “massa” e que por isso mesmo poderiam facilmente se sujeitar à
dominação sem que os indivíduos subordinados se sentissem feridos.
A nivelação da massa, que ocorre graças à seleção e reunião dos elementos
suscetíveis de ser dominados, é de grande importância para a sociologia da
186 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

dominação. Assim se entende por que frequentemente é mais fácil dominar um


grupo grande que outro pequeno, especialmente quando se trata de indivíduos muito
diferenciados, pois que cada novo indivíduo reduz ainda mais a esfera do comum a
todos. Quando tais personalidades são reunidas, o patamar da nivelação de muitos
está coeteris paribus mais baixo, o que os deixa mais fáceis de dominar. Este é o
fundamento sociológico que corrobora a observação de Hamilton no Federalista 13, a
saber, que seria o maior dos erros do povo acreditar que aumentando o número dos
membros do Parlamento há mais garantia against the government of a few14. Além
de certo número, a representação popular parecerá, sem dúvidas, mais democrática,
mas, em realidade, será mais oligárquica, pois, como diz o mesmo autor: the machine
may be enlarged but the fewer will be the springs by which its motions are directed 15.
No mesmo sentido, concluía cem anos mais tarde um dos maiores conhecedores da
vida política anglo-americana16 que, quanto mais aumenta o poder e a influência de
um chefe de partido, mais tem que dar-se conta by how few persons the world is
governed17. Tal é a raiz sociológica profunda da estreita relação entre o direito de um
conjunto político e seu senhor. O direito aplicável a todos surge daqueles pontos de
convergência além dos conteúdos ou formas de vida puramente individuais ou, por
outras palavras, que não abrangem a totalidade da pessoa individual. O direito dá
uma forma objetiva concordante a todos esses interesses além de qualidades
supraindividuais que encontram sua forma subjetiva ou seu correlato no senhor
deste conjunto. Essas análise e síntese particular dos indivíduos são o fundamento
do poder do senhor único, coisa que permite compreender sem esforço que há
ocasiões em que basta ao senhor uma quantidade assombrosamente mínima de
eminentes qualidades para assegurar o poder sobre uma coletividade que, por sua
vez, se submete com facilidade logicamente incompreensível se se comparassem
qualitativamente o senhor com seus súditos, considerados como pessoas totais.
Todavia, quando não existe essa diferenciação dos indivíduos, indispensável para o

13
James Madison, Alexander Hamilton, John Jay. Federalist papers, nº 58, (NT)
14
Contra o governo de uns poucos. (NT)
15
Poderá ser alargada a máquina, mas serão poucas as molas para direcionar seus movimentos. (NT)
16
James Bryce, The American Commonwealth, op. cit., vide nota 18 do tradutor (NT) do Capítulo II.
(NT)
17
Por quão poucas pessoas o mundo é governado. (NT)
Georg Simmel | 187

domínio da massa, se exige do senhor qualidades que então superarão aquela


modesta medida. Aristóteles dizia que a sua época não testemunharia um poder
único legítimo, porque havia nesses tempos tantos indivíduos igualmente notáveis
em todas as polis que nenhum podia pretender tal superioridade sobre os demais. O
cidadão grego estava aparentemente tão vinculado por seus interesses e
sentimentos à coletividade política, tinha consagrado a sua personalidade em tão
larga medida à polis, que não lhe era possível joeirar os elementos exclusivamente
políticos da personalidade, reservando-se como propriedade privada outra parte
essencial desta. Em situações desse tipo, a legitimidade intrínseca do poder único
pressupõe que o senhor seja superior à personalidade total de cada um de seus
súditos – exigência que não se apresenta, em compensação, quando o objeto da
dominação só é a simples adição daquelas partes dos indivíduos que podem ser
reunidas em uma “massa”.
A par deste tipo de poder único, cujo correlato é a nivelação radical de seus
subordinados, encontramos um segundo tipo em que o grupo assume a forma de
uma pirâmide. Os subordinados estão em relação ao senhor em gradações
progressivas de poder; em camadas de tamanho cada vez menor, mas maiores em
importância por conduzirem a massa inferior ao ápice. Esta forma de grupo pode
produzir-se de duas maneiras. Em primeiro lugar, pode emanar do poder autocrático
de um só. O autocrata perde o conteúdo do poder – embora conserve a forma e o
título – e o deixa “gotejar”, de maneira que as camadas mais próximas da fonte se
apropriam naturalmente de uma parte maior desse conteúdo do que aquelas mais
longínquas. Destarte (e se não sobrevêm outros acontecimentos e condições que
perturbem o processo), o poder “escorre” aos poucos, e cria-se uma gradação de
subordinações. Dessa maneira se constituíram frequentemente as formas sociais
nos despotismos orientais: o poder supremo se desmembra, porque é impossível
manter a proporcionalidade entre submissão e liberdade individual, ou porque as
personalidades regentes são por demais indolentes e ignorantes da técnica da
dominação para conservar seu poder.
Quando a forma piramidal da sociedade emana da intenção do senhor, oferece
um caráter completamente distinto e não significa um enfraquecimento, mas
aumento e consolidação de seu poder. Nesse caso, o poder do senhor não se reparte
188 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

entre as camadas inferiores, que são organizadas simplesmente umas sobre as


outras segundo graus de poder e posição. A subordinação resta quantitativamente a
mesma que no caso da nivelação, a não ser por tomar a forma da desigualdade entre
os indivíduos sobre os quais recai, o que produz, simultaneamente e segundo os
casos, uma reaproximação entre os elementos e o senhor em função de sua posição
relativa na hierarquia. Por conta disso, a totalidade do constructo pode resultar mais
sólida, enquanto sua capacidade de carga se desloca para o ápice com maior
segurança e concentração que se estivesse distribuída. Com efeito: o fato de que a
superioridade do príncipe (ou da pessoa que em cada círculo ocupe a posição
dirigente) se propague além de si próprio e se difunda entre seus próximos não
significa diminuição, mas aumento de sua importância. No começo da dinastia
normanda, os reis da Inglaterra não tinham nenhum corpo consultivo permanente ou
obrigatório, mas foi precisamente com base na maior dignidade e importância de seu
governo que eles pediam opinião ou parecer, em casos graves, ao consilium
baronum. A dignidade, que aparentemente se elevava ao grau supremo por enraizar-
se na pessoa do rei, tinha necessidade, a olhos vistos, de difusão e expansão, como
se não coubesse em uma pessoa só, apesar de ela pertencer unicamente ao
monarca. O rei chamava, assim, vários súditos para colaborar e compartir o poder e
importância irradiados por ele, o soberano. Encontramos numerosos exemplos disso
na Inglaterra anglo-saxônica18, em que certos servidores do rei como seu escudeiro
ou seu palafreneiro 19 ou o homem em cuja casa o monarca bebia, tinham uma
posição social que os colocava acima da massa, concedia uma proteção jurídica
particular e até aumentava seu wetgald (preço a pagar pela morte de uma pessoa).
Não devemos ver, porém, nesses privilégios e vantagens apenas uma simples
consequência das prerrogativas reais, mas também e simultaneamente um
sustentáculo do poder do soberano, obtido por meio de uma transferência
hierárquica bem dosada de direitos inerentes à realeza. Da mesma maneira que se
constrói um edifício sobre uma base, o rei não diminuía, mas aumentava sua
superioridade quando transferia algo dela a determinados vassalos. Por acréscimo,

18
Inglaterra anglo-saxônica é um termo que se refere ao período da história inglesa que vai do fim da
Britânia romana e o estabelecimento na Ilha dos reinos anglo-saxônicos no século V d.C. até a
conquista normanda do reino em 1066. (NT)
19
Moço que cuidava o palafrém, cavalo em que o soberano desfilava. (NT)
Georg Simmel | 189

recorrendo a cuidadosas gradações dentro do quadro de seus servidores, o soberano


dispunha de distinções e recompensas em forma de promoções hierárquicas que
nada lhe custavam, mas que vinculavam mais estreitamente sua pessoa àqueles que
ficavam posicionados mais perto dela. O grande número de graus sociais criados
pelos imperadores romanos – escala ininterrupta que ascendia desde os escravos e
os humiliores20 e chegava até os senadores, passando pelo homem livre ordinário –
parece diretamente inspirado por uma tendência semelhante. Desse ponto de vista,
a aristocracia é formalmente igual à monarquia, pois também ela recorre à
distribuição metódica dos súditos em muitos graus. Assim, por exemplo, na Genebra
de meados do século XVIII existiam ainda variadas gradações de direitos entre os
moradores do senhorio que se dividiam em citoyens, bourgeois, habitants, natifs e
sujets21. A toda evidência, enquanto o maior número possível desses habitantes teve
ainda outros abaixo deles, foi de seu interesse conservar a ordem existente. Com
frequência, em casos como esses provavelmente se tratava menos de uma gradação
de poder efetivo que de uma hierarquia de títulos e posições, essencialmente ideal.
Todavia, essas distinções podem ser pródigas em consequências, como se vê com
brutal clareza nas gradações sutis das dezenas de classes do sistema de castas
indiano, Ora, mesmo se as pirâmides construídas com base em honras e privilégios
sociais conservam o soberano no seu vértice, não coincidiam sempre com as
estruturas graduais de poder que podem subsistir ao lado delas.
A estrutura de poder em forma de pirâmide sempre se ressentirá da
discordância entre a natureza irracional e volúvel das pessoas e os contornos das
diversas posições traçadas com lógico rigor. Este é um defeito formal que conhecem
todas as organizações fundadas em relações de subordinação construídas sobre um
esquema prévio – e que se encontra tanto nas hierarquias que culminam em um

20
Na antiguidade romana, os humiliores eram pessoas carentes de capitais e de bens ou escravos
libertos; espécie de plebe urbana qualificada pelos aristocratas de plebs sordida ou plebs humilis.
(NT)
21
Os moradores do senhorio de Genebra se dividiam em: 1) cidadãos ou burgueses. Os únicos com
direitos políticos. Para ser da “burguesia”, era preciso nascer na cidade, ter pai burguês de Genebra e
comprá-la. Além de uma importância em dinheiro era necessário pagar um seillot (ou pequeno balde)
e uma arma de fogo; 2) habitantes, que deviam ser admitidos como tais e pagar uma taxa de
habitação. Podiam obter a “burguesia”, mas tinham que residir certo número de anos em Genebra; 3)
nativos, que eram filhos de estrangeiros admitidos à habitação, nascidos na cidade. Estavam privados
de todo direito político e não podiam exercer certas profissões; e 4) súditos, habitantes de terras
dependentes do senhorio. (NT)
190 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

soberano unipessoal como nos projetos socialistas, que confiam a uma determinada
instituição a missão de levar à suprema posição diretiva a pessoa que mereça
efetivamente ocupá-la. Chega-se, em ambos os casos, a essa incomensurabilidade
fundamental entre o esquema das posições e a natureza do homem que é
interiormente mutável e não se adéqua com absoluta justeza às formas conceituais.
A isso se acrescenta ainda a dificuldade de conhecer a pessoa adequada para ocupar
cada posição de poder, sobretudo porque, muitas vezes, não se sabe se uma pessoa
merece ou não ocupar determinada posição de poder até tê-la preenchido. Por
motivos arraigados no mais profundo e valioso da natureza humana, a possibilidade
de um homem alcançar um novo poder ou uma nova função representa sempre um
risco, pois ainda que o candidato tenha se submetido às provas mais escrupulosas
e seus antecedentes fossem verificados exaustivamente, será sempre um ensaio que
pode ter ou não sucesso. Eis que a relação que o homem mantém com o mundo e
com a vida obriga a resolver sempre de antemão, quer dizer, antecipando-se a certos
fatos que ainda não se produziram, mas que deveriam ser conhecidos para tomar a
resolução racionalmente e com segurança. Essa dificuldade geral, a priori, de toda
ação humana se manifesta com particular clareza na elaboração de escalas de poder
social quando a hierarquia resultante não surge organicamente das próprias forças
dos indivíduos e das circunstâncias naturais da sociedade, mas da decisão
espontânea de um governante. É verdade que é um caso muito difícil de produzir-se
historicamente com absoluta nitidez – no máximo, as utopias socialistas acima
referidas seriam um paralelo –, mas observam-se suas particularidades e
complicações na realidade em suas formas mais rudimentares e misturadas a outros
fenômenos.
O outro modo de construir essa escala de poder até um ápice ou vértice
supremo vai em direção oposta. A partir de uma relativa igualdade originária dos
elementos sociais, há aqueles que adquirem maior importância que os demais. Por
sua vez, não é estranho que se destaquem indivíduos especialmente poderosos do
conjunto destes, até que a evolução culmine em um ou vários vértices. Nesse
sentido, a pirâmide da subordinação hierárquica é construída da base para o topo.
Não é preciso acumular exemplos desse processo, que se verifica em todo lugar,
ainda que com ritmos muito diversos. Ele talvez se apresente com mais propriedade
Georg Simmel | 191

no domínio econômico ou político, mas se percebe também claramente no domínio


da formação intelectual, nas escolas, na evolução do estilo de vida, na relação
estética e na constituição primária da organização militar.
O exemplo clássico do encontro dos dois caminhos pelos quais as relações
de dominação e subordinação dos grupos se constituem por graus é o Estado feudal
da Idade Média. Durante todo o tempo que o cidadão de pleno direito – grego,
romano, germano – não conhecia subordinação alguma a um só chefe, ele era, por
uma parte, exatamente igual a seus pares, ao passo que por outra se achava
rigorosamente separado de seus inferiores. Essa forma social característica
encontra – passando evidentemente por todos os elos históricos intermédios – sua
contrapartida não menos característica no feudalismo, que preenchia o vácuo entre
a liberdade e a não-liberdade com uma escala ou série gradual de estamentos. O
“serviço” (servitium) vinculava todos os membros do reino entre si e com o rei, O
monarca cedia terras em feudo a seus grandes súditos, que, por sua vez, faziam o
mesmo com seus próprios vassalos subordinados, formando uma estrutura
escalonada de posições, possessões e obrigações. O processo social caminhava em
sentido oposto e chegava ao mesmo resultado. As camadas intermédias nasciam
recebendo de cima e acumulando desde baixo. Pequenos proprietários fundiários,
originariamente livres, entregavam suas terras a senhores mais poderosos, para
recebê-las novamente deles em qualidade de feudo, permitindo que esses grandes
senhores, graças a esse constante aumento de poder – que a realeza enfraquecida
não podia evitar – escalassem todos os degraus na hierarquia até rivalizar com os
reis. Uma forma piramidal de tais características atribui individualmente a seus
elementos uma dupla posição entre os mais baixos e os mais altos. Cada um deles
é senhor e subordinado, dependente de cima e, simultaneamente, independente na
medida em que outros dependem dele. Talvez esta dualidade sociológica do
feudalismo – particularmente acentuada por sua dupla gênese: dos dons vindos de
cima e da acumulação realizada de baixo – tenha acarretado essas consequências
contraditórias. Dessa sorte, o feudalismo tem conduzido a distintos resultados
conforme a prática e a consciência tenham destacado o matiz da independência ou
da dependência nos elementos intermédios. Na Alemanha, essa característica minou
o poder supremo, e na Inglaterra permitiu à Coroa estender seu poder por toda parte.
192 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

A gradação hierárquica faz parte dessas formas de organização e de vida


coletiva cujo ponto de partida é quantitativo e que, por conseguinte, são mais ou
menos mecânicas e precedem historicamente o grupo orgânico propriamente dito,
baseado em diferenças individuais qualitativas. Essas formas, porém, não são
simplesmente substituídas pelo grupo orgânico, subsistindo lado a lado ou
imbricadas nele. Dentre as mencionadas manifestações mecânicas figura em
primeiro lugar a divisão dos grupos em subgrupos cujo papel social está vinculado à
igualdade numérica ou, ao menos, a sua determinação quantitativa, como sucede
nas centúrias. A determinação da posição social em função exclusiva do patrimônio,
assim como a formação dos grupos de acordo a graus fixos pertencem também ao
gênero das manifestações mecânicas, como se observa sobretudo no feudalismo e
nas hierarquias burocráticas ou militares. O primeiro dos exemplos das formações
dessa classe que acabamos de citar indica claramente sua objetividade singular e
sujeição a um princípio. Foi precisamente por isso que o feudalismo, tal como se
constituiu no Alto Medievo germânico, quebrantou as antigas ordens de livres e
escravos ou patrícios e plebeus que repousavam sobre as diferenças da relação que
mantinha o indivíduo com a comunidade, Acima dessa relação se elevou então, como
único princípio de validez universal, o do “serviço”, a necessidade objetiva de que
cada um servisse de algum modo, a alguém superior, de sorte que não cabiam mais
diferenças que as de a quem e em que condições se servia. A gradação de posições
que daí resultou – essencialmente quantitativa – era em muitos aspectos
absolutamente Independiente da significação das antigas posições do indivíduo nas
comunidades.
Não é necessário, naturalmente, que tal gradação vá ascendendo até chegar a
um membro supremo em sentido absoluto, pois sua significação formal aparecia em
todos os grupos, qualquer que fosse o caráter global destes. Podemos assim achar
já na “família” servil romana as mais finas gradações, desde o vilicus ou procurator
que dirigia com total independência ramos inteiros da produção na grande
exploração fundada no trabalho escravo, passando por todas as categorias
possíveis, até chegar aos capatazes que chefiavam grupos de dez homens.
Como se percebe claramente, tais formas de organização proporcionam a
cada membro – determinado simultaneamente acima e abaixo, como superior e
Georg Simmel | 193

subordinado – uma definição mais segura de seu sentimento sociológico da vida,


coisa que deve forçosamente repercutir no grupo por inteiro, contribuindo a estreitar
os vínculos e reforçar sua coesão. Por isso os regimes despóticos ou reacionários,
que temem todas as associações de seus súditos, perseguem com zelo digno de
melhor causa aquelas que estão organizadas hierarquicamente. Só pela percepção
da força de sociação que acompanha as organizações hierárquicas explica-se, por
exemplo, a singular atenção aos detalhes do ministério reacionário inglês de 1831
quando proibiu todas as associações “composed of separate bodies, with various
divisions and subdivisions, under leaders with a gradation of rank and authority, and
distinguished by certain badges, and subject to the general control and direction of a
superior council”22. Essa forma deve, aliás, distinguir-se claramente daquela outra
em que a dominação e a subordinação se dão ao mesmo tempo, ainda que em séries
ou sentidos diversos, já que um indivíduo pode ser chefe em uma serie e subalterno
em outra. Este último tipo de organização tem um caráter preferentemente individual
e qualitativo, pois amiúde se trata de uma combinação proveniente das disposições
e condições particulares do indivíduo. Ao contrário, quando a coincidência das
relações de dominação e de subordinação se dá em uma e mesma série (como nas
derivadas do “serviço” no mundo feudal), elas estão predeterminadas de forma mais
objetiva e, justamente por isso, aparecem definidas de modo inconfundível como
posição sociológica. O fato de que tais relações tenham (como já referimos) grande
importância para a coerência da série social em boa parte se deve a que elas fazem
da ascensão um objetivo desejável eo ipso. Assim, por exemplo, dentro da
francomaçonaria este motivo serve de argumento puramente formal em defesa da
subsistência dos “graus”. Com efeito, mesmo que já se tenha comunicado ao
“aprendiz” o essencial do saber objetivo que possuem os iniciados – concernente ao
ritual, neste caso –, se afirma que a existência de iniciados com graus de “oficial” e
“mestre” presta à “loja” certa tensão e encoraja, com o encanto da novidade, o zelo
dos “noviços”.

22
“Compostas de indivíduos separados, com várias divisões e subdivisões, dirigidas por chefes com
graus sucessivos de posição e autoridade, distinguíveis por certas insígnias e sujeitos ao controle e
direção geral de um conselho supremo”. (NT)
194 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Tais estruturas sociológicas cujas formas são determinadas de maneira igual


pela dominação de uma única pessoa nos grupos mais diversos, podem dar-se
também, como temos indicado, na subordinação a uma pluralidade. Mas a
pluralidade dos dominantes – se eles agem de forma coordenada – não é o traço
característico desse tipo e, por conseguinte, sociologicamente carece de importância
o fato de que uma pluralidade de pessoas desempenhe a chefia individual. Com
certeza, a dominação de um só constitui o tipo e forma primordial da relação de
subordinação. No entanto, sua mesma posição fundamental entre as questões
gerais da dominação permite a legitima concessão de um espaço dentro de sua
esfera a outras formas de ordenamento, republicanas e oligárquicas (não apenas no
sentido político dessas noções). Em compensação, se o campo de ação da
dominação do chefe único admite perfeitamente estruturas secundárias dessa
espécie; a forma da dominação de um só unicamente pode coexistir de um modo
relativo e ilegítimo quando aquelas outras formas não unipessoais de ordenamento
são mais amplas e inclusivas. A chefia de um só tem tal poder intuitivo, que continua
influindo mesmo em constituições que nasceram em reação a ela e para suprimi-la.
Diz-se do presidente estadunidense que – como o arconte grego e o cônsul
romano – não é, no fundo e até certo ponto, que o herdeiro do poder real que os
monarcas perderam em razão das respectivas revoluções. Muitos norte-americanos
afirmam que sua liberdade consiste no exercício alternado do poder pelos dois
grandes partidos, mas que, na vez de cada um, há o exercício de uma tirania
inteiramente monárquica. Alega-se também que a democracia da Revolução
francesa não é outra coisa que uma monarquia às avessas, dotada das mesmas
qualidades. Assim como a volonté générale de Rousseau, à qual é preciso submeter-
se sem reservas de acordo com a sua própria teoria, tem exatamente a mesma
natureza do senhor absoluto. Não esqueçamos que Proudhon afirmava que um
parlamento surgido do sufrágio universal não se diferencia em nada do monarca
absoluto. A tal ponto que, segundo ele, o representante do povo, como um verdadeiro
monarca, é infalível, inviolável e irresponsável. De fato, o princípio monárquico está
tão vivo e íntegro em um rei legítimo como em um parlamento, onde nem sequer está
ausente o fenômeno da bajulação – que pareceria especificamente reservado à
pessoa individual.
Georg Simmel | 195

É típico que uma relação formal entre elementos de um grupo persista mesmo
depois que uma mudança sociológica total impossibilite essa continuidade. A força
singular da dominação de um só (que sobrevive a seu próprio fim, transmitindo os
matizes de sua natureza e caráter a instituições cujo sentido consiste precisamente
em sua negação) é um dos casos mais notáveis desta vida própria da forma
sociológica graças à qual não só incorpora conteúdos materialmente diferentes,
como também infunde um espírito contrário a formas novas. É tão grande a
significação formal da dominação de um só que se conserva explicitamente mesmo
quando seu conteúdo é negado e, talvez, precisamente por causa da negação. Em
Veneza, o doge foi perdendo cada vez mais poder até que acabou com um papel
meramente decorativo. No entanto, conservou-se receosamente o cargo para evitar
desdobramentos que eventualmente poderiam levar a um verdadeiro rei ao trono.
Neste caso, a oposição não põe fim à dominação de um só com a finalidade de
fortalecer sua posição em sua própria forma; mas a mantém justamente para impedir
sua consolidação efetiva. Ambos os casos, de fato opostos, atestam igualmente a
força formal desse modo de dominação,
A força é de tal natureza, que muitas vezes os elementos mais díspares se
fundem nela. As monarquias, por exemplo, têm interesse em que as instituições
monárquicas se mantenham mesmo em lugares completamente fora de sua esfera
de ação. Observa-se, assim, que todas as realizações com certa forma social, por
mais afastadas que estejam umas das outras, se apoiam mutuamente, fato que se
manifesta nas relações de dominação mais diversas, mas sobretudo na aristocracia
e na monarquia. Isso, porque o preço que um regime paga por enfraquecer, por
razões políticas particulares, o princípio da própria forma de governo em outros
países, pode ser muito caro. Nessa ordem de ideias, atribuiu-se a resistência quase
insurrecional que o governo de Mazarino deveu enfrentar de parte do povo e do
parlamento, à política francesa que tinha favorecido os levantes de países vizinhos
contra seus respectivos governos. Pois o princípio monárquico se enfraqueceu em
tal grau que acabou voltando-se contra o autor daquela política, que acreditou
favorecer seus interesses fomentando as rebeliões. Pelo contrário, quando Cromwell
recusou o título de rei, os monarquistas ingleses ficaram muito tristes. Pois, ainda
que houvesse sido muito duro para eles ver esse regicida no trono, a simples
196 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

presença de um novo rei lhes teria parecido plausível para preparar a restauração.
Deixando de lado as razões utilitárias que podem abonar retroativamente a expansão
da monarquia, o sentimento monárquico age, às vezes, em face de determinados
fenômenos de maneira e sentido diretamente opostos aos interesses pessoais dos
monarquistas. Quando, durante o reinado de Luis XIV, eclodiu a sublevação
portuguesa contra a Espanha23, levante que devia ser muito grato ao rei da França24,
este disse, porém, comentando-a: “Por mau que seja um príncipe, a revolta de seus
súditos não deixa de ser um imenso crime”. Da mesma maneira, Bismarck refere que
Guilherme I sentia uma “repugnância monárquica instintiva” contra Bennigsen 25 e à
atividade que este tinha cumprido em Hanôver. Apesar do quanto Bennigsen e seu
partido tenham trabalhado pela prussificação de Hanôver esta atitude de um súdito
contra sua primitiva dinastia, feria os sentimentos monárquicos de Guilherme I.
Como vemos, a força íntima que a dominação de um só exerce é suficiente para
aproximar o próprio inimigo, em um impulso de afinidade de princípios, e para
considerar, no mais profundo de si, como um adversário a quem – ainda que seja um
amigo ou aliado – se opõe a algum monarca.
Finalmente, surgem outros traços de um tipo que até agora não temos tratado,
quando a igualdade ou desigualdade, a proximidade ou distância entre o superior e
o subordinado de qualquer outro ponto de vista, tornam-se problemáticas. É
essencial para a elaboração sociológica de um grupo determinar se ele prefere
submeter-se a um estrangeiro antes que a um membro do mesmo grupo ou vice-
versa, se considera uma e outra coisa igualmente útil e digna, ou se opõe a tudo. Na
Alemanha medieval, os senhores tinham originariamente o direito de nomear para

23
Golpe de Estado revolucionário ocorrido a 1º de dezembro de 1640, chefiado por um grupo
designado de “Os Quarenta Conjurados” e que se alastrou por todo o Reino, pela revolta dos
portugueses contra a tentativa de anulação da independência do Reino de Portugal pela Dinastia
Filipina castelhana. Culminou com a instauração da Quarta Dinastia Portuguesa – a Casa de
Bragança –, e a aclamação de D. João IV e, por isso, também é designado como a Restauração ou a
Aclamação da Independência de Portugal. (NT)
24
Que estava em guerra com a França. (NT)
25
Rudolf von Bennigsen (1824-1902) foi um político de Hanôver, fundador e principal figura do Partido
Nacional-Liberal. Em 1866, intentou infrutiferamente impedir o Reino de Hanôver de aliar-se aos
austríacos na Guerra contra a Prússia. Depois da derrota da Áustria e da anexação do Hanôver pela
Prússia, apoiou ao chanceler Otto von Bismarck e cooperou com ele afim de realizar a unidade alemã.
Visto como um traidor por uns e pragmático por outros, em 1866 se converteu em membro da câmara
de representantes prussiana, e posteriormente em deputado dos parlamentos da Confederação da
Alemanha do Norte, primeiro, e, do Segundo Reich, depois – até 1883. (NT)
Georg Simmel | 197

seus tribunais juízes e regedores vindos de fora e como bem quisessem. Mas por fim
tiveram que conceder às comunidades o direito de os funcionários serem escolhidos
no círculo dos vassalos. Inversamente, considera-se como uma outorga muito
importante feita pelo conde de Flandres em 1228 a seus “amados escabinos e
burgueses” de Gante permitir que os juízes e funcionários executivos, assim como
seus subordinados não fossem escolhidos entre os vizinhos de Gante, nem entre os
que estivessem casados com uma mulher desta cidade. Com certeza, essa diferença
responde de princípio a razões de eficácia: o forasteiro é mais imparcial, enquanto o
autóctone é mais compreensivo. Foi sem dúvida a primeira dessas razões a que
prevaleceu na vontade expressa pelos cidadãos de Gante, assim como na decisão
das cidades italianas que, como anteriormente já referimos, selecionavam
frequentemente seus juízes em outras cidades para assegurar-se que nem os laços
familiares, nem os conflitos políticos internos influiriam na administração da justiça.
Pelo mesmo motivo, governantes tão avisados como Luis XI da França e Matias I
Corvino da Hungria escolhiam seus funcionários, sempre que possível, no
estrangeiro ou entre pessoas pertencentes a uma classe inferior. Ainda no século
XIX, Bentham acrescenta outra razão de utilidade para explicar o motivo pelo qual,
mesmo na sua época, se considerava que os estrangeiros amiúde eram os melhores
funcionários públicos: simplesmente porque se lhes vigiava com zelo e sem
cerimônia. A preferência, em compensação, pelos próximos ou semelhantes parece
menos paradoxal, apesar de que ela possa conduzir a uma mecanização do princípio
do similia similibus26, como teria ocorrido, segundo se refere, com uma antiga tribo
líbia e, mais perto de nós, entre os axantes27, onde o rei reinava sobre os homens e a
rainha – sua irmã – sobre as mulheres. A tendência do poder central a eliminar a
jurisdição imanente dos subgrupos confirma nossa tese de que a subordinação aos
iguais favorece a coesão dos grupos. Ainda no século XIV estava muito difundida na
Inglaterra a ideia de que a comunidade local julgava a seus próprios membros, mas
o despótico Ricardo II decidiu que ninguém tinha direito de ser juiz criminal ou do

26
Locução latina que significa "semelhantes com semelhantes” e está por trás da ideia de que cada
qual deve corresponder com seu igual. (NT)
27
Os axantes são um dos principais grupos étnicos da região de Axânti em Gana (antiga Costa do
Ouro). Antes da colonização europeia, os axantes desenvolveram um grande e influente império na
África Ocidental. (NT)
198 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

goal delivery28 em seu próprio condado. Neste caso a coesão do grupo encontrava
seu correlato na liberdade individual. Mesmo durante o período de decadência da
monarquia anglo-saxônica, o direito a ser julgado por seus iguais, por seus pares,
era muito apreciado como garantia contra a arbitrariedade dos prebostes do senhor
ou do rei. O camponês da Coroa, esmagado por inúmeros encargos, velava
ciosamente sobre esse direito, o único a conferir conteúdo e valor ao conceito
jurídico da liberdade, na esfera do direito privado.
São, assim, com certeza, razões de educação e utilidade as que fazem preferir
algumas vezes a subordinação aos pares e outras ao estrangeiro. Todavia, não são
esses os únicos motivos que determinam a escolha: a eles se acrescentam outros
de caráter mais instintivo e sentimental, mas também mais abstratos e indiretos.
Aquelas primeiras razões utilitárias eram necessárias, com frequência, ao equilíbrio
dos dois pratos da balança. A maior compreensão dos de dentro e a maior
imparcialidade dos de fora se compensam, muitas vezes, tornando imprescindível
recorrer a outra instância para decidir entre elas. Aparece assim uma antinomia
psicológica de infinita importância para toda configuração sociológica: somos
atraídos por aquilo que nos é semelhante e pelo que difere de nós. Em que casos e
em que áreas uma ou outra tendência age? Qual delas predomina em nosso ser? Ao
que parece, isso depende das disposições primárias inerentes à própria natureza do
indivíduo. O diferente nos complementa, o semelhante nos fortalece. O diferente nos
excita e incita, o semelhante nos calma. Com meios completamente diversos, um e
outro nos fazem ter o sentimento de que nossa maneira de ser é justa e legítima. Se
perante determinado fenômeno sentimos que uma das duas tendências é a
adequada, a outra nos desgostará. O diferente aparece para nós como hostil e o
semelhante nos aborrece. O diferente pode representar um fardo demasiado pesado,
e o semelhante nos impor um peso leve demais. Finalmente, resulta difícil nos
posicionar a respeito de ambos: em face do diferente, porque carecemos de pontos
de referência ou comparação, e diante do semelhante, porque o igual a nós aparece
como supérfluo ou, pior ainda, nos dá a impressão de sermos nós mesmos os
redundantes. A profunda diversidade das relações que estabelecemos com um

28
Dizia-se dos magistrados facultados para julgar os prisioneiros e eventualmente prolongar sua
detenção. (NT)
Georg Simmel | 199

indivíduo ou grupo procede essencialmente do fato de que o indivíduo e o grupo


oferecem uma pluralidade de traços com os quais devemos estabelecer relação e
encontram em nós outras feições em parte semelhantes e em parte diferentes, coisa
que torna possível a atração e a rejeição. A relação total resultará assim das
alternativas e combinações dos sentimentos.
Igual efeito se produz quando uma mesma e única relação (por exemplo, uma
qualidade do outro semelhante a uma qualidade nossa) suscita em nós, em parte,
sentimentos de simpatia e de antipatia. Assim um poder social favorecerá sem
dúvida os poderes análogos de sua esfera de ação, não só a causa da natural
afinidade moral que nos aproxima daquilo que é idealmente semelhante, mas porque
também ele será favorecido pelo fortalecimento do princípio comum que lhes serve
de fundamentação. Todavia, os ciúmes, a concorrência e o desejo de ser o único
representante do princípio produzem o resultado oposto. Isso fica bem visível na
relação da monarquia com a nobreza. De fato, a profunda afinidade do princípio
hereditário da nobreza com o da monarquia criou historicamente as condições para
a monarquia se aliar a nobreza, recebendo apoio favorável. A monarquia, porém, não
pode amiúde tolerar que subsista junto dela um estamento com direito hereditário e,
por conseguinte, próprio, e prefere que cada indivíduo seja privilegiado pessoalmente
pelo monarca. Os imperadores romanos favoreceram, assim, no começo, a
aristocracia senatorial concedendo-lhe caráter hereditário, mas depois de
Diocleciano ela virou a sombra de si mesma, sendo substituída pela aristocracia
burocrática, cujos membros chegavam aos altos cargos por promoções pessoais. O
fato de que em tais casos, a atração ou a rejeição do semelhante predomine,
depende, evidentemente, não só de motivos utilitários, mas de disposições
profundas da alma que determinam a distinta valoração do semelhante e do
diferente,
Trataremos a seguir de um caso particular desse problema sociológico geral:
o fato de nos sentirmos mais humilhados pela subordinação a um próximo do que a
alguém que é de fora, estranho a nossa comunidade, ou vice-versa, pois isso
depende em muitas oportunidades de sentimentos que não podem ser
racionalizados. Assim, todos os instintos sociais e os sentimentos vitais da Idade
Média foram a causa de que, no século XIII, quando se concedeu jurisdição pública
200 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

às guildas, se dispusesse simultaneamente que todos os operários do mesmo ofício


ficariam subordinados a estas corporações, pois teria sido impensável que um
tribunal profissional julgasse quem não pertencia à comunidade de ofício que o
julgava. Com tal característica, um sentimento oposto, mas igualmente alheio a toda
forma utilitária, impediu alguns clãs australianos de designar por si mesmos seus
próprios chefes, reservando a dita escolha para os chefes das tribos vizinhas. Da
mesma maneira que os meios de pagamento (conchas e outros) que circulam em
certos povos arcaicos não são fabricados por eles, mas trazidos de fora, de maneira
que, em alguns lugares, floresce uma “indústria” dedicada a produzir signos
monetários que são exportados a lugares longínquos para servir de “dinheiro”. No
geral, e sob a reserva de algumas modificações, quanto mais baixo o nível de um
grupo, e mais habituados seus membros à subordinação, maior será a relutância do
grupo em deixar-se dominar por um de seus iguais. Em compensação, quanto mais
elevado o nível, mais provavelmente aceitará apenas um de seus iguais por chefe. A
subordinação aos iguais é difícil no primeiro caso porque todos estão em um nível
baixo; ela é mais fácil no segundo caso porque todos se encontram em um nível alto.
Esse sentimento alcançou provavelmente seu ponto mais elevado na antiga Câmara
dos Lordes, que não só era reconhecida por seus membros como único tribunal de
justiça para eles, mas que no ano 1330 precisou defender-se da suspeita de
pretender julgar outras pessoas que não eram pares do reino. A tendência, pois, a
não se deixar julgar mais que por seus iguais é às vezes tão radical que funciona
também de forma invertida, permitindo que os lordes formulassem o seguinte
raciocínio (logicamente falso, mas psicologicamente profundo e compreensível): “ao
defender a nossa competência restrita, demonstramos a falta de interesse em
ampliá-la, dado que, como nossos iguais só podem ser julgados por nós mesmos,
todo aquele que seja julgado por nós se converte, de certa maneira, em nosso igual”
– igualdade absurda, que os lordes mal poderiam tolerar e que deixava às claras que
não pretendiam julgar outros que os seus pares.
Assim como neste caso uma relação patente de subordinação (do tipo
litigante e juiz) tende a ser encarada como uma forma de solidariedade, do mesmo
modo que a solidariedade pode ser entendida às vezes como uma forma de
subordinação. Repete-se aqui conceitualmente o dualismo – separação e fusão –
Georg Simmel | 201

entre os motivos de razão e os instintos escuros. O burguês medieval, que está


abaixo da nobreza no que tange a seus direitos, mas acima do camponês, rejeita a
ideia de uma igualdade universal de direitos, pois teme que a nivelação cause perdas
em benefício do camponês em maior volume do que possa ganhar em prejuízo do
nobre. Uma vez mais nos deparamos com o tipo sociológico caracterizado por uma
camada social intermédia, que só pode mobilizar seu devir em direção à camada
superior aceitando solidarizar-se com a camada inferior. No entanto, ela é capaz de
renunciar à promoção social por sentir a equiparação com a camada inferior, que é
seu preço, como uma humilhação insuportável. Assim, na América Hispânica
29
colonial, apesar de os crioulos sentirem marcado desgosto pela posição
preponderante e excludente dos espanhóis peninsulares e a submissão que eles lhes
impunham nos setores político, econômico e cultural, era ainda maior o desprezo que
os mulatos e mestiços, os negros e os índios lhes inspiravam. Para libertar-se dos
espanhóis teria sido necessário que os crioulos se solidarizassem com aqueles
“inferiores”, mas isso significava algo tão chocante para seus sentimentos de raça,
que eles preferiram renunciar por muito tempo à emancipação da colônia. Essa
combinação formal se expressa de um modo mais abstrato ou instintivo nas
palavras de H, S Maine: ”O princípio de nacionalidade, tal como frequentemente é
formulado, indica que os homens de certa raça são injustamente tratados quando se
pretende convencê-los de que compartilhem certas instituições políticas com
homens de outra raça”30. Se existem dois caracteres sociais diversos, A e B, um deles
(digamos A) aparecerá como subordinado ao outro (B, em nosso caso) tão logo se
queira persuadi-lo de ter a mesma constituição, por exemplo, que este (B), mesmo
no caso em que o conteúdo daquela constituição não signifique para ele (A)
rebaixamento de posição ou subordinação de qualquer tipo.
Finalmente, não se deve esquecer que a subordinação a um estranho, quer
dizer, a uma pessoa de fora do círculo dos subordinados, tem uma característica
fundamental: é mais eficaz e viável quanto mais heterogêneos, alheios e opostos os
membros (ou elementos) que integram aquele círculo (ou grupo) sejam uns em

29
O autor se refere – e esse é o significado da palavra “crioulo” retido pela tradução – aos
“descendentes de europeus nascidos nas colônias hispano-americanas”. (NT)
30
A citação pertence a Henry Sumner Maine, Ancient law: its connection with the early history of
society and its relation to modern ideas. Londres: J. Murray, 1897. (NT)
202 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

relação aos outros. Os membros de um grupo de subordinados mantém com uma


pessoa superior o mesmo tipo de relação que têm as representações particulares
com o conceito geral que as compreende (ou abarca). O conceito geral tem que ser
mais elevado e abstrato (mais distante das representações singulares) quanto mais
diversas entre si sejam as suas representações. O caso mais típico dessa forma nas
esferas mais diversas já mencionadas é o das partes em disputa que designam um
árbitro. Quanto mais o árbitro está distante dos interesses de uns e outros, mais
voluntariamente as partes se submetem a sua decisão. É preciso, porém, ter presente
que, assim como o conceito superior atua sobre as diversas representações, o árbitro
deve participar, apesar de tudo e em alguma medida, do comum a ambas as partes
– o que fundamenta o contencioso e permite o possível compromisso. Há, portanto,
um limite para as divergências, além do qual já não é possível o acordo das partes
em nenhum ponto comum, por muito alto e distante que se suponha que o árbitro
esteja. A história dos tribunais profissionais de arbitragem ingleses nos permite dizer
que eles prestam excelentes serviços na interpretação dos contratos e leis
trabalhistas. Todavia, as leis trabalhistas raramente são as causas de grandes
greves ou locautes, que se produzem em geral porque patrões ou operários tentam
modificar as condições de trabalho. Nesses casos, ao tratar de estabelecer novos
fundamentos para as relações entre as partes, o tribunal arbitral não parece a
instância adequada para obter um compromisso, já que a tensão entre os interesses
opostos é tal que o árbitro teria que se situar a uma distância incomensurável acima
deles para abarcá-los e conciliá-los – da mesma maneira que podemos imaginar
representações particulares de tão heterogêneo conteúdo que não seja possível
encontrar nenhum conceito universal que contenha o que elas têm em comum.
Quando as partes em disputa se submetem a um árbitro é de suma
importância que elas estejam em um mesmo nível. Se existe entre elas alguma
relação de subordinação, o juiz terá facilmente uma atitude particular a respeito de
alguma das partes, posicionamento que lhe impedirá ser imparcial. Embora o juiz
seja completamente alheio aos interesses de ambas as partes, com frequência terá
um preconceito favorável, quer para com o elemento dominante, quer para com o
elemento subordinado. Eis onde atuam as afinidades de classe, muitas vezes
inconscientes, porque estão indissoluvelmente ligadas ao conjunto de pensamentos
Georg Simmel | 203

e sentimentos do sujeito e constituem de certa forma o a priori de seu estudo da


questão, puramente objetivo em aparência. Essas afinidades se entrecruzam e estão
presentes na essência mesma da pessoa, que pretende evitar sua influência. Longe
de conduzir a uma objetividade e equilíbrio reais, esses sentimentos de simpatia
levam amiúde ao extremo oposto. Assim, quando as partes se encontram em níveis
e posições de poder muito diversos, basta a simples suspeita de parcialidade do
árbitro – ainda que ela seja infundada – para que todo o processo se torne enganoso,
pelo menos aos olhos da parte que se sente ludibriada. Nos conflitos entre patrões e
operários, as câmaras arbitrais inglesas acudiam com frequência a um industrial
estrangeiro para que servisse de árbitro. Mas regularmente, ao se pronunciar contra
os operários, ele era acusado – por irrepreensível que fosse – de ter favorecido a sua
classe. Quando a arbitragem recaía em um parlamentar, eram os industriais os que
desconfiavam de sua imparcialidade, uma vez que estaria inclinado a favorecer à
classe mais numerosa dentre seus eleitores. Por conseguinte, a arbitragem só cairá
em terreno favorável ao realizar a mediação em perfeita igualdade entre as duas
partes, ainda que isso não ocorra inteiramente porque a parte mais poderosa amiúde
aproveitará sua vantagem para conseguir que o árbitro nomeado seja alguém que
lhe convenha a ela. A dedução pode inclusive ser inversa: a exigência de nomeação
de um árbitro imparcial é sempre uma prova de que as partes no litígio se
reconhecem, ao menos, certa igualdade. Justamente, nos tribunais arbitrais
voluntários ingleses, nos quais operários e patrões se submetem contratualmente à
decisão de um árbitro que não pode ser nem patrão nem operário, foi necessário que
os patrões reconhecessem aos operários certa igualdade para induzi-los a renunciar
à intervenção de um dos seus na solução do conflito, e confiar em uma pessoa alheia
a ambos.
Finalmente, um exemplo tomado de uma esfera completamente diferente
demonstrará que a relação comum entre vários elementos subordinados a um
elemento superior supõe ou provoca certa solidariedade entre os elementos
subordinados – independentemente das diferenças, ignorâncias e oposições entre
eles –, que será maior na medida em que o elemento dominante ocupe uma posição
distante acima deles. Nessa ordem de ideias é muito importante para o valor de
sociação da religião sobre amplos círculos que Deus se situe a certa distância dos
204 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

crentes. A proximidade imediata, geográfica, na qual se encontram os princípios


divinos de todas as religiões totêmicas e fetichistas, assim como o Deus do judaísmo
antigo, é a causa de que essas religiões não dominem vastos círculos. O Deus cristão
fez possível a igualdade dos desiguais perante Ele pela enorme distância que o
separa do mundo. A distância de Deus em relação dos crentes é tão imensa que
todas as diferenças entre os homens se apagam. Isso não impede a proximidade na
relação cordial com Deus, porque tal relação põe em jogo aspectos da vida dos
homens em que todas as diferenças individuais desaparecem. Aspectos que
cristalizam e se atualizam com inteira pureza quando age aquele princípio supremo
e entra o homem em relação com ele. Todavia, se a Igreja Católica criou uma religião
universal é justamente porque interrompeu também o imediatismo dessa relação
entre Deus e o homem, interpondo-se entre ambos e tornando Deus, ainda nesta
relação, inacessível ao indivíduo sozinho.
No que tange àquelas estruturas sociais caracterizadas pela subordinação de
alguns indivíduos ou comunidades a uma pluralidade ou a uma comunidade social,
o que de imediato nosso olhar apanha é o efeito muito desigual desse tipo de
dominação para os subordinados. O supremo desejo dos escravos lacedemônios ou
tessálios era serem escravos do Estado, em vez de particulares. Na Prússia, antes da
emancipação dos servos, a situação dos que viviam nos domínios da Coroa era bem
melhor que a dos camponeses servos de proprietários privados. Nas grandes
empresas e lojas modernas, cuja direção não é confiada a um indivíduo, mas a
sociedades por ações ou que respondem à mesma técnica de gestão impessoal, a
situação dos funcionários é melhor que a dos que trabalham em pequenas oficinas
em que são explorados pelo proprietário em pessoa. A relação se repete ,quando em
lugar de tratar-se da diferença entre os indivíduos e os conjuntos, se coloca a
questão da diferença entre conjuntos maiores ou menores. A situação da Índia sob
o domínio da Companhia das Índias Orientais se tornou bastante mais favorável
quando o governo britânico assumiu o controle direto. Naturalmente, nada importa
que esse conjunto maior seja governado por um chefe único, sempre que a técnica
de dominação exercida por ele tenha caráter supraindividual, no sentido mais amplo
da palavra; sob a República romana o governo aristocrático oprimiu as províncias
com mais dureza que o Império, que foi mais justo e objetivo. No geral, é preferível,
Georg Simmel | 205

até mesmo para os que se encontram em posição de servidores, pertencer a um


círculo suficientemente amplo. Os grandes proprietários fundiários que começam a
aparecer no século VII no Império Franco criaram uma situação absolutamente nova
e vantajosa para a população das classes inferiores. Sob o domínio de um homem
só, a grande propriedade deu origem a um trabalho qualificado e, por conseguinte
mais estimado, o que permitiu a organização e diferenciação de servidores e que
alguns servos chegassem a elevar-se socialmente. Pela mesma razão as leis penais
do direito estatal são amiúde mais benignas do que as do direito informal produzido
por círculos onde se verificam relacionamentos independentes entre os atores
jurídicos.
Todavia, como acima descrito, há um número não desprezível de fenômenos
que seguem um percurso inverso. Os aliados de Atenas e de Roma, assim como os
territórios que estiveram antigamente submetidos a alguns cantões suíços foram
oprimidos e explorados com uma dureza que dificilmente teria sido possível em um
regime unipessoal. A mesma sociedade por ações, que por sua técnica de gestão
explora menos a seus funcionários que um empresário individual, pode em muitos
casos – por exemplo, tratando-se de indenizações e auxílios – não ter o direito de
proceder com a mesma liberalidade com que poderia fazê-lo um particular que não
tem que prestar contas a ninguém por seus dispêndios. Quanto ao que se refere aos
impulsos individuais, essas crueldades que se cometiam nos circos romanos e que
frequentemente eram levadas ao extremo a pedido dos próprios espectadores,
dificilmente teriam sido executadas em muitos casos se os cruéis assistentes
tivessem estado a sós, face a face, com o condenado.
A razão fundamental desta diferença de resultados que a dominação de um
grande número produz sobre seus subordinados deve ser procurada em primeiro
termo na objetividade que lhe é própria, quer dizer, no fato de que o grupo deixa de
lado certos sentimentos, atitudes e impulsos encontrados na conduta individual dos
sujeitos, mas não na ação coletiva. Em segundo lugar, essas diferenças aparecerão
em caso de a posição do subordinado ser (a depender do evento) mais ou menos
favorecida pela objetividade ou pela subjetividade individuais. Se o subordinado, por
sua situação, necessitasse da compaixão, do altruísmo ou da benevolência de parte
do superior, se daria mal sob o domínio objetivo de um grande número.
206 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Contrariamente, em relações que exijam unicamente legalidade, imparcialidade e


objetividade, seria mais desejável para ele a dominação de um grupo que a de um
indivíduo. Nesse sentido, é significativo o fato de que o Estado pode legalmente
condenar o criminoso, mas não perdoá-lo, tendo inclusive as repúblicas reservado
apenas a certos indivíduos o direito de indultar. Isso se manifesta mais claramente
nos interesses materiais das comunidades que são regidas pelo princípio
absolutamente objetivo da obtenção das maiores vantagens com os menores
sacrifícios. Na dureza e egoísmo que amiúde encontra-se na sua conduta, não
acharemos nada dessa crueldade pelo prazer de fazer o mal de certos indivíduos,
senão a objetividade levada ao máximo rigor lógico. Da mesma forma, não parece ao
homem de negócios que sua brutalidade seja algo moralmente errado, pois ele só
tem consciência de se comportar de maneira estritamente lógica, tirando as
consequências objetivas da situação.
A objetividade da conduta coletiva, no entanto, só costuma expressar seu
aspecto negativo, quer dizer, que certas normas às quais os indivíduos em outras
circunstâncias se submetem não funcionam mais. Nesse caso, a suposta
imparcialidade só representa uma maneira de dissimular a eliminação e de
tranquilizar a consciência do sujeito. Todos os indivíduos participantes de uma
decisão podem amparar-se em uma resolução coletiva, mascarando sua própria
cobiça e brutalidade com a desculpa de que unicamente perseguiam o proveito da
comunidade. O axioma segundo o qual o poder – adquirido recentemente ou que
dura desde há muito tempo – induz ao abuso só se aplica aos indivíduos com muitas
e luminosas exceções. Em compensação, são sempre as circunstâncias
particularmente favoráveis que são impedidas de vigorar para corporações e
classes. É de assinalar que, desaparecendo por trás da comunidade, o sujeito
individual acentua o abuso de poder, ainda que a parte submetida seja uma
coletividade. A reprodução psicológica da dor alheia (veículo principal da compaixão
e da boa-vontade) é amiúde impossível quando seu sustentáculo não é um indivíduo
identificável ou visível, mas apenas uma coletividade que, como tal, carece de
estados de alma subjetivos. Observa-se assim que durante toda sua história, a
comunidade inglesa se caracterizou por uma extraordinária justiça para as pessoas
e uma injustiça análoga para as coletividades. Este fundamento psicológico,
Georg Simmel | 207

somente ele, permite compreender que um país com um sentimento tão acentuado
do direito dos indivíduos tenha tratado com tanta dureza os dissidentes, judeus,
irlandeses e indianos e, em períodos anteriores, os escoceses. O desaparecimento
completo das formas e das normas pessoais na objetividade da existência coletiva
determina não só o agir, mas também o padecer das comunidades. A objetividade
age na forma da lei que, na falta de força vinculante (se ela não tem eficácia), deve
ser substituída pela consciência pessoal. Logo se conclui, porém, que esta percepção
que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado não constitui um traço
psicológico da coletividade, ainda mais quando o caráter coletivo do objeto da
conduta não induz a desenvolver sequer esse traço pessoal. Os abusos de poder, por
exemplo nas administrações das cidades estadunidenses, dificilmente teriam
alcançado tais proporções se os dominantes não fossem corporações, e os
dominados, coletividades. Daí que alguma vez se tenha acreditado poder diminuir
esses abusos aumentando consideravelmente as atribuições do mayor 31, para que
houvesse alguém a quem responsabilizar pessoalmente.
Há, no entanto, uma aparente exceção à regra de objetividade que rege as
ações do grande número, exceção que, em realidade, só confirma com mais
intensidade a regra. Referimos-nos ao comportamento de uma multidão, por
exemplo, ao do público do circo romano que mencionamos anteriormente. Existe,
com efeito, uma diferença fundamental entre, por um lado, a ação de um grande
número como formação particular unitária a encarnar uma espécie de abstração
– coletividade econômica, Estado, Igreja e, em geral todas as associações
designadas, real ou metaforicamente, como pessoas jurídicas – e, por outro lado, o
agir de uma multidão concreta circunstancialmente reunida. Em ambos os casos as
diferenças pessoais são suprimidas. Mas enquanto no primeiro isso leva a destacar
as feições mais aparentes, que estão de alguma forma acima do caráter individual,
no segundo caso os traços escusos emergem e, não por acaso, são identificados
como os baixos instintos dos elementos individuais. Uma multidão de pessoas em
contato físico sofre, com efeito, a influência de inúmeras sugestões e influências

31
Em inglês no texto. Dirigente do departamento executivo dos governos locais nos Estados Unidos.
Corresponde aproximadamente ao prefeito nas municipalidades brasileiras e ao presidente da câmara
municipal dos municípios portugueses. (NT)
208 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nervosas que despojam os indivíduos de sua calma e da autonomia de seus


pensamentos e ações, de modo que dentro do tropel as mais fugitivas incitações
crescem sem medida e engrossam como uma avalanche até dar origem a condutas
impulsivas absolutamente desproporcionadas, permitindo que as funções
superiores, nuançadas e críticas sejam anuladas. Por isso nos teatros e nas reuniões
rimos de piadas que nos deixariam sem graça em nossas casas, e que as
manifestações espíritas têm sucesso sobretudo nos “círculos”, e os jogos de
sociedade são geralmente mais divertidos quanto mais baixo é o nível intelectual
exigido para participar. Assim se explicam igualmente as mudanças de opinião
bruscas e objetivamente inexplicáveis das massas, e as incontáveis observações
acerca da “estupidez” das coletividades32·. Atribuímos, como já dito à paralisação
das qualidades superiores (esse deixar-se arrastar sem resistência) ao número
incalculável de influxos e impressões que em uma multidão se entrecruzam, se
reforçam, se quebram, se desviam e se reproduzem. Essa desordem de estímulos
mínimos, situados abaixo do limiar de consciência, faz surgir à custa da razão clara
e consequente, por um lado, uma grande irritabilidade nervosa que suscita os mais
escuros e primitivos instintos comumente refreados e, por outro, uma paralisia
hipnótica que obriga a multidão a obedecer todo impulso sugestivo até o estremo.
Acrescente-se a embriaguez do poder e a dissolução da responsabilidade individual
em uma multidão momentaneamente solidária e teremos a supressão de qualquer
trava moral às mais baixas e brutais paixões. O que explica suficientemente os atos
de crueldade das massas – espectadores do circo romano, participantes dos
pogroms medievais ou linchadores norte-americanos de negros –, assim como a
triste sorte daqueles que restam à mercê delas. É verdade que emerge aqui também
a dualidade resultante dessa relação sociológica de subordinação: a impulsividade
e a disposição da multidão a acolher uma ideia e ser por ela influenciada pode em
ocasiões fazê-la obedecer a incitações de generosidade e entusiasmo para as quais
os indivíduos talvez sejam insensíveis. A última razão das contradições internas
dessa configuração pode ser formulada dizendo- se que: entre o indivíduo, suas
necessidades e sua circunstância, por uma parte, e todos os organismos supra ou

32
Vide o estudo sobre a autopreservação no Capítulo VIII (NS).
Georg Simmel | 209

infraindividuais e todas as disposições internas ou externas que aporta consigo a


estrutura coletiva, por outra, não há uma relação fundamental e constante, mas, pelo
contrário, variável e acidental. Consequentemente, quando as unidades sociais
abstratas se comportam de forma mais realista, mais fria e coerente que um
indivíduo e, quando, ao invés, as massas concretas obram de um modo mais
impulsivo, irreflexivo e extremo do que um indivíduo poderia fazê-lo, então para
aquele que está a mercê do grande número, cada um desses casos poderá ser, ao
mesmo tempo, mais favorável e mais desfavorável. Tal caráter aleatório não é
fortuito, senão a expressão lógica da incomensurabilidade dessas situações
especificamente individuais de que se trata e das estruturas e sentimentos que se
dão na coexistência de uma pluralidade.
Em todos esses casos de submissão a um grande número, os diversos
elementos da pluralidade eram iguais entre eles ou, ao menos desde o ponto de vista
que nos interessa aqui, eles davam a impressão de sê-lo. Há outros casos, porém,
em que o grande número dominante não se apresenta como uma unidade de
elementos da mesma natureza, e novos fenômenos aparecem: Então os que
dominam podem se opor uns aos outros, ou bem constituir uma série, na qual o
dominante está por sua vez subordinado a outro superior a ele. Ocupar-nos-emos
do primeiro caso cujas espécies podem distinguir-se pela diversidade de seus efeitos
nos subordinados.
Quando alguém está subordinado a vários grupos ou pessoas de maneira total
– quer dizer, em completa dependência de todos e cada um de seus principais, sem
conservar o menor grau de autonomia – sofrerá muito ante a oposição de seus
superiores. Cada um deles pretenderá utilizar integralmente suas forças e, por
acréscimo, tentará torná-lo responsável pelo que ele fez ou deixou de fazer coagido
por outro chefe, como se fosse um ato livre e espontâneo. Essa é a situação típica do
“servidor de dois patrões”, que bem conhecem os filhos de pais em conflito. Mas que
é também pela que passa, no outro extremo, uma pequena nação que dependa por
igual de dois Estados vizinhos poderosos e que pode chegar a ser responsabilizada
pelos dois lados, em caso de conflito entre eles, por aquilo que foi obrigada a fazer,
devido a sua situação de dependência.
210 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Todavia, se o conflito dos diversos círculos subordinados está completamente


interiorizado, se os dois círculos antinômicos agem como forças morais ideais cujas
exigências se situam dentro do próprio homem, então a situação se apresenta em
forma de “conflito de deveres”. Este conflito, mais exterior, não surge de dentro do
próprio sujeito, “cai”, por assim dizer, sobre ele, eclode porque a consciência moral,
proveniente da alma, pretende obedecer a duas potências que se excluem
mutuamente, e se encontra então dividida entre duas direções diferentes. Enquanto
o primeiro conflito exclui, assim, por princípio, todo ato autônomo do sujeito (que se
pudesse produzir-se provavelmente poria logo termo a ele), o conflito de deveres
pressupõe uma maior liberdade do sujeito, o que permite reconhecer ambas as
exigências como moralmente obrigatórias. Tal dualidade, porém, não impede que a
oposição de duas potências, que exigem nossa obediência, adote simultaneamente
duas formas. Se o conflito fosse puramente exterior, ele será tanto mais grave quanto
a pessoa seja fraca, mas se ele ficasse interiorizado, sua força destrutiva se
multiplicará quando a personalidade seja forte. Estamos de tal modo habituados às
formas rudimentares desses conflitos (que nos acompanham pouco ou muito ao
longo de nossa vida), que cedemos instintivamente a suas exigências, fazendo as
concessões e dividindo com tal naturalidade nossa atividade que na maioria dos
casos não temos sequer consciência deles como conflitos. Mas, quando isso se
produz, então vemos claramente que essa situação é sociologicamente insolúvel,
mesmo se, por acaso, seus conteúdos circunstanciais permitam aplainar os
problemas e conciliar os contrários. Pois, durante todo o tempo que venha a durar o
conflito entre elementos que pretendem dominar por inteiro a um único e mesmo
sujeito, esse subordinado não poderá dividir suas forças para satisfazer aquelas
pretensões. Divisão que, aliás, mesmo se chegasse a ser possível, não poderia
proporcionar sequer uma solução parcial e relativa ao dilema, porque o sujeito deve
tomar posição e porque cada uma de suas ações também se defronta com um
inflexível pro et contra. Entre a reivindicação em termos religiosos do grupo familiar
que reclama o enterro de Polinices, e a lei da polis que o proíbe, não há nenhum
compromisso possível para Antígona. Depois de sua morte, as pretensões
contrapostas se encontram face a face tão acentuadas e irredutíveis como no
começo da tragédia, provando que não há conduta ou destino do submetido que
Georg Simmel | 211

possa resolver o conflito que essas exigências projetam no subordinado. E quando a


colisão não se produz entre as próprias potências, mas no foro íntimo do sujeito
submetido a ambas e que, por consequência, parece mais fácil à individualidade
subordinada resolver o confronto partilhando sua atividade entre as duas, só um
acaso feliz resultante da situação de conflito fará possível a solução, O caso típico é
aquele que aventa a sentença: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus”33. Mas, e se a moeda que César reclama fosse necessária para uma obra grata
a Deus?
O simples fato de que as instâncias das quais um indivíduo dependa
simultaneamente sejam estranhas umas das outras, basta para que a situação seja
em princípio contraditória. E quanto mais o conflitito esteja interiorizado no sujeito e
melhor se nutra das exigências ideais que animam sua própria consciência do dever,
mais insolúvel será a aporia. Todavia, nos dois exemplos acima referidos, o acento
moral subjetivo repousa essencialmente sobre um dos aspectos da contradição, já
que, se o sujeito depende do outro, isso deve-se sobretudo a inevitáveis
circunstâncias externas. Mas quando internamente ambas as pretensões têm o
mesmo peso, de pouco nos servirá decidirmos por uma delas segundo nossa íntima
convicção ou dividir entre as duas nossas energias. Pois a exigência total ou
parcialmente insatisfeita seguirá pesando sobre nós, e sentir-nos-emos culpados de
não a ter atendido, mesmo que exteriormente isso seja impossível e que a solução
encontrada tenha sido a moralmente mais justa nessas circunstâncias. Toda
exigência verdadeiramente moral tem algo de absoluto, que não se conforma com
uma satisfação relativa e determinada pela presença de outra necessidade. Inclusive
no caso de não necessitar nos curvar diante de outra instância que não a nossa
consciência moral, a dificuldade é a mesma que no caso de duas exigências
exteriores contraditórias: nenhuma delas permite nossa abstenção em favor da
outra. Também não encontramos aqui sossego interior enquanto uma necessidade
moral fique sem cumprimento, ainda que nossa consciência nos desculpe de não ter
podido fazer mais do que fizemos, levando em conta outra exigência que prevalece
– com independência da maior ou menor possibilidade de realizá-la.

33
Vide Evangelho de São Marcos, capítulo 12, versículos de 13 a 17. (NT)
212 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Na subordinação a forças exteriores, opostas ou estranhas entre si, a posição


do subordinado será, em verdade, absolutamente diferente se ele pode agir de
alguma forma sem ser incitado ou constrangido por outrem, se possui algum poder
próprio que possa investir na relação. Vê-se aparecer então sob os mais diversos
aspectos a situação duobus litigantibus tertius gaudet34, que foi tratada no capítulo
precedente. Mencionaremos aqui algumas de suas aplicações para o caso da
subordinação do terceiro e para a eventualidade de inexistência de conflito, mas
mera ignorância recíproca entre as instâncias superiores.
No geral, a submissão a duas instâncias frequentemente aumenta a liberdade
do subordinado e pode corroer as amarras que mantinham a relação de dependência.
Na Idade Média, uma diferença essencial separava servo e vassalo. O servo não
tinha, nem podia ter, mais do que um único senhor, enquanto o vassalo podia receber
em feudo terras de diversos senhores, prestando-lhes penhor de submissão. Graças
à possibilidade de acesso a distintas relações de vassalagem, o vassalo obtinha forte
capacidade de resistência e autonomia perante cada um de seus suseranos,
compensando consideravelmente, assim, sua situação fundamental de sujeição. O
politeísmo cria uma posição formalmente semelhante para o sujeito religioso. Ainda
que se saiba dominado por um grande número de potências divinas ele pode
distanciar-se do deus esquivo ou impotente, para dirigir-se a outro junto do qual
supõe maiores probabilidades de ser satisfeito – talvez sem completa clareza lógica,
mas com total realidade psicológica. Ainda hoje, no catolicismo, o crente abandona
com frequência determinado santo que não recompensa devidamente sua devoção
especial, para consagrar-se a outro, mesmo que não possa negar por princípio o
poder daquele sobre ele. Desde o momento que o sujeito possa escolher (ao menos,
até certo ponto) entre as instâncias que o dominam, adquire certa independência em
face de cada uma delas (e talvez, em seu entendimento, diante de todas); autonomia
essa que não se produz diante do mesmo grau de subordinação religiosa
concentrado inexoravelmente em uma única representação de Deus. É também sob
essa forma que o homem moderno adquire certa independência na esfera
econômica. O citadino, sobretudo o habitante de uma grande cidade, depende

34
O conflito de duas partes alegra a terceira. (NT)
Georg Simmel | 213

muitíssimo mais do conjunto de seus fornecedores do que quem vive em regiões ou


territórios de economia natural. Mas como ele tem ilimitadas possibilidades de
escolher entre os diversos provedores, ou de trocá-los, desfruta de liberdade em
relação a cada um deles incomparavelmente maior da que gozam os que vivem no
campo ou em um vilarejo.
A mesma forma de relação se apresenta quando a divergência entre os
dominantes se manifesta na sucessão e não na simultaneidade. Podemos ver aqui
apresentar-se, segundo os conteúdos e circunstâncias particulares da história, as
mais diversas variantes do mesmo fenômeno formal. O Senado romano estava
formalmente bastante subordinado aos altos magistrados que ocupavam por breve
tempo seus cargos enquanto os senadores eram vitalícios. O poder do Senado era
assim muito maior do que pareceria deduzir-se de sua relação legal com aqueles
supremos depositários do poder. Pelo mesmo motivo os Comuns acrescentaram seu
poder diante da Coroa inglesa desde o século XIV. Os partidos dinásticos tinham
ainda poder suficiente para escolher o realismo ou a reforma, em favor de Iorque ou
de Lancastre. No entanto, sob todas as demonstrações de poder dos soberanos, a
Câmara dos Comuns resistiu inexorável, adquirindo graças a essas reviravoltas e
mudanças nas altas esferas, uma firmeza, força e independência que jamais teria
conseguido em unidade perfeita com as orientações do governo supremo.
Analogamente, o crescimento da consciência democrática na França diz respeito ao
fato de que, desde a queda de Napoleão I, os governos vacilantes se sucederam
rapidamente aos auspícios das massas, cortejadas por todos. Os cidadãos foram
adquirindo, assim, consciência de sua importância social pois, ainda que o indivíduo
estivesse subordinado a cada um desses governos opostos e fracos, sentiu-se forte
por constituir o único elemento permanente dessa alternância.
Por conseguinte, o elemento permanente em toda relação adquire poder à
custa dos elementos variáveis. Tal poder, decorrente do simples caráter estável do
elemento permanente de uma relação qualquer, é uma consequência formal tão
universal que sua exploração pelo elemento subordinado só pode ser considerada
um caso especial do princípio acima enunciado. Essa consequência pode aplicar-se
igualmente ao elemento dominante: desde as enormes prerrogativas que sua
estabilidade concedeu ao Estado e à Igreja ante a escassa duração da vida dos
214 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

elementos governados por eles, até à contribuição que coube aos surtos de febre
puerperal na Idade Média para a extraordinária força do poder patriarcal. Com efeito,
os homens mais fortes tomavam por esposas, sucessivamente, várias mulheres que
morriam depois de dar à luz, razão pela qual o poder do senhor da casa se concentrou
em uma pessoa, enquanto o poder da esposa se distribuía entre várias mulheres que
se sucediam umas às outras.
Os fenômenos da subordinação parecem trazer, à primeira vista, as mais
díspares consequências para os subordinados. Todavia, uma abordagem mais fina
a essa disparidade nos permitiu também identificar suas razões no próprio terreno
do tipo geral, sem renunciar ao caráter da forma que a todo e qualquer conteúdo se
presta. O mesmo sucede com a segunda das combinações que estudaremos: o caso
de várias instâncias dominantes, que em lugar de se opor ou ignorar-se
reciprocamente, estão em relação de subordinação entre si. Nesse caso, é decisivo
saber se o subordinado tem também relação imediata com aquele que manda sobre
seu superior direto, ou se a instância intermédia que o domina (por sua vez dominada
por uma instância mais alta) o separa igualmente do elemento supremo, assumindo
de fato a total representação dele em face de seu subordinado. O feudalismo deu
lugar a casos do primeiro tipo, nos quais o súdito dos suseranos era também súdito
da casa reinante. Temos uma imagem muito clara disto no feudalismo inglês da
época de Guilherme, o Conquistador, descrito por Stubbs da seguinte maneira:
“Todos os homens seguiam sendo primordialmente vassalos do rei, e a paz pública
seguia sendo sua paz. Seus suseranos podiam reclamar os serviços deles para
cumprir suas próprias obrigações, mas o rei podia convocá-los para formar suas
milícias, fazê-los comparecer perante seus tribunais e taxá-los sem a intervenção de
seus suseranos; e ao rei podiam os vassalos em contrapartida acudir em demanda
de proteção contra todos os inimigos”35. Por conseguinte, a posição do subordinado

35
Esta citação pertence a William Stubbs, The Constitutional History of England in its Origin and
Development, Oxford: Clarendon Press, 1891, vol. I, § 99. Em inglês no texto da edição alemã de
Simmel: “All men continued to be primarily the king's men, and the public peace to be his peace. Their
lords might demand their service to fulfill their own obligations, but the king could call them to the fyrd,
summon them to his courts, and tax them without the intervention of their lords, and to the king they
could look for protection against all foes”. (NT)
Georg Simmel | 215

ante seu senhor é favorável quando este último, por sua vez, se encontra subordinado
a um superior que oferece sua proteção ao primeiro.
Eis a consequência também natural da presente configuração sociológica.
Como é entre os elementos vizinhos na escala de subordinação que ordinariamente
nasce o ódio ou se deflagra algum conflito de competências, o elemento intermédio
se enfrenta amiúde com os elementos de cima e com os de baixo. Uma hostilidade
comum pode aproximar até elementos a quem todas as demais coisas distanciam e
que nenhum outro meio permitiria unir; como confirma uma das regras formais
típicas que impera em todas as esferas da vida social. Há, todavia, uma variante
dessa regra particularmente importante para o problema que aqui tratamos. Já no
antigo Oriente um soberano alcançava a glória ao apoiar a causa do fraco e oprimido
pelo mais forte, ainda que fosse apenas para provar que ele era mais poderoso do
que o opressor. Na Grécia, uma oligarquia, até então dominante frequentemente
qualificava de tirano o mesmo homem a quem as massas veneravam por libertá-las
da tirania, como ocorreu com Eufron de Sicião. E, sem dúvidas, é desnecessário
insistir sobre a frequência com que se repete na história o apoio do soberano as
massas até mesmo em sua luta contra a aristocracia. Inclusive, quando não se dá
esta relação imediata entre os graus mais altos e mais baixos da escala social para
dominar o intermédio, porque este e o inferior se encontram igualmente oprimidos
pelo grau superior, o simples fato de que também a classe média seja vítima de igual
repressão, produz um sentimento psicológico de alívio na classe inferior. Em muitos
povos africanos e asiáticos a poligamia adota uma forma segundo a qual só uma
das mulheres, a primeira, é considerada a esposa legítima, e as demais, ocupam ante
ela uma posição subordinada ou de servidão. Mas, simultaneamente, em relação ao
marido, a primeira não se encontra em melhor posição, pois para ele é tão escrava
como as outras. Sendo a natureza humana o que ela é, quando o superior impinge
ao dominante mais fraco o mesmo tratamento que dispensa ao subordinado inferior,
a este último lhe parecerá mais suportável sua dependência. É que o homem obtém
sempre certa satisfação com a opressão de seu opressor e identifica-se em ânimo,
não sem certo sentimento de superioridade, com o senhor de seu senhor, ainda que
essa estrutura sociológica não represente para ele nenhum alivio real em sua
condição de oprimido.
216 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Mas, quando o conteúdo ou a forma da estrutura sociológica impedem todo


contato entre o nível superior e o nível mais baixo para opor-se conjuntamente ao
elemento intermédio, haverá espaço para “transferência da pressão”, um fato
tipicamente sociológico, que será analisado nos parágrafos seguintes. Um elemento
poderoso, que vê sua posição agravada por circunstâncias eventuais que não pode
controlar, não se limita a valer-se de suas vantagens para simplesmente explorar ao
fraco, mas transfere o agravamento a outro elemento indefenso, procurando manter-
se, assim no statu quo ante. Por exemplo, o varejista transfere para o atacadista as
dificuldades, as exigências e caprichos do público, e o atacadista as translada para
o fabricante, e o fabricante para seus operários, Em toda relação hierárquica, uma
nova pressão ou exigência se transfere sempre ao longo da linha de menor
resistência que, finalmente (mesmo se não se vê ou não se produz em seguida) em
todo o tempo se dirige para baixo. Tal é a tragédia de quem em uma ordem social
qualquer ocupa a posição mais baixa. Não só sofrer as privações, fadigas e
humilhações que caracterizam a posição, mas toda nova forma de pressão que afete
a qualquer das camadas superiores será repercutida para baixo, sempre que isso
seja tecnicamente possível, sem se deter até depois de ter chegado até ele. A
situação agrária na Irlanda nos oferece um exemplo clássico. O lorde inglês que
possuía propriedades que nunca visitava nessa ilha, as arrendava a um arrendatário
geral, que. por sua vez, as locava a arrendatários menores, e assim sucessivamente,
de modo que o camponês pobre do final devia arrendar sua minguada parcela ao
quinto ou sexto middleman36. O resultado era, em primeiro termo, que tinha que pagar
seis libras esterlinas por um terreno pelo qual o proprietário não cobrava mais que
dez xelins. Mas, ademais, cada vez que o proprietário impunha um aumento do
aluguel de um xelim ao arrendatário geral com quem tinha trato direto, o preço da
sublocação do camponês aumentava 12 xelins. Fica fácil compreender que o
agravamento primitivo da pressão não repercute em sua magnitude absoluta, mas
na relativa que corresponde à medida do poder do superior sobre o inferior. Assim, a
admoestação que um quadro médio recebe da parte de um funcionário superior pode
manter-se em termos moderados da burguesia cultivada, mas provavelmente aquele

36
Em inglês no original: Intermediário. (NT)
Georg Simmel | 217

servidor manifestará seu desgosto pela reprimenda recebida gritando a um


subordinado que, furioso, talvez bata em seus filhos por motivo fútil.
Como vemos, a situação do elemento inferior é particularmente desfavorável
em uma relação hierárquica de vários membros, cuja estrutura permita que a pressão
se desloque de um modo contínuo de cima para baixo. Há, todavia, outra estrutura,
formalmente muito diversa, mas que conduz aos mesmos resultados para o inferior,
porque também impossibilita o contato deste com o elemento superior que poderia
protegê-lo contra os excessos de uma instância intermédia. Com efeito, quando o
medianeiro consegue uma posição tão larga e poderosa entre os outros estratos que
todas as resoluções adotadas pela instância suprema em favor da instância inferior
têm que passar por ele (investido para esses efeitos de poderes decisórios), fica mais
suscetível a produção de um colapso imprevisto no funcionamento da relação entre
as instâncias superior e inferior, ocorrendo, de fato, uma separação total entre elas.
Enquanto vigorou o sistema feudal, a nobreza foi o sustentáculo da organização
administrativa do Estado, exercendo relativamente aos seus súditos funções
judiciais, econômicas e fiscais sem as quais o Estado da época não subsistiria. Por
acréscimo, as massas eram mantidas subordinadas ao interesse geral e ao poder
supremo. No entanto, como a nobreza tinha interesses próprios, em atenção aos
quais ela pretendia explorar o camponês em seu proveito, utilizava sua posição de
órgão administrativo intermediário entre o governo e os camponeses, anulando
muitas leis e medidas com as que o governo pretendia ocupar-se diretamente dos
camponeses – propósito que durante muito tempo só pôde alcançar com a eventual
colaboração dos nobres. Essa forma de organização por estratos isolados não só
prejudica o membro inferior da série, mas também o membro superior, pois este pode
ser privado do apoio das forças provenientes dos estratos inferiores. Dessa forma,
os monarcas medievais alemães perderam muito de seu poder porque a pequena
nobreza ascendente, que só tinha obrigações com a alta nobreza, por receber seus
feudos dela, ficou finalmente, desvinculada da Coroa pelo estrato intermediário da
alta nobreza.
É bom que se diga que o efeito final dessa estrutura, com suas separações e
vinculações, depende da tendência que o membro superior da série hierárquica
manifeste naturalmente ao estrato inferior. Graças a diversas modificações dessa
218 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

tendência pode ocorrer em vista disso – em contradição com os fenômenos


observados até aqui –, a desvinculação do estrato intermediário em favor do estrato
inferior o que tornará a relação direta com o membro superior desfavorável. O
primeiro desses casos se apresentou na Inglaterra, quando a partir de Eduardo I o
exercício da autoridade judiciária, financeira e de polícia foi aos poucos delegada de
pleno direito às classes proprietárias organizadas corporativamente nos condados e
cidades. As unidades comunais passaram então a assumir a proteção do indivíduo
em face do poder absoluto e, unindo-se no parlamento, se converteram no
contrapeso ao poder supremo, amparando os fracos contra os abusos ilegais e
injustos da Coroa. Em compensação, a França do Ancien régime seguiu o caminho
inverso. A nobreza estava ali desde sempre estreitamente vinculada às comunidades
locais, que ela administrava e dominava, e cujos interesses representava diante do
governo central. A Coroa veio então a se imiscuir na relação entre nobres e
camponeses, privando, aos poucos, aqueles de sua jurisdição: da administração da
justiça, da assistência aos pobres, da polícia e da manutenção e cuidado das vias
públicas, A nobreza não quis ter nenhuma relação com esse projeto de um regime
centralizador que, a seu ver, só pretendia obter dinheiro. Ela se distanciou, assim, de
suas funções sociais, privou o camponês do apoio que antes lhe tinha prestado e o
abandonou aos intendentes e comissários reais que só pensavam nos cofres régios
ou nos próprios.
Uma forma especial da subordinação a um grupo consiste no princípio da
submissão das minorias às maiorias. Tal princípio, para além de sua importância
para a sociologia das relações de subordinação, arraiga e se ramifica em tantos
outros interesses e formas sociais que cremos oportuno consagrar-lhe uma
digressão especial.

Digressão sobre a submissão das minorias às maiorias

O caráter essencial das formações sociais, quer dizer, a raiz de onde provém
o caráter incomparável de seus resultados e insolubilidade de seus problemas
internos, é o surgimento de uma nova unidade formada de unidades fechadas em si
mesmas – como o são em maior ou menor grau as pessoas humanas. Não se pode
Georg Simmel | 219

fazer um quadro a partir de muitos quadros, uma árvore não nasce de outras árvores.
Uma totalidade autônoma não se forma de totalidades, mas de partes dependentes.
A sociedade é a única formação que converte a totalidade centrada em si mesma,
em simples membro de uma totalidade superior. A perpétua evolução das formas
sociais, tanto no grande como no pequeno, só é, em última instância, a tentativa
renovada de conciliar a unidade e totalidade interna do indivíduo com seu papel
social como’ parte de um todo, salvando a unidade e a totalidade da sociedade do
perigo de ser destruída pela autonomia de suas partes. Todo conflito entre os
membros de uma sociedade põe em perigo a existência do grupo. Por isso, a votação,
cujo resultado a minoria aceita por acordo, significa que a unidade do conjunto deve
sempre primar sobre os antagonismos das convicções e dos interesses. Apesar de
sua aparente simplicidade, é um dos meios mais geniais que se tem inventado para
fazer que a contradição entre os indivíduos desemboque finalmente em um resultado
unitário.
No entanto, essa maneira de conservar a adesão do dissidente, forma graças
à qual todo aquele que participa em uma votação aceita praticamente seu resultado
– a não ser que se separe do círculo –, não foi sempre tão evidente como nos parece
agora. A incapacidade intelectual, que não compreende a formação de unidades
sociais com elementos dissidentes, assim como um individualismo muito
acentuado, que não aceita submeter-se a nenhuma decisão sem tê-la antes
aprovado, têm sido a causa de que muitas comunidades não admitissem o princípio
da maioria e exigissem a unanimidade para todas as decisões. As resoluções das
comunidades das marcas de fronteira 37 germânicas, por exemplo, tinham que ser
unânimes, ficando rejeitada toda proposição que não exprimisse acordo ou
concordância geral, Até meados da Idade Média, o nobre inglês que divergisse de um
imposto, ou que não tinha estado presente no ato de sua aprovação, frequentemente
se negava a pagá-lo. O sentimento individualista se manifesta quando é exigida a
unanimidade para a eleição de um rei ou chefe, pois não se pede nem se espera
obediência de quem não votou a favor. Nesse sentido, no conselho das tribos

37
As marcas eram regiões fronteiriças fortificadas do reino franco na época carolíngia. O termo
propagou-se depois pela Europa e veio a ser empregado nas unidades políticas que se tornariam,
posteriormente, a Alemanha. (NT)
220 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

iroquesas, como, aliás, na Dieta38 polonesa, a decisão que tivesse sequer um voto
contra não era válida.
Todavia, a ideia de que seria contraditório colaborar em uma ação comum que,
como indivíduo, se tem rejeitado não conduz por consequência lógica a exigir
unanimidade para tudo. Se toda proposição que não obtivesse a totalidade dos votos
fosse rejeitada, não haveria o avassalamento da minoria, mas, em compensação, se
subjugaria à maioria. O desconhecimento de uma medida aprovada pela maioria é
muitas vezes um ato absolutamente positivo que tem consequências perceptíveis,
efeitos que, verdade seja dita, são impostos à comunidade pela minoria, graças ao
princípio da necessária unanimidade. Prescindindo da incongruência dessa
majoração da minoria, com a qual o princípio de unanimidade nega no fundo a
liberdade individual que pretende garantir, encontram-se casos na história nos quais
se vê praticamente que este tem sido amiúde seu resultado. Nada foi, por exemplo,
mais favorável à repressão das Cortes39 de Aragão pelos reis espanhóis que essa
“liberdade”. Até 1592, as Cortes aragonesas não podiam tomar nenhuma decisão
válida se um só dos membros dos quatro estamentos que as compunham chegasse
a divergir. Isto, porém, conduz a uma paralisia de sua ação que deu argumentos
plausíveis a quem pretendiam substituir esta assembleia por um poder menos
embaraçador.
Mas, quando não é possível o abandono de uma demanda, ou renunciar a um
resultado prático, que deve ser obtido a qualquer preço, como no veredito de um
tribunal de júri, então a exigência de unanimidade (que encontramos, por exemplo,
na Inglaterra e nos Estados Unidos) obedece à hipótese, mais ou menos
inconsciente, de que a verdade objetiva deve acarretar sempre a convicção subjetiva
e que, inversamente, a igualdade das convicções subjetivas é forçosamente o sinal
da verdade objetiva. Supõe-se, pois, que provavelmente a simples decisão

38
Designação da assembleia política ou legislativa de alguns Estados europeus e do Japão. No caso
provavelmente o autor se refere a uma assembleia de nobres convocada pelos reis poloneses (citada
em várias fontes como Dieta, Parlamentum generale ou Sejn) e da qual se tem notícia desde o século
XIV. A Dieta Geral, a primeira convocada pelo rei Joâo I Olbracht em 1493 perto de Piotrkóv, evoluiu
de encontros anteriores regionais e provinciais. (NT)
39
As Cortes foram assembleias políticas de caráter consultivo e deliberativo dos reinos tradicionais
hispânicos. As Cortes de Aragão existiram desde a fundação do reino em 1188, hasta o decreto de
Nueva Planta de 1711 que suprimiu as instituições e os privilégios locais ou fueros. (NT)
Georg Simmel | 221

majoritária não contém toda a verdade, já que caso contrário teria conseguido reunir
a totalidade dos votos. Por conseguinte, a crença (mítica no fundo, apesar de sua
clareza aparente) no poder da verdade, a certeza de que o que é logicamente
verdadeiro coincidirá com a realidade psicológica, serve aqui para resolver o conflito
radical entre as convicções individuais e a necessidade de obter delas um resultado
global unitário. Só que na prática esta crença, como a função individualista da
unanimidade, pode conduzir a uma inversão de sua tendência fundamental. Quando
os jurados devem permanecer reclusos até chegar a um veredito unânime, é quase
irresistível para a minoria a tentação de votar contra sua íntima convicção – que não
tem esperança de impor –, unindo-se a maioria, e evitar assim o prolongamento
absurdo e eventualmente insuportável da sessão.
Quando, ao contrário, as decisões se tomam por maioria, a subordinação das
minorias pode obedecer a dois motivos, cuja distinção tem a maior importância
sociológica. Com efeito, a submissão da minoria pode provir, em primeiro lugar, do
fato de que os muitos são mais fortes que os poucos. Ainda que em uma votação os
indivíduos sejam considerados como iguais, ou principalmente porque esse é o caso,
a maioria – tanto se ela tem sido o resultado de um voto direto ou formada por um
sistema de representação – teria a força física suficiente para constranger a minoria.
A votação tem então a finalidade de evitar o confronto direto de forças, antecipando
pelo processo de apuração dos votos seu resultado eventual, até a minoria se
convencer da ineficácia da resistência efetiva. Dois partidos ou subgrupos se
enfrentam, por consequência, no grupo total, entre os quais são decisivas as relações
de força, representadas aqui pelo voto. O sufrágio presta o mesmo serviço metódico
que as negociações (diplomáticas ou não) entre duas partes que desejam evitar a
ultima ratio do combate. Finalmente, também aqui, o indivíduo só cede (salvo raras
exceções) quando o adversário demonstra claramente que, em caso de se chegar à
luta, ele perderia tanto quanto pudesse ganhar. A votação, como as negociações, é
uma projeção das forças reais e de sua apreciação no plano intelectual, sorte de
antecipação simbólica do resultado que poderiam ter as hostilidades e violência
concretas.
Certamente, esse símbolo representa relações reais de poder e de
subordinação impostas à minoria. Mas, às vezes, a violência se sublima, passando
222 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

da forma física para a ética. Quando no final de Idade Média se formula


frequentemente o princípio de que a minoria deve seguir a maioria, não se quer
significar apenas que, praticamente, a minoria tem que colaborar com o que a maioria
decida, mas que deve aceitar também a vontade da maioria e admitir que era justo o
que o grande número tem decidido. Nesse caso a unanimidade não reina como fato,
mas como exigência moral: é preciso que a ação realizada contra a vontade da
minoria seja legitimada pela criação ulterior de uma vontade unitária. Dessa maneira
a exigência de unanimidade real, como a que existia entre os antigos germanos, se
converte em uma exigência ideal na qual se percebem as resonâncias de um novo
motivo: aquele de um direito próprio da maioria, que vai além de seu predomínio
numérico e da preponderância externa que ele simboliza. A maioria aparece então
como a representante natural da comunidade e participa do sentido que tem a
unidade do todo além da simples adição de indivíduos, sentido que não deixa de ter
certo tom supraempírico e místico. Quando mais tarde Grócio afirma que a maioria
tem naturaliter jus integri, não faz mais que definir o alcance dessa tácita exigência
dirigida à minoria, pois um direito não só tem que ser admitido, mas deve ser
reconhecido.
Todavia, a afirmação de que a maioria detém o direito de representar a
comunidade “por natureza”, quer dizer, por uma necessidade interna, racional, nos
conduz ao segundo motivo fundamental no qual pode assentar-se o predomínio das
maiorias. O voto das maiorias não mais expressa o voto do maior poder dentro do
grupo, agora significa que a vontade unitária do grupo tem decidido nesse sentido.
Isso significa uma viragem conceitual importante. Lembremos que os fundamentos
para exigir unanimidade nas votações repousavam sobre bases individualistas. O
sentimento sociológico primário dos germanos era o de que a unidade da
comunidade não existiria para além dos indivíduos, mas neles próprios e, por
consequência, enquanto um único membro divergisse, não só não poderia conhecer-
se a vontade do grupo, mas ela sequer existiria. Mesmo quando as decisões são
tomadas por maioria, a explicação não deixa de ser individualista, quando se diz que
isso significa justamente que os muitos têm mais poder que os poucos e que a
votação é apenas uma antecipação do resultado que produziria a luta efetiva. Em
compensação, o princípio se altera fundamentalmente diante da pressuposição de
Georg Simmel | 223

que o grupo constitui uma unidade objetiva com vontade própria, suposição que
pode ser consciente ou estar implícita na prática, como se efetivamente existisse tal
vontade originária do grupo. Desde esse momento, a vontade do Estado, do
município, da Igreja ou da associação está acima dos eventuais antagonismos das
vontades individuais que concorrem a sua formação, assim como existe acima das
mudanças no tempo dos sujeitos que lhes servem de sustentáculo. E dado que essa
vontade é uma, tem que agir de um modo determinado e unitário. Mas como é
impossível contornar a existência de escolhas ou decisões antagônicas nos sujeitos
individuais, a contradição se resolve supondo que essa vontade coletiva é mais bem
conhecida ou representada pela maioria do que pela minoria. A submissão da parte
menos numerosa adquire, então, nessa hipótese um sentido muito distinto que antes,
pois, de principio, esse subgrupo não é excluído, mas incluído, e a maioria não age
em nome de seu próprio e maior poder, mas no da unidade ou totalidade ideal. A
minoria se submete a essa unidade – que fala pela boca da maioria – porque ela
forma parte a priori da totalidade em questão. Eis o princípio em que as votações nas
assembleias ou câmaras legislativas se baseiam, na medida em que cada deputado
se considera mandatário de todo o povo, em contraposição às representações de
interesses – que em última instância atendem unicamente ao princípio individualista
do confronto de forças ou de representações locais e repousam sobre a concepção
errônea de que a totalidade (soma) dos interesses locais é igual ao interesse da
totalidade (ser total).
Na evolução da Câmara dos Comuns inglesa pode observar-se o trânsito a
esse princípio sociológico fundamental. No começo, seus membros não se
consideravam como representantes de um número determinado de cidadãos, nem
da totalidade do povo, mas como os delegados de certas associações políticas
locais, municípios e condados que tinham o direito de participar da constituição do
Parlamento. Tal princípio localista – tão severo que durante muito tempo os
membros dos Comuns deviam ter seu domicílio no distrito pelo qual se elegiam –
possuía já certa natureza ideal, na medida em que ele ia além da simples adição dos
eleitores individuais. Ora, bastou que predominasse e se tornasse consciente o
interesse comum a todas essas corporações para que, aos poucos, aparecesse o
Estado (a comunidade superior à que todas pertenciam) como o verdadeiro sujeito
224 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de seu mandato. Os diferentes distritos representados, reconhecendo sua


solidariedade essencial com a totalidade do Estado, fundiram-se de tal modo que
essas circunscrições não cumpriram doravante outra função que a de designar os
deputados para a representação daquela totalidade. Quando se supõe semelhante
vontade unitária do grupo, diz-se que os elementos da minoria divergem como meros
indivíduos e não como membros do grupo. Talvez seja esse o sentido profundo da
teoria de Locke sobre o contrato originário no qual se deve fundar o Estado. O dito
contrato, como constitui o fundamento absoluto da associação política, deve contar
com a aquiescência unânime de todos os participantes. Todavia, ele contém o
preceito de que todos devem considerar a vontade da maioria como a sua própria.
Quando o indivíduo celebra o pacto social é ainda completamente livre e, por tanto,
não pode ser submetido ao voto de nenhuma maioria. Porém, uma vez que o tem
formalizado já não é um indivíduo livre, mas um ser social e, como tal, uma simples
parte de uma unidade cuja vontade se expressa de forma decisiva na vontade da
maioria. Rousseau não faz mais que formular isso de um modo mais explícito ao
desconsiderar o voto majoritário como uma violência, porque a divergência só pode
ser provocada por um erro dos que divergem – que teriam tomado por volonté
générale algo que não é. Afirmação que pressupõe a convicção de que um elemento
do grupo não poderia desejar outra coisa que a vontade do grupo, acerca da qual o
indivíduo, mas não a maioria, pode enganar-se. Por isso Rousseau distingue muito
sutilmente o fato formal da votação e o conteúdo que esta tem em cada caso,
declarando que quem participa no ato eleitoral se associa já à formação da vontade
comum. Dando o nosso voto nos obrigamos – assim poderia explicar-se o
pensamento de Rousseau – a não contornar a unidade dessa vontade e a não a
destruir antepondo nossa vontade individual à maioria. Destarte, a subordinação à
maioria não é mais que a consequência lógica de pertencer à unidade social,
circunstância que se assume com a participação na votação.
A prática e essa teoria abstrata distam por vezes muito pouco. Um dos mais
autorizados comentaristas da federação dos sindicatos ingleses 40 afirma que as
decisões majoritárias unicamente se justificavam e eram possíveis na prática

40
Trata-se do Trades Union Congress (TUC), fundado em 1868 e ativo até nossos dias, (NT)
Georg Simmel | 225

quando os diversos sindicatos confederados tinham os mesmos interesses, mas


que, quando as diferenças de opinião entre a maioria e a minoria provinham de uma
verdadeira divergência de interesses, toda influência coativa originada no voto
majoritário conduzia inelutavelmente à ruptura entre os participantes. Isso quer dizer
que a votação só tem sentido quando os interesses presentes podem associar-se e
contribuir à formação de uma vontade unitária. Se houver aspirações divergentes
que impedem a convergência, deixar a decisão nas mãos da maioria perde todo
sentido, pois inexiste a unidade de vontade que a maioria, em outras circunstâncias,
poderia ter mais bem reconhecido do que a minoria. Trata-se de uma contradição
aparente, mas que ilumina acabadamente a natureza da relação: quando estamos
(ou se supõe estar) em presença de uma unidade supraindividual, resulta possível o
voto majoritário, mas quando essa unidade de princípio falta, é necessário recorrer à
unanimidade para substituí-la por uma igualdade de fato, caso a caso. Foi neste
sentido que a cidade holandesa de Leida decretou em 1266 que era preciso o acordo
unânime dos oito escabinos adjuntos ao burgomestre para autorizar os forasteiros
a instalar-se no perímetro urbano, enquanto para as decisões judiciais bastava a
maioria simples. Ocorre que o conjunto de regras que impunham determinadas
obrigações aos vizinhos de Leida. sobre cujo cumprimento deviam pronunciar-se os
magistrados competentes, tinham sido criadas de uma vez para sempre,
correspondendo aos julgadores apenas individualizar estas normas, isto é,
reconhecer sua relação com os casos particulares em julgamento, coisa que
podemos imaginar que a maioria podia fazer melhor que a minoria. Por contrário, a
admissão de um novo cidadão concerne a todos os variados e divergentes interesses
que possam existir dentro da vizinhança, pelo que não podia ser concedida pela
unidade abstrata dela, mas unicamente pela unanimidade, quer dizer, pela adição de
todos esses interesses singulares.
Mas essa fundamentação mais acurada do voto majoritário, que consiste em
considerá-lo a manifestação de uma vontade unitária que preexistiria já de um modo
ideal, não resolve na prática, porém, a dificuldade inerente a uma concepção da
maioria que se limita a vê-la como um poder superior com direito de obrigar ou
compelir. Pois frequentemente o debate sobre a questão de saber qual é então o
conteúdo dessa vontade unitária abstrata não será mais fácil de resolver do que o
226 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conflito dos interesses reais imediatos. A minoria não será menos alijada porque se
achou essa desculpa ardilosa para sua preterição ou esta receba outro nome graças
a um subterfúgio verbal. Pelo menos, deveria conferir-se ao conceito de maioria uma
nova significação. Com efeito, pode ser plausível – mas isso não é seguro de
antemão – que a maioria tenha um melhor conhecimento de algo. Particularmente,
isso é duvidoso quando o conhecimento e a ação subsequente sejam confiados à
responsabilidade pessoal do indivíduo, como acontece nas religiões mais
elaboradas. A história toda da religião cristã é, em boa parte, a da viva oposição entre
a consciência individual e as decisões e ações das maiorias. Quando no século II as
comunidades cristãs primitivas introduziram o costume de celebrar assembleias
para tratar de assuntos religiosos e leigos, se declarou expressamente que a minoria
dissidente não estava obrigada a cumprir as resoluções dessas assembleias.
Todavia, esse individualismo entrava em aberto e insolúvel conflito com a aspiração
unitária da Igreja. O Império Romano não desejava reconhecer mais que uma Igreja
unificada, e a própria Igreja tratava de afirmar-se imitando a unidade do Estado, de
modo que as comunidades cristãs, originariamente autônomas, tiveram que fundir-
se em uma instituição global, cujos concílios decidiam por maioria sobre conteúdos
dogmáticos. Evidentemente, tratava-se de um constrangimento inaudito exercido
contra as consciências individuais ou ao menos às comunidades, cuja unidade só
tinha consistido até então na igualdade dos ideais e das esperanças que cada um
guardava para si. Por razões internas e pessoais podia existir submissão em
questões de fé, mas que a maioria, só por sê-lo, exigisse esta submissão e
declarasse que os que dissentiam não eram cristãos era algo que unicamente podia
justificar-se outorgando ao voto da maioria – como já foi referido – um significado
totalmente novo: foi necessário admitir que Deus está sempre do lado da maioria!
Esta concepção perpassará doravante a evolução posterior que as variadas formas
de voto seguirão, seja como sentimento inconsciente fundamental ou sob outras
formulações. Que certa opinião expresse o sentido da unidade supraindividual
apenas porque aqueles que a professam representem uma quantidade maior que a
dos adeptos de outra opinião, eis um dogma indemonstrável e de tão escassos
fundamentos a priori que – a menos de recorrer a uma relação mais ou menos
mística entre aquela unidade e a maioria – fica verdadeiramente a flutuar no ar, ou
Georg Simmel | 227

repousa apenas em um princípio francamente patético: “afinal, é preciso fazer


alguma coisa, pois ainda que nada permita supor que a maioria, pelo mero fato de
sê-lo, saiba o que tem que ser feito, também não há motivos para crer que a minoria
esteja em condições de sabê-lo”.
Todas essas dificuldades (que ameaçam por distintos lados a exigência de
unanimidade e a submissão das minorias) são expressões parciais do problema
fundamental implícito na situação: reduzir uma totalidade ou coletividade composta
de indivíduos com orientações diversas a uma ação voluntária comum. O resultado
nunca pode ser exato, da mesma maneira que não se pode formar com elementos
brancos e negros um produto que em conjunto seja exclusivamente negro ou branco.
Mesmo no caso mais favorável, se houvesse uma hipotética unidade do grupo que o
tornasse distinto dos indivíduos que o compõem (unidade que se revelaria por meio
da votação), não está demonstrado, nem muito menos, que a decisão objetivamente
necessária à situação concreta venha a coincidir com o resultado da votação. Ainda,
aceitando que os componentes da minoria só divirjam como indivíduos e não como
membros da unidade coletiva, isso não impede que eles existam como indivíduos e
pertençam ao grupo em sentido amplo, sem que sua presença possa ser apagada
em face do todo. De uma maneira ou de outra, conseguem penetrar como indivíduos
dissidentes na totalidade do grupo. A distinção do homem como ser social e do
homem como indivíduo é, evidentemente, uma ficção necessária e útil, mas que não
esgota, de modo algum, a realidade e suas exigências. A insuficiência dos sistemas
de votação e a sensação de contradição interna que todos eles produzem, ficam bem
caracterizadas pelo fato de que em alguns lugares (como na Dieta húngara durante
a primeira metade do século XIX) os votos não fossem contados, mas estimados, de
modo que o Presidente da assembleia podia de fato anunciar como resultado da
votação a opinião da minoria! Parece absurdo que um homem se submeta a uma
opinião que considera falsa, simplesmente porque outros a reputem verdadeira
– outros que, segundo a essência mesma da votação, têm individualmente os
mesmos direitos e o mesmo valor que ele.
Todavia, a exigência da unanimidade com que se pretende evitar esse
contrassenso se tem revelado, – como pudemos avaliar – não menos contraditória
e abusiva. Não se trata de um dilema casual ou de uma dificuldade puramente lógica,
228 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mas de um dos sintomas desse profundo e trágico dualismo que cinde toda
formação social e toda constituição de uma unidade composta de várias unidades.
O indivíduo, cujo fundamento está nele mesmo e que unicamente pode responder por
seus atos quando sua íntima convicção os guia, não só deve adaptar sua vontade
aos fins dos outros (adaptação que, considerada de ordem ética, resta um assunto
de sua própria alçada e surge do mais íntimo de sua personalidade), mas também
devir um membro de uma totalidade cujo centro está alhures, fora dele. Não se trata
aqui de harmonias ou colisões acidentais entre ambas as exigências, mas do que
está em jogo, a saber, a dupla submissão interior a duas normas reciprocamente
estranhas: a que regula a evolução pessoal em torno de seu próprio centro e a que
regra o desenvolvimento à roda do polo social. O movimento que tem por eixo o
centro pessoal não tem nada a ver com o egoísmo, é algo tão definitivo como o
movimento focalizado no polo social, pois, como ele, tem a pretensão de ser o
verdadeiro sentido da vida. Ora, nas votações sobre o que o grupo deve fazer o
indivíduo não age como tal, mas nessa função de membro, com esse sentido
supraindividual. O dissenso do voto translada, porém, uma forma secundária da
individualidade (um reflexo de sua peculiaridade individual) a esse terreno
plenamente social. Mesmo essa outra individualidade, que pede apenas conhecer e
expressar a vontade da unidade supraindividual do grupo, é agora negada pela
submissão ao voto majoritário. A minoria, à qual ninguém está livre de chegar a
pertencer um dia, deve submeter-se (e não unicamente no sentido simples do termo,
quando poderes opostos negam convicções e aspirações e anulam sua ação, mas
em um sentido mais sutil ou refinado, pois mesmo tendo sido derrotada continua
dentro da unidade do grupo) e colaborar positivamente para o sucesso da resolução
tomada contra sua vontade e convicção, aparecendo ainda como coparticipante dela,
já que a unidade da resolução definitiva não contém traço algum de dissenso. Desse
modo, a decisão majoritária transcende a simples violência feita a um por muitos e
se converte na expressão exacerbada do dualismo radical entre a vida própria do
indivíduo e a existência da totalidade social, que a experiência chega amiúde a
harmonizar, mas que subsiste, em princípio. trágico e irreconciliável 41.

41
Pode dizer-se que chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou a “uma forma
especial da subordinação a um grupo”, a saber, o “princípio da submissão das minorias as maiorias”
Georg Simmel | 229

Chegamos finalmente ao terceiro modo de subordinação. Ele se apresenta


quando o elemento que impõe a dependência não é um indivíduo ou um grupo, mas
um princípio impessoal, um poder objetivo. Pode parecer que nesse modo de
subordinação, em que toda ação recíproca fica excluída (pelo menos a imediata),
também devemos desconsiderar o elemento da liberdade. Com efeito, quem está
subordinado a uma lei objetiva se sente determinado por ela, mas ele mesmo não
está em condições de determiná-la de forma alguma; carece de toda possibilidade
de reagir de um modo que afete a própria lei, ainda que seja da limitada maneira em
que o mais miserável dos escravos pode tentar influir em seu senhor. Quem não
obedece a uma lei não está realmente subordinado a ela. E se a lei é modificada,
ainda que não haja submissão à antiga norma, estará mais uma vez subordinado, da
mesma e heterônoma maneira, à lei nova. Todavia, a submissão a uma lei, aplicada
por poderes impessoais e não influenciáveis, é a situação mais digna do homem
moderno, cujo objetivo, é saber distinguir entre as esferas da autonomia e da
obediência. Outra coisa acontecia quando a pessoa, para manter a sua autoestima,
necessitava conservar toda sua autonomia, sua capacidade de autodeterminação,
que requer sempre (inclusive na subordinação) a reciprocidade própria da relação de
pessoa a pessoa. Por isso, ainda no século XVI, os príncipes da França, Alemanha,
Escócia e dos Países Baixos acharam amiúde consideráveis resistências quando
confiaram a responsabilidade de governar a sábios substitutos ou a órgãos
administrativos, quer dizer, quando pretenderam fazê-lo mais por leis do que por
mandados. As ordens diretas do rei pareciam aos súditos algo pessoal, e eles
preferiam obedecer aos príncipes por fidelidade individual que, por incondicional que
fosse, guardava ainda as formas da livre reciprocidade.
Devido a esse personalismo apaixonado, as relações de subordinação
chegaram a adquirir um viés quase caricato: conta-se que, na Espanha, a começos
dos tempos modernos, um nobre empobrecido e obrigado a tornar-se lacaio ou
cozinheiro em uma casa senhorial não perdia definitivamente seu título de nobreza
– que ficava apenas adormecido e podia acordar se a sorte voltasse a ser favorável.
No entanto, se se convertesse em artesão, o fidalgo perderia definitivamente a

(vide supra). Doravante Simmel retoma sua análise dos modos de subordinação, baseada nos
elementos que podem impô-la. (NT)
230 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nobreza. Isso contradiz a opinião dos nossos dias que distingue entre a pessoa e a
obra, e considera que a dignidade pessoal está mais bem garantida quanto maior
seja a objetividade da relação de dependência. Uma garota norte-americana
trabalhará numa fábrica sem sentir humilhação alguma, mas em contrapartida se
sentirá completamente desclassificada se tiver que trabalhar como cozinheira em
uma casa de família. No século XIII, em Florença, as corporações inferiores
compreendiam as profissões ao serviço imediato de outras pessoas (sapateiros,
hospedeiros, mestres de escola). Já os ofícios que, mesmo prestando um serviço às
pessoas, eram exercidos com maior objetividade e sem depender de ninguém em
particular, como os de comerciante de tecidos e tendeiro, constituíam as
corporações superiores. Na Espanha, ao contrário, onde estavam mais vivas as
tradições cavalheirescas, as relações que se estabeleciam de pessoa para pessoa
eram suportáveis, sendo em compensação aviltante a subordinação a exigências
mais objetivas, a adaptação conformada a uma ordem de trabalhos impessoais que
serviam a muitas e anônimas pessoas.
Nas teorias jurídicas de Johannes Althusius ainda se encontram vestígios
dessa aversão à objetividade da lei. Para ele, o summus magistratus legisla porque
o povo lhe conferiu mandato para que o fizesse, e não em sua condição de
representante do Estado, pois a ideia de que o soberano possa ser designado apenas
por mandato da lei e não escolhido pessoal ou implicitamente pelo povo era
totalmente estranha ao filósofo-burgomestre de Emden 42 . Em compensação, na
Antiguidade, a subordinação à lei parecia muito adequada justamente porque carecia
de toda conotação pessoal. Aristóteles celebrava a lei como to meson, o moderado,
imparcial, livre de paixões, enquanto Platão, nessa ordem de ideias, reconhecia que
o melhor remédio contra o egoísmo era o império da lei impessoal. Tal
argumentação, porém, não é mais do que uma motivação psicológica que não chega
ao cerne da questão, pois que reside na passagem do personalismo à objetividade

42
Johannes Althusius (1557–1638) foi um filósofo e teólogo calvinista alemão conhecido por sua
obra "Politica methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata" (A política metodicamente
concebida e ilustrada com exemplos sagrados e profanos) publicada em 1603 e reeditada em 1610 e
1614. As ideias apresentadas nessa obra o levaram a ser eleito em 1604 burgomestre da cidade–
estado de Emden, na Frísia oriental; (cargo que desempenhou até sua morte), e serviram de base para
considerá-lo o pai do federalismo moderno e grande defensor da soberania popular. (NT)
Georg Simmel | 231

da relação de obediência, por razões de princípio e não de deduções utilitárias.


Encontra-se também em Platão outra teoria, segundo a qual no Estado ideal a
razão do soberano está acima da lei. Se o soberano acredita que o bem comum o
reclama, pode agir contra as suas próprias leis. Somente, pois, onde faltem os
verdadeiros homens de Estado seriam necessárias leis que não possam ser violadas
sob nenhum pretexto. Pelo que podemos ver, aqui a lei aparece como o mal menor.
Não porque na subordinação a uma pessoa encontrássemos (como acreditava certa
sensibilidade germânica) um elemento de livre dignidade contraposto ao passivo
mecanicismo da lei, e sim em virtude de o defeito da lei consistir em sua rigidez, que
a torna inflexível e insuficiente perante as variadas e imprevisíveis exigências da vida.
Escapa a esse defeito, porém, o raciocínio livre de preconceitos de um soberano
pessoal. Só quando falta esse prudente arbítrio, à rigidez da lei pode devir uma
vantagem relativa. Finalmente, sempre será o conteúdo da lei o que determinará se
a subordinação a ela valerá mais ou menos que a submissão a uma pessoa. A relação
de subordinação é, com certeza, distinta em seu princípio interno e no sentimento de
quem obedece a lei ou a uma pessoa, diferença sobre a qual não vamos nos ocupar
por ora. Antes, é preciso expressar a relação geral ou formal entre o governo da lei e
o das pessoas que, em um sentido prático, pode assim ser resumido: quando a lei
não é suficientemente forte ou ampla, são necessárias as pessoas, e quando as
pessoas não correspondem às expectativas deve-se recorrer à lei. Todavia, em um
sentido muito mais elevado, diremos que os últimos sentimentos de valor
sociológico indiscutível é que decidirão se o governo de entes humanos deve
considerar-se como etapa provisória antes do governo da lei perfeita ou se o governo
da lei serve unicamente para preencher, faute de mieux43, a lacuna em relação ao
governo da pessoa plenamente qualificada para governar.
Há ainda outro aspecto em que a instância objetiva pode também devir o eixo
da relação entre dominantes e subordinados: quando a relação de dominação não é
definida por uma lei ou norma ideal, mas por um objeto concreto. É o caso dos
súditos no regime patrimonial que são apenas bens aferentes à propriedade
fundiária, no quadro da servidão, radicalmente representada pela dependência servil

43
Em francês no texto alemão de Simmel: “à falta de melhor”. (NT)
232 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

agrária russa. Nela a relação de sujeição estava vinculada à terra de tal sorte que o
servo só podia ser vendido com ela, excluindo, apesar de sua incrível dureza, a
escravidão pessoal que teria permitido a venta do sujeito. Malgrado as notáveis
diferenças de conteúdo e quantidade essa situação às vezes se repete na vida do
moderno operário fabril, acorrentado por seu próprio interesse ao estabelecimento
no qual trabalha por certas instituições. Por exemplo, permitir que ele compre uma
casinha própria ou investir em fundos pessoais em caixas de assistência, são
vantagens perdidas assim que ele abandonar a fábrica. Dessa maneira, o operário se
acha tão vinculado por objetos, que fica indefenso de uma forma muito particular em
face de seu patrão.
Diremos por último que, nas relações patriarcais mais primitivas, a mesma
forma de dominação vinha determinada não por um objeto exclusivamente espacial,
mas genitor. Os filhos pertenciam ao pai não só porque ele os tivesse engendrado,
mas porque a mãe lhe pertencia, da mesma forma que o dono da árvore dispõe
também de seus frutos. Por consequência, o dono da mãe dispunha também dos
filhos engendrados por outros pais. Esse tipo de dominação frequentemente era de
uma dureza humilhante, próprio de uma sujeição absoluta. Pois, derivando a
submissão do homem de sua vinculação a uma coisa, ele mesmo era rebaixado
psicologicamente à categoria de simples coisa. Quando a lei está na origem da
dominação, dize-se – com as necessárias salvaguardas – que o dominante alcança
o patamar da objetividade e quando, em compensação, o meio da dominação é uma
coisa, o subordinado se transforma em objeto. A situação do subalterno é mais
favorável no primeiro caso e mais desfavorável no segundo do que em muitas
situações de submissão estritamente pessoal.
A subordinação a um princípio objetivo só tem interesse sociológico imediato
em dois casos fundamentais. Em primeiro lugar, quando aquele princípio ideal
superior é considerado uma condensação psicológica de um poder real social e, em
segundo lugar, quando cria relações específicas e características entre os
simultaneamente submetidos. O primeiro caso se refere, sobretudo, aos imperativos
morais. Na consciência moral nos sentimos submetidos a um preceito que não
parece provir de nenhum poder humano, pessoal. Só percebemos em nós a voz da
consciência, ainda que a escutemos com uma força e determinação tais em face de
Georg Simmel | 233

todo egoísmo subjetivo, que parece proceder de uma instância situada fora de nós
mesmos. Sabe-se das muitas tentativas de resolver essa contradição deduzindo
preceitos sociais dos conteúdos da moralidade: aquilo que é útil para a espécie e o
grupo é exigido dos membros para sua conservação e inculcado gradualmente aos
indivíduos como instinto, de forma que aparecerá para eles mesmos como um de
seus sentimentos, autônomo, ao lado dos propriamente pessoais e frequentemente
em oposição a essas pulsões de afeto ou aversão. Explicar-se-ia assim a
ambivalência do preceito moral: que se apresenta, em parte, como um mandamento
impessoal ao qual temos que nos submeter incondicionalmente, sem que, por outra
parte, seja imposto por algum poder exterior, mas unicamente por nosso impulso
mais pessoal e íntimo. Seja como for, estamos aqui em presença de uma dessas
circunstâncias em que o indivíduo reproduz em sua consciência as interações entre
o grupo e ele mesmo como totalidade. Observa-se, há muito tempo, que as
representações da alma individual se comportam, em suas relações de associação e
dissociação, de diferenciação e unificação, como os indivíduos entre eles. Há,
todavia, uma singular especialização nesse fenômeno, que consiste em que aquelas
relações psicológicas internas ecoam não só as relações genéricas entre os
indivíduos, mas também aquelas com o círculo que os rodeia. O indivíduo exige de si
mesmo o que a sociedade exige de seus membros: subordinação e fidelidade,
altruísmo e trabalho, domínio de si e sinceridade.
Misturam-se nesse fenômeno vários e importantes motivos. A sociedade
aparece em face do indivíduo com preceitos capazes de constrangê-lo até que adote
um comportamento conforme e os meios mais ou menos grosseiros ou sutis dessa
forma de coação não sejam mais necessários. Ou pode ocorrer que sua natureza se
forme ou modifique de modo a que ele aja movido por um instinto, por uma vontade
unitária e imediata, que não pressupõe a consciência de uma lei. Assim, entre os
árabes pré-islâmicos, que desconheciam o conceito de coerção objetiva jurídica, a
decisão estritamente pessoal era a última instância. Tal decisão, porém, estava
completamente impregnada da consciência tribal e das exigências da vida coletiva.
No entanto, pode também ocorrer que a lei viva na consciência individual como
instância imperativa da autoridade social, ainda que independentemente da questão
de saber se a sociedade está por trás dela com todo seu poder de coagir ou com sua
234 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

vontade declarada de exercê-lo. Desse modo, o indivíduo se representa a si mesmo


confrontado à sociedade, e esse enfrentamento social externo, com todas suas
opressões, libertações e acentuações variáveis, se converte no jogo alternado de
seus próprios impulsos sociais e de seus impulsos individuais em sentido estrito,
compreendidos ambos no “eu” em sentido amplo.
Todavia, não estamos ainda diante da norma moral realmente objetiva, a
norma que estivemos a discutir há pouco, e em cuja consciência já não se percebe o
menor vestígio de origem histórico-social. Quando alcançamos um nível mais
elevado de moralidade, o motivo da ação não reside em um poder humano concreto,
por muito supraindividual que ele seja; a fonte de que jorram as necessidades morais
borbota além da oposição entre o indivíduo e a coletividade, pois que elas não
procedem mais da totalidade nem da realidade singular da vida individual. A livre
consciência do homem que age, a razão do indivíduo, não é mais que seu
sustentáculo, o lugar de sua atividade. É que sua força obrigatória provém delas
mesmas, de seu ínsito valor supraindividual, de uma idealidade objetiva que temos
que acatar, queiramos ou não, como uma verdade que não precisa concretizar-se em
uma consciência para ser verdadeira. Porém, o conteúdo que preenche essas formas
– ainda que não necessariamente – é a exigência social, que agora não age mais
com seu impetus social, mas reencarna-se, como por metempsicose em uma norma
que tem que ser cumprida por si mesma e não por nós ou por vós. Defrontamo-nos
aqui com distinções que não somente são de uma extrema sutileza psicológica, mas
que também têm limites que continuam imprecisos na prática. Todavia, o intrincado
labirinto das motivações das quais a realidade da alma evolui torna mais necessária
sua distinção fundamental. Então perguntamos: será que a sociedade e o indivíduo
se encontram face a face, como dois poderes, sendo a subordinação do indivíduo
causada pela energia constantemente renovada da sociedade, de modo a fluir como
de uma fonte inesgotável? Ou talvez essa energia seja, transformada em um impulso
psicológico dentro da alma para que o indivíduo se perceba como um “ser social” e
se volte contra a parte “egoísta” de si mesmo para combatê-la e reprimi-la?
Finalmente, não será o dever, ao qual o homem se sente subordinado, uma realidade
tão objetiva como o ser, realidade que só precisa preencher-se com o conteúdo das
condições vitais e sociais? Eis os tipos em que se esgotam os modos de
Georg Simmel | 235

subordinação do indivíduo a seu grupo. Nessas frases (formuladas como


interrogações, mas que constituem de fato três afirmações), as três potências que
preenchem a vida histórica – a sociedade, o indivíduo, a objetividade – aparecem,
uma após outra, como normativas, mas de maneira tal que cada uma delas acumula
em si o conteúdo social, o quantum de superioridade que a sociedade tem sobre os
indivíduos ao conformar e manifestar cada uma delas o poder, a vontade e as
necessidades da sociedade de maneira particular.
Na relação com as outras duas, a objetividade não é apenas a lei
absolutamente válida, que impera em um reino ideal superior, mas também a
instância que pode ser determinada em outra dimensão. A sociedade é, com
frequência, o terceiro que resolve os conflitos entre o indivíduo e a objetividade ou
constrói pontes sobre seus desacordos. Na esfera do conhecimento genético, o
conceito de sociedade nos tem livrado da alternativa que, em épocas anteriores,
obrigava a considerar os valores culturais ou como produto de um indivíduo, ou como
favores de um poder objetivo – conforme procuramos mostrar no Capítulo I
socorrendo-nos de alguns exemplos. Na esfera da prática, os indivíduos podem
satisfazer suas exigências na ordem objetiva pelo trabalho social. O fato de a
cooperação (o esforço da sociedade como unidade na coexistência e na sucessão)
extrair da natureza, não só maiores quantidades, como também novas qualidades e
tipos de satisfações de necessidades crescentes que o trabalho individual não
permitiria atender, constitui um símbolo para o fato profundo e essencial de que a
sociedade põe-se de permeio entre o homem individual e a necessidade universal da
natureza. Como realidade psíquica concreta ela está em relação com o homem
individual, mas como universal se vincula com a natureza. Ela é o universal sem ser
abstrata. É verdade que todo grupo histórico é, como o homem histórico, um
indivíduo. Mas só em relação aos outros grupos, pois em relação aos membros do
seu próprio grupo ele é supraindividual. Todavia, essa generalidade não é a do
conceito relativamente a suas realizações particulares, mas um modo especial de
generalidade, como o corpo orgânico é o universal de seus membros ou como um
“mobiliário” é o genérico da mesa e das cadeiras, do armário e do espelho. Essa
generalidade particular coincide com a objetividade peculiar que a sociedade possui
a respeito de seus membros considerados como sujeitos. O indivíduo não se situa
236 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

perante a sociedade como diante da natureza, pois que a objetividade do mundo


material significa indiferença a que um sujeito tenha ou não parte com este mundo
em espírito. A natureza é indiferente inclusive à representação justa ou falsa que o
sujeito faça dela ou mesmo que nem sequer conceba uma ideia ou imagem do
mundo material, pois o ser e as leis da natureza existem independentemente da
significação que possam ter para um sujeito. No entanto, a sociedade também
excede o indivíduo, vive sua própria vida regular e o enfrenta com sua solidez
histórica e imperiosa. Esse face a face é, contudo, um estar simultaneamente nele; a
fria indiferença da sociedade com o indivíduo é ao mesmo tempo interesse por ele,
pois a objetividade social necessita de alguma subjetividade individual, ainda que
não se trate de uma subjetividade determinada. Tais determinações fazem da
sociedade um ente intermediário entre o sujeito e toda universalidade ou objetividade
absolutamente impessoal.
Na mesma linha vai, por exemplo, a seguinte observação. As taxas, a vigilância
sobre a quantidade e a qualidade da produção e as leis que visam regrar hábitos de
consumo em um sentido lato aparecem nos momentos em que a liberdade subjetiva
das transações comerciais pretende achar certa objetividade que não chega, porém,
à pura e abstrata determinação objetiva dos preços. Ainda que o conhecimento e a
regulação da oferta, da procura, dos custos de produção, dos prêmios de risco, das
ganâncias, etc. não tenham conduzido à conclusão de que uma mercadoria tem
determinado valor e deve ser vendida a certo preço, as intervenções imediatas da
sociedade, de seus órgãos e de suas leis são frequentes e rigorosas no que tange à
probidade do comércio e ao preço. Nessa fase do processo de sua fixação pelo
mercado, a objetividade viva da sociedade intervém amiúde de modo desajeitado,
inábil e esquemático. Todavia, mesmo assim, a generalidade concreta é sempre uma
força que transcende o sujeito, que dá aos indivíduos uma norma antes que eles não
a infiram da estrutura mesma das coisas e do conhecimento de suas leis.
Essa mesma evolução formal, em um grau ainda mais amplo, se produz na
esfera intelectual na passagem da subordinação à sociedade para a subordinação à
objetividade. Toda a história da cultura mostra até que ponto a inteligência do
indivíduo, em lugar de confrontar-se diretamente à realidade exterior para receber
dela o conteúdo de seus conceitos, prefere preencher essas ideias exclusivamente
Georg Simmel | 237

com representações tradicionais, autoritárias, “aceitas por todos”. O suporte e a


norma do intelecto cognitivo humano não é, em primeiro lugar, a realidade situada
em uma dimensão exterior à subjetividade cognoscente (que o indivíduo é incapaz
de observar e interpretar correta e imediatamente), mas a opinião geral acerca dessa
realidade exterior. Tal opinião proporciona ao sujeito seus conceitos teóricos, desde
a superstição mais grosseira até os preconceitos mais bem dissimulados, que
ocultam e quase tornam imperceptível a ausência de autonomia do sujeito que as
faz suas e a falta de objetividade de seu conteúdo. Dir-se-ia que não é fácil para o
homem olhar o objeto de frente, como se não fosse capaz de suportar nem o rigor
das leis objetivas, nem a liberdade que a objetividade outorga à pessoa, por oposição
a toda coação procedente do outro. A obrigação de obedecer à autoridade dos muitos
ou de seus representantes, a sujeição à opinião tradicional, ao critério socialmente
aprovado é um tipo de mediação ideal, que além de podermos manipular mais
facilmente do que a objetiva lei das coisas nos transmite um produto espiritualmente
digerido. Ademais, ela é um esteio, por descarregar-nos da responsabilidade, e uma
compensação à falta de autonomia – dessa independência que só a pura e soberana
relação entre o eu e a coisa nos outorga.
Da mesma forma que o conceito de verdade, o de justiça nos modos de
comportamento da sociedade tem um caráter mediador que orienta o individuo antes
de chegar o momento ou o período específico de subordinação pelo que ela mesma
representa. Na esfera do direito penal e nas outras regulações da vida, a correlação
entre crime e castigo, mérito e recompensa, serviço e pagamento, procede, acima de
tudo, de considerações utilitárias ou de impulsos sociais. Todavia, se a equivalência
da ação e da reação – em que consiste a justiça – não pudesse ser deduzida
imediata e analiticamente a partir desses dois termos, se necessitará sempre de um
terceiro, a saber, de um ideal, de uma finalidade, de um critério, a cujo abrigo deve-se
construir sinteticamente a correspondência de tais termos. O terceiro termo está
originariamente constituído pelos interesses e formas da vida social que
acompanham os indivíduos, sujeitos da realização da justiça. A vida social cria e
impõe os critérios segundo os quais a justiça ou a injustiça da relação entre aqueles
indivíduos se manifesta, enquanto seu isolamento não permitiria descobri-la. Por
meio dessa vida total, e unicamente depois de ter passado por essa mediação, surge
238 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

como fase objetiva e historicamente posterior à necessidade interna de que exista


uma correlação “justa” entre aqueles elementos. A norma superior, que talvez
continue determinando peso e contrapeso segundo suas proporções, entra
plenamente nos elementos, convertendo-se em um valor que age desde dentro deles.
A justiça aparece agora como uma relação objetiva que nasce da significação
profunda do pecado e da dor, da boa ação e da felicidade, da oferta e da
compensação; tem que ser realizada em consideração a ela mesma: fiat justitia,
pereat mundus44. Ao passo que, desde o ponto de vista anterior a conservação do
mundus era justamente o fundamento jurídico da justiça. Seja qual for o sentido ideal
da justiça – que não discutirmos aqui –, histórica e psicologicamente a lei objetiva
na qual ela se encarna, e que deve ser cumprida por si mesma, constitui uma etapa
posterior da evolução que é preparada, orientada e precedida pela exigência de
justiça em nome da mera objetividade social.
Finalmente, a mesma evolução se verifica na moral em sentido estrito. O
primeiro conteúdo da moralidade é de natureza altruísta e social. Não se trata de
pensar a moral como se ela possuísse em si uma essência independente de seu
conteúdo que poderia logo assumir, mas como entrega de um eu a outro (no singular
ou no plural) que aparece como o conceito mesmo da moral, como sua definição.
Nesse sentido, as doutrinas morais filosóficas, nas quais um dever absolutamente
objetivo prescinde da questão do eu e do outro, representam um momento ou etapa
muito posterior. O que importa a Platão é que se realize a Ideia do bem, a Kant, que o
princípio da ação individual possa converter-se em lei universal, e a Nietzsche, que o
tipo humano ultrapasse o grau de evolução que momentaneamente tem alcançado.
Essas normas podem coincidir, às vezes, com o altruísmo recíproco dos indivíduos.
Entretanto, não é isso, em princípio, o que interessa, mas a realização de uma lei
objetiva que deixa para trás a subjetividade de quem age e dos entes eventualmente
concernidos pela ação. Essa relação ao conjunto social dos sujeitos não é em si
mesma mais que o cumprimento fortuito de uma norma e de um dever muito mais
gerais, capazes de legitimar as ações de finalidades sociais ou altruístas, e condená-
las. A obediência ética às exigências do outro e da sociedade é, tanto na evolução do

44
Que o mundo pereça, mas faça-se a justiça. (NT)
Georg Simmel | 239

indivíduo como na da espécie, a primeira maneira de superar o estado pré-moral, o


egoísmo ingênuo – no qual, aliás, permanecem inúmeras pessoas. Todavia, esse
estado é, em princípio, de preparação e trânsito para a subordinação a uma lei ética
objetiva que está longe do eu e do outro, e que atribui qualidade moral aos conteúdos
de ambos.
A segunda questão sociológica que aventa a submissão a um princípio ideal
impessoal, consiste em reconhecer que essa sujeição, como no caso das mutuas
relações entre os subordinados, tem sido precedida, em numerosas oportunidades,
por uma dependência concreta. Frequentemente vemos que uma pessoa ou uma
classe social exercem sua dominação em nome de um princípio ideal, ao qual elas
mesmas se reconhecem subordinadas. Parece, pois, lógico que o princípio seja
anterior e que a organização das relações concretas de dominação entre os homens
seja só uma consequência desta dependência ideal. Mas, historicamente as coisas
dão a impressão de seguir o caminho inverso: relações pessoais de poder, muito
concretas e efetivas, originam relações de dominação e subordinação, sobre as quais
se erige um poder ideal, objetivo, por intelectualização da força dominante ou porque
se alarga e despersonaliza a relação, e o superior exerce depois sua dominação como
representante imediato desse poder ideal. A evolução do pater familias entre os
arianos mostra isso muito claramente. Inicialmente – segundo a descrição deste
tipo –,seu poder era ilimitado e absolutamente subjetivo, quer dizer, ele decidia a
respeito de tudo ao bel-prazer do momento ou por conveniência pessoal. Tal poder
arbitrário, porém, foi lentamente cedendo diante de um sentimento de
responsabilidade: a unidade do grupo familiar que, encarnada no spiritus familaris,
se converteu em um poder ideal do qual o próprio senhor da coletividade se
considerava um simples executor, também obrigado à obediência. Por isso, seus
atos, decisões e sentenças, em vez de determinados pelo capricho subjetivo,
começaram a sê-lo pelo costume. Assim, ele não se conduziu mais como senhor
absoluto do patrimônio familiar, mas como seu administrador no interesse de todos,
pelo que sua posição, em lugar de aparecer associada a um direito ilimitado, adquiriu
as feições de uma magistratura.
Dessa maneira, um fundamento absolutamente novo deu-se na relação entre
superiores e subordinados. Enquanto em um primeiro momento os subalternos eram
240 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

uma espécie de bens pessoais dos graúdos, consolidou-se com o tempo a ideia
objetiva de uma família que estava acima de cada um dos indivíduos que a
compunham, e à qual o patriarca preeminente também estaria submetido como
todos os outros membros: o pater famílias mandará, assim, doravante em nome da
unidade ideal. Vemos destarte surgir um tipo formal de extrema importância, isto é,
quem estiver no comando também se submete à lei emanada de sua própria
autoridade. No mesmo instante em que a vontade do dominante se torna lei, ela
passa a ter índole objetiva, abdicando de sua origem subjetiva e pessoal. Desde o
momento mesmo em que o senhor impõe uma norma como lei, ele adquire o caráter
de órgão de uma necessidade ideal e não faz mais que revelar a existência de um
princípio ou preceito que vigora em virtude de seu sentido interno e das exigências
da situação, independentemente de emanar ou não do soberano. Mais ainda: se, em
vez de ter base em uma legitimação mais ou menos clara, a lei repousasse apenas
na mera volição do soberano, este não poderia evitar, por essa circunstância, que seu
agir saísse da esfera da mera subjetividade. Pois o soberano leva o a priori, de si
mesmo, como legitimação supraindividual. Por isso, a forma interna da lei exige que
o legislador, quando a promulga, fique submetido a ela como pessoa, igual a todos.
Assim, na Idade Média, os privilégios das cidades de Flandres estipulavam
expressamente que os escabinos adjuntos ao burgomestre deviam garantir um justo
processo a todos, inclusive contra o próprio conde que tinha acordado o privilégio. O
mesmo critério está presente na decisão de um príncipe tão absoluto como o grão-
eleitor Frederico Guilherme 45 que, quando estabeleceu uma contribuição pessoal
sem a autorização do parlamento, não só mandou que fosse paga por toda sua Corte,
mas também a pagou ele próprio.
A época moderna nos oferece um exemplo similar sobre a aparição de um
poder objetivo ao qual devem submeter-se o dominante junto com seus
subordinados. Referimos-nos à organização da produção, porque os elementos
objetivos e técnicos a dominam antes que os pessoais. Muitas relações de
subordinação (que antes tinham um caráter pessoal, de maneira que, na relação em
questão, um dos membros era simplesmente o dominante e o outro o indiscutível

45
Eleitor de Brandemburgo, e duque de Prússia (1620-1688), conhecido como o "Grão-Eleitor" por
causa de seu poderio militar e político. (NT)
Georg Simmel | 241

subordinado) modificam-se de tal modo que ambos os membros estão submetidos


agora a um fim objetivo, pelo que só continua a subordinação de um ao outro dentro
dessa relação comum com o princípio superior e como mera necessidade técnica.
Quando o trabalho assalariado é considerado um contrato de arrendamento – no
qual se aluga o operário – ele contém essencialmente um elemento de subordinação
do trabalhador a seu patrão. Esse elemento desaparece,contudo, a partir do
momento em que o contrato de trabalho não é reputado como arrendamento da
pessoa, mas como compra da mercadoria trabalho. Então a subordinação que o
patrão exige do operário não é mais – assim foi dito – que “a submissão a um
processo cooperativo, que é tão necessária de parte do patrão (já que ele também
cumpre algum tipo de atividade) como de parte do trabalhador”. O assalariado não
se encontra, assim, submetido como pessoa, mas como cooperante de um processo
econômico objetivo, no qual o elemento superior a ele (patrão da empresa ou chefe
do serviço) não age doravante em virtude de um poder pessoal, mas de exigências
reais e objetivas.
O sentimento de dignidade própria que anima o operário moderno deve ser
vinculado, em parte, à razão de caráter puramente sociológico que se manifesta, e
que frequentemente não tem nenhuma influência na melhora da situação material
dos trabalhadores. Desde o momento em que o operário vende um trabalho
objetivamente definido – maior ou menor do que lhe exigiam antes de forma
pessoal –, ele se liberta, enquanto homem, da relação de subordinação, à qual já só
está sujeito na medida em que, como fator do processo de produção, precisa
coordenar sua atividade com as disposições do diretor da produção. Essa
objetividade técnica está simbolizada pela objetividade jurídica da relação
contratual. Uma vez que o contrato foi concluído, ele paira como uma norma objetiva
sobre ambas as partes. Tal contrato significou no período medieval uma viragem na
situação dos oficiais das corporações, que no princípio estavam em uma completa
dependência pessoal do mestre, ao ponto de serem chamados comumente de
“criados”. A reunião dos oficiais em uma classe especial transformou a servidão
pessoal em uma relação contratual, sendo significativo que, uma vez atingida a
organização, os “criados” passaram a receber o nome de “oficiais”. Podemos dizer
que a forma contratual, qualquer que seja seu conteúdo material, tem como
242 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

consequência a substituição da subordinação absoluta pela paridade relativa. E sua


objetividade se fortalece ainda mais quando o contrato, em vez de ser celebrado
entre indivíduos, é fruto de acordos coletivos entre um grupo de operários e um grupo
de patrões, dispositivo que fortaleceu os sindicatos ingleses. Em certas indústrias
avançadas, que utilizam mão de obra importante e diferenciada, os sindicatos de
operários e as associações patronais assinam contratos sobre salários, jornada de
trabalho, horas extras, feriados, etc. a cujas condições não pode subtrair-se
nenhuma convenção particular concluída entre indivíduos dessas categorias. Vê-se
bem que com isso se acrescenta de modo extraordinário a impessoalidade da
relação de trabalho, enquanto sua objetividade acha adequada expressão na
coletividade supraindividual. Finalmente, tal caráter aparece em especial garantido
quando os contratos de trabalho são realizados pelo menor tempo possível. Os
sindicatos ingleses insistem sempre nesse quesito, apesar da insegurança que ele
acarreta para o emprego. E explicam essa insistência dizendo que o operário se
diferencia do escravo pelo direito de abandonar o estabelecimento no qual trabalha.
Assim sendo, ao renunciar esse direito por muito tempo ficará sujeito a todas as
condições (com exceção das expressamente estipuladas) impostas pelo patrão, e
perderá a proteção daquele direito de pôr fim à relação em defesa de seus interesses.
Em lugar da largura, da amplitude da submissão, que antigamente onerava a pessoa
por inteiro, é o comprimento, a longa duração do contrato, o que tira a liberdade e
independência do trabalhador. Os contratos de escassa duração não garantem a
objetividade ao acrescentar algo ao vínculo, mas por impedir que a relação de
trabalho objetivamente estabelecida seja determinada pelo arbítrio subjetivo, contra
o qual os contratos de longa duração não oferecem proteção suficiente.
Talvez o serviço doméstico seja um bom exemplo dessa classe de formas. O
que principalmente torna insuportável a relação de serviço doméstico, pelo menos
na Europa central de começos do século XX, é que ela faz a pessoa ficar inteiramente
subordinada, sem determinar o trabalho de um modo objetivo. De fato, a relação
doméstica aproxima-se, aos poucos, de uma forma mais perfeita onde ela é
substituída pelos serviços de pessoas que só têm que cumprir na casa funções
objetivas específicas, coordenadas pela “dona de casa”. Ao contrário, na relação
anterior – e também, por vezes, de hoje – o servidor se engaja em sua totalidade
Georg Simmel | 243

como pessoa e se obriga a prestar serviços ilimitados (como o demonstrava


claramente a expressão “criada para todo serviço”). Essa falta de precisão técnica é
precisamente o que submete os servidores domésticos à “dona de casa”. Em épocas
mais decididamente patriarcais que as atuais, a “casa” era um fim objetivo ou um
valor em si mesmo, ao qual colaboravam conjuntamente a dona de casa e os
servidores domésticos. Destarte, ainda que a subordinação fosse plenamente
pessoal, se produzia certa coordenação determinada pelo interesse que
frequentemente a casa inspirava ao servidor, vinculado a ela de forma perdurável. O
tuteio dos criados significava sua subordinação como pessoas, mas também os
apropinquava dos filhos da casa integrando os servidores mais estreitamente a sua
organização. Assim, dá-se o caso curioso de que essa relação de obediência sirva
de algum modo a uma ideia objetiva, singularmente nos dois polos opostos de sua
evolução: primeiro, na subordinação plenamente patriarcal, quando a casa tinha um
valor absoluto, ao qual serviam tanto o trabalho da dona de casa como o dos
domésticos; e segundo, na completa diferenciação, quando trabalho e remuneração
estão previamente determinados de modo objetivo e não existe essa adesão pessoal
que é o complemento da subordinação ilimitada. A situação atual dos empregados
domésticos, sobretudo nas grandes cidades, tem perdido a primeira das
objetividades sem ter adquirido acabadamente a segunda. A personalidade inteira
do servidor já não está consagrada à ideia objetiva da “casa”, mas também não se
tem emancipado por completo, como corresponderia à natureza da prestação.
Finalmente, outro exemplo dessa classe de formas se encontra nas relações
entre os oficiais e os soldados nas forças armadas. A tensão entre a subordinação
dentro do organismo coletivo e a solidariedade engendrada pelo serviço comum em
defesa da pátria é maior do que se possa imaginar. Essa tensão se manifesta
particularmente no campo de batalha, onde a disciplina é implacável, mas onde
também a relação de camaradagem entre oficiais e soldados rasos é favorecida por
situações individuais e pelo ambiente geral. Em tempos de paz, as tropas estão na
situação de um meio que não cumpre seu fim (que consiste em servir à defesa da
pátria). A estrutura técnica do exército se desenvolve então inevitavelmente até
converter-se psicologicamente em um fim em si, de maneira que as relações de
subordinação – sobre as quais repousa a técnica de organização – passam a ocupar
244 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o primeiro termo da consciência, e esse singular cruzamento sociológico (que se


opera com a solidariedade engendrada pela subordinação comum a uma ideia
objetiva) não se produz até que uma mudança de situação faça tomar consciência
de que a ideia (de servir à defesa da pátria) é a verdadeira finalidade das forças
armadas.
Encontramos frequentemente o indivíduo desempenhando um duplo papel:
em posição dominante ou subordinada na organização de seu conteúdo de vida
particular; enquanto a organização está subordinada a uma ideia dominante que
outorga a cada um de seus membros uma posição idêntica (ou quase idêntica) em
relação a todos os que estão fora do grupo. A duplicidade de funções faz da posição
sociológica formal o sustentáculo dos mais contraditórios sentimentos. O
funcionário de uma loja de departamentos pode exercer posição diretiva que faça ele
se sentir com um ar de imperturbável superioridade e autoridade ante seus
subordinados, mas assim que se encontre perante o público e aja sob a influência da
ideia da “loja” como uma totalidade, ele adotará uma atitude solícita e obsequiosa.
Um processo contrário está por trás da arrogância tão frequente nos subalternos,
nos criados de grandes e luxuosas residências e de membros de círculos intelectuais
ou sociais privilegiados. Esses subordinados, precisamente porque pertencem
apenas à periferia dos grupos, representam com muito mais energia a dignidade e a
ideia do círculo em relação aos de fora. Procuram conseguir pelo caminho negativo,
pela diferenciação em relação aos outros, essa posição firme de que carecem em sua
efetiva vinculação com o grupo de referência. Talvez a hierarquia católica ofereça a
maior complexidade formal deste tipo. Na medida em que cada membro da
hierarquia está vinculado a uma obediência absoluta e cega, o último deles está
sobre todos os leigos à infinita altura em que a ideia de eternidade paira sobre toda
realidade temporal; mas o mais elevado de seus membros se reconhece, ao próprio
tempo, como “o servo de todos os servos”. O monge, que pode exercer um poder sem
limites dentro de sua ordem, se reveste da humildade e respeito mais profundos
diante de qualquer pobre pedinte. No entanto, o último dos irmãos na ordem é
superior aos príncipes seculares graças à autoridade absoluta que lhe presta a Igreja.
Acabamos de fazer um corte transversal nos fenômenos da subordinação
agrupando-os a partir do problema: quem e quantos dominam? Um ou muitos?
Georg Simmel | 245

Pessoas ou instituições objetivas? Esses fenômenos também podem ser


considerados sociologicamente, desde o ponto de vista dos graus de dominação,
sobretudo em relação com a liberdade e suas condições. As considerações
seguintes pretendem ir nessa direção.
Quando existem em um grupo várias e enérgicas relações de dominação e de
subordinação – em um constructo hierárquico unitário ou na justaposição de uma
pluralidade de mandos –, as características essenciais do conjunto serão atribuídas
pela subordinação. Isso se vê com particular clareza nos Estados regidos
burocraticamente, nos quais as camadas da população aumentam rapidamente de
maneira proporcional a sua subalternidade. Por consequência, quando a dominação
e a subordinação estão no primeiro plano da consciência sociológica formal, o
elemento quantitativamente preponderante desta correlação, o dos subordinados, irá
colorir o quadro todo. Algumas combinações muito particulares, porém, podem
produzir no grupo a impressão e o sentimento de uma superioridade generalizada. O
orgulho característico dos espanhóis e seu desdém pelo trabalho manual
relacionava-se ao fato de que durante muito tempo empregaram os mouros
submetidos nessas tarefas. Quando os sarracenos foram mortos ou expulsos junto
com os judeus, não restou aos espanhóis mais que os ares de superioridade, sem
que houvesse já nenhum subordinado como necessário correlato a sua arrogância.
Na época de seu maior esplendor, os espanhóis diziam sem rodeios que sua nação
devia ocupar no mundo a posição que em sua sociedade se atribuía aos nobres,
militares e altos funcionários. Algo semelhante tinha ocorrido – ainda que sobre
bases mais sólidas – na democracia militar de Esparta. Os espartanos submeteram
os povos vizinhos sem fazê-los, porém, escravos. Deixaram-nos em suas terras e se
limitaram a tratá-los como servos. Estes servos acabaram por formar uma camada
inferior, em face da qual a totalidade dos cidadãos espartanos constituía uma classe
senhorial – mesmo se entre eles se conduziam de forma democrática. Não foi essa
uma simples aristocracia que desde suas origens conformasse um grupo unitário
com os elementos que dispunham de menos direitos: em realidade foi todo o Estado
primitivo que, conservando seu statu quo e graças à aquela camada inferior, pôde
transformar todos seus elementos em nobres. Tal princípio de dominação geral,
aliás, foi reproduzido pelos espartanos em algumas instituições fundamentais como
246 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o exército, que era tão hierarquizado que, em realidade, estava formado


principalmente de chefes.
Surge aqui uma singular forma sociológica. Certas determinações de um
elemento, que unicamente se produz na relação com outro (do qual tomam conteúdo
e sentido), se convertem, todavia, em qualidades autônomas, independentes de toda
ação recíproca, e como próprias daquele elemento. Ser senhor supõe um objeto
sobre o qual se exerce a relação de senhorio, mas a realidade psicológica pode
contornar até certo ponto essa necessidade lógica. Um dos motivos internos desse
fato já foi explicado por Platão. Segundo ele, entre as diversas esferas em que se
exerce a dominação, infinitamente distintas em extensão e conteúdo, não existe
diferença alguma do ponto de vista da dominação, enquanto tal, como função. O
político e o rei, o déspota e o administrador devem possuir uma e mesma disposição
inata para governar. Por isso para Platão o verdadeiro político não é necessariamente
o depositário do poder supremo do Estado, mas quem possui a “ciência do governo
dos homens”, sendo indiferente que tenha ou não homens a quem governar.
Voltamos aqui ao fundamento subjetivo do domínio, fundamento que não nasce na
correlação de uma relação de dominação efetiva, mas existe com independência
dela. Conforme Platão, aquele que tem nascido para ser rei não precisa ter um reino,
ele é rei, não se faz rei. Se os espartanos, apesar de não ter criado entre eles nenhuma
aristocracia, se sentiram nobres, se os espanhóis tinham consciência de senhores,
ainda quando já não possuíam servidores a quem mandar, o fato tem um sentido
profundo: a ação recíproca da relação de dominação não é mais que a expressão
sociológica ou a atualização de certas qualidades internas do sujeito, e quem quer
que as possua é um chefe em potência. A relação bilateral tem de algum modo
perdido um de seus lados que só subsiste de uma forma ideal, sem que por sê-lo o
outro lado perca o sentido que lhe corresponderia na relação. Mas quando se trata
do conjunto dos membros de um grupo considerável, o fenômeno se exterioriza no
fato de que, no geral, eles não têm outro nome para designar-se entre si que o de
“iguais”, sem que este termo expresse em que, precisamente, eles não difeririam. Os
cidadãos espartanos com direito de voto eram, sem mais, chamados “iguais”. O
aristocratismo de sua posição política e econômica em face das outras classes era
algo tão evidente que bastava evocar para sua própria designação a relação normal
Georg Simmel | 247

que mantinham entre si, sem mencionar em absoluto sua relação com as outras
classes que, porém, devia constituir o conteúdo de seu aristocratismo. Um
sentimento análogo se repete cada vez que os aristocratas se chamam a si mesmos
de pares. Pode-se dizer que os pares somente existem uns para os outros: eles não
se sentem sequer suficientemente concernidos pelos demais nem mesmo para
expressar sua superioridade no nome coletivo, apesar de que, no fundo, é a causa
dessa superioridade que tal denominação se torna necessária46.
Há também outra maneira de realizar o conceito de dominação sem o
complemento lógico da subordinação correspondente. Ela consiste em transpor
certas formas, que se tinham constituído dentro de um grande grupo, para um círculo
menor em que a situação não as justifica. Nos grandes grupos, determinadas
posições implicam um poder, um grau de dominação, uma importância que elas
perdem quando são reproduzidas em um círculo menor, sem alterar sua forma.
Todavia, no círculo menor conservam o tom de superioridade e mando que possuíam
no maior, tom que se tem convertido em qualidade substancial da posição mesma,
independentemente de que a relação na qual esse tom estava justificado já tenha
sido produzida. Nesses casos, serve amiúde de intermediário um “título”, que nas
novas circunstâncias alude a um poder do qual só restam vestígios, ainda que se

46
Este é só um exemplo de um fenômeno sociológico geral. Certo número de membros de um grupo
tem a mesma relação com determinada condição que confere aos interesses do grupo conteúdo e
significado. No entanto, sucede que esse ponto decisivo, no qual convergem os elementos,
desaparece da denominação coletiva e talvez até da consciência de seus membros, destacando-se
unicamente a igualdade dos elementos, ainda que esta igualdade se produza exclusivamente no que
tange a este ponto. Assim com o mesmo nome de pares com que se designavam os nobres, se
denominou, nos séculos XII e XIII em muitas cidades francesas, seus jurados e magistrados
municipais. Quando se fundou em Berlim a “Sociedade por uma Cultura Ética”, um folheto foi
publicado com o seguinte título: Elementos preparatórios para um círculo de homens e mulheres que
têm iguais ideias. Não se dizia nem uma palavra que indicasse em que estas opiniões coincidiam. Nas
Cortes espanholas se constituiu aproximadamente em 1905 um partido que se denominava
simplesmente “Solidariedade.” Um grupo de artistas muniquenses, em fins do ano de 1890 se chamou
O grupo dos colegas, sem acrescentar a este título oficial nada que explicasse em que consistia esta
colegialidade e que diferença tinha esta associação com um agrupamento organizado de professores,
ou de atores, agentes e redatores. Tais fatos aparentemente insignificantes contêm um fato de grande
importância sociológica: que a relação formal entre certos indivíduos pode impor-se sobre o conteúdo
e a realidade dessa relação, pois isso não poderia acontecer se todas essas denominações não
traíssem de certa maneira a orientação da consciência sociológica. O fato de que os elementos de um
grupo sejam iguais ou professem as mesmas ideias, ou pertençam a mesma profissão, tem adquirido
uma importância extraordinária diante da matéria contida nessas formas sociológicas, matéria que
seria a única que poderia dar-lhe algum sentido. Enquanto o comportamento prático, mesmo que ele
esteja determinado pela matéria que tais denominações silenciam, se encontra também incontáveis
vezes sob a influência das puras relações e estruturas formais. (NS)
248 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

pretenda conservar, apesar de tudo, o sentimento de dignidade e nobreza que tinha


no grupo mais amplo. Encontra-se um bom exemplo entre os rederykers holandeses,
espécie de mestres cantores do século XV, em cujos grupos era possível deparar-se
com poetas e músicos amadores de classe média, assim como artesãos de diversas
profissões, que recebiam tratamento de “rei”, “príncipe” ou “arcediago”.
Denominações honoríficas que lembram por semelhança os “oficiais” do “Exército
de Salvação”, ou as “luzes da oficina” e demais “cargos” das lojas francomaçônicas.
Nessa ordem de ideias, uma dessas lojas proclamou em 1756 os seus membros, na
França, “soberanos e príncipes natos da Ordem toda”, enquanto outra, um pouco
mais tarde, tomou o nome de “Conselho dos Imperadores de Oriente e Ocidente”.
Como é obvio, não são apenas as mudanças quantitativas dos grupos em
extensão e número as que levam à transposição de uma posição, dominante em sua
origem, para uma situação em que, privada da subordinação logicamente necessária
à condição de dominante, permite manter, apesar de tudo, o tom aparente da
superioridade. De fato, esse efeito também resulta do encolhimento em intensidade
da vida coletiva. O que alterou profunda e violentamente toda a presença helenística
no Império (até perder as características essenciais) foi o caráter limitado de sua
esfera de influência, que se esvaziou de todo conteúdo mais amplo ou profundo,
enquanto ainda conservava o sentimento de que podia (ou devia) manter uma
superioridade qualquer. Sentimento que se nutria dos ideais de seu esplendor
passado e que fez surgir essa ambição vazia, que finalmente inspirava a todos um
sentimento de importância e de superioridade sem fundamento real – do vencedor
nos Jogos ao magistrado de um município insignificante, do convidado a quem se
arranjou um lugar de honra ao orador que, na falta de influencia política, se
contentava com os aplausos a suas frases de efeito por um público de ociosos. A
sociedade grega da época não teria sido capaz, a partir de sua estrutura real, de
alcançar o nível necessário para satisfazer os privilégios sociais e as prerrogativas
desmedidas dessa classe de pessoas. Os sentimentos, surgidos em épocas
passadas, quando a coletividade grega tinha maior importância, se sustentavam,
sem diminuir suas proporções, sobre bases muito mais modestas e, justamente por
carecer de conteúdo, favoreciam a busca desenfreada de posições sociais elevadas
que não dispunham do complemento lógico da subordinação correspondente.
Georg Simmel | 249

Ao mesmo tempo, atua aqui, retrospectivamente de certo modo, um traço


singular, presente de muitas maneiras no comportamento dos homens, e bem
exemplificado pelo pensamento mágico primitivo. Referimos-nos à crença segundo
a qual os homens poderiam provocar fenômenos (que, por sua magnitude, estão fora
do poder humano), produzindo-os em escala menor. Assim, para numerosos povos
espalhar água é uma poderosa mágica para fazer chover. O poder do conceito
universal está tão estendido que se acredita que, realizando-o em proporções
mínimas ou parciais, o homem se apropria dele e, por conseguinte conseguirá que
tenha existência concreta em grau superior de extensão e intensidade. Um fenômeno
de “autoridade” apresenta uma variante particular do tipo de comportamento que nos
interessa aqui. A preponderância interna que alguém tem conseguido em virtude de
uma tarefa ou de uma qualidade parcial permite amiúde conseguir “autoridade” em
questões, assuntos ou domínios que em realidade nada têm a ver com a esfera de
atividade na qual se manifestou aquela excelência. Também neste caso a
“dominação” que existe e se justifica em parte será transposta em uma situação
total, em que já falta o complemento de um objeto “dominado”. Aqui aparece, ainda
que em outra dimensão, o mesmo paradoxo de antes: um elemento que se sente
superior, mas que não tem a subordinação correlata do outro elemento.
Nosso ponto de partida é que um grupo pode oferecer em conjunto o caráter
da subordinação, sem que exista nele prática e tangivelmente um grau
correspondente de superioridade ou domínio. O caso oposto é o que acabamos de
tratar, tendo em vista que pode existir a dominação como qualidade absoluta, sem
repousar em nenhuma subordinação correlata. Esta forma, porém, raramente ocorre.
Pelo contrário, a figura que aparece, na maioria dos casos, como o oposto ao primeiro
caso é a liberdade de todos. Todavia, se examinamos detidamente a situação
veremos que quase sempre o fato de libertar-se de uma subordinação significa
adquirir um domínio, seja sobre os que até então tinham sido os dominantes, seja
sobre uma nova camada destinada doravante a uma subordinação definitiva. Assim,
o maior historiador da constituição inglesa faz notar em uma passagem a propósito
da Querela do Puritanismo: “Como todas as demais lutas pela liberdade, esta acabou
250 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sendo uma luta pela supremacia”47. Como é natural, essa fórmula geral não se realiza
sempre à letra, mas frequentemente e ao contrário, como uma tendência entre
muitas outras coincidentes, de forma fragmentária, indireta e modificada, das quais
sempre emerge, porém, a vontade de substituir a liberdade pela dominação. Vamos
tratar de imediato de seus principais tipos
Para o cidadão grego era absolutamente impossível a clara distinção entre a
liberdade e a dominação no espaço político. Faltava-lhe a esfera individual do direito
a protegê-lo contra as exigências e a arbitrariedade da vida pública e como garantia
de uma existência realmente independente. Em suma, o homem grego carecia de
liberdade constitucional oponível ao mesmo Estado. Por isso ele só conhecia, de fato,
uma única forma de liberdade: participar do poder do próprio Estado. Trata-se de um
tipo sociológico que corresponde exatamente aos movimentos comunistas da
Antiguidade, os quais não aspiravam à supressão da propriedade privada, mas a que
os deserdados tivessem participação maior nela. Finalmente, nos níveis inferiores,
ainda que não se possa falar de participar de poder algum, reproduz-se a forma
essencial de comportamento atribuído aos escravos gregos, cujas insurreições não
procuravam tanto quebrar as correntes da escravidão, quanto reduzir seu peso e
torná-lo mais suportável. Com efeito, esses levantes eram provocados mais pela
indignação contra os abusos individuais do que pela vontade de suprimir
radicalmente a instituição. Há uma diferença fundamental entre pretender obter a
proteção dos indivíduos, a supressão dos abusos e a promoção dos valores
almejados pela abolição da forma sociológica que lhes fundamenta, e procurar
consegui-las dentro da forma tradicional. Quando a situação global fundada sobre
as relações de dominação e subordinação é muito sólida, a libertação dos
dominados não significa de modo algum a liberdade de todos (que representaria uma
modificação fundamental da forma social), mas apenas sua promoção à classe
dominante. Veremos mais adiante as contradições práticas em que se traduziu a
contradição lógica aqui enunciada. O que conseguiu o terceiro estado na Revolução
Francesa foi aparentemente a simples libertação do peso dos privilégios dos

47
Esta citação pertence a William Stubbs, The Constitutional History of England in its Origin and
Development, Oxford: Clarendon Press, 1878, vol. III, § 21. Em inglês no texto da edição alemã de
Simmel: “like every other struggle for liberty it ended in being a struggle for supremacy”. (NT)
Georg Simmel | 251

privilegiados, mas em realidade o que obteve foi a dominação, nos dois sentidos
acima indicados. Graças a seu predomínio econômico pôs sob sua dependência as
classes até então dominantes, mas a continuação sua emancipação só teve
significado e consequências porque existia um “quarto estado” (ou porque o mesmo
processo conduziu a sua formação) que a burguesia pôde explorar e obter, assim,
vantagens e lucros que lhe permitiram elevar-se por cima dos outros elementos.
Por isso não é legítimo concluir por analogia que o “quarto estado” quer fazer
hoje o que fez então o terceiro. Eis um ponto no qual a liberdade manifesta a sua
relação com a igualdade, e também a quebra necessária dessa relação. Na medida
em que reina uma liberdade generalizada, existe simultaneamente uma igualdade
generalizada, pois a primeira expressa unicamente um ponto negativo, a saber, que
não há nenhuma dominação – determinação que, em virtude precisamente de seu
caráter negativo, pode ser comum a diversos elementos. Todavia, essa igualdade que
se apresenta como a primeira consequência ou acidente da liberdade, não é em
realidade mais do que o ponto de passagem que as ânsias de dominação dos
homens devem transpor desde que elas se apoderam das massas oprimidas.
Ninguém se contenta com a posição que ocupa em relação a seus pares, mas todos
pretendem conseguir outra que lhe seja mais favorável em algum sentido. Ora,
quando a maioria está insatisfeita e sente o desejo de elevar seu nível de vida, a
primeira expressão dessa aspiração consistirá em ser e ter a mesma coisa que são
e possuem os privilegiados deste mundo. A igualdade com as pessoas mais elevadas
é o primeiro conteúdo que preenche o instinto da própria elevação, como se pode ver
em qualquer círculo reduzido – entre os alunos de uma mesma turma, no balcão de
uma loja, em um quadro de funcionários. Esta é uma das razões pelas quais o rancor
dos proletários não se dirige frequentemente contra as classes mais elevadas, mas
contra o burguês, que está no nível imediatamente superior. O burguês é para o
proletário o primeiro degrau na escala da felicidade, no qual se concentra de
momento seu desejo de ascensão. O inferior contenta-se provisoriamente com ser
igual ao superior imediato, mas uma vez que conseguiu essa condição, considera-a
apenas o ponto de partida de outras novas ambições. Como demonstra uma muito
repetida experiência, o estágio almejado pelo inferior, que respondia antes a suas
aspirações, torna-se a primeira etapa da estrada sem fim que conduz à posição mais
252 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

favorável. O desejo do indivíduo de superar os outros a partir do novo terreno


conquistado manifesta-se de todas as formas desde que o subordinado pretende
conseguir a igualdade, A igualdade que a liberdade implica (enquanto vigora em seu
aspecto meramente negativo, no sentido de não ter dominação), não é de modo
algum o propósito definitivo, apesar de que amiúde a tendência que leva o homem a
considerar como definitiva a etapa mais próxima de seu desejo o persuada a aceitar
que a liberdade é seu último anseio. Sem contar que a falta de clareza própria do
pensamento ingênuo pretende ver já nessa etapa a superioridade à qual tende a
liberdade para além de sua dimensão igualitária; pois há uma verdade elementar
nesta observação supostamente feita por uma carvoeira a uma elegante senhora,
durante as jornadas revolucionárias de 1848: “sim, madame, agora vamos ser todas
iguais, eu me vestirei de seda e você carregará o carvão”.
A consequência inevitável do que já foi dito sobre o assunto é que ninguém se
conforma em ter a liberdade, mas sim pretende utilizá-la para outra coisa. Assim, a
“liberdade da Igreja” não se limita amiúde a sua liberação dos poderes temporais
dominantes, mas consiste em dominar esses poderes. Por exemplo, para a Igreja a
liberdade de ensino significa que o Estado receba cidadãos influenciados e
persuadidos por ela, graças ao qual a autoridade eclesiástica frequentemente
domina o Estado. Foi dito que os privilégios medievais de classe foram o meio para
que todos, inclusive os não privilegiados, conseguissem a liberdade quando uma
opressão tirânica se estendia indiscriminadamente sobre a população. Diante da
liberdade, porém, o privilégio segue existindo, tornando-se inimigo da liberdade de
todos. A liberdade dos privilegiados engendra uma situação cuja estrutura interna
conduz, certamente, como consequência ou como condição, à liberdade de todos;
mas essa liberdade implica tacitamente a preferência daqueles elementos que com
seus privilégios fizeram-na possível, preferência que, por sua vez, no decurso do
tempo e ao abrigo da liberdade de movimentos conquistada, adquire um novo
sentido, servindo então a oprimir a liberdade dos demais.
Essa relação da liberdade com a dominação adquire uma forma particular
quando se trata da liberdade de um grupo parcial dentro de um grupo maior e,
sobretudo, dentro da comunidade chamada Estado. Frequentemente, essa liberdade
se apresenta na história como uma jurisdição mais ou menos extensa e própria
Georg Simmel | 253

desse grupo. A liberdade significa então nesse caso, que o próprio grupo como
unidade supraindividual, se converte no poder superior que domina cada um de seus
membros. O decisivo é, todavia, que o grupo parcial, ainda sem poder comportar-se
segundo bem lhe convenha – coisa que não torna, porém. fundamentalmente
subordinados a seus membros –, pode possuir um direito que lhe seja próprio, e que
será o vínculo que o interligará ao círculo maior circundante. Círculo este que é quem
administra, aliás, o direito e submete incondicionalmente a quem estiver
compreendido no grupo parcial. Nesses casos, o grupo mais restrito exige amiúde e
com a maior energia que seus membros se submetam a sua jurisdição, porque sabe
que é disso que depende a preservação de sua liberdade. No medievo, na Dinamarca,
o membro de uma guilda só podia demandar a outro membro perante o tribunal
dessa corporação. Não era formalmente impedido de reclamar seu direito também
em um tribunal público, real ou episcopal, mas isso era considerado – salvo que a
guilda o tivesse autorizado – um ato ofensivo contra a corporação e contra o
membro demandado, devendo pagar então uma multa aos dois. Foi o que ocorreu
em 1396 na cidade de Frankfurt, que tinha obtido do Imperador o privilégio de que
nenhum de seus burgueses pudesse ser demandado perante um tribunal estranho à
cidade. Neste caso foi arrestado um burguês de Frankfurt porque havia demandado
em um tribunal de fora da cidade a outros vizinhos dele que lhe deviam dinheiro.
A liberdade pode sempre ter dois aspectos: trazer consigo o respeito a uma
pessoa, um direito ou um poder, e pode implicar uma exclusão, a indiferença
desdenhosa de parte do poder superior. Assim sendo, a jurisdição própria dos judeus
para os litígios que os opunham entre si no Medievo, não se trata de um
contraexemplo, mesmo se, por vezes, se houvesse convertido em fonte de descrédito
e hostilidade. Outra coisa sucedia com os hebreus do oriente romano durante o
Império. Diz Strabon que os israelitas de Alexandria, por exemplo, tinham um juiz
supremo próprio para resolver seus litígios – um estatuto jurídico de exceção
advindo fonte de antissemitismo, mas reivindicado pelos mesmos judeus que
afirmavam que sua religião exigia uma administração de justiça particular e
exclusiva. Esta tendência se amplificou na cidade medieval de Colônia, onde os
hebreus desfrutaram, durante um breve lapso, do privilégio de fazer julgar por um dos
seus até os processos contra os cristãos. Em casos semelhantes é provável que os
254 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

membros do grupo mais restrito, considerados individualmente, não fossem talvez


mais livres neste que sob o regime do direito comum, mas o conjunto gozava assim
de uma liberdade que os outros cidadãos consideravam derrogação ostentosa. Pois
o privilégio de um círculo que desfruta de jurisdição própria não se funda na
peculiaridade material do direito pronunciado: é o fato de que unicamente seus
membros estão submetidos a esse direito que por sua forma representa uma
liberdade. Os mestres das corporações medievais combateram a jurisdição
corporativa das associações de oficiais, mesmo quando sua competência fosse
mínima e se limitasse a zelar pela honradez e bons costumes dos associados. Os
mestres sabiam perfeitamente que a polícia dos costumes, codificada e exercida
pelas associações, dava aos oficiais uma consciência de sua solidariedade, de sua
honra coletiva e de sua independência organizada que lhes servia de amparo e firme
vínculo em face dos mestres. E sabiam que essa forma sociológica era o essencial e
que, uma vez que ela fosse concedida, o maior alcance de seu conteúdo somente
dependeria das relações de poder e das conjunturas econômicas próprias de cada
momento. Finalmente, o conteúdo geral dessa liberdade do grupo é a submissão do
indivíduo, o que corrobora o que indicamos antes: de modo algum essa liberdade do
grupo significa maior liberdade material do indivíduo. A teoria da soberania popular
frente ao poder dos príncipes tal como foi formulada na Idade Média não implicava
a liberdade individual, mas a liberdade da Igreja de dirigir e influenciar as ações e
comportamento dos indivíduos em lugar do Estado. Da mesma maneira, quando no
século XVI os inimigos da monarquia retomam a ideia do povo soberano e fundam o
poder em uma espécie de contrato de direito privado entre os príncipes e o povo,
também não pretendiam libertar o indivíduo, mas submetê-lo à dominação de sua
confissão e dos diferentes estamentos da sociedade.
Sucede às vezes que o imenso interesse que tem o grupo mais restrito em
dominar seus indivíduos e a situação vulnerável em que vivem esses círculos,
particularmente isolados e privilegiados, torna as jurisdições particulares mais
rigorosas do que poderia ter sido o círculo mais amplo se tivesse que consentir uma
das ditas exceções dentro de sua alçada. As corporações dinamarquesas, já
mencionadas, estipulavam que se um de seus membros descumprisse as
obrigações que lhe impunha um contrato de venta celebrado com outro membro, o
Georg Simmel | 255

vendedor devia conceder ao comprador uma indenização de uma quantia duas vezes
mais elevada do que ele teria que pagar ao funcionário real, se não houvesse sido
membro da guilda, e ressarcir a todos os outros membros da corporação com uma
multa que poderia atingir o dobro da que a cidade teria cobrado nesse caso. A
estrutura do círculo mais amplo permite outorgar mais liberdade ao indivíduo que o
círculo mais restrito que depende fundamentalmente da atitude assumida por seus
membros a seu respeito. É preciso, assim, que ele prove constantemente, através de
uma jurisprudência pouco ou nada inclinada à indulgência, o exercício firme e digno
da autoridade confiada, sem dar ao poder público nenhuma razão para intervir. Mas
essa autoridade sobre seus membros (que constitui a liberdade do grupo em última
instância) pode acarretar consequências mais graves que uma jurisprudência sem
concessões. É verdade que a grande autonomia das cidades alemãs favoreceu
extraordinariamente seu desenvolvimento até bem dentro do século XVI, mas depois
ela produziu um regime oligárquico, de nepotismo e compadrio que oprimiu
cruelmente aqueles que não participavam do poder. Somente o aumento dos poderes
do Estado, após uma luta de quase 200 anos, conteve o abuso tirânico da liberdade
das cidades e garantiu novamente a liberdade do indivíduo. A autonomia local, cujo
princípio provou o quão benéfico podia ser, encerra, apesar disso, o perigo das
assembleias locais dominadas pelo egoísmo dos interesses de classe. A correlação
do duplo movimento de aquisição da liberdade e de imposição de uma dominação
política (sua amplificação em conteúdo) degenerou em seu exagero patológico.
Todavia, é em uma direção totalmente diversa que se constitui, às vezes, o tipo
de que se trata aqui. Como temos visto, toda libertação de um grupo de indivíduos
que se tornam iguais sem necessidade de estar subordinados a outros tende a se
desenvolver aspirando a uma superioridade – sobretudo se nós observamos a
diferenciação que se produz em geral quando uma camada inferior atinge condições
de vida mais livres ou simplesmente melhores. No entanto, com frequência o
resultado desse movimento revela que, embora certas partes desse grupo que
unanimemente aspirava ascender o consigam efetivamente, isso significa apenas
que elas se assimilaram às camadas dominantes já existentes, enquanto as outras
continuam subordinadas. Como é natural, isso se produz com maior facilidade
quando entre as camadas animadas de tendência ascensional existe já uma
256 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

distinção entre dominados e dominantes. Em tais casos, uma vez que acaba a
rebelião contra a camada social que dominava a ambas, a diferença interna entre os
rebeldes (que durante a luta fora passada para segundo plano) logo reaparece e, em
razão disso, aqueles que anteriormente tinham uma posição superior assimilam-se
à camada superior combatida, enquanto seus antigos companheiros de luta ficam
ainda mais submetidos. O levante dos operários ingleses em 1830 oferece um bom
exemplo desse tipo de comportamento. Para conseguir o direito de eleger deputados
ao Parlamento, os operários se aliaram ao Partido reformista e às classes médias,
conseguindo a promulgação de uma lei que concedia o direito de voto a todos
– exceto os operários. De acordo com a mesma fórmula. a luta de classes em Roma
se desenvolveu por volta do século IV A C. Os ricos plebeus, que em interesse de sua
camada social desejavam o connubium48 e uma repartição mais democrática dos
altos cargos públicos, fizeram uma aliança com as classes médias e as camadas
inferiores. Como resultado desse movimento combinado se alcançaram os pontos
do programa que interessavam principalmente à grande burguesia, enquanto as
reformas que iriam favorecer a classe média e os pequenos agricultores se
desmancharam no ar. O mesmo ocorreu com a Revolução boêmia de 1848 que
permitiu aos camponeses acabarem com os últimos vestígios da servidão feudal. A
partir do momento em que essa finalidade foi atingida, surgiram claramente entre os
próprios camponeses as diferenças de posição que antes e durante a revolução
tinham ficado apagadas pela servidão comum. De tal sorte que, quando as classes
inferiores da população rural demandaram a repartição das terras comunais,
despertou-se imediatamente o instinto conservador dos camponeses mais
abastados, que se opuseram às pretensões do proletariado do campo (junto a quem
tinham vencido a revolta) do mesmo modo em que os senhores se tinham oposto às
suas. Acontece com típica frequência: que o mais forte, talvez quem contribuiu mais
à vitória, deseja depois colher sozinho todos os frutos. E sua participação,
relativamente preponderante no sucesso alcançado, embasará doravante a

48
O ius connubium, era o direito de contrair casamento válido segundo o antigo Direito romano. Os
filhos nascidos de pais unidos em virtude do ius connubium seguiam a condição do pai, sendo
também cidadãos, caso contrário a do pai não cidadão. Esta capacidade jurídica de celebrar “justas
núpcias” era própria só dos cidadãos romanos e dos latinos veteres (antigos habitantes do Lácio).
(NT)
Georg Simmel | 257

reivindicação de uma parte absolutamente maior no espólio. Por sua vez, a


concretização desse esquema é consideravelmente ajudada, no plano sociológico,
por um fenômeno que já tínhamos mencionado e sobre o qual voltamos a chamar a
atenção: quando existe uma estratificação por classes em sentido amplo e a camada
mais profunda ascende em conjunto, se destacam os elementos mais fortes dela,
que conseguem assim entrar em contato com a camada mais elevada e até então
combatida por todos.
Dessa maneira, a diferença puramente relativa que até lá existia dentro dessa
classe inferior entre os elementos mais bem e pior situados, se torna absoluta: pois
que a quantia de vantagens obtidas alcança para os primeiros o limiar a partir do
qual se transforma em uma nova qualidade. Em um sentido formalmente análogo era
esse o procedimento na América espanhola quando entre a população de cor
aparecia um indivíduo de grandes méritos, que fazia prever (ou temer) aos brancos
uma melhoria na situação e liberdade dos negros e índios submetidos. Em tais casos,
se outorgava um título para que o elemento promissor de cor “valesse como um
branco”. Na medida em que era assimilado à camada dominante, sua superioridade
sobre seus companheiros de raça vinha a substituir à igualdade com os brancos, que
teria podido conquistar eventualmente para si e para os seus. É o sentimento desse
tipo sociológico que, na Áustria por exemplo, conduz a certos homens políticos
favoráveis aos trabalhadores a justamente elevar protestos contra as comissões de
operários com as quais se pretendia, porém, aliviar a situação dos assalariados.
Teme-se, efetivamente, que estes comitês se transformem em um gênero de
aristocracia da classe operária e que facilmente sejam induzidos a compartilhar os
interesses dos patrões, graças à situação privilegiada dos trabalhadores promovidos
e a sua proximidade com os empresários – o que deixaria seus irmãos de classe
mais abandonados a raiz desse progresso aparente. É também por essa razão que,
no geral, o acesso dos melhores operários às classes proprietárias não é, como à
primeira vista se poderia pensar, uma prova do progresso da classe trabalhadora.
Com efeito, graças a esse fenômeno os operários se privam de seus melhores
elementos diretivos. A ascensão absoluta de alguns membros da classe
trabalhadora é uma elevação relativa de certos trabalhadores acima de sua classe e,
por consequência, uma ruptura com ela, uma sangria constante que faz os operários
258 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

perderem seu melhor sangue. Por essa razão, a autoridade contra a qual se levanta
um conjunto numeroso de pessoas tem interesse em conseguir que esse grupo
escolha representantes encarregados das negociações. Isso vai quebrar pelo menos
o impulso irresistível e fora de controle da massa, que doravante será controlada por
suas próprias lideranças – coisa que já não conseguiam os superiores – assumindo
em face dos revoltosos a função normal da autoridade e preparando o retorno do
povo a sua submissão preexistente.
Todas essas manifestações, que se propagam nas mais diversas direções,
têm um denominador sociológico comum e constante, a saber: o desejo e a
conquista da liberdade em suas mais variadas significações, positivas e negativas,
cuja consequência necessária é a ambição e a conquista do poder. O socialismo e o
anarquismo negam, porém, a necessidade desse vínculo. Enquanto o equilíbrio
dinâmico dos indivíduos, a liberdade social, aparece aqui apenas como um ponto de
transição – real ou meramente ideal – além do qual a balança pende a um lado, os
socialistas e anarquistas consideram possível sua posição estável, à condição de
que a organização social em geral não se estruture em relações hierárquicas de
dominação, mas coordenada por todos os elementos. As razões frequentemente
aduzidas contra essa possibilidade – cuja discussão não interessa – podem
resumir-se em argumentos do terminus a quo 49 e do terminus ad quem 50 . A
desigualdade natural dos homens não se suprime por decreto e não deixa de
expressar-se sob ordenamento hierárquico vertical dos que mandam e dos que
obedecem, do mesmo modo que a técnica do trabalho civilizado exige para alcançar
sua máxima perfeição que a sociedade seja um constructo hierárquico, “um espírito
para mil mãos” 51 , uma estrutura feita de diretores e executantes. A natureza dos
sujeitos e as exigências da obra objetiva, os sustentáculos do trabalho e o
cumprimento de suas finalidades, coincidem na necessidade de uma organização de
dirigentes e subordinados, que a causalidade e a teleologia igualmente exigem. Eis a
demonstração decidida e decisiva de seu caráter justo e indispensável.

49
Ponto que marca o início de uma ação. (NT)
50
Ponto que determina o fim de uma ação. (NT)
51
“Basta um espírito para mil mãos!”, palavras de Fausto, no final da Segunda parte do drama epônimo
de Goethe. (NT)
Georg Simmel | 259

No entanto, é certo que, na evolução histórica da sociedade, aparecem indícios


esporádicos de uma forma social compatível com a existência da subordinação e
com os valores da liberdade em nome dos quais o socialismo e o anarquismo
desejam a supressão de toda subordinação. O motivo que anima as aspirações
socialistas reside exclusivamente nos sentimentos dos sujeitos, na consciência da
indignidade e a opressão, no sentimento de humilhação resultante do rebaixamento
aos degraus sociais inferiores, e da correlata percepção da arrogância de certas
pessoas cuja posição exteriormente dominante exacerba a consciência que eles têm
de si mesmos. Todavia, se houvesse alguma organização da sociedade capaz de
evitar estas consequências psicológicas da desigualdade social, essa diferença
continuaria subsistindo sem inconvenientes. Uma coisa que se esquece amiúde é o
fato de que o socialismo é basicamente uma técnica, um meio para produzir certas
reações subjetivas, pois em última instância ele se dirige aos homens e ao
sentimento vital que busca suscitar. É verdade que, dado o modo de ser de nossa
alma, o meio se confunde com o fim e, por conseguinte, a organização racional da
sociedade e a supressão do mando e da sujeição aparecem como valores que se
justificam por si mesmos e exigem serem realizados sem consideração alguma
àqueles fins eudemonistas pessoais. Porém, é nos fins eudemonistas que reside a
força psicológica que o socialismo confere ao movimento histórico. Só que, como
simples meio que é, está sujeito ao destino de todos os meios de não ser o único.
Assim como diversas causas podem produzir o mesmo efeito, também o mesmo fim
pode ser alcançado por meios diferentes. O socialismo, sendo uma organização que
depende da vontade do homem, representa apenas a primeira proposição para que
sejam suprimidas aquelas proposições eudomonísticas que nascem da
desigualdade histórica – o que deixa essa doutrina tão intimamente associada à
aspiração da dita supressão que parece solidária dela. Contudo, se fosse possível
desfazer a associação estreita com que se nos apresenta a subordinação a um
superior com o sentimento de humilhação pessoal e de opressão, não existiria
nenhum motivo lógico para que o sentimento, definitivo e decisivo, de uma vida digna
e autônoma seja associado exclusivamente ao socialismo. Talvez se consiga essa
dissociação acrescentando a independência psicológica entre o sentimento
individual da vida e a atividade externa em geral, ou a posição que cada um ocupa na
260 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

vida ativa. Pode-se pensar que, ao longo do processo civilizatório, a atividade


produtiva se tornará cada vez mais técnica, perdendo sua influência sobre a
intimidade e a personalidade do homem.
De fato, achamos que a tendência a essa separação constitui o tipo
sociológico de muitas evoluções. Enquanto, no princípio, a pessoa e a tarefa
cumprida estavam intimamente unidas, agora a divisão do trabalho e a fabricação de
produtos destinados ao mercado (quer dizer, para consumidores completamente
desconhecidos e indiferentes) permite que a pessoa se desinteresse cada vez mais
do trabalho, refugiando-se em si mesma. Nesse novo estágio, ainda que a obediência
exigida pretenda ser incondicional, pelo menos não penetra na esfera profunda
(decisiva para o sentimento vital e para o valor da pessoa) porque não é mais que
uma necessidade técnica, uma forma de organização, que permanece confinada no
campo limitado das coisas externas, como o próprio trabalho manual. Essa
diferenciação entre os elementos objetivos e subjetivos da vida (distinção graças à
qual se conserva a subordinação em seu sentido técnico e organizativo, mas se
rejeita suas consequências deprimentes para a vida pessoal e íntima) não é,
naturalmente, uma panaceia contra todas as dificuldades e dores da dominação e da
obediência em todas as esferas. Nesse sentido ela só é a expressão, em princípio, de
uma tendência que age muito parcialmente e que não chega nunca em realidade a
produzir um efeito total, completo. Um dos exemplos mais acabados dessa
tendência é o serviço militar nas forças armadas de nossos dias. Um homem
intelectual e socialmente superior pode submeter-se a um sargento e suportar um
tratamento que, se realmente alcançasse seu eu e seu sentimento da honra levá-lo-
ia às reações mais desesperadas. Todavia, a consciência de ter que curvar-se (como
um membro impessoal do organismo militar e não como pessoa individual) a uma
disciplina exigida pela técnica objetiva, impede que se produza – pelo menos em
muitos casos – esse sentimento de humilhação e opressão. No domínio econômico,
a passagem do trabalho pago à tarefa ao trabalho realizado com meios mecânicos,
e do salário pago em natureza (comida, alimentação, habitação, produtos da
exploração) ao salário pago em dinheiro vivo favoreceu essa objetivação da relação
de dominação e subordinação, por oposição ao estatuto medieval de vigilância e
Georg Simmel | 261

domínio entre mestre e oficial que alcançava toda a vida do dependente e excedia
amplamente a prerrogativa exigida pela relação de trabalho.
À mesma finalidade poderia servir outro tipo importante de formação
sociológica. Como é sabido, Proudhon quer abolir toda relação de subordinação.
Para isso defende a supressão de todas as instituições dirigentes que se
diferenciaram como sustentáculo das energias sociais, por conta da ação recíproca
dos indivíduos. Instituições que ele quer substituir pela ação mútua imediata entre
indivíduos livremente coordenados, novo fundamento de toda ordem e cooperação.
Mas talvez seja possível conseguir essa coordenação conservando a relação de
subordinação, contanto que ela seja recíproca. Estamos falando de uma constituição
ideal, na qual A determinaria B em certo sentido ou em certo tempo e, em
compensação, seria seu subordinado em outro sentido ou em outro tempo. Dessa
maneira, o valor organizativo das relações hierárquicas de subordinação se
conservaria, desaparecendo o que elas têm de opressão, parcialidade e injustiça. De
fato, existe um número imenso de manifestações em que a vida social se realiza
desta forma típica, ainda que apenas de uma maneira embrionária, fragmentária ou
oculta. Exemplos dela, em um círculo restrito, são as cooperativas operárias de
produção, onde os operários elegem um chefe de oficina. Enquanto os operários
estão subordinados ao chefe no aspecto técnico, são superiores a ele no que tange
à direção geral e resultados da empresa. Todos os grupos cujo chefe muda, por
eleições ou por revezamento rigoroso – por exemplo, os presidentes de associações
de amigos ou de pessoas que compartilham determinados aspectos de sua atividade
presente ou passada – transpõem a combinação de superioridade e subordinação,
mudando-a de simultânea em alternativa para conseguir as vantagens técnicas da
subordinação sem seus problemas pessoais. Todas as democracias radicais limitam
a duração do mandato de seus magistrados para conseguir isso. É uma das maneiras
de realizar, tanto quanto possível, o ideal de que todos e cada um cheguem um dia
ao poder. Daí provém também a frequente proibição da reeleição. Por sua vez, a
coexistência da dominação e da subordinação é uma das formas mais enérgicas de
ação recíproca. E quando está equitativamente distribuída nas diversas esferas, pode
significar um vínculo muito forte entre os indivíduos nem que seja pela intimidade de
suas mútuas relações.
262 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Stirner resume o constitucionalismo moderno nestes termos: “os ministros


dominam o seu senhor, o príncipe, assim como os deputados dominam ao seu, o
povo”. Correlação que também parece existir no parlamentarismo, em um sentido
ainda mais profundo, se é possível. Por sua vez, a jurisprudência moderna classifica
as relações jurídicas em relações de igualdade e de subordinação. Com frequência
as relações de igualdade também podem ser consideradas relações de dominação e
subordinação, só que realizadas em ação recíproca. A igualdade de dois cidadãos
pode significar que nenhum deles tem privilégio ou vantagem sobre o outro. Mas,
desde o momento em que cada um deles elege um deputado que, por sua vez,
participa na elaboração de leis que se aplicam também ao outro, surge uma relação
de dominação e de subordinação recíprocas, na qual se expressa a igualdade de
posição de ambos. De uma maneira geral, pensamos que essa forma tem uma
importância decisiva para as questões constitucionais, como foi reconhecido já pelo
próprio Aristóteles ao distinguir entre a participação de direito no poder político e a
participação no exercício desse poder. O fato de que um cidadão, contrariamente a
um não-cidadão, seja um sustentáculo do poder político não quer dizer que dentro
da organização política faça outra coisa que limitar-se (sempre) a obedecer. No que
tange à defesa militar dos cidadãos, um indivíduo que, por ser proprietário, pode
figurar entre os oligoi (os poucos), pode pertencer ao demos (povo) no concernente
ao exercício do poder publico, na medida em que seu patrimônio (mesmo de certa
importância) não seja suficiente para poder ser eleito para determinadas funções, e
deva conformar-se em ser parte da ekklésia (comunidade). De tal forma que, um
Estado oligárquico segundo o critério de organização da defesa militar dos cidadãos,
poderia ser uma democracia levando-se em conta o princípio de eleição dos cargos
públicos. Nesse caso o magistrado está submetido ao poder político geral, cujos
sustentáculos, por sua vez, estão submetidos ao magistrado na organização prática.
Tem-se expressado esta situação de maneira mais refinada, mas também mais
genérica, opondo o povo como objeto do imperium ao indivíduo como membro da
mesma posição que todos os outros, sendo o indivíduo no primeiro caso um objeto
de dever, e no segundo um sujeito de direito.
Essa diferenciação se acentua mais, ao mesmo tempo em que a reciprocidade
das relações de dominação e subordinação reforça a unidade da vida do grupo, se
Georg Simmel | 263

prestamos atenção a certos conteúdos referidos por esta forma. Sem desconhecer
o paradoxo que a questão envolve, observa-se que a força das democracias consiste
em que todos são servidores justamente naqueles assuntos em que são mais
competentes, quer dizer, nas questões profissionais, em que devem obedecer aos
desejos dos consumidores ou às instruções do patrão ou de outros dirigentes,
enquanto todos se comportam como senhores nos assuntos de interesse geral ou
político da comunidade, acerca dos quais carecem de qualquer conhecimento
especial distinto do que possuem também os demais. Quando aquele que exerce o
poder em última instância possui também a maior competência, resulta inevitável a
opressão absoluta de todos os subalternos; por isso, se na democracia a maioria
numérica concentrasse saber e poder, sua tirania seria tão nefasta como a da pior
autocracia. Para evitar, pois, essa clivagem entre os de cima e os de baixo e preservar
a unidade do conjunto, seria necessária uma singular limitação em virtude da qual o
poder supremo fosse confiado àqueles que seriam subalternos em referência aos
conhecimentos objetivos.
Esta mesma alternância de dominação e subordinação entremeada pelas
mesmas potências foi a base na qual se assentou a ideia de Estado que nasceu da
fusão entre a constituição do Parlamento e a da Igreja, após da “Revolução Gloriosa”
na Inglaterra. O clero tinha uma profunda aversão ao regime parlamentar e
especialmente à sua reivindicada preeminência até em relação à classe clerical. A
paz se concluiu – pelo menos na sua grande parte – de tal sorte que a Igreja
Anglicana guardava uma jurisdição particular em matéria de casamentos e
testamentos, assim como na aplicação das penalidades para católicos e não
praticantes. Em troca dessa concessão esqueceu a sua doutrina da “obediência”
inquebrantável e reconheceu que a ordem divina não excluía uma ordem
parlamentar, a cujas disposições particulares estavam também sujeitos os clérigos.
No entanto, por sua vez, a Igreja dominava o Parlamento toda vez que para ingressar
nas duas câmaras era necessário prestar juramento, coisa que só os fieis da Igreja
de Estado podiam fazer sem empecilhos, os dissenters 52 depois de seguir um

52
Os dissenters ou dissidentes ingleses, também chamados de “não conformistas”, foram
reformadores que se opuseram à intervenção do Estado em questões religiosas e fundaram as suas
264 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

procedimento especial e de nenhuma maneira os das outras confissões. Ambas as


classes dirigentes, religiosa e laica, se articularam de tal modo, que doravante na
Câmara dos Lordes os arcebispos estavam acima dos duques e os bispos acima dos
lordes, mas todos os pastores se subordinavam ao patronato da classe dirigente
laica. Em compensação, confiou-se novamente aos párocos rurais a direção das
assembleias comunais. Essa foi a forma alternativa e recíproca que os poderes
opostos tiveram que adotar para restabelecer a Igreja de Estado no século XVIII e
conseguir uma organização unitária da vida inglesa.
Também a relação conjugal deve sua solidez interna e externa, pelo menos em
parte, ao fato de abranger um grande número de esferas ou áreas de interesse, em
algumas das quais domina um dos cônjuges e nas demais o outro. Surge assim um
entrosamento, uma convergência de opiniões, pensamentos e ideias que, porém, não
impede que exista na relação uma vivacidade que dificilmente outras formas
sociológicas podem atingir. A denominada “igualdade de direitos” do marido e da
mulher no casamento – fato efetivo ou mero voto piedoso – é na maioria dos casos
uma engrenagem de dominação e subordinação mútuas e recíprocas. Pelo menos,
desse modo poderia produzir-se (sobretudo se temos presente todas as sutis
relações da vida cotidiana, que não podem resumir-se em um princípio) uma relação
muito mais orgânica que se imperasse uma igualdade mecânica. E ainda por cima,
esse mecanismo de ajuste do conjunto de atividades e rotinas conjugais impede os
gestos episódicos de dominação aparecerem como determinações brutais. Essa
forma de relação constituiu igualmente um dos vínculos mais sólidos no exército de
Cromwell. O mesmo soldado que obedecia cegamente a seu superior nas questões
militares, era o pregador que admoestava o mesmo chefe na hora das preces. Um
cabo podia presidir o culto do qual tomava parte seu capitão ao mesmo título que os
demais soldados rasos, assim como o exército, que seguia incondicionalmente a
seus generais uma vez fixado determinado objetivo político, não deixava por isso de
tomar antes, de seu lado, resoluções de caráter político, às quais os chefes tinham
que se submeter. Esta alternativa de dominação e subordinação conferiu ao exército
puritano, enquanto ela durou, uma extraordinária solidez.

próprias comunidades. Dentre eles os mais conhecidos eram os baptistas, metodistas, presbiterianos,
quacres e congregacionais. (NT)
Georg Simmel | 265

Mas esse resultado favorável da forma de sociação que aqui estudamos


depende do claro deslinde da esfera onde um dos elementos sociais exerce o mando,
daquele domínio no qual o outro elemento é quem ordena. Se isso não sucede,
surgirão constantemente questões de competência, e o resultado não será então a
coesão, mas o enfraquecimento do coletivo. Em particular, a solidez do grupo será
posta à prova se, por acaso, uma pessoa habitualmente subordinada chegasse a
conquistar uma posição dominante na esfera em que era hierarquicamente inferior.
Em parte, pela nuance contestatória presente amiúde nesta situação, e em parte
também pela dificuldade em assumir uma posição dirigente que frequentemente
tolhe aquele que sempre esteve subordinado na mesma esfera. Assim, na época em
que a Espanha era uma potência mundial, seu exército enfrentou (nos Países Baixos,
por exemplo) revoltas periódicas. Apesar da feroz disciplina imposta, os terços
hispânicos, davam prova, por vezes, de uma irreprimível energia democrática. Com
intervalos quase previsíveis, os soldados se levantavam contra os oficiais, os
depunham, e escolhiam outros novos que ficavam sob a vigilância da tropa e não
podiam fazer nada que não fosse aprovado por seus subordinados.
Não é preciso esforço para demonstrar os inconvenientes de semelhantes
alternativas de dominação e subordinação na mesma esfera. Perigos similares se
escondem indiretamente na breve duração dos mandatos de numerosos cargos
públicos eletivos em diversas democracias. É verdade que assim se consegue que o
maior número possível de cidadãos ocupe alguma vez posições diretivas, mas isso
impede com frequência que se façam planos de longo prazo, que se empreendam
ações continuadas ou se imponham de maneira consequente medidas exigidas
pelas mudanças técnicas. Nas repúblicas da Antiguidade a rápida alternância não
era tão perigosa porque sua administração era simples e transparente e a maioria
dos cidadãos possuía os conhecimentos e a expertise necessários para
desempenhar funções. A mesma forma sociológica que colocou em evidência o
exercito espanhol em Flandres, surgiu, em circunstâncias muito díspares a começos
do século XVIII na Igreja episcopal norte-americana. Com efeito, as paróquias foram
acometidas então por uma febre inquisitorial que as levou a exercer um estrito
controle sobre seus pastores, que tinham sido engajados, precisamente, para zelar
pela moralidade das comunidades. Como consequência desse estado de inquietação
266 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nas paróquias, durante muito tempo na Virgínia os pastores foram engajados só por
um ano,
O mesmo fenômeno sociológico (ainda que algo modificado) se produz
também com similares características formais, no geral, nas hierarquias
burocráticas nas quais o chefe depende tecnicamente de seu subordinado. O alto
funcionário desconhece com frequência os detalhes técnicos ou a situação atual dos
assuntos de sua alçada. Contrariamente, o funcionário subalterno amiúde evolui
durante toda sua vida no mesmo círculo de problemas e adquire um conhecimento
especializado de seu estreito campo de incumbências, O chefe, porém, progride
rapidamente, mesmo ignorando detalhes, ao ocupar diversos postos, e apesar de
suas decisões pressupuserem o conhecimento desses pormenores. Já em Roma se
produziu uma situação deste tipo. Os cavalheiros e os senadores que gozavam do
privilégio de servir o Estado não adquiriam, todavia, nenhuma preparação teórica
prévia, esperando apenas que a prática lhes subministrasse os conhecimentos
necessários. Isso trouxe como consequência – desde os últimos tempos da
República – a dependência dos magistrados superiores de seu pessoal subalterno,
que não mudava constantemente e que por isso estava em condições de aprender
certo conhecimento rotineiro dos assuntos. Na Rússia, esse foi um fenômeno
constante que se viu favorecido especialmente pela maneira de preencher os cargos
públicos. As promoções funcionais se faziam segundo a posição hierárquica, mas
não limitadas a um ramo da administração. Aquele que tinha alcançado uma
categoria determinada podia ser transladado – à petição sua ou de seu superior –
com a mesma posição hierárquica, mas em uma administração completamente
distinta. Assim não era nada estranho que um estudante recém-formado se
convertesse em oficial do exército após seis meses de serviço no front, ao passo que
um oficial do exército podia obter no serviço civil qualquer posto de uma categoria
equivalente à sua patente. A consequência inevitável era amiúde a ignorância técnica
do funcionário superior, que se tornava assim dependente de seu subordinado mais
experiente e de suas competências. Como vemos, a reciprocidade das relações de
dominação e de subordinação faz frequentemente com que aquele que dirige
apareça como subordinado e com que aquele que efetivamente é um simples
executante se revele como o verdadeiro chefe. Coisa que pode prejudicar o bom
Georg Simmel | 267

andamento administrativo da organização tanto como uma alternativa


criteriosamente repartida de dominação e subordinação sociais pode favorecê-lo.
Além dessas formações específicas, a dominação aventa o seguinte problema
sociológico de caráter geral: por um lado a subordinação constitui uma forma da
organização objetiva da sociedade e, por outro lado, expressa as diferenças pessoais
qualitativas entre os homens. Que relações existem entre essas duas
determinações? De que maneira as diferenças influem nessas relações sobre a forma
de sociação?
No princípio da evolução da sociedade, o predomínio de uma pessoa sobre
outra devia ser a expressão adequada e sequente de sua superioridade pessoal. Em
uma situação social sem organização firme que indique a priori ao indivíduo a sua
posição, não há motivo algum para que uma pessoa submeta-se a outra se isso não
for determinado por violência, devoção, superioridade física ou espiritual, robustez
da vontade ou da sugestão, em resumo, pela relação de seu ser pessoal com outro.
Privados de qualquer espécie de conhecimento histórico acerca dos estágios iniciais
da sociação, pelo menos vamos ter de obedecer ao princípio metodológico que nos
manda estatuir a hipótese mais simples, a de uma situação aproximadamente
equilibrada. Com isso passa-se o mesmo que com as deduções cosmológicas. Dado
que não conhecemos o ponto inicial do processo cósmico, foi preciso partir do mais
simples possível, ou seja, da homogeneidade e equilíbrio dos elementos do mundo
para deduzir o começo das variedades e diferenciações. Por outro lado, não há
qualquer dúvida de que, se aqueles pressupostos se tomassem no seu sentido literal,
não poderia iniciar-se nenhum processo cósmico, uma vez que não existe neles
qualquer causa significativa de movimento e diferenciação. É, portanto, necessário
que no estágio inicial exista uma faculdade ou possibilidade diferenciada de agir nos
elementos, por mínima que seja, para possibilitar, a partir dela, as ulteriores
diferenciações. Da mesma maneira, na evolução das variedades sociais vemo-nos
obrigados a partir também do mais simples possível estado fictício, pois certamente
será preciso identificar na diversidade puramente pessoal das disposições
individuais o mínimo de variedade que se requer para que sirva de base a todas as
diferenciações posteriores. Por conseguinte, as diferenças exteriores dos homens,
268 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nas suas posições relativas, terão que ser deduzidas dessas qualidades individuais
diferentes.
Destarte, se exigia dos príncipes de épocas primitivas (ou se supõe que eles
tivessem) qualidades extraordinárias em grau e combinação. O rei grego dos tempos
heroicos não só devia ser corajoso, sábio e eloquente, mas também tinha que se
distinguir nos exercícios atléticos e, se possível, ser um excelente carpinteiro,
construtor de navios e lavrador. A situação do rei Davi dependia em grande parte,
como já observado, de ele ser ao mesmo tempo cantor e guerreiro, leigo e profeta e
possuir a capacidade necessária para fundir o poder político temporal com a
teocracia espiritual. Partindo dessa origem, dessas superioridades naturais (que,
naturalmente, seguem agindo em todo momento no bojo da sociedade e estão
constantemente criando novas relações) se desenvolveram organizações estáveis
de dominação e subordinação. Os indivíduos nascem já nelas ou adquirem suas
diversas posições em virtude de qualidades completamente distintas das que
originariamente tinham fundado as relações hierárquicas em questão.
A transição do predomínio subjetivo para uma forma e fixação objetiva se
produz pela extensão estritamente quantitativa da esfera de dominação na qual o
domínio se exerce. Dois motivos de fato opostos têm importância para determinar
essa relação (em todas as esferas) entre o aumento da quantidade crescente de
elementos e a maior objetividade das normas que se aplicam a eles. O aumento de
elementos supõe um aumento das particularidades qualitativas que os mesmos
apresentam. Isto torna também mais improvável que um elemento qualquer, dotado
de uma individualidade subjetiva, mantenha uma relação similar ou igualmente
suficiente com cada um dos outros elementos. À medida que crescem as diferencias
dentro do campo dos subordinados ou de aplicação das normas, a chefia ou a norma
terá que perder seu caráter individual e adotar um caráter geral que paire acima das
flutuações subjetivas. Por outra parte, esse mesmo alargamento do círculo conduz
à divisão do trabalho e à diferenciação de seus elementos dirigentes. Estes, em um
grupo grande, já não podem ser, como o rei grego, o guia e a medida de todos os
interesses essenciais. Pelo contrário, é necessária uma especialização variada e
uma distribuição profissional do governo. Mas a divisão do trabalho está sempre em
interação recíproca com a objetivação da conduta e das relações; ela situa a obra do
Georg Simmel | 269

indivíduo em um contexto situado fora de sua esfera, a pessoa se situa além de seu
labor parcial, cujos resultados, atualmente circunscritos de forma objetiva, só
formam um todo quando coincidem com os de outras pessoas. O campo de ação de
tais causas terá feito passar as relações de dominação nascidas por acaso e em
razão das pessoas a uma forma objetiva na qual não é mais o homem senão a
posição quem domina e ordena. O a priori da relação já não são os homens com suas
qualidades, das quais surge a relação social, mas as relações que não são mais que
formas objetivas, “posições”, uma sorte de espaços e de contornos vazios que devem
logo ser “preenchidos” pelos indivíduos,
Quanto mais sólida e tecnicamente elaborada a organização do grupo, mais
objetivos e formais serão os esquemas da subordinação. Para preenchê-los
procuraram-se as pessoas adequadas, a não ser que se prefira achá-las pelo puro e
simples acaso do nascimento ou de outras circunstâncias. E não nos referimos
unicamente à hierarquia das posições na vida pública. Nos setores em que a
economia monetária domina, ela engendra uma formação social análoga. A
possessão ou a carência de certa quantia em dinheiro determina uma posição social,
quase com completa independência das qualidades pessoais daquele que a ocupa.
O dinheiro tem levado ao cúmulo a distinção acima referida entre o homem como
pessoa e como executante de uma obra ou sustentáculo de um sentido singular. A
posse dessa quantia garante, a todo aquele que possa conquistá-la ou adquiri-la de
algum modo, um poder e uma posição que surge ou desaparece com o fato de ter
esse dinheiro, mas não com a pessoa e suas qualidades. Os homens passam pelas
posições que correspondem a determinadas somas de dinheiro, como material
indiferente que preenche, de modo puramente fortuito, formas fixas e permanentes.
Desnecessário se torna salientar, por outro lado, que a sociedade moderna não
apresenta sempre e constantemente essa discrepância entre a pessoa e sua
posição. Ao contrário, na maioria dos casos a distinção entre o conteúdo objetivo da
posição e a pessoa como tal, poderá até conferir certo grau de flexibilidade a sua
situação, graças ao qual a proporção adequada se realiza sobre novas bases, amiúde
mais racionais – sem contar com as enormes possibilidades que as ordenações
liberais oferecem para conquistar uma posição que corresponda às capacidades de
cada um. Mesmo se as capacidades de que tratamos sejam, às vezes, tão específicas
270 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que a superioridade conseguida em virtude delas não recai sobre a real valia das
pessoas. É justamente em certas formações médias, como as de classe e
agremiação, que aquela discrepância alcança, por vezes, sua máxima expressão.
Com razão salienta-se que o sistema da grande indústria oferece a um homem de
excepcionais dotes mais ocasiões que antes para tornar-se visível. É verdade
também que a relação numérica entre os supervisores ou encarregados das fábricas
e os operários é hoje mais baixa que há duzentos anos entre os pequenos mestres-
artesãos e os operários assalariados. Em compensação, o talento fora do comum
pode permitir evoluir com maior certeza para posições de liderança. Todavia, o que
importa aqui é apenas a invulgar oportunidade de que as capacidades da pessoa e
sua posição discrepem nas relações de subordinação, divergência produzida pela
objetivação das posições, isto é, pelo seu distanciamento dos aspectos puramente
pessoais da individualidade.
Apesar da energia com que o socialismo censura a relação fortuita e cega
entre a série objetiva e gradual das posições e o mérito pessoal, deve reconhecer-se
que a organização por ele preconizada desemboca em uma forma sociológica
análoga. Com efeito, ele exige uma constituição e uma administração absolutamente
centralizadas e, por conseguinte, estritamente articuladas e hierarquizadas, supondo
que todos os indivíduos estão a priori igualmente capacitados para ocupar qualquer
posto dessa hierarquia. No entanto, agindo assim, eleva à condição de proposição
elementar e fundamental – pelo menos em relação a um assunto – algo que na
organização atual lhe parece sem sentido. Pois o fato de que, em estrita lógica
democrática, os subordinados elejam seus dirigentes, não oferece qualquer garantia
contra a natureza aleatória da relação entre a pessoa e sua posição; não só porque
para escolher a pessoa mais competente é preciso ser competente também, mas
porque o princípio da eleição pela base social produz em todos os círculos mais
vastos resultados absolutamente fortuitos. A única exceção à regra são os votos por
um partido. No entanto, nesses sufrágios eliminou-se o fator em relação ao qual
temos aventado aqui a questão de saber se as eleições produzem resultados
racionais ou casuais: o voto por um partido, enquanto tal, não recai, com efeito, sobre
um indivíduo porque ele possui determinadas qualidades, mas porque – extremando
as coisas – ele é o representante anônimo de certo princípio objetivo. Para ser
Georg Simmel | 271

consequente, o socialismo teria que recorrer ao sorteio para preencher os cargos e


designar os chefes. Muito mais que o rodízio ou revezamento alternativo nessas
funções (difícil de ser convenientemente aplicado no contexto de um grupo extenso)
o sorteio expressa o direito ideal de cada um. Escolha que, porém, não é democrática
em si. Não só porque pode aplicar-se também sob um governo aristocrático, nem,
porque como se trata de um princípio puramente formal, está além dessas objeções,
mas sobretudo porque a democracia significa a colaboração efetiva de todos,
enquanto que a adjudicação das posições dirigentes por sorteio faz dela uma
colaboração ideal, transformada no direito apenas potencial de todo indivíduo a
ocupar uma posição elevada. O princípio do sorteio corta toda relação entre o homem
e sua posição; com ele, a organização formal exigida pela relação de dominação e
subordinação prevalece completamente sobre as qualidades pessoais que estavam
na sua origem.
O problema da relação entre o predomínio pessoal e o predomínio fundado
exclusivamente na posição permite distinguir entre dois importantes pensamentos
da forma sociológica. Considerando a desigualdade efetiva entre as capacidades dos
homens – realidade que só o pensamento utópico pode ignorar – o “governo dos
melhores” é a constituição que mais bem expressa exteriormente a relação interna e
ideal entre os homens. Eis talvez a razão mais profunda pela qual os artistas têm
frequentemente sentimentos aristocráticos, pois toda arte repousa no pressuposto
de que o sentido profundo das coisas se revela acabadamente em sua manifestação
externa, desde que saibamos vê-la de um modo exato e completo. A separação do
mundo e seus valores, entre o fenômeno e sua significação, é o que há de mais
contrário ao sentir artístico – mesmo que o artista deva também transformar o dado
imediato, a fim de extrair sua forma verdadeira além da pura acidentalidade, forma
que designará ao mesmo tempo seu sentido espiritual e metafísico. A relação
psicológica e histórica entre a concepção artística da vida e a concepção
aristocrática deve atribuir-se, em parte pelo menos, à ideia de que só uma ordem
aristocrática confere às relações de valor próprias dos homens uma forma visível
que é, por assim dizer, seu símbolo estético.
Todavia, essa aristocracia em estado puro, tal como Platão a imaginou, como
governo dos melhores, não pode ser concretizada na realidade. Em primeiro lugar
272 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

porque até agora não se tem descoberto nenhum procedimento que permita
identificar com certeza “os melhores” e adjudicar-lhes o seu devido lugar. Nem o
método a priori de educação para formar uma casta de chefes, nem o método a
posteriori de seleção natural pela livre concorrência com vistas a superar o outro,
nem o método de certa forma intermédio de escolha das pessoas pelas massas ou
as elites não deram bons resultados. Em segundo lugar, porque raras vezes os
homens se resignam a acatar a superioridade, nem sequer a dos melhores dentre
eles, pois não gostam de reconhecer primazia alguma, pelo menos se eles não têm
parte nela. Por acréscimo, o poder (mesmo aquele que originariamente foi adquirido
com fumus boni juris53) frequentemente corrompe: nem sempre talvez o indivíduo, é
verdade, mas quase sempre os corpos e classes sociais. Resulta compreensível
assim a opinião de Aristóteles quando afirmava que, se ainda desde um ponto de
vista abstrato, o indivíduo ou espécie que superem em areté (virtude) os demais
merecem o domínio absoluto sobre todos eles, seria recomendável preconizar,
atendendo às conveniências práticas, uma mistura desse poder com aquele outro da
massa, para que o predomínio numérico da grande maioria colabore com a
superioridade qualitativa da elite virtuosa. No entanto, mesmo atendendo a essa
proposição moderadora, as dificuldades indicadas, inerentes ao “governo dos
melhores”, podem induzir considerar resignadamente a igualdade geral como a regra
prática que represente o mal menor em face das desvantagens de fato da
aristocracia dos virtuosos (único regime logicamente justificado). Pretexta-se em
favor dessa igualdade universal que, como finalmente é impossível expressar as
diferenças subjetivas nas relações objetivas de dominação de maneira segura e
constante, é preferível eliminá-las da determinação da estrutura social, e regular esta
como se tais diferenças não existissem.
Todavia, dado que a questão do mal maior ou menor só se resolve geralmente
em virtude de estimações pessoais, esse mesmo pessimismo pode conduzir a uma
conclusão diametralmente oposta, como é a de que nos círculos (grandes ou
pequenos) a questão é que alguém governe, sendo preferível a chefia de pessoas não
qualificadas à ausência de qualquer governo. Admite-se, assim. que o grupo social,

53
Fumus boni juris é uma expressão latina que significa “aparência de bom direito”. (NT)
Georg Simmel | 273

em virtude de uma necessidade interna e objetiva, tem que aceitar a forma das
relações de dominação e subordinação, tanto e tão bem que talvez não seja mais do
que um feliz acaso uma posição ser determinada a priori por uma necessidade
objetiva e ocupada por um indivíduo subjetivamente satisfatório.
Tal tendência formal parte de experiências e necessidades absolutamente
primitivas. Em primeiro lugar, acredita que a forma de dominação significa ou cria
um vínculo. Em coletividades rudimentares, que não dispunham de múltiplas formas
de ação recíproca, não existia outro meio para afirmar pertença formal a essa
totalidade que a subordinação dos indivíduos sem vínculo imediato com ela, aos
membros que a priori tinham essa pertença. Quando deixou de vigorar na Alemanha
a constituição primitiva, que reconhecia a plena igualdade pessoal e patrimonial
dentro da comunidade, o homem que não dispunha de terra carecia igualmente de
direito efetivo à liberdade, razão pela qual tinha que vincular-se a um senhor para
não cortar todos os laços que lhe uniam à comunidade e poder participar
indiretamente como protegido nas corporações públicas. A coletividade tinha
interesse nesse arranjo, pois não podia tolerar em seu território nenhum homem sem
vinculo. Por isso o direito anglo-saxão obrigava expressamente quem não possuísse
terras a procurar um senhor e prestar vassalagem, Da mesma maneira, na Inglaterra
medieval, o interesse da comunidade exigia que o estrangeiro se submetesse a um
senhor que devia protegê-lo. Pertencia-se, pois, ao grupo quando de posse de uma
parte de suas terras. Quem não tinha terras e, desejava unir-se ao grupo, tinha de
pertencer a alguém que, por sua vez, estivesse vinculado ao círculo pela relação
primária da propriedade fundiária.
A importância geral das pessoas dirigentes, apesar da indiferença relativa de
suas qualidades ingênitas, se repete com semelhança formal em várias
manifestações precoces do princípio eleitoral. Assim, por exemplo, as eleições para
o parlamento medieval inglês parecem ter sido conduzidas e acompanhadas com
negligência e indiferença espantosas. Ao que tudo indica, o importante era que o
distrito tivesse um representante no Parlamento. Quem poderia ser essa pessoa, em
compensação, era muito menos digno de atenção. Isso se manifestava também na
indiferença a respeito da qualificação dos eleitores, que nos admira frequentemente
na Idade Média. Vota quem estiver presente no momento, sem que a legitimação do
274 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

eleitor nem a existência de certo número de votantes tenha então grande valor.
Evidentemente, a indiferença a respeito do corpo eleitoral é sintoma da falta de
interesse no resultado do escrutínio e nas qualidades pessoais dos eleitos.
Finalmente, o convencimento de que a coação é necessária age no mesmo
sentido, supondo que a natureza humana requer algum tipo de violência física ou
moral imposta por alguém, para não cair em uma atividade desprovida por completo
de forma e propósito. Para o caráter geral deste postulado, é absolutamente
indiferente que a subordinação exigida seja a uma pessoa e seu arbítrio ou a uma lei.
Prescindindo de certos casos extremos nos quais não se pode invocar o valor da
subordinação como forma de assegurar o cumprimento de um conteúdo absurdo, a
excelência ou insuficiência de uma lei apenas têm um interesse secundário, como
sucede com as qualidades da pessoa que exerce o poder. Nesse sentido, se poderiam
invocar os efeitos do despotismo hereditário – que independem até certo ponto das
qualidades da pessoa –, em particular quando se trata da unidade política e cultural
de grandes territórios, onde essa forma arbitrária e absoluta de governo tem sobre a
federação o mesmo tipo de vantagem que o casamento tem sobre o amor livre.
Ninguém pode negar que a coação do direito e do costume mantém unidos
numerosos casais que moralmente deveriam separar-se. O que ocorre é que as
pessoas se submetem aqui a uma lei que simplesmente não se adéqua a seu caso.
Mas em outras circunstâncias, a mesma coação, por dura que subjetivamente seja
no momento, tem um valor insubstituível, porque permite manter unidos os que,
apesar de que moralmente deveriam continuar juntos, se teriam separado por um
desgosto, aborrecimento ou comportamento precipitado, destruindo
irreparavelmente suas vidas. Não importa que a lei do casamento seja boa ou má
como conteúdo; se adapte ou não ao caso em apreço, o mero constrangimento que
dela decorre ao impor o convívio, desenvolve valores individuais eudemonísticos e
éticos – para não mencionar a conveniência social – segundo o critério pessimista
que aqui se expõe (e que talvez seja parcial), que não poderiam produzir-se de
nenhuma maneira se aquele constrangimento desaparecesse. Em alguns casos, a
simples consciência do caráter obrigatório da união com o outro pode, com certeza,
tornar a convivência insuportável, mas em outros, porém, pode haver anuência aos
sentimentos ou às vontades do outro, domínio de si mesmo, e até um aprimoramento
Georg Simmel | 275

da alma ao que ninguém se sentiria propenso se pudesse dissolver o vínculo, e que


só provêm do desejo de fazer tão aceitável quanto possível um convívio inevitável.
A consciência de estar sendo coagido, submetido a uma instância superior – a
uma lei ideal ou social, a uma pessoa que dispõe arbitrariamente ou a um
administrador de normas reputadas fundamentais – poderá incitar a rebeldia ou
anular por completo toda manifestação de insubmissão. No entanto, para a maioria
dos seres humanos constitui um apoio e uma força de coesão insubstituíveis tanto
para a vida interior como para a vida no mundo. Nossa alma – empregando uma
expressão simbólica que nenhuma psicologia pode evitar – parece viver em dois
planos. Um deles é o plano profundo, difícil ou impossível de mexer e no qual reside
o verdadeiro sentido ou substância de nossa existência, enquanto o outro está
formado pelos impulsos momentâneos e por estímulos isolados. Ora, esse segundo
plano alcançaria (em mais vezes do que sucede de fato) a vitória sobre o plano
profundo, pela aglomeração e rápida sucessão dos elementos, sem deixar ao
primeiro plano nenhuma brecha para assomar à superfície, se o sentimento de uma
coação procedente de alguma parte não acalmasse as ondas dos estímulos
momentâneos, pondo termo a suas vacilações e caprichos, devolvendo à corrente
permanente de fundo seu lugar e preponderância. Em face desse sentido funcional
da coação, seu conteúdo particular tem apenas uma importância secundária. O
conteúdo absurdo pode ser substituído por outro justificado, mas mesmo este, a
nosso ver, só deverá seu sentido ao que tem de comum com aquele. E tem mais: não
só tolerar a coação, mas também se opor a ela resulta capital, pois a luta tanto contra
o injusto constrangimento como contra o justificado, exerce sobre o ritmo de nossa
vida mundana a função de inibir e interromper, graças à qual as correntes profundas
de nossa vida, que não podem ser interrompidas, chegam à consciência e agem
sobre ela. Ora, na medida em que a coação é idêntica a qualquer outro tipo de
dominação, vemos também nela um elemento indiferente à qualidade de quem
domina, ao direito que tenha sua individualidade a dominar, revelando o sentido mais
profundo de toda afirmação de autoridade.
É, em princípio, impossível que as qualidades pessoais e a posição social se
correspondam totalmente na série hierárquica das dominações e subordinações,
qualquer que seja a organização que se proponha para esse propósito. Coisa que se
276 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

funda no fato de que o número dos homens qualificados para ocupar cargos
superiores é maior que a quantidade desses cargos. Seguramente em uma fábrica
há muitos operários perfeitamente capazes de ser supervisor ou patrão, assim como
há muitos soldados com condições de ser oficiais. Dos milhões de súditos de um
príncipe, um grande número poderia ser tão bom ou melhor que ele. A ideia do reinado
“pela graça de Deus”, expressa justamente o fato de que não são as qualidades
subjetivas que permitem decidir, mas outra instância que se alça acima dos critérios
humanos.
O contraste entre os que chegam a ocupar uma posição dirigente e o número
de qualificados para ocupá-la não deveria, porém, levar ao extremo de acreditar que,
ao contrário, há muitas pessoas ocupando as posições superiores sem ter
qualificação para isso. Por uma série de razões, esse tipo de desproporção entre
pessoa e posição aparece-nos bastante maior do que ela é em realidade. Em primeiro
lugar, a incapacidade para desempenhar um cargo diretivo é fácil de perceber, já que,
por razões obvias, é mais difícil de dissimular que outras incompetências humanas.
Isso sucede em particular porque há em posições subalternas muitos indivíduos
capacitados para desempenhar um cargo diretivo. Essa inadequação se deve
frequentemente, mais às exigências contraditórias da função do que às deficiências
pessoais do titular, a quem, todavia, se atribuirá seu resultado inevitável, como se
fosse uma culpa subjetiva. O conceito moderno de “governo do Estado”, por exemplo,
confere a quem ocupa um cargo diretivo uma infalibilidade que é a expressão de sua
absoluta objetividade de princípio. Naturalmente, comparados a essa infalibilidade
ideal, os funcionários concretos parecem amiúde imperfeitos.
Porém, as insuficiências estritamente individuais dos dirigentes são
relativamente raras. Se tivermos em conta as circunstâncias aleatórias, arbitrárias e
absurdas graças às quais as pessoas ocupam suas posições em todas as esferas,
seria um milagre incompreensível que não aparecessem muitos mais incapazes de
exercer suas funções, se não existissem em bom número as qualificações latentes
para esses cargos. Foi nessa hipótese que se basearam algumas constituições
republicanas quando se limitaram a exigir para a nomeação dos magistrados o
cumprimento de certas condições negativas, por exemplo, que o candidato não se
tivesse tornado indigno por alguma razão. Assim em Atenas, quando as nomeações
Georg Simmel | 277

se realizavam por sorteio, cuidava-se apenas de que o designado tivesse tratado


bem a seus pais, pagasse seus impostos, etc. Pesquisava-se, pois, somente se
existia algo contra a nomeação porque se suponha que a priori todos eram dignos
dela. Eis o sentido profundo do ditado: “a quem Deus lhe dá um cargo também lhe dá
o entendimento necessário para desempenhá-lo”. Pois se é verdade que o
“entendimento” indispensável para ocupar posições elevadas está presente em
muitos homens, ele não se confirma, nem se desenvolve ou manifesta até que as
ditas pessoas exerçam as funções em questão.
A incomensurabilidade entre a quantidade das qualificações para mandar e o
número de cargos proeminentes, se explica talvez pela diferença entre o caráter dos
homens como seres que vivem em grupo e como indivíduos. O grupo, tem um nível
baixo e necessita direção. As qualidades que ele desenvolve como puramente
coletivas são ou bem as herdadas, isto é, as mais primitivas e indiferenciadas, ou
bem aquelas que são mais fáceis de inculcar, quer dizer as “subalternas”. A partir do
momento que um grupo se constitui e adquire determinada dimensão, é conveniente
que a massa por inteiro se organize na forma da submissão a uns poucos. Todavia
isso não impede, evidentemente, que cada indivíduo dessa massa possua qualidades
mais elevadas e refinadas. O que acontece é que essas qualidades são individuais,
ultrapassam em vários aspectos o patrimônio coletivo e não compensam o baixo
nível das qualidades em que todos coincidem. Daí resulta que, por uma parte, o grupo
em conjunto precisa de um chefe e, por consequência, que há muitos subordinados
e poucos dirigentes. Por outra parte, cada um dos indivíduos tem qualidades mais
elevadas que como elemento do grupo e, portanto como subordinado.
O princípio das classes sociais e a ordem atual são compatíveis com essa
contradição própria a todas as formações sociais que opõem a reivindicação
legítima de uma posição dominante e a impossibilidade técnica de exercê-la,
dispondo as classes em forma de pirâmide, com um número cada vez menor de
membros à medida que nos aproximamos do cume, e limitando a priori a quantidade
dos “qualificados”. A seleção não ocorre em função dos indivíduos dados, mas
pressupõe que eles existem. Em uma multidão de iguais, não se pode outorgar a
todos a posição merecida. Por isso, aquelas estratificações hierárquico-piramidais
podem ser consideradas uma tentativa de produzir e educar, a partir de posições
278 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

definidas de antemão, os indivíduos necessários para preenchê-las. Os grupos, no


entanto, em vez de confiar no lento resultado da hereditariedade e a educação de
classe, podem recorrer a procedimentos mais radicais, que deem às pessoas a
capacidade de dirigir e governar, prescindindo de sua condição anterior, por uma
decisão autoritária ou mística. Para os Estados tutelares dos séculos XVII e XVIII, o
súdito era incapaz de participar na gestão da coisa pública; e precisava ser
constantemente guiado desde o ponto de vista político. Mas, no momento em que
entrava ao serviço do príncipe adquiria de repente a visão política e o senso comum
que o tornavam apto a dirigir os outros; como se, por seu ingresso na burocracia do
Estado, o menor de idade atingisse por generatio aequivoca54 não só a maioridade,
mas também à condição de chefe com todas as necessárias capacidades de
intelecto e caráter. A oposição entre o estado de incapacidade absoluta a priori de
todos para ocupar determinada posição elevada, e o estado de plena qualificação
– posteriormente adquirido mediante a ação de uma instância superior – alcança o
máximo de sua tensão no sacerdócio católico. O múnus sacerdotal não é confiado
ao candidato porque somente ele, por tradição familial, educação desde a infância
ou até por sua natureza pessoal seja adequado a seu exercício (naturalmente, essas
considerações também colaboram, determinando certa seleção entre os aspirantes),
nem porque se pense que ele pode por acaso ser um eleito. Isso não tem
absolutamente nenhuma importância em relação ao espírito de objetividade mística
que lhe confere a ordenação sacerdotal. Com efeito, ela transmite o espírito, e a
ordenação cria a qualificação particular para a função de que o indivíduo se investe.
Deus concede àquele que ele chama a uma função o entendimento que esta exige.
Esse princípio se aplica aqui da maneira mais radical em seus dois aspectos: da
anterior incapacidade e da posterior capacidade criada precisamente para
desempenhar a função.

54
Geração espontânea. (NT)
IV. O conflito

Ninguém tem questionado, a princípio, a importância sociológica do conflito,


dado que ele suscita ou modifica comunidades de interesses, uniões ou
organizações. Em compensação, a opinião comum pode achar paradoxal a pretensão
de que o conflito seja em si mesmo uma forma de sociação, independentemente de
suas consequências. À primeira vista, parece tratar-se de uma mera questão retórica.
Se toda ação recíproca entre os homens é uma sociação, o conflito, uma das ações
recíprocas mais características, a ponto de ser logicamente impossível limitá-la a um
indivíduo só, constitui necessariamente uma sociação. De fato, os elementos
propriamente dissociadores são as causas do conflito: o ódio e a inveja, a miséria e
a cobiça. Uma vez que essas motivações deflagram o conflito, ele é um remédio
contra o dualismo dissociador, uma via para chegar de alguma maneira à unidade,
nem que seja pelo aniquilamento de uma das partes – um pouco como os sintomas
mais violentos de uma doença representam os esforços do organismo para livrar-se
das perturbações e dores que lhe afligem. Isso não significa cair na trivialidade do si
vis pacem para belum1, mas trazer à baila o princípio geral do qual a circunstância
evocada pelo provérbio latino representa um caso particular. O conflito, em si mesmo,
é a resolução das tensões entre as forças adversárias. O fato de desembocar na paz
não é mais do que uma evidência – entre muitas outras – de que o conflito é uma
síntese de elementos, uma contraposição que integra, com a transação, um único
conceito superior. Tal conceito se define pela oposição comum a duas formas de
relação contra a simples indiferença mútua dos elementos. Rejeitar ou suprimir a
sociação são também negações, mas é precisamente diferenciando-se delas que o
conflito significa o momento positivo que tece com seu caráter de negação uma
unidade impossível de desfazer na prática, ainda que possa sê-lo conceitualmente.
Olhadas desde o ponto de vista da positividade sociológica do conflito, todas
as formas sociais adquirem uma ordem particular. Pode-se ver logo que, se as
relações dos homens entre si são objeto de uma consideração particular – pondo de

1
Provérbio atribuído ao autor latino do quarto século da Era Cristã Flávio Vegécio, que pode ser
traduzido como: "se quer paz, prepare-se para a guerra" (geralmente interpretado como querendo dizer
que a paz só pode ser obtida desde uma posição de força). (NT)
280 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

lado o que cada um é em si mesmo ou em relação com os objetos –, os temas


tradicionais da sociologia somente constituem uma subdivisão dessa ciência larga,
verdadeiramente determinada por um princípio. Pareceria que a ciência do homem
não pudesse ter mais do que dois objetos unitários possíveis: a unidade do indivíduo
e a unidade formada pelos indivíduos, quer dizer, a sociedade; como se um terceiro
objeto estivesse logicamente excluído. Não haveria, então, um lugar para estudar o
conflito como tal, prescindindo das contribuições que lhe cabem nas formas
imediatas de unidade social. Trata-se de um fato sui generis, pelo qual subordiná-lo
ao conceito de unidade seria tão forçado como vão, já que o conflito significa, ao
contrário, a negação da unidade.
Todavia, em um sentido mais amplo, a teoria das relações entre os homens
parece distinguir as relações que são constitutivas de uma unidade, isto é, as
relações sociais em sentido estrito, das outras, que agem contra a unidade. Há que
ter em conta, porém, que em toda relação histórica real ambas as categorias
participam. Para que o indivíduo alcance a unidade de sua personalidade, não basta
que seus conteúdos (o conjunto de seus padrões de sentir, pensar e agir)
harmonizem totalmente segundo as normas lógicas e objetivas, religiosas ou éticas,
pois a contradição e o conflito não só precedem esta unidade, mas continuam agindo
em todos os momentos de sua vida. Analogamente, não existe unidade social em que
os movimentos convergentes dos elementos não estejam intimamente associados
com outros divergentes. Um grupo absolutamente centrípeto e harmônico, uma pura
e simples “reunião”, não só seria empiricamente irreal, mas também não se daria nele
nenhum processo vital que mereça esse nome. A sociedade dos santos que Dante
contempla na Rosa do Paraíso pode comportar-se assim, mas ela é incapaz de toda
mudança ou evolução 2 . Já a santa assembleia dos Pais da Igreja, na Disputa de
Rafael3, ainda sem ser um verdadeiro conflito, revela uma considerável diversidade

2
No Paraíso da Divina Comédia, Dante ascende a uma região além da existência física chamada
Empíreo, reserva de Deus e dos eleitos, que se revela em seu duplo aspecto: primeiro rio de chamas,
depois Rosa imensa e imensurável, cujas pétalas são os bancos destinados aos santos (a Rosa
Mística). (NT)
3
A Disputa do Sacramento é um afresco de Rafael Sanzio. Foi pintado em 1509 e decora a Sala da
Assinatura do Palácio Apostólico do Vaticano. Na parte superior está representada a “Igreja
triunfante”. Na parte inferior está a “Igreja militante”, constituída por teólogos, doutores e Papas, assim
como filantropos e literatos, que se situam em ambos os lados de um altar sobre o qual está a custódia
onde se expõe a Eucaristia. A cena é muito animada, os personagens parecem estar ocupados
Georg Simmel | 281

de sentimentos e ideias da qual brota toda a vivacidade e a coesão verdadeiramente


orgânica dessa reunião de pessoas. Assim como o cosmos necessita “de amor e de
ódio”4 para ter uma forma, de forças de atração e de repulsão, a sociedade precisa de
uma relação quantitativa de harmonia e discordância, de associação e competição,
de simpatia e antipatia para chegar a uma determinada forma. Tais fatores de
desunião, entretanto, não são simples passivos sociológicos, espécie de soma de
saldos credores ou instâncias negativas do social. Não se pode dizer que a sociedade
definitiva e real se produza apenas graças às outras forças sociais positivas, e
dependa de que as forças dissociadoras o permitam. Essa corriqueira maneira de ver
as coisas é completamente superficial: na realidade, a sociedade é o resultado de
ambas as categorias e, consequentemente, as duas têm valor5.

trocando observações, gesticulando, assinalando o céu, a outros personagens ou ao Santíssimo


Sacramento, mas também concentrando sua atenção sobre alguns escritos. A intenção é sem dúvidas
representar a intensa atividade teológica de definição e teorização do mistério do Sacramento Pascal.
(NT)
4
Ideia que se atribui a Empédocles, um filósofo e pensador pré-socrático grego, cidadão de Agrigento,
na Sicília (490 aC – 430 aC). Ele propôs a existência de poderes que chamou de “Amor” e “Ódio”e que
atuariam como forças primordiais que regiam o cosmos e podiam tanto formar elementos quanto
separá-los. (NT)
5
Eis um caso sociológico de contradição na maneira de conceber a vida em geral. Para a opinião
comum distinguem-se em toda parte dois partidos da vida, um dos quais representa o positivo, o
verdadeiro, ou ainda a substância da vida, enquanto o outro é, por definição, o que não é, aquilo que
deve ser eliminado para que os elementos positivos possam construir a verdadeira vida. Assim se
comportam, por exemplo, a felicidade e a dor, a virtude e o vício, a força e a fraqueza, os conteúdos
exprimíveis e as pausas no curso da vida. Parece-nos, porém, que é muito mais apropriado atribuir
outro sentido a estas oposições, a saber: conciliar todas essas diferenças diametrais como
manifestações da mesma vida, da que palpita na pulsação intermitente de uma vitalidade central
(inclusive nas coisas que, vistas na perspectiva de um ideal particular, não deveriam ser ou
constituiriam puras negações) e faz aparecer o significado global de nossa existência assumindo
efetivamente os dois partidos. No conjunto de nossa vida, mesmo o elemento que isoladamente possa
parecer molesto ou nocivo é, em realidade, positivo: ele não é uma lacuna, mas desempenha um papel
que lhe foi reservado. Ora, para sentir como uma ampla unidade vital o conjunto de todos esses
excessos e defeitos de realidade e de valor, o total dessas contradições e oposições, é preciso elevar-
se a uma altura que talvez não seja possível alcançar ou conservar. Infelizmente somos muito
propensos a pensar e a sentir nosso essencial eu, nossa própria e profunda substância como idêntica
a um desses partidos. E, se nosso sentimento da vida é otimista, o outro partido nos aparece como
superficial e acidental, como algo que é necessário eliminar ou reprimir de modo a libertar espaço para
a verdadeira vida. Este dualismo – que logo vamos desenvolver – torna tudo mais difícil para nós,
desde os mais reduzidos domínios de nossa vida até os mais extensos, sejam de natureza pessoal,
concreta ou social. Temos ou somos uma totalidade, uma unidade que se divide em duas partes
opostas lógica e concretamente. Com um desses partidos, porém, identificamos essa unidade e
totalidade de nosso ser, considerando o outro partido como estranho a nós, como algo que nega nossa
própria essência. A vida evolui constantemente entre essa tendência e a outra – que permite à
totalidade ser verdadeiramente total e torna a unidade realmente vivente dentro de cada um destes
partidos e em sua reunião. Parece, todavia, necessário reivindicar – com mais força, se cabe – essa
segunda atitude pelo que se refere ao fenômeno sociológico do conflito, na medida em que o dito
fenômeno impõe incontestavelmente sua força dissolvente e dissociadora. (NS)
282 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O erro de acreditar que uma destrua o arquitetado pela outra, e de considerer


que aquilo que finalmente fica seja o resultado de sua subtração (quando em verdade
seria mais justo falar de adição), provém, com certeza, do duplo sentido do conceito
“unidade”. Designamos com o nome de unidade a coincidência e coordenação dos
elementos sociais, por oposição a sua discordância, exclusão e dissonâncias. Porém,
também é unidade a síntese geral das pessoas, energias e formas que constituem
um grupo, a totalidade final em que estão compreendidas as relações de unidade em
sentido estrito e as relações de dualidade. O que ocorre é que explicamos os grupos
que sentimos como “unidos” pela presença de elementos funcionais que
consideramos especificamente unitários, excluindo consequentemente a outra
significação mais ampla da palavra. A esta imprecisão contribui também, por sua
parte, o duplo sentido do termo discordância ou oposição. Vendo como a oposição
desdobra entre os elementos singulares sua virtude negativa ou destrutiva, supomos
que deve agir do mesmo modo sobre a relação total. Mas, em realidade, não é
imprescindível que o que é negativo ou prejudicial entre os indivíduos quando é
considerado isoladamente e visando uma direção particular, aja da mesma maneira
a respeito do conjunto da relação. Pois que nessa – como revela claramente a
competição dos indivíduos em uma unidade econômica –, o elemento isolador,
combinado com outras ações recíprocas não afetadas pelo conflito, oferece um novo
quadro, no qual o elemento negativo e dualista representa um papel absolutamente
positivo, longe dos malefícios que pôde provocar na esfera das relações individuais.
Existem aqui, entre os casos mais complexos, dois tipos opostos. Em primeiro
lugar, temos os pequenos grupos que envolvem, porém, como o casal, um número
ilimitado de relações vitais entre seus membros. Não só em casamentos
irremediavelmente desunidos, mas também em outros que encontram um modus
vivendi suportável ou, no mínimo, suportado há certa quantidade de desgostos,
dissidências e controvérsias necessária e inseparavelmente vinculada à forma
sociológica. Esses casamentos não perdem sua condição por seu caráter
conflituoso, mas, ao contrário, chegam a ser as unidades definidas e características
que são graças a um conjunto de múltiplos elementos entre os quais figura essa
quantidade inevitável de conflito. Em segundo lugar, a função absolutamente positiva
e integradora do antagonismo se manifesta em casos de estrutura social
Georg Simmel | 283

caracterizada pela precisão e clareza cuidadosamente conservadas das divisões e


hierarquias sociais. Assim o sistema social indiano não repousa unicamente nas
relações de subordinação entre os membros das castas, mas também na sua mútua
repulsão. A aversão e má-vontade não só impedem que as diferenças dentro do
grupo se apaguem aos poucos – podem ser provocadas deliberadamente para
manter as disposições discriminatórias –, mas por acréscimo elas são
sociologicamente frutíferas, pois amiúde é graças a elas que se atribuem às classes
e às pessoas sua posição recíproca, que talvez não tivesse sido conferida a umas e
outras (ou que elas teriam ganhado de outro modo) se, por exemplo, as causas
objetivas dessa hostilidade, ainda estando presentes e ativas, houvessem agido sem
o sentimento e as manifestações de inimizade.
Não é verdade que se obteria uma vida coletiva mais rica e plena se as energias
repulsivas (e as destrutivas, se consideradas isoladamente) desaparecessem de um
grupo, da mesma maneira que um patrimônio aumenta quando se elimina seu
passivo. O resultado será outro quadro, tão distinto e com frequência tão irrealizável
como se o coletivo fosse privado das energias de cooperação e afeto, de ajuda mútua
e convergência de interesses. Isto não é válido apenas para a competição em geral
que determina como oposição formal (desconsiderando quase totalmente seus
resultados objetivos) a forma do grupo, as posições recíprocas de seus componentes
e a distância entre eles, mas também quando a união repousa nas emoções das
almas individuais. Assim, por exemplo, a oposição de um elemento a outro ao qual
está vinculado pela sociação não é um fator social meramente negativo, quanto mais
não seja porque muitas vezes é o único meio que torna possível a convivência com
pessoas verdadeiramente insuportáveis. Se não tivéssemos o poder e o direito de
nos opor à tirania e ao capricho, às violentas mudanças de humor e à falta de tato,
não suportaríamos relações tão penosas, mas nos veríamos levados a extremos
desesperados, que certamente destruiriam a relação, sem que, no entanto,
pudéssemos qualificar precisamente estes atos de “conflito”. Não somente pelo fato
– não essencial aqui – de que a opressão amiúde aumenta quando é tolerada
calmamente e sem protestos, mas porque a oposição nos proporciona íntima
satisfação, distração e alívio – o mesmo que em outras circunstâncias psicológicas
buscaríamos na humildade e na paciência. A oposição provoca em nós o sentimento
284 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de não estar completamente oprimidos, nos permite adquirir consciência de nossa


força e dá assim vida e reciprocidade a certas relações que sem essa compensação
não seríamos capazes de aturar.
Por acréscimo, a oposição não precisa alcançar resultados perceptíveis, nem
sequer se manifestar exteriormente para produzir o efeito, Mesmo quando apenas se
exteriorize de fato e fique in mente retenta 6 , a oposição pode restabelecer um
equilíbrio interno – às vezes até para os dois elementos –, trazer certo sossego e um
sentimento de poder intelectual que salvam relações cuja continuação seja
incompreensível para os estranhos a ela. A oposição passa então a formar parte da
própria relação e adquire os mesmos direitos que as outras razões que a preservam.
Não é unicamente um meio para conservar a relação total, mas também uma das
funções concretas do antagonismo. Quando as relações são puramente exteriores e
não têm atualização prática, a forma latente do conflito cumpre esse papel. Falamos
da aversão, do sentimento das pessoas implicadas na relação de serem ambas
reciprocamente estranhas e repulsivas, atitude mental que se traduziria em ódio e
briga reais se, por qualquer causa, se produzisse um contato imediato. Sem a
aversão, a vida nas grandes cidades é inimaginável, pois que nos põe cotidianamente
em contato com inumeráveis pessoas. Toda a íntima organização da vida urbana se
baseia em uma gradação extraordinariamente variada de simpatias, indiferenças e
aversões mais ou menos breves e duradouras. Todavia, a esfera da indiferença é
relativamente pequena. A atividade de nossa alma responde com um sentimento
específico a quase todas as impressões provenientes de outros homens. Se esta
resposta, no entanto, transmite a impressão de indiferença é por seu caráter
subconsciente, efêmero e instável. Em realidade, a indiferença é tão pouco natural
como insuportável seria a confusão das mútuas sugestões não procuradas. Desses
dois perigos típicos das metrópoles nos salva a antipatia – prelúdio do antagonismo
ativo. A antipatia produz as distâncias e afastamentos sem os quais seria impossível
esse gênero de vida. A natureza e alcance dos elementos que compõem a antipatia,
o ritmo de sua aparição ou desaparição e as formas com que nosso comportamento
expressa essa aversão constituem (junto com os elementos unificadores em sentido

6
Expressão latina que quer dizer: “retida na mente”. (NT)
Georg Simmel | 285

estrito) um todo inseparável do modo de vida nas grandes cidades. Pois o que nessa
vida aparece imediatamente como uma dissociação não é, em realidade, mais do que
uma das formas elementares de sociação.
Por conseguinte, mesmo que as relações conflituosas não possam produzir
por si sós uma entidade social, resulta evidente que colaboram com as outras
energias unificadoras para, entre todas, construir a unidade vital do grupo. Assim
sendo, tais relações apenas se diferenciam das restantes formas de contato e
interação recíproca que a sociologia identifica nas variadas existências reais. Nem o
amor, nem a divisão do trabalho, nem a atitude comum em face de um terceiro, nem
a amizade, nem a pertença a um partido, nem a subordinação se bastam para
constituir e manter de modo duradouro uma unidade histórica. E quando, contudo,
isso sucede, o que passa é que o processo assim designado contém já uma
pluralidade de formas de relação diferenciáveis. A essência da alma humana não
admite deixar-se ligar às outras almas por um único fio, ainda que a análise científica
se detenha frequentemente nas unidades elementares para estudar sua capacidade
específica de vinculação. Mesmo indo mais longe e tomando as coisas
aparentemente em outro sentido, toda essa análise talvez não seja outra coisa que
uma atividade simplesmente subjetiva: acaso as associações entre os elementos
individuais sejam efetivamente unitárias, resultando esta unidade porém
inconcebível para nosso entendimento – unidade mística da qual tomamos mais
forte consciência precisamente nas relações mais ricas, aquelas que os conteúdos
mais variados tornam mais vivazes e animadas –, não nos restando outro recurso
que representá-la como a ação conjugada de uma pluralidade de energias
vinculantes. Estas se vão limitando e modificando mutuamente até que surge a
imagem que a realidade objetiva cria por um procedimento mais simples e unitário,
mas impraticável para o entendimento do observador que procura acompanhá-lo.
Assim sucede também nos processos da alma individual. A cada momento
eles são de natureza tão complicada, escondem uma quantidade tal de vibrações
diversas ou contraditórias, que sua designação por um só de nossos conceitos
psicológicos é sempre insuficiente e, no fundo, inexata. Do mesmo modo, nunca
usamos um único fio para amarrar os momentos vitais da alma individual – mera
imagem que o pensamento analítico se arrisca a dar da unidade da alma,
286 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

incompreensível para ele. Seguramente, muitas das coisas que devemos nos
representar como um sentimento contraditório, como uma justaposição de instintos
vários, como um conjunto de impressões contraditórias são em si mesmas uma
perfeita unidade. Mas o entendimento observador carece do esquema necessário
para perceber esta unidade e se vê obrigado a reconstruí-la como a resultante de
múltiplos elementos. Quando somos simultaneamente atraídos e repelidos por
certas coisas, quando em uma mesma ação parecem misturar-se a nobreza e a
mesquinhez, quando o sentimento que uma pessoa nos inspira se compõe de
respeito e amizade, de impulsos paternais (ou maternais) e eróticos ou de juízos de
valor éticos e estéticos, todos esses fenômenos da alma são amiúde
indubitavelmente unitários. Contudo, como não podemos defini-los diretamente nos
vemos obrigados a recorrer a toda sorte de analogias, de motivos precedentes ou de
consequências exteriores ulteriores para convertê-los em um conjunto de variados
elementos anímicos.
Se isto é exato, também certas relações aparentemente complexas que se dão
entre várias almas devem frequentemente ser unitárias na realidade. Por exemplo, a
distância que caracteriza a relação entre duas pessoas vinculadas de algum modo
se nos aparece amiúde como o resultado de uma inclinação que deveria, de fato,
acarretar maior intimidade entre elas, e de uma repulsão simultânea que, pelo
contrário, teria que separá-las completamente. Mas isto pode ser um erro crasso:
nada impede que a relação tenda a essa distância por si mesma. Ela teria desde um
começo, por assim dizer, determinada “temperatura” que não se produz pela
compensação entre certo “calor” real e certa “frieza” real. Nós acreditamos por vezes
que o grau de autoridade e de influência que se produz entre duas pessoas é
engendrado pela força de uma das duas partes que se compensa simultaneamente
por uma fraqueza relativa em outro domínio. Pode ser que força e fraqueza existam,
mas amiúde seu dualismo não se manifesta na relação real, que contrariamente se
determina pelo conjunto dos elementos, de maneira que só a posteriori podemos
descompor sua unidade imediata para isolar aqueles fatores.
As relações eróticas oferecem os exemplos mais frequentes. Muitas vezes
elas aparecem como um tecido de amor e de respeito ou desprezo; ou de amor e de
um sentimento de harmonia entre as duas naturezas, com a consciência de mútuas
Georg Simmel | 287

contradições complementares; ou de amor e necessidade de dominar o outro ou de


apoiar-se nele. As duas correntes convergentes distinguidas pelo observador – ou
pelo próprio sujeito – não são frequentemente mais do que uma na realidade. Na
relação tal como ela fica finalmente constituída, a personalidade global de um age
sobre a do outro, e sua realidade é independente da ideia de que (se a relação não
existisse) as duas pessoas se inspirariam, ao menos, respeito e simpatia.
Empregamos inúmeras vezes as expressões “relações mitigadas” ou “sensação
agridoce” para nos referir a este gênero de relação, porque reconstruímos
intelectualmente os efeitos que as qualidades de uma das partes produziriam sobre
a outra, se agissem isoladamente, coisa que justamente não fazem. Sem contar que
falar de “mitigar” ou utilizar a metáfora dos sabores quando falamos de relações é
sempre uma forma problemática de expressão, mesmo nos casos aparentemente
mais legítimos, porque se translada com incauto simbolismo um acontecer espacial
e intuitivo a relações anímicas totalmente heterogêneas.
Isso mesmo deve acontecer, pois, com a chamada mistura de correntes
convergentes e divergentes em uma comunidade. Ou a relação é de antemão sui
generis, quer dizer, sua motivação e forma são completamente unitárias e para poder
descrevê-la só posteriormente a supomos composta por duas correntes, uma
positiva e outra antagônica. Ou essas duas correntes existiam de antemão, mas de
alguma maneira, antes de se produzir a relação, no seu interior, elas se misturaram
para formar uma unidade orgânica na qual se deixam de perceber os componentes
com sua energia específica. O que não deve naturalmente nos fazer esquecer o
enorme número de negociações interindividuais nas quais as relações parciais
opostas podem prosseguir real e separadamente, de sorte que chegam a ser
reconhecidas em cada momento.
Uma nuance particular na evolução histórica de certas relações aparece
quando estas apresentam às vezes em alguns estágios precoces de sua evolução
como uma unidade indiferenciada de tendências convergentes e divergentes que só
se separam mais tarde para distinguir-se então do tudo. Até o século XIII, existiam
(nas cortes da Europa Central, por exemplo) assembleias permanentes de
cavalheiros, que constituíam uma espécie de conselhos dos príncipes, viviam como
seus anfitriões e, ao mesmo tempo, agiam como um tipo de representação política
288 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

da nobreza, defendendo os interesses dessa classe inclusive em face do príncipe.


Nessas instituições sociais, a comunidade de interesses com o monarca, a cuja
administração os cavalheiros serviam em ocasiões, e a defesa adversativa dos
direitos da nobreza não eram unicamente distintos e justapostos, mas também
estavam misturados. Tal posição era seguramente percebida como unitária, apesar
de seus elementos hoje nos parecerem irreconciliáveis. De igual maneira, na
Inglaterra, por essa mesma época, o parlamento dos barões não era outra coisa que
um conselho ampliado do rei, pois a solidariedade e a oposição crítica ou partidária
formavam parte ainda da mesma unidade germinal.
Enquanto se trate apenas de elaborar instituições que possam resolver o
complicado problema do equilíbrio interno do grupo será difícil decidir se sua ação
conjunta, visando ao interesse coletivo, deverá verificar-se sob a forma da oposição,
rivalidade e crítica ou sob a forma da unidade e harmonia imediatas. Existirá, pois,
um estado de indiferenciação primeira que parecerá logicamente contraditório se for
considerado desde o ponto de vista da diferenciação posterior, mas que corresponde
sem dúvida ao fraco desenvolvimento da organização respectiva. Em compensação,
as relações subjetivas e pessoais se desenvolvem amplamente em sentido oposto,
pois nos períodos culturais relativamente antigos, a solidariedade e a oposição se
encontram bem definidas. Por sua vez, as relações equívocas e hesitantes entre as
pessoas, baseadas em um ocaso do sentimento e cuja última palavra pode ser tanto
o ódio como o amor são mais frequentes em épocas de maturidade ou velhice que
na juventude.
Se o antagonismo não constitui uma sociação por si só, isso não significa que
esteja ausente – salvo nesses casos limite – como elemento dos processos de
sociação. E seu papel pode crescer até ao limite absoluto, quer dizer, até a supressão
de todos os elementos de unidade. O leque de relações que daí resulta deve ser
construído também a partir de categorias éticas, ainda que no geral estas últimas
não sejam pontos de apoio adequados para determinar livre e plenamente o que de
sociológico há nesses fenômenos. Os juízos de valor com os quais acompanhamos
as ações voluntárias dos indivíduos produzem séries hierárquicas que só por acaso
têm relação com a classificação das formas de suas relações de acordo com seus
aspectos objetivos e conceituais. Representar-se a ética como uma espécie de
Georg Simmel | 289

sociologia seria privá-la de seus conteúdos mais profundos e sutis: o


comportamento da alma em si e perante ela mesma, atitude que não aparece em
suas manifestações exteriores; seus movimentos internos que teriam na religião a
causa eficiente e que só servem a sua própria salvação ou perdição; seu apego aos
valores objetivos do conhecimento, da beleza e da significação profunda das coisas,
que estão além de toda relação entre os homens. Todavia, a mistura de relações
harmônicas e hostis faz coincidir as séries sociológica e ética. Ela começa aqui com
a ação de A em proveito de B; passa depois à ação de A no seu próprio interesse por
intermédio de B, sem gerar benefícios a este, mas também sem prejudicá-lo; para
chegar finalmente à ação egoísta à custa de B. Enquanto isso, como B responde a
todas essas ações, mas, no entanto, raramente do mesmo modo e na mesma medida,
chega-se a essas misturas inextricáveis de movimentos convergentes e divergentes
nas relações humanas.
É verdade que certos conflitos parecem excluir a intervenção de qualquer outro
aspecto, como por exemplo, aquele que opõe o bandido ou criminoso à sua vítima.
Quando tais conflitos não têm outro fim que a pura e simples eliminação se
aproximam, sem dúvida do caso limite do crime sórdido em que o aspecto unificador
se reduz a zero. Em compensação, assim que surge alguma consideração pela vítima,
ou se impõe um limite à violência, encontramo-nos já com um indício de sociação,
ainda que falemos apenas de um efeito de contenção. Kant afirmava que toda guerra
em que as partes não se imponham certas reservas no que se refere ao uso dos meios
possíveis tendia a devir necessariamente uma guerra de extermínio, quanto mais não
fosse por motivos psicológicos. Pois o beligerante que não se abstém pelo menos de
matar os inimigos feridos, de faltar à palavra dada e de induzir à traição destrói ao
mesmo tempo a confiança que se podia ter na maneira de pensar do adversário, sem
a qual é impossível fazer a paz. É quase inevitável que um elemento relacional comum
se junte à hostilidade a partir do momento que a violência sem limites dê lugar a outra
relação qualquer, mesmo quando a inimizade entre as partes não possa diminuír.
Quando os lombardos conquistaram a Itália no século VI, impuseram a seus vencidos
um tributo que equivalia a um terço dos produtos da terra, distribuindo o pagamento
de modo que cada um dos vencedores dependia das contribuições pessoais de
indivíduos claramente identificados. Em uma situação deste tipo, o ódio dos vencidos
290 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a seus opressores provavelmente era tão forte (e talvez maior) que durante a guerra
e acaso os vencedores respondessem aos derrotados com o mesmo sentimento,
Isso ocorria porque o ódio a quem nos odeia constitui uma medida preventiva
instintiva, e porque, como é sabido, temos o costume de detestar àqueles a quem
temos causado algum dano. E, no entanto, existia nessa relação um elemento que
criava uma comunidade: a circunstância que estava na origem da hostilidade, quer
dizer, a associação forçada dos lombardos às atividades econômicas dos
autóctones, criava ao mesmo tempo uma inegável correspondência entre os
interesses de ambos os grupos. Mas, enquanto a divergência e a harmonia se
misturavam inextricavelmente neste ponto o conteúdo do desentendimento se
desenvolvia efetivamente para converter-se no germe de uma comunidade futura.
A maneira mais difundida de existência concreta desse tipo de forma foi
submeter o inimigo prisioneiro à condição de escravo, em lugar de matá-lo. É verdade
que, em um número imenso de casos, essa escravidão assumiu a forma extrema da
inimizade absoluta interior, mas o mesmo motivo que a ocasionou, fez muitas vezes
aparecer uma relação sociológica que amenizou simultaneamente seus efeitos. Por
isso, pode ocorrer às vezes que se provoque o agravamento das hostilidades
justamente para pôr-lhes cobro. E não apenas sob a forma de uma cura de violência,
que confiaria em que o antagonismo irá acabar além de certo limite, por esgotamento
ou por convencimento de sua insensatez. Por vezes, nas monarquias, se dá à
oposição um príncipe como chefe, como o fez Gustavo Vasa 7 . Isso reforça a
oposição, com certeza, pois a nova condução permite somar novos elementos que,
de outro modo, teriam permanecido distanciados dela, mas possibilita, ao mesmo
tempo, seu controle e limita sua radicalização. Fingindo reforçar deliberadamente a
oposição, o governo a descabeça, justamente por esse aparente ato de boa vontade.
Outro caso extremo parece ocorrer quando o conflito se origina
exclusivamente no desejo de lutar. Se o conflito se deflagra por alguma motivação
(ambição de riqueza ou de poder, cólera ou vingança), o objeto ou situação que se
deseja alcançar não só submete a confrontação a normas comuns ou restrições

7
Gustavo I Vasa (1496 – 1560). Foi rei da Suécia de 1523 até sua morte. É considerado o fundador da
Suécia moderna, tendo introduzido a monarquia absoluta e hereditária, a administração nacional
centralizada e a fé protestante luterana como religião do Estado. (NT)
Georg Simmel | 291

recíprocas, mas, por representar uma finalidade alheia ao conflito em si, confere ao
antagonismo uma natureza ou caráter peculiar proveniente do fato de que esses fins
podem, em princípio, conseguir-se por outros meios, distintos do desfecho da luta. O
anelo de riqueza ou de poder e até o desejo de aniquilar o inimigo podem satisfazer-
se por outras estratégias ou manobras que não sejam o próprio conflito. Quando este
último é um simples meio determinado pelo terminus ad quem 8 , não há nenhum
motivo para não limitá-lo ou suspendê-lo se pode ser substituído por outro meio que
garanta o mesmo resultado. No entanto, quando o conflito é determinado
exclusivamente por seu terminus a quo subjetivo, diante de energias internas que só
podem ser satisfeitas pelo confronto direto, então é impossível substituí-lo por outro
meio, pois constitui sua própria razão de ser e significação e não pode, por
consequência, adquirir outra forma. Este tipo de conflito gratuito, sem outro motivo
ou justificativa que o conflito mesmo, parece determinado formalmente por certo
instinto de hostilidade cuja análise psicológica vale a pena empreender.
Foram os moralistas céticos que falaram de uma hostilidade natural dos
homens: para eles, homo homini lúpus9, e “há na infelicidade dos nossos melhores
amigos algo que de todo não nos desagrada”10. Mas a crença oposta, a que deduz o
altruísmo moral dos fundamentos transcendentais de nosso ser, não se distancia
muito desse pessimismo, pois confessa que na experiência calculável de nossas
volições não se encontra a entrega ao próximo. Para essa ideia, segundo a
experiência empírica e de acordo com a razão, o homem é um puro e simples egoísta,
fato natural que ele não pode contornar por obra da natureza mesma, senão pelo
deus ex machina de uma realidade metafísica. Parece, então que devemos colocar
certa hostilidade natural como forma ou base das relações humanas junto à simpatia
entre os homens. O interesse surpreendentemente forte que os padecimentos dos
demais inspiram ao homem poderia explicar-se por ambas as motivações.
Resultado também dessa antipatia natural é o fenômeno não raro do “espírito
de contradição”. Tal espírito não se encontra apenas no conhecido indivíduo que
vemos nos círculos de amigos e familiares, nos comitês ou no público dos teatros e

8
Terminus ad quem e términus a quo são expressões latinas que podemos respectivamente traduzir
aqui por: “causa fim” e “causa fonte”. (NT)
9
Expressão latina segundo a qual “o homem é um lobo para o homem”. (NT)
10
Observação que transcreve Kant na sua obra A Religião nos limites da simples razão. (NT)
292 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que constitui o desespero dos que estão ao seu redor. Também não encontra seus
exemplares mais característicos na esfera política, nos homens de oposição cujo tipo
clássico descreve Macaulay ao dizer de Robert Ferguson: “His hostility was not to
Popery or to Protestantism, to monarchical government or to republican government,
to the house of Stuarts or to the house of Nassau, but to whatever was at the time
established11. Todavia, todos esses casos considerados são necessariamente tipos
de “oposição pura”, pois geralmente se apresentam como defensores de direitos
ameaçados, paladinos de causas objetivamente justas, ou como os cavalheirescos
protetores das minorias. Certos fenômenos muito menos marcantes delatam, porém,
a nosso ver, com maior clareza a compulsão abstrata de oposição. Por exemplo, a
leve tentação (frequentemente inconsciente e pronta a se esvaecer) de se opor a uma
afirmação ou solicitação qualquer, sobretudo se ela é formulada em termos
categóricos. Até em momentos de harmonia e inclusive em naturezas
condescendentes surge esse instinto de oposição, com a necessidade de um
movimento reflexo e integrando-se ao comportamento global, mesmo sem
resultados perceptíveis. E ainda que quiséssemos considerá-lo como um instinto de
defesa – análogo àquele que faz muitos animais responder a um simples contato
mostrando automaticamente seus meios de proteção ou ataque –, não faríamos com
isso mais do que demonstrar justamente o caráter primário e básico da oposição.
Pois isso significaria que a pessoa ainda que não seja realmente atacada, mesmo
que se defronte a manifestações puramente objetivas das outras pessoas, não pode
assumir outra postura que a de oponente, e que o primeiro instinto pelo qual ela se
afirma é a negação do outro.
Mas acima de tudo parece inevitável reconhecer a existência de um instinto
conflituoso a priori, se considerarmos os fatos incrivelmente fúteis e até levianos que
originam os conflitos mais sérios. Um historiador inglês refere que no final do século
XIX dois partidos irlandeses tingiram de sangue o país por causa de uma inimizade
que surgiu por uma disputa acerca da cor de uma vaca, Na Índia, apenas umas

11
Em inglês no original alemão de Simmel. Este parágrafo corresponde ao Capítulo 15 do volume III
da obra de Thomas Babington Maculay, The History of England from the Accession of James II, e reza
em português: “Sua hostilidade não se dirigia ao papado ou ao protestantismo, ao governo
monárquico ou ao republicano, à casa de Estuardo ou à de Nassau, mas a tudo quanto em sua época
estava estabelecido”. (NT)
Georg Simmel | 293

décadas antes aconteceram perigosas revoltas na sequência da rivalidade de dois


partidos que não sabiam quase nada um do outro a não ser que eram,
respectivamente, o partido da mão direita e o partido da mão esquerda. Essa
frivolidade das causas conduz no outro extremo, por assim dizer, aos sinais não
menos ridículos em que se exterioriza essa hostilidade. Na Índia, muçulmanos e
hindus vivem em inimizade latente, exteriorizada de diversas formas: enquanto os
primeiros afivelam suas vestes à direita, se sentam em círculo quando comem em
reunião e seus indivíduos mais humildes utilizam como prato o anverso de uma folha
de certo vegetal; os segundos abotoam sua roupa à esquerda, comem vis-à-vis em
fileiras paralelas, e seus pobres servem sua comida no reverso de uma folha do
mesmo vegetal. As origens e efeitos das inimizades humanas frequentemente são
tão incoerentes e desproporcionadas que é difícil discernir se o aparente objeto do
conflito é, a causa ou apenas a manifestação de uma hostilidade pré-existente.
Alguns episódios da luta entre os quatro partidos que competiam no circo romano;
das disputas em torno dos conceitos de omoúsios e omoiúsios12 no Primeiro Concílio
de Nicéia; da Guerra das Duas Rosas na Inglaterra do século XV; e do enfrentamento
entre guelfos e gibelinos na Itália dos séculos XII e XIII, nos fazem duvidar que seja
possível encontrar uma causa minimamente racional a essas rivalidades. No geral,
se tem a impressão de que os homens nunca se amam por motivos tão fúteis, como
aqueles que os levam a odiar-se.
Finalmente, a facilidade com a qual se sugerem sentimentos hostis, nos
parece indicar também a existência de um instinto humano de hostilidade. Na maior
parte dos casos é muito mais difícil ao homem meio inspirar confiança e afeto a outro
para com um terceiro indiferente, que infundir-lhe desconfiança e repulsão. Neste
sentido, parece particularmente significativo o fato de que a dita diferença seja maior
nos graus inferiores daqueles sentimentos, por exemplo, a mera incitação ao
preconceito a favor ou contra alguém. Nos graus mais elevados que conduzem à

12
O primeiro Concílio de Nicéia (325) se dedicou principalmente a determinar a natureza da segunda
Pessoa da Santíssima Trindade encarnada em Jesus Cristo. Enquanto os partidários de Arrio, negando
a divindade de Jesus, ensinavam que a natureza do Filho só é semelhante à substância ou à natureza
do Pai (omoiúsios), o Concílio de Nicéia afirmou que Cristo era homem em toda a plenitude do termo,
quer dizer, que possuiu a natureza completa de um homem, corpo e alma, e que, por conseguinte, era
idêntico segundo a natureza ao homem e, porém, consubstancial ao Pai (omoúsios). (NT)
294 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

prática são mais decisivas estimações mais conscientes e, não já aquela inclinação
fugaz – que delatava a existência de um instinto fundamental. O mesmo fato
essencial se revela quando consideramos que esses leves preconceitos que
obscurecem ou mancham a reputação e imagem que temos de outro, podem nos ser
sugeridos por pessoas completamente indiferentes, ao passo que um preconceito
favorável só pode ser inspirado por alguém que tenha autoridade sobre nós ou que
pertença ao círculo de nossos amigos. Talvez sem essa facilidade ou leviandade com
que o homem meio reage às sugestões desfavoráveis, o aliquid haeret 13 não
alcançaria sua trágica verdade.
A observação de numerosas antipatias, polêmicas, intrigas e conflitos abertos
nos poderia levar, certamente, à crença de que a hostilidade figura entre as energias
humanas primárias que não se desencadeiam pela realidade exterior de seus objetos,
mas que os objetos são criados pelas próprias energias. Afirmou-se, assim, que o
homem tem religião, não porque acredite em Deus, mas que acredita em Deus porque
tem na sua alma o sentimento religioso. A respeito do amor, todos reconhecem que,
sobretudo em nossa adolescência, não se trata de uma mera reação de nossa alma,
produzida pelo objeto (como uma sensação de cor em nosso aparelho óptico), mas
que a alma sente a necessidade de amar, e apreende um objeto qualquer que a
satisfaça, revestindo-o, às vezes, com aquelas qualidades que, aparentemente,
determinam o amor. Nada impede que – com as limitações às quais faremos
referência logo – também a evolução do afeto seja assim oposta ao amor. A alma
possuiria então uma necessidade arraigada de detestar e lutar e amiúde atribuiria a
certos objetos escolhidos as qualidades que despertam o ódio. Se isso não se
manifesta de um modo tão visível como no caso do amor, talvez seja porque o
instinto erótico, graças a sua inacreditável intensidade física na juventude,
demonstra de um modo inconfundível sua espontaneidade e determinação pelo
terminus a quo. Em compensação, o instinto de ódio só excepcionalmente passa por
estágios desta violência nos quais se possa revelar seu caráter subjetivo e
espontâneo14.

13
Literalmente: “algo fica”. Fragmento da sentença atribuída a Francis Bacon; Audacter calumniare
semper aliquid haeret (“difama com audácia, sempre algo fica”). (NT)
14
Todas as relações de um homem com os demais se diferenciam umas das outras em seu mais
profundo fundamento segundo a resposta que se dê à seguinte pergunta (mesmo se há inumeráveis
Georg Simmel | 295

Se realmente existe no homem um instinto formal de hostilidade, simétrico à


necessidade de simpatia parece-nos, no entanto, que ele historicamente deve
proceder de um desses processos de decantação através dos quais certos
movimentos internos deixam na alma sua forma comum de instinto autônomo.
Interesses de todo gênero obrigam frequentemente a lutar por determinados bens, a
se opor a certas pessoas, sendo muito provável que o resíduo dessas lutas e
oposições, sedimentado no patrimônio genético de nossa espécie, seja um estado de
irritação que estimule as manifestações de antagonismo. Como é sabido, as relações
entre os grupos primitivos eram, por diferentes razões, de marcada hostilidade. Os
ameríndios talvez ofereçam o exemplo mais claro. Cada tribo se considerava em
estado de guerra com todas as demais, a não ser que tivesse concluído
expressamente um tratado de paz. Não se deve esquecer, porém, que nas culturas
arcaicas a guerra era praticamente a única forma de contato com grupos estranhos.
Enquanto os intercâmbios comerciais estiveram pouco desenvolvidos,
desconheciam-se viagens individuais e as comunidades espirituais não
transpunham as fronteiras do coletivo local inexistiu entre os diversos grupos outra
relação sociológica possível que a guerra. Sobre este ponto, as relações que os
elementos de um grupo mantinham entre si e aquelas estabelecidas pelos grupos
– primitivos – entre eles apresentavam formas absolutamente opostas. Dentro do
círculo fechado, a hostilidade significava, no geral, a ruptura de relações, o
distanciamento e a recusa de todo contato; fenômenos negativos que até
acompanhavam a ação recíproca passional própria do conflito declarado. Já os
grupos viviam na completa indiferença uns aos outros enquanto reinava a paz, e só
com a guerra adquiriam uma significação recíproca ativa e importante. Por isso um
único e mesmo impulso de expansão e atividade que dentro do grupo fomentava a

nuances entre o sim e o não): sua base espiritual é um instinto que, como tal, se desenvolve ainda sem
estímulo externo e busca por sua parte um objeto adequado – seja que ele o encontre já adequado,
seja que ele o transforme em sua imaginação de acordo a suas necessidades até que se converta em
objeto adequado? Naturalmente, é preciso também que nossa alma tenha as possibilidades para isso,
pois, caso contrário, ficariam latentes e incapazes por si sós de configurar-se como instinto. As
relações entre os homens – relações intelectuais e estéticas, de simpatia e antipatia – se constituem
a partir desta distinção, e é desse fundamento que derivam suas formas de evolução, sua intensidade
e sua história ulterior. (NS)
296 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

paz (como fundamento imprescindível da composição de interesses e da boa marcha


das ações recíprocas) podia manifestar-se para fora como tendência belicosa.
Ainda que concedamos ao instinto de hostilidade uma existência autônoma
na alma, ele não é suficiente para fundamentar todas as manifestações antagônicas.
Pois um instinto, por espontâneo que seja, tem alcance limitado, já que não pode ser
posto em ato por qualquer objeto, mas apenas pelo objeto que lhe convém. Apesar
de a fome afetar com certeza o sujeito sem necessidade de objeto que a atualize, o
faminto não se precipita sobre a pedra ou a madeira, mas sobre objetos comestíveis.
Assim também ocorre com o amor ou o ódio. Ainda que seus impulsos não procedam
de estímulos externos, eles precisam que haja algo adequado a eles na estrutura de
seus objetos, cuja colaboração produza a relação acabada. Por outro lado, parece
provável que o instinto de hostilidade dado seu caráter formal só se apresente no
geral para fortalecer controvérsias originadas em motivos materiais, agindo como
um “pedal forte” 15. Mesmo quando o conflito surge pelo simples prazer formal do
confronto – e é indiferente assim, por princípio, tanto ao objeto como ao adversário –
surgirá inevitavelmente durante seu transcurso ódio e irritação pela pessoa do
antagonista, além de interesse pelo preço da vitória, pois que essas paixões
alimentam e acrescentam a energia anímica investida no confronto. É conveniente
odiar o rival com quem, por qualquer motivo. se luta, assim como é conveniente amar
àquela pessoa a quem se está vinculado e com a qual é preciso conviver. A verdade
é enunciada por um bordão berlinense; “o que se faz por amor marcha muito melhor”.
Essa verdade aplica-se também ao que se faz por ódio. A conduta recíproca dos
homens só se explica muitas vezes pelo fato de que uma capacidade interna de
adaptação produz neles os sentimentos que são justamente os mais adequados à
situação dada, para explorá-la ou combatê-la, para suportá-la ou abreviá-la. Esses
sentimentos subministram as forças necessárias à execução da tarefa e à
paralisação dos movimentos internos contrários a ela. Assim, nenhum conflito sério
poderia durar muito sem o auxílio de um conjunto complexo de impulsos anímicos
produzidos lentamente. Isso tem uma grande importância sociológica, pois o simples
prazer do conflito pelo conflito mesmo fica contaminado por interesses objetivos e

15
Peça mecânica que no piano prolonga ou sustenta o som das cordas permitindo que estas vibrem
livremente. (NT)
Georg Simmel | 297

por impulsos que podem também ser satisfeitos de outro modo que não pelo
enfrentamento, e que na prática lançam uma ponte entre o conflito e outras formas
de ação recíproca.
De fato, não conhecemos mais do que um caso em que o atrativo do conflito e
da vitória fosse por si mesmo o único motivo, pois de ordinário esse prazer pelo
confronto é mais um elemento que se acrescenta ao antagonismo provocado por
outros incentivos. Referimos-nos aos conflitos lúdicos, especialmente àqueles nos
quais o vencedor não ganha nenhum prêmio fora do próprio jogo. Aqui a atração
puramente sociológica do predomínio e da superioridade se combina com distintos
fatores: nos jogos de habilidade, com o prazer puramente individual do movimento
preciso e bem sucedido; nos jogos de azar, com o favor da sorte que nos concede
uma misteriosa relação de harmonia com forças situadas além dos acontecimentos
individuais e sociais. Seja como for, os conflitos lúdicos não têm outra motivação
sociológica que o próprio conflito. As fichas sem valor pelas quais frequentemente
se luta com a mesma paixão que por moedas de ouro, ilustram bem o caráter formal
desse instinto que, às vezes, quando tem dinheiro envolvido, ultrapassa em muito o
interesse material. Todavia, devemos advertir que, justamente, esse dualismo
perfeito supõe, para sua ocorrência, formas sociológicas no sentido mais estrito da
palavra, quer dizer, processos de unificação. Os homens se reúnem para lutar e lutam
sob o império de normas e regras reconhecidas por ambas as partes. Como já foi
dito, tais processos de unificação em cujas formas o confronto têm lugar, não
participam, porém, na sua motivação, constituindo apenas a técnica sem a qual não
se poderia verificar um conflito que exclui toda base heterogênea e objetiva. No
entanto, as regras do jogo, rigorosas e impessoais, que enquadram a confrontação
lúdica constituem um verdadeiro código de honra que amiúde é observado por ambas
as partes com uma disciplina poucas vezes observada nas formas associativas de
cooperação.
Este exemplo nos oferece, quase com a clareza dos conceitos abstratos, a
coexistência dos princípios opostos de conflito e de união. Vemos assim como um
deles só adquire graças ao outro seu sentido pleno e sua efetividade sociológica. A
mesma forma é dominante no conflito jurídico, ainda que os elementos deste último
não estejam tão claramente separados. Sem dúvida, existe aqui um objeto do
298 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conflito, cuja voluntária renúncia poderia pôr termo satisfatório ao litígio, coisa que
não sucede quando a origem do conflito está no puro prazer formal de lutar. E se
também é verdade que frequentemente se fala nos processos judiciais da paixão e
do prazer pelo próprio litígio que as partes experimentam na maioria dos casos, se
alude a algo totalmente distinto: ao enérgico sentimento do próprio direito, à
impossibilidade de suportar uma agressão real ou presumida na esfera jurídica com
a qual o “eu” se sente solidário. Toda essa obstinação, toda essa teimosia das partes
em rejeitar qualquer compromisso (que, com muita frequência, fazem os processos
prosseguirem até esgotar as próprias forças) não tem o caráter de uma ofensiva, nem
mesmo no demandante, mas o de uma defensiva no mais profundo sentido. Trata-
se da sobrevivência da pessoa, que se implica tão profundamente com seu
patrimônio e seus direitos que qualquer prejuízo a destrói e a leva consequentemente
a investir sua existência inteira nesse confronto. Em tais casos, por conseguinte, será
determinante o instinto individualista, e não o instinto sociológico do conflito.
Todavia, se consideramos a forma do conflito, veremos que o litígio judicial é,
de fato, absoluto. Isto é, as pretensões de ambas as partes são defendidas com
estrita objetividade e empregando todos os meios permitidos sem desviar-se ou
reduzir seu ímpeto por considerações pessoais ou exteriores de qualquer natureza.
O conflito jurídico é o conflito por excelência na medida em que não há envolvimento
de nada estranho ao conflito como tal e que não sirva a seus fins. Enquanto, mesmo
nas lutas mais encarniçadas, pode ter espaço para questões subjetivas, a
intervenção da sorte ou a mediação de um terceiro, tudo isso está excluído aqui pelo
apego ao objeto da lide, onde só há confronto e nada mais que confronto. O fato de
excluir do litígio jurídico tudo o que não seja conflito pode conduzir a um formalismo
que independe de seu conteúdo. Isso se produz, por um lado, nas argúcias jurídicas,
onde já não se contrapõem ou compensam certos fatores objetivos, mas apenas se
digladia com conceitos absolutamente abstratos. Por outro lado, o conflito muda às
vezes para elementos que não têm a mais mínima relação com o que deve ser
decidido na lide. Se, nas civilizações evoluídas, os debates jurídicos são conduzidos
por advogados profissionais, é para isolar cuidadosamente o litígio de todas as
Georg Simmel | 299

associações pessoais que não têm nada a ver com ele. Mas quando Otão, o Grande16,
dispôs que as questões jurídicas se resolvessem em Juízo de Deus, quer dizer, por
um combate singular entre cavaleiros profissionais, não restou mais do que a simples
forma de todo conflito de interesses. A forma determinava um confronto e que
houvesse um vencedor. Não existia mais nada em comum entre a disputa que devia
ser decidida e a luta que a decidia. O caso expressa com uma exageração caricatural
a redução da que estamos falando, esta limitação do debate jurídico ao exclusivo
fator do conflito.
Todavia, justamente por sua pura objetividade, esse tipo de conflito – o mais
impiedoso de todos, precisamente por estar além da oposição subjetiva entre
compaixão e crueldade – pressupõe necessariamente em seu conjunto uma unidade,
certa comunidade entre as duas partes, em tão alto grau, que não se encontra em
nenhuma outra relação. A submissão comum à lei, o reconhecimento mútuo de que
a decisão deve ter em conta apenas o valor objetivo das razões invocadas, o respeito
de formas invioláveis para ambas as partes, a consciência de que o procedimento se
desenvolve dentro de um poder e de uma ordem social que lhe dão sentido e
segurança, tudo isso faz o conflito jurídico repousar sobre uma ampla base de
unanimidades e coincidências entre os adversários. Analogamente, ainda que em
menor grau, as partes que contratam ou participam de um negócio comercial
constituem uma unidade na medida em que reconhecem, apesar de seus interesses
serem opostos, que certas normas são igualmente obrigatórias para todos. Os pré-
requisitos comuns que excluem do debate jurídico tudo o que é meramente pessoal
ostentam aquele caráter de pura objetividade ao que corresponde por sua vez o
caráter implacável, feroz e absoluto do confronto. Os conflitos jurídicos manifestam
não menos do que os de natureza lúdica essa interação recíproca entre a dualidade
e a unidade da relação social. E é justamente porque o confronto está circunscrito e

16
Otão I (912 – 973) comumente chamado de Otão, o Grande. Imperador Romano-Germânico, de 962
até sua morte; além de Rei da Itália, Rei da Germânia e Duque da Saxônia. Coroado pelo papa João XII,
é considerado o primeiro Imperador Romano-Germânico (pois embora Carlos Magno tenha sido
coroado imperador em 800, o seu império desagregou-se devido às disputas entre os seus
descendentes pela sucessão, e depois do assassínio de Berengário do Friul em 924 o trono imperial
permaneceu vazio durante quase quarenta anos). (NT)
300 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sustentado pela rigorosa unidade das normas e restrições comuns que ele se torna
extremo e absoluto.
Finalmente, a mesma coisa se produz sempre que as partes estão animadas
por um interesse objetivo, quer dizer, quando o que está em jogo no conflito (e
consequentemente o próprio conflito) está dissociado da própria pessoa delas.
Nesses casos podem ocorrer duas coisas: ou o conflito resta centrado em questões
puramente objetivas, fora dele e todos os aspectos pessoais ficam em paz, ou as
pessoas enquanto tais se envolvem no conflito sem por isso alterar ou cindir os
interesses objetivos que as duas partes têm em comum. Este último tipo aparece
caracterizado na expressão de Leibnitz, que se dizia disposto a seguir seu inimigo
mortal se pudesse aprender algo com ele. É tão evidente que isso pode atenuar e
apaziguar a própria inimizade, que aqui somente trataremos do resultado oposto. Por
além, quando a inimizade entre as partes vai de par com certa comunidade e
inteligência em um domínio objetivo, ela é acompanhada de um tipo de limpidez, de
segura confiança no próprio direito: a consciência dessa separação nos conforta na
ideia de que não devemos deixar que a antipatia pessoal invada um domínio que não
lhe diz respeito, ganhando assim uma boa consciência que ocasionalmente pode
acirrar a hostilidade. Pois que ao limitar a agressividade a seu verdadeiro foco (que
também é o que de mais subjetivo tem a pessoa humana) nos abandonamos a ela,
mais apaixonada e eficazmente livres que se este impulso tivesse o lastro inútil de
animosidades secundárias em domínios apenas contaminados pela animosidade
central.
Em compensação, quando esta mesma dissociação restringe o conflito aos
interesses impessoais, se se evita, por uma parte. o rancor e a irritação inúteis que
são o preço ordinário da personalização das querelas objetivas, por outra parte, a
convicção de não ser mais do que o representante de interesses supraindividuais (de
não lutar por si mesmo, mas pela causa) pode dar ao confronto um caráter radical e
implacável – análogo ao comportamento geral de certas pessoas muito
desinteressadas e idealistas que não pensam em elas mesmas, mas muito menos
pensam nos outros por se considerarem autorizadas para imolar todos os demais à
ideia pela qual se sacrificam. Este gênero de luta (que põe em jogo todas as forças
da pessoa enquanto a vitória só servirá à causa) tem um caráter distinto (pois o
Georg Simmel | 301

homem distinto e aquele que, sendo completamente pessoal, sabe porém manifestar
sua personalidade com reserva), permitindo que a objetividade produza a impressão
de nobreza. Mas, uma vez realizada a dissociação e objetivada a luta, ela não se
submete a nenhum controle. Isso passa a fazer sentido, pois toda contenção
chamaria atenção contra o interesse objetivo que anima o confronto. Sobre a base
da comunidade que as partes constituem, limitando-se cada uma à defesa de sua
causa objetiva e renunciando a todo elemento pessoal e egoísta, o conflito adquire
então um caráter incrivelmente violento, sem ser agravado, e também sem ser
atenuado por instâncias pessoais, obedecendo somente a sua lógica imanente.
O contraste entre a unidade e o antagonismo se manifesta mais
acentuadamente quando ambas as partes visam efetivamente um único e mesmo
fim, por exemplo, estabelecer uma verdade científica. Fazer a menor concessão,
renunciar por cortesia a humilhar sem compaixão o adversário, assinar a paz antes
de conseguir a vitória definitiva sobre ele, seria trair esse respeito pelo objeto, em
virtude do qual se tem excluído do conflito toda espécie de personalização. Da
mesma maneira se desenvolvem as lutas sociais desde Marx (ainda que sob outros
aspectos as diferenças sejam enormes). A partir do momento em que se reconheceu
que a situação dos trabalhadores está determinada pelas condições objetivas da
produção, independentemente da vontade e das capacidades dos indivíduos,
decresceu visivelmente o rancor pessoal tanto das lutas por princípios como das
reivindicações pontuais. O patrão não é mais, pelo simples fato de ser patrão, um
vampiro e um egoísta condenável. O operário não age sempre movido por uma cobiça
perversa. E ambas as partes começam pelo menos a não lançar aos rostos suas
demandas e táticas como se fossem os frutos da malícia pessoal. A objetivação, de
fato, foi conseguida na Alemanha por um caminho teórico e na Inglaterra pelos
sindicatos operários. Na Alemanha, a generalidade abstrata do movimento histórico
e de classes supera o caráter pessoal e individual do antagonismo; na Inglaterra, esse
aspecto é conseguido graças à unidade rigorosamente supraindividual que se impôs
às ações dos sindicatos operários e das associações patronais. Todavia, nem por
isso a violência da luta diminui. Ao contrário, tornou-se mais consciente, mais focada
e ao mesmo tempo mais abrangente e adaptada a seus fins, porque os indivíduos
302 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

têm consciência de que não lutam unicamente para eles mesmos, mas por um
objetivo grandioso e impessoal.
Um sintoma interessante dessa correlação encontra-se no boicote levado a
efeito pelos operários contra as fábricas de cerveja de Berlim em 1894. Foi uma das
lutas locais mais violentas de sua época, conduzida por ambos os partidos com a
maior energia, mas sem nenhuma manifestação de ódio pessoal – apesar da
previsão oposta – da parte dos instigadores do boicote contra os diretores das
fábricas. Inclusive, no meio do conflito, duas lideranças dos coletivos em luta
chegaram a expor sua opinião sobre o enfrentamento em uma mesma revista,
coincidindo na exposição objetiva dos fatos, ainda que discordassem das
consequências práticas daí deduzidas. O conflito prescindiu de todo elemento
subjetivo e pessoal limitando quantitativamente o antagonismo e tornando possível
uma espécie de respeito mútuo, um entendimento sobre tudo o que era pessoal e a
convicção de que os dois lados eram arrastados por necessidades históricas. A base
unitária, no entanto, não diminuiu a intensidade do conflito, que ganhou em
intransigência e determinação.
Evidentemente, o fato de os adversários terem algo em comum que permita
surgir o conflito, pode se manifestar em formas muito menos nobres do que as
anteriormente referidas. Isso sucede quando esse elemento comum não é uma
norma objetiva, nem um interesse superior ao egoísmo fruto do enfrentamento, mas
um conluio secreto a serviço de algum propósito compartilhado pelas partes
envolvidas, sem consideração aos interesses alheios. Em certo sentido, esse foi o
caso da recíproca evolução dos dois grandes partidos ingleses do século XVIII 17 .
Suas convicções políticas não eram fundamentalmente distintas, pois o que estava
em jogo finalmente para ambos era a subsistência do regime aristocrático. Era
curioso ver como dois partidos que se enfrentavam no campo da luta política não se
combatiam, todavia, de maneira radical – porque existia entre eles um acordo tácito
contra algo que não era um partido político. Essa singular limitação do conflito
relacionava-se com a corrupção parlamentar que prevalecia naquele período:
ninguém achava grave demais vender o seu apoio ao partido oposto, porque existia

17
O autor se refere aos partidos Whig e Tory. (NT)
Georg Simmel | 303

nas intenções e projetos dos dois partidos uma ampla – ainda que oculta – base
comum, que limitava o confronto a questões marginais. A facilidade com que a
corrupção se impôs demonstrou que a limitação do antagonismo pela existência de
um elemento comum entre as partes não torna o conflito forçosamente mais objetivo
e fundamental, mas que ao invés ela pode levar à perda de seu vigor, contaminando
seu sentido necessário.
Em outros casos mais claros, a síntese do monismo e do antagonismo das
relações pode produzir o resultado oposto quando a unidade é o ponto de partida e o
fundamento da relação, constituindo a base do conflito. Amiúde o antagonismo
torna-se então mais apaixonado e radical que nos casos em que não existe algum
tipo de vínculo, precedente ou coetâneo, entre as partes. A antiga lei judaica que
autorizava a bigamia proibia o casamento com duas irmãs (mesmo, se morta uma
delas, o viúvo pudesse desposar a outra), pois se acreditava que fomentaria os
ciúmes. Supunha-se aqui que os laços familiais favoreciam uma rivalidade mais forte
do que aquela que podia surgir entre pessoas estranhas. O ódio mútuo que nutrem
os pequenos Estados vizinhos, cuja concepção do mundo, relações e interesses
locais são inevitavelmente muito semelhantes e talvez até idênticos, é muito mais
exacerbado e irreconciliável do que entre grandes nações completamente distantes
no espaço e na maneira de ser. Essa foi a desgraça da Grécia Antiga e da Itália depois
da queda do Império Romano, fenômeno que sob uma forma ainda mais perniciosa
abalou a Inglaterra antes que a conquista normanda fundisse seus dois povos 18 .
Povos esses que viviam misturados nos mesmos territórios, vinculados por
interesses vitais constantes e reunidos por uma ideia unitária de Estado, mas eram,
todavia, completamente estranhos em seu ser mais profundo, incapazes de
compreender-se mutuamente e os piores inimigos no exercício do poder. O ódio,
como já foi referido aqui, era ainda mais feroz do que o existente entre dois povos
separados externa e internamente. As igrejas nos oferecem os exemplos mais
acentuados porque a menor divergência, em razão de sua relação obrigatória ao
dogma, adquire logo um caráter de antagonismo logicamente irredutível nas

18
O autor possivelmente refere-se aos descendentes dos colonos anglo-saxões que invadiram a
Britânia romana entre os séculos V e VI da Era Cristã, e a progênie dos viquingues estabelecidos desde
o século IX no Norte da Inglaterra e na região das Midlands Orientais. (NT)
304 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

comunidades compostas por pessoas que têm as mesmas ideias e a mesma


doutrina. Assim sucedeu nos conflitos confessionais entre luteranos e reformados,
especialmente no século XVII. Produzido o grande cisma com o catolicismo, ocorreu
a divisão do conjunto protestante pelas mais insignificantes razões, chegando ao
ponto de ouvir-se que mais valia entender-se com os papistas que com aqueles de
outras confissões. Foi o que ocorreu em 1875 em Berna, quando ante a dificuldade a
propósito do lugar em que devia ocorrer o serviço católico, o Papa não permitiu que
ele fosse celebrado na igreja que os denominados “católicos velhos” 19 utilizavam,
preferindo o templo da Igreja Reformada.
Entre os elementos comuns, há dois fundamentos de um antagonismo
particularmente forte: a existência de qualidades comuns e a pertença a um único
contexto social comum. O primeiro caso se explica exclusivamente por que somos
entes sensíveis às diferenças. O antagonismo deve perturbar as consciências de
maneira mais profunda e violenta quanto mais se pareçam as partes em oposição.
Quando reina um ambiente de paz e entendimento, a hostilidade constitui um
excelente meio para proteger e conservar a associação, comparável a esse
dispositivo de alerta que é a dor para prevenir o organismo da presença das doenças.
Com efeito, a energia que se manifesta na dissonância em um momento em que se
evidencia perfeita harmonia é um aviso que convida a suprimir logo a causa do
conflito, sem deixar que ele siga obrando no inconsciente e ameace a base da
relação. Todavia, quando falta esse fundamental espírito de compromisso, a geral
harmonia imperante permite perceber com mais clareza o antagonismo e contribui a
exacerbá-lo. Pessoas que têm muitas coisas em comum frequentemente magoam-
se umas às outras com mais intensidade e por causas menos aparentes do que se
fossem completos estranhos. Algumas vezes a grande extensão das coincidências
entre eles passa a ser coisa sobre-entendida e não é mais ela, mas uma eventual e
momentânea diferença que determina suas respectivas posições. Outras muitas
vezes, porém, não há entre eles mais do que algumas poucas diferenças, e mesmo a

19
O termo “católicos velhos” ou “veterocatólicos” se aplica aos fiéis de diversas Igrejas Católicas
nacionais ou independentes organizadas com o nome de Velha Igreja Católica, Antiga Igreja Católica
ou Igreja Veterocatólica por alguns intelectuais e bispos católicos romanos que rejeitaram as decisões
do Concilio Vaticano I (1869 – 1871) que definiu o dogma da Infalibilidade Papal. (NT)
Georg Simmel | 305

menor discrepância adquire uma transcendência relativa muito maior do que entre
estranhos, os quais estão preparados a todas as diversidades possíveis.
Daí os conflitos familiais, produzidos pelas mais absurdas ninharias, que põem
em evidência o caráter trágico das “bagatelas” que separam pessoas que viviam em
completo acordo. Evidentemente, sua inesperada ocorrência não prova em todos os
casos que as forças de conciliação tenham começado a regredir, pois pode suceder
que a grande similitude das qualidades, inclinações e convicções torne intolerável,
pela violência do contraste, o desacordo sobre um ponto absolutamente
insignificante. Compare-se a isso o resultado da atitude objetiva de reserva de nossa
personalidade que adotamos a respeito do estrangeiro, com quem (como não
compartilhamos nem qualidades nem interesses) é difícil que uma diferença de
pouca monta comprometa todo nosso ser. Com os muito diferentes a nós,
encontramo-nos apenas nos diversos pontos de uma negociação particular ou de
uma convergência de interesses. Por isso o conflito se limita as coisas concretas.
Mas, quanto mais coisas compartilhamos com outra pessoa, mais facilmente
associaremos nosso eu total a qualquer relação com esse outro. Daí a violência
absolutamente desproporcionada, às vezes, à qual se deixam arrastar, contra seus
íntimos mais próximos, pessoas que ordinariamente sabem controlar seus próprios
impulsos.
A felicidade e profundidade nas relações com uma pessoa com a qual nos
sentimos idênticos – união em que nenhuma relação ou palavra, ação ou dor comum
esteja verdadeiramente isolada, mas que cada uma delas revista (envolva, por assim
dizer) a alma por completo – é justamente a que faz uma querela nascente crescer
com uma paixão tão expansiva e que o conflito abranja a personalidade inteira do
outro. As pessoas com esse tipo de vínculo estão habituadas demais a incluir todo
seu ser e seu sentimento nas relações que mantêm para não dar também a seu
conflito um destaque e um relevo que transcende em muito o motivo concreto e sua
significação objetiva e que arrasta na ruptura a pessoa por inteiro. Todavia, as
pessoas muito cultivadas espiritualmente poderão evitar isto, pois é próprio delas
combinar a dedicação plena a uma pessoa com uma recíproca e total independência
dos elementos psíquicos na alma. Enquanto a paixão bruta mistura a totalidade da
pessoa com a irritação provocada por um fato circunstancial ou transitório, a
306 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

educação refinada não deixa esses estados ultrapassarem seus próprios e legítimos
limites, firmemente circunscritos. Tal evolução espiritual concede à relação entre
naturezas harmônicas a vantagem de adquirir clara consciência, justamente a raiz
desse conflito, de quão insignificantes são as diferenças que as opõem em
comparação com as forças que as vinculam.
Porém, se deixamos de lado esses casos, veremos que, especialmente nas
naturezas profundas, o refinamento de sua sensibilidade tornará mais apaixonados
os afetos e as repulsões quanto mais se destaquem uns e outras sobre o fundo de
um passado de cores diferentes, seguindo decisões súbitas e irrevocáveis de sua
relação em contraste com as alternativas cotidianas de uma convivência sem
discussão. Entre os homens e as mulheres uma aversão completamente elementar e
até um sentimento de ódio sem razões particulares, provocado por simples repulsão
recíproca é, às vezes, o primeiro estágio de relações cujo segundo momento será a
paixão amorosa. Podemos chegar à paradoxal hipótese de que, nas naturezas
destinadas a entrar em uma estreita relação sentimental, essa reviravolta é
determinada por uma espécie de sabedoria instintiva que consistiria em começar
pelo sentimento contrário àquele que será definitivo – como quem retrocede uns
passos antes de dar o salto – para atingir um clímax apaixonado e avivar a
consciência do que se ganha. A mesma forma aparece no fenômeno contrario: o
amor não correspondido engendra o ódio mais profundo. Aqui, o decisivo nessa
mudança de sentimentos não é apenas a sensibilidade refinada, mas, sobretudo, a
negação do próprio passado. Reconhecer que nosso amor profundo – e não
unicamente sexual – foi um engano e uma lamentável falta de perspicácia nos
humilha a nossos próprios olhos e supõe um atentado tal à segurança e unidade de
nossa consciência que, inevitavelmente, o objeto deste sentimento insuportável tem
que pagar por isso. A secreta compreensão de que a culpa é nossa fica oculta muito
adequadamente atrás do ódio, que permite facilmente atribuir a responsabilidade a
outro.
Essa especial violência dos conflitos que surgem em relações nas quais, por
sua essência, a harmonia deveria reinar, parece confirmar o princípio de que as
relações são fortes e estreitas quando não existe uma profunda falta de
entendimento entre as partes. No entanto, esse aparente truísmo não se aplica a
Georg Simmel | 307

todas as circunstâncias. É impossível em comunidades muito íntimas – que, como o


casamento, regem todos os aspectos da vida dos indivíduos – não surgirem
ocasiões de conflito. Não ceder jamais a elas providenciando com antecedência, e
por recíprocas concessões acabar com suas causas desde um começo, não é algo
que proceda sempre do amor mais genuíno e profundo, mas pelo contrário de
temperamentos que sendo afetuosos, morais e fieis não chegam apesar de tudo à
última e absoluta entrega da paixão. O indivíduo percebe que não pode dar-se na
relação de forma completa e total, mas tenta mantê-la livre de toda sombra
esforçando-se por compensar a lacuna, tratando o outro com extrema gentileza e
domínio de si mesmo e, sobretudo, procurando tranquilizar sua própria consciência
pela maior ou menor insinceridade de sua conduta, que não pode realmente ser
transformada nem pela mais decidida e apaixonada vontade porque se trata de
sentimentos que não dependem da capacidade de escolher, mas que vêm e vão como
forças do destino.
A insegurança que sentimos nessas relações, juntamente com o desejo de
conservá-las a qualquer preço, nos move amiúde a realizar atos de extremo
conformismo, incitando a manter o relacionamento quase que de forma mecânica,
evitando por princípio toda possibilidade de conflito. Todavia, quem está ciente de
que seus sentimentos são irrevocáveis e absolutos não precisa desse irenismo 20
incondicional porque sabe que nada poderia abalar os fundamentos da relação.
Quanto mais forte é o amor, melhor pode suportar os choques: quem assim ama não
teme às consequências incalculáveis do conflito e, portanto, não pensa em evitá-lo.
Por conseguinte, ainda que as desavenças entre pessoas íntimas possam ter
consequências mais trágicas que as que se dão entre estranhos, são as relações
mais profundas as que podem às vezes assumir este risco, ao passo que muitas
outras relações, perfeitamente morais sem dúvida, mas carentes de espessura
sentimental, se desenvolverão em aparência com mais harmonia e menos conflitos.
Um matiz da sensibilidade sociológica para com as diferenças e da
importância acentuada do conflito proveniente da similitude se produz quando se
trata conscientemente de separar uns elementos hodiernamente homogêneos por

20
Diz-se, por extensão de sentido, da valoração da paz, pacificação ou conciliação como condição ou
objetivo das relações humanas (do grego eirênê = paz). (NT)
308 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

causa da originária heterogeneidade que os distanciava, quer dizer, quando o conflito


que hoje os opõe não resulta de uma (inexistente) cisão contemporânea, mas do
conflito que atiça uma proximidade suspeita – ou que se teme possa ser vista como
tal. O tipo desse caso é o ódio experimentado ao encontro do renegado ou sentido
por ele. A lembrança do consenso anterior é ainda tão forte nesse caso que a
oposição atual é infinitamente mais violenta e mais dura do que teria sido se não
existisse nenhuma relação pregressa entre as partes. Acrescente-se a isso que
ambos os elementos, para conseguir diferenciar-se (por contraste com a semelhança
que ainda segue agindo neles) necessitam estender a diferença para além de seu
foco original e invadir todos os outros pontos comparáveis, no intuito de fixar e
atestar as próprias posições. A apostasia teórica ou religiosa incita as duas partes a
um recíproco anátema em todos os domínios: éticos, pessoais, interiores ou
exteriores; coisa que não teria sido necessária se a diferença se manifestasse entre
estranhos. E mesmo assim, é sintomático o fato de que, na maioria das vezes, para
que uma diferença de opiniões degenere em ódio e confrontos é preciso ter existido
similitudes essenciais entre as partes. No geral, quando a inimizade nasceu de
antigas solidariedades, não existe “respeito pelo inimigo”, fenômeno muito
importante do ponto de vista sociológico. Pois, quando ainda subsiste suficiente
similitude para dar lugar a confusões e apagar as fronteiras trabalhosamente
desenhadas, é preciso sublinhar os pontos de desacordo com uma firmeza que,
muitas vezes, não se encontra justificada pela questão em debate, mas pelo desejo
de evitar aquele “perigoso engano”. É o que sucedeu, por exemplo, no caso
supracitado dos “católicos velhos” de Berna. O catolicismo romano não se sentia
ameaçado em sua peculiaridade por um contato fugaz com uma Igreja tão
acabadamente díspar como a Reformada, mas sim pela proximidade (mesmo
circunstancial) com uma igreja que estava muito próxima dele como a dos “católicos
velhos”.
Esse exemplo nos faz abordar o segundo dos tipos que aqui se apresentam e
que, na prática, coincide em maior ou menor grau com o tipo precedente. Referimo-
nos à inimizade, cuja violência se funda em uma pertença e unidade comuns – coisa
que nem sempre significa similitude. O que justifica tratar esse tipo separadamente
é que, nele, em lugar da sensibilidade para as diferenças, surge outro motivo
Georg Simmel | 309

fundamental completamente distinto: o fenômeno singular do ódio social, quer dizer,


do ódio contra um membro do grupo, não por motivos pessoais, mas porque
representa um perigo para a existência do grupo. Na medida em que o perigo
provenha de uma dissensão dentro do grupo, uma das partes não odeia unicamente
o outro pela razão material que deu lugar à disputa, mas também pela razão
sociológica: acostumamos a odiar o inimigo do grupo. E como o ódio é recíproco e
cada um de nós considera que o outro é que põe o grupo em perigo, agrava-se o
antagonismo justamente porque ambas as partes pertencem à mesma unidade
coletiva.
Os casos mais característicos são aqueles que não produzem uma verdadeira
fragmentação do grupo, pois isso quer dizer em certo sentido que o conflito tem sido
resolvido, que a disputa pessoal se descarregou sociologicamente, desaparecendo o
acicate e o incentivo de constantes e renovadas irritações. Para chegar a esse
resultado, porém, é preciso uma tensão ativa entre a hostilidade e a pertença ao
mesmo grupo. Assim como é terrível estar zangado com um ente com quem, apesar
de tudo, estamos vinculados – exteriormente, mas nos casos mais trágicos, também
intimamente – e do qual não podemos nos separar ainda que o queiramos, também
o rancor cresce quando não queremos separar-nos da comunidade porque não
podemos sacrificar os valores que se derivam da pertença a uma unidade mais
ampla, ou porque sentimos admiração ou respeito por essa unidade que
identificamos como um valor objetivo que merece que odiemos e lutemos por ela
quando está ameaçada. Conjunturas desse gênero engendram a violência que
caracteriza, por exemplo, os conflitos no seio de uma fração política, de um sindicato
ou de uma família.
A alma individual nos oferece uma analogia. O sentimento de que um conflito
entre nossas aspirações (sensuais e ascéticas, egoístas e morais, ou práticas e
intelectuais) não só enfraquece em nós uma das duas partes, ou as duas (impedindo
que elas se desenvolvam livremente), mas que frequentemente também ameaça a
unidade, o equilíbrio e a energia da alma por inteiro, pode permitir, em muitos casos,
que o conflito se resolva desde o início, antes de sua irrupção. No entanto, se não for
esse o caso, à luta terá algo de impiedoso e desesperado, como se em realidade se
lutasse por algo mais essencial do que o objeto imediato do conflito. A energia com
310 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que cada uma das tendências procura dominar à outra não se alimenta só de seus
interesses egoístas, mas também do interesse superior na unidade do eu, para quem
esse conflito significa divisão e colapso se não acabasse com o triunfo inequívoco
de uma das partes. Da mesma maneira, os conflitos dentro de um grupo
estreitamente unido vão além do que exigiria o objeto e o interesse imediato de seus
elementos, já que se acrescenta a ele o sentimento de que o conflito não é apenas da
conta das partes, mas do grupo no seu conjunto. Cada parte luta assim em nome do
grupo, não devendo somente odiar na pessoa do adversário a seu próprio inimigo,
mas também ao inimigo da mais alta unidade sociológica a qual pertence.
Finalmente, existe um fato que em aparência seria exclusivamente individual
e que, entretanto, tem grande importância sociológica, porque vincula a extrema
violência do antagonismo com a intimidade no modo de proceder com outrem.
Referimos-nos aos ciúmes. A língua corrente não faz um uso inequívoco desse
conceito que, com frequência, é confundido com a inveja. Com certeza, essas duas
paixões desempenham papel extremadamente importante na estrutura das relações
humanas. Em ambas estamos a falar de um valor que um terceiro nos impede de
adquirir ou de guardar real ou simbolicamente. Quando se trata de sua consecução
falaremos preferencialmente de inveja, referindo-nos aos ciúmes quando o que está
em jogo é a conservação; advertindo que, naturalmente, o que importa não é a
distinção das palavras, mas a dos processos psicológicos que as palavras designam.
É característico do que designamos com o nome de ciúmes o fato de que o sujeito
ciumento acredite ter direito à possessão que afirma, enquanto na inveja, o sujeito
invejoso não se preocupa do direito, mas simplesmente de quão apetecível é o objeto
invejado, sendo-lhe indiferente que este bem lhe seja negado porque o possuí um
terceiro ou por causas que não remediaria o terceiro se perdesse o bem ou
renunciasse a ele. Em compensação, os ciúmes recebem sua direção e colorido
próprios precisamente pelo fato de que, se não podemos possuir um bem, é porque
ele se encontra nas mãos do outro, mas viria às nossas assim que esse obstáculo
fosse removido. Enquanto os sentimentos do invejoso giram sempre em torno do
objeto possuído, os do ciumento convergem para aquele que o possui. Pode-se
invejar a glória de alguém, ainda que aquele que sente inveja não tenha nenhum
direito a essa glória. Mas terá ciúmes do glorificado quem acredite merecer sua glória
Georg Simmel | 311

tanto quanto (ou mais) que ele. O que amargura e corrói a alma do ciumento é certa
ficção do sentimento – por injustificada e até insensata que seja – que lhe faz
acreditar que o outro lhe tem roubado o que lhe corresponde. Os ciúmes são um
sentimento de tão específica índole e intensidade que, uma vez engendrados por
qualquer combinação na alma, a situação típica completa da qual eles
precisam.sempre se constrói interiormente.
À igual distância, por assim dizer, da inveja e dos ciúmes definidos desse
modo, existe um terceiro estado emocional complexo situado nessa escala, e que
consiste em uma espécie de inveja malévola à qual podemos atribuir o nome de
despeito. Trata-se da apetência invejosa por um objeto não porque seja
particularmente desejado pelo o sujeito despeitado, mas apenas porque outro o
possui. Esse ressentimento se desenvolve em dos extremos que desembocam na
negação da própria posse. Por um lado, temos a forma apaixonada que prefere
renunciar ao objeto ou ainda destruí-lo, antes de consentir que o possua um terceiro.
Por outro lado, está a forma desdenhosa que consiste em sentir indiferença ou
aversão em relação com o objeto e, no entanto, achar intolerável a ideia de que outro
o possua. Essas formas de inveja malévola perpassam a conduta recíproca entre os
homens de mil maneiras em combinações diferentes, ocupando boa parte do vasto
campo de problemáticas sobre o qual se constituem as relações daqueles com as
coisas, como causa ou efeito de sua mútua interação. Não se trata aqui apenas de
apetecer-se por dinheiro ou poder, por amor ou posição social, da mesma forma que
a concorrência ou qualquer outra maneira de superar ou de eliminar uma pessoa não
é mais que uma simples técnica não muito diferente no fundo do fato de vencer um
obstáculo físico. Os sentimentos concomitantes que acompanham essa relação
(externa e meramente secundária das pessoas) evoluem nessas variantes do
despeito chegando a adquirir formas sociológicas próprias, nas quais a apetência por
objetos não é mais do que o conteúdo aparente, o que resulta de que nos últimos
graus da série se tenha suprimido completamente o interesse pelo conteúdo objetivo
do fim e só se conserve este como material totalmente indiferente em torno do qual
se cristaliza a relação pessoal.
Dessa base geral se deriva a importância dos ciúmes para nosso problema
particular, especialmente quando seu conteúdo é uma pessoa ou ainda a relação de
312 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

um sujeito com ela. De resto, parece que a língua corrente não reconhece a existência
de ciúmes provocados por um objeto puramente impessoal. O que interessa é a
relação entre o ciumento e o amor à pessoa pela qual surgem seus ciúmes em face
de um terceiro: a relação com a terceira pessoa tem um caráter formal sociológico
completamente distinto, bem menos peculiar e complicado. Pois, se este terceiro se
torna um objeto de cólera e de ódio, de desprezo e crueldade é justamente porque se
pressupõe a existência de um sentimento de pertença a um espaço comum, de um
direito interno ou externo, real ou imaginado, ao amor, à amizade, ao respeito ou a
uma aproximação, seja ela qual for. O antagonismo, seja ele bilateral ou unilateral, é
mais forte e amplo quanto mais incondicional seja a unidade sobre a qual surge e
quanto mais ansiosamente se procure superá-lo. Se a consciência do ciumento
parece tão frequentemente oscilar entre o amor e o ódio, é porque ambos os
sentimentos (o segundo se alça sobre o primeiro em toda sua extensão) ocupam
sucessivamente o lugar de destaque.
A condição anteriormente mencionada é muito importante: acreditar em um
direito à posse espiritual ou física, ao amor ou à veneração da pessoa que constitui
o objeto dos ciúmes. Um homem pode invejar outro homem pela posse de uma
mulher, mas somente aquele que pensa ter um direito qualquer de possuí-la será
ciumento. Essa pretensão pode, aliás, confundir-se com a simples força do desejo,
pois é uma característica dos humanos em geral a tendência a deduzir um direito do
vivo desejo: a criança se desculpa de não ter cumprido uma ordem dizendo que “tinha
muita vontade de fazer isso” que era proibido; assim como em um duelo, o amante
que conservasse um resto de consciência não poderia disparar contra o marido
ofendido se não considerasse que seu amor pela esposa do rival lhe confere um
direito sobre a adúltera que ele defende contra o mero direito legal do cônjuge traído.
Da mesma maneira que se considera na maior parte dos casos que o mero fato de
possuir equivale já ao direito de possuir, o estágio prévio da posse, a apetência, se
converte também em um direito, assim como o duplo sentido da palavra “reivindicar”
(intentar demanda para reaver algo sobre o que se tem direito, e pedir ou solicitar
algo com vigor como se tivesse direito de fazê-lo) demonstra que a vontade tende a
acrescentar ao direito de sua força, a força de um direito.
Georg Simmel | 313

Sem sombra de dúvida, a emergência dessa pretensão jurídica é a que


frequentemente dá aos ciúmes um aspecto lamentável: embasar em argumentações
jurídicas sentimentos como o amor ou a amizade é proceder com meios totalmente
inadequados. O plano em que está situado o direito subjetivo tanto interno como
externo não tem nenhum ponto comum com aquele no qual se encontram os
sentimentos mencionados. Pretender forçar tais afeições invocando as virtudes
supostamente encantatórias do direito, mesmo o bem fundado e adquirido, é tão
absurdo como querer persuadir ao pássaro com palavras a voltar à gaiola da qual
conseguiu escapar. Esta vã reivindicação do direito ao amor dá origem a um
fenômeno muito característico dos ciúmes e dos ciumentos. Procurando algo em que
se segurar, os ciumentos ficam presos às manifestações externas do sentimento que
podem obter apelando ao senso do dever, conservando graças a essa mísera
satisfação e engano de si próprios o corpo material da relação como se nele ainda
restasse um fiapo de sua alma.
Tal reivindicação de um direito, elemento essencial dos ciúmes, muitas vezes,
é plenamente acatada como tal pela outra parte. Como todo direito que diz respeito
a duas pessoas ela expressa ou fundamenta a existência ideal ou legal de um vínculo
entre elas, de uma espécie de relação positiva ou, ao menos sua antecipação
subjetiva. Todavia, esse vínculo, que continua agindo, ora também engendra sua
negação, criando a conjuntara favorável aos ciúmes. Mas, à diferença do que sucede
em outros casos em que se conjugam unidade e antagonismo, uma e outro não se
distribuem em campos distintos, reunidos ou mantidos face a face apenas pela
personalidade que os abriga. Ocorre que essa unidade, mantida às vezes pela
complacência culpada de uma das partes, é negada real ou idealmente. O sentimento
dos ciúmes gera então um rancor particularíssimo, ofuscante e irreconciliável entre
as pessoas, permitindo que aquilo que as separa se apodere finalmente do ápice que
as mantinha unidas, emprestando ao momento negativo a mais extremada violência.
Essa relação formal sociológica domina inteiramente o âmbito da
individualidade e explica a extraordinária variedade, verdadeiramente infinita, dos
motivos que alimentam os ciúmes, e o absurdo com que procedem. Sempre que a
estrutura da relação se preste de antemão a essa reunião de sínteses e antíteses ou
que essa disposição se dê na alma do indivíduo, toda ocasião produzirá
314 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

consequências que obrarão mais facilmente quanto mais vezes já tenham agido. E
como toda palavra e ação humanas permitem variadas interpretações quanto a seu
propósito e intenção, elas oferecem um instrumento apropriado aos ciúmes que não
admitem mais do que uma única interpretação. Os ciúmes podem combinar o ódio
mais violento com a persistência do mais apaixonado amor, assim como o
sentimento da mais íntima comunidade com o aniquilamento de ambas as partes
– pois o ciumento destrói a relação assim como ela o induz a destruir o outro. Por
isso talvez o ciúme seja o fenômeno sociológico no qual a construção do
antagonismo a partir da unidade adquire sua forma subjetiva mais radical como
sentimento.
Os fenômenos agrupados na noção de concorrência nos oferecem tipos
particulares dessa síntese. Em primeiro lugar, o que determina a natureza sociológica
da concorrência é que se trata de uma disputa indireta. Aquele que elimina
imediatamente o adversário ou afasta-o sem cerimônias de seu caminho, não
concorre com ele. A língua corrente só admite a utilização do termo de concorrência
quando a luta implica esforços parciais paralelos de ambas as partes com o
propósito de alcançar um único e mesmo objetivo. As diferenças que distinguem
esse tipo de conflito de todos os outros podem ser sintetizadas da seguinte maneira:
a forma pura da concorrência não é primeiramente nem ofensiva nem defensiva
porque o que está em jogo na luta não se encontra nas mãos de nenhum dos
adversários. O homem que combate outro para pegar seu dinheiro, sua mulher ou sua
glória, usa uma técnica de comportamento muito distinta da empregada por aquele
que concorre com outrem para saber quem vai enfiar o dinheiro do público no seu
bolso, ganhar os favores de uma mulher ou beneficiar-se de maior notoriedade por
atos e palavras.
Em muitas outras classes de luta, a vitória sobre o adversário não acarreta um
prêmio, mas ela mesma é já esse galardão. No caso da concorrência, duas outras
combinações aparecem. Quando a vitória sobre o concorrente é cronologicamente
um primeiro quesito obrigatório, ela não significa ainda nada por si mesma, já que o
objetivo da ação só será alcançado quando se obtenha certo valor que, por natureza,
é absolutamente independente dessa luta. O comerciante que divulga com sucesso
entre o público o boato de que seu concorrente era insolvente, ainda está longe de ter
Georg Simmel | 315

ganhado se, por exemplo, muda subitamente a apreciação crítica do público sobre as
mercadorias que ele oferece. O amante que elimina ou ridiculariza seu rival, não
avançou um centímetro sequer se a dama rejeita também suas investidas amorosas.
Para que um prosélito pertença a uma confissão que procura converter-lhe não basta
que ela tenha desqualificado os credos concorrentes demonstrando sua
insuficiência. Será preciso, além disso, que a alma daquele adepto sinta
precisamente as necessidades que essa profissão de fé possa satisfazer. O que dá
uma coloração particular a esse tipo de luta concorrencial, é que o resultado do
confronto não significa por si mesmo a consecução do seu objetivo, como ocorre nos
casos em que o conflito está motivado pela cólera ou vingança, pelo castigo ou valor
ideal da própria vitória.
O segundo tipo de concorrência provavelmente se distingue ainda mais das
outras formas de confronto. A luta aqui consiste apenas no fato de que cada um dos
concorrentes visa o objetivo sem empregar a força contra o adversário. O corredor
que só se importa com sua própria rapidez; o comerciante que somente age tendo
em vista o preço de suas mercadorias; o militante propagandista que leva em conta
unicamente a força persuasiva de sua doutrina: eis exemplos desse espantoso tipo
de conflito, que se iguala a todos os outros em violência e empenho apaixonado dos
esforços consentidos, que é impulsionado a esse extremo pela ação do adversário,
mas que, todavia, vista do exterior, procede como se não existisse adversário algum,
e apenas houvesse um objetivo a alcançar. Por acréscimo, como ela não se desvia
nunca desse objetivo, essa forma de concorrência pode apresentar-se de modo que
o antagonismo seja puramente formal e não só sirva a um fim comum de ambas as
partes, mas que a vitória do vencedor possa também ser proveitosa ao vencido.
Quando do sítio de Malta pelos turcos em 1565, o Grande Mestre da Ordem dividiu as
fortalezas da ilha entre as diferentes nações as quais pertenciam os cavaleiros que
a defendiam, de maneira que a competição para saber qual seria a mais brava devia
servir à defesa do conjunto. Achamos-nos aqui diante de um genuíno caso de
concorrência em que se exclui a priori causar algum prejuízo ao adversário que
pudesse incapacitá-lo para o comprometimento de suas forças na competição. Se
esse exemplo é tão perfeito, é porque ainda que o desejo de vencer nesse combate
pela honra seja o estímulo que desencadeia este emprego tão peculiar da força, a
316 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

vitória só pode ser alcançada de maneira tal que seus resultados se estendam
também ao vencido.
Analogamente, em todas as competições de emulação no campo científico
aparece uma luta que não se torna contra o adversário, mas para um fim comum,
supondo-se que o conhecimento produzido pelos achados do vencedor represente
também um benefício e um sucesso para o vencido. Nas justas artísticas amiúde
falta essa sublimação do princípio, porque diante do caráter individualista da arte,
ambas as partes não são conscientes do valor total objetivo do qual elas participam
em igual medida, mesmo se ele só existe no mundo das ideias. Essa carência de
entendimento é ainda mais visível no caso da concorrência comercial com vistas à
realização plena do mercado que, todavia, insere-se no âmbito do mesmo princípio
formal. Eis que também nessa esfera a concorrência visa imediatamente à eficácia
mais acabada, e seu resultado é o proveito de um terceiro ou do conjunto. Por
conseguinte, nessa forma a subjetividade do fim último se abraça do modo mais
singular à objetividade do resultado final, permitindo que uma subjetividade
supraindividual, objetiva ou social, envolva as partes e sua rivalidade. Luta-se assim
contra o adversário sem ficar contra ele; quase poderíamos dizer que sem sequer
tocar-lhe. Dessa maneira, os impulsos subjetivos antagônicos nos conduzem à
realização de valores objetivos, e a vitória não é propriamente o resultado de um
conflito, mas da consecução de valores para além do antagonismo.
Nisto consiste o enorme valor da concorrência para o círculo social, no caso
de se manterem os concorrentes dentro desse coletivo. Nos outros tipos de
confronto – nos quais o prêmio da vitória está de antemão em poder de uma das
partes ou o motivo da luta radica na hostilidade subjetiva e não na obtenção de um
prêmio –, os valores e forças dos contendores se destroem reciprocamente. Com
frequência não resta como resultado à totalidade mais do que aquilo que a simples
subtração da força mais fraca deixa a mais forte. Pelo contrário, a concorrência,
quando não é alterada por outras formas de luta, aumenta no geral a provisão de
valores graças à incomparável combinação de seus elementos: desde o ponto de
vista do grupo, oferece motivos subjetivos como meios para produzir valores sociais
Georg Simmel | 317

objetivos, e desde o ponto de vista das partes utiliza a produção de valores objetivos
como meio de obter satisfações subjetivas21.
No entanto, essa elevação do valor do conteúdo, que a concorrência consegue
produzir graças a sua forma peculiar de ação recíproca, não é tão importante neste
caso como a imediatamente sociológica. Na medida em que o objetivo visado pela
concorrência das partes dentro de uma sociedade consiste geralmente em obter o
favor de uma ou numerosas terceiras pessoas, ele obriga às duas partes
concorrentes atrair esse terceiro cuja adesão se procura. Habitualmente ressaltam-
se os efeitos corruptores, devastadores e dissociadores da concorrência sem
reconhecer outra vantagem que a daqueles valores concretos que se podem
conseguir por seu intermédio. Mas, junto a isso se esquece com demasiada
frequência que, apesar de tudo, se deve ter em conta seu enorme poder de sociação.

21
Eis um modelo ou padrão que funciona como essência e princípio explicativo deste tipo frequente:
o meio é à espécie, ao grupo, em síntese, à entidade geral, o que a finalidade é ao indivíduo, e vice-
versa. Esse tipo se aplica especialmente e em muito ampla medida à relação do homem com a
realidade metafísica, quer dizer, com Deus. Quando surge a ideia de um plano divino universal, os fins
últimos dos entes individuais não são mais que etapas e meios que ajudam a alcançar o objetivo final
absoluto de todos os movimentos terrenos, tal como se encontram no espírito divino. Mas, para o
sujeito, dada a incondicionalidade de seu interesse pessoal, não só a realidade empírica, mas também
a transcendente são simples meios para seu fim. O bem-estar na Terra ou a salvação na eternidade,
a felicidade da serena perfeição ou da extática contemplação divina são procurados pelo homem
através de Deus, Providência universal. Do mesmo modo que Deus, como ser absoluto, se realiza
dando um rodeio através do homem, este chega a si mesmo dando um rodeio através de Deus. Há
muito tempo que se tem observado isso no que tange a relação entre o indivíduo e sua espécie, em
sentido biológico: a satisfação erótica que é para aquele um fim último, justificado em si mesmo, não
é para esta mais que o meio pelo qual se assegura sua persistência para além do instante. A
conservação da espécie que pode ser considerada, pelo menos metaforicamente, como seu fim não é
para o indivíduo, amiúde, mais do que o meio de perpetuar-se a si mesmo através de seus filhos, de
conseguir para seu patrimônio, suas qualidades e sua vitalidade, uma espécie de imortalidade. Nas
relações sociais, esse é o sentido do que se denomina harmonia de interesses entre a sociedade e o
indivíduo. A atividade deste último se regula para que sustente e desenvolva as disposições jurídicas
e morais, políticas e culturais dos homens; mas isso só se consegue quando os interesses próprios
do indivíduo, eudemonísticos e morais, materiais e abstratos se apoderam daqueles valores
supraindividuais, utilizando-os como meios: assim, a ciência, por exemplo, é um conteúdo da cultura
objetiva e, como tal, um fim último autônomo da evolução social que se basta a si mesmo e que se
realiza por meio do instinto individual de conhecimento, enquanto para o indivíduo a ciência existente,
junto com a elaborada por ele, não é mais do que um meio para satisfazer sua ânsia pessoal de
conhecimento. É verdade que estas relações não oferecem sempre tão harmoniosa simetria; pelo
contrário, frequentemente escondem a contradição segundo a qual tanto o todo quanto a parte se
tratam a si mesmos como fins últimos e, por conseguinte, os outros como meios, sem que nenhum
dos dois queira aceitar o papel de meio. Resultam daqui atritos que se fazem sentir em todos os pontos
da vida e que só permitem realizar-se aos fins do conjunto como aos das partes ao preço de certas
perdas. O desgaste recíproco das forças que não contribuem com nenhuma ajuda positiva ao
resultado final e a inutilidade das que se revelam mais fracas: eis em que consistem as perdas dentro
da concorrência que demonstra para além, com tanta clareza a simetria das séries de finalidades
convergentes. (NS)
318 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

A concorrência obriga, com efeito, o competidor, que vê um rival – e que amiúde não
seria um competidor sem isso –, a antecipar-se a ele e ir ao encontro do terceiro que
se quer convencer, a satisfazer os seus gostos, a juntar-se a ele, a descobrir seus
pontos fortes e fracos para se adaptar a eles, e a achar ou construir todos os atalhos
que poderiam ligar sua própria pessoa e seu próprio trabalho ao do outro. É verdade
que isso ocorre muitas vezes ao custo da dignidade pessoal e do valor objetivo da
produção. Sobretudo porque a concorrência entre os que possuem um nível cultural
e intelectual elevado e diferenciado induz àqueles que se destinam a conduzir as
massas, a se submeterem a elas. Pois, se querem exercer com sucesso a função de
professor ou chefe de partido, de artista ou jornalista será preciso obedecer aos
instintos e caprichos das grandes maiorias que são as que escolhem entre os
diversos competidores.
Sem dúvida, desse modo se verifica uma inversão das categorias e dos valores
sociais da vida, mas isso em nada diminui o valor formal da concorrência para a
síntese da sociedade. Ela chega incontáveis vezes a realizar o que só o amor pode
conseguir: adivinhar os mais íntimos desejos de outra pessoa mesmo antes que ela
esteja ciente deles. A tensão antagônica contra o concorrente aprimora a
sensibilidade do comerciante para captar as tendências do público até quase dar-lhe
uma espécie de sexto sentido apto a perceber as mudanças iminentes dos seus
gostos, das suas modas e dos seus interesses. Mas esse não é, todavia, um
fenômeno limitado apenas aos comerciantes, pois também acontece entre outros
aos jornalistas, aos artistas, aos editores e aos parlamentares. Por isso, a
concorrência moderna, definida como uma guerra desordenada de todos contra
todos, é simultaneamente um combate de todos por todos. Ninguém poderá negar
que há algo muito trágico no fato de que os elementos da sociedade ajam uns contra
os outros em vez de trabalhar em parceria; que inumeráveis forças estão a ser
desperdiçadas para combater um competidor quando poderiam ter sido utilizadas
em um trabalho positivo, e que até mesmo uma obra positiva e séria não serve de
nada nem será utilizada ou recompensada quando concorre com outra mais valiosa
ou somente mais atrativa. Todo este passivo da concorrência no balanço social está
contrapesado, porém, pela enorme força de síntese que a concorrência representa na
sociedade, que é uma competição pelo homem, uma luta constante pelo aplauso e a
Georg Simmel | 319

despesa, para obter concessões e sacrifícios de todo tipo; um combate dos poucos
para a conquista dos muitos, assim como dos muitos para a conquista dos poucos;
em uma palavra, um tecido de milhares de fios sociológicos, em que a consciência
se concentra sobre a vontade, o sentimento e o pensamento dos outros, que aqueles
que oferecem se adaptam aos que procuram, e que se multiplica com engenhosidade
as possibilidades de agradar aos outros e comprometer sua aprovação. Desde que a
solidariedade acanhada e ingênua das organizações primitivas e sociais foi
substituída pela descentralização, que foi o resultado imediato do alargamento
quantitativo dos círculos, parece que os esforços dos homens por conquistar seus
semelhantes e a adaptação de uns aos outros só são possíveis pagando o preço da
concorrência, quer dizer, lutando simultaneamente para eliminar um rival e para
seduzir um terceiro com quem acaso se compete em alguma outra esfera para obter
o favor do precedente.
Com a ampliação e a individuação da sociedade, muitos interesses que
mantêm unidos os membros do círculo só parecem estar vivos quando o conflito que
encerra a concorrência é suficientemente encarniçado e intenso como para impô-los
ao sujeito. Contudo, a força de sociação da concorrência não só aparece nesses
casos grosseiros e, por assim dizer, oficiais. Em incontáveis combinações, tanto na
vida familiar como nas relações eróticas, na conversação mundana como nas
polêmicas em torno de sérias convicções, nas sinceras manifestações de amizade
como no reconhecimento lisonjeiro que exterioriza a bajulação, encontramos duas
pessoas que competem para conquistar o favor de uma terceira, amiúde através de
meros sinais, gestos ou sugestões logo abandonados como aspectos parciais de um
fenômeno mais amplo. Particularmente, o antagonismo dos concorrentes
corresponde (em qualquer lugar onde a concorrência apareça) a uma oferta ou a um
processo de forte atração, a uma promessa ou a uma aliança que põe cada um dos
competidores em relação com um terceiro. Dessa forma, essa relação conflituosa
adquire (especialmente para o vencedor do confronto resultante) uma intensidade
que não teria conseguido sem a comparação singular e constante entre a própria
capacidade de sedução e a do concorrente, que só a concorrência permite e que os
acasos dela trouxeram a lume. Quanto mais o liberalismo penetra não só nas esferas
políticas e econômicas, mas também nas familiares e sociais, nas religiosas e
320 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

amistosas, e no trato geral entre as pessoas, quer dizer, quanto menos essas relações
estão predeterminadas e reguladas por normas históricas gerais e são abandonadas
aos equilíbrios instáveis e às conjunturas que variam de caso para caso, tanto mais
sua conformação depende de constantes concorrências. O resultado dependerá, por
sua vez, na maioria dos casos, dos diferentes graus de interesse, amor e esperança
que os concorrentes saibam suscitar em um ou em vários terceiros que estão no
centro dos movimentos concorrentes.
Tanto direta como indiretamente, o homem é o objeto mais precioso para o
próprio homem. Porque nele se acumulam as energias da natureza animal, que estão
nos animais que comemos ou que fazemos trabalhar para nós, assim como se
acumulam no reino vegetal, onde se armazenam as energias do sol, terra, água e ar.
O homem é o ente que resume o essencial do processo gradativo e progressivo das
mudanças e da seleção natural das espécies ao longo do tempo, e por isso é o mais
susceptível de aproveitamento. Assim, na medida em que cessa a escravidão, quer
dizer, o aproveitamento mecânico do homem, aumenta a necessidade de assumir o
controle espiritual dele. Dessa forma, a luta contra o homem, que supôs o intuito de
conquistá-lo e privá-lo de sua liberdade para submetê-lo à vontade de um senhor, foi
trocada por esse fenômeno complexo que é a concorrência, na qual o homem
enfrenta outro homem, pela conquista de um terceiro. Conquista que unicamente
pode conseguir-se pelos meios sociológicos da persuasão ou da convicção, pelo
aumento ou diminuição de uma oferta, pela sugestão ou a ameaça, em suma, pela
criação de um nexo espiritual, que (mesmo em caso de sucesso) se limita à criação
de um vínculo – que pode ser tão efêmero como aquele que se verifica comprando
em uma loja ou tão pleno de consequências como o casamento. À medida que
aumenta em nossa cultura a riqueza e intensidade em conteúdo da vida, é preciso
que a luta pelo bem de maior espessura intelectual e emocional, a alma humana,
ocupe um espaço maior aumentando e aprofundando consequentemente as ações
recíprocas que reúnem os homens e que constituem seus meios e objetivos.
Fica claro que o caráter sociológico dos círculos sociais se diferencia muito
segundo a quantidade e natureza das concorrências que eles permitam.
Evidentemente, esse é um aspecto do problema da correlação, a qual cada uma das
afirmações feitas até aqui fornece o seu contributo: existe uma relação entre a
Georg Simmel | 321

estrutura de um círculo social e a quantidade admissível de conflitos entre seus


elementos. No caso de um grande grupo político é a lei penal que com frequência fixa
o limite até que ponto o conflito e a vingança, os atos de violência e os tratamentos
de favor são compatíveis com a existência do conjunto visto como um todo. Todavia,
esta definição do conteúdo da lei penal como mínimo ético não é completamente
exata. Um Estado colapsaria se, mesmo evitando estritamente tudo o que a lei penal
proíbe, se realizassem nele todas as agressões, prejuízos e querelas ainda
compatíveis com a dita lei. Todas as leis penais já têm em conta o fato de que a
maioria das energias destrutivas será impedida de manifestar-se graças a certos
freios que não têm nada a ver com as prescrições da autoridade soberana. Por
conseguinte, o mínimo de moralidade e de paz sem o qual não poderia subsistir a
sociedade civil, vai além das categorias tipificadas pela lei penal, considerando-se de
princípio, empiricamente, que essas perturbações não castigadas não ultrapassarão
por si mesmas a medida do socialmente suportável.
Quanto mais estreitamente unido esteja o grupo, mais opostas podem ser as
significações da inimizade de seus membros. Por uma parte, o grupo, justamente por
sua intimidade, poderá suportar sem se dissolver certo antagonismo interno, porque
as forças de síntese têm suficiente energia para compensar as forças antitéticas.
Mas, por outra parte, quando o princípio vital de um grupo implica unidade e
solidariedade importantes, também pode encontrar-se singularmente ameaçado
pelas discórdias internas. Como se vê, o mesmo caráter centrípeto do grupo irá torná-
lo mais ou menos resistente às dissensões entre seus membros. Tudo dependerá
das demais circunstâncias, a tal ponto que em uniões tão marcadas pela intimidade
e convivência como o casamento encontraremos simultaneamente ambos os casos.
Com efeito, fora do casamento não existe outra forma de união que possa
tolerar ódios tão ferozes, antipatias tão completas, ofensas e enfrentamentos tão
frequentes sem desagregar-se ostensivelmente. Por outra parte, é uma das poucas,
senão a única das relações que, por uma pequena fratura exteriormente imperceptível
e ainda impossível de traduzir em palavras, por um simples gesto ameaçador, pode
perder de tal modo sua profundidade e beleza que nem a mais apaixonada vontade
dos parceiros seria capaz de restabelecê-la. Em compensação, nos grupos de
maiores proporções existem duas estruturas, aparentemente opostas em todas suas
322 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

partes, que permitirão tornar exequíveis numerosas manifestações internas de


discórdia entre os membros. Trata-se, em primeiro lugar, de vínculos superficiais,
fáceis de entretecer e que produzem certa solidariedade orgânica entre os elementos
do grande círculo. Graças a eles é relativamente fácil reparar os danos produzidos ao
acaso por confrontos hostis, pois os membros outorgam ao grupo suficiente valor ou
força como para conceder aos indivíduos isolados certa liberdade para entregar-se
a determinados comportamentos conflituosos na segurança que o consumo de
forças determinado pelos antagonismos será compensado por outros “ativos
sociais”, por assim dizer. Eis a razão pela qual as coletividades bem organizadas
podem suportar mais rupturas e atritos que os conglomerados mais mecânicos,
carentes de laços de solidariedade interna. A coesão a que podem chegar integrantes
de um grande círculo por organizações harmoniosas é capaz de equilibrar o “ativo” e
o “passivo” de sua vida social e mobilizar as forças disponíveis no lugar preciso onde
se tenha produzido alguma fraqueza por discórdias ou desavenças entre os membros
ou por outra causa qualquer.
O mesmo efeito geral produz, porém, a estrutura inversa, que age de modo
semelhante aos porões dos navios mercantes, feitos de numerosos compartimentos
estanques, uns em relação aos outros, de modo que em caso de avaria do casco a
água não pode invadir todo o espaço entre o duplo-fundo e a coberta superior. Nesse
sentido, o princípio social aqui também é o do isolamento, aplicado em nosso caso
às partes enfrentadas, que deverão concertar entre si seus conflitos e suportar por si
mesmas o ônus de suas discórdias, sem transladá-lo à totalidade do círculo. Fazer a
justa escolha ou combinação dos dois métodos: o da solidariedade orgânica, em que
o todo responde aos danos produzidos pelos conflitos parciais e o do isolamento, em
que o todo se recusa a responder por esses danos, é naturalmente uma questão
fundamental para a vida de uma associação, desde a família até o Estado, desde os
grupos que se mantêm por interesses econômicos até os que se sustentam no
compartilhamento de um princípio espiritual. Os extremos estão representados, de
um lado, pelo Estado moderno que não só suporta as lutas dos partidos políticos, a
pesar do desperdício que elas provocam, mas que as utiliza para favorecer seu
equilíbrio e evolução; e do outro, pelas cidades-estados da Antiguidade e da Idade
Média que se enfraqueciam amiúde até desaparecer a causa das lutas intestinas
Georg Simmel | 323

entre os partidos. No geral, quanto maior seja um grupo, em melhores condições se


encontrará para combinar ambos os métodos, de forma tal que as partes assumam
entre elas os inconvenientes primários provenientes do conflito, enquanto os efeitos
secundários que afetem a vida do grupo como um todo, poderiam ser arcados por
este último – uma combinação visivelmente difícil para um pequeno grupo, cujos
elementos estão consequentemente muito próximos uns dos outros.
Regressando ora à relação particular entre a concorrência e a estrutura do
círculo onde ela se verifica, coloca-se, em primeiro lugar, a questão de saber se os
interesses que constituem o conteúdo do círculo podem determinar por si mesmos
uma forma que proíba ou limite a concorrência, ou se o círculo, acessível em si
mesmo à concorrência, se vê impedido de entregar-se a ela em virtude da história
particular de sua formação e por causa de princípios universais além dos interesses
em questão. No primeiro caso são precisas duas condições. Está claro que há
concorrência quando um bem escasso – isto é, que não existe em quantidade
suficiente para satisfazer a todos os interessados ou que não é acessível para todos
eles – fica reservado ao vencedor da competição. Exclui-se evidentemente a
competição quando os elementos do grupo não aspirem a possuir um bem que todos
desejariam por igual, ou quando, aspirando todos a obtê-lo, esse bem fosse
suficiente para satisfazer de igual maneira a todos os aspirantes. Presume-se que o
primeiro caso ocorre sempre que a sociação seja ocasionada não por um terminus
ad quem comum, um fim compartilhado, mas por um mesmo terminus a quo, uma
raiz unitária. Assim acontece antes de tudo na família. Com certeza, podem surgir
nela concorrências ocasionais: os filhos podem concorrer pelo amor ou pela herança
dos pais, ou estes pelo amor de seus filhos. No entanto, as concorrências estão
determinadas por contingências pessoais – por exemplo, quando dois irmãos
comerciantes disputam como operadores de um mesmo mercado – e sem relação
com o princípio da família. Este princípio é, com efeito, aquele de uma vida orgânica,
em que o organismo é em si mesmo seu próprio fim, e como tal ele não reenvia a um
fim distinto de si próprio, para cuja conquista seria precisa a concorrência entre seus
elementos. Sem dúvida, a inimizade puramente pessoal que brota da
incompatibilidade dos caracteres é sofrivelmente contrária ao princípio de paz sem
o qual a família não pode subsistir no longo prazo. Porém, também é certo que a
324 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

intimidade da convivência, a solidariedade social e econômica, e a presunção em


certo modo coativa de unidade são singularmente propícias aos atritos, tensões e
oposições. Até diríamos que o conflito familiar constitui uma forma de luta sui
generis. Suas causas, seu agravamento, sua extensão a outras partes que não tinham
originariamente participação nele, assim como as características do confronto e a
reconciliação são completamente peculiares porque têm lugar sobre a base de uma
unidade orgânica baseada em uma miríade de vínculos internos e externos, pelo que
não se compara com nenhum outro conflito. Todavia, falta a concorrência neste
complexo de causas toda vez que o conflito familiar se tece diretamente de pessoa a
pessoa. E se eventualmente chega a visar um fim objetivo (coisa que é própria da
concorrência), isso é mais o fruto do acaso que de suas energias específicas.
Do outro tipo sociológico que exclui a concorrência (quando o bem que todos
os membros do grupo desejam possuir é suficiente para satisfazer igualmente a
todos) se encontram exemplos na vida das comunidades religiosas. Existem
evidentemente aqui aspirações paralelas de todos os elementos direcionadas a um
mesmo fim, mas a concorrência não se produz porque a consecução desta finalidade
por um deles não exclui os outros. Quando menos na concepção cristã, todos têm
um lugar na casa de Deus. Se a graça eletiva de Deus priva alguns deste sítio e o
concede a outros, isso demonstra precisamente a inutilidade de toda concorrência.
Em realidade, o termo que melhor descreve esta forma característica das aspirações
paralelas é o de “concorrência passiva”. A loteria e os jogos de azar são bons
exemplos dela. Trata-se sem dúvida de uma competição com o objetivo de obter um
prêmio, mas falta o essencial da concorrência, a diferenciação das energias
individuais como base e razão da ganância e da perda. O resultado surge em
decorrência de uma atividade prévia, mas as diferentes consequências não
dependem da disparidade de esforços anteriores. Tal fato cria uma relação peculiar
entre os indivíduos que integram os círculos que este tipo de azar converte em uma
comunidade, na qual a distinção do que sucede na concorrência permite desenvolver
um olhar totalmente distinto a respeito da igualdade e desigualdade de condições.
Toda vez que certo número de pessoas faz exatamente a mesma aposta com
idênticas probabilidades de ganhar, mas sabe que o sucesso depende de uma
potência sobre a qual não pode influir, reinará entre esses apostadores uma
Georg Simmel | 325

indiferença que não pode existir nas concorrências cujo resultado depende da
comparação dos esforços consentidos pelos participantes. Em compensação,
quando temos consciência de que a obtenção do prêmio independe da qualidade do
esforço realizado, ficamos diante da falta, do desapego e da objetivação do
sentimento que experimentamos pelo outro e por aquilo que ganhou quando
sabemos que o sucesso é fruto do merecimento, razão pela qual a inveja e a irritação
crescem então em terreno fértil. O eleito pela graça divina ou o jogador de Trente-et
Quarente 22 de sucesso não será odiado, mas sim invejado pelo perdedor, pois a
mútua independência dos esforços realizados por ele e o ganancioso deixa ambos
mais longínquos e indiferentes a priori um do outro que dos concorrentes em uma
luta econômica ou esportiva. Nesses casos justamente, o fato de que o fracasso será
merecido gera facilmente um ódio característico que tem por missão a transferência
de nossos próprios sentimentos de imperfeição sobre aquele que é a causa de tudo
isso.
Por conseguinte, a relação – de certo, muito frouxa – naqueles círculos cuja
comunidade está determinada por uma escolha gratuita de Deus, dos homens ou do
destino, é uma mistura específica de indiferença e inveja latente, que se atualiza
quando se produz a decisão, determinando no vencedor os sentimentos
correspondentes. Ainda que tais sentimentos se diferenciem muito dos estados e das
manifestações originados pela concorrência, possivelmente também existe em toda
concorrência genuína algo dessa relação gerada por probabilidades aleatórias
comuns, uma espécie de apelo das partes a um poder superior que decide por si
mesmo e não em função dos esforços realizados. Como a proporção de fatalismo é
muito variável, as relações de concorrência por ela geradas serão afetadas em graus
muito diversos até chegar ao tipo da escolha gratuita em que se tem eliminado por
completo o momento ativo de diferenciação que define a concorrência enquanto tal.
Pode-se assinalar, por fim, outra forma aparente de concorrência nos grupos
religiosos. Aquela que consiste na paixão ciosa por superar os outros na conquista
dos bens supremos, inclinação capaz de dominar completamente a conduta humana

22
Trente et Quarante, também chamado Rouge et Noir, é um jogo de cartas do século XVII de origem
francesa parecido com o Black Jack, jogado com seis jogos de cinquenta e duas cartas e uma mesa
especial. É ainda muito popular em cassinos da Europa Continental, especialmente na França, Itália e
Mônaco. (NT)
326 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

e estimular consideravelmente certas práticas (como a obediência aos


mandamentos e a realização de obras meritórias, a devoção e a ascese, a oração e a
esmola), mas que, mesmo bem sucedida, carecerá da característica distintiva da
concorrência, a saber, de que a ganância do competidor vitorioso seja negada aos
outros que estavam em oposição a ele na pretensão do mesmo objetivo.
Encontramo-nos aqui diante de uma diferença de importância sociológica que é,
aliás, a mesma entre a concorrência e a emulação. Em toda concorrência, mesmo
para obter bens ideais como a honra ou o amor, a significação do esforço realizado
está determinada por sua relação com a atuação do rival. O esforço do vencedor,
sendo o mesmo, não teria significado idêntico se a atuação de seu concorrente
tivesse sido melhor que a sua, em vez de ser pior. Tal dependência em que se acha o
resultado absoluto do relativo (ou, por outras palavras, a circunstância de que o
sucesso do assunto dependa do sucesso da pessoa) determina todo o processo da
concorrência, mas falta completamente na emulação religiosa que estamos a tratar.
Pois aqui, a atividade do indivíduo isolado produz seus frutos imediatamente, uma
vez que seria indigno da justiça absoluta, exercida pela Instância suprema, que a
recompensa da atividade individual dependa, de uma ou outra maneira, dos maiores
ou menores méritos de um indivíduo diferente. Cada um será recompensado, nesse
caso, somente de acordo com suas obras, valoradas segundo normas
transcendentes. Em compensação, na concorrência, cada um é tratado segundo as
obras do concorrente, comparando umas às outras. Daí que, na medida em que exista
no círculo uma possibilidade religiosa, (quer dizer, ilimitada e independente da
relação de seus membros entre si) de alcançar o fim que almejam esses elementos
(a graça), o círculo não poderá desenvolver nenhuma concorrência. Este é também o
caso de todas aquelas associações que cumprem um mero papel de acolhida, e que
não concedem espaço para atividades distintas das previstas no seu fim: sociedades
literárias ou científicas que se limitam a organizar conferências, grupos turísticos,
associações para fins puramente epicuristas, etc.
Se, em todos esses casos, os fins particulares do grupo têm dado lugar a
formações sociológicas que excluem a concorrência, podem existir outras razões
que, fora dos interesses ou do caráter do grupo, imponham a renúncia, seja à própria
concorrência, seja a algum de seus meios. O primeiro ocorre quando predominam o
Georg Simmel | 327

princípio socialista da organização centralizada do trabalho e o mais ou menos


comunista da igualdade em sua remuneração. De um ponto de vista formal, a
concorrência repousa sobre o princípio do individualismo. Mas, a partir do momento
em que ela se produz dentro de um grupo, não fica intuitivamente clara sua relação
com o princípio social (que consiste na subordinação de tudo o que é individual ao
interesse hegemônico da coletividade), Sem dúvidas, o concorrente individual
constitui o fim para si mesmo, empregando suas forças para conseguir o triunfo de
seus interesses. Mas, como o conflito associado à concorrência por prestações
objetivas frequentemente produz resultados de algum modo valiosos para um
terceiro, o interesse social – representado em última instância por este resultado, que
é um produto secundário para os concorrentes –, não só pode permitir a
concorrência, mas ainda está em condições de provocá-la expressamente.
Consequentemente, a concorrência não é solidária – como se pensa em flagrante
desrespeito à realidade – ao princípio individualista, segundo o qual o indivíduo
isolado, sua felicidade, seu trabalho e sua realização perfeita constituem o sentido e
finalidade absolutos de toda a vida histórica. Em relação com a questão do fim último,
a concorrência é uma simples técnica e, por conseguinte, sofrivelmente indiferente.
Por conseguinte, a oposição e a negação da concorrência, não decorrem do princípio
da hegemonia do interesse social, mas somente da ideia de outra técnica, que ele põe
a seu serviço e se designa com o nome de socialismo, em sentido estrito.
Geralmente, a valoração da totalidade em detrimento dos destinos individuais
e a orientação das instituições ou pelo menos das ideias para uma comunidade a
serviço da qual estariam todos os elementos individuais determinarão a propensão
à organização de todos os trabalhos individuais, quer dizer, trabalhos que se
intentará dirigir em virtude de um plano racional de conjunto capaz que evitar todo
atrito entre os elementos, todo dispêndio de forças na concorrência, todo obstáculo
ou transtorno devido a um grau relativo e frequentemente mensurável de incerteza e
indeterminação das iniciativas puramente pessoais. Pensa-se então que o sucesso
do conjunto não será proporcionado pela concorrência antagônica das forças em luta
espontânea, mas por uma direção centralizada que logo de início organize todos os
elementos, para que cooperem e se complementem tal como podemos vê-lo entre os
funcionários de um Estado ou o pessoal de uma fábrica. A forma socialista de
328 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

produção não é mais do que uma técnica para alcançar bens materiais como a
felicidade e a cultura, a justiça e a realização pessoal; e deve, por isso, ser substituída
pela livre concorrência sempre que esta pareça ser o meio mais apropriado para
consegui-los na prática. Esta não é uma questão apenas da alçada dos partidos
políticos. O problema de saber se a satisfação de uma necessidade ou a criação de
um valor deve confiar-se à concorrência de forças individuais ou à organização
racional, ao antagonismo ou à colaboração é uma questão de mil respostas parciais
e rudimentares, quer se trate de nacionalizações ou cartéis, de uma concorrência de
preços ou de jogos de crianças23. O mesmo problema aparece quando se quer saber
se a ciência e a religião dão um valor mais profundo à vida quando se articulam em
um sistema harmônico ou quando, ao contrário, cada uma delas trata de ser mais
convincente que a outra, no que tange às soluções que propõem aos enigmas da vida,
levando essa concorrência aos limites da tolerância. Questão que também é
importante para um diretor de grupos teatrais que deve decidir se é preferível para
conseguir o efeito dramático procurado deixar que cada ator afirme plenamente sua
individualidade e dar mais intensidade e vida ao conjunto graças à emulação de
esforços autônomos ou, pelo contrário, contar de antemão com uma visão de
conjunto a qual às individualidades terão que se adaptar. Questão que se reflete, por
fim, no interior de cada indivíduo quando, por vezes, sentimos que o conflito entre os
impulsos éticos e estéticos ou entre as escolhas intelectuais e instintivas determina
as decisões que mais autenticamente revelam nosso verdadeiro ser, ao passo que
em outras ocasiões permanecemos surdos às forças individuais contraditórias, a
menos que elas integrem um sistema de vida unitário, dirigido por uma única
tendência.
Não podemos compreender bem o socialismo, no sentido que habitualmente
outorgamos ao termo, como tendência política e econômica, se não admitimos
simultaneamente que se trata da elaboração absolutamente livre de uma técnica de
vida que abrange (tanto quanto o seu contrário, e sob formas mais ou menos
identificáveis e acabadas) todo o domínio problemático que apresenta o
entrosamento com uma pluralidade de elementos. Conhecido o caráter puramente

23
Provavelmente o autor se refere ao Landlord's Game, jogo criado em 1904, e que foi o precursor do
atual Banco Imobiliário, Monopólio ou Monopoly. (NT)
Georg Simmel | 329

técnico dessa articulação, a organização socialista não pode continuar a pretender


ser um fim que se justifica em si mesmo ou um valor último, e deve entrar em uma
comparação estimativa com a concorrência individualista, na medida em que ela é
também um meio para a consecução de fins supraindividuais. Mas, não se pode,
contudo, negar que esse cálculo escapa frequentemente a nossos recursos
intelectuais, A preferência por uma ou outra técnica depende então dos instintos
básicos que agem nas diversas idiossincrasias. É verdade que, desde um ponto de
vista estritamente abstrato, os instintos deveriam limitar-se a fixar os fins últimos,
enquanto os meios teriam que ser determinados pelo conhecimento teórico. Todavia,
na prática, não só a reflexão é tão imperfeita que os impulsos subjetivos devem
decidir em seu lugar, mas muito amiúde ela é tão impotente que não resiste a sua
força de persuasão. Assim sendo, para além de toda justificação racional,
frequentemente a sedução imediata da forma coletiva centralmente planificada,
interiormente equilibrada e refratária, de princípio, a todo atrito (conforme a versão
sublimada que dela tem dado em nossos dias o socialismo) prevalecerá sobre o
caráter rapsódico, fragmentado, multifacetado e imprevisível da forma concorrencial
de produção e o desperdício de forças que ela supõe. À medida, pois, que essa
disposição tome conta dos indivíduos, eles excluirão a concorrência mesmo dos
domínios cuja índole não seria contraditória a ela.
Algo análogo sucede quando se trata não da unidade orgânica, mas da
igualdade mecânica das partes. A organização das corporações medievais
proporciona talvez o melhor exemplo desse tipo, na medida em que ela repousava
sobre o princípio de que todos os mestres deviam ter “a mesma remuneração
congruente com seu sustento”. A essência da concorrência consiste em que a
igualdade de cada elemento com os demais se modifica continuamente para cima ou
para baixo. Quando existe concorrência entre dois produtores, cada um preferirá
expor-se à insegurança da diferenciação antes que a ver sua ganância dividida por
dois, mesmo que ela estivesse assegurada pela repartição exata e consentida da
oferta; pois ainda que seja certo que se oferecesse outra coisa ou de outra maneira
poderia perder mais da metade dos consumidores, também é verdade que poderá
conseguir muitos mais. O princípio do risco que ganha materialidade na concorrência
contradiz de tal maneira o princípio da igualdade que as guildas fizeram todo o
330 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

possível para evitar a concorrência, proibindo ao mestre ter mais de um só local de


venda, possuir mais do que um número muito limitado de oficiais, vender produtos
que não foram de sua própria fabricação, e propor outras quantidades, qualidades ou
preços que os propostos pela corporação. O fato de que tais proibições caíram bem
cedo em desuso, demonstra até que ponto elas e o princípio (abstrato por um lado e
pessoal por outro) da igualdade que estava por trás delas e se opunha à concorrência
não concordavam com a natureza das coisas. Não há necessidade de apresentar
outros exemplos A alternativa (em incontáveis domínios e casos da atividade
humana, e nos impõe optar entre a luta para possuir um bem e seu compartilhamento
em boa harmonia) se apresenta aqui a propósito dessa forma particular de conflito
denominado concorrência. Como nesta esfera as partes não lutam entre si de um
modo imediato, mas pelo sucesso de seus esforços perante terceiras pessoas, a
partilha do valor consiste na igualdade livremente consentida dos esforços
realizados. Tal decisão, não depende de modo algum, exclusivamente, de uma
análise de probabilidades que, algumas vezes, pode aconselhar a aventura da
concorrência, oscilando entre o tudo e o nada, e em outras mostrará a conveniência
da mais limitada e segura prática da igualdade das prestações. Ao contrário, será a
disposição de espírito de cada época ou o temperamento dos indivíduos que decidirá,
muitas vezes prescindindo de todo cálculo do intelecto. É este caráter sentimental e
consequentemente geral da decisão que pode fazer com que a renúncia à
concorrência possa estender-se inclusive a esferas onde a natureza das coisas não
o exigiria.
Outras modificações da ação social recíproca são produzidas quando não se
elimina a concorrência em si, mas somente alguns de seus meios. Trata-se aqui do
estágio da evolução no qual a concorrência absoluta da luta animal pela existência
se torna relativa, quer dizer, que vão desaparecendo gradualmente todos aqueles
entorpecimentos e entraves das forças que não são exigidos pela própria
concorrência. Nessas modificações não se altera nem o produto nem a intensidade
da concorrência: o que se faz é orientar a disputa para o verdadeiro resultado final,
de modo a que as forças das duas partes não se dilapidem em prejuízo da utilidade
subjetiva e objetiva. Daqui resultam duas formas de limitação da concorrência que
podemos chamar de interindividual e supraindividual. A primeira surge quando certo
Georg Simmel | 331

número de concorrentes se põe voluntariamente de acordo em renunciar a certas


práticas que permitiriam tirar vantagem uns dos outros (no pressuposto de que a
renúncia de uns unicamente é válida se os outros mantêm também a sua). Por
exemplo, quando os donos de sebos de uma localidade convêm dar apenas um
desconto de cinco ou dez por cento do preço de capa de seus livros, ou quando os
comerciantes de uma praça concordam em fechar seus estabelecimentos a uma
dada hora, etc. É evidente que nesses casos a decisão prioriza de maneira egoísta o
interesse ou a utilidade individual, pois se uns renunciam a certos meios de atrair a
clientela, é porque sabem que em caso de valer-se deles, os outros os imitariam
imediatamente. Em cujo caso os excedentes de receitas daí advindos não
compensariam o acréscimo de despesas que os advertidos comerciantes de nossos
exemplos também teriam que partilhar entre si. De modo que àquilo que, na verdade,
eles renunciaram não é à concorrência – que requer sempre algumas
desigualdades –, mas precisamente a essas práticas em que não é possível a
competição porque nelas sobrevêm logo mais a igualdade de todos os concorrentes.
Ainda que até o momento poucas vezes se conseguiu dar uma existência
acabada e concreta a este tipo de forma, ele se reveste da maior importância porque
demonstra que os concorrentes podem chegar a associar-se no terreno mesmo da
concorrência sem que a disputa fique por isso significativamente reduzida. Pois a
descoberta pelos rivais de um ponto de convergência de seus interesses torna
evidente que seu antagonismo pode concentrar-se com maior intensidade naqueles
outros pontos nos quais a disputa pode ter livre curso. Assim, a limitação
interindividual dos meios pode prolongar-se indefinidamente para tirar da
concorrência tudo o que não represente verdadeiro antagonismo, quer dizer, tudo o
que pode eliminar-se sem produzir efeitos. Mas, como os meios da concorrência
consistem mormente em vantagens concedidas a um terceiro (que no econômico se
identifica com o consumidor), será ele quem arcará com as consequências desses
acordos de limitação dos ditos meios. Pois, uma vez que foi suficientemente
compreendido que muitos dos danos causados pelas práticas concorrenciais podem
ser poupados desde que o concorrente faça o mesmo, tais convênios podem ter por
consequência não só uma concorrência cada vez mais intensa e perfeita, mas
também o efeito contrário: a supressão da concorrência e o estabelecimento de uma
332 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

organização que em vez de lutar pela conquista do mercado se encarregue de


abastecê-lo segundo um plano comum. Abre-se rapidamente assim a via que conduz
à formação de cartéis entre as empresas, visando à distribuição entre elas das cotas
de produção e do mercado com a finalidade de determinar os preços e anular a
concorrência. A anulação da concorrência tem um sentido sociológico totalmente
diferente daquele que salientamos a propósito das corporações medievais, Nestas,
como seus integrantes eram autônomos, era preciso, para que a igualdade fosse
respeitada, que até os mais talentosos dos artesãos descessem a um mesmo nível,
para permitir aos mais ineptos concorrer com eles – toda vez que esta forma é
inevitável sempre que se pretenda que elementos autônomos alcancem uma
igualdade mecânica. Todavia, no caso da colusão entre empresas para evitar a
concorrência, o ponto de partida não é de modo algum a situação dos sujeitos, mas
a eficácia objetiva das empresas. Aqui culmina a limitação da concorrência que
consiste em suprimir todos os meios que não servem a seus fins, acabando por privar
àqueles que ainda restam de seu caráter antagônico, porque o controle total do
mercado e as condições de dependência às que fica subordinado o consumidor
tornam totalmente supérflua a concorrência como tal.
Finalmente, a intervenção de instâncias além dos concorrentes e de suas
respectivas esferas de interesse, como o direito e a moral, pode limitar os meios de
competição, mas não impede a concorrência de prosseguir. No geral, o direito só
proíbe valer-se na concorrência dos meios que ele também proscreve em outras
relações humanas: atos criminosos (ou a tentativa de sua perpetração) contra as
pessoas, seus bens, sua honra ou reputação, a intimidação e alteração intencional da
verdade com o intuito de prejudicar, e não muito mais. Fora disso, poderíamos dizer
que a concorrência é o gênero de antagonismo cujas formas e consequências se
encontram relativamente menos reguladas e sujeitas a proibições legais. Se a
existência econômica, social, familiar e inclusive física de alguém fosse atingida por
ataques diretos, no grau que isso pode produzir-se na concorrência – como quando
se levanta uma fábrica ao lado de outra, ou se apresenta candidatura para o mesmo
cargo, ou se submete um manuscrito ao mesmo concurso –, a lei penal interviria
imediatamente. A razão pela qual os bens que a simples concorrência expõe à ruína
não são protegidos contra ela, mas parece suficientemente clara. Em primeiro lugar,
Georg Simmel | 333

porque os concorrentes não agem com dolo. Nenhum deles quer outra coisa que
obter a vitória graças a seus próprios esforços. E se isso se traduz na atribulação do
outro, trata-se apenas de uma questão secundária que não interessa ao vencedor,
ainda que não deixe de lastimá-lo. Ademais, falta à concorrência o elemento da
violência propriamente dita, já que derrota e vitória não passam de expressão
rigorosa e equitativa das forças concorrentes. O vencedor se expôs exatamente aos
mesmos riscos que o vencido, e este, em última análise, só pode atribuir o seu
fracasso à própria insuficiência.
Todavia, no que tange á ausência de dolo contra a pessoa prejudicada na
concorrência, é de toda justiça reconhecer que a similar carência desse elemento
subjetivo da culpabilidade não impede que a lei penal castigue como delitos uma boa
porção de comportamentos que, contudo, não têm sido produzidos por vingança,
perversidade ou crueldade. O falido que conserva e esconde uma parte de seu
patrimônio é responsabilizado porque prejudica os direitos de seus credores, mesmo
que pretenda apenas salvar determinado bem e se represente sua ação como uma
lamentável conditio sine qua non. O bêbado que percorre as ruas à noite aos brados,
provocando tumulto e desordem, é castigado por perturbar a paz e o sossego
públicos, ainda que só se propusesse extravasar sua alegria, sem sequer cogitar que
privava os outros do seu descanso. Então, o homem que arruína outros com seu
trabalho normal, simples e honesto deveria ser, pelo menos, acusado de negligência
culposa. Mas isso não é o que se passa na realidade, porque entra em jogo também
a igualdade de condições, o caráter voluntário de toda a ação e o sucesso da
concorrência que recompensa equitativamente as forças investidas. Eis aqui, porém,
argumentos que se poderia igualmente invocar para exculpar certos
comportamentos delituosos, como quase todas as formas de duelo. Quando em uma
luta, que ambas as partes aceitam voluntariamente e em iguais condições de
concorrência, um dos lutadores fica gravemente ferido, castigar o outro não parece
logicamente mais coerente do que punir a um comerciante que por meios leais
arruinou um colega. Se isto não se verifica deve-se, em parte, a razões técnico-
jurídicas, e principalmente a uma de caráter utilitário. A sociedade não pode
prescindir de determinadas vantagens da concorrência dos indivíduos, proveito que
transcende em muito as perdas causadas pela eliminação ocasional de alguns
334 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

indivíduos na luta concorrencial. Eis a razão evidente em que se funda o Código civil
francês sobre o qual se edificou o tratamento jurídico da concorrência desleal: tout
fait quelconque de l’homme qui cause à autri um dommage oblige celui par la faute
duquel Il est arrivé à le réparer 24 . A sociedade não toleraria que um indivíduo
prejudicasse outro na forma antes mencionada se o fizesse só em proveito próprio,
mas ela o tolera quando o prejuízo acontece como resultado de uma prestação
objetiva que tem valor para um número indeterminado de indivíduos. Do mesmo
modo, o Estado também não toleraria o duelo entre oficiais apenas por interesse
pessoal de um indivíduo que gostaria de matar o outro. Se ele consente esse tipo de
luta regrada, que tem por objetivo o desagravo da honra, e porque considera que o
conceito de honra reforça a coesão interna do corpo de oficiais – vantagem que
compensa para o Estado o sacrifício de um indivíduo.
É verdade que a legislação da França e da Alemanha limita desde algum tempo
os meios de concorrência em interesse dos próprios concorrentes. A intenção
fundamental que levou a tomar essas medidas foi a de proteger os comerciantes e
industriais isolados contra certas vantagens que seus concorrentes poderiam passar
a ter por meios moralmente repreensíveis. Assim, por exemplo, se proíbe toda
publicidade que, através de informações falsas, faça um comprador acreditar
erroneamente que determinado comerciante lhe oferece condições mais vantajosas
que os demais – mesmo quando daí não decorra engano efetivo do público. Também
não se permite iludir o comprador com a possibilidade de adquirir uma quantidade
de mercadoria que não se consegue em outras partes pelo mesmo preço – ainda que
a quantidade efetivamente vendida corresponda de fato à que é usual e o preço seja
o adequado. Por fim, se permite atualmente que um fabricante muito conhecido, com
uma grande clientela, impeça qualquer homônimo introduzir no mercado, com o
mesmo nome, um produto análogo ao seu se isso faz que o cliente acredite que se
trata do mesmo produto – não importa o quão melhor ou pior possa ser a mercadoria
oferecida em relação à primeira que levava o nome conhecido.

24
Em francês no texto da edição alemã de Simmel: “Todos os atos do homem que provoquem danos
a terceiros pelos quais tenha culpa obrigam-no a repará-los”. Trata-se do artigo 1240 do Código civil
francês. (NT)
Georg Simmel | 335

O que nos interessa nessas medidas é o ponto de vista aparentemente


inovador que consiste em proteger o concorrente de boa fé contra aqueles que usam
de meios desleais para buscar clientela. As demais limitações das práticas
comerciais que têm por intuito impedir o engano do público, finalmente não deixam
de ser aplicadas se tal não for o caso. Um olhar mais de perto, porém, permitir-nos-
ia advertir que essas proibições não são mais do que extrapolações de velhos artigos
da lei penal referentes ao estelionato, generalizações que não somente despertam
interesse jurídico, mas também sociológico e formal. O Código penal alemão
considera estelionato que alguém, para obter uma vantagem patrimonial, “prejudique
o patrimônio de outro, provocando ou mantendo um erro”25. Intuitivamente, parecia
entender-se que, no estelionato e por força da norma, era necessário que o erro
ocorresse na mesma pessoa cujo patrimônio sofria o prejuízo. Ora, a letra da lei nada
diz acerca dessa identidade e, na medida em que ela permite também perseguir por
estelionato àquele que produziria um dano no patrimônio de A, provocando um erro
em B, ela inclui no tipo penal do estelionato os casos de concorrência desleal. Os
ditos casos consistem em levar o público ao erro – sem que se cause dano
patrimonial a ele –, resultando por isso prejudicado o patrimônio do concorrente
honrado – sem que ele mesmo tenha recebido informações falsas. O comerciante
que diz falsamente ao comprador que liquida seus estoques devido a um caso de
falecimento é provável que não prejudique nem um pouco o novo cliente, ao cobrar
os mesmos e honrados preços que seu concorrente, mas causa prejuízo ao
competidor, tirando fregueses que, sem aquela falsa declaração, teriam permanecido
fiéis. Por conseguinte, a lei não contém nenhuma limitação dos meios de
concorrência, estabelecendo uma proteção específica entre os competidores. O
comportamento da sociedade em face da concorrência não se caracteriza, então,
pela disponibilidade de meios de limitação, mas por deixar de limitar durante muito
tempo apesar de não ser mais do que a aplicação lógica das prescrições legais
vigentes.
A isso se acrescenta outra coisa. Se as motivações dessas leis sublinham em
todas as ocasiões que elas não impõem nenhuma limitação à concorrência leal e que

25
Trata-se do parágrafo 1 do artigo 263 do corpo de normas de 1871, que vigorava em tempos de
Simmel e que (com bastantes emendas) ainda o faz. (NT)
336 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

só se propõem impedir a que vai contra a boa fé e a lealdade, poderia traduzir-se


muito mais exatamente o sentido destas observações em termos mais pertinentes
para a presente exposição dizendo que: elas eliminam da concorrência tudo o que
não é concorrência em sentido social. Lembremos, com efeito, que a concorrência é
um confronto no qual se luta com prestações objetivas destinadas a favorecer
terceiras pessoas, No entanto, estes justos motivos de decisão social são anulados
e barridos a partir do momento que se empregam os meios da propaganda
(desnecessária, mas vistosa), da sedução e de outras manobras fraudulentas que
não correspondem a nada de concreto, mas representam um tipo de combate mais
imediato, puramente egoísta, e que, en passant, não é útil para a sociedade. O que a
jurisprudência designa com o qualificativo de concorrência “leal” é propriamente
aquela que responde ao conceito puro de concorrência. Um comentário da lei alemã
exclui expressamente dela o caso de alguém que abre uma enorme tenda por
departamentos junto a uma pequena loja de roupas e vende por preço abaixo do
custo, anunciando com estridência, até conseguir arruinar o pequeno comerciante.
Eis um exemplo da violência mais brutal e de uma relação entre concorrentes que,
desde o ponto de vista individual, não difere muito da que se estabelece entre um
corpulento salteador de caminhos e sua fraca vítima. Todavia, desde o ponto de vista
social trata-se de uma concorrência leal, quer dizer, limitada ao objeto e ao terceiro
– já que se a mesma propaganda só contém verdades, serve também ao público.
Contudo, se ela contém indicações falsas, ainda que muito provavelmente não cause
nenhum prejuízo ao público, também não lhe favorecerá. É a partir deste ponto que
se pode proteger o concorrente contra a violência, coisa que inclusive deve fazer-se
para manter as forças concorrenciais dentro da forma pura, quer dizer, social-
utilitária da concorrência. Por consequência, as limitações específicas que o direito
impõe aos meios de concorrência acabam revelando-se como uma limitação das
limitações que práticas simplesmente subjetivas e individualistas impõem à
concorrência.
Tudo nos leva a crer que nessa esfera (como em tantas outras) o direito
deveria ser completado pela moral. Pois este conjunto de regras de conduta, a
diferença das normas jurídicas, não se encontra subordinado à utilidade social,
chegando muitas vezes a regular o comportamento dos homens segundo preceitos
Georg Simmel | 337

alheios aos interesses sociais, privilegiando os impulsos de um sentimento imediato


que anseia pela paz consigo próprio. Paz que alcança amiúde justamente na
oposição as exigências sociais, seguindo ideias metafísicas ou religiosas – que se,
às vezes, incluem as ditas exigências, outras as rejeitam completamente,
considerando-as contingências históricas limitadas. De ambas as fontes brotam
imperativos de conduta, que circulam de homem a homem, que não são sociais no
sentido tradicional – ainda que sim no sentido sociológico –, e por meio dos quais a
natureza humana redescobre a forma ideal do dever social. Desnecessário será dizer
que as morais ascéticas, altruístas e fatalistas reduzem tanto quanto podem a
concorrência e seus meios. Em compensação, a moral típica europeia tem uma
atitude bastante mais tolerante em relação à concorrência que frente a outras
classes de antagonismo. Isso acontece por uma combinação particular dos traços
de personalidade que constituem a concorrência. Por um lado, enquanto entes
morais que somos, teremos mais escrúpulos em empregar a força contra um
adversário quanto menor for a distância entre nossa personalidade subjetiva e a
prestação que investimos na luta e que a decide. Nesta ordem de ideias, estamos
mais dispostos a ter considerações e refrear-nos em um confronto entre forças
pessoais imediatas, sem poder, nesse caso, fechar nossos ouvidos a um pedido de
misericórdia, pois em uma luta na qual as pessoas se confrontam diretamente, uma
espécie de pudor parece impedir de desenvolver sem reservas nossas energias,
descobrir todo nosso jogo e empregar todas nossas forças. Em compensação, nos
enfrentamentos em que está em jogo uma prestação objetiva esses motivos éticos e
estéticos de autocontrole desaparecem. Por isso podemos concorrer com pessoas
com as quais evitaríamos ter uma controvérsia pessoal.
Quando a concorrência se volta para seu objeto, ela assume a crueldade
própria de tudo o que é objetivo, que não consiste no prazer da dor alheia, mas em
eliminar do cálculo todos os fatores subjetivos. Essa indiferença para com tudo o que
é subjetivo, que caracteriza também a lógica, o direito e a economia monetária,
conduz pessoas que não são de todo cruéis a se entregarem, no entanto, a todas as
brutalidades da concorrência – e ainda por cima de consciência tranquila, convictas
de não querer fazer nenhum mal. Note-se, porém, que, enquanto aqui a pessoa se
livra do peso de sua consciência moral, escudando-se na objetividade da prática, este
338 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mesmo efeito pode também conseguir-se pelo elemento oposto da concorrência: a


proporcionalidade exata entre o sucesso da concorrência e as forças investidas pelos
sujeitos. Ignorando certas exceções que nada têm a ver com a essência da
concorrência (e procedem apenas do fato de que ela está intimamente unida a outros
destinos e relações), o resultado da concorrência é o indicador infalível das
capacidades pessoais objetivadas na prestação individual. As vantagens que
devemos a pessoas ou conjunturas, ao acaso ou ao destino visto como uma sorte de
predestinação, a expensas de outras pessoas, não são aproveitadas por nós com a
mesma tranquilidade de consciência que o produto de nossas próprias atividades.
Pois, ao lado da moral da renúncia, está a moral da afirmação de si, cujo inimigo
comum radica no fato de que nossa relação com os outros tenha sido confiada a
forças alheias, independentes do eu. Por isso, quando finalmente é o eu que decide,
como ocorre na concorrência pura, um sentimento de satisfação e de justiça
compensa nosso instinto moral da dureza da concorrência – percepção íntima que
não só o vencedor sente, mas também às vezes o próprio vencido26.
Até aqui, nosso estudo está a revelar todo o tipo de processos de unificação
entre as partes implicadas em um conflito: misturas de antíteses e sínteses,
construção de umas sobre a base das outras, limitações e intensificações recíprocas.
Além disso, porém, é preciso ter em conta outra significação sociológica do conflito:
aquela que diz respeito à relação recíproca das partes e à estrutura interna de cada
uma delas. A experiência cotidiana ensina quão facilmente o conflito entre dois

26
Este é, sem dúvida, um dos pontos em que se manifesta a relação da concorrência com os traços
mais marcantes da vida moderna. Antes do começo dos tempos modernos, o homem e sua missão
na vida, sua individualidade e o conteúdo objetivo de sua ação, pareciam mais solidários, mais
fundidos, de alguma maneira mais espontaneamente associados uns aos outros que posteriormente.
Durante as últimas décadas se têm desenvolvido com uma força e uma autonomia nunca vistas, por
uma parte, os interesses objetivos e a civilização material e, por outra, se tem aprofundado de um
modo inusitado também o eu, a pertença da alma individual a si mesma em face de todos os
preconceitos práticos e sociais. No homem moderno aparece perfeitamente diferenciada a
consciência das coisas da de seu próprio eu, e isto o torna a propósito para a forma de luta
representada pela concorrência. Dá-se nele a pura objetividade do procedimento, que deve sua
eficácia exclusivamente à coisa e a seus efeitos legais, com total indiferença da pessoa que está por
trás dela. Mas, ao próprio tempo, se tem também aqui a perfeita responsabilidade da pessoa, a
dependência do sucesso da energia individual, e isso porque as faculdades pessoais são medidas por
fatos impessoais. As tendências mais profundas da vida moderna, a objetiva e a pessoal, têm achado
na concorrência um de seus pontos coincidentes, no qual elas podem colaborar em uma prática
imediata, demonstrando que suas contradições são elementos complementares que constituem uma
unidade dentro da história das ideias. (NS)
Georg Simmel | 339

indivíduos pode modificar um deles em sua relação com o outro e em si mesmo,


através da imposição de condições prévias e favorecendo as modificações e
adaptações necessárias para o melhor desenvolvimento do conflito – prescindindo
das consequências que possa ter para o indivíduo e que podem desnaturar ou
purificar, enfraquecer ou reforçar. A língua alemã tem uma expressão
extraordinariamente precisa para designar o essencial dessas modificações
imanentes: quem fica ou está em conflito deve “voltar-se para dentro de si” (sich
zusammennehmen), isto é, ele tem que concentrar todas suas energias num ponto, a
fim de poder em cada momento empregá-las na direção conveniente. Em tempos de
entendimento ou harmonia o indivíduo pode “deixar-se ir”, quer dizer, se soltar e
relaxar um pouco, deixando em liberdade as energias e interesses diversos de seu
ser para que se desenvolvam por todas as partes com independência. Mas, em
épocas de desinteligência e contraposição isso significaria um desperdício de
recursos (pelas aspirações contrárias das partes essenciais) e uma pouco sensata
perda de tempo porque a cada momento teria que estar reconcentrando as forças e
reorganizando-as. Por esse motivo, em tal conjuntura, o homem na sua totalidade
tem que adotar a forma da concentração, como posição interna antagônica e única
possibilidade de vitória.
A mesma conduta formal tem que seguir o grupo em uma situação similar. A
necessidade de centralização, de severa concentração de todos os elementos
– único meio que pode garantir seu emprego a todo o momento, sem perda de
recursos nem de tempo – é pressuposta nos casos de conflito, como é natural, a tal
ponto que em incontáveis exemplos históricos ela vai ser dominante mesmo nas
democracias mais perfeitas em tempos de paz. Começando, por exemplo, pelas
conhecidas diferenças entre as organizações pacíficas e guerreiras dos autóctones
norte-americanos, até os artesãos alfaiates de Londres durante o primeiro quarto do
século XIX, que tinham uma organização sindical absolutamente diferente segundo
estivessem em harmonia ou em conflito com seus patrões. Nos períodos de
entendimento a organização estava constituída por pequenas assembleias
autônomas repartidas em trinta albergues. Em épocas de conflito, porém, cada
albergue tinha um representante que, juntos, formavam um comitê que, por sua vez,
elegia uma comissão menos numerosa, da qual emanavam todas as ordens
340 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

incondicionalmente obedecidas. No geral, as associações de trabalhadores


entendiam nessa época que o interesse de todos tinha que ser decidido por todos.
Todavia, o estado de urgência tinha criado um órgão da mais estrita eficácia, que
atuava de um modo completamente autocrático e cujas vantagens todos os
operários reconheciam de bom grado.
A centralização que o conflito impõe ao grupo beligerante, explica formalmente
a explícita influência recíproca que se observa entre as constituições despóticas e as
tendências guerreiras de um coletivo, já que, por uma parte, o despotismo é o regime
que pode melhor garantir a concentração de comando e liderança bélica. E
inversamente, por outra parte, uma vez que o despotismo se instalou e a dita forma
é posta em prática, as energias acumuladas e reprimidas tendem facilmente a
descarregar-se logo em uma guerra exterior. Eis aqui um exemplo a contrario que
acreditamos altamente significativo que tem como protagonistas aos esquimós de
Groenlândia. Eles não reconhecem nenhum sistema de chefia, e são tidos por isso
como um dos povos mais anárquicos. Na pesca obedecem de bom grado ao homem
mais experimentado, mas este não tem autoridade alguma sobre os demais e não
existe uma ordem coativa que preveja sanções socialmente organizadas para os que
se afastem da empresa comum. Pois bem, diz-se dessas gentes que a única forma
de combate a que recorrem é um certame lírico quando resolvem uma desavença. Se
alguém se sente melindrado por outro, compõe uma canção satírica e a interpreta
perante uma assembleia do povo, na presença da qual o adversário responde da
mesma maneira. À ausência absoluta de instintos belicosos corresponde, como se
vê, uma também absoluta carência de centralização política.
Por isso entre as diferentes organizações do grupo total, a mais centralizada
é a do exército – se deixamos de lado, talvez, o corpo de bombeiros, sujeito às
mesmas necessidades formais –, quer dizer, aquela organização na qual a
autoridade absoluta da instância central, exclui todo movimento próprio dos
elementos; garantindo que os impulsos que partam do centro se realizem no
movimento de conjunto sem perda dinâmica 27. Na mesma ordem de ideias, o que

27
O autor se tem valido aqui metaforicamente do termo, proveniente da mecânica dos fluidos, “perda
dinâmica” (também conhecido como “perda da carga dinâmica”) que alude à perda de energia
dinâmica de um fluido devido à fricção das partículas do fluido entre si e contra as paredes da
tubulação que o contenha. (NT)
Georg Simmel | 341

caracteriza uma coalizão internacional enquanto tal é sua unidade como força
beligerante. Cada nação-membro pode conservar sua autonomia em todas as
demais questões, mas não nesta, se houver uma verdadeira aliança. De sorte que a
coalizão perfeita constituiria uma unidade absoluta em sua relação com as outras
nações – essencialmente em estado de guerra aberta ou latente –, permitindo que
seus membros conservem, contrariamente, plena independência em sua mútua
relação.
Tendo em conta a excepcional utilidade que uma organização unitária
representa em um conflito, acredita-se que cada parte deve ter o maior interesse em
que a parte contrária careça dessa unidade 28 . Todavia, podemos citar vários
exemplos do contrário. A forma centralizada de uma parte, motivada pela situação
conflituosa que ela atravessa, transcende esta situação e a leva amiúde a desejar que
o adversário que a enfrenta assuma também a referida forma. Nos conflitos entre
operários e patrões nas últimas décadas do século XIX esse fato tornou-se
particularmente evidente. Na Inglaterra, a Real Comissão do Trabalho29 declarava em
1894 que a sólida organização dos operários era favorável a os patrões do mesmo
ramo de atividade, bem como a dos patrões para os operários. Isso porque embora
seja verdade que as greves neste caso possam ser mais abrangentes e longas, em
compensação a organização é para ambas as partes mais favorável e menos
dispendiosa do que as frequentes negociações locais, as interrupções repetidas de
trabalho e os confrontos mesquinhos, inevitáveis e inacabáveis quando os
antagonistas não constituem conjuntos definidos e rigorosamente estruturados.
Exatamente da mesma maneira que uma guerra entre Estados modernos, por
destrutiva e onerosa que seja, oferece um balanço final mais favorável que os
incontáveis enfrentamentos e atritos dos períodos em que os governos estavam
menos centralizados.
Também na Alemanha os operários reconheceram que eles próprios estavam
interessados na existência de uma organização patronal forte e eficaz, justamente

28
Vide os estudos precedentes sobre o princípio divide et impera. (NS)
29
Trata-se da Royal Commission on Labour, que no mês de abril de 1891 foi encarregada na Inglaterra
de examinar em todo o território da Grã-Bretanha as relações entre patrões e operários, de estudar
especialmente as causas dos conflitos entre eles e de redigir um relatório sobre a possibilidade de que
a legislação interviesse com vista a remediar as anomalias detectadas. (NT)
342 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

para resolver os seus conflitos de interesse. Pois uma organização desse tipo pode
designar representantes com os quais os trabalhadores se sentem à mesa de
negociações com absoluta segurança, cientes de que as vantagens ali conseguidas
não serão negadas logo por patrões dissidentes. Se a organização unitária do
adversário se apresenta como um inconveniente para alguma das partes – pelo
simples fato de significar vantagem para a outra – ela é compensada pela disposição
de ambas as partes permitirem ao próprio conflito ser mais concentrado e fácil de
controlar, capaz de assegurar um acordo durável e verdadeiramente aproveitável por
todos os componentes do grupo. Em contrapartida, contra uma massa difusa de
adversários se conseguem, sem dúvida, frequentes vitórias parciais, ainda que muito
dificilmente se chega a ações realmente decisivas que ajudem a modelar as
correlações de poder resultantes. Esse caso ilustra categoricamente a conexão
fundamental entre a forma unitária e a ação conflituosa do grupo por mostrar como
a eficácia dessa conexão triunfa inclusive sobre a vantagem imediata de cada uma
das partes. Quanto à forma ideal objetiva da constituição mais conveniente para o
conflito, esta é a centrípeta por permitir alcançar o resultado concreto do confronto
pelo caminho mais seguro e mais breve. Tal teleologia, que paira acima das partes,
faz finalmente cada uma delas alcançar o que quer e consigue o resultado
aparentemente contraditório de converter a vantagem do adversário em proveito
próprio.
O sentido sociológico dessa formação será essencialmente diferente se o
grupo em seu conjunto se encontra confrontado a uma relação antagônica com um
poder exterior a ele (estreitando assim seus laços e acrescentando sua unidade na
consciência e ação); ou se cada elemento do grupo tem seu próprio adversário e a
cooperação se produz apenas porque o inimigo é o mesmo para todos. Nesse caso,
pode suceder que esses elementos nada tivessem a ver anteriormente uns com os
outros, ou que essa hostilidade comum tenha suscitado entre eles novas formações.
No primeiro caso será preciso ainda fazer uma distinção: o conflito ou a guerra de
um grupo pode, por uma parte, uni-lo por cima das discrepâncias e distanciamentos
individuais de seus membros; mas, por outra, deixa as divergências internas
assumirem clareza e determinação que antes não possuíam. Isso pode ser mais bem
observado em agrupamentos menores que ainda não atingiram o grau de objetivação
Georg Simmel | 343

de um Estado moderno. Quando um partido político de várias correntes de interesse


se vê obrigado a adotar uma posição extremamente firme e unilateral ante um
conflito acirrado e radical, aumentam as possibilidades de surgimento de episódios
de separação. Em tais momentos, só cabe esquecer as dissensões intestinas ou, pelo
contrário, exacerbá-las, excluindo certos membros e desse modo silenciar as vozes
discordantes. Se em uma família há individualidades muito divergentes, o momento
em que um perigo ou um ataque obriga a agir em conjunto será justamente aquele
que irá assegurar sua unidade por muito tempo ou a destruirá definitivamente;
evidenciando até que ponto a cooperação entre essas pessoas é possível. Quando
em uma escola os alunos de uma classe se organizam para zombar do professor ou
brigar com os colegas de outra classe, no geral todo o tipo de animosidades internas
se silencia. Todavia, por outro lado, isso incita sempre outros alunos a separar-se
dos demais, não só por razões objetivas, mas porque não querem colaborar em
ataques tão frontais com companheiros de estudos com os quais, no entanto, não se
vê inconveniente em conviver no contexto da sala de aula. Resumindo: o estado de
paz do grupo permite que elementos antagônicos convivam dentro dele em situação
incerta, porque cada um pode seguir o seu caminho e evitar os possíveis embates. O
estado de conflito, em compensação, aproxima tão intimamente os elementos e os
coloca sob um impulso tão unitário que eles têm de se aguentar perfeitamente uns
aos outros ou se repelir radicalmente. É também por essa razão que para um Estado
atravessado por dissensões intestinas uma guerra internacional pode ser, às vezes,
o último recurso para ultrapassá-las, mas, por vezes, também a melhor maneira de
afundar definitivamente todo o conjunto.
Por isso, os grupos em estado de guerra não são tolerantes. Neles os desvios
individuais do princípio de coesão não podem passar de uma margem muito bem
delimitada. Às vezes a técnica para obter a coesão consiste em aparentar certa
tolerância para eliminar mais firmemente aos que não podem ser definitivamente
integrados. A Igreja católica está sempre, de fato, desde seus começos, em um duplo
estado de guerra: contra o conjunto das múltiplas opiniões doutrinais que, reunidas
constituem a heresia, e contra os demais interesses e poderes da vida que pretendem
ter uma esfera de ação independente da sua. Ela alcançou a forma de unidade
fechada que exigia a situação continuando a tratar como membros os dissidentes,
344 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

enquanto isso fosse possível, mas expulsando-os de seu seio com uma energia única
quando intoleráveis.
Para semelhantes organizações, é de extrema importância conservar certa
elasticidade 30 da forma. Não para transigir ou se reconciliar com as forças
antagônicas, mas para opor-se precisamente a estas com a maior veemência e sem
perder nenhum elemento útil. A elasticidade não consiste em ir além dos seus
próprios limites. Os corpos elásticos têm limites tão claros como os rígidos. A
elasticidade caracteriza, por exemplo, as ordens monásticas, que permitem canalizar
impulsos místicos ou fanáticos (que surgem aqui como en todas as religiões) de
modo a que possam resultar inofensivos para a Igreja, integrando-se
incondicionalmente a ela. Ao contrário, no protestantismo, cuja intolerância
dogmática foi maior em certas épocas, esses impulsos conduziram frequentemente
a dissidências e rupturas da unidade. Certas formas de conduta específicas do sexo
feminino parecem referir-se ao mesmo motivo. Entre os variadíssimos elementos
que constituem o conjunto das relações entre os homens e as mulheres, se encontra
também uma hostilidade típica que jorra de duas fontes: da relativa fraqueza física
das mulheres, que as expõe constantemente à exploração econômica e pessoal e à
privação de direitos 31 ; e da atitude dos homens que têm reduzido as mulheres à
condição de objetos de sua apetência sexual, obrigando-as a ficar na defensiva
diante deles. Mesmo se este conflito, que perpassa a história interna e pessoal da
espécie humana, dificilmente conduza a uma coalizão imediata das mulheres contra
os homens, existe, todavia, uma forma supraindividual que serve de proteção às
mulheres contra aqueles dois perigos e que interessa consequentemente ao sexo
feminino, por assim dizer, in corpore. Esta forma é a moralidade, cuja essência
sociológica se caracterizou supra, e sobre a qual vamos regressar tendo em conta as
consequências que produz nesta esfera.
Uma personalidade forte sabe defender-se individualmente contra as
agressões. Em todo o caso, basta-lhe a proteção da lei. Em contrapartida, uma

30
Sobre a elasticidade das formas sociais em geral, vide o final do capítulo dedicado a
autopreservação. (NS)
31
Falamos aqui da relação em que se encontraram os dois sexos na maior parte da história conhecida,
sem responder à questão de saber se isto será invalidado no futuro pelo desenvolvimento dos direitos
e do poder das mulheres, ou se isto já se tem produzido, em parte. (NS)
Georg Simmel | 345

pessoa mais fraca estaria perdida apesar dessa proteção se, de alguma maneira, os
indivíduos mais fortes não se contivessem a si próprios, preferindo reprimir-se a
abusar de sua superioridade. O autocontrole é possível, em parte, graças à moral,
mas como a moral não tem outro braço secular que a consciência do próprio
indivíduo, é assaz incerta e precisa ser completada pela moralidade. Esta última não
tem a precisão da norma jurídica nem oferece tanta segurança, mas ela está
garantida apesar de tudo por um medo instintivo acompanhado de certas
consequências sensivelmente desagradáveis para aquele que infrinja as suas regras.
A moralidade é a verdadeira força do fraco, que não saberia se defender em um
conflito sem limites para o uso da força. Por isso sua característica é essencialmente
a da proibição, da limitação. A moralidade produz assim certa igualdade entre os
fortes e os fracos que inibe a tal ponto qualquer relação entre eles baseada nas
proporções naturais que até prefere o fraco, como o demonstra, por exemplo, o
espírito da Cavalaria medieval. No confronto latente entre os homens e as mulheres,
os primeiros são os agressores e os mais fortes e as mulheres são obrigadas a
procurar o amparo da moralidade e a converter-se em guardiãs dela. Naturalmente
isso as compromete a respeitar estritamente (em seu próprio interesse) o conjunto
de prescrições da moralidade, inclusive nos casos em que não se trata de abusos dos
homens. Todas as normas da moralidade têm entre si uma relação solidária, de
maneira que a violação de uma delas enfraquece o princípio e, consequentemente,
todas as outras. Por isso as mulheres são unânimes amiúde sobre este ponto: elas
constituem uma unidade real, que corresponde à unidade singularmente ideal em que
os homens as reúnem quando eles falam das “mulheres” e que, em geral, tem o
sentido de uma oposição de partidos. A solidariedade que os homens atribuem às
mulheres é, pois, a que expressa o velho ditado de Freidank32: “Cada homem responde
somente de suas vergonhas, mas se cai uma mulher, se censura a todas”.
Solidariedade de sexo que oferece uma base real ao interesse que as mulheres
sentem pela moralidade considerada como um meio de luta. Finalmente é por isso
que se repete aqui a fórmula sociológica que agora estamos a discutir.

32
O “Livre-pensador”, pseudônimo de um poeta social suábio de começos do século XIII autor de
máximas e de obras de sabedoria popular. (NT)
346 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

As mulheres só conhecem em geral a inclusão completa ou a total exclusão


do campo da moralidade, quando enfrentadas a outra mulher. Por isso, se uma
mulher não respeita o conjunto dos princípios morais (individuais ou coletivos) que
se reputa constitutivo da moralidade, as demais tendem, sempre que possível, a não
reconhecê-lo ou a dar uma versão que retira toda importância ou interesse aos fatos,
considerados banais ou insignificantes, exceto quando o desejo de dar grande
importância ao sucedido ou algum outro motivo de ordem pessoal se oponham. Mas,
quando a desculpa não tem mais cabimento, a pecadora é sentenciada implacável e
irrevocavelmente à expulsão da “boa sociedade”. Se não há mais remédio que
reconhecer o atentado à moral e aos bons costumes, a culpada é então radicalmente
eliminada dessa unidade cuja coesão é assegurada pelo comum interesse de garantir
a manutenção dos princípios da moralidade. Assim vemos que as mulheres
condenam do mesmo modo a Margarida e a Dama das Camélias, a Stella e a
Messalina 33 , sem atender às possíveis situações intermediárias que permitiriam
certa passagem gradual entre suas congêneres que pautam sua conduta por
princípios morais rígidos e as que ignoram tais preceitos. A posição defensiva das
mulheres não permite que o muro da moralidade seja rebaixado sequer um
centímetro. Por princípio, o partido das mulheres não conhece o significado da
palavra compromisso, podendo apenas aceitar inequivocamente a inclusão das
mulheres sem mácula na comunidade de seus pares “decentes” ou a exclusão sem
rodeios das outras – alternativa cuja justificação moral não está isenta de suspeita
e só resulta compreensível se temos presente aquela exigência de inquebrantável
unidade que impõe aos membros todo partido em luta aberta com seu adversário.
É por essa mesma razão que pode ser vantajosa para os partidos políticos a
diminuição do número de adeptos, sempre que sirva para depurá-los de elementos
inclinados a aceitar transações e negócios escusos. Todavia, para que tal aconteça,
é preciso habitualmente que se satisfaçam duas condições. Em primeiro lugar, um
estado de conflito aberto e, em segundo lugar, que o grupo militante seja

33
O autor alude as ingênuas e seduzidas Margarida e Stella, figuras centrais, respectivamente, do
Fausto de Goethe e de Stella di Napoli, a ópera de Pacini, e as contrapõe à cortesã de bom coração
protagonista da Dama das Camélias (Marguerite Gautier) de Alexandre Dumas Filho, e a Messalina, a
terceira esposa do imperador Cláudio, que acabou perpetuada na arte e na literatura até os tempos
modernos como sinônimo de mulher de costumes dissolutos. (NT)
Georg Simmel | 347

relativamente reduzido. É o caso típico dos partidos minoritários especialmente


quando não se limitam à defensiva. A história parlamentar inglesa demonstrou-o
várias vezes. Assim, por exemplo, em 1793, quando o partido whig, que estava já
acentuadamente enfraquecido, perdeu também todos seus elementos indecisos,
ainda partidários de um eventual compromisso com o governo de Pitt, foi como se
recuperasse suas forças. As poucas personalidades que ficaram no partido puderam
então desenvolver, entusiastas e resolutas, uma política muito unitária e radical. Em
compensação, os grupos majoritários não precisam distinguir os prós dos contra de
maneira tão clara. Para eles, os elementos hesitantes e ambivalentes são menos
perigosos porque um conjunto de grandes proporções pode isolá-los na periferia,
sem permitir que o centro seja afetado por sua existência. Mas, se o grupo é menos
extenso, a periferia está próxima do centro, e a incerteza de um elemento ameaça
logo o próprio âmago e põe simultaneamente em perigo a coesão do conjunto de tal
modo que a escassa distância que medeia os elementos priva o grupo de sua
elasticidade, que é aqui condição necessária da tolerância.
Por isso os grupos – e, particularmente, as minorias – que vivem na luta e
sofrem perseguição, rejeitam com frequência a condescendência e a tolerância que
lhes oferecem seus adversários, porque elas enfraqueceriam o caráter obstinado e
pertinaz de sua oposição, sem o qual não poderiam seguir lutando. Tal radicalismo
revelou-se repetidamente nos conflitos confessionais ingleses. Tanto sob Jaime II
como sob Guilherme e Maria, os não conformistas e independentes, batistas e
quacres foram, às vezes, objeto de parte do governo de uma benevolência com a qual
aqueles não concordavam de modo algum. Uma vez que a magnanimidade podia
deixar os mais conciliadores e menos resolutos de seus elementos sucumbir à
tentação e ter a possibilidade de constituir formações intermediárias ou pelo menos
amolecer a sua oposição. Toda tolerância por parte do inimigo, que sempre será
apenas parcial, ameaça à uniformidade dos membros na oposição e, através dela,
essa unidade na coesão que uma minoria combativa deve defender rejeitando
qualquer compromisso. Por isso, os grupos que não têm mais adversários perdem
sua unidade com tanta frequência, o que foi revelado, em diversos aspectos, a
propósito do protestantismo. Pois que, na medida em que sua característica
essencial é a “protestação”, cada vez que o adversário contra o qual protesta sai da
348 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua linha de fogo, o protestantismo perde sua energia ou sua unidade interior, até o
ponto de chegar a repetir internamente o conflito com o inimigo, dividindo-se em um
partido liberal e um partido ortodoxo. Foi exatamente o mesmo que se passou
repetidamente na história dos partidos estadunidenses, quando o recuo de um dos
dois grandes partidos teve por consequência direta a decomposição imediata do
outro em subgrupos divergentes entre si.
Como se pode inferir do exposto no ponto precedente, não parece ter sido boa
para a unidade do protestantismo a falta de verdadeiros hereges. Em contraposição,
a consciência unitária da Igreja católica se fortaleceu indubitavelmente diante da
heresia e da atitude hostil adotada relativamente a ela. Graças à implacável
repressão da heresia, os diversos elementos da Igreja foram capazes de se orientar
e de manter a sua unidade, não obstante os interesses em jogo que poderiam tê-los
dissociado. Por isso, a vitória total de um grupo sobre seus inimigos está longe de
ser sempre uma aragem de fortuna em sentido sociológico; isso porque reduz a
energia que garantia sua coesão, permitindo assim que as forças deletérias, sempre
em ação, ganhem terreno. A dissolução da Liga Latina 34 no século IV a.C. tem sido
explicada como consequência da vitória final sobre os inimigos comuns dos
coligados. Talvez, a base sobre a qual se fundou a dita aliança – a tolerância, de uma
parte, e a submissão, de outra – deixara de ser completamente natural desde muito
tempo atrás, mas isso não se pôs de manifesto até que faltou o inimigo comum
graças ao qual os aliados tinham passado por alto, até então, suas contradições
internas. Em alguns grupos seria uma prova de bom senso político procurar inimigos
a fim de que a unidade dos elementos aja como interesse vital.
O último exemplo nos leva a emprestar particular importância a o sentido
unificador do conflito sobre o qual gostaríamos de voltar e nos estender. Graças ao

34
A Liga Latina (aprox. século VII a.C.-338 a.C.) foi uma confederação de aproximadamente 30 aldeias
e tribos latinas próximas da antiga Roma organizada para assegurar sua mútua defesa. A República
Romana em seus primórdios, formou uma aliança com a Liga Latina em 493 a.C.. O poder de Roma,
cada vez maior, conduziu gradualmente ao seu domínio sobre a liga. A renovação do tratado original
em 358 a.C. estabeleceu formalmente a liderança de Roma, e acabou desencadeando a Guerra Latina
(343 -338 a.C.). Com essa guerra, latinos e volscos fizeram uma tentativa final de se livrarem do
domínio romano, mas, mais uma vez, os romanos se saíram vitoriosos. No tratado de paz
subsequente, Roma anexou algumas cidades inteiramente e outras permaneceram como cidades-
estados autônomas, mas a Liga Latina foi dissolvida. Finalmente, as cidades latinas sobreviventes
foram ligadas a Roma por diferentes tratados bilaterais. (NT)
Georg Simmel | 349

conflito, não somente uma unidade se condensa com mais energia (eliminando
radicalmente todos os elementos que poderiam contribuir a apagar a nitidez dos
próprios contornos que a separam do inimigo), mas também induz a reunirem-se
pessoas e grupos que sem o antagonismo nada teriam em comum. O vigor com que
o conflito age nesse sentido aparece com particular clareza no fato de que a conexão
entre a situação conflituosa e o processo de unificação é suficientemente forte para
agir também em sentido contrário. As associações psicológicas, no geral, revelam
sua força pelo fato de obrar também retrospectivamente. Assim, por exemplo, se nos
representamos uma pessoa associada ao conceito de herói (quer dizer, se temos
presente mentalmente a ideia ou o conceito que corresponde ao herói e a vinculamos
a imagem evocada de certa pessoa), o enlace entre ambas as representações
alcançará sua intimidade máxima quando não possamos nos representar o conceito
de herói em geral, sem que surja imediatamente em nós a imagem daquela pessoa.
Pois bem, a união com vistas à luta é um processo tão corriqueiro e habitual que a
mera associação de elementos (mesmo quando não se tem feito com objetivos
agressivos ou simplesmente conflitantes), basta, em ocasiões, para que outras
instâncias vejam nela um ato ameaçador e hostil. Abundam os exemplos históricos.
Como o despotismo do Estado moderno se dirigiu contra a ideia medieval de
agremiação, os governos acabaram por considerar toda associação de cidades e
estamentos sociais (cavaleiros ou quaisquer outros elementos da sociedade) como
uma rebelião ou a expressão de um conflito latente. Carlos Magno proibiu as guildas
de adotar a forma de associação juramentada e autorizou exclusivamente as
associações sem juramento de caráter solene e com fins caritativos. Como vemos, a
proibição se focava expressamente no juramento, ainda que os fins da agremiação
estivessem autorizados, porque se podia facilmente associar o compromisso solene
pronunciado em público e a invocação de um valor moral reconhecido às intenções
hostis ao Estado. Nessa ordem de ideias, a Constituição morava de 1628 dispunha
que “concluir pactos ou alianças com qualquer fim e contra quem quer que seja
corresponde exclusivamente ao rei”. O fato de que, às vezes, a instância dominante
favoreça ou mesmo crie associações, não prova nada em contrário, mas confirma
aquilo que sublinhamos precedentemente – e isso não só, como é evidente, quando
a associação atua contra um partido de oposição pré-existente, mas também no
350 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

caso mais interessante em que se trata de orientar por caminhos inofensivos o


instinto de associação. Tomemos, dentre todos, o exemplo das associações políticas
dos gregos depois de sua conquista pelos romanos. Assim que Roma dissolveu
todas as ligas gregas, Adriano fundou uma “Associação de todos os helenos”, com
fins ideais, lúdicos, cerimoniais, comemorativos e de conservação de um pan-
helenismo abstrato, completamente apolítico.
Os casos históricos que confirmam o que dissemos são tão numerosos e
claros que a única questão que pode surgir é a de determinar o grau de unificação a
que se pode chegar desse modo. No topo está a criação do Estado unitário. A França
deve sua consciência nacional sobretudo a sua guerra contra os ingleses; e precisou-
se da Reconquista contra os mouros para fazer das províncias espanholas um só
povo. O grau imediato, por ordem decrescente, está representado pelos Estados
federais e pelas confederações de Estados, com diversos matizes e de acordo com a
sua coerência e às faculdades atribuídas ao governo central. Os Estados Unidos da
América necessitaram de sua Guerra de Independência; a Suíça, da luta contra
Áustria; os Países Baixos, da revolta contra Espanha; a Liga Aqueia, da luta contra
Macedônia. A fundação do novo Império Alemão oferece um exemplo análogo35.
A formação de classes sociais unitárias se encontra nesta mesma esfera. O
fator conflituoso e as oposições latentes e declaradas são de uma importância tão
evidente para ela, que mencionaremos somente um exemplo negativo. O fato de que
na Rússia não existisse uma aristocracia propriamente dita formando uma classe
fechada deveria ter favorecido o desenvolvimento largo e sem obstáculos da
burguesia. Porém, de fato, o que aconteceu foi precisamente o contrário. Se na Rússia
houvesse existido, como em outras partes, uma aristocracia poderosa, esta teria
enfrentado frequentemente o príncipe, quem nessa luta, teria recorrido por sua vez à
burguesia das cidades. Obviamente, em uma situação de conflito desse tipo os

35
O autor se refere às três vitórias militares envolvidas na estratégia de fundação do novo Império
Alemão sobre controle prussiano, a saber, a Guerra dos Ducados do Elba de 1864 contra a Dinamarca,
de modo a adquirir o Eslésvico-Hosácia; a Guerra Austro-prussiana de 1866 contra o Império
Austríaco, de maneira a alijar este último dos assuntos internos da Alemanha e a permitir a fundação
– sem a interferência e participação austríacas – da Confederação da Alemanha do Norte, precursora
direta do Império Alemão de 1871; e da Guerra Franco-prussiana de 1870 a 1871 contra a França, após
a qual a confederação foi transformada no império Alemão e o rei Guilherme da Prússia foi proclamado
cáiser da Alemanha unificada, com o título de Guilherme I – coroado na Galeria dos Espelhos do
castelo de Versalhes, após a derrota francesa em Sedan. (NT)
Georg Simmel | 351

príncipes teriam interesse em desenvolverem uma classe burguesa unitária. Mas os


elementos burgueses russos jamais se sentiram inclinados a unir-se em uma classe,
porque não existia conflito entre a nobreza e o poder central graças ao qual,
poderiam
ter tirado vantagem se aliando a um lado ou a outro.
É característico em todos os casos positivos desse tipo que a unidade (apesar
de ter nascido graças ao conflito e para atender a seus fins), continue depois de
terminado o conflito, acrescida de outros interesses e outras energias que criam
relações de interdependência que não têm mais relação com os fins do conflito. O
que propriamente faz o conflito nesses casos é ativar as relações latentes de
unidade. Está mais para a causa ocasional de processos interiormente desejados de
unificação, que para o seu fim. Dentro do interesse coletivo, encontramos ainda uma
gradação, segundo a unificação para o confronto diga respeito ao ataque e à defesa
ou apenas à defesa. Este último caso é sem dúvida aquele da maioria das coalizões
de grupos pré-existentes, especialmente quando se trata de grupos muito
numerosos ou que divergem bastante entre si. O fim defensivo representa um
minimum coletivo porque para cada grupo e para cada indivíduo é a manifestação
mais elementar de seu instinto de conservação. Quanto mais numerosos e diversos
sejam os elementos que se associam, tanto menor será, evidentemente, o número
dos seus interesses partilhados – que, nos casos extremos se reduzirá ao instinto
mais primitivo, a defesa da existência material. Assim, por exemplo, respondendo aos
temores dos patrões de que um dia todos os sindicatos ingleses pudessem fazer
causa comum, um de seus mais incondicionais partidários declarou: “ainda que se
chegasse a essa união, só poderia ser para fins defensivos”.
Dos casos nos quais o efeito de solidariedade coletiva do conflito vai além do
fim imediato (coisa que pode também ocorrer com o minimum indicado) passaremos
ora aos casos em que a coalizão se faz unicamente ad hoc. Distinguem-se aqui dois
tipos. Em primeiro lugar temos a aliança para uma ação só, que, no entanto, requer
frequentemente o conjunto das energias de seus elementos, sobretudo nas guerras
propriamente ditas Nesse caso, se produz uma unidade absoluta. Mas uma vez
conseguido o fim específico ou falhado na tentativa, as partes tornam a sua anterior
existência separada. Assim ocorreu, por exemplo, entre os gregos, uma vez eliminado
352 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o perigo persa. No outro tipo, a unidade é menos completa, mas também menos
efêmera. A agrupação se faz em torno a um conflito que é singular, menos pelo
momento que pelo conteúdo, e permite que as demais atividades dos elementos
coligados não entrem em contato. Assim, existe na Inglaterra desde 1873 uma
Federation of Associated Employers of Labour, fundada para combater a influência
das trade unions. Nessa ordem de ideias, alguns anos depois, também se constituiu,
nos Estados Unidos, uma associação de patrões sem ter em conta os diversos ramos
da atividade industrial, para enfrentar coletivamente os movimentos de greve dos
operários.
Naturalmente, aparece mais acentuado o caráter de ambos os tipos quando
os elementos da unidade conflitante são não somente indiferentes entre si, mas
também hostis em outros períodos ou em outras circunstâncias. O poder unificador
do conflito fica particularmente evidenciado quando produz um insulamento
associativo, temporal ou temático, em circunstâncias de concorrência ou
animosidade. A oposição entre o antagonismo habitual e a momentânea
solidariedade combativa pode agravar-se até o ponto de que, para as partes,
justamente sua inimizade absoluta seja a causa de sua coalizão. No Parlamento
inglês, a oposição surgiu às vezes porque os ultrarradicais do partido ministerial que
não se sentiam satisfeitos com atuação do governo se uniam com os adversários de
princípio do partido governante para formar um grupo unido por sua comum
animosidade contra o gabinete. Assim, contra Robert Walpole se uniram os whigs
extremistas, dirigidos por William Pulteney, com os tories. Nesse caso, justamente o
radicalismo do princípio whig, que se alimentava da hostilidade contra os tories, foi o
que amalgamou seus adeptos com seus inimigos naturais. Se não tivessem sido tão
radicalmente opostos aos tories, os ultras não se teriam unido a estes para provocar
a queda do gabinete whig que não era suficientemente whig para eles.
Esse caso é tão surpreendente porque nele se vê como o adversário comum
une inimigos habituais que concordam em acreditar, cada um por seu lado, estar
perto demais do outro bando. Finalmente, o caso só tem de extraordinária a clareza
com que exemplifica uma experiência banal: nem os ódios mais tenazes impedem as
alianças sempre que visem um inimigo comum. Isso acontece especialmente quando
as duas partes coligadas – ou uma delas ao menos – perseguem objetivos muito
Georg Simmel | 353

concretos e imediatos para cuja consecução só necessitam eliminar um adversário


assinalado. Na história da França da primeira metade do século XVII, marcada pelas
confrontações dos huguenotes, do partido dévot e do Cardeal de Richelieu, bastava
que uma destas facções se declarasse hostil a Espanha, ou a Inglaterra, ou a Saboia,
ou a Holanda, para que outra prontamente se aliasse a esta potência estrangeira, sem
preocupar-se em saber se ela estava ou não em harmonia com suas tendências
positivas. Esses partidos só precisavam de espaço (quer dizer, de se livrar do
adversário) para alcançar seus objetivos, quanto ao mais, perfeitamente exequíveis.
Por isso, estavam dispostos a se aliar a qualquer inimigo, bastando-lhes que esse
adversário tivesse o propósito de manter-se indiferente a respeito do resto de sua
relação com ele. Quanto mais destrutiva e puramente negativa seja uma inimizade,
mais fácil será, para uma das partes, formar a uma aliança com outros elementos,
com os quais não exista, aliás, nenhum outro motivo de ação comum.
Finalmente, a forma menos aguda dessa escala (o grau inferior dela), está
constituída pelas associações baseadas em uma comunidade de sentimentos. Os
aliados sabem que existe entre eles certa comunidade porque todos têm uma mesma
aversão ou um interesse semelhante a respeito de um terceiro, sem que essa
comunidade conduza necessariamente, de fato, a um enfrentamento real. Também
nesse caso devemos distinguir dois tipos. Por um lado, é sabido que a grande
indústria, colocando massas de trabalhadores em face de poucos patrões, não só
produziu associações eficazes de operários que lutam concretamente para obter
melhoras nas condições de trabalho, mas também fomentou o sentimento de que
entre todos os assalariados existe certa comunidade porque eles se confrontam aos
patrões em uma luta por princípio idêntica para todos. Naturalmente, esse
sentimento se concretiza às vezes na formação de partidos ou em lutas
reivindicativas. Mas, no seu conjunto, por definição, não se torna uma realidade
concreta, limitando-se a ser um sentimento de solidariedade abstrata, fundada na
comum hostilidade a um inimigo abstrato.
Enquanto nesse caso o sentimento de unidade é abstrato, mas duradouro, no
segundo é concreto, mas efêmero. Estamos a pensar nomeadamente em pessoas,
que não se conhecem, mas que pertencem à mesma esfera elevada de cultura e
sensibilidade, ou que se encontram em sociedade, em um vagão de estrada de ferro
354 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

(ou em algum outro círculo social), junto a outras pessoas de modos grosseiros e
vulgares. Sem que se tenha chegado a tentar algum ato concreto, sem que tenha
havido a menor troca de palavras ou de olhares, as primeiras têm o sentimento de
formar um partido, unidas estreitamente pela aversão comum ao plebeísmo
agressivo das outras – na sua opinião, pelo menos. Tal sentimento comum, que é
extremamente passageiro e sutil, mas ao mesmo tempo absolutamente desprovido
de ambiguidade, representa o último nível na hierarquia dessas associações em que
elementos inteiramente estranhos se sentem unidos pela comunidade de
antagonismo.
Quando não se pode medir a força associativa de uma oposição comum pelo
número de interesses coincidentes, mas pela duração e intensidade da associação,
a ameaça constante de um inimigo pode ser muito mais favorável à união que uma
luta atual. Diz-se a respeito do primeiro período da Liga Aqueia, por volta do ano 270
a.C., que Acaia encontrava-se rodeada de inimigos que, naquele momento estavam
demasiado ocupados para pensar em atacá-la. Pois bem, um período de perigo como
esse, sempre ameaçador, mas constantemente procrastinado foi especialmente
favorável para reforçar o sentimento de unidade dos aqueus. Eis um caso particular
de uma espécie muito curiosa: certa distância entre os elementos que devem
associar-se, de uma parte, e o interesse coincidente que lhes associa, por outra, é
uma situação particularmente propícia à coalizão dos elementos, em especial
quando se trata de círculos extensos. Isso também se aplica às relações religiosas.
Comparado com as divindades tribais ou nacionais, o Deus universal do cristianismo
está a uma infinita distância dos fieis, não tem nenhuma feição que possa aproximá-
lo à natureza individual de um povo ou nação. Em compensação, pôde reunir os
povos e as pessoas mais heterogêneas em uma comunidade religiosa incomparável.
Do mesmo modo podemos interpretar o fato de que as vestes indiquem
sempre a pertença a determinados estratos sociais, e de que amiúde parecem
cumprir melhor esta função social quando vêm do exterior. Vestir-se à moda de Paris
significa em outros países que se faz parte de uma camada social distinta, restrita e
exclusiva. Já o profeta Sofonias estigmatizava os poderosos e “os que se vestem
Georg Simmel | 355

com roupas estrangeiras” 36 . Os diversos significados que encerra o símbolo do


“afastamento” têm várias afinidades psicológicas. Assim, por exemplo, parece que
um conteúdo imaginário cujo objeto é apresentado como “distante” produz quase
sempre um efeito mais impessoal. A reação individual provocada pela proximidade e
pelo contato imediato é então menos intensa, tem um caráter menos imediatamente
subjetivo e pode assim ser a mesma para um grande número de indivíduos. Da
mesma maneira que o conceito geral (que deve abranger uma pluralidade de seres
humanos individualizados) é tanto mais abstrato (quer dizer, mais afastado de cada
um deles) quanto mais numerosos e diferentes são os indivíduos, assim também um
elemento de união social parece exercer ações especificamente unificadoras e
incentivadoras quando está a uma maior distância (no sentido literal e translato da
palavra) dos elementos que tem de unir. Um processo de unificação desse tipo,
resultado de um perigo mais crônico que agudo, de um conflito que não chega ao
choque, mas que subsiste latente será muito eficaz tratando-se da união duradoura
de elementos de algum modo dissociados. Era o caso da Liga Aqueia, que já citamos,
e o da república segundo Montesquieu. Este último afirmava que, enquanto a paz e a
confiança garantem a glória e a segurança da monarquia, uma república necessita
ter medo de alguém. Isso se baseia obviamente na constatação de que a monarquia
como tal cuida de manter unidos os elementos que possam ser antagônicos. Em
compensação, quando os elementos conflitantes não têm ninguém acima deles para
lhes impingir a unidade e, em vez disso, gozam de uma relativa soberania, se
dissociarão facilmente se um perigo partilhado por todos não os obrigasse a ficar
juntos. Um perigo que, para assegurar melhor a união duradora, não pode resolver-
se de uma vez por todas, mas restar como ameaça constante.
Não sendo isso mais do que uma questão de grau, o estudo da relação
fundamental da coletividade com o sentimento de inimizade ficaria incompleto sem
o que segue. As obras ou desígnios conflituosos levados a efeito por uma ou mais
pessoas tendem muito mais do que as empresas pacíficas a atrair, desde seu
nascimento, a cooperação do maior número possível de elementos ordinariamente
dispersos e que por si mesmos não se teriam decidido a agir. Nas ações pacíficas,

36
Cf. Sf, 1,8. (NT)
356 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mesmo em tempos normais, o recrutamento se limita frequentemente aos elementos


mais próximos. No entanto, para fazer deles “aliados” – palavra da língua corrente
que, sendo em si mesma neutra, tem adquirido uma nuance belicosa – recrutam-se
amiúde elementos com os quais quase não se coincide em interesses ou
sentimentos e que até se prefira em outros casos ter longe. Isso se deve, em primeiro
lugar, ao fato de que os choques – e não falamos apenas daqueles em que se
confrontam ideias ou interesses – representam com frequência situações de
urgência nas que não se pode ser muito exigente na escolha de auxiliares. Em
segundo lugar, deve ter-se em conta que na medida em que o objetivo da ação esteja
fora ou na periferia dos interesses dos aliados, assim que a luta acaba, esses
coadjuvantes podem ser recolocados à mesma distância de antes. Em terceiro lugar,
não se pode esquecer que, ainda que o preço da vitória possa ser alto, quando em
caso favorável o ganho a obter no conflito seja singularmente rápido e profícuo,
pode-se exercer sobre certos temperamentos uma atração formal que no caso das
empresas pacíficas só pode emanar do seu conteúdo particular. Em quarto lugar, é
significativo o fato de que o conflito relegue a um segundo plano o que têm de
verdadeiramente pessoal os indivíduos que se batem, permitindo assim a coalizão de
elementos heterogêneos. Finalmente, acrescente-se aos motivos anteriores a
facilidade com que se provocam as inimizades. Quando se deflagram as hostilidades
de um grupo contra outro resurgem todos os possíveis motivos de inimizade latentes
ou quase esquecidos que possam aborrecer seus respectivos membros. Da mesma
maneira, as hostilidades entre dois grupos amiúde fazem que readquiram força todas
as animosidades e rancores que um terceiro grupo alimentava por um dos dois
primeiros e que sem aquelas manifestações não teriam vindo à tona, mas que agora
que o caminho ficou aberto, o impulsionam a associar-se a sua ação. Eis a razão pela
qual, em tempos primitivos, as circunstâncias que convocavam populações inteiras
estavam sempre vinculadas à guerra, enquanto outras como o comércio, a
hospitalidade ou o connubium, que somente concerniam às relações interindividuais,
favoreciam sem dúvida, as alianças entre unidades étnicas, mas sem torná-las
efetivas por si mesmas.
Quando um processo histórico consiste na alternância rítmica de dois
períodos de igual importância e que só por sua relação e oposição adquirem sentido
Georg Simmel | 357

próprio, a imagem unitária que nos formamos desta sequência raramente reproduz o
equilíbrio objetivo e o nível constante sobre o qual os elementos se sucedem um ao
outro. Pelo contrário, é quase inevitável que emprestemos à alternância um caráter
teleológico, de maneira que um dos elementos aparece sempre como o ponto de
partida, como o objetivamente original a partir do qual o outro surge, ao passo que a
nova passagem deste outro ao anterior se nos afigura um retrocesso. Assim, por
exemplo, ainda que assumamos que a evolução do universo consiste em uma eterna
alternância entre a regularidade qualitativa de quantidades de matéria concentrada e
a dispersão diferenciada dessas mesmas quantidades de matéria, e estejamos
convictos de que cada uma delas, por sua vez, procede sempre da outra e
inversamente, o funcionamento de nossas categorias intelectuais é tal que, apesar
disso, sempre consideramos o estado de indiferenciação como o estado original.
Quer dizer, nossa necessidade de explicação nos leva a deduzir a diversidade da
unidade antes do que o contrário, ainda que, objetivamente, acaso fosse mais exato
não considerar nenhuma delas como a primeira, e aceitar um ritmo infinito que não
permite determos-nos em nenhum estado calculado por antecedência, senão
deduzi-lo de outro precedente e oposto.
Isso também sucede com os princípios do movimento e do repouso. Ainda que
estes princípios se alternem infinitamente, tanto no conjunto como nas séries
particulares, temos a tendência de ver o estado de repouso como o original, o
primitivo que não requer ser deduzido de outro princípio. Quando consideramos um
par de períodos, sempre nos parece que um deles explica o outro, a tal ponto que
unicamente quando os temos colocado nessa relação, acreditamos compreender o
sentido da alternância. Não nos conformamos em ver simplesmente o fenômeno de
sucessão, sem que nenhum desses períodos seja designado como primário ou
secundário. Pois o homem é um ente excessivamente inclinado a fazer distinções e
valorações e a procurar finalidades para deixar de dar ênfase ou especial destaque a
certos momentos no fluxo ininterrupto dos períodos, interpretando-os segundo as
formas do domínio e da servidão, da preparação e do cumprimento, ou do transitório
e do definitivo.
O mesmo acontece com a guerra e a paz. Ambos os estados se oferecem tão
confundidos nos fatos sucessivos ou simultâneos da vida social que, em toda paz
358 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

elaboram-se as condições para a guerra futura e em toda guerra as da paz que virá.
Se refizermos em sentido contrário as séries da evolução social, veremos que não é
possível nos deter em nenhum ponto, pois, na realidade histórica, os dois estados
podem ser explicados sempre um pelo outro. Todavia, intuitivamente, nós
introduzimos uma distinção entre os elos da série: a guerra se nos afigura o elemento
provisório cuja finalidade não é outra que a paz e seus conteúdos. Enquanto
objetivamente, o ritmo desses elementos segue inteiramente um mesmo nível, com
valores iguais, nosso sentimento valorativo os converte, por assim dizer, em períodos
iâmbicos37, nos quais a guerra é a tésis38 e a paz é a ársis39. Assim no mais antigo
sistema político de Roma, o rei tinha que solicitar o consentimento dos cidadãos
antes de engajar-se em uma guerra, mas quando se tratava de negociar e fazer a paz
não tinha necessidade desse acordo – considerado um dado adquirido.
Isso já dá uma indicação de que a passagem da guerra para a paz representa
um problema mais sério do que o inverso. Este último caso não merece ser objeto de
uma análise aprofundada, pois as situações que dentro de um estado de paz podem
dar lugar a uma guerra declarada são já uma forma difusa, talvez imperceptível, ou
latente, de guerra. Assim, por exemplo, antes da Guerra de Secessão estadunidense,
a próspera situação econômica dos Estados norte-americanos do Sul – decorrente
da escravidão – era o fundamento real dessa guerra, mas enquanto essa situação
não produziu um enfrentamento antagônico com os Estados do Norte, desde que, por
enquanto, não se tratava mais do que da expressão concreta e empírica da realidade
de uma ou outra região, tal conjuntura se situava além da questão específica da
guerra e da paz. Porém, a partir do momento em que apareceu o estado de espírito
que devia conduzir à guerra, ele era em si mesmo uma acumulação de antagonismos
e conflitos recorrentes, animosidades e preconceitos, controvérsias de natureza
política na imprensa, episódios de tensão entre particulares, escaramuças nas
fronteiras e mútuas suspeitas morais até em temas alheios ao cerne do litígio. Por
conseguinte, o término da paz não está definido por nenhuma situação sociológica

37
Relativo ao iambo, sistema de versificação greco-latino que se compõe de uma unidade de tempo
breve seguida de outra longa. (NT)
38
Na versificação greco-latina a parte de uma sílaba breve não marcada pelo acento métrico (NT) 
39
Na versificação greco-latina, a parte de uma sílaba longa marcada pelo acento métrico. (NT)
Georg Simmel | 359

particular: o antagonismo surge diretamente a partir de certas circunstâncias


objetivas já presentes na paz, ainda que só tivessem alcançado sua forma mais clara
e intensa depois de certo período de tempo, No caso inverso, as coisas ocorrem de
uma maneira bem diferente. A paz não procede diretamente da guerra. O término do
conflito é um passo crítico que não pertence nem a uma nem a outra categoria, da
mesma maneira que a ponte é de uma natureza distinta às duas margens que ela
liga. É por isso que a sociologia do conflito exige, pelo menos como um apêndice,
uma análise das formas em que a luta acaba. As formas nos oferecem alguns tipos
de ação recíproca que não se observam em nenhuma outra circunstância.
Não há alma alguma, sem dúvida, que esteja totalmente a salvo da atração
formal da guerra e da paz. E já que ambas têm determinada permanência no tempo,
sua alternância acrescenta um interesse analítico renovado. Cada individualidade se
distingue de acordo com o ritmo que a natureza de cada um impõe à alternância,
conforme o elemento seja primário ou secundário, na medida em que a provoque por
própria iniciativa ou aguarde a decisão do destino. Por isso a primeira causa de
terminação do conflito – o desejo de paz – é mais rica em conteúdos que a simples
lassidão. É esse ritmo que nos faz agora desejar a paz como um estado concreto que
não se reduz à ausência de conflito. Esse ritmo apenas não pode ser entendido de
um modo puramente mecânico. Diz-se frequentemente que muitas relações íntimas
como o amor ou a amizade podem necessitar às vezes de quebras ocasionais para
perceber toda sua felicidade por contraste com os sofrimentos resultantes de uma
separação, ou para tirar da relação, pelo distanciamento, um caráter estreito demais
que pode, de fato, representar para algum dos indivíduos algo de forçado e opressivo.
Mas não são, decerto, as relações mais profundas que precisam de semelhante
artifício. Esse é apenas o apanágio nas naturezas destituídas de refinamento que têm
necessidade dos encantos grosseiros da diferença, e cuja vida consagrada ao
momento favorece a rápida passagem de um extremo a outro, segundo o modelo
popular descrito no ditado alemão sobre o tipo que procura a discórdia para manter
a relação: “a ralé se bate e faz as pazes”. Em compensação, uma relação
verdadeiramente íntima e refinada se mantém sem intervalos antagônicos, achando
suficiente contraste no mundo à sua volta, contentando-se com as dissonâncias e
hostilidades da vida normal para valorizar a paz de que gozam seus integrantes.
360 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Todavia, o desejo de paz tem outros motivos indiretos que é preciso distinguir
dos precedentes. Por um lado, o esgotamento das forças, capaz de simplesmente
acrescentar a necessidade de paz ao desejo de lutar, que resta constante; por outro
lado, a preterição do interesse no conflito em prol de um objeto superior. Este último
caso engendra hipocrisias morais de todo o tipo e numerosas mentiras a si mesmo:
se acredita ou se está a fazer de conta que se crê renunciar a guerra pelo interesse
ideal da paz, quando, em realidade, a única coisa que aconteceu foi a perda do
interesse pelo objeto do conflito e a preservação das energias para aplicá-las em
outras ações.
Nas relações profundamente arraigadas, o conflito termina quando, o que
poderíamos denominar de corrente de fundo, que o orientava em certa direção,
impedida de desviar-se, reaparece na superfície e acalma a violência das correntezas
contrárias que a agitavam. Em compensação, quando é a desaparição do objeto do
conflito a que põe fim às hostilidades, se veem aparecer nuances absolutamente
originais. Todo conflito que não é de natureza plenamente impessoal mobiliza as
forças individuais disponíveis e atua como um ponto de cristalização em torno do
qual se ordenam aquelas forças a uma maior ou menor distância – reproduzindo no
psiquismo a disposição formal das tropas principais e dos corpos auxiliares –,
outorgando ao conjunto complexo da pessoa, assim que ela entra em luta, uma
estrutura singular. Quando o conflito termina de uma das maneiras habituais
– vitória e derrota, reconciliação ou compromisso –, essa estrutura psíquica se
transforma em estrutura de paz, e o ponto central comunica às demais energias
implicadas a transformação nele operada com a passagem da excitação ao
apaziguamento. Todavia, amiúde, em lugar desse processo orgânico (ainda que
infinitamente variável) de extinção interna e progressiva do movimento conflituoso,
aparece (sobretudo quando o objeto do conflito desaparece subitamente) outro
processo completamente irracional e turbulento, em virtude do qual as hostilidades
parecem ainda continuar no vazio. Porque nosso sentimento talvez seja mais
conservador do que nossa inteligência, de modo que a excitação da agressividade
não se acalma nunca no mesmo instante em que nossa razão reconhece ter
desaparecido a causa da contenda. Sempre se produzem confusão e danos quando
os movimentos da alma, suscitados por um motivo qualquer, se veem bruscamente
Georg Simmel | 361

privados de todo motivo e não podem seguir se desenvolvendo e desafogando


naturalmente, ficando privados de toda razão de ser – a menos que optem pela
autofagia anárquica ou se segurem a um absurdo objeto de substituição. Por
conseguinte, se o acaso ou um poder superior privam de seu objetivo a um conflito
em pleno desenvolvimento – uma rivalidade amorosa em que a pessoa cortejada se
decide por uma terceira, uma batalha por certo espólio do qual outro entretanto se
apodera, ou uma controvérsia teórica que subitamente é resolvida por uma
inteligência superior de modo a que as duas afirmações contrárias se revelem
erradas –, acontece frequentemente que a disputa prossiga ainda em vão, que as
partes se desgastem em estéreis acusações mútuas e resurjam velhas divergências
enterradas desde muito tempo, Trata-se do último rebate que ainda resta aos
movimentos conflituosos, que antes de aquietar-se têm de aplicar inutilmente suas
forças de alguma maneira e em circunstâncias forçosamente insensatas e
tumultuosas. Os casos mais característicos são talvez aqueles em que os dois
adversários reconhecem que o objeto do conflito era ilusório ou não valia a pena. Em
tais circunstâncias, a vergonha do erro leva amiúde a prolongar a luta durante muito
tempo com um dispêndio de energias penoso e absolutamente injustificado, mas
muito mais feroz porque elas são investidas contra o adversário que nos obriga a
esse gesto inútil.
O modo mais simples e radical de passar da luta à paz é a vitória
– manifestação particularíssima da vida – que, embora se encontre, com certeza, em
inumeráveis formas e medidas, não guarda semelhança alguma com os outros
fenômenos suscetíveis de existirem com diferentes nomes no tecido de nossas
vidas. Dentre os diversos tipos de vitória que colorem de maneira expressiva a paz
subsequente, apenas mencionaremos aquele que não se consegue exclusivamente
pelo predomínio de uma das partes, mas, no mínimo parcialmente, pela rendição da
outra. Esse modo de submeter-se, de admitir sua derrota, de curvar-se perante a
vitória do adversário sem se terem esgotado todas as forças e possibilidades de
resistência não é um fenômeno simples. Contribui para ele certa tendência ascética,
o prazer da própria humilhação e entrega – não suficiente para se render de antemão,
sem luta, mas forte o bastante para surgir assim que o sentimento de derrota começa
a apoderar-se da alma, ou para encontrar talvez seu maior encanto no contraste com
362 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o espírito de luta ainda vivo. O sentimento de que é mais distinto entregar-se que
acalentar até o último momento quaisquer ilusões de que venha a haver uma
inverosímel mudança do destino, pode inspirar ainda mais a mesma decisão.
Suprimir essa possibilidade, e evitar a todo o custo que o adversário demonstre a
nossa derrota inevitável tem algo do velho estilo nobre e grande dos homens
conscientes, não apenas da sua própria força, mas também da sua fraqueza, sem ter
necessidade de se certificar dessa realidade de modo concreto. Finalmente, através
dessa forma de se reconhecer livremente vencido, o sujeito prova uma última vez seu
poder: mesmo quando derrotado pôde fazer seu último ato positivo e conceder algo
ao vencedor. Por isso, nos conflitos pessoais pode ser visto às vezes que a renúncia
de uma das partes, antes que a outra tenha triunfado plenamente, é sentida pelo
vencedor como uma espécie de ofensa – como se em realidade ele fosse o mais
fraco, a quem se considera com transigência por alguma razão, sem qualquer
constrangimento40.
Entre os meios de acabar um conflito, o compromisso é o perfeito reverso da
vitória. Precisamente, um dos critérios para classificar os conflitos consiste em saber
se eles, por sua natureza, são ou não suscetíveis de compromisso. Porém, isso não
depende unicamente de que o que está em causa nessa luta seja uma unidade
indivisível ou possa ser separado criteriosamente em diversas partes. Diante de
certos objetos não se pode falar de compromisso por repartição: não há conciliação
aceitável entre rivais que se disputam o amor de uma terceira pessoa; entre dois
compradores potenciais de um único e mesmo objeto de compartilhamento
impossível; assim como nos confrontos originados pelo ódio ou a vingança. No
entanto, chega-se a um compromisso em certas lutas que têm por objeto alguma
coisa indivisível desejada também por outrem, se esse objeto pode ser substituído.

40
Isso pertence à esfera de relações onde todo favor para com os outros é sentido como uma ameaça.
Há gestos de amabilidade reputados como ofensa, presentes que humilham, manifestações de
condolência consideradas insolentes familiaridades ou que agravam os sofrimentos da vítima e
dádivas que motivam uma gratidão forçada ou criam uma relação mais intolerável que a privação que
suprimem. Se esses conjuntos sociológicos são possíveis é porque frequentemente existe um
profundo hiato entre o conteúdo objetivamente expresso de uma situação, por uma parte, e sua
realização individual, por outra, percebida como um simples elemento de uma vida bastante complexa.
Nessa fórmula estão incluídos dilemas como os de saber se deve tratar-se a doença ou o doente, se
tem que ser punido o delito ou o delinquente, ou se a missão do mestre é transmitir um conteúdo de
ensino ou formar o aluno. Assim muitas coisas são objetivamente benéficas segundo seu conteúdo
conceitual, enquanto as consideradas como realidades individuais podem ser o contrário. (NS)
Georg Simmel | 363

Em tal caso, ainda que seja atribuído a um único indivíduo daqueles que o almejam,
a disputa termina se o favorecido indeniza a condescendência do outro com um valor
consequente e aceito. Pois que o caráter fungível41 dos bens não depende de alguma
igualdade objetiva de valor entre eles, mas da disposição das partes a terminar com
o antagonismo, transigir e compensar. Essa possibilidade se move entre dois casos
extremos: aquele da teimosia absoluta que rejeita a compensação mais racional e
generosa (que em outras circunstâncias teria convencido qualquer um a renunciar
de bom grado ao objeto disputado) pela mera razão de que é o adversário quem a
propõe, até outros casos em que essa parte que parecia tão atraída pelo caráter
individual do que estava em jogo, abandona-o com agrado em troca de um objeto
cuja capacidade para substituir o primeiro resulta amiúde incompreensível.
No conjunto, o compromisso, em especial o produzido pela fungibilidade,
ainda que para nós seja uma técnica da vida cotidiana e natural, constitui uma das
maiores invenções da humanidade. O impulso do homem primitivo, como o da
criança, é apoderar-se pura e simplesmente de todo objeto que lhe agrada, sem se
perguntar sequer se ele já não é de outras pessoas. Junto com a dádiva, o roubo é a
forma mais natural da troca de posses. Por isso, ela se produz raramente sem luta
nas sociedades arcaicas. Perceber que isso pode ser evitado oferecendo ao
possuidor do objeto cobiçado outro que nos pertence (diminuindo assim as despesas
e esforços totais que teríamos se prosseguíssemos ou começássemos um conflito)
é o princípio de toda economia civilizada e de todo comércio superior. Toda troca de
coisas é um compromisso. (Eis aqui o que constitui a miséria das coisas face ao
puramente espiritual: a troca de coisas representa sempre alguma privação ou
renúncia, enquanto o amor e todos os dons da alma podem trocar-se sem que seja
necessário compensar o enriquecimento de um lado com o empobrecimento do
outro). Quando se afirma que certas categorias sociais consideravam cavalheiresco
roubar e lutar pelo espólio, enquanto que comprar e trocar era reputado indigno e vil,
temos que atribuí-lo ao caráter de compromisso da troca, da concessão e da
renúncia, que faz delas o polo oposto do combate e da vitória. Toda troca pressupõe
que as valorações e os interesses adotam um caráter objetivo. O decisivo não é já a

41
São fungíveis os bens móveis substituíveis por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
(NT)
364 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

simples avidez, subjetiva e apaixonada, que convém unicamente o combate, mas o


valor do objeto, reconhecido por ambos os interessados, que, graças a sua
transmutação subjetiva, pode ser representado por diversos objetos. A renúncia ao
objeto considerado precioso, porque se recebe sob outra forma o valor que ele
representa é, apesar de sua simplicidade, um meio realmente maravilhoso para
resolver sem luta a oposição de interesses. Foi necessária, com certeza, uma longa
evolução histórica para superar o fascínio da satisfação imediata de nossos apetites
e isolar psicologicamente cada objeto unitário do sentimento universal do valor que
se tinha originariamente fundido com ele. Graças à substituição (da qual a troca é um
caso especial) o compromisso representa em princípio a possibilidade (só
parcialmente realizada) de evitar o conflito ou de pôr termo a ele antes de usar a força
bruta.
Em face do caráter objetivo da finalização do conflito por compromisso, a
reconciliação constitui um meio exclusivamente subjetivo. Não nos referimos à
reconciliação que se produz como consequência do compromisso ou de qualquer
outro ato ou processo de conclusão de um conflito, mas à sua causa. O desejo de
reconciliação é um sentimento primário que, prescindindo de toda razão objetiva,
procura pôr termo à disputa e ao espírito belicoso que está por trás dela que carece
também de motivo objetivo. Nos incontáveis casos em que o conflito acaba de outro
modo que pelas impiedosas consequências das relações de poder entre as partes, o
que está em jogo é, com certeza, a tendência elementar e irracional à reconciliação.
Tal disposição natural é algo completamente distinto da fraqueza ou bondade, da
moral social ou do amor ao próximo. Nem sequer coincide com o espírito de paz, pois
o sujeito animado dessa convicção busca evitar com antecedência a luta, e mesmo
quando esta lhe é imposta se bate conservando constantemente, como uma corrente
subterrânea, o desejo de paz. Já o espírito de reconciliação só surge amiúde, com
todo seu vigor, depois do sujeito se entregar plenamente à luta. A peculiaridade
psicossociológica da reconciliação parece aproximá-la mais do perdão, que também
não pressupõe necessariamente a frouxidão das reações, a falta de ímpeto
antagônico, mas que pelo contrário só brilha em toda a sua pureza ante a injustiça
profundamente sentida e depois de um combate apaixonado. Por isso, há na
Georg Simmel | 365

reconciliação, como no perdão, algo de irracional, como uma espécie de negação do


que se era até um momento atrás.
Esse misterioso ritmo da alma, ao abrigo do qual só os sentimentos opostos
determinam um estado ou condição psicológica desse tipo, aparece talvez com
máxima clareza no perdão. O perdão é, sem dúvida, a única atitude mental ou moral
caracterizada por afeição que supomos absolutamente submetida à vontade, pois,
caso contrário, que sentido faria pedir perdão? Um pedido não poderia levar-nos a
fazer uma coisa que estivesse fora do alcance da nossa vontade. Que se poupe a vida
do inimigo vencido, que se prescinda de qualquer vingança para com o ofensor, são
coisas que visivelmente dependem da vontade e que, por consequência, podem ser
objeto de uma petição. Ora, perdoar, Isto é, fazer os sentimentos de antagonismo,
ódio ou ruptura serem substituídos por outro sentimento, não parece depender da
mera faculdade de escolha e de livremente praticar ou não certos atos. Na verdade,
as coisas não se passam assim. Apenas ocorre em poucos casos em que não seja
possível perdoar, mesmo com a mais boa vontade. Quando analisamos
pormenorizadamente o perdão, encontramos algo que, racionalmente não se
compreende bem, a saber, um elemento místico religioso que participa igualmente,
em certa medida, do processo sociológico da reconciliação.
Além disso, a relação “reconciliada” suscita um problema particular por sua
diferença com a relação que nunca esteve rompida. Não se trata aqui daquelas
relações acima discutidas, cujo enigmático ritmo interno oscila entre o
desentendimento e a reconciliação, mas das que têm sofrido uma verdadeira ruptura
e que se restabeleceram numa base inteiramente nova. Não há características
humanas que definam as relações mais bem que estas: neste caso acrescentaram
ou diminuíram sua intensidade? Pelo menos, é essa a alternativa que diz respeito às
naturezas suficientemente profundas e sensíveis, porque quando depois de ter
sofrido uma ruptura radical, uma relação se restabelece como se nada tivesse
acontecido, de um modo geral presume-se que aqueles que desempenham um papel
nesse processo devem ter uma sensibilidade leviana ou rude. Por sua parte, o
segundo caso da alternativa é o menos complicado. Percebe-se sem dificuldade que
um rompimento não possa ser esquecido, mesmo com a mais sincera vontade de
ambas as partes. Para isso não é necessário que ainda reste algo do objeto do
366 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conflito, ou que subsista algum tipo de desavença irredutível, pois a simples ruptura
é suficiente. Ademais, no caso de relações íntimas que chegaram um dia a uma
separação completa, ver que as partes conseguem viver uma sem a outra contribui
frequentemente para este resultado. A vida continua, ainda que, por vezes, pode não
ser muito sorridente. Tudo isso não só desvaloriza a relação, mas (depois de
restabelecida a unidade) a transforma em algo que facilmente o indivíduo assumirá
como um tipo de traição e infidelidade da que já não pode remir-se, ou incorpora à
relação renovada desânimo e desconfiança nos próprios sentimentos.
É verdade que com frequência nos enganamos a esse repeito. A relativa e
surpreendente facilidade com que às vezes se suporta a ruptura de uma relação
íntima provém de conservar dentro de nós um pouco da emoção provocada pela
catástrofe. Esta última reanima em nós todas as energias possíveis, cujo impulso nos
ajuda e sustenta durante algum tempo e permite nos manter de pé. Mas, assim como
a morte de um ente querido não exibe todo seu horror ás primeiras horas (porque
apenas o tempo permite relembrar todas as situações nas quais ele agia, e que logo
nos parecerão carecer de sentido sem sua presença), assim também uma relação
próxima e valiosa não se desfaz nos primeiros e cruciais momentos da separação,
em razão de nossa imaginação estar ocupada com os motivos da ruptura. Também
aqui nós não conseguimos descortinar a perda de todas as horas que ao amargo
sabor das circunstâncias, e por esta razão não raras vezes é só muito mais adiante
que nossa sensibilidade (que inicialmente parecia suportar a ausência com certa
indiferença) reage verdadeiramente a ela. Da mesma maneira e por essa razão a
reconciliação de algumas relações é mais profunda e apaixonada quanto mais tempo
dura a ruptura. De maneira geral, isso torna compreensível que o tempo da
reconciliação, do “esquecer e perdoar”, tenha a maior importância para o
desenvolvimento estrutural posterior, pois o conflito só se considerará realmente
acabado quando as energias latentes tenham encontrado alguma forma de
atualização. É apenas em estados declarados ou ao menos conscientes, que o
espírito de luta fica verdadeiramente penetrado pelas tendências à reconciliação.
Assim como não se deve aprender muito depressa para que fique o que se aprende,
também não se deve esquecer com demasiada rapidez para que o esquecimento
adquira toda sua significação sociológica.
Georg Simmel | 367

O primeiro caso da alternativa é mais complicado do que o segundo. Com


efeito, há inúmeras causas para o grau de intensidade de a relação reconciliada
superar aquele da relação que nunca foi rompida. A principal é que, graças à
reconciliação, surge um segundo plano no qual se destacam mais conscientes e com
maior clareza todos os valores da união e todos os elementos que contribuem a
mantê-la. A isso se acrescenta a discrição que omite mencionar o passado e introduz
na relação uma nova e profunda ternura e ainda certa implícita cumplicidade, pois em
muitos casos, evitar em comum certas questões excessivamente sensíveis pode
representar uma intimidade e uma mútua compreensão tão grandes como a
familiaridade que faz de todo objeto da vida íntima do indivíduo um objeto da vida
comum positiva. Finalmente, a intensidade do desejo de manter a salvo de toda
sombra a relação renovada, não procede apenas da dor experimentada durante a
ruptura, mas também da convicção de que uma segunda ruptura não poderia sarar
como a primeira. Pois que a cura, repetida em inumeráveis casos – pelo menos entre
pessoas sensíveis –, transformaria a relação em uma caricatura. Evidentemente, até
a relação mais profundamente arraigada pode conhecer uma ruptura trágica e uma
reconciliação. Entretanto, esses são acontecimentos que só podem suceder uma vez
e cuja repetição tiraria deles todo decoro e seriedade, uma vez que produzida a
primeira reiteração nada se opõe a uma segunda e uma terceira, que banalizariam o
acontecimento dramático, reduzindo-o a um jogo frívolo. Para as naturezas
sensíveis, essa convicção de que um novo rompimento seria definitivo
– convencimento para o qual antes do primeiro apenas se tem analogia – é talvez o
vínculo mais forte, que distingue a relação reconciliada daquelas que nunca foram
rompidas.
Precisamente porque o grau da reconciliação possível (subsequente a um
conflito e aos sofrimentos impostos a uma ou ambas as partes) tem grande
importância para o desenvolvimento das relações entre as pessoas, seu extremo
contraditório, a desavença, é igualmente transcendente para nossa análise. Como a
reconciliação, a desavença pode ser também um estado formal da alma que, sem
dúvida, não precisa de uma situação exterior para atualizar-se, mas aparece então
de um modo absolutamente espontâneo e não apenas como consequência de outras
emoções intermediárias. Ambas as tendências formam parte dos elementos
368 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

fundamentais opostos cuja mistura determina todas as relações humanas. Ouve-se,


por vezes, dizer que quem não soubesse esquecer também não poderia perdoar, ou
seja, reconciliar-se plenamente. No entanto, isso traria como consequência, a mais
terrível desavença, pois significa que não existiria reconciliação enquanto não
desaparecesse da consciência tudo o que fosse uma razão para a atitude contrária.
E, por acréscimo, como todos os processos em que o esquecimento intervém, este
estaria sempre à mercê de ser posto em causa. Todavia, se essa opinião tem de ter
um sentido, deverá ser interpretada ao contrário: quando a reconciliação existe como
um fato primário, ela será a causa de que a separação e a dor decorrentes da ação
das partes não venham à tona da consciência. Assim sendo, a desavença
propriamente dita também não consiste em que a consciência não consiga superar
os conflitos antigos, sendo antes a consequência disso. A desavença significa que o
conflito inflige à alma uma alteração que não pode ser já retificada. Não é comparável
a uma ferida sarada há muito, mas à perda de um membro.
Essa é a mais trágica desavença. Não há necessidade que restem na alma
rancores, mágoas ou uma revolta secreta que erijam um muro entre um e outro
elemento. O que houve é que o conflito matou na alma algo que não consegue reviver
mesmo que quisesse. Eis um ponto em que aparece dramaticamente patente a
impotência da vontade em face da natureza efetiva do homem – em total negação,
no plano psicológico, do tipo do perdão do qual falamos anteriormente. É bom que se
diga, porém, que essa é a forma de desavença das naturezas unitárias e bastante
rígidas, mas que podemos encontrar outra nas naturezas interiormente muito
diferenciadas: a imagem e as consequências do conflito, incluídas as criticas e juízos
desfavoráveis formulados ao longo da relação restam na consciência e não podem
ser esquecidos. Mas, ao próprio tempo, sobrevivem intactos o amor e o carinho; de
forma que essas lembranças e essas resignações sejam integradas como elementos
orgânicos à imagem do outro, que amamos com seus ativos e passivos, – se nos é
permitido falar desta sorte – no balaço global de nossa relação com ele; a quem
apreciamos apesar de todos seus defeitos, que desejaríamos que desaparecessem,
mas que acompanham nossa ideia dessa pessoa. O conflito encarniçado, os
aspectos em que a personalidade do outro nos decepcionou, as questões que trazem
à baila uma renúncia duradoura ou uma irritação perdurável, tudo isso não será
Georg Simmel | 369

esquecido nem verdadeiramente apagado pela reconciliação. Mas restará de alguma


forma, localizado, um fator integrado ao conjunto da relação cuja intensidade central
pode não sofrer por isso.
Vê-se bem que essas duas manifestações de desavença claramente distintas
das que ordinariamente se designam com tal nome, nem por isso deixam de conter
toda a gama destas. No primeiro caso, o resultado do conflito, completamente
desprendido de todos seus conteúdos, ocupa o centro da alma e transforma de raiz
a personalidade inteira pelo que ao outro se refere. No segundo caso, pelo contrário,
o legado psicológico do conflito está, por assim dizer, isolado, só é um elemento
singular que pode ser integrado à imagem do outro para ser compreendido dentro da
relação total que se mantém com ele. Entre o primeiro caso mais grave e esse mais
leve de desavença se encontram, com certeza, todos os graus em que dois ou mais
pessoas por falta de concordância a respeito de algo projetam sobre a paz à sombra
do conflito.
V. O segredo e a sociedade secreta

Todas as relações dos homens entre si repousam, naturalmente, no fato de


que eles sabem algo uns dos outros. O comerciante sabe que seu parceiro nos
negócios quer comprar barato e vender caro; o professor sabe que pode exigir do
aluno certa quantidade e qualidade de conhecimentos; dentro de cada camada social
o indivíduo sabe que nível aproximado de cultura ele pode esperar de todos os outros.
Indubitavelmente, de não existir tal saber, não seriam possíveis as ações humanas
recíprocas aqui referidas. Poder-se-ia dizer – com as reservas que facilmente se
compreendem – que a intensidade e as nuances das relações pessoais diferenciadas
são proporcionais ao grau em que cada parte se revela à outra por palavras e atos,
independentemente da quantidade de erro e de mero preconceito que possa existir
nesse conhecimento múltiplo. Da mesma maneira que nosso conhecimento da
natureza – apesar dos seus erros e imperfeições – contém a porção de verdade
necessária para a vida e progresso de nossa espécie, assim cada um de nós sabe de
todos aqueles com quem está a lidar o que precisa saber para tornar possíveis a
relação e o trato social. Saber com quem se lida é a primeira condição para lidar com
alguém. A convenção social de se apresentar um ao outro numa conversa prolongada
ou quando de uma reunião no mesmo círculo social, ainda que pareça um formalismo
desnecessário, é um belo exemplo do conhecimento recíproco que é o a priori de toda
relação.
A consciência costuma ignorar tal conhecimento recíproco, porque para um
número muito elevado de relações só é preciso conferir a presença de tendências e
qualidades típicas, as quais por sua necessidade só costumam ser notadas quando
faltam. Valeria a pena empreender uma pesquisa especializada para descobrir que
classe e grau de conhecimento mútuo requerem as diferentes relações que têm lugar
entre os humanos; como as experiências particulares que temos com o indivíduo que
enfrentamos se entrelaçam aos princípios psicológicos universais com os quais cada
um de nós aborda o outro; como, em muitas esferas, o conhecimento recíproco não
precisa (ou não tem o direito de) ser igual para cada uma das partes; como a evolução
das relações existentes se determina apenas pelo crescente conhecimento de uma
parte pela outra ou de ambas pelas duas e; finalmente, como a imagem psicológica
372 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

objetiva do outro é influenciada pelas relações concretas da prática e da


sensibilidade. Isso não significa, aliás, de forma alguma, que se trate de uma
falsificação. Ao contrário, é perfeitamente legítimo que a representação teórica de
determinado indivíduo seja distinta de acordo com o ponto de vista desde o qual ele
é considerado, ponto de vista que depende da relação total na qual se encontre aquele
que conhece com o conhecido. Nunca se pode conhecer a outro absolutamente – o
que suporia conhecer cada um de seus pensamentos e sentimentos. Todavia, com
os fragmentos que observamos se pode construir uma unidade pessoal que, por
consequência, depende da parte que nosso ponto de vista particular nos permita ver.
Mas esta diversidade não provém unicamente da maior ou menor quantidade
de saber. Nenhum conhecimento psicológico é a reprodução de seu objeto. O
conhecimento psicológico, como aquele que temos da natureza que nos rodeia,
depende das formas que o espírito cognoscitivo leva consigo e nas quais despeja o
dado – isto é, aquilo que se conhece e a partir do qual se inicia o desenvolvimento de
um raciocínio. Porém, quando se trata do conhecimento de indivíduos por indivíduos,
essas formas têm numerosas variantes individuais e carecem, assim, da
universalidade científica e força persuasiva, que se pode conseguir em face da
natureza que nos entorna e dos processos típicos da alma comprometidos com a
apropriação intelectual dos objetos externos. Se A tem uma representação de M
distinta da que faz B do mesmo M, isso não quer dizer forçosamente que sua
representação de M seja ilusória ou imperfeita. Tendo em conta a posição de A em
relação a M, em função de seu modo de ser e do conjunto de circunstâncias
presentes, esta imagem de M é para ele a verdade, assim como uma imagem de
conteúdo diferente pode sê-lo para B. De nenhuma maneira pode-se dizer que haja
um saber objetivamente justo de M que legitime alguma dessas duas imagens
segundo a maior ou menor conformidade que pudessem ter com tal saber. Pelo
contrário, a verdade ideal (que se aproxima assintoticamente a imagem de M na
representação de A) é, como ideal, distinta da que tem B, pois ela contém como
princípio de integração e de configuração a singularidade mental de A e a relação
particular na qual se encontram A e M devido às suas características e aos seus
próprios destinos. Toda relação entre pessoas faz nascer em cada indivíduo uma
imagem do outro que está evidentemente em ação recíproca com aquela relação real.
Georg Simmel | 373

De um lado, a relação real cria as condições que fazem com que a representação de
um pelo outro tenha este ou aquele aspecto e possua uma verdade legítima para este
caso preciso. Mas, de outro lado, a ação recíproca real dos indivíduos se funda na
imagem que cada um deles forja do outro. Estamos aqui perante um dos processos
circulares mais profundos da vida espiritual: um elemento pressupõe um segundo,
mas este, por sua parte, pressupõe o primeiro. Em caso de tratar-se de esferas
restritas, constitui-se um círculo vicioso que anula todo o conjunto, porém, em
esferas mais gerais e fundamentais representa a inevitável expressão da unidade na
qual convergem esses dois elementos; unidade que nossas formas de pensamento
só podem compreender fundando simultaneamente o primeiro elemento sobre o
segundo, e o segundo sobre o primeiro. Assim, nossas relações desenvolvem-se
sobre a base de um saber recíproco, o qual se funda, por sua vez, sobre a relação de
fato. Ambos os elementos aparecem indissoluvelmente unidos, revelando, por sua
alternância dentro da ação recíproca sociológica, que estamos diante de um dos
pontos em que o ser e a representação tornam a sua misteriosa unidade
empiricamente perceptível.
Nosso conhecimento sobre o conjunto da existência em que se funda nossa
atividade está determinado por limitações e distorções singulares. Naturalmente, não
se pode aceitar em princípio que “apenas o erro é a vida, e o saber, a morte”, porque
um ente mergulhado constantemente no engano procederia sempre em desacordo
com a realidade observada e, por conseguinte, pereceria. Todavia, se fizéssemos
ideia do quanto a nossa adaptação às nossas necessidades é deficiente e aleatória,
não há dúvida de que perceberíamos verdade suficiente dentro de nós, mas também
bastante ignorância, o que pressupõe assumir bastantes erros, quimeras e equívocos
para permitir a nossa ação prática: desde as grandes ideias que transformam a vida
da humanidade, mas que são praticamente inexistentes ou negligenciadas diante de
um estado geral da cultura que as torna inúteis e impossíveis, até a “mentira vital” 1
do indivíduo que tão frequentemente precisa acalentar quaisquer ilusões acerca de
seu poder e seu sentir para achar-se dono de si e realizado. Sob essa perspectiva

1
A expressão "mentira vital" o autor a pegou emprestada do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, um
de cujos personagens (o Dr. Relling de O Pato Selvagem) afirma que todo homem diz a si mesmo
– mesmo sem perceber – este tipo de mentiras estimulantes sobre sua própria pessoa para que sua
vida faça assim algum sentido. (NT)
374 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

psicológica, a verdade e o erro estão coordenados: a finalidade da vida exterior e da


vida interior fez com que recolhêssemos tanto da verdade como do erro justamente
o que é preciso ter para constituir a base do comportamento que devemos
desenvolver – mas, obviamente, só em grandes linhas e com um amplo leque de
variações e adaptações imperfeitas.
Mas, dentro da esfera da verdade e da ilusão, há certo setor em que ambas
podem adquirir um caráter que não se apresenta em outros campos. Estamos a falar
do foro íntimo ou do âmbito da individualidade do homem que está diante de nós, que
pode revelar a verdade acerca de si mesmo, de sua própria vontade, ou nos enganar
sobre ela, através da mentira e da dissimulação. Não existe outro objeto mais do que
o homem que tenha a habilidade suficiente para se manifestar ou se esconder, pois
que não há outro que modifique a sua atual atitude sabendo que ela pode ser
conhecida. Como é natural, essa mudança nem sempre acontece: frequentemente o
outro só se nos afigura a princípio como um bocado de natureza imóvel ao nosso
conhecimento. Mas, quando para esse conhecimento é preciso considerar as
manifestações expressas do outro (precisamente aquelas que não têm sido
modificadas pela ideia de que servirão para isso), encontramo-nos perante um
elemento fundamental, muito importante para a determinação do indivíduo pelo
contexto em que se insere – considerado como um problema, do qual se deduziram
as mais amplas consequências. Fazemos referência ao fato de que o nosso processo
mental, apesar de se tratar de uma sequência contínua de operações originada por
causas estritamente naturais, não se conformaria menos, por esta razão, às normas
da lógica, em praticamente todos os casos. Com efeito, é sobremaneira curioso que
um processo que transcorre conforme a natureza, se desenrole como se estivesse
regido pelas leis ideais da lógica. É exatamente como se um ramo de árvore estivesse
ligado a um telégrafo e que seus movimentos produzidos pelo vento pusessem o
aparelho a funcionar fazendo-lhe produzir sinais com sentido racional para nós.
Todavia, esse problema singular – que não vamos discutir aqui – nos permite fazer
uma observação: nossos problemas psicológicos reais são muito menos regrados
pela lógica do que sua manifestação externa nos leva a acreditar. Mas, se
observamos com cuidado as representações que cronologicamente vão desfilando
pela nossa consciência, suas alternativas, seus movimentos ziguezagueantes, a
Georg Simmel | 375

confusão com que se apresentam ideias e imagens incoerentes, suas associações


logicamente injustificáveis e, por assim dizer, experimentais, veremos que tudo isso
está extremamente longe de ser regido por uma norma racional. O que acontece é
que nem nos apercebemos disso, com frequência, porque somente prestamos
atenção à parte “utilizável” de nossa vida interior e ignoramos ou deixamos passar
seus saltos, tudo que há nela de irracional e caótico, apesar da sua realidade
psicológica, para nos concentramos apenas no que tem alguma lógica ou qualquer
valor. Por isso, tudo o que comunicamos aos outros, por palavras ou de outra maneira
qualquer, mesmo o mais subjetivo, instintivo e confidencial, é já uma seleção daquela
totalidade mental real, de tal forma que se algum de nós a pudesse exprimir com
fidelidade absoluta em seu conteúdo e sua sucessão cronológica iria – se nos
permitem o paradoxo – direto para o hospital de alienados. Não se trata apenas,
quantitativamente, de fragmentos de nossa vida interior real, que unicamente
revelamos à pessoa mais íntima. Também não é uma seleção que representaria, por
assim dizer, uma proporção dessa realidade, mas uma escolha elaborada do ponto
de vista da razão, do valor e da relação com o ouvinte, que leva em conta sua
capacidade de compreender. O que quer que digamos (se excede a interjeição e o
minimum de comunicação), nunca exprime de um modo imediato e fiel o que sucede
realmente conosco durante esse lapso de tempo, consistindo antes em uma
transformação da realidade interior, orientada teleologicamente, que descarta e
recompõe. Dirigidos por um instinto que exclui automaticamente as contradições,
não mostramos a ninguém o processo puramente causal e real de nossos estados
de ânimo, processo que, desde o ponto de vista da lógica, da objetividade e do sentido
seria incoerente e irracional. Somente exibimos um extrato estilizado por seleção e
ordenamento, pelo qual nem se pode imaginar outra negociação nem outra
sociedade diferentes das que repousam sobre esta ignorância teleológica de uns
sobre os outros. Tal postulado evidente, a priori e, por assim dizer, absoluto, abrange
as diferenças relativas que nós chamamos de revelação – sincera – de si, e de
dissimulação – enganosa.
A natureza profunda de toda mentira, por concreto que seja seu objeto,
consiste em produzir um engano acerca do sujeito que mente; pois se traduz na
dissimulação, pelo mentiroso a seu interlocutor, da ideia ou imagem que ele
376 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

verdadeiramente faz do objeto de sua relação. A natureza específica da mentira não


se esgota com a falsa representação da coisa que se faz conceber à vítima do
mentiroso, pois isso se manifesta também no simples erro. A característica da
mentira é enganar a vítima acerca do que a pessoa que mente pensa em seu foro
íntimo. A veracidade e a mentira são, porém, de extrema importância para as relações
que os homens mantêm entre si. A tal ponto que as estruturas sociológicas podem
se distinguir de um modo inequívoco de acordo com o grau de mentira que nelas
transparece. Em primeiro lugar, a mentira é muito mais inócua para o grupo nas
relações mais simples que nas relações complexas. O homem arcaico vive num
círculo restrito, capaz de prover as suas necessidades graças à sua própria produção
ou à cooperação de sua vizinhança imediata, que limita seus interesses intelectuais
à experiência individual ou a uma tradição e práticas uniformes, além de abranger e
controlar os aspectos materiais de sua existência mais fácil e inteiramente que do
homem que evolui nas sociedades modernas. Os incontáveis erros e superstições
que a vida dos homens arcaicos comporta são, com certeza, bastante danosos, mas,
nem de longe como o seriam em épocas progressivas, porque a prática de sua vida
está direcionada essencialmente para um curto número de fatos e circunstâncias,
sobre os quais pode adquirir uma visão justa, graças à redução de seu horizonte.
Contrariamente, em culturas mais ricas e amplas, a vida repousa sobre mil pré-
requisitos que o indivíduo não pode, de forma alguma, estudar e verificar até sua
fundamentação empírica, mas que deve admitir de boa fé. Nossa existência moderna
– desde a economia, que é cada vez mais uma “economia de crédito”, até as
atividades científicas, nas quais a maioria dos pesquisadores tem que aplicar um
número imenso de resultados obtidos por outros e que eles não podem comprovar –
se baseia, muito mais consistentemente do que se está habituado a pensar, na
crença na probidade moral de outrem. Construímos nossas mais importantes
decisões sobre um complexo sistema de representações, cuja maioria supõe a
certeza de não ter sido enganados. Por essa razão, a mentira na vida moderna é muito
mais nociva do que era antes, pois compromete mais os fundamentos da existência
de relações humanas. Se a mentira fosse considerada entre nós um erro desculpável
como entre os deuses gregos, os patriarcas judeus ou os insulanos dos mares do Sul,
se o rigor das prescrições morais não nos dissuadisse, seria simplesmente
Georg Simmel | 377

impossível estruturar a vida moderna – que é uma “economia de crédito” bem para
além do sentido estritamente econômico do termo. Essa relação entre as épocas
pode ser transposta para outro tipo de distâncias. Quanto mais longe do centro de
nossa personalidade se encontrem certas terceiras pessoas, tanto mais fácil será
aceitarmos prática e interiormente sua mendacidade. Mas, quando as poucas
pessoas mais próximas nos enganam, a vida se torna insuportável. Se nos parece
necessário sublinhar sociologicamente este truísmo, é porque ele demonstra que as
proporções de veracidade e mentira compatíveis com a existência de relações
humanas tomam a forma de uma escala na qual se pode ler o grau de intensidade
dessas relações.
Todavia, além dessa relativa tolerância sociológica que as sociedades
arcaicas estavam a sentir pela mentira, podemos falar também de uma finalidade
assertiva desta. A primeira organização, hierarquização ou centralização de um
grupo se produz no geral pela submissão dos mais fracos aos física e
intelectualmente mais fortes. A mentira que consiga impor-se, quer dizer, que não
seja descoberta, se converte, sem dúvida, num instrumento para se aproveitar de
certa superioridade intelectual voltada à direção e submissão dos menos avisados.
É o direito do mais forte na esfera intelectual, tão brutal, mas não menos apropriado
na ocasião, que aquele exercido na esfera física como método de seleção com vista
a reproduzir a inteligência, ou a fim de alguns que não trabalham com as mãos
procurar o ócio necessário para produzir bens culturais, ou ainda para determinar
quem chefiará as forças do grupo. Contudo, à medida que estes objetivos possam
ser atingidos através de meios que não originem efeitos secundários tão indesejáveis
é lícito esperar que a mentira tornar-se-á menos necessária e haverá tanto mais
espaço para a consciência da sua imoralidade. Este processo ainda não está
acabado, longe disso. O comércio a retalho acredita até hoje que não consegue deixar
de gabar falsamente as qualidades de suas mercadorias e, por conseguinte, exagera
com sua consciência tranquila. Em compensação, os comerciantes atacadistas, e
mesmo os varejistas de grandes armazéns, ultrapassaram já esse estágio e podem
oferecer seus produtos com toda a honestidade. Quando os pequenos e médios
comerciantes aperfeiçoem também suas práticas profissionais, as demasias e
inverdades flagrantes nos reclamos e anúncios, que agora não se levam a mal de
378 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

fato, sofrerão a mesma condenação moral que hoje merecem nas esferas onde são
efetivamente desnecessárias. Num grupo, as relações fundadas na veracidade serão
no geral tanto mais adequadas quanto mais tenham por norma o bem de muitos e
não de uns poucos. Pois os iludidos, quer dizer, aqueles a quem a mentira lesa,
sempre serão mais numerosos do que os mentirosos que lucram com o engano. Por
isso a “informação” que pretende suprimir as falsidades, tem um caráter
marcadamente democrático.
Normalmente, as relações dos homens se fundam no fato de que seus
respectivos universos de representações possuem certos elementos comuns, e em
que determinados conteúdos espirituais objetivos constituem o material que aquelas
relações transformarão em vida subjetiva – a exemplo do que sucede com a
linguagem compartilhada, instrumento fundamental disso. Todavia, se olhamos para
as coisas mais de perto, veremos que o fundamento aqui mencionado não está
constituído apenas pelo que reciprocamente sabem estes homens uns sobre os
outros, ou pelo que alguns deles sabem que integra o conteúdo espiritual dos outros,
mas também (e de maneira muito especial) pelo que só alguns destes homens sabem
e é ignorado pelos outros. Por acréscimo, essa ressalva tem mais importância
assertiva que aquela outra já citada, que resulta da oposição entre a realidade ilógica
e casual do processo das representações e a seleção que nós realizamos da dita
sequência, de maneira lógica e teleológica, para ser comunicada aos demais. A
dualidade da natureza humana (ao abrigo da qual cada uma das expressões
exteriores do homem surge de várias fontes, e faz com que cada medida seja
percebida simultaneamente como grande ou pequena dependendo do tamanho
daquela a qual ela é comparada) dá como resultado que as relações sociológicas
também se encontrem determinadas de um modo ambivalente. Assim, a fim de
produzir a verdadeira configuração da sociedade é preciso que a concórdia, a
harmonia e a cooperação (que são consideradas as forças favoráveis por excelência
à criação de relações de interdependência e ao estabelecimento de contatos e
interações sociais de reciprocidade), sejam contrabalançadas pela distância, pela
concorrência e pela repulsão. As formas organizativas fixas (que parecem constituir
a sociedade enquanto tal) devem ser constantemente perturbadas, desequilibradas,
desgastadas pela ação de forças individualistas irregulares, de forma que
Georg Simmel | 379

renunciando e resistindo, seus movimentos de reação e evolução ganhem vida.


Quanto às relações de caráter íntimo, cujo suporte formal é a proximidade corporal e
espiritual, elas perdem seu encanto, e inclusive o conteúdo de sua intimidade, se a
proximidade não traz em si, simultânea ou alternativamente, distância e pausas. Por
fim, e talvez o mais importante, o saber de uns sobre os outros, o que determina
assertivamente as relações, não é a única coisa em jogo. Com efeito, estas relações
pressupõem – pois tal é sua natureza – certa ignorância, uma parte sem dúvida
infinitamente variável de dissimulação recíproca. A mentira não é mais que uma
forma grosseira e, em última instância, com frequência contraditória, desta
necessidade. Embora seja verdade que amiúde ela destrói a relação, também é certo
que quando a relação existe, a mentira é um elemento integrante de sua estrutura.
Devemos estar atentos e impedir que o valor negativo que tem a mentira no plano
ético, não nos induza a erro sobre a sua importância sociológica, extremamente
assertiva, na construção de certas relações concretas. De resto, a mentira – referida
ao fato sociológico elementar que se trata aqui, ou seja, à limitação do conhecimento
recíproco – não é mais do que um dos meios possíveis, uma táctica assertiva e, por
assim dizer agressiva, cujo objetivo é alcançado geralmente usando apenas o
segredo e a dissimulação. Vamos agora analisar estas formas mais gerais e
coibentes.
Antes de tratar do segredo como ocultação deliberada, é preciso indicar os
distintos graus em que diversas relações deixam fora de seu campo o conhecimento
recíproco da personalidade total dos atores. Entre as associações que comportam
ainda certa ação recíproca direta entre seus membros, devemos citar em primeiro
lugar as associações para fins determinados, principalmente aquelas em que os
membros realizam prestações puramente objetivas e definidas de antemão por sua
pertença a esta associação – sendo a forma mais característica a da contribuição
exclusivamente financeira. Neste caso, as ações recíprocas, a coesão, a comunidade
de fins, não repousa de forma alguma no conhecimento psicológico que uns possam
ter dos outros. O indivíduo enquanto membro do grupo não é mais que o sustentáculo
de um ato preciso, de uma prestação determinada, sendo absolutamente indiferente
conhecer as motivações individuais que o determinaram, ou mais genericamente
saber qual é a pessoa que está por trás desta ação. Esse tipo de associação para fins
380 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

determinados é a forma sociológica discreta por excelência: seus membros são


psicologicamente anônimos e, para constituir a associação, precisam unicamente
saber uns dos outros que, efetivamente, eles a estão constituindo. A crescente
objetivação de nossa cultura, cujas criações provêm cada vez mais de energias
impessoais e acolhem cada vez menos em seu âmago a totalidade subjetiva do
indivíduo, se estende também às formas sociológicas – como ressalta claramente a
comparação entre trabalho artesanal e trabalho fabril. De sorte que, associações que
antes assumiam o homem em sua totalidade e enquanto indivíduo (exigindo assim
um saber recíproco para além do conteúdo concreto e imediato da relação) ficam
agora reduzidas exclusivamente a esse conteúdo cuidadosamente isolado.
Esta forma anterior (ou posterior) do saber sobre um ente humano que é a
confiança nele depositada – e que é evidentemente uma das forças sintéticas mais
importantes que agem na sociedade – vai conhecer deste modo uma evolução
particular. Na medida em que a confiança é uma hipótese sobre a conduta futura de
outro, hipótese que oferece segurança suficiente para fundar nela uma atividade
prática, ela constitui também um grau intermediário entre o saber acerca de outros
homens e a ignorância a respeito deles. Quem sabe tudo, não precisa confiar, e
aquele que tudo ignora não pode racionalmente fazê-lo2. Em que grau tem que se
misturar o saber e a ignorância para fazer possível a decisão prática baseada na
confiança? Eis algo que a época, a esfera de interesses e os indivíduos decidem. A
objetivação da cultura tem diferenciado resolutamente os graus de saber e

2
Existe outro tipo de confiança que, por não referir-se ao saber ou a ignorância, só entra
tangencialmente na presente questão. Referimo-nos àquele que se designa com o nome de fé, de um
homem em outro, e que entra na categoria da crença religiosa. Assim como ninguém acredita em Deus
pelas “provas de sua existência”, pois estas provas apenas são a justificação posterior ou o reflexo
intelectual de uma atitude imediata da alma, também se “acredita” num homem, sem que esta fé esteja
justificada por provas que demonstrem que é digno dela, mas frequentemente, apesar das provas, de
sua indignidade. A confiança, esta entrega sem escrúpulos a uma pessoa, não se funda em
experiências ou em hipóteses, mas trata-se de uma atitude primária da alma relativamente à outra.
Este estado de fé provavelmente só aparece em sua forma completamente pura e livre de toda
consideração empírica dentro da religião; pelo que, em se tratando apenas de pessoas, necessitará
sem dúvidas sempre ser suscitada ou confirmada por pelo saber ou pela hipótese que temos
mencionado precedentemente. Enquanto, por outro lado, essas formas sociais da confiança, por
exatas e intelectualmente fundadas que elas possam parecer, comportam sempre um pouco dessa
“fé” sentimental, se não mística, do homem no homem. Talvez estejamos aqui em face de uma
categoria fundamental do comportamento humano que decorre do sentido metafísico de nossas
relações e que as causas conscientes e singulares da confiança só realizam de maneira empírica,
aleatória e fragmentária. (NS)
Georg Simmel | 381

ignorância necessários para que a confiança nasça. O comerciante moderno que


negocia com outro comerciante, o pesquisador que empreende uma investigação
com um colega; o chefe de um partido político que conclui um acordo com uma
liderança rival com vista às eleições ou à tramitação de um projeto de lei, todos eles
sabem acerca de seu parceiro – prescindindo de anomalias e exceções –
exatamente o que é necessário para a relação que estão a tentar estabelecer. As
tradições e instituições, o poder da opinião pública e a indisponibilidade das posições
do indivíduo (que resta normalmente fechado a toda influência externa), determinam
com tal rigor sua conduta, tornam-se tão firmes e seguros, que basta conhecer certas
qualidades exteriores referentes aos outros para possuir a confiança necessária à
ação comum. As qualidades pessoais, que poderiam em princípio oferecer o
fundamento de uma modificação da conduta dentro da relação, são irrelevantes; a
motivação e a regulação desta conduta se têm, objetivam-se de tal modo que a
confiança não exige mais um verdadeiro conhecimento das pessoas. Nas sociedades
tradicionais, menos diferenciadas, sabia-se muito mais do parceiro no que diz
respeito à sua pessoa e, em compensação, muito menos no relativo à possibilidade
objetiva de confiar nele. Ambas as coisas estão em íntima relação. Em caso de
deficiência sobre este último ponto, era preciso, para ter a necessária confiança, uma
quantidade maior do saber de tipo pessoal. Hoje, esse saber absolutamente geral,
que concerne apenas à dimensão objetiva da pessoa (e além da qual ela poderá
guardar segredo no que tange a sua individualidade), deve ser completado com o
conhecimento do elemento pessoal quando a associação para fins determinados tem
uma importância essencial para a existência total de seus membros. O comerciante
que vende trigo ou petróleo a outro, unicamente precisa saber se o comprador é
solvente; porém a partir do momento em que pretende fazer dele um sócio, não só
deve conhecer a sua situação patrimonial e outras qualificações gerais, mas também
obter informações aprofundadas sobre sua personalidade, saber se ele é correto, se
é de boa índole, se tem um temperamento empreendedor ou timorato, etc. Repousa,
pois, sobre este conhecimento recíproco não apenas o estabelecimento da relação,
mas também seu prosseguimento, a colaboração diária e a distribuição das
competências entre os sócios. Neste caso, o segredo das pessoas é
sociologicamente mais limitado, pois dada a amplitude com que as qualidades
382 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

pessoais influenciam nos interesses comuns, os indivíduos logo descobrem que não
podem dar-se ao luxo de fechar-se tão fortemente em si mesmos.
A par das associações para fins determinados e das próprias relações
arraigadas na personalidade, existe uma relação que tem um caráter sociológico
muito peculiar. Estamos a referir-nos ao que hoje, nas camadas superiores
cultivadas, se chama simplesmente de travar conhecimento. Neste sentido, se
“conhecer” não quer dizer, em nenhuma circunstância, que cada um dos
participantes desse processo se conheça mutuamente, isto é, que tenha penetrado
no que cada pessoa tem de verdadeiramente individual. Significa apenas que cada
um dos “conhecidos” tem notícia da existência do outro. A provar isso temos o fato
de que para travar conhecimento, é suficiente dizer o próprio nome, basta
“apresentar-se”. O que define este conceito de travar conhecimento é que uma
pessoa exista e não o que ela possa ser. Quando se diz que se “conhece” uma
determinada pessoa, mesmo que se diga conhecê-la “bem” ou “bastante”, de fato se
indica a falta de relações íntimas com ela. Nesse sentido, o que sabemos dos outros,
quando “travamos conhecimento” com eles, é unicamente o externo: seja no sentido
de “pura representação social”, seja no sentido de “apenas aquilo que os outros
estiverem a fim de nos mostrar”. O grau de conhecimento que supõe esta maneira de
“se-conhecer-bem” não se refere ao que o outro é “em si”, no seu foro íntimo, mas no
que é conforme a imagem que deseja oferecer a outrem e ao mundo. Por isso o
“conhecimento” neste sentido do trato social é o lugar adequado da “discrição”. Esta
última não consiste somente em respeitar o segredo do outro, sua vontade concreta
de nos ocultar alguma coisa bem definida, mas em evitar conhecer do outro o que ele
assertivamente não nos revele. Não se trata, pois, em princípio, de que não devamos
saber algo determinado, mas da reserva geral que nos impomos relativamente à
pessoa inteira. É uma forma particular da oposição típica dos imperativos: “tudo o
que não está proibido está permitido” e “tudo o que não está permitido está proibido”.
É assim que as relações entre os homens destrinçam a questão do saber recíproco
que possam possuir uns dos outros: o que não se oculta pode saber-se, e o que não
se revela, não deve saber-se. Esta última proposição corresponde a um sentimento
generalizado: aquele no qual em torno de todo ente humano existe uma sorte de
esfera ideal, cuja dimensão pode variar segundo as diversas direções e as distintas
Georg Simmel | 383

pessoas às quais ele se dirige. Esfera na qual ninguém pode penetrar sem destruir o
sentimento que o indivíduo tem de seu valor pessoal. A honra traça uma dessas
fronteiras em torno do homem. Com muita sutileza a língua alemã designa a afronta
como o fato de “acercar-se demais” (zu nahe treten). O raio dessa esfera ideal de
alguma maneira indica a distância que não pode transpor uma pessoa estranha sem
menosprezar a honra alheia. A uma esfera análoga alude o que se chama de
“importância” de uma personalidade. Perante “um homem importante” existe uma
obrigação internalizada de guardar a distância. Dever que não desaparece depressa,
mesmo numa relação íntima, e que só deixa de existir para aquele que não sabe
perceber o que é importante. Por isso essa esfera não existe para o “camareiro” que,
como presta serviços relativos aos cuidados pessoais de seu patrão, não saberá
reconhecer nele um “grande homem”, mesmo que o fosse. Mas isto se deve à própria
natureza do “camareiro” e não à do “grande homem”. É pelo mesmo motivo que todas
as familiaridades excessivas estão vinculadas a uma notória carência de
sensibilidade para as diferenças de importância entre as pessoas. Quem se comporta
familiarmente com uma pessoa importante, não revela muito apreço por ela nem a
valoriza demais – como superficialmente se poderia pensar –, mas demonstra, pelo
contrário, que não lhe professa genuína consideração. Assim como os pintores
sublinham frequentemente, em um quadro de muitas figuras, a importância de uma
delas dispondo em seu redor as outras a certa distância, também a metáfora
sociológica da importância é a distância, pois que mantém ao resto fora de
determinada esfera, preenchida pela personalidade com seu poder, sua vontade e sua
grandeza.
Outra esfera análoga, ainda que de outro valor, envolve exteriormente o
homem. Penetrar nessa esfera, preenchida por suas preocupações e qualidades
personalíssimas, para tomar conhecimento delas. supõe uma sorte de violação de
sua pessoa. Se considerarmos que a propriedade material é uma extensão do eu e
por isso toda irrupção em nosso patrimônio é sentida como uma violação da pessoa
– pois a propriedade é justamente o que obedece à vontade do proprietário, como o
corpo que, com uma simples diferença de grau, e nosso “bem” primeiro –, assim
também existe uma propriedade espiritual privada, cuja violação lesa o eu em seu
verdadeiro âmago. A discrição não é mais do que o sentimento do direito aplicado à
384 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

esfera dos conteúdos existenciais incomunicáveis. Naturalmente, ela também tem


uma extensão muito variável segundo as diversas pessoas a que se refere, do mesmo
modo que a honra e a propriedade têm um raio muito distinto em face das pessoas
“próximas” que perante os estranhos e os indiferentes. No caso das relações sociais
em sentido estrito, dessas que acabamos de falar e que se dão entre “conhecidos”,
trata-se em primeiro lugar de uma fronteira absolutamente simbólica, para além da
qual pode não haver mais nenhum segredo a guardar, mas que os outros não devem
ultrapassar suscitando questões ou quaisquer sortes de invasões proibidas por uma
discrição convencional.
A questão de saber onde se situa essa fronteira não só é de difícil resposta,
mesmo em tese, mas nos conduz ao cerne da estrutura mais fina das formações
sociais. Com efeito, não se pode reconhecer como absoluto o direito dessa
propriedade privada, nem no domínio do espírito nem no domínio material. Sabemos
que. em uma civilização evoluída, essa propriedade material (e as três faculdades
que ela implica, de usar, fruir e dispor de um bem), nunca se baseia nas exclusivas
forças do indivíduo, e que também precisa das condições e forças do meio social,
que possui assim de antemão o direito a limitá-la, pela proibição de adquirir certos
bens ou pelo imposto, Esse direito, entretanto, tem um fundamento mais profundo
que o princípio da proporção entre as prestações e contraprestações da sociedade e
do indivíduo, pois ele se assenta no princípio muito mais elementar de que a parte
deve suportar no seu ser e seus haveres todas as limitações necessárias para a
conservação e para os fins do todo. E isso vale também para a esfera íntima do ente
humano. Pois é necessário, no interesse da relação entre os homens e da coesão
social, que cada um saiba certas coisas do outro, e que o outro não tenha o direito de
se opor a isso do ponto de vista moral, nem de exigir a discrição, quer dizer, a
possessão pacífica, plena e perfeita de seu ser e sua consciência, mesmo que isso
signifique lesar os interesses da sociedade. O homem de negócios que contrata outro
para obrigações em longo prazo; o senhor da casa que arranja um novo empregado,
e este quando vai entrar ao seu serviço; o superior que promove ao seu subordinado;
a anfitriã que admite uma nova pessoa na lista dos seus convidados: todos eles
devem ter o direito de saber, diretamente ou por dedução, sobre o passado e o
presente de uma pessoa, sobre o seu temperamento e a sua condição moral, tudo o
Georg Simmel | 385

que, enfim, possa justificar razoavelmente sua ação ou omissão. Estes são alguns
poucos exemplos nos quais o dever de discrição – renunciar a conhecer tudo o que
o outro não revela voluntariamente – tem que ceder o passo às exigências da práxis.
Mas, em outras formas mais sutis e menos inequívocas, nos assuntos por concluir,
nas indicações fragmentárias, e quando predomina o implícito ou não dito, toda a
relação entre os homens repousa no fato de que cada um sabe do outro alguma coisa
mais do que este lhe revela de bom grado, e frequentemente coisas que este
detestaria saber que o outro também sabe.
Individualmente isso pode ser considerado como uma indiscrição, ainda que
socialmente seja necessário como condição para o trato estreito e vivo. Todavia, é
extraordinariamente difícil traçar o limite jurídico dessas incursões na propriedade
privada espiritual. No geral, o homem se atribui o direito de saber tudo quanto possa
averiguar, sem recorrer a meios externos ilegais, unicamente pela observação
psicológica e pela reflexão. Mas, em realidade, a indiscrição cometida dessa maneira
pode ser tão violenta e moralmente condenável como escutar atrás das portas ou ler
às escondidas as cartas das outras pessoas. Com extraordinária frequência, porém,
os homens revelam a quem tenha um fino ouvido de psicólogo seus pensamentos e
qualidades mais secretos, e não apesar dos seus ansiosos esforços para escondê-
los, mais precisamente por causa deles. Espiar avidamente toda palavra impensada,
matutar sobre a significação de um tom de voz especial, refletir acerca do que pode
deduzir-se de certas declarações, ou do que quer dizer o rubor produzido pela
menção deste ou daquele nome, são todas coisas que não ultrapassam os limites da
discrição externa. Trata-se apenas do labor intelectual de cada um e, por
conseguinte, de um direito aparentemente indiscutível do sujeito, tanto mais que tais
abusos de nossa superioridade psicológica se produzem amiúde involuntariamente,
sem que possamos conter a nossa interpretação do outro e a reconstrução de sua
vida interior. Ainda que todo homem honesto se abstenha de pensar demoradamente
sobre as coisas que outrem oculta e não tire vantagem de suas imprudências e
momentos de desespero, o processo de conhecimento nesta esfera se verifica
frequentemente de um modo tão automático e seu resultado sucede de maneira tão
inopinada que a boa vontade nada pode fazer contra. E, se o que é indiscutivelmente
defeso torna-se por vezes inevitável, a delimitação entre o que está permitido e o que
386 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

está proibido é, sem dúvida, difícil. Até que ponto deve chegar o desinteresse
intelectual por “tudo o que é do outro”, decorrente da discrição? Em que medida fica
restringido esse dever de discrição pelas necessidades do trato e pela
interdependência entre os membros do mesmo grupo? Eis umas questões para cuja
solução não é suficiente nem o simples tato moral, nem o exclusivo conhecimento
das relações objetivas e suas exigências, já que ambas as coisas devem intervir
conjuntamente. A sutileza e complexidade desse problema (muito mais pessoal que
aquele que suscita a propriedade privada material) remetem-no a uma decisão
individual que não pode ser prevista por nenhuma norma geral.
Em face dessa forma prévia (ou, se quisermos, complementar) do secreto,
onde o que está em causa é a atitude do outro e não a daquele que dissimula, e na
qual a ênfase é colocada neste último no que tange à combinação ou mistura de
saber e ignorância mútua, chegamos a um novo ponto de viragem: há relações que
não se ordenam, como as que temos visto até agora, em torno de interesses
claramente delimitados e objetivamente estabelecidos (nem que seja apenas pelo
fato de sua “superficialidade”), mas que envolvem (ao menos na sua ideia) o
conteúdo inteiro da personalidade. As principais manifestações deste tipo são a
amizade e a vida conjugal. O ideal da amizade, tal como foi retomado da Antiguidade
e desenvolvido, curiosamente, em sentido romântico, repousa sobre uma absoluta
intimidade das almas, que corresponde também à comunidade das possessões
materiais dos amigos. Esse engajamento total do eu na relação é talvez mais
plausível na amizade que no amor, porque ela não está exclusivamente voltada para
um único elemento como acontece com o amor devido ao seu apelo aos prazeres
dos sentidos. Certamente, por vezes, verifica-se que, entre todas as razões possíveis
para se relacionar, possa haver uma que esteja à cabeça das outras, que estabeleça
certa organização semelhante à que se produz em um grupo que segue um líder. É
um elemento relacional muito forte que abre. com frequência, um caminho no qual
será acompanhado pelos demais que, de outro modo, se teriam mantido em estado
latente. Nessa ordem de ideias, é inegável que, na maioria das pessoas. é o amor
sexual o que abre mais amplamente o portal da personalidade. Para muitos, o amor
é mesmo a única forma de entregar seu eu por inteiro, da mesma maneira que, para
o artista, a forma de sua arte é a única que lhe permite expor sua vida interior. Entre
Georg Simmel | 387

as mulheres observa-se amiúde que, quando amam, não só entregam totalmente e


sem qualquer reserva tudo aquilo que elas são e têm, mas que tudo isso se dissolve,
por assim dizer quimicamente, no amor, que lhe confere sua cor, sua forma e seu
calor, e se derrama então, inteira e exclusivamente sobre o ente amado – efeito
análogo ao que pode ter, num sentido completamente diferente, a “exaltação mística
cristã”. Em contrapartida, quando o sentimento amoroso não é suficientemente
efusivo, quando os outros elementos da alma não se acomodam facilmente às
circunstâncias, pode suceder, como já salientamos. que a preponderância do vínculo
erótico iniba todos os outros contatos, tanto os morais e os práticos como os
intelectuais, assim como a abertura das reservas da personalidade situadas para
além do sexo. A amizade, que não tem nem aquela paixão, nem essa frequente
desigualdade do dom de si, está mais apta a ligar as pessoas e a abrir as comportas
da alma de um modo menos impetuoso, mas com maior extensão e mais longa
persistência.
Mas essa intimidade completa se torna mais difícil à medida que aumenta a
diferenciação entre os homens. Talvez o homem moderno tenha demasiadas coisas
a esconder para fazer uma amizade no sentido antigo do termo. Quiçá as pessoas,
passados seus verdes dias, se tenham tornado exageradamente singulares,
excessivamente individualizadas para compreender e aceitar o outro com plena
reciprocidade, o que requer sempre intuição, e imaginação criadora a respeito de
outrem. Sem dúvida, é por essa razão que a sensibilidade moderna tem tendência
para as amizades diferenciadas, afeições que se limitam a um dos aspectos da
personalidade de cada vez, sem interferir em todos os outros. O que dá origem a um
tipo muito particular de amizade que reveste particular importância para o problema
que nos ocupa: o grau de intromissão e de reserva numa relação de amizade. Essas
amizades diferenciadas que nos vinculam a uma pessoa pela sensibilidade, a outra
pelas afinidades intelectuais, a uma terceira em virtude dos impulsos religiosos, e a
uma quarta pelas lembranças compartilhadas, oferecem uma síntese peculiar no que
tange a discrição, a revelação ou a dissimulação de si, pois exigem que os amigos se
abstenham de penetrar nas esferas de interesse ou de sentimentos que não estejam
compreendidas em sua relação e cujo respeito é necessário para que não se faça
sentir dolorosamente o limite da mútua inteligência. Mas a relação assim delimitada
388 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

e envolvida por uma espécie de casca de discrição pode, no entanto, proceder do


cerne mesmo da personalidade e alimentar-se de sua seiva radical, ainda que só
irrigue depois uma seção do parênquima3. Na sua ideia, leva à mesma profundidade
de sentimentos e produz o mesmo espírito de sacrifício daquelas relações que, em
épocas e pessoas menos diferenciadas, abarcavam o parênquima da vida e para as
quais a reserva e a discrição não eram problemas.
Em compensação, é muito mais difícil determinar o quinhão, as partes que
cabem à entrega e à reserva de si (com os aspectos complementares da intromissão
e discrição) na vida conjugal. Encontramo-nos aqui num campo de questões
absolutamente gerais e muito importantes para a sociologia da relação íntima.
Obtém-se o máximo de valores comuns quando uma das duas pessoas em presênça
se entrega inteiramente à outra ou, quando pelo contrário se reserva? Por acaso,
estas duas pessoas não se pertencerão qualitativamente mais, quanto menos se
entreguem quantitativamente? Naturalmente, esse tema do quinhão tem que ser
resolvido junto a esta outra questão: como traçar (entre todas as coisas que o homem
pode comunicar) o limite onde começam a reserva e o respeito do outro? A vantagem
do casamento moderno – que só permite resolver essas duas questões caso a
caso – é que esse limite não está fixado de antemão como nas sociedades arcaicas.
Nestas últimas, o casamento não era em princípio uma instituição erótica, mas
econômica e social; a satisfação dos desejos amorosos só tinha uma relação
acidental com ele, já que não era concluído – com algumas exceções, como é
natural – por motivos de atração individual, mas por razões de aliança entre as
famílias, ou por considerações de trabalho e descendência. Desse ponto de vista, os
gregos conseguiram realizar distinções muito explícitas, pois, segundo Demóstenes,
eles tinham “heteras para o prazer, concubinas para suas necessidades cotidianas e
esposas para ter filhos legítimos e administrar suas casas”. Evidentemente, numa
relação tão mecânica quanto essa, que excluiria a dimensão espiritual – tal como o
demonstra, aliás, sob reserva de algumas alterações, a história e o estudo de
acompanhamento do casamento –, no existiria nem necessidade, nem possibilidade

3
Tecido vegetal fundamental que constitui a maior parte da massa dos vegetais. O autor fecha aqui a
metáfora botânica de que se valeu neste mesmo parágrafo quando falou de “casca”, “cerne” e “seiva
radical”. (NT)
Georg Simmel | 389

de se confiar intimamente no outro. Porém, junto com essa cumplicidade,


desapareceria um verdadeiro pecúlio de ternura e discrição que, apesar da sua
aparência coibente é, no entanto, o remate perfeito de uma relação íntima,
completamente interiorizada e pessoal.
Esta tendência a estabelecer normas supraindividuais que excluam do a priori
das esferas comuns da vida conjugal certos conteúdos existenciais, se encontra na
multiplicidade de formas de união que existem em um povo, entre as quais os futuros
contraentes têm de escolher previamente, onde os interesses econômicos, religiosos
e jurídico-familiares produzem várias outras distinções. Assim acontecia em muitos
povos arcaicos, entre os indianos e romanos, ainda que ninguém possa negar que na
vida moderna também os casamentos são celebrados em larga medida por motivos
convencionais ou materiais. No entanto, que a ideia sociológica do casamento
moderno seja ou não concretizada com muita frequência, ela representa a
comunidade de todos os conteúdos vitais, na medida em que eles determinam
imediatamente e por sua ação o valor e destino da pessoa. O princípio dessa
exigência ideal não é totalmente ineficaz; ele tem aberto amiúde um espaço
suficientemente grande e dado o impulso necessário para que uma afinidade muito
imperfeita na sua origem evolua e se torne cada vez mais ampla. Mas enquanto esse
processo infinito normalmente está na base de uma relação feliz e vivaz, às vezes se
transforma no contrário do que era, e se torna a causa de profundas decepções. É o
que acontece quando se antecipa a unidade absoluta, quando o desejo do outro e a
oferta de si não conhecem nenhuma reserva, nem sequer aquela que fica no fundo
escuro da alma das naturezas refinadas e perspicazes mesmo quando acreditam
abandonar-se totalmente na presença do outro.
No casamento, e nas uniões livres de tipo conjugal, a tentação é muito grande,
nos primeiros tempos, de fundir-se completamente com o outro, de abandonar as
últimas reservas da alma depois daquelas do corpo, de perder-se sem o menor
comedimento no outro. Mas essa conduta ameaça seriamente, na maioria dos casos,
o futuro da relação. Somente podem, sem perigo, ”entregar-se” inteiramente aquelas
pessoas que não podem dar-se por completo, porque a riqueza de sua alma consiste
em uma renovação constante, de modo que cada entrega engendra imediatamente
novos tesouros que tornam inesgotáveis seus bens espirituais latentes. Elas não
390 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

podem revelar e dar de uma vez esse patrimônio, da mesma maneira que uma árvore
quando dá os frutos de uma estação não compromete a colheita do ano vindouro.
Outro é, porém, o destino daqueles que não poupam os ímpetos do sentimento, a
entrega incondicional e a revelação de sua vida espiritual. Eles acabam gastando o
capital, e se privam daquela fonte de bens espirituais constantemente renovados, que
não pode ser alienada e é inseparável do eu. Em tais casos há o perigo de voltar uma
noite com as mãos vazias, de que o gozo dionisíaco da oferta deixe atrás de si uma
carência que refute retrospectivamente – coisa injusta, mas nem por isso menos
amarga – os devotamentos e entregas do passado e a felicidade que tinham trazido.
Somos feitos de tal modo, que – conforme já referido – não precisamos
apenas de uma dada percentagem de verdade e erro como base de nossa vida, mas
também de uma mistura de escuridão e clareza na imagem dos elementos que a
constituem. Penetrar até o mais profundo de algo é destruir seu encanto e impedir a
nossa imaginação de fantasiar em seu tecido de possibilidades. Nenhuma realidade
pode compensar essa perda, por se tratar de uma atividade autônoma que, no longo
prazo, não pode ser substituída por entrega ou prazer de qualquer espécie. Não basta
o outro conceder a nós uma dádiva que possamos aceitar, é preciso também que nos
ofereça a possibilidade de responder a seu gesto de maneira similar, adornando-o
com esperanças e idealizações, com belezas escondidas e encantos que ele mesmo
desconhece. Mas o lugar em que depositamos tudo isso (que foi produzido por nós
à sua intenção) é o horizonte confuso de sua personalidade, o intermédio onde a
crença substitui o saber. É necessário salientar que não se trata aqui de ilusões vãs
ou enganos, fruto do otimismo ou da paixão, mas simplesmente do fato de que uma
parte dos seres humanos, mesmo aqueles com os quais temos ficado mais íntimos,
tem que oferecer-se sob a forma do incerto e pressentível de modo a não perder seu
charme – expediente a que a maioria das pessoas recorre para substituir o poder de
sedução que dá à minoria uma vida interior e atração inesgotáveis. O simples fato de
ter um conhecimento psicológico absoluto, que abrange até os mais mínimos
pormenores do outro, esfria nosso ardor antes mesmo convertermos esse outro no
objeto de nossa predileção, paralisando a vitalidade das relações e fazendo-nos
pensar que no fundo seria inútil dar continuidade. Tal é o perigo das entregas sem
reserva e sem pudor – para além do sentido exterior desse termo –, a que nos
Georg Simmel | 391

induzem as possibilidades infinitas das relações íntimas; entregas que podemos


mesmo considerar como uma obrigação – sobretudo quando não estamos
absolutamente certos de nossos próprios sentimentos, e o medo de não dar o
suficiente ao outro, nos incita a dar demais. Muitos casamentos perecem por essa
falta de discrição mútua, tanto no sentido do dar quanto do receber, terminando por
cair em um hábito banal e sem encanto, em uma quase evidência que já não deixa
espaço à supressa. As relações profundas e fecundas, nas que se adivinha e respeita
por trás das últimas revelações um recôndito e íntimo espaço onde nos compraz
reconquistar diariamente o que estamos porém certos de possuir, não são mais do
que a recompensa da delicadeza e do domínio de si mesmo, que ainda nas relações
mais íntimas, aquelas que se assenhoreiam do ente por inteiro, respeita a propriedade
privada espiritual do outro e aceita que o direito de perguntar esteja limitado pelo
direito de guardar segredos.
Todas essas combinações se caracterizam sociologicamente pelo fato de que
o segredo de um é, de certo modo, acatado pelo outro, e de que o dissimulado,
intencionalmente ou não, é respeitado, intencionalmente ou não. Todavia, a intenção
de dissimular adquire uma força ou veemência muito distinta quando a intenção de
descobrir age em face da pretensão de reserva. Acontece então essa tendência a
esconder e disfarçar, esse conjunto de atos quase agressivos adotados contra os
terceiros, que é aquilo comummente designado como segredo. Nesse sentido, como
ação de dissimular certas realidades por meios coibentes ou assertivos, o segredo
constitui uma das maiores conquistas da humanidade. Comparado com o estado
infantil, em que toda representação é logo comunicada, e qualquer empreendimento
é alvo de todos os olhares, o segredo permite um extraordinário alargamento da vida,
porque a publicidade total impede a manifestação de numerosos conteúdos
existenciais. O segredo oferece de certo modo a possibilidade de surgir um segundo
mundo ao lado do mundo visível, domínio que será fortemente influenciado pelo
sigilo. Toda relação entre duas pessoas ou dois grupos está caracterizada pela
presença ou ausência de segredo e pela quantidade de segredo que ela comporta.
392 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Mesmo que o outro não note, o segredo muda o comportamento de quem o guarda
e, por conseguinte, a feição de toda a relação4.
A evolução histórica da sociedade se manifesta em numerosos domínios.
Muitas coisas que antes eram públicas passam á esfera protetora do secreto e, muito
do que era antes secreto, prescinde dessa proteção para ser manifesto. Trata-se de
uma evolução semelhante à outra, do espírito, em virtude da qual, atos executados
conscientemente, se degradam em uma prática inconsciente e maquinal, enquanto o
que era no passado inconsciente e instintivo, ascende à clareza da consciência.
Como essa evolução se distribui nas diversas formações da vida privada e da vida
pública? Como essa evolução conduz a estados cada vez mais adequados, por
quanto o segredo, primeiramente torpe e indiferenciado, passa a perdurar demais
para, só mais tarde, revelar a utilidade da dissimulação em muitos casos? Até que
ponto as consequências do quantum do segredo mudam a depender da importância
ou indiferença de seu conteúdo? Todas essas perguntas permitem antever a
importância do segredo na estrutura das ações recíprocas humanas. A ampla
negatividade ética do segredo não deve nos induzir em erro. O segredo é uma forma
sociológica geral, neutralmente mantida acima do valor de seus conteúdos. Assume
de uma parte o valor mais alto, o pudor delicado da alma distinguida, que oculta
justamente o melhor dela para não receber pagamento de elogios e louvores, que
embora outorguem o justo prêmio, tiram, contudo, o valor propriamente dito.
Entretanto, se o segredo não está vinculado diretamente ao mal, o mal está em
conexão com o segredo. Pois por razões que são fáceis de entender, o imoral se
oculta – mesmo quando o ato contrário às regras de conduta vigentes em dada
época não incorra em responsabilidade penal, como sucede com alguns desvios
sexuais. Sem falar sequer da rejeição social primária, o isolamento social é um efeito
real e importante da imoralidade tanto quanto as supostas imbricações da ética e do
social. O segredo é, entre outras coisas, a expressão sociológica da maldade moral,

4
Em muitos casos a dissimulação acarreta uma consequência sociológica que constitui um singular
paradoxo ético. Assim como uma relação entre dois pode ser destruída se um comete uma falta contra
o outro e ambas as partes são conscientes dela; a mesma relação, confrontada com idêntica falta,
pode sair fortalecida quando só o culpado sabe da ofensa. Pois em tal caso o faltoso realizará
considerações, manifestações de ternura, tentativas secretas de reparação, concessões e gestos de
desinteresse na direção do outro nos que não teria pensado se sua consciência estivesse tranquila.
(NS)
Georg Simmel | 393

ainda que o ditado clássico ”ninguém é tão mau assim que goste de ser visto como
tal” contradiga amiúde os fatos. Com efeito, frequentemente a provocação e o
cinismo impedem que o mal seja dissimulado, chegando os indivíduos mesmo a se
valer dele para exaltar a própria personalidade perante os outros e, por vezes, até se
gabar de atos imorais absolutamente inexistentes.
Como se compreende facilmente, o segredo pode ser utilizado como uma
técnica sociológica, como uma forma de ação sem a qual o nosso entorno social nos
impediria de alcançar certos fins. Em compensação, parecem menos evidentes seus
atrativos e valores, para além dessa significação utilitária mediata. Quais são, com
efeito, as razões da singular sedução que pode exercer por sua mera forma um
comportamento misterioso? Em primeiro lugar, a exclusão ostensiva e vigorosa de
todos os outros produz um sentimento igualmente enérgico de propriedade
exclusiva. Para muitos temperamentos, o que dá verdadeiro sentido à propriedade
não é a detenção material de uma coisa, nem a possibilidade de tirar dela qualquer
utilidade econômica, eles precisam saber, por acréscimo, que os outros sentem falta
dessa coisa da que são privados. Atitude que se funda evidentemente em nossa
sensibilidade para a diferença. Além disso, como a exclusão dos outros se produz
especialmente quando se trata de coisas de um grande valor, é psicologicamente
fácil chegar à conclusão inversa de que o que se recusa a muitos deve ser
particularmente valioso. É assim que a forma do segredo dá as mais diversas
espécies de sentimento de propriedade uma nuance característica, porque nesta
forma o valor próprio do conteúdo dissimulado perde a sua importância se
comparado ao mero fato de permanecer oculto para os demais. As crianças se
gabam frequentemente de poder dizer às outras: “sei algo que você não sabe”. E isso
de uma maneira tão habitual que a frase é pronunciada como um meio formal de se
vangloriar e de humilhar o outro, mesmo quando tudo seja inventado e o segredo não
exista. Em todas as relações, aliás, desde as mais importantes até as mais
irrelevantes, os ciúmes se manifestam dos outros em relação àquele que sabe o que
foi ocultado. As deliberações do Parlamento inglês, por exemplo, foram secretas
durante muito tempo, de modo que durante o reinado de Jorge III as informações
fornecidas pela imprensa ainda eram objeto de ações penais sob a alegação de que
violavam os privilégios dos parlamentares.
394 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O segredo comunica à pessoa uma posição excepcional, age como um


encantamento ou sortilégio, um dote que exerce atração, e cuja determinação,
puramente social, é independente, em princípio, do conteúdo que protege. Todavia,
esse encantamento cresce naturalmente na medida em que o segredo exclusivo seja
importante e vasto. A isso contribui outra inversão, análoga à referida: todas as
personalidades e obras eminentes têm um caráter misterioso ao comum dos mortais.
Com certeza, todo ser e fazer humanos são a consequência de forças enigmáticas.
Quando o nível de qualidade e de valor é igual, os homens não se convertem em
problema para seus semelhantes, em particular porque essa igualdade cria certa
compreensão imediata, que não passa pelo intelecto. Porém, quando nos
encontramos diante de uma desigualdade essencial essa compreensão não se
produz, e o mistério universal age de imediato na forma da diferença singular. Do
mesmo modo, quando vivemos sempre na mesma paisagem, não percebemos o
problema da influência que sobre nós poderia exercer o entorno físico. Tal problema
emerge assim que mudamos de quadro, e a diferença de sentimento vital chama a
nossa atenção para o poder efetivo desse elemento. Esse segredo cuja sombra
escurece tudo o que é profundo e importante, dá origem ao típico erro de acreditar
que tudo o que é misterioso é essencial e importante. A tendência instintiva à
idealização e a pusilanimidade naturais ao homem agem conjuntamente perante o
desconhecido, para aumentar sua importância pela fantasia e despertar uma atenção
que provavelmente não teríamos concedido à clara realidade.
Ora, esses atrativos do segredo estão vinculados, curiosamente, aos
incentivos de seu oposto lógico, a traição – que evidentemente também são de
natureza sociológica. Há no segredo uma tensão que se resolve no instante da
revelação. Esse momento constitui a peripécia na evolução do segredo, o
acontecimento inesperado no qual se concentram e culminam uma vez mais todos
seus atrativos, da mesma maneira que o momento da despesa é aquele que permite
desfrutar com maior intensidade do valor do objeto – pois para a alma do pródigo, o
sentimento de poder pelo dinheiro se concentra da maneira mais perfeita e deliciosa
no instante em que se desprende dele. Também se une ao segredo o sentimento de
que podemos traí-lo, e que assim temos entre nossas mãos o poder de alterar o curso
do destino, de produzir reviravoltas inesperadas, de trazer a alegria ou a destruição,
Georg Simmel | 395

mesmo que seja apenas a nossa autodestruição. É por isso que o segredo se envolve
na possibilidade e na tentação de revelá-lo, pois que à ameaça externa de ser
descoberto soma-se o risco interno de descobri-lo, semelhante ao fascínio
vertiginoso do abismo. O segredo interpõe uma barreira entre os homens e, ao
mesmo tempo, uma tentação de quebrá-la pela indiscrição ou confissão que
acompanha a vida psíquica do segredo como os harmônicos acompanham ao som
fundamental5. De maneira tal que o significado sociológico do segredo só encontra
seu modo de realização, sua medida prática, na capacidade ou tendência dos sujeitos
a guardá-lo, quer dizer, em sua resistência ou fraqueza em face da tentação de trair.
Da contraposição desses dois interesses contraditórios (dissimular e revelar) surgem
os matizes e as fatalidades que atravessam o campo todo das ações humanas
recíprocas. Se, tal como dissemos anteriormente, toda relação entre os homens se
caracteriza pela quantidade de segredo que ela contém ou que está a sua volta, sua
evolução ulterior dependerá da proporção respectiva das energias que tendem a
guardar o segredo e das inclinações a revelá-lo. As energias que tendem a guardá-lo
procedem do interesse prático e do fascínio formal do segredo, enquanto as
inclinações a revelá-lo se baseiam na incapacidade de resistir a tensão do segredo e
nesse sentimento de superioridade que ele contém, de certa forma latente, e que se
atualiza plenamente apenas no momento da revelação. Por outra parte, Intervém
também aqui o prazer da confissão no qual podemos amiúde encontrar esse
sentimento coibente, e ate certo ponto perverso, de poder contido no
autodespojamento e no arrependimento.
Esses fatores que determinam o papel sociológico do segredo são de natureza
individual, mas o modo no qual as disposições naturais ou as complicações pessoais
se constituem em segredos depende, simultaneamente, da estrutura social da vida.
Chegamos assim a um ponto decisivo: o segredo é um fator de individualização da
maior importância em um duplo sentido típico. Por uma parte, as relações sociais
fortemente personalizadas permitem e fomentam o segredo em larga medida;

5
O autor se refere à série harmônica, em música. O som emitido por uma fonte sonora não é um som
simples, puro, de uma só frequência. É uma superposição de frequências múltiplas ou submúltiplas
(ditas harmônicos), cada uma delas com sua própria intensidade. Todavia, dessa vasta gama de
frequências, há uma delas que se sobressai e que as acompanha, sendo o modo fundamental de vibrar,
modo natural ou som fundamental. (NT)
396 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

enquanto por outra parte, o segredo cria e aumenta essa diferenciação. Em um


pequeno círculo, de relações estreitas, será tecnicamente mais difícil elaborar e
manter segredos porque os membros estão perto demais uns dos outros e seus
contatos frequentes e íntimos são outras tantas ocasiões de traição. O segredo,
contudo, não faz tanta falta aqui porque esse tipo de formação social frequentemente
nivela os elementos que a constituem, e ademais porque essas particularidades do
ser, fazer e possuir cuja conservação poderia exigir o segredo contradizem sua
essência.
É evidente que, se o círculo se alarga significativamente, tudo isso se
transforma no seu contrário. Nesse caso, como em muitos outros, é na economia
monetária onde melhor se observam os traços mais característicos do grande
círculo. Desde que a circulação econômica dos bens ocorre exclusivamente através
do dinheiro, esse tráfico se pode efetuar com um grau de clandestinidade que teria
sido difícil de conseguir antes. Três propriedades da forma monetária de circulação
dos bens têm importância para esses efeitos: 1) sua compressibilidade, que faz um
homem enriquecer deslizando imperceptivelmente um cheque em sua mão; 2) sua
abstração e falta de qualidades especiais, graças às quais se escondem e disfarçam
transações, aquisições e mudanças de proprietários que eram impossíveis de passar
despercebidas quando os valores estavam constituídos por objetos extensos e
tangíveis e, finalmente 3) sua ação à distância, graças à qual se pode investir em bens
extremamente longínquos e em aplicações constantemente alteradas, subtraindo-os
assim ao olhar dos mais próximos. Essas possibilidades de dissimulação (que
aumentam à medida que se amplia a esfera de ação da economia monetária e se
evidenciam os seus riscos, especialmente quando se trabalha com o dinheiro dos
outros) deram causa a medidas de proteção como a publicidade das atividades
financeiras das sociedades por ações e dos Estados. Isso nos induz a tornar um
pouco mais precisa a fórmula da evolução acima indicada. Segundo essa mudança
os conteúdos do segredo variam constantemente no sentido de que aquilo que era
originariamente manifesto se torna secreto, e o que originariamente era dissimulado
se desvela – o que poderia conduzir à ideia paradoxal de que a coexistência humana,
na igualdade das restantes circunstâncias, requer uma mesma quantidade de
segredo, alterando apenas os conteúdos dele, de modo que abandonando um para
Georg Simmel | 397

proteger outro, seu quantum ficaria inalterado apesar da troca. Podemos, porém,
encontrar uma aplicação mais precisa para esse esquema geral. À medida que o
processo civilizatório se desenvolve, os assuntos da coletividade ficam mais
públicos e os assuntos individuais, mais secretos. Nas sociedades arcaicas, como
acima explicado, as relações entre os indivíduos não podiam ser protegidas da
indiscrição na mesma proporção que o estilo de vida moderno permite,
especialmente nas grandes cidades, onde se cria um padrão completamente novo de
discrição e reserva. Nos Estados do passado, ao contrário, os representantes dos
interesses públicos costumavam revestir-se de uma autoridade mística. Na medida
em que o espaço de sua soberania evoluiu e se ampliou, foram adquirindo, graças à
extensão do território, à objetividade de sua técnica, e à distância que os separava de
todas as pessoas singulares, uma segurança e dignidade que lhes permitiu agir
publicamente. A clandestinidade dos assuntos públicos, no entanto, revelava suas
contradições internas, produzindo as reações opostas da traição e da espionagem.
Ainda nos séculos XVII e XVIII os governos mantinham no mais rigoroso segredo o
montante da dívida pública, dos impostos ou dos efetivos militares. Os embaixadores
ficavam com nada melhor para ocuparem seu tempo do que espionar, desviar
correspondências e sacar informação às pessoas que “sabiam” algo, descendo até o
pessoal doméstico6. No século XIX, a publicidade se impôs nos assuntos do Estado,
a tal ponto que doravante os próprios governos publicassem oficialmente os dados
que até então os regimes pensavam que estavam obrigados de manter secretos para
poderem subsistir. Assim, a política, a administração e a justiça foram perdendo seu
caráter secreto e inacessível, ao passo que o indivíduo recebia a guarda de sua vida
pessoal, e a sociedade moderna desenvolvia uma técnica para fazer segredo dos
assuntos privados no meio da promiscuidade das grandes cidades, algo que só tinha
sido possível no isolamento geográfico.

6
Este movimento se realiza também em sentido inverso. Referindo-se à história da corte da Inglaterra
se tem dito que o verdadeiro conluio, as assembleias secretas, e as intrigas não têm início com o
despotismo, mas quando o rei começa a ter conselheiros constitucionais e o governo se converte num
regime aberto, de publicidade. É unicamente então que o rei (Eduardo II) faz a primeira tentativa de
constituir em face desses colaboradores, que em certo modo se lhe obrigou a aceitar, um círculo de
conselheiros oficiosos, quase clandestino, que cria, por si mesmo e em razão dos esforços que se
fazem para formar parte de ele, um encadeamento de engodos e conspirações. (NS)
398 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Até que ponto essa evolução deve ser considerada desejável? Isso depende
dos valores entendidos como axiomas sociais. Uma democracia considerará a
publicidade um estado desejável em si mesmo, partindo do princípio de que todos
devem conhecer os acontecimentos e circunstâncias que lhes interessam, pois esse
saber é o pressuposto para intervir na sua resolução e também uma incitação
psicológica para fazê-lo. Resta saber, todavia, se esse raciocínio é correto. Quando
acima dos interesses individualistas surge uma instituição dominante que atende
certas reivindicações, esse sistema de poder objetivo facilitaria o agir secreto graças
a sua autonomia formal, sem, no entanto, renunciar a sua “publicidade” no sentido
da defesa concreta dos interesses de todos. Por conseguinte, não existe uma
conexão lógica da que possa deduzir-se o maior valor da publicidade. Contudo, vê-
se bem, nesse caso, o esquema geral da diferenciação cultural: o público torna-se
cada vez mais público, e o privado cada vez mais privado. Esta evolução histórica é
a expressão de uma significação objetiva mais profunda, segundo a qual aquilo que
é público por essência, aquilo que interessa a todos devido a seu conteúdo, fica
também cada vez mais público exteriormente, devido a sua forma sociológica;
enquanto os assuntos centrípetos do indivíduo – aqueles que têm uma existência
autônoma em si – adquirem, até em sua determinação sociológica, um caráter cada
vez mais privado, uma possibilidade crescentemente afirmada de permanecer
secretos.
Destacamos anteriormente que o segredo funciona também como um adorno
que se possui e que valoriza a pessoa que o detém. Isso traz consigo uma
contradição interna: aquilo que se guarda para si e se esconde dos outros adquire
justamente na consciência dos demais uma importância particular – o sujeito acaba
destacando-se justamente pelo que oculta. Isso prova que a necessidade de se
distinguir sociologicamente utiliza um meio em si mesmo contraditório, e também
que aqueles contra os que esta estratégia vai dirigida se deixam manipular, já que
pagam os custos da superioridade. Fazem-no com um misto de vontade e repulsão,
mas isso proporciona, na prática, o reconhecimento desejado. Tem chegado, pois, o
momento, de estudar justamente o polo sociológico aparentemente oposto ao
segredo. Estudar o adorno tem o intuito de apresentar a estrutura semelhante de sua
significação social. A essência do adorno está em sua capacidade de atrair os
Georg Simmel | 399

olhares dos outros para seu portador. Nesse sentido, o adorno é o contrário do
segredo que, no entanto, como acabamos de ver, também não renunciou a colocar a
tônica sobre a pessoa. O adorno cumpre a função de unir a superioridade sobre os
outros com a dependência em relação a eles, a boa vontade com a inveja, de maneira
que representa uma forma sociológica de ação recíproca – que, por sê-lo, exige um
estudo especial.

Digressão sobre o adorno

No desejo dos homens de agradar às pessoas que os rodeiam se entrelaçam


duas tendências opostas em cuja alternativa tem lugar, geralmente, a relação entre
os indivíduos. Por um lado, temos o desejo benévolo de levar a alegria aos outros.
Por outro lado, também existe o desejo de que a alegria em questão, esse agrado,
reverta sob a forma de reconhecimento e de estima de nossa pessoa, e de que isso
conte como um valor dela. E tal vontade vai ao ponto de estar em total contradição
com o primeiro altruísmo preocupado com a transmissão desinteressada da
satisfação. É precisamente contentando que pretendemos nos distinguir dos outros,
ser objeto de uma atenção não concedida aos demais – ao ponto de ser a inveja de
todos. O agrado se torna um meio a serviço da vontade de poder. Muitas almas
conhecem uma estranha contradição que consiste em precisar dos homens acima
dos quais elas se erguem para construir, sobre o sentimento de inferioridade deles,
sua consciência de si próprias.
No sentido do adorno encontramos peculiares combinações de tendências,
cujas formas combinam exterioridade e interioridade. Tal sentido consiste em
ressaltar a pessoa, em colocar a tônica sobre ela, para distingui-la de alguma
maneira, mas não por uma manifestação imediata de poder ou para dar resposta a
uma imposição conjuntural incutida nos outros, apenas pelo prazer proporcionado,
como retorno do agrado dispensado. O indivíduo se adorna para si mesmo e para os
outros. Eis uma das combinações sociológicas mais curiosas: um gesto, que serve
exclusivamente para acentuar a personalidade de quem o faz, só atinge seu fim
regalando os olhos dos outros por uma espécie de sentimento de gratidão
– manifestação que se estimula nos demais, mas que porém inclui uma dimensão
400 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

voluntária. De igual maneira que a inveja (que o adorno provoca) não significa outra
coisa que o desejo do invejoso de conseguir para si o mesmo reconhecimento e a
mesma admiração, e prova justamente até que ponto o invejoso associa tais valores
ao adorno. O adorno é a expressão por excelência do egoísmo, porque destaca seu
portador e comunica um sentimento de satisfação à custa dos outros – já que o
mesmo adorno usado por todos não adornaria a ninguém individualmente. Todavia,
simultaneamente, é expressão máxima de altruísmo, porque o agrado que produz é
experimentado pelos outros – o portador do adorno só desfruta dele no momento em
que se vê ao espelho – e é apenas pelo reflexo desse agrado que o adorno adquire
todo seu valor. Da mesma forma que a estética revela as muitas afinidades que
vinculam diversas manifestações vitais (que a realidade apresenta confundidas e
sem relação ou, ao invés, em conflito), assim também no meio das ações recíprocas
sociológicas, no campo em que se enfrentam o egoísmo e o altruísmo do homem, o
adorno, objeto estético que é, designa o ponto em que essas duas orientações
opostas dependem uma da outra, servindo alternativamente de meio e fim.
O adorno realça e amplia a impressão produzida pela pessoa, age como uma
irradiação emitida por ela. Por isso os metais brilhantes e as pedras preciosas são
sua substância, são “adornos” no sentido mais estrito do termo. Mais, de qualquer
dos modos, que o vestido e o penteado que, no entanto, também “adornam”.
Podemos falar aqui de uma espécie de radiatividade do homem, de uma auréola
maior ou menor de resplendores em torno do indivíduo e na qual submerge tudo o
que tem relação com ele. Elementos corporais e espirituais, influxos perceptíveis que
partem do homem e recaem no ambiente, se fundem e se associam estreitamente.
Tais influxos são, de certo modo, os portadores de uma fulguração imaterial e agem
como símbolo do indivíduo, mesmo sendo meramente exteriores e carecer de todo
poder de sugestão ou importância pessoal. A irradiação do adorno, a atenção sensual
que ele suscita alarga e intensifica a auréola que circunda a pessoa de tal maneira,
que o indivíduo torna-se mais quando está adornado. Acrescente-se a isso o fato de
que o adorno, por ser simultânea e frequentemente um objeto de valor considerável,
constitui uma síntese do ter e do ser dos indivíduos, uma coisa cuja simples posse
se transforma em uma intensa manifestação sensível dos sujeitos. Não acontece o
mesmo com a roupa que usamos todos os dias porque ela não aparece para nós
Georg Simmel | 401

como uma singularidade individual, nem no aspecto do ter, nem no do ser. Só as


roupas suntuosas e sobretudo as joias, que focalizam, de certo modo, seu valor e
fulguração em um só ponto, fazem do ter da pessoa uma qualidade visível de seu ser.
Trata-se aqui de uma articulação do caráter “supérfluo” do adorno e do que ele causa.
As coisas imediatamente necessárias estão mais estreitamente ligadas ao homem,
circundam seu ser com uma auréola mínima. Já o supérfluo, como de resto assinala
a etimologia da palavra, “flui em excesso”, isto é, se derrama além de seu ponto de
partida, sem conseguir, no entanto, se separar dele. Traça, assim, em torno do círculo
das necessidades vitais do sujeito, outro círculo mais vasto e que, por princípio
mesmo, é ilimitado. A natureza do supérfluo é ser “desmesurado”. Por isso, quanto
mais supérfluo é nosso ter, mas se acrescenta a liberdade e autonomia de nosso ser.
O redundante não impõe à nossa existência nenhuma lei de limitação ou estrutura
como faz o necessário.
Esse processo de realce à pessoa se verifica justamente graças a um traço de
impessoalidade. Tudo o que, de um modo geral, “adorna” o homem, ordena uma série
de graus ou níveis, de acordo com a maior ou menor proximidade com a pessoa
física. O adorno mais imediato é, sem dúvida, a tatuagem dos povos da natureza. O
extremo oposto está representado pelas joias de pedras e metais preciosos,
absolutamente impessoais e que qualquer um pode exibir. A roupa situa-se entre
ambos os pontos mais afastados e certamente não é tão pessoal e difícil de trocar
por outra como a tatuagem, nem tão impessoal e amovível como os “adornos”
propriamente ditos. Ora, é precisamente nessa impessoalidade que reside a
elegância. O mais requintado charme da joia é a condição da pedra e do metal
preciosos (que não reenviam a uma individualidade e são duros e pouco dúcteis)
condição que se vê forçada a servir a pessoa. A verdadeira elegância evita o foco em
uma individualidade, coloca o homem dentro de uma esfera de elementos mais
gerais, estilizados e abstratos – o que, evidentemente, não é óbice aos refinamentos
que acompanham a generalidade da pessoa. As roupas novas produzem uma
sensação de elegância por denotar certa “rigidez”, isto é, porque não se adaptam às
mudanças do corpo individual tão plenamente como as roupas muito usadas,
estiradas e amassadas pelos movimentos de seu portador, que delatam logo sua
singularidade. Essa “novidade” dos objetos, a dificuldade de ser modificados para
402 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

acomodá-los a uma individualidade, é uma característica essencial das joias, cujo


metal não envelhece e se mantém sempre frio e indiferente à singularidade e modo
de ser de aqueles que as portam – em contraste do que sucede com as roupas. Uma
roupa muito usada faz parte, de alguma maneira, do corpo daquele que a usou, tem
um grau de intimidade com ele que contradiz a essência mesma da elegância. O
requinte é sempre algo para “os outros”, é um conceito social que tira seu valor do
reconhecimento geral.
Se o papel do adorno é ampliar a esfera do indivíduo por um elemento
supraindividual, dirigido, aceito e valorizado por todos, ele deverá possuir, para além
de sua estrutura material, um estilo. O estilo é sempre algo geral, algo que faz entrar
os conteúdos da vida e da atividade da pessoa numa forma compartilhada por muitos
e acessível a estes. Na obra de arte, propriamente dita, o estilo nos interessa menos
na medida em que ela expressa o caráter único de uma pessoa e a subjetividade de
sua vida. A obra de arte se dirige ao que de mais pessoal tem o expectador, que se
encontra, por assim dizer, só no mundo em face dela. Em compensação, nas artes
aplicadas ou no desenho industrial, cujas produções, por sua finalidade utilitária, se
dirigem a um grande número de pessoas, exigimos uma aparência mais geral e típica.
Não pretendemos encontrar a expressão de uma alma única, mas uma maneira de
sentir mais ampla, social e histórica o que permite integrá-la nos sistemas
existenciais de muitos indivíduos. Seria um grande erro supor que como os
adornados são sempre indivíduos, o adorno tenha que ser uma obra de arte
individual. Na medida em que deve estar ao serviço do indivíduo, o adorno não tem
natureza individual, não mais do que os móveis onde costumamos sentar ou os
talheres com que comemos. Tudo o que preenche o vasto círculo da vida humana
– em contraste com a obra de arte, que não influi na vida dos outros, mas é um mundo
autossuficiente – deve Incluir o indivíduo em esferas concêntricas, cada vez mais
amplas, que levem até ele, ou dele provenham. A essência da estilização consiste na
dissolução da tônica individual em uma generalização além da idiossincrasia
pessoal, e mantém, no entanto, a individualidade como base ou foco de irradiação, ou
a acolhe como em um largo rio. O adorno tem sido criado com esse saber instintivo
no respeito relativamente estrito de um estilo.
Georg Simmel | 403

O meio material de responder à finalidade social do adorno é o resplendor da


aureola brilhante do portador capaz de atrair tudo que estiver por perto, e todos os
olhares. Os reflexos de uma pedra preciosa deslumbram os outros, como o brilho dos
olhares carrega o significado social da joia – o “ser-para-os-demais” que, ampliando
a esfera de significações do sujeito, volta para ele. Os raios desse círculo assinalam
a distância que a joia cria entre os homens – “eu tenho algo que você não tem” –,
mas como eles brilham quase que exclusivamente para os demais, eles só existem
para os outros. Por sua matéria, a joia é simultaneamente distância e conivência. Por
isso serve de um modo tão especial à vaidade, que precisa dos outros para poder
desprezá-los. É ai que radica a diferença profunda entre a vaidade e o orgulho. A
consciência do próprio valor, que representa o orgulho, provém dele mesmo e
desdenha amiúde o “adorno”, em todos os sentidos da palavra. Acrescenta-se, na
mesma ordem de ideias, o significado da matéria “autêntica”. O charme do
“autêntico” consiste em ser algo mais que sua aparência imediata – espécie de
falsificação da realidade. Diferentemente da falsificação, o autentico não é algo
isolado, pois que enterra suas raízes em um chão mais profundo que o da simples
aparência. A imitação, ao contrário, não é mais do que parece ser no momento. Assim,
o homem autêntico é aquele com quem se pode contar mesmo quando não está a
ver. Essa “mais-que-aparência” é o valor do adorno, pois ela não é visível (como a
falsificação hábil), é algo adicionado a sua configuração exterior. E como esse valor
é sempre realizável, reconhecido por todos e relativamente intemporal, a joia se situa
em um sistema de juízos de valor além da contingência e da pessoa. O ersatz é o
efeito produzido no momento por aquele que traz consigo a pacotilha, enquanto a
joia autêntica (além do aparente) se arraiga nas ideias de valor que tem o círculo
social por inteiro e se ramifica nelas. Por isso, o charme da joia e a valorização de
quem a usa se alimentam nesse fértil terreno supraindividual. E seu valor estético,
que é aqui ainda um valor “para os outros”, se torna, ante sua autenticidade, no
símbolo da estimação de todos, e mais geralmente, da pertença a um sistema social
de valores.
Na França medieval, houve um dia uma disposição legal para proibir o uso de
joias em ouro a todas as pessoas que tivessem uma posição inferior na escala social.
Esse é um dos casos mais evidentes de uma combinação que expressa a verdadeira
404 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

essência do adorno. De fato, no adorno convergem o destaque sociológico e o relevo


estético da pessoa, como um feixe de raios concentrado em um ponto focal,
permitindo que o “ser-para-si” e o “ser-para-os-outros” sejam alternativamente
causa e efeito. Segundo essa disposição normativa, a distinção estética, o direito a
cativar e agradar, não podia ir para além do espaço circunscrito pela esfera das
significações sociais do indivíduo. É assim que o indivíduo age, acrescentando à
sedução que o adorno associa a sua imagem, a atração sociológica de representar
seu grupo com esse enfeite, e de ser “adornado” com toda a importância daquele
coletivo. Ao mesmo resplendor, que partindo do indivíduo determina a ampliação de
sua própria esfera, se une o sentido de sua classe social, simbolizada no adorno
– que aparece aqui como o meio de transformar o poder ou dignidade social em um
relevo visível da pessoa.
Finalmente, as tendências centrípeta e centrífuga do adorno se conjugam sob
uma forma particular. Sabe-se que entre os povos da natureza, a propriedade privada
dos homens aparece, no geral, antes da propriedade individual das mulheres, e
começa amiúde pelas armas; coisa que abonaria a condição predominantemente
ativa e mais agressiva do varão, que amplia sua esfera pessoal sem aguardar o
consentimento alheio. Em compensação, para a natureza feminina, mais passiva, o
alargamento de sua pessoa – formalmente igual, apesar das diferenças exteriores –
depende mais da boa vontade alheia; circunstância que explicaria por que a
propriedade individual das mulheres, diz respeito em primeiro lugar, e às vezes
exclusivamente, ao adorno. Ora, toda propriedade significa uma extensão da própria
pessoa: nossa propriedade é aquilo que obedece a nossa vontade, quer dizer, aquilo
que permite que nosso eu se expresse e se realize exteriormente. Em parte alguma
isso se verifica antes e mais perfeitamente que em nosso próprio corpo que, por tal
razão, é a nossa primeira e incontestável propriedade. Com nosso corpo adornado,
possuímos mais. Quando dispomos de um corpo adornado, somos senhores de
coisas mais extensas e distintas. Por conseguinte, é de um profundo significado o
fato de que principalmente o adorno seja aquilo que acabou se transformando em
propriedade privada; porque o adorno engendra esse eu ampliado, essa esfera mais
ampla em torno de nós, que preenchemos com nossa personalidade e que é
constituída pelo agrado e atenção das pessoas do meio que nos rodeia – pessoas
Georg Simmel | 405

que passam sem olhar para nós quando não estamos adornados. O fato de que o
adorno fosse convertido pelas mulheres das sociedades arcaicas em sua
propriedade privada (que essencialmente existe para os outros, e que unicamente
aumenta o valor e significação do eu graças ao reconhecimento obtido pelo adornado
enquanto tal) revela mais uma vez o seu princípio fundamental. Para as grandes
aspirações da alma – ampliar seu eu pelo fato de existir para os outros, e existir aos
olhos dos outros pelo fato de valorizar-se e ampliar seu eu – o adorno criou uma
síntese própria sob a forma do estético. E como essa forma paira acima da oposição
das diversas aspirações humanas, estas últimas encontram nessa forma não apenas
um espaço de tranquila convivência, mas também a possibilidade de construir-se
reciprocamente (quer dizer, uma em resposta à outra), que afasta o conflito de suas
manifestações concretas – como intuição e penhor de sua profunda unidade
metafísica7.
O segredo que, como temos visto, é uma determinação sociológica que
caracteriza as relações recíprocas entre os elementos de um grupo – ou melhor
ainda, que junto com outras formas de relação constitui esta relação total –, pode
estender-se também a um grupo inteiro com a aparição das “sociedades secretas”.
Quando o ser, fazer e ter de um indivíduo são secretos, a significação sociológica
geral dessa pessoa reveste as características do isolamento, a oposição e a
individuação egoísta. Nesse caso, o sentido sociológico do segredo é meramente
exterior, pois está constituído pela relação entre aquele que possui o segredo e
aquele que não o possui. Mas, a partir do momento em que um grupo faz do segredo
sua forma de existência, o sentido sociológico do segredo se torna interno e
determina doravante as relações recíprocas daqueles que o possuem em comum.
Todavia, como subsiste aqui também a exclusão dos não iniciados, com suas
nuances específicas, a sociologia das sociedades secretas deverá abordar o
complexo problema de identificar as formas imanentes definidas pelo
comportamento secreto de um grupo em face dos elementos externos. Contudo, não
faremos esse estudo preceder de uma classificação sistemática das sociedades

7
Pode dizer-se que chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou ao “adorno”.
Doravante Simmel retoma sua análise do “segredo”, e notadamente da “sociedade secreta”, questões
que constituem a matéria central do presente capítulo de sua obra. (NT)
406 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

secretas, que só teria um interesse histórico superficial, na medida em que as suas


categorias essenciais aparecerão por si sós.
A primeira relação interna, essencial na sociedade secreta, é a confiança entre
seus elementos. Segurança recíproca da qual precisa de um modo especial esse
coletivo, porque a finalidade do segredo é, acima de tudo, a proteção. De todas as
medidas de proteção, a mais radical é provavelmente se tornar invisível. Aqui é onde
se faz clara a diferença entre o indivíduo e a sociedade que buscam a proteção do
segredo. O indivíduo só pode recorrer a esse expediente excepcional para ações ou
situações pontuais. Se a sua vida estiver em perigo, ele pode certamente se esconder
por um tempo, ou desaparecer de determinados locais, mas sua própria existência
não pode constituir um segredo, se ignorarmos alguma combinação fantasiosa. Em
compensação, isso é perfeitamente possível para uma unidade social: seus
elementos podem manter entre si relações frequentes, mas o fato de que eles
constituam uma sociedade, uma conjuração, um bando de malfeitores, um cenáculo
religioso, ou uma associação para a prática de extravagâncias sexuais, pode, em
princípio, ser guardado em segredo, pela sua natureza e de modo permanente. Esse
tipo de agrupamento no qual não se esconde a identidade dos indivíduos, mas a
reunião deles é diferente, sem dúvida, das associações cuja forma é conhecida sem
restrições, mas se ocultam os seus membros, as suas finalidades ou as suas
particulares decisões, como acontece com numerosas sociedades secretas dos
povos da natureza ou com a francomaçonaria. É evidente que, neste último tipo, a
forma do segredo não concede uma proteção tão eficaz como no primeiro, pois o que
se sabe de tais associações constitui uma base para averiguações posteriores. Em
contrapartida, essas sociedades relativamente secretas têm amiúde a vantagem de
certa flexibilidade, porque ao disporem de alguma publicidade, conseguem adaptar-
se melhor às revelações ulteriores que aquelas cuja existência é um segredo desde
o início. De fato, estas últimas são destruídas desde a primeira descoberta, porque
seu segredo só conhece a opção radical do tudo ou nada.
O ponto fraco das sociedades secretas reside no fato de que os segredos não
se guardam por muito tempo, a tal ponto que se diz, com razão, que um segredo entre
dois já não é mais um segredo. Por isso, a proteção que fornecem, ainda que seja
absoluta, é apenas temporária em sua essência. De tal sorte que para objetos de
Georg Simmel | 407

positivo valor social, a sociedade secreta é, de fato, um estágio de transição que deixa
de ser necessário quando esses conteúdos existenciais alcançam um grau de
desenvolvimento suficiente. Em última análise, a proteção que o segredo proporciona
é semelhante à que se consegue quando, em vez de combater os entraves, se os
ladeia: chega uma hora em que temos a força de que precisamos para vencer esses
obstáculos e a manobra é já desnecessária. Podemos assim dizer que a sociedade
secreta é a forma social adequada para conteúdos que se encontram ainda de
alguma forma em seus começos, com a vulnerabilidade própria dos primeiros
estágios do desenvolvimento. Quando novos, o conhecimento e a moral, as religiões
e os partidos são, muitas vezes, ainda débeis, têm necessidade de proteção e, por
isso, se escondem. Por essa razão, as épocas em que surgem novas ideias contra os
poderes existentes, parecem predestinadas ao florescimento das sociedades
secretas, como aconteceu, por exemplo, no século XVIII. Assim, para referir só um
exemplo, naquela época existiam na Alemanha os elementos de um partido liberal,
mas sua concretização em uma organização política permanente era impedida pelos
poderes do Estado. A sociedade secreta passou a ser então a única forma em que
podiam se manter e desenvolver os germes de uma nova organização, tal como o
8
possibilitaram sobretudo os Iluminati . Ela, porém, protegeu tanto seu
desenvolvimento declinante quanto sua evolução ascendente.
Com efeito, as aspirações e forças sociais ameaçadas por outras novas
tendem a refugiar-se no segredo, que representa, de certo modo, um estágio
intermediário e transitório entre o ser e o não ser. Quando, ao fim da Idade Média,
começou na Alemanha a repressão do poder central em expansão, as corporações
municipais desenvolveram uma larga vida secreta através de assembleias e acordos
clandestinos, assim como pelo exercício secreto do direito e do poder – à maneira
dos animais que procuram um abrigo quando se sentem morrer. Talvez seja nos
processos evolutivos religiosos que apareça com mais clareza essa dupla função
protetora das sociedades secretas, como estágio intermediário para os poderes
ascendentes e para as forças decadentes. Enquanto as comunidades cristãs eram

8
Nome dado a vários grupos reais e fictícios. Historicamente, pelo geral, se refere aos Illuminati da
Baviera, uma sociedade secreta da época do Iluminismo fundada em 1º de maio de 1776. Os objetivos
da sociedade eram opor-se à superstição, ao obscurantismo, à influência religiosa sobre a vida pública
e aos abusos de poder do Estado. (NT)
408 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

perseguidas pelo Estado, tiveram amiúde que refugiar-se na clandestinidade,


escondendo suas reuniões, seus ofícios e sua existência. Em compensação, quando
o cristianismo se tornou a religião do Estado, foram os adeptos do paganismo,
perseguido e em vias de extinção, os que tiveram que dissimular seu culto, como eles
antes lhes tinham obrigado a fazer aos cristãos. No geral, a sociedade secreta
aparece pelo mundo afora como elemento de correlação entre o despotismo e as
proibições policiais, para se proteger de maneira defensiva e ofensiva da opressão
violenta dos poderes centrais – no âmbito da política, mas também no seio da Igreja,
da escola e da família.
A essa qualidade externa da sociedade secreta – seu caráter de proteção –
corresponde, como acabamos de dizer, uma qualidade interna: a confiança recíproca
de seus membros. Trata-se, no entanto, de uma confiança muito especial e que
consiste em acreditar na capacidade de outrem para ficar calado. As diversas
associações podem basear-se em diferentes pressupostos de confiança: na aptidão
para os negócios, na convicção religiosa, na valentia ou no amor, na honradez, ou
ainda – como sucede no caso das associações em quadrilha ou bando para o fim de
cometer crimes – na ruptura radical com todas as veleidades morais. Todavia,
quando a sociedade é secreta, se acrescenta a todas as formas de confiança,
determinadas pelo fim da associação, a confiança formal na discrição, na capacidade
de não revelar o segredo. Trata-se aqui, claramente, de uma fé na pessoa,
sociologicamente mais abstrata que qualquer outra fé, pois ela pode encobrir ou
proteger todos os conteúdos da vida comum de um grupo. A tudo isso haverá de
acrescentar também que, com raras exceções, nenhuma outra forma de confiança
necessita tanto de ser constante e subjetivamente renovada. Quando se trata de
acreditar na afeição ou na energia, na moral ou na inteligência, nas boas maneiras ou
no tato de uma pessoa é mais fácil encontrar fatos que permitam manter
definitivamente um grau de confiança elevado, reduzindo ao mínimo as
probabilidades de ficar desiludido. Mas o risco de uma indiscrição depende de um
momento de imprudência, de uma fraqueza ou excitação ocasional, da nuance talvez
inconsciente de um tom de voz. Guardar um segredo é tão difícil, são tão numerosas
as tentações de revelá-lo, em muitas ocasiões é tão curto e aplainado o caminho que
conduz do silêncio à inconfidência, que nessa classe de confiança deve prevalecer
Georg Simmel | 409

sempre o fator subjetivo. Por essa razão, as sociedades secretas – cujas formas
rudimentares começam com o primeiro segredo compartilhado por duas pessoas, e
cuja universal difusão por todos os lugares e em todos os tempos não foi ainda
devidamente estimada, nem sequer, aliás, no quantitativo – são uma excelente
escola de solidariedade moral entre os homens. Pois a confiança que um ser humano
deposita em outro possui um valor moral tão alto como a devida correspondência à
dita confiança; valor que talvez seja ainda mais livre e mais meritório, já que, quando
se confia em nós, estamos quase que engajados pelo parecer emitido com
antecedência a nosso respeito, de forma tal que teríamos que ser positivamente
malvados para não agir em conformidade com ele. Contudo, a confiança se
“deposita”, se “concede”. Não podemos exigir então que ela nos seja acordada com
os mesmos títulos com que exigimos não ser desiludidos depois de tê-la concedido.
Como é natural, as sociedades secretas procuram os meios para suscitar
psicologicamente a discrição, que não se pode impor aos indivíduos pela força. Em
primeiro lugar, figuram entre eles o juramento e a ameaça de castigo, que dispensam
qualquer comentário. Mais interessante é a técnica, frequentemente utilizada, que
consiste em submeter o neófito, desde o início, a um aprendizado do silêncio. Tendo
em conta a dificuldade já mencionada de calar, e atendendo, sobretudo, a estreita
associação que existe nos primeiros estágios entre o pensamento e sua expressão
verbal – para as crianças como para muitos povos da natureza pensar e falar é quase
o mesmo – é preciso, antes demais, aprender a calar de uma maneira geral, se o
objetivo é obter depois o sigilo em relação a certas ideias em particular9. Assim, diz-
se, acerca de uma sociedade secreta da ilha de Ceram, no arquipélago das Molucas,

9
As formas ou modos pelos quais os atores sociais se relacionam estão determinadas pela
capacidade de falar, mas estão modeladas pela capacidade de calar, o que, naturalmente, só se
manifesta de maneira fortuita e episódica. Quando todas as representações, os sentimentos e
impulsos jorram livremente no discurso, surge uma confusão caótica em vez de um concerto
minimamente organizado. Poucas vezes constata-se claramente a necessidade de saber calar-se,
para o estabelecimento de relações regulares e recíprocas entre ós homens, porque isso nos parece
ser óbvio. Trata-se, todavia, do resultado de uma evolução histórica que parte da verbosidade
característica das crianças e dos grupos étnicos primevos (que umas e outros necessitam para que
suas representações adquiram alguma concretude e segurança) e conclui na civilidade das culturas
evoluídas. Uma de cujas conquistas é o sentimento de saber quando se deve falar e quando é preciso
calar. Assim, por exemplo, o anfitrião polido sabe manter-se reservado enquanto seus convidados
conversam entre si, mas intervém tão pronto se produz um vazio na fala. As guildas medievais, cujos
estatutos sancionavam a quem interrompia o discurso do preboste, podem oferecer um exemplo
intermediário. (NS)
410 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que os jovens que solicitam o ingresso nela, não só devem calar sobre tudo o que
presenciam desde que entram, mas que durante algumas semanas não podem falar
uma palavra com ninguém, nem mesmo com sua família. Aqui não influi, com certeza,
unicamente o valor pedagógico do silêncio absoluto: a proibição geral de falar, em
um momento em que deveriam calar-se apenas coisas muito concretas, corresponde
a uma etapa de indiferenciação mental. Esse radicalismo é análogo àquele dos povos
subdesenvolvidos que recorrem à pena de morte para faltas menores (que mais tarde
receberão penas proporcionais a sua seriedade), ou que têm tendência a entregar
uma parte absolutamente desproporcionada de seus bens em troca de uma coisa
que os atraiu por um momento. Trata-se de uma espécie de “falta de jeito” específica,
similar em essência à incapacidade de veicular, para um movimento estritamente
delimitado, um estímulo nervoso igualmente circunscrito. O desajeitado move o
braço todo quando para atingir seu objetivo basta mover dois dedos, e o corpo inteiro,
quando um movimento apropriado do braço seria mais adequado. No caso em
apreço, a associação psicológica exagera enormemente o perigo de falar e, por isso,
não limita a proibição a seu objetivo concreto, mas a estende ao conjunto da função
que veicula. Em compensação, quando as sociedades secretas dos pitagóricos
prescreviam aos neófitos um silêncio de vários anos provavelmente pretendiam mais
do que uma mera aprendizagem da discrição pelo grupo, mas, nesse caso, a causa
não era aquela “falta de jeito”, senão o alargamento do fim diferenciado. Com efeito,
para os pitagóricos, o adepto não devia unicamente aprender a calar certas coisas
precisas, mas a reprimir-se e controlar-se, em geral. O grupo tinha como objetivo
uma estrita autodisciplina e uma pureza estilizada da vida, pelo que se o iniciado
conseguisse guardar o silêncio durante alguns anos, seria provavelmente capaz de
resistir a outras tentações além da indiscrição.
Outro meio de dar uma base objetiva à discrição foi empregado pela ordem
secreta dos druidas gauleses10. Seus mistérios consistiam principalmente em cantos
religiosos que todo druida devia aprender de cor. Mas, em razão de certas regras
– notadamente, graças à proibição de escrever os cantos –, era requerido para isso
um tempo extraordinariamente prolongado, que podia chegar a vinte anos. O longo

10
Povo celta que habitava a Gália, antigo país no território da França atual, que foi conquistado pelos
romanos. (NT)
Georg Simmel | 411

período de aprendizado permitia que o neófito adquirisse o hábito gradual da


discrição antes de conhecer algo importante, digno de revelação; é que a tentação de
revelar os segredos não cai, por assim dizer, de uma só vez sobre o espírito
indisciplinado, que pode, desse modo, se acostumar devagar a resisti-la.
A proibição de escrever os cantos adentra, no entanto, a uma esfera de maior
importância sociológica. É muito mais do que uma precaução contra a descoberta
dos segredos. O fato de que a transmissão do ensino seja só de pessoa a pessoa, de
que a iniciação fundamental decorra exclusivamente dentro do grupo e não se baseie
em um escrito objetivo, vincula aos membros da comunidade de um modo
incomparável e faz com que eles sintam constantemente que, separados da
substância coletiva, perderiam também sua própria essência. Talvez não tenha sido
devidamente ressaltado até que ponto a objetivação do espírito favorece a
emancipação dos indivíduos nas civilizações maduras. Enquanto a vida espiritual
dos indivíduos esteja determinada pela tradição imediata, pelo ensino individual e,
sobretudo, por normas estabelecidas pelas pessoas detentoras da autoridade, os
membros serão solidários do grupo vivo que os rodeia e ao qual se integram: só o
grupo oferecerá a possibilidade de existir intelectualmente de maneira acabada, já
que os canais pelos quais sua vida espiritual se nutre escoam todos entre o meio e
eles – como podem senti-lo a cada momento. No entanto, quando o trabalho da
espécie tem dado seus frutos e os têm capitalizado na forma escrita, em obras
visíveis e exemplos perduráveis, se interrompe esse fluxo de seiva orgânica que
vinculava diretamente o grupo real a cada um de seus membros: o processo vital não
liga o indivíduo continuamente e de um modo exclusivo ao grupo e permite que
procure seu sustento em fontes objetivas que não reclamam a presença ou auxilio
de ninguém. O fato de que esta reserva doravante disponível tenha surgido de
processos do espírito social é uma coisa relativamente indiferente, não só porque o
que se tem cristalizado nesta reserva seja o fruto da obra de gerações amiúde
bastante longínquas, sem relação com os sentimentos atuais do indivíduo, senão
sobretudo porque o importante é a forma objetiva desta reserva – a ausência de
vínculos com a subjetividade de pessoas que possam oferecer ao indivíduo um tipo
de alimento suprassocial. Daqui em diante, a quantidade e a qualidade do conteúdo
intelectual do indivíduo dependem mais de sua capacidade de aprender do que
412 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

daquilo que se oferece. No que se refere à sociedade secreta – sobre a qual


voltaremos a falar mais tarde e cuja “confiança” é uma espécie de categoria afetiva,
os laços particularmente estreitos que ligam seus membros permitem que a
transmissão tradicional de conteúdos intelectuais constitua seu principal objeto e se
proíba de fixá-los por escrito.

Digressão sobre a comunicação escrita

Devemos fazer aqui algumas considerações sobre a sociologia da carta


porque, evidentemente, a relação epistolar tem uma conotação especial dentro da
categoria do segredo. Em primeiro lugar, as naturezas da escrita e do segredo se
opõem por essência. Antes do uso generalizado da escrita, toda transação jurídica,
por mais simples que fosse, devia ser realizada na frente de testemunhas. A forma
escrita tornou esse requisito redundante, pois ela representa uma “publicidade” que,
embora seja potencial é, em contrapartida, ilimitada: significa que quaisquer pessoas,
e não só as testemunhas, podem saber que se concluiu essa negociação. Nossa
consciência conta com o auxílio de uma forma singular, que pode ser chamada de
“espírito objetivo”, ao abrigo do qual as leis naturais e os imperativos morais, os
conceitos e as criações da arte estão à disposição daqueles que possam e queiram
apanhá-los, e cuja validade eterna é independente do fato de saber se eles têm sido
apanhados, quando e por quem. Do mesmo modo que a verdade (que como produto
do intelecto é por essência muito diferente de seu efêmero objeto real) continua
sendo verdadeira, quer seja consciente e reconhecida, quer não, a lei moral e jurídica
mantém-se válida, seja ou não cumprida. A escrita é um símbolo, um sustentáculo
sensível dessa categoria de importância inestimável. Uma vez fixado pela escrita, o
conteúdo intelectual adquire forma objetiva, pode ser reproduzido um número infinito
de vezes, simultânea ou sucessivamente, na alma dos indivíduos, e sua existência
passa a independer do tempo. Assim, o que está escrito possui uma existência
objetiva que renuncia toda garantia de segredo. Todavia, talvez porque a carta fica
sem proteção (exposta à leitura de qualquer um que procure conhecê-la), a
indiscrição a seu respeito aparece como particularmente ignóbil. A tal ponto que para
Georg Simmel | 413

pessoas de finos sentimentos essa vulnerabilidade fornece à carta o melhor amparo


moral de seu segredo.
Por conseguinte, a carta deve precisamente à supressão objetiva de toda
garantia de segredo, o aumento subjetivo de sua segurança. A missiva se transforma
assim no ponto de confluência de oposições específicas que fazem dela um
fenômeno sociológico. A forma da expressão epistolar acarreta uma objetivação de
seu conteúdo que constitui uma singular síntese, cujos termos são de uma parte o
fato de estar destinada a um indivíduo concreto, e de outra parte a personalidade do
correspondente e a subjetividade que ele extravasa nas suas cartas, ao contrário do
escritor. É precisamente nesse último aspecto que a correspondência oferece
caracteres especiais como forma de relação. Quando as duas pessoas envolvidas
em um ato linguístico estão efetivamente em presença, cada uma delas permite à
outra conhecer muito mais do que o simples conteúdo de suas palavras. No
momento em que olhamos para o nosso interlocutor, penetramos na esfera de seus
pensamentos, âmbito em que as palavras não podem exprimir, e que se manifesta
pelas incontáveis nuances da entonação e do ritmo de seu discurso. O conteúdo
lógico ou intencional de suas palavras experimenta destarte enriquecimento e
alteração dos quais a carta só oferece meras analogias – e mesmo estas são, em sua
maioria, lembranças de uma relação pessoal. A vantagem (e o inconveniente) da
carta consiste em que ela só revela, por princípio, o teor exclusivamente objetivo de
nossas representações momentâneas, silenciando tudo o que não podemos ou não
queremos dizer. Finalmente, o que caracteriza a carta é que ela – mesmo se não tem
outra diferença com o ensaio que a de não estar impressa – é algo completamente
subjetivo, vinculado a esse momento e puramente pessoal, não só quando se trata
de manifestações expansivas de sentimentos íntimos, mas de comunicações
absolutamente concretas. Objetivar assim o subjetivo, despojá-lo de tudo o que não
se quer revelar sobre o sujeito em questão ou sobre si mesmo, só é possível em
épocas suficientemente civilizadas, em que os homens controlam a técnica
psicológica o bastante para dar, apesar de tudo, uma forma duradoura aos estados
de ânimo e aos pensamentos do momento – àqueles que, verdade seja dita, só se
articulam e aceitam vinculados ao tempo presente, respondendo às exigências da
atual situação. Quando um produto do espírito tem o caráter de uma “obra”, essa
414 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

forma duradoura é perfeitamente adequada. Mas na carta há uma contradição entre


o caráter efêmero de seu conteúdo e a perenidade de sua forma; contradição que
requer, para ser produzida, suportada e explorada, uma objetividade e diferenciação
dominantes.
Essa síntese tem outra analogia nessa mistura de precisão e ambiguidade que
é própria da expressão escrita e, sobretudo, da carta. Trata-se de caracteres que,
aplicados à comunicação entre seres humanos, transformam-se em categorias
sociológicas de primeira ordem, em cuja esfera podemos encontrar, evidentemente,
todas as reflexões deste capítulo. Porém, aqui, não se trata apenas de saber se um
dos correspondentes dá a conhecer ao outro mais ou menos de si próprio, mas de
perceber se o que ele comunica é mais ou menos claro para aquele que recebe o
comunicado, e se a uma falta de clareza corresponde, em compensação, uma
pluralidade proporcional de possíveis interpretações. Com certeza, em toda relação
duradoura entre os homens, as proporções variáveis do que está claramente
expresso e do que deve ser interpretado desempenham um papel absolutamente
essencial, mesmo se somente somos conscientes, a maior parte das vezes, dos
resultados práticos da ambiguidade. Intuitivamente, a expressão escrita aparece
como a mais segura, como a única à qual “não se pode mudar sequer uma vírgula”.
Mas essa prerrogativa da escrita é a simples consequência de um defeito, pois a
representação da língua falada por meio de signos gráficos carece do
acompanhamento da voz, do timbre, da acentuação tônica, do gesto e da mímica, que
são para o discurso falado uma fonte tanto de confusão como de maior clareza. De
fato, o destinatário da missiva não se satisfaz no geral com o sentido exclusivamente
lógico das palavras – que a carta transmite, sem dúvida, com mais precisão que a
conversa – porque em numerosos casos ele é incapaz desse entendimento, já que
para perceber esse sentido é preciso conhecer mais do que o significado literal do
texto escrito. Por isso, a carta, mais do que a conversa – apesar (ou se calhar, por
causa) de sua clareza –, é o local das “interpretações” e, por conseguinte, dos mal-
entendidos.
De acordo com o nível de cultura que exige uma relação ou fase de relações
fundada na correspondência epistolar, as determinações qualitativas da carta ficam
também nitidamente diferenciadas. Quando uma pessoa física expressa qualquer
Georg Simmel | 415

coisa clara em sua essência, ela é ainda mais clara na carta que na conversa. Em
troca, se essa coisa é propícia em princípio a interpretações diversas, resultará
também mais ambígua na carta do que na conversa. Se utilizarmos as categorias de
liberdade e dependência para expressar o estado em que se encontra o destinatário
da comunicação em face dela, diremos que, no que tange à substância lógica, sua
compreensão é mais dependente na carta do que na conversa, mas que, em
compensação, é mais livre no que diz respeito ao sentido pessoal e profundo.
Diríamos que a interlocução revela o segredo graças àquilo que o interlocutor deixa
ver sem deixar ouvir, isto é, com o auxílio dos múltiplos imponderáveis da relação,
enquanto, por outro lado, nada disso existe na carta. Por esse motivo a carta é mais
clara a respeito do que não se relaciona com o segredo do outro e é mais escura e
ambígua no caso oposto. Entendemos por “segredo do outro” seus estados de ânimo
e as qualidades existenciais que não podem exprimir-se logicamente, mas aos quais
nos referimos incontáveis vezes, até mesmo para melhor compreender o verdadeiro
significado de informações absolutamente concretas. Na conversa, os elementos
auxiliares da interpretação estão de tal maneira associados ao conteúdo conceitual
que formam uma unidade de intelecção. Talvez esse seja o exemplo mais flagrante
de um traço psicológico mais geral: a incapacidade absoluta do homem de distinguir
o que realmente vê, ouve e percebe por meio dos sentidos, daquilo em que esses
dados se transformam em virtude de suas interpretações, adições, subtrações e
modificações. Todavia, um dos sucessos intelectuais da comunicação escrita
consiste em distinguir e separar da unidade ingênua um de seus elementos,
salientando a pluralidade dos fatores que, em princípio, constituem o fenômeno em
aparência tão simples de nossa “mútua compreensão” 11.
Quando se estuda a técnica do segredo não se deve esquecer que, assim como
o sigilo pode favorecer os fins materiais da comunidade, a própria constituição da
comunidade pode servir, em muitos casos, para proteger o segredo de determinados
conteúdos. É o caso de uma série de sociedades secretas cuja substância está
constituída por uma doutrina sigilosa, por um saber teórico, místico ou religioso. O
segredo se torna então um fim sociológico em si mesmo, pois recai sobre um

11
Chega aqui a seu fim a presente e breve digressão, que o autor consagrou à “comunicação escrita”.
Doravante Simmel retoma e finaliza sua análise do “segredo” e da “sociedade secreta”. (NT)
416 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conjunto de conhecimentos, que não deve difundir-se na massa. Os iniciados


acautelam o segredo mediante a formação de uma comunidade que deve garantir
sua recíproca discrição. Se os iniciados fossem simplesmente um conjunto de
pessoas sem vinculação entre elas, o segredo logo se perderia em breve, mas a
sociação (quer dizer, as formas ou modos pelos quais os iniciados se relacionam
entre si e com o segredo), oferece a cada um deles um apoio psicológico para
preservá-los da tentação da inconfidência; Enquanto o segredo – como
salientamos – tem um efeito de isolamento e individuação, a sociação propõe um
contrapeso ao segredo. Pois em todas as classes de sociação misturam-se as
necessidades de individuação e de vida social dentro de suas formas e de seus
conteúdos, como que houvesse de satisfazer a exigência de uma proporção
invariável na mistura, usando de quantidades sujeitas à constante mudança
qualitativa. A sociedade secreta (forma concreta de sociação) compensa assim o
momento de isolamento próprio de todo segredo com o fato de ser, precisamente,
uma sociedade.
Os significados do segredo e do isolamento individual possuem um grau tal de
correlação, que a sociação pode representar dois papeis completamente opostos em
face do segredo. Com efeito, se o segredo persiste, a sociação pode ser procurada,
como já dissemos, para compensar parcialmente o isolamento decorrente da
ocultação deliberada de conteúdos existenciais, para satisfazer, desde dentro, o
instinto de sociabilidade que o segredo coíbe. Por outro lado, o segredo perde
fundamentalmente importância quando por razões de conteúdo o isolamento resulta
incompatível no plano dos princípios. A francomaçonaria, por exemplo, declara que
quer ser a sociedade mais universal, “a aliança de alianças”, a única que rejeita todo
fim específico e, por consequência, toda tendência particularista, reivindicando como
conteúdo exclusivo “o que têm em comum todos os homens bons”. Em face dessa
tendência, cada vez mais afirmada, o caráter secreto das lojas maçônicas, fica
crescentemente indiferente e reduzido a exteriorizações meramente formais. Não é
contraditório o fato de que o segredo seja algumas vezes favorecido e outras
prejudicado pela sociação, pois que não são mais que modos diversos de expressar
seu vínculo com a individuação – um pouco como a conexão entre a fraqueza e o
medo que o fraco demonstra ao procurar estabelecer contatos e interações sociais
Georg Simmel | 417

para proteger-se, e evitando-os quando receia que eles possam ser mais perigosos
que o isolamento.
A iniciação gradual dos membros, acima referida, pertence a um grupo muito
grande de formas sociológicas, dentro do qual as sociedades secretas se destacam
de um modo especial. Referimo-nos ao princípio da hierarquia, à organização por
graus dos elementos de uma sociedade. Essa acuidade e caráter sistemático com os
quais as sociedades secretas realizam justamente a divisão de seu trabalho e a
hierarquização de seus membros estão vinculados a outro de seus traços que iremos
estudar mais tarde de um modo mais circunstanciado. Estamos a falar do caráter
marcadamente consciente de sua vida que substitui as forças orgânicas instintivas
por uma vontade de regulação permanente, e o crescimento desde dentro por uma
previsão construtiva. O caráter racional de sua estrutura se expressa de um modo
perceptível em sua arquitetura harmoniosa e clara. Tal era, por exemplo, a estrutura
da sociedade secreta tcheca Omladina, acima mencionada 12, constituída de acordo
com o modelo de um grupo de carbonários, e que ficou conhecida em 1893 por
ocasião de um julgamento. Os dirigentes da Omladina se dividiam em “polegares” e
“dedos”. No curso de uma sessão secreta, os membros presentes elegiam o
“polegar”; este designava, por sua vez, quatro “dedos” que escolhiam, por seu turno,
um segundo polegar, que se apresentava ao primeiro. O segundo polegar nomeava,
ademais, quatro dedos, que indicavam um terceiro polegar, e assim por diante. O
primeiro polegar sabia quem eram os outros polegares, que, por sua vez, não estavam
informados de sua recíproca existência. Quanto aos dedos, só se conheciam entre si
aqueles que estavam subordinados ao mesmo polegar. Toda a atividade da Omladina
estava dirigida pelo primeiro polegar, denominado o “ditador”. Ele inteirava os outros
polegares de todos os empreendimentos planejados, os polegares transmitiam as
ordens aos dedos que estavam subordinados a eles, e os dedos noticiavam aos
outros membros da sociedade secreta por quem eram responsáveis.
O fato de que a sociedade secreta deva ser organizada desde sua base,
refletidamente e por uma vontade consciente, oferece um vasto campo de ação ao
singular prazer que proporcionam semelhantes construções que apenas dependem

12
Vide Capítulo II, quando o autor faz referência à grande importância histórica do número dez e seus
derivados no estabelecimento das divisões sociais. (NT)
418 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

da vontade ou arbítrio daquele que age. Todo sistema – científico, ético ou social –
comporta uma quota de afirmação do próprio poder, submete uma matéria, alheia ao
pensamento, a uma forma moldada pela atividade cognitiva racional. E, se podemos
dizer o mesmo de todas as tentativas de organizar um grupo conforme princípios, o
mesmo raciocínio é aplicável por maioria de razão à sociedade secreta, que não
nasce naturalmente, mas que está a ser construída e tem que contar com menos
elementos parciais já constituídos que qualquer outro sistema despótico ou
socialista. Ao prazer de planejar e construir – que é já em si mesmo a expressão de
uma vontade de poder – se acrescenta nesse caso a tentação particular de dispor
sobre um vasto círculo (idealmente submetido ou que está prestes a sê-lo) de seres
humanos, criando um sistema de posições e de relações hierárquicas.
Caracteristicamente, tal prazer carece por vezes de qualquer finalidade e se espraia
na elaboração de constructos hierárquicos totalmente fantasiosos. É o caso, verbi
gratia, dos graus elevados da maçonaria degenerada, dentre os quais citaremos os
da “Ordem dos construtores africanos”, organização que vigorou na França e na
Alemanha em meados do século XVIII, e cuja finalidade, apesar de ter sido criada com
base em princípios maçônicos, era destruir a francomaçonaria. Pois bem, a
administração dessa sociedade, muito reduzida, aliás, estava a cargo de 15
funcionários: summus magister, summi magistri, locum tenens, prior, subprior,
magister, etc. Os graus de associação eram sete: aprendiz escocês, irmão escocês,
mestre escocês, cavalheiro escocês, eques regii, eques de secta consueta, eques
silentii regii, etc.
O ritual nas sociedades secretas evolui em condições de desenvolvimento
análogas às da hierarquia. Aqui também a falta de precedentes históricos que sirvam
de referência ou modelo à associação, assim como o fato de ter sido ela mesma
constituída a partir de uma base que procede do livre-arbítrio de alguém, concedem
uma grande liberdade e riqueza para criar suas formas. Talvez não exista uma feição
que melhor caracterize a sociedade secreta, e que a distinga com mais clareza das
sociedades que agem à luz do dia, que o valor outorgado aos costumes, fórmulas e
ritos, cuja observância é por vezes reputada como mais importante do que o
cumprimento dos fins específicos da associação – defendidos amiúde com menos
ansiedade que o segredo do ritual. Em tal ordem de ideias, é sintomático que a
Georg Simmel | 419

francomaçonaria progressista, que diz não ser uma sociedade secreta – e por isso
não ter razão alguma para ocultar o nome de seus membros, seus fins e suas
atividades –, sublinhe para abonar essa asserção que o juramento de secreto (que
ainda exige de seus membros) “se refere exclusivamente às formas do ritual
maçônico”. O primeiro artigo dos estatutos da ordem estudantil dos amicistas, que
data do século XVIII, é outro exemplo característico do que estamos a tentar dizer. ”O
sagrado dever dos membros é manter o mais profundo silêncio sobre coisas relativas
ao bem da Ordem. Entre elas figuram: a insígnia da Ordem, os sinais adotados para
o reconhecimento dos irmãos, os nomes destes, as solenidades, etc.”. O curioso é
que mais adiante, no mesmo estatuto, estão indicados detalhadamente e sem
qualquer tentativa de dissimulação o objetivo e a natureza da ordem. Em um livro de
exíguas dimensões em que se descrevem a constituição e a natureza da carbonária13,
a enumeração das fórmulas e dos ritos empregados para o acolhimento de novos
membros e para as reuniões preenche 75 páginas! Nem precisamos de mais
exemplos. O papel desempenhado pelo ritual nas sociedades secretas é bem
conhecido, desde as comunidades místico-religiosas da Antiguidade até os rosa-
cruzes 14 do século XVII, sem contar com os mais famosos bandos criminais. As
motivações sociológicas disso são aproximadamente as que descrevemos a seguir.
O que chama a atenção na observância do ritual nas sociedades secretas, não
é apenas o rigor com que se cumpre o conjunto de atos e práticas próprios do
cerimonial, mas, sobretudo, o receio com que se guarda seu segredo – como se traí-
lo fosse tão perigoso como desvelar os fins, as atividades ou mesmo a existência da
associação. Sem dúvida, o motivo é a necessidade de incorporar ao segredo um
conjunto complexo de formas exteriores para que toda a esfera das atividades e
interesses da sociedade torne-se uma unidade perfeitamente acabada. Dentro das
categorias que lhe são próprias, a sociedade secreta deve então procurar criar um
tipo de totalidade existencial; para isso, envolve e recobre seu objetivo com um
sistema de fórmulas que o resguarda e serve, da mesma maneira que o corpo é
invólucro e ferramenta da alma. E tudo isso deve ser posto pela sociedade sob a

13
Sociedade de ideias liberais, derivada da francomaçonaria, que surgiu na Itália em princípios do
século XIX e à qual pertenciam os carbonários. (NT)
14
Adeptos de uma sociedade de iluminados existente em Alemanha a partir do século XVI e difundida
pelos países vizinhos no século XVII. (NT)
420 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

proteção do segredo, porque só assim a totalidade se transforma em um conjunto


harmônico cujas partes se sustentem reciprocamente. Importa salientar
particularmente a ocultação dessas questões formais, porque ainda que a
necessidade de seu encobrimento possa parecer menos evidente, ele está tão
justificado aqui pelos interesses imediatos como o segredo a respeito dos
verdadeiros fins da associação. Esse fenômeno é similar ao que ocorre no exército
ou nas comunidades religiosas. Em ambos os casos a esquematização, as fórmulas
e os comportamentos estereotipados têm papel tão importante porque as duas
corporações assumem o homem em sua totalidade, quer dizer, cada uma delas
projeta a vida toda sobre um plano específico e reúne em uma comunidade fechada
uma pluralidade de energias e interesses. Essa é também a aspiração da sociedade
secreta. Um de seus traços essenciais é que, mesmo que ela reúna unicamente os
indivíduos para fins parciais, ainda que não seja do ponto de vista de seu conteúdo
outra coisa que uma associação para fins específicos, dirige-se, mesmo assim, ao
homem no seu todo, e acaba por vincular e obrigar reciprocamente as pessoas em
maior medida do que se fosse uma sociedade que age à luz do dia. Como o
simbolismo do ritual evoca muitos sentimentos vagamente delimitados, acima de
quaisquer interesses individuais racionais, a sociedade secreta vincula esses
interesses entre si tendo em conta todos os aspectos de uma pessoa. A forma ritual
permite assim ampliar o objetivo específico da associação, e transformá-la em uma
unidade, em uma totalidade sociológica e subjetiva. Some-se a isso que o
formalismo, tal como acontecia já com a hierarquia, faz da sociedade secreta uma
espécie de réplica do mundo oficial, universo ao qual precisamente ela se opõe. Como
se sabe, há uma regra sociológica, que se manifesta por toda a parte. Em seus
termos, quando um organismo se opõe a outro mais vasto e abrangente, acaba
reproduzindo em seu seio as formas deste último. Somente um organismo que, de
alguma maneira, constitua um todo está em condições de manter o vínculo de seus
elementos. Esse tipo de conexão orgânica em virtude da qual a mesma corrente de
vida flui passando por todos os membros do grupo, será incorporado pelo organismo
menor e secreto, proveniente do outro maior e manifesto (às formas do qual estão
acostumados seus indivíduos), cuja imitação permite, justamente, combatê-lo de
modo eficaz.
Georg Simmel | 421

Finalmente, na sociologia do ritual da sociedade secreta outro motivo conduz


ao mesmo resultado: a liberdade. Toda sociedade secreta comporta uma parcela de
liberdade que não está verdadeiramente prevista na estrutura do grupo maior que a
rodeia. Quer seja a sociedade secreta um complemento das deficiências da justiça
administrada pelo círculo político, como a Liga da Corte Sagrada (Vehmgerich)15, quer
se trate de uma conjuração contra esse círculo e sua lei, como no caso das
conspirações ou dos bandos de malfeitores, ou ainda que ela se coloque para além
das leis e proibições, como no caso dos mistérios ou cultos secretos, o isolamento
que caracteriza a sociedade secreta tem invariavelmente um tom de liberdade que
supõe sempre a existência de um espaço onde não se aplicam as normas conhecidas
e em vigor no seu entorno. A essência da sociedade secreta enquanto tal é a
autonomia. Todavia, essa autonomia está próxima da anarquia. O distanciamento da
ordem normativa acatada pela maioria resulta habitualmente no desarraigamento da
sociedade secreta e sua perda de estabilidade existencial e dos auxílios que a norma
oferece. No entanto, a precisão e a minúcia do ritual vêm de certo modo remediar
esta falta. Aqui podemos ver mais uma vez quanto o homem precisa de certo
equilíbrio entre a liberdade e a lei, e como, quando ele não o encontra em uma única
fonte, procura suprir o que recebe dessa proveniência com o que pode encontrar em
outra, até alcançar a proporção desejada. Através do ritual, a sociedade secreta se
impõe voluntariamente uma coerção formal, complemento da sua vida marginal e da
sua independência material. É interessante notar, por exemplo, que é entre os
francomações estadunidenses – precisamente os que usufruem de maior liberdade
política – que se exige a mais severa unidade no trabalho e a maior uniformidade no
ritual das lojas, enquanto na Alemanha – onde o grau de sujeição é grande o
suficiente como para que seja difícil encontrar alguém que sinta necessidade de
reivindicar mais liberdade – cada loja desfruta de maior autonomia em seu
funcionamento.

15
A Liga da Corte Sagrada foi uma sociedade secreta alemã de inspiração cristã, criada na Vestefália
no século XIII, que permaneceu ativa até começos do século XIX. Sua origem é incerta, mas remonta
aos tempos carolíngios e guarda vínculos com os primitivos tribunais livres germânicos. De fato, os
tribunais da Liga eram conhecidos como tribunais livres (Freigerichte), talvez uma referência ao fato
de estar compostos por homens nascidos de ventre livre. Seus membros eram elegíveis para cargos
públicos e, ainda, reivindicavam para si liberdades excepcionais. (NT)
422 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O rigor formalista da sociedade secreta, que impõe às vezes rituais absurdos,


não está, portanto, em contradição com a liberdade anárquica que ela própria
incentiva com sua ignorância voluntária das normas que vigoram no círculo maior
que está em volta dela. Muito pelo contrário, da mesma maneira que, no geral, a
multiplicação das sociedades secretas é um sintoma de falta de direitos
fundamentais, de perseguições policiais ou de opressão política – contra as quais o
homem amante da liberdade reage –, a regulamentação ritual interna dessas
sociedades indica no círculo maior uma forma de descompromisso e autonomia que
exige como contrapartida, para preservar o equilíbrio da natureza humana, aquele
formalismo do círculo menor.
Estas últimas reflexões nos conduzem aos princípios metódicos com base nos
quais gostaríamos de analisar os traços das sociedades secretas que ainda têm de
ser examinados. A questão é, em que medida essas sociedades representam
modificações quantitativas essenciais dos traços típicos que se dão na sociação de
modo geral. A fundamentação da sociedade secreta nos leva a considerar, assim,
mais uma vez, a sua posição no conjunto das formas sociológicas.
O segredo nas sociedades é um fato sociológico primário, um tipo particular
de convivência, uma qualidade formal das relações que, em ação recíproca, direta ou
indireta, com outras, vai determinar a forma do próprio grupo ou de seus elementos.
No entanto, de um ponto de vista histórico, a sociedade secreta é uma formação
secundária, quer dizer, se desenvolve dentro de uma sociedade já completa em si.
Por outras palavras, a sociedade secreta está tão caracterizada pelo seu segredo,
como outras – ou ela mesma – o estão pelas suas relações de superioridade ou de
subordinação, pelos seus fins agressivos, ou ainda pelo seu caráter de imitação.
Porém, só pode constituir-se com tal caráter à condição de que já exista uma
sociedade. Dentro desse círculo mais amplo, a sociedade secreta se opõe a ele como
um círculo mais restrito; e qualquer que seja o objetivo da sociedade, essa oposição
terá sempre um caráter de isolamento. Mesmo a sociedade secreta altruística, que
somente se propõe a prestar certo serviço à totalidade, pretendendo desfazer-se uma
vez alcançado o objetivo, considera aparentemente que seu isolamento temporal
dessa coletividade é uma técnica indispensável para atingir os seus objetivos. Por
isso, dentre os muitos grupos menores rodeados de outros maiores, não há nenhum
Georg Simmel | 423

que necessite acentuar tanto a sua autonomia quanto a sociedade secreta. O seu
segredo a circunda como um limite, fora do qual nada mais há do que oposições
materiais ou ao menos formais, e que por consequência encerra o grupo dentro dos
contornos de um domínio abstrato para constituir uma unidade acabada. Em todos
os grupos de outro tipo, o conteúdo da vida grupal, a atividade dos seus membros em
termos de direitos e deveres, ocupa de tal maneira a consciência desses elementos
que normalmente o fato formal da sociação não desempenha na prática papel
nenhum. Em compensação, a sociedade secreta não permite que desapareça de seus
membros a consciência clara e acentuada de que constituem uma sociedade: o
páthos do segredo – sempre perceptível e que se deve preservar a todo o momento –
confere ao vínculo formal do grupo uma significação própria que chega a ser superior
à importância do conteúdo. A sociedade secreta carece do crescimento orgânico, do
caráter instintivo da acumulação e de toda espécie de sentimento irrefletido de
coesão e unidade. Os conteúdos da sociedade secreta poderão ser irracionais,
místicos, emocionais ou o que mais se quiser, mas a sua formação é sempre
consciente e produzida pela vontade. Graças a essa consciência de ser uma
sociedade – consciência que é constantemente reforçada tanto no seu período
formativo como no decorrer da sua vida – a sociedade secreta é o contrário de todos
os grupos espontâneos nos quais a adesão é, em maior ou menor grau, apenas a
expressão de uma contiguidade arraigada em seus elementos. Essa condição da
sociedade secreta fica compreensível na medida em que as características formais
da constituição dos grupos em geral costumam ser reforçadas especificamente na
sociedade secreta e por que alguns dos seus traços sociológicos essenciais se
desenvolvem como meras intensificações quantitativas de outros tipos de relações
mais gerais.
Um desses traços já foi esboçado. Referimo-nos à caracterização e a coesão
do círculo por seu isolamento do entorno social. Eis o sentido dos sinais de
reconhecimento, às vezes muito complicados, por meio dos quais os membros
legitimam sua pertença à sociedade secreta. Note-se que, antes que houvesse uma
difusão mais geral da escrita, esses sinais eram ainda mais indispensáveis do que
depois, quando os seus outros usos sociológicos se tornaram mais importantes do
que a mera legitimação. No tempo em que faltavam certificados de admissão,
424 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

circulares ou alertas, uma sociedade cujos subgrupos estivessem em lugares


diferentes, só tinha esses sinais, guardados em absoluto segredo, para excluir os
profanos, e para garantir que só os iniciados recebessem seus benefícios e
comunicações. Os sinais só eram conhecidos dos membros legítimos que, por sua
vez, podiam se identificar através deles onde quer que o grupo existisse.
O objetivo do isolamento fica bem claro no caso da evolução de algumas
sociedades ou ordens secretas dos povos da natureza, especialmente em certas
sociedades tribais africanas e ameríndias. Trata-se de ordens constituídas
unicamente por homens, cujo objetivo primeiro é marcar a diferenciação entre eles e
as mulheres. Seus membros só aparecem como tais mascarados, e as mulheres são
frequentemente proibidas de aproximar-se deles sob severas sanções. No entanto,
às vezes elas descobrem o segredo, e se dão conta de que aquelas aparições
tenebrosas nada mais eram do que os seus maridos. Quando isso acontece, as
ordens perdem o seu significado e se banalizam. O homem da natureza, com a sua
imaginação sensual e indiferenciada, não pode conceber isolamento mais perfeito do
que aquele dos que se desejam ocultar, tornando-se invisíveis. Este é o modo mais
elementar e mais radical da ocultação: o segredo que não se refere a uma atividade
concreta do homem, mas ao homem por inteiro. A sociedade secreta não faz algo
secreto, é a totalidade dos seus membros que se torna ela mesma um segredo. Essa
forma de sociedade secreta corresponderia à mentalidade pré-lógica, que exclui o
pensamento abstrato e concebe a personalidade como um todo absorvido em cada
atividade particular – uma vez que esse conjunto de hábitos mentais, não objetiva
uma ação específica nem lhe confere caráter distinto do sujeito total. Assim se
explica por que o isolamento se frustra uma vez descoberto o segredo da máscara, e
por que, então, a associação perde a sua significação interna junto com os seus
meios de manifestação externa.
No âmbito das sociedades secretas, o isolamento é a expressão de um valor:
as pessoas se separam porque desejam diferenciar-se das demais, fazendo-lhes
sentir a sua superioridade. Por toda parte, esse aumento da estima que se atribui a
si mesmo leva à formação de grupos bem distintos dos que se constituem com
propósitos objetivos. Reunindo-se, aqueles que desejam marcar a diferença ajudam
a estruturar uma aristocracia que, pelo próprio peso da soma dos indivíduos
Georg Simmel | 425

envolvidos, fortalece e, por assim dizer, aumenta a posição e a autoconsciência


desses elementos. O fato de que o isolamento e a associação se entreteçam com o
motivo aristocrático, muitas vezes confere a tais grupos um caráter “especial”, no
sentido de consideração e respeito, independentemente de qualquer vantagem
material ou poder real. Mesmo nas salas de aula se observa como alguns alunos
formam círculos reduzidos, estreitamente integrados, que se consideram uma elite
unicamente pelo fato formal de constituírem um grupo separado dos demais que não
se organiza como eles – superioridade que os próprios excluídos do grupo
reconhecem involuntariamente com a sua animosidade, hostilidade e inveja. Nesses
casos, o segredo funciona como um muro de isolamento q,ue, como dissemos,
acentua o caráter aristocrático do grupo.
A significação do segredo como intensificação do isolamento sociológico é
bastante visível nas aristocracias políticas. A clandestinidade sempre foi um dos
acessórios do poder aristocrático, que se aproveita do efeito psicológico do
desconhecido que parece, em si mesmo, ameaçador, poderoso e terrível. Em primeiro
lugar, trabalha no sentido de ocultar a insignificância numérica da classe dominante:
assim, em Esparta se tentava de guardar em segredo o número dos guerreiros; e em
Veneza determinou-se que todos os nobili16 usassem um simples traje negro, para
que as roupas chamativas não revelassem o pequeno número de poderosos ao povo.
Tal dissimulação chegou na Sereníssima ao ponto de ocultar inteiramente o círculo
dos mais altos dignitários, de modo que, por exemplo, os nomes dos três inquisidores
do Estado só eram conhecidos pelo Conselho dos Dez, que os elegia. Por sua parte,
em algumas aristocracias suíças, os ocupantes dos cargos mais importantes se
17
chamavam “os segredos”, e em Friburgo as famílias aristocráticas se
denominavam “as estirpes secretas”. Em contraste, o princípio democrático se
associa ao princípio da publicidade e, dentro do mesmo espírito, à propensão a ditar
leis gerais e fundamentadas. Pois essas leis se aplicam sempre a um número
indefinido de sujeitos, sendo públicas por sua própria natureza. Ao contrário, o uso
do segredo pelos regimes aristocráticos nada mais é do que a exaltação suprema do

16
Conjunto específico daqueles que exerciam cargos e funções civis e militares no aparelho
burocrático da República de Veneza, nos séculos XV a XVIII. (NT)
17
Como o autor está se referindo à Suíça, provavelmente aluda a cidade de Friburgo em Nuitônia
(chamada em tudesco Freiburg im Üechtland, para distingui-la da alemã Friburgo em Brisgóvia). (NT)
426 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

isolamento e desses privilégios sociais – por apego aos quais a aristocracia prefere
opor-se a uma legislação geral e baseada em princípios universais.
Quando a noção de aristocracia não caracteriza a política de um grupo, mas
as ideias de um indivíduo, a relação entre isolamento e segredo se manifesta em
planos diferentes. A pessoa moral e intelectualmente distinta desdenha toda
ocultação, porque a sua distinção é espiritual e a sua autoconsciência a torna
indiferente: não importa a ela o que os outros saibam ou não, se a apreciam ou não
ou como a consideram os demais. Para ela, o segredo é uma concessão às outras
pessoas, uma maneira de ter em consideração a apreciação do grande público. Por
isso, a “máscara”, que muitos consideram como sinal e prova de uma alma
aristocrática que se distancia da multidão, vem comprovar a importância da massa
para aqueles que fingem ou dissimulam. A “máscara” da pessoa verdadeiramente
distinta consiste em que, mesmo ao se mostrar às claras, não a compreendem e, por
assim dizer, sequer a veem.
O isolamento de tudo o que esteja fora do círculo é então uma forma
sociológica universal que se serve do segredo como técnica para ganhar força e
importância. Tal isolamento assume um matiz específico graças aos múltiplos graus
em que se verifica a iniciação nas sociedades secretas, até que se alcança o
conhecimento dos seus mistérios mais profundos. A existência de graus de iniciação
já foi alumiada quando falamos dos traços sociológicos da sociedade secreta. No
geral, exige-se do noviço a declaração solene de guardar segredo sobre tudo o que
vier a experimentar, antes mesmo de ser admitido. Dessa maneira assegura-se o
isolamento absoluto e formal que o segredo produz. No entanto, uma vez que o real
conteúdo ou objetivo da sociedade se torna acessível ao neófito – quer este
propósito seja a purificação e a santificação da alma mediante a consagração aos
mistérios ou, ao invés, a absoluta supressão de toda barreira moral, como na Ordem
dos Assassinos 18 ou outros grupos criminais – o isolamento material se dá
diferentemente, de modo contínuo e relativo. De acordo com essa maneira de
conduzir as coisas, o novo membro ainda se encontra próximo do estado de não

18
A Ordem dos Assassinos (em arábico Ḥashāshīn) foi uma seita fundada no século XI por Hassan
ibn Sabbah, conhecido como O Velho da Montanha, que a instituiu com o objetivo de difundir uma
nova corrente do Islã xiita, o ismaelismo, que ele mesmo tinha criado. Sua sede era uma fortaleza
situada na região de Alamut, no atual Irã. (NT)
Georg Simmel | 427

iniciado, precisando ser posto à prova e instruído, até conhecer todos os objetivos da
associação e chegar a seu cerne. Com isto, consegue-se ao mesmo tempo proteger
o cerne da associação e isolá-lo- do exterior em um grau maior do que o produzido
pelo juramento feito por ocasião do ingresso na sociedade. Zela-se – como no caso
dos druidas de que já falamos – para que o neófito que ainda não foi posto à prova
não tenha muito a revelar, criando por meio das revelações graduais uma espécie de
esfera elástica que protege o mais íntimo e essencial da sociedade, dentro do
segredo geral que envolve o grupo por inteiro.
A característica mais evidente dessa medida de proteção é o contraste entre
os membros exotéricos e esotéricos, que é atribuído às ordens pitagóricas. O círculo
formado pelos parcialmente iniciados constitui uma espécie de anteparo que separa
a sociedade dos não iniciados. Em todo lugar o “intermediário” desempenha a função
dupla de unir e separar, que termina, porém, sendo uma só, pois segundo as
categorias que nós utilizemos ou a direção que demos a nossos olhares a
qualificaremos algumas vezes de união e outras de separação. Do mesmo modo,
também é vista aqui com bastante clareza a real unidade de duas atividades
aparentemente contraditórias: é precisamente porque os graus mais baixos da
associação medeiam a transição para o cerne do segredo que eles tornam
progressivamente estanque a esfera dissuasiva que envolve este cerne – e que o
protege com maior segurança do que qualquer alternativa abrupta e radical entre a
inclusão total e a exclusão total.
Na prática, a autonomia sociológica se manifesta sob a forma de egoísmo do
grupo. Com efeito, a associação procura alcançar seus fins com a mesma atitude de
indiferença para com os objetivos dos outros grupos que no âmbito individual se
chama de egoísmo. Para a consciência dos membros individuais, o grupo amiúde
justifica moralmente essa desconsideração afirmando que seus pressupostos e
finalidades têm um caráter objetivo e supraindividual, ou que seria impossível citar
uma única pessoa que tivesse usufruído de qualquer benefício advindo da conduta
egoística do grupo, ou mesmo que ele, por sua vez, exige dos seus membros
individuais desprendimento e espírito de sacrifício. Ora, não estamos aqui tentando
estabelecer qualquer valoração ética, mas de enfatizar que o isolamento do grupo de
tudo que o rodeia provém ou se define pelo egoísmo do próprio grupo. Todavia, no
428 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

caso dos círculos pequenos, que objetivam viver e manter-se dentro de um grupo
maior e se desenvolvem a olhos vistos, o egoísmo tem limites. Qualquer associação
ostensiva (não importando com que violência lute contra outras associações dentro
da sociedade maior ou ataque os fundamentos dessa mesma sociedade), deve
sempre afirmar que a realização dos seus objetivos virá em benefício de todo o
conjunto; e a necessidade dessa afirmação imporá algum limite ao egoísmo efetivo
da sua conduta. Tal não se faz necessário, porém, no caso das sociedades secretas
que, pelo menos em potência, podem contrapor-se a outros grupos ou à totalidade
– diferentemente das sociedades abertas que não podem confessar nem, por
conseguinte, exercer a hostilidade absoluta. Nada simboliza ou promove tão
decisivamente o isolamento da sociedade secreta a respeito do seu entorno social
quanto a eliminação dessa hipocrisia ou da real vontade de conciliação que integra
inevitavelmente a sociedade que age à luz do dia na teleologia do conjunto que a
circunda.
Apesar da delimitação quantitativa que caracteriza toda comunidade real,
existe, não obstante, uma série de grupos cuja tendência interna é a de incluir todos
os que não estão explicitamente excluídos. Em certos setores políticos, religiosos e
sociais, todo aquele que satisfaz determinadas condições externas, não
voluntariamente adquiridas, mas dadas pela própria existência, é passível de ser
considerado ”membro”. Por exemplo, todos os que nasçam em um território nacional,
pertencerão à comunidade nacional respectiva, a não ser que circunstâncias
específicas os excluam. Se formos membros de uma determinada classe social,
devemos assumir como nossas as convenções sociais e formas relacionais daquela
classe, se não quisermos nos tornar uns marginais, querendo ou não. A forma
extrema dessa pertença seria a Igreja, que pretende abarcar em seu seio a totalidade
dos humanos, de sorte que só um acidente histórico, uma obstinação no pecado ou
um desígnio particular de Deus poderia porventura excluir um ente qualquer da
comunidade religiosa, que virtualmente é também a sua. Separam-se aqui, pois, dois
caminhos que indicam claramente uma diferença fundamental na significação
sociológica das sociedades em geral, por muito que a prática misture os dois,
diminuindo o rigor da distinção. De um lado fica o princípio de incluir todos os que
não estejam explicitamente excluídos, e do outro, o princípio de excluir os que não
Georg Simmel | 429

estiverem implicitamente incluídos. O segundo tipo está categoricamente


representado pelas sociedades secretas. O caráter absoluto do isolamento dessas
associações, perfeitamente consciente em cada etapa da sua evolução, tem por
consequência (e por causa) que quem não tiver sido expressamente admitido, delas
se encontra excluído. Assim, a francomaçonaria, para reforçar a sua negativa de ser
uma sociedade secreta, não pôde fazer nada melhor do que assumir o compromisso
ideal de acolher todos os homens e representar a humanidade por inteiro.
À intensificação do isolamento dos de fora, corresponde aqui, como em toda a
parte, a ênfase na solidariedade interna. Em verdade, trata-se de apenas dois
aspectos ou formas de manifestação de uma mesma atitude sociológica. Os
objetivos que levam um indivíduo a entrar em associação secreta com outros, quase
sempre excluem um setor tão amplo e representativo do círculo social geral, que seus
parceiros reais e potenciais assumem valor de raridade. O indivíduo deve então
manter-se em bons termos com os parceiros, pois seria muito mais difícil substituí-
los nesse tipo de associação do que em uma sociedade legítima. Além disso, toda
dissensão dentro da sociedade secreta acarreta o perigo da traição, estando os
indivíduos e o grupo igualmente interessados em evitá-la. Finalmente, o isolamento
da sociedade quanto ao entorno social, minimiza toda uma série de possíveis
conflitos. De todos os vínculos que assume o indivíduo, o constituído pela associação
secreta tem sempre uma posição especial, em face da qual os demais laços
– familiares e cívicos, religiosos e econômicos, sociais e amistosos –, por variado
que seja o seu conteúdo, apresentam, apesar de tudo, oportunidades de contatos de
natureza e dimensão completamente diferentes. Só a comparação com as
sociedades secretas deixa ver que as pretensões daqueles vínculos, estando em
princípio no mesmo plano, são divergentes. Do mesmo modo que essas pretensões
parecem estar, de certa forma em aberta concorrência para atraírem os interesses e
as energias dos indivíduos, estes últimos colidem entre si dentro de cada círculo
porque cada um deles se vê solicitado simultaneamente pelos interesses de outros
círculos. Mas, nas sociedades secretas as colisões se encontram muito limitadas
pelo isolamento sociológico próprio dessa forma de associação e porque os seus
objetivos e métodos de ação exigem que os interesses conflitantes das diversas
associações ostensíveis sejam deixados de fora. Toda sociedade secreta – quanto
430 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mais não fosse porque habitualmente preenche por si mesma o seu próprio espaço,
já que dificilmente um indivíduo pertence a várias sociedades secretas –, exerce uma
espécie de autoridade absoluta sobre os seus membros, o que lhes deixa pouca
oportunidade de entrar em conflitos semelhantes aos que nascem da coordenação
das outras sociedades. A “paz interna”, que na verdade deveria reinar em toda
sociedade, é promovida de maneira formalmente insuperável pelas condições
peculiares e excepcionais da sociedade secreta. De fato, pareceria que, além dessa
razão de caráter mais realista, a simples forma do secreto mantém os membros ao
abrigo de outras influências e perturbações, facilitando assim o acordo entre eles.
Um político inglês chegou a explicar a força do gabinete britânico pelo segredo que o
rodeia: em sua opinião, basta haver tido alguma atuação na vida pública para saber
que é tanto mais fácil conseguir a unanimidade de um número pequeno de pessoas
quanto mais secretas forem suas deliberações.
A marcada centralização das sociedades secretas tem correspondência com
o grau de coesão particular que se produz dentro dessas associações. Elas oferecem
assim, exemplos de uma obediência cega e incondicional aos chefes, que, embora se
encontre também, evidentemente, em outras partes, resulta aqui espantosa se
levamos em conta o caráter amiúde anárquico do grupo e sua recusa de qualquer
outra lei que não a sua. Quanto mais criminais sejam os objetivos da sociedade
secreta, tanto mais ilimitado será, em geral, o poder dos chefes e mais cruel se
tornará seu exercício. Os “assassinos” levantinos acima referidos, os chauffeurs de
pâturons franceses19 e os garduñas espanhóis20, todos eles asseclas de sociedades
secretas baseadas essencialmente na rebelião e a recusa das leis, estavam
submetidos a um chefe supremo, que eles mesmos tinham colaborado parcialmente
a nomear, e a quem se vergavam sem crítica nem reserva. Para isso contribui sem
dúvida, o equilíbrio que há de existir sempre entre as necessidades de liberdade e de

19
Os chauffeurs de pâturons (em argot, “queimadores de pés”) ou simplesmente chauffeurs eram
bandos de criminosos, com uma organização bastante diversificada, que floresceram na França no
século XVIIi. Introduziam-se durante a noite nas residências e queimavam os pés dos moradores com
as brasas da sua chaminé para obrigá-los a confessar onde escondiam suas economias. (NT)
20
Sequazes da garduña, uma sociedade secreta criminosa que agiu na Espanha e suas colônias desde
meados do século XV até o século XIX. Teria nascido no contexto das fraternidades criminosas que, a
partir de diversos bandos incontrolados, extorquiam, assaltavam e roubavam as residências de
muçulmanos e judeus, Pretextavam colaborar com a Inquisição, e chegaram a desenvolver um poder,
extensão e complexidade organizativa comparáveis aos das grandes máfias modernas. (NT)
Georg Simmel | 431

lei, compensação que se manifesta também, como vimos, na severidade dos rituais.
Aqui, com efeito, coexistem os extremos de ambas as precisões: o excesso de
liberdade (que associações desse tipo possuíam no que concerne o restante das
normas vigentes) precisava, para conseguir o indispensável equilíbrio, ser
compensado por um excesso análogo de submissão e de renúncia à vontade
pessoal. Todavia, ainda é mais essencial outro motivo: a necessidade de
centralização, que é condição vital de toda sociedade secreta. Sobretudo, se o grupo,
como acontece com os bandos de malfeitores, vive e se mistura de variadas maneiras
com o círculo que o rodeia e se vê assim constantemente ameaçado pela traição e o
abuso, se nele não reinasse a coesão mais inflexível assegurada por uma autoridade
central.
Por isso as sociedades secretas estarão expostas a graves perigos, quando
por qualquer razão não desenvolverem essa autoridade rígida que garanta coesão.
Os valdenses21, por exemplo, originalmente não constituíam uma sociedade secreta;
seu grupo se tornou secreto no século XIII, obrigado por pressões externas que os
forçaram a ocultar-se. Isso tornou impossíveis as reuniões regulares, e foi causa de
discrepâncias doutrinais, que por sua vez provocaram a proliferação de seitas que
passaram a viver e a se desenvolver separadamente, sendo amiúde hostis entre elas
mesmas. Sucumbiram a sua fraqueza, porque lhes faltou um elemento essencial à
sociedade secreta: uma centralização ininterrupta. E se o poder da francomaçonaria
não está em relação com a sua difusão e os seus recursos, com certeza a causa é a
ampla autonomia de seus elementos, que não possuem uma organização unificada
nem uma autoridade central. Reduzida a comunidade apenas a princípios e sinais de
reconhecimento, seus membros se empenham em manter a igualdade e as relações
pessoa a pessoa, mas não a centralização, que condensaria suas energias e deveria
oferecer o complemento do isolamento próprio de toda sociedade secreta.
Se as sociedades secretas costumam ser dirigidas por um chefe desconhecido
é apenas pela exacerbação de um princípio formal. Referimo-nos ao fato de que os
graus inferiores, em razão do segredo, não devem saber a quem obedecem. Esse

21
Membros do valdismo, seita herética fundamentada na pobreza, criada no século XII por Pierre
Valdo, próspero comerciante de Lion (França), após renunciar a seus próprios bens e riquezas. (NT)
432 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

propósito pode chegar a extremos como no caso dos “cavaleiros guelfos” 22 , que
lutaram no início do século XIX pela liberação e unificação da Itália. Em cada um dos
seus vários desdobramentos, nas diferentes cidades onde existiam, os cavaleiros
tinham um conselho supremo de seis membros, que não se conheciam mutuamente,
e só se comunicavam através de um intermediário, ”o visível”. Mas a preservação do
segredo não era o único objetivo do desconhecimento desses chefes: a ignorância
exemplifica a sublimação mais extrema e abstrata da dependência de um centro. Na
verdade, a tensão que existe entre o subordinado e o chefe alcança o grau máximo
quando o chefe está além do visível, pois então resta apenas o fato, puro e implacável,
da obediência destituída de matizes pessoais. Se a obediência a uma instância
impessoal, a uma simples função, ao representante de uma lei objetiva, tem já um
caráter rigoroso e inflexível, essa submissão se acentua até tornar-se absoluta e
inquietante a partir do momento em que a pessoa que comanda é, por princípio,
desconhecida. Pois quando quem dá as ordens não é nem visível nem conhecido,
quando desaparece na relação entre chefe e subordinado a força sugestiva do
indivíduo e o poder da pessoa, somem também todas as limitações, as contingências
“humanas”, que caracterizam o ente singular e conhecido. A obediência é
acompanhada, em tais casos, do sentimento de ser submetido a um poder inatingível,
de limites indetermináveis, um poder que não se vê em lado nenhum, mas que pela
mesma razão se pode imaginar em toda a parte. Nas sociedades secretas de chefes
desconhecidos, a coesão sociológica geral do grupo, que noutros casos obedece à
unidade de comando, se transmuda a uma espécie de focus imaginarius, adquirindo
assim sua forma mais pura e mais intensa.
O traço sociológico que corresponde à subordinação centralista dos
elementos individuais na sociedade secreta é a sua desindividualização. Quando a
sociedade secreta não tem como finalidade imediata os interesses dos indivíduos
que a compõem, mas excede de certo modo seu papel, utilizando os seus membros
como meios para fins e ações estranhas e superiores a ela própria, a sociedade
secreta acentua o caráter de despersonalização, de nivelamento das individualidades

22
A dos “cavaleiros guelfos” foi uma sociedade secreta animada pelo neoguelfismo, um movimento
cultural e político que surgiu na Itália no campo católico e liberal nas primeiras décadas do século XIX,
participando das reflexões e propostas sobre quando e como conseguir a unificação italiana. (NT)
Georg Simmel | 433

pelo qual passa toda sociedade em geral, apenas pelo fato de sê-lo. Assim é como a
sociedade secreta compensa o caráter diferenciador e individualizante do segredo,
tal como descrito acima. Começa com as sociedades secretas dos povos da
natureza, cujos membros se apresentam e agem quase exclusivamente recobertos
por máscaras, a tal ponto que um dos principais especialistas nesta matéria pôde
dizer que, quando em uma sociedade tribal se encontram máscaras, deve-se pelo
menos presumir a existência de sociedades secretas em seu seio – pois a natureza
mesma das sociedades secretas exige certamente a ocultação dos seus membros
enquanto tais. No entanto, quando o indivíduo em questão se deixa ver e age
claramente como membro de uma sociedade secreta, e simplesmente não mostra
qual indivíduo – conhecido, de resto – é idêntico a esse membro, isso põe claramente
em evidência o desaparecimento da pessoa por trás do papel representado na
sociedade secreta. Na conspiração que organizaram grupos de exilados irlandeses
nos Estados Unidos, entre 1881 e 1886, que recebeu o nome de Campanha de
dinamite feniana 23 , os membros individuais do Clan na Gael, uma das principais
sociedades implicadas, nunca eram identificados pelos seus nomes, e sim por
números. É claro que isso tinha o objetivo prático de garantir o segredo, mas também
exemplifica como esse objetivo suprime a individualidade. Com pessoas que só são
chamadas por números e cujos nomes provavelmente seriam desconhecidos até dos
outros membros, os próprios chefes podem agir de maneira mais implacável, com
maior indiferença pelos desejos e capacidades individuais da que teriam se cada um
dos membros da associação fosse aceite enquanto entidade pessoal. Não é menor a
influência que a abrangência e a severidade do ritual têm no mesmo sentido, pois o
rito sempre indica que a forma objetiva predomina sobre o caráter pessoal nas
atividades e contribuições dos membros do grupo. A ordem hierárquica só admite o
indivíduo enquanto ator de um papel determinado de antemão, tendo para cada um
deles uma espécie de roupagem estilizada que oculta e apaga os contornos pessoais.

23
A Campanha de dinamite feniana (Fenian dynamite campaign) foi uma série de atentados à bomba
orquestrada por irlandeses exilados nos Estados Unidos contra o Império Britânico, entre os anos de
1881 e 1885. As operações foram associadas ao fenianismo, isto é, às organizações revolucionárias
irlandesas que pretendiam criar uma república irlandesa independente, como o Clan na Gael (ou
“Família dos gaélicos”), a Irmandade Republicana Irlandesa, a Irmandade Feniana, e os Irlandeses
Unidos de América. A campanha era uma forma de guerra assimétrica direcionada ao governo, alvos
militares e policiais britânicos. (NT)
434 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Outro aspecto dessa eliminação da personalidade encontra-se nas


sociedades secretas que cultivam uma igualdade relativamente grande entre os seus
membros. Isso não contradiz o caráter despótico desse tipo de organização, pois, em
todos os outros tipos de grupo, o despotismo também está correlacionado ao
nivelamento dos dominados. Dentro das sociedades secretas costuma existir entre
seus membros uma igualdade fraternal, oposta clara e tendenciosamente às
diferenças que os separem nas demais situações da vida. Isso é mais notável nas
sociedades secretas de natureza ético-religiosa – que põem grande ênfase na
fraternidade – bem como nas de caráter ilegal. Nas suas Memórias, Bismarck fala de
uma organização de pederastas muito difundida em Berlim, da qual ele teria tomado
conhecimento quando jovem funcionário judicial, enfatizando ”o efeito igualitário
que, em todas as classes sociais, produz a prática em comum do que é proibido”.
A sociedade secreta transforma assim em despersonalização uma relação
típica que se dá em geral entre indivíduo e sociedade, e que adota finalmente a forma
característica da “irresponsabilidade”. Também nesse caso a máscara ilustra uma
manifestação primitiva do fenômeno. A maior parte das associações secretas
africanas é representada por um homem disfarçado de “espírito da mata”, que
comete todo tipo de transgressão, inclusive o roubo e o assassinato contra qualquer
pessoa que por acaso encontre no seu caminho. No entanto ele não é
responsabilizado por seus crimes, sem dúvida por usar a máscara. Essa é uma forma,
um tanto tosca, das associações fazerem desaparecer a personalidade dos seus
adeptos, sem a qual, com certeza, recairiam sobre eles a vingança e o castigo. Mas a
obrigação de responder pelas suas próprias ações está vinculada de tal modo ao eu
(pois também filosoficamente a responsabilidade é algo da ordem do eu) que, para a
mentalidade pré-lógica, o fato de tornar a pessoa irreconhecível suprime toda espécie
de responsabilidade. E não só entre os povos da natureza. Os sistemas políticos mais
refinados se servem dessa conexão. Na Câmara dos Representantes norte-
americana, por exemplo, as decisões propriamente ditas são tomadas nas comissões
permanentes e depois levadas ao plenário, que quase sempre as faz suas. No
entanto, os debates nessas comissões são secretos, ficando assim oculta aos olhos
do público a parte mais importante da atividade legislativa. Desta maneira a
responsabilidade política dos deputados desaparece em grande medida, uma vez que
Georg Simmel | 435

não se pode responsabilizar ninguém de deliberações invisíveis e incontroláveis.


Desde o momento em que a participação dos indivíduos nas deliberações permanece
oculta, as decisões parecem ser obra de alguma instância supraindividual. Também
nesse caso a irresponsabilidade é consequência ou símbolo da marcada
despersonalização sociológica que corresponde ao segredo dos grupos. O mesmo
se aplica a todos os conselhos diretores de faculdades, de estabelecimentos públicos
ou particulares, etc., cujas deliberações sejam secretas: o indivíduo desaparece então
como pessoa, sendo substituído pelo membro anônimo do grupo. Desse modo,
desaparece também a responsabilidade, que não pode ser atribuída a um ente
esquivo e inacessível na sua conduta pessoal.
Finalmente a acentuação unilateral dos traços sociológicos gerais se confirma
no perigo que, com ou sem razão, crê ver nas associações o círculo maior que as
circunda. Toda vez que se deseja instaurar – sobretudo no campo político – uma
centralização acentuada, costuma-se coibir as associações dos elementos, pelo
simples fato de serem associações e independentemente dos seus conteúdos e
propósitos. As unidades independentes competem de alguma forma com o poder
central, que deseja reservar unicamente a si a faculdade de reunir os elementos em
uma forma unitária. A preocupação que inspira toda “associação especial” aos
poderes centrais perpassa, assim, toda a história política – ponto muito relevante em
diversos aspectos para nosso estudo. Um exemplo representativo dessa espécie de
prevenção é a convenção helvética de 1481, segundo a qual não podiam ser
celebradas quaisquer alianças separadas entre os dez cantões confederados. Outro
exemplo é a perseguição de que foram alvo as corporações de oficiais artesãos por
parte do despotismo nos séculos XVII e XVIII. Um terceiro é a tendência do Estado
moderno de despojar às comunidades políticas locais dos seus direitos. O risco que
representariam as associações especiais para o todo que as rodeia, aparece
potencializado na sociedade secreta. Raramente o homem tem uma atitude serena e
racional diante de pessoas e de coisas misteriosas ou pouco conhecidas, dividido
que está entre a leviandade – que lhe faz tratar o ignorado como se este não
existisse – e uma temerosa fantasia – que, ao contrário, transforma o desconhecido
em uma massa enorme de perigos assustadores. Assim, a sociedade que não age à
luz do dia parece perigosa pelo mero fato de ser secreta. No geral, é impossível saber
436 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

se uma associação especial virá um dia a usar as suas energias e os seus recursos
em princípio legais a propósitos odiosos; daí a suspeita e o medo que os poderes
centrais devotam a qualquer forma de associação dos seus súditos. Quanto mais
fácil não será suspeitar de que perigo as associações secretas dissimulam por trás
de seu sigilo! As sociedades orangistas24 que se organizaram na Inglaterra de inícios
do século XIX com o objetivo de combater o catolicismo, evitavam qualquer
discussão pública, trabalhando sempre em segredo por meio de relações e
correspondências pessoais. Foi justamente esse comportamento reservado que as
fez parecer perigosas: suspeitou-se de que that men, who shrank from appealing to
public opinion, meditated a resort to force 25 . Só por causa do seu sigilo, as
sociedades secretas se afiguram demasiadamente próximas de uma conspiração
contra os poderes existentes. Mas isso não passa de uma suspeita exacerbada que,
em geral, as associações secretas despertam no mundo da política, como bem
mostra o exemplo seguinte. As guildas germânicas mais antigas ofereciam aos seus
membros uma proteção jurídica efetiva, assim substituindo o amparo que viria do
Estado. Por isso, os reis dinamarqueses as favoreceram, vendo nelas um suporte à
ordem pública. Todavia, por outro lado, pela mesma razão, essas corporações foram
consideradas competidoras do Estado, e por isso os decretos reais dos antigos
monarcas carolíngios as condenaram como conjurações. A tal ponto a sociedade
secreta é considerada uma inimiga do poder central que, inversamente, se dá esse
nome a qualquer associação política indesejável!

24
Fraternidades fundadas no final do século XVIII para comemorar os privilégios civis e religiosos
concedidos por Guilherme de Orange aos protestantes, em particular a sua vitória na batalha do Boyne
em face do rei católico Jaime II em 1690, assim como em resposta aos primeiros avanços do
nacionalismo irlandês que já tinha conseguido representação no Parlamento britânico e impulsionado
algumas tentativas separatistas. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “homens que evitavam expor-se à opinião pública, viessem
a tentar um golpe de força”. (NT)
VI. O cruzamento dos círculos sociais1

A diferença entre o pensamento culto e o pensamento pouco cultivado se


manifesta na diversidade dos motivos que determinam as associações entre as
representações. A coincidência casual no espaço e no tempo basta de início para as
representações se associarem psicologicamente. A reunião de propriedades, que
constitui um objeto concreto, aparece originariamente como a unidade de um todo,
em que cada propriedade está em estreita conexão associativa com aquelas outras
em cujas proximidades é observada. Não tomamos consciência da existência de
cada propriedade como conteúdo autônomo representável até que elas se
apresentem como combinações diferentes. Então, percebemos o que todas essas
representações têm de igual e, ao mesmo tempo em que as vemos reciprocamente
ligadas, apreendemo-las cada vez mais liberadas de sua convivência meramente
casual com o objeto ao qual antes as tínhamos visto unidas. Desse modo, a
associação se libera da sugestão da percepção atual, e doravante repousará sobre o
conteúdo das representações, conteúdo este que se converte então na base sobre a
qual se constroem os conceitos superiores, que paralelamente se separam de sua
combinação circunstancial com as realidades mais diversas.
Esta evolução que se verifica nas representações, tem sua analogia nas
relações dos indivíduos entre si. O indivíduo se vê em primeiro lugar num ambiente
que, relativamente indiferente a sua individualidade, o encadeia a seu próprio destino
e lhe impõe uma estreita convivência ao lado de pessoas que o acaso do nascimento
tornou seus próximos. Esse “primeiro lugar” deve ser entendido em referência ao
estágio inicial tanto da evolução filogenética como do desenvolvimento ontogênico.
No entanto, de forma continuada, esse processo passa a estabelecer relações
associativas entre elementos homogêneos de círculos heterogêneos. Assim, a
família contém em si um número de individualidades diversas que, no começo, são
rigorosamente dependentes dessa associação. Mas, à medida que vão progredindo,
os indivíduos se relacionam com pessoas fora do círculo primário de associação que,

1
Uma parte deste capítulo foi tomada em empréstimo a nossa obra Über soziale Differenzierung.
Soziologische und psychologische Untersuchungen, Kapitel V. (NS) [Sobre a diferenciação social.
Estudos sociológicos e psicológicos, Capítulo V, publicada originariamente por Duncker & Humblot,
Leipzig, 1890. (NT)]
438 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ao contrário, têm com ele uma relação fundada objetivamente sobre as mesmas
disposições, inclinações, atividades, etc. E, deste modo, a associação baseada na
convivência exterior é substituída cada vez mais por uma associação fundada nas
relações de conteúdo. Da mesma maneira que o conceito mais abrangente reúne o
que um grande número de intuições muito diversas tem em comum, assim os pontos
de vista práticos mais abrangentes reúnem os indivíduos similares provenientes de
grupos totalmente estranhos entre si e sem vínculos recíprocos. Surgem, assim,
novos círculos de contato, que se entrecruzam nos mais diversos ângulos com os
círculos precedentes, relativamente mais naturais e constituídos com base nos
sentidos.
Lembraremos, por exemplo, que os grupos independentes, cujas associações
antigamente constituíram as universidades, estavam divididos segundo a
nacionalidade dos estudantes. Mais tarde, este modo de repartição foi substituído
pelas comunidades de estudos, que levaram às faculdades. Neste caso, vê-se com
muita clareza, como a comunidade geográfica e fisiológica, determinada pelo
terminus a quo, foi substituída radicalmente por outra síntese elaborada a partir do
ponto de vista da finalidade, do interesse interno e objetivo ou, se quisermos,
individual. Na mesma forma, ainda que em condições um pouco mais complexas, foi
produzida a evolução dos sindicatos ingleses. Inicialmente, reinava neles a tendência
a definir os diversos grupos pelo recrutamento local, excluindo-se os operários que
vinham de fora, critério que resultou em irremediáveis atritos e inveja entre as seções
assim divididas. Mas este estágio foi superado lentamente quando os operários
tentaram agrupar-se por profissão em todo o país. O fato seguinte, por exemplo,
consagrou essa mudança de forma. Quando os tecelões de algodão se pronunciaram
pela generalização de uma remuneração salarial uniforme por peça produzida se viu
claramente que essa reivindicação teria por consequência a concentração da
indústria nos centros favoravelmente localizados e significaria a ruína dos povoados
mais afastados. Todavia, até os representantes dessas localidades remotas votaram
a favor da remuneração salarial uniforme porque era o melhor para o conjunto da
profissão. Muito embora inicialmente se tratasse apenas de operários associados
com base numa atividade semelhante, a ênfase dessas associações recaía na
vizinhança geográfica, o que levava, sem dúvida, a cada profissão a estabelecer
Georg Simmel | 439

contatos mais estreitos com outras associações de trabalhadores estabelecidas na


mesma localidade, mesmo ante diferenças de conteúdo das atividades laborais. No
decurso do processo evolutivo, a associação abandonou esta relação local, na
medida em que só a identidade da atividade determinou suas relações. Já não foi
mais a cidade – como ressalta um historiador dos sindicatos para explicar esta
transformação – mas a profissão que passou a ser a unidade de referência da
organização operária.
É evidente que um elemento de liberdade atua aqui, pois ainda que a posição
individual do operário seja muito dependente, a pertença a uma profissão supõe, em
geral, maior liberdade de escolha do que a pertença a uma cidade. De resto, todo esse
tipo de evolução aqui apreciado ilustra uma tendência muito clara para o aumento de
liberdade: não se suprime a sujeição, mas se concede liberdade para escolher o grupo
a estar sujeito. Pois, contrariamente ao vínculo geográfico e, de modo geral, a todos
aqueles que não revelam a vontade pessoal do sujeito, os vínculos livremente
escolhidos frequentemente expressam a verdadeira natureza daquele que faz a
escolha e, por conseguinte, os agrupamentos que resultam desse tipo de opções se
assentarão sobre relações objetivas, isto é, ficarão arraigadas no próprio ser dos
sujeitos. Por essas razões pode ser conveniente continuar a utilizar a solidez formal
da associação assim constituída com vista a atingir objetivos bastante afastados da
principal razão de sua criação. Nas sissítias2 espartanas, os cidadãos se sentavam à
mesa em grupos de 15 e escolhiam livremente sua tábua. No entanto, bastava um
voto contrario para rejeitar àquele que solicitava ingressar ao grupo. Tal comunidade
de mesa serviu depois de base para a organização do exército. Desta maneira, as
tendências e simpatias individuais substituíram as relações de vizinhança e
parentesco na formação das comunidades. A organização do exército era muito
rígida e objetiva, mas entre ela e a relação de vizinhança ou de sangue (que, à sua
maneira, também é impessoal) a escolha da sissítia era uma espécie de articulação
flexível que infundia o sentido racional da associação livre na racionalidade da
organização militar baseada em outros princípios. Mas, fora dessa técnica particular
empregada na organização do exército, a supremacia absoluta da força armada entre

2
Refeições em comum realizadas amiúde à tarde pelos homens das cidades dóricas, especialmente
em Esparta e Creta. (NT)
440 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

os espartanos tinha já conseguido vencer o poder das associações por clãs. No resto
da Grécia, cada subdivisão do exército estava constituída por um mesmo clã ou por
um mesmo distrito; unicamente em Esparta o interesse militar objetivo superou tais
preconceitos, determinando por si só a divisão do exército.
Mesmo nos povos da natureza, como os africanos, observa-se como as
formações guerreiras centralizadas destroem a organização das tribos. Ademais, na
medida que as mulheres são em geral as representantes do princípio de associação
natural de tipo familiar, entende-se bem por que, nas organizações guerreiras, existe
uma hostilidade explícita contra tudo o que é feminino, estando as mulheres
desprovidas de poder social. O matriarcado, relativamente frequente nos povos
guerreiros, pode advir, por um lado, da separação rigorosa entre a vida civil e a vida
militar e, por outro, de motivos profundamente enraizados na psicologia pessoal. O
guerreiro é, com certeza, tirânico e brutal em casa, mas chega a ela fatigado, gosta
da comodidade física e do repouso, bastando que alguém cuide dele e se encarregue
de dirigir os assuntos práticos do lar para que fique apaziguado e indolente,
descuidado e satisfeito. Porém, não existe qualquer relação entre esses aspectos da
vida civil e o ponto de vista objetivo que faz explodir a tribo, e que cria a partir de seus
fragmentos uma nova entidade puramente racional. A questão decisiva aqui é que os
guerreiros formam um todo organizado a partir de interesses militares e excluem
quaisquer outros propósitos. Para atender outra perspectiva, os guerreiros podem,
sem dúvida, dispersar-se de novo em associações absolutamente diferentes, as
quais, todavia, seriam irracionais se interferissem com o todo organizado da primeira
associação.
Na escolha de companheiros da sissítia espartana, a liberdade era um
princípio de racionalização – o que frequentemente não é. Pois, graças a ela, as
qualidades da pessoa eram os fundamentos decisivos da união – um motivo de
associação totalmente novo e revolucionário que, apesar do viés arbitrário e
irracional que pudesse haver em outras circunstâncias, era claramente
compreensível, contrariando os motivos até então prevalentes. Nesse mesmo
sentido a “liberdade de associação” atuou nos três últimos séculos da Idade Média
germânica. Nos primeiros tempos das comunidades aldeãs livres a associação dos
membros derivava de sua localização geográfica; depois, na época feudal, a relação
Georg Simmel | 441

com um único senhor criou outra razão de unir-se muito distinta, porém claramente
externa; deveu-se aguardar o reconhecimento da “liberdade de associação” para que
esse fundamento passasse a ser a própria vontade dos indivíduos agrupados.
Compreende-se facilmente que isso conduziu ao surgimento de formações
absolutamente singulares para a vida em comum dos indivíduos, assim que aqueles
antigos motivos (que pareciam obedecer sobretudo ao destino e estavam longe de
assentar-se nas pessoas) foram substituídos ou neutralizados por outros
fundamentos espontâneos.
Todavia, a forma de associação posterior desenvolvida sobre um modo
anterior e originário, não é necessariamente mais racional. Suas consequências, para
a vida interior do indivíduo e para sua posição exterior, adquirem nuances
particulares quando as duas espécies de vínculos que o governam (os irrelevantes à
vontade pessoal do sujeito e os livremente escolhidos) estão fundadas em causas
igualmente profundas e orgânicas, situadas para além do seu livre arbítrio ou
fantasia. Os indígenas da Austrália, de cultura social pouco desenvolvida, vivem em
pequenas bandas de caçadores coletores, relativamente muito unidas. Ademais,
todos eles se dividem em cinco gentes ou associações totêmicas, de modo que, em
cada banda, se encontram membros de diversas gentes, e cada gente se estende
sobre várias bandas. Dentro da banda, os membros do clã totêmico não formam uma
união rígida. Seu vínculo perpassa igualmente todas essas divisões, constituindo
todos juntos uma grande família. Quando, numa batalha entre duas bandas, os
membros do mesmo clã totêmico se encontram, eles se evitam reciprocamente e
procuram outro adversário (o mesmo se refere, também, dos habitantes das ilhas
Mortlack). As relações sexuais entre homens e mulheres se conformam
simplesmente aos vínculos de pertença à mesma gente, ainda que os parceiros
nunca se tenham encontrado antes, por pertencerem a bandas diferentes. Para estes
entes de parcos recursos, incapazes de um modo de associação verdadeiramente
racional, pertencer a dois grupos, rigorosamente separados de modo horizontal e
vertical, significa com certeza um enriquecimento de seu sentimento de vida, tensão
e duplicação da existência que de outro modo não poderiam viabilizar.
Outro cruzamento de forma igual, mas de conteúdo e efeitos muito diversos,
ocorre na vida familiar das sociedades complexas, em virtude da pertença a um
442 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mesmo gênero. Quando, por exemplo, a mãe do marido intervém numa briga
conjugal, seus instintos – na medida em que agem a priori, e independentemente dos
aspectos específicos de cada caso – tenderão a defender as razões do filho, que é
do seu sangue e, outras vezes, mais para a nora, que é de seu gênero. A comunidade
de gênero figura entre os motivos de associação que perpassam constantemente a
vida sociológica e se entrecruzam com todos os demais, das mais variadas maneiras
e com diversos alcances. Em geral, funcionará como uma causa orgânica, natural,
em face da qual a maioria das outras terá algo de natureza individual, voluntária e
consciente. Todavia, no caso mencionado, talvez se possa ter o sentimento de que a
relação entre mãe e filho é determinada e age naturalmente, ao passo que a
solidariedade entre duas mulheres é uma coisa à parte, refletida, mais importante
como conceito universal do que como energia imediata. A comunidade de gênero
constitui muitas vezes um tipo especial de motivo de associação: em sua realidade
concreta, ela é absolutamente primária, fundamental, oposta a todo arbítrio. Para
tornar-se ativa, entretanto, precisa amiúde de mediação, de reflexões e atividades
conscientes, a tal ponto que outra motivação objetivamente mais tardia e fortuita,
pode funcionar ante a comunidade de gênero como primária e necessária
– confirmando mais uma vez o ditado segundo o qual “o último pros hemas (para
nós), é o primeiro phusei (por natureza)”3.
No que diz respeito a essa posição intermédia entre o caráter orgânico e o
racional, o motivo sociológico da comunidade com afinidade por idade se assemelha
formalmente à comunidade de gênero, podendo inclusive constituir, em
circunstâncias pouco complexas, um princípio que sirva de base à divisão do grupo
por inteiro. Assim, em Esparta, por volta do ano 220 a.C., os partidos políticos se
designavam com os nomes de presbíteroi (anciões), néoi (jovens), neanískoi (moços
– na flor da idade), etc. Em alguns povos da natureza os homens se organizam em
classes de idade. E cada uma delas se atribui uma posição social diversa, assim
como distintas funções e maneiras de viver. Tal motivo de associação é
absolutamente pessoal e, ao mesmo tempo, cabalmente supraindividual,
Aparentemente, a associação só é possível dessa forma supraindividual onde a

3
Por razões tipográficas optamos por transliterar em caracteres latinos as palavras gregas escritas
em itálico neste e no parágrafo seguinte, e que figuram em caracteres gregos no original do autor. (NT)
Georg Simmel | 443

cultura não possui ainda nenhum patrimônio intelectual objetivo e suficientemente


extenso. Isso porque, essa espécie de acervo favorece o desenvolvimento das
diversidades individuais do intelecto, as tendências espirituais e a assunção de
posições em função das ideias, o que, no seu conjunto, permite que indivíduos de
classes de idade absolutamente diferentes possam sentir-se em comunidade. Tal
ausência de conteúdo intelectual apropriado é uma das razões pelas quais a
juventude é bastante solidária, a mocidade se sente muito mais atraída pela gente
jovem – amiúde com surpreendente indiferença a respeito da individualidade – do
que os idosos por pessoas de sua idade. A divisão em classes de idade reúne – ainda
que de maneira extremamente imperfeita – personalismo e objetividade como
motivos de associação. Neste caso, os elementos opostos cuja diferença é
geralmente acentuada, a saber, o orgânico e o racional, se combinam. Um fato
absolutamente orgânico e até fisiológico da vida individual se transforma em um
meio de associação, graças a uma energia puramente conceitual e em virtude de uma
síntese deliberada e consciente: a determinação puramente natural e pessoal da
idade age assim como um princípio plenamente objetivo. É compreensível que em
estágios pouco desenvolvidos, limitados por valores morais, intelectuais e
psicológicos, este ponto de apoio firme adquira grande importância para a estrutura
social – pois como escapa a todo arbítrio caprichoso, seu conteúdo é imediatamente
percebido sem necessitar de raciocínio ou análise e determina o sentimento da vida.
Vimos acima um dos exemplos mais simples da maneira com que um círculo
constituído em função de pontos de vista objetivos pode erigir-se por cima de um
círculo orgânico imediato. Referimo-nos ao caso em que a coesão primitiva do grupo
familiar se altera porque a individualidade de um (ou vários) de seus membros
ingressa em um círculo maior. Um dos modelos mais desenvolvidos deste processo
é o da “república dos sábios”, associação meio ideal, meio real, de todas as
personalidades que compartilham, em geral, o objetivo de alcançar um fim tão
universal como o conhecimento, e que pertencem aos mais diversos grupos
referentes à nacionalidade, aos interesses pessoais e gerais, à posição social, etc.
Foi na época da Renascença que apareceu, muito mais forte do que em nossos dias,
esse interesse espiritual e cultural que conseguiu unir numa comunidade nova os
mais heterogêneos elementos, pertencentes a diferentes círculos, mas aparentados
444 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

por um mesmo ideal. O interesse humanista quebrou o isolamento medieval dos


círculos e das classes sociais e deu a pessoas que procediam dos horizontes mais
díspares, e que frequentemente permaneciam fiéis às mais variadas profissões, uma
participação comum, ativa ou passiva, na produção de ideias e conhecimentos,
cruzando de diferentes maneiras as formas e as divisões da vida que vigoravam até
então. Foi justamente o fato de o humanismo entrar nesta época em todos os povos
e círculos como algo que lhes era igualmente estranho, que o habilitou a converter-
se também em um campo comum a todos, ou melhor, a elementos procedentes de
todas as esferas. Reinava a ideia de que existia uma comunidade entre as pessoas
que se distinguiam por seu brilhantismo ou qualidades dignas de louvor, como o
4
demonstram as coletâneas de biografias que aparecem no Quattrocento ,
descrevendo em uma obra unitária Indivíduos eminentes enquanto tais, quem quer
que eles fossem: teólogos, artistas, filólogos ou homens de estado. È característico
que os homens políticos, precisamente, reconhecessem esse fundamento de uma
nova hierarquia, de uma nova análise e síntese dos círculos, por assim dizer. Roberto
de Nápoles 5 se torna amigo íntimo de Petrarca 6 e presenteia-o com seu próprio
manto de púrpura. Duzentos anos mais tarde, este motivo sociológico tinha perdido
sua forma lírica e adquirido uma feição mais objetiva e rigorosamente definida: o rei
da França Francisco I quis transformar o círculo consagrado aos estudos puramente
especulativos em um círculo totalmente autônomo e Independente, mesmo
relativamente às universidades. Ao lado destas, que estavam destinadas à formação
de teólogos e juristas, devia existir uma espécie de academia, cujos membros se
consagrariam à pesquisa e ao ensino sem nenhum fim prático 7. Foi na sequência
dessa separação que se estabelecera o diálogo entre o estritamente intelectual, por

4
A expressão Quattrocento refere-se aos eventos culturais e artísticos do século XV na Itália
analisados em conjunto. Engloba tanto o final da Idade Média quanto o começo da Renascença. (NT)
5
Roberto I de Nápoles, cognominado O Sábio (1278 -1343), foi um nobre napolitano da Casa capetiana
de Anjú, Rei de Nápoles, Duque da Calábria, rei titular de Jerusalém, e conde da Provença e Forcalquier.
(NT)
6
Francisco Petrarca (1304 – 1374) foi um intelectual, poeta e humanista italiano, famoso,
principalmente, devido ao seu romanceiro, sendo considerado o inventor do soneto. Baseado no
trabalho de Petrarca (e também nos de Dante e Boccaccio) Pietro Bembo criou, no século XVI, o
modelo para o italiano moderno. (NT)
7
Trata-se do Colégio de França,. Este estabelecimento de ensino superior foi fundado, como dito, por
Francisco I em 1530, para atender a um pedido do erudito Guilherme Budé. Originariamente
denominado Colégio Real, teve diferentes designações (Colégio das Três Línguas, Colégio Nacional e
Colégio Imperial), antes de receber seu nome atual em 1870. Com sede em Paris, a instituição segue
Georg Simmel | 445

uma parte, e todo o resto que pudesse ter algum valor. Essa separação permitiu que
o Senado de Veneza escrevesse à Cúria romana, quando extraditou a Giordano
Bruno8, que este era “um dos mais perigosos hereges”, que tinha feito “as coisas mais
repreensíveis e levado uma vida devassa e quase diabólica”, mas que, “de resto, é um
dos espíritos mais distintos que se possa imaginar, dono de uma sabedoria maior e
de uma infrequente abertura de espírito”. O humor vagabundo, assim como o espírito
aventureiro dos humanistas, e até mesmo seu caráter às vezes volúvel e imprevisível,
correspondia à independência do espiritual a respeito de todas as demais exigências
impostas aos homens – autonomia que era o âmago da vida dos humanistas e os
fez indiferentes às necessidades. Evoluindo na paisagem variegada das diversas
formas de vida, cada um dos humanistas reproduzia a condição do humanismo, que
abrangia em um único quadro de interesse intelectual o pobre monge erudito e o
grande capitão ou a magnificente princesa. O que abriu caminho para a ocorrência
de um fato extremamente importante para determinar com precisão e exatidão a
estrutura da sociedade: a possibilidade de utilizar o critério da intelectualidade como
princípio para a diferenciação e formação de círculos novos – algo do qual já tinha
havido exemplos na Antiguidade. Até então esses critérios tinham sido ou voluntários
(econômicos, militares, políticos) ou afetivos (religiosos) ou produto de uma mistura
de ambos (familiares). O fato de que a intelectualidade, o gosto ou interesse
pronunciado pelo conhecimento, constitua círculos cujos membros procedem de um
grande número de círculos já existentes é uma espécie de intensificação do
fenômeno acima indicado, no sentido de que os agrupamentos relativamente tardios
(criados com frequência a partir de uma reflexão consciente e uma finalidade
razoável) têm caráter racional. Essa natureza formal das formações secundárias se
exprime do modo mais claro e decidido na constituição de círculos centrados em
interesses intelectuais.
Ora, o número dos diversos círculos aos quais o indivíduo pertence é um dos
melhores indicadores para medir sua cultura. O homem moderno pertence

sem confundir-se com as universidades ou outros centros de pesquisa, pois ainda que ofereça
dezenas de cursos e seminários, são todos de livre frequência e sem direito a diplomas oficiais. (NT)
8
Giordano Bruno (1548 – 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana, acusado de heresia e de defender erros
teológicos. (NT)
446 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

primeiramente à família de seus pais, depois àquela que ele próprio tundou e, por
conseguinte, à de seu cônjuge, e por fim a sua profissão, que o vinculará a diversos
círculos de interesse (em toda profissão organizada em superiores e subordinados,
cada um pertencerá ao círculo de sua loja, de seu departamento ou de seu escritório
particular, que em cada caso reunirá os níveis superiores e inferiores, mas ele
também pertencerá ao círculo constituído pelos de sua mesma categoria dentro de
cada loja, etc.). O indivíduo é consciente de sua nacionalidade e de pertencer a
determinada classe social. Além disso, pode ser oficial da reserva, fazer parte de
algumas associações e ter um estilo de vida e formas de relacionamento que o
ponham em contato com diversos círculos. Tudo isso supõe grande quantidade de
grupos. Alguns deles estão no mesmo pé de igualdade, mas outros podem ser
ordenados de forma tal que um deles apareça como a relação original que leva o
indivíduo a relacionar-se ou pertencer a um círculo mais longínquo, em razão de suas
características particulares que o diferenciam de outros membros do primeiro
círculo. Isso não impede que a conexão com o círculo de origem continue subsistindo
– tal como acontece com um indivíduo que faz parte de um grupo complexo que, pelo
fato de ingressar depois, psicologicamente, em outras associações mais objetivas,
não perde os laços que o ligam ao complexo do qual participa no espaço e no tempo.
Na Idade Média, o indivíduo podia pertencer a círculos típicos de valor menos
singular que o correspondente a seu estatuto de natural ou habitante livre de um
burgo. A Liga Hanseática 9 vinculava várias cidades entre si, fazendo o indivíduo
entrar em um círculo de ação que não só ultrapassava os limites de cada burgo, mas
as fronteiras do próprio Império. As corporações profissionais, por sua vez, não se
preocupavam com a alçada jurídica das cidades, mas integravam o indivíduo em
associações que iam além das demarcações urbanas e se estendiam por toda a
Alemanha. E da mesma maneira que o vínculo corporativo deixava para trás as
fronteiras da cidade, o liame da camaradagem dos artesãos transpunha os limites da
guilda.

9
A Liga Hanseática foi uma aliança de cidades mercantis alemãs ou de influência germânica que
estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e o Báltico entre
os séculos XII e XVII. Abrangeu cerca de cem cidades, com Lubeque como centro. Ainda que de início
tivesse caráter essencialmente econômico, desdobrou-se posteriormente numa duradoura aliança
política. (NT)
Georg Simmel | 447

Uma das peculiaridades destas últimas configurações consistia em não incluir


o indivíduo como organismo único, distinguível dos demais elementos de um círculo,
mas como membro e de inseri-lo enquanto tal em outros círculos. É verdade que as
associações de grau superior, que congregam outras associações, também oferecem
ao indivíduo um grande número de círculos. No entanto, como esses círculos não se
entrecruzam necessariamente, eles mantêm uma relação peculiar com o problema
da individualidade, diferente de outros conjuntos sociológicos que ainda
estudaremos. As associações medievais se guiavam pela ideia – mesmo que na
prática se distanciassem frequentemente dessa noção – de que só os iguais podiam
unir-se. Tal convicção estava em compreensível conexão com a plenitude com que o
homem dessa época consagrava sua vida a sua corporação. Por essa razão,
primeiramente, cidades uniram-se com cidades, mosteiros com mosteiros, e guildas
com guildas, num modo tal que guardassem natureza semelhante. Tratava-se de
uma ampliação do princípio igualitário, pois – mesmo no caso de que os membros
de uma corporação fossem muito diferentes dos que pertenciam à outra – todos os
integrantes da guilda, enquanto membros da corporação eram iguais entre si, e a
aliança se baseava nessa igualdade e não nas possíveis diferenças individuais.
Todavia, ainda que esse entendimento ampliasse de fato o número das alianças entre
associações de diferentes tipos (permitindo que a qualidade das associações
servisse como identificador de igualdade entre elas e criasse fatores reais de poder
dentro da nova organização), o indivíduo enquanto tal ficava de fora dessa
associação mais ampla, uma vez que pertencer a ela não lhe trazia vantagem para
nenhum fator de individualização pessoal. Em qualquer caso, essa associação de
grau superior, como adiante se esclarecerá, foi a forma de transição entre a
associação medieval em sentido estrito – manifesta essencialmente nas antigas
guildas e nas primeiras corporações de artesãos medievais que, em virtude de sua
natureza, não permitiam que os indivíduos formassem parte de outros círculos – e
as associações modernas que reconhecem a liberdade de os indivíduos pertencerem
ao número de círculos que bem entendam.
Ora, daqui resultam múltiplas consequências. Os grupos aos quais o indivíduo
pertence formam uma espécie de sistema de coordenadas. Cada novo grupo
determina o individuo de um modo mais preciso e inequívoco. A pertença a cada um
448 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

deles deixa ainda uma margem de ação relativamente ampla. Porém, quanto maior o
número de grupos, menor é a probabilidade de que existam outras pessoas com a
mesma combinação de grupos, assim como é menor a probabilidade de que os
numerosos círculos se cruzem novamente em outro ponto. Assim como o objeto
concreto perde sua individualidade quando graças s uma de suas qualidades fica
subsumido a um conceito geral, mas torna a recobrar os atributos que constituem
sua unicidade à medida que surgem outros conceitos gerais nos quais suas restantes
qualidades podem ser subsumidas (para usar termos platônicos, cada coisa participa
em tantas ideias como qualidades possui, obtendo sua determinação individual), o
mesmo sucede com a pessoa em face dos diversos círculos a que pertence.
Foi dito que o objeto substancial que temos perante nós é a síntese das
impressões sensíveis que nos produz, de modo que seu ser é tanto mais firme quanto
maior seja o número de impressões qualitativas que determine sua existência. Da
mesma maneira, é a partir dos diversos elementos da vida que todos nós ficamos
socialmente misturados, por constituirmos o que chamamos de subjetividade por
excelência, ou a personalidade, capaz de combinar de modo individual e próprio os
elementos da cultura. Uma vez que a síntese do subjetivo produz o objetivo, a síntese
do objetivo engendra, por sua vez, uma subjetividade nova e mais elevada. De igual
modo, a pessoa se abandona ao círculo social e submerge nele para voltar a
recuperar sua singularidade pelo cruzamento de círculos sociais em seu interior. De
resto, sua determinação final se converte, assim, em uma espécie de contrapartida
de sua determinação causal. Considerando sua origem, nós a explicamos como o
ponto de cruzamento de inumeráveis fios sociais. A pessoa configura-se como o
resultado da herança dos mais diversos círculos e períodos de adaptação, da mesma
maneira que interpretamos sua individualidade como a singularidade das
quantidades e as combinações de elementos da espécie. Mas, se passamos a
considerá-la novamente junto com a pluralidade de seus instintos e interesses nas
organizações sociais, podemos dizer que a pessoa constitui um reflexo que restitui o
que recebe, de forma análoga, porém mais consciente e elevada.
A personalidade moral adquire novas determinações, e é confrontada com
problemas imprevistos ao deixar de enraizar-se firmemente em um único círculo,
para situar-se na interseção de muitos outros. À sua antiga posição, certa e sem
Georg Simmel | 449

ambiguidades, sucede uma vacilação entre as diversas tendências da vida. É nesse


sentido que um antigo provérbio inglês afirma: ”quem quer que fale duas línguas é
um trapaceiro” 10. Pertencer a vários círculos sociais provoca conflitos, externos e
internos, capaz de ameaçarem o indivíduo com um dualismo espiritual, e até provocar
íntimas dilacerações. Mas nada prova que essa pertença a vários círculos deixe de
ter efeitos que fortaleçam e estabilizem a unidade pessoal. É que aquele dualismo e
esta unidade se apoiam mutuamente. Precisamente porque a pessoa é uma unidade,
subsiste o risco de sua fragmentação. Quanto mais variados forem os círculos de
interesses que confluem em nós, mais consciência teremos da unidade do eu. O
casamento traz pertença a várias famílias para cada um dos cônjuges e tem sido
desde sempre causa do enriquecimento e ampliação dos interesses e das relações.
Isso não significa que deixe de originar conflitos que obrigam o indivíduo a assumir
compromissos internos e externos e a defender enérgica e simultaneamente sua
personalidade. Nas constituições gentílicas arcaicas, o cruzamento dos círculos no
indivíduo se manifesta frequentemente de maneira tal que a pessoa pertence à
linhagem ou grupo totêmico de sua mãe, mas em compensação, faz parte da mais
estreita associação familiar ou local do pai. Todavia, esses homens simples, ainda
sem consciência clara de sua personalidade, não estão preparados para enfrentar
conflitos como os acima indicados. Por esta razão e de maneira singularmente
adequada, esses dois tipos de associação são amiúde de natureza tão diferente que
não há concorrência entre eles. O parentesco materno tem uma natureza
predominantemente ideal, espiritual, enquanto que o paterno possui um caráter
concreto, mais material, e age imediatamente. Para os aborígenes australianos, entre
os hereros 11 , e para numerosos povos da natureza constituídos por caçadores
coletores, o clã materno, neste caso o grupo totêmico, não representa uma
comunidade de vida. Não age na vida diária, mas só nas circunstâncias mais
importantes e solenes, por exemplo, no casamento e nos funerais, ou por ocasião das
vinganças de sangue – que têm na vida destes povos um caráter ideal e abstrato, por

10
Ideia que o filósofo Franz Rosenzweig faz sua quando diz que “traduzir significa servir dois senhores
ao mesmo tempo”. (NT)
11
Povo banto pastoril, habitante da colônia do Sudoeste Africano alemão, hoje Namíbia. Quase setenta
por cento de seus indivíduos foram exterminados entre 1904 e 1907 vítimas do que é considerado
como o primeiro genocídio do século XX. (NT)
450 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

assim dizer. O vínculo totêmico (matrilinear e presente em numerosas tribos e


bandas) se manifesta frequentemente a través de simples tabus alimentícios ou
cerimônias comuns, e especialmente pela utilização de nomes e de emblemas
particulares. As tribos de linhagem agnatícia, que se fundamentam na descendência
paterna e nas quais se desenvolve a vida quotidiana concreta, a guerra, as alianças,
a herança, a caça, etc., não têm esses símbolos. Essas tribos não precisam de
símbolos porque sua coesão local e a fusão de seus interesses imediatos mantêm a
consciência da pertença comum. Nesse estágio cultural, toda associação não local
costuma ter um caráter ideal, enquanto, nos níveis superiores de desenvolvimento,
uma comunidade pode ser supralocal e, contudo, plenamente realista e concreta. No
entanto, nos círculos menos desenvolvidos, em cuja interseção se encontram os
indivíduos, a associação local patrilinear e o vínculo gentílico matrilinear devem
distinguir-se um do outro, do mesmo modo que os valores sociais concretos devem
distingui-se dos abstratos, para oferecer a possibilidade de reuni-los numa mesma
pessoa à mentalidade pré-lógica.
Os fenômenos de cruzamento de círculos que se têm manifestado com o
nascimento do sacerdócio católico foram muito peculiares, tanto por sua natureza
como por seus efeitos. Nenhuma classe estava excluída da ordem sacerdotal e do
estado monástico, razão pela qual o poder do clero atraía os elementos sociais
superiores e os inferiores. Acerca da Inglaterra medieval observou-se que, apesar de
o ódio entre as categorias sociais ser forte e de os clérigos constituírem um
estamento muito poderoso e fechado sobre si mesmo, o sentimento de ódio no
estava presente, pois seus membros provinham de todos os grupos sociais, e cada
família tinha um padre entre os seus. O reverso desse fenômeno foi a propriedade
fundiária eclesiástica se espalhar por toda parte. Isso contrastava com a variedade
de títulos de propriedade da Idade Média. Em cada província e quase em cada
comuna havia um imóvel da Igreja, do que resultou, por conseguinte, uma unidade
interlocal do clero equivalente. Sem dúvida, essa representação estruturava o
fundamento da situação material da Igreja. Eis o mais gigantesco exemplo da
formação de um círculo que cruza todos os demais, mas que ao mesmo tempo se
caracteriza pela ausência completa de cruzamentos entre seus indivíduos. Se o
sacerdócio podia relacionar-se à extensão e à liberdade para considerações
Georg Simmel | 451

particulares com as outras camadas da sociedade, era precisamente porque


separava o indivíduo por completo de sua categoria social de origem. O sacerdote
era impedido de conservar qualquer característica ou especificidade (nem sequer seu
nome) capaz de limitar a extensão ou concorrer com o compromisso de sua pessoa
com o novo círculo. Isso não ocorria sem uma consequência que confirma a contrario
sensu nosso raciocínio: o sacerdote não podia ter nenhuma individualidade no
sentido habitual, nenhuma determinação diferencial, porque para ser um sacerdote
completo (perfeito), tinha que ser completamente (inteiramente) sacerdote.
Consequentemente, nesse caso, a interseção dos círculos não age sobre o indivíduo,
mas sobre o estamento em sua totalidade, sobre um grupo no qual se encontram
membros de todas as categorias sociais e de todos os círculos. A determinação
sociológica positiva (que confere aqui a constituição de uma entidade social superior
a partir do cruzamento dos círculos) se produzia porque nela nenhum de seus
indivíduos estava numa posição diferente a respeito de um círculo relativamente aos
outros.
Entre os meios empregados pelo catolicismo para manter ao sacerdote fora
da interseção dos círculos, o mais radical é o celibato. O casamento representa um
vínculo social de uma firmeza tão constritiva que, frequentemente, o indivíduo
acolhido em outro círculo já não pode alcançar livremente a posição que lhe atribuiria
normalmente o interesse de um segundo círculo. Não é de estranhar, assim, que o
mais humilde sacerdote católico romano ocupe em seu povoado uma posição em
certa maneira abstrata, isolada, sem comunidade de vida com o meio que o rodeia.
Em compensação, o baixo clero russo, cujas funções exigem que viva no meio do
povo, pode casar-se, ao passo que o alto clero, que ocupa cargos diretivos, deve ser
celibatário. Os popes russos, porém, não constituem um estado de transição para os
pastores protestantes que, por princípio, vivem completamente submersos na vida
dos laicos. O casamento do pope é quase exclusivamente endogâmico, pois que
raramente um sacerdote ortodoxo russo se casa com uma mulher que não seja filha
de outro colega. O casamento tem para as demais relações sociológicas do cônjuge
consequências tão consideráveis que as associações podem distinguir-se segundo
a importância que o matrimônio de seus membros possa ter para elas. Na Idade
Média e mesmo depois, os oficiais artesãos estavam a olhar de forma negativa para
452 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o casamento dos outros companheiros – ao ponto de que em certas corporações o


ingresso de oficiais casados era difícil. Com efeito, o conúbio limitava a capacidade
de viajar dos oficiais, necessária para manter viva a unidade e os laços de
companheirismo entre eles, mas também para facilitar o deslocamento de sua massa
em função das possibilidades de trabalho. O casamento dos oficiais era considerado
como contrário à uniformidade de seus interesses, pois na opinião da maioria os
privava de independência em face dos mestres e debilitava a solidariedade do
conjunto – que percebia claramente que a consequência inevitável do cruzamento
dos vínculos (em virtude da estrutura singular do casamento e da família) era subtrair
bastante ao indivíduo do convívio cordial e prestimoso próprio dos companheiros de
guilda.
Compreende-se facilmente que, pela mesma razão, o estado de solteiro tenha
sido considerado o desejável para os soldados, em lugares onde existe uma “classe
militar” significativamente diferenciada. Tal como no caso do clero russo, autorizou-
se o casamento ou o concubinato dos soldados nos regimentos macedônios dos
Ptolemeus e mais tarde no Império romano, mas então os frutos dessas uniões
reforçavam as tropas. Unicamente o profundo enraizamento do exército moderno na
vida orgânica do povo permitiu eximir os oficiais da sua obrigação de manterem-se
celibatários. De resto, é evidente que os mesmos efeitos sociológicos formais podem
também apresentar-se em outras circunstâncias, ainda que essas condições não
sejam tão marcantes e fundamentais como o casamento. Assim, as universidades
medievais se recusavam a aceitar estudantes autóctones. Algumas chegavam a
excluir àqueles membros convertidos em cidadãos da cidade que lhes servia de sede,
como acontecia em Bolonha depois de dez anos de residência, Da mesma maneira,
a Liga Hanseática dos comerciantes alemães de Flandres afastava todo membro de
cidadania flamenga. Quando os círculos ficam muito distantes uns dos outros, por
seu significado e pelo que exigem do indivíduo, não se produz cruzamento ou, ao
menos, ele é indesejável – já que quando um círculo pretende incorporar sem
reservas a seus membros depara-se com uma contradição formal. Referimos-nos à
diferenciação individual que a pessoa adquire pelo fato de pertencer a outros círculos,
sem falar dos ciúmes, mais relacionados com o conteúdo.
Georg Simmel | 453

Ora, a determinação sociológica do indivíduo será tanto maior quanto mais


contíguos (e não concêntricos) sejam os círculos determinantes. Quer dizer que os
círculos que se estreitam lentamente, como a nação, a condição social, a profissão e
as categorias particulares dela, não atribuirão à pessoa uma posição individual
especial, porque o mais estreito de todos estes círculos significa por si só que ela
pertence também aos demais círculos. Todavia, esses círculos encaixados, se assim
se pode dizer, uns dentro dos outros, nem sempre determinam seus indivíduos de um
modo unitário, pois sua relação concêntrica pode ser puramente mecânica, em vez
de orgânica. Diante disso (e apesar desta relação) tais círculos também podem agir
sobre os indivíduos como se fossem independentes e contíguos. Isso se
manifestava, por exemplo, no antigo direito germânico, quando o culpado de um
delito recebia um duplo castigo: pelo círculo mais estreito ao qual pertencia, e pelo
círculo mais amplo que incluía o precedente. Em Frankfurt, no final da Idade Média,
quando o membro de uma guilda não cumpria com suas obrigações militares, ele era
punido pelos dirigentes da corporação, e pelo conselho da cidade – assim como no
caso de injúrias o ofendido podia recorrer aos tribunais, mesmo depois de ter obtido
satisfação junto da corporação. Contrariamente, nas organizações corporativas mais
antigas, a guilda se reservava o direito de punir um malfeitor ainda que os tribunais
já o tivessem condenado. Este bis in idem12 demonstrava muito claramente que os
dois círculos, que em certo sentido rodeavam concentricamente o interessado, em
outro sentido cortavam-se também nele. Nesta lógica, a pertença ao círculo mais
estreito estava longe de supor tudo o que significa ser abrangido pelo mais amplo
– como no exemplo acima, no qual a pertença a uma categoria particular dentro de
um vasto círculo profissional geral pressupõe já todas as determinações que
correspondem a este último.
O seguinte tipo formal oferece-nos uma relação positivamente antagônica
entre o círculo mais estreito e o círculo mais amplo, em sua significação particular
para a situação do indivíduo – sem contar os numerosos casos do habitual conflito
entre o todo e a parte. Quando um grupo maior A se compõe dos grupos menores m
e n, pode acontecer que as condições essenciais da existência sejam, para A,

12
O bis in idem é um fenômeno do direito que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre o
mesmo fato (in idem). (NT)
454 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

idênticas às de m, enquanto n se encontre justamente em oposição com m. Tal era a


13
relação existente entre os cives ou burguenses livres e os ministeriales 14
episcopais, que no início da Idade Média constituíam a maioria da população urbana
do Sacro Imperio. De fato, ambos formavam parte, em conjunto, da cidade em sentido
amplo. Mas, em sentido estrito, só os primeiros eram os homens “da cidade”. Os
homens do bispo tinham então uma posição ambivalente, pois ainda que fossem
habitantes da cidade, seus interesses e seu direito se estendiam a outro círculo
completamente distinto: eles eram parte do burgo e, simultaneamente, o contrário
dos burgueses. Paradoxalmente, sua condição de homens do bispo, que lhes impedia
de fazer parte da cidade, era a que, em cada caso particular, os convertia em
membros dessa determinada cidade. Se considerarmos ora os burgueses “genuínos”
distribuídos em corporações, veremos que cada um destes indivíduos se encontrava
abrangido unitariamente pelo círculo corporativo estreito e, ao mesmo tempo, pelo
mais amplo círculo da cidade. Em compensação, o círculo dos ministeriales
episcopais, ainda que se encontrasse também cingido pelo círculo da cidade, se veia
separado dela precisamente por esse círculo. Esta situação era tão contraditória que
os ministeriales do bispo acabaram finalmente incorporando-se à comunidade
burguesa propriamente dita, ou bem se apartaram do círculo da cidade.
Apesar da rigidez e das dificuldades da posição do indivíduo que pertence a
círculos concêntricos, esta é uma das primeiras e mais evidentes formas para o
indivíduo (que começa sua vida social fundido em um único círculo) participar de
vários. A originalidade do sistema associativo medieval em relação ao sistema
moderno é sublinhada com frequência. O sistema medieval atingia ao homem por
inteiro. Não se limitava apenas a fins circunstanciais, objetivamente circunscritos,
mas resultava em comunidades que abrangiam as diversas facetas da personalidade

13
Estes termos designam, em realidade, uma parte da massa dos servidores cuja condição social
melhorou consideravelmente na vaga das transformações econômicas que conheceu Ocidente
durante os séculos XI e XII, a saber, os representantes da burguesia urbana nascente. (NT)
14
Termo latino pós-clássico usado na Idade Média principalmente no território do Sacro Império para
designar agentes ou servidores especiais. Originariamente, se tratava de servos que tinham
capacidades administrativas superiores e que foram empregados por seus senhores para
desempenhar uma série de funções nas cortes, nas milícias, nos feudos e territórios e na
administração pública. Com o passar do tempo a classe foi regulamentada, aumentando seu prestígio,
vindo a constituir um estrato social de grande relevo, assumindo os cargos administrativos mais
elevados como senescal, mordomo, camareiro, castelão, juiz, burgomestre e marechal. (NT)
Georg Simmel | 455

de todos aqueles reunidos para determinado fim. Todavia, se o desejo de permanecer


juntos e associados se seguia manifestando, ele era satisfeito pela reunião dessas
corporações em uma corporação de ordem superior. Até a invenção da associação
para fins determinados (que permitiu colaborar com outros mediante contribuições
puramente objetivas para fins puramente objetivos, limitando a esses fins a
participação da própria individualidade), aquela forma medieval que hoje nos parece
muito simples foi em realidade o meio sociológico genial para os indivíduos
formarem uma pluralidade de círculos, sem perder a pertença local ao círculo
originário. É verdade que o indivíduo tinha uma possibilidade de enriquecer-se como
ente social bastante mais limitada que a oferecida pela associação para fins
determinados. Contudo, ela era suficiente, pois aquilo que a corporação de ordem
superior oferecia ao indivíduo não estava incluído na corporação mais estreita
– como ocorre, por exemplo, com o conceito de “árvore”, do qual o carvalho faz parte,
e que já contém todas as determinações do conceito de “planta”, que por sua parte
compreende o de “árvore”. Se ainda não conseguimos mais do que essa comparação
pode indicar, podemos demonstrar que a subsunção no conceito de “planta” tem para
o carvalho um significado que não possui a subsunção no de “árvore”. Com efeito,
mesmo que o conceito de “árvore” pressuponha as determinações da planta,
subsumir o carvalho no conceito de “planta” significa atribuir também a ele o
conteúdo conceitual próprio dos organismos pertencentes ao reino respectivo, sem,
entretanto, ser uma árvore. A construção concêntrica de círculos é, por conseguinte,
a etapa intermediária sistemática, e em muitos aspectos também histórica, para
chegar à situação em que os diversos círculos em contiguidade, se cortam em uma
única e mesma pessoa.
No que tange às consequências pessoais, há uma enorme diferença entre a
forma concêntrica e a forma que resulta quando alguém, por exemplo, além de sua
posição profissional, pertence a uma associação científica, faz parte do conselho de
administração de uma sociedade por ações, e exerce funções a título voluntário em
sua cidade. Quanto menos relação tenha a pertença a um círculo com a adesão a
outro, tanto mais característico será para a determinação da pessoa o fato de
encontrar-se na interseção de ambos. Na medida em que se fala aqui da participação
em cargos e instituições, será, naturalmente, a amplidão da divisão do trabalho a que
456 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

determinará se a reunião de numerosas funções em uma pessoa põe de ressalto nela


uma combinação característica de aptidões, uma particular extensão da atividade.
Assim, a estrutura das entidades sociais objetivas proporciona a maior ou menor
possibilidade de constituir ou expressar o caráter único e singular do sujeito. Na
Inglaterra, por exemplo, foi costume por um longo tempo que um grande número de
autoridades completamente distintas estivesse a cargo dos mesmos indivíduos. Já
na Idade Média uma mesma e única pessoa podia ser justice in Eyre15 tanto quanto
juiz itinerante, baron of the Exchequer16, como membro do colégio do Tesoro, e justice
in Banco17, como membro da mais Alta Corte de justiça. Evidentemente, quando o
mesmo círculo de pessoas se reúne para formar tão diversos colégios, a síntese daí
resultante não proporciona a aquisição de uma particular característica pelos
sujeitos. Pois. em tais circunstâncias, os conteúdos objetivos das funções não
podem ainda estar suficientemente diferenciados para que sua reunião em uma
18
única pessoa seja a ratio essendi ou cognoscendi de uma determinação
exclusivamente individual.
Por outro lado, e com independência dos conteúdos destes colégios, podemos
ver que o simples fato de que o indivíduo acrescente novas associações a um vínculo
único (que, até então, determinava-o unilateralmente), basta para lhe dar uma
consciência mais clara de sua individualidade, ou quando menos para tornar as
antigas associações menos evidentes. É por isso que os representantes dos vínculos
preexistentes – e isto é igualmente relevante na outra parte destes estudos –
hostilizam o fato meramente formal de pretender estabelecer novos liames, mesmo
quando o conteúdo desses vínculos não lhes faça concorrência alguma. As
frequentes ordenanças imperiais dos séculos XII e XIII, que proibiam as

15
No antigo direito inglês, os justice in Eyre eram os mais altos magistrados encarregados de aplicar
a lei florestal medieval. A este título presidiam uma corte itinerante para punir os infratores dessa
normativa e investigar o estado dos bosques e o comportamento dos oficiais que deviam cuidar deles.
(NT)
16
Os barons of the Exchequer ou barones scaccarii, eram os juízes da corte inglesa conhecida como
Exchequer of Pleas (Tribunal do Tesouro). Constavam de um Chief Baron of the Exchequer (Barão
Chefe do Tesouro) e vários Barões de puisne (isto é, juniores). Juntos, julgavam como um tribunal de
common law e de equidade, resolvendo disputas tributárias. (NT)
17
Um tribunal se reúne in Banco quando um caso é ouvido perante todos os juízes dessa corte e não
por um painel de magistrados selecionados a partir deles. Assim ocorria durante a Idade Média na
mais alta jurisdição judicial da Inglaterra. (NT)
18
Razão de ser ou de saber. (NT)
Georg Simmel | 457

confederações entre cidades alemãs, provavelmente se propunham a lidar com os


verdadeiros perigos que as ameaçavam. Todavia, no Império franco, e também no
início do germânico, o enfrentamento da Coroa com a hierarquia das guildas tinha
algo de caráter mais abstrato e fundamental. Nesses casos, a liberdade de união, que
permite naturalmente uma multiplicação sem limites dos laços associativos,
significava estritamente competir com às poderosas corporações existentes, pois
pelo mero fato de pertencer a várias associações a pessoa adquiria uma posição
individual na qual os vínculos existiam em função das pessoas, enquanto nas antigas
sínteses – por assim dizer, autocráticas – eram as pessoas as que existiam em
função de seus vínculos.
O simples fato formal da associação múltipla confere à pessoa um estatuto
pessoal no qual o mesmo indivíduo pode ter simultaneamente posições relativas
completamente diferentes nos distintos círculos dos que faz parte – o que é muito
importante para os cruzamentos familiares, A desaparição da organização clânica
dos primitivos germanos, foi consideravelmente favorecida pelo reconhecimento dos
laços de parentesco femininos e até dos originados no casamento. Tornou-se
possível então pertencer ao mesmo tempo a diversos círculos de parentesco, mesmo
que os direitos e deveres que derivavam de cada um deles entrassem em tão ativa
concorrência que, doravante, as associações de parentesco deixassem de existir em
proveito dos meros parentes. Contudo, esse resultado não se teria produzido com a
mesma intensidade, e a situação não teria assumido as dimensões que adquiriu, se
o indivíduo tivesse ocupado a mesma posição em cada uma das séries de parentesco
ou linhagens. Frequentemente, porém, enquanto ele ocupava, em uma, uma posição
central, achava-se num ponto periférico em outra; se tinha um cargo de autoridade
numa série, em outra desempenhava tarefa subordinada; aqui ele tinha interesses
econômicos, e lá significação exclusivamente pessoal. E, como a estrutura destas
relações excluía a possibilidade de outro indivíduo ter exatamente a mesma posição
dentro da mesma série, resultava daí uma determinação da individualidade que teria
sido impossível em uma associação de parentesco limitada a uma única série ou
linhagem. Pois, ainda que, neste caso, a pessoa nascesse num determinado ponto,
como este ponto teria sido definido por uma única série, esta linhagem seria sempre
o importante. Ao contrário, naqueles cruzamentos de séries de parentesco antes
458 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mencionados, é o indivíduo quem pode determinar o contato de uma linhagem com


a outra.
Todavia, se deixamos de lado essas possibilidades de posição que aparecem
espontaneamente, por assim dizer, no âmbito das relações familiares, e ignoramos
igualmente suas combinações individuais, veremos que toda nova vinculação cria de
um modo mais ativo, sob o mesmo ponto de vista, certa desigualdade, uma
diferenciação entre dirigentes e dirigidos. Quando um interesse geral (como, por
exemplo, o interesse humanista acima referido) chegou a constituir um vínculo
comum entre pessoas socialmente superiores e inferiores, tendo criado entre elas
um laço que anulava as restantes diferenças, sugiram – dentro desta comunidade
nova e de acordo com as categorias que lhe eram próprias – outras diferenças entre
superiores e inferiores. Tais diferenças em nada correspondiam às hierarquias de
superioridade e inferioridade de seus círculos originais. No entanto, mesmo assim,
elas definiam assim a pessoa de maneira mais clara e em maior número de aspectos.
Ora, a igualdade que prevalece dentro de um círculo de recente criação pode produzir
o mesmo resultado final: por exemplo, quando seus membros ocupam e conservam
posições com graus de subordinação absolutamente diferentes dos estabelecidos
entre eles nos círculos aos que tinham pertencido até então. O fato de que um
membro que tinha uma posição inferior em seu círculo de origem obtenha logo o
mesmo nível de reconhecimento social que outro que ocupava uma posição elevada
naquele antigo círculo, representa para cada um deles uma formação sociológica
extremamente característica. Esse era, por exemplo, o efeito que a cavalaria medieval
produzia. Graças a ela, os ministeriales (servidores da corte) ingressavam num
estamento (ou corporação de classe) a que o príncipe e até o próprio imperador
pertenciam, o que os tornava iguais a todos seus membros nos assuntos
cavaleirescos. Isso dava ao ministerial uma posição que não tinha nenhuma relação
com suas obrigações de serviço e uns direitos que não emanavam de seu senhor. As
diferenças de berço entre o nobre, o homem livre e o vassalo não ficavam suprimidas,
mas elas eram cruzadas por uma linha nova que tinha em todas as partes um único
nível: a comunidade não concreta, mas idealmente eficaz, dos homens unidos pelo
mesmo direito e as mesmas práticas cavaleirescas. Essa síntese individualizava
àquele que, fora dos círculos onde era superior ou inferior, estava, ao mesmo tempo,
Georg Simmel | 459

integrado a um círculo no qual era simplesmente “igual”, conseguindo dessa maneira


que a estrutura dos círculos em que participava enriquecesse e determinasse seu
sentimento vital de ente social.
Na medida em que os níveis das posições que uma mesma e única pessoa
ocupa em diversos grupos são completamente independentes uns dos outros,
podem produzir-se combinações tão estranhas como as que fazem que (nos países
com serviço militar obrigatório) um homem que goze de uma posição intelectual e
social elevada tenha que submeter-se a um sargento; ou obedecer (como em Paris,
na corporação dos mendigos) às ordens de um “rei” eleito, que na sua origem tinha
sido e continuava sendo um miserável como os outros (se nossas informações são
exatas), mas que era objeto de honras e de privilégios verdadeiramente régios19 – na
que talvez seja a combinação mais extraordinária e individualizante de baixeza em
um círculo social e de dignidade em outro. Esse cruzamento pode verificar-se
inclusive dentro de uma mesma relação, quando ela compreende por sua vez uma
pluralidade de relações. Tal sucede, por exemplo, com os professores particulares, e
com os antigos aios, preceptores encarregados da educação doméstica das crianças
de famílias nobres ou ricas. O aio devia manter sua superioridade sobre seu discípulo,
tinha que dominá-lo e dirigi-lo, enquanto ele era, por outro lado, um servidor do aluno,
que não deixava de ser seu amo. Da mesma maneira, no exército de Cromwell um
cabo versado na Bíblia podia admoestar seu comandante, apesar de obedecer-lhe
totalmente e sem qualquer reserva em questões do serviço. Finalmente, a matéria
desses cruzamentos reaparece ainda com mais força no indivíduo em certos tipos
característicos, como o do aristocrata de ideias liberais, da pessoa que aprecia os
bens e prazeres deste mundo a despeito de suas marcadas tendências clericais; do
erudito, que adquiriu seu vasto conhecimento ou cultura por meio da leitura, mas
prefere frequentar homens práticos, etc.

19
Segundo as descrições de Henri Saval (advogado e historiador francês do século XVII), contidas na
sua Chronique escandaleuse de Paris ou Histoire des mauvais lieux (1883), e que provinham, em parte,
do Jargon ou langage de l’argot, (um livrinho popular que Olivier Chereau de Tours teria escrito por
volta de 1630), os mendigos de Paris estavam hierarquizados e perfeitamente organizados em uma
corporação, com “leis” e uma língua (o argot) próprias; tendo chegado a eleger um “rei” que recebia o
nome de “grande Coesre” ou “rei de Thunes”. (NT)

460 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Os cruzamentos de um único grupo têm seu mais típico exemplo na


concorrência entre pessoas que poderiam até ser solidárias. O comerciante constitui
com seus pares um círculo com grande número de interesses comuns: a legislação
político-econômica, o prestígio social da classe comercial, a representação da
categoria, o entendimento mútuo para manter certos preços, e muitos outros
assuntos que interessam aos que têm no comércio sua profissão habitual e fazem
sua classe aparecer como uma unidade perante os outros. No entanto, cada
comerciante também está em oposição e concorrência com os demais; o ingresso
na atividade supõe a união e o isolamento, uma posição simultânea de igualdade e
de singularidade que leva o comerciante a defender seus interesses ante a
concorrência exacerbada com alguns e aliar-se com aqueles que têm seus mesmos
interesses. A contradição interna se apresenta com maior radicalismo na esfera do
comércio, mas ocorre em todas as demais, inclusive na ínfima sociação de uma
reunião festiva. A pertença de um indivíduo a uma multiplicidade de círculos, nos
quais a proporção de concorrência e de aliança varia consideravelmente, abre-lhe um
leque infinito de possíveis combinações individualizantes. Até uma observação trivial
nos ensina que as necessidades instintivas do homem andam em duas direções
opostas: ele deseja sentir e agir com os outros, mas também contra eles, O ser
humano precisa de certa quantidade e determinada proporção de colaboração e de
oposição, necessidade puramente formal que fica satisfeita por meio dos conteúdos
mais diversos. Tanto é verdade que, muitas vezes, a significação concreta de alguns
deles não obedece ao sentido objetivo do conteúdo, mas à satisfação que graças a
esse conteúdo encontram aqueles instintos formais. O que caracteriza a
individualidade, desde o ponto de vista de sua aspiração natural e de sua evolução
histórica, é a proporção de aliança e de concorrência decisiva para ela. Daí resulta
também a consequência inversa: ás vezes, a necessidade de destacar claramente a
própria evolução pessoal impulsiona o indivíduo a escolher certos círculos em cujo
ponto de interseção ele se coloca e graças a cuja coincidência adquire o máximo de
determinação individual – um destes círculos representa a forma da exclusão e o
outro a forma da concorrência. Assim, quando em um círculo reina forte concorrência,
seus membros procurarão outro círculo que esteja, tanto quanto possível, desprovido
de concorrência. Por isso os comerciantes têm preferência pelas sociedades de
Georg Simmel | 461

recreio; ao passo que os aristocratas, cuja consciência de classe exclui a competição


dentro do próprio círculo, consideram supérfluos esses complementos, inclinando-
se a buscar outras formas de sociação nas quais se produzam fortes concorrências,
como as associações esportivas. Finalmente, mencionaremos ainda certos
cruzamentos antinômicos. Estes últimos ocorrem quando um indivíduo ou um grupo
está dominado por interesses opostos entre si capazes de engajá-lo
simultaneamente em partidos antagônicos. Para os indivíduos tal situação se
apresenta em ambientes de cultura refinada influídos por uma intensa vida política
partidária. Produze-se então frequentemente o seguinte fenômeno: os diversos
partidos políticos se distribuem os distintos pontos de vista, inclusive em questões
que nada têm a ver com a política, de maneira que determinada tendência literária,
estética ou religiosa, se associa com um partido e a contrária, com outro. Desse
modo, a linha que separa os partidos prolonga-se pelo conjunto dos interesses da
vida. Em tal situação, fica claro ao indivíduo que não deseje submeter-se totalmente
à influência de um partido, que deverá associar-se, por suas convicções estéticas ou
religiosas, a um grupo identificado pela oposição a seus adversários políticos. Ele se
encontrará então no cruzamento de dois grupos que se sabem opostos um ao outro.
O exemplo mais importante e mais característico poderia ser aquele da
pertença a uma religião, desde que a confissão religiosa se tenha liberado dos laços
clânicos, nacionais ou locais, separação que teve importância considerável para a
história universal. A essência da religião se expressa com igual alcance, ainda que
com linguagem diferente e em grau diverso de evolução, mediante duas formas
sociológicas. Conforme a primeira, a comunidade religiosa significa que também
outros interesses essenciais ou totalizantes são compartilhados. Na segunda forma,
ao contrário, a confissão comum está livre de toda solidariedade com aquilo que não
seja a religião. Compreende-se bem que seja difícil compartilhar a própria existência
e os interesses vitais com homens cuja fé é distinta da nossa. Em todo o mundo
antigo, semítico ou greco-romano, essa necessidade profundamente arraigada foi
satisfeita a priori convertendo a religião em um assunto de clã ou de Estado. Ou seja,
identificando – com poucas exceções – a Deus com os interesses do grupo político,
e os deveres para com Ele com as exigências principais que todo membro da dita
comunidade deve cumprir. No entanto, o poder do motivo religioso não é menos
462 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

visível quando esse impulso (em face de todas as conexões baseadas em outros
motivos) é suficientemente independente e forte, para reunir todos os crentes de uma
mesma confissão por cima das diferenças provenientes de seus outros
engajamentos. Evidentemente, esta última das formas sociológicas em que pode se
expressar a essência da religião é eminentemente individualista: o sentimento
religioso libera-se aqui do sustento que sua imbricação no plexo dos demais laços
sociais lhe oferecia e se refugia na alma individual e na sua responsabilidade
– tentando logo assentar na própria alma as pontes que a ponham em comunicação
com as almas da mesma religião, que talvez não coincidam já em nada mais. O
cristianismo em seu sentido mais puro é uma religião individualista – só fica atrás
do budismo primitivo que, aliás, não é uma religião propriamente dita, mas uma
doutrina da salvação pessoal sem mediação transcendente –, o que lhe permitiu
espalhar-se na imensa variedade dos grupos nacionais e locais. Da mesma maneira
e inversamente, a consciência que o cristão tem de levar a sua fé dentro de si a
qualquer comunidade (sem importar o caráter do grupo e as obrigações que ele
imponha), deve, com certeza, ter fortalecido seu sentimento de determinação
individual e de autoconfiança.
O valor sociológico da religião é um reflexo de sua ambivalência genérica
perante a vida. Ora ela se opõe a todos os conteúdos de nossa existência, sendo o
pendant, o equivalente da vida em geral, intangível em seus seculares movimentos e
interesses; ora, apesar de tudo, toma partido entre todos os partidos da vida por cima
dos quais se situava a princípio. Torna-se assim um elemento ao lado de todos os
outros elementos, e se complica numa pluralidade de relações e alternativas que,
naquele primeiro sentido tinha rejeitado. Produz-se assim um curioso
entrelaçamento: a recusa de todo vínculo sociológico, própria da religiosidade
profunda, permite ao indivíduo pôr o círculo de seus interesses religiosos em contato
com todos outros tipos de círculos cujos membros não partilham com ele outros
conteúdos comuns da vida – e os cruzamentos ocasionados servem, por sua vez,
para dar relevo e determinar sociologicamente os indivíduos e os grupos religiosos.
Esse esquema se repete logo nas especificações do religioso e nas suas singulares
combinações com os demais interesses dos sujeitos. Quando dos conflitos entre a
Georg Simmel | 463

França e a Espanha, os huguenotes20 se punham ao serviço do rei francês quando


este combatia a Espanha católica e os hispanófilos franceses; mas, outras vezes, em
compensação, vendo-se oprimidos pelo rei da França, uniam-se às forças da
Espanha. A cruel repressão dos católicos irlandeses pela Inglaterra acarretou uma
atitude dupla com outras características. Um dia os protestantes da Inglaterra e da
Irlanda se uniam contra o inimigo comum de sua religião sem se preocuparem com
os seus compatriotas. No dia seguinte, os protestantes e os católicos da Irlanda
estavam unidos contra os opressores de sua pátria, sem demonstrarem grande
interesse pelas suas diferenças religiosas. Contrariamente, os povos em que subsiste
a unidade primitiva, política e religiosa, do círculo (por exemplo, na China 21 )
consideram como inaudito e incompreensível que os Estados europeus intervenham
para proteger os cristãos chineses ou turcos. Mas quando esta unidade se desfaz
completamente, como na Suíça, a essência abstrata da religião – a quem sua
abstração confere uma posição absolutamente particular relativamente a todos os
outros interesses – produz cruzamentos muito significativos. Com efeito, em
consequência das grandes diferenças entre os cantões, a Suíça não tem uma vida
política suficientemente unificada para incentivar os homens da mesma
sensibilidade política dos diferentes cantões a reagrupar-se em grandes partidos
nacionais para abordar as questões relativas ao governo federal. Nesse contexto, só
os ultramontanos 22 de todos os cantões constituem uma massa homogênea em
matéria política.
Naturalmente, supõe-se que essa separação entre os agrupamentos
religiosos e políticos pode acontecer também em sentido inverso, dando lugar a
alianças políticas que cairiam por terra se a unidade subsistisse. Talvez o exemplo

20
Seguidores do protestantismo, especialmente aqueles de orientação calvinista, que foram assim
denominados pelos católicos franceses durante os séculos XVI e XVII. (NT)
21
O autor se refere à China da dinastia Qing, que vigorou até 1912. (NT)
22
Em sua acepção geográfica de origem, um “ultramontano” é uma pessoa que vive além dos montes.
A partir do século XVIII o termo qualificava os juristas que deram um valor absoluto às decisões da
Cúria romana. Na disputa entre canonistas próximos de Roma e canonistas galicanos (que defendiam
a independência administrativa da Igreja Católica Romana de cada país com relação ao controle papal)
a palavra adquiriu uma conotação pejorativa equivalente a de obscurantista ou papista. No espaço
germanófono esta utilização consolidada pela prática desapareceu aos poucos, apesar de um breve
recrudescimento na Suíça em certos meios protestantes extremistas, até os anos 1950. (NT)
464 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

mais gritante seja a união de Inglaterra e Escócia, de 170723. O benefício para ambas
as partes da constituição de um único Estado provinha da subsistência das duas
Iglesias 24 . Até então as instituições política e religiosa estiveram estreitamente
associadas em ambos os reinos – e só quando política e religião foram separadas
os interesses políticos puderam amalgamar-se, coisa que os interesses religiosos
não teriam admitido. Como se tem dito a propósito destes dois países: they could
preserve therefore harmony only by agreeing to differ 25 . Uma vez ocorrida esta
separação, com sua sequela de possíveis cruzamentos, a liberdade assim adquirida
não poderia voltar atrás por uma decisão das partes. Porque o princípio cuius regio,
eius religio26 unicamente tem legitimidade quando não precisa ser expressamente
consagrado, e resulta apenas da expressão do estado originário de unidade orgânica
e da indiferenciação primitiva.
Nesta ordem de ideias, é digno de nota um fenômeno singular. Ele se produz
quando o ponto de vista religioso, passando por cima dos restantes motivos de
separação, fusiona pessoas e interesses que na realidade deveriam ser
diferenciados, porque esta união é sentida como se estivesse motivada por razões
exclusivamente objetivas de distinção. Assim, por exemplo, em 1896, os operários
judeus de Manchester se reuniram numa associação que devia compreender
expressamente todas as categorias de trabalhadores (em especial alfaiates,
sapateiros e padeiros) e que pretendia fazer causa comum com os demais sindicatos
em tudo o que fazia aos interesses dos operários – ignorando que esses outros
sindicatos estavam organizados conforme a divisão do trabalho e segundo as
categorias objetivas dos diferentes tipos de trabalho (de um modo tão radical que, na
época, as trade unions se tinham negado a entrar na Internacional porque esta última,

23
Da qual resultou um trono britânico único, a dissolução dos parlamentos escocês e inglês e sua
substituição pelo novo parlamento da Grã-Bretanha, em Westminster. (NT).
24
Respeitada apesar da concomitante unificação das instituições políticas, ela aludia às confissões
anglicana e presbiteriana, predominantes em cada um dos dois países. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “Por esta razão, somente poderão conservar sua harmonia
concordando na necessidade de diferenciar-se”. A citação corresponde a Thomas B. Macaulay,
History of England from the accession of James II, Nova Iorque, International Book, 1890, vol,3, p. 241.
(NT)
26
Cuius regio, eius religio (também: cuius regio, illius religio), é um ditado latino, que afirma que o
governante de um país tem o direito de impingir sua religião aos seus súditos. É a forma abreviada de
um princípio jurídico estabelecido na Paz de Augsburgo e na Paz da Vestefália. A expressão latina foi
cunhada pelo professor Joachim Stephani, da Universidade de Greifswalder, em uma publicação de
1612. (NT)
Georg Simmel | 465

no início, não considerava as diferentes atividades profissionais de seus membros).


Mesmo que a proposta da associação judaica reivindicasse aparentemente à
indiferenciação dos interesses comuns religiosos e socioeconômicos, em verdade
expunha a sua separação fundamental – porque a síntese (graças à voluntária
coordenação com organizações profissionais diferenciadas) se manifestava como
uma associação com fins puramente técnicos, inspirada por motivos práticos. O caso
das associações alemãs de operários católicos é completamente diferente. Em boa
parte devido à sua grande difusão, ao papel político que o catolicismo representa na
Alemanha e em razão de os operários não estarem tão em evidência por sua religião
como os trabalhadores judeus. Na Alemanha, a diferenciação tende a organizar
sindicatos profissionais dentro de associações originariamente católicas (como, por
exemplo, em Aquisgrano, onde, desde começos do século XX, já existem sindicatos
de tecelões, de fiandeiros, de gravadores, de alfineteiros, de metalúrgicos e
pedreiros). No caso considerado, a associação é suficientemente grande para abrigar
a divisão sem que se produza o cruzamento, o que provocaria a união dessas
sociedades especiais com outros agrupamentos não confessionais de operários dos
mesmos ofícios. O que, aliás, não impede que tenha havido alguns casos e que a
divisão interna represente o primeiro passo nessa direção.
Finalmente, ocorre um cruzamento de ordem superior que aparece como
sublimação das energias religiosas no sacerdócio. A fórmula sociológica dessa
sublimação – a proporção de representação e direção, de controle e cooperação, de
respeito e de ajuda material entre fiéis e sacerdotes – difere certamente segundo as
religiões, Todavia, há tantos pontos em comum no meio desta variedade, que ainda
podemos falar, com algumas reservas, de certa igualdade formal na posição do
sacerdote dentro de todos os grupos, por mais diversificados que eles sejam – do
mesmo modo que nos referimos a igualdade que existe entre os nobres, os guerreiros
e os comerciantes de todos os lugares. Decorre dessa dinâmica, em primeiro lugar,
uma comunidade de interesses, de compreensão mútua e de solidariedade entre os
sacerdotes que, em certas circunstâncias, pode mesmo superar a oposição de
conteúdo entre, por exemplo, os protestantes fundamentalistas e os católicos
clericais. O sacerdote isolado ou o grupo sacerdotal reduzido se situa em um ponto
de interseção no qual a pertença a uma associação nacional, confessional ou
466 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

partidarista se cruza com a sua pertença ao conjunto de todos os sacerdotes (que


constitui a raiz da afinidade parcialmente sociológica, e parcialmente ético-
metafísica deles) e que concede aos diversos indivíduos um caráter singular que os
diferencia dos membros dos outros agrupamentos.
O grau de desenvolvimento do espírito público revela-se pela existência de
suficientes círculos (independentemente da sua forma e da sua organização
objetivas) para garantir uma atividade associativa e contatos efetivos a todos os
aspectos essenciais de uma pessoa dotada de múltiplas disposições – coisa que se
aproxima igualmente do ideal do coletivismo, assim como do individualismo. Pois,
por uma parte, o indivíduo acha para cada uma de suas inclinações e aspirações uma
comunidade em que poderá satisfazê-las facilmente, oferecendo a suas atividades
uma forma adequada e todas as vantagens da pertença a um grupo; enquanto por
outro lado, a especificidade da individualidade fica garantida pela combinação
diversa dos múltiplos círculos. Pode-se então dizer que os indivíduos fazem a
sociedade, mas que a sociedade forja os indivíduos. O processo civilizatório alarga
cada vez mais o círculo social do qual fazemos parte com toda nossa personalidade,
mas em compensação aquele processo abandona crescentemente o indivíduo a si
mesmo, privando-o de muitas das ajudas e vantagens do pequeno grupo. Assim
sendo, essa produção de confrarias e círculos precisa reunir todos àqueles que
possam se interessar pelo mesmo fim, para compensar a solidão crescente da
pessoa resultante da perda da estrita inclusão que caracterizava os pequenos
círculos do passado.
A proximidade dos laços que ligam aos membros de cada círculo pode ser
medida pelo grau em que esse grupo desenvolve uma “honra” especial, de maneira
que a perda da honra de um dos membros (ou a ofensa feita à consideração a ela
devida) seja sentida pelos demais integrantes do conjunto como um declínio da
própria honra – ou também porque a associação possui uma honra coletiva pessoal,
cujas vicissitudes se refletem no sentimento de cada membro. A produção desse
conceito de honra específica (honra familial, militar, comercial) assegura nesses
círculos o comportamento adequado de seus membros, sobretudo na esfera daquela
diferença específica que os distingue do círculo social mais amplo – onde as regras
coativas que fixam o comportamento conveniente ao círculo mais amplo (quer dizer,
Georg Simmel | 467

as leis do Estado) podem não conter preceito algum referente àquela exclusiva
maneira de proceder27. Os círculos particulares que podem coincidir também em uma
única pessoa elaboram conceitos especiais ou restritos da honra, enquanto o círculo
mais amplo cria um conceito geral ou abstrato da honra diferente daquele que vigora
em alguns círculos particulares, embora, de resto, possa reger igualmente a conduta
dos membros desses grupos. Tudo isso converteu as complexas normas da honra
em símbolos dos círculos. Existe uma honra negativa de classe, espécie de ”desonra
de classe” que pode ser relativamente permissiva em relação ao comportamento
considerado honorável do ponto de vista da moral universal ou do conjunto da
sociedade, e que, em vez de acrescentar exigências – como faz a honra positiva de
classe –, subtrai-lhe certa latitude. Assim algumas categorias de comerciantes,
particularmente os especuladores, mas também o pequeno penny-a-liner28 e o demi-
monde29 podem permitir-se certas atitudes justificadas pela consciência de classe
sem qualquer pejo para recorrer a práticas que, em geral, não são consideradas muito
honrosas. Mas junto a esta desonra de classe, o indivíduo pode, quanto ao resto, ser
absolutamente honrado (no sentido tradicional) nas suas relações humanas
cotidianas. Desse modo, o respeito à honra específica de sua classe não impede que
o indivíduo se comporte desonrosamente segundo as ideias básicas das formas de
viver. Assim, diversos aspectos da pessoa podem obedecer a outras tantas
concepções da honra que são reflexos dos diferentes grupos aos quais ela pertence
simultaneamente. Por exemplo, a mesma exigência pode apresentar-se com ênfases
diferentes. “Não tolerar uma ofensa sem digna reparação” pode ser o lema de alguém
que se comporta de formas muito díspares na sua vida privada, no escritório ou como
oficial reformado. Respeitar a honra das mulheres para defender sua honra de
homem pode ter resonâncias diferentes numa família de pastores protestantes ou
num círculo de tenentes novos. Um membro deste último grupo, proveniente do
primeiro, poderia perceber nele mesmo, pelo conflito entre esses conceitos de honra,

27
Este aspecto será tratado com mais pormenor no capítulo sobre a autopreservação. (NS)
28
Termo coloquial e geralmente pejorativo usado para se referir a um jornalista que é pago para
escrever textos de baixa qualidade, apressados ou redigidos "a pedido", muitas vezes com um curto
prazo O termo é usado para se referir a um tipo de escrevedor que é considerado como um
"mercenário" ou "caneta para contratar", que expressa as opiniões políticas de seus clientes em
artigos geralmente pagos pelo número de palavras ou linhas. (NT)
29
Grupo de mulheres mundanas, de moral ambígua, e de aqueles que as frequentam. (NT)
468 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua pertença a dois círculos diversos. No conjunto, essa criação de conceitos


específicos de honra – que aparece, muitas vezes, sob uma forma rudimentar, em
simples matizes do sentimento e da conduta, em motivações materiais ou
pessoais – representa uma das evoluções sociológicas formais mais importantes.
Ao reduzir-se a estreita e severa regulação, que no passado era exercida pelo grupo
social (em boa verdade, por seu poder central) sobre as ações e omissões dos
indivíduos nos domínios mais variados, limita-se cada vez mais sua intervenção
junto aos interesses gerais da comunidade, de um modo tal que a liberdade individual
passa a conquistar novas esferas. Essas esferas são ocupadas por novas formações
de grupo, mas os interesses da pessoa humana decidem livremente a qual delas o
indivíduo pertencerá. Por conseguinte, não são precisos os meios coercivos: basta o
sentimento da honra para vincular os membros às normas necessárias à
subsistência do grupo. De resto, esse processo não depende apenas do poder coativo
do Estado. Quando um poder coercivo regula originariamente um núcleo de
interesses individuais vitais sem relação prática com seus fins – na família, na
associação profissional, na comunidade religiosa, e assim por diante – acaba por
abdicar de seu poder em associações particulares, cuja escolha é uma questão de
liberdade individual. Assim se resolve o problema da sociação de uma forma mais
perfeita do que pelas rigorosas regulações do passado, que negligenciavam mais a
individualidade.
Acrescente-se que o domínio indiferenciado de um poder social sobre os
homens – por extenso e severo que possa ser – não se ocupa, nem pode ocupar-se,
de uma série de relações que são mais profundamente confiadas ao arbítrio pessoal,
quanto mais a coerção pese nas demais relações. Assim, por exemplo, o cidadão
grego, e até mais o romano, tinham que se submeter incondicionalmente às normas
e fins da comunidade nacional em todas as questões relacionadas com a política
– porém, proporcionalmente, possuíam uma autoridade ilimitada como senhor de
seu lar. Podemos observar esse vínculo social nos povos da natureza que vivem em
pequenos grupos. Nesse caso o indivíduo fica em plena liberdade para comportar-se
do jeito que bem entender com todas as pessoas que não pertençam a sua banda. A
tirania amiúde encontra seu correlato na liberdade mais absoluta, na anarquia que
tolera nas relações pessoais dos súditos desde que não tenham importância para
Georg Simmel | 469

ela. Em face dessa distribuição arbitrária da coerção coletiva e do domínio ou do


poder individual, existe outra, mais adaptada e justa, que se observa quando a forma
da associação é decidida pelo conteúdo objetivo da natureza e da tendência das
pessoas – porque dessa maneira se encontra com mais facilidade sustentação
coletiva para as atividades que até então escapavam ao controle do poder central e
ficavam entregues ao bel-prazer dos indivíduos. Com efeito, a pessoa inteiramente
livre procura, nas diversas esferas em que sua atividade é exercida, laços sociais que
voluntariamente imponham alguma restrição ou condição a seu arbítrio individual
– no qual achava uma compensação perante a tirania indiferenciada do poder
coletivo. Vemos assim que nos países que gozam de grande liberdade política está
muito desenvolvida a vida associativa 30 , e que nas comunidades religiosas que
carecem de um poder eclesiástico fortemente hierarquizado se multiplicam as seitas,
etc. Em uma palavra, liberdade e sujeição são repartidas mais equitativamente
quando a sociação, em vez de forçar os elementos de personalidade heterogênea a
entrar em um círculo unitário, concede a possibilidade de reunião aos elementos
homogêneos de círculos heterogêneos.
Eis uma das vias mais importantes para o processo civilizatório seguir. A
diferenciação e a divisão do trabalho têm no começo, de alguma maneira, uma
natureza quantitativa: ela distribui os círculos de atividade de tal modo que se certo
indivíduo ou determinado grupo vê-se alocado em certo círculo em lugar de outro,
cada um deles contém uma soma de relações qualitativamente distintas.
Posteriormente, todavia, tais diferenças serão isoladas desses círculos e reunidas em
um círculo de atividade cuja unidade será qualitativa. A administração do Estado
evolui frequentemente a um ponto tal que, do centro administrativo (no início
totalmente indiferenciado), uma série de setores se separa, sendo cada um deles
submetido a uma autoridade ou a uma pessoa particular. Mas cada um desses

30
Naturalmente, isso pode também produzir-se sobre outra base política, por exemplo, quando
tendências decididamente individualistas se confrontam com uma forte tutela do Estado. Neste caso
a ênfase recai sobre o elemento individual da associação, da margem de liberdade de que esse
elemento desfruta perante a coerção do Estado, graças à qual o indivíduo adquire um ponto de apoio
formal contra aquele. Como no caso mencionado no texto, cruzamos também aqui sentimentos
sociológicos de liberdade e sujeição, só que ali os primeiros pertencem ao agrupamento político e os
segundos ao associativo. Aqui sucede o contrário. O mesmo acontece no segundo exemplo do texto.
(NS)
470 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

setores é originariamente de natureza geográfica ou territorial. Assim, por exemplo,


na Franca, o Conseil d’en-haut 31 enviava intendentes nas províncias para exercer
todas as atribuições que competiam ao Conselho no conjunto do país. Tratava-se,
pois, de uma divisão de acordo com o quantum de trabalho sob a forma de uma
repartição geográfica. Contrariamente, é uma divisão de funções a que aparece mais
tarde quando, por exemplo, surgem do mesmo Conseil os diversos ministérios, cada
um dos quais estende sua atividade sobre todo o país, mas sob um aspecto
determinado qualitativamente. É similar ao que ocorre com a progressão dos
funcionários quando ela é desvinculada de determinado setor geográfico.
Possibilita-se assim, simultaneamente, a nomeação dos agentes no posto mais
adaptado, na prática, a eles (conforme a suas capacidades e méritos), e também a
uniformidade das funções em todo o país. Daí se segue a circunstância de que as
transferências se refiram normalmente aos altos funcionários – enquanto os
subalternos ficam durante toda a vida no mesmo setor de atividade. A importância
maior do talento pessoal entre os primeiros comparada à atividade menos individual
dos segundos seria a causa e também o efeito de que o círculo combine
alternativamente suas funções objetivas com as necessidades e interesses de
diversos lugares. Perante a estabilidade de um território geograficamente
determinado, esse cruzamento dos círculos significaria uma maior liberdade,
corolário da vida individual. Todavia, nos encontramos com um aparente
contraexemplo que parece contradizer (mas que representa em realidade uma etapa
ainda mais elevada) a diferenciação do caso antes estudado. Como ele foi tirado da
administração francesa. Sob o Diretório32, os cinco diretores geriam os assuntos do
Estado quase independentemente uns dos outros: Rewbell, a justiça; Barras, a polícia;
Carnot a guerra, etc. No entanto, para a nomeação dos funcionários provinciais
existia uma divisão de atribuições completamente distinta: Rewbel se ocupava do
Leste; Barras, do Sul; Carnot, do Norte, etc. Consequentemente, a diferenciação das

31
O Conseil d’en-haut era o nome atribuído ao Conseil d’Etat ou Conseil des Affaires sob Luis XIV e
Luis XV. Era assim chamado porque tinha sua sede no segundo pavimento do castelo de Versalhes,
perto dos aposentos reais. (NT)
32
O Diretório foi o regime político adotado pela Primeira República francesa entre o 4 brumário do ano
IV (26 de outubro de 1795) e o golpe de Estado do l8 brumário do ano XVIII (9 de novembro de 1799).
Foi assim chamado porque o poder executivo era exercido por cinco membros, denominados diretores.
(NT)
Georg Simmel | 471

funções objetivas subsistia cruzada por todas as diversidades geográficas. Ora, na


realidade a nomeação dos funcionários exigia principalmente conhecimentos do
lugar ou das pessoas, e só a título acessório conhecimentos profissionais. Por
conseguinte, neste ponto, a forma mais indicada era a divisão geográfica cruzada por
todos os tipos de questões profissionais ou técnicas. Citaremos, por fim, a
indiferenciação absolutamente curiosa dos Consejos espanhois, espécie de
ministérios consultivos sob o reinado de Filipe II33. Como lembra um autor italiano,
tratava-se dos seguintes: dell’Indie, di Castiglia, d’Aragona, d’inquisizione, di camera,
dell’ordini, di guerra, di hazzienda, di giustizia, di stato34. Aparentemente, todos eram
hierarquicamente iguais, coisa que deveria conduzir a colisões constantes entre os
Conselhos territoriais, que representavam a estrutura institucional dos diversos
reinos e os Conselhos profissionais ou de matérias, cuja especialização estava
definida em função da natureza dos próprios corpos consultivos. Pode-se dizer que
se trata de um caso de compartilhamento de funções simplesmente desprovido de
qualquer princípio, dado que deixava o princípio profissional ou técnico e o geográfico
ou territorial agirem indistintamente.
No antigo Egito, a medicina já estava tão especializada que o médico dos
braços não tinha a mesma formação que o das pernas. Eis uma diferenciação
também inspirada em pontos de vista locais. Em face dela, a medicina moderna
confia os mesmos estados patológicos a um único médico especialista, qualquer que
seja a parte do corpo onde eles se manifestem. Por conta disso, agora o fundamento
da classificação é a identidade funcional, em vez da exterioridade casual do lócus da
patologia. O mesmo se pode dizer – embora sob outro aspecto – de aqueles médicos
especialistas que não pretendem debelar certas doenças, e somente elas, mas sim
todas, só que com um determinado método, ou um único remédio. Esse é o caso, por

33
Na verdade, a estrutura de governo da Monarquia espanhola tudo ao longo dos séculos XVI a XVIII
se define como polisinodal, quer dizer, com multiplicidade de Conselhos. Estes derivam do Consilium
ou Curia Regis, reunião de notáveis que aconselhavam a tomada de decisões políticas aos monarcas
alto-medievais em cumprimento do dever de conselho, que junto com a ajuda militar eram o resumo
dos compromissos do vassalo com seu senhor. (NT)
34
Em italiano no original alemão de Simmel: “das Índias, de Castela, de Aragão, da Inquisição, da
Câmara, das Ordens, da Guerra, da Fazenda, de Justiça, da Itália, de Estado” Em diversos momentos
também existiram os Conselhos de Flandres, da Cruzada e de Portugal. Este último, criado em 1582,
seguiu existindo apesar da Restauração portuguesa de 1640, pois Filipe IV não reconheceu a
independência lusa. Foi extinto com o Tratado de Lisboa de 1668. (NT)
472 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

exemplo, dos médicos naturistas que afirmam poder curar todos os males
exclusivamente com água. Bem se vê que esta é uma medicina tão parcial como a
dos médicos egípcios. A diferença é que, graças ao progresso moderno, a medicina
não tem mais um caráter local, mas uma natureza funcional – o que prova que,
mesmo evoluída, segue reconhecendo a diferença entre os métodos exteriores e
mecanicistas e os princípios heurísticos objetivamente adequados. Podemos
encontrar também essa forma (que substitui a antiga diferenciação ou classificação
por uma nova distribuição) nos estabelecimentos mercantis que vendem todos os
insumos necessários para a produção de objetos complexos, como, por exemplo, o
material destinado às estradas de ferro, os artigos de que os donos de restaurantes
e de hotéis precisam, aqueles dos que se abastecem dentistas e sapateiros, assim
como os que fornecem as tendas e demais estabelecimentos que comercializam os
utensílios de casa e cozinha, etc. O ponto de vista unitário, que reúne objetos
provenientes dos círculos de fabricação mais variados não é outro que a sua
referência a um terminus ad quem, ou seja, a uma mesma finalidade, para a qual
todos eles servem – embora, por outro lado, a divisão do trabalho se firme sobre a
unidade de um terminus a quo, quer dizer, de um mesmo modo de produção na
origem dos objetos fabricados. Essas lojas (que têm, certamente, como condição
necessária a unidade mencionada) representam uma maior divisão do trabalho na
medida em que reúnem, desde um ponto de vista novo, elementos que provêm de
ramos da indústria completamente heterogêneos, mas que estão ligados por uma
relação de pertença também nova, sutil e fundamental.
35
Finalmente, as centrais de compras representam também outros
cruzamento e organização da esfera objetiva por um princípio não objetivo,
sobretudo aquelas que reagrupam as encomendas de determinadas categorias
profissionais: operários, oficiais e funcionários. As ordens de compra das duas
últimas categorias se referem, com poucas exceções, aos mesmos artículos

35
Uma “central de compras” é uma organização que tem por objeto reagrupar as ordens de compra
ou encomendas de um conjunto de membros. A estrutura oferece simultaneamente condições de
promoção e melhores condições de venda como resultado de economias de escala e estratégias de
negociação. Pois no geral se conseguem melhores preços dos fornecedores, em situações nas quais
os compradores, agindo individualmente, não teriam força para negociar com empresas ou centrais
de vendas de porte médio ou grande. (NT)
Georg Simmel | 473

propostos, razão pela qual o elemento de separação das duas centrais é puramente
formal e independente da própria coisa. Aperceber-nos-emos facilmente, porém, de
sua utilidade: a grande loja destinada aos funcionários alemães é uma sociedade por
ações, que encara seus clientes como qualquer outro comerciante, que deveria,
portanto, mais bem atingir os seus fins quanto maior for o número de pessoas que
compre no estabelecimento, sem que a limitação a um determinado círculo fosse
necessária para funcionar e obter resultados. Todavia, se ela tivesse sido aberta
como uma simples central de vendas acessível a todos sem distinção, ou mesmo
como um estabelecimento comum, que vende boa mercadoria a um bom preço, o
sucesso teria sido seguramente menor. Foi precisamente essa limitação a algumas
pessoas, completa e objetivamente inútil, que permitiu suprimir os obstáculos e as
hesitações que normalmente tornam os negócios mais difíceis, restrição que exerceu
grande atração sobre todos aqueles que faziam parte desse círculo exclusivo, ainda
que, no fundo, a causa dessa atração não tenha sido outra que a exclusão dos
demais. A totalidade desses fatos – talvez com exceção do último mencionado –
carece de importância sociológica. Eles servem aqui apenas como analogias das
combinações sociológicas, para demonstrar que as formas e normas gerais que
dominam em tais desenvolvimentos se aplicam para muito além da esfera
sociológica. A unidade exterior e mecânica das coisas, a decomposição e
recomposição racional e objetiva dos elementos, a construção de novas totalidades
a partir de pontos de vista mais elevados e mais amplos, são formas típicas da alma
humana. Do mesmo modo que as formas sociológicas se manifestam em um número
infinito de conteúdos, essas mesmas formas revelam funções fundamentais e mais
gerais que jazem no fundo da alma. Forma e conteúdo são apenas conceitos
relativos, categorias do conhecimento para o controle dos fenômenos e para sua
organização intelectual, de modo que uma mesma coisa, em determinada relação e
observada de cima, apresenta-se como uma forma, enquanto na observação de baixo
defini-se como um conteúdo.
A coesão dos operários assalariados é um excelente exemplo de síntese para
a unidade e formação da consciência social. Isso é particularmente interessante pelo
elevado nível de abstração que se antepõe às particularidades supraindividuais. Seja
qual for o trabalho de cada indivíduo, construir canhões ou brinquedos, o fato formal
474 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de trabalhar por um salário o associa a todos aqueles que se encontram na mesma


situação. A relação uniforme de todos com o capital constitui, em certa medida, o
denominador comum que permite pôr em relevo o que é da mesma natureza em
atividades tão diversas e proporciona um referencial de unidade para todos os
indivíduos envolvidos. A reação inglesa já viu claramente, na virada do século XIX, o
enorme significado de diferenciar psicologicamente o conceito de “operário
genérico”, ignorando a circunstância de que ele fosse tecelão, maquinista, mineiro,
etc., O Corresponding Societies Act proibiu todas as comunicações por escrito entre
as associações de operários, decisão acrescida à interdição de todas as sociedades
formadas por trabalhadores de diversos ramos industriais. Certamente, os
promotores dessa legislação já tinham percebido que se se dissipava a confusão
entre a forma geral da relação de trabalho e as diversas especializações laborais e se
permitia a associação sindical de uma série de ramos profissionais, se descobriria o
que todos eles tinham em comum. Essa descoberta, anulando as diferenças, logo
conseguiria a conformação e a proteção de um novo círculo social, cuja relação com
os anteriores produziria incalculáveis complicações. Depois que a diferenciação do
trabalho deu origem a ramos de natureza diferente, a consciência abstrata desenhou
uma nova linha que reuniu num novo círculo social o que todos tinham em comum.
Podemos ver assim mais uma vez a interação entre o processo lógico e a história
social. Foi necessária a extensão do sistema de organização econômica e social
surgido da Revolução Industrial (que colocou centenas ou até milhares de operários
nas mesmas condições reais e pessoais) para tornar imprescindível a solidariedade
entre os trabalhadores dos diferentes ramos de produção. Em face do
desenvolvimento da divisão do trabalho; foi indispensável que se impusesse
plenamente a economia monetária, para reduzir a significação do trabalho pessoal
ao seu valor em dinheiro; assim como foi preciso que as exigências vitais fossem
cada vez maiores e ridiculamente desproporcionais em relação ao salário, para que
o fator “trabalho assalariado” aparecesse como o elemento decisivo. Essas forças,
relações e situações sociais se concentram no conceito geral de operário
assalariado, como uma espécie de foco luminoso para, por sua vez, irradiar
influências, o que teria sido impossível sem essa síntese lógico-formal. E se a
Internacional, que no início tinha formado suas seções sem considerar as diferenças
Georg Simmel | 475

de profissão de seus membros – como já dissemos mais acima – mudou logo esse
critério para organizá-los em sindicatos profissionais, essa não foi mais que uma
decisão técnica mais útil para os interesses gerais dos operários, pois também aqui,
no fundo, o ponto de partida e de chegada sempre foi o conceito de “operário
genérico”.
Este conceito que neutralizava 36 todas as diferenças profissionais e que
possuía apenas uma significação lógica, passou a ter também uma feição jurídica.
Os direitos à proteção do operário em face dos infortúnios laborais, e o conjunto de
ações dos poderes públicos que asseguram a saúde e a assistência dos
assalariados, criaram o conceito jurídico de operário ao qual atribuíram um conteúdo
– nos termos do qual o simples fato de alguém exercer, sob as ordens de outrem e
mediante salário, um trabalho (especialmente manual ou mecânico) traz para ele
certas consequências jurídicas. Decorrências que não acabam por aqui, pois além
dessas significações lógicas, éticas e jurídicas, a transversalidade da supressão de
todas as diferenças de ofício tem outros correlatos estritamente factuais, como
possibilitar a “greve geral” – greve que não serve aos fins de um único sindicato, mas
para obter certos direitos políticos para o conjunto da classe trabalhadora, como a
greve dos cartistas37 ingleses em 1842 ou a greve dos operários belgas em 1893. É
interessante constatar de que modo o conceito de “operário”, uma vez que ele
apareceu em sua universalidade absoluta, introduz o mesmo caráter e as mesmas
consequências até nas estruturas menores. Na França, existe desde 1884 uma lei
sobre associações profissionais que autoriza a vinte ou mais pessoas que pertençam
ao mesmo ofício ou a uma atividade conexa, a constituir, sem autorização do
governo, um sindicato profissional. Na esteira da normativa citada, formou-se depois
um sindicato de “operários ferroviários” que não exercem, de fato, as mesmas
atividades profissionais. O que esses ferreiros, carregadores de malas, guarda-
chaves, assentadores de trilhos, estofadores, condutores de locomotivas e
mecânicos têm em comum é exclusivamente ser operários ao serviço da estrada de

36
Utilizamos aqui o verbo “neutralizar” em sua significação linguística de “anular uma oposição em
determinados contextos, continuando a funcionar em outros”. (NT)
37
Partidários do movimento político de cunho reformista, na Inglaterra dos anos 1837 a 1848,
denominado “cartismo”, do qual resultou a Carta do Povo, redigida em 1838, que continha o programa
do grupo. (NT)
476 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ferro. O objeto da constituição desse sindicato é que, através dele, cada uma dessas
profissões pode exercer sobre a administração uma forte pressão que por si só não
seria capaz de fazer sentir. Pelo mesmo modus operandi de lógica formal o
significado de “operário genérico” se transforma no de “ferroviário genérico”,
conceito meramente prático em que se apagam todas as particularidades do seu
trabalho. A forma com que o conceito mais amplo chega ao mesmo resultado
costuma ser a coalizão de coalizões. Nesse caso, (em que a primeira associação
elimina todos os aspectos pessoais e apenas resta o conceito puro de marceneiro ou
de sapateiro, de soprador de vidro ou de tecelão), surge clara e facilmente, como
instância suprema, o conceito puro de “operário”, que suprime todas as diferenças
advindas do conteúdo do trabalho. Ao pedreiro, naturalmente pouco importa que o
tecelão da manufatura de algodão que pertence a sua mesma federação sindical,
obtenha um salário horário maior ou menor. Por conseguinte, se a federação sindical
procura obter melhores condições de trabalho, não faz isso desde o ponto de vista
do indivíduo, mas desde aquele do conjunto dos operários.
O mesmo acontece quando patrões de diversos ramos de atividade básica se
associam. O patrão de uma empresa inserida em certo ramo ou área do mercado, não
tem interesse pelas relações que possa manter com seus próprios operários o patrão
de outro ramo de atividade. A posição do patrão é buscar o fortalecimento da
associação dos empregadores em geral em face do operário genérico. Esse conceito
genérico de patrão aparece necessariamente em correlação com o de operário. Tal
sincronismo lógico, entretanto, não se torna imediatamente psicológico e prático.
Sem dúvida, essa dinâmica decorre essencialmente de três tipos de razões: o número
dos patrões é menor do que dos operários (quanto mais exemplares existem de um
gênero, mais facilmente o conceito geral se forma); a concorrência dos patrões entre
si, que não existe entre os operários; e, finalmente, a atividade patronal se confunde
com o conteúdo de cada ramo, o que se atenua nos últimos tempos pela sublimação
do capitalismo. As técnicas industriais modernas tornam o operário muito mais
indiferente à especificidade do seu trabalho do que o patrão à particularidade da sua
fábrica. Por estar vinculado aos outros operários para além do conteúdo particular
de seu trabalho, o assalariado percebe o fenômeno antes que o patrão. No entanto, a
solidariedade dos operários tem levado também à solidariedade dos patrões, que
Georg Simmel | 477

acabou se transformando em um conceito geral ativo. Por isso, assistiu-se ao


aparecimento não só de coalizões de patrões do mesmo ramo de atividade, mas
também de federações de associações patronais completamente distintas. Nos
Estados Unidos, as greves cada vez mais importantes dos operários provocaram a
criação, desde 1892, de uma associação de patrões, organizada como um partido
político, com a finalidade de opor uma resistência solidária aos trabalhadores em
luta. A unidade fundamental da relação entre patrão e operário, que, apesar de todas
as divergências, tinha existido antes, repousava no fato de que o conteúdo do
trabalho se confundia com posições formais. Os conceitos diferenciados de patrão
genérico e de operário genérico traçaram linhas transversais nas relações
particulares, definidas para cada caso, e prevaleceram sobre a antiga unidade. Esta
unidade foi substituída pela relação de dois conceitos gerais formais destinados a se
oporem pela mera essência lógica de operário e patrão individuais, que deixaram de
estar associados materialmente pelo conteúdo do trabalho, para se converterem em
representantes puramente acidentais de suas respectivas categorias.
A origem da classe mercantil, como um conjunto de pessoas real e ideal, é de
ser comerciante em geral, seja o que esteja a vender, e tem afinidade com a gênese
sociológica da classe operária. No entanto, neste caso, o que facilita a distinção entre
o geral e o específico é que, na função mesma do comerciante individual, a forma de
sua atividade é já muito independente de seu conteúdo. Enquanto a atividade de
operário depende absolutamente do que ele fez com o seu trabalho (e por
consequência não se identifica facilmente como conceito puro de atividade), a função
específica do comerciante é relativamente independente daquilo com que está a
comerciar. Essa dinâmica se processa, sobretudo no início das atividades, quando
existe grande variedade de mercadorias e troca indefinida de objetos com as mesmas
funções de compra, de venda ambulante e de contatos diretos com o consumidor. No
começo, se falava assim simplesmente de “mercador”, e ainda hoje se encontra, na
porta de algumas lojas nos pequenos povoados, tabuletas que dizem apenas
“mercearia”38, sem precisar a natureza dos gêneros a negociar. E o que isso revela do
caráter funcional de cada comerciante individual se repete na pluralidade dos que,

38
Proveniente etimologicamente do italiano merceria (antigo merciaria) por sua vez derivado de merce
“mercadoria”, e este do latim merx,cis “mercadoria”, igualmente. (NT)
478 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

visando o lucro, têm sua profissão habitual na venda, compra ou troca de


mercadorias, dentro de uma economia desenvolvida. Essa variedade dos conteúdos
objetivos se difunde, graças à divisão do trabalho, por todas as especialidades da
atividade mercantil – de maneira tal que os aspectos comuns (que não mantinham
uma vinculação muito estreita com as facetas específicas) se convertem no nexo
lógico da classe comerciante, cuja comunidade de interesses, transformada em
conceito, passa por cima de todas as diferenças de conteúdo.
Tal conceito marca igualmente o desaparecimento das linhas que separam os
comerciantes para além das diferenças que possam existir entre os objetos de suas
atividades. Até começos da Idade Moderna, as “nações” estrangeiras possuíam, nos
grandes centros do comércio, privilégios específicos que as diferenciavam umas das
outras e dos autóctones, de maneira que cada um era inserido num grupo particular.
Mas, quando no século XVI, foi concedida liberdade de comércio a Antuérpia e a Lião,
e os comerciantes afluíram a essas cidades, eles estavam isentos desses contrastes
e de suas consequências. A inaudita concentração do comércio daí resultante fez
nascer entre os indivíduos das antigas “nações” uma “classe mercantil” cujos
direitos, usos e costumes, bastante uniformes, não se alteraram pela diversidade de
seus estabelecimentos nem por suas particularidades individuais e nacionais.
Mesmo hoje é possível observar que as normas reguladoras das trocas comerciais
se diferenciam, com maior rigor, dos preceitos próprios de um ramo específico de
atividade tanto maior seja o número de ramos em que a produção econômica esteja
dividida – enquanto nas cidades industriais cuja atividade se concentra num único
ramo, a noção de indústria ainda não se libertou realmente do conceito de fabricação
de um produto específico (ferro, tecidos ou brinquedos) porque os usos deste outro
tipo de tráfico, representado pelas trocas industriais, toma também emprestado seu
caráter dos ramos de atividade dominantes. Os fenômenos práticos também
obedecem à psicologia da lógica: se não existisse mais que uma única espécie de
árvores, não se teria chegado a formar o conceito genérico de árvore. Analogamente,
os seres humanos fortemente diferenciados, de cultura e atividades muito variadas,
desenvolvem mais facilmente sentimentos e convicções cosmopolitas do que as
naturezas mais monolíticas. Para estas últimas a humanidade se oferece sob uma
luz limitada, já que de fato são incapazes de se colocar no lugar dos outros e,
Georg Simmel | 479

portanto, de chegar a sentir aquilo que é comum a todos. Por outro lado, como já dito,
as consequências práticas da criação de conceitos gerais mais elevados nem sempre
se apresentam cronologicamente, pois que costumam aparecer como um estímulo,
constituído em ação recíproca, que ajuda a se produzir a consciência da comunidade
social. Assim, a classe dos artesãos adquiriu amiúde a consciência de sua
comunidade graças aos aprendizes. Quando no baixo medievo o trabalho se
depreciou pelo emprego excessivo de aprendizes, o único efeito que se conseguiu
limitando essa prática a um só ramo de atividade foi que os aprendizes expulsos
invadissem os outros ramos. Somente uma estratégia comum pôde resolver isso
– de um modo que só foi possível pela pluralidade de ofícios, mas que provocou a
consciência da unidade de todos eles, superando suas diferenças específicas.
Finalmente, junto aos tipos operário e comerciante, citaremos um terceiro
como exemplo de criação de um grupo mais abstrato, cujas qualidades conceituais
gerais se confundiam com as determinações particulares de seus elementos. Tais
elementos, aliás, determinam o ponto de cruzamento do novo círculo com as relações
que ele deixou atrás (mas ainda conserva) como círculo individual. Referimos-nos à
evolução sociológica que recentemente o conceito de “mulher” alcançou e, que nos
oferece complicações formais que, de outro modo, não seriam facilmente
observáveis. Na posição sociológica de cada mulher, existia até agora algo muito
singular. O que a excluía de todo agrupamento propriamente dito, de toda
solidariedade concreta com as outras mulheres, era precisamente seu caráter mais
geral – que permitia associá-la a todos os outros seres humanos femininos sob o
conceito mais vasto: ela é mulher, e deve assegurar as funções próprias de seu
gênero. Isso porque, precisamente, sua definição genérica a reposicionava nos
limites estritos de seu lar, dedicada apenas a pessoas singulares, impedida de sair
do círculo de relações determinado pelo casamento, família, vida social, e
eventualmente pelas obras de caridade e religião. As situações análogas das
mulheres em seu ser e seu agir têm um conteúdo que as impede de tirar partido de
suas semelhanças para formar associações, pois o que é comum a todas elas
consiste em estar plenamente consagradas a seu próprio círculo, o que exclui
qualquer outra mulher numa situação idêntica. Por conseguinte, sua condição geral
de mulher está a priori destinada a inscrever-se organicamente no círculo de
480 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

interesses do lar. Isso significa situar a mulher no extremo sociológico oposto ao


comerciante, por exemplo, em cuja atividade individual o aspecto formal geral se
distingue por si mesmo do aspecto específico em virtude do conteúdo. Parece que
em circunstâncias sociológicas primevas o distanciamento das mulheres era menor,
permitindo que elas enfrentassem os homens como um verdadeiro partido. É possível
que nesses casos a mulher não estivesse tão comprometida com os interesses
domésticos como em épocas atuais, e que, apesar da tirania do homem, as relações
mais simples e indiferenciadas da vida familiar e doméstica não a tivessem afastado
tão acentuadamente do universal que ela compartilha com todas as mulheres, nem
incluído numa esfera tão circunscrita como o lar das sociedades complexas.
Mas hoje em dia esses laços se atenuaram o suficiente para dar origem ao
problema “feminista”, o problema geral das mulheres como totalidade, e para
conduzir às mais variadas ações, reformas e associações – o que revela um
fenômeno sociologicamente marcante. Aquele isolamento das mulheres entre si, pela
inscrição de cada uma de elas em um círculo de interesses absolutamente individual,
repousa na convicção total da diferença entre a mulher e o homem. Em nossa cultura,
o sentido da vida da mulher se refere, quase por inteiro, a uma relação entre
desiguais. Nesse caso, o homem aparece como o ser superior, pelo desenvolvimento
de seu intelecto e atividade, pela afirmação da personalidade e pela relação com o
meio. Para além de toda questão de hierarquia, ambos os gêneros parecem de
natureza tão diferente que só poderiam estar destinados a se complementar
mutuamente, de modo que a existência feminina somente encontre sentido naquilo
que o homem não queira ou não possa ser ou fazer. Ora, as mulheres conceberam
recentemente um reequilíbrio de todos esses pontos de vista e começam a obter
alguns resultados (em sua posição pessoal e independência econômica, na cultura
intelectual e a consciência de si mesmas, na liberdade social e no papel na vida
pública), colocando-se frente ao homem. Tal enfrentamento (similar ao inspirado por
um partido e que destaca a solidariedade de interesses entre as mulheres) se
manifesta no momento em que se ameniza – como causa ou efeito – a alteridade
fundamental do ser e do fazer, do direito e dos interesses das mulheres relativamente
aos homens. É justamente nas formas caricatas desse movimento (nessas mulheres
que aspiram à completa masculinidade em sua maneira de ser e de agir), que se
Georg Simmel | 481

encontra amiúde a hostilidade mais apaixonada para com os homens. Essa situação
é fácil de entender. Na medida em que a igualdade de condição mais se acentua,
como valor e qualidade da mulher perante o homem (respeito de quem ela estava
antes em uma posição subordinada ou, pelo menos, de alteridade radical e, portanto,
de dependência) tanto mais enérgico deve ser o sentimento de autonomia da mulher.
No entanto, essa liberdade parcial faz que aquilo que a mulher tem em comum com
as outras mulheres fique mais visível e eficaz – tornando evidente o que até então
não aparecia com suficiente clareza por causa da relação de subordinação ou
complementaridade em que ela se encontrava. Estamos, portanto, em presença de
um caso extraordinariamente puro de formação de um círculo superior, constituído
por um conceito genérico, a partir de círculos mais estreitos que mantinham cada
elemento em uma relação singular.
O que não se pode contradizer pelo fato de que o feminismo do proletariado
tenha tomado uma direção prática absolutamente oposta a do feminismo da
burguesia. É fato que o desenvolvimento industrial permite liberdade
socioeconômica à mulher proletária – por mais miserável que seja sua liberdade
individual. A garota proletária vai à fábrica com uma idade na que necessitaria ainda
da atmosfera de convivência da casa dos pais, ao passo que; a mulher burguesa
casada se desliga de seus deveres para com o lar, o marido e os filhos em virtude do
trabalho remunerado fora de casa. Consequentemente, a mulher fica liberada do
vínculo singular que a destinava à subordinação ao homem ou, pelo menos, a uma
atividade completamente distinta da do marido. A transcendência desse fato
sociológico independe de que possa ser considerado indesejável ou nocivo, e de que
a mulher proletária anseie muitas vezes a limitação dessa liberdade, tenha saudades
da família e queira ser em maior grau companheira conjugal e mãe. Na classe
burguesa, o mesmo desenvolvimento econômico afasta da casa familiar um número
incalculável de atividades domésticas, simplesmente funcionais ou verdadeiramente
produtivas, impedindo assim que um número imenso de mulheres tire o máximo
partido de suas potencialidades, enquanto, no essencial, continuam presas ao lar.
Elas aspiram por consequência à liberdade de ter uma atividade econômica ou de
outro tipo, sentindo-se intimamente alheias ao círculo específico da casa, assim
como a proletária o sente exteriormente. Essa diferença entre as camadas sociais
482 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nas quais se tem operado esse alheamento está na origem da disparidade das
aspirações práticas: a mulher de uma dessas classes deseja voltar para casa
enquanto a de outra classe tenta ficar de fora. Mas, mesmo que a despeito de tal
diversidade de aspirações, haja lugar para certas coincidências (desde que no
referente à regulação jurídica do casamento, ao regime de bens da sociedade
conjugal, ao pátrio poder sobre os filhos, etc., o feminismo concerne igualmente às
duas classes), subsiste o principal: o isolamento sociológico da mulher,
consequência da fusão com o lar, está ameaçado de dissolução pela moderna
industrialização. Isso poderá acontecer sob a forma do demasiado ou do insuficiente.
Em ambos os casos, a autonomia adquirida e a emancipação almejada salientam a
efetividade do ser mulher, que cada mulher partilha com outras mulheres certas
situações e necessidades práticas. Quando ela perdeu aquele isolamento originado
na orgânica inscrição no círculo de interesses do lar, o conceito geral de mulher
perdeu seu caráter puramente abstrato e se tornou dominante em um grupo coerente
que se manifesta em certa medida através de sociedades exclusivamente femininas
de assistência mútua, de ligas de defesa dos direitos da mulher, de associações
estudantis de jovens mulheres, de congressos femininos e de toda forma de agitação
das mulheres em prol de seus interesses políticos e sociais. Tendo em conta as
notáveis relações do conceito de mulher com o conteúdo específico da vida dos
indivíduos (muito mais estreitas que no caso dos operários e comerciantes), ainda
não é possível prever quais serão as orientações objetivas e os limites deste
movimento. Contudo, muitas mulheres já se sentem no ponto de cruzamento de
grupos que as ligam a pessoas e conteúdos de sua vida pessoal e às mulheres em
geral.
Se no caso precedente a diferenciação consistiu em extrair o círculo superior
do círculo específico individual (o círculo superior só existia em estado latente),
também é missão da diferenciação separar os círculos mais próximos, uns dos
outros, em função da posição de seus membros. Um bom exemplo disso é a guilda
medieval, que vigiava todas as facetas da personalidade de seus integrantes,
chegando a regular sua conduta pessoal em função dos interesses do ofício. Aquele
que era admitido como aprendiz por um mestre se convertia simultaneamente (entre
outras coisas) em membro da família do artífice. Em uma palavra, a atividade
Georg Simmel | 483

profissional era o centro da vida toda, incluindo a vida política e até a sentimental.
Entre os motivos que levaram à dissolução desta comunidade, nos interessaremos,
de momento, pela divisão do trabalho. A força de todo círculo de interesses que
estruture um grupo de indivíduos diminuirá, caeteris paribus39, na medida em que se
reduza sua extensão. A limitação da consciência determina que uma atividade
diversificada, com uma pluralidade de representações vinculadas a ela, atraia a seu
campo o restante das representações desse universo; sem para isso ver-se
obrigadas a ter relações objetivas entre elas. A necessidade de passar rapidamente
de uma representação para outra, faz com que numa ocupação em que não haja
divisão do trabalho seja preciso tal quantidade de energia psíquica – usando a
linguagem simbólica a que devemos recorrer quando se trata de problemas
psicológicos complexos – que o prosseguimento dos outros objetivos pode ficar
comprometido, permitindo que os interesses assim enfraquecidos caiam, por razão
de maioria, sob a dependência associativa daquele círculo central de representações.
Assim como um homem movido por uma grande paixão relaciona a este sentimento
até as coisas mais remotas e com menor contato com seu conteúdo, também dessa
forma assiste-se a uma centralização espiritual análoga quando a profissão não
deixa livre mais que uma quantidade relativamente fraca de consciência para as
outras relações da vida. Confrontamo-nos aqui com uma das consequências
internas mais importantes da divisão do trabalho. Ela repousa no mencionado fato
psicológico segundo o qual (dentro de um espaço temporal específico e mantendo
os outros fatores) necessitamos de mais imaginação quanto mais frequentemente a
consciência deva passar de uma representação a outra. Essa rápida mudança das
representações tem a mesma consequência que a intensidade da paixão no caso
precedente. Por isso – em igualdade de circunstâncias – uma atividade sem divisão
do trabalho ocupará uma posição mais central na vida de um homem que uma
ocupação muito especializada, em particular nos períodos em que as outras relações
da vida não tinham ainda a variedade e as sugestões alternativas características da
época moderna. Acrescente-se a isso que, sendo as ocupações especializadas de
caráter essencialmente mecânico, deixam mais espaço na consciência para outras

39
Expressão latina que significa: “se todas as demais coisas ligadas a ela permanecem iguais”. (NT)
484 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

relações – quando não atrofiam a energia espiritual absorvendo completamente o


tempo e as forças. Tal separação coordenada dos interesses que estavam antes
fusionados em um interesse central é estimulada ainda por outro efeito da divisão do
trabalho relacionado a um fato anteriormente mencionado: o conceito social superior
surge dos círculos individuais mais específicos. As associações entre as
representações e círculos de interesse centrais e periféricos (geralmente criadas por
razões psicológicas e históricas) são consideradas necessárias, na maioria das
vezes, até que a experiência nos revela pessoas que apresentam o mesmo centro e
uma periferia completamente diferente, ou bem a mesma periferia com um centro
totalmente díspar. Consequentemente, se todos os interesses da vida dependessem
da pertença a uma profissão, seria necessário tornar a subordinação menos rigorosa
à medida que aumentasse a diversificação dos setores de atividade, porque, apesar
de suas diferenças, os demais interesses revelariam muitos pontos em comum.
Esta forma de evolução é extremamente importante para as relações
confidenciais dos homens, e mesmo para as expressas por eles em público. Um
determinado elemento em nós está vinculado a outro (que apresenta. sob uma forma
específica, um caráter geral que ele compartilha com muitos outros), e esse vínculo
compreende ao segundo elemento originariamente na união harmoniosa de sua
maneira geral e de seu estilo particular de ser. Mas, eis que um processo de
dissolução sobrevém: o primeiro elemento se alia, em outro lugar, com um terceiro
que contém o caráter geral do segundo, mas de outra forma particular. Essa
experiência pode ter duas consequências absolutamente opostas, segundo a
maneira como os dois componentes do segundo elemento estejam presentes no
indivíduo. Se esse vínculo fosse muito estreito, a união dos elementos da qual
partimos se romperá. Isso acontece com frequência na conexão da vida moral com
a religiosa. Para o indivíduo, sua religião costuma ser a religião: os outros credos não
contam para ele. Se a pessoa baseia sua moral nas representações específicas e
próprias dessa religião, sendo convencida por sua experiência de que pode
encontrar-se entre outros indivíduos uma moralidade análoga, tão pura e valiosa
como a sua, mas resultante de ideias religiosas totalmente diferenciadas, será muito
raro que chegue à conclusão de que a moral só está unida com a têmpera religiosa,
com aquela correção de princípios comum a todas as religiões, Ao contrário, a pessoa
Georg Simmel | 485

tirará daí a conclusão de que a moral nada tem a ver com a religião, deduzindo a
autonomia do conjunto dos valores norteadores das relações sociais, e não, por
exemplo, a ideia (tão justificada do ponto de vista lógico como a outra) de que cada
um dos sistemas éticos que organizam a vida das múltiplas comunidades humanas
se vincula com o âmago universal da religião. O mesmo não acontece, por exemplo,
quando um homem que só consegue a satisfação do dever cumprido pondo em
prática uma forma de altruísmo que nele está associada constantemente a uma
dolorosa superação do eu (a uma espécie de ascetismo atormentado), vê outro
homem obter o mesmo sossego e contentamento, mas praticando um altruísmo
espontâneo, livremente assumido, e vivendo uma vida simples e alegre. Não será fácil
o primeiro concluir que essa paz interior que ele procura e esse íntimo sentimento de
autovaloração provavelmente não tenham nada a ver com a dedicação aos outros;
limitando-se a deduzir que a forma específica, ascética, do altruísmo não é
necessária para conseguir a dita tranquilidade de consciência, e que ela pode ser
alcançada por meio de outro altruísmo que, conservando o essencial de todo amor
desinteressado ao próximo, possua forma e matiz distintos. Nesse contexto, a
separação acima referida do interesse profissional em relação aos outros interesses
da vida, por meio da variedade de ofícios, é um fenômeno intermediário cuja
consequência principal se aproxima do primeiro caso. A profissão de um homem
deverá ser sempre associada à totalidade de sua vida. Quer dizer que este elemento
absolutamente universal e formal funcionará invariavelmente como centro de
orientação para muitos outros pontos da vida. Porém, esse não é mais que um efeito
formal, funcional, da profissão – comparável, inclusive, ao relaxamento progressivo
dos laços que vinculam o ofício à vida pessoal propriamente dita.
A crescente diferenciação das profissões mostrou ao indivíduo que a mesma
orientação em diferentes esferas da vida podia estar vinculada a diversos ofícios e,
por conseguinte, ser significativamente independente da profissão. E a diferenciação
de todas as demais esferas da vida (que aumenta igualmente com a difusão da
cultura) conduz também à mesma conclusão. A diversidade da profissão – se todos
os demais interesses fossem idênticos – e a diversidade dos interesses – se todas
as profissões fossem iguais – deveriam conduzir identicamente à separação
psicológica e real de uns e outras. Sem ignorar a distância que existe entre
486 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

estabelecer diferenciações e sínteses a partir de pontos de vista externos e


esquemáticos e fazê-lo segundo nexos objetivos, encontraremos uma marcada
analogia com o progresso alcançado na área da ciência. Antigamente se acreditava
que os problemas fundamentais relativos ao conhecimento dos entes vivos podiam
ser resolvidos reunindo grandes grupos de tais criaturas segundo os traços conexos
de sua aparência exterior. Mas para conseguir chegar a uma compreensão mais
completa e exata delas foi preciso descobrir previamente igualdades morfológicas e
fisiológicas entre seres aparentemente muito díspares, que tinham sido classificados
até então a partir de diferentes conceitos de espécie – o que permitiu formular leis
da vida orgânica que se cumpriam em pontos muito distantes uns dos outros na série
dos seres vivos. Foi este conhecimento que permitiu reunir o que antes tinha sido
repartido segundo critérios externos entre conceitos cuja gênese era absolutamente
autônoma. Aqui também, a união dos elementos objetivamente homogêneos,
pertencentes a círculos heterogêneos, é um sinal evidente de um passo evolutivo
maior no processo civilizatório.
Um círculo que se desenvolve em torno de um novo centro racional,
substituindo um centro mais mecânico e externo, não precisa buscar sempre seus
elementos em outras organizações, quer dizer, não sempre significará a criação de
novos grupos. Ao contrário, como é frequentemente o caso, pode suceder que seja o
mesmo círculo que mude de uma forma para a outra, a partir de uma síntese já
existente que faça surgir um conceito mais elevado e orgânico que substitua a outro
mais tosco e contingente na sua função de coesão e enraizamento. Esse foi o
esquema que seguiu, por exemplo, a evolução que pode ser observada durante o
século XII em Ruâo e outras cidades do Norte da França naquilo que se denominou
jurati communiae. Tratava-se de pessoas majoritariamente (mas não por princípio)
de condição burguesa, que pertenciam ao mesmo ofício e categoria, que levavam um
modo de vida semelhante e que formavam uma espécie de confraria. Eram de número
restrito (pelo menos no início), estavam vinculadas por juramentos recíprocos e
parecem ter gozado de alguma proeminência e certos privilégios na comunidade,
pois nos estatutos dessas associações se fala amiúde de habitantes que ofendem
os jurati ou que falsamente se fazem passar por tais. No entanto, em certo momento
de seu desenvolvimento institucional toda pessoa que tivesse morado um ano e um
Georg Simmel | 487

dia no burgo devia, nos termos da lei, prestar juramento à commuia, assim como
quem quisesse afastar-se dela devia também perder a proteção do burgo.
Finalmente, essas confrarias se fortaleceram de tal modo que acabaram por
incorporar – não sempre por sua própria vontade – toda a população que habitava
dentro do perímetro urbano. Como podemos ver, tínhamos aqui primeiramente a vida
em comum, puramente local e relativamente casual, dos vizinhos do povoado. Mas
essa convivência tornou-se, aos poucos, para alguns, uma associação voluntária,
fundada em um princípio e para alcançar um objetivo, até que todo esse conjunto
restrito de pessoas vinculadas por um laço comum se transformou no sustentáculo
de uma forma nova e superior de união, sem que seu objeto e coesão fossem
essencialmente modificados. O círculo racional, organizado em função de uma ideia
unitária, não cruza o círculo primitivo (ou natural), limita-se apenas a ser a forma
superior e abstrata, por assim dizer, ao abrigo da qual parece que o antigo se renova.
Essa evolução formal se repite, com conteúdo absolutamente diferente, na relação
que se estabelece entre as colônias e sua metrópole. Desde Colombo e Vasco da
Gama, a colonização europeia teve que enfrentar os efeitos negativos causados pelo
tratamento discriminatório que sofreram os longínquos territórios em que se
promoveu esse processo (que não obtinham vantagem alguma do vínculo de união
com a metrópole, apesar de estarem sujeitos a tributo) e eram considerados como
meras possessões. Este tipo de relação, objetivamente injustificada, conduziu à
emancipação da maior parte das colônias. O fundamento que abonava sua
independência só foi enfraquecido quando, no âmbito britânico 40, nasceu outra ideia
que traduz o propósito de que a colônia seja uma simples província ultramarina da
mãe-pátria, com os mesmos direitos que as outras províncias situadas no território
metropolitano. Pois que a forma de união deixou de consistir então numa simples
junção, rígida e externa, para converter-se em um vínculo conforme o sentido mais
elevado do termo commonwealth – que pressupõe uma união elástica, por

40
O autor deve aludir a um projeto político que teve suas origens quando, em 1884, Lorde Earl
Rosebery, durante uma visita à Austrália, descreveu as mudanças que estava sofrendo o Império
Britânico, depois de que algumas de suas colônias se tornaram mais independentes, como a formação
de um Commonwealth of Nations. Esta “comunidade” começou a tomar corpo com as Conferências
imperiais, que reuniram representantes dos britânicos e das suas colônias logo, periodicamente,
desde a primeira em 1887. (NT)

488 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

disposição de lei ou destinação natural, segundo o qual o autogoverno das colônias


equivaleria à independência relativa dos membros em um corpo orgânico. A mesma
diferença formal não se apresenta mais na coexistência da síntese esquemática com
a racional (como nos exemplos dados acima, em que a antiga síntese cruzava à
nova), mas através de uma sucessão temporal.
Todavia, quando a vitória do princípio racional objetivo sobre o princípio
superficial esquemático marcha paralelamente com o progresso do processo
civilizatório, pode acontecer que esta coesão (que não é um a priori) possa faltar em
certas ocasiões. A solidariedade da família pode aparecer como um princípio
mecânico e ilusório, em face da associação baseada em pontos de vista objetivos,
mas quando a comparamos a uma repartição estritamente numérica – como as
décadas e as centúrias do Peru pré-colombiano, da China, e de uma grande parte da
antiga Europa – parece um princípio objetivamente fundado. A unidade sociopolítica
da família e sua responsabilidade como um todo têm um sentido para cada um de
seus membros, tanto mais racional quanto mais bem se apreciam as consequências
da herança. Em compensação, a reunião de um número sempre igual de homens,
tratado como uma unidade (do ponto de vista de sua organização interna, do serviço
militar, da tributação, da responsabilidade criminal, etc.), está totalmente desprovida
de fundamento racional – o que não impede que, em todos os lugares onde podemos
observá-la, ela substitua o princípio gentílico ao serviço de um nível superior de
cultura. Ela também não pode estar justificada pelo terminus a quo – nesse sentido
o princípio de família é superior a todos os outros como motivo de diferenciação e
integração –, mas pelo seu terminus ad quem, pois precisamente por seu caráter
esquemático, esta distribuição (fácil de controlar e de organizar) é ao mais adequada
do que a antiga para os fins políticos superiores. Os exércitos da Antiguidade foram
organizados, em sua maior parte, com base no princípio clânico ou familiar. Os
gregos dos tempos heroicos combatiam organizados em phylès e phratrias 41, os
germanos em tribos e estirpes, assim como os antigos escoceses o faziam em clãs
– reconhecendo-se cada um desses agrupamentos, nas grandes empresas comuns,

41
Na Grécia pré-homérica as phratrias ou trittys, eram os grupos em que se dividiam as tribos
atenienses e de outras cidades áticas Três phratrias compunham uma phylè. (NT)

Georg Simmel | 489

por sinais externos notórios. Essa estrutura orgânica tinha muitas vantagens: ela
tornava cada formação capaz de uma grande coesão, atiçava entre as unidades uma
notável emulação e dispensava até certo ponto ao comando em chefe de ocupar-se
dos indivíduos e de formar os responsáveis do enquadramento da tropa. No entanto,
o preço a pagar por essas vantagens era frequentemente alto: os antigos
preconceitos e querelas readquiriam força, paralisando o movimento de conjunto da
unidade, o que, em geral, privava as diversas seções de solidariedade e enlace entre
elas – circunstância ainda mais chocante quando cada uma possuía individualmente
as qualidades exigidas. Por conseguinte, o todo constituído por esses elementos não
remetia ao desenvolvimento natural deles, a despeito de seu caráter orgânico – ou
talvez por causa dele. Em compensação, desde o ponto de vista do conjunto, a
estrutura impessoal e rigorosa dos exércitos mais recentes (que não leva em conta a
eventual relação interna que poderia existir entre os elementos da seção) é muito
mais orgânica, entendendo-se por esse conceito a regulação unitária e adequada da
mínima parte da formação por uma ideia central, a saber, a influência recíproca dos
elementos. A nova ordem atinge imediatamente o indivíduo e (graças a que suas
divisões e concentrações cruzam inexoravelmente todas as outras) destrói os laços
orgânicos em proveito de um funcionamento preciso e exigente, mas infinitamente
mais favorável à finalidade da qual essa forma mais orgânica (no sentido primário do
termo) extraía seu valor. Surge aqui o conceito de técnica, tão essencial para as
épocas avançadas. Contrariamente aos tempos primevos, nos quais a vida era mais
direta, instintiva e unitária, em virtude da técnica é possível alcançar fins que são da
ordem do espírito com meios predominantemente mecânicos. Essa evolução se
manifesta também nos princípios que regem as eleições parlamentares notadamente
na maneira com que as circunscrições eleitorais estabelecidas a este fim cruzam os
grupos existentes. A princípio, as representações de classe – como no reinado de
Filipe IV de França42 os estados gerais eram os representantes do clero, da nobreza
e das cidades – parecem ser mais naturais e orgânicas, em face da divisão
puramente convencional dos corpos eleitorais – como os estados gerais dos Países

42
Também chamado de Filipe, o Belo, foi rei da França como Filipe IV, de 1285 até sua morte em 1314.
Foi também rei da Navarra como Filipe I, de 1284 a 1305 em virtude de seu casamento com Joana I.
(NT)
490 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Baixos, na época de Filipe II de Espanha43, que eram os representantes locais das


diversas províncias. A delimitação espacial traduz interesses tão variados
(frequentemente tão irreconciliáveis), que a expressão de uma vontade unitária pelo
voto de um único representante parece excluída; razão pela qual dá a impressão que
a representação dos interesses (mais racional que esse princípio mecânico e
extrínseco) poderia conseguir isso. Mas, em realidade, trata-se da mesma coisa que
aconteceu com a organização dos exércitos. Os diferentes grupos – o conjunto
complexo de pessoas interessadas com sua representação – estão construídos de
maneira mais orgânica no último caso, mas sua coexistência é mais difícil, ilusória.
A circunscrição eleitoral restrita a determinada área é realmente mais precisa, mas o
voto exclusivamente local não impõe a representação privilegiada do interesse do
lugar. Essa forma de escrutínio constitui a técnica que permite a coerência orgânica
do conjunto, na medida em que cada deputado representa o país por inteiro. A divisão
partidária, segundo tendências políticas que então aparecem, não representa (de
acordo com a ideia que a preside) mais que as diferentes convicções sobre os meios
com que o bem comum, o único que importa, pode ser alcançado. A representação
das classes ou dos interesses se sobrepõe, com a força lógica de um conceito
superior, ao caráter convencional dos limites geográficos e, consequentemente,
impede de ver, com seu racionalismo parcial, que a divisão local e mecânica é a
técnica adequada para conseguir a síntese orgânica e superior do todo.
Eis um esquema da evolução fundamental da cultura, que compreende seu
aspecto sociológico: as instituições e formas de comportamento plenas de sentido,
profundamente importantes, são substituídas por outras que, em si mesmas,
parecem absolutamente mecânicas, artificiosas e carentes de alma. Só uma
finalidade superior, que supere esse estágio precedente, pode dar a sua ação comum
ou a seu efeito ulterior uma significação espiritual da qual cada elemento particular
está forçosamente desprovido. Esse é o caráter do soldado moderno em face do
cavaleiro da Idade Média, do operário fabril confrontado ao artesão, e da
uniformidade e nivelação modernas de tantas relações da vida, que antes ficavam
reservadas à liberdade do indivíduo que as moldava a seu bel-prazer. Uma parte da

43
Cognominado "O Prudente", foi rei da Espanha como Filipe II de 1556 até sua morte em 1598, rei de
Portugal e Algarves como Filipe I a partir de 1581, e “senhor dos Países Baixos”. (NT)
Georg Simmel | 491

engrenagem social é hoje vasta e complexa demais para que cada um de seus
elementos possa expressar um pensamento completo, limitando-se a contribuir,
apenas como parte de um todo, à realização de uma ideia. Por outro lado, certa
diferenciação priva, com frequência, as atividades de sua dimensão moral, de modo
que o mecânico e o espiritual acabam levando uma existência separada, própria.
Assim, por exemplo, a atividade da operária de uma máquina de bordar só tem para
esta trabalhadora um sentido mecânico, muito menos espiritual do que tinha o seu
labor para a bordadeira de antigamente – enquanto a potência moral que animava
esse trabalho tem passado para a máquina e se objetivado nela. Podem, desta
maneira, as instituições, as hierarquias e agremiações sociais tornarem-se mais
mecânicas e artificiosas e servir, todavia, ao progresso da cultura e a unidade interna
do todo, contanto que exista um fim social superior ao qual elas devem estar
subordinadas, fim este que impede que se arroguem a posse do espírito e do sentido
que outrora representavam o arremate da série teleológica. É o que explica a
passagem do princípio gentílico ao princípio da década para a divisão em grupos
sociais, mesmo se este último aparenta ser uma associação de elementos
objetivamente heterogêneos, em face da homogeneidade da família.
VII. O Pobre

Se considerarmos o homem como um ente social, veremos que a cada um dos


seus deveres corresponde um respectivo direito de outros entes. Todavia, pode ser
que haja uma maneira mais profunda de ver as coisas se pensarmos que em princípio
só existem direitos. Cada indivíduo teria exigências – provenientes de sua condição
humana ou de sua situação peculiar –, que se convertem em deveres dos outros a
seguir. Mas, como todos que têm algumas obrigações também teriam certos direitos,
daí resultaria uma espécie de rede de direitos e deveres na qual o direito é sempre o
elemento primário, aquele que dá o tom, enquanto o dever seria somente o seu
corolário – a necessária consequência – que tem origem no mesmo fato. Pode-se
considerar assim a sociedade em geral como uma relação de entes que possuem
direitos (segundo as categorias da moral, do direito, dos convencionalismos sociais
ou de outras ordens normativas) cujos sentidos contrários expressam uma
interdependência recíproca. Se esses direitos significam deveres para com os outros
é apenas por uma, digamos assim, simples coincidência lógica ou técnica; de modo
que, se pudesse acontecer o inimaginável, quer dizer, que todos os direitos fossem
acatados sem qualquer gênero de coerção, a sociedade não teria nenhuma
necessidade da categoria “dever”. Com um radicalismo que não corresponde à
realidade psicológica, mas que poderia ser perfeitamente aplicável em uma
construção ético-ideal, é possível interpretar todos os atos cumpridos por amor ou
por compaixão, por generosidade ou por impulso religioso como direitos daquele que
recebe ou usufrui de algum benefício ou vantagem em virtude de tais gestos. A
propósito de todas essas motivações o rigorismo ético afirma que o melhor que um
homem pode fazer é cumprir com seu dever, e que esta atitude exige aquilo que um
temperamento laxo e fraco considera como um mérito que extravasa o âmbito do
dever. Na verdade, não se trata mais do que dar um passo para pensar que em todo
dever do obrigado existe apenas um direito do demandante. Este parece ser o último
e o mais racional fundamento em que as prestações recíprocas dos homens podem
se basear.
Todavia, é aqui que se gera uma oposição fundamental entre as categorias
sociológicas e as éticas. Dado que, se admitirmos que o conjunto de todas as
494 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

prestações deriva de um direito – no sentido mais lato deste termo, do qual o direito
jurídico constitui uma parte menor –, teríamos que tomar então como aceitável que
as relações humanas influenciam profundamente os valores morais do indivíduo e
determinam sua orientação. Ora, ao incontestável idealismo desse ponto de vista
opõe-se a não menos profunda rejeição de toda gênese interindividual do dever.
Nossos deveres – se diz – são deveres para conosco próprios, e não existem outros.
Seu conteúdo pode certamente estar orientado para os outros homens, mas sua
forma e sua motivação como deveres não nos vêm do próximo, pois que surgem do
eu e das necessidades internas do eu como entidades puramente abstratas e
autônomas, independentes de tudo o mais que não se identifique com nossa
individualidade. É somente no que diz respeito ao direito que o outro é o terminus a
quo da motivação de nossas ações morais, mas em compensação, para a moral em
si, o outro não é mais do que o terminus ad quem. Em última análise, somos nós
próprios o único responsável pela moralidade de nossos atos, só prestamos contas
a nosso eu melhor, à estima que sentimos por nós mesmos, ou qualquer que seja o
nome que se dê a esse ponto enigmático que, em última instância, a alma encontra
em si mesma – e a partir do qual ela decide livremente em que medida os direitos
dos outros são deveres para ela.
As diferentes concepções da assistência dos pobres nos oferecem um
exemplo ou símbolo empírico desta dualidade fundamental que caracteriza nossos
sentimentos profundos sobre o sentido da ação moral. O dever de assistência pode
aparecer como o simples corolário do direito do pobre. Sobretudo nos países onde a
mendicidade e um ofício regular, o mendigo acredita, com maior ou menor
ingenuidade, que tem um direito à esmola, de maneira que quando alguém lhe recusa
seu óbolo, ele protesta amiúde como se tivessem lhe sonegado um tributo
obrigatório. Dentro do mesmo tipo, a justificação do direito à assistência pela
pertença do necessitado ao grupo tem, porém, um caráter totalmente distinto. A
concepção que encara o indivíduo como o produto do seu meio social confere àquele
o direito a solicitar do grupo uma compensação por suas necessidades prementes e
por suas perdas. Mas, mesmo quando a responsabilidade individual não se tem
diluído a esse extremo, pode-se afirmar que, do ponto de vista social, o direito do
necessitado é o fundamento de toda a assistência aos pobres. Pois que apenas se
Georg Simmel | 495

presumirmos um direito desse tipo – pelo menos como ficção jurídico-social –


parece possível escapar à arbitrariedade, à dependência da conjuntura financeira, e
a outros acontecimentos imprevisíveis. Ademais, o funcionamento das instituições é
sempre mais confiável quando se parte metodologicamente do direito (na correlação
de direito e dever que é seu sustentáculo), pois o homem está, no geral, mais disposto
a exigir um direito do que a cumprir um dever. Acrescente-se a isso o sentimento de
humanidade, a ideia de que é mais fácil para os pobres pedir e aceitar um auxílio
quando o benefício é considerado um direito. Para os necessitados, a esmola não é
mais constrangedora, vergonhosa ou degradante, na medida em que não lhes seja
concedida por compaixão, por sentimento do dever ou por utilidade, mas porque eles
têm o direito de exigi-la. Tal direito tem, evidentemente, limites que devem ser fixados
para cada caso individual, mas a exigibilidade do auxílio não aumenta nem diminui
sua quantia, estabelecida segundo outras motivações. Pretende=se unicamente com
isto determinar a natureza do direito à assistência, convertendo-o em um conceito
que repousa em uma opinião fundamental da relação do indivíduo com os outros
indivíduos e com a comunidade. O direito à assistência deve ser classificado, junto
com o direito ao trabalho e o direito à vida, entre os “direitos humanos”. Certamente,
essa incerteza no que tange ao limite quantitativo, própria do direito à assistência
como dos outros direitos da pessoa humana, atinge aqui sua máxima expressão,
sobretudo quando a assistência se concretiza em dinheiro; porque o caráter
puramente quantitativo e relativo deste meio de pagamento dificulta a delimitação
objetiva das pretensões muito mais do que os auxílios in natura – salvo quando se
trate de casos muito complicados ou individualizados, nos quais o dinheiro possa ser
um auxílio mais adaptado e mais útil em longo prazo para o pobre do que um auxílio
in natura, com seu correlativo caráter providencial.
Também não está claro a quem se devem dirigir as ações embasadas neste
direito do pobre, nem que a solução a esta questão marque diferenças sociológicas
muito profundas. O pobre, que sente sua situação como uma injustiça da ordem
cósmica e reclama ajuda à criação inteira, enxergará qualquer indivíduo que esteja
em melhor situação do que ele como solidariamente responsável à sua pretensão.
Resulta daqui uma escala que vai desde o deserdado que enveredou para o crime e
que vê em toda pessoa bem vestida um inimigo, um representante da classe que o
496 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

“deserdou”, e que por isso pode ser assaltado de consciência limpa, até o mendigo
humilde, que pede uma esmola “pelo amor de Deus”. como se cada indivíduo
estivesse obrigado a colmatar as lacunas de uma ordem que Deus quis, mas não tem
realizado plenamente. O pedido do pobre vira-se neste caso para o indivíduo, porém
não para um indivíduo determinado, mas para qualquer um, em razão da
solidariedade universal. Além dessa correlação, que considera a cada indivíduo como
representante da criação inteira para os efeitos das demandas que se dirigem a ela,
os reclamos do pobre podem voltar-se para as coletividades particulares. O Estado,
o município, a paróquia, a sociedade profissional, o círculo de amigos, a família,
podem manter grande variedade de relações com seus membros, mas parece que em
cada uma destas relações existe um elemento que se atualiza em caso de
empobrecimento do indivíduo e se converte em direito à assistência. Eis o que estas
relações sociológicas têm em comum ainda que sejam de natureza muito
heterogênea. Os direitos dos pobres, que nascem de semelhantes vínculos,
misturam-se de modo singular nas sociedades arcaicas, nas quais o indivíduo se
encontra determinado pelos usos tribais e pelas obrigações religiosas que formam
ali uma unidade indiferenciada. Entre os antigos semitas, por exemplo, o corolário
que decorre do direito do pobre a partilhar a refeição, não era a generosidade pessoal,
mas a pertença social e o costume religioso. Quando a assistência dos pobres
encontra sua razão suficiente em um simples vínculo orgânico entre os elementos, a
tônica é colocada principalmente no direito do pobre – que pode estar baseado na
unidade metafísica e ser, portanto, de ordem religiosa, ou fundar-se na unidade
biológica e ter, por conseguinte, um caráter tribal e familiar. Logo veremos que,
quando, pelo contrário, a assistência dos pobres é teleológica (quer dizer, depende
de um fim que se procura alcançar com ele), e não causal (isto é, em decorrência da
unidade real e ativa dos membros do grupo), o direito de reivindicação do pobre
regride até extinguir-se por completo.
Enquanto nos casos frisados precedentemente o direito e o dever apareciam
como as duas faces de uma relação absoluta, a perspectiva é completamente
diferente se optamos por uma abordagem que privilegie o dever de quem dá e não o
direito daquele que recebe. No caso extremo, o pobre desaparece enquanto sujeito
com direitos específicos e ponto fulcral dos interesses envolvidos. A motivação da
Georg Simmel | 497

dádiva reside então exclusivamente na significação para o dadivoso do gesto de dar.


Quando Jesus diz ao moço rico: “vai, vende os teus bens e dá aos pobres” 1, ele não
se importava visivelmente, naquele momento, com os pobres, mas unicamente com
a alma do moço2, de cuja salvação aquela renúncia era simples meio e símbolo. Mais
tarde, a esmola cristã será da mesma natureza: não irá mais longe do que uma forma
de ascetismo ou de uma “boa obra” que contribui a determinar o destino futuro do
doador. O apogeu da mendicidade durante a Idade Média; a utilização absurda das
esmolas; e a desmoralização do desvalido, corrompido por doações distribuídas sem
qualquer discriminação, ao encontro de toda espécie de trabalho civilizador: eis aqui
como a esmola se vinga, poderíamos dizer, de ser concedida segundo critérios
puramente subjetivos, que apenas têm em conta o doador e não o pobre, seu
destinatário.
A motivação deixa de se limitar ao sujeito doador – mas também sem voltar-
se para o destinatário – logo após o bem-estar da sociedade exigir a assistência aos
pobres. Esta assistência, então, é realizada (de bom grado ou por imposição da lei)
para que o pobre não se transforme em um inimigo ativo e perigoso da sociedade.
Para que sua energia diminuída seja útil à coletividade e se una aos esforços para
impedir a degeneração da sua descendência. O pobre não tem então mais
importância como pessoa, nem sua situação tem mais repercussão para o caridoso
da que tinham quando ele pretendia salvar sua alma. É verdade que o egoísmo
subjetivo do esmoler tem desaparecido, mas não por isso se quer o melhor para o
pobre, senão para a sociedade. O fato de que o pobre receba a dádiva não é o fim
último, mas um simples meio, como no primeiro caso. O predomínio do ponto de vista
social no que diz respeito à esmola se manifesta, por fim, na possibilidade de negá-
la – invocando esse mesmo princípio – mesmo quando a compaixão pessoal ou o
embaraço de ter que dizer “não” podiam nos mover a outorgá-la.
A assistência aos pobres como instituição pública oferece, assim, um caráter
sociológico muito singular. Do ponto de vista de seu conteúdo, ela é absolutamente

1
Mt, 19, 16-30. Conf. também Mc, 10, 17-31 e Lc, 18, 18-30. Dos três evangelhos sinópticos que
relatam este episódio da vida pública de Jesus, só o de Mateus chama o interlocutor do Mestre de
“moço rico”. (NT)
2
Circunstância corroborada pela conclusão que tira Jesus da atitude final do moço: “Como é difícil a
quem tem riquezas entrar no Reino de Deus!” (Mc, 10, 23). (NT)
498 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

pessoal, pois não faz outra coisa que atenuar o sofrimento dos indivíduos mais
necessitados. Nisso se diferencia das outras instituições orientadas para a
segurança e o bem-estar públicos. Tais instituições pretendem favorecer todos os
cidadãos: o exército e a polícia, a escola e as comunicações, a administração de
justiça e a Igreja, a representação parlamentar e a pesquisa científica, todas essas
instituições se valem de estruturas materiais e humanas que servem à realização de
ações que não se dirigem, em princípio, às pessoas consideradas como indivíduos
diferenciados, mas a seu conjunto – porque é a unidade de muitos ou de todos eles
que constitui o seu objeto. Em compensação, a assistência dos pobres visa, na sua
atividade concreta, ao indivíduo e a sua situação. Esse indivíduo é, para a forma
moderna e abstrata da beneficência, o alvo a ser alcançado, mas de modo algum o
fim último, que não é outro que a proteção e o progresso da coletividade. A tal ponto
que o pobre não pode considerar-se nem sequer como meio para consegui-lo – o
que melhoraria sua posição – pois a ação social não se serve dele mesmo, mas
apenas de certos meios objetivos, materiais e administrativos, destinados a suprimir
os danos e perigos que o pobre significa para o bem comum. Esta situação formal
não só se apresenta na vida social coletiva, mas também, de modo evidente, em
círculos mais estreitos. Está, inclusive, no seio das famílias que se prestam
inumeráveis ajudas para resolver as necessidades individuais de algum de seus
membros, não pelo próprio necessitado, mas para que a família não se envergonhe e
perca a sua boa reputação por causa da pobreza de um de seus integrantes. Da
mesma maneira, a assistência que os sindicatos ingleses concedem aos operários
desempregados volta-se mais a evitar que o assistido seja constrangido a trabalhar
em troca de um salário miserável (o que iria reduzir a remuneração média de toda a
formação profissional), que a atenuar o sofrimento individual do socorrido.
Se considerarmos, pois, esse sentido da assistência dos pobres, parece
evidente que esta forma de tirar dinheiro dos ricos e de dá-lo aos pobres não visa de
maneira alguma à equalização de situações individuais, nem se propõe (sequer
tendencialmente) à eliminação do fosso social que os separa. Em contradição
flagrante com todas as aspirações socialistas e comunistas, que pretendem suprimir
a estrutura atual de nossa sociedade, a assistência se baseia nessa mesma estrutura,
propondo-se atenuar apenas o que for preciso de certas manifestações extremas da
Georg Simmel | 499

diferença social, para que ela continue a ser o sustentáculo da estrutura em questão.
Se a assistência repousasse no interesse do indivíduo pobre, não haveria em
princípio qualquer limite imposto à transferência de riquezas no seu benefício, até
que a igualdade fosse atingida. Mas, como é feita com o interesse geral da totalidade
social em vista – dos círculos políticos, familiares, e outros determinados
sociologicamente –, ela não tem motivos para ter uma atitude quantitativa ou
qualitativamente mais generosa em relação ao sujeito que a exigida pela manutenção
da totalidade no seu status quo.
Quando esta teleologia social centralista é dominante, a assistência dos
pobres oferece a maior tensão sociológica possível entre o fim imediato e o fim
indireto de uma ação. O alívio do sofrimento subjetivo é uma finalidade tão categórica
para a sensibilidade, que uma unidade social capaz de privá-lo deste caráter de
última instância e fazer dele uma mera técnica para seus fins supraindividuais, terá
conseguido um assinalado triunfo. Pois que esta técnica permite à unidade social
distanciar-se suficientemente do indivíduo e colocar-se a uma distância dele que
(ainda que pouco aparente) é, pela sua frieza e caráter abstrato, mais impiedosa e
radical do que os sacrifícios exigidos do indivíduo em favor da comunidade, nos quais
o meio e o fim frequentemente se encontram numa mesma série sentimental.
Ao considerarmos esta relação sociológica, explicamos a singular
complexidade de direitos e deveres com a qual nos deparamos na assistência dos
pobres por parte do Estado moderno. Muitas vezes encontramos-nos com o princípio
segundo o qual o Estado tem o dever de assistir os pobres, mas isso não implica que
o pobre tenha o direito de ser assistido. O pobre não tem – como, por exemplo, já foi
dito expressamente na Inglaterra – nenhum direito de intentar uma ação junto dos
tribunais e procurar reparação se recusarem injustamente a ele um auxílio. É que o
direito correspondente a determinado dever do Estado não é o direito do pobre, mas
sim o direito que qualquer cidadão tem a que o imposto que paga para socorrer os
desvalidos seja suficiente e empregado de maneira a cumprir efetivamente os
objetivos públicos da assistência dos pobres – sem contar que do ponto de vista do
pobre, todas essas relações entre direitos e deveres são coisas que, geralmente,
passam despercebidas. Por conseguinte, em caso de se negligenciar esta
assistência, não seria o pobre quem teria legitimidade ativa para propor uma ação
500 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– iniciar um processo – contra o Estado, mas unicamente os outros elementos


indiretamente lesados pela negligência estatal. Se fosse possível provar, por
exemplo, que um ladrão não teria cometido um furto se a autoridade administrativa
competente lhe tivesse pagado o auxílio que a lei garante e que pedira, a vítima do
furto poderia em princípio reclamar uma indenização por perdas e danos à entidade
que concede os auxílios. Como podemos ver, a assistência aos pobres ocupa na
teleologia jurídica o mesmo lugar que a proteção dos animais. Hoje na Alemanha
ninguém incorre em responsabilidade penal por atormentar um animal, a menos que
os atos sejam cometidos “em público ou forem de natureza a contrariar e ofender
sentimentos ou convenções morais ou sociais estabelecidas”. Portanto, não é o
animal maltratado que justifica a pena, mas a eventual indignação ou revolta das
testemunhas dos maus-tratos.
A evacuação do pobre (que consiste em negar-lhe a posição de fim último na
cadeia teleológica sem lhe permitir sequer figurar nela como meio) se revela também
no fato de que a assistência aos pobres seja talvez o único ramo da administração
do moderno Estado (relativamente democrático) de direito no qual os diretamente
interessados não têm qualquer envolvimento. De acordo com a concepção assim
definida, a assistência dos pobres se traduz no emprego de meios públicos para fins
públicos – e como o próprio pobre se encontra excluído de toda a sua teleologia
(coisa que não ocorre com os interessados nos outros ramos da administração), é
lógico não aplicar aos pobres nem à sua assistência o princípio da autogestão,
reconhecido com maior ou menor extensão nas outras matérias. Quando o Estado se
vê obrigado por uma lei a canalizar a corrente caudalosa de um rio ou córrego para
irrigar certo território, o curso de água fica aproximadamente na mesma situação que
o pobre assistido pelo poder público: é o objeto do dever, mas não o sustentáculo do
direito correspondente, o que poderá vir a acontecer com a população ribeirinha do
referido flume. Mas, assim que esse interesse exclusivamente centralista se torna
dominante, a relação entre o direito e o dever pode ser alterada em virtude de pontos
de vista utilitários. O projeto de lei prussiano sobre os pobres de 1842 sublinhava que
o Estado devia organizar a assistência aos pobres no interesse do bem-estar geral.
Com esse objeto, criava pessoas jurídicas de direito público, que estariam obrigadas
perante o Estado, a socorrer os indivíduos necessitados, mas não em face destes
Georg Simmel | 501

últimos, que não possuíam nenhum direito jurídico de exigir esse auxílio estatal. O
princípio fica bem claro quando a lei positiva impõe aos parentes abastados do pobre
o dever de alimentá-lo. À primeira vista, parece efetivamente que, neste caso, o pobre
pode de maneira legítima fazer valer, junto da sua família cheia do necessário à
subsistência, um direito que o Estado não assume e cuja execução se limita a
garantir. Todavia, o sentido profundo do preceito é outro. A comunidade política cuida
do pobre por razões de utilidade, e logo após se apoia nos parentes, porque o custo
da assistência seria excessivo para ela, ou pelo menos, é assim que ela o considera.
A ação de alimentos proposta diretamente, por exemplo, por um pobre contra seu
irmão endinheirado, é única e exclusivamente da alçada da moral, e não tem nada a
ver com um direito juridicamente vinculativo do necessitado. A lei só se importa de
servir os interesses da comunidade e, neste caso, consegue fazê-lo de duas
maneiras: auxiliando o pobre, e tirando dos parentes ricos o valor quantitativo do
auxílio.
Eis, com efeito, a estrutura sociológica dos preceitos legais sobre a obrigação
alimentar, cuja intenção não é dar apenas uma forma juridicamente vinculativa a
deveres morais, como evidenciam os fatos, tais como o seguinte. É verdade que a
obrigação moral de assistência entre irmãos e irmãs se impõe por ser um dever ou
uma necessidade irresistível. Porém, quando se tratou de lhe atribuir força legal no
primeiro projeto de Código civil alemão 3 , a “exposição de motivos” reconheceu a
“dureza extraordinária” dessa obrigação, e justificou sua introdução afirmando que,
caso contrário o encargo para a assistência pública, representado pela prestação de
alimentos aos pobres, seria grave demais, e o sistema entraria em colapso. Isto é
exatamente o que prova o fato de que, muitas vezes, a importância da obrigação legal
de alimentos seja claramente superior a tudo o que se poderia exigir em termos de
moral individual. O Supremo Tribunal do império proferiu julgamento contra um
idoso, que se encontrava numa situação de extremada pobreza, forçando-o a
entregar todos os seus haveres (cerca de cem Marks4) a título de alimentos a favor
de um filho aleijado, apesar de o ancião ter exposto de modo crível que ele em breve

3
Ou Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Em desenvolvimento desde 1881, o código civil da Alemanha
tornou-se efetivo a 1º de janeiro de 1900 e foi considerado um projeto grandioso e inovador. (NT)
4
O Mark ou marco do ouro alemão, conhecido também como Goldmark, foi uma moeda usada pelo
Império alemão de 1873 a 1914. (NT)
502 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seria também inválido, e que aquele dinheiro era a sua última reserva. À luz do que
precede, é muito duvidoso que, neste caso, possa falar-se de um direito moral do
filho. A ignorância desse direito diz muito sobre a sociedade, porque a única coisa
que tira o sossego dos agentes sociais é saber se podem recorrer ao parente para
jogar sem custo sobre os ombros dele a obrigação que a coletividade tem
relativamente com o pobre, de acordo com as normas gerais. De resto, esse sentido
profundo da obrigação alimentar está simbolizado igualmente pela maneira como ela
é cumprida na prática. Em primeiro lugar, se assiste o pobre, a seu pedido, e depois
se parte em busca de um filho ou de um pai, que, eventualmente e em conformidade
com a sua situação econômica é condenado a reembolsar não a totalidade dos
montantes pagos, mas, provavelmente, a metade ou um terço. O objetivo
exclusivamente social da regra jurídica também reaparece na disposição segundo a
qual a obrigação de pagar alimentos à luz do Código civil alemão só se aplica quando
ela não “comprometa o estilo de vida do obrigado em conformidade com a sua
posição social”. É, no mínimo, contestável que, em certos casos, não seja moralmente
obrigatório um auxílio que exponha a risco aquele a quem for justo exigir pagar
alimentos, por exemplo. Mas, apesar de tudo, a coletividade renuncia a exigi-lo
porque o fato de que um indivíduo desça de “sua posição social” causa um dano à
própria situação do conjunto; dano, aliás, que parece se antepuser em importância
social à vantagem material que a coletividade poderia conseguir do obrigado. A
obrigação alimentar não tem nada a ver, então, com qualquer direito do pobre em
relação à sua família abastada. Pois o dever de prover alimentos não é mais do que
o dever geral de assistência do Estado, mas transferido aos parentes e sem
correlação com ação ou pretensão alguma do pobre.
Porém, a imagem da corrente de água acima empregada, não era
absolutamente exata. Porque o pobre não é apenas pobre, mas também cidadão.
Enquanto tal se beneficia dos mesmos direitos que a lei concede a todos os membros
do Estado como corolário da obrigação pública de assistir os necessitados.
Recorrendo ainda àquela figura, poderíamos dizer que o pobre é, ao mesmo tempo, o
córrego e o ribeirinho, no mesmo sentido que o cidadão mais rico também pode ser.
No entanto, as funções do Estado, que idealmente concernem do mesmo modo a
todos os indivíduos no gozo de seus direitos civis e políticos, representam conteúdos
Georg Simmel | 503

muito diferentes de acordo com as diversas posições sociais que ocupam. Por esta
razão, como o pobre não participa na assistência aos desvalidos como sujeito com
fins próprios, mas só como elo de uma organização teleológica do Estado que está
muito além dele, seu papel nesta função do Estado não tem o mesmo alcance do que
o de um cidadão abastado. Contudo, o que interessa do ponto de vista sociológico é
perceber que a posição particular que o pobre assistido ocupa não lhe impede, de
modo algum, de ser uma parte integrante da totalidade política do Estado. – a
despeito da sua situação individual que o converte, por um lado, no fim último da
assistência e, por outro, faz dele uma matéria inerte, um objeto desprovido de direitos
submetido às intenções globais do Estado. Apesar ou, mais precisamente, em virtude
de essas duas características, que parecem excluir o pobre assistido da totalidade
política aludida, ele se integra organicamente à estrutura global, participa, como
pobre, da realidade histórica da sociedade, que vive nele e sobre ele, e acaba
constituindo um elemento sociológico formal ao mesmo título que o funcionário, o
contribuinte, o professor ou o intermediário de qualquer negócio. Sua posição é,
aproximadamente, a mesma do indivíduo estranho ao grupo, que, evidentemente, não
forma parte da comunidade na qual vive, mas que precisamente por isso permite que
nasça uma entidade total superior que compreende simultaneamente as partes
autóctones e o estrangeiro, cujas ações recíprocas peculiares estão na origem do
grupo, no sentido mais amplo do termo, e caracterizam o novo círculo histórico real.
Assim, o pobre está, de certo modo, fora do grupo, mas esse distanciamento não é
nada mais do que uma maneira particular de ação recíproca entre o desvalido e o
coletivo, que permite que o primeiro se integre ao segundo.
Esta forma de representarmos essa dinâmica é a única que permite resolver a
antinomia sociológica do pobre, que reflete as dificuldades sócio-éticas da sua
assistência. A tendência solipsista do tipo medieval de esmola, que mencionamos
acima, resultava apenas de motivações objetivas do doador e negligenciava de certo
modo seu destinatário, o pobre, ao arrepio do princípio segundo o qual não devemos
jamais tratar um ser humano como um simples meio, mas sempre como um fim. Ora,
em princípio, aquele que recebe é também alguém que dá, pois o doador, por sua
parte, recebe de volta um acolhimento, uma reação favorável de aceitação. Isto é o
que torna a dádiva uma ação recíproca, um processo sociológico. Mas se o donatário,
504 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

como no caso acima mencionado, é totalmente excluído do processo intencional do


doador, se aquele desempenha o mesmo e mero papel de um gazofilácio ou caixa de
esmolas onde se depositam as oferendas para a missa pelas almas, a ação recíproca
fica interrompida – e, consequentemente, o gesto de oferecer deixa de ser um fato
social para converter-se em um fato simplesmente individual. No entanto, ainda que
seja verdade, como foi dito, que a prática moderna da assistência dos pobres também
não trata a cada um deles como um fim em si, não é menos certo que o pobre, mesmo
que situado numa série teleológica que o supera, resta como um elemento orgânico
do todo integrado a seu processo intencional, sobre a base dada. Certamente, tanto
agora como na forma medieval, a própria reação à dádiva recebida não recai num
indivíduo, mas (do fato de lhe ter sido restituída sua capacidade econômica,
impedindo que sua energia corporal se esgote e que seus impulsos o levem a usar
meios violentos para libertar-se da pobreza) a totalidade de seu círculo social reage
em consequência da ação do pobre. E isto não é uma mera questão de pormenor.
Uma relação puramente individual só é suficiente do ponto de vista ético, e perfeita
do ponto de vista sociológico, quando cada indivíduo é real e reciprocamente um fim
para o outro – ainda que naturalmente ele não seja exclusivamente um fim. Isto não
se aplica, entretanto, a uma coletividade supraindividual. A teleologia da coletividade
pode tranquilamente passar por cima do indivíduo e retornar a si mesma, de certo
modo, sem se preocupar com o indivíduo. Porém, a partir do momento que o indivíduo
forme parte do todo, ele se tornará imediatamente o alvo da ação e não será ignorado
por ela, como no outro caso. Porque mesmo que (como na forma medieval de esmola)
o caráter teleológico imediato seja negado ao pobre, enquanto membro do todo, ele
participará no caráter do fim próprio que a totalidade sempre tem.
A clareza desta visão centralizada da essência da assistência dos pobres se
revelou em símbolos substanciais muito antes de prevalecer seu papel orgânico na
vida coletiva. Na Inglaterra da Alta Idade Média 5 a assistência aos pobres estava a
cargo dos mosteiros e corporações eclesiásticas porque, como foi expressamente
dito, só os bens de mão-morta6 podiam assegurar um socorro de duração suficiente

5
A Alta Idade Média foi o período inicial do medievo, que se estendeu da queda do Império Romano
do Ocidente, em 476, até o enfraquecimento do feudalismo no início do século XI. (NT)
6
Bens de mão-morta era o nome que recebiam as propriedades das igrejas e comunidades
eclesiásticas que estavam sob a proteção especial do monarca. Os bispos e frades não podiam vendê-
Georg Simmel | 505

para assistir os pobres. As numerosas doações privadas (geralmente fruto de


pilhagens ou penitências) não bastavam para satisfazer esse fim porque não
estavam ainda devidamente organizadas pelo sistema administrativo secular e se
consumiam sem sucesso continuado. A assistência aos pobres ancorou-se, pois, no
único ponto firme e verdadeiramente basilar em meio ao caos e às vicissitudes da
sociedade da época; vínculo negativamente revelado com a indignação pública
experimentada pelos ingleses diante da negligência na assistência aos pobres pelo
clero enviado por Roma à ilha. Os religiosos estrangeiros não se sentiam intimamente
ligados à vida paroquial, e o fato de não cuidarem dos pobres apareceu como o signo
mais claro desta falta de entrosamento. Esse mesmo vínculo entre a assistência aos
pobres e o substrato mais sólido da existência social aparecerá claramente mais
tarde no liame estabelecido pelo imposto inglês em favor dos pobres e a propriedade
fundiária – ligação que foi ao mesmo tempo causa e consequência da percepção do
pobre como elemento orgânico da terra. Foi a mesma coisa que se produziu em 1861,
quando uma lei transferiu a uma sociedade de beneficência parte da carga que a
assistência dos pobres representava e que recaía até então sobre as paróquias.
Desse modo, o custo da assistência aos pobres não foi já coberto isoladamente pelas
paróquias, mas por um fundo proporcional ao valor de seus imóveis que elas
alimentavam. A proposição no sentido de que a partilha tivesse igualmente em conta
o número de habitantes foi rejeitada numerosas vezes. Tratava-se de uma recusa
total do elemento individualista, em cuja sequencia o sustentáculo da obligação de
assistir aos pobres deixou de ser a soma das pessoas para recair em uma unidade
supraindividual baseada na objetividade do solo e da terra. A assistência aos pobres
se tornou tão primordial para o grupo social, que se vincularam à administração local
(seguindo o mesmo princípio que orientou a prestação da assistência), primeiro a
instrução pública e a rede viária, e depois a saúde pública e os registros do estado
civil e capacidade das pessoas. A assistência dos pobres se tem convertido também
em outros lugares em sujeito e base da unidade política – porque se deve, em parte,

las, precisando em todo caso solicitar o consentimento do conselho municipal. A Igreja chegou assim
a acumular uma imensa quantidade de bens territoriais e urbanos que a tornaram na maior proprietária
da Idade Média. (NT)
506 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a ela. A Confederação da Alemanha do Norte 7 , por exemplo, decidiu que nenhum


necessitado podia ficar sem auxílio em todo seu território e que cada pobre da
Alemanha do Norte devia ser tratado da mesma maneira em todas as unidades
políticas confederadas. Se na Inglaterra diversas razões técnicas e alheias à
assistência aos pobres contribuíram ao estabelecimento do vínculo entre esse
socorro e a propriedade territorial, esta conexão não perde seu sentido sociológico
profundo porque a prestação de outros serviços da administração (baseada no
mesmo princípio decorrente deste liame) tenha provocado grandes dificuldades
técnicas, motivadas – entre outras razões – pelos diferentes limites da competência
territorial das sociedades de beneficência e das divisões administrativas de
determinados países. É precisamente porque seu sentido técnico pode ser
contraditório que a unidade de seu sentido sociológico fica destacada.
Por conseguinte, a concepção que pretende definir a assistência aos pobres
como uma “organização das classes abastadas a fim de concretizar seu sentido
moral do dever, associado à propriedade”, apenas dá conta de uma visão
absolutamente incompleta das coisas. Ao contrário, a assistência está mais para
uma parte da organização da totalidade a que o pobre e as classes abastadas
pertencem de fato. É certo que as características técnicas e materiais da posição
social fazem do pobre um mero objeto ou ponto de passagem de uma vida coletiva
que o supera. Mas não é outro, em última instância, o papel que desempenha todo
membro individual concreto da sociedade – do qual, conforme o ponto de vista
momentaneamente aceito aqui, pode dizer-se o que Spinoza diz de Deus e do
indivíduo: que podemos amar a Deus, mas que seria contraditório pretender que Ele,
a unidade que nos contém, nos chegasse a amar. Em compensação, o amor que nós
lhe consagramos, é uma parte do amor infinito com que Deus se ama a si mesmo. A
singular exclusão do pobre, por parte da comunidade que o assiste, caracteriza o
papel que ele desempenha dentro da sociedade, como um membro dela em situação
particular. Se tecnicamente o pobre é um mero objeto, contrariamente ele é um
sujeito no sentido sociológico mais amplo, que constitui com todos os outros a

7
A respeito desta confederação, vide, no Capítulo IV, nossa nota 38, alusiva à formação do novo
Império Alemão sobre controle prussiano. (NT)
Georg Simmel | 507

realidade social, sem deixar de encontrar-se além da unidade abstrata e


supraindividual da sociedade.
Por isso, a estrutura geral do círculo também permite responder à questão: a
que círculo o pobre pertence? Se ele ainda exerce qualquer atividade econômica,
pertence ao setor da economia geral em que aquela atividade está imediatamente
compreendida. Se ele é membro de uma igreja, se posiciona no setor de uma
comunidade de crentes, que não coincida com outra delimitação de diferente
natureza. Se fizer parte de uma família, sua posição está no círculo da linha de
parentesco, definida pessoalmente no espaço, quer por vínculo de sangue, quer por
casamento. Mas, se é apenas pobre, a que círculo pertence? Uma sociedade cuja
coesão ou organização se baseia na consciência de pertença a uma tribo, incluirá o
pobre no círculo de sua tribo. Outra sociedade, cujos vínculos essencialmente éticos
se realizam a través da Igreja, adscreverá o pobre a alguma associação religiosa leiga
que é o lugar onde uma sociedade dessas características costuma reagir à realidade
do desamparo. Para a “exposição de motivos” da lei alemã de 1871 sobre assistência
domiciliar, o pobre pertence àquela comunidade – quer dizer, deve ser assistido por
aquela comunidade – que se beneficiou de sua força econômica antes dele
empobrecer. Ora, a estrutura social aparece neste último princípio, pois antes do
triunfo completo da ideia moderna de Estado, o município era lugar que desfrutava
da atividade econômica daquele que podia ficar pobre. Mas a liberdade de circulação
moderna, a troca de todas as energias entre diversos e distantes lugares anulou tais
restrições, de modo que só a comunidade nacional possa ser considerada como o
terminus a quo e o terminus ad quem de todas as prestações. Se as leis permitem
atualmente a cada um de fixar residência em qualquer lugar do país, se o município
já não possui o direito (correlativo de sua identificação com seus habitantes) de se
opor à instalação em seu perímetro de elementos julgados perniciosos aos
interesses de um grupo, não podemos esperar do poder local que se mostre solidário
(se trate de dar ou de tomar) com o indivíduo. Apenas porque os municípios são
agentes do Estado central, e só por razões de ordem prática – como põe em realce a
“exposição de motivos” da mencionada lei alemã – o poder local e o encarregado de
cuidar dos pobres.
508 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Eis, pois, a situação-limite da posição formal do pobre, e que revela até que
ponto essa posição depende do nível geral de evolução da sociedade. O pobre
pertence ao círculo superior, quer dizer, ao maior e eficaz círculo na prática. Não
pertence a uma parte da totalidade, mas à totalidade mesma: esse círculo é, enquanto
unidade, o lugar ou poder ao qual o pobre se reporta como indivíduo sem condições
de suprir suas próprias necessidades. Só para esse círculo (que por ser o maior e
mais externo não é circundado por algum outro em que possa recair a obrigação)
deixa de existir essa dificuldade que os homens que conhecem a prática assistencial
dizem ser própria das pequenas associações beneficentes – a relutância em socorrer
alguns casos de pobreza grave e prolongada devido ao medo de que, depois de se
ocupar desses pobres, mesmo que uma vez, tenham que arcar para sempre com seu
desvalimento. Destaca-se aqui uma característica muito importante para a interação
recíproca dos homens e que poderíamos chamar de indução moral: quando fazemos
uma boa ação de qualquer tipo (embora seja a mais espontânea e singular) sem estar
sujeitos a qualquer coação, nos sentimos obrigados a dar continuidade a esse
comportamento beneficente; obrigação que na realidade não decorre apenas de um
direito ou pretensão de quem recebeu o benefício, mas de nosso sentimento de
outorgantes. É bem sabido, por experiência prática, que os pedintes que recebem
regularmente uma esmola, em breve consideraram terem o direito de exigi-la, e que
cabe ao doador o dever de proporcioná-la. De modo que se o autor da liberalidade
deixa de cumprir essa suposta obrigação, o morador de rua pode interpretar a recusa
como um atentado contra sua propriedade e sentir uma irritação que não se
manifestaria contra aquele que nunca deu esmola. Isto funciona inclusive em um
nível mais elevado: quem protege um necessitado por algum tempo, mesmo tendo
indicado antes com exatidão a duração do auxílio, não poderá deixar de sentir uma
ligeira sensação de mal-estar quando cancelar as doações, como se cometesse uma
falta. É o que reconhece, em plena consciência, uma lei talmúdica do código ritual
Yore Deah: “quem quer que tenha socorrido três vezes um pobre dando-lhe a mesma
quantia de dinheiro, se compromete implicitamente a prosseguir com o auxílio,
mesmo que ele não tivesse a menor intenção de fazê-lo”. O compromisso adquire
assim a qualidade de um voto solene que só pode ser dispensado por razões muito
especiais (como, por exemplo, o próprio empobrecimento).
Georg Simmel | 509

Este caso é muito mais complexo do que amar a pessoa que se tem
beneficiado. Neste último evento, que só tem certo parentesco com o primeiro,
percebe-se a contrapartida simétrica do princípio odisse quem laeseris 8 . Pois se
compreende bem que se possa projetar a satisfação advinda da realização de nossas
próprias ações boas sobre quem deu ocasião concreta para elas. No amor por aquele
por quem fazemos sacrifícios, nos amamos essencialmente a nós mesmos, assim
como nos odiamos a nós mesmos quando odiamos àquele contra quem cometemos
injustiças. Mas esse sentimento de obrigação que o benefício feito deixa na alma do
benfeitor, essa forma singular da noblesse obligée 9 , não pode explicar-se por
psicologia tão simplista. Com efeito, pensamos que esse caso se relaciona com uma
condição a priori: a de que toda ação desse gênero – apesar de sua aparente
liberdade, de seu suposto caráter de opus supererogationis10– procede de um dever
(que em tal conduta se subentende sempre uma obrigação profunda) que a ação
benéfica revela e, de certo modo, torna sensível. Acontece aqui o mesmo que sucede
com a indução científica, que também não se contenta em aceitar a igualdade entre
um processo passado e outro futuro, simplesmente porque o primeiro tenha tal ou
qual estrutura, mas porque se pode deduzir do primeiro uma lei que o determina da
mesma maneira que determinará necessariamente qualquer outro processo futuro.
Isso se relaciona claramente com o argumento que está na origem deste estudo. Se,
no geral, todo gesto de altruísmo, todo ato de fazer o bem ou de caráter generoso,
não é – mesmo nos casos extremos e em última instância – mais do que dever e
obrigação, podemos dizer que todo ato de beneficência é, em seu sentido mais
profundo – se quisermos, do ponto de vista da metafísica e da moral –, o mero
cumprimento de um dever que, naturalmente, não se esgota com a primeira ação
benevolente, mas continua a existir enquanto subsista a ocasião determinante. Se
assim fosse, o socorro ofertado a uma pessoa, seja ela qual for, seria a ratio
cognoscendi11, o sinal que nos faz ver que uma das linhas ideais do dever entre dois

8
Locução latina que pode ser traduzida como “odiar a quem se tenha ferido”. (NT)
9
Expressão francesa que pode ser traduzida como “a nobreza obriga” ou “quem quer ser nobre deve
se comportar nobremente”, (NT)
10
Diz-se da “obra que fica além do que é necessário ou obrigatório”. (NT)
11
Quer dizer, o “modo como conhecemos” algo, em oposição a sua ratio essendi, que seria a “razão
de ser” desse algo. (NT)
510 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seres humanos passa por aqui, e revela o caráter intemporal do liame que persiste
depois da assistência.
Vimos até agora duas formas da relação entre o direito e o dever: o pobre tem
um direto de receber o auxílio e existe um dever de assistência, do qual é beneficiária
a sociedade e não o pobre – dever do que depende a autoconservação da sociedade
e que pressupõe a exigência de que alguns de seus órgãos e certos círculos assistam
aos pobres. Além destas formas, vige uma terceira, que de um modo geral rege a
consciência moral, e impõe à coletividade e às pessoas abastadas uma obrigação de
assistir o pobre – prestação que não tem outro fim que o alívio da situação dos
necessitados. A esta obrigação corresponde um direito do pobre, que é a outra face
da relação puramente moral que existe entre os carentes e as pessoas prósperas. Se
estivermos certos, desde o século XVIII o clima espiritual mudou a tonalidade dessa
relação. O ideal da humanidade e dos direitos da pessoa substituiu, notadamente na
Inglaterra, o espírito centralista da lei dos pobres (poor law) de Isabel I12 (de acordo
com a qual era preciso procurar um trabalho para o pobre no interesse da
comunidade) pelo princípio de que todo pobre – que ele possa e deseje trabalhar ou
não – tem direito a um rendimento mínimo garantido. Em compensação, para a
beneficência moderna, a correlação entre o dever moral (do doador) e o direito moral
(do destinatário) é resultado do labor precípuo do doador Evidentemente, o peso
dessa forma de beneficência recai essencialmente na caridade privada, em
detrimento da ação pública, pelo qual trataremos agora de determinar a significação
sociológica desse peso partindo da perspectiva moral aludida.
Em primeiro lugar, convém constatar aqui a tendência, já indicada, de
considerar a assistência dos pobres como um assunto próprio do círculo mais amplo
(o do Estado) embora inicialmente fosse abrangido em todo o lado pelo município
local. Isso decorria, em princípio, do elo associativo criado pela comuna, pois que o
indivíduo via a cidade em detrimento do Estado como o organismo supraindividual
que estava sobre ele e ao seu redor. Consequentemente, enquanto esse processo não

12
As poor laws foram um sistema de ajuda social aos pobres na Inglaterra e Gales que se desenvolveu
a partir da Idade Média tardia e das leis Tudor que pretenderam dar conta dos problemas causados
pelos então chamados “vadios e mendigos”, antes de ser codificado durante a década de 1587-1598
para tratar dos "pobres impotentes”. O primeiro desses estatutos, conhecido como a “antiga lei dos
pobres”, foi aprovado durante o reinado de Isabel I. (NT)
Georg Simmel | 511

foi objetiva e psicologicamente invertido pela liberdade de circulação, era natural que
os vizinhos socorressem aos indigentes. A isto se acrescenta uma circunstância
extremamente importante para a sociologia do pobre: de todas as reivindicações
sociais fundadas em uma qualidade geral da pessoa (por oposição às de caráter
individual), a do pobre é a que mais impressiona. Prescindindo de estímulos agudos
como os provocados por um acidente ou pela aproximação com objetivo sexual, não
há nada como a emoção decorrente do sofrimento e a miséria que aja com tanta
impessoalidade e indiferença a respeito das demais qualidades do seu objeto e, ao
mesmo tempo, com imperiosidade tão imediata e efetiva. Eis o que confere caráter
especificamente local ao dever de assistir os pobres. Colocá-lo no centro de um
círculo suficientemente amplo para funcionar apenas a partir do conceito geral de
pobreza, em vez de ser impulsionado pela impressão imediata, é um dos caminhos
mais longos que as formas sociológicas têm percorrido entre a percepção sensorial
e a abstração. Ora, na medida em que a assistência aos pobres se transformava em
uma obrigação pública abstrata (na Inglaterra desde 1834, na Alemanha mais ou
menos nos meados do século XIX) sua natureza mudou em conformidade com esta
forma de centralização – pois se o Estado manteve a obrigação do município para a
maioria das prestações aos pobres, só reconheceu esse círculo menos amplo como
seu representante. A organização local converteu-se em uma simples técnica para
conseguir a maior eficácia objetiva. e a cidade deixou de ser o ponto de partida, mas
o ponto de trânsito dos auxílios. Por isso, as associações de beneficência se fundem
em nome da consecução de um objetivo (por exemplo, na Inglaterra se organizam de
tal modo que cada uma delas possa sustentar uma workhouse13), ou até mesmo – a
tendência é essa – para mantê-las afastadas das influências partidárias locais. O
emprego crescente de funcionários sociais assalariados aponta na mesma direção.
Relativamente aos pobres, estes agentes são muito mais representantes da
coletividade (de quem recebem seu salário) do que os voluntários, que realizam seu

13
Na história britânica uma workhouse era um lugar onde as pessoas pobres que não tinham com que
subsistir podiam viver e trabalhar. O exemplo mais antigo delas data de 1652 em Exeter, embora
existam provas escritas da presença de instituições similares anteriores a essa data. A vida nessas
casas era intencionalmente dura, de forma a dissuadir a entrada daqueles em condições físicas para
o trabalho e garantir que apenas os realmente necessitados as procurassem. Com o avanço do século
XIX, as workhouses gradativamente se tornaram refúgios para os idosos, pessoas com deficiência e
doentes. (NT)
512 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

trabalho sem remuneração e agem de certo modo mais como seres humanos,
considerando não tanto o ponto de vista simplesmente objetivo, mas sobretudo o
humano, mostrando indulgência e compreensão para com os outros. Finalmente, há
uma partilha de responsabilidades muito significativa em termos sociológicos. É
muito útil que a assistência aos pobres continue sendo prestada no essencial pelos
municípios, ao menos porque cada caso deve ser tratado individualmente, o que só é
possível na proximidade e com um conhecimento preciso do espaço em que se
exerce a atividade. Sem esquecer que, se é o município que concede o auxílio, deve
também obter os recursos necessário – pois, do contrário, seria talvez generoso
demais com os fundos públicos. Todavia, existem casos de extrema necessidade
material nos quais não há esse perigo que se pretende evitar, porque se pode
determinar sua procedência ou fundamento, assim como o volume dos auxílios
segundo critérios absolutamente objetivos: os doentes, os deficientes visuais ou
auditivos e enfim os insanos e outros excepcionais. Nesses casos, a assistência tem
um caráter mais técnico e, por consequência, o Estado, como a grande associação,
encontra-se mais bem equipado para fazer frente a ela. A maior abundância de
recursos e a administração centralizada do Estado demonstraram sua superioridade
em lidar com esses casos em que as pessoas e a situação local são menos
determinantes. E a esta determinação qualitativa dos serviços diretos do Estado se
acrescenta a determinação quantitativa que distingue tais prestações daquelas da
caridade privada: o Estado, como geralmente os serviços públicos, só se volta para
as necessidades mais urgentes e imediatas. Em toda parte, e na Inglaterra mais do
que em qualquer outra, a assistência aos pobres se baseia no princípio firmemente
estabelecido de que não se deve tirar do bolso dos contribuintes mais do que o
mínimo absoluto indispensável à sobrevivência do pobre.
Tudo isso está profundamente condicionado pelo caráter das ações coletivas
no domínio do espírito. O elemento comum dessas forças ou interesses de um grande
número de indivíduos só pode deter-se em suas particularidades pessoais quando
se tratar de uma organização com divisão do trabalho, cujos membros
desempenham diferentes funções. No entanto, quando é preciso realizar uma ação
unitária, seja por um órgão que funcione de maneira imediata ou pela via
representativa, o conteúdo dessa ação só pode compreender o mínimo de
Georg Simmel | 513

singularidades pessoais que possibilita alcançar o acordo de todos os sujeitos.


Assim, se se fazem despesas em nome de uma coletividade, primeiramente, não se
deve gastar mais do que desembolsaria o menos dispendioso de seus membros.
Uma coletividade fisicamente presente pode deixar-se levar por um acesso de
prodigalidade, mas quando a vontade de cada indivíduo não se expressa
imediatamente, devendo antes ser presumida por parte de representantes, é preciso
supor que todos gostariam de despender apenas o mínimo estritamente necessário.
Esta não é, evidentemente, uma necessidade lógica irrefutável – afirmar o contrário
não seria uma contradição lógica –, mas corresponde a um princípio psicológico
tantas vezes confirmado pela experiência, que adquiriu o valor prático do
logicamente demonstrável.
A ação de massa tem o caráter de um mínimo porque necessariamente deve
conter a menor quantidade admitida da escala intelectual, econômica, cultural,
estética, etc. O direito válido para todos tem sido definido como o mínimo ético; a
lógica válida para todos seria o mínimo intelectual; o “direito ao trabalho”
reivindicado para todos só pode aplicar-se a atividades produtivas com um mínimo
de complexidade; a pertença a um partido exige em princípio o reconhecimento de
um programa mínimo sem o qual a associação política em questão não poderia
existir como tal. A expressão mais cabal desse tipo de mínimo social é perfeitamente
expressa no caráter coibente dos processos e interesses coletivos.

Digressão sobre o caráter coibente de certos comportamentos coletivos

A unidade dos fenômenos que acabamos de mencionar é obtida, em muitos


aspectos, exclusivamente por negações que, com frequência, desenvolvem esse
caráter coibente em proporção a sua extensão numérica. Tratando-se de
comportamentos de massa, as motivações que põem os indivíduos em prontidão
para a ação são amiúde tão diversas que sua unificação fica mais fácil quanto mais
coibitivo, ou até mesmo destrutivo, seja seu conteúdo. O descontentamento que está
na origem das grandes revoluções se alimenta sempre em tantas e tão contraditórias
fontes que não seria possível a sua unificação em torno de um objetivo assertivo.
Cabe aos círculos mais restritos levar a cabo essa tarefa, assim como às forças
514 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

individuais, que se dispersam no cumprimento de inúmeros atos privados, mas que


produzem um efeito destrutivo arrasador quando convergem. É nesse sentido que
um grande conhecedor da história 14 afirmou que a multidão era sempre ingrata
– porque (muito embora o conjunto prospere e se desenvolva) o indivíduo não
consegue deixar ver o que ainda individualmente lhe falta. A disparidade entre as
condições individuais que não deixa outra possibilidade de acordo que a baseada na
15 
rejeição (o que se deve entender, naturalmente, cum grano salis e
independentemente de tudo o que a sociedade faz para superar este destino), ficou
muito clara, por exemplo, no primeiro movimento revolucionário russo. A vasta
extensão territorial, as diferenças culturais entre as pessoas e a diversidade dos
objetivos prevalentes nesse movimento fizeram efetivamente do conceito de niilismo
(a simples destruição de tudo que existe) a expressão adequada do único
denominador comum a todos os elementos.
A mesma característica se observa no resultado das grandes consultas
eleitorais que, de um modo quase incompreensível é, amiúde, puramente coibente.
Na Suíça, por exemplo, em 1900, uma lei federal sobre seguro previdenciário para
doenças e acidentes, foi categoricamente rejeitada por referendo, apesar de essa
norma ter sido aprovada por unanimidade nas duas instâncias representativas do
povo helvético, o Conselho Nacional e o Conselho dos Estados; frequente destino,
aliás, da maior parte dos projetos de lei submetidos a referendo. Acontece que é
sempre mais fácil de dizer “não” – por isso, as grandes massas, cujos elementos não
podem chegar a acordo sobre um objetivo assertivo, concordam em tolher e impedir,
chegando a privar-se de alguma vantagem que exigiria uma decisão corajosa ou
sacrifícios imediatos. As razões de os diversos grupos suíços rejeitarem aquela lei
eram extraordinariamente diferentes: particularistas e ultramontanas, agrárias e
capitalistas, técnicas e partidárias. Somente a recusa podia conciliar esse universo
discrepante. É verdade que o mesmo raciocínio pode fundamentar o encadeamento
lógico de um processo argumentativo inverso: quando numerosos círculos pequenos
coincidem em pelo menos suas determinações coibentes, isso pode preanunciar ou

14
O autor se refere a Tito Lívio. (NT)
15
Locução latina que pode traduzir-se como: “com alguma ressalva” ou “com ceticismo”, assumindo
que há possibilidade de falha. (NT)
Georg Simmel | 515

preparar sua unidade. Assim, fez-se notar que, embora os gregos tivessem grandes
diferenças culturais entre eles, se compararmos árcades 16 e atenienses com seus
contemporâneos cartagineses ou egípcios, persas ou trácios17, se encontram entre
os helenos numerosos traços distintivos comuns de caráter coibente: em nenhum
lugar da Grécia histórica houve sacrifícios humanos ou mutilações voluntárias;
nunca se aceitou ali a poligamia como forma de união, nem a venda de crianças como
escravas, nem se obedeceu a uma pessoa de maneira cega e ilimitada.
Consequentemente, apesar de todas as diferenças assertivas, essa comunidade de
características coibentes tinha que produzir a consciência de pertencimento comum
a um círculo de cultura que ia além das polis particulares.
O caráter coibente do vínculo, que faz do grande círculo uma unidade, se
manifesta sobretudo nas suas normas, Isto decorre do fato de que as determinações
obrigatórias de qualquer tipo são mais simples e numerosas quanto maior seja, em
igualdade de condições, o círculo de sua vigência – desde as regras da cortesia
internacional, muito menos numerosas que as que vigoram nos círculos menores, até
o fato de que os estados particulares do Império Alemão amiúde tinham 18 uma
constituição menos extensa quanto maiores em território. Poderíamos enunciar
assim uma regra segundo a qual, em principio, os traços comuns que vinculam entre
si os elementos para formar uma unidade social passam ter menos conteúdo à
medida que o círculo se amplia. Por isso, embora à primeira vista possa parecer
paradoxal, são necessárias menos normas para manter unido um círculo grande que
um círculo pequeno. No que tange à qualidade das normas de conduta que um círculo
precisa impor a seus membros para subsistir, tais disposições adquirem um caráter
mais proibitivo e coibente à medida que o círculo é mais extenso. Os vínculos
assertivos, que ligam os elementos entre si e conferem à vida do grupo seu

16
Naturais ou habitantes da Arcádia, antiga região do Peloponeso, Grécia. (NT)
17
Naturais da Trácia, antiga região macedônia, do sudeste da Europa, habitada por populações de
etmia pelásgica. Atualmente é dividida entre a Grécia, Turquia e Bulgária. (NT)
18
O Império Alemão (também chamado de Kaiserreich por alguns historiadores alemães) existiu
desde a sua consolidação como Estado-nação em janeiro de 1871 (Unificação alemã) até a abdicação
do cáiser Guilherme II em novembro de 1918. Este extinto Estado era constituído de 27 territórios
constituintes (a maioria deles governados por famílias reais), os maiores dos quais eram os reinos de
Prússia, Baviera, Vurtemberga e Saxônia. (NT)
516 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

verdadeiro conteúdo, acabam por ser confiados à guarda do indivíduo 19 a partir do


momento que a variedade das pessoas, dos interesses e dos acontecimentos é
grande demais para ser regulada desde um centro. A esse núcleo só resta uma
função impediente, quer dizer, a fixação daquilo que não se deve fazer em nenhum
caso, a limitação em vez da administração da liberdade. É claro que ao dizer isso só
queremos salientar a orientação geral de uma evolução sempre entravada e desviada
por outras tendências. Assim acontece quando se trata de reunir um número
significativo de sentimentos ou interesses religiosos divergentes. O declínio do
politeísmo arábico fez surgir Alá como conceito geral do Deus absoluto. O politeísmo
cria necessariamente a fragmentação religiosa do círculo dos crentes, porque os
elementos desse círculo se dirigem de modo diverso às diferentes divindades
conforme suas tendências interiores e práticas. Por isso, o caráter abstrato e
unificador de Alá é coibente, em um primeiro momento. Sua significação originária
ou sua natureza consiste em “afastar do Mal”, mas não encorajar o Bem. Não é mais
do que “Aquele que detém”. Por sua vez, o Deus hebraico que criou ou expressou uma
unidade religiosa e social desconhecida para a Antiguidade – se a comparamos com
o politeísmo desagregador ou com o monismo antissocial da religião indiana –,
enuncia suas normas mais enérgicas na forma de “não terás” ou “não faças” isso ou
aquilo. Mais perto de nós, no Império alemão as relações assertivas da vida,
submetidas ao Direito civil somente encontraram uma forma unitária no Código civil
em 1901, 30 anos depois da fundação do Estado. Em compensação, o Código penal,
com suas determinações coibentes, de natureza proibitiva, vigorava já em todo o
Império desde 1872. O que faz a proibição particularmente apta a transformar
pequenos círculos em um círculo maior, mais geral, é o fato de que o contrário do que
se proíbe não é sempre o prescrito, o ordenado explicitamente, mas frequentemente

19
Por isso uma locução inglesa diz: the business of everybody is the business of nobody (“problema
de todos diz respeito a ninguém”). Esse caráter coibente peculiar que tem toda ação transferida a uma
pluralidade aparece também na explicação da indiferença e indolência dos estadunidenses (tão
enérgicos quanto ao resto) em face dos abusos públicos. Estima-se ali que a opinião pública tem o
dever de fazer avançar as coisas. Daí o fatalismo que making each individual feel his insignificance,
disposes him to leave to the multitude the task of setting right what is every one else’s business just
as much as his own (NS) [“Fazendo sentir a sua insignificância a todos os indivíduos, os predispõe a
confiar à multidão o cuidado de endireitar o que deveria ter sido corrigido por cada indivíduo como se
se tratasse de seus próprios assuntos”. A locução e a cita estão em inglês no original alemão de
Simmel. O trecho citado pertence a James Bryce, The American Commonwealth. Vol 3, The Party
System & Public Opinion. Nova Iorque e Londres, Macmillan, 1895, p. 207. NT]
Georg Simmel | 517

o permitido. Por conseguinte, se no círculo A não se pode fazer s, mas sim b e i, e no


B não se pode fazer b, mas sim a e i, e no C não se pode fazer i, mas sim a e b, etc., o
organismo unitário formado por A, B e C pode estar fundado na proibição de a, b. e. i.
A unidade só é possível se no círculo A, os atos b ou i não forem preceituados, mas
somente permitidos, pelo que podiam ser omitidos. Se em vez disso b ou i estivessem
prescritos tão assertivamente como a está proibido – e analogamente no B e no C –
não poderia chegar-se a construir uma unidade, porque sempre sucederia que por
um lado se ordenaria explicitamente aquilo que por outro seria proibido. Acontece
assim no exemplo a seguir. Desde tempos imemoriais, era proibido a todo egípcio o
consumo de determinada espécie de animal que se considerasse sagrada na aldeia.
A doutrina segundo a qual a religião exigia se abstiver de consumir qualquer espécie
de carne verificou-se mais tarde em virtude da fusão política de grande número de
cultos locais em uma religião nacional dirigida de modo unitário por uma casta de
sacerdotes. Essa unificação só pôde ter lugar por meio da síntese ou da
generalização das proibições, porque se o consumo dos animais permitidos em cada
aldeia (consumo que, consequentemente, podia também ser omitido) tivesse sido
ordenado assertivamente, não teria havido possibilidade de reunir as prescrições
especiais das partes em uma unidade superior.
Quanto mais geral uma norma e maior o círculo ao qual ela se aplica, menos
característico e significativo será seu cumprimento para o individuo que a obedeça;
assim como mais graves e discriminatórias serão as consequências de sua
inobservância, para o indivíduo que a infrinja – o que é muito claro, em primeiro lugar,
no campo intelectual. O acordo teórico, sem o qual é impossível qualquer sociedade
humana, baseia-se em um pequeno conjunto de normas universalmente aceitas
– embora não se tenha consciência abstrata delas –, que denominamos as “regras
da lógica”. Tais normas constituem o mínimo do que deve ser acatado por todos
aqueles que desejam manter qualquer tipo de relação recíproca. Sobre essa base
repousa o entendimento mais efêmero de dois desconhecidos, do mesmo modo que
a comunidade da vida cotidiana dos seres reciprocamente mais próximos. A sujeição
de nosso entendimento a essas normas muito simples, sem as quais nossa
compreensão da natureza das coisas nunca coincidiria com a realidade empírica, é a
condição mais necessária e geral de toda vida sociológica – na medida em que,
518 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

apesar da discrepância entre nossa imagem interna e externa do mundo, a lógica cria
certo patamar comum de inteligência que não se pode abandonar sem que toda
comunidade intelectual seja abolida. Todavia, se olhamos mais de perto, veremos
que a lógica não proporciona ou significa algum tipo de posse de existência real. O
que chamamos de ”regras da lógica”, não passa de um conjunto de normas, que não
podem ser infringidas, mas cujo cumprimento não confere nenhuma distinção nem
outorga qualquer qualidade específica. Todas as tentativas de adquirir um
conhecimento particular através da mera lógica fracassaram, e a sua significação
sociológica é, por conseguinte, coibente, como a do Código penal. Apenas a
transgressão de seus preceitos leva o indivíduo a uma situação arriscada e exposta,
mas respeitar essas normas não dará ao elemento mais do que a perspectiva, teórica
ou prática, de permanecer na comunidade. Não há dúvida de que uma miríade de
divergências internas pode fazer a associação intelectual fracassar, mesmo que se
respeite rigorosamente a lógica. Porém, quando suas regras são infringidas,
forçosamente a associação intelectual também fracassará – assim como a coesão
moral e social pode desfazer-se, caso o indivíduo transgrida as normas, embora se
tenha escrupulosamente evitado descumprir o Código penal. O mesmo acontece com
os convencionalismos sociais no sentido mais estrito do termo, quando eles estão
realmente generalizados em um círculo. A observância dessas normas não
funcionará como marca ou traço distintivo de alguém, mas a sua transgressão será
altamente significativa – porque basta apenas não desrespeitar o que um círculo
tenha de mais geral, enquanto as normas específicas que mantêm a coesão dos
círculos menores darão ao indivíduo uma nuance e diferença mais assertivas quanto
mais específicas elas sejam. É também nisso que se baseia a utilidade prática das
fórmulas de cortesia social tão desprovidas de conteúdo. Mesmo que tais palavras
ou expressões consagradas pelo uso e impostas pelas convenções sejam utilizadas
por alguns indivíduos, nada podemos afirmar sobre a assertiva existência da estima
e consideração que essas pessoas dizem nos professar. Contrariamente, a mais leve
infração ou inobservância das ditas fórmulas revela claramente que não existem
aqueles sentimentos. Dirigir na rua (a alguém ou reciprocamente) cumprimentos ou
saudações não prova que se tenha apreço, admiração ou respeito pelo destinatário
dessa demonstração de cortesia, mas a omissão da saudação prova claramente o
Georg Simmel | 519

contrário. Essas fórmulas não simbolizam atitudes internas assertivas, mas


manifestam adequadamente a atitude coibente, na medida em que uma muito ligeira
omissão pode determinar radical e definitivamente a relação com uma pessoa – visto
que, as fórmulas de cortesia têm a natureza absolutamente geral e convencional
própria dos círculos relativamente grandes.20
Por conseguinte, o fato de a comunidade limitar ao mínimo os serviços que ela
presta ao pobre é absolutamente coerente com a natureza das ações coletivas. A
razão para isso (as ações apenas podem ter como conteúdo o que com toda certeza
se possa esperar de cada indivíduo) explica também o segundo princípio deste
comportamento: que os auxílios aos pobres, se estão limitados ao minimum, têm um
caráter objetivo. Sem dúvida, é possível determinar objetivamente o que é necessário
para salvar um homem da miséria física. Contrariamente, tudo o que exceda esse
mínimo (todo auxílio encaminhado a favorecer um progresso efetivo do indigente, por
exemplo) requer critérios muito mais ambíguos, pois que depende de apreciações
subjetivas. Dissemos antes que os casos de indigência subjetivamente homogênea
e que não exigem, portanto, uma opinião moral sobre as pessoas – nomeadamente
os decorrentes de doença e invalidez – são os que se ajustam melhor à ação
assistencial da administração centralizada do Estado, enquanto os casos de caráter
mais individual são mais adequados ao agir das comunidades locais. Ora, no caso
em apreço estamos justamente em presença dessa possibilidade objetiva de
estabelecer o que é necessário (o que justifica) a intervenção do círculo mais amplo
na assistência dos pobres – e que consiste em limitar exclusivamente esse auxílio
ao mínimo possível. Manifesta-se aqui a antiga correlação epistemológica entre
objetividade e universalidade. No campo do conhecimento, a universalidade real, o
reconhecimento de uma proposição pela totalidade dos espíritos – não na realidade
histórico-real, mas idealmente – é um aspecto ou a expressão de sua objetividade.
Em compensação, pode haver outra proposição que, para um ou muitos indivíduos,
seja absolutamente certa e possua a plena significação da verdade, mas careça
dessa chancela especial que chamamos de objetividade. É assim que, na prática, só

20
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “o caráter coibente de certos
comportamentos coletivos”. Doravante Simmel retoma e finaliza sua análise do “pobre” e da
“pobreza”. (NT)
520 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

se pode pretender legitimamente uma prestação da coletividade quando se funda


esse pedido em um princípio absolutamente objetivo. Contrariamente, se a demanda
constitui um parecer subjetivo, desprovido de sustentação objetiva, a necessidade
poderá igualmente ser muito urgente e sua satisfação não será menos valiosa, mas
o requerimento se dirigirá apenas a pessoas – e como pretenderá dar resposta a
meros interesses individuais, só será satisfeito por simples indivíduos.
Se o ponto de vista objetivo vai de par com a tendência a confiar toda a
assistência dos pobres ao Estado – tendência que, por enquanto, em nenhum lugar
é realidade completa – não é só o pobre que proporciona o critério normativo do
conteúdo (cuja aplicação lógica garante a objetividade), mas também o interesse do
Estado. De fato, se reconhece aqui uma forma sociológica essencial da relação entre
indivíduo e coletividade. Quando a incumbência de uma prestação ou de uma
intervenção passa dos indivíduos à coletividade, a ingerência da sociedade
frequentemente consiste na regulação do excesso ou da insuficiência da ação
individual. Através da educação pública obrigatória, o Estado exige que o indivíduo
receba um mínimo de instrução, mas deixa a seu arbítrio aprender mais ou inclusive
“demasiado”. Na jornada legal de trabalho, o Estado cuida que o empregador não
exija demais a seus trabalhadores, mas deixa à livre decisão do patrão reclamar
menos aos empregados. Como podemos ver, essa regulação faz sempre referência
apenas a um único lado da ação, enquanto o outro lado é confiado ao livre-arbítrio
do indivíduo. Eis o esquema segundo o qual aparece nosso agir socialmente
controlado: podemos dizer que nossas ações estão limitadas somente por uma de
suas extremidades, a cujo exagero ou carência a sociedade põe cobro, ao passo que,
na outra extremidade, a demasia e a privação ficam entregues à própria vontade,
isenta de qualquer condicionamento. No entanto, esse esquema pode revelar-se
enganoso. Há casos em que a regulação social abrange ambos os lados, ainda que
o interesse prático volte seus olhos apenas para um deles e ignore o outro. Quando,
por exemplo, a sanção pelos agravos sofridos deixa de ser confiada à vingança
privada e passa à sociedade e ao Direito penal objetivo, é tido em conta, geralmente,
que só dessa forma se consegue melhor garantir a expiação da falta e assegurar a
execução suficiente e correta da pena. Porém, na realidade, o objeto perseguido não
é só que se puna bastante, mas também que não se puna demais. A sociedade
Georg Simmel | 521

protege tanto a vítima eventual como o culpado contra uma reação subjetiva
excessiva, o que quer dizer que a sociedade define como medida objetiva da pena a
que corresponder ao interesse social e não aos desejos ou às finalidades da vítima.
E isso não se aplica apenas às relações reguladas pela lei. Toda camada social (salvo,
talvez, a mais desafortunada) pretende que cada um de seus membros dedique um
mínimo de cuidados à roupa que vai vestir; fixa os limites da vestimenta “correta”,
abaixo dos quais já não se pertence a determinado estrato social. Todavia, tais
categorias definem também um limite na outra extremidade (ainda que não seja com
a mesma determinação, nem de um modo tão consciente): certas roupas luxuosas e
elegantes podem, às vezes, parecer afetadas e inapropriadas a determinada posição
social, e fazer quem as vista ultrapassar certo limite superior (colocado por seus
congêneres) além do qual será tratado como um estranho ao grupo. Por conseguinte,
o grupo também não permite a expansão livre do indivíduo por esse lado, opondo a
seu arbítrio subjetivo um limite objetivo, quer dizer, um limite imposto pelas
condições da vida supraindividual. Ora, esta é a forma fundamental que reproduz a
assunção pela comunidade da assistência aos pobres. No início, a sociedade só
parecia ter interesse em limitar o auxílio, de forma a permitir que o pobre recebesse
igualmente seu quinhão, isto é, que não recebesse pouco ou quase nada. Existe,
porém, na prática, outro interesse de efeito menor: que o pobre não receba demais. A
assistência privada não só pode ser censurável por insuficiência, mas também por
excesso, habituando os pobres a ociosidade, aplicando os meios dos quais ela dispõe
de forma economicamente improdutiva e favorecendo arbitrariamente uns em
detrimento de outros. O impulso subjetivo de beneficência incide nos dois extremos,
e embora o perigo do excesso não seja maior que o da privação, a norma objetiva que
extrai do interesse da coletividade um critério que inexiste no sujeito também se alça
sobre o dispêndio.
Todavia, essa superação do ponto de vista subjetivo concerne ao agente da
prática beneficente e ao favorecido por igual. O serviço público de assistência inglês,
por exemplo, intervém somente ante uma carência de recursos objetivamente
comprovada – porque a permanência obrigada em um workhouse é tão difícil de
aturar que só pode ser arcada em casos de extrema e real necessidade. E, agindo
desse modo o Estado renuncia totalmente a verificar o mérito pessoal do indigente,
522 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a comprovar se ele é pessoalmente digno de ser assistido. Por isso, o serviço público
– que se limita a cuidar das misérias mais prementes – é completado pela
beneficência privada – dirigida às pessoas meritórias selecionadas individualmente.
Sua missão consiste em reabilitar o pobre já protegido contra a fome, em preocupar-
se com as necessidades do indigente, para as quais o labor objetivo do Estado só
oferece alívio momentâneo. A ação beneficente dos agentes privados não é aqui
determinada pela necessidade enquanto tal, pelo terminus a quo, mas pelo ideal de
criar indivíduos independentes e economicamente produtivos. O Estado age em
sentido causal, enquanto a beneficência privada toma providências em sentido
teleológico. Por outras palavras: o Estado socorre a pobreza, a beneficência privada
auxilia o pobre. Manifesta-se aqui uma diferença sociológica da maior importância.
Os conceitos abstratos (graças aos quais certos conceitos isolados puderam
cristalizar-se e desprender-se da realidade individual complexa) adquirem amiúde,
na prática, vida e eficácia que só parecem corresponder às manifestações
acabadamente concretas. Isso começa com as relações íntimas. O sentido de
algumas relações amorosas só se pode expressar dizendo que não se procura o ser
amado, mas o amor como valor sentimental – por vezes, com surpreendente
indiferença a respeito da individualidade da pessoa amada. Nas relações religiosas,
amiúde parece que a existência de determinada classe e quantidade de religiosidade
é tudo o que importa, sem levar em conta a identidade do sustentáculo desse
sentimento – dado que o comportamento do sacerdote ou a relação dos fiéis com a
comunidade são determinados apenas por esse elemento genérico,
independentemente dos motivos particulares que dão origem, avivam ou esmorecem
no indivíduo esse estado de espírito. Nesse caso, aliás, os indivíduos não suscitam
particular interesse, pois que importam apenas como suportes daquele elemento
impessoal ou, para melhor dizer, nada importam. Do ponto de vista social e ético,
certo racionalismo exige que as relações entre os homens estejam alicerçadas na
sinceridade subjetiva. Todos aqueles a quem se dirige um discurso, com
prescindência das circunstâncias em que se exponha esse raciocínio, deveriam ter o
direito de exigir sua verdade como uma qualidade objetiva. Não pode haver um direito
à verdade que seja condicionado pelas circunstâncias, mais ou menos extenso em
função de cada caso individual. O fundamento, o conteúdo ou o valor das trocas
Georg Simmel | 523

linguísticas dentro de um grupo é a verdade e não a individualidade daquele que fala


ou daquele que escuta. É o mesmo problema que divide as opiniões da criminologia:
é o crime ou o criminoso que deve ser punido? O objetivismo abstrato exige que se
aplique a pena toda vez que acontece um delito, para restauração da ordem real ou
ideal, e em razão da lógica da ética, como consequência do fato impessoal do delito.
Do ponto de vista oposto, porém, só se deve atingir o sujeito que tem cometido o
delito. O direito de punir se exerceria, desse modo, não porque se cometeu um delito,
mas porque um sujeito identificado como seu autor reclama expiação, educação ou
deve ser tornado inofensivo; de modo que para a determinação da pena deverão ser
tidas em conta as circunstâncias individuais do caso na mesma medida que o fato
genérico do delito.
Essa dupla atitude também pode ser adotada diante da pobreza. Pode-se
partir da pobreza como fenômeno objetivamente determinado e tentar de suprimi-la
enquanto tal. Com abstração da pessoa que padece a penúria, e das causas ou das
consequências individuais dela, a pobreza exige remédio, a saber, uma compensação
desse déficit social. Por outro lado, nos importamos com o indivíduo pobre
– obviamente porque ele carece do necessário à subsistência, mas sobretudo porque
a ação assistencial não pretende suprimir a pobreza em geral, pro rata21, senão em
relação a esse determinado pobre. Sua indigência age aqui como uma de suas
determinações singulares, ela é apenas a ocasião atual para ocupar-se dele; se
possível, para colocá-lo em uma situação em que a pobreza desapareça por si só.
Por isso a assistência decorrente da primeira atitude (subjetiva) está mais
preocupada com o fato da pobreza, enquanto a derivada do segundo posicionamento
(objetiva) se interessa por sua causa. De resto, é sociologicamente importante
observar que a distribuição natural dos dois tipos de assistência entre Estado e
pessoas privadas se modifica quando se segue a cadeia causal até um grau mais
profundo. O Estado vai ao encontro – na Inglaterra com mais vigor do que em
qualquer outra parte – da miséria que aparece exteriormente, ao passo que a
beneficência privada combate suas causas individuais. Todavia, compete à
coletividade dar forma às condições fundamentais, econômicas e culturais, que

21
Pro rata é uma expressão latina que tem um sentido de divisão, podendo ser traduzida livremente
como “segundo uma proporção determinada”. (NT).
524 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

servem de base àquelas circunstâncias pessoais; e deve moldá-las de modo a que


as fraquezas individuais e as situações de partida desfavoráveis, a falta de jeito e o
azar tenham a mínima chance possível de gerar pobreza. Aqui, como em muitas
outras esferas, a coletividade envolve as determinações individuais, com seus
diferentes interesses, situações, e ações. A sociedade constitui assim, por um lado,
um espaço imediato (um palco) em que os elementos exibem sua configuração
exterior (às vezes enganosa) e encenam sua maneira de ser, o resultado da própria
vida. No entanto, também a encontramos nas vastas profundezas nas quais a vida
individual se enraíza – de tal maneira que a partir de sua unidade as diferenças entre
as disposições e situações individuais fazem chegar à superfície do conjunto uma
infinidade variegada de fenômenos particulares22.
O princípio que rege a assistência dos pobres na Inglaterra, e nos dá a
oportunidade de discutir essas generalidades, se opõe diretamente ao francês. Na
França, o auxílio aos pobres compete às associações e pessoas privadas, e o Estado
apenas intervém quando elas não são suficientes. Essa inversão de papéis
obviamente não significa que na França os indivíduos e organismos privados (como
na Inglaterra) cuidem do que exige solução urgente, enquanto o Estado (como as
instâncias privadas na Inglaterra) se preocupa apenas com o que exceda esse
minimum, do individualmente desejável. O princípio francês significa que não podem
ser separados, quanto ao conteúdo, os dois tipos de assistência com tanta clareza e

22
Talvez valha a pena advertir aqui (ainda que sem conexão com o assunto que estamos a tratar) que
essa situação do indivíduo coberto pelo invólucro da entidade social, na qual arraiga e frutifica o
indivíduo, pode apresentar-se sob a forma exatamente inversa. Assim como o indivíduo aparece no
primeiro caso como uma espécie de entidade transitória para a entidade social, assim também a
sociedade pode funcionar como simples instância intermediária da evolução individual. Esse processo
gradativo parte do âmago, do fundo substancial inato da pessoa (que não podemos representarmos
em sua pureza, além da forma que lhe imprimiu o meio histórico, mas que estamos a sentir como a
matéria permanente de nossa existência pessoal e a soma de suas possibilidades – nunca esgotadas
na totalidade) e acaba ao final de nossa existência, quando estamos a oferecer uma aparência (ou um
conjunto complexo de aparências) na qual se manifesta o que de mais completo, de mais nítido e sem
falhas e de mais bem elaborado pode produzir a existência desde o ponto de vista individual. Entre
ambos os extremos de nossa vida se encontram as influências sociais recebidas, as condições nas
quais a sociedade nos faz adquirir as feições que acabamos por apresentar, todo esse universo de
exigências e inibições que temos que atravessar. Encarada dessa forma, é justamente a sociedade,
com suas ações e suas realizações, a que representa esse estágio para além e para aquém do qual se
encontra a entidade pessoal. Essa entidade pessoal é a depositária das energias graças as quais um
estágio individual passa ao seguinte. Estas energias cobrem com seu invólucro (“envolvem”, por assim
dizer) a sociedade do mesmo modo que desde o outro ponto de vista os estágios e fatos sociais
envolvem o indivíduo, e a sociedade serve de intermediária entre os fundamentos gerais do indivíduo
e suas manifestações pontuais. (NS)
Georg Simmel | 525

fundamento como na Inglaterra. É por isso que a situação do pobre assumirá


frequentemente a mesma forma prática na França e na Inglaterra. Porém, é
indubitável que, quanto aos princípios sociológicos, há uma diferença da maior
importância. Trata-se de um caso particular do grande processo através do qual a
ação recíproca imediata dos elementos do grupo passa a ser a ação da comunidade
unitária e supraindividual – e que, assim que estes eventos ocorrerem, continua
produzindo constantes compensações, substituições e mudanças de importância
relativa entre os dois modos de funcionamento social. Essa tensão e desajuste social
que se manifesta como pobreza individual, deve ser resolvida imediatamente entre
os elementos da sociedade, ou por meio da unidade formada por todos os elementos?
Essa é sem dúvida uma decisão que deve ser tomada de maneira formalmente igual
no conjunto do espaço social, embora raramente de modo tão rigoroso e tão claro
como aqui. Mencionamos essa evidência é só para lembrar que a assistência
“privada” dos pobres é um fato social, uma forma sociológica que atribui ao pobre de
maneira igualmente resoluta – exceto para um olhar superficial –, uma posição como
membro orgânico da vida do grupo. As formas transicionais entre os dois critérios de
assistência esclarecem este fato com particular acuidade: por um lado, através da
tributação a favor dos pobres e, por outro, mediante a obrigação legal de prover
alimentos aos parentes pobres. Enquanto existe ainda um tributo em favor dos
pobres, a relação entre a coletividade e os indigentes não atinge a pureza abstrata
que põe os necessitados em relação imediata com a unidade indivisível do todo. O
Estado é apenas o intermediário que faz as contribuições individuais chegarem ao
seu destino, embora esses pagamentos não sejam voluntários. Porém, assim que o
tributo em favor dos pobres é absorvido pelas imposições obrigatórias gerais e a
assistência aos deserdados passa a ser financiada a título das receitas fiscais, o
vínculo entre os pobres e sua coletividade se completa: a relação de assistência ao
indigente (seu auxílio) se torna uma função da sociedade enquanto tal e não da soma
dos indivíduos como no caso da tributação em favor dos pobres. Por fim, o interesse
coletivo adquire uma forma ainda mais especializada quando a lei impõe a
assistência aos parentes necessitados. O auxílio privado, que em todos os outros
casos está contido na estrutura e na teleologia da vida coletiva, é aqui
conscientemente dominado por ela.
526 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Tal como referimos anteriormente, a relação de interdependência que a


coletividade mantém com seus pobres é uma função de caráter tão formal como a
que a coletividade estabelece com os funcionários ou os contribuintes. Eis o que
vamos apresentar mais uma vez do ponto de vista a que até agora chegamos.
Comparamos o pobre com o estrangeiro que está também, de certa forma, fora do
grupo, em face dele. Todavia, esse distanciamento implica igualmente uma relação
peculiar que torna o estrangeiro um elemento na vida do grupo. Assim, o pobre está,
sem dúvida, fora do grupo, enquanto é apenas um objeto de medidas que a
coletividade toma a seu respeito. Mas esse estar do lado de fora, neste caso, no é
mais do que uma forma particular de estar dentro. Acontece com isso na sociedade
o que, segundo a expressão kantiana, se passa com a “exterioridade” do espaço a
respeito da consciência. No espaço tudo está fora. Também o sujeito, considerado
como intuitivo, está fora. No entanto, o espaço mesmo “está em mim”, no sujeito, em
sentido amplo. Se considerarmos atentamente as coisas, essa dupla posição do
pobre (análoga à do estrangeiro) encontra-se em todos os elementos do grupo com
somente variações de grau. Por muito identificado que esteja um indivíduo à vida do
grupo graças a suas prestações assertivas, ainda que sua vida pessoal tenha lugar
no ciclo da vida coletiva, não é menos verdade que ele está em face dessa
coletividade, dando e recebendo, sendo bem ou maltratado por ela, comprometendo-
se com ela de maneira pública ou reservada. Em uma palavra: como parcialidade ou
como objeto, o indivíduo se encontra em face do círculo social como em face de um
sujeito, ao qual, porém, pertence como membro, como sujeito-parte, pelas ações e
situações que fundamentam aquelas relações. Essa posição ambivalente, difícil de
aceitar logicamente, é um fato sociológico absolutamente elementar. Já vimos isso
em relações tão claras como as do casamento. Em determinadas circunstâncias,
cada um dos cônjuges se vê no casamento como uma espécie de ser independente
em face do matrimônio, que impõe deveres e representações, que acarreta ônus e
vantagens – sem que isso provenha do outro cônjuge enquanto pessoa, mas do todo,
que considera objetos cada uma das partes, ainda que o casamento só esteja
conformado por essas partes. Tal relação, esse fato de encontrar-se
simultaneamente dentro e fora, fica mais complicada e cada vez mais perceptível à
medida que o número de membros do grupo aumenta. E isso, não só porque o todo
Georg Simmel | 527

adquire uma autonomia muito superior à dos indivíduos, mas porque as


diferenciações mais acentuadas que se dão entre os indivíduos permitem àquela
ambivalência inscrever-se em toda uma escala de nuances. Conforme se trate de um
príncipe ou de um banqueiro, de uma femme du monde23 ou de um sacerdote, de um
artista ou de um funcionário, o grupo tem distintos modos de converter a pessoa em
objeto, de “tratar” com ela, de submetê-la ou de reconhecê-la como seu igual em
poder – e, por outro lado, de incluí-la como um elemento imediato de sua vida, como
parte de um todo que se opõe, na sua completitude, a outros elementos. Eis talvez
uma atitude totalmente unificada do ser social, que se manifesta separadamente por
esses dois lados ou que aparece diferentemente se for considerada sob dois pontos
de vista contrapostos. Aproximadamente, passa-se o mesmo do que com a
representação particular que está em face da alma e, ao mesmo tempo, tão
distanciada da alma como totalidade que a representação enquanto tal pode ser
influenciada pelo estado geral da alma, sendo matizada, realçada ou reprimida,
conformada ou dissolvida por ela (sem deixar de ser simultaneamente uma parte
desse todo, um elemento da alma – alma que, por sua vez, só existe pela fusão e
colaboração de tais elementos). O pobre ocupa uma posição claramente determinada
nessa escala hierárquica. A assistência que a comunidade lhe deve proporcionar no
seu próprio interesse (mas que o pobre, na esmagadora maioria dos casos, não tem
direito de reclamar) transforma o indigente em objeto da atividade do grupo, e o
coloca a uma distância da coletividade que algumas vezes pode permitir que viva
como corpus vile24 da generosidade coletiva, e que outras vezes por essa razão faz
dele um pertinaz inimigo. O Estado expressa isso quando priva de certos direitos
políticos aos beneficiários da caridade pública. Todavia, este afastamento não
significa uma exclusão absoluta, mas unicamente uma relação específica com o
conjunto que, sem esse elemento, seria diferente. A coletividade, assim, com a
estrutura adquirida desse modo, incorpora o pobre, mas o trata como um objeto.
Ora, essas determinações não parecem aplicáveis aos pobres em geral, mas
somente a certa parte deles: àqueles que recebem auxílios – quando há bastantes

23
Locução francesa utilizada para identificar uma mulher pertencente à alta sociedade ou a um grupo
social que se destaca ou sobressai. (NT)
24
Expressão latina que se refere a uma pessoa, animal ou coisa tratada como prescindível, que pode
ser usada a título experimental, sem preocupação por eventuais perdas ou danos. (NT)
528 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

pobres que não recebem assistência. Este último ponto reflete o caráter relativo do
conceito de pobreza. É pobre aquele cujos recursos não são suficientes para atender
os seus próprios fins. Esse conceito, puramente individualista, se reduz quanto a sua
aplicação na prática, uma vez que determinados fins podem ser considerados como
independentes de toda fixação arbitrária e pessoal. Em primeiro lugar, os fins que a
natureza impõe: alimento, vestimenta, moradia. No entanto, não é possível
determinar com segurança a medida dessas necessidades que seria válida em toda
a parte e em todas as circunstâncias nem abaixo da qual se poderia falar de pobreza
absoluta. Ao contrário, cada âmbito da vida em geral, cada classe social particular
tem necessidades típicas que, se não podem ser satisfeitas, significam pobreza. Daí
provém esse fato banal em todas as culturas suficientemente desenvolvidas de que
há pessoas pobres dentro de sua classe que não seriam consideradas tais dentro de
outra inferior, porque seus recursos são suficientes para satisfazer as necessidades
típicas de uma classe com menor poder aquisitivo. Certamente, pode ocorrer que o
homem que viva em pobreza extrema não sofra pela discrepância entre seus
recursos e as necessidades de sua classe, de modo que não exista para ele pobreza
em um sentido psicológico. Assim como também pode acontecer que o homem mais
rico se fixe objetivos que ultrapassem os desejos supostos de sua classe e seus
próprios meios de modo a que psicologicamente ele se sinta pobre. Por conseguinte,
pode não existir a pobreza individual em alguém – insuficiência dos recursos para as
necessidades ou fins da pessoa –, existindo a pobreza social; e pode existir, pelo
contrário, um homem que seja individualmente pobre sendo socialmente rico. A
relatividade da pobreza não implica a relação dos recursos individuais com os fins
individuais efetivos – isso é algo absoluto e, em seu sentido profundo, independente
de quanto está além do indivíduo –, mas com os fins do indivíduo consoantes à
respectiva classe e a seu a priori social, que varia de classe para classe. De resto, é
um dado muito característico para a história social a quantidade de necessidades
que cada grupo considera como o ponto zero acima ou abaixo do qual começam a
riqueza ou a pobreza. Nas sociedades complexas, essa quantia deixa sempre uma
margem, às vezes considerável, para a sua fixação. Que relação há entre a posição
deste ponto e a verdadeira mediana? É absolutamente necessário pertencer à minoria
privilegiada para não ser considerado pobre? Ou, pelo contrário, existe uma classe
Georg Simmel | 529

social que, por instinto e para evitar os sentimentos de pobreza colocou o limite para
além do qual começa verdadeiramente a pobreza, muito baixo? Um fenômeno
individual pode deslocar esse limite (como sucede facilmente, por exemplo, quando
uma pessoa rica se instala em uma pequena cidade ou em qualquer outro círculo
estreito)? Ou o grupo continua a aderir à definição de ricos e pobres que ele
estabeleceu de vez? Eis certamente diferenças sociológicas profundas.
A pobreza aparece em todas as camadas sociais que, por sua vez, têm
elaborado um padrão típico de necessidades para cada indivíduo – o que muitas
vezes traz como consequência que a indigência não seja atenuada. Todavia, o
princípio da assistência vai além do que mostram suas manifestações oficiais.
Quando, por exemplo, em uma família numerosa, os membros mais ricos e mais
pobres trocam presentes, isso geralmente é ocasião para que os mais abastados
socorram aos mais desvalidos. E não só porque as prendas oferecidas pelos
primeiros sejam amiúde mais valiosas que as que eles recebem dos segundos, mas
também porque a qualidade dos objetos dados como agrado aos necessitados revela
sua condição de socorro: os mais pobres ganham presentes úteis – isto é, objetos
que os ajudam a permanecer dentro do padrão típico de sua camada social. Por isso,
dentro desse conjunto sociológico, os presentes são absolutamente diferentes
segundo as diversas classes sociais. A sociologia da dádiva coincide, em parte, com
a sociologia da pobreza. O presente permite desenvolver uma hierarquia das relações
humanas de reciprocidade de uma enorme riqueza, tanto do ponto de vista do seu
conteúdo como do espírito com o qual ele é ofertado, da maneira de dar – e também
do modo de receber. Dádiva, roubo e troca são as formas externas de ação e reação
recíprocas que se relacionam imediatamente com a posse. Cada uma delas combina
uma extraordinária riqueza de manifestações espirituais que determinam o processo
sociológico. Elas correspondem aos três motivos do agir: altruísmo, egoísmo e norma
objetiva – pois a essência das trocas consiste na substituição de certos valores por
outros objetivamente iguais, ficando os fatores subjetivos de bondade ou cobiça fora
do processo, já que no conceito puro de troca o valor do objeto não é medido pelas
apetências do indivíduo, mas pelo valor do outro objeto. Ora, dessas três formas da
ação recíproca (dádiva, roubo e troca), é a dádiva que apresenta a maior riqueza de
conjuntos de elementos sociológicos, porque nela a intenção e a situação do
530 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

dadivoso e as daquele que recebe o presente produzem as combinações mais


variadas, com todas suas nuances individuais.
Das muitas categorias que permitem uma classificação sistemática desses
fenômenos, as mais importantes para o problema da pobreza são sem dúvida o
sentido e a finalidade verdadeiros da dádiva. Tais sentido y finalidade se traduzem
no estado final conseguido pela doação espontânea, no fato de que o donatário
receba um objeto valioso? Ou talvez na ação mesma, na dádiva como expressão de
uma ligação afetiva do dadivoso, de um amor que deve dar-se em oblação? Ou numa
expansão do eu, que se manifesta de maneira mais ou menos arbitrária no presente?
Neste último caso, em que o processo da dádiva é, de certo modo, seu próprio fim, a
questão da riqueza ou da pobreza não desempenha aparentemente papel algum,
exceto por considerações práticas. No entanto, quando se doa ao pobre, a tônica não
recai no processo, mas no resultado: o essencial é que o pobre receba algo. Entre
esses dois extremos em que se organizam as categorias da dádiva, existem
evidentemente inúmeras formas mistas. Quanto mais prevalece a última das
categorias mencionadas, é mais difícil dar ao pobre o que lhe falta sob a forma de
presente, porque as outras relações sociológicas entre as pessoas são incompatíveis
com a forma da dádiva. Se a diferença social é grande demais ou se as pessoas estão
muito próximas, a doação é quase sempre possível. No entanto, as coisas tornam-se
difíceis à medida que a diferença social diminui e que a distância entre as pessoas
aumenta. Nas classes altas muitas vezes se repete a trágica situação na qual o
necessitado admitiria de bom grado um auxílio e quem está em uma situação
abastada dar-lhe-ia com vontade esse socorro – mas um não pode pedi-lo e o outro
não pode propô-lo. De fato, quanto mais alta é uma classe, mais tem fixado o a priori
econômico para além do qual começa a pobreza de modo a que essa penúria ocorra
raramente e mesmo em tese não exista. A aceitação de um auxílio exclui, portanto, o
assistido dos princípios de sua classe e fornece a prova de que está formalmente
desqualificado. Antes de chegar a isso, todavia, o preconceito de classe é forte o
suficiente para deixar a pobreza invisível, desde que não seja mais que um sofrimento
individual, sem efeitos sociais. Todos os princípios de vida das classes altas fazem
com que possamos ser pobres no sentido individual, quer dizer, dispor de recursos
inferiores às necessidades de nossa classe, sem, no entanto, precisar recorrer à
Georg Simmel | 531

assistência de outrem. Por conseguinte, somente seremos pobres, no sentido social,


quando formos assistidos. E isso tem, sem dúvida, uma aplicação geral: de um ponto
de vista sociológico, a pobreza não vem primeiro e a assistência depois – nesse caso
trata-se apenas do destino na sua forma pessoal –, mas só aquele que se beneficia
de um auxílio ou deveria beneficiar-se dele dada sua situação sociológica – embora
não o receba por acaso – é quem pode ser chamado de pobre.
É nesse sentido que os socialdemocratas alemães afirmam que o proletário
moderno é pobre, mas que ele não é um pobre. O pobre como categoria sociológica,
não é quem se encontra em situação de extrema necessidade material ou sofre
determinadas privações, mas aquele assistido ou que pelo menos deveria ser
socorrido segundo as normas sociais aceitas. Por conseguinte, nesse sentido, não
deveríamos definir a pobreza em si mesma, como um estado que poderíamos
determinar quantitativamente, mas apenas segundo a reação social que se produz
em uma dada situação – exatamente como se define o delito, cujo conceito imediato
muito difícil de apreender tem sido caracterizado como “uma ação (...) submetida a
uma adequada sanção penal”25. Assim também, alguns hoje passaram a determinar
a essência da moral não com base na disposição interior do sujeito, mas pelas
consequências de sua ação, o que quer dizer que sua intenção subjetiva só é julgada
valiosa na medida em que produza normalmente efeitos socialmente úteis.
Considera-se, portanto que o conceito de personalidade não é determinado pelas
qualidades internas que capacitam uma pessoa a cumprir certo papel social, mas ao
invés: se chamam de “personalidades” os elementos da sociedade que nela
desempenham determinado papel. O estado individual em si mesmo, a estrutura
interna, já não determina mais em primeiro lugar o conceito, pois isso diz respeito à
teleologia social – o próprio do indivíduo será estabelecido doravante pelo modo
como se comporta em relação a ele a totalidade que o rodeia. Tal pode ser
considerado como uma espécie de continuação do idealismo moderno, que já não
pretende determinar as coisas a partir da sua própria essência, mas sim pelas
reações que elas produzem no sujeito. A função que o pobre desempenha na

25
Esta é aproximadamente a definição do delito que Ernst von Beling deu em 1906 no seu famoso livro
Die Lehre vom Verbrechen – que seguramente Simmel devia conhecer e rezava textualmente: “ação
típica antijurídica, culpável, submetida a uma adequada sanção penal, que preenche as condições
objetivas de penalidade”. (NT)
532 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sociedade preexistente não provém meramente da sua pobreza, mas da própria


sociedade – quando ela reage (no seu conjunto ou através de alguns indivíduos) à
inópia do necessitado e o assiste, o pobre representa um papel social específico.
Somente essa significação social do “pobre”, ao contrário do seu sentido
individual, pode reunir os indigentes para formar uma classe ou camada unitária
dentro da sociedade. Como dissemos anteriormente, o mero fato de ser pobre não é
suficiente para incluir alguém em uma categoria socialmente significativa. Ele será
simplesmente um comerciante pobre, um artista pobre, um funcionário pobre, etc., e
permanecerá nessa série determinada por sua atividade e posição. Dentro dela
ocupará, em consequência da sua pobreza, um lugar que poderá sofrer modificações
graduais – sem que os indivíduos que se encontrem nesse estágio das diversas
classes ou profissões possam se agrupar em uma unidade sociológica particular,
diferente das camadas sociais em que vivem. É somente no momento em que os
pobres são assistidos – com frequência logo que a situação torna esse auxílio
normal e mesmo que isso não aconteça de fato – que eles entram em um círculo
caracterizado pela pobreza. Claro que a coesão desse círculo não é mantida pela
ação recíproca de seus membros, mas pela atitude coletiva que a sociedade no seu
conjunto adota a seu respeito. Todavia, nem sempre faltou essa sociação imediata.
Assim, no século XIV, por exemplo, havia em Norwich 26 uma guilda dos pobres, a
Poorman’s guild, enquanto na Alemanha existiam corporações chamadas de “guildas
dos miseráveis” – do mesmo modo que tempo depois podemos encontrar na Itália
um partido dos ricos, os ottimati, como eles próprios se chamavam, cujos membros
estavam unidos apenas pelo vínculo da riqueza. Se a união desse tipo foi logo
impossível para os pobres, isso se deveu à crescente diferenciação da sociedade, que
tornou as peculiaridades dos indivíduos capazes de pertencer a essa associação
demasiado grandes em educação e ideias, em interesses e passado, para que tal
comunidade única tivesse ainda a energia suficiente de uma autêntica sociação.
Só quando a pobreza implica também um conteúdo reivindicativo comum a
muitos pobres surge uma verdadeira associação de indigentes. Assim, a
manifestação mais extrema da carência, a falta de um teto para morar, faz com que

26
Norwich é uma cidade da Ânglia Oriental, no Leste da Inglaterra. Durante o Medievo foi a segunda
maior cidade inglesa, depois de Londres e um dos lugares mais importantes do reino. (NT)
Georg Simmel | 533

aqueles que se encontram em tal situação nas grandes cidades, acorram, em grande
quantidade, a certos locais de refúgio. Quando se erguem nas redondezas de Berlim
os primeiros palhares, vão para lá os sem teto, os Penner, para passar a noite no
aconchego do feno. Entre eles há um tipo de organização incipiente, uma vez que
esses desabrigados têm uma espécie de chefe de distrito que distribui os lugares nos
albergues noturnos e dirime as querelas dos membros da confraria. Os Penner zelam
escrupulosamente para que nenhum criminoso se junte ao grupo e, quando isso
acontece, o entregam para a polícia, à qual, por vezes, prestam bons serviços. Aliás,
os chefes de distrito são pessoas conhecidas, e as autoridades sabem sempre onde
encontrá-los quando precisam de algum informe sobre qualquer indivíduo suspeito.
Diríamos que a pobreza precisa atingir o ponto extremo da falta de moradia fixa para
que o fator associativo seja eficaz. De resto, dá para ver que o crescimento da
prosperidade geral, a vigilância da polícia e, sobretudo, a consciência social (que,
misturando curiosamente boas e más motivações, não “pode suportar” a visão da
pobreza) obrigam cada vez mais os indigentes a tentarem esconder-se. E isso
mantém os pobres mais afastados e contribui para que sejam muito menos
solidários do que acontecia na Idade Média, por exemplo. A classe dos pobres,
particularmente na sociedade moderna, constitui uma síntese sociológica muito
peculiar. Possui uma grande homogeneidade no que tange ao seu significado e à sua
localização no corpo social, mas está totalmente desprovida de homogenia quanto à
questão da qualificação individual dos seus elementos. É o ponto final comum de
todos os destinos, o oceano em que desembocam as existências mais díspares,
provenientes de todas as camadas sociais. Não há nenhuma mudança, evolução,
ascensão ou queda da vida social que não deposite um sedimento na classe dos
pobres, como a aluvião transportada por uma enxurrada. O mais terrível nessa
pobreza – contrariamente ao fato de ser pobre, que cada qual resolve do seu modo,
e que significa apenas uma nuance na posição individual – é o fato de ter pessoas
cuja condição, aos olhos do grupo humano em que vivem, consiste em serem apenas
pobres e nada mais. Isso se vê claramente quando reina um regime no qual as
esmolas são distribuídas a mãos cheias e sem discernimento, como no Medievo
cristão ou sob a autoridade do Alcorão. No entanto, precisamente porque a miséria
aparecia então como um fato oficialmente reconhecido e irremediável, não era
534 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

acompanhada do amargor nem das contradições com que as tendências favoráveis


à evolução e às mudanças da época moderna tratam uma classe fundada em um
elemento puramente passivo: a atitude que a sociedade adota em face dessa
categoria de cidadãos. Quando se priva aos que recebem esmolas de seus direitos
políticos, se expressa claramente o ponto de vista social de que os assistidos não
são mais do que pobres. Essa ausência de qualificação, em si própria afirmativa,
produz o efeito acima referido: a classe dos pobres, apesar da igualdade de sua
situação, não desenvolve por si só as forças para que ela própria se transforme em
uma unidade sociológica. Dessa maneira, a pobreza constitui um universo
sociológico único: certo número de pessoas, por um destino puramente individual,
ocupa uma posição orgânica específica no conjunto. O que nos leva a uma
observação fundamental: essa posição não está determinada na realidade pelo
mencionado destino e pela maneira de ser próprios, mas pelo fato de que outros
(indivíduos, associações, comunidades) procuram corrigir esse destino. De modo que
não é a privação que aflige à pessoa que faz dela sociologicamente um pobre, mas a
assistência concedida por causa desse infortúnio.
VIII. A autopreservação dos grupos sociais

A luta, que a experiência imediata nos permite reconhecer na vida das pessoas
– a necessidade constante de conquistar algo, de se defender de ataques, de resistir
às tentações, de restabelecer um equilíbrio perdido – prossegue além e aquém (por
assim dizer) da existência espiritual dos indivíduos. Os fenômenos fisiológicos de
dentro do nosso corpo oferecem a mesma imagem de luta incessante. A
autopreservação da vida física nunca é uma simples permanência estática, mas uma
atividade consagrada a vencer as resistências da doença, a produzir os anticorpos
destinados a neutralizar patógenos hospedados no próprio organismo, uma resposta
a certos ataques que se tornariam destrutivos sem tal reação. E essas são também
as formas universais sob as quais as entidades supraindividuais conduzem as suas
vidas. Quando dizemos dessas entidades que “se preservam” – e não apenas dos
ataques externos que ameaçam a sua existência –, resumimos em tal oração
incontáveis processos ininterruptos que se manifestam dentro desses organismos
sob a forma de agressões e contra-ataques, perigos e esquivas, repulsas e
combinações entre os seus vários elementos. Compreendem-se, todavia, os motivos,
ao falarmos da preservação do Estado e da confraria, da Igreja e da associação, da
família e da escola, de não conseguirmos ver o processo de compensações
constantes, a busca de meios sempre novos contra perigos incessantemente
renovados, senão uma mera subsistência, a sequência continuada de um perfeito
repouso. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, porque o indivíduo só percebe
por si mesmo a instabilidade da vida, a permanente sucessão de ofensiva e defesa,
já que os processos análogos nas coletividades se distribuem entre muitos
indivíduos, em vários pontos separados pelo espaço, pelo conteúdo e pelo interesse,
sem chegar a atingir facilmente a consciência das pessoas, exceto no que se refere
ao seu resultado, que é a permanência do conjunto. Em segundo lugar, porque esses
processos se desenrolam com maior frequência em entidades de grandes
proporções e, portanto, com mais lentidão, inércia, e durante um tempo tão
prolongado que as transições de seus diversos estágios são dificilmente advertidas.
Por fim, o fator mais difícil, e talvez mais eficaz: todas essas entidades coletivas não
agem sobre nós apenas como realidades históricas específicas, cuja significação se
536 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

esgotaria no seu processo de vida temporal, mas como algo eterno, como um
conceito abrangente, como uma lei universal ou forma geral cujo sentido e validade
não se esvaziam com o caso ou a realização singular que ora aparece e logo se
dissipa. Não há dúvida que o conceito de indivíduo também independe do fato de que
as energias da realidade engendram ou aniquilam ora um, ora outro indivíduo; no
entanto, sentimos que mesmo o Estado individualmente considerado ou a Igreja
particular1 têm retirado tantos elementos do conceito geral de Estado ou daquele de
Igreja “universal”2, que a entidade histórica participa, de algum modo, da condição
supraindividual, da eternidade, do universal ou da forma, completamente alheia às
mudanças da vida.
O fundamento desse sentimento pode resumir-se no fato de que as entidades
coletivas dessa natureza possuem uma relativa eternidade em face de seus membros
individuais; que elas são indiferentes às particularidades desses elementos e
sobrevivem à passagem deles pela terra – do que falaremos mais à frente. É por isso
que essas entidades entram na categoria da lei, cuja validez independe de suas
aplicações particulares, ou da forma, cuja significação ideal nada tem a ver com a
pluralidade de suas aplicações materiais. Porém, as entidades coletivas somente
adquirem essa afinidade com o eterno desde o ponto de vista do indivíduo, diante de
cuja existência inconstante e efêmera erguem-se como algo inabalável e
permanente. Se ignorarmos essa comparação, tais organizações ficam igualmente
sujeitas à lei da ascensão e do declínio – mesmo que o “andamento” ou ritmo seja
bastante diferente entre seus elementos individuais, pois que também essas
organizações sofrem aquilo que não podemos deixar de chamar processo vital: a
autopreservação durante algum tempo, que não é a rigorosa ausência de conflitos,
nem a imobilidade interna, mas a soma de processos imanentes, quer dizer, a defesa
de um equilíbrio sempre em perigo e restabelecido após frequentes prejuízos, a
preparação, consciente ou inconsciente, de meios para o fim (que nunca resulta
evidente) de viver o próximo instante.

1
Segundo o cânon 368 do Código de direito canônico, as igrejas particulares, “das quais se constitui
a uma e única Igreja católica” são fundamentalmente as dioceses – ademais de outras porções “do
povo de Deus” como as prelazias e abadias territoriais, os vicariatos, as prefeituras e as
administrações apostólicas. (NT)
2
Que é o que quer dizer “católica”. (NT)
Georg Simmel | 537

Essas três classes de autopreservação são independentes entre si em um nível


relativamente elevado. A autopreservação fisiológica se conclui amiúde com
sucessos ou fracassos que são exatamente o oposto dos resultados coetâneos da
autopreservação espiritual; a qual, por sua parte, tem o mesmo tipo de relações de
contingência (acidentais) com a autopreservação do grupo social. O instinto de
preservação do indivíduo se manifesta em ações completamente diversas, põe em
jogo forças muito diferentes daquelas que garantem a preservação do seu grupo, de
tal forma que a preservação do indivíduo poderá ser alcançada frequentemente com
sucesso e sem qualquer dano, enquanto o grupo enfraquece e se descompõe.
Contrariamente, o grupo pode estar no apogeu do seu vigor enquanto os seus
elementos individualmente considerados já estão em decadência. Este último
fenômeno especialmente levou a considerar o grupo unido como uma entidade
dotada de uma realidade autônoma, que viveria de acordo com as leis e as forças
próprias, independente dos seus membros individuais – por exata analogia com a
construção teórica do “sopro da vida” ou da “força vital” especial e pessoal no
indivíduo fisiológico. A unidade substancial que se preserva por si própria parece se
manifestar na existência do sujeito, substituindo os milhares de processos de ação
recíproca entre os elementos – e aos quais um conhecimento mais profundo atribui
a permanência da vida. Nosso propósito nesse ponto é análogo. Quando vemos que
as mais diversas sociações desenvolvem forças ativas (aparentemente específicas)
para conservar o seu próprio ser, a primeira pergunta que vem à mente é: em quantos
processos primários é preciso descompor esse fenômeno? Todavia, embora a
preservação do grupo – assim que ela começar – pareça exprimir alguma força vital
particular (certa firmeza oriunda de uma única fonte), isso não é realmente mais que
a consequência (ou melhor, a reunião) de grande número de processos parciais e
individuais de natureza social. Então perguntamo-nos agora: que tipo de ação
recíproca, imediata ou mediata, se produz na autopreservação de um grupo social?
O caso mais comum em que aparece o problema da autopreservação do grupo
é o fato de ter que permanecer idêntico, apesar do desaparecimento e da mudança
de seus membros. Dizemos que o Estado, a associação ou o exército de hoje são os
mesmos de há décadas ou séculos atrás – embora já não haja mais um só e
“mesmo” membro da primeira época nesses agrupamentos. Encontramo-nos aqui
538 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

perante um dos casos em que a ordem cronológica dos fatos apresenta clara
analogia com sua ordem espacial.
Assim como, a partir da simples justaposição das pessoas – isto é, da reunião
de seres que conservam separadamente sua integridade individual –, se consegue
dar forma à unidade social; do mesmo modo que a separação aparentemente
intransponível que o espaço impõe entre os homens pode ser vencida pelo laço
espiritual que se crie entre eles, tampouco a separação temporal dos indivíduos e das
gerações impede que uns e outras constituam para nós um todo único e interrupto.
Nos seres separados no espaço, tal unidade é determinada pelas ações recíprocas
verificadas nesse âmbito. Tratando-se de seres complexos, a unidade não significa
mais do que a coesão dos elementos proporcionada por forças exercidas
reciprocamente. Todavia, no caso de seres separados no tempo, sua unidade não
pode ocorrer desse modo porque falta a ação recíproca: os mais antigos podem agir
sobre os mais recentes, mas não vice-versa. É precisamente por essa razão que a
preservação da unidade social, apesar das mudanças de indivíduos, constitui um
problema específico que não fica resolvido apenas com a mera explicação das razões
dessa unidade em um dado momento.
O primeiro fator, aquele que mais imediata e evidentemente serve de
fundamento à continuidade da unidade coletiva, é a permanência da localização, do
território sobre o qual vive o grupo. O Estado e ainda mais a cidade – mas também
muitos outros grupos humanos –, apoiam, em primeiro lugar, a sua unidade em
determinada base territorial, que representa o substrato duradouro de todas as
alterações de seu conteúdo. Na Grécia clássica, a permanência na propriedade
fundiária era sobretudo o que determinava a continuidade do grupo familiar. Disso
decorriam dois efeitos: em primeiro lugar, qualquer diminuição desse patrimônio
imobiliário por venda era visto como uma ação ética e socialmente condenável, não
só em detrimento dos filhos, mas também dos ancestrais porque equivalia a romper
a cadeia de existência familial. Em segundo lugar, e diante disso, qualquer acréscimo
desses bens imóveis era praticamente impossível no contexto da época. De tal modo
que essa coesão (reforçada desde os dois extremos da árvore genealógica) era capaz
de manter a família como entidade indestrutível, por princípio, a despeito das
vicissitudes existenciais de seus membros. Pode parecer curiosa a significação da
Georg Simmel | 539

propriedade fundiária para a continuidade da família grega, muito compreensível,


porém, se tivermos em conta que, para o conceito grego de Estado, a terra não
possuía ainda a importância que posteriormente teve. Do mesmo modo que ao falar
dos “Estados territoriais”3 estrangeiros só se aludia à soma dos seus habitantes – e
se dizia: “os egípcios”, “os persas” –, para os gregos a pertença a um Estado nunca
estava condicionada por um vínculo territorial, mas pela participação em uma
comunidade cívica. Quando cidadãos gregos desterrados se encontravam no
estrangeiro em número suficiente, continuava aí, sem mais nem menos, a existência
do Estado interrompida pelo inimigo, e cuja continuidade vital parecia deste modo
estar ligada às pessoas de seus membros, e não ao território. Em compensação, na
época feudal e patrimonial se aplica até as últimas consequências o princípio formal
do vínculo territorial. Os habitantes de determinado território estão submetidos à
autoridade estatal por residir na sua circunscrição. O Estado, como forma específica
de organização do material humano, baseia sua continuidade na permanência do
território. E, como a aquisição e a perda do domicílio significam a aquisição ou a
perda da cidadania, o território determinado por fronteiras reconhecidas se converte
no verdadeiro objeto da soberania, cuja permanência permite ao Estado superar
todas as mudanças de seu material humano. Na medida em que a noção de Estado
(idealmente uno e indestrutível) suplanta as representações derivadas do direito
privado, a indivisibilidade de seu território se converte também em um princípio: a
base geográfica do Estado deixa de ser algo indivisível e adquire as feições de certa
unidade conceitual, o corolário da unidade política em geral. E quando os efeitos
dessa ideia transcendem a esfera dos conceitos abstratos para incidir no campo dos
sentimentos, a influência moral resultante cria uma paixão de infinita importância
para a conservação política: o amor à pátria. A continuidade do território no tempo é
absolutamente necessária para o patriotismo do homem moderno: o fato de que a
terra que pisamos seja a mesma de nossos antepassados é indissociável de sua
eficácia para garantir a coerência do grupo político.

3
“Estado territorial” (Flächenstaat) é um termo técnico dos historiadores e juristas alemães da época
para designar o Estado moderno, surgido na Europa da Renascença, definido por sua continuidade
territorial na qual se exerce plenamente a soberania estatal. (NT)
540 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Relações que em qualquer outro sentido seriam exatamente iguais se


diferenciam consideravelmente em sentido sociológico pelo sentimento de sua
diversa duração. Não nos apercebemos, em geral, até que ponto cada fator das
relações humanas que parece determinado inteira e exclusivamente pelo seu
conteúdo objetivo (pela nossa ideia e nosso sentimento do que são atualmente),
depende, no entanto, simultaneamente, da ideia consciente ou inconsciente da
duração desse conteúdo objetivo. Do mesmo modo, toda e qualquer relação é
inevitavelmente determinada pela conjectura sobre sua maior ou menor duração,
pela previsão de seu fim ou pela ideia de que, ao contrário, ela não terminaria – de
que essa infinidade tem apenas a aparência de tal ou é a expressão da
impossibilidade por princípio de ter fim. O casamento e a relação com Deus e com a
pátria são claros exemplos dessa alternativa.
Tais determinações temporais não precisam alterar o conteúdo imediato e
individual das relações: elas constituem apenas um matiz formal, mas de
importantes consequências para seu decurso. Assim, o patriotismo não é só um
sentimento ou uma ligação ética entre os indivíduos e seu grupo político; também
deve apoiar-se na convicção de que a relação com o grupo é indissolúvel, apesar da
liberdade de movimento do homem moderno. A concretude do território da pátria,
base inabalável e imprescritível daquela relação, se torna, pelo amor à pátria, em
sustentáculo e símbolo de sua carência de limites no tempo – ênfase formal
indispensável para manter a coesão do conjunto.
No entanto, a duração da localização não significa por si só a continuidade
indefinida da unidade social; porque se, por exemplo, toda a população de um Estado
fosse expulsa ou escravizada por um grupo de conquistadores, apesar da
permanência do território, falaríamos de mudança dos grupos políticos. Além disso,
a unidade de cuja persistência falou-se aqui é psíquica, e converte sua base territorial
em um todo coerente. Essa significação psíquica da localização pode substituir a
significação material nas consciências. Um caso, ainda que anedótico, mostra-nos
até que ponto a unidade social, por interiorizada que esteja, continua ligada, como
conectada por fios espirituais, à sua terra de origem. Durante a Guerra Hispano-
Americana, quando no verão de 1898 a frota espanhola parecia ameaçar a costa
oriental dos EUA, alguém perguntou a um bostoniano expatriado o que ele pensava
Georg Simmel | 541

de um possível bombardeio a sua cidade natal. Esta foi a resposta: “Bombardear


Boston? O senhor fala como se Boston fosse um sítio. Boston não é um lugar, é um
estado de espírito. O senhor não pode bombardeá-lo com um canhão, assim como
não pode bombardear a sabedoria, a justiça ou a magnanimidade”4. No entanto, se
essa conexão espiritual permitiu a um grupo identificar e definir um território como
seu lar, essa terra se converte em parte essencial da prolongação de sua existência.
Apenas de parte dela, porque há muitos agrupamentos que não requerem base
territorial. Por um lado, temos os grupos muito pequenos, como as famílias, que
permanecem os mesmos, embora devam mudar de local de residência, e por outro,
os muito vastos, como aquela comunidade ideal da “república dos sábios” ou as
outras comunidades culturais internacionais de apreciadores da literatura ou da arte,
assim como os grupos da finança internacional, cuja essência consiste,
precisamente, em suprimir e ignorar os vínculos que pudessem associá-los a uma
localização específica.
Comparada a essa condição relativamente formal da preservação do grupo, a
conexão genética das gerações (como em geral todo o encadeamento das relações
de parentesco) é infinitamente mais importante. Certamente, o parentesco de sangue
nem sempre é suficiente para garantir a coesão do conjunto por um longo período de
tempo, sendo assim indispensável acrescentar em muitos casos a unidade de lugar.
O caso dos israelitas parece confirmá-lo. Como é sabido, apesar de sua unidade
antropológica e confessional, a unidade social dos judeus se afrouxou
consideravelmente após a sua diáspora. Contudo, ela se estreitou sempre que um de
seus grupos viveu por tempo suficiente em um mesmo território. Esse efeito foi bem
compreendido pelo sionismo moderno, cujos esforços atuais visam a restabelecer a
unidade do povo hebreu mediante a recuperação de sua base territorial histórica.
Todavia, quando as outras relações de parentesco não cumprem plenamente o seu
papel, o vínculo genético é o ultimum refugium, para o qual se volta (na falta de
melhor) a autopreservação do grupo. Nessa ordem de ideias, podemos lembrar como,
à medida que o sistema medieval alemão de corporações perdia vitalidade, e as

4
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “Bombard Boston! You talk as though Boston were a
locality. Boston is not a place; Boston is a state of mind. You can no more shoot it with a gun than you
could shoot wisdom, or justice, or magnanimity.” (NT)
542 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

forças objetivas que o mantinham unido ficavam mais fracas, mais energicamente
se fechou na sua condição hereditária, fazendo do parentesco e das alianças
matrimoniais as condições essenciais para o ingresso nas guildas. A história das
corporações se caracteriza pela preferência outorgada aos filhos dos mestres.
Essencialmente, com algumas exceções, a guilda era uma associação que se
transmitia hereditariamente aos filhos. No entanto, a vantagem material e o egoísmo
familiar nem sempre foram as razões para a transmissão hereditária, também
influenciada pelo ideal social objetivo de estabilidade e continuidade da agremiação.
Da mesma maneira, a ideia que introduz esse “exclusivismo corporativo” – todo
mestre deve receber a mesma “côngrua” ou retribuição que os outros – não é
meramente individualista, pois garante uma homogeneidade interna capaz de manter
a unidade do grupo, e evitar sua fragmentação. Todavia, essa exclusão da
concorrência trazia naturalmente como consequência a restrição numérica, e a
técnica mais simples para conseguir esse resultado era favorecer os filhos dos
mestres, quer dizer, excluir aqueles que geneticamente não faziam parte do grupo.
Por todo o lado, o exclusivismo de uma classe privilegiada e o afastamento rigoroso
do parvenu são a expressão ou o meio de sua continuidade. A persistência é
garantida – não exclusivamente, mas da maneira mais simples e mais clara – pela
transmissão dos privilégios dentro da série genética, pois essa é a melhor maneira
de impedir que o organismo se disperse em uma pluralidade de direções, grupos de
interesse e traços de caráter. Augusto, que dava a maior importância à manutenção
permanente da classe senatorial, assegurou seu caráter socialmente estanque
proibindo os seus membros de casarem com libertos, atores e os filhos de uns e de
outros. Em compensação favorecia por todos os meios possíveis a transmissão
hereditária da dignidade senatorial aos filhos dos senadores. Os laços de sangue lhe
pareciam o único “aglutinante” capaz de manter a coesão do ordo senatorius. O
exclusivismo, o estreitamento, por assim dizer, na dimensão da largura, se combina
com sua extensão na dimensão longitudinal do tempo. E na moderna vida de família,
tal como ela se apresenta, sem coesão, atomizada, dilacerada de mil maneiras por
antagonismos internos e afãs de autonomia, a única coisa que ainda caracteriza a
família como unidade na sucessão das gerações é a comunidade genética, e a
hereditariedade biológica estreitamente unida a ela. Todos os outros laços que
Georg Simmel | 543

asseguravam outrora a continuidade do grupo familiar – profissionais, religiosos,


tradicionais, de afeição ou de classe – estão a perder vigor como esteio da unidade
supraindividual da família. Somente o vínculo genético e suas consequências diretas
parecem consegui-lo ainda com certo êxito.
Se a relação de parentesco que vincula as gerações sucessivas tem tal
importância para a conservação da unidade dos grandes grupos é porque a
substituição de uma geração pela seguinte, a colocação de uma pessoa no lugar de
outra, não acontece repentinamente. Desse modo cria-se a continuidade: a grande
maioria dos indivíduos que vivem em dado momento, ainda estará nesse lugar no
instante seguinte. A renovação, o desaparecimento de algumas pessoas e a chegada
de outras em dois momentos próximos refere-se apenas a um minúsculo número de
indivíduos em comparação com o dos que restam. O fato de que o homem,
contrariamente a outros mamíferos, não limite seu apetite sexual a um período de cio
exerce influência significativa nisso, pois por essa razão nascem crianças em
qualquer momento. Por conseguinte, jamais pode dizer-se que em determinado
momento começa uma nova geração dentro de um grupo. O desaparecimento dos
antigos elementos e a entrada dos novos ocorre tão lenta e continuadamente que o
grupo parece ser uma entidade coerente, tanto quanto um corpo orgânico apesar da
mudança de seus elementos. Contrariamente, se a substituição dos elementos se
verificasse de forma repentina a ponto de atingir inopinadamente todo o grupo, não
se poderia dizer que o conjunto conservou sua identidade malgrado a partida de seus
membros. O fato de que a cada instante os que já pertenciam ao grupo no momento
imediatamente anterior constituam a esmagadora maioria relativamente aos novos
membros salva a identidade do conjunto, mesmo que em dois momentos muito
distantes não houvesse sequer um elemento comum.
A progressividade da renovação é evidentemente essencial, não apenas para
preservar a unidade do grupo, apesar da mudança de seus membros individuais, mas
também quando a modificação diz respeito a outras condições do conjunto. Mesmo
nos casos em que as formas políticas, o direito, os costumes, a cultura inteira de um
grupo se transformam a ponto de oferecerem por certo período de tempo um quadro
completamente diferente, o direito a nomeá-lo, além disso, como igual a si mesmo
pode justificar-se pelo fato de que essa mudança não afeta simultaneamente a
544 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

totalidade das formas de vida do grupo. Se fosse o caso, seria duvidoso realmente
dizer que se trata do “mesmo” grupo de antes do momento crítico. Unicamente o fato
de que a modificação, em cada momento dado, alcance apenas parte da vida total do
grupo possibilita a manutenção da unidade. Podemos expressar isso
esquematicamente da seguinte maneira: se a totalidade dos indivíduos ou de outros
elementos da vida de um grupo, em dado momento, pode ser definida como a b c d e,
e em um momento posterior como m n o p q, poderíamos falar de preservação da
unidade se a evolução seguir o curso seguinte: a b e d e – m b c d e – m n c d e – m
n o d e – m n o p e – m n o p q, de tal modo que cada estágio difira de seus vizinhos
por apenas um elemento, e que cada momento partilhe com seus vizinhos os
mesmos traços essenciais.
Essa continuidade na sucessão dos indivíduos que sustentam a unidade do
grupo aparece de modo mais patente e notável quando repousa na procriação. Ela,
porém, também tem a ver com outros casos em que essa transmissão física está
expressamente excluída, como acontece no clero católico, dentro do qual a unidade
se mantém porque sempre há quantidade suficiente de sacerdotes para ensinar aos
novos ordenados. O celibato até se mostrou mais vantajoso do que o laço biológico
para a continuidade da coesão do grupo. Foi observado com razão que, dada a
tendência medieval de tornar as profissões hereditárias, o clero se teria convertido
em uma casta sem o celibato. É esse, aliás, o meio utilizado pelo clero secular russo
– obrigado a se casar – para atingir o máximo de continuidade possível. Como os
servos não podiam ser sacerdotes, e os aristocratas não queriam sê-lo, em ausência
de uma verdadeira classe média, os popes viram-se obrigados a assumir a própria
renovação: seus filhos se tornavam também sacerdotes e não se casavam mais do
que com as filhas de outros clérigos – as derrogações precisavam de autorização
especial. Deste modo o sacerdócio russo se converteu em uma casta reduzida à
endogamia, cuja falta de relações familiares fora do âmbito eclesial lhe conferiu algo
da posição de exceção e da persistência interna do clero celibatário. É notável que
essa exacerbação da continuidade biológica tenha conduzido a aproximar-se das
consequências da mais estrita exclusão da transmissão física. Todavia, a
superioridade desse último sistema é indubitável. Especialmente, se levamos em
conta que a continuidade de natureza genética teria exposto à Igreja da Europa
Georg Simmel | 545

ocidental – espaço muito diferente ao da antiga Rússia – a um processo vital


análogo ao das corporações de artesãos, com todas suas vicissitudes, seus ritmos
diversos, seus desenvolvimentos e decadências. Em um sistema hereditário, o clero
teria sido deixado ao acaso das individualidades muito mais que no sistema atual,
em que a admissão obedece a critérios objetivos que incluem e excluem os indivíduos
com rigor técnico. Não há aqui filhos incompetentes que se mantêm, apesar da falta
de idoneidade, dentro da família ou da ordem, enfraquecendo o aparato de gestão de
ambas. A continuidade se tem apoiado no espírito objetivo, com sua validez
intemporal e universal, escapando assim à caducidade de uma estrutura meramente
orgânica.
No entanto, esse tipo de recrutamento pressupõe inevitavelmente um
constrangimento ao indivíduo. Desde o século IV ficou mais difícil aos sacerdotes
saírem de seu estado, forçando-os a permanecer nele uma vez aceite. Somente a
eternidade da ideia do grupo – manifestada através da vitaliciedade e
irrevogabilidade do sacerdócio – podia reduzir ao mínimo o risco que a sucessão de
pessoas representa para a continuidade do grupo. E nada simboliza essa
permanência de maneira mais adequada e mais eficaz que a consagração sacerdotal.
Por meio dela, o “Espírito”5, patrimônio ideal da Igreja, se transfunde a um indivíduo
por outro indivíduo a quem havia sido confiado – mediação sem a qual ninguém o
consegue 6 . Esse é um meio genial para unir a preservação do grupo a uma linha
indestrutível. Graças à transmissão do “Espírito” de um indivíduo ao outro, que se
prolonga através da Tradição7, o sentido sociológico da procriação física adquire um
corpo imaterial que garante a continuidade temporal do conjunto da instituição da
maneira mais pura e livre de perturbação. Essa forma sociológica se repete em outras
esferas, embora sem cristalizar na unidade permanente do espírito metafísico. Ela é,
por exemplo, a que dá permanência às hierarquias de funcionários e permite que a

5
A fé apostólica no tocante ao “Espírito” foi confessada pelo segundo Concílio Ecumênico, em 381,
em Constantinopla: “Cremos no Espírito Santo, que é Senhor e que dá a vida; ele procede do Pai”. (NT)
6
A “consagração” é o ato sacramental que integra na ordem dos bispos, presbíteros e diáconos. Ele
transcende uma simples designação, pois confere uma investidura, um dom do Espírito que permite
exercer um “poder sagrado” que, para os crentes, só poderia vir do Cristo, por meio de sua Igreja. (NT)
7
Para que o Evangelho sempre se conservasse vivo e inalterado na Igreja, os apóstolos deixaram
como sucessores os bispos, a eles transmitindo seu próprio encargo de magistério. Esta transmissão,
realizada no Espírito, é chamada de “Tradição” e, por meio dela, a Igreja perpetua e transmite a todas
as gerações tudo o que ela acredita ser e tudo o que crê. (NT)
546 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua essência, o espírito objetivo dos cargos, se mantenha através das mudanças de
indivíduos – a exemplo do que acontecia na antiga Roma, onde (como no caso do
sacerdócio que acabamos de ver) os magistrados procediam no fundo dos deuses, e
a consagração para atingir essa dignidade só podia ser dada pelo predecessor
imediato. Mesmo hoje, os funcionários existentes em dado momento não
desaparecerão do grupo até depois de passar certo tempo suficientemente longo
com seus sucessores, período durante o qual os novos elementos terão assimilado
plenamente o espírito, a forma e a tendência do conjunto ao qual foram se
incorporando. A perenidade dos grupos depende da lentidão e da perfeita
progressividade dessas mudanças.
O fato designado pelo termo “perenidade” tem a maior importância. A
preservação da unidade coletiva, por determinado período de tempo virtualmente
ilimitado, confere ao grupo um significado que, coeterus paribus, é infinitamente
superior ao de cada indivíduo. A vida individual, com seus conjuntos de objetivos,
seus valores e seu poder, está organizada para terminar num período de tempo
limitado e, de alguma forma, cada indivíduo deve partir do zero. A vida do grupo
carece, no entanto, de tal limite temporário fixado a priori, e suas formas estão
dispostas como se pudesse viver para sempre. Graças a isso, armazena uma soma
de realizações, de energias e de experiências em virtude das quais supera as
conquistas constantemente interrompidas da vida individual. Na Inglaterra. foi essa,
desde a alta Idade Média, a fonte do poder das corporações urbanas. Desde o início,
as guildas tinham o direito “de perpetuar a sua existência, preenchendo as vagas
surgidas assim que elas acontecerem”. É verdade que os antigos privilégios se
referiam apenas aos “burgueses e seus herdeiros”, mas, na verdade, essa faculdade
foi exercida sob a forma de um direito a receber novos elementos, de modo que
qualquer que fosse o destino reservado aos membros e a sua descendência física, a
corporação, como tal, foi mantida inteira e conservada sempre. A cooptação é o
princípio formal, extraordinariamente importante, que representa aqui o papel da
consagração sacerdotal. Ela preserva o caráter do grupo de forma idêntica e durante
um período de tempo ilimitado, por analogia com a vida do organismo, que absorve
apenas os elementos que lhe convêm e que consegue assimilar. Representa assim
uma espécie de prolongação da vida individual, na qual, por acréscimo, se substitui a
Georg Simmel | 547

transmissão genética de caracteres, por elementos escolhidos propositadamente,


quer dizer, desvinculados dos riscos da hereditariedade. Historicamente, houve
casos de corporações representativas nas quais a cooptação se juntou ao direito
vitalício de preencher os lugares que ficarem vagos, como por exemplo aconteceu,
durante o século XVII, nos conselhos das cidades suíças de Basileia, Soleura e
Friburgo em Nuitônia. A cooptação faz a linha da vida do grupo se prolongar
indefinidamente, não só de um modo contínuo, mas também na mesma direção. É
bem certo que, na Inglaterra, o direito irrestrito concedido às instâncias locais de
completar suas próprias fileiras tem justamente conduzido, a partir do século XV, à
estagnação paulatina das comunidades urbanas. E que, mesmo nos casos mais
favoráveis, as suas vantagens têm um preço: o significado individual das pessoas se
apaga em proveito de seu papel no amparo coletivo da preservação do grupo. A
perenidade do conjunto se alimenta desses indivíduos em simpatia com o todo do
grupo – quer através da simples tradição, quer por meio de uma especial
consagração ou por cooptação – e, por isso, a questão decisiva não será doravante
o que os indivíduos são por si mesmos, mas a sua capacidade de serem assimilados
sociologicamente. A preservação do grupo não poderia deixar de estar comprometida
se estivesse apenas associada a algumas pessoas efêmeras e insubstituíveis. Ao
contrário, quanto mais anônimas sejam essas pessoas e mais desprovidas se
encontrem de qualquer traço ou particularidade individual, mais adequadas serão
para tomar imediatamente o lugar de outros elementos, garantindo assim ao grupo a
preservação ininterrupta de sua identidade. Essa foi a enorme vantagem que, durante
a Guerra das Rosas 8 , permitiu à Câmara dos Comuns acabar com a posição
dominante da Câmara dos Lordes: uma guerra intermitente de 30 anos, na qual
pereceu a metade dos nobres do país, privou à Câmara Alta da metade de sua força,
porque o poder dos aristocratas estava relacionado com as suas pessoas – ao passo
que a Câmara dos Comuns, por princípio, não podia ser enfraquecida desse modo.
Finalmente, o estamento que conquistou o poder, graças à redução das disparidades
entre seus membros, foi aquele que mais demonstrou empenho a durar como grupo

8
A Guerra das Rosas foi uma série de lutas dinásticas pelo trono da Inglaterra, ocorrida entre 1455 e
1485, de forma intervalada, durante os reinados de Henrique VI, Eduardo IV e Ricardo III. Em campos
opostos encontravam-se as casas de Iorque e de Lencastre, ambas originárias da dinastia
Plantageneta e descendentes de Eduardo III, rei da Inglaterra entre 1327 e 1377. (NT)
548 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– coesão formal ajudada pelo fato de ser a classe “individualmente mais pobre, mas
coletivamente mais rica”. Essa circunstância confere uma vantagem a todos os
grupos quando concorrem com um indivíduo. Diz-se da Companhia das Índias
Orientais9 que, para conquistar o subcontinente indiano, não utilizou outros meios
que os usados pelo Grão Mogol10, mas que a superioridade que a empresa tinha com
relação a outros usurpadores consistia no fato de que ela não podia ser
assassinada...
Por isso, certas instituições muito especiais são necessárias quando a vida do
grupo está estreitamente vinculada à existência de uma pessoa reinante. A história
de todos os interregnos mostra bem os perigos oferecidos por essa forma
sociológica para a preservação do grupo – perigos que, com certeza, aumentam na
medida em que o soberano esteja realmente no cerne das funções por meio das quais
o grupo preserva ou recria a sua unidade, em todos os momentos. Por essa razão,
um intervalo de soberania pode ser bastante indiferente quando o príncipe só exerce
um poder nominal – reina, mas não governa –, ao passo que, ao contrário, mesmo
uma colmeia estará à beira da anarquia se for privada de sua rainha. Todavia, não é
apenas o problema da vulnerabilidade humana o que ameaça a autopreservação do
grupo, pois quando sua salvaguarda depende de uma pessoa, é o caráter da própria
pessoa que pode conduzir a diversos ataques. Foi o que sucedeu, por exemplo,
durante a época merovíngia 11 (que sob muitos aspectos preservou a anterior
estrutura estatal romana) quando o poder público se transformou em um patrimônio
pessoal transmissível e divisível. Esse princípio, que fundamentava o poder dos reis,

9
A Companhia das Índias Orientais (EIC) foi uma empresa inglesa e mais tarde britânica formada para
negociar principalmente com o subcontinente indiano e a China. Era uma companhia majestática
formada por comerciantes de Londres em 1600, com o nome de Company of Merchants of London
Trading to the East Indies a quem a rainha Isabel I concedeu o monopólio do comércio com as Índias
orientais. A empresa acabou por dominar grandes áreas da Índia com seus próprios exércitos
privados, exercendo o poder militar e assumindo funções administrativas. Durou até 1858, quando,
após a Rebelião Indiana de 1857, a Coroa Britânica decidiu assumir o controle direto da Índia. (NT)
10
Designação usada pelos portugueses para o imperador mogol. O Império Mogol foi um Estado
existente entre 1526 e 1857 (com um interregno entre 1540 e 1555) que chegou a dominar quase todo
o subcontinente indiano. Entrou em declínio a partir do início do século XVIII e foi extinto em definitivo
pelo poderio britânico. No seu auge foi possivelmente o Estado mais rico, sofisticado e poderoso do
planeta. (NT)
11
Período histórico da Europa ocidental cristã, que compreende a dinastia de reis francos fundada por
Meroveu e consolidada por Clóvis I (465-511) e seus descendentes, que governaram a Gália e a
Germânia de 500 a 751. (NT)
Georg Simmel | 549

voltou-se contra eles, assim que os membros da alta nobreza que tinham contribuído
para a formação do reino pretenderam receber também seu quinhão de poder. Poder
que, uma vez transmitido a outros, se virava contra o príncipe, que havia sempre
considerado tal potestade como um atributo de sua exclusiva alçada. Outro tipo de
perigo para a coesão social resulta precisamente da unicidade da pessoa reinante,
quando suas diversas competências são acompanhadas de diferentes graus de
poder. A Reforma Inglesa12 deu ao rei a supremacia em questões eclesiásticas, dado
que lhe foram atribuídos os direitos e deveres que correspondiam a Igreja Romana,
até então autônoma. Mas, como o monarca estava limitado nas questões seculares
pelas decisões do Parlamento e pela autonomia dos municípios, disso resultou uma
contradição que os Stuart tentaram resolver transformando sua realeza de direito
divino em uma monarquia absoluta, também nos assuntos profanos. Finalmente, a
inevitável discrepância entre essa pretensão e as tradições constitucionais e
administrativas inglesas, acabou por comprometer gravemente a permanência da
forma de governo.
Os grupos políticos tentaram resolver alguns dos perigos da personalização
do poder, especialmente aqueles provenientes do tempo que decorre entre dois
reinados, propondo o princípio de que o rei não morre. Enquanto, no início da Idade
Média, vigorava a regra consuetudinária segundo a qual se o rei morrer, sua paz
morrerá com ele, o princípio da ausência de interregno permite materializar a ideia de
autopreservação do grupo. Na Inglaterra, não se voltou a reconhecer juridicamente
qualquer interregno desde a subida ao trono de Eduardo I em 1272. Contudo, essa
forma se encontra já no plano antropológico, com uma variante que lembra a
consagração dos sacerdotes. Assim, por exemplo, em muitos lugares da costa
ocidental da África central, frequentemente se acredita que o reino é dirigido por um
“grande espírito” que habita a pessoa reinante. É também desse modo que os dalai-
lamas tibetanos constituem uma série contínua de soberanos obtida do mesmo

12
A Reforma Inglesa (ou Reforma anglicana) foi uma série de eventos ocorridos no século XVI através
dos quais a Igreja da Inglaterra rompeu com a autoridade do papa e da Igreja Romana. Está associada
com o processo mais amplo da Reforma Protestante, mas começou mais como uma disputa política
do que teológica. O rompimento com a Igreja de Roma teve efeito a partir de uma série de atos do
Parlamento aprovados entre 1532 e 1534, dentre os quais o Ato da Supremacia, que declarava o rei
Henrique VIII como "Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra na Terra". (NT)
550 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

modo. Nem a personalidade dos soberanos nem a sua origem têm qualquer
influência, e a única coisa que importa é que o espírito tenha passado realmente do
soberano desencarnado ao seu sucessor. É óbvio que essa separação entre o
verdadeiro detentor da soberania e seu esteio visível constitui uma ameaça tanto
mais grave para a segurança do indivíduo suporte quanto a hereditariedade não
acrescenta uma persistência real à continuidade ideal deste último. Após a morte do
primeiro imperador da China, foram destituídos de seu cargo, poder ou dignidade
alguns potentados porque os sofrimentos do povo eram considerados a prova de que
a divindade se tinha retirado deles. Em tais casos, os membros da nobreza ou os
altos funcionários se tornavam meros mortais que podiam ser expulsos e punidos,
porque a mesma divindade os tinha rejeitado e afastado de sua presença.
Questionado sobre o bom fundamento do assassinato de Shang Yang13, um sábio
chinês respondeu: “Quem desrespeita a virtude é um malvado, e o governante que
coloca a sua vontade ou a de seus senhores acima das leis é um tirano; ora, malvados
e tiranos são nada mais do que pessoas privadas. Ouvi dizer que Wei Yang foi morto
enquanto particular, mas não que o senhor de Shang 14 tenha sido assassinado”. No
século XIII, foi dito na Inglaterra que. quando o papa cometia uma injustiça, não o
fazia agindo na qualidade de papa; da mesma forma que o rei também não poderia
violar como rei os direitos de outrem, pois era um ministro de Deus. Todavia, se o
fizesse, não agiria como rei, mas como ministro do diabo. Na mesma época, um
pensamento formal análogo dizia que o rei era o depositário não do espírito divino,
mas da lei; por isso, não existiria nem sequer um reino onde imperasse o mero arbítrio
e não a lei. Ainda durante o período da Guerra Civil Inglesa, no tempo de Carlos I, a
oposição fiel à constituição, que ainda acreditava na continuidade da monarquia, mas
sem contestar as faltas do rei, recorria à ficção de que “o rei no parlamento estava

13
Shang Yang (circa 390 – 338 a.C.) foi um pensador, político e proeminente jurista chinês. Nascido
no Estado vassalo Zhou de Wei durante o período dos Estados Guerreiros, se destacou como
funcionário, chanceler e reformador ao serviço do Estado de Qin. Considerado o inspirador da política
centralizadora e despótica do primeiro imperador chinês, instituiu o serviço militar obrigatório, obrigou
a que todas as pessoas tivessem uma “ocupação produtiva” (na agricultura ou no exército) e
estabeleceu um sistema de espionagem recíproca entre os súditos. Por seu papel na guerra contra
Wei, Yang recebeu 15 cidades em Shang (o atual Shensi) como seu feudo pessoal, pelo que foi
conhecido como “o senhor de Shang”. Se lhe atribui o Shangjun shu ("Livro do senhor de Shang"), uma
das principais obras, pragmática e autoritária, da escola legalista chinesa. (NT)
14
Seu gentílico era Gongsun e seu prenome Yang. Como membro do clã Wei também era conhecido
como Wei Yang. E o nome Shang Yang alude à posição de “senhor de Shang”. (NT)
Georg Simmel | 551

em guerra contra o rei no acampamento monarquista”.


Desse modo, como consequência direta da crença na imortalidade do rei,
qualquer pessoa que possua o poder concreto de ficar com a coroa será também
necessariamente o rei legítimo, Por conseguinte, o indivíduo é, de fato, indiferente;
qualquer um que suba ao trono readquire nesse mesmo momento a realeza que
continua em sua pessoa. Assim, na China, no contexto mencionado acima, foi dito
que o usurpador vitorioso tinha demonstrado pela própria vitória que a divindade o
havia escolhido para ser doravante seu vaso predileto. Nessa linha de pensamento,
pretendeu-se ver na admiração exagerada que o imperador russo desperta entre seus
sujeitos (pelo simples fato de sê-lo e independentemente das suas qualidades
pessoais) a razão profunda das frequentes revoluções às quais o trono russo esteve
exposto até muito recentemente. No entanto, por perigosa que fosse a
descontinuidade concreta com a qual o “espírito” que habita no soberano ameaçava
a forma monárquica, essa ideia significou um enorme progresso no sentido da
autopreservação – se abstrairmos a grosseira hipóstase do “espírito”. O princípio de
que o rei não morre significa que o monarca foi concebido como permanente na sua
personalidade ideal. Em comparação com sua personalidade física, é mais fácil
acreditar na continuidade e perenidade do espírito que na do corpo, cuja morte é
indiscutível. É também por essa razão que, quanto mais se penetra no passado de
nossa civilização, mais importante é o papel desempenhado pela pessoa física do
soberano – e por consequência fica mais elevado o risco de instabilidade. Nos
primórdios do Império germânico, a vergonha do rei zarolho também alcançava a
seus súditos. E, no antigo Oriente, os pretendentes ao trono que eram preteridos
costumavam ter as orelhas decepadas de modo a fazerem gorar suas reivindicações
futuras. O corpo é mais vulnerável que o espírito. Ao mesmo tempo, a identificação
da ideia do Estado com o rei é mais subjetiva, mais distanciada da objetividade, por
que a corporeidade do soberano (a qualidade do que é corpóreo nele) é a que faz às
vezes dele. Para além dessas imperfeições e incertezas primitivas, não é menos
verdade que estamos diante de uma das ideias sociológicas fundamentais: o rei não
é rei como pessoa, mas, pelo contrário, sua pessoa é apenas o sustentáculo, em si
mesmo indiferente, da realeza abstrata – que é tão intemporal como o grupo do qual
ela é a cimeira. Graças à sua objetivação na função imortal, a realeza adquire uma
552 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nova força psicológica para concentrar o grupo e manter a sua coesão – no preciso
momento em que ela devia perder a sua antiga força, baseada na mera pessoa,
sobretudo quando o grupo crescia.
Com isso, o conceito da unidade do poder político adquire uma base
inteiramente nova, que corresponde à unidade do grupo e é o pressuposto lógico de
sua autopreservação. Enquanto o poder supremo não se distinguiu ainda da
personalidade mortal do rei – não afirmou sua imortalidade –, essa identificação traz
como consequência certo caráter absoluto do poder, no sentido de que é, na
realidade, impossível articular a organização da soberania a partir de elementos
diferentes – como o rei e o parlamento. Porque esse entrosamento é sempre de
natureza objetiva, supraindividual, incompatível com o personalismo incontestável
de um poder que nasce e morre com seu titular. Caráter objetivo que contradiz
também a falta de constrangimentos de um poder que se estabelece e adota suas
próprias formas a cada novo soberano. É interessante seguir esse processo na teoria
de Jean Bodin15 que, em 1577, foi o primeiro a deduzir a indivisibilidade da soberania
de seu caráter de poder supremo. Como ainda não consegue distinguir claramente a
soberania do soberano, Bodin acha a forma mista de governo contraditória. Devido a
sua concepção personalista, esse sistema político parece a ele uma dualidade de
soberanias independentes e iguais dentro do mesmo Estado. E é pela mesma razão
que Bodin pensa que a eventual restrição constitucional imposta a um soberano, não
se aplica ao seu sucessor “visto que quem herda um trono é também, por sua vez,
soberano”. Isso significa, portanto, que a realeza (persistente através de todas as
mudanças de pessoas) não é capaz de agir, mas unicamente a personalidade, que
atribui ao rei não só seus atributos físicos (como a mortalidade e a indivisibilidade),
mas também suas singularidades psíquicas (como a obstinação arbitrária e a
deslealdade). Só há aqui uma aparente contradição com o princípio dos príncipes
italianos da Renascença, segundo o qual eles não estavam obrigados (como as
simples pessoas privadas) a cumprir com sua palavra, se assim aconselhasse a

15
Jean Bodin (1530 — 1596) foi um teórico político e jurista francês, professor de direito em Toulouse
e membro do Parlamento de Paris – um dos tribunais soberanos ou supremos do Antigo Regime. O
autor é reconhecido pelos seus estudos de suma importância para o avanço dos conceitos de
soberania e absolutismo dos Estados, e por seus pensamentos a respeito do modelo de governo ideal
que também tiveram muita influência na Europa. (NT)
Georg Simmel | 553

razão de Estado. Porque esses poderes discricionários, conquistados no geral por


pessoas carentes de fundamento legal para apossar-se deles, eram apenas a
expressão da liberdade soberana do indivíduo, mascarada pelo presumido interesse
do Estado e relutante a aceitar toda norma objetiva e toda limitação baseada em
fatores alheios ao poder pessoal do soberano.
Será preciso aguardar a diferenciação entre a realeza permanente e o rei
perecível para que se formalize a unidade abstrata do grupo. É que somente então
essa unidade vai permitir um conjunto de limitações e manifestações pessoais da
soberania sem quebrantar sua eficácia e continuidade. Foi pela mesma razão,
pensando na conservação do Estado, na preservação de sua legalidade e liberdade,
que se propôs a Cromwell que aceitasse a coroa real. No fim das contas, como rei da
Inglaterra, ele não faria mais do que herdar as prerrogativas da monarquia e seus
poderes legais, objetivamente estabelecidos – apesar de que como “protetor”
(embora talvez sentisse a falta do nome de soberano), estava, na realidade, habilitado
a alargar a sua soberania até onde chegasse o poder de sua espada. O caráter
supraindividual da realeza, que prevalece à contingência de seu detentor individual,
aparece aqui como o sustentáculo imediato da preservação do grupo na identidade
e unidade de sua forma16. E esse afastamento do elemento pessoal passa da esfera
política à vida privada do soberano. O cerimonial que o rodeia não visa apenas a
glorificar a pessoa do rei e a acentuar, como se poderia pensar, o sentimento de

16
Dentro dessa categoria também há espaço para o fenômeno particular que poderíamos designar
com o neologismo de “lealismo”: a devoção pessoal e incondicionada a um indivíduo, não por ser
quem é, senão porque é o detentor da soberania. Não se trata aqui do poder sugestivo que em geral
possui o conceito de soberano e que, sem dúvida, oferece curiosas manifestações. Referimos-nos
apenas ao soberano do próprio grupo. “Eu sou fiel a meu príncipe até fazer a Vendeia – escrevia
Bismarck [aludindo à sangrenta revolta de artesãos e camponeses dessa região francesa que, em
1793, se insurgiram contra a Revolução e a favor da Igreja católica e do sistema monárquico] –, mas
no que tange a todos os outros não me sinto minimamente obrigado de mexer um dedo”. Esse
sentimento é também diferente da fidelidade medieval, que só funciona de pessoa para pessoa, e do
patriotismo, para quem a unidade social, mesmo se projetada em uma forma pessoal, deve a sua vida
ao conjunto do grupo e não à pessoa na qual se encarna. Esse sentimento específico se dirige a algo
social e supraindividual que vive, no entanto, na forma de uma personalidade plena – matiz que o
distingue da devoção que inspira os sacerdotes, na qual a personalidade significa ainda menos,
comparada com a representação da divindade – mas também de uma pessoa, não por causa dela
mesma, mas porque define uma porção finita da vida em si infinita do grupo, verdadeiro objeto dessa
veneração. Do mesmo modo, olhamos com respeito fenômenos naturais fugazes, e talvez não muito
importantes, porque adivinhamos as leis cuja validez eterna se manifesta através de sua contingência.
A ideia de que o rei não morre produz o caso típico desse sentimento fundamentalmente novo em
comparação com a adesão ao soberano puramente pessoal. (NS)
554 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

respeito e obediência que ela suscita. Trata-se, antes, de uma expressão da reserva
do monarca. O sentido da severa etiqueta palaciana é de não se tratar da pessoa do
rei, mas do rei enquanto tal, qualquer que seja a sua característica individual. A
experiência prova que a etiqueta não é apenas uma barreira para os súditos, mas
para o próprio soberano. Da mesma maneira que os sujeitos do rei devem tratar seu
senhor curvando-se às formas que uma norma supraindividual tornou obrigatórias,
ao rei se impõem certas formas exteriores, amiúde independentes de suas
preferências e estados de ânimo.
A maneira mais evidente em que a existência perdurável do grupo se manifesta
na imortalidade do soberano é a condição hereditária da dignidade régia – forma com
que se tenta evitar os perigos envolvidos no princípio da imortalidade. A conexão
genética da família reinante reflete o mesmo nexo ideal dentro do grupo. Não se pode
exprimir com maior precisão e propriedade a prolongação da existência do grupo,
ininterrupta no tempo, que com a substituição do pai pelo filho – destinado e
preparado antecipadamente à sucessão em todo momento. Contrariamente, poucas
coisas contribuíram mais diretamente para a decadência do Império romano do que
a falta de uma sucessão hereditária regulada. O corolário da forma hereditária é a
estabilidade incondicional do monarca no trono. Quando se carece dessa
estabilidade, o soberano desconfia sobretudo da sua família, e esforçar-se-á por
tornar seus membros inofensivos, como acontece nomeadamente no Oriente,
matando-os, cegando-os, ou confinando-os a um mosteiro – o que pode muito bem
contribuir para a extinção da estirpe real. A sucessão hereditária do trono só revela
seu sentido quando estiver preenchida essa condição que faz dela simultaneamente
o símbolo e o suporte da continuidade segura da forma do grupo. Por isso, foi
observado com razão que, mesmo se primitivamente a realeza entre os anglo-
saxônicos estava condicionada às aptidões guerreiras pessoais do soberano, pôde
sobrevir depois uma época de “reis crianças” – mas só quando o reino saxão se
consolidou por três longas, ininterruptas e brilhantes dinastias. Graças a esses
governos, a linhagem assentou-se firmemente sobre o trono, firmeza que se
expressou no fato de que (devido ao princípio hereditário) pudessem ocupá-lo
pessoas que não atingiam plenamente as condições pessoais até então
indispensáveis para reinar. Daí em diante, a forma do grupo se manteve pelas suas
Georg Simmel | 555

próprias forças e só precisou de um soberano, mesmo que ele não tivesse qualidades
individuais notáveis. Por outro lado, a monarquia inglesa forneceu a base sólida do
princípio hereditário valendo-se do conceito medieval do domínio eminente17 do rei
sobre todo o território e as propriedades da Coroa – conceito resultante da
imbricação da família real (que herdava essas propriedades) com os elementos mais
permanentes da vida prática –, base essa que o Império germânico nunca estruturou.
É por isso que os antigos juristas ingleses tratavam a sucessão ao trono de acordo
com o direito de primogenitura, como a sucessão da propriedade fundiária. O fato de
a perenidade do grupo se vincular (como já dissemos) à indestrutibilidade do solo,
encontra aqui expressão e mediação na imortalidade do rei e na imortalidade da
família real.
Assim se supõe que, em tempos muito antigos, a grande propriedade fundiária
teria sido uma das origens da monarquia hereditária. Uma excepcional riqueza
assegurava, em todo o caso, ao seu detentor posições de topo no grupo. No entanto,
enquanto essa riqueza consistisse essencialmente em rebanhos, por exemplo, seria
muito precária e poderia descambar rapidamente. Somente quando ela fosse feita de
bens imobiliários haveria possibilidade de mantê-la de forma duradoura nas mãos
de uma pessoa ou de uma família. A estabilidade da propriedade fundiária, mesmo
que esteja apenas sob o controle do chefe, favorece a durabilidade da forma
constitucional e fornece ao princípio hereditário um fundamento adequado e
formalmente análogo. Finalmente, a solidez da ideia do Estado poderia expressar-se
dizendo que em seus domínios são criados os “rebanhos de ferro” 18 . Desde o
momento que a qualidade hereditária da função reinante torna essa dignidade
independente das qualidades pessoais do soberano (o que constitui também seu
ponto fraco), fica claro que o entrosamento do grupo e a articulação de suas funções,
são agora também independentes – e portanto, tornam-se mais objetivos e passam
a adquirir solidez e durabilidade que não têm nada a ver com a contingência da
pessoa que os representa.

17
Prerrogativa de restringir a propriedade individual, em nome do interesse público. (NT)
18
Quer dizer, os rebanhos que deveriam fornecer os mantimentos de reserva quando os gêneros
alimentícios escasseassem, como as rações de combate do exército alemão, ditas também “de ferro”.
Tropos que permitem evocar mutatis mutandi a tigela de arroz “de ferro" (tiě fàn wǎn), metáfora que
descrevia a estabilidade do emprego público na China da era maoista. (NT)
556 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

A particularidade que permitiu frequentemente dizer que o princípio hereditário


era absurdo e odioso, o fato de ser de natureza puramente formal, que o leva a
promover às mais altas funções tanto as pessoas mais competentes como as menos
indicadas, é justamente o que tem um sentido profundo: é a característica que
expressa que a forma do grupo, a relação entre o soberano e os súditos, se tornou
puramente objetiva e adquiriu a sua própria solidez. Enquanto a sobrevivência do
grupo ainda é mal garantida e inspira dúvidas, o chefe supremo que mantém sua
coesão só pode cumprir sua função graças a qualidades pessoais bem precisas. Por
outro lado, em geral, a racionalidade social faz com que, nos grupos ainda instáveis,
o acesso ao poder seja precedido de luta e seleção; de modo que quando o grupo
está ainda organizado de maneira inadequada será preciso que a personalidade
dirigente seja mais “adequada”. No entanto, onde a forma de conservação do grupo
esteja firme e consagrada, o fator pessoal pode ceder ao elemento formal. Assim, a
preferência poderá ser concedida ao tipo de poder que melhor traduza a continuidade
e a eternidade radical da vida do grupo formado. Ora, a monarquia hereditária é desse
tipo, pois que manifesta o princípio de que o rei não morre da maneira mais adequada
e concreta.

Digressão sobre os cargos hereditários

Um dos grandes problemas práticos da natureza de toda organização social é


que a estrutura e os interesses de uma sociedade revelam a existência de cargos
diretivos com exigências bem determinadas e funções definidas objetivamente – e
que para preencher essas posições de chefia dispomos de indivíduos com uma
variedade infinita de capacidades aleatoriamente distribuídas, cuja possibilidade de
revelarem-se competentes ou não é imprevisível. A circunstância de a sociedade ser
a forma de vida da humanidade introduziu no fundamento dessa coletividade uma
profunda contradição entre as pretensões objetivas, as posições e normas
supraindividuais que desenvolve logicamente a situação factual, e a subjetividade
das pessoas que devem satisfazê-las e que, pela natureza instável e irracional da
vida não são nunca inteiramente adequadas aos esquemas fixos e previamente
determinados. Não se trata somente de que o conteúdo da subjetividade das pessoas
Georg Simmel | 557

(por exemplo, os dotes políticos e profissionais dos indivíduos) por uma feliz
coincidência seja adequado ao conteúdo das pretensões objetivas (verbi gratia, os
requisitos necessários ao exercício de determinada função), mas sim de algo muito
mais importante: ambos os aspectos são estranhos entre si, no que diz respeito a
sua forma e significação interior. Por muito que nos custe admiti-lo, as flutuações da
existência individual, os processos da vida pessoal, se insurgem contra a objetividade
e estabilidade das exigências que provêm da forma social. Uma enorme parte da
história de nossa espécie se reduz às consequências dessa contradição e às
tentativas de remediá-la.
Ora, há uma determinação da vida pessoal que se aproxima desse caráter
supraindividual e estereotipado próprio das formas sociais: as realidades da
descendência e da hereditariedade. E isso, no duplo sentido da semelhança
qualitativa entre descendente e ascendente (parecença que se acentua pela
educação e a tradição), e da comunidade real de interesses (o sentimento de um
vínculo objetivo e subjetivo e a unidade familiar) que situa em uma linhagem aos
ascendentes e descendentes, fazendo deles graus de uma mesma escala – ainda que
sejam qualitativamente diferentes. De ambos os lados, a paternidade e a filiação
prevalecem sobre as hesitações e contingências da vida pessoal. As semelhanças
herdadas e adquiridas deixam adivinhar uma característica passada de pai para filho,
que é estável por si só e apresentaria muito poucas alterações entre esses diferentes
sujeitos. Por sua vez, a solidariedade funcional da família é a imagem da forma do
grupo ampliado que confere firmeza e solidez ao indivíduo isolado e vacilante – na
medida em que esse sujeito carrega em si tal coesão supraindividual e é fortalecido
por ela. Quando uma função social é transmitida de pai para filho, ou se mantém na
mesma família, esse fenômeno típico se revela em sua finalidade última e instintiva
como uma tentativa de reduzir a discrepância fundamental entre a forma social
objetiva (com suas exigências correlatas) e a subjetividade do indivíduo encarregado
de preenchê-la.
A herança da função soberana do chefe político talvez seja o melhor exemplo.
A direção de um grupo é obtida, na origem, pela usurpação de uma personalidade
eminente ou violenta, ou pela eleição daquele mais adequado. Esse modo de
designação subjetivo é depois substituído pelo método da sucessão dinástica,
558 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

aparentemente mais irracional, que pode colocar no trono crianças, pessoas com
deficiências mentais ou indivíduos desesperadamente carentes de aptidões para o
cargo. No entanto, a luta ou a eleição para um indivíduo assumir a coroa, com base
nas suas qualidades pessoais, comportam perigos e choques, introduzem as
contingências e irracionalidades do ser humano, ao ponto de essas desvantagens
(pelo menos em circunstâncias estáveis) superarem em muito os riscos inerentes à
dinastia hereditária. O caráter supraindividual do grupo, sua solidez fundamental em
comparação com as oscilações de um mero processo vital, refletem na identidade
supraindividual de seus dirigentes, sucessores dos antigos titulares (à imagem do
filho que herda o pai) independentemente das suas qualidades individuais. Essa
estabilidade objetiva é tão essencial que ultrapassa outras formas graças às quais
se tentou frequentemente harmonizar as vantagens da herança e da escolha pessoal
– fazendo que o soberano fosse eleito entre os membros da casa real. Tal foi o
costume dos antigos germanos, e o dos califas omíadas de Córdova19, que escolhiam
seu sucessor entre seus numerosos descendentes. Heródoto diz que o magistrado
supremo dos caônios 20 do Epiro provinha sempre da mesma família; enquanto os
arcontes21 atenienses foram, durante muito tempo, eleitos dentro da casa real. Até a
extinção da estirpe dos jagelões22 (1572) os poloneses elegeram também seu rei sem
ter em conta regras sucessórias pessoais dentro dessa família reinante. As razões
desse método aparecem muito claramente nos dados que possuímos de certas
bandas de aborígenes australianos. O líder era ali escolhido dentre os filhos do chefe
morto, e a opinião geral concordava em que o segundo filho era, com frequência,

19
O Califado de Córdova foi a forma de governo islâmico que dominou a maior parte da Península
Ibérica e do Norte da África, com capital em Córdova, desde 929. Todos os califas de Córdova foram
membros da dinastia omíada. O Califado de Córdova corresponde de fato à época de máximo
esplendor político, cultural e comercial de Al-andalus, e perdurou oficialmente até 1031, ano em que
foi abolido, após um período de revoltas, fragmentando-se em múltiplos reinos conhecidos como
taifas.(NT)
20
Os caônios foram uma antiga tribo grega que habitou o Epiro, região localizada no Noroeste da
moderna Grécia e sul da Albânia. Pelo século V a.C., conquistaram e miscigenaram-se com os vizinhos
tesprócios e molossos. Os caônios fizeram parte da Liga Epirota até 170 a C. quando seu território foi
anexado pela República Romana. (NT)
21
Magistrados da antiga Grécia, originalmente com poder de legislar e dignidade vitalícia próxima à
realeza, mas posteriormente reduzidos a um cargo apenas honorífico. (NT)
22
Os jaguelões foram uma dinastia real originada na Lituânia que reinou em alguns países da Europa
Central, notadamente na Polônia, entre os séculos XIV e XVIII. O nome provém de Jogaila ou Jagiello,
depois chamado Ladislau II, o primeiro rei polonês daquela dinastia. A família era um ramo da dinastia
lituana Gediminaičių. (NT)
Georg Simmel | 559

melhor do que o primogênito. No entanto, no caso de ser escolhido o segundo ou


outro filho mais jovem, o maior podia desafiá-lo para um duelo, e conquistar a chefia
se ganhasse – a vitória provaria que era o mais corajoso. Também se baseiam em
um motivo análogo os casos em que a dignidade de príncipe é suprimida e
disseminada logo em uma série de diversos cargos – monopolizados pela antiga
família real. É o que aconteceu amiúde na Grécia dos séculos VII e VIII a C., quando,
após a queda da monarquia, a nobre família dória dos Baquíadas governou Corinto;
a dos Penteleidas, Mitilene; a dos Basileidas, Éfeso, e assim por diante.
Como a qualidade hereditária das funções encontra o seu significado na
reunião de duas motivações – a função da personalidade, de cuja energia individual
depende a eficácia da prestação e, ao mesmo tempo, a eliminação do excedente de
individualidade, quer dizer, a sua integração a um nível supraindividual – daí resultam
as combinações positivas e negativas mais variadas. Muitos príncipes favoreceram
diretamente o caráter hereditário dos cargos: assim Frederico II Hohenstaufen 23
reservou os mais elevados cargos judiciais a duas famílias tradicionalmente
vocacionadas para os estudos jurídicos; assim também Luis XIV só escolheu durante
algum tempo os seus mais altos conselheiros dentro de duas famílias, os Le Tellier e
os Colbert. Neste último caso, o motivo era o desejo do rei de somente compartilhar
os segredos do Estado com duas famílias. No entanto, isso deixava subentendido
que, graças a essa limitação familiar da função, cada um dos membros dessas
famílias era aos olhos do monarca o indivíduo mais indicado para desempenhar o
cargo – além de sua responsabilidade exclusivamente pessoal, o escolhido
respondia como membro da própria família. E essa coesão dos homens de confiança
do rei excluía toda terceira pessoa oferecendo proteção interna adicional contra as
deficiências e tentações individuais. Essa razão levou o duque de Sully 24 a autorizar

23
Frederico II (1194 – 1250) foi imperador Romano-Germânico e rei da Itália de 1220 até sua morte,
além de rei da Sicília a partir de 1198, rei da Germânia desde 1212 e rei de Jerusalém entre 1225 e
1228. Era filho do imperador Henrique IV, da dinastia Hohenstaufen e de Constança, herdeira dos reis
normandos da Sicília. Foi um homem de extraordinária cultura, energia e habilidade, chamado por um
cronista contemporâneo stupor mundi (a maravilha do mundo), por Nietzsche “o primeiro europeu” e
por muitos historiadores o primeiro governante moderno: Frederico II estabeleceu na Sicília e no Sul
da Itália algo muito parecido com um reino moderno, tendo um governo centralizado e uma burocracia
eficiente. (NT)
24
Maximiliano de Béthune, duque de Sully (1560 – 1641). Barão de Rosny, de Henrichemont e de
Boisbelle, marquês de Nogent-le-Rotrou, conde de Muret e de Villebon, visconde de Meaux, marechal
da França, mais conhecido como duque de Sully foi um soldado corajoso, ministro francês, um dos
560 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a venda de cargos hereditários de juiz porque, depois de incorporados ao conjunto


de bens e direitos economicamente apreciáveis de uma família, esses cargos
escapavam às influências da corte e do partido dominante. No momento em que o
indivíduo tem a convicção de herdar a posição de seu pai e de mantê-la para seu
filho, é mais independente que qualquer outra pessoa escolhida para exercer a função
em questão – e, por acréscimo, assume uma responsabilidade maior que se o cargo
fosse a consequência de um ato gratuito. Esta última razão é da maior importância
em algumas funções eletivas que continuam tradicionalmente nas mãos de algumas
famílias, como nos primórdios da história inglesa, época durante a qual se
constataram consequências muito benéficas: nem o homem que teme uma
concorrência (que pode ser invencível), nem aquele que esteja convicto de que seu
simples nascimento lhe garante um bom nome e posição social (sem qualquer mérito
próprio), utilizarão todas as suas forças com tanta disposição e resolução como
aquele que sabe que se a incompetência pode impedi-lo de ser eleito ou reeleito, a
idoneidade poderá levá-lo, a alguma posição proeminente. Também esse fato
histórico, de pouca importância aparente, atesta a existência de uma das mais
profundas normas da vida, que se manifesta em variadas formas sociológicas. Nossa
vida é feita de tal maneira que a cada momento nos encontramos em um estado
intermediário entre a certeza e a incerteza do sucesso de nossas ações. A certeza
absoluta de sucesso deixaria a existência subjetiva e objetiva tão incalculável quanto
a incerteza absoluta. Na escala dessas nuances cada um de nossos atos prescinde
de algum grau de convicção intelectual acerca de seu sucesso. A variedade infinita
de situações, de decisões e de provas de força pode surgir de várias de nossas ações
de conteúdo idêntico, de acordo com a proporção em que certeza e incerteza se
combinem nas suposições de resultado. O exemplo que acaba de ser citado parece
demonstrar que, quando a aquisição de prerrogativas e de poder não está
determinada pela mera qualidade hereditária do cargo, independentemente da
individualidade do funcionário, é possível conseguir o máximo de zelo e de motivação
de sua parte, se combinamos a proporção adequada de certeza objetiva e idoneidade
subjetiva.

líderes da facção religiosa dos huguenotes e braço direito do rei Henrique IV, da dinastia Bourbon, no
governo da França. (NT)
Georg Simmel | 561

Em compensação, quando o que podemos chamar de “vocação hereditária”25


atinge o nível máximo de certeza, quer dizer, quando o aspirante a ocupar um cargo
vago está seguro de suceder o antigo titular, independentemente de suas próprias
qualidades subjetivas, o cargo em geral perde a sua importância. Os grandes títulos
ou denominações honoríficas de Castela, como por exemplo os de almirante 26 ou
condestável 27 , tiveram originariamente a maior importância, mas no reinado de
Henrique III, o Enfermiço, se fizeram hereditários dentro de certas famílias nobres e,
logo depois, foram reduzidos a simples honrarias. O mesmo aconteceu com as
dignidades cortesãs dos reis normandos da Inglaterra. Assim que essas funções
ficaram hereditárias, as obrigações concretas associadas a elas passaram a uma
nova categoria de funcionários. E somente aqueles cargos que escaparam à
condição hereditária seguiram conservando sua importância para a constituição do
reino. Não se pode deixar de mencionar que, quando o direito a suceder é absoluto,
só se pode herdar o aspecto exterior do cargo, o título, a dignidade, a simples
“possibilidade” da função, que se torna inevitavelmente um invólucro vazio se não
encarna em alguma individualidade escolhida que lhe transfunda “sangue novo”.
Temos visto que o sentido sociológico profundo do caráter hereditário dos cargos
consiste em combinar a objetividade da forma (estrutura) social com a subjetividade
da prestação pessoal. No entanto, nos casos de que falamos acima, esse último fator
é reduzido a um papel mínimo, ao ponto de tirar todo o sentido dessa forma singular

25
Vocação hereditária é a convocação de pessoa com direito a suceder para que receba a herança
deixada pelo antigo titular. (NT)
26
O título de almirante de Castela foi criado pelo rei Fernando III, o Santo, em 1204 com ocasião da
reconquista de Sevilha. Essa denominação honorífica foi logo revestida de grande autoridade, poder e
preeminências. Entre as múltiplas atribuições e faculdades do almirante, figurava a de ter voz e “voto
de qualidade” no Conselho de Castela. Desde 1405 até 1705, o título se converteu em patrimônio dos
Henríquez, descendentes do infante Fadrique Afonso de Castela, filho natural do rei Afonso XI, o
Justiceiro, No século XV, durante o reinado dos três últimos reis da dinastia Trastâmara, a instituição
do almirantado se transformou, as funções de serviço à Coroa perderam importância e o cargo serviu
apenas ao empenho arrecadador da família Henríquez. O almirante de Castela deixou de participar
pessoalmente nas guerras navais, enquanto a marinha de guerra castelhana substituía as galeras
reais por veleiros privados contratados para cada campanha. Em 1728, após vários anos sem fazer
uma nova designação para essa denominação honorífica, Felipe V decidiu não a prover. (NT)
27
Condestável de Castela foi um título criado pelo rei João I em 1382 para substituir ao de alferes-mor
do reino. Nele recaía o mando supremo do exército e desde suas origens teve caráter vitalício, mas
não hereditário. Esse tipo de transmissão seria levada a cabo até 1473, quando Henrique IV, o
Impotente, nomeou condestável a Pedro Fernández de Velasco, a partir de quem o título seria
hereditário e meramente honorífico. Deixou de existir em 1713, por motivo do desenlace da Guerra de
sucessão espanhola. (NT)
562 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

histórica baseada na colaboração de ambos os fatores. Esses e outros perigos fáceis


de apreciar no caráter hereditário dos cargos conferiram importância particular às
dignidades eclesiásticas nas quais o celibato exclui a herança. Durante o Medievo
alemão, os mais elevados cargos imperiais viraram o apanágio hereditário de certas
famílias. Por isso, o imperador se serviu do episcopado para que personalidades que
se destacavam a seus olhos apenas pelas suas qualidades individuais prestassem-
lhe serviço. Na época dos normandos, na Inglaterra e também na França, os cargos
políticos mais importantes foram confiados aos clérigos, os únicos que no
inspiravam o temor de monopolizar o poder através de sua descendência. Devido à
forte tendência à herança dos cargos que havia na Idade Média, era vantagem para a
Coroa que não houvesse filhos do titular de uma sede episcopal reivindicando a sua
dignidade – aliás, Guilherme, o Ruivo 28 , aproveitou essa circunstância para deixar
dioceses vagar por largo tempo e receber os rendimentos dos titulares.
A solução que a condição hereditária dos cargos oferece ao conflito entre o
ser individual e o ser supraindividual é a resposta própria de uma situação social
relativamente primitiva e pouco diferenciada. É verdade que o funcionário que se
sente comprometido pela honra e pelo interesse de sua família (para além de sua
obrigação pessoal) e que foi formado de antemão na tradição de seus antepassados,
é muitas vezes o mais competente e o que consegue inspirar mais confiança ao
Estado. Todavia, isso pressupõe, evidentemente, que tal Estado deve dar mais
importância às qualidades gerais de seus agentes (àquelas que podem ser
transmitidas pela herança ou pela educação), do que às do talento puramente
pessoal – ou as que resultam da capacidade de dar conta de uma tarefa
especializada. Trata-se aqui da cultura de uma função pública ainda pouco
diferenciada que não sabe como encorajar e tirar proveito da especificidade dos
funcionários e, em vez disso, prefere aplainar os traços relevantes da individualidade

28
Guilherme II, também conhecido como Guilherme, o Ruivo (circa 1056 – 1100), foi rei da Inglaterra
de 1087 até sua morte, com influência e poder até a Escócia e a Normandia. Era o filho de Guilherme I,
o Conquistador, e de Matilde de Flandres. Seu reinado foi difícil. Impopular junto do povo, Guilherme
teve que resolver conflitos com a Igreja e enfrentar as revoltas dos condes da Nortúmbria e de Eu,
assim como os ataques do rei da Escócia. Os historiadores do século XII deixaram uma imagem
bastante negativa do rei normando, lembrando sobretudo a sua moral duvidosa, os seus maus
costumes e a sua morte dramática, com apenas 40 anos de idade, atingido por uma seta enquanto
caçava. (NT)
Georg Simmel | 563

dos agentes. Em sentido inverso, do ponto de vista da personalidade dos


funcionários, esses conhecimentos e aptidões especiais, que o serviço da
coletividade reclamava com urgência, não podiam ser adquiridos de modo puramente
individual, devendo ser conseguidos exclusivamente (ou, pelo menos, de forma mais
segura) pela tradição familiar. Foi preciso que a coletividade e a individualidade se
encontrassem em um estado bastante pouco estruturado e diferenciado para que os
cargos hereditários tivessem utilidade social e compensassem seus perigos.
Essas condições e consequências sociológicas transcendem o estrito quadro
da função pública. Até as profissões lucrativas eram hereditárias em muitas
sociedades arcaicas. O trabalho não só passava costumeiramente de pais para
filhos, mas também por causa das exigências do poder público – que proibia que o
filho exercesse outra profissão, impedia a concorrência ou concedia privilégios a
todos aqueles que continuassem no ofício familiar. A profissão assumia, nesse caso,
o caráter de um verdadeiro cargo. O livre jogo das energias pessoais não estava ainda
suficientemente desenvolvido para procurar à coletividade todas as prestações que
ela precisa – serão necessárias ordem e certa planificação prévia. Enquanto o
indivíduo não acha na mera estrutura da sociedade a possibilidade de aprimorar e
valer-se do seu trabalho, só pode confiar nas tradições hereditárias e no conjunto
das forças da família. Todavia, o aperfeiçoamento e o desenvolvimento dos negócios
e interesses do Estado (da coisa pública), por um lado, e a maior autonomia do
indivíduo, por outro, levarão a ultrapassar o caráter hereditário da profissão, mesmo
nos casos em que o ofício conservou por algum tempo o caráter de cargo. Na época
florescente das corporações, quando da decadência do feudalismo e do início do
grande desenvolvimento das cidades, a pertença a uma corporação passou a ser
vista como uma função pública e deixou de ser hereditária. Essa foi justamente a
época em que se afrouxou aos poucos o laço feudal que ligava as funções públicas
às propriedades fundiárias – causa evidente de seu caráter hereditário – e a
configuração mais forte e mais abstrata da unidade política deu aos cargos um feitio
cada vez mais marcante de direito público. A propriedade determinou ora a essência
pessoal das profissões e excluiu toda herança, enquanto toda a evolução sociológica
pareceu seguir este caminho: quanto mais puro e universal é o espírito ou cerne de
um grupo, mais crescem o poder ou a extensão do conjunto, e mais se individualizam
564 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

as personalidades que integram esse conjunto. A expansão do grupo social está


sempre associada ao desenvolvimento da individualidade. Tal ampliação (e a
importância correlata dos conceitos abstratos de Estado e sociedade, independentes
dos conglomerados relativamente pequenos de ordem familiar ou local) favorece a
nomeação para os cargos públicos de um número crescente de pessoas
individualmente destacadas. Essa estrutura social superior deixa a educação e a
adaptação à vida em grupo do futuro funcionário ao cuidado da família, mas põe em
compensação a disposição do agente, para sua “verdadeira formação” (a aquisição
do conjunto de conhecimentos e habilidades específicos a sua atividade prática), os
meios da função pública – que se tornaram objetivos. A sociedade passa a ter, assim,
o direito de realizar uma seleção absolutamente individual, sem preconceitos, de
modo a que a herança familiar não garanta o direito de deter um cargo. Contudo, esse
processo ainda não está completo. Mesmo que hoje em dia já não sejam
determinadas famílias as fornecedoras de diversas categorias de funcionários
públicos, certos grupos sociologicamente afins (classe, estamento, “círculo”) ainda
desempenham esse papel. Para ver a grande importância social dessa evolução,
deve-se ter em conta que isso vigora para os funcionários propriamente ditos e
também para inúmeros “postos” exigidos pela utilidade social que, aparentemente,
são preenchidos por contrato e por contingências pessoais, mas que, na realidade,
se atribuem aos candidatos indigitados por determinado círculo. A sociedade ainda
não adquiriu o poder de designar seus funcionários de maneira puramente impessoal,
e depende em tão alto grau da avaliação dos antecedentes familiares e da opinião
mais ou menos favorável de que possa desfrutar em seu seio o postulante, que deixa
subsistir ainda certa margem implícita de herança nesses “postos”. A razão
fundamental continua a ser a proporcionalidade entre a determinação e a
contribuição objetiva da coletividade social e a especificidade subjetiva do indivíduo,
que criaram uma grande diferenciação. O peso da dimensão social na escolha do
funcionário, e o da seleção e eleição individual do oficio têm aumentado, mas
nenhuma das duas coisas tem alcançado o grau intermediário e máximo que as
tornaria supérfluas e faria desaparecer o efeito ambíguo da herança nas funções.
Há algumas esferas da evolução social em que a contradição é mais evidente
porque, estando já maduras para adotar o princípio de seleção por critérios objetivos,
Georg Simmel | 565

ainda mantiveram por inércia o princípio hereditário. A corporação de negociantes ou


artesãos, por exemplo, perdeu essa estrutura bastante livre da qual falávamos antes
e, na medida em que sua forma não se adequava as exigências econômicas, se
tornou um patrimônio hereditário de seus membros – de modo que em seu pior
momento, quando era mais rígida e inadaptada as circunstâncias, só podiam fazer
parte dela os filhos, genros e maridos de viúvas de mestres. Aquele antigo caráter de
função pública foi perdido juntamente com a personalização do recrutamento – e
não ficou mais do que o egoísmo familiar que, com a herança, excluía toda seleção
individual. Certamente, em tempos mais próximos esse foi um dos maiores
problemas da nobreza, cuja essência e poder repousam em primeiro lugar no
princípio hereditário. Justamente por essa razão, os nobres se opuseram ao princípio
superior do Estado centralizador durante a maior parte da história. Em que medida
seus direitos e deveres, ligados à propriedade fundiária, e a sua prioridade hereditária
para se candidatar a certos cargos públicos estiveram justificados? Isso depende de
quanto a linhagem, a tradição e a educação tiverem sido (ou não) aptas a incutir nos
aristocratas as qualidades de que o Estado necessitava – enquanto este último
pagava sua incapacidade relativa para formar por si só os funcionários de que
precisava ao preço da renúncia referente à escolha individual, e devia conformar-se
com a garantia de que seus agentes se adequariam a certo tipo criado pela tradição
histórica e pela hereditariedade.
Dito isso, o preenchimento hereditário dos cargos, fato não muito frequente e
aparentemente isolado, aparece em um estágio determinado no desenvolvimento
dos elementos e das tendências individuais e coletivas da história. A vitalidade desse
processo jorra ininterruptamente graças à dupla atitude que o interesse social adota
perante a personalidade individual. Por um lado, é do interesse da sociedade que os
seus elementos sejam individualmente diferenciados, que possuam certas
qualificações que os diferenciem dos demais, mas por outro lado, a coletividade
também procura que seus elementos sejam análogos a outros, que não se distingam
demasiadamente e se integrem em uma série qualitativa contínua. O fato de que o
indivíduo se pareça a seus pais, e que as tradições familiares acentuem tal
semelhança, atende a essa dupla exigência: graças a essa circunstância, por um lado,
se pode antecipar que o filho (por suas qualidades para mover-se em determinada
566 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

esfera) exercerá certas atividades e terá certo tipo de vida; todavia, por outro lado,
essa qualificação pessoal está relacionada a certo nível de integração social. A
herança de uma função social, de um cargo, expressa de maneira objetiva tal atitude
subjetiva. Para ser socialmente adequada, a transmissão pressupõe tanto uma
particularidade pessoal como uma limitação dessa mesma qualidade peculiar a um
nível geral fixado pela tradição. Desse modo, a passagem (de traços físicos,
psíquicos, etc.) à descendência suscita e pereniza determinada relação de
proximidade entre o fator individual e o fator social. É essa dinâmica que prepara sua
superação para uma forma mais elevada. Nesse caso, ambas as partes adquirem um
direito melhor e mais extenso: o indivíduo porque pode fundar sua atividade numa
escolha pessoal e em qualidades independentes da série de gerações que lhe
precederam, e a sociedade porque passa a ter a liberdade completa de escolher seus
funcionários, como compensação ao direito concedido ao indivíduo. À igualdade da
obrigação das duas partes na forma sociológica estudada, corresponde a igualdade
de direitos que aparece quando ela é ultrapassada29.
A objetivação da coesão do grupo pode também eliminar a forma pessoal a
ponto de vincular-se a um símbolo material, que aparece então como causa ou efeito
dessa associação íntima entre os membros do conjunto. Enquanto a Liga
anfictiônica30 surgiu para o cuidado comum do templo de Delfos, o Paniônion, templo
da Liga jônica31, foi erigido como símbolo da confederação já existente. Na mesma

29
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou aos “cargos hereditários”.
Doravante Simmel retoma sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente dos
“símbolos materiais e imateriais da coesão do grupo” e da ”formação de órgãos e a autopreservação
social”. (NT)
30
A Liga anfictiônica (do grego anfictionia que etimologicamente significa “fundação conjunta”) era
uma liga religiosa que agrupava 12 povos (não cidades), quase todos da Grécia central, nos tempos
do período arcaico, antes do surgimento da polis. Ao longo da história houve várias ligas desse tipo,
sendo a mais importante a de Delfos, junto do templo de Apolo. A Liga lutou em três Guerras sagradas
desencadeadas por ela para dominar o templo em questão. Durante a terceira e a quarta destas
guerras (355 a.C. – 346 a.C. e 339 a.C. – 338 a.C.), o rei Filipe II da Macedônia usou a sua posição na
Liga para dominar os assuntos da Grécia. (NT)
31
A Liga jônica foi uma confederação formada por 12 cidades da antiga Jônia (região da costa
sudoeste da Anatólia, hoje na Turquia), em meados do século VII a.C., depois da Guerra meliara (acerto
de contas final entre o antigo estado da Cária e os jônicos que haviam colonizado as terras na foz do
rio Meandro, e que saíram finalmente gananciosos). Diante da ameaça persa crescente, os cários
decidiram unir-se à coalizão jônica que os tinha derrotado, na forma de uma Liga jônica, construindo
um novo centro religioso e político em Mélia (último baluarte cário na guerra e sede de um antigo culto
a Posídon Helicorno). Os jônicos, após se misturaram aos cários, decidiram continuar a cultuar
Posídon, e um novo templo conhecido como Paniônion, foi erguido em homenagem ao deus e como
Georg Simmel | 567

ordem de ideias, no Medievo germânico as Insígnias imperiais (Reichskleinodien)32


apareceram como a materialização da ideia do Império romano-germânico e de sua
continuidade, de modo que sua posse garantia a um pretendente à coroa enorme
vantagem sobre os seus concorrentes – constituindo uma das razões sobre a qual
os herdeiros naturais assentavam sua pretensão. Foi assim de grande utilidade para
Henrique I da Germânia 33 ter recebido de Conrado I 34 as Insígnias imperiais; da
mesma forma que, depois da morte de Henrique II, Cunegunda de Luxemburgo 35
confortou a posição do sucessor de seu esposo, fazendo-o depositário daquelas
mesmas joias. Na Idade Média, quando o serviço militar incomodou os burgueses
das grandes cidades e eles o transferiram aos oficiais das corporações, em troca de
pagamento, esses operários preservaram a organização que lhes tinha sido dada
para fazer a guerra, conservando em tempos de paz a bandeira – uma vez que esta
peça de pano bastava para conferir à comunidade o caráter de corporação. Exemplo
disso é que em 1432 os oficiais moleiros e padeiros da cidade de Landau 36

símbolo da confederação, por volta de 540 a.C. Suas ruínas e a localização de Mélia foram descobertas
em 2004. (NT)
32
A Coroa Imperial era a mais importante das Insígnias imperiais, que incluíam também a Cruz
imperial, a Espada imperial e a Lança dita “do destino”, considerada uma relíquia da Crucificação de
Jesus Cristo. Durante a entronização a Coroa era dada ao novo monarca, juntamente com o Cetro e o
Orbe imperial, que só poderiam ser utilizados na cerimônia. (NT)
33
Henrique I da Germânia, o Passarinheiro (876 – 936), foi duque de Saxônia a partir de 912 e rei dos
germanos de 919 até a sua morte, em 936. Primeiro da dinastia otoniana de reis e imperadores
germanos, é considerado o fundador e primeiro rei do império alemão medieval, até então conhecido
como “França Oriental”. Recebeu o epíteto de "passarinheiro" porque teria recebido a notícia da sua
ascensão ao trono no momento em que consertava as suas redes de apanhar pássaros. Sucedeu-lhe
no trono seu filho Otão I do Sacro Império Romano-Germânico. (NT)
34
Conrado, o Jovem (881 – 918), foi rei da França Oriental de 911 a 918. Ele foi o primeiro rei a ser
eleito pela nobreza (após a morte do jovem rei Luis, a Criança) e a ser ungido pelo papa. O duque
Henrique da Saxônia esteve em conflito com ele até 915 e sua luta contra Arnulfo, duque de Baviera,
custou-lhe a vida. De acordo com cronistas da época, Conrado em seu leito de morte persuadiu seu
irmão mais novo, Eberardo da Francônia a oferecer a coroa real a Henrique da Saxônia, um dos seus
principais oponentes, já que ele considerava que “o Passarinheiro” era o único duque capaz de manter
o reino unido diante das rivalidades internas e as contínuas incursões magiares. O conselho não foi
seguido até 919 quando Eberardo e os outros nobres francos aceitaram que Henrique fosse eleito rei.
(NT)
35
Cunegunda de Luxemburgo (975 – 1033) foi esposa do imperador Henrique II, o Santo, e também
santa católica. Era uma descendente de sétima geração de Carlos Magno, filha de Siegfried do
Luxemburgo e Edviges de Nordgau. Em 1014, Cunegunda tornou-se imperatriz, recebendo em Roma,
juntamente com Henrique, a coroa imperial das mãos do papa Bento VIII. Após a morte de Henrique
em 1024, ela se tornou regente, juntamente com o seu irmão e entregou a Insígnia imperial a Conrado
II, o Sálico, que tinha sido eleito para suceder seu marido. É bom que se diga que Cunegunda era
perfeitamente consciente da importância destas joias, que muito tinham ajudado Henrique quando da
sua própria eleição, depois da morte de seu primo Otão II em 1002. (NT)
36
Cidade alemã no Sul do Palatinado, a uns 20 quilômetros da fronteira francesa. Foi um burgo livre
do Sacro Império, mas na época mencionada no texto pertencia ao principado episcopal de Spira. (NT)
568 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

começaram um violento levante desfraldando uma bandeira no topo de seu albergue.


Entre os antigos árabes, cada tribo levava em campanha uma bandeira, mas se várias
tribos se reuniam em uma única força de combate, elas não tinham mais do que um
estandarte que simbolizava a sua união – fazendo do porta-estandarte o
personagem principal da batalha.
Tendo em conta a fragilidade dos objetos materiais (cuja destruição não pode
ser reparada, como o desaparecimento de pessoas, pela continuidade hereditária) é
perigoso para um grupo recorrer a esse tipo de sustentáculo para a autopreservação.
Mais de um regimento debandou logo que a sua bandeira foi arrebatada, assim como
muitas associações desapareceram sem mais nem menos com a destruição de seus
paládios, de suas arcas da aliança ou de seu santo graal. A coroa húngara conservou
por muito tempo esse significado simbólico, de tal forma que quando (na época de
José II 37 ) essa insígnia de soberania foi trasladada de Presburgo 38 para Viena, se
registraram grandes distúrbios – que só cessaram após o regresso da coroa a seu
repositório tradicional. Na Idade Média, o selo simbolizava a unidade de um grupo e
dava-lhe a qualidade inerente a uma pessoa coletiva autônoma. Assim o faz crer os
desdobramentos processuais do inquérito que, em 1366, procurou identificar os
responsáveis por uma manifestação de insubmissão organizada contra o imperador
Carlos IV 39 na cidade de Frankfurt. Quando foram descobertas certas cartas das
corporações de conteúdo considerado sedicioso, os mestres dessas guildas juraram
em sua defesa que essa correspondência “havia sido carimbada nas suas costas”. O
juiz decidiu então que “as corporações deviam ser privadas de todos os seus selos”,
e que “não somente os carimbos seriam quebrados, mas também seria proibido para
sempre às corporações e outras associações a posse e uso de selos coletivos”. Em
qualquer caso, essa situação permite compreender que a destruição do símbolo de

37
José II (1741 – 1790) foi imperador romano-germânico e arquiduque de Áustria de 1765 até a sua
morte, além de rei da Hungria, Croácia e Boêmia a partir de 1780.. Era o filho mais velho da imperatriz
Maria Tereza e seu marido, o imperador Francisco I. (NT)
38
Presburgo, (hoje Bratislava, capital da Eslováquia), foi capital da Hungria desde 1536, quando
passou a ser parte da monarquia dos Habsburgo. A cidade foi desde então a sede da coroação dos
reis e do arcebispado (1543), principal assento da nobreza e das mais importantes organizações e
edifícios governamentais. Entre 1536 e 1830, 11 reis e rainhas húngaros foram coroados na Catedral
de São Martinho de Presburgo. (NT)
39
Carlos IV (1316 – 1378), nascido como Venceslau, foi imperador romano-germânico, rei da Itália de
1355 até sua morte, além de rei da Boêmia e da Germânia a partir de 1346, e conde de Luxemburgo
entre 1346 e 1353. Era filho dos reis João e Isabel da Boêmia. (NT)
Georg Simmel | 569

uma comunidade é uma maneira muito eficaz de feri-la de morte e acabar com a sua
unidade. Nessa linha de pensamento, quando a comuna de Corbie 40 foi extinta em
1308 por causa das suas dívidas, passando seus direitos à Coroa, removeu-se o
badalo do sino maior do campanário para significar que o município tinha deixado de
existir. Já na Prússia, sob o reinado de Frederico Guilherme I 41, quando os oficiais
artesãos se opuseram às tendências mercantilistas e despóticas do governo, o chefe
da polícia escreveu ao rei: ”Essas pessoas se afiguram constituir um corpus ou status
in republica especial”. Por esse motivo, propunha que se mandasse “remover sem
cerimônia suas insígnias e outros ídolos para que não constituam um corpus
particular tal como imaginam ser até hoje”. Preocupação presente um século depois
em uma lei da reação inglesa, que em 1819 previra que a realização de uma reunião
“com bandeiras, estandartes ou outros emblemas ou insígnias” seria punida com
vários anos de prisão.
Todavia, quando a coesão social se perde dessa forma, é quase seguro que o
grupo já deveria estar em um processo desagregador com bastante antecedência e
que, nesse caso, a perda do símbolo material que representa a unidade do conjunto,
é o sinal da perda de coerência padecida por seus elementos. Porque quando não é
assim, a perda do símbolo do grupo não só não produz efeitos destruidores, mas
reforça diretamente a coesão. Ao perder a sua realidade corporal, o símbolo pode
exercer um efeito muito mais potente, profundo e indestrutível como simples
pensamento, saudade ou ideal. Esses dois efeitos opostos da ruína do símbolo
coletivo se manifestam nos resultados que ocasionou a destruição do Templo de
Jerusalém pelas legiões de Tito. O significado sociológico do Templo de Sião tinha
sido dar um simples elemento tangível à coesão puramente dinâmica dos judeus

40
Corbie é uma pequena cidade perto de Amiens que surgiu a partir da abadia que lhe deu nome, um
dos centros de iluminura da época merovíngia. No século XIII o comércio do bleu de guède (pigmento
azul tirado de uma erva crucífera) era muito ativo na Picardia e fez a prosperidade de Corbie. No
entanto, a partir da segunda metade desse século uma crise econômica interrompeu o comércio dos
tecidos de luxo. A comuna se empobreceu e, cheia de dívidas, teve que voltar-se ao rei. Ora, Filipe, o
Belo preferiu apoiar o abade de Corbie em vez da comuna – que sofreu assim o rigor da dominação
abacial e perdeu os símbolos de poder comunal (os badalos dos sinos, a torre municipal ou beffroi,
etc.). (NT)
41
Frederico Guilherme I (1688 – 1740), também chamado de "o Rei Soldado", foi rei da Prússia e eleitor
de Brandemburgo de 1713 até sua morte. Famoso por sua avareza, seu desprezo pelas coisas do
espírito, sua brutalidade e sua vontade de assumir o controle de tudo em cada detalhe. Confirmou, no
entanto, a influência crescente da Prússia no concerto das potências europeias e acrescentou a
importância do exército na sociedade. (NT)
570 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– súditos dos partos ou dos romanos e falantes de aramaico ou grego. O que ele
representava em si, desse ponto de vista, era perfeitamente indiferente. O templo só
era importante porque tornava visível uma comunidade funcional e evocava a
possibilidade do retorno do povo judeu, disperso e dividido, a um ponto focal de
concreta idealidade. Ora, sua destruição atingiu seu objetivo – acabar com o Estado
teocrático judeu, uma contradição e um perigo para a unidade política do Império
romano – aos olhos de numerosos hebreus para quem essa centralização não era
muito importante. Se por um lado favoreceu a separação entre a Igreja paulina e o
judaísmo, a ruína do templo contribuiu, por outro, a alargar consideravelmente o
fosso entre o judaísmo e o resto do mundo, além de fazer com que os judeus da
Palestina, respeitassem com a força do desespero sua coesão nacional e religiosa.
O fim do símbolo coletivo age de duas maneiras sobre a preservação do grupo: de
modo destrutivo, quando as ações recíprocas de coesão dos elementos estão muito
fracas, e de modo reconstrutivo quando essas ações são tão fortes que podem
substituir o símbolo tangível perdido por uma imagem espiritualizada e idealizada.
A importância do símbolo material para a preservação de uma sociedade será
muito maior se esse objeto, para além de seu valor simbólico, representa também
uma possessão real e se o seu efeito centralizador depende – ou aumenta – do fato
de concentrarem-se nele os interesses materiais de todos os membros do grupo.
Nesse caso, garantir a posse assume particular importância para a preservação de o
grupo, pois que representa abrigá-la de todo mal, dano o perigo, mais ou menos como
a imortalidade do rei quando o cerne do grupo é uma pessoa. O meio que se usa
habitualmente para alcançar tal objetivo é o dos bens de mão-morta: declara-se
inalienável o patrimônio das corporações que devem ser eternas.
Assim como o caráter perecível do indivíduo se reflete na fragilidade de seus
bens, a imortalidade da associação se expressa na imprescritibilidade e na
inalienabilidade de seus bens. Desse modo, o patrimônio das corporações,
especialmente das eclesiásticas, se assemelha ao covil do leão, onde tudo entra e
nada sai. Da mesma maneira que para o homem distinguido a imortalidade não é
apenas o desejo banal de seguir vivendo, nem o mero anseio de quantidade de vida,
mas deve simbolizar uma qualidade da alma, certa elevação de seu valor além das
contingências terrenas que só pode exprimir-se assim – também a imortalidade do
Georg Simmel | 571

patrimônio era muito mais do que um simples instrumento da cobiça da Igreja se não
um símbolo da eternidade do princípio que possibilita sua coesão. A mão-morta
permitia que as associações se beneficiassem de um ponto de fixação indestrutível,
de um meio de valor inestimável para a preservação do grupo. Esse caráter se
fortalecia porque suas possessões consistiam essencialmente em propriedades
fundiárias. Diferentemente de toda propriedade mobiliária, em particular do dinheiro,
a propriedade fundiária se revela inamovível e indestrutível, o que a torna apta a servir
de conteúdo aos bens de mão-morta – enquanto sua fixidez local permite que os
coparticipantes achem nela o ponto firme em relação ao qual podem orientar-se e
reunir-se (diretamente ou em seus interesses) sem medo de errar. Para além da
vantagem material e também por causa dela, trata-se de uma maneira genial de
consolidar e manter unido o grupo em sua forma.
No entanto, é precisamente essa circunstância que compromete amiúde o
grupo em um conflito de características sociológicas, porque a coletividade, cuja
preservação favorece sempre, faz parte de uma sociedade política maior. Quase
todas as sociações humanas, independentemente de seu teor e de sua essência,
trabalham no sentido de que alguns de seus participantes se reúnem em unidades
sociais que desenvolvem internamente um instinto egoísta de autopreservação. A
forma e a tendência dessas unidades menores reproduzem em proporções reduzidas
a configuração e orientação do grupo global de que elas fazem parte – e justamente
por isso, entram em contradição com ele. O papel que lhes cabe como partes e
membros de um conjunto mais amplo não se coaduna com aquele que representam
como conjuntos considerados no todo. Mais adiante abordamos a natureza dessa
relação trágica que se repete no âmbito de toda sociedade de dimensão significativa,
Alertaremos por enquanto até que ponto ela imprime a sua marca no sistema da
mão-morta. Como já dissemos antes, é extremamente importante para a
manutenção de um grupo total unitário ter um território que forneça um fundamento
firme e Inabalável para a sua unidade e delimitação. No entanto, pode ser perigoso
que um dos componentes do todo reivindique para si parte desse território. O conflito
de interesses entre a parte e o todo se manifesta de dois modos: imediatamente, no
fato de que, na maioria dos casos, a mão-morta tem pedido e obtido derrogações
tributárias; e de modo mediato, no fato mais importante de que, no geral, a mão morta
572 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

é prejudicial para a economia da nação porque retira importantes posses do circuito


econômico. A moderna substituição da economia natural pela economia monetária
não conduz apenas à predominância de fenômenos que se opõem a que a vida se
baseie na propriedade fundiária, mas também à transferência para a propriedade
monetária de características e especificações que na verdade se tinha atribuído à
propriedade imobiliária em oposição, precisamente, aos recursos financeiros. Assim,
por exemplo, as congregações católicas francesas, por várias décadas, têm
convertido a maior parte de seus bens fixos em dinheiro por acreditarem que isso
lhes garante mais segurança: o dinheiro é mais fácil de ocultar que a terra, pode ser
confiado a homens de palha e escapar à tributação. Ao organizar desse modo seu
patrimônio, as congregações conservam as vantagens da antiga forma da mão-
morta – graças às garantias do direito moderno que substituem a solidez substancial
da propriedade fundiária, outrora a única segura – evitando simultaneamente todos
os inconvenientes relacionados com a rigidez e condição imóvel. No entanto, para o
Estado o perigo dessa acumulação de bens de mão-morta não tem diminuído – pois
que o valor desse patrimônio (estimado na França em oito bilhões de francos)
permite às congregações estarem em posição bem mais vantajosa face ao poder
público. A estabilidade sociológica decorrente do caráter inalienável e indestrutível
da propriedade age assim de forma ambivalente quando ela diz respeito à parte que
compõe um grupo maior. O que para o grupo parcial nutre a sua autopreservação
representa, desde o ponto de vista do grupo maior, a ancilose e a amputação de um
membro orgânico que entra em conflito direto com a autopreservação do grupo como
um todo.
O caráter pernicioso da mão-morta ficou logo evidente. A paz da cidade de
Frankfurt de 1318 dispunha que todas as ordens religiosas tinham que vender no
prazo de um ano os bens imóveis que lhes tivessem sido doados. Encontramos a
mesma ideia no corpo normativo para a gestão de uma cidade frísia, ao Norte da
Germânia, que já no século XV proíbe os sacerdotes de construir casas de pedra sem
autorização especial do conselho comunal. Contudo, foi na Inglaterra que tal
fenômeno ficou particularmente claro porque, desde a época saxônica, o clero estava
intimamente associado à vida municipal e tinha reconhecido a obrigação de
contribuir às cargas comunais que recaíam sobre seu patrimônio fundiário. Todavia,
Georg Simmel | 573

no final da monarquia anglo-saxônica, as proporções que a propriedade fundiária


eclesiástica assumira constituíam um entrave considerável para a administração do
reino, porque privavam à Coroa de recursos para pagar as suas tropas. Importa aqui
notar que esses inconvenientes da mão-morta para o conjunto do Estado também
têm sido atribuídos a entidades que faziam parte da Igreja de modo indireto e
reduzido. No ano 1391 foi promulgada uma lei inglesa que simplesmente proibia às
“associações eternas”, como guildas e irmandades, de adquirir imóveis. È na mesma
perspectiva que na época moderna se luta contra os fundos fiduciários da nobreza
que perseguem um fim semelhante: criar para a unidade e preservação da família um
órgão objetivo acima de qualquer mudança dos destinos individuais. Mais uma vez
o que se pretende é que o patrimônio Inalienável e indivisível não constitua apenas a
base econômica sobre a qual repouse a perenidade da família, em qualquer
circunstância, mas também o ponto fulcral da coesão familiar – teríamos que
garantir a preservação da família não apenas no que diz respeito a suas condições
materiais, mas também a sua forma sociológica. No entanto, nessa esfera (pelo
menos é isso o que muitos opinam) essa autopreservação centrípeta de um grupo
pequeno se opõe à preservação do conjunto político que o abrange – que também
pretende uma conservação absoluta, e por esse motivo só pode permitir aos seus
componentes uma preservação relativa, já que a preservação absoluta das partes
ameaça tornar instável e precária a conservação do conjunto.
A ideia de que o patrimônio do grupo deve livrar-se do arbítrio individual e
afirmar-se em uma estrutura independente, objetiva, imune às vicissitudes dos
indivíduos (essa ideia fundamental da mão-morta e dos fundos fiduciários, com seu
enorme significado para a preservação do grupo) começa a ser substituída por certas
associações modernas que visam ao mesmo objetivo de outras formas. Assim,
algumas associações retêm seus membros, impedindo-os de recuperarem suas
contribuições para a caixa social em caso de abandono injustificado42. Isso confirma

42
Eis uma das características e diferenciações sociológicas mais importantes na sociação: o grau em
que os diversos grupos facilitam ou dificultam o ingresso e a saída de seus membros. Desse ponto de
vista, poderia se estabelecer uma escala de sociações. Os grupos que procuram ter o maior número
possível de membros, porque tiram a sua força da sua mera extensão, não deixarão de facilitar o
ingresso e de evitar a saída. Pelo contrário, os grupos aristocráticos tornam a entrada, em geral, mais
difícil. No entanto, quando acreditam demais em si mesmos, facilitam amiúde a saída, porque não
querem reter quem já não quer assumir as obrigações da nobreza e se tornou assim indigno de
574 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

que o grupo (e seus interesses) se colocou para além da esfera de interesses de seus
membros individuais, e que o coletivo vive uma vida própria e toma conta dos valores
recebidos, separando-os totalmente de seu proprietário individual, a quem não vai
(nem pode) devolvê-los, assim como um corpo orgânico não pode devolver as
substâncias que ingere. Os antigos sindicatos ingleses, que só exigiam contribuições
muito baixas constataram que seus membros entravam e saíam da associação com
grande facilidade. O aumento das contribuições mudou tudo. Doravante, quando uma
seção sindical está descontente de algum procedimento adotado pela associação
profissional, pensa bem antes de se separar, pois perderia sua parte em um
patrimônio considerável acumulado ao longo do tempo. Esse modus procedendi43
não só favorece imediatamente a preservação continuada do grupo, como está a
avivar psicologicamente nos seus membros a ideia da existência supraindividual do
grupo, independente de todas as veleidades individuais.
Existe outro aspecto da autopreservação que merece a nossa atenção: a
irrevogabilidade como técnica que permite concretizar e tornar visível a unidade
fundamental do grupo. Trata-se do expediente de que se valem as comunidades que
consideram imodificável toda decisão legalmente adotada. A cautela empregada por
uma confraria religiosa grega que pretendia reexaminar uma disposição tomada há
muitos anos constitui, a nosso ver, um bom exemplo (a contrario sensu) disso:
“deveria ser autorizado, desta vez, introduzir uma voz discordante relativamente à

participar das suas prerrogativas. Na nobreza reencontramos aquela atitude formal do conjunto em
face do indivíduo, cujo ponto culminante se encontra, como indicamos anteriormente, na Igreja
católica. De fato, em todas as épocas, a Igreja católica teve a tendência de tratar mesmo as pessoas
perigosas, os heréticos e os cismáticos, o maior tempo possível, como se fossem evidentemente uma
parte de si, e a ignorar o que os separava dela, como se não tivessem dito nada. Porém, no momento
em que isso não era já possível não tinha problemas em expulsar o herético e o dissidente sem
contemplações, compromissos ou a menor fórmula de transição. Nessa prática se encerra uma parte
importante da força e da sabedoria da Igreja católica, que se manifesta em uma enorme generosidade
enquanto ainda é possível conservar o herege, e na radical expulsão dele quando já não está ao
alcance conservá-lo. Dessa forma uniu as vantagens de uma extensão máxima com as de uma
rigorosa delimitação. Pelo que tange à pertença, a relação do indivíduo ao grupo pode ser resumida
na fórmula: “para entrar somos livres, para sair somos escravos”, mas também na fórmula contrária,
uma vez que a entrada e a saída são mais uma vez igualmente fáceis e difíceis. Ademais, há que ter
em conta a variedade dos meios graças aos quais tais facilidade e dificuldade se instauram: são
econômicos ou morais, agem como lei objetiva, como vantagem egoísta dos membros ou como
influência espiritual sobre eles? Tudo isso exigiria um profundo estudo cujo material seria constituído
por todos os tipos de grupos existentes e/ou os problemas formais últimos de sua vida, que deveriam
cruzar-se segundo duas categorias essenciais: a da vida do grupo em sua existência supraindividual
e a relação do indivíduo com essa unidade social. (NS)
43
Expressão latina que significa: “maneira de proceder”, “procedimento”. (NT)
Georg Simmel | 575

prescrição em vigor”. Em tais casos, o que foi resolvido uma vez conforme as regras
da comunidade se torna “solidário” 44 da vida dela, como se fosse parte de seu ser,
que não pode ser então modificado. Sua intemporalidade (seu caráter eterno, se
preferimos) se manifesta na crença de que o momento anterior, quando a decisão foi
tomada, não se diferencia de qualquer dos momentos posteriores. Essa técnica
sociológica de preservação se repete em maior grau em certas associações que
dispõem, mesmo se em dissolução, que o patrimônio social não será repartido entre
os membros, mas investido em outra associação com finalidades similares. A
autopreservação não se refere à existência física do grupo, mas a sua ideia, que se
encarna igualmente bem no outro grupo que a herda, e cuja continuidade se presume
ficar mantida e demonstrada precisamente pela transposição do patrimônio de um
grupo ao outro. Em muitas das associações de trabalhadores franceses da década
de 1840, constatamos claramente essa tendência. Seus estatutos preveem que o
patrimônio da associação não pode ser distribuído em qualquer caso. A
consequência dessa ideia foi a frequente formação de sindicatos pelas associações
de mesma profissão, que contribuíam para constituir um patrimônio coletivo,
permitido pelas cotizações das associações que se fundiam em uma nova unidade
– da mesma forma que as contribuições individuais dos trabalhadores se
incorporavam aos fundos das diversas associações. Dessa maneira o pensamento
que presidiu a criação de tais associações foi sublimado. O sindicato vira a abstração
encarnada (espécie de substância autônoma) dos interesses dos trabalhadores, que
até então só tinham existido de fato como associações mais individuais e
dependentes de seus conteúdos particulares. A motivação social desses
agrupamentos atingiu assim um nível capaz de manter a motivação ao abrigo de
todas as vicissitudes individuais e materiais – se outras forças não tivessem agido
destrutivamente.
Vamos agora tratar de outro meio de autopreservação social cuja relação com
uma substância material se tem apagado, e que se assenta em fundamentos
puramente espirituais. (Ainda que, dentro da esfera ideal, há toda uma escala de
fundamentos e bases que essencialmente – quanto ao seu significado – não se

44
No sentido concreto, mecânico, que Carnot deu ao termo; que se aplica a peças ou órgãos
vinculados a um mesmo movimento. (NT)
576 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

diferenciam da base material, sobretudo se tivermos em conta que essa base


material só age sociologicamente graças a seu alcance espiritual). No início dessa
série estão os sentimentos que, muito embora se dirijam a um objeto social,
representam apenas estados de espírito objetivos: o patriotismo referido ao Estado
ou à cidade, a devoção à comunidade religiosa, o amor à família, entre outros. Por
maior que seja a influência de todos esses sentimentos para a preservação dos
grupos, essas atitudes mentais ou morais ficam estreitamente ligadas ao processo
vital do sujeito, distinguindo-se daqueles outros processos, orientados socialmente,
cujo conteúdo se consolida em (ou procede de) entidades estáveis – embora só
ideais – como os imperativos morais, a honra ou o direito. Ainda que a moralidade
seja autônoma, mesmo que esgote a força da liberdade e a responsabilidade própria
da alma, apesar de seus conteúdos provirem da incomparabilidade irredutível da
pessoa – essa qualidade representa para o indivíduo uma espécie de ser objetivo,
uma norma com a qual a realidade de sua vida mantém a mais ampla gama de
relações, do cumprimento à inobservância. Da mesma maneira, o direito (no que
significa interiormente para nós, para além dos seus órgãos concretos) apresenta-
se como uma objetividade do mundo do pensamento, uma norma que nos obriga de
um modo puramente ideal e, no entanto, supraindividual. Porque a coação do direito
(referimo-nos principalmente à esfera do direito penal) não vai obrigar a fazer ou a
omitir algo. O direito só pode forçar a tolerar a sanção aplicada como punição pelo
não fazer ou pelo não omitir, mas não tem o poder físico de impor tais volições. Entre
essas duas formas, pelas quais a autopreservação social nos incute seus preceitos,
há uma terceira, cujo significado análogo gostaríamos de estudar aqui como tipo, a
saber, a honra.
Se reduzirmos essas “ordens” (esses conjuntos de normas) da conduta
humana a sua expressão específica (sem prejuízo da superposição e da troca de
alguns conteúdos) vamos encontrar que o direito cumpre plenamente seus fins
objetivos com o auxílio de meios objetivos, que a moralidade consegue determinados
fins subjetivos por meios subjetivos, e que a honra atinge satisfatoriamente certos
fins objetivos valendo-se de meios subjetivos. Se, ademais, os ordenamos na série
seguinte – moralidade, honra, direito – veremos que cada termo é parcialmente
coberto pelo anterior e assim cobre o subsequente (como um conjunto de folhas, de
Georg Simmel | 577

escamas ou de quaisquer objetos dispostos sucessivamente de tal forma que se


sobreponham em partes uns aos outros, como as telhas de um telhado), mas não o
contrário. A moralidade perfeita ordena de si própria o que a honra e o direito
reclamam; a honra perfeita ordena o que o direito exige, mas o direito tem menor
extensão. Como o direito só preceitua aquilo que a autopreservação do grupo não
pode de modo algum renunciar, precisa dispor de um poder de coerção objetivo. A
moralidade se propõe regular a conduta total do indivíduo (interessando-nos aqui
apenas a parte que diz respeito ao círculo social), e tendo em conta a amplitude do
campo coberto, já não cabe tecnicamente nessa esfera o exercício de uma coerção
análoga à do direito – seu cumprimento deve ficar ao arbítrio da consciência. A honra
situa-se em uma posição intermédia: sua violação acarreta sanções que não
possuem nem o caráter puramente subjetivo dos escrúpulos morais, nem a força
física que garante a execução das penas estabelecidas pelo direito. Enquanto a
sociedade formula os imperativos da honra e assegura sua observância por meio das
consequências (subjetivas e sociais) que acarreta sua violação, ela cria uma forma
especial de garantia que abona a boa conduta de seus membros naquelas esferas
práticas em que o direito não pode agir e nas quais resulta insuficiente o penhor da
moralidade45. De fato, ao examinarmos o conteúdo das prescrições relativas à honra
podemos ver que todas elas aparecem como meios para a preservação de um círculo
social, para sua coesão, seu respeito ou estima, e para regularidade e eficácia de seus
processos vitais.
A esse lugar intermédio ocupado pela honra (entre direito e moralidade) no que
diz respeito ao cumprimento de suas normas, corresponde uma posição relativa
semelhante no que tange à extensão de sua esfera de ação. O direito se aplica a todo
o conteúdo do círculo, cujos interesses vitais formam uma unidade, ao passo que o
que o poder da moralidade começa e acaba no indivíduo, em harmonia com a
responsabilidade da consciência pessoal. Contrariamente, as ações e omissões que
a honra prescreve se manifestam como pretensões particulares de agrupamentos de
porte médio – entre o indivíduo e o grupo de grandes proporções. Toda honra é, na
sua gênese, a honra de uma categoria de pessoas, quer dizer, uma forma de vida

45
A posição formal que daí resulta tem sido tratada para o costume no Capítulo II. (NS)
578 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

apropriada aos círculos menores compreendidos dentro de outro círculo maior. Tais
círculos menores preservam sua coesão interna, sua unidade e sua demarcação
relativamente a outros círculos do grupo maior graças às exigências que formulam a
seus indivíduos e estão compreendidas no conceito de honra. O que entendemos por
honra humana em geral (ou, dito de maneira diferente, por honra puramente pessoal)
é um conceito abstrato, possível pela supressão das fronteiras entre categorias de
pessoas fundadas no mérito, na importância ou na capacidade pessoal – no bom ou
mal sentido. Na verdade, não se pode citar nem sequer uma ação que atente à honra
humana, quer dizer, que seja contrária a toda forma de honra. Para o asceta, é uma
questão de honra deixar-se cuspir, e para as adolescentes de certas tribos africanas
é particularmente honroso ter o maior número possível de relações sexuais. Assim,
os conceitos essenciais da honra se adéquam às características específicas dos
grupos fechados: a honra familiar, a honra militar, a honra do comerciante e, por que
não, a honra dos trapaceiros. Quando o indivíduo pertence a círculos diferentes, pode
participar de diversas honras, independentes umas das outras, questão que já
consideramos importante como uma das manifestações do “cruzamento” social.
Alguém que perdeu sua honra familiar pode manter intacta sua honra como
comerciante ou pesquisador científico e vice-versa. O ladrão pode cumprir à risca os
preceitos da honra dos malfeitores embora tenha infringido qualquer outro tipo de
honra. Uma mulher pode ter perdido sua honra sexual e, ainda assim, permanecer,
em todas as demais coisas, a pessoa mais honrada do mundo, etc. A origem da honra
na teleologia de determinado círculo menor fica clara no fenômeno que é sua
consequência necessária: a honra exige certas coisas, mas também autoriza outras,
ou seja, aquilo que é perfeitamente suportável e indiferente para a honra de certo
círculo é absolutamente proibido para a honra de outro. O condescendente conceito
de honra elaborado pelo corpo de oficiais de mais de um exército moderno, concede
certas licenças no comportamento sexual de seus integrantes que não são
compatíveis com a honra de um homem em muitos outros círculos. A honra dos
operadores comerciais, muito rigorosa em alguns aspectos, permite exaltar as
qualidades das mercadorias, de tal forma que semelhantes afirmações contrárias à
verdade desonrariam um funcionário ou um homem de ciência. A referida honra dos
malfeitores é a sua manifestação mais evidente. Considerados seriamente, os
Georg Simmel | 579

preceitos assertivos da honra são sempre condições para a preservação interna do


grupo, enquanto as suas indulgências são aquilo que cada círculo – talvez
contrariamente a todos os outros – considera compatível com a honra de seus
membros. Tais indulgências se referem às relações desses elementos com
indivíduos de fora do círculo, quando esse comportamento não tem repercussões na
autopreservação do círculo – porque aludem a determinados assuntos inteiramente
pessoais nos quais a honra concede tanto maior liberdade quanto menor for a
dispensa que se outorgue às exigências sociológicas. Como essas exigências são as
únicas que importam, e como estão referidas apenas a um círculo reduzido abrangido
por outro mais amplo, a honra permite (exige mesmo) em alguns casos certas
maneiras de agir proibidas pelo direito – a forma de preservação do círculo maior –
ou pela moralidade – o esteio da autopreservação do indivíduo. O exemplo mais
patente diz respeito ao duelo.
O que pode facilmente induzir a erro sobre o significado da honra como
finalidade sociológica é, justamente, a circunstância de que essa culminância (de um
processo passível de se manifestar na consciência coletiva) se atinge quando se
consegue persuadir o indivíduo de que a preservação de sua honra é o seu interesse
individual mais íntimo, profundo e pessoal. Talvez não exista outro ponto em que os
interesses da sociedade e do indivíduo se confundam tanto e em que um conteúdo
que só se compreende desde o ponto de vista social, tenha assumido uma forma de
imperativo moral que parece decorrer unicamente do interesse individual. A exigência
formulada pelo círculo social se insere tão radicalmente no propósito de existência
de seus elementos que a honra chega mesmo a adquirir certo matiz de isolamento e,
em muitos casos, até de agressão. A honra inclui dentro de si esses tipos de
comportamento nos quais a vantagem do círculo social não provém do sacrifício
imediato dos indivíduos, de sua quase fusão, da unificação completa de seu ser e seu
agir, mas precisamente do fato de que “cada um cuida da própria posição”. Nesse
caso, é a independência recíproca das partes o que mantém o todo na sua forma. Os
interesses do círculo social, dissimulados sob o nome de honra, conformam uma
espécie de esfera em torno da pessoa, onde ninguém mais pode entrar sem ser
repelido – e através da qual se garante sua concreção pelo indivíduo. Do mesmo
modo que podemos considerar que a contribuição específica da religião é conduzir o
580 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

indivíduo a fazer da sua salvação o seu dever, assim, mutatis mutandis, pode-se dizer
que a honra faz do dever social do homem a sua própria salvação. Por isso, no que
diz respeito à honra, as figuras do direito e do dever se confundem: conservar a honra
é um dever tão grande que podemos deduzir dele o direito aos maiores sacrifícios
– não de si mesmo, mas ainda impostos aos outros, invadindo a esfera privada. Seria
absolutamente incompreensível a sociedade impor a salvaguarda desse bem
estritamente pessoal da honra aos indivíduos, e atribuir-lhe tal ênfase social e moral,
se não fosse uma forma e uma técnica cujo conteúdo e finalidade apontam à
preservação do grupo. Graças a essa relação – porque se trata aqui essencialmente
da preservação e não do progresso e da evolução – compreende-se que a sociedade
conceda antecipadamente esse bem às pessoas, de tal forma que elas não
necessitem adquiri-lo, bastando apenas que não o percam: presume-se que todas
sejam honoráveis. A sociedade pode proceder com essa aparente liberalidade,
porque o comportamento que se exige para não perder a possessão de um bem tão
pessoal não tem outro conteúdo que o interesse social. Tal presunção vai tão longe
que a sociedade permite ao ofensor (adúltero ou caluniador) lutar com as mesmas
armas que o ofendido inocente, dado que, como o autor da ofensa ainda é
“honorável”, se pressupõe a possibilidade de que tivesse direito para agir desse
modo. No entanto, cada estamento (em seu caráter de detentor sociológico da honra)
só concede essa presunção favorável a seus próprios membros, o que faz com que
– exceto quando se trata de elementos do mesmo grupo notoriamente
desacreditados – não se deva “dar satisfação” aos membros dos demais
estamentos. É assim que a honra (não apesar, mas graças à forma puramente
pessoal das suas manifestações e da sua consciência) constitui um dos meios mais
admiráveis, elaborados instintivamente, para a preservação da existência do grupo.
Depois de tratar das conexões da autopreservação social com uma pessoa
individual, com uma substância objetiva e com um conceito ideal, passaremos aos
casos em que a continuidade grupal repousa em um órgão constituído por uma
pluralidade de pessoas; isto é, quando o princípio objetivo no qual a unidade coletiva
se manifesta tem o caráter de um grupo. Assim, na comunidade religiosa, a sua
coerência e razão de vida se encarnam no sacerdócio; em todo partido político, na
sua representação parlamentar; em toda associação duradoura, no seu conselho de
Georg Simmel | 581

administração; em todo agrupamento temporário, no conjunto de promotores ou


instigadores; e em toda comunidade politicamente organizada, do ponto de vista
interno, no corpo de funcionários, e do ponto de vista externo, na classe militar – cuja
unidade de ação e igualdade de ânimo em tempos de guerra é personificada, por sua
vez, no corpo de oficiais. A formação de tais órgãos é o resultado da divisão do
trabalho sociológico. As ações recíprocas entre os indivíduos (que constituem toda
sociação e cuja forma particular determina o caráter do grupo enquanto tal)
acontecem inicialmente entre os elementos (membros) da sociedade sem outro de
permeio. Obtém-se, assim, a unidade de ação por ajuste direto ou por harmonização
recíproca dos interesses. A unidade das comunidades religiosas faz-se pelo
imperativo místico que tem por objetivo a comunhão com os outros; a coesão militar
do grupo se consegue pelos interesses defensivos e ofensivos de todo homem capaz
de pegar em armas; a justiça é feita pelo veredito imediato da comunidade; a
organização entre dirigentes e dirigidos se estabelece pelas superiores qualidades
pessoais de alguns face aos demais; e a equivalência das prestações econômicas se
opera pela troca direta entre os produtores46.
Ora, essas funções desempenhadas pelos próprios interessados, que são a
causa ou a origem da unidade social, passam seguidamente a grupos especializados
da comunidade. As ações recíprocas dos elementos entre si são substituídas pelas
novas relações de cada um desses elementos com o órgão recentemente constituído
– por outras palavras, quando não existe um órgão específico, só os elementos
individuais primários possuem existência substancial, e a conexão é meramente
funcional. No entanto, assim que o órgão surgir, essa conexão adquire existência
própria e separada, não somente em relação aos elementos do grupo a quem
geralmente se dirige, mas também em relação aos membros individuais que a
sustentam e impulsionam. Assim, o estamento mercantil é uma entidade que existe
por si só e, como tal, exerce suas funções de intermediação entre os produtores,
sejam quais forem as mudanças nas pessoas. Da mesma maneira, consegue-se
enxergar a administração pública (talvez de forma ainda mais clara) como um órgão

46
Não pretendemos afirmar que este estado lógico (em tese, o mais simples possível), tenha sido
sempre, realmente, o ponto de partida histórico da evolução social. No entanto, pode ser aceito para
descobrir o significado efetivo dos órgãos sociais baseados na divisão do trabalho – mesmo no caso
de ser uma ficção, o que, com toda a certeza, não é para um número incalculável de casos. (NS)
582 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

objetivo que os funcionários individuais atravessam pura e simplesmente e por trás


do qual suas personalidades desaparecem com relativa frequência – de um modo
ainda mais completo que o monarca, cuja posição individual fica sempre
intimamente ligada ao detentor da coroa. A Igreja também é um organismo impessoal
cujas funções são definidas e assumidas pelos diversos sacerdotes, embora não
tenham origem neles. Resumindo, o erro da antiga crença sobre os seres vivos,
segundo a qual a vida decorreria de um espírito vital peculiar (quando ela não é mais
do que uma espécie de ação recíproca entre certos átomos que compõem a matéria)
é uma metáfora pertinente aplicável ao ser social: aquilo que originariamente era uma
ação recíproca direta passa a encarnar numa entidade especializada, dotada de
existência própria. No entanto, esse organismo específico exerce sua função (isto é,
aquela do grupo por inteiro) enquanto totalidade supraindividual. De resto, seus
elementos individuais continuam sendo membros do grupo e, como tais, estão
sujeitos às condições que a atividade desses órgãos impõe aos elementos do
conjunto: o comerciante deve comprar os gêneros alimentícios para as suas
necessidades pessoais, o juiz está sujeito às leis que aplica, o cobrador de impostos
tem de pagar suas contribuições fiscais, o sacerdote também precisa confessar-se.
Esses organismos baseados na divisão do trabalho representam a ideia ou energia
que mantém a coesão do grupo em toda relação gerida por tais entidades e, por isso
mesmo, transformam sua presença funcional em existência substancial.
Uma das características mais específicas e difíceis de entender da natureza
humana é que o indivíduo e os grupos extraem consideráveis energias e qualidades
de entidades que eles mesmos municiaram previamente com as forças e
propriedades necessárias a esse fim. As energias do sujeito, que servem para a sua
preservação e o seu desenvolvimento, se manifestam amiúde por um curioso rodeio:
primeiro constroem uma entidade aparentemente objetiva, para que as energias
refluam dessa entidade ao sujeito. É o mesmo proceder daquele que na guerra fez
um aliado, mas lhe entrega antes todos os exércitos com que esse novo aliado
deveria ajudá-lo. Lembremo-nos da ideia dos deuses que os homens adornam
previamente de todas as qualidades, valores e inexcedíveis perfeições provenientes
das próprias almas, para depois receber deles, na aparência, as leis morais e a força
de aplicá-las. Recordemos igualmente o modo como transferimos à paisagem
Georg Simmel | 583

nossos próprios sentimentos, o recôndito da alma e do pensamento, para obter


seguidamente do panorama consolação, repouso e sugestão. Por fim, rememoremos
os casos frequentes em que acreditamos que certos relacionamentos sociais nos
enriquecem intelectual e sentimentalmente, até que percebemos que todos esses
conteúdos espirituais provêm de nós mesmos e apenas voltam a nós, refletidos por
aquelas amizades. O próprio engano que porventura pode haver em todos esses
processos não deixa, porém, de ter profunda utilidade. Muitas energias da nossa
natureza têm provavelmente necessidade de ser potencializadas, de tomar nova
feição, de sobressair para alcançar seu máximo desempenho: precisamos colocá-las
a certa distância para que atuem em nós com a maior eficácia – e o desengano sobre
a sua verdadeira origem é, evidentemente, muito útil para não prejudicar esse efeito.
A criação de órgãos diferenciados para finalidades sociais específicas faz parte, de
várias maneiras, desse tipo formal: as forças do grupo se concentram em uma
entidade especializada (com existência e caráter próprios) que seguidamente
diferença-se do grupo total, e o fato de a dita entidade favorecer os fins do grupo, dá
ares de independência às forças emanadas desse órgão – quando, na verdade, não
são mais do que as energias transformadas dos próprios elementos sobre os quais
a entidade especializada atua.
No entanto, essa transformação é radical e fecunda. Haveremos de reconhecer
a grande importância que tem a representação das ações coletivas pela ação de
poucos representantes para os processos sociais. No entanto, por trás desse
interesse pela mera quantidade (ou ao lado dele), está a importância mais profunda
e qualitativa da transferência de funções da totalidade do grupo para outro conjunto
de integrantes, parcial, menor e selecionado. Há nisso uma analogia com o
conhecimento científico do mundo. Nenhuma ciência pode descrever ou formular
exaustivamente a diversidade de processos reais da existência ou as múltiplas
determinações qualitativas de uma coisa qualquer. Quando empregamos os
conceitos (tornando manejável aquele acúmulo inimaginável de detalhes
sintetizados), não apenas conseguimos uma representação do conjunto graças a
uma parte essencial. O conceito tem outra estrutura interna e um sentido
epistemológico, psicológico e metafísico diferente da totalidade das coisas nele
incluídas: projeta essa totalidade em um novo patamar e não se contenta em diminuir
584 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sua extensão ao expressá-la de uma maneira fundamentalmente distinta – sua


síntese não constitui uma miniatura de aquela realidade total, mas uma entidade
autônoma edificada com seu material. Como veremos mais adiante, é assim que
fenômenos sociológicos absolutamente inéditos (que não se limitam a uma redução
de proporções) são produzidos quando o órgão representativo e dirigente emerge
acima do horizonte do grupo como sua síntese ou como a noção geral de um
conjunto de incontáveis ações específicas. Talvez a melhor maneira de perceber o
significado que tais órgãos têm para a autopreservação dos grupos seja examinando
um exemplo contrário. A estrutura original do sistema alemão de corporações de
artesãos desabou em parte porque a confraria medieval carecia de órgãos próprios.
Possuía, com certeza, representantes investidos de plenos poderes, mas essas
procurações eram outorgadas para um caso ou situação especial: atribuía-se a um
indivíduo de confiança a função indispensável em um momento preciso. No entanto,
a diferença entre um representante desse tipo e um funcionário salta aos olhos, tanto
no direito como na sociologia – mesmo se no presente estudo carece amiúde de
importância, e embora historicamente se apresentem bastantes misturas e
transições entre as figuras. Nesse aspecto, o essencial é que o representante tem
mais a ver com os indivíduos, seu acréscimo e seus interesses, ao passo que o
funcionário se refere à unidade social objetiva acima dos indivíduos47. Tal contraste

47
A isso se acrescenta um fato da maior importância sociológica para a forma, a saber, que o
“representante”, em geral, não é mais que um indivíduo do grupo, a quem a sua missão não eleva por
cima dessa igualdade de princípio. Em compensação, o “funcionário” enquanto tal é diferente de todos
os indivíduos do grupo – mesmo se como particular pode ocupar uma posição análoga. Isso produz
singulares efeitos quando, por exemplo, patrões e operários negociam convenções coletivas de
trabalho. A lei alemã sobre esse tipo de contratos determina que os acordos devem ser celebrados
pelos “interessados”, quer dizer, por patrões e operários em representação de seus respectivos
grupos. Essa decisão pode atribuir-se a exigências estritamente técnicas, pois se supõe que só os
interessados terão a motivação e os conhecimentos dos problemas que são exigidos. No entanto,
sociologicamente deve-se ao fato de que as partes em presença não são necessariamente (e,
geralmente, de modo nenhum) “pessoas jurídicas” ou assemelhadas. Especialmente no que diz
respeito aos operários, seus representantes serão amiúde eleitos por assembleias frequentadas por
multidões volúveis e incontroláveis. Por consequência, está absolutamente fora de questão que todos
aqueles concernidos pela convenção coletiva tenham outorgado procuração a esses representantes.
Nesse caso, falta o que tornaria os ditos mandatários supérfluos: a unidade social objetiva que
colocaria ao grupo em posição sobranceira a todos seus membros, os casualmente presentes como
os ausentes. Essa é, de fato, a situação típica do “representante”, quer dizer, do membro de uma
massa, formada pela soma de seus elementos, a quem essa massa outorga um mandato – no geral
imperativo, com uma lógica sociológica perfeita. Contrariamente, o “funcionário” que age em nome do
espírito da unidade supraindividual do grupo, possui uma liberdade muito maior em face do conjunto
dos membros atuais. Precisamente, ao contrário da situação daquele representante dos operários, os
secretários gerais dos sindicatos ingleses têm um poder esmagador, quase ditatorial (apesar da
Georg Simmel | 585

é formalmente favorecido e sublinhado quando se trata de uma burocracia, de um


sistema de execução da atividade pública (especialmente da administração) por
vários ou muitos funcionários, com cargos bem definidos, que formem uma unidade
supraindividual, organismo que inclui as pessoas de um modo que parece casual. No
entanto, não se chegou a tal estágio na época germânica antiga. A unidade do grupo
ficou limitada às ações recíprocas imediatas entre elementos pessoais. Que,
finalmente, não se concretizaram nem na ideia objetiva do Estado – da qual os
indivíduos existentes em um dado momento seriam meros exemplos ou
sustentáculos –, nem tampouco (justamente por esse fato) em órgãos
especializados, cada um dos quais se encarregaria de uma função social particular
para liberar à comunidade. Os danos que para a preservação do grupo resultavam
desse defeito podem ser resumidos pelas três noções seguintes.
1. O órgão fundado na divisão do trabalho deixa o corpo social com mais
mobilidade. Quando para um fim particular seja necessário que o grupo todo entre
em ação – se trate de decisões políticas, de fazer justiça, ou de medidas
administrativas – o fará com enorme imperícia, nos dois sentidos do termo. Em
primeiro lugar, no sentido físico ou local: para que o grupo aja como um todo deverá
reunir-se previamente. As dificuldades objetivas e morosidades (e às vezes a
impossibilidade material de que o grupo inteiro se reúna) impedem que sejam
tomadas inúmeras medidas (e atrasam a adoção de outras) até o momento em que
já é tarde demais para isso. Nesse sentido, um finalismo básico e instintivo permite
distinguir entre aqueles grupos para os quais existe a dificuldade de se reunir, e
aqueles outros que não têm esse problema. Comparando as constituições de Atenas
e da Liga Aqueia, descobrimos que, em Atenas, a assembleia do povo se reunia três
vezes por mês, razão pela qual o povo, que podia estar presente sem nenhuma
dificuldade, governava diretamente, sem intermediários, e os magistrados se
limitavam a executar os mandatos que lhes eram conferidos. Em vez disso, a Liga
Aqueia era tão extensa que só podia se reunir uma pequena fração do povo na
assembleia que se realizava duas vezes por ano. Assim, não obstante o fato de a Liga
ser tão democrática como Atenas, foi necessário atribuir maiores poderes a seus

organização democrática dessas agremiações), porque se dedicam aos assuntos do grupo como
únicos funcionários permanentes – e não como “interessados”. (NS)
586 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

magistrados, que dispunham de mais liberdade de decisão e eram mais


“funcionários” – no sentido de suportes da unidade do grupo, superior a seus
efêmeros elementos.
Todavia, se essa dificuldade física da reunião é superada, o óbice da reunião
espiritual é mantido: não é fácil obter a unanimidade quando se trata de uma massa
numerosa. Numa multidão, toda ação para além do curto prazo vem acompanhada
de um lastro de ideias preconcebidas, de antigas suspeitas, de interesses divergentes
e, sobretudo, da falta de interesse de alguns. Lastro do qual está isento o órgão social,
na medida em que está exclusivamente destinado a servir um fim objetivo e é
composto por relativamente poucas pessoas. Esses órgãos do grupo favorecem,
portanto, sua preservação porque graças a eles a atividade social consegue uma
flexibilidade e precisão que contrastam com as rigidezes e lentidões do grupo total 48.
Frequentemente, se atribui a esses problemas físicos e espirituais as dificuldades da
ação de massa nos lugares onde não se podem designar representantes por falta de
candidatos com as qualificações especiais e conhecimentos profissionais exigidos
pelo cargo. Assim, em uma resolução tomada no fim do século XV pelo cantão
alemão de Durkheim49 fala-se de assuntos “que seriam muito numerosos e difíceis
para ser examinados conjuntamente por todo um município”, pelo que se fez
necessário escolher na cidade “oito pessoas virtuosas que se comprometeram a

48
A maior agilidade dos órgãos criados pela divisão do trabalho não impede que, sobretudo quando
representam os interesses mais essenciais do grupo, essas entidades especializadas tenham um
caráter conservador. E devem tê-lo, porque sua missão é preservar a unidade do grupo, em torno da
qual oscilam (com uma amplitude imprevisível e uma contingência que não tem suficientemente em
conta essa unidade) os acontecimentos singulares produzidos pelos indivíduos do grupo. O princípio
do grupo, que antes era realizado por ele de um modo imediato – embora talvez não com tanta
consciência e perfeição técnica – é transferido para os funcionários. As regras morais do cristianismo
nos proporcionam um exemplo muito claro. Nos primeiros tempos, todos os membros da comunidade
cristã estavam obrigados a observar a mesma moral rigorosa de bispos e sacerdotes. No entanto, isso
se tornou impraticável com a enorme difusão do cristianismo, e os membros da comunidade recaíram
na mediocridade moral. Todavia, se esperava – e se obteve – dos funcionários eclesiásticos que eles
preservassem a moral particular indissoluvelmente ligada à essência da religião. Aquilo que tinha sido
a condição de admissão de todo indivíduo na cristandade tornou-se doravante uma exigência para a
ordenação. Nesse caso, o conservadorismo da burocracia repousa na profunda razão sociológica de
ter sido transferida para ela a função sociológica que antes correspondia ao grupo inteiro, cuja
expansão qualitativa e quantitativa requereu a constituição de um órgão diferenciado, especialmente
indicado para tais fins. O conservadorismo revela-se, assim, não como um mero acidente da
burocracia, mas como expressão de seu sentido sociológico – embora deixando margem para
manifestações diversas e contrárias. (NS)
49
Divisão territorial do distrito de Bad Dürkheim, no estado alemão da Renânia-Palatinado, no
sudoeste do país. (NT)
Georg Simmel | 587

representá-la em tudo o que um município tem que fazer”. Dessa forma, em inúmeros
casos, a representação de uma pluralidade de elementos por poucos indivíduos se
funda num simples fator objetivo: a reunião de poucas pessoas oferece (mesmo sem
qualidades eminentes peculiares) a vantagem genérica de uma maior flexibilidade,
de poder reunir-se com mais rapidez e de tomar decisões muito mais precisas que
as de um grupo de grandes proporções. Tanto que poderíamos falar aqui do princípio
do órgão inespecífico: a preferência qualitativa atribuída aos representantes em face
da ação imediata do grupo total repousa, exclusivamente, no seu baixo número. O
Estado romano era, originariamente, a totalidade dos cidadãos reunidos em
assembleia popular, e os juristas posteriores dirão que foram apenas as dificuldades
oferecidas pela reunião do populus em um lugar para fins legislativos que
aconselharam senatum vice populum consuli 50 . O caráter inespecífico do órgão
representativo ou dirigente encontra a sua expressão mais radical nos casos em que
essa pessoa (de existência física ou ideal) nem sequer é eleita porque o cargo é
assumido rotativamente pelos elementos do grupo total. Talvez possamos encontrar
o melhor exemplo disso entre os primeiros sindicatos ingleses (trade clubs) quando,
em meados da década de 1800, designaram os integrantes de uma comissão que
precisaram nomear seguindo a ordem em que os nomes foram escritos nas listas da
agremiação – porque, dado o nível de escolaridade desses operários, era bastante
duvidosa a qualificação de qualquer um deles para as funções de representação. O
rodízio mecânico manifesta aqui, com toda a clareza, a principal vantagem do fator
quantitativo: em vez de atuar muitos, agem poucos.
A dificuldade de agrupar pessoas em um mesmo local não se encontra
unicamente nos casos em que é preciso reunir todo o grupo: também está presente
nas relações econômicas. Enquanto as trocas e as compras só se realizaram através
da reunião do produtor e do consumidor, sem outro de permeio, é evidente que esses
atos ou contratos ficaram muito imperfeitos e difíceis – bloqueados com
extraordinária frequência pelas dificuldades que a sua obrigada e simultânea
presença em um mesmo local acarretavam. No entanto, quando aparece o
intermediário entre produtor e consumidor e, no final, surge uma classe de

50
“Que o Senado tome as decisões em lugar do povo”. (NT)
588 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

comerciantes (que sistematiza o intercâmbio de produtos e se encarrega da


implementação eficaz de todas as relações possíveis entre os interesses
econômicos), a coerência total do grupo ficou incomparavelmente mais estreita e
forte. A introdução de um novo órgão, que se insere entre os elementos primários,
não favorece a separação, mas à união – como amiúde acontece com o mar situado
entre dois países. A unidade do grupo (a relação entre cada membro e todos os
outros, por qualquer meio) se torna certamente muito mais forte e eficaz em virtude
da atividade mediadora dos comerciantes. Finalmente, graças à ação continuada da
classe comercial, surge um sistema de forças e relações que funcionam e se
equilibram mútua e regularmente – forma geral na que encaixam os diferentes
modos de produção e de consumo individuais e que paira sobre eles como o Estado
está sobre o cidadão individual ou a Igreja adeja sobre o crente individual.
Nesse caso e noutros semelhantes, a questão essencial para a preservação da
forma de vida do grupo é a seguinte: quando momentaneamente não há nada para
fazer – enquanto se paralisa de maneira radical a forma de intercâmbio subordinada
à ação recíproca direta dos elementos, quando essa ação se detém, e enfrenta
consequentemente maiores dificuldades para ser reiniciada – os elementos
chamados (berufen) para exercer a função de órgão não podem abandonar as tarefas
para as quais têm sido convocados, nem desistir da disposição ou pendor que
eventualmente os orienta no sentido dessa atividade (Beruf). Por isso, a explicação
costumeira sobre o poder das monarquias diz respeito ao fato de o monarca sempre
desempenhar as suas funções – ao passo que o governo de muitos desperdiça as
suas forças e exibe flagrantes lacunas na sua atividade. Quando o povo não estava
reunido na Pnyx51 ou na Ting52 a atividade do Estado adormecia. Ele devia sair então
de seu torpor para readquirir suas forças e voltar a agir, enquanto o príncipe “velava
o tempo todo”. A ação recíproca cria um órgão que a sustente para ele logo encarnar
a possibilidade de reaver essa ação. Mesmo durante a interrupção, quando no
imediatismo primário das trocas surge subitamente uma lacuna que parece difícil de
preencher, subsiste a ponte que, embora não seja percorrida, mantém a continuidade

51
A Pnyx era uma colina na Atenas da Grécia antiga com cerca de 400 metros, ao sudoeste da ágora,
onde a assembleia do povo (a Eclésia) da democracia ateniense se reunia. (NT)
52
A Ting era uma assembleia de homens livres na Escandinávia do medievo viquingue, convocada
para legislar, fazer justiça e tomar decisões administrativas. (NT)
Georg Simmel | 589

da forma e a verossimilhança de sua possível reatualização. Enfim, entre os motivos


de caráter psicossocial que vinculam a constituição de órgãos sociais especializados
à extensão quantitativa do grupo, figura a circunstância de que a esfera comum a
todos os elementos será menor quanto maior seja o número dos membros – porque
seu acréscimo aumenta, naturalmente, a variedade e distância (objetiva e subjetiva)
dos indivíduos. Por conseguinte, o denominador comum tem uma importância
relativamente insignificante nos elementos dos grupos muito numerosos. Sua fusão
com o conjunto da personalidade total do indivíduo não é grande e resulta, portanto,
bastante fácil isolá-lo e transferi-lo a entidades que excedem a soma dos indivíduos.
2. Quando o grupo total, formado por elementos com iguais direitos e posições,
se mobiliza com um fim específico, surgem contracorrentes internas. Como cada
uma delas tem, a priori, o mesmo peso e carece de instância decisiva, tal estado de
coisas não é propício para que a maioria decida, mas para que cada dissidente
levante obstáculos a uma rápida aplicação da decisão, ou ao menos não se sinta
pessoalmente obrigado a cumpri-la. Esse perigo (que afeta não só a eficácia da ação
do grupo dirigida ao exterior, mas também a sua forma e unidade interna) pode ser
evitado, no mínimo, em dois aspectos, pela criação de órgãos sociais. Em primeiro
lugar, uma magistratura, uma comissão, uma delegação ou outra autoridade
reconhecida terá maiores conhecimentos específicos que a totalidade das demais
pessoas, evitando-se assim, de antemão, os atritos e oposições da simples
ignorância dos fatos. A unidade de ação (que resulta sempre do conhecimento
objetivo da situação e da exclusão das divagações da imaginação) será, portanto,
mais bem garantida quanto mais a direção das medidas especiais, que se devam
adotar esteja a cargo de um órgão idôneo designado – a idoneidade basicamente
implica a unificação de critérios, porque, se os erros subjetivos são infinitos, todos
têm que chegar a um mesmo resultado se a situação for apresentada de maneira
exata, objetiva e concreta.
Em compensação, não é tão evidente a importância de um segundo motivo
estreitamente ligado ao primeiro. A falta de objetividade, que tantas vezes impede os
movimentos de massa agirem com unidade e eficácia, nem sempre é consequência
da mera desinformação, mas amiúde de um generalizado fato sociológico: as
divisões partidárias – que separam os elementos do grupo em algumas questões
590 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

importantes e se estendem a outras decisões que deveriam ser tomadas de acordo


com critérios objetivos sem nada a ver com os problemas dos partidos. A existência
formal de um sistema de partidos concorre, como fundamento da decisão, com o
conhecimento objetivo. Entre os quase demasiados exemplos quotidianos desse
fenômeno, um tipo particularmente rico em consequências é a cisão de um grupo em
tendências centralistas e particularistas – pois que dificilmente haverá algum tema
em que essa divisão não possa transparecer, com independência do próprio sentido
da questão e dos motivos objetivos pelos quais ela é resolvida. Isso se vê com
particular clareza em certas discussões referentes à luta contra a pobreza, ainda
mais que essa esfera deveria ser alheia à política partidária em virtude do seu caráter
ético-social. No início do Segundo Reich, quando foi preciso decidir se, na Alemanha
que recém tinha conquistado sua unificação, uma única instancia suprema em
matéria de assistência social devia limitar-se a resolver as controvérsias entre os
estados federados, ou também solucionar os litígios que se instruísse nas jurisdições
estaduais, o debate centro-se (mais do que sobre a conveniência objetiva das duas
soluções respectivas) na pertinência das tendências dos partidos ao particularismo,
ou à unidade. E não só isso: hoje sabemos que o fator decisivo ante esse tipo de
alternativas nem sequer consiste em saber se alguma das duas soluções
– prescindindo da sua justificação objetiva – respeita a convicção fundamental do
partido. Isso porque acima de tais considerações, a facção deve preocupar-se
também com a influência que a sua atitude possa ter para o fortalecimento do seu
poder, que tipo de acolhimento dará a essa solução uma personalidade importante
para o partido, etc.
Todavia, se a última falta de objetividade (em virtude da qual é suprimida a
relação lógica entre a tendência do partido e as suas práticas atuais) for um segundo
grau de disparidade, há outra de terceiro grau: a forma do partido determina amiúde
a decisão a ser tomada, não por razões práticas (embora careçam de objetividade),
mas porque o adversário afirma o contrário – sobretudo em uma questão que nada
tenha a ver com os problemas internos do partido. A linha que divide as facções em
determinado assunto vital (que afete a eficácia da ação do grupo dirigida ao exterior)
se estende a todos os outros assuntos, dos mais genéricos aos mais específicos. E,
como não se quer cooperar com o adversário em nenhuma das questões essenciais,
Georg Simmel | 591

o simples fato de o adversário decidir-se por uma das possibilidades em qualquer


dualismo, já é suficiente para que o partido dê preferência à outra proposição
antagônica. Foi assim que os socialdemocratas alemães votaram contra certas
medidas que eram vantajosas para os operários só porque tinham sido propostas
por outros partidos ou pelo governo. O dualismo partidarista se converte em um a
priori da prática. Qualquer que seja o problema, ele será dividido em dois princípios
opostos e dessemelhantes. Cada um dos partidos ou famílias políticas se apropria
então de uma dessas proposições elementares – e a cisão produzida se transforma
na necessidade formal de separação em todas as questões. Daremos apenas dois
exemplos para os diversos tipos de conduta mencionados. Quando na França do
século XIX se suscitou o problema da geração espontânea 53, os conservadores se
pronunciaram apaixonadamente pela negativa, enquanto os liberais defenderam com
o mesmo ardor a dita teoria. Algo análogo aconteceu em diferentes lugares com o
problema da educação estética do povo ou com as diversas tendências literárias. E
mesmo que conseguíssemos encontrar uma relação longínqua entre a decisão de
que se trate e o conjunto de convicções de um partido, o grau de paixão ou indiferença
do engajamento dependerá em cada caso apenas da atitude do outro partido – de
modo que se uma facção tivesse decidido o contrário, a outra assumiria a posição
oposta, embora lhe fosse, no fundo, difícil de digerir. Passemos agora ao segundo
exemplo. Após a divisão em dois grupos do partido liberal alemão no Reichstag (o
parlamento federal) em 6 de maio de 1893, por motivo da lei militar, sua bancada
continuou unida no Landtag (a assembleia estadual prussiana) até julho do referido
ano. Quando das eleições do mês de outubro para deputados ao Landtag se
reproduziu a cisão ocorrida em sede federal, e os mesmos indivíduos, que até então
tinham colaborado como correligionários foram de repente adversários.
Consequentemente, na nova assembleia estadual prussiana (apesar de que nenhum
dos novos grupos parlamentares demonstrou alguma diversidade de opiniões nas
questões importantes) continuou a separação. O absurdo de tais divisões partidárias

53
A geração espontânea foi uma teoria, hoje desacreditada e obsoleta, que considerava possível a
formação espontânea de determinados seres vivos a partir de matéria orgânica, inorgânica ou de uma
combinação de ambas. Essa formação ocorreria sem necessidade de intervenção de qualquer tipo de
propágulo, gameta ou qualquer outra forma de reprodução a partir de indivíduos da mesma espécie.
(NT)
592 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

se apresenta com particular relevo (e também com particular frequência) quando os


conflitos surgem dentro de um círculo estreito, definido por interesses pessoais, e
depois se transferem para as questões próprias do círculo amplo, sobre as quais as
mesmas pessoas decidem, embora a partir de perspectivas completamente
diferentes. Nas circunscrições rurais alemãs verificou-se frequentemente que, nas
eleições parlamentares, os pequenos proprietários e os colonos votam em um
candidato diferente daquele dos grandes proprietários, porque eles se opõem a suas
reivindicações nos assuntos municipais.
O que acabamos de dizer a respeito dos partidos que vivem muitas vezes em
conflito uns com os outros também acontece sempre que um conjunto numeroso de
pessoas (que não atue levado por um impulso súbito) tenha algo a resolver. É que o
poder dos diversos partidos (que inevitavelmente se materializará na massa até lá
indiferenciada de indivíduos) não poderá ser superado pela análise da situação
objetiva – e se traduzirá em interpretações imprecisas das ideias e dissimulações
diversas que, por sua vez, produzirão inúmeros obstáculos, excessos e negligências.
Essa força do partido (como mera forma que se revela no seu contínuo avanço
através das esferas de interesse mais heterogêneas) é um dos estorvos mais sérios
à unidade de ação do grupo, e para a sua atividade em geral. Assim que se agravam
as divisões e dificuldades, a transferência a órgãos específicos da tarefa de gerir as
decisões do grupo passa a se impor urgentemente. E como tais órgãos se constituem
em função do objetivo a atingir, esse fim se separa psicologicamente dos demais
interesses e opiniões das pessoas. O órgão especializado somente existe ad hoc
(destinado a essa finalidade). E na consciência do indivíduo, o hoc (a finalidade
objetiva) se distingue claramente de tudo o que não tem nada a ver com ele,
dificultando muito as confusões (enganosas ou inocentes) com tendências que
objetivamente são estranhas a esse objetivo. Graças a isso, a ação do órgão faz-se
bem mais unitária, enérgica e bem direcionada. A autopreservação do grupo progride
na medida em que se evita o desperdício de energias por tais confusões e a recíproca
paralisia de forças que delas decorria – inevitáveis quando é o grupo total quem gere
diretamente os próprios assuntos, sem divisão do trabalho. No entanto, é evidente
que essa vantagem não deixa de ter inconvenientes. É decerto verossímil que o
funcionário cumprirá o seu dever, porque não age por si, mas em nome da ideia do
Georg Simmel | 593

grupo; todavia, a única coisa que ele vai fazer será proceder de acordo com suas
obrigações. Com a mesma objetividade que rege as suas atividades e decisões, o
funcionário vai aferir também o grau de seu engajamento, assim como a sua
personalidade subjetiva (sem se deixar influenciar pelo conteúdo de sua atividade)
tampouco gastará energias para além daquelas que está objetivamente obrigado a
consumir. Da mesma maneira, a objetivação do órgão fará com que se percam, ao
lado de certos aspectos questionáveis da personalidade, alguns outros de grande
apreço como a cordialidade, a doação sem reservas, e a magnanimidade que não
distingue entre os interesses próprios e os do próximo. Como a objetividade é sempre
o correlato da divisão do trabalho, o que se elogia sob o nome de objetividade do
funcionário é a simples consequência da intensificação da complexidade na
organização da burocracia – liberada já das confusões e também das divisões
inerentes à vida do grupo total.
3. Se tais vantagens (que a constituição de órgãos revela relativamente à ação
do grupo total para a perenidade desse mesmo conjunto) se referem ao tempo54 e ao
ritmo dos processos de autopreservação do grupo, é preciso assinalar que
igualmente dizem respeito a suas qualidades. Mais uma vez, o primeiro fator decisivo
é a regra psicológica cuja importância nos espantou repetidamente: a ação global da
multidão estará sempre a um nível relativamente baixo do ponto de vista intelectual.
O ponto de convergência de grande número de pessoas deve situar-se à mesma
altura dos menos esclarecidos deles; porque, se é possível que os instruídos
consintam em dar um passo em direção aos iletrados para proporcionar-lhes
conhecimentos, mais árduo parece ser o caminho do saber para todos os ignorantes.
São estes últimos, assim, os que determinam o ponto de encontro entre as duas
realidades: aquilo que é comum a todos só pode ser o que é próprio dos que possuem
menos. Esta regra, que é de grande valor para todas as ações coletivas – desde o
comportamento de uma multidão furiosa na rua, até as assembleias de uma
sociedade científica –, não tem naturalmente validez mecânica e uniforme. A
condição do homem superior não é o resultado de um acréscimo de qualidades iguais
às que o inferior possui em quantidade menor, de modo que, em todos os aspectos,

54
No sentido musical do termo, quando utilizado como unidade abstrata de medida da velocidade das
pulsações de um trecho musical. (NT)
594 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o primeiro teria tudo o que o segundo tem, mas não vice-versa. O homem superior é,
em alguns aspectos, tão diferente pela sua natureza do inferior que não pode de
modo algum adotar o seu ponto de vista, nem na realidade, nem sequer na sua
imaginação. O “camareiro” não compreende o “grande homem”, da mesma maneira
que o “grande homem” não compreende ao “camareiro” 55 . Somente a metáfora
espacial do inferior e do superior leva a crer em uma simples diferença de grau, nos
termos da qual bastaria que o homem superior se despojasse do que tem “em
demasia” para encontrar-se no mesmo nível do inferior. No entanto, se a diferença é
tão ampla e geral que não possa reduzir-se à unidade, embora o superior descenda
e se anule um predomínio quantitativo, é também impossível obter uma verdadeira
ação coletiva. Uma pessoa pode colaborar ostensivamente com outras em alguma
coisa, mas isso não significa que ela tenha comprometido algumas das qualidades
que definem sua individualidade, as condições de ser de sua verdadeira
personalidade. Se uma coletividade quer agir realmente em comum, isso só será
possível nas esferas que permitem ao superior descer ao nível do inferior. Portanto,
é um erro otimista definir como “médio” esse nível social: o caráter das ações
coletivas tende a situar-se não na linha média, no juste milieu56 entre os elementos
superiores e inferiores, mas se identifica com os inferiores. Essa é uma verdade
confirmada pela experiência de todas as épocas – desde Sólon57 que dizia que os
atenienses eram astutos como uma raposa, quando se os considerava
separadamente, mas que reunidos na colina de Pnyx se transformavam em um
rebanho de cordeiros, até Frederico, o Grande58 que afirmava que seus generais eram
as pessoas mais sensatas do mundo, quando falava a sós com eles, mas uns

55
Simmel se tem referido já às distintas naturezas do “grande homem” e do “camareiro” no capítulo V
da presente obra, ao desenvolver o tema da “discrição” e tratar da obrigação de “guardar distância”.
(NT)
56
Juste milieu (que significa "caminho do meio" ou "meio termo") é um termo francês que descreve
filosofias políticas que tentam encontrar um equilíbrio entre os extremos. (NT)
57
Sólon (638 a C. – 568 a C.) foi um estadista, legislador e poeta grego, considerado por seus
contemporâneos um dos sete sábios da Antiguidade. Em 594 a C. iniciou uma profunda reforma das
estruturas social, política e econômica da polis ateniense. (NT)
58
Frederico II (1712 - 1788) conhecido como Frederico, o Grande, governou o Reino da Prússia de 1740
a 1786. Suas realizações mais significativas incluíram suas vitórias militares, sua reorganização dos
exércitos prussianos, seu patrocínio das artes e do Iluminismo e seu sucesso final na Guerra dos Sete
anos contra as principais potências europeias da época. (NT)
Georg Simmel | 595

papalvos quando se reuniam em conselho de guerra. Foi o que Schiller sintetizou em


poucas palavras quando escreveu: “várias pessoas inteligentes e cordatas se tornam
idiotas quando estão in corpore”59.Isso não resulta, apenas do conhecido e inexorável
nivelamento por baixo inerente ao agir conjunto da massa, mas também decorre do
fato de que, em uma multidão reunida, a direção cairá invariavelmente nas mãos dos
elementos mais exaltados, mais radicais e que gritam mais forte, e não na mãos dos
mais instruídos – que costumam carecer da enunciação apaixonada e da força de
sugestão que provocam a adesão. Como dizia Dião Crisóstomo 60 aos alexandrinos,
“os homens sensatos se retiram e calam, por isso se produzem entre vós as eternas
dissidências, os mexericos irrefreáveis e as mais infames suspeitas”.
No entanto, essa norma não se aplica a todos os casos em que reinam a
excitação e a expressão dos sentimentos. Isso porque, em um conjunto de pessoas
reunidas e fisicamente próximas, ocorre com frequência certo nervosismo coletivo,
uma estimulação recíproca das pulsões de afeto ou aversão que pode favorecer o
surgimento de indivíduos que momentaneamente estejam por cima da intensidade
média das qualidades morais da massa. Quando Carl Maria von Weber 61 disse do
povo que “o indivíduo é um jumento”, mas que “sua reunião antecipa, porém, o juízo
divino”, devemos levar em consideração essa opinião como o resultado da
experiência de um músico que concita o sentimento das massas e não o intelecto
– faculdade, esta última, que ao contrário da aptidão para se comover e da vontade,
resta mais estreitamente associada àquele nível medíocre em que o superior desce
para coincidir com o inferior. A preservação do grupo repousa nas relações imediatas
de pessoa a pessoa (nas que cada indivíduo desdobra todas as suas faculdades


Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759 — 1805), foi um poeta, filósofo, médico e historiador
vurtembergo. É um dos grandes homens de letras da Alemanha do século XVIII e, assim como Goethe,
Wieland e Herder, um dos principais representantes do Classicismo de Weimar, tido como um dos
precursores do Romantismo alemão. (NT)
59
Expressão latina que pode ser traduzida como: “juntos” ou “todos juntos”. (NT)
60
Dião Crisóstomo (circa 40 — circa 120) foi um orador, escritor, filósofo e historiador da Grécia Antiga
que viveu no período da dominação romana. Seu apelido Crisóstomos significa “boca de ouro”, em
alusão a sua admirável eloquência. Considerado um dos maiores retóricos e sofistas da Grécia, seus
escritos versam sobre política, ética, filosofia e estadismo. (NT)
61
Carl Maria von Weber (1786 — 1826) foi um barão, compositor e diretor de ópera nascido na Holsácia
(ducado dinamarquês hoje parte da Alemanha) que desempenhou um papel importante na transição
da música clássica à romântica; celebrado notadamente por suas óperas Der Freischutz (O Franco-
atirador), Euryanthe e Oberon. (NT)
596 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

intelectuais), mas isso de nenhuma maneira acontece quando o grupo deve agir
como uma unidade. Podemos qualificar as mencionadas relações imediatas dos
elementos individuais de movimentos “moleculares” do grupo e os outros de
movimentos “molares” dele62. Nos primeiros, a representação dos indivíduos não é
possível, nem conveniente de princípio, enquanto nos molares a dita representação é
tanto possível como desejada. A experiência dos grandes sindicatos ingleses – para
dar um exemplo entre muitos outros – demonstrou que as assembleias de massa
adotam, amiúde, as decisões mais insensatas e prejudiciais (por isso se tem dado as
aggregate meetings a alcunha de aggravate meetings63), razão pela qual a maioria
das associações profissionais as substituiu por reuniões de delegados. Toda vez que
um grupo de grande dimensão pretende gerir seus assuntos por si mesmo e sem
intermediários, a necessidade correlata de que cada elemento compreenda e aprove
de alguma maneira a decisão que tem que ser tomada, condena a esta última à norma
da trivialidade. Só quando essa gestão passa a uma organização composta por
relativamente poucas pessoas é possível valorizar o talento específico. A
determinação e o conhecimento de causa (que são sempre o apanágio de poucos)
têm de lutar laboriosamente para impor a sua influência quando quem decide é o
grupo total, ao passo que tal predominância é um dado adquirido em um órgão
especializado64.

62
Referentes à massa de uma substância, em oposição às moléculas que formam parte dessa massa.
(NT)
63
Jogo de palavras entre assembleias aggregate (= de massa) e assembleias aggravate (= que se
tornaram piores, mais preocupantes). (NT).
64
Decerto também se produzem fenômenos contrários. Dentro da burocracia, acontece muitas vezes
que por estreiteza de espírito e de visão impede-se que o talento encontre o lugar que lhe é devido,
enquanto a grande massa pode facilmente seguir um indivíduo dotado de inteligência acima da média,
renunciando as suas próprias opiniões. Para uma ciência abstrata como a sociologia, é inevitável que
as conexões típicas que apresenta, não possam esgotar a plenitude e a complexidade da realidade
histórica. Por mais valioso e eficaz que seja o sistema que essa ciência proponha, o acontecimento
concreto deve sempre conter uma série de forças divergentes que poderá mascarar seu efeito no
resultado global perceptível. Mesmo a física em parte é composta de algumas relações entre
movimentos regidas por leis que, no mundo empírico, nunca ocorrem com a pura lógica que lhe
conferem o cálculo matemático ou as experiências de laboratório. No entanto, isso não significa que
as relações de forças sejam menos reais e ativas em todos os casos em que se verifiquem as
condições cientificamente constatadas, ou seus começos. Acontece que, além delas próprias, há
sempre outra série de forças e condições que agem sobre a mesma substância: na resultante de
ambas, que constitui afinal de contas o verdadeiro curso dos acontecimentos, a parte das relações
descobertas pode escapar à observação direta e só contribuir ao efeito final em uma proporção
imperceptível. Essa deficiência que revela perante a realidade todo conhecimento típico e legal,
alcança visivelmente sua culminância nas ciências do espírito, porque em sua esfera não somente os
fatores de cada caso particular se confundem em um entrelaçado inextricável senão o destino
Georg Simmel | 597

Nisso se funda a superioridade do parlamentarismo sobre o plebiscito. Tem-


se feito notar que as consultas diretas das populações raramente permitem construir
maiorias favoráveis a medidas originais e inovadoras – pois essas manifestações da
vontade popular, ao contrário, costumam privilegiar a timidez, a comodidade e a
trivialidade. O representante individual, eleito pela massa, possui mais qualidades
pessoais do que a multidão eleitora tem consciência – sobretudo em época de
pleitos inteiramente baseados no controle dos grandes partidos. O candidato
acrescenta algo alheio ao que há nessa consciência, aquilo que, na verdade, o fez
eleger. Por isso, um dos melhores conhecedores do parlamento inglês disse que, para
um deputado, é uma questão de honra não expressar os desejos de seus eleitores
quando não consegue torná-los concordes com a sua convicção pessoal. Os talentos
pessoais e as nuances intelectuais (presentes nos indivíduos) podem ter um papel
fulcral a desempenhar nos parlamentos, além de servir à preservação da unidade do
grupo – ameaçada pelas divisões partidárias. É verdade que a eficácia do princípio
pessoal nos parlamentos registra atualmente dificuldades causadas por novos
nivelamentos. Em primeiro lugar, porque o parlamento, lugar de expressão do
indivíduo, é uma corporação relativamente numerosa, que reúne partidos e pessoas
extremamente diferentes – pelo qual os pontos comuns de entendimento recíproco
só podem situar-se muito abaixo na escala intelectual. (Pensemos, por exemplo, nos
resumos dos debates parlamentares onde, ao lado de piadas de mau gosto, podemos
ler a indicação: “Risos”). Em segundo lugar, porque o indivíduo pertence a um partido
que não se assenta em um fundamento individual, mas sobre uma sólida base social,
que nivela a atuação parlamentar na sua fonte – circunstância que rebaixa o valor de
todas as representações parlamentares a partir do momento em que devem
responder a mandatos imperativos, quer dizer, quando não passam de meros
veículos para reunir mecanicamente, em um único lugar, os “votos” da “massa”. Em
terceiro lugar, porque o deputado fala, indireta e intencionalmente, a todo o país. O

daqueles que se quis analisar fica subtraído à constatação matemática ou experimental. Qualquer
relação de causa e efeito a ser considerada como normal em virtude de acontecimentos históricos ou
probabilidades psicológicas parecerá não ocorrer em muitos casos em que suas condições estejam
reunidas. Isso não significa necessariamente um erro na transmissão ou exposição de algum fato,
mas apenas que para além das forças identificadas ocorre a ação de outras forças talvez contrárias,
que prevaleceram no efeito total visível. (NS)
598 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

grau até o qual essa circunstância determina o argumento do discurso congressual


é tão claro e consciente na Inglaterra que ali, desde o século XVII, as peças oratórias
proferidas pelos parlamentares se dirigem, clara e conscientemente, à nação no seu
conjunto – embora ainda não se pensasse em publicar os debates. No entanto, a
necessidade de se justificar perante uma massa, não só corrompe o “caráter” (como
dizia Bismarck da política e como – a despeito de todas as nuances que é
conveniente introduzir – o demonstra a instabilidade moral dos atores), mas também
faz descer incrivelmente a fineza e singularidade das expressões intelectuais. Os
representantes da massa parecem ter algo da inconsequência de seus representados
– uma espécie de apetite de poder, somada à irresponsabilidade parlamentar e à
discordância entre personalidade, ideias e interesses representados que concorrem
para produzir um resultado pouco lógico, mas ainda assim, psicologicamente
compreensível: a consciência de estar no centro da atenção pública. Sem ter em
conta a influência de elementos desse gênero não se poderiam compreender as
cenas escandalosas que se tornaram a regra em muitos colégios deliberantes – à
exceção de poucos. Já o Cardeal de Retz65 se referia a isso nas suas Memórias (ao
descrever o parlamento de Paris na época da Fronda 66 ), onde afirma que essas
corporações, apesar de integradas por pessoas graúdas e da melhor instrução, agem
“como a populaça” (sic) quando deliberam em comum.
O reverso das vantagens intelectuais da constituição de órgãos especiais, o
“lado errado” (o aspecto pouco atraente ou desagradável) de uma forma sociológica
que apareceu inicialmente sob seu ângulo mais estimável, está vinculado
exclusivamente à representação política e não diz respeito às outras formas de
órgãos. Mais ainda: essas desvantagens (como demonstra a evolução das formas
de governo representativo, em particular do parlamentarismo), constituem

65
Jean-François Paul de Gondi, mais conhecido como o Cardeal de Retz (1613 — 1679), foi um político,
eclesiástico e memorialista francês. Sucessivamente bispo in partibus de Corinto, coadjutor de Paris,
cardeal arcebispo dessa cidade e abade de Saint Denis, se indispôs desde cedo com Mazzarino, que
o aprisionou nos castelos de Vincennes e de Nantes. Evadido, se refugiou nas suas possessões,
primeiro, e depois em Roma. Político hábil e influente participou da Fronda (vide infra) e não cessou
de intrigar até seus últimos anos. Exceleu nas belas letras, e suas Memórias são consideradas uma
obra prima da literatura francesa do século XVII. (NT)
66
A Fronda, (ou as Frondas), foi uma série de guerras civis ocorridas na França entre 1648 e 1653
concomitantemente à Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), e alguns anos após a Guerra dos Trinta
Anos – em que a monarquia se viu diante de uma série conflitos contrários a ela partindo de diversos
segmentos da sociedade. (NT)
Georg Simmel | 599

justamente a prova da necessidade dos órgãos específicos. Na Inglaterra, a


impossibilidade de governar com uma corporação tão numerosa, heterogênea,
volúvel, e mesmo assim terrivelmente apegada às tradições, como a Câmara dos
Comuns, levou à formação do ministério ou gabinete no final do século XVII. O
ministério inglês é, com efeito, um órgão do parlamento que mantém com esse corpo
legislativo uma relação mais ou menos semelhante à que o parlamento mantém com
todo o país. Como está formado por membros importantes do parlamento e
representa à maioria em cada caso, alia a tendência geral do grupo total – que ele
representa de forma sublimada – com as vantagens do talento individual, que só
podem manifestar-se quando a direção é exercida por personalidades individuais
dentro de um grupo tão reduzido como um ministério. O gabinete inglês é um modo
genial de corrigir (graças a uma nova e maior concentração do poder nas mãos do
governo) as carências pelas quais o órgão podia reproduzir os defeitos da ação do
grupo total – que se quiseram remediar com a criação do parlamento.
Os sindicatos ingleses conseguiram as vantagens da forma parlamentar de
outra maneira: através de suas desvantagens. As associações profissionais não
podiam ser bem administradas com a assembleia de delegados (seu ”parlamento”),
mas temeram que, se confiassem a gestão das agremiações só a funcionários
assalariados, poderiam ficar à mercê de uma burocracia difícil de controlar. Os
grandes sindicatos solucionaram esse possível problema criando, ao lado dos
funcionários da associação total (a federação), outros funcionários de distrito, aos
que conferiam poder para que os representassem no respectivo “parlamento” (a
assembleia de delegados) que controlava os primeiros. Os funcionários distritais,
graças ao estreito contato com os seus eleitores “da base”, tinham amiúde interesses
e pontos de vista completamente distintos daqueles defendidos pelos funcionários
da federação, o que os impediu de formar com eles uma burocracia monolítica. As
posições desses dois corpos de funcionários se compensam mutuamente, e o papel
que o ministério desempenha no sistema político parlamentar inglês é repartido por
meio do próprio ”parlamento sindical” (a assembleia de delegados de cada sindicato)
em virtude de tal instituição – forma sociológica que tinha antecipado de uma
maneira mais simples o “conselho” das cidades germanas, que apareceu em todo o
lado durante o século XII. Considera-se que a sua característica essencial era
600 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

concretizar a passagem de uma burocracia simplesmente representativa ou


simplesmente governante, para um órgão que fosse ao mesmo tempo representativo
e governante. (Todavia, quando o conselho governava, o fazia como órgão e não
como senhor – condição simbolizada pelo juramento à cidade). Assistiu-se aqui a
uma tentativa que (com técnica muito diferente daquela que denota a relação do
parlamento inglês com o gabinete ministerial formado no seu cerne, mas
formalmente com a mesma teleologia) propõe-se aliar os elementos positivos, quer
do pequeno grupo, quer do grande grupo, na esfera do governo prático. Durante
algum tempo, no início dos anos 1400, o conselho de Frankfurt era composto por 63
membros, dos quais apenas uma terceira parte participava da gestão dos assuntos
públicos, segundo um critério de rotação anual. No entanto, nos casos importantes,
o terço que estivesse encarregado do governo da cidade, tinha direito de obter
conselhos de um dos outros dois terços ou de ambos. Dessa maneira, conseguiam-
se as vantagens que advinham de um grande número de conselheiros (a aprovação
da vizinhança, a representação de diversos interesses, o controle recíproco que
dificulta a ação de grupos que procuram influir nos negócios públicos) e também os
que estavam relacionados precisamente às limitações numéricas do órgão (maior
centralização, mais facilidade para chegar a acordo, administração mais ágil). A
prova da necessidade da criação desse órgão surgido do parlamento pode também
resultar de um processo argumentativo a contrario sensu. Na opinião de um dos
melhores conhecedores do tema, a quantidade escandalosa de tempo e recursos que
a máquina estatal estadunidense esbanja se deve ao fato de que a opinião pública
norte-americana deve fazer tudo sozinha, sem enfrentar um poder diretivo similar ao
dos ministérios europeus. Nem no congresso federal nem nas assembleias estaduais
há funcionários governamentais com autoridade ministerial, cujo especial dever e
missão seja tomar a iniciativa em novas esferas, unificar a condução dos assuntos
por meio de ideias diretrizes, assumir a responsabilidade da preservação e do
progresso do conjunto – em uma palavra, prestar os serviços que somente os
indivíduos podem fornecer e que (como mostra o nosso exemplo) nunca podem ser
substituídos pela ação conjunta dos elementos primários do grupo (mesmo que ajam
sob a forma da “opinião pública”).
Georg Simmel | 601

Digressão sobre a psicologia social

O estudo dos resultados da reunião de determinados membros do grupo em


órgãos diretivos que acabamos de realizar tem um caráter tão claramente
psicológico que, notadamente nesse campo, não parece mais do que psicologia
social. Uma vez que, no primeiro capítulo, buscamos estabelecer a diferença
epistemológica entre sociologia e psicologia, é preciso que, partindo dessa
delimitação de fronteiras, acrescentemos uma definição positiva desse tipo de
psicologia que se denomina social. Porque se não há disposição para reconhecer a
sociologia como parte da psicologia individual, também deve ficar perfeitamente
claro que a sociologia é um objeto de estudos absolutamente autônomo da
psicologia social. E para que a distinção metodológica estabelecida entre a
sociologia e a psicologia no geral – não obstante as relações que a primeira mantém
com a segunda – seja também aplicada à psicologia social, será preciso demonstrar
que a disciplina psicologia social não possui nenhuma especificidade fundamental
que a distinguiria da psicologia individual – Intercalando aqui essa demonstração
pela razão que se acaba de indicar, embora pudesse ter sido incluída em qualquer
outra seção do livro. No entanto, o fato de que só no indivíduo, e em mais nenhum
outro lugar, ocorram processos espirituais não é ainda suficiente para rejeitar a teoria
segundo a qual a psicologia da sociedade (das massas, grupos, nacionalidades ou
épocas) constitui, ao lado da psicologia do indivíduo, um conjunto do mesmo valor,
mas diferente por natureza e sujeito. Pelo contrário, é preciso partir da estrutura
particular dos fenômenos a que se refere tal opinião, para compreender como foi
possível conceber a noção de psicologia social – embora, evidentemente, a vida da
alma se limite aos seres individuais.
A evolução da linguagem e do Estado, do direito e da religião, dos costumes e
das formas universais do espírito vai muito além dos limites da alma individual. Os
indivíduos até podem ter relação com esses entes de razão, mas sem que o grau
variável da sua participação possa alterar o sentido ou a necessidade dessas
estruturas. Entretanto, como todas elas devem ter um produtor ou um sustentáculo
que não pode ser um indivíduo, parece não haver outra possibilidade que reconhecer
a qualidade de sujeito da sociedade, da unidade que se forma a partir dos indivíduos
602 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

e os supera. Eis uma esfera que a psicologia social poderá considerar seu objeto
privilegiado de estudo: aqueles objetos de indiscutida natureza espiritual da
sociedade e que, ainda assim, não dependem dos indivíduos, de modo que a menos
que tenham caído do céu, só podem ter por criador e suporte a sociedade, esse ente
ideal que está além dos indivíduos. Esse é o ponto de vista a partir do qual se falou
de alma do povo, de consciência da sociedade, ou de espírito da época como se
fossem forças reais e profícuas. Vamos suprimir esse misticismo que pretende situar
certos processos espirituais fora das almas – sempre individuais. Preferimos
distinguir entre os processos espirituais concretos (nos que surgem e têm lugar o
direito e o costume, a linguagem e a cultura, a religião e as formas de vida), e os
conteúdos ideais desses mesmos processos, pensados em si mesmos. Do
vocabulário e das formas sintáticas da língua que encontramos nos dicionários e nas
gramáticas, das normas jurídicas contidas nos códigos, do conteúdo dogmático da
religião, pode-se dizer que vigoram – embora não no sentido supra-histórico em que
“vigoram” as leis naturas e as normas da lógica –, que possuem dignidade própria,
independentemente de seu cumprimento pelos indivíduos em cada caso concreto.
Essa vigência de seu conteúdo não é, todavia, uma existência espiritual que requeira
um suporte empírico, como também o teorema de Pitágoras 67 não precisa desse
esteio – tendo em conta a diferença expressada. É evidente que esse teorema tem
também uma natureza espiritual que não aparece no triângulo físico, porque
expressa uma relação entre seus lados que no encontramos na existência concreta
de nenhum deles. Por outro lado, essa imaterialidade do teorema pitagórico também
não se confunde com o fato de ser pensado por almas individuais, já que sua vigência
independe totalmente do fato de ser aceito ou não – da mesma maneira que a língua,
as normas jurídicas, os imperativos morais e as formas culturais conservam seu
conteúdo e sentido, com total independência da perfeição ou defeito, frequência ou
raridade com que apareçam nas consciências empíricas. Eis aqui uma categoria
particular que, certamente, só se concretiza na história, mas que, na realidade e
plenitude de seus conteúdos, ainda que pareça demandar um criador e um

67
O teorema de Pitágoras é uma relação matemática entre os comprimentos dos lados dos triângulos
retângulos. Na geometria euclidiana o teorema afirma que: ”em qualquer triângulo retângulo, o
quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos
catetos”. (NT)
Georg Simmel | 603

sustentáculo supraindividual, não existe historicamente, senão apenas no mundo


das ideias – enquanto a realidade psicológica somente cria ou veicula fragmentos,
ou apresenta esses conteúdos como meros conceitos. A origem empírica das
diversas partes e formas da linguagem, bem como a sua aplicação prática em cada
caso específico, a eficácia do direito como técnica motivacional da conduta de
comerciantes, delinquentes e juízes, o grau e a maneira em que se transmitem os
conteúdos culturais de um indivíduo para outro e transformam seus respectivos
ambientes são questões que interessam exclusivamente à psicologia individual,
embora se deva reconhecer que ela não é ainda capaz fornecer soluções definitivas.
No entanto, se ignoramos os processos da sua realização pelo indivíduo, a língua, o
direito e os fatos de cultura também não podem ser atribuídos a um hipotético
“espírito da sociedade”, porque se há alternativa a alma individual para criação e
suporte espiritual deles, a possibilidade de optar por certa alma social revelou-se
ontologicamente falsa. Há um terceiro termo, porém: o conteúdo espiritual objetivo
– que não é mais psicológico do que o seria o sentido lógico de um juízo, embora só
possa alcançar realidade nas consciências, dentro da dinâmica da alma e por meio
dela.
Ora, a dificuldade (dificilmente remediável) de apreender inteiramente esses
processos de criação e recriação espiritual incita a reunir tais ações psíquicas
individuais em uma massa indiferenciada que se torna assim o suporte daqueles
fenômenos espirituais de origem tão obscura. Na realidade, essa origem está na
psicologia individual, só que em vez de ter uma origem unitária, é preciso que
inúmeras entidades espirituais ajam reciprocamente. E vice-versa: se se quer
considerar tal pluralidade como uma única unidade, aqueles fenômenos não têm
origem alguma, e se reduzem a um conteúdo ideal da mesma maneira que o teorema
de Pitágoras não tem origem quanto ao seu conteúdo. Por isso, tratá-los como
fenômenos espirituais unitários, abstraindo sua realidade contingente e parcial nas
almas individuais, leva a colocar de forma totalmente errônea a questão de seu
suporte psíquico – que só recupera algum sentido depois de tê-los convertido em
conceitos dentro dos espíritos dos indivíduos, como agora, quando falamos deles.
Todavia, as razões que parecem impor a ideia de um espírito social autônomo
(que se diferenciaria do espírito dos indivíduos) não agem apenas quando entidades
604 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

espirituais objetivas (os entes de razão) se oferecem como um patrimônio ideal


comum, mas também quando a ação direta e sensível de uma massa integra os
modos de comportamento dos indivíduos, formando com eles um fenômeno
específico que não pode descompor-se em diversos atos individuais. Aquelas razões
miram não tanto os comportamentos dos indivíduos que fazem parte da massa,
quanto ao resultado da sua ação, que aparece como um todo coerente e unitário.
Quando uma multidão destrói uma casa, pronuncia uma sentença, demonstra
publicamente sua insatisfação, as ações dos sujeitos individuais se adicionam para
produzir um fenômeno multiforme que concebemos como se fosse apenas um, como
a concretização de um único conceito. É aí que se produz a grande confusão. O
resultado exterior unitário de muitos processos espirituais subjetivos é percebido
como o desfecho de um processo espiritual único – como se houvesse sido um
processo que teve lugar em uma alma coletiva. A unidade do fenômeno resultante se
reflete na presumida unidade de sua causa psíquica. Salta à vista a falácia em que
essa conclusão se baseia – tanto mais grave quanto sobre ela repousa toda a
psicologia coletiva na sua diferença genérica em relação à psicologia individual. A
unidade das ações coletivas, que se configura apenas em termos de resultado final
visível, se desliza sub-repticiamente para o lado da causa interna, do suporte
subjetivo.
Há, porém, outra e final motivação que revelou um componente indispensável
em muitos dos contextos estudados aqui e que parece tornar vital a psicologia social
como complemento da psicologia individual. Referimo-nos às diferenças qualitativas
que existem entre os sentimentos, as ações e as representações dos indivíduos que
formam uma massa e os processos espirituais que se desenrolam, não dentro de
uma multidão, mas na alma individual. Inúmeras vezes, uma comissão adota
decisões completamente diferentes das que teria tomado cada um dos seus
membros individualmente considerados; o indivíduo circundado por uma multidão é
levado a cometer ações das quais se teria cuidadosamente abstido em outras
circunstâncias; uma massa suporta castigos e privações que nenhum dos seus
membros toleraria se incidissem unicamente sobre ele; a acima referida estupidez in
corpore provém de homens que, separadamente, são bastante lúcidos e razoáveis.
Pareceria que a aglomeração de indivíduos gera uma nova unidade específica que
Georg Simmel | 605

atua e reage de fato, nesses casos, de um modo qualitativamente diferente. Contudo,


se olharmos mais de perto, veremos que, em tais circunstâncias, trata-se do
comportamento de indivíduos influenciados pelo fato de estarem rodeados de outros
indivíduos. Nesse contexto, sua constituição espiritual está sujeita a um processo de
sugestão que se opera por meio de alterações nervosas, intelectuais, morais e
comunicativas, no curso do qual os indivíduos por adaptação mudam o
comportamento que teriam em outras situações em que tais influências não
operassem. Se esses estímulos, ao agirem reciprocamente, mudassem do mesmo
modo a atitude e julgamento de todos os membros do grupo, sua ação total seria, de
fato, distinta da ação de cada indivíduo se ele se encontrasse em isolamento. Não
nos passa despercebido que, para achar uma diferença qualitativa que fosse além
das pessoas, se compararam duas coisas colocadas em situações completamente
distintas, o comportamento do indivíduo quando está sob a influência dos outros e
quando não está influenciado por eles. Ora, mesmo quando a pessoa está sob a
influência de terceiros próximos no espaço, o que há de psíquico na ação individual
continua sendo algo individual (e nem por isso deixa de ser verdade que a ação total
está formada por contribuições exclusivamente individuais). O processo de sugestão
(quando existe) tem lugar na alma individual (do mesmo modo que toda outra
diferença de estados de ânimo e maneiras de obrar), e não nos obriga a localizar uma
das partes da antítese em uma nova entidade psíquica supraindividual. É certo que
subsiste o legítimo problema de saber que alterações o processo psíquico de um
indivíduo sofre quando o meio social exerce sobre ele determinadas influências. No
entanto, essa é uma questão que deve ser respondida pela psicologia geral, que
– verdadeiro truísmo – é uma psicologia do indivíduo. Como subdivisão dessa última
disciplina, a psicologia social, que estuda a determinação dos processos espirituais
por sua relação com outras almas, pode considerar-se análoga à psicologia
fisiológica, que estuda tal determinação por sua relação com os corpos.
Essa influência da sociação sobre o espírito – único objeto da psicologia
social, embora tenha vasta extensão – dá certa legitimidade ao uso desse conceito
em um tipo de problemas que, em si e por si mesmos, só se relacionam
tangencialmente com o assunto sobre o qual versa a disciplina em questão.
Referimo-nos a questões de índole estatística e a matérias de caráter etnológico – na
606 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

falta de um termo melhor. No âmbito de um grupo, quando um fenômeno psíquico se


repete regularmente em um segmento do conjunto, ou quando outro fato ou evento
(como um traço distintivo ou caráter) distinguem todo o grupo, ou ao menos a sua
maioria, costuma-se falar de fenômenos psicossociológicos ou sociológicos tout
court. Isso não basta para justificar o uso desses termos. Quando em determinada
época todos os anos contam-se n suicídios por m óbitos, essa relação, mesmo que
seja verdadeira, só é possível porque o observador registrou uma aproximação que
considerou significativa entre os dois fatos. É certo que as situações sociais podem
agir como elementos geradores do fato individual ou contribuir a seu sucedimento,
mas não é necessário que isso deveras aconteça, já que a causalidade pode muito
bem ser puramente pessoal e interna. Do mesmo modo, as qualidades espirituais
médias de um grupo – definidas pela nacionalidade, a posição social ou outra
circunstância em que se achem seus integrantes – podem ser fenômenos
exclusivamente paralelos que remontem a uma origem comum, mas que não
resultam da vida social. As denominações frequentemente atribuídas a tais
fenômenos provêm da confusão entre coexistência e participação. Esses fatos ou
eventos só podem ser descritos e explicados cientificamente como sociológicos a
partir do momento em que seus sujeitos criem relações de interdependência ou
estabeleçam contatos e interações recíprocas (o que naturalmente exclui conteúdos
morfologicamente iguais em ambos os lados); e unicamente poderão ser
considerados psicossociais na medida em que a manifestação em um indivíduo
fosse produzida por outros indivíduos. Todavia, as coisas nem sempre funcionam
assim. Se o fenômeno de que se trata só se manifestasse na experiência aos sentidos
de um só indivíduo, ele não poderia ser qualificado nem de sociológico, nem de
psicossocial, apesar de esse fenômeno aparecer com as mesmas causas e ter sido
produzido da mesma maneira que outro ou centenas de milhares de outros
fenômenos coexistentes no mesmo grupo. A simples multiplicação de um fenômeno,
cuja existência se comprova em pessoas individualmente consideradas, não basta
para convertê-lo em sociológico ou psicossocial – embora essa confusão entre uma
similitude repetida numerosas vezes e uma correlação dinâmica funcional seja uma
maneira muito estendida de pensar.
Georg Simmel | 607

Algo de análogo acontece com o tipo que chamamos de etnológico. Referimo-


nos àquele no qual a impossibilidade de observar a peculiaridade das séries de
acontecimentos individuais, ou a falta de interesse por essa característica distintiva,
não permite reconhecer mais do que uma média, uma determinação geral das
disposições ou processos psíquicos em determinado grupo. Isso também acontece
quando, por exemplo, se quer saber como “os gregos” se comportaram na batalha de
Maratona 68 . Nesse caso não se pretende de certo conhecer, mesmo que fosse
possível, o processo espiritual de cada um dos guerreiros gregos. Cria-se,
contrariamente, um ente conceitual muito particular: o grego meio, o tipo do grego,
“o grego” sem mais – construção ideal, surgida indubitavelmente das necessidades
do conhecimento, que não visa encontrar uma correspondência exata em nenhum
dos indivíduos gregos concretos. Contudo, o verdadeiro sentido dessa categoria de
conceito não é sociológico, uma vez que seu objeto não é nem a ação recíproca, nem
alguma relação de interdependência, nem a unidade funcional da multidão. O que
visa é nada mais, nada menos, do que pormenorizar “o grego” (ainda que não
possamos individualizá-lo), descrevendo um estado de espírito e a ação da simples
adição dos guerreiros atenienses de Milcíades, projetada sobre uma média ideal
– que não é um indivíduo concreto, mas apenas um “tipo ideal de grego”.
Todos esses casos, em que se trata de uma soma de indivíduos cuja similitude
permite revelar um tipo, uma média, uma imagem unitária são considerados de
natureza psicossocial, já que tal semelhança não pode acontecer sem uma influência
recíproca – apesar de que em tais casos os fatos sociais, do mesmo modo que os
fatores fisiológicos ou religiosos, são importantes apenas como fatores do
conhecimento do indivíduo. O objeto de estudo é, aliás, sempre o indivíduo
psicológico: o grupo como um todo não pode ter uma “alma”, mesmo nessas
categorias de observação. No entanto, a correspondência de muitos indivíduos com
outros elementos semelhantes pressupostos por tal categoria só se produz

68
A batalha de Maratona foi uma das mais famosas da Antiguidade. Opôs em 490 a.C. (na praia que
lhe deu nome, costa leste da Ática, perto de Atenas) uma expedição persa aos hoplitas atenienses e
plateanos que obtiveram a vitória, e puseram assim fim a primeira Guerra Médica. Essa batalha teve
um papel político importante, afirmando o modelo democrático ateniense e dando asas,
simultaneamente, aos projetos de poder de certos líderes militares atenienses, como Milcíades e
Aristides. (NT)
608 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

geralmente por sua ação recíproca (com seu correlato de semelhança, de influências
idênticas, de fins utilitários comuns) e pertence, portanto, ao âmbito da psicologia
social, que aqui, mais uma vez, revela ser não uma disciplina paralela à psicologia
individual, mas uma subdivisão dela69.
As circunstâncias indicadas contribuem para que uma sociedade que não
construiu os órgãos apropriados fique exposta às influências dissociadoras e
destrutivas que toda estrutura social gera no seu próprio âmbito. Um dos fatores que
concorrem decisivamente para esse resultado são as personalidades que têm um
efeito antissocial e destrutivo – notadamente quando em face de determinada forma
social, se dedicarem, no geral, inteiramente a essa luta, ainda que apenas
indiretamente. A esse completo empenho das forças engajadas na vitória da sua
causa deletéria é preciso opor também o conjunto das energias das pessoas
comprometidas na defesa da ordem existente. A experiência ensina, porém, que as
forças específicas que personalidades decididas podem mobilizar, através de sua
participação ativa em assuntos e circunstâncias de relevância política e social,
dificilmente podem ser neutralizadas pela soma das energias parciais de muitos
indivíduos. Por isso, a autopreservação social precisa constituir órgãos, sobretudo
perante poderes individuais fortes, que embora não ajam como potências destrutivas
e socialmente negativas, tentam submeter o grupo. Se as diversas confissões
protestantes se mostraram impotentes em face dos príncipes e não puderam (da
mesma maneira que a Igreja católica) preservar sua soberania como instituições
sociais, isso se deveu – a nosso ver – em grande parte a que o princípio radicalmente
individualista sobre o qual se fundaram (a fé pessoal do fiél) não lhes permitiu
constituir o espírito objetivo supraindividual que a Igreja católica soube visibilizar
– não só pela sólida organização de sua hierarquia (cuja cabeça pessoal era uma
alternativa real ao poder dos monarcas), senão pelas ordens religiosas, que com
admirável sapiência harmonizaram o rigor e a teologia da coesão eclesial com a
grande variedade de suas relações com o mundo profano (perante o qual seus
integrantes apareciam como ideais exemplos de santidade, confessores,

69
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “psicologia social”. Doravante
Simmel retoma a sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente dos “órgãos” e
das ”formas rígidas de autopreservação”. (NT)
Georg Simmel | 609

predicadores e mendicantes). Um exército de frades, que por voto de pobreza


dependia da caridade alheia, era um órgão da Igreja contra o qual um príncipe
dificilmente lutaria, e em face do qual as confissões protestantes mal podiam
arregimentar algo parecido. Uma carência semelhante de órgãos foi também fatal no
caso que serviu, precisamente, para abrir o presente capítulo: o das primitivas guildas
germânicas de artesãos. Essas corporações não tinham força suficiente para
enfrentar as personalidades senhoriais fortes que, na Idade Média e depois dela,
surgiram entre os príncipes territoriais70 e os imperiais – e foram destruídas porque
careciam daquilo que só os órgãos (conduzidos por energias individuais) podiam
garantir a uma associação: rapidez nas decisões, mobilização dos recursos e a
suprema faculdade de compreender (que só os indivíduos possuem e que motivam a
vontade de poder ou o sentido de responsabilidade). Haveriam necessitado do
“funcionário” (no sentido mais amplo da palavra), cuja natureza sociológica consiste
em representar a “posição social” sob a forma da inteligência e do raciocínio
individual.
Esse distanciamento racional do órgão a respeito do grupo, na sua ação
imediata, vai tão longe que (quando se trata de funcionários cujas atividades se
caracterizam pela responsabilidade direta, a mobilidade e a decisão sumária) não é
recomendável confiar a sua eleição à comunidade, mas recorrer à nomeação pelo
governo. A totalidade do grupo congregado carece da objetividade necessária para
fazer uma boa escolha, na espécie – porque qualquer que seja o modo de eleição, um
partido sempre decide por uma soma de vontades subjetivas. Quando, na Inglaterra
do século XIV, ficou evidente que os procedimentos judiciais a serem executados e
cumpridos em sede comunitária para a solução das (cada vez mais complexas)
funções de polícia, deviam ser confiados a funcionários especialmente designados
(aos poucos convertidos em “juízes de paz”), os diversos estamentos71 reivindicaram
o controle de seu recrutamento. No entanto, suas petições restaram indeferidas

70
Entre 1212 e 1250, no Sacro Império germânico, concederam-se grandes poderes soberanos a
príncipes seculares e eclesiásticos, o que fez surgir estados territoriais independentes. Daí a
denominação de “príncipes territoriais”, (por oposição aos “príncipes imperiais” ou do Sacro Império)
para identificar a sua nobreza. Após a Paz de Vestefália (1648) que terminou com a Guerra dos Trinta
anos, o poder dos príncipes territoriais aumentou, em detrimento da autoridade imperial central.
71
Principais categorias sociais em que estava dividida a sociedade feudal: nobres, eclesiásticos e
burgueses. (NT)
610 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– com razão, a julgar pelas consequências. Foi a começos do parlamentarismo que


se estabeleceu como princípio intangível a provisão de todas as funções judiciárias
por nomeação e não por eleição. Exatamente por isso a Coroa inglesa, desde muito
cedo, pagou os proventos dos juízes superiores, e rejeitou a proposta apresentada
pelo Parlamento de tomar para si esse encargo. A nomeação dos magistrados eleva
à segunda potência o caráter de órgão do corpo de juízes e reflete o desenvolvimento
global do processo civilizatório – no quadro do qual os objetivos dos homens são
alcançados por um conjunto de meios cada vez mais complexo, que no entanto
permitem que os fins sejam conquistados com mais segurança e maior amplidão do
que pelo imediatismo do método primitivo.
Por outro lado, a autopreservação do grupo depende também de que o órgão
assim diferenciado não obtenha uma autonomia absoluta. É preciso manter viva a
ideia (embora nem sempre consciente e explicitamente) de que se trata apenas de
uma abstração encarnada (no órgão) das ações recíprocas que se verificam no grupo,
ações que, em última instância, constituem a base – e cujas energias latentes,
evoluções e finalidades adquirem nos órgãos forma prática, potência e
enriquecimento graças à ação específica da individualidade. O órgão não deve
esquecer que a sua independência só tem que servir a sua dependência, e que a sua
natureza de fim em si mesmo, não é de fato mais que um meio. Assim, pode acontecer
que a função do órgão seja desempenhada perfeitamente sob vários pontos de vista
quando não preenche a vida do funcionário e conserva o caráter de uma função
secundária. Os primeiros bispos eram leigos e detinham essa posição na
comunidade a título honorário. No entanto, por causa disso podiam exercer suas
funções de um modo mais virtuoso e menos secularizado que ao se tornarem mais
tarde um múnus diferenciado. Porque desde então foi inevitável que as formas
profissionais, criadas para os funcionários profanos, se aplicassem também aos
eclesiásticos – começando assim a conviver as funções estritamente religiosas com
os interesses econômicos, as articulações hierárquicas, a sede de poder e as
relações com o século. Na mesma medida em que a função secundária conserva uma
objetividade mais autêntica do papel a desempenhar, a ocupação principal pode
acarretar consequências materiais e sociológicas alheias ao objeto. Assim, o
diletante amiúde se dedica à arte com mais desprendimento e entrega do que o
Georg Simmel | 611

profissional que deve viver também dele; da mesma maneira que a dimensão erótica
do amor dos amantes é mais arrebatadora que a do amor conjugal.
Essa não é entretanto mais que uma forma excepcional que deve servir como
alerta para advertir que um órgão independente e que se afasta da vida em comum
do grupo pode transformar seu efeito de preservação em efeito de destruição.
Propomos dois tipos de explicação para confirmar as considerações acima expostas.
Em primeiro lugar, quando o órgão ganha vida própria, e fica forte demais para o
grupo (ao ponto de seu valor não estar mais ligado ao seu grau de utilidade para essa
coletividade, mas ao que ele é em si mesmo), sua preservação pode entrar em conflito
com a perenidade do conjunto a que deveria servir. A burocracia é um caso quase
sempre inofensivo, mas que precisamente por isso representa muito bem esse tipo
de problema. A burocracia, organização formal para gerir uma administração
estendida, desenvolve no seu seio uma esquematização cega que frequentemente
entra em rota de colisão com as necessidades variáveis da vida social prática. De um
lado, porque a técnica escriturária e minuciosa dos trabalhos de gerência dos
negócios públicos ou privados não foi concebida para solucionar os problemas muito
individualizados e complexos que devem ser resolvidos pelos funcionários
intervenientes; e de outro lado, porque o tempo que a máquina burocrática precisa
para funcionar está amiúde em gritante contradição com a urgência do caso
particular. Quando uma entidade que funciona com essas deficiências esquece seu
papel de simples órgão ancilar e se comporta como se ela fosse o fim em si da sua
existência, a distância entre as suas formas de vida e aquelas da comunidade irá,
muito simplesmente, crescer até prejudicar o grupo total, e tornar incompatíveis,
assim, tanto a sua autopreservação, como a perenidade do órgão. Poder-se-ia
comparar, desse ponto de vista, a esquematização burocrática com a da lógica – que
mantém com o conhecimento da realidade o mesmo tipo de relação que a burocracia
mantém com a administração das grandes corporações estatais ou privadas. É uma
forma ou instrumento indispensável para o vínculo orgânico com os conteúdos que
deve configurar, mas é nesses conteúdos que residem todo o seu sentido e toda a
sua finalidade. Quando, ao contrario, a lógica se ergue em conhecimento autônomo
e pretende edificar sobre seus próprios fundamentos um saber completo (ignorando
os conteúdos reais, dos quais é apenas a forma), ela se constrói um mundo que
612 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

geralmente está muito distante do real. Na sua abstração (a respeito de uma ciência
particular), as formas lógicas são um mero órgão do conhecimento acabado das
coisas. A partir do momento em que elas se abstêm de desempenhar esse papel,
aspiram a uma autossuficiência completa e se acham o fim do conhecimento (e não
um simples meio dele), tais formas se convertem, para a conservação, a extensão e
a coesão do conjunto do saber, em um empecilho do mesmo tipo do que a
esquematização burocrática representa para o conjunto dos interesses do grupo. O
colegiado (Magistrat) criado pelo antigo sistema prussiano de administração local72
(Städteordnung) era de fato menos coerente, competente e circunspecto que os
atuais burocratas de carreira, mas exatamente por isso estava mais pronto a perdoar
e ser compassivo, mais disposto a levar em conta a pessoa do administrado e a
admitir a exceção que podia ser de seu interesse perante a regra inexorável. Nesse
sistema, a função abstrata do Estado ainda não tinha atingido o grau de objetividade
(e de empáfia) que a burocracia lhe confere hoje.
Nem o próprio direito é alheio a essa estrutura sociológica. O direito não é mais
do que a forma das relações recíprocas dos membros do grupo consideradas como
as mais necessárias para a preservação desse conjunto. Não basta por si só para
assegurar a sua perenidade e muito menos para garantir o progresso da sociedade,
mas é o mínimo que se deve preservar como fundamento da existência do grupo. Os
órgãos constituídos nesse caso são de dois tipos. Por um lado, “o direito”, quer dizer,
a forma e a norma abstraídas das ações exigidas de fato e que, no geral, realmente
se cumprem. Esse “direito” se diferencia das mencionadas ações, adquire coesão e
completude lógicas, e se torna, assim, uma norma de ação, um órgão ideal que se
ergue imperativo em face do agir real. Por outro lado, esse órgão ideal que serve à
preservação do grupo ainda precisa de um órgão concreto eficaz contra as infrações.
E como, por razões técnicas, se desfez aquela unidade primitiva em que o pater
familias ou o grupo reunido em assembleia fazia justiça, eis que se torna necessário

72
O “sistema de administração local” (Städteordnung) prussiano mencionado por Simmel foi adotado
em 1808 como resultado da ação reformadora do Barão vom Stein. De acordo as suas prescrições as
cidades deviam ser dirigidas por duas instâncias: uma assembleia comunal e um colegiado composto
por personalidade eleitas por essa assembleia – que representava a todos os habitantes da cidade.
Ainda que não existisse uma clara divisão de competências entre essas duas instâncias, de fato o
colegiado (Magistrat) se encarregava da execução das decisões da assembleia. (NT)
Georg Simmel | 613

um estamento, um corpo social diferenciado, para assegurar a manutenção daquelas


normas nas relações dos elementos do grupo. Contudo, por racionais e
indispensáveis que sejam a evocada abstração das relações do grupo em um
sistema logicamente fechado de leis, como a encarnação de seu conteúdo em um
corpo de juízes, ambos os órgãos levam inevitavelmente consigo o perigo de que a
perenidade e coesão interna dessas estruturas esteja, por vezes, em contradição com
as relações e necessidades reais do grupo. O direito, pela coesão lógica de sua
estrutura e a dignidade de seu órgão de aplicação, não só adquire certa autonomia
efetiva (muito necessária para cumprir a sua finalidade), mas se concede a si próprio
– em virtude de um círculo vicioso – o direito a uma autopreservação absoluta, acima
de qualquer outra consideração. E como, por vezes, a situação particular do grupo
exige outras condições para a sua preservação, deparamo-nos com o caso hipotético
bem resumido nas frases fiat justitia, pereat mundus e summum jus, summa injuria73.
É verdade que, através da margem de manobra que se confere ao juiz para interpretar
a lei, procura-se conseguir a flexibilidade e adaptação ao caso singular, que “o
direito” e o corpo de juízes que o aplica devem ter em virtude da sua natureza de
simples órgãos do grupo total. Isso não impede que as exigências de preservação
dos órgãos (“o direito” e a magistratura) colidam na fronteira de tal margem com a
necessidade de autopreservação do grupo – problemas que aqui só serviram como
exemplo do fato de que, justamente a solidez e autonomia (que o grupo deve garantir
aos seus órgãos para acautelar a sua própria preservação), podem apagar a mesma
organicidade funcional dos órgãos. Desse modo, “o direito” e o corpo de magistrados
passam a comportar-se como se fossem unidades independentes, tornando-se um
estorvo para o conjunto do grupo total. Nos casos da burocracia, da magistratura e
do formalismo do direito, esse acesso do órgão ao estatuto de instituição soberana
é ainda mais perigoso porque tem a aparência enganosa de ser benéfica para o
conjunto. Tal é a tragédia de toda sociedade evoluída que, para cumprir seus próprios
(e egoístas) fins coletivos, se vê obrigada a dotar os seus órgãos de uma autonomia
que, frequentemente, age logo contra esses mesmos fins.

73
Axiomas jurídicos latinos aparentemente contraditórios que, respectivamente, podem ser
traduzidos como: “que o mundo pereça, mas se faça justiça” e “suma justiça, suma injustiça”;
querendo significar que “razão alguma deve impedir que se faça justiça”, mas que ‘”da aplicação
excessivamente rigorosa da lei facilmente podem resultar injustiças”. (NT)
614 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Às vezes também se produz um fenômeno sociológico similar na posição do


exército como órgão da autopreservação do grupo total. Tal ocorre quando essa
força armada deve, por razões técnicas, ser um organismo – quer dizer, um conjunto
de elementos materiais ou ideais organizados e inter-relacionados que, para
conservar suas qualidades (em particular sua estreita coesão interna), precisa
diferenciar-se claramente dos outros grupos sociais por diversos meios, desde a
particular noção de honra do seu corpo de oficiais, até as singularidades da sua
vestimenta. Embora essa autonomia do exército seja transformada em unidade
específica de vida e concedida no interesse da coletividade, pode se tornar tão rígida
e absoluta que desvincule plenamente os militares do resto do grupo. Nesse caso, o
exército passa a ser uma espécie de Estado dentro do Estado, desconectado de suas
raízes, sem as quais os militares não podem, afinal de contas, receber nem orientação
nem energia. O moderno exército, baseado no alistamento obrigatório, procura
remediar esse perigo com o serviço temporal do povo todo, meio muito bem sucedido
de associar a autonomia das forças armadas a seu caráter de órgão.
Portanto, para a preservação do grupo é preciso que seus órgãos adquiram
certa autonomia em relação a ele e se dissociem da sua vida imediata. Porém, essa
autonomia precisa de limites muito estritos, especialmente no interesse dessa
mesma preservação do grupo, como pode se ver claramente no problema da duração
dos empregos ou das funções pessoais74. Mesmo que o emprego seja em princípio
“perene” (por ser expressão e consequência da perenidade do grupo ao qual se
encontra ligado como órgão), a autonomia de seu exercício real é de fato alterada
pela quantidade de tempo que for conservado por seu titular. Na digressão sobre os
cargos hereditários abordou-se o caso extremo das funções que duram ou estão
destinadas a durar a vida toda – porque, a herança dos cargos está precisamente a

74
Essa relação, da qual já falamos anteriormente, figura entre os temas que deverão ser abordados
em um estudo posterior acerca do papel que desempenham as determinações puramente temporais
na constituição e na vida das formas sociais. De que maneira as relações (das mais íntimas às mais
oficiais) se alteram em função de sua duração, sem necessidade de exercerem influência sobre
elementos exteriores; como uma relação recebe de antemão diversas formas e nuances de acordo
com o fato de ter sido prevista para durar um determinado período de tempo ou sempre; como o efeito
da limitação muda por completo conforme o final da relação, da instituição da nominação, etc., tenha
sido fixado previamente numa data precisa ou fica, ao contrário, indeterminado dependendo da
demissão, do enfraquecimento dos fatores de união, da alteração das circunstâncias ou das
condições externas – tudo isso deveria ser objeto de estudos detalhados. No capítulo dedicado ao
espaço encontram-se algumas observações sobre isso. (NS)
Georg Simmel | 615

prolongar a função individual para além da duração da vida da pessoa envolvida. Isso
implicava, no entanto, consequências contraditórias: algumas vezes a herança do
cargo conferia ao seu titular uma autonomia que lhe permitia agir livre de qualquer
influência dentro do Estado, e outras vezes o rebaixava a qualidade de beneficiário
de uma dignidade desprovida de conteúdo, meramente nominal. Ora, a duração do
emprego ou função pessoal tem a mesma dualidade nos efeitos. A função de xerife
tinha grande importância na Inglaterra medieval, mas a perdeu quando Eduardo III,
em 1338, dispôs que nenhum xerife permaneceria nas suas funções mais de um ano.
Ao contrário, os missi dominici 75 que foram na época de Carlos Magno um órgão
essencial do poder central para o governo das províncias, só eram nomeados por um
ano, mas perderam sua importância (e toda a instituição entrou em decadência)
quando, mais tarde, as nomeações se fizeram por tempo indeterminado. Parece
lógico supor que a longa duração ou a vitaliciedade do emprego possam acarretar
geralmente a sua emancipação, e consequentemente firmar a sua importância,
quando abrange um conjunto de tarefas regulares, que favoreçam uma rotina que só
pode proporcionar a experiência – e que está fora do alcance de quem muda amiúde
de emprego o função. Em compensação, quando uma função suscite desafios
sempre renovados e problemas imprevistos, diante da necessidade de tomar
decisões rápidas para responder com flexibilidade e consistência a condições e
requisitos incomuns, será conveniente transfundir sangue novo ao órgão, É que os
funcionários recém-chegados trazem amiúde ímpetos inovadores e não estão
expostos ao perigo de cair na rotina.
Tornar autônomos esses empregos, quando seus titulares mudam
frequentemente, não causará grandes prejuízos ao grupo. Pelo contrário, a regular
rotação dos funcionários que exerçam atividades públicas ou particulares muito
independentes e que requeiram um alto grau de responsabilidade serviu amiúde de
contrapeso e proteção contra os abusos ou mau uso do emprego para interesses

75
Os missi dominici eram os comissários imperiais responsáveis por supervisionar a administração
local no Sacro Império romano germânico. Existem semelhanças superficiais entre o missus
dominicus e o original romano que lhe serviu de modelo, o corretor, mas os missi, diferentemente dos
corretores, não eram enviados regularmente à mesma região. Os missi dominici eram sempre
nomeados em pares, um clérigo (bispo ou abade) e um leigo (conde ou duque), geralmente escolhidos
entre os membros da corte imperial, e distribuídos pelas unidades administrativas do império
(missiaticum) que tinham de visitar. (NT)
616 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

egoístas. Essa tendência se faz sentir com vivacidade na nomeação de funcionários


públicos nos Estados Unidos, por força das convicções democráticas que pretendem
manter a função pública na proximidade imediata da vida primária do grupo, ao
alcance do maior número possível de indivíduos. E como tais empregos são
preenchidos pelos partidários do presidente em exercício, a primeira consequência é
o aumento gradual e expressivo do número de aspirantes a ser satisfeito. A segunda
consequência (sob a influência da primeira e muito mais importante que ela) é o
efeito impediente que tudo isso tem na formação de uma burocracia que pudesse
assenhorear-se do Estado que, ao contrário, ela deve servir. As longas tradições das
burocracias fechadas, com seus conhecimentos crípticos e ritos processuais
estabelecidos, se opõem ao fato de que qualquer um possa ser chamado a ocupar,
diretamente, algum emprego público. Coisa que, não só contradiz o espírito
democrático que leva o estadunidense a julgar-se no fundo capaz de desempenhar
qualquer função, mas também cria condições para que o funcionário acredite ser um
ser superior que está acima da massa destituída de qualificações e de sua vida
inexpressiva – o que seria totalmente escandaloso para a maioria dos americanos.
Esse grupo acreditava – pelo menos até há poucos anos – que só conseguiria
preservar a sua forma específica conservando a relação constante de seus órgãos
com a massa e evitando, na medida do possível, a autonomia da função pública. Ora,
o verdadeiramente espantoso é que essa teleologia social se baseia justamente no
egoísmo extremado dos funcionários. O partido vitorioso reparte os cargos segundo
seu lema eleitoral explícito: “ao vencedor, os despojos”. Cada emprego é considerado
como uma posse, uma vantagem pessoal que, na maioria das vezes, nem sequer se
procura disfarçar com o pretexto falacioso do amor a uma causa ou do serviço à
sociedade. É precisamente assim que se pensa manter os funcionários como
servidores da coisa pública e prevenir a formação de burocracias autônomas! A
lealdade a uma causa ou o serviço do interesse permanente e objetivo da coletividade
requereriam uma posição dominante em relação aos indivíduos do grupo, porque
assim o órgão proviria da unidade supraindividual da coletividade. No entanto, o
democrata convicto não quer ser dominado, mesmo se for convenientemente
compensado por esse serviço. Não reconhece que a máxima: “sou seu chefe,
portanto tenho que servi-los”, pode ser invertida, e assim dizer: “queiro servi-los,
Georg Simmel | 617

portanto tenho que ser seu chefe”. Esse subjetivismo egoísta da convicção quanto
ao exercício da função, tolda o sentido e a orientação da pura objetividade,
indispensável para alcançar certa altura e perfeição dessa função, mas
simultaneamente evita o perigo de uma emancipação orgulhosa e burocrática do
órgão, relativamente à vida imediata do grupo total. E, na medida em que esse perigo
for mais ou menos ameaçador para a estrutura do grupo, ele favorecerá ou impedirá
que a função pública se constitua em um fim em si mesmo.
O segundo grupo de razões (que confirma a afirmação feita supra no sentido
de que “um órgão que se torna independente e se afasta da vida em comum do grupo
pode, por vezes, transformar seu efeito de preservação em efeito de destruição”) está
voltado para o fato de que não só a possibilidade de um antagonismo entre a parte e
o todo, entre o grupo e seus órgãos, deve pôr certos limites à autonomia destes
últimos, mas que isso é conveniente também para que, se necessário, a função
diferenciada possa voltar ao todo. A evolução da sociedade tem a característica
singular de a sua autopreservação exigir a reversão temporal ao todo de certos
órgãos já diferenciados. Não devemos imaginar qualquer tipo de analogia com o que
se passa em determinados órgãos animais na sequência das mudanças ocorridas
nas condições de vida como, por exemplo, a atrofia do aparelho visual em animais
que vivem constantemente em cavernas escuras. Nesses casos, é a própria função
que se tem tornado supérflua – é por essa razão que o órgão que desempenha tal
função está a definhar lentamente. Em compensação, nas evoluções sociais de que
estamos a falar, a função continua a ser indispensável – e quando ocorre a
insuficiência do órgão, a dita função tem que reverter as ações recíprocas que se
verificam entre os elementos primários do grupo. Em alguns casos, a estrutura do
grupo está disposta de antemão a uma alternativa desse tipo entre as funções
imediatas e as realizadas com um órgão de permeio. É o que acontece nas
sociedades por ações, cuja direção técnica compete ao conselho de administração,
apesar de a assembleia geral ter poderes para exonerar o conselho ou para impor-
lhe certas diretivas que esse órgão não teria assumido por si mesmo ou carecia das
incumbências necessárias para adotar. Esse é o caso, sobretudo, da superioridade
do parlamento sobre o gabinete ministerial no sistema de governo estritamente
parlamentarista. O governo inglês haure, agora e sempre, sua força do húmus
618 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nutriente do povo, de uma forma que já foi mais ou menos destilada no parlamento.
Formalmente, porém, as competências dessa assembleia poderiam acarretar toda a
espécie de inconvenientes para a autopreservação continuada do grupo
– notadamente porque suas intervenções e sua proeminência institucional podem
obstaculizar a resolução objetiva e coerente dos assuntos. Na Inglaterra, contudo,
esse risco é atenuado, em parte, pelo conservadorismo generalizado e, mormente,
pela diferença sutil entre os funcionários e os ramos da administração submetidos à
alçada imediata do parlamento, de um lado, e aqueles que gozam de uma autonomia
e continuidade relativas, por outro lado. Pequenas coletividades, que confiam a
gestão de seus assuntos a um birô ou comitê, estão habitualmente organizadas para
que seus órgãos restituam seus plenos poderes ao conjunto (por vontade própria ou
pela força dos acontecimentos) assim que se sentem incapazes de suportar o peso
das suas responsabilidades e funções. Toda revolução em que o governo é derrubado
por um grupo político e volta a confiar a legislação e administração à iniciativa
imediata dos seus elementos humanos pertence à formação sociológica em pauta.
É evidente que essa possibilidade de reversão ao todo de certos órgãos não é
efetível em todos os grupos. No caso de grupos muito amplos, ou que incluem
elementos de uma vida muito complexa, a recuperação da administração pelo próprio
grupo está pura e simplesmente descartada. Nessas situações, a constituição dos
órgãos ficou irreversível – pois mesmo quando surge um antagonismo irredutível
entre o grupo e seus órgãos, os membros do grupo não pensam em reassumir as
funções atribuídas aos órgãos, mas apenas substituir as pessoas que integram
essas entidades executivas por outros candidatos mais apropriados. Seja como for,
o processo de retorno das energias grupais, dos órgãos à sua fonte originária, se
processa ainda em casos de uma feitura sociológica transcendente, mesmo como
fase de transição antes da constituição de novos órgãos. O caso do episcopalismo
estadunidense 76 constitui um bom exemplo. Até fins do século XVIII, a Igreja

76
A Igreja episcopal é formada pelo conjunto de igrejas protestantes de governo episcopal em
comunhão com a Igreja de Inglaterra e por igrejas que não fazem parte da Comunhão anglicana, mas
se orientam no etos anglicano. O movimento como um todo é conhecido como episcopalismo e
originou diversas observâncias e denominações, principalmente pelas tensões geradas pela
combinação, por necessidades políticas, de uma doutrina originalmente calvinista, uma tradição
católica e um sistema de governo episcopal. Durante a Revolução Americana, o clero anglicano do
Norte intentou manter laços com a Sociedade inglesa para a propagação do evangelho e apoiar a
Georg Simmel | 619

episcopal da América do Norte sofreu gravemente com as consequências de não


possuir bispos, porque a Igreja anglicana da metrópole, única que podia consagrá-
los, se negava a fazê-lo por motivos políticos. Diante dessa carência e do perigo de
dissolução, as comunidades decidiram encontrar sozinhas a solução. Foi assim que
em 1784 elas enviaram delegações de leigos e sacerdotes que se reuniram e
constituíram em instância suprema, órgão central que assegurava a direção eclesial.
Um historiador da época descreve assim o episódio: “Nunca se tinha visto na história
do cristianismo um espetáculo tão estranho como essa necessidade que vários fiéis
sentiram de se curvar todos juntos diante de apenas um. Nos outros casos, foi a
unidade do episcopado compartilhado que manteve a união, já que todos os fiéis
pertenciam, visivelmente, à comunidade que o bispo presidente encabeçava” 77 . A
coesão interna dos fiéis, que até então tinha sempre residido em um órgão
representado pelo bispo (quer dizer, em um ser que estava alhures), reavia agora a
sua própria natureza. A ação recíproca direta dos elementos recuperava a força que
ela tinha atribuído antes a um terceiro, para recebê-la dele depois. Esse caso é
particularmente interessante porque a função de manter a coesão entre os membros
da Igreja era conferida ao bispo pela consagração, quer dizer, descia do Alto,
proveniente de uma fonte aparentemente independente de toda função sociológica
– e, no entanto foi substituída por um procedimento estritamente sociológico, que
revelou inequivocamente a natureza daquela fonte. Depois de tão longa e eficaz
diferenciação das suas forças sociológicas em um órgão, essas comunidades
souberam substituí-lo de novo por sua ação recíproca direta. Esse é um sintoma da
saúde extraordinária de sua vida religiosa e social. Muitas comunidades das mais
distintas classes sucumbiram porque a relação entre as suas forças sociais

Inglaterra, enquanto os do Sul tenderam a simpatizar mais com a Revolução. Para 1784, a maioria das
autoridades das comunidades religiosas que se reconheciam como episcopais acordou a necessidade
de redigir uma constituição vinculante para toda a igreja; revisar o Livro de orações comum para que
fosse apropriado para sua utilização na igreja episcopal estadunidense e obter a consagração de
bispos na Sucessão apostólica para dar a essa igreja a supervisão e o ministério episcopal adequados,
mas o direito canônico inglês impediu a consagração na metrópole de qualquer clérigo americano que
não prestasse juramento de lealdade à Coroa inglesa. (NT)
77
Esta citação pretence a Samuel Wilberforce, History of the Protestant Episcopal Church in America,
2a. ed., Nova Iorque, W. Hearned, 1846, p. 195-6. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “Never
had so strange a sight been seen before in Christendom, as this necessity of various members knitting
themselves together into one. In all other cases the unity of the common episcopate had held such
limbs together: every member had visibly belonged to the community of which the present bishop was
the head” (NT)
620 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

elementares e os órgãos nascidos desses grupos não era suficientemente dúctil para
que, em caso de desaparecimento ou de insuficiência desses órgãos, as funções
necessárias de autopreservação retornassem a sua fonte originária.
A constituição de órgãos diferenciados é um meio auxiliar essencial para a
autopreservação social: com ela, a estrutura da sociedade adquire um novo membro.
A questão ganha relevo quando o problema consiste em saber como o instinto de
autopreservação determina a vida do grupo do ponto de vista funcional. Podemos
dizer que saber se tal processo se desenrola em uma unidade indiferenciada ou em
órgãos especializados, é secundário nesse caso, porque do que sobretudo tratamos
aqui é da forma ou do tempo (ou ritmo) em que ocorrem os processos da vida
coletiva. E nesse ponto, duas possibilidades fundamentais se apresentam. O grupo
pode ser mantido, em primeiro lugar, pela melhor e mais bem sucedida conservação
de suas formas que possamos conseguir mediante a firmeza e rigidez delas – que
ofereceriam assim uma resistência substancial aos perigos que a espreitam, e
manteriam a relação de seus elementos ao longo de todas as eventuais mudanças
de seu contexto. No entanto, o grupo também pode ser mantido, em segundo lugar,
pela maior labilidade de suas formas para acompanhar com bom êxito a mudança
das condições exteriores – e assim manter-se em constante fluxo para adaptar-se a
toda transformação das circunstâncias. Essa dualidade de possibilidades decorre de
uma regra que preside o comportamento de todas as coisas e encontra
correspondência em todas as esferas possíveis, inclusive na física. Um corpo está
protegido contra o risco da sua destruição (por pressão, choque, ou golpe) quer pela
rigidez e coesão indestrutível de seus elementos, quer por sua flexibilidade e
elasticidade que, ainda sofrendo deformação, lhe permite retomar à forma original
– assim que a ação de tração, vergadura ou compressão se encerre. A
autopreservação do grupo também, seja por estabilidade ou por labilidade, está
vinculada à coerência de um ente que pode se manifestar de dois modos: o
percebemos como um porque se revela coeso perante as situações e os estímulos
mais variados, ou porque em qualquer circunstância se comporta da forma particular
que a ela corresponde – da mesma maneira que, se se muda um dos dois fatores de
um cálculo, essa operação tem de dar o mesmo resultado quando o outro fator muda
também da mesma maneira. Assim, consideraremos “coerente” um homem que
Georg Simmel | 621

perante todas as situações possíveis da vida, dá provas de uma sensibilidade e de


um ponto de vista estéticos, mas também àquele que reage esteticamente só quando
o objeto o justifica, ainda que reaja de outra maneira quando o objeto assim o exige.
E essa é, talvez, a maneira mais profunda de ser coerente, porque ter reações
diferenciadas quando essa variância corresponde àquela do objeto, é o sinal de uma
uniformidade mais inabalável no proceder do sujeito. Um homem nos parecerá
coerente quando uma vida de escravo o tenha levado a adotar um comportamento
obsequioso em todas as circunstâncias, mesmo nas que não se inserem no âmbito
da sua escravidão. Ele não é menos “coerente”, porém, quando se vinga da polidez
exagerada com que deve tratar seus senhores, brutalizando os inferiores. Em última
instância, o conservadorismo e a labilidade, como tendências sociológicas, não são
mais que variantes de tendências humanas muito mais abrangentes em termos de
conteúdo e substância – acaso o próprio Augusto não elogiou Catão, o Jovem com
o pretexto de que quem não quis mudar a organização do Estado era um homem de
bem e um bom cidadão?78 Vamos examinar de mais perto esses dois métodos de
autopreservação social.
A autopreservação por um método conservador parece ser adequada quando
a comunidade está constituída por elementos muito díspares, nos quais forem
constatados conflitos latentes ou declarados, de modo que haja perigo de o menor
impulso provocar uma intensa reação em qualquer sentido – e se deva evitar, a
qualquer preço, até medidas de grande utilidade e resultado positivo, se levam
consigo algum processo de mudança ou alteração das relações internas ou externas
do grupo. Por isso, um Estado muito complexo, que apenas se pode manter em
equilíbrio instável, como o Império austro-húngaro, será, no geral, muito conservador,
porque qualquer movimento poderia produzir um rompimento irreparável do

78
Marco Pórcio Catão Uticense, também conhecido como Catão, o Jovem (para se distinguir do seu
bisavô, Marco Pórcio Catão, o Velho, (95 a.C. — 46 a.C.) foi um político romano célebre pela sua
inflexibilidade e integridade moral. Partidário da filosofia estoica, era avesso a qualquer tipo de tirania.
Opunha-se, particularmente, a Julio César (sendo retratado por Salustio como a antítese desse
estadista). Sumamente eloquente, foi no entanto muito parco em suas críticas. (Segundo Plutarco,
quando um dos seus companheiros disse que as pessoas achariam defeito nele por seu silêncio,
respondeu-lhe que bastava que não culpassem a sua vida, e que ele começaria a falar quando não
fosse dizer o que era melhor que não fosse dito) Suicidou-se depois da vitória de Julio César na
batalha de Tapso. Quanto a Augusto, fundador do Império romano, sobrinho-neto de Julio César,
adotado e declarado seu herdeiro civil testamentário, também agiu como seu sucessor político. (NT)
622 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

equilíbrio. Essa consequência deriva amiúde da heterogeneidade dos elementos de


um grande grupo, desde que essa diversidade não conduza a uma colaboração ou
arranjo harmoniosos. O perigo para a manutenção do status quo social reside no fato
de que qualquer choque entre grupos adversários produzirá resultados
extremamente diversos nas diferentes camadas sociais do grupo – carregadas, aliás,
de energias absolutamente contrárias. Quanto menor é a harmonia interna entre os
elementos do grupo, mais provável será que todo novo estado de agitação dos
ânimos, toda nova comoção da consciência coletiva, todo novo motivo de tomar
decisões e evoluir, acentue ainda mais as divergências. Porque sempre há uma
infinidade de caminhos a seguir para afastar-se uns dos outros, mas frequentemente
existe um só que permite aproximar-se. Por mais útil que a mudança possa ser em
si mesma, sua ação sobre os elementos do grupo sublinhará vários aspectos
importantes da sua heterogeneidade, e ainda acentuará as tensões sociais, da
mesma maneira que a simples prolongação de linhas divergentes tornará mais claro
seu afastamento progressivo79. Nesses casos, somente um conservadorismo severo
e rígido, que permita evitar toda inovação e qualquer desvio fora do caminho até
então seguido poderia manter o grupo.
Aliás, para que essa conduta seja racional, basta que haja ampla divergência
entre os elementos do grupo, sem que seja necessário chegar a manifestações
abertas de agressividade. Quando as diferenças sociais são consideráveis, e não
estão atenuadas por uma gama de graus de transição, todo movimento repentino,
todo abalo da estrutura coletiva será muito mais perigoso que nos casos em que
existam camadas intermediárias. Isso porque, como o processo de mudança atinge
no início (exclusiva ou prioritariamente) apenas uma parte do grupo, a falta de

79
Se em uma sociedade ameaçada pelas reivindicações divergentes de seus elementos, uma guerra
exterior serve com frequência para preservar seu equilíbrio e reunir os elementos desgarrados do
Estado, essa é uma exceção aparente que, de fato, só confirma a regra. Porque a guerra lança mão
das energias que ainda compartilham, apesar de tudo, os elementos mais opostos da sociedade e faz
com que a consciência desses interesses vitais e fundamentais adquira tal relevo que, justamente à
raiz da comoção provocada pelo conflito bélico, tais energias percam aquilo que podia torná-las
socialmente nocivas: seu caráter divergente. Em compensação, quando não há energia suficiente para
ultrapassar os antagonismos que se arrastam indefinidamente entre os membros do grupo, a guerra
produz o efeito mencionado no texto principal. Quantas vezes a guerra deu o golpe de misericórdia a
Estados internamente desgovernados! Quantas vezes mesmo grupos apolíticos divididos por lutas
intestinas se viram na alternativa de esquecer seus rancores ou dar rédea larga a seu ressentimento!
(NS)
Georg Simmel | 623

mediações sociais o tornará muito mais radical e afetará subitamente até mesmo os
que não simpatizem com ele ou sejam totalmente alheios às transformações
decorrentes – enquanto a presença de diversos estratos sociais diferenciados
permitirá o desenvolvimento gradual das suas consequências ou da sua difusão.
Desta maneira, as classes médias desempenham o papel de molas ou amortecedores
que, em caso de brusca evolução, servem para reduzir e distribuir os impactos
inevitáveis na estrutura do conjunto. Daí provém o caráter liberal das sociedades com
classes médias desenvolvidas e influentes. E inversamente, em nenhuma parte é tão
necessário manter a todo o custo a paz social, a estabilidade e o caráter conservador
do grupo que nas comunidades em que está em jogo a perenidade de uma estrutura
social descontinua caracterizada por fortes diferenças internas. Constatamos, de
fato, que diante de enormes e irreconciliáveis oposições de classe, a paz e a
estabilidade das formas sociais reinam com maior facilidade do que nos casos de
aproximação, de mediação e de mistura entre os extremos da escala social. Nesses
últimos casos, a preservação do conjunto no status quo ante é muito mais compatível
com situações instáveis, recuos visíveis e tendências extremistas. As constituições
aristocráticas representam por isso o espaço político próprio do conservadorismo.
Entre os motivos dessa correlação, que tratamos mais adiante, um só nos diz respeito
por enquanto: as aristocracias criam as diferenças sociais mais acentuadas – mais
do que a monarquia, que amiúde tende ao nivelamento e só produz diferenças de
classe acentuadas quando se combina com o princípio aristocrático, coisa que não
se baseia em qualquer necessidade interna nem, muitas vezes, externa. Podemos
acrescentar que as constituições aristocráticas estão por natureza predispostas a
uma continuidade tranquila, porque não têm que se preocupar nem com as incertezas
da sucessão ao trono, nem com os estados de espírito das massas populares.
Essa relação entre a estabilidade da atitude social e a proporção das
diferenças sociais se revela também na direção oposta. Quando a autopreservação
do grupo resulta da estabilidade imposta do exterior pela força, dela se seguem,
muitas vezes, diferenças sociais acentuadas – como o demonstra a história da
servidão rural na Rússia. Sempre houve entre os eslavos orientais uma marcada
tendência para o nomadismo, reforçada pela extensão das terras onde aquele grupo
étnico vivia ou se movimentava. Com o correr do tempo, o despotismo dominante
624 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

não encontrou uma maneira melhor de garantir a exploração regular das terras que
privar os camponeses da sua liberdade de circulação, o que aconteceu em 1593, sob
o czar Teodoro I80. E uma vez que o camponês ficou ligado à gleba, foi perdendo
gradativamente as outras liberdades do passado – e a imobilidade obrigatória e
forçosa se tornou (como foi mais do que comum no resto da Europa) no instrumento
graças ao qual o proprietário fundiário pôde oprimi-lo cada vez mais. Aquela medida,
que originalmente era apenas provisória, fez do camponês afinal de contas um
simples semovente no rol dos bens de uma propriedade rural. Por conseguinte, o
instinto de autopreservação do grupo não só produz uma tendência à estabilidade
das formas de vida em caso de diferenças sociais acentuadas, mas também, quando
o dito instinto produz imperativamente tal estabilidade, podem decorrer dela
crescentes diferenças sociais, demonstrando o valor de regra da correlação em tela.
Outro caso em que a autopreservação do grupo alcança o mais alto grau de
estabilidade e rigidez de suas formas é o das estruturas obsoletas, cuja própria
existência não se justifica mais porque seus elementos se referem a outras relações
e formas de vida que têm deixado de existir. Desde o fim da Idade Média, as
corporações comunais germânicas, que viram a sua ação e os seus direitos
cerceados pelo crescente poder da administração central, substituíram a força vital
coesiva decorrente da importância de seu papel social, pela sua máscara e aparência
– que conseguiram manter graças a um derradeiro meio de autopreservação: sua
introversão ou estrito fechamento para o mundo exterior, a fim de impedir totalmente
o ingresso de novos membros. Qualquer aumento quantitativo de um grupo exige
determinadas mudanças e adaptações qualitativas, que não se podem realizar sem
quebrar a estrutura ultrapassada do conjunto. Em um capítulo anterior, vimos como
a forma social depende da determinação numérica de seus elementos: a estrutura
social apropriada para certo número de indivíduos deixa de sê-lo quando esse
número cresce. E o processo de transformação em uma nova comunidade requer a

80
Teodoro I (l557 – 1598) foi o czar da Rússia de 1584 até a sua morte. Era filho do czar Ivã, o Terrível
e da sua primeira esposa Anastásia Romanovna, que morreu quando o jovem príncipe tinha três anos.
Homem piedoso, Teodoro teve pouco interesse na política, e o país foi efetivamente administrado em
seu nome por Boris Godunov, o irmão de sua amada esposa Irina. Sua morte sem filhos extinguiu a
dinastia Rurique, permitindo que Boris Godunov se aproveitasse do vácuo político para ocupar o trono,
mas sua coroação contestada iniciou um período de distúrbios no território russo, conhecido
atualmente como o “Tempo de dificuldades”. (NT)
Georg Simmel | 625

assimilação e a reelaboração de novos elementos, bem como o consumo das


energias necessárias para esse fim. Energias das quais as estruturas que perderam
seu próprio sentido carecem, pois que precisam de todas as que ainda possam reunir
para defender a forma existente contra perigos internos e externos. Por conseguinte,
aquela estrita exclusão de novos membros – que reencontramos nas obsoletas
guildas de artesãos – significava, não apenas a estabilização do grupo (que se
limitava doravante aos membros existentes e a sua descendência), mas também se
furtava às mudanças estruturais necessárias a qualquer alargamento quantitativo do
grupo, que já não será capaz de assumir uma estrutura em processo de perda de sua
razão de ser. O instinto de autopreservação conduzirá então uma entidade dessa
espécie a adotar um conservadorismo rígido.para implementar as medidas
adequadas.
No geral, as entidades que não são competitivas tenderão a recorrer a esse
meio de preservação. É que, quanto mais flexível for uma forma, quanto mais estádios
percorram e melhor se adaptem a eles, mais ocasiões terão os concorrentes de lançar
ataques perigosos contra ela. Para sociedades e indivíduos, o estádio mais
vulnerável é a transição entre dois períodos de acomodação. Quem está em
movimento, não fica a cada momento tão coberto em todas as direções como quem
se mantém em uma posição estável de repouso. Por conseguinte, qualquer grupo que
se sinta inseguro em face dos seus concorrentes evitará, para favorecer a sua
preservação, toda labilidade ou evolução da sua forma, e viverá de acordo com o
princípio quieta non movere81. Esse rígido reflexo de isolamento será particularmente
apropriado quando a concorrência ainda não exista, mas se pretenda impedi-la,
porque o grupo não se sente com forças suficientes para afrontá-la. Em tais casos,
só medidas rigorosas de isolamento mantêm o status quo, porque a emergência de
novas interações ou relações de interdependência com o exterior introduziria o grupo
em um círculo ampliado no qual encontraria uma maior concorrência. Como veremos
em seguida, essa norma sociológica está (dissimuladamente) presente em medidas
de confessada índole técnica. É sabido que o papel-moeda não convertível tem, em
relação ao convertível, a particularidade de ter curso legal unicamente no território do

81
Locução latina que significa “não agitar o que está quieto” e pode traduzir-se em forma de provérbio
que aconselharia “não despertar ódios ou dissensões adormecidas”. (NT)
626 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

governo emissor e de não ser exportável. Tal é justamente a sua maior vantagem:
fica no país, está ali à disposição de todas as empresas e não entra nessa troca de
metais preciosos com outros países, em que, o crescimento relativo da massa
monetária e o decorrente aumento do preço das mercadorias favorecem a
importação de produtos estrangeiros e as transferências de numerário. A limitação
da circulação do dinheiro a seu país de origem constitui, assim, um meio de
preservação da forma social, protegendo-a da impiedosa concorrência dos
mercados mundiais. No entanto, um país economicamente próspero e com uma
dimensão que o torne capaz de lidar com qualquer concorrente, não precisaria desse
meio, nem teria que se preocupar com a instabilidade, com as mudanças e com o
aumento da interdependência recíproca com outros países – transformações que
muito provavelmente reforçariam a própria forma de vida.
Não se deve pensar, contudo, que os grupos relativamente pequenos procurem
sempre a sua perenidade na forma de estabilidade, enquanto os grandes o fariam
apenas sob a forma de labilidade. Não existem relações tão simples e definitivas
entre entidades e modos de comportamento dessa extensão, porque cada relação
abrange uma enorme quantidade de características ou especificações que fazem
parte das combinações recíprocas mais variadas. Os círculos maiores são
precisamente aqueles que exigem com mais clareza a estabilidade das suas
instituições, que os grupos mais reduzidos podem substituir por uma adaptação
rápida. Por exemplo, certa tendência dos sindicatos ingleses a mudar de tempos em
tempos a sede e a titularidade da sua administração central, fazendo-as suceder em
alternância entre os diferentes ramos regionais filiados, acabou por dar lugar à
estabilização da sua direção em um local determinado e na pessoa de indivíduos
previamente estabelecidos. O grande círculo pode adaptar-se a essa estabilidade de
suas instituições, porque seu tamanho deixa sempre espaço suficiente para
mudanças, divergências e adaptações segundo as épocas e as latitudes. Pode
mesmo dizer-se que o grande círculo acentua as duas tendências, da mesma
maneira que sublinha a generalização e a individuação, enquanto o pequeno círculo
apresenta uma ou outra, ou ambas de modo imperfeito.
Em psicologia individual, o fator essencial em que se encarna plenamente a
perenidade de uma relação, sob a forma da estabilidade, leva o nome de fidelidade.
Georg Simmel | 627

No entanto, como a sua significação sociológica está de tal modo na periferia do


objeto específico do capítulo em pauta, e o que a ela se refere está tão intimamente
relacionado com o que se encontra imediatamente depois, preferimos tratar dela em
uma digressão particular, onde estudaremos também o papel da gratidão para a
estrutura sociológica, ou melhor, como uma forma sociológica específica – pois a
gratidão impede (talvez de uma maneira mais especializada que a fidelidade) que se
desfaça uma relação depois de ela estar plenamente constituída, e age como uma
força graças a qual uma relação conserva seu status quo perante as inevitáveis
perturbações, tanto positivas como negativas.

Digressão sobre a fidelidade e a gratidão

A fidelidade figura entre os modos de comportamento universais que podem


ser importantes para as ações recíprocas mais heterogêneas – não só material, mas
também sociologicamente – que os homens estabelecem entre si. Tanto nas
relações de subordinação e de dominação como nas de parceria e coordenação, nas
de antagonismo coletivo contra um terceiro e nas de amizade coletiva, na família e
no Estado, no amor como na relação com o sindicato profissional, em todas essas
estruturas sociais, se as consideramos unicamente pelas suas características
sociológicas, a fidelidade – e a infidelidade – é importante como forma sociológica
de segunda ordem, como o suporte dos mais diversos tipos de relação que nascem
e perduram entre os elementos sociais. A fidelidade se comporta relativamente às
formas sociológicas que ela – material e sociologicamente – preserva como essas
formas o fazem relativamente aos motivos e conteúdos materiais da existência
social.
Sem o fenômeno a que chamamos fidelidade, a sociedade não poderia existir
nem mais um instante sob a forma que ela considerou mais apropriada em dado
momento. Os fatores que a preservam na sua forma atual (interesse dos elementos
sociais e sugestão, coerção e idealismo, hábito inconsciente e sentimento do dever,
amor e inércia), não poderiam evitar a fragmentação da sociedade, se o complemento
da fidelidade não fosse adicionado – embora seja impossível determinar a medida e
a importância desse fator em cada caso específico, porque a função, na prática, da
628 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

fidelidade é sempre a de substituir outro sentimento que raras vezes terá


desaparecido sem deixar algum rasto imponderável.
Devido a esse caráter complementar da fidelidade, expressões como “amor
fiel” podem induzir ao erro. Se o amor persiste em uma relação entre humanos, por
que seria sensato exigir a fidelidade como bônus? Se os indivíduos não estão unidos
desde o primeiro momento pela fidelidade, mas por essa disposição espiritual,
absolutamente primaria e autêntica, que é o amor, por que dez anos depois seria
necessário adicionar a fidelidade, para salvaguardar essa relação, uma vez que, de
acordo a nossa hipótese, esse amor continua a ser o mesmo dez anos depois e deve,
por si só, conservar a mesma força de união que em seus primeiros momentos? Se a
linguagem usual pretende apelidar o amor de fiel só porque é duradouro, não temos
nada contra, porque são apenas palavras. No entanto, é essencial registrar que existe
um estado espiritual (e sociológico) específico que prolonga a perenidade de um
vínculo mesmo depois de extintas as forças que o produziram – e que sobrevive a
essas forças com as mesmas virtudes sintéticas que elas tiveram. A esse estado da
alma não podemos dar-lhe outro nome que fidelidade, ainda que essa palavra tenha
também outro significado, radicalmente diferente: a perenidade das próprias forças
aglutinadoras. Poderíamos definir a fidelidade como a força de inércia da alma que a
mantém em um caminho uma vez que ela começou a transitar por ele, mesmo após
o impulso que a levou até lá ter desaparecido. É evidente que nos referimos aqui à
fidelidade como disposição puramente espiritual que age na interioridade do
indivíduo, e não como compromisso meramente externo – como o conceito jurídico
de fidelidade conjugal, que não tem um significado assertivo, mas simplesmente
coibente da infidelidade.
É muito importante, do ponto de vista sociológico, que muitas relações
persistam sem alterações na sua estrutura social, mesmo após o desaparecimento
do sentimento ou do impulso prático que estiveram na origem de sua primeira
aparição. A máxima, no geral irrefutável, segundo a qual é mais fácil destruir do que
criar não pode ser aplicada sem reservas a certas relações humanas. Certo é que a
gênese de uma relação requer um número de condições assertivas e coibentes e que
a falta de apenas um desses antecedentes pode resultar no bloqueio de todo o
processo de criação do vínculo. No entanto, a partir do momento em que a relação
Georg Simmel | 629

tomou forma, o desaparecimento posterior dessa condição imprescindível para o seu


nascimento, nem sempre acarreta a sua destruição. Assim, uma relação amorosa,
baseada na beleza corporal, pode muito bem sobreviver ao desaparecimento de tal
beleza, e à conversão em feiura. Diz-se dos Estados que só se preservam pelos
mesmos meios que foram fundados. Todavia, isso não é mais do que uma meia
verdade, que de maneira nenhuma pode ser considerada um princípio geral da
sociação. Ao contrário, o plexo de liames sociológicos, qualquer que tenha sido a sua
gênese, desenvolve uma força de preservação, uma resistência ou consistência de
formas, que independem dos motivos que deram origem a seu entrelaçamento. Sem
essa força de inércia que as sociações ganham uma vez que os atores sociais as
criam, a sociedade no seu conjunto entraria em colapso a qualquer momento ou
sofreria alterações inconcebíveis.
A preservação da forma de união se verifica psicologicamente por múltiplos e
diversos fatores, teóricos e práticos, assertivos e coibentes, entre os quais a
fidelidade representa o fator sentimental ou, melhor dizendo, a fidelidade é a
preservação (no sentido próprio da palavra) sob a forma de sentimento, a sua própria
projeção no nível do sentimento. O sentimento de fidelidade que nos ocupa (cuja
significação psíquica nos limitaremos a indicar, aceitemos ou não esse modo de
precisar seu sentido) pode ser definido a partir das seguintes considerações. Às
relações que se estabelecem entre os indivíduos, corresponde, nessas pessoas, um
sentimento específico (um interesse, um impulso) que diz respeito à respectiva
relação. Se tal relação se prolonga, nasce um sentimento em resposta da
prolongação (que reage em face dessa expansão na duração). Por outras palavras:
aqueles estados anímicos que criaram o vínculo se metamorfoseiam (muitas vezes,
ainda que não sempre) em uma forma peculiar que chamamos de fidelidade e que é
o coletor psicológico, a forma unitária ou total dos mais variados afetos, interesses e
motivos de aproximação, que (por distintos que sejam na sua origem) adquirem,
quando entram na forma da fidelidade, certa uniformidade que favorece o caráter
duradouro desse sentimento assumido com outrem. A fidelidade não é, por
consequência, aquilo a que geralmente se alude quando se diz “amor fiel” ou “fiel
adesão”, evocando quantitativamente certa duração de um sentimento já definido.
Contrariamente, em nossa opinião a fidelidade é um estado peculiar da alma, referido
630 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

à existência de uma relação específica, e independente dos sujeitos concretos que


sustentam com sua vontade o sentimento que dá conteúdo à dita relação. Essa
disposição anímica dos indivíduos, por muito diferentes que possam ser os graus da
sua manifestação, é uma das condições a priori da sociedade, daquelas que, ao
menos no que sabemos da sua existência, tornam possível à sociedade e que, apesar
de se manifestarem nos graus mais extremos, não podem descer ao ponto zero. O
homem absolutamente infiel, aquele para quem seria totalmente impossível passar
dos afetos geradores das relações humanas para esse outro sentimento específico
que visa perenizar tais relações, é um fenômeno inimaginável. Pode-se assim definir
a fidelidade como uma conclusão indutiva do sentimento. Em determinado momento,
existiu uma relação. Daí, o sentimento (fazendo uma formal analogia com a indução
teórica) extrai a consequência: “então tem que existir também em um momento
posterior”. E, do mesmo modo que na conclusão indutiva teórica não é preciso
estabelecer como fato o caso posterior (pois que a indução implica precisamente que
podemos nos poupar desse esforço), em muitos casos será o momento posterior que
não encontrará já a realidade do sentimento e do interesse – substituída por esse
estado da alma produzido pela indução, que chamamos de fidelidade.
Em muitas relações e vinculações que se estabelecem entre os homens deve
ser tido em conta (e é uma das bases da sociologia) que o mero costume de estar
junto, o simples fato de que essa relação continue e perdure, comporta aquela
conclusão indutiva do sentimento. E isso estende o conceito de fidelidade e implica
um aspecto muito importante: o estado sociológico extrínseco (a coexistência)
legitima (reconhece como próprios) certos sentimentos que lhe convém, ainda que
não existissem desde o início da vinculação e não tenham contribuído a seu
nascimento. O processo da fidelidade possibilita uma espécie de efeito retroativo.
Normalmente, os motivos psíquicos que criam uma relação permitem que nasça o
sentimento específico da fidelidade ou que eles mesmos se metamorfoseiem nele.
No entanto, a persistência de uma relação que nasceu por qualquer razão extrínseca
ou por algum motivo anímico que não correspondia ao verdadeiro sentido da união,
pode dar lugar ao aparecimento de uma fidelidade – convencional na sua origem,
mas que pode permitir o ulterior desenvolvimento de sentimentos profundos e
(retroativamente) adequados a essa relação, de maneira tal que acabem legitimando-
Georg Simmel | 631

a per subsequens matrimonium animarum82. O lugar-comum, que ouvimos muitas


vezes quando se fala de matrimônios de conveniência ou concertados sem que exista
vínculo sentimental ou físico entre os intervenientes, no sentido de que “o amor é
fruto do casamento”, nem sempre carece de fundamento. Uma vez que a persistência
da relação encontrou o seu correlato psicológico na fidelidade, esta última acabará
por ser seguida de seus afeitos, interesses sentimentais e meigas cumplicidades que,
em vez de encontrar seu lugar “lógico”, no início da relação, aparecerão como
resultado final – processo que não teria acontecido sem o elo intermédio da
fidelidade, sentimento capaz de facilitar a preservação da relação como tal. Da
mesma maneira que, na associação de ideias, logo que a representação B se vinculou
à representação A, esta última também age na direção inversa, de modo que, quando
se apresenta A, desperta na consciência a representação B; também por esse
processo a forma sociológica conduz, pelo caminho indicado, até o estado anterior
que lhe corresponde, apesar de que normalmente é esse estado que leva à forma. Na
França, em meados do século XIX, para minimizar o abandono de crianças confiadas
aos orfanatos, foi instituído o secours temporaire, auxílio pecuniário bastante
considerável, conferido pelos poderes públicos às mães solteiras que conservassem
os filhos sob os seus cuidados. Os promotores dessa ajuda defenderam a atribuição
de subsídios generosos, alegando que uma experiência abundante demonstrava que,
em quase todos os casos, quando se tinha conseguido manter por algum tempo o
filho junto a sua mãe, se prevenia todo perigo de abandono subsequente da criança.
Desse modo, se o sentimento natural da mãe (que deveria ser mais do que suficiente
para incentivá-la a conservar seu filho) nem sempre age eficazmente no início, se
pode conseguir por razões extrínsecas (como o pagamento dessas subvenções) reter
a criança em seu lar até que se desenvolva gradualmente o carinho maternal.
Essas considerações psicológicas parecem especialmente pertinentes no
caso de outros fenômenos espirituais como o abandono ou negação das próprias
ideias ou convicções. Nos renegados se observa uma típica fidelidade a seu novo
partido político, religioso ou outro, fidelidade que excede em zelo e convicção, coeter

82
Locução latina que significa literalmente: “pelo matrimônio ulterior das almas”. Aqui o autor alude
metaforicamente ao instituto jurídico da “legitimação”, através do qual os progenitores que tiveram
filhos fora do matrimônio podem reconhecer estes como próprios e havidos no casamento, graças à
sua legítima união celebrada ulteriormente – sob certas condições. (NT)
632 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

paribus, a dos elementos que pertencem a essa facção desde sempre. E isso pode
chegar a tal ponto que, em muitas ocasiões, as mais altas funções do Estado podem
ser reservadas aos estrangeiros, como ocorreu no Império otomano dos séculos XVI
e XVII, onde os nacionais estavam excluídos dos cargos de maior responsabilidade
na corte, que eram confiados exclusivamente aos jenízaros – quer dizer, aos cristãos
nascidos nessa fé que tinham renegado voluntariamente dela ou a filhos de cristãos
que foram tirados aos seus pais desde à infância e criados como turcos. Eles eram
os súditos mais fiéis e devotados. Essa particular fidelidade do renegado parece ser
fruto das circunstâncias nas quais ele entra na sua nova relação. Tais circunstâncias
agem no trânsfuga por mais tempo e de forma mais indelével que se as houvesse
vivido sem segundas intenções nem romper com crenças anteriores. Ainda que a
fidelidade seja a própria vida de relação refletida no sentimento, com independência
do eventual desaparecimento dos motivos que deram origem a essa relação, ela agirá
com maior energia e segurança quanto mais tempo se mantiverem vivos os motivos
iniciais e quanto menos provas de resistência se exijam à força da pura forma, quer
dizer, da relação enquanto tal. E isso vá acontecer de um modo muito especial, no
caso do renegado, pela clara consciência que ele tem de que não pode retroceder, e
também porque (como se nele se desenvolvesse uma aguda sensibilidade às
diferenças) a relação anterior, da qual se separou, continua a ser o pano de fundo da
relação atual. É como se o renegado sempre fosse repelido pela velha crença e
atraído uma vez mais pela nova relação. A fidelidade do renegado tem uma força tão
grande porque ela conserva ainda aquilo de que a fidelidade pode prescindir: a
persistência consciente dos motivos que deram origem à relação – persistência que
se amalgama aqui à força meramente formal dessa relação de um modo mais sólido
que naqueles casos que não têm um passado contraditório que impede qualquer
volta à primitiva relação.
A mera estrutura conceitual da fidelidade ilustra que se trata de um sentimento
sociológico – ou sociologicamente orientado. Outros sentimentos, embora vinculem
estreitamente os homens entre si, têm, apesar de tudo, um caráter mais inteiramente
centrado no mesmo sujeito. Inclusive o amor ou a amizade, o patriotismo ou a
solidariedade social consistem em um sentimento ou emoção que ocorre e persiste
no próprio indivíduo, imanente a ele, como se revela claramente na apóstrofe de
Georg Simmel | 633

Philine: “Que te interessa, se te amo?” 83 . Nesses casos, apesar da sua enorme


importância sociológica, tais sentimentos são, antes de tudo, um estado psicológico
do sujeito. É certo que só aparecem graças à intervenção de outros indivíduos ou
grupos. No entanto, nascem antes mesmo que essa intervenção se houvesse
transformado em ação recíproca – ou, ao menos, não necessitam, embora se dirijam
a outros seres, que a relação com eles seja sua condição real ou conteúdo. Ora, esse
é o sentido da fidelidade – daquela que falamos, mesmo que na linguagem corrente
o termo tenha outros significados. ”Fidelidade” é a palavra justa para designar aquele
sentimento peculiar que não visa a nossa posse de outrem, como um bem
eudemonista daquele que o sente, nem ao bem-estar de outrem, como um valor
objetivamente contraposto ao sujeito do sentimento, mas diz respeito à manutenção
de nossa relação com outrem. A fidelidade não enceta esta relação e, portanto, não é
possível que seja pré-sociológica como todos os sentimentos que acabamos de
mencionar. Ela penetra e irriga a relação uma vez criada, ligando os elementos entre
si, como o outro lado da preservação da relação. Esse caráter especificamente
sociológico da fidelidade está talvez vinculado ao fato de ela ser mais acessível a
nossos propósitos morais que os outros sentimentos, que se abatem sobre nós como
a tempestade e a bonança, sem que a nossa vontade possa ter influência sobre seu
ir e vir. Por isso, consideramos mais repreensível a falta de fidelidade que a falta de
amor ou de solidariedade social – para além das suas manifestações por mero dever.
Esse peculiar significado sociológico permite à fidelidade desempenhar um
papel unificador num dualismo fundamental, que tem a ver com a forma essencial de
qualquer sociação, e que é o seguinte: graças à fidelidade, as relações (que são
fluências, processos vitais em evolução e progresso) conservam uma forma exterior
relativamente estável. Todavia, as formas sociológicas das relações humanas, da
criação de unidades, da representação no exterior, não podem seguir, no geral, com
sincronismo perfeito as variações da sua interioridade, quer dizer, dos processos
relativos a outrem que se operam em cada indivíduo. Esses dois níveis, interno e
externo, têm um andamento (uma velocidade ou modo de andar e evoluir) diferente

83
“Wenn ich dich liebe, was geht's dich an?”, interpelação que Philine, personagem do romance Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, dirige subitamente ao protagonista (conf. op. cit.,
livro IV, capítulo 9). (NT)
634 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– o essencial é que a forma externa nunca evolua de verdade. O mais elevado nível
possível de estabilidade externa nas relações interiormente variáveis é,
evidentemente o das formas jurídicas: a forma do casamento, que resiste inflexível
às mudanças da relação pessoal entre os cônjuges; o contrato entre dois parceiros
comerciais, que dividem os lucros pela metade mesmo que um faça todo o trabalho
e o outro nada; a qualidade de membro de uma comunidade cívica ou religiosa
embora venha a ser alheia ou desprovida de interesse para o indivíduo. Mesmo
deixando de lado esses casos evidentes, pode todavia ser observado a todo o
momento como as relações que se estabelecem entre indivíduos e grupos visam,
imediatamente, consolidar as suas formas; como essas formas condicionam, mais
ou menos rigidamente, o futuro desenvolvimento da relação, e como elas, uma vez
mais, não têm capacidade de adaptação às intensas oscilações da relação recíproca
concreta e as suas mudanças moderadas ou violentas. Afinal de contas, nada mais
acontece aqui do que a repetição da discrepância que existe dentro do homem. A vida
interior que sentimos como fluência, processo incessante de altos e baixos, de ideias
e de humores, se cristaliza, mesmo para nós, em fórmulas e direções validadas e
reconhecidas. Na maioria dos casos essas formas exteriores legitimadas são
reconhecidas pelo simples fato de serem exprimidas através de palavras. Pode
acontecer, naturalmente, que em casos afortunados (pondo de parte excepcionais
distorções concretas em questões de pormenor), elas representem o centro de
gravidade, o “ponto fixo” em torno do qual a vida oscila pendularmente para um lado
e outro. Contudo, isso não impede a oposição formal constitutiva entre a essencial
mobilidade da vida anímica subjetiva e a capacidade de suas formas, que não
exprimem nem estruturam um ideal, uma negação ou contradição intelectual da sua
realidade, mas apenas essa vida como ela é. E já que as formas externas, tanto na
vida intelectual como na social, não são fluentes como a própria evolução interna,
mas de ordinário se mantêm constantes durante certo tempo, seu esquema consiste
algumas vezes em antecipar essa realidade interna e outras vezes em estar por trás
dela.
Precisamente, no momento em que as formas ultrapassadas revelam-se
impotentes para dar conta da vida palpitante, esta última oscila para um de seus
extremos e cria formas que antecipam a sua real e vital ocorrência, sem poder ainda
Georg Simmel | 635

ser preenchidas cabalmente por ela. Assim, em certas relações interpessoais – de


amizade, por exemplo –, quando o uso do pronome de terceira pessoa (ou outra
forma de referência especial ou protocolar, bem como do verbo conjugado na pessoa
concordante) como forma de tratamento de segunda pessoa, dá a impressão de uma
dureza inadequada à cordialidade comunicativa, a utilização do pronome de segunda
pessoa (e do verbo na sua forma concordante) pode parecer também excessiva,
como se fosse a antecipação de uma intimidade ainda inexistente. Acontece também
nas mudanças de constituição política que as formas caducas, convertidas já em
insuportável opressão, sejam substituídas por formas liberais, mais abertas e
tolerantes, embora as forças políticas e econômicas reais não estejam preparadas
para isso, colocando antecipadamente uma moldura larga demais onde antes havia
uma excessivamente estreita. Entre esses dois casos, podemos encontrar toda uma
série de situações intermédias.
Ora, perante esse esquema da vida social, a fidelidade – na acepção aqui
exposta – adquire um significado renovado: graças a ela, a interioridade flutuante
das pessoas passa a ter o caráter de uma forma fixa e estável na relação – rigidez
sociológica que perdura e se consolida para além da vida imediata e seu ritmo
subjetivo, convertendo-se no conteúdo da vida interior determinada pelos
sentimentos. Prescindindo das incontáveis mudanças, oscilações e entrelaçamentos
com que se apresenta em cada caso concreto, a fidelidade é a ponte e a conciliação
daquele profundo dualismo essencial que separa a forma da vida interior do indivíduo
da forma da sociação – embora esta última forma seja mantida pela primeira. A
fidelidade é aquela disposição espiritual, ao abrigo da qual a alma (ainda que viva em
contínua mudança e fluência) se apropria intimamente da estabilidade da forma de
relação supraindividual. Graças à fidelidade, a alma recebe um conteúdo que irá
constituir o sentido e valor da vida realmente vivida – conteúdo que, mesmo criado
por essa vida real, tem necessariamente que contradizer o ritmo (ou a arritmia) dela.
O caráter sociológico do sentimento de gratidão é igualmente manifesto, só
que em um grau muito menor que na fidelidade. Contudo, dificilmente a importância
da gratidão poderá ser valorizada em sua justa medida. A exiguidade das suas
manifestações concretas – em contraste com a abundância de seus efeitos – parece
636 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ter ocultado até agora as provas de que a vida e a coesão da sociedade seriam
afetadas de maneira considerável se não houvesse gratidão.
Em primeiro lugar, a gratidão complementa a ordem jurídica. Toda a economia
das trocas humanas se baseia no esquema da entrega e da equivalência. Ora, a
equivalência pode ser imposta para grande número de entregas e prestações,. Em
todos os intercâmbios econômicos de forma jurídica, em todas as obrigações
decorrentes de uma relação juridicamente regulada, o direito impõe a troca de
prestação e contraprestação, e cuida dessa reciprocidade, sem a qual não existiria
nem coesão nem equilíbrio sociais. Porém, existem também muitas outras relações
que fogem ao império da forma jurídica, e nas quais não é possível dizer que a
compensação do favor preexistente fosse obrigatória. Nesses casos, a gratidão
aparece como complemento tecendo o vínculo da reciprocidade, mesmo nos casos
em que não exista nenhuma coerção externa que garanta a recíproca prestação. A
gratidão é, assim, um complemento da norma jurídica no mesmo sentido da honra,
como já demonstramos.
Para apreciar corretamente a especificidade desse vínculo importa
compreender que a ação pessoal dos homens, especialmente se exercida sobre as
coisas – como no roubo e na dádiva, as formas primitivas da mudança de posse –
se desenvolve no sentido de se tornar uma troca, tomando essa palavra no seu
significado objetivo. A troca é a “coisificação” da ação recíproca dos homens.
Quando um deles dá uma coisa e recebe de um segundo outra coisa do mesmo valor,
a pura espiritualidade da relação entre ambos é transfundida às coisas. E essa
coisificação da relação, a sua identificação crescente com as coisas que se dão e
recebem, torna-se tão perfeita que, nas economias mais desenvolvidas, desaparece
completamente a interação pessoal, e as mercadorias adquirem vida própria,
independente. As relações entre as mercadorias, o ajuste de seu valor, se realizam
por simples operação contábil, enquanto os homens são reduzidos a meros
executores das tendências à compensação e à transferência que as mercadorias
possuem. O igual se troca pelo que é objetivamente similar, e o próprio homem é, de
fato, um elemento indiferente, embora, obviamente, prossiga todo esse processo em
seu interesse exclusivo. A relação entre humanos se transforma assim em uma
relação entre objetos.
Georg Simmel | 637

Ora, a gratidão nasce nas e pelas relações recíprocas entre os homens, mas
se interioriza do mesmo modo que aquela relação entre as coisas se tornava
explícita. A gratidão é o resíduo subjetivo do ato de oferecer e de receber. Assim como
na troca das coisas a ação recíproca se confunde com o ato imediato da correlação
das prestações, na gratidão, esse ato some (em suas consequências, sua
significação subjetiva e seu eco espiritual) nas profundezas da alma. A gratidão é a
memória moral da humanidade. Desse ponto de vista, se diferencia da fidelidade por
sua natureza mais prática e impulsiva, e por constituir (ainda que possa ficar
interiorizada) a potencialidade de novas ações, espécie de ponte ideal que a alma
encontra para estabelecer comunicação com outrem, respondendo ao mais leve
estímulo – que sem a gratidão talvez tivesse resultado ineficaz. Depois de superado
seu estado nascente, qualquer sociação se baseia no prolongamento dos
sentimentos (e das pulsões que estão na sua origem) para além do momento em que
surgiram. As interações individuais dos homens podem proceder do amor ou da
cobiça, da obediência ou do ódio, da sociabilidade ou da sede de poder: esse estado
espiritual que serve de fundamento à relação geralmente não se esgota na ação, mas
continua a viver de alguma maneira na própria situação criada pelo estado espiritual.
A gratidão é um desses prolongamentos no sentido mais categórico: a perenidade
ideal de uma relação mesmo durante um longo período após a sua interrupção e a
conclusão do ato de oferecer e receber. Embora a gratidão seja um sentimento
puramente pessoal ou até piegas, torna-se um dos entrelaçamentos mais sólidos da
trama social graças à estreita ligação e ao encadeamento dos vínculos que dele
resultam. A gratidão não só é o terreno fértil e sentimental no qual a ação recíproca
isolada frutifica, mas também o espaço onde, por força da sua presença fundamental
(ainda que frequentemente inconsciente e misturada com uma série de outros
motivos), os atos humanos sofrem certa mudança na sua maneira de ser, adquirem
intensidade peculiar, se vinculam com o passado, chegam à dedicação abnegada e
desinteressada da própria pessoa, asseguram a continuidade da vida em comum. Se
acabássemos de repente com qualquer resposta a uma recordação deixada nas
almas como resultado de benefícios recebidos, a sociedade – ao menos tal como a
638 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conhecemos – deixaria de existir 84 . E se, por outro lado, elencássemos todos os


motivos que vinculam (intrínseca e extrinsecamente) os homens em função do grau
em que favorecem a troca (mútua transferência que não se limita a preservar a
sociedade já constituída, mas participa da sua conformação como tal), veríamos que
a gratidão é o motivo que nos incita interiormente a corresponder ao benefício
recebido nos casos em que essa compensação não é imposta por uma obrigação
objetiva. Quanto ao benefício mencionado, não se trata apenas da dádiva material
ofertada por uma pessoa a outra: somos gratos ao artista ou ao poeta que não
conhecemos. Essa situação cria inumeráveis vínculos, ideais e concretos, mais ou
menos estreitos, entre aqueles que estão cheios de gratidão para com o mesmo
doador. Mais ainda, não só estamos gratos pelo que faz, mas essa forma de gratidão
é a única que nos permite definir o sentimento com o qual amiúde reagimos perante
a simples existência de certas celebridades: somos gratos a elas pelo mero fato de
existir e de ter entrado em nossas vidas. Frequentemente, deste sentimento nascem
os vínculos mais íntimos e sutis, com independência do bem ou graça recebida do
personagem em questão, como se fosse a única retribuição apropriada a uma dívida
de gratidão contraída com a sua personalidade por inteiro.
O conteúdo concreto da gratidão (as contraprestações a que ela nos conduz)
faz com que em cada caso variem os efeitos recíprocos do cumprimento dessa
obrigação moral, cuja sutileza não reduz sua importância na estrutura de nossas
relações. A interioridade de tal estrutura se enriquece com uma incrível profusão de
nuances quando a dádiva recebida em um domínio só pode ser compensada por uma
prestação de diferente natureza. Alguém oferece então a outrem algo de caráter ideal
(valores intelectuais, por exemplo), e o destinatário de sua largueza demonstra seu
reconhecimento devolvendo-lhe valores sentimentais; ou talvez transformando

84
Na realidade, a dádiva é uma das funções sociológicas mais importantes. Se na sociedade não se
oferecesse algo de que se desfruta sem pedir contrapartida, e não se aceitasse algo que é oferecido
ou entregue gratuitamente – sem ter em conta a troca – não haveria sociedade. Porque a dádiva não
é, de forma alguma, a simples ação de um sobre o outro, mas precisamente o que se espera que seja
uma função sociológica: uma ação recíproca. Aceitando ou rejeitando a dádiva, o outro exerce um
efeito de retorno bem definido sobre o primeiro ator. A maneira como se admite a dádiva
(agradecendo-a ou não, esperando-a ou surpreso, contente ou insatisfeito, tratado com carinho ou
humilhado por isso), produz um efeito bem evidente no doador – embora, obviamente, não se possa
exprimir com conceitos e expressões adaptadas aos vários graus de reconhecimento.
Consequentemente, a dádiva é (sozinha e ainda sem nenhum retorno aparente) uma ação recíproca.
(NS)
Georg Simmel | 639

algum atrativo estético de sua pessoa em resposta à força e dominância com que o
primeiro (de natureza mais vigorosa) consentiu subjugá-la. É verdade que talvez não
exista uma relação recíproca em que a troca, (o ofertado e o recebido em
compensação) tenha por objeto bens qualitativa e rigorosamente iguais. Contudo,
nos casos citados, em que essa inevitável disparidade nas relações humanas é
absoluta e consciente, encontra a sua máxima expressão e suscita um difícil
problema (ético e teórico) a essa sociologia que poderíamos chamar de “interna”. De
fato, sempre há uma sutil e íntima desproporção quando alguém oferece suas posses
intelectuais (sem comprometer seriamente seus sentimentos) em uma relação,
enquanto o outro só pode dar em troca seu amor: todos esses casos têm algo de fatal
para o sentimento porque evocam, em maior ou menor grau, a compra e a venda. A
diferença entre a troca em geral e a compra reside no fato de que a compra traduz a
reciprocidade das prestações e diz respeito a duas coisas totalmente heterogêneas
que só podem se relacionar e comparar por seu comum valor monetário. Assim, nos
tempos em que não existia a moeda metálica, quando se comprava a produção de
um artesão com uma vaca ou uma cabra, essas eram coisas absolutamente
heterogêneas, cujo respectivo valor econômico abstrato aproximava e tornava
intercambiáveis. A moderna economia monetária leva essa heterogeneidade ao
extremo. É que nessa forma econômica (em todas as transações que têm por objeto
coisas susceptíveis de ser intercambiadas), o dinheiro, que representa o universal
– quer dizer, o valor de troca dos objetos permutáveis – não está em condições de
exprimir sua peculiaridade individual. Daí que os objetos sofram, na mesma medida
em que são considerados negociáveis, uma espécie de desvalorização, de
depreciação de sua individualidade em proveito do universal, comum a essa coisa, a
todas as outras coisas igualmente alienáveis e ao próprio dinheiro em primeiro lugar.
Um pouco dessa heterogeneidade essencial existe nos casos acima referidos, em
que duas pessoas se oferecem reciprocamente bens íntimos heterogêneos, e com os
quais a gratidão pela dádiva antecedente se exprime em uma moeda completamente
distinta – que, por essa razão, introduz na troca algo do caráter a priori incoerente da
compra e venda. Compra-se amor dando inteligência, se obtêm o encanto de uma
pessoa, de cuja intimidade se quer usufruir, dando em troca a sugestão ou
dominância que essa pessoa deseja sentir exercer-se sobre ela, ou da qual quer se
640 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

inebriar. No entanto, esse sentimento de inadequação ou indignidade se apresenta


só quando as ofertas recíprocas agem como objetos avulsos permutáveis, quando a
mútua gratidão diz unicamente respeito ao benefício recebido, ao conteúdo trocado
reciprocamente. A pessoa humana não é o comerciante de si mesma, especialmente
nas relações aqui consideradas. Suas qualidades, as forças e funções que dela
derivam não são, apesar de tudo, simplesmente expostas diante dela como
mercadorias sobre o balcão de uma loja. Ao contrário, é muito importante entender e
sentir que a pessoa humana, embora dê unicamente coisas avulsas, mesmo que
ofereça apenas um aspecto da sua personalidade pode, porém, estar inteiramente
nesse aspecto único e fazer dom de toda a sua personalidade na forma dessa energia
isolada – desse atributo particular, como diria Espinoza. Aquela desproporção só
aparece, contudo, quando a diferenciação dentro da mesma relação se tornou tão
grande que o objeto da dádiva se separou da totalidade da pessoa do doador.
Todavia, se nada disso acontecer, gera-se um caso, espantosamente perfeito, da
combinação – normalmente rara – em que a gratidão é, em igual medida, uma reação
a respeito do benefício e do benfeitor. Na contrapartida aparentemente objetiva que
só visa a uma doação e consiste em outra doação, essa assombrosa plasticidade da
alma permite simultaneamente receber e oferecer a subjetividade integral de um e
outro.
O caso mais profundo dessa índole se apresenta na íntima disposição global
da alma que visa ao outro (segundo essa forma particular que temos chamado de
gratidão) não se limita a uma espécie de propagação na alma inteira da reação de
reconhecimento (em si mesma bem delimitada) por um benefício recebido, mas faz
tudo o que descobrimos de bom e digno de gratidão em outrem ser apenas uma
espécie de causa ocasional na qual se concretiza uma relação pessoal
predeterminada na estrutura íntima da alma. Nesse caso, isso que temos
denominado gratidão (e que estendeu a esse estado de espírito uma denominação
que antes tínhamos atribuído apenas a uma de suas manifestações particulares) vai
muito além da forma habitual de sentir-se agradecido (“obrigado”) por um bem
recebido. Pode-se dizer que a gratidão, nesses níveis profundos da alma, não
consiste em “corresponder” ao obséquio, mas na consciência de não poder
corresponder-lhe – na convicção de que há aqui algo que some a alma do
Georg Simmel | 641

beneficiário como em um estado de permanente dívida em face do outro, algo que


leva à consciência o pressentimento de uma obrigação infinita, impossível de esgotar
ou quitar completamente com nenhuma manifestação ou ação finita.
Esse fenômeno se relaciona com outra incomensurabilidade profunda,
consubstancial às relações colocadas sob o signo da gratidão. Quando somos
beneficiados pelo favor de uma pessoa que foi “a primeira a dar”, nunca poderemos
retribuir adequadamente seu presente com um obséquio ou serviço restituitório
– mesmo que as contrapartidas superem jurídica e objetivamente a primeira doação.
Isso porque ela pressupõe uma espontaneidade que não existe na contraprestação,
que estamos moralmente obrigados a executar – já que embora essa obrigação não
seja social ou jurídica, nada tira a sua força coativa. O primeiro gesto (que brota pleno,
espontâneo da alma) possui uma liberdade que falta ao dever, mesmo ao dever de
gratidão. Kant riscou de uma penada esse caráter do dever, decretando que liberdade
e cumprimento do dever eram a mesma coisa. E ao fazê-lo confundiu o lado negativo
da liberdade com seu lado positivo. Nós somos livres, em aparência, para cumprir ou
não o dever que sentimos intelectualmente acima de nós. Na realidade, porém, só a
segunda solução diz respeito à liberdade completa. Cumprir o dever resulta, ao
contrário, de um imperativo moral, de uma coerção que equivale internamente à força
exercida pela sociedade para fazer valer o direito. A plena liberdade se encontra
unicamente do lado da recusa voluntária, e não do lado da ação à qual somos
impelidos, precisamente, porque é nosso dever – da mesma maneira que somos
constringidos a corresponder a uma dádiva porque a recebemos. Não somos livres,
a não ser que façamos o primeiro oferecimento. Daí que a primeira doação, que não
decorre de reconhecimento algum, seja de uma beleza e de uma espontaneidade
pouco habituais, pressuponha uma abertura e entrega ao outro que parte do virgin
soil85 da alma – e que por isso não pode ser compensada por nenhuma prestação
concreta, ainda que objetivamente seja de valor mais elevado. Sempre sobra, então,
um resto que se exprime no sentimento (aparentemente injustificado) de que não
podemos corresponder a uma dádiva porque nela palpita uma liberdade que nossa
reciprocidade não pode ter – precisamente porque é uma espécie de substituição,

85
“Solo virgem”. Em inglês no texto de Simmel. (NT)
642 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

uma tentativa de dar algo “em vez de”. Talvez seja essa a razão pela qual certas
pessoas não gostam de receber obséquios e evitam, na medida do possível, ser
homenageadas. Se o benefício e a gratidão girassem em torno apenas da coisa
oferecida, esse sentimento de aversão seria incompreensível, porque sempre seria
possível compensar o favor recebido e quitar, por completo, a mais íntima obrigação.
Na verdade, essas pessoas devem provavelmente intuir que a compensação não
pode conter aquele fator decisivo, a liberdade da primeira oferta, e preferem rejeitá-
la antes que contrair uma obrigação inexaurível 86 . O fato de que essas pessoas
sejam, em geral, as que possuem fortes tendências à independência e ao
individualismo, sugere que a situação de gratidão gera facilmente certa nuance de
vínculo indestrutível, certo character indelebilis87 moral. Uma vez que aceitamos um
serviço, um sacrifício ou um benefício se estabelece uma relação íntima que nunca
se extinguirá por completo, porque a gratidão talvez seja o único sentimento que
pode ser moralmente exigido e experimentado em todas as circunstâncias.
A realidade de nossa vida interior, seja por ela própria, seja em resposta a uma
realidade exterior, nos impede ocasionalmente, de respeitar e estimar (estética, ética
ou intelectualmente), mas ainda assim podemos continuar sendo gratos a quem
alguma vez mereceu nosso reconhecimento. A alma pode se adaptar sem problemas
a essa exigência, a tal ponto que talvez não haja defeito do sentimento mais
severamente julgado do que a ingratidão. Nem sequer a infidelidade é socialmente
sancionada com semelhante rigor. Há, por exemplo, certas relações que só
funcionam com um “capital sentimental” constituído desde o início que, por sua
própria natureza, se consumirá inexoravelmente aos poucos, de modo tal que seu
esgotamento não implique nenhuma verdadeira infidelidade. No entanto, nos seus
começos, esse tipo de relações pode ser confundido com outros relacionamentos
que (para manter a comparação) vivem de suas “rendas”, de maneira que toda a
paixão e a prodigalidade de sua vida em comum não chegam a reduzir gravemente o

86
Essa é, naturalmente, uma formulação extrema, mas seu desvio em relação ao que existe é inevitável
em análises que isolam elementos da realidade espiritual e que agem sempre misturados em
conjuntos diversos, de maneira indireta e amiúde embrionária. (NS)
87
Expressão latina que significa “caráter indelével”. Utiliza-se geralmente para indicar a espécie de
marca que não se pode apagar ou eliminar (como o carimbo de uma moeda) que certos sacramentos
cristãos (como o batismo, a confirmação e a ordem, que são irrevogáveis e não se podem ser
repetidos), deixam nas pessoas que os recebem. (NT)
Georg Simmel | 643

“capital” investido há vários anos. Um dos enganos humanos mais comuns é o de


tomar por meras rendas o que é capital e, ao fazê-lo, basear uma relação sobre
alicerces tais que sua ruptura se torne uma infidelidade. Ora, essa falta de respeito
àquilo com que se deveria comprometer não decorre da liberdade da alma, mas
simplesmente da evolução lógica de uma existência fundada a partir de cálculos
inexatos. A infidelidade é irremediável nos casos em que uma transformação real do
indivíduo (e não meramente o fato de descobrir uma ilusão da consciência) modifica
os requisitos básicos da relação. Talvez a maior tragédia das relações humanas
provenha da mistura (rebelde a qualquer racionalização e em constante mudança) de
elementos estáveis e variáveis de nossa natureza. Quando nos engajamos sem
reservas em uma relação, tendemos a conservar o mesmo estado de espírito e
idêntica inclinação para certos aspectos de nossa personalidade – aqueles mais
voltados para o exterior, mas também para muitos que são puramente internos.
Outros aspectos suscitam porém interesses, potencialidades e fins absolutamente
novos que acabam por redirecionar a nossa existência e por nos desviar das relações
precedentes (nos referimos aqui à pura interioridade, não ao cumprimento formal do
dever) com uma espécie de infidelidade, que nem é completamente inocente
– porque ainda persistem muitos laços internos que deveriam ser desfeitos – nem
absolutamente culpável – porque não somos as mesmas pessoas, quer dizer, porque
desapareceu o sujeito a quem a infidelidade poderia ter sido imputada.
Em compensação, quando nossa gratidão se estiola, essa desculpa vinculada
não conhece a sua própria essência. Teríamos, assim, mais direito de exigir
persistência desse estado do espírito (que não pode mudar e parece achar guarida
em um ponto de nosso foro íntimo) do que para sentimentos mais apaixonados e até
mais profundos. Essa paradoxal imortalidade da gratidão, embora corresponda a
uma contraprestação igual o maior, deixa sempre um “saldo devedor” (que pode,
aliás, alcançar os dois lados da relação, e repercutir talvez a liberdade da dádiva,
ausente na contraprestação moralmente exigível) faz com que a gratidão seja um
dos laços mais sólidos (e ao mesmo tempo sutis) que ligam os seres humanos.
Qualquer relação mais ou menos durável traz a lume uma infinidade de ocasiões de
gratidão – que nem as mais fugidias deixam de oferecer, e que conferem solidez à
recíproca conexão dos elementos No melhor dos casos, de sua adição nasce um
644 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

estado de espírito de obrigação generalizada (não por acaso dizemos “obrigado”) que
não pode ser remido por nenhuma prestação concreta. A gratidão é um dos fios
microscópicos, mas infinitamente tenazes, que mantém unidos os elementos da
sociedade e, por conseguinte, reúne finalmente todos eles em uma vida comum e
estável88.
Assim como certos círculos desenvolvem a estabilidade e a rigidez estrutural
como condição de sua autopreservação, outros têm, ao contrário, necessidade de
maximizar a flexibilidade e labilidade das suas formas sociológicas – por exemplo,
aqueles grupos que vivem dentro de um grupo maior e têm a própria existência
apenas tolerada ou mesmo levada adiante per nefas89. É exclusivamente graças à
mais perfeita elasticidade que uma sociedade semelhante pode conciliar uma sólida
coesão com a sucessão de ofensivas e retiradas que ela conhece. Tem que poder
esconder-se em qualquer buraco, esticar-se ou contrair-se consoante as
circunstâncias, da mesma maneira que um corpo em estado de agregação fluido
deve poder assumir qualquer forma que lhe seja propícia. Assim, os bandos de
malfeitores ou subversivos têm de ser capazes de dividir-se rapidamente e agir em
grupos separados, de submeter-se incondicionalmente ora a um chefe ora a outro,
de preservar, contra ventos e marés, o mesmo espírito de corpo, por contato direto
ou indireto, de se organizar de novo, imediatamente e da forma que for possível,
depois de cada dissolução, etc. Esse processo permite- alcançar essa
autopreservação que dá razão aos ciganos quando dizem: de si próprios: “é inútil
enforcar-nos, porque não morremos”. Algo semelhante foi dito a respeito dos judeus:
a força da sua coesão social, seu sentimento de solidariedade recíproca (tão eficaz
na prática), a exclusão peculiar (mas nem sempre completa) dos gentios90, todo esse
vínculo sociológico só teria perdido a sua conotação confessional, após a

88
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “fidelidade” e a “gratidão”.
Doravante Simmel retoma a sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente das
”formas lábeis de autopreservação”, bem como da “divisão do trabalho e a coesão do grupo”. (NT)
89
Expressão latina que pode ser traduzida aqui como: “por vias ilícitas”. Habitualmente integra a
locução per fas er nefas, que quereria dizer: “por vias justas e injustas” ou, melhor: “por todos os meios
possíveis”. (NT)
90
Termo normalmente usado a partir do século XVII para se referir aos não judeus. Com o mesmo
sentido de gentio existe o termo de origem hebraica gói. Em tempos recentes, ambos os termos
deixaram de ser bem vistos, preferindo-se, muitas vezes, usar em substituição a expressão: “não
judeu”. (NT)
Georg Simmel | 645

Emancipação judaica91, para adquirir outra, capitalista. Por essa razão, até foi dito
que a organização “invisível” dos judeus seria “invencível”, porque embora o ódio
contra eles conseguisse privá-los, em primeiro lugar, do poder da imprensa, depois
daquele que o dinheiro dá, e finalmente do usufruto de direitos iguais, mesmo assim
não será por isso que o liame social hebraico desatar-se-á – a coletividade judaica
perderia sua organização política, mas reforçaria outra vez a sua primitiva forma
confessional. Esse cenário sociopolítico já aconteceu em alguns lugares e pode vir a
se generalizar. Mesmo a adaptabilidade individual do judeu, a sua notável capacidade
para desempenhar as tarefas mais diversas e de adaptar-se às condições de vida
mais variáveis, poderia ser entendida como um reflexo da forma sociológica do grupo
no indivíduo. Ao menos parece ser unânime a opinião que a compreensão e
docilidade do judeu e sua aptidão para aplicar-se a diferentes atividades econômicas
é um dos fatores de sua obstinada resiliência. Um bom trabalhador inglês não pode
ser privado do salário que julga ser justo para o trabalho qualificado que ele sabe
realizar: se necessário, faz greve, ou aceita um trabalho não qualificado, ou procura
qualquer outro modo de ganhar a vida, antes de trabalhar na sua especialidade por
um salário inferior à norma que ele declaradamente assumiu. O judeu, ao contrário,
prefere o mais insignificante salário ao desemprego, mas em compensação não
conhece o descanso tranquilo de quem atingiu seu objetivo, e constantemente espera
ter uma promoção: para ele, nenhum mínimo é demasiado pouco, e qualquer máximo
é insuficiente. A amplitude de oscilação 92 dessa ambição, que indubitavelmente
passa da vida individual à do grupo, é para os judeus um meio de autopreservação,
tal como o são a rigidez e inflexibilidade para o operário inglês. Nesse contexto, pouco
importa, de fato, que a opinião acima referida sobre a história dos judeus seja ou não
pertinente. O que nos parece instrutivo é o que dela resulta: que a autopreservação

91
A Emancipação judaica foi o processo interno e externo de libertação dos judeus de Europa,
incluindo o reconhecimento de seus direitos como cidadãos iguais e a concessão formal de sua
cidadania como indivíduos. Tal processo ocorreu gradualmente entre o final do século XVIII e o início
do século XX. (NT)
92
Simmel se vale metaforicamente do conceito de amplitude do movimento oscilatório, proveniente
da física. O exemplo mais simples de movimento oscilatório que existe é o movimento do pêndulo (e
o relógio de pêndulo é o exemplo clássico desse tipo de movimento). Dizemos, assim, que um corpo
se movimenta de forma oscilatória quando executa movimentos (ida e volta) em torno de certa
posição que esteja em equilíbrio. Nesse contexto, a amplitude de oscilação ou amplitude do
movimento corresponde à distância entre a posição de equilíbrio e a posição extrema que é ocupada
pelo corpo em movimento oscilatório. (NT)
646 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de uma unidade social pode ocorrer justamente pela mudança da sua forma aparente
ou da sua base material, e que sua permanência repousa no seu caráter lábil (na sua
maleabilidade ou flexibilidade).
Essas duas possibilidades de autopreservação social se opõem de maneira
característica nas suas relações com outros conceitos sociológicos mais amplos. Se
a preservação do grupo depende intimamente da perenidade da maneira de ser
peculiar de uma camada social (a mais alta, a mais numerosa e a média), isso irá
exigir nos dois primeiros casos a estabilidade da vida social e, no último, sua
labilidade. Como anteriormente referido, as aristocracias são, no geral,
conservadoras. Porque se são realmente o que sugere o seu nome – o governo dos
melhores – serão a expressão adequada das desigualdades reais que existem entre
os seres humanos. Nesse caso (e sem pretender saber se alguma vez se realiza de
um modo mais do que parcial), faltará o impulso que conduz a todas as
transformações políticas: a discrepância entre as qualificações próprias das pessoas
e sua posição social – o ponto de partida de algumas das empresas mais insensatas
da humanidade, assim como de suas maiores e mais corajosas realizações.
Admitindo hipoteticamente esse caso mais favorável da aristocracia, será
conveniente, para a sua manutenção em longo prazo, a preservação de toda a sua
maneira de ser e organização. Isso porque qualquer ensaio de mudança ameaçaria
essa correlação rara e sutil entre qualificação e posição (seja na realidade ou nos
sentimentos das pessoas envolvidas), e desse modo daria motivo a uma
transformação fundamental da constituição. No entanto, o motivo essencial para tal
reformulação será, em primeiro lugar, o fato de que essa absoluta equidade nas
relações de dominação (apanágio das aristocracias) quase nunca acontece – pois o
governo dos poucos sobre os muitos se assenta amiúde sobre bases muito
afastadas de uma conformidade ideal ao princípio do bem comum. Em tais situações,
o grupo dominante terá o maior interesse em não suscitar qualquer movimento
inquietante e inovador que pudesse provocar as inevitáveis reivindicações
(justificadas ou não) dos dominados – desde que aquelas não se limitariam a uma
mudança das pessoas, mas acarretariam o fim do próprio regime. A partir do
momento em que as instituições têm fundados receios quanto a sua sobrevivência,
assumem uma atitude defensiva (latente ou manifesta), se não pura e simplesmente
Georg Simmel | 647

contrária à evolução política e social – em toda evolução bem sucedida há algo de


problemático para quem se preocupa mais com a duração que com a qualidade da
vida. Isso está fundamentalmente relacionando com o fato de que nas aristocracias
a direção corresponde aos anciãos, do mesmo modo que nas democracias os jovens
prosperam. Ora, a idade avançada coincide, por motivos fisiológicos, com certa
inclinação para o conservadorismo: o idoso não pode fazer outra coisa senão
“conservar”, e apenas nos casos em que disponha de uma excepcional reserva de
forças pode enfrentar os desafios que coloca uma evolução incessante. Finalmente,
há outro fator que reforça o conservadorismo: quando, na prática, os anciãos gozam
do respeito e do poder, os jovens, à custa de quem os idosos detêm seus privilégios
(como a exigência de uma idade provecta como condição de admissão aos cargos
públicos), só podem esperar alcançá-los, por sua vez, se as circunstâncias
permanecem inalteradas.
Por essas razões, a forma de constituição aristocrática melhor se preservará
quanto menos se mude seu status quo – e isso se aplica não só aos grupos políticos,
mas também às organizações religiosas, às associações privadas, aos
agrupamentos familiares e sociais e, no geral. a todas as coletividades que possam
adotar uma forma aristocrática. Em qualquer caso, a partir do momento em que essa
forma seja adotada, um conservadorismo estrito será a orientação mais favorável,
não apenas para a manutenção momentânea das mesmas pessoas no poder, senão
para a preservação da sua forma e natureza. A história dos movimentos de reforma
nos regimes aristocráticos confirma isso com toda a clareza. A adaptação ao
aparecimento de forças ou ideais sociais novos – como o abrandamento da
exploração ou do jugo dos oprimidos, a fixação legal dos privilégios (interpretados
conforme a vontade dos poderosos), bem como o aumento dos direitos e o acesso a
benefícios materiais das classes populares – não foram amiúde o objetivo último
dessas concessões, mas apenas uma forma de autopreservação, quer dizer, de
conservar reformando. A diminuição das prerrogativas aristocráticas foi a condição
sine qua non93para salvar o regime que as tinha instituído. No entanto, uma vez que

93
Sine qua non é uma locução adjetiva, do latim, que significa “sem a qual não”. É uma expressão que
faz referência a uma ação ou condição que é indispensável, que é imprescindível ou que é essencial.
Assim, quando é referida a uma condição, indica circunstância indispensável à validade ou à
existência de um ato. (NT)
648 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

começou o movimento, na maioria dos casos as primeiras concessões já não são


suficientes. Todas as reformas acabam por revelar novas questões que exigem
conserto, e o movimento lançado para preservar a ordem conduz ladeira abaixo a sua
derrubada – ou, se as novas ideias não podem ser impostas, a uma reação radical
que suprime as mudanças já concedidas. Como vemos o perigo inerente a toda
mudança de um regime aristocrático é que as concessões feitas para sustentá-lo
provoquem, pelo seu próprio peso, o abalo total das instituições – daí que o
conservadorismo à outrance94 aparente ser o modo de defesa que mais convém (por
sua rigidez e intransigência) à aristocracia enquanto forma social.
Quando a forma do grupo não está caracterizada pelo predomínio de um grupo
numericamente restrito, mas pela autonomia do estrato mais numeroso, sua
preservação será favorecida pela estabilidade e firmeza constante dessa camada
social. Isso decorre em primeiro lugar da rigidez do conjunto dos traços psicológicos
característicos de uma grande massa de pessoas, quando vira o suporte permanente
da respectiva unidade social. Nisso se diferencia radicalmente da multidão reunida
por acaso ou de modo esporádico, cujos estados de ânimo e decisões mudam com
facilidade e a quem basta um impulso temporário ou irrefletido para passar de um
extremo do comportamento ao outro. Ao contrário, quando a massa não é excitada
de um modo imediato e sensível, nem se produz nela (por estímulos e sugestões
recíprocas) alguma instabilidade nervosa ou um abalo de suas linhas diretivas firmes,
ou seja, quando seu caráter mais profundo e duradouro entra em jogo, segue sempre
a lei da inércia – quer dizer, não muda por si só seu estado de repouso ou movimento,
mas meramente pela intervenção de novas forças aplicadas para esse fim. Por essa
razão, se por um lado os movimentos impulsionados por grandes massas e
abandonados a si mesmos vão logicamente até o seu ponto extremo, por outro a
massa não perderá, facilmente, o equilíbrio, na medida em que isso dela dependa. O
instinto da massa tende a preservar a sua identidade, perante a modificação das
circunstâncias e dos impulsos, opondo-lhe a solidez e intransigência substancial da
sua forma – em vez de fazê-lo pela adaptação flexível e pela mudança rápida de
comportamento. A isso se acrescenta que, no caso dos regimes políticos, é essencial

94
À outrance é uma locução adverbial do francês, que significa “com exagero”, “excessivo”. (NT)
Georg Simmel | 649

que a sua forma social se sustente sobre a camada social mais numerosa a quem
seja reconhecida igualdade de direitos – coisa que geralmente se verifica nos povos
agrícolas, como os camponeses da antiga Roma e a comunidade de homens livres
do medievo germânico. Nesses casos, o conteúdo dos interesses sociais determina
de antemão a estrutura de suas formas, O camponês é a priori conservador: seu
trabalho exige longos prazos, instituições duradouras e perseverança obstinada. A
imprevisibilidade das condições meteorológicas (das quais depende) leva-o a certo
fatalismo que, diante dos poderes externos, prefere recorrer à paciência antes que ao
recuo – porque sua técnica não consegue responder às modificações conjunturais
com mudanças qualitativas rápidas como as que podem empreender industriais e
comerciantes. Além disso, o camponês se preocupa mais com a paz interior do que
com a forma de seu Estado – o que os políticos sabem utilizar desde sempre. Por
conseguinte, as condições técnicas criam nos grupos cuja forma coincide com uma
ampla camada camponesa, as disposições favoráveis para conseguir tal preservação
pela solidez e a perseverança e não pela labilidade de seus processos vitais.
A situação é bem diferente quando a direção recai nas camadas médias, e a
forma social do grupo depende da sua preservação. Só as camadas médias do grupo
têm um limite superior e outro inferior, de tal modo que constantemente acolhem
indivíduos provenientes dos estratos alto e baixo que, por sua vez, engrossam, com
elementos originários dessa categoria social mediana, heterogênea e plural. Ela é,
portanto, conotada pelo signo da flutuação. A finalidade de seu comportamento
consistirá fundamentalmente em acomodamentos, variações e concessões, graças
aos quais os movimentos inevitáveis do conjunto são orientados de tal maneira que
ao menos se mantenha a forma e a energia essencial do grupo, malgrado todas as
mudanças de conjuntura. Poderíamos dizer assim que a continuidade define e denota
a forma sociológica de um grupo caracterizado pela grande extensão e
preponderância das camadas médias. Essa forma não existe nem quando uma
uniformidade completa dos indivíduos, sem gradações, é dominante, nem quando o
grupo se compõe de uma camada superior e de outra inferior, separadas sem
transição ou mediação de nenhuma natureza. As camadas médias proporcionam, de
fato, aos outros dois estratos sociais um elemento sociológico completamente novo:
não é simplesmente um terceiro elemento, que se soma aos dois anteriores e que
650 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

estabeleceria com cada um deles as mesmas relações (talvez com alguma nuance
quantitativa) que eles próprios mantinham entre si. A novidade consiste, como já
dissemos, em que essa categoria social possui um limite superior e outro inferior,
interfaces através das quais ocorre uma troca constante com os outros dois estratos,
graças a cuja flutuação ininterrupta se produz uma confusão das fronteiras e uma
série de transferências incessantes. Isso porque não se obtém uma verdadeira
continuidade da vida social quando os indivíduos ocupam posições distintas, embora
a sua distância seja mínima – o que sempre conferiria uma estrutura social
descontínua. Para que a estrutura social seja contínua é preciso que os indivíduos
circulem por posições mais elevadas e mais baixas: só dessa maneira a distância
entre as camadas sociais se transforma em uma verdadeira continuidade. No destino
das pessoas, é preciso que se possa encontrar a posição superior e a inferior, para
que a imagem sociológica evidencie uma autêntica comunicação entre o topo e a
base. E isso é o que exatamente caracteriza as camadas médias, muito mais do que
ficar de permeio entre os outros dois estratos sociais.
Só é preciso um pouco de reflexão para perceber que essa pausada gradação
deve aplicar-se igualmente às diferenças que se apresentem dentro das próprias
camadas médias. A continuidade das posições (no que se refere ao prestígio, ao
patrimônio, à atividade, à educação, etc.) não resulta apenas das reduzidas
diferenças que elas revelariam se fossem classificadas em uma escala objetiva, mas
sobretudo da frequência com que uma pessoa passa por uma pluralidade de
posições – e cria assim uma espécie de uniões pessoais constantemente variáveis
entre essas situações objetivamente distintas. Nessas circunstâncias, o quadro
social de conjunto ostentará um caráter lábil: as camadas médias dominantes
facilitam a adaptação de seus indivíduos às mais variadas circunstâncias, de tal
forma que a autopreservação do grupo (através da mudança das condições internas
ou externas) se realiza finalmente menos pela estabilidade e rigidez coesiva dos
elementos que por sua disposição a transigir e seu pragmático transformismo. A
mera existência da diferenciação em uma sociedade dá a seus indivíduos uma
liberdade de movimentos maior sem- ameaçar a preservação social. Pretendeu-se
justificar o conservadorismo intolerante da maioria ateniense – do qual Sócrates foi
vítima – dizendo que pela uniformidade da população, toda comoção era
Georg Simmel | 651

especialmente perigosa. Quando existe um grande número de camadas sociais,


dominantes e dominadas, uma ideia questionável, ou até mesmo subversiva pode
espalhar-se em muitas cabeças. São tantas e tão diversas as tendências, há tantos
obstáculos entre essa comoção e a decisão da comunidade ou das instâncias que
poderiam concorrer para esse resultado que não é fácil a agitação se apoderar do
conjunto. Porém, quando não existe esse pluralismo espontâneo, nem uma
burocracia fundada na divisão do trabalho que possa dar vazão aos reclamos mais
prementes, todo tumulto surgido de qualquer lugar se propaga facilmente ao restante
da população. Em tais casos, o instinto de conservação daqueles que se sentem
ameaçados incita-os a reprimir até os movimentos e as agitações de indivíduos que
apenas representem uma possibilidade de perigo social.
Encontramos a mesma situação formal, sob outro ângulo, no cristianismo
primitivo. As primeiras comunidades conservavam o espírito de seu grupo com tal
rigor e perfeição que não estavam dispostas a fazer alguma concessão às fraquezas
morais ou àqueles que, submetidos a tormento, tinham perdido a corajem. Essa
estabilidade da vida coletiva correspondia a uma estrutura absolutamente uniforme
dos membros em matéria de moral e religião. Todavia, o grande número de deserções
durante as perseguições obrigou, finalmente, a diminuir as exigências absolutas da
Igreja e admitir o ingresso de um leque de pessoas mais ou menos perfeitas. Ora, tal
diferenciação interna implicava simultaneamente que a Igreja adquiria maior
flexibilidade e tolerância no seu conjunto: essa nova técnica de autopreservação com
a qual aprendeu a adaptar-se às variáveis relações com todos os fatores possíveis
de influência sobre a vida dos fiéis, combinou-se com aquela interrupção da sua
uniformidade interna, com a tolerância que lhe tinha permitido conceder a seus
membros uma diversidade infinita de graus de valor moral. É interessante observar
como a eternidade do princípio eclesial se realiza pela técnica da rigidez
inquebrantável e pela da flexibilidade infinita. A autopreservação da Igreja manteve-
se sempre a tal altura de abstração que pôde se servir indiferentemente de uma ou
de outra.
Geralmente, diz-se que um grupo com numerosas posições hierarquizadas em
uma escala de intervalos muito pequenos, se distingue por uma clara labilidade e
variabilidade no intuito de evitar graves inconvenientes e rupturas. Ante uma grande
652 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

variedade de posições, é muito menos provável que cada pessoa permaneça


exatamente no lugar que (supostamente) lhe corresponde – como acontece nas
sociedades estamentais que “encaixam” os indivíduos entre outros da mesma ordem
em um grande grupo. Neste último tipo de sociedade, como o grupo só contém
poucas posições muito diferenciadas, os indivíduos são educados antecipadamente
para participar da vida de “seu” círculo. Tais regimes podem conciliar a disposição
de cada indivíduo e a sua posição, se as exigências e as possibilidades oferecidas
pelo círculo são suficientemente amplas para garantir, no geral, um lugar apropriado
para pessoas predispostas a aceitar o recíproco convívio nele. A sociedade
estamental oferece assim uma espécie de harmonia (preestabelecida pela herança
ou produzida pela educação e pelo exemplo) entre as qualidades e aspirações do
indivíduo e sua posição no conjunto social. No entanto, quando a presença de
camadas médias importantes e numerosas desarticula os estamentos antes bem
delimitados, os fatores antes mencionados já não podem predispor com certeza os
indivíduos para ocupar a posição na qual se encontram. Por outras palavras, como é
preciso que o indivíduo passe de uma posição inapropriada a outra adequada, a
ordem onde antes ele entrava imediatamente, de uma maneira harmoniosamente
determinada, deve ser criada doravante empiricamente a posteriori. No caso que nos
ocupa, a preservação da forma do grupo exigirá aptidão do espírito para dedicar-se
a diversas ocupações e para aperfeiçoar-se constantemente, a disposição para
mudar de posição e, ao mesmo tempo, uma grande flexibilidade, para que indivíduos
de condições especiais possam encontrar também posições especiais. Por isso, um
grupo onde predominem as camadas médias precisa, para manter a sua identidade,
de um comportamento distintamente diferente do que adotará um grupo dirigido pela
aristocracia ou um grupo cuja forma está caracterizada pela autonomia do estrato
mais numeroso.
É certo que a mobilidade que confere a um grupo a predominância das
camadas médias pode aumentar até ficar destrutiva. Pensemos no caso em que, o
mesmo tipo formal (a simultaneidade de proximidade e distanciamento que os
elementos médios e mistos possuem a respeito dos que estão mais próximos dos
extremos) incita a oposição – como o evidencia o exemplo dos filhos de casamentos
morganáticos, que frequentemente foram os adversários mais ferozes da
Georg Simmel | 653

aristocracia. Também não deveríamos desprezar a observação que a Antiguidade


nos deixou no sentido de que os tiranos que derrubaram os regimes nobiliárquicos
eram amiúde filhos bastardos dos nobres. E repetidamente se fez notar que na
América do Sul há muito menos revoltas de negros e índios que de mestiços e
mulatos; assim como que os filhos de casamentos interconfessionais
frequentemente são os críticos mais virulentos dos costumes religiosos de ambos
os pais. Ao que se acrescenta o papel da divisão do trabalho.
A divisão do trabalho representa para a existência espacial o que a flexibilidade
e a labilidade da forma do grupo significam para a sucessão temporal. Para esta
última, se trata da adaptação do grupo como um todo às várias e sucessivas
condições de vida, graças à mudança adequada da forma; enquanto, para a divisão
do trabalho, trata-se de satisfazer as necessidades diferenciadas de indivíduos em
condições de preencher as exigências concretas e coetâneas do grupo. Só pela
divisão do trabalho é possível a labilidade e gradação de profissões e posições de
que falamos acima – e ela é (o mesmo que sua contrapartida, a labilidade da forma
social) uma característica das camadas médias e da sua preeminência. Nem a
aristocracia, nem a comunidade camponesa dos homens livres tentaram desenvolver
uma divisão do trabalho em proporções condizentes. A aristocracia, porque qualquer
divisão do trabalho implicaria gradações das posições, incompatíveis com a
consciência que o estamento nobiliário tinha da sua existência e posição; a
comunidade camponesa, porque não precisava da divisão do trabalho, nem o teria
permitido o seu domínio da técnica. Contudo, o curioso é que a labilidade e a divisão
do trabalho contribuem amiúde de um modo completamente oposto para a
autopreservação do grupo, apesar de estarem vinculadas objetivamente pela sua
natureza e pelos sujeitos que são seu sustentáculo. Isso resulta do fato
supramencionado de que a pluralidade de posições em uma gradação progressiva
– produzida precisamente pela divisão do trabalho – poderá conduzir a toda a
espécie de dificuldades e inconvenientes se não for acompanhada de uma grande
mobilidade e flexibilidade entre os elementos sociais. Essa flexibilidade permite fazer
frente aos riscos procedentes de uma divisão exagerada do trabalho: fragmentação,
perda da visão de conjunto, discrepância entre os talentos de cada indivíduo e a sua
posição.
654 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Por outro lado, a relação de complementaridade entre a divisão do trabalho e


a labilidade, no que respeita à preservação do grupo, se pode expressar da maneira
seguinte. Vai haver muitos casos em que a labilidade das camadas médias criará
insegurança, indeterminação e solidão. Esse efeito poderá ser bloqueado pela divisão
do trabalho que vincula estreitamente os elementos do grupo. Os pequenos grupos
em que os povos da natureza se organizam, por centralizada que seja a sua
organização se desagregam facilmente – pois que como todos seus integrantes
sabem fazer o mesmo, qualquer banda pode existir separadamente. Por isso, embora
vivam uns perto dos outros por causa da rudeza de seu modo de vida, não
desenvolvem nenhuma qualificação especial e se reúnem de forma arbitrária. Em
compensação, a coesão dos grandes grupos das sociedades complexas se baseia
na divisão do trabalho. Neles, cada indivíduo precisa incondicionalmente do outro, de
tal modo que se dissolver o grupo deixaria seus membros sem saber o que fazer.
Assim, as restrições individuais derivadas da divisão do trabalho compensam a
labilidade que poderia comprometer a preservação do grupo. Isso se evidencia já nos
pequenos círculos. Um grupo de colonos emigrados para povoar uma terra estranha
será em geral muito flexível e capaz de se adaptar às novas circunstâncias: adotará
uma estrutura que favoreça a concentração da autoridade, ou a dispersão da tomada
de decisões dependendo do grau de ameaça exterior ou da margem de manobra que
tenha; trocará amiúde as pessoas a quem confie a direção de acordo à mudança dos
interesses e deverá procurar sua sobrevivência se associando a outros grupos e
preservando até onde for possível a sua independência e autossuficiência. Em cada
caso específico, essas variações da forma sociológica do grupo servem à própria
conservação, mas consideradas no seu conjunto, provocam incerteza, conflitos, e
defecções. No entanto, a divisão do trabalho desenvolvida entre os membros desse
grupo pode contrarrestar tais problemas, pois que torna cada indivíduo dependente
do conjunto e desperta mais interesse em procurar refúgio junto à colônia, além de
proteção e conforto físico aos pioneiros do exemplo.
Em todos os casos até aqui examinados, a facilidade com que se consegue
mudar a vida coletiva e a tendência do grupo a trocar de forma e de integrantes, foram
consideradas como uma forma de adaptação às necessidades da vida: curvar-se
para não quebrar, uma ação de prevenção que se impõe enquanto não houver essa
Georg Simmel | 655

firmeza substancial contra a qual se estatela qualquer força destrutiva. Graças à


labilidade, o grupo responde à mudança de circunstâncias, e se adéqua para
preservar a sua identidade. Contudo, podemos perguntar-nos se essa flexibilidade,
se essa capacidade para passar por situações variáveis e frequentemente antitéticas
serve apenas à conservação do grupo como reação perante a mudança do contexto
externo ou se não haverá também um profundo princípio de existência que impõe o
mesmo comportamento. Desconsiderando os motivos intrínsecos e extrínsecos que
produzem a mudança de atitude, nos perguntamos: a força e a saúde dos processos
vitais não estarão vinculadas a certa mudança de atividade, a um redirecionamento
dos interesses, e a uma revisão mais frequente da sua forma? Sabemos que os
indivíduos necessitam para a sua conservação de uma mudança de estímulos, que
eles não preservam a força e a unidade da sua existência por um condicionamento e
uma atividade mecanicamente inalterada, mas que o próprio foro interno de tais
indivíduos os predispõe a preservarem sua unidade não só na alternância entre agir
(exercer ação) e padecer (ser o objeto no qual se exerce uma ação), mas também na
mudança dentro de cada um desses termos. Consequentemente, não é impossível
que o liame coesivo do grupo precise de uma mudança de estímulos para continuar
consciente e vigoroso. Um indício desse estado de coisas é proporcionado por certos
fenômenos que manifestam uma estreita vinculação entre a unidade social e
determinado conteúdo ou configuração dessa configuração. De fato, tal vínculo se
torna evidente quando uma situação (determinada por um conteúdo ou outro fator)
se mantém inalterada durante muito tempo, e existe o perigo de que, quando algum
acontecimento exterior a derrube, arraste a própria unidade social na sua queda – do
mesmo modo que as representações religiosas que estiveram estreitamente
associadas durante muito tempo a certos sentimentos morais, levaram atrás de si os
preceitos morais antes respeitados quando foram derrubadas pelos conhecimentos
advindos do exercício da razão. É assim que uma família rica se separa quando
empobrece, mas é também o modo como as famílias pobres se desfazem quando
enriquecem subitamente. Por isso, as piores lutas intestinas ocorrem quando as
liberdades acabam em um Estado que sempre tinha gozado delas – lembremo-nos
da sorte de Atenas após a época macedônica. O mesmo pode acontecer, no entanto,
em um país despoticamente administrado quando subitamente fica livre – como o
656 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

demonstra suficientemente a história das revoluções. Parece que certa capacidade


de mudança nas determinações ou nas formas de um grupo, o protege contra o risco
de vincular rigidamente a sua unidade a uma forma determinada – pois que se isso
de produz, uma eventual mudança imediatamente ameaçaria o nervo vital da unidade
social. Ao contrário, as mudanças frequentes serviriam de amortecedor: as relações
entre as determinações essenciais e as determinações menos vitais ficam mais
frouxas, o que não comprometeria a preservação do grupo propriamente dito.
Com frequência estamos inclinados a pensar que a essência da preservação
social está na paz, na harmonia de interesses, no bom compromisso, Consideramos,
por isso, qualquer hostilidade como uma ameaça à unidade – um desperdício de
forças que poderiam servir para a consolidação do edifício social. Parece mais
inteligente a opinião de que certa alternância entre paz e conflito é a forma de vida
mais conveniente para a preservação dos grupos sociais. E isso em dois sentidos: no
que diz respeito ao conflito do grupo total contra inimigos externos, na sua
alternância com tempos de paz; e no que concerne ao conflito que os concorrentes,
os partidos e as forças opostas de todo o tipo alimentam internamente, sem prejuízo
de seus atos simultâneos de comunidade e harmonia. A paz significa uma
alternância entre harmonia e contradição na sucessão, e o conflito uma alternância
na coexistência. O motivo desses dois revezamentos é o mesmo, mas se concretiza
por diferentes caminhos. O conflito contra um poder que se encontra fora do grupo
torna os membros cientes da sua unidade e da necessidade de mantê-la inabalável.
É um fato da maior importância sociológica (um dos poucos aplicáveis, quase sem
exceção, a todos os tipos de grupos) que a hostilidade partilhada contra um terceiro
produz em todos os casos um inegável efeito de coesão – provavelmente mais que
uma relação de amizade por uma causa comum. Há poucos grupos – familiares,
eclesiásticos, econômicos, políticos ou de qualquer outro tipo – que possam
prescindir inteiramente desse aglutinante social. È como se, para nós, os homens
(para quem seu ser espiritual se baseia na capacidade de distinção), fosse sempre
preciso que os sentimentos de diferença e de unidade convivam para que o conflito
se torne perceptível e eficaz.
Esse processo pode também ser realizado dentro do próprio círculo, As
aversões e antagonismos entre os indivíduos do grupo podem maximizar a eficácia
Georg Simmel | 657

da unidade do conjunto. O efeito é o de puxar os fios do tecido social que entrelaça


os membros do grupo para deixá-los mais tensos e ao mesmo tempo mais visíveis.
De fato, essa é a melhor forma de rompê-los. Mas antes de chegar a esse ponto, os
movimentos contrários (só possíveis pela homogeneidade e intimidade fundamental
das relações) deixaram o tecido mais compacto ou firme – acompanhado ou não da
consciência acentuada da sua existência. É assim que as agressões e as violências
entre elementos da comunidade acarretam a promulgação de leis para pôr termo às
intimidações e aos abusos – que embora sejam o resultado de egoísmos individuais,
levam o conjunto a tomar consciência da sua solidariedade e da sua comunhão de
interesses. Da mesma maneira, a concorrência econômica é uma ação recíproca sem
concessões que aproxima e torna dependentes aos competidores dos consumidores,
mas de seus rivais também – em um nível mais elevado do que se a concorrência
tivesse sido excluída. Tanto, que é sobretudo a vontade de evitar a rivalidade e de
atenuar as suas consequências que conduz à firma de acordos entre as empresas
(como os cartéis industriais e políticos), e a todo tipo de regulamentações das
relações econômicas ou outras – que, apesar de nascer na sequência de um
antagonismo real ou possível, representam um elemento valioso para a coesão do
conjunto.
Consagramos um capítulo especial deste livro95 à sociologia do conflito, razão
pela qual só nos cabe aqui indicar em termos gerais a sua influência na conservação
da sociedade. A rivalidade e o conflito, no que significam para a preservação do
grupo, constituem o exemplo emblemático do valor que a variabilidade da vida grupal
e a mudança das suas formas de atividade representam para esse fim. O
antagonismo, embora nunca desapareça absolutamente, não deixa de ser apenas um
intervalo (temporal e espacial) na esfera das forças de coesão e harmonia. Por sua
própria natureza, a rivalidade representa um desses incentivos à mudança que o
princípio de unidade exige da sociedade – talvez porque o permanente só surge e
adquire uma força consciente em oposição ao que pode variar. A unidade social é a
forma (ou, se preferimos, o elemento de continuidade) por quem se revela o elemento
constante no meio de qualquer mudança de sua própria configuração específica, de

95
O autor se refere ao Capítulo IV da presente obra. (NT)
658 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seus conteúdos e de suas vicissitudes – unidade que será ainda mais perceptível
quanto mais intensa seja a mudança desses outros elementos. Assim, por exemplo,
a vitalidade surpreendente do vínculo matrimonial é, coeteris paribus, uma função da
diversidade e da troca de destino da união que se destacam sobre a imobilidade
formal da comunidade conjugal. É essencial para o homem que existam, como
condição indispensável dos diversos momentos de sua vida, seus respectivos
opostos. A multiplicidade das formas e a mudança dos conteúdos são essenciais
para a preservação do grupo, não só na medida em que produzem o sentimento de
variação em virtude do qual a unidade se destaca em face das mudanças transitórias;
mas também e sobretudo, porque essa unidade permanece sempre igual a si mesma,
enquanto as formações, interesses, e objetivos são cada vez mais diversos. Graças
a isso a unidade adquire perante todas as interrupções aquela chancela de firmeza e
efetividade que a verdade possui em face do erro. Como é sabido, a verdade por si
mesma, não possui em cada caso específico uma proeminência ou superioridade
espiritual para impor-se ao erro: a sua vitória final é provável porque é apenas uma,
ao passo que os erros sobre o mesmo objeto são incontáveis. Por isso também é
provável, que cada erro se repita amiúde, não mais como erro em geral, mas como
erro específico.
Da mesma maneira, a unidade do grupo social tem a probabilidade de se
manter, de se fortalecer e de se aprofundar em face de todas as interrupções e
vacilações porque esses incidentes são sempre de tipo diferente, enquanto a unidade
é sempre a mesma. Em virtude desse estado de coisas, os efeitos da variabilidade
social, favoráveis à preservação do grupo, podem subsistir sem que o fato mesmo da
mudança signifique necessariamente uma concorrência séria ao princípio de
unidade.
IX. O espaço e a sociedade

Um dos erros mais frequentes que comete o empenho humano de explicar as


coisas por suas causas consiste em pensar que certas condições formais
necessárias (imprescindíveis para que possam ter lugar determinados
acontecimentos) são as causas assertivas e produtoras de tais ocorrências. Um
exemplo típico seria o poder do tempo – expressão enganosa que nos impede de
procurar as causas reais do amolecimento ou arrefecimento de um sentimento, de
um processo psicoterápico ou de hábitos arraigados. Muito frequentemente
acontece algo semelhante quando se trata do espaço, Quando uma teoria estética
declara que a missão principal da arte figurativa é tornar o espaço perceptível para
nós, ela ignora que nosso interesse é direcionado apenas às configurações
específicas das coisas e não ao espaço ou à espacialidade, que é sua conditio sine
qua non, mas de modo algum contribui para a sua conformação característica nem
muito menos é o fator que gera o efeito. Quando se interpreta a própria história de
maneira a que o elemento espacial adquira tal importância que a vastidão ou
pequenez dos impérios, a concentração ou dispersão da população, a mobilidade ou
estabilidade das massas, etc., aparecem como fundamento de toda a vida histórica,
corre-se o risco de tomar por causas positivas e eficientes todos esses conjuntos,
dotados necessariamente de uma estrutura espacial. É verdade que os impérios não
podem ter qualquer tamanho, também é verdade que os homens não podem ficar
próximos ou distantes sem que o espaço lhes confira a sua forma, do mesmo modo
que aqueles acontecimentos atribuídos ao poder do tempo não podem ocorrer fora
dele. Contudo, os conteúdos dessas formas recebem de outros conteúdos a
particularidade que os caracteriza. O espaço é uma forma que, em si mesma, não
produz qualquer efeito. Evidentemente, é através de suas modificações que as
energias reais são conhecidas, mas apenas do modo como a língua exprime os
processos do pensamento. Pensamento que se registra nas palavras e não pelas
palavras. Uma extensão geográfica de alguns milhares de quilômetros quadrados
não é o suficiente para constituir um grande império. Um Estado muito vasto e
importante depende das forças psicológicas que mantém os habitantes desse
território politicamente unidos sob um único centro de poder. Não são as formas da
660 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

proximidade ou do afastamento espaciais que produzem os fenômenos singulares


de vizinhança ou de estrangeirismo, por mais obvio que isso possa parecer. Esses
fatos tendem a ser as consequências de conteúdos exclusivamente espirituais, cuja
ocorrência mantém com a sua forma espacial uma relação idêntica, em princípio,
àquela de uma batalha ou de uma conversação telefônica – fatos que só podem
acontecer em condições espaciais específicas. O que tem importância social não é o
espaço, mas a organização e a síntese das suas partes. Essa síntese de uma porção
de espaço é função especificamente psicológica que, apesar do seu aparente caráter
de dado “natural”, está inteiramente sujeita às variações individuais – mesmo se as
categorias das quais procede estão em relação mais ou menos evidente com o
espaço. Assim por exemplo, foram propostas três razões desse tipo para a coesão
social das cidades medievais de Flandres: a “comunidade natural”, quer dizer, a
reunião de moradias sob a proteção comum de muralhas e fossos, o escabinado1 da
cidade, que convertia o burgo em pessoa jurídica, e a associação eclesial dos
habitantes em paróquias. Trata-se de três motivos, absolutamente diferentes, que
concorrem para determinar a reunião do mesmo número de pessoas no mesmo
pedaço de terra. Todos os três igualmente importantes e em uma coexistência tão
pacífica como a dos feixes de luz e das zonas de sombra que ao ocuparem um
mesmo espaço determinam sua unidade – sem que a visibilidade externa das
“muralhas e fossos” confira a esse fator qualquer preeminência sobre os outros. A
necessidade de determinar as configurações espaciais específicas da história por
funções singulares da alma reflete o fato de que o espaço não é mais do que a
maneira que os homens têm de reunir sob o denominador comum de intuições
unitárias certas sensações que não possuem nenhuma ligação entre elas.
Apesar de tudo, a importância atribuída ao espaço para determinar coisas e
acontecimentos não deixa de estar justificada. De fato, umas e outros se dão
frequentemente de tal modo que a condição formal (positiva ou negativa) que
represente a sua espacialidade passa a ter particular relevância para o observador,

1
O autor alude a um corpo de magistrados, os chamados “escabinos”. O cargo de escabino, em
diferentes épocas e lugares, assumiu diversos significados: No Flandres medieval, e até as décadas
finais do século XVII, o escabinado correspondia ao atual conselho municipal, tendo funções
legislativas e executivas, pois atuava como auxiliar do burgomestre – primeiro magistrado municipal.
(NT)
Georg Simmel | 661

proporcionando o testemunho mais claro das forças realmente operantes. Embora


uma reação química ou um jogo de xadrez estejam tão sujeitos, em última instância,
a condições espaciais como uma campanha militar ou a venda de produtos agrícolas,
a importância que o espaço tem para o conhecimento em um e em outro caso é
metodologicamente tão diferente que a questão sobre as condições e influências do
espaço e o lugar, no primeiro caso nem se suscita, enquanto no segundo tem de ser
incluída sempre. A ação recíproca entre humanos é percebida também como o ato
de preencher um espaço – prescindindo do que signifique nos demais aspectos.
Quando algumas pessoas, mais ou menos numerosas, se encontram isoladas lado a
lado dentro dos limites de determinado espaço, cada uma preenche o seu lugar com
a sua substância e atividade, e deixa entre o seu e o lugar do vizinho um espaço vazio
– o que significa na prática: que não contém nada. No entanto, a partir do momento
em que duas dessas pessoas se relacionam reciprocamente, o espaço entre elas se
preenche e anima. Naturalmente, isso só se deve ao duplo sentido da palavra “entre”,
que permite que a relação entre dois elementos (que não é mais do que um só
movimento ou mudança de um e outro, no âmbito da experiência possível) se
encontre entre eles, no sentido de interposição no espaço. Independentemente dos
erros que esse duplo sentido pode causar, neste caso sociológico o “entre” se reveste
de um significado mais profundo. O “entre”, considerado como mera reciprocidade
funcional, cujos conteúdos permanecem em seus sustentáculos individuais, se
realiza aqui, efetivamente, também como reivindicação do espaço que existe entre
eles – acontece na realidade sempre entre essas duas posições espaciais, em que
cada um ocupa um lugar designado e que só ele preenche. Uma passagem de Kant
define o espaço como “a possibilidade da coexistência”. Esse é também o papel do
espaço desde o ponto de vista sociológico. A ação recíproca transforma o espaço
antes vazio em algo para nós – a ação o completa, enquanto o espaço a torna
possível. A sociação soube encontrar nas diversas variantes de ação recíproca dos
indivíduos outras tantas possibilidades de coexistência – no sentido espiritual.
Todavia, muitas delas se realizam de tal modo que a forma do espaço em que elas
acontecem (como qualquer outra coisa na terra) justifica um particular interesse para
os nossos objetivos de conhecimento.
662 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Assim, para analisar as formas de sociação, perguntamos a nós mesmos que


importância (do ponto de vista sociológico) as condições espaciais da ação recíproca
dos homens têm, para a sua evolução e outras determinações.
I. Em primeiro lugar, as configurações da vida social devem ter em conta certas
qualidades específicas da forma espacial.
A) Figura entre elas a que pode ser chamada de exclusividade do espaço.
Assim como não há mais do que um único espaço universal, do qual os espaços
particulares não são mais que fragmentos, também cada parte do espaço é única.
Para esse fato dificilmente se encontra uma analogia adequada. Pensar uma parte
do espaço bem localizada como plural é um absurdo. Justamente, esse fato
possibilita a existência simultânea de uma pluralidade de exemplares de outros
objetos perfeitamente idênticos. Isso, porque só o fato de cada um deles ocupar uma
parte do espaço onde não pode coincidir com outro, permite a esses outros serem
vários, apesar de indiferenciáveis pela sua estrutura – na medida em que o caráter
único do espaço se translada aos objetos quando consideramos essas coisas como
simples casos de preenchimento do espaço. Tal circunstância adquire grande
importância prática no caso dos objetos cujo significado espacial costumamos
sublinhar. Assim sucede sobretudo com a terra. O chão que é condição para tirar
proveito, em prol de nossos interesses, das três dimensões do espaço. Quando uma
estrutura social se confunde ou se torna, por assim dizer, solidária com determinada
extensão territorial, esta organização passa a ter um caráter único e exclusivo difícil
de atingir por outras vias. Certos tipos de instituição só podem fazer jus a sua forma
sociológica quando não há lugar para outras no espaço em que se desenvolvem. No
entanto, em alguns casos, muitas instituições, de similar natureza sociológica,
podem compartilhar o mesmo espaço porque repartem determinada extensão de
modo funcional e não quantitativo – em virtude de sua forma podem preencher um
mesmo território sem que haja colisões nesse espaço.
O melhor exemplo do primeiro tipo é o Estado. Diz-se dele que não é uma
instituição entre muitas outras, mas aquela que domina todo o resto e que, por
conseguinte, é única em seu gênero. Essa imagem, cuja exatidão no que tange à
natureza totalizante do Estado em geral não está aqui em causa, é pelo menos correta
quando se trata da situação do Estado na sua esfera espacial. O vínculo que o Estado
Georg Simmel | 663

cria entre os indivíduos está ligado ao território de modo que a existência de um


segundo Estado concomitante no mesmo solo é impensável. Até certo ponto, o
município também tem o mesmo caráter: dentro dos limites de uma cidade, só pode
existir um distrito com autonomia de gerenciamento e órgãos político-
administrativos próprios – no caso de surgir um segundo, não haveria duas cidades
no mesmo território, mas em duas jurisdições antes unidas, mesmo que agora
separadas. No entanto, a autonomia do município não é tão absoluta como a do
Estado. O território que uma cidade controla ou sobre o qual tem o direito de exercer
influência (dentro de um Estado) não acaba nas suas fronteiras geográficas. De um
modo mais ou menos perceptível, o território se estende sobre todo o país, por ondas
espirituais, econômicas e políticas – já que a administração geral do Estado se
encarrega de combinar as energias e os interesses dessa parte da nação com os do
conjunto. Desse ponto de vista, o município perde a sua exclusividade espacial e se
estende funcionalmente pelo Estado, de modo que todo ele se torna a esfera da ação
comum dos “prolongamentos ideais” das diversas comunas. A partir do momento
em que cada uma delas ultrapassa suas fronteiras imediatas, se encontra com todas
as outras que agem no mesmo território total, de tal modo que não há nesse chão
comum nenhum município desacompanhado de outro – na medida em que cada um
deles amplia a sua ação para outros âmbitos além do exclusivo território de seu
distrito onde diversas influências se sobrepõem parcialmente. Essa forma local da
vida de grupo pode assim se reencontrar dentro de cada cidade. Quando as cidades
episcopais das marcas2 germânicas deram lugar às comunas livres, estas últimas
não foram proprietárias exclusivas de seu território – onde coexistia um bispo, que
tinha conservado jurisdição sobre um numeroso grupo de ministeriales3, regidos por
seu próprio direito. Além disso, havia, na maioria dos burgos um hôtel du roi 4 ,
considerado uma comuna da corte de administração privativa, além de abadias e

2
Na Alta Idade Média, uma marca era um feudo criado em uma zona de fronteira, em decorrência da
conquista ou da separação de outro território, ao qual o soberano atribuía uma função particular de
defesa contra eventuais ataques provenientes de territórios vizinhos. Na sua origem assim eram
designados numerosos territórios fronteiriços do Império carolíngio e, por extensão, a uma província
fronteiriça, militarizada ou não. (NT)
3
Agentes ou servidores especiais encarregados de uma série de funções nas cortes (conf. nossa nota
14 no capítulo VI da presente obra). (NT)
4
Mansão suntuosa, mantida pela corte em diversas cidades do reino, destinada à eventual residência
do monarca quando de seus deslocamentos momentâneos ou visitas. (NT)
664 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

outros claustros independentes, e de judiarias5, que viviam conforme aos costumes


e leis de seus moradores. Durante o longo período que os franceses chamam de
haute époque 6 determinadas comunidades locais não chegavam a constituir uma
verdadeira comuna urbana. No entanto, inevitavelmente, a recíproca aproximação
espacial acarretava diversas influências. Antes mesmo de todas essas entidades
separadas associarem-se em um município, experimentaram a pax urbana da cidade
partilhada. Essa paz garantiu a todos os habitantes a proteção comum de seus
direitos individuais – o que quer dizer que a esfera jurídica de cada circunscrição
ultrapassou os limites dentro dos quais cada comunidade era única e se estendeu,
em igual medida, para todos, em um território progressivamente ampliado que
abrangia. o conjunto. E com essa ampliação perdeu a sua exclusividade local.
Esse tipo representa a transição para um grau superior das relações grupais
no espaço. Quando os grupos não têm que se ater a certos limites precisos no
espaço, também não podem pretender ser os únicos dentro da extensão territorial.
Foi assim que numerosas corporações de idêntica estrutura sociológica puderam
coexistir no território de uma mesma cidade. Cada uma delas chegava a ser uma
corporação da cidade toda, na medida em que repartiam esse território de um modo
não quantitativo, mas funcional – quer dizer, não colidiam no espaço porque eram
estruturas sociológicas sem determinação espacial embora fossem locais. Como só
existia uma corporação para cada ofício, cada uma dessas agremiações possuía
exclusividade espacial no mesmo burgo – compartilhando, sem contradição alguma,
o mesmo espaço com outras corporações de estrutura sociológica semelhante, mas
que reuniam os membros de outras profissões. A Igreja católica e certas confissões
eclesialmente organizadas, que reivindicam uma vocação universal e sem fronteiras,
oferecem o melhor exemplo desse tipo. Elas podem, dessa maneira e apesar de tudo,
coexistir com outras religiões do mesmo gênero em determinado lugar – uma cidade,
por exemplo. A comunidade católica seria “a comunidade católica dessa cidade”, ou

5
Judiaria era a denominação tradicional do bairro judeu ou da parte de uma cidade em que os judeus
eram obrigados, por lei, a residir. Por extensão, o termo aplicava-se a qualquer parte de um
aglomerado populacional habitado majoritária ou exclusivamente por pessoas de cultura judaica. (NT)
6
Termo empregado para fazer referência ao medievo, à renascença e ao século XVII. Engloba, assim,
tudo o que se refere à “Idade Média” segundo a ideia que dessa época se tinha feito o século XIX,
período durante o qual o termo foi inventado. (NT)
Georg Simmel | 665

seja, manteria determinada relação, como conjunto definido e organizado, com esse
território urbano – como poderia fazê-lo qualquer outra religião. O princípio da Igreja
é não espacial. Por esta razão, mesmo que se estenda sobre qualquer espaço, não
impede a existência de outra entidade análoga. Dentro do espacial. passa-se um
pouco a mesma coisa que com o contraste entre o eterno e o atemporal. Por natureza,
o atemporal é absolutamente indiferente ao problema do agora, do antes e do depois.
E ele é, portanto e no fundo, acessível e presente em cada momento. Em
compensação, o eterno é uma noção de tempo, concebido como infinito e
ininterrupto. No espacial (como não possuímos termos análogos para exprimi-lo),
diremos que a diferença correspondente fica entre, de um lado, as entidades que se
sobrepõem ao espaço, que por seu próprio sentido não têm nenhuma relação com o
espaço (e que por essa mesma razão têm uma relação uniforme com todos os pontos
dele) e, por outro lado, aquelas entidades que também têm uma relação uniforme com
todos os pontos do espaço (mas não como uma indiferença uniforme, senão como
uma solidariedade ativa com ele). O melhor exemplo da primeira forma é a Igreja, e o
melhor da segunda forma, é o Estado. Entre as duas intercalam-se certas formas
intermédias, sobre algumas das quais já nos referimos. A natureza formal de
numerosos tipos de estrutura social pode assim ser esclarecida à luz da posição
ocupada por elas em uma escala que vai da inserção territorial completa, e da
exclusividade daí decorrente, até a independência plena da espacialidade e seu
corolário, a possibilidade da coexistência de várias estruturas análogas em uma
mesma porção de espaço. Desse modo, a proximidade, o afastamento, a
exclusividade ou a diversidade da relação do grupo com seu território configuram a
razão e o símbolo da sua estrutura.
B) Outra qualidade do espaço, que exerce uma influência capital nas ações
sociais recíprocas, consiste na possibilidade de dividi-lo para um melhor
aproveitamento em fragmentos que se consideram unidades e que estão limitados
por fronteiras – efeito e causa simultâneos desse fenômeno. Quer que a
configuração da superfície terrestre nos forneça indícios suficientes para supor a
existência de uma moldura, dentro da qual possamos inscrever nossas fronteiras na
ausência de qualquer demarcação, quer que linhas puramente ideais (como os
divisores de águas) separem fragmentos homogêneos do terreno (que por sua vez
666 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

têm diferentes centros de gravidade a um lado e outro da linha), o certo é que sempre
concebemos o espaço que um grupo social preenche de alguma maneira como uma
unidade – unidade que exprime e sustenta a unidade do grupo, do mesmo modo que
a unidade do grupo é o suporte da unidade espacial. A moldura, o limite de uma
fração, tem um significado semelhante para o grupo social e para a obra de arte 7.
Respectivamente, ela exerce duas funções, que no fundo são apenas os dois
aspectos de uma mesma: delimitar a obra de arte perante o mundo circundante e
encerrá-la em si mesma. A moldura proclama a existência de um mundo em seu
interior, um mundo que apenas obedece a suas próprias normas e que não está
envolvido nas determinações e movimentos de seu entorno. Ao simbolizar a unidade
autossuficiente da obra de arte, a moldura reforça simultaneamente a realidade e a
impressão que ela produz. Do mesmo modo, a sociedade se caracteriza como
socialmente coesa quando tem seu espaço existencial delimitado por linhas
claramente conscientes, e vice-versa: a unidade das ações recíprocas, a relação
funcional de todos os elementos entre si, encontra a sua expressão espacial na
fronteira que lhe serve de moldura. Talvez não haja prova mais evidente da força
particular da coesão estatal que esse caráter sociologicamente centrípeto, essa
adesão das pessoas, em última analise, puramente espiritual, à imagem quase visual
de uma fronteira claramente definida. Raras vezes nos damos conta da maneira
maravilhosa em que a extensão do espaço corresponde aqui à intensidade das
relações sociológicas, até que ponto a continuidade do espaço permite traçar em
toda parte fronteiras subjetivas – precisamente porque não tem nenhum lugar de
fronteira absoluta. Perante a natureza, qualquer estabelecimento de fronteiras é
arbitrário, mesmo no caso das ilhas, porque, em princípio, o mar também pode ser
objeto de posse. É justamente em relação a essa ausência de predeterminação do
espaço natural que o rigor absoluto das fronteiras materiais (assim que são traçadas)
põe em relevo o poder formal da coesão social e a sua necessidade interna. Por isso,
no caso das fronteiras “naturais” (montanhas, rios, mares, desertos) talvez não seja
tão grande a consciência da circunscrição do espaço como em face das fronteiras
meramente políticas que se limitam a traçar uma linha geométrica entre dois

7
Conf. o artigo do mesmo autor: A moldura. Um ensaio estético (Der Bildrahmen. Ein äesthetischer
Versuch) de 1902. (NT)
Georg Simmel | 667

vizinhos. E isso porque, precisamente nesse caso, as mudanças de fronteiras, as


ampliações, as anexações e fusões estão muito mais próximas de nós – dado que a
entidade política se confronta nos seus confins a fronteiras vivas, espiritualmente
significativas, que não só opõem uma resistência passiva, como também uma
oposição enérgica. Todas as fronteiras desse tipo dizem simultaneamente respeito
ao ataque e à defesa, ou talvez mais exatamente, elas são a expressão espacial de
uma relação unitária entre dois vizinhos. Não temos um termo singular e inequívoco
para esta relação que poderíamos definir em linhas gerais como um estado
indiferenciado entre defesa e ataque, como um estado de tensão no qual as ações
ofensiva e defensiva estão latentes.
Isso não significa negar que a fronteira (sempre psicológica) seja eliminada ou
destacada pelas delimitações naturais: o espaço comporta amiúde, pela articulação
de suas superfícies, divisões que conferem um matiz particular às relações dos
habitantes entre si e com as pessoas de fora. O exemplo dos montanheses é o mais
conhecido, com sua singular combinação de conservadorismo e de amor à liberdade,
de áspera convivência com o entorno e de apaixonada adesão ao chão que cria entre
os monteses um vínculo extraordinariamente forte8. O conservadorismo dos vales
montanhosos explica-se muito simplesmente pelas dificuldades de comunicação
com o mundo exterior e pela falta de incentivos para mudar a maneira de ser
decorrente desse isolamento. Entretanto, quando as montanhas não exercem essa
influência coibente (como em certas regiões gregas) essa tendência conservadora
não prospera de nenhum modo. O relevo, por conseguinte, não tem mais que um
efeito inibitório, ao invés de outros acidentes geográficos que produzem o mesmo
resultado. Assim, por exemplo, o rio Nilo oferece aos seus ribeirinhos, por um lado,
uma extraordinária regularidade que favorece a atividade necessária para aproveitar

8
Essa paixão pela terra natal, particular os habitantes dos países montanhosos, como típica “saudade
de casa” (emoção puramente individual) talvez dependa da diferença significativa do território, que
vincula a consciência a esse solo e a singularidade de sua forma – e com frequência ao próprio bocado
de terra que o indivíduo possuía ou habitava. Em si mesmo, não há nenhuma razão para que o
montanhês ame mais a sua “pequena terra” que o habitante das planícies. É verdade, porém, que a
vida sentimental se liga mais fortemente e de maneira mais eficaz às configurações diferenciadas,
incomparáveis e percebidas como únicas – e, consequentemente mais a um velho povoado de ruas
tortuosas e traçado irregular que a uma cidade moderna modelada pelo acento voluntário da linha
reta, mais à montanha onde cada pedaço de terra tem uma forma individual e irrepetível do que aos
campos de várzea, cujas parcelas são todas iguais. (NS)
668 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

essas benesses. No entanto, a fertilidade torna seu vale tão exuberante que pode
impedir à população assentada em suas margens materializar seus desejos e
necessidade de manifestar descontentamento. Tais fatores benéficos conferiram à
região, a uniformidade de uma vida sempre igual, a ordenação sequencial de uma
regularidade quase mecânica, que manteve o vale do Nilo em um conservadorismo
secular, que não era nem sequer uma possibilidade na beira do mar Egeu – pelo
menos por razões geográficas.
O conceito de fronteira é extraordinariamente importante em todas as relações
dos homens entre si, embora o seu sentido não seja sempre sociológico. Essa noção
frequentemente indica que uma personalidade encontrou seus limites,
especialmente no que tange a seu poder ou a sua inteligência, à sua capacidade de
sofrimento ou de prazer – sem contudo começar nesse ponto a esfera de outra
personalidade, cuja própria fronteira deixaria mais visíveis os limites da primeira
personalidade. Nesse último caso, a fronteira sociológica implica uma ação recíproca
muito peculiar. Cada um dos dois elementos age sobre o outro, impondo-lhe uma
fronteira. O conteúdo de este agir, entretanto, consiste precisamente em não querer
ou não poder agir para além dessa fronteira e, consequentemente, sobre o outro. Esse
conceito geral de limitação recíproca provém da noção de fronteira espacial – que,
no fundo, só é a cristalização ou espacialização de processos anímicos de
delimitação, os únicos reais. Não são os países, as terras, os territórios das cidades
ou de algumas divisões administrativas que se limitam mutuamente, mas seus
habitantes ou proprietários que exercem essa ação recíproca que acabamos de
indicar. Quando duas personalidades (ou conjuntos delas) fazem fronteira entre si, a
sua vizinhança confere a cada uma delas certa coesão interna independente de
quaisquer circunstâncias. Essa dependência é mútua e cria uma espécie de relação
dinâmica com o centro. É precisamente assim que se estabelece isso que simboliza
a fronteira espacial entre os dois termos: o remate perfeito da positividade normativa
do poder e do direito dentro da sua própria esfera – pela consciência de que esse
poder e esse direito carecem de validez para além de tal fronteira. A fronteira não é
um fato espacial com efeitos sociológicos, mas um fato sociológico que toma forma
espacial. O princípio idealista de que o espaço só seria uma representação nossa
– ou mais exatamente, que seria produzido por aquela atividade sintética ao abrigo
Georg Simmel | 669

da qual damos forma ao material de nossas sensações – adota aqui uma forma
específica que permite afirmar que a forma do espaço que chamamos de fronteira é
uma função sociológica. Evidentemente que a fronteira é, antes de mais, uma
entidade perceptível e espacial que colocamos no meio da natureza sem ter em
conta, na prática, o seu valor sociológico. No entanto, esse fato age
significativamente, por sua vez, sobre a consciência da relação entre as partes.
Embora essa linha não faça mais do que marcar a diferença da relação recíproca
entre os membros de uma esfera e as relações que eles mantêm com os habitantes
da esfera limítrofe, ela vira uma energia viva, capaz de impulsionar os elementos a
unirem-se mais intimamente de um lado e de outro da fronteira – e que podem
repelir-se uns aos outros, através do limite, como cargas elétricas de mesma
polaridade ou sinal.

Digressão sobre a fronteira social

Na maior parte das relações estabelecidas entre indivíduos ou grupos, a noção


de fronteira reveste-se de grande importância. Onde quer que os interesses de dois
elementos se refiram ao mesmo objeto, a possibilidade de sua coexistência depende
da delimitação de suas respectivas esferas por uma linha fronteiriça que passe por
dentro desse objeto – uma fronteira jurídica pode significar o fim do conflito, mas
uma fronteira de poder talvez indique seu começo. Limitar-nos-emos a lembrar de
um caso de imensa importância para toda existência social humana, caso, aliás, que
já mereceu a nossa atenção, sob outro ponto de vista, no capítulo dedicado ao
segredo9. Qualquer convivência estreita se baseia, graças a hipóteses psicológicas,
em que cada um de nós sabe do outro mais do que o outro mostra de uma maneira
imediata e voluntária. Porque se tivéssemos que nos contentar exclusivamente com
as suas manifestações, em vez de um homem coerente a quem compreendemos e
com o qual podemos contar, só teríamos a nossa frente alguns fragmentos casuais
e desconectados de uma alma. Precisamos, portanto, completar os fragmentos de
que dispomos por meio de deduções, interpretações e interpolações, até

9
Conf. Cap. V da presente obra. (NT)
670 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conseguirmos uma pessoa tão completa quanto necessário para a exigência de


nossa vida interior e prática. No entanto, perante esse incontestável direito social de
invadir a intimidade alheia, querendo ou não, fica estabelecido o direito do próximo à
privacidade e à discrição – inclusive àquela discrição que renuncia a esquadrinhar o
conjunto de hábitos de outrem ou lográ-lo para penetrar contra a sua vontade na sua
vida privada e obter seus segredos. Por onde passa a fronteira entre a reconstrução
permitida (e até indispensável) da alma alheia e essa indiscrição psicológica?
Finalmente, essa fronteira objetiva e precária só representa o limite entre duas
esferas pessoais: significa que a consciência de um pode apenas se sobrepor até
certo ponto à esfera do outro e que, a partir desse ponto, começa a parte inviolável
cuja revelação somente ao outro compete. Parece evidente que o traçado dessa linha,
de infinitas variações, está em estreita relação com a estrutura geral da vida social.
Em épocas primitivas e indiferenciadas, era maior o direito a esses alargamentos das
fronteiras psicológicas, mas em compensação o interesse atribuído a essa expansão
era provavelmente menor que em épocas de pessoas individualizadas e
circunstâncias complexas. Em negociações comerciais, essa fronteira se
estabelecerá em um ponto distinto de onde passa na relação entre pais e filhos;
assim como entre diplomatas terá uma localização ideal distinta do que entre
camaradas de armas. Se tratarmos novamente deste assunto, muito afastado do
problema do espaço, nosso motivo será ilustrar a incomparável solidez e evidencia
que os processos sociais de delimitação adquirem ao se tornarem espaciais. Toda
fronteira é um acontecimento espiritual ou, mais exatamente, sociológico, Todavia,
ao se transformar em uma linha no espaço, a relação de complementaridade entre
seus aspectos positivo e negativo adquire uma clareza e incontestabilidade – é
verdade que a custa de certa rigidez – que não lhes são dadas quando a coincidência
e a separação das forças e direitos não têm sido atribuídas a uma estrutura sensível
e tais aspectos ficam em status nascendi10.
Outro problema de delimitação sociológica da maior importância tem a ver
com a diferença de graus na participação dos membros individuais das coletividades.

10
Expressão latina que pode traduzir-se como: “estado nascente” ou “gênese”. Depois de Simmel só
Max Weber (no Cap. III, § 11 de Economia e Sociedade) e, muito mais tarde, Francesco Alberoni (no
livro que dedicou em 1989 a esse fenômeno, intitulado Genese) se referiram em termos sociológicos
ao status nascendi. (NT)
Georg Simmel | 671

Distinguir o membro de pleno direito daqueles que não o são significa traçar uma
fronteira entre esses últimos e o resto da coletividade à qual, porém, pertencem em
diferentes gradações. Se objetivássemos o conjunto de direitos atribuídos aos
diversos tipos de membros de uma entidade com a metáfora gráfica dos raios
emitidos desde o núcleo dessa comunidade na direção dos indivíduos que a
integram, poderíamos delimitar o variado alcance de tais direitos, marcando pontos
sobre as linhas que representariam as irradiações propagadas. Quer dizer, os direitos
são reconhecidos em diferente grau relativamente aos membros. Esses pontos
indicariam as fronteiras da sua participação, a alguns elementos – que não existiriam
para outros –, demarcando simultaneamente dentro do próprio indivíduo não
admitido plenamente na comunidade a parte da sua personalidade aceita no grupo e
a parte que torna o indivíduo alheio. Tal situação formal pode, em algumas ocasiões,
ficar trágica quando o grupo limita o grau em que um indivíduo pertence a ele sem,
no entanto, interiorizar a fronteira correspondente nesse elemento – que acredita
formar parte integralmente de um grupo que em realidade só lhe concede uma
assimilação parcial.
É característico e está bem fundamentado que os direitos e deveres dos
membros parciais do grupo sejam definidos de um modo mais preciso que as
prerrogativas e obrigações dos membros de pleno direito. Como estes últimos
participam plenamente do destino e da finalidade da associação, não é possível
estabelecer de antemão a medida das prestações, encargos e vantagens decorrentes
da sua participação no poder – restando-lhes apenas esperar para ver o que advirá
ao conjunto e acompanhar o curso dos acontecimentos com base na sua posição
como membros do grupo. Em compensação, os membros parciais lidam amiúde com
os aspectos particulares, declarados e definidos pela associação. No geral, o que os
distingue dos membros de pleno direito não é uma questão de intensidade (uma
relação mais fraca com a totalidade e unidade do grupo, por exemplo), mas uma
questão de extensão: os membros parciais sabem o que devem proporcionar e
podem revindicar com relativa independência da sorte final do grupo e deles mesmos,
enquanto os membros de pleno direito ignoram tais delimitações da sorte reservada
ao conjunto e à parte. O sentido sociológico profundo da presença ou da ausência
dessas delimitações da pertença reside no fato de que, no caso dos membros
672 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

parciais, a maior precisão da relação lhe confere um caráter mais objetivo que no
caso dos membros de pleno direito. Como exemplo de uma esfera muito especial,
lembraremos a diferença de posição que existe entre a “criada para todo o serviço”
(ou, mais perto de nós, a “empregada doméstica”) e a “faxineira”. A relação das
empregadas domésticas com a “casa”, por frouxa que possa parecer em comparação
com a mantida com os servidores nas sociedades patriarcais, conserva uma
natureza orgânica. Suas tarefas seguem a sorte dos acontecimentos familiares e,
mesmo que seja em pequena escala, contribuem frequentemente ao ambiente que
reina no lar – uma vez que não há uma delimitação exata das funções das
empregadas domésticas. Contrariamente, a faxineira é contratada para realizar
trabalhos claramente determinados por seu empregador, tanto no seu conteúdo
como no número de horas em que deverão ser realizados – pelo que a sua relação
com o patrão terá um caráter estritamente laboral e alheio às alternativas da vida do
lar. E mesmo que seu salário seja fixado em proporção as suas prestações, não
existirá comprometimento subjetivo e pessoal com a família da casa, senão uma
relação puramente objetiva constituída por um conjunto predeterminado de direitos
e obrigações.
O exemplo por excelência, descrito noutras passagens desta obra, é a
transformação da corporação medieval de artesãos no moderno sindicato de
operários. A guilda reivindicava a entrega total de seus membros, mas em
compensação era solidária com eles em diversos aspectos de sua vida. Já a atual
associação profissional de trabalhadores, mesmo quando não é uma associação
para fins determinados, se limita exigir dos sindicados o pagamento de uma
contribuição monetária periódica, limitada em seu montante, correspondida por uma
prestação do sindicato, também quantitativa e legalmente restringida à defesa e
coordenação dos interesses profissionais de seus filiados. Neste caso, o fenômeno
da delimitação entre a parte e o todo provocou, sem qualquer ambiguidade, a
objetivação de toda a relação. É interessante observar como já na Idade Média se
marcou um limite às pertenças. Uma guilda aristocrática anglo-saxônica do século
XI dispôs que, quando um de seus membros matasse um homem em legítima defesa
ou por vingança justificada, os outros membros deveriam contribuir ao pagamento
Georg Simmel | 673

da Wergelt11. No entanto, se tirasse essa vida por insensatez, jactância ou presunção


a respeito de atributos pessoais ou de poderes, teria de suportar sozinho o ônus da
dívida. Quer dizer que o comportamento do indivíduo só repercutia na confraria
quando era moral – visto que a partir do momento que o membro afrontava
ostensivamente as convenções e conveniências morais e sociais tinha de enfrentar
as consequências. Nem sempre, porém, as guildas dessa época traçavam tais
fronteiras. Algumas chegavam a prescrever, sem reservas, diante da falta de um
membro, que todos deviam repará-la e partilhar da mesma sorte do elemento
faltoso 12 . Uma guilda dinamarquesa previu inclusive o caso do homicídio e
determinou, sem qualquer sinal de rubor na face, que o irmão culpado devia ser
ajudado na fuga pelos outros membros da corporação. Vale a pena lembrar, no
entanto, o exemplo anglo-saxônico acima mencionado, que permite apreciar a
precoce fixação de uma fronteira entre a coletividade e o indivíduo, que além desse
limite se encontra abandonado à sua própria sorte.
O caráter racionalista que revela o traçado de fronteiras entre essas entidades
só fica estranho quando se limita a participação de um conteúdo que resiste à divisão
quantitativa. Esse é, em certa medida, o caso da instituição religiosa criada na esteira
de são Francisco de Assis com o nome de Ordem Terceira 13, cujos membros são
majoritariamente fiéis leigos que querem participar da espiritualidade franciscana,
sem virarem frades. Obrigam-se assim a observar os evangelhos seguindo os passos
do santo fundador na vida quotidiana e a realizar determinados exercícios espirituais
e alguns pagamentos em troca de certas vantagens religiosas dispensadas pela
ordem principal, como missas e indulgências, mas vivendo no século. No entanto,
esse equilíbrio sutil entre os que estão dentro e os que se acham fora, não parece
compatível com a natureza absoluta da religião. A comunidade própria da ordem
existe para um propósito cuja estrutura interna não admite gradação alguma, pois
que, na medida em que haja participação, a forma da limitação entra em contradição

11
Indemnização em dinheiro fixada pelas antigas leis germânicas para pôr fim às vinganças. (NT)
12
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “let all bear it, let all share the same lot”. (NT)
13
A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, hoje Ordem Franciscana Secular foi criada por
volta de 1221 para congregar os leigos que desejavam seguir são Francisco e participar do carisma
franciscano sem deserção da própria família e sem renunciar a seu trabalho e as suas propriedades.
(NT)
674 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

com seu conteúdo. No geral, por razões facilmente compreensíveis, o conteúdo tem
mais importância para os fenômenos de delimitação que para outras formas
sociológicas. Por mais que habitualmente a limitação quantitativa de um interesse
comum imponha limitações recíprocas aos interessados, isso já não acontece com
certos interesses. Os tipos desses casos se encontram nos sistemas axiológicos
mais variados a começar pelas pastagens coletivas, às quais cada pastor pode enviar
todo o gado que possua, e terminando pelos prados eternos que todas as ovelhas
remidas podem atingir e possuir por inteiro sem diminuir a parte das demais
integrantes do rebanho.14
Se até há pouco temos falado sobretudo das ações recíprocas que se
desenrolam entre os dois lados da fronteira, oferecemos agora pelo menos um
exemplo daquelas que a própria fronteira produz como moldura do grupo. O essencial
aqui é a largura ou a estreiteza do quadro, embora não seja o único fator essencial,
já que a forma que o quadro espacial imprime ao grupo, a maior ou menor
estanquidade da moldura e a sua uniformidade, o fato de que o elemento que
constitua o quadro esteja formado por vizinhanças diversas ou por um mesmo
elemento em toda a sua extensão (como ocorre, com as ilhas e com os enclaves15
político-territoriais do tipo da república de São Marinho ou dos Estados principescos
indianos16), tudo isso tem uma importância indubitável para a estrutura interna do
grupo, embora aqui só possamos mencioná-lo. A largura ou a estreiteza do quadro
nem sempre coincidem com a grandeza ou pequenez do grupo: antes ela depende
das forças de expansão que existam no interior da coletividade. Quando essas forças
têm espaço suficiente para agir sem serem detidas pelas fronteiras na sua fase de
expansão, o quadro é largo ainda que reúna uma população numerosa – como no
caso do despotismo oriental. Em contrapartida, o quadro é estreito quando, apesar

14
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou às “fronteiras sociais”. Doravante
Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, notadamente da “influência do quadro espacial
do grupo”, da “fixação no espaço” e da “distância e proximidade das ações recíprocas”. (NT)
15
Um enclave é um território com distinções políticas, sociais e/ou culturais cujas fronteiras
geográficas ficam inteiramente dentro dos limites de outro território. (NT)
16
Os Estados principescos da Índia eram principados ou reinos localizados no subcontinente indiano
durante o Raj (o Império britânico das Índias) e sobre os quais reinava um soberano local, chamado
de "príncipe" pelos ingleses, mas que era na verdade um rei de pleno direito. Os Estados principescos
gozavam de autonomia local e possuíam seus próprios monarcas e instituições, mas se encontravam
sob proteção britânica, o que os tornava meros vassalos. Foram abolidos com ocasião da
independência indiana em 1947. (NT)
Georg Simmel | 675

de poucas pessoas viverem nele, funcione como um obstáculo para além do qual
certas energias tentam agir constantemente por não poderem desenvolver-se para
dentro. O efeito dessa situação sobre a forma social salta à vista, por exemplo, no
caso de Veneza – onde a limitação de seu território, exigente e impossível de ser
ignorada, conduziu à chamada expansão dinâmica pelo mundo antes de a uma
ampliação territorial pela força que, aliás, tinha poucas possibilidades de êxito nesse
contexto. Contudo, uma política que dirigia o seu olhar para espaços distantes e ia
muito além das fronteiras adjacentes, exigia grandes condições intelectuais que não
poderiam reunir os popolani17 da cidade dos doges. Esse fator impediu a democracia
direta em Veneza. Seu quadro de vida espacial exigia a formação de uma aristocracia
que – como já dito – governava o povo da mesma forma que os oficiais de um navio
comandam a sua tripulação.
A influência do quadro espacial do grupo na forma sociológica não se esgota
na delimitação política. A sua largura ou estreiteza produz efeitos (e consequentes
mudanças) onde quer que um grupo de pessoas esteja reunido. O próprio caráter que
se atribui amiúde à multidão congregada – impulsividade, entusiasmo,
disponibilidade – depende em parte de encontrar-se ao ar livre, ou ao menos em um
lugar de grandes proporções – se comparado com os locais em que habitualmente
transcorre a vida. Os espaços abertos dão aos homens uma sensação de liberdade,
de possibilidades ilimitadas, de horizontes longínquos – algo que dificilmente pode
surgir em cômodos de reduzidas dimensões. E o fato de que aqueles locais
espaçosos possam amiúde ficar relativamente estreitos e abarrotados, não faz mais
do que aumentar esse efeito estimulante. Por conta disso, o impulso individual
atravessa suas fronteiras habituais, acrescentando esse sentimento coletivo que
funde o indivíduo em uma unidade que supera a sua pessoa e o arrasta como uma
torrente poderosa muito além de seus propósitos e de suas responsabilidades
pessoais. A força sugestiva e excitante da grande massa e das suas manifestações
anímicas (forma sob a qual o indivíduo deixa de reconhecer seu próprio agir) se
acentua mais quanto maiores sejam a concentração dessa massa e o espaço que ela

17
Nem patrícios, nem cidadãos os popolani eram a parte da população veneziana privada de direitos
políticos, de privilégios econômicos e até de um patronímico, sendo definidos mais por omissão que
de maneira positiva. (NT)
676 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ocupa. Um local que, em meio de um tumulto, oferece um espaço ao ar livre de um


tamanho incomum para os revoltosos, há de favorecer esse sentimento de expansão
e multiplicação ilimitada das forças e do poder que tão facilmente toma conta das
massas congregadas – e que só se produz ocasionalmente em indivíduos
excepcionais no quadro estreito de uma habitação ordinária. Essa indeterminação do
quadro espacial favorece sobremaneira o típico estado de agitação da multidão. O
mesmo ocorre ante a confusão e imprecisão das fronteiras (não só em um sentido
espacial) que excitam, seduzem e enturvam a visão – e tornam tão perigosas as
reuniões na escuridão, verdadeiro dor de cabeça da polícia urbana medieval que
frequentemente tentava impedi-las fechando as ruas estreitas à noite. A escuridão
confere à própria reunião um quadro muito especial. Nele se combina de uma
maneira singular o significado do estreito e do amplo. Por uma parte, quando só se
podem ver os mais próximos, e por trás deles se ergue um muro preto impenetrável,
nos sentimos intimamente vinculados aos vizinhos imediatos, enquanto a
demarcação do espaço além de nosso campo visual chega ao máximo, parecendo
sumir por completo. Todavia, esse mesmo fenômeno acarreta, por outra parte, o
desaparecimento de fronteiras bem distintas. A escuridão alarga a capacidade de
evocar imagens de objetos anteriormente percebidos, e o homem se sente rodeado
por um quadro fantástico, vago e indeterminado. Então, no anonimato das sombras,
surge a temida exaltação e os excessos se multiplicam amplificados pela sensação
de impunidade. Trata-se do duplo e imprevisível correlato da delimitação espacial,
quando o medo e a ansiedade naturais desaparecem graças à aglomeração e a
mútua dependência das pessoas.
C) O terceiro papel do espaço nas configurações sociais é o de permitir a
fixação de seus conteúdos. Evidentemente, o fato de que determinados elementos
individuais de um grupo ou de objetos essenciais de seu interesse estejam
completamente fixos ou, ao contrário, tenham uma posição indeterminada no espaço
tem que influir na estrutura do grupo em questão. Já foi aqui explicado com suficiente
clareza como isso repercute na diferença entre as constituições dos grupos nômades
e sedentários. Não é necessário insistir dobre isso. Todavia, não se trata apenas de
um desenvolvimento esquemático do princípio de fixação. Tampouco se propõe que
quando esse princípio rege em matéria espacial se manifesta de fato nos conteúdos
Georg Simmel | 677

objetivos da vida como estabilização e ordem fixo. Entre outras razões porque essa
conexão (facilmente compreensível) nem sempre se verifica – desde que, justamente
nas situações muito consolidadas (nas que a possibilidade de desorganização não é
algo a temer), se poderá prescindir de certas regulações e intervenções legais, que
são muito necessárias quando reina a incerteza e o grupo se encontra exposto à
desagregação.
O que nos interessa é que se o grupo fixa seus membros individuais
legalmente no espaço, a maneira de fazer isso permitirá organizar os fenômenos de
acordo com determinada ordem de graus, que vão da obrigação absoluta de
residência em uma vizinhança definida até a plena liberdade de residência. A
obrigação de residência apresenta-se sob duas maneiras clássicas: a obtida
proibindo abandonar em qualquer caso o domicílio, e a que, mesmo autorizando o
afastamento sanciona-o com a perda da pertença ao grupo, ou de certos direitos
ligados ao caráter de residente. Dentre os muitos exemplos que se podem mencionar,
somente citaremos o do direito da cidade holandesa de Harlém18, que em 1245 dispôs
que não podia haver cidadãos não residentes. Todos os cidadãos estavam obrigados
a morar na cidade e só podiam abandoná-la durante 40 dias por ano para a
semeadura e a colheita. Note-se que não se trata da livre circulação entre os distintos
distritos de uma unidade política importante, mas apenas do direito de abandonar a
entidade política e continuar cidadão dessa entidade. Um bom exemplo do outro tipo
de vinculação é o direito de votar nos municípios das províncias orientais da Prússia,
que até o ano 1891 só era concedido aos residentes permanentes, e daí em diante foi
outorgado a todos os contribuintes dos impostos estaduais. Quanto menos
desenvolvido o raciocínio abstrato de um grupo, mais difícil será compreender a
possibilidade de o indivíduo pertencer a esse conjunto sem presença no local – e
tanto mais subordinadas estarão as relações concretas a essa presença pessoal dos
integrantes do grupo. Ao contrário, um intelecto mais dúctil e uma visão mais ampla
das situações permitem solucionar o problema de modo a satisfazer as exigências
essenciais de pertença ao grupo, mesmo em caso de ausência física. Tanto que,

18
Harlém é uma cidade neerlandesa, hoje capital da província da Holanda do Norte a qual foi em
tempos uma das mais poderosas das Províncias Unidas dos Países Baixos. A cidade é localizada nas
margens do rio Spaarne, a cerca de 20 km ao oeste de Amsterdã e próximo das dunas costeiras.
Durante séculos, tem sido o centro histórico da produção de bolbos de tulipas. (NT)
678 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

quando finalmente a economia monetária e a divisão do trabalho foram instituídas,


uma “representação” crescente das prestações imediatas permitiu praticamente
prescindir da presença do indivíduo.
Um segundo aspecto sociologicamente relevante da fixação no espaço se
resume na expressão simbólica de “pivô”. A fixidez espacial de um centro de
interesse conduz a determinadas formas de relação que se agrupam em torno dele.
De fato, qualquer bem imóvel à volta do qual gravitem negociações e transações de
todo o tipo é, no fundo, esse pivô estável de situações e ações recíprocas variáveis.
No entanto, a imobilidade do objeto no espaço não confere (pelo menos de momento)
àquelas circunstâncias uma forma sociológica característica. Isso talvez se
esclareça através do caso da hipoteca. A razão pela qual a hipoteca recai quase
exclusivamente sobre bens de raiz é que na propriedade imóvel se unem a fixidez e a
indestrutibilidade que podem considerar-se como correlatas à exclusividade
anteriormente mencionada: o caráter de coisa única que determina cada parte de
nosso espaço confere ao bem imóvel o caráter imperecível tão apropriado para a
caução hipotecária – pois garante ao credor, sem sair das mãos do devedor, que não
pode removê-lo de seu local nem trocá-lo por outro bem. Há contudo alguns objetos
que carecem de toda fixação no espaço aos que essa necessidade de garantia tornou
susceptíveis de hipoteca: os navios. Porque o que faz à fixidez no espaço tão
preciosa para a hipoteca (a publicidade do penhor) é fácil de conseguir também para
os navios, se a sua propriedade e sua afetação se assentassem num registro
– apesar de ser móveis. Assim, como em muitos outros casos, a determinação
substancial revelou aqui sua verdadeira natureza funcional. A função que favorecia a
hipoteca, como uma qualidade do bem de raiz, consegue o mesmo, ao menos em
parte, pela publicidade, para a qual ela é apropriada, mas que pode também ter lugar
por outros meios e com o mesmo resultado. Predomina em tal caso, como pivô da
ação econômica recíproca, um valor fixo no espaço, porém não no fundo por causa
da sua imobilidade, mas em virtude de certas funções ligadas a ela. No entanto, não
era assim que as coisas se passavam no medievo – época em que se operava uma
amálgama muito diferente de estabilidade e mobilidade nos conteúdos da vida. Na
história medieval nos deparamos com inúmeras “situações” que para nós são
totalmente alheias aos atos econômicos de direito privado e que, apesar de tudo,
Georg Simmel | 679

eram objeto deles. A soberania e a administração de justiça sobre determinados


territórios, os patronatos eclesiásticos e a percepção dos tributos, o privilégio de
cunhar moeda ou de abrir caminhos, tudo isso se comprava ou se alugava, se
penhorava ou se dava de presente. Tornar essas ações recíprocas dos homens no
objeto das suas trocas econômicas teria conduzido a uma situação ainda mais
incerta e precária, se todos esses direitos e relações não tivessem a particularidade
de estarem irrevocavelmente fixados no lugar de seu exercício. Tal elemento de
estabilidade conferiu firmeza suficiente a sua natureza puramente dinâmica e
relativa, para que se agrupassem em sua volta outras ações recíprocas econômicas.
Essa fixação local não era a de um objeto material que encontraremos sempre no
mesmo lugar, mas a fixidez ideal de um pivô que mantém um sistema de elementos
a uma dada distância e em constante relação de interação e mútua dependência.
A localização em um ponto fixo assume o papel de pivô da relação sociológica
cada vez que o contato ou a reunião de elementos só pode verificar-se em um dado
lugar. Mencionaremos alguns exemplos desse fenômeno que, de fato, representam
uma ação recíproca entre as determinações sociológicas internas e espaciais.
Estabelecer uma capela e uma organização espiritual estável onde quer que exista
um número de adeptos, por menor que seja, é uma política muito inteligente das
igrejas preocupadas com a sua expansão. Essa fixação espacial é um pivô para as
relações e une os fiéis de tal maneira que não só as forças religiosas, anteriormente
isoladas, convertem-se em comuns, senão também as energias irradiadas de um
centro tão visível são capazes de despertar o sentimento de pertença entre os
membros dessa confissão, cujas convicções religiosas se tinham adormecido no
isolamento. Desse ponto de vista, a Igreja católica é muito superior às confissões
reformadas. Na sua dispersão, a Igreja não espera encontrar um conjunto numeroso
e articulado de fiéis para constituí-lo estavelmente em manifestação local dela,
preferindo, em vez disso, agir organizadamente a partir das mais mínimas
implantações – que na maior parte dos casos se têm revelado como os pontos de
cristalização de uma vida comunitária em pleno crescimento interior e numérico.
Em toda a parte, as cidades produzem o efeito de pivôs da movimentação
contínua de pessoas ou coisas, no seu entorno próximo ou distante, fazendo surgir
um incontável número de pontos, duradouros e em constante mudança, em torno dos
680 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

quais se articulam tráfegos e deslocamentos. E quanto mais ativa essa circulação,


mais favorece o nascimento de cidades, revelando assim a profunda diferença entre
a sua vitalidade e a mobilidade nômade e inquieta dos povos da natureza. Nesse
sentido, existe um contraste muito nítido entre as manifestações típicas de vitalidade
social, conforme elas representem a vontade de se movimentar em torno de pontos
fixos ou simplesmente uma aspiração a evadir-se do espaço em que se encontram
para ir a outro – como os povos pastoris que migram para fazer que os rebanhos
mudem de pastos. É só no primeiro caso que elas adquirem forma e encontram um
ponto de cristalização para instaurar valores duráveis, mesmo que eles apenas
consistam na forma estável de relações efêmeras. Essa contraposição das formas
de mobilidade domina tão diversamente o conjunto da vida interna e externa que a
sua concretização no espaço aparenta ser apenas um caso particular. Que as
relações espirituais ou de relacionamento tenham um centro fixo onde circulem
interesses e conversações ou fluam seguindo simplesmente a forma linear do tempo;
que dois partidos políticos tenham entre si um ponto fixo (à semelhança constante
de uma orientação comum ou uma hostilidade permanente), ou que a sua relação
evolua caso a caso sem ser regrada antecipadamente; que o indivíduo outorgue um
sentido à vida no qual predomine claramente uma inclinação dada (de natureza
estética, por exemplo) que reúna todos seus interesses (tanto religiosos como
teóricos, tanto sociais ou econômicos como eróticos), permitindo hierarquizá-los
conforme certa gama de nuances dentro de uma esfera comum, ou que os seus
interesses se desenvolvam só conforme suas próprias relações de força, sem referir-
se a uma norma diretriz ou vínculo comum duradouro – todas essas alternativas dão
origem, evidentemente, a diferenças extremas de tipos de vida e determinam o curso
efetivo da nossa existência através dos conflitos e das harmonias incessantes
desses dois termos. No entanto, tudo isso representa apenas certas concretizações
particulares dessa mesma antítese universal da qual o pivô sociológico depende no
espaço. O verdadeiro sentido da circulação surge no momento em que o tráfego faz
da cidade um pivô – pois que esse sentido (ao invés da simples aspiração de
circularidade ad infinitum) consiste em que o movimento conduza a um encontro
com uma segunda força equivalente, sem que essa junção seja necessariamente
antagônica, como sempre acontece antes de o tráfego se desenvolver. Doravante, a
Georg Simmel | 681

convergência não implica atrito e desgaste recíprocos, mas complementaridade e,


por consequência, um incremento das forças que necessitam e criam um ponto de
apoio no espaço.
Também vamos falar aqui do rendez-vous, do encontro combinado de
antemão, como forma sociológica específica, cuja determinação local é sublinhada
pela própria língua francesa, da qual provém a expressão, de onde tem passado às
outras que a tem adotado e que significa o encontro mesmo, bem como o local
escolhido para a entrevista, conversa, etc. 19 A essência sociológica do encontro
consiste na relação entre a natureza pontual e o caráter passageiro do
acontecimento, por uma parte, e a sua fixação no espaço e no tempo, por outra. O
rendez-vous em geral – não apenas o erótico ou ilícito – se distingue
psicologicamente da forma habitual de existência por sua singularidade, por seu
matiz de única vez, pela acuidade daquilo que só ocorre em uma ocasião particular.
Destaca-se pela sua insularidade no andamento constante da vida, representando
certo ponto de fixação para a consciência nos parâmetros formais de tempo e lugar.
Geralmente, para a lembrança, o lugar exerce maior força associativa que o tempo,
porque tem um caráter mais concreto para os sentidos. Tanto é assim que o lugar,
sobretudo quando se trata de uma relação recíproca única que produziu forte
comoção sentimental, é associado habitual e inseparavelmente à reminiscência da
experiência já vivida e vice-versa – o lugar constitui doravante o pivô em torno do
qual a memória associa os indivíduos em uma correlação ideal.
Essa importância sociológica do ponto fixo no espaço se aproxima de outra
que poderíamos qualificar de individualização do lugar. Que pelo mundo afora as
casas medievais, e as construídas até meados do século XIX, tivessem nomes
próprios pode parecer um fato anódino e trivial. Como aquele de que há menos de 60

19
Quanto mais sociológico é um conceito, quer dizer, quando em vez de designar algo substancial ou
individual signifique uma mera fórmula de relação, mais fortemente ele determinará linguisticamente,
por si mesmo, seus conteúdos ou seu suporte. Assim, a “dominação” (Herrschaft) não é mais do que
a relação funcional entre aquele que manda e quem obedece, mas na língua alemã essa palavra
designa também os próprios superiores e ainda o território sobre o qual se estende seu domínio.
Curiosamente, a palavra mais especificamente sociológica que existe, a relação (Verbältnis), tem
conhecido uma extensão inaudita, na linguagem familiar dos germanófonos, no seu sentido de relação
erótica. Os amantes “têm” uma relação, são considerados uma unidade sociológica, “são” uma relação
e, finalmente, cada um deles “é” para o outro, a relação dele. (NS).
682 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

anos os habitantes do faubourg Saint Antoine20 de Paris continuassem dando a suas


residências nomes como Au roi de Sian, Étoile d’or21, etc. No entanto, a diferença
entre o nome individual e o simples número da casa implica uma alteração digna de
atenção na relação do proprietário e do ocupante com esse imóvel e com seu bairro.
A casa com nome deve dar a essas pessoas um sentimento de individualidade
espacial, evocar a ideia da sua pertença a um ponto qualitativamente determinado
no espaço. Misturam-se aqui em certa proporção original a determinação e a
indeterminação da designação nominal. Graças ao nome associado à representação
da casa, essa residência adquire uma existência independente com matiz individual
– ela dá a impressão de um tipo de individualidade superior àquela que proporcionam
os números repetidos uniformemente em todas as ruas e que só conhecem
diferenças quantitativas. Em face das flutuações e nivelações da circulação social
urbana, esse tipo de denominação confirma o caráter insubstituível e pessoal da
existência desde o ponto de vista espacial – caráter que se pagava por uma
indeterminação e falta de fixação objetiva em comparação com a situação atual, e
que devia desaparecer quando a circulação adquiriu certa extensão e rapidez. A casa
individualizada com um nome não pode ser encontrada imediatamente, nem sua
localização ser objetivamente deduzida como acontece com as denominações
geográficas. Apesar da sua indeterminação e da sua abstração, os números indicam,
com precisão, um lugar determinado no espaço, algo que o nome próprio do sítio não
consegue. Princípio que atinge a máxima expressão no costume de designar os
hóspedes dos hotéis pelo número do quarto e as próprias ruas por numeração
contínua, como em Nova Iorque.
Esse contraste nítido dos modos de designação revela, na esfera do espaço,
uma contradição profunda na posição sociológica do indivíduo. O homem
individualista escapa, pelas suas reconhecidas qualidades e pela sua vida
inconfundível, da integração em um sistema válido para todos, no qual se limitaria a

20
O faubourg Saint-Antoine é um dos antigos faubourgs (subúrbios) de Paris atualmente incorporados
à cidade. Ficava próximo à abadia Saint Antoine-des-Champs, que deu nome à aglomeração e à rua
principal que a atravessa. Sua vocação para objetos de mobília vem de longe, reunindo grande número
de lojas de venda de móveis e oficinas de marceneiros. Concentra-se hoje aí uma importante
coletividade de origem turca e balcânica. (NT)
21
Ao rei de Sião (atual Tailândia); Estrela de ouro. (NT)
Georg Simmel | 683

ocupar uma posição atribuída inequivocamente graças a um princípio absoluto.


Quando, em vez disso, a organização da comunidade regula a prestação do indivíduo
em função de uma finalidade que não é a sua, essa posição lhe é atribuída em virtude
de um sistema alheio a ele. Quer dizer, que não é uma norma interna ou ideal que
determina essa posição do indivíduo, mas a relação que ele tem com o conjunto. Por
isso a melhor forma de fixar esta posição é a ordenação numérica. Assim, a
numeração usada em vez de qualquer denominação pessoal para identificar o
garçom de restaurante ou o condutor de veículos de aluguel que aguarda no ponto,
sublinha convenientemente a disponibilidade automática destes trabalhadores
– cuja falta de individualidade é, aliás, reforçada pelo próprio conteúdo de seu labor,
menos uniforme e constante que o de um operário industrial. Essa diferença
sociológica é a mesma que as diversas denominações de casas representavam nas
relações dos elementos urbanos inscritos no espaço. A numeração dos imóveis da
cidade significa simplesmente um grau superior de fixação dos indivíduos no espaço,
que podem ser encontrados agora por um procedimento mecânico. Tal possibilidade
de achar alguém é, evidentemente, de natureza diferente da oferecida no medievo
pela atribuição de certos bairros ou ruas a determinados estamentos ou ofícios, ou
pela separação dos bairros cristão, judaico ou muçulmano das cidades levantinas 22.
Em comparação com esse sistema antigo, o ordenamento numérico é anti-histórico
e esquemático – como todo racionalismo pode ser muito mais individual e,
simultaneamente, muito mais indiferente ao indivíduo como pessoa.
A natureza sociológica própria da vida urbana se expressa também na
linguagem do espaço. Quanto mais claro seja o desenvolvimento dessa natureza,
mais ela se revelará racionalista – sobretudo no desaparecimento do individual, do
aleatório, dos recantos e curvas nas ruas, substituídos pelas linhas retas e pela
construção, conforme normas geométricas, obediente a leis universais. Na época de
Sócrates e dos sofistas, quando o raciocínio claro e consciente de seus fins se impôs

22
O motivo (de incalculável importância sociológica) de que o que é qualitativamente similar deve
associar-se também no espaço, tem achado sua expressão absoluta na residência comum dos
defuntos. (NS)
684 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ao caráter sentimental e tradicional do helenismo arcaico, Hipódamo de Mileto 23 foi


o primeiro a recomendar o princípio das ruas retas. A retificação das ruas curvas, a
construção de novas vias diagonais, todo o sistema moderno de simetria e
sistemática ortogonal poupa espaço e oferece economia incomparável de tempo
para o tráfego que requer a racionalização da vida. Esses princípios de circulação
permitem a localização rápida e maquinal de pessoas e coisas e revelam, em
oposição ao campo, a essência da própria cidade – antecipada já no paralelismo dos
dois lados das ruas, racionalismo intuitivo para o qual a estrutura da vida rural não
oferece analogia alguma. Devido à possibilidade mesma de sua existência, a
natureza da cidade implica certo caráter “construível”, por oposição ao princípio da
estirpe, mais orgânico e psicologicamente mais sentimental. Compreende-se bem
como isso se relaciona com o fato de que os impérios construídos a posteriori (como
o de Alexandre Magno e os diádocos 24 , bem como o romano), fossem fundados
dentro do princípio das comunidades urbanas delimitadas por suas muralhas e não
conforme a regra das entidades de estirpe comum. Essa oposição entre o caráter
mais racional da cidade e o mais natural da estirpe ecoa ainda na história dos árabes.
Com efeito, nos primeiros tempos, quando levavam uma vida nômade, os árabes só
podiam ser individualizados recorrendo à genealogia. Mais tarde, na época do califa
Omar25 se designavam pela cidade de origem e não pela estirpe.
Em suma, se os nomes próprios das casas não permitem reunir em um mesmo
símbolo a individualidade do elemento espacial e a sua relação com um círculo amplo
e variado, talvez se possa construir uma escala sociológica empregando esse
recurso formal. Quer dizer que a individualidade, o caráter único e pessoal, do lugar
onde estão estabelecidas determinadas pessoas e coletividades favorece ou impede
(com infinitas nuances intermediárias) que relações originadas nesse espaço
possam ligar-se a outros elementos. A Igreja Católica ao estabelecer sua sede em

23
Hipódamo de Mileto (ca. 498 a.C;— 408 a.C.) foi um arquiteto, urbanista, médico, matemático,
meteorologista e filósofo grego. Tendo vivido no auge do período clássico, é considerado o "pai" do
planejamento urbano em quadrículas, designado hipodâmico em sua homenagem. (NT)
24
Os generais de Alexandre Magno que disputaram entre si o império daquele depois de sua morte
são conhecidos com o nome de “diádocos”. (NT)
25
Omar ibne Alcatabe (circa 586 — 644), conhecido em português simplesmente como Omar, foi o
segundo e mais poderoso dos primeiros quatro califas muçulmanos, chamados de “os bem guiados”.
Governou entre 634 e 644. (NT)
Georg Simmel | 685

Roma conseguiu a unidade mais perfeita entre ambas as determinações. Essa cidade
é única, uma criação histórica e geográfica incomparável, localizável por um sistema
de infinitas coordenadas que dá realidade ao provérbio “todas as estradas se dirigem
a Roma”. Por acréscimo, a enorme extensão e riqueza de seu passado, o fato de que
Roma apareça como o epicentro de todas as mudanças e contrastes da história, fez
com que perdesse completamente a restrição da localização em um ponto. Por ter a
sua “santa sé” em Roma, a Igreja adquiriu um local de residência estável com todas
as vantagens de poder ser sempre encontrada, da continuidade concreta e visível, e
da segurança que proporciona a centralização de suas ações e de suas próprias
instituições. E nada disso precisou ser pago com as dificuldades e limitações que as
localizações de poder em um ponto fixo acarretam, porque Roma não é nenhum
ponto. Roma estende-se ao longo dos destinos e das aventuras que nela ocorreram,
que fazem seus efeitos psicológico e sociológico se prolongar além de seus limites
espaciais, fornecendo à Igreja a precisão da fixação local. Para servir os fins da Igreja
nas suas relações soberanas com os crentes, Roma propõe a localização e a
singularidade mais absolutas que nenhum lugar possuiu, e ao mesmo tempo se
sobrepõe à limitação e às contingências da existência individualmente fixa. As
grandes organizações precisam, devido a sua própria condição, de um ponto central
no espaço, pois elas não podem sobreviver sem estabelecer relações de
subordinação e hierarquia. Além disso, o posto de comando deve possuir uma
posição fixa para ter seus subordinados ao alcance da mão e para que estes saibam
sempre onde encontrar o indivíduo ou conjunto de pessoas encarregado de dirigir a
organização. No entanto, quando não se dá essa maravilhosa fusão de localização e
ubiquidade característica de Roma, são necessárias certas renúncias. Tomemos
como exemplo o caso dos franciscanos. Originariamente, esses religiosos
pertencentes à ordem fundada por são Francisco de Assis careciam de domicílio fixo,
porque o seu distanciamento de todas as amarras terrenas, a sua pobreza e a sua
missão de pregadores assim o exigiam. Só quando a extensão da ordem reclamou
“ministros”, foi necessário que eles tivessem, pelas razões acima referidas, um
domicílio permanente – os frades não puderam doravante prosseguir a vida sem
fixar-se em um convento. Todavia, por muito útil que isso tenha sido para o
crescimento e o melhor cumprimento de sua missão, aquele desprendimento
686 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

incomparável e a segurança interior dos primeiros irmãos, de quem se dizia que não
tinham nada, mas possuíam tudo, desapareceu. Desde o momento em que os
franciscanos assumiram como os outros homens uma residência fixa, sua forma de
vida se banalizou e a liberdade, embora continuasse a ser grande, deixou de ser
infinita, já que estavam vinculados ao menos a um ponto fixo.
Em comparação, a centralização do culto judaico em Jerusalém, semelhante
em muitos aspectos a Roma, produziu efeitos muito diferentes. Enquanto o templo
de Jerusalém existiu, um fio invisível o ligava a cada um dos judeus dispersos pelas
mais diversas localidades, com as suas diferentes nacionalidades e línguas, e
inclusive com os seus vários interesses e matizes religiosos. O templo era o ponto de
contato que servia de intermediário nas relações, em parte reais e parcialmente
ideais, de todo o judaísmo. Possuía, entretanto, uma condição em virtude da qual a
sua significação local era muito maior que a romana: só no templo de Jerusalém se
podia sacrificar – Iahweh não tinha outro altar para os sacrifícios. A destruição
romperia esse laço devindo excessivo: à energia e à nuance específicas que o culto
de Iahweh tinha extraído dessa localização absolutamente singular, sucedeu um
deísmo incolor, que favoreceu a separação do cristianismo, tornando-a mais rápida
e radical. O lugar central de Jerusalém foi substituído pelas sinagogas autônomas, e
a coesão efetiva dos judeus ficou menos de caráter religioso e mais de cunho étnico.
Eis as consequências dessa exacerbação localista que colocou o vínculo sociológico
em face do dramático dilema do tudo ou nada.
D) O espaço apresenta ainda um quarto tipo de relações objetivas que se
transformam no mundo da vida (Lebenswelt) e das ações recíprocas sociológicas
pela proximidade ou pela distância sensível entre as pessoas que mantêm qualquer
relação digna desse nome. Basta um simples olhar para se convencer de que duas
associações, cuja coesão se deva à igualdade fundamental de interesses, energias e
sentimentos, terão distinto caráter conforme seus membros sejam vizinhos ou
estejam separados uns dos outros no espaço. E isso não apenas no óbvio sentido de
uma diferença nas relações totais (uma vez que não se trata unicamente de que se
acrescentem àquela relação outras relações determinadas pela proximidade
corporal), mas no sentido de que a relação espacial modifica as outras relações
– incluídas as possíveis à distância. Um cartel econômico ou uma amizade, uma
Georg Simmel | 687

associação de filatelistas ou uma comunidade religiosa podem superar constante ou


temporariamente a carência de contato pessoal. Entretanto, assim que o vínculo que
une os membros não tenha que vencer nenhuma distância, surgirá a oportunidade
real de inúmeras mudanças quantitativas e qualitativas. Antes de entrar em
pormenores, digamos que, em princípio, a diferença entre esses dois tipos de relação
é mais relativa do que deixa transparecer a mera contradição lógica entre reunião e
separação. O efeito psicológico da reunião pode, de fato, em larga medida ser
substituído pela comunicação indireta e ainda mais pela fantasia. Nas relações
humanas, fica fácil conseguir esse efeito justamente nos polos opostos do ponto de
vista espiritual – nas relações puramente objetivas e impessoais e nas baseadas na
intensidade do sentimento. Como exemplo das relações puramente objetivas se
podem mencionar certas trocas econômicas e científicas, porque seu conteúdo é
totalmente exprimível sob formas lógicas e, consequentemente, por escrito. Das
baseadas na intensidade do sentimento, citaremos as relações religiosas ou
sentimentais, porque o poder da fantasia e a devoção do sentimento ultrapassam as
condições de tempo e lugar que cercam o vínculo de uma forma que amiúde assume
proporções místicas. Todavia, na medida em que nos afastamos da clareza desses
extremos a proximidade espacial fica mais necessária. Tal sucede quando as
relações fundadas objetivamente revelam lacunas que só podemos preencher com
fatores imponderáveis, indescritíveis em termos lógicos, ou quando as relações mais
íntimas não podem prescindir do complemento de necessidades externas sensíveis.
Desde esse ponto de vista, talvez se pudesse construir, com a totalidade das ações
sociais recíprocas, uma escala de graus sucessivos de proximidade ou
distanciamento espacial capaz de suportar ou requer a sociação de certas formas e
conteúdos. A seguir, daremos vários exemplos da forma como poderíamos encontrar
os critérios necessários para a construção de semelhante escala.
Nas mesmas condições sentimentais e de interesse, a capacidade expansiva
de uma sociação depende da capacidade de abstração dos homens. Quanto menos
a consciência for capaz de realizar uma análise redutora e simplificadora do
complexo mundo perceptivo em que vivemos, a vinculação do que está separado no
espaço ou a disjunção do que é espacialmente vizinho será mais incapaz de
representar-se. A essa altura, a natureza das forças de sociação remontam
688 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

diretamente aos fundamentos últimos da vida intelectual, ao fato de que a unidade


ingênua do entendimento inexperiente não consegue ainda distinguir com clareza o
eu de seu ambiente. De um lado, o eu continua a se esvair nas imagens dos outros
homens e das coisas, sem dar destaque ao indivíduo, como o demonstra a carência
de eu da criança e a indiferenciação quase comunista das sociedades arcaicas. Por
outro lado, nessa fase não se outorga aos objetos existência independente: o
egoísmo ingênuo da criança ou do homem no estado de natureza deseja quaisquer
bens em que possam botar a mão – e como deseja botar a mão sobre quase todo o
que se aproxima sensivelmente dele, estende a esfera do eu sobre todas as coisas,
tanto prática como teoricamente, pelo subjetivismo do pensamento e pelo
desconhecimento das leis objetivas. Pode-se ver assim o quão importante há de ser
(com uma disposição mental desse tipo) a proximidade sensível para a consciência
da conexão dos seres. Todavia, dado que essa proximidade não se apresenta como
um fato espacial objetivo, mas como superestrutura ideal desse fato, pode ser
substituída eventualmente, ainda nesse estádio, por outros conjuntos de fatos de
consciência – por exemplo, pela pertença ao mesmo grupo totêmico. Nesse caso
(conforme já vimos que passava entre os aborígenes australianos) o vínculo
resultante liga tão estreitamente indivíduos de grupos completamente separados que
os homens do mesmo totem, quando formam parte de diversos bandos em luta, se
evitam no combate. Todavia, para as formas primordiais de consciência, no geral, só
a proximidade física serve de prova da cercania espiritual – porque, por diversa que
seja a natureza da cercania espiritual, o entendimento indiferenciado não sabe
distinguir claramente uma da outra. Da mesma maneira que ainda hoje as relações
com o vizinho e o interesse que ele suscita têm um significado muito diferente nas
cidades pequenas, de mentalidade acanhada, e na grande cidade, onde a
complicação e confusão das imagens da vida favorecem um recurso frequente ao
pensamento abstrato, à indiferença para com a vizinhança e a uma relação estreita
com quem talvez esteja muito longe.
Por essa razão, nas épocas em que a abstração que permite não prestar
atenção na distância é exigida pelas circunstâncias objetivas, mas esbarra com a
fraqueza do desenvolvimento psicológico, se produzem tensões sociológicas de
consequências consideráveis para as formas de comportamento. Assim, por
Georg Simmel | 689

exemplo, o direito de tutela dos monarcas anglo-saxônicos sobre a Igreja de seu


reino tem sido corretamente explicado pela insularidade e pelo grande afastamento
dessas regiões relativamente à sede romana. Na época, a presença pessoal era ainda
considerada uma condição suficientemente necessária ao exercício da autoridade
para ignorá-la sem motivo a favor de uma instância tão distante. De resto, estamos
inclinados a admitir a existência histórica de um efeito em sentido contrário nesse
contexto. Quando pela superioridade espiritual de uma das partes ou por força das
circunstâncias ficou inevitável produzir certas relações a uma distância tal que a
consciência não estava em condições de superá-la, esse fato deve ter contribuído
largamente ao progresso da abstração e à capacidade de expansão do espírito – e a
necessidade sociológica teve, portanto, que criar seu órgão na psicologia individual.
Por isso, a relação da Europa medieval com Roma, quando não sucumbiu (como na
Inglaterra) à distância geográfica, foi, sem dúvida, uma excelente escola de abstração
– desenvolveu a capacidade de ir além dos limites do que está sensivelmente
próximo e sancionou a superioridade das forças que só valiam por seu conteúdo
relativamente às forças baseadas na presença espacial. Dir-se-ia que, para cada
uma das relações sociológicas, existe um “limiar” da distância que pode ser
ultrapassada, de modo que até certo grau o afastamento espacial aumenta a
capacidade de abstração e é suportável, mas que, passado esse limite, paralisa a
abstração e se torna intolerável. As distâncias geográficas, com suas inúmeras
transições e seus diversos sentidos psicológicos, revelam variados fenômenos de
limiar, especialmente se estiverem combinadas com distâncias de tempo. As
relações sentimentais constituem o exemplo mais claro. Uma separação espacial
pode, durante um tempo, exaltar o mútuo sentimento, mas. a partir de determinado
momento. a distância terá consumido as energias afetivas e sobrevirá então o
arrefecimento das paixões e a indiferença. Um curto afastamento físico modificará,
às vezes, muito pouco a intensidade dos sentimentos, ao passo que uma separação
significativa inflamará os sentimentos de um ardor desesperado. Contudo, se aquela
pequena distância resulta apesar de tudo intransponível, desembocará
frequentemente nas situações mais trágicas. Isso porque as forças que impedem o
reencontro serão sentidas com mais violência do que ao se esbarrarem no espaço,
em si indiferente – o obstáculo exclusivamente físico não irrita tanto como o
690 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

espiritual, não transmite a ideia de um destino que persegue com sanha uma ou outra
pessoa, senão que é o fruto do azar dos humanos.
Se as relações a grande distância pressupõem sobretudo certo
desenvolvimento intelectual, inversamente, o caráter mais sensível da proximidade
local se manifesta no fato de que, com vizinhos muito próximos, deve haver, no geral,
relações amistosas ou hostis, quer dizer, baseadas em um sentimento categórico
– parece que a indiferença recíproca é impossível quando existe proximidade
espacial. É verdade que o predomínio do intelecto significa sempre uma diminuição
dos sentimentos extremos. Tanto por seu conteúdo objetivo como por sua função
anímica, essa preponderância da inteligência é o princípio de imparcialidade que
permite superar as contradições, no meio das quais se sucedem alternadamente o
sentimento e a vontade – nem as épocas históricas nem os indivíduos fortemente
marcados pelo intelecto se distinguem geralmente pelo primado ou excesso de amor
ou de ódio. Todavia, essa correlação, que também pode ser aplicada as diversas
relações que se verificam entre os homens, não age sempre no mesmo sentido. Por
mais eficaz que o intelecto seja para identificar pontos comuns que permitam chegar
ao mútuo consenso, a intelecção estabelece, ao mesmo tempo, certa distância entre
os indivíduos – o que possibilita a aproximação e a coincidência dos que estão mais
longe, criando em contrapartida uma relação objetiva e mais fria entre os próximos.
A relação com pessoas distantes no espaço aparenta, assim, com frequência, certa
serenidade, moderação e falta de paixão, que o pensamento ingênuo acredita ser a
consequência imediata da distância, do mesmo modo que imputa a diminuição da
velocidade de um projétil à mera extensão do espaço que ele deve percorrer. Na
verdade, o papel da distância espacial consiste unicamente em eliminar os estímulos,
atritos, atrações e repulsões que a proximidade sensível produz, assegurando que,
na complexidade dos fenômenos anímicos, das interações sociais, predominem os
processos intelectuais. Perante aquele fisicamente próximo de nós, e com quem
temos contato recíproco nas situações e ambientes mais diversos, sem possibilidade
de antecipação ou escolha, só costumam expressar-se sentimentos definidos e sem
nuances, originados das pulsões de afeto ou aversão – desde que essa proximidade
pode ser a causa tanto dos momentos mais sublimes como do constrangimento
mais insuportável. Sabe-se, há muitos anos, que os ocupantes da mesma casa só
Georg Simmel | 691

podem ser amigos ou inimigos. Assim, quando já existem relações muito próximas,
que uma proximidade espacial permanente não possa acrescentar na sua essência,
será melhor evitar tal contiguidade que acarreta um vasto leque de possibilidades
nefastas, que permitem ganhar pouco, mas perder muito – porque se é bom ter por
amigo o vizinho, pode ser perigoso ter por vizinho o amigo. Não existe,
provavelmente, nenhuma relação amistosa que não intercale, na sua proximidade,
alguma separação, substituindo assim esse afastamento espacial às medidas,
amiúde penosas e vexatórias, necessárias para conservar a distância interior no caso
de contacto ininterrupto. Duas exceções confirmam o fundamento dessa regra da
polaridade dos sentimentos na convivência estreita – proximidade que em ambas
pode dar-se no meio da maior indiferença e sem comprometer qualquer reação
sentimental mútua. A primeira exceção alude ao convívio das pessoas de um nível de
cultura elevado, enquanto a segunda se refere às relações de vizinhança na grande
cidade moderna. No primeiro caso, o predomínio da intelectualidade reduz as reações
impulsivas à excitação do contato e, no segundo, os contatos incessantes com
inúmeras pessoas produzem o mesmo efeito embotando a sensação – a indiferença
para com quem frequentamos é aqui uma simples medida de precaução sem a qual
a metrópole escorcharia e esmagaria a nossa alma. Quando temperamentos
apaixonados e veementes demais se opõem a esse efeito apaziguador da vida
citadina, procuram-se, por vezes, outras medidas preventivas. Na Alexandria
imperial, por exemplo, dois dos cinco bairros estavam habitados principalmente por
judeus, a fim de evitar, na medida do possível, os conflitos de vizinhança causados
pela afirmação da etnicidade de hebreus e gentios. Por conseguinte, se um mediador
procura antes de tudo manter duas partes hostis (que chegam ao confronto físico)
espacialmente separadas, isso não contradiz o fato de que, justamente, se esforce
em reuni-las quando estão muito afastadas. Em muitas pessoas, a fantasia que se
acalenta à distância conduz a um exagero extremo dos sentimentos, ao lado do qual
a excitação produzida pela proximidade sensível, por maior que seja, parece limitada
e finita.
A par dos efeitos evidentes da proximidade espacial e da consciência,
sociologicamente importante, de dispor constantemente de tais efeitos, embora não
sejam utilizados de fato, achamos que a consequência da proximidade para a forma
692 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de sociação tem relação também com a importância dos sentidos com que os
indivíduos se percebem uns aos outros.

Digressão sobre a sociologia dos sentidos

A própria circunstância de perceber os semelhantes pelos nossos sentidos


traz dois tipos de consequências cujo efeito conjugado tem uma importância
sociológica fundamental. Subjetivamente, a percepção sensorial do próximo
desencadeia em nós sensações de prazer ou de desgosto, de exaltação ou de
depressão, de excitação ou apaziguamento pelo aspecto ou o tom da sua voz, pela
mera presença física dele no mesmo espaço que nós. Nada disso serve, contudo,
para o conhecimento ou determinação de outrem: somos nós os que
experimentamos uma sensação agradável ou desagradável porque ele está lá e nós
o vemos ou escutamos – o próprio semelhante não participa da reação afetiva
produzida pela percepção de sua imagem sensível. Na direção contrária, a impressão
sensorial se desenvolve quando é considerada como meio para o conhecimento do
outro: o que então vemos, ouvimos e sentimos dele não é mais do que a ponte pela
qual temos acesso a ele mesmo, como objeto de nosso conhecimento. Os sons da
linguagem e seu significado talvez nos proporcionem o exemplo mais acabado. Por
um lado, a voz de uma pessoa exerce imediatamente sobre os ouvintes um efeito de
atração ou de aversão, independentemente do conteúdo das palavras pronunciadas.
Por outro lado, o que ela diz nos serve para conhecer não só seus pensamentos
atuais, mas também a sua íntima personalidade – e o mesmo acontece com todos
os sentidos, que conduzem ao sujeito, a seus estados de ânimo e sentimentos, mas
também levam ao objeto e a sua descoberta. Quando não se trata de objetos
humanos, esses dois aspectos se apresentam de uma forma muito mais
diferenciada. Na sua presencia sensível, acentuamos, quer seu valor subjetivo para
nosso sentimento – o cheiro da rosa, a suavidade de um som, o charme dos ramos
balançados pelo vento, aspectos que sentimos como um deleite da alma humana –
quer a pretensão de conhecer o objeto (a rosa, o som, a árvore), em cujo caso
empregamos outras energias completamente diferentes, pondo de parte amiúde,
deliberadamente, a impressão subjetiva precedente. Essas alternativas, quase
Georg Simmel | 693

desconexas no caso dos objetos, se combinam geralmente em uma única unidade


quando se trata do homem. As nossas impressões sensoriais sobre ele baseiam
nossa relação com ele, a partir de seu valor afetivo, e do seu emprego para um
conhecimento instintivo ou intencional dele – em unidade praticamente indivisível. A
nossa relação com o próximo se encontra determinada, em grande medida e
proporção, por essas duas direções da impressão – o som da voz e o significado do
que ela diz, o aspecto exterior e a sua interpretação psicológica, a atração ou repulsa
que desperta o ambiente social ou espiritual que o rodeia, bem como a dedução
instintiva que fazemos de suas qualidades morais, e frequentemente também de seu
nível cultural.
Entre os diferentes órgãos sensoriais, os olhos desempenham um papel
fundamental na vida social: ao possibilitar a ligação e a ação recíproca dos indivíduos
que se olham. Trata-se talvez da ação recíproca mais direta e clara, embora não
fiquem rastros de sua efêmera ocorrência no campo da experiência sensível. Quando
os laços sociológicos se tecem habitualmente apresentam um conteúdo objetivo e
engendram uma forma objetiva. Até a palavra pronunciada e ouvida conserva um
sentido objetivo que poderia se comunicar de outro modo. Contudo, a vivíssima ação
recíproca da qual os indivíduos que se olham nos olhos participam não tem um
resultado objetivo, pois que a união que esse olhar cria entre eles se esgota no evento,
some na função. A relação é tão forte e sutil que só se produz pelo caminho mais
curto, a linha reta que une as pupilas dos agentes – o mais leve desvio dessa linha, o
mínimo olhar de soslaio destruiria por completo a especificidade do laço criado. Não
fica aqui nenhum vestígio objetivo, como ocorre mediata ou imediatamente nas
outras relações que se verificam entre os homens, inclusive nas palavras trocadas, e
a ação recíproca se extingue no momento em que cessa a função imediata. Toda
relação social e afetiva dos indivíduos, a sua compreensão mútua ou a sua repulsa
recíproca, a sua intimidade e a sua indiferença mudariam de maneira insuspeitada se
não existisse o olhar cara a cara – que à diferença da simples visão ou observação
do outro implica uma relação totalmente nova e incomparável com ele.
A intimidade dessa relação provém do fato notável de que o olhar dirigido ao
outro, o olhar inquisidor é, em si mesmo, expressivo – e o é justamente pela maneira
de olhar a esse outro. No olhar que o outro capta, se manifesta a si mesmo quem
694 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

olhou para ele. No mesmo ato em que o sujeito pretende conhecer o objeto, esse
mesmo objeto se desvela. Não se pode perceber por meio dos olhos sem ser
percebido ao mesmo tempo. Tentando pôr a alma do outro à vista, a própria alma se
revela ao outro. Mas como de toda a evidência isso só acontece olhando-se ao
mesmo tempo e de modo imediato nos olhos do outro, nos encontramos aqui com a
reciprocidade mais perfeita no campo das relações humanas.
Compreende-se porque a vergonha nos faz baixar os olhos, nos furtar ao olhar
do outro. Não só para não comprovar que o outro nos vê em uma situação tão penosa
e perturbante, mas também para privar o outro de uma ocasião de nos conhecer. O
olhar aos olhos do outro não serve apenas para que eu o conheça a ele, mas também
serve a ele para conhecer-me a mim. Na linha que une os dois olhares, cada um
transmite ao outro a sua própria personalidade, o próprio estado de ânimo, as
próprias pulsões. Nessa relação sociológica e sensível a “política da avestruz”
encontra expressão prática: quem não olha para o outro, evita, até certo ponto, o seu
olhar. Para que o homem se revele a seu próximo, não basta que esse outro olhe para
ele, é preciso que ele olhe para o seu semelhante.
O significado sociológico do olhar depende, antes de tudo, da expressão do
rosto, que se apresenta como o primeiro objeto do olhar entre os seres humanos.
Poucas vezes se compreende claramente até que ponto o próprio aspecto prático de
nossas relações depende do conhecimento recíproco, consciente e instintivo, que
tenhamos dos outros – isso não só no que se refere ao externo ou às intenções e
estados de ânimo momentâneos deles, mas também do que sabemos do seu ser, de
seus alicerces morais e da imutabilidade da sua natureza, que será o que
inevitavelmente colorirá as nossas relações, momentâneas ou duráveis, com outrem.
Todavia, o rosto é o lócus de todos esses conhecimentos, o símbolo de todo o que o
indivíduo traz como pressuposto de sua vida. No rosto estão inscritos os vestígios
do passado transformados em traços indeléveis. Quando percebemos o rosto
humano desde essa perspectiva, se introduz na relação um elemento alheio as suas
eventuais finalidades práticas: o rosto permite compreender o homem olhando
apenas para ele, sem esperar que ele aja. Considerado como órgão expressivo, o
rosto é de natureza puramente “teórica”, não age como a mão, como o pé ou o corpo
inteiro, não é veículo da conduta reservada ou pública do homem, mas fala dela. O
Georg Simmel | 695

tipo especial de “conhecimento” prenhe de consequências sociológicas que o olho


proporciona tem a ver com o fato de que o rosto é o objeto principal da visão entre
indivíduos. Esse conhecimento (Kennen) é diferente do saber (Erkennen). Desde o
primeiro olhar, sabemos com quem temos que lidar mesmo de um modo vago e
hesitante. Se geralmente não nos apercebemos desse fato e da sua importância
fundamental, é porque, partindo daquela base implícita, direcionamos imediatamente
nossa atenção para a descoberta de características particulares dos conteúdos
singulares que determinam em cada caso o nosso comportamento prático perante
os outros. Bastará recuperar a consciência de esse saber primário e evidente para
nos surpreender com a quantidade de informação que o primeiro olhar dirigido para
um homem fornece – e que, contudo, não é nada que se possa expressar em
conceitos ou dissecar com minúcia. Talvez não consigamos dizer se o homem que
vimos pela primeira vez é esperto ou estúpido, gentil ou violento, dinâmico ou
indolente, já que todos esses traços psicológicos ou morais do indivíduo
– suscetíveis de ser sabidos (erkannt) no sentido habitual do termo – são apenas
qualidades gerais que ele partilha com um número incalculável de outros homens, ao
passo que aquilo que esse primeiro olhar nos revela não se pode analisar nem
traduzir em tal tipo de conceitos e expressões, ainda que esse modo de ser tinja com
a sua cor todos os conhecimentos posteriores que adquiramos em relação àquela
pessoa. Isso porque consiste na apreensão imediata da sua individualidade: é a
maneira em que a sua aparência (seu rosto) o revela ao nosso primeiro olhar – que
por ser primeiro pode levar consigo bastantes imprecisões logo corrigidas.
Se o rosto oferece assim ao olhar o símbolo sensível mais perfeito da
interioridade do indivíduo, esse vestígio de quanto se tem acumulado no mais
essencial e duradouro da nossa natureza cede simultaneamente, porém, às variadas
situações do momento. Eis um fenômeno absolutamente único na esfera do humano:
a essência geral do indivíduo (idealmente posicionada além das contingências
particulares) se manifesta sempre no matiz singular de um estado de ânimo ou de
um impulso momentâneo. O fator fixo de unidade se apresenta como algo
inteiramente concomitante ao fluxo variável na nossa alma – o um sempre aparece
sob a mesma forma do outro. Torna-se evidente aqui a diferença sociológica entre o
olho e o ouvido. A audição nos proporciona apenas a manifestação do homem sob a
696 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

forma do tempo. O olhar nos revela também a permanência de seu ser, os vestígios
de seu passado na forma substancial de seus traços, de tal modo que vemos quase
em um instante a sucessão dos atos da sua vida. Embora o rosto revele igualmente
o estado de ânimo do momento, inferimo-lo tão bem da palavra falada, que na
contribuição efetiva do olhar predomina o caráter duradouro da pessoa graças a ele
conhecida.
Por isso os matizes sociológicos que coloram a situação do cego e do surdo
são completamente diferentes. Para o cego, o outro só existe verdadeiramente no
tempo, na sucessão temporal de suas palavras. Ele ignora a simultaneidade inquieta
ou inquietante dos traços de um ser, os vestígios deixados por todo o passado que
podemos encontrar no rosto, às vezes enigmático, dos seres humanos – quiçá seja
esse o segredo fundamento do estado de ânimo (aprazível e calmo, uniformemente
amistoso com quem os rodeiam) que verificamos com tanta frequência entre os
cegos. Geralmente, o que vejamos de um homem será interpretado pelo que ouçamos
dele – o contrário é muito mais raro. Por isso, quem vê sem ouvir viverá muito mais
confuso, hesitante e intranquilo que aquele que ouve sem ver. Encontramo-nos aqui,
na presença de um fator importante para a sociologia das metrópoles. Em
comparação com as cidades pequenas, a vida quotidiana das cidades grandes e
importantes se baseia muito mais no olhar do que no ouvir. A razão disso não é
apenas o fato de que nas cidades pequenas as pessoas que encontramos nas ruas
são frequentemente indivíduos que conhecemos bem, com quem trocamos qualquer
palavra amistosa, ou cuja visão evoca em nós a sua personalidade total além de sua
aparência visível, sobretudo por causa dos meios de transporte coletivo. Antes das
ferrovias, dos ônibus e bondes no século XIX, os homens não podiam sequer imaginar
que algum dia poderiam ou deveriam ficar olhando-se reciprocamente durante
minutos ou horas sem falar um com o outro. As comunicações modernas fazem com
que a maior parte das relações sensíveis estabelecidas entre os homens sejam
confiadas exclusivamente, e cada vez mais, a seu olhar – o que deve basear os
sentimentos sociológicos gerais em fundamentos muito diferentes. O viés
enigmático que acabamos de constatar no homem, somente visto quando
comparado com aquele que podemos ouvir, contribui com certeza ao caráter
Georg Simmel | 697

problemático da vida moderna, à desorientação generalizada e ao confuso


sentimento de isolamento e de estarmos cercados por portas fechadas.
Uma compensação sociologicamente muito útil dessa diferente contribuição
dos sentidos provém do fato de que a nossa memória auditiva é bem melhor que
nossa memória visual – apesar de que as palavras faladas pelos homens possam
ser facilmente esquecidas, enquanto, para o olhar, esses falantes serão sempre
objetos relativamente estáveis. Quanto mais não fosse por essa circunstância, o
ouvido de um homem será mais fácil de enganar que o seu olhar – sendo evidente
que essa estrutura de nossos sentidos e seus objetos determina todo o modo das
relações humanas. Se as palavras ouvidas não desaparecessem imediata e
definitivamente depois de que foram pronunciadas e fossem conservadas em
compensação sob a forma da memória, e se o olhar, que carece dessa capacidade de
reprodução de seus conteúdos, não dispusesse da permanência do rosto e de seu
significado, a nossa vida intersubjetiva repousaria sobre uma base completamente
distinta. Imaginar essa outra vida seria uma especulação vã. É suficiente ver que essa
vida em princípio é possível, para liberarmos do dogma segundo o qual a forma de
sociação humana que conhecemos é uma evidência incontestável que não depende
de circunstâncias particulares. A pesquisa histórica eliminou já esse dogma no que
diz respeito às diversas grandes formas sociais: sabemos que as nossas estruturas
familiares e a nossa forma de economia, o nosso direito e os nossos costumes são
o resultado de condições que eram diferentes alhures e tiveram, portanto, diferentes
resultados. Por consequência, sabemos também que essas realidades que nos
rodeiam não bastam para situarmos no terreno mais profundo onde o que existe de
fato seria também o absolutamente necessário que não poderia compreender-se
como o resultado particular de causas particulares. Entretanto, essa questão não tem
sido suscitada ainda para as funções sociológicas mais gerais que se desenvolvem
entre os humanos. As relações primárias e imediatas que determinam
posteriormente todas as estruturas superiores parecem tão solidárias com a própria
natureza da sociedade que nos esquecemos de que elas são unicamente solidárias
com a natureza dos homens e que devem, portanto, ser explicadas pelas condições
particulares deles.
698 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

A oposição entre o ouvido e o olhar que acabamos de evocar é, na sua


significação sociológica, o prolongamento evidente do duplo papel para o qual só o
olhar parece destinado por natureza. Assim como todo conhecimento da realidade
se cinde nas categorias do ser e do devir, também essas categorias regem tudo o que
o homem quer e pode perceber de seus semelhantes. Gostaríamos de saber quem
são alguns desses indivíduos no seu ser irrepetível, e quais são as raízes humanas,
biológicas e culturais do seu passado vivido e também herdado. E também
desejaríamos saber quem pessoalmente são, neste preciso momento, essas
pessoas, o que elas querem, pensam e dizem. Eis as grandes linhas da divisão do
trabalho entre os sentidos. Deixando de lado não poucas variantes, o que vemos do
homem é o que ele tem de permanente. Como em um corte de estratos geológicos,
no seu rosto está gravada a história de sua vida e as qualidades básicas da sua
natureza. Por sua vez, as variações de expressão do rosto não podem ser
comparadas com a riqueza de matizes que podemos captar através do ouvido, que
nos revela o que é momentâneo, o fluir da existência do homem que escutamos.
Precisaremos todo tipo de dados e deduções para perceber em seus traços o estado
de ânimo do momento e nas suas palavras o que ele tem de invariável. Em todo o
resto da natureza, tal como se nos apresenta à primeira impressão sensorial, o que é
permanente e o que é transitório se encontram separados de maneira muito mais
estrita do que no caso do homem. A pedra imóvel e o fluxo corrente d’água são os
símbolos polares dessa separação. Somente o homem é para os nossos sentidos, de
maneira constante e simultânea, permanente e transitivo, onde ambas as categorias
alcançam um grau tão alto que cada uma se mede pela outra ou se expressa na outra.
A constituição dessa dualidade está em ação recíproca com aquela do olhar e do
ouvir – pois embora nenhum desses dois sentidos se feche inteiramente a alguma
das duas categorias, eles se complementam em conjunto: o olhar percebe a essência
plástica e permanente do homem, e o ouvir capta as suas expressões transitórias,
que surgem e desaparecem.
Sociologicamente, o ouvido se diferencia também do olho pela ausência dessa
reciprocidade que produz o olhar nos olhos do outro. Por natureza, o olho não pode
tomar nada sem dar ao mesmo tempo algo, ao passo que o ouvido é o órgão “egoísta”
por excelência, que toma sem dar nada. Até a forma externa do ouvido parece quase
Georg Simmel | 699

simbolizar essa condição, porque age como um apêndice passivo do rosto humano,
o menos movediço de todos os órgãos da cabeça. Paga, no entanto, esse egoísmo
por sua incapacidade de desviar-se ou de se fechar como os olhos: o ouvido não faz
mais do que receber, mas em troca está fadado a colher tudo o que estiver ao seu
alcance – o que, como se verá mais adiante, acarreta igualmente consequências
sociológicas. O ouvido necessita o concurso da boca e da palavra falada para
produzir o ato interiormente unificado de tomar e dar – e mesmo assim, em
alternância: não se pode falar direito enquanto se ouve, nem ouvir com clareza
enquanto se fala, ao passo que o olho funde os dois aspectos no milagre do “olhar”.
Por outro lado, o egoísmo formal do ouvido se contrapõe a sua estranha relação com
os objetos susceptíveis de apropriação privada. No geral, só se pode “possuir” o
visível, porque o meramente audível desaparece no momento mesmo em que é
percebido pelo ouvido, e não é, portanto, passível de ser “possuído”. E, se as grandes
famílias dos séculos XVII e XVIII se esforçavam por possuir composições musicais,
escritas expressamente para elas, que não podiam ser divulgadas, foi essa uma
curiosa exceção, à qual devemos algumas das mais belas páginas de Bach,
compostas sob encomenda principesca. A distinção de uma casa incluía a posse de
peças musicais que não podiam ser ouvidas por outrem. Para nossa maneira de ver,
há aqui certa perversão, porque o ouvido é, por natureza, supraindividual: tudo o que
soe em um espaço devem ouvi-lo todos os que ali se encontrem – porque, se algum
deles o percebe isso não impede que outros presentes também o escutem. Daí
provém também a conotação psicológica particular que reveste uma palavra quando
é, apesar de tudo, destinada exclusivamente a uma pessoa. Aquilo que um diz ao
outro poderiam ouvi-lo inúmeras pessoas com a única condição de estarem
presentes. Quando o conteúdo de algo que foi dito exclui essa possibilidade formal,
a comunicação dessas palavras adquire um inconfundível matiz sociológico. Não há
quase nenhum segredo que possa ser transmitido exclusivamente pelo olhar.
Contudo, a sua comunicação pelo ouvido implica no fundo uma contradição, porque
se utiliza uma forma sensorial, que como tal se dirige a um número ilimitado de
pessoas, para transmitir um conteúdo que exclui essa participação plural. Esse é o
profundo paradoxo do segredo comunicado oralmente, da conversa confidencial:
recusa-se explicitamente a admitir o caráter sensível da linguagem falada, cujas
700 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

potencialidades físicas implicam um número infinito de ouvintes. Em circunstâncias


normais não pode existir um número muito grande de pessoas que tenham a mesma
impressão visual, ao passo que há muitíssimas que partilham a mesma sensação
auditiva. Basta comparar os visitantes de um museu com os assistentes de um
concerto: a característica da impressão auditiva, que se comunica de um modo
uniforme e igual em uma multidão (condição que não é meramente exterior e
quantitativa, e que decorre da sua íntima essência), reúne sociologicamente o público
de concerto em uma união e comunidade de sensações incomparavelmente mais
estreitas do que as que se produzem entre os visitantes de um museu. E quando, por
exceção, o olhar oferece também a mesma impressão a uma massa numerosa, surge
de igual modo esse efeito de unificação sociológica. O fato de que todos os homens
possam ver ao mesmo tempo o céu ou o sol é, para nós, um elemento essencial da
coesão própria de qualquer religião – cada uma a sua maneira, desde o início ou em
um de seus ulteriores processos metamórficos, se volta para o céu ou o sol e tem
alguma relação com esses elementos que abraçam e regem o mundo inteiro. Que um
sentido tão exclusivo na vida prática como a visão (que modifica para cada um, ao
menos de acordo com a sua perspectiva, o que o coletivo tem visto) tenha um
conteúdo evidente para todos por igual – o céu, o sol, os astros –, só pode, por um
lado, sugerir a superação transcendente da insignificância e singularidade do sujeito
e, por outro lado, a comunhão dos fiéis que propõem e promovem todas as religiões.
As diferenças referidas nas relações que mantêm a visão e a audição com seus
respectivos objetos produzem relações sociologicamente muito diversas entre os
indivíduos, consoante a sua reunião repouse sobre um ou outro desses sentidos. Os
operários que trabalham em um pavilhão de fábrica, os estudantes que compartilham
uma sala de aula e os soldados de um destacamento sentem que, de uma maneira
ou de outra, eles formam parte de uma unidade. E mesmo que essa unidade provenha
de fatores alheios aos sentidos, seu caráter é codeterminado pelo fato de que a visão
seja o sentido essencial para manter a harmonização de seus esforços – pois na
sequência contínua de fatos ou operações que os reúne, os indivíduos podem trocar
olhares, embora não estejam a falar entre eles. Nesse caso, a consciência de unidade
terá um caráter muito mais abstrato que se a sua existência próxima e simultânea
implicasse também a comunicação verbal. Além do conjunto de atributos que
Georg Simmel | 701

distingue um indivíduo (ademais da individualidade que revela a figura do homem) a


visão percebe, com um maior grau de precisão que a audição, a semelhança dos
indivíduos, a parecença entre todos os que têm elementos conformes,
independentemente dos comuns à espécie. A audição transmite, ao contrário, a
profusão de estados de ânimo divergentes do indivíduo, a continuidade e súbita
mudança de ideias e impulsos, toda a polaridade da vida objetiva e subjetiva. A partir
de indivíduos que unicamente olhamos, podemos construir uma noção geral do
homem com maior facilidade que com base no que ouvimos dizer daqueles homens
com quem podemos falar individualmente. A imperfeição habitual da visão favorece
essa diferença. São poucos os homens capazes de dizer com certeza qual é a cor
dos olhos de seus amigos, ou de reproduzir mentalmente a imagem que corresponde
à forma da boca das pessoas mais próximas deles. Simplesmente, não as
enxergaram. Em uma pessoa, de toda a evidência, se enxerga bastante bem o que ela
tem em comum com os outros, ao passo que é incrivelmente difícil ouvir o que há de
geral nela. Por isso, no que diz respeito à intervenção dos sentidos, a criação direta
de estruturas muito abstratas e inespecíficas será favorecida especialmente pela
proximidade visual e pela falta de contiguidade verbal. Essa combinação de
circunstâncias que acabamos de esboçar, muito tem contribuído para o nascimento
da moderna noção de “operário”, fecunda ideia que reúne o denominador comum de
todos os assalariados qualquer que seja a natureza de seu trabalho. Esse conceito
era, no entanto, desconhecido nos séculos precedentes, apesar de que neles a
organização trabalhista, caracterizada por associações de assistência mútua e
formação profissional, era amiúde mais restrita e íntima – porque se baseava
sobretudo nos contatos pessoais e orais e carecia do pavilhão de fábrica e das
assembleias de massa. Nesses lugares, onde se enxergam inúmeras pessoas sem
ouvir-se, se verificou a abstração que permitiu reunir tudo aquilo que os assalariados
têm em comum – desenvolvimento frequentemente obstaculizado pelo individual, o
concreto e inconstante que nos transmite a audição.
Em comparação com a importância sociológica da visão e da audição, a dos
sentidos inferiores26 é bastante fraca, ainda que o significado do olfato supere o que

26
A distinção entre sentidos superiores (visão e audição) e sentidos inferiores (tato, olfato e paladar),
remonta à Grécia antiga (conf. Platão, Fédon, 65b), e se baseia na diferença do grau de separação ou
702 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a estranha confusão e a peculiar escuridão das suas impressões podem levar a crer.
Não há dúvida de que cada pessoa dá um cheiro característico ao ar que fica em
torno dela, sendo essencial que, das duas direções possíveis das impressões
sensíveis que daí resulta (a que vai em direção ao sujeito que o cheira com prazer ou
desgosto, e a que se dirige ao objeto como meio de reconhecimento), a primeira seja
de longe a mais importante. Com o mero olfato, não se identifica um objeto do mesmo
modo que a visão ou a audição permitem: a sensação fica presa dentro do sujeito, tal
como o revela o fato de que faltem expressões objetivas que por si só signifiquem
seus traços característicos. Quando afirmamos que algo cheira azedo, queremos
apenas dizer que tem um odor semelhante àquele de um objeto de sabor azedo. As
sensações do olfato fogem à descrição por palavras muito mais que as impressões
sensíveis que temos visto até agora: simplesmente não é possível projetá-las no
plano da abstração. Por isso, as repulsões e afinidades instintivas fundadas na esfera
olfativa que podem associar-se aos homens encontram tão poças resistências de
pensamento e vontade – e infelizmente tiveram com frequência grande importância
na relação sociológica entre duas etnias estabelecidas no mesmo território. Nesse
sentido, tanto a difícil aceitação dos afrodescendentes pela alta sociedade
estadunidense, como a recíproca e escusa aversão de judeus e alemães foi reduzida
amiúde ao simples fato de seu cheiro corporal. O contato pessoal entre pessoas
cultivadas e operários, amiúde recomendado como meio de favorecer a evolução
social de nossa época, essa aproximação de “dois mundos que não sabem como
vivem mutuamente”, que foi reconhecida como ideal ético por muitos indivíduos
ilustrados, teria fracassado (na opinião de alguns deles) porque não lhes haveria sido
possível vencer as impressões olfativas. Evidentemente, numerosas pessoas das
classes abastadas consentiriam de boa vontade sacrifícios consideráveis ao seu
próprio conforto se isso lhes fosse solicitado em nome de interesses de ordem social
e moral, renunciando dessa forma a muitos privilégios e regalias em proveito dos
deserdados – e se isso ainda não aconteceu de um modo mais acentuado, deve-se

proximidade entre o objeto percebido e o sujeito que o percebe. Diz-se assim que os sentidos
superiores, por ser o seu objeto de percepção externo ao próprio corpo do sujeito que percebe, são de
natureza intelectual e, portanto, capazes de produzir conhecimento fiável e objetivo. Em compensação,
os sentidos inferiores, como seu objeto de percepção tem caráter interno, seriam de natureza corporal
e só produziriam conhecimento subjetivo. (NT)
Georg Simmel | 703

seguramente ao fato de não se ter achado até hoje as formas apropriadas. No


entanto, muitas delas prefeririam mil vezes imporem-se tais renúncias e sacrifícios
antes que o contato corporal com o povo coberto pelo “honesto suor do trabalho”.
Para uma grande parcela de nossa sociedade, a “questão social” não é apenas uma
questão moral, mas também nasal. Essa repulsão pode ter, contudo, um aspecto
positivo: nenhuma imagem que concebamos da miséria proletária, embora se baseie
no relatório mais realista (exceto nos casos mais sórdidos), não irá decerto produzir
um efeito tão imediato e sensorial como o fedor que agride o olfato de qualquer que
entre pela primeira vez em um buraco ou em um sótão infeto.
Ainda não se dá suficiente relevo ao fato (extremamente importante para a
cultura social) de que, à medida que avança o processo civilizatório, decresce a
acuidade perceptiva dos sentidos, e simultaneamente aumenta a capacidade de
reação imediata para tudo aquilo que dá prazer ou desgosto. Em nosso entender,
esse crescimento da sensibilidade traz consigo mais sofrimento e repulsa que alegria
e atração. O homem moderno se incomoda com uma infinidade de coisas, e lhe
parecem sensorialmente intoleráveis inúmeros objetos, apesar de que pessoas de
um temperamento menos diferenciado e mais robusto os percebem sem se importar
muito com eles. A tendência do homem moderno para a individualização, a sua maior
personalidade e as mais amplas opções que tem quanto aos próprios engajamentos
devem estar relacionadas com esse fenômeno. Pela maneira de reagir, em parte
sensível e em parte estética, ele não consegue entreter tão facilmente os laços
tradicionais, essas relações estreitas nas quais não se suscita sequer a questão do
gosto pessoal ou da sensibilidade individual. E isso conduz, inevitavelmente, a um
maior isolamento, a uma delimitação mais radical da esfera privada. Essa evolução
talvez encontre o seu sintoma mais claro no sentido do olfato: a preocupação com a
sujeira, bem como os padrões de higiene de nossa época são tanto a sua
consequência quanto a causa evidentes. Habitualmente, à medida que a cultura
aumenta, diminui a distância máxima a que chegam os nossos sentidos, reforçando-
se, em compensação, a sua ação próxima. Poderíamos dizer, de modo geral, que não
só a nossa visão se encurta, mas que também nos tornamos míopes de todos os
sentidos – à pouca ou nenhuma perspicácia para perceber e entender as coisas
longínquas corresponde uma grande acuidade para tomar consciência das próximas.
704 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Ora, o olfato é, em princípio, um sentido que age a uma distância mais curta que a
visão e a audição, e se não o utilizarmos para percepções objetivas como alguns
povos da natureza, em compensação as nossas reações subjetivas perante as suas
impressões são ainda mais enérgicas. O sentido último desse fenômeno não é outro
senão o acima indicado, mas em um grau superior ao dos outros sentidos: um
homem com um olfato muito apurado recebe, provavelmente por causa desse
aperfeiçoamento, muitos mais aborrecimentos que agrados. Por acréscimo, essa
repulsão, esse fator de isolamento que devemos ao refinamento do sentido do olfato,
é reforçado ainda mais pelo seguinte motivo. Quando sentimos o cheiro de alguma
coisa, aspiramos profundamente pelo nariz tal impressão (ou o objeto de onde ela
provém), a inalamos ou absorvemos profundamente, quase que a assimilamos, pelo
processo vital da respiração, a um ponto que se nos afigura inalcançável para
qualquer outro sentido – mesmo para o paladar, quando comemos. Cheirar o odor
pessoal de alguém é a percepção mais íntima que podemos ter desse indivíduo, que
penetra, assim, em figura sublimada, dentro de nós. É evidente, portanto, que, na
medida em que a sensibilidade para as impressões olfativas aumente se produzirá
uma seleção e um distanciamento que constituem, até certo ponto, uma das bases
sensoriais da reserva sociológica do indivíduo moderno. Nessa ordem de ideias, é
significativo que um homem de um individualismo excludente tão apaixonado como
Nietzsche diga, com chocante frequência, ao referir-se aos tipos de homem que ele
odeia que eles “não cheiram bem”. Enquanto os outros sentidos estabelecem
milhares de pontes entre os homens, e podem compensar as repulsões com atrações,
permitindo que a mistura de seus valores sentimentais positivos e negativos matize
o conjunto concreto das relações humanas, se pode definir, ao contrário, o olfato
como o sentido dissociador – não só pelo fato de produzir muitas mais repulsões do
que atrações, ou porque as suas decisões têm algo de radical ou mesmo de
inapelável, que dificilmente podemos mudar em outras instâncias sensíveis ou
espirituais, mas sobretudo porque a reunião de muitas pessoas não cria para o olfato
a mesmas atrações que oferece (ao menos em determinadas circunstâncias) aos
demais sentidos. Pelo contrário, na maior parte dos casos, as agressões ao olfato
aumentam proporcionalmente ao número de indivíduos entre os quais nos
encontremos. Mesmo que seja apenas por isso, o refinamento cultural induz (como
Georg Simmel | 705

já vimos) ao isolamento individual, pelo menos nos países frios – a oportunidade de


se encontrar ao ar livre, onde não se produz aquela situação insuportável, deve ter
influenciado indubitavelmente as relações sociais nos países meridionais.
Diremos, por último, que o perfume artificial representa um papel sociológico
graças ao qual se realiza na esfera do olfato uma síntese peculiar do finalismo
individual egoísta e do social. O perfume cumpre exatamente a mesma missão
através do olfato que qualquer outro adorno por meio da visão. Acrescenta à
personalidade algo totalmente impessoal, exterior a ela, mas que se encaixa tão bem
na sua natureza, que parece vir dela mesma. Amplia a esfera da pessoa tanto quanto
o brilho do ouro ou do diamante. Quem se encontra nas proximidades da pessoa
perfumada, entra e mergulha na esfera da sua personalidade – assim como o vestido,
o perfume recobre a personalidade com um invólucro que deve produzir o efeito de
uma emanação do próprio indivíduo. Nesse sentido, esse aroma é um fenômeno
típico de estilização, a dissolução da personalidade em um elemento genérico que,
entretanto, dá uma expressão particularmente penetrante e plástica ao fascínio
pessoal. O perfume esconde o cheiro individual e o substitui por uma fragrância
objetiva, e mesmo assim chama simultaneamente a atenção para a pessoa que o
utiliza – cria um ambiente fictício, mas é suposto ser agradável para todos os outros
e constituir um valor social. Como o adorno, o perfume tem que ser atraente
independentemente da pessoa e gratificar os que estão em torno dela, mas é também
preciso que esses efeitos sejam atribuídos a seu portador.
Acrescentaremos um comentário sobre a sensualidade na sua relação com o
espaço, ainda quando a “sensualidade” tal como a entendemos aqui (como
inclinação pelos prazeres dos sentidos) se desvia bastante de seu sentido passivo
de propriedade de perceber as impressões de sentidos como o tato ou a visão – para
a qual preferimos reservar acima o nome de “sensitividade”. Em nosso caso, as
impressões receptivas são acompanhadas de desejos e de atividades, que conduzem
à excitação ou ao prazer dos sentidos, sobretudo sexuais, que recebem o nome de
“sensualidade” na linguagem comum. Ora, nessa esfera dos sentidos, parece-nos
que a proximidade no espaço é de extrema (e talvez decisiva) importância para uma
norma social capital, a proibição do incesto – isto é, da relação sexual entre parentes
(consanguíneos ou afins) dentro dos graus em que a lei, a moral ou a religião proíbem
706 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

o casamento. Não vamos entrar na controvérsia sobre a razão de ser de tal proibição,
até porque o problema parece-nos mal colocado. Neste caso, como em todos os
relativos a fenômenos sociais muito generalizados e importantes não podemos
procurar “a razão”, mas as razões. A humanidade é demasiado diversa e rica em
formas e motivos para que se possa compreender, com causas únicas e deduções
lineares, fenômenos que encontramos nos pontos mais afastados da Terra, como
resultado de evoluções longas e evidentemente muito diferentes. Da mesma maneira
que a polêmica sobre o caráter monógamo ou polígamo “por natureza” do homem
está errada sem sombra de dúvidas (desde o início dos tempos até os nossos dias
houve naturezas monogâmicas, poligâmicas, celibatárias ou que reuniam todas
essas tendências), assim também nos parece que todos os motivos apresentados
para explicar a proibição do incesto devem, de fato, ter influído, sem que nenhum
deles possa pretender ser a única causa. Os vínculos de amizade e de aliança com
tribos ádvenas, bem como as relações hostis que conduziram ao rapto das mulheres,
os instintos eugênicos tanto quanto o desejo do homem de separar à mulher da sua
família e privá-la do seu apoio, tudo isso deve ter contribuído à proibição do incesto
em proporções variáveis. No entanto, o fator essencial talvez fosse a manutenção da
boa ordem dentro da mesma casa, que exige a exclusão das relações sexuais entre
irmãos, pais e filhos e, no geral, de todas as uniões entre aqueles parentes próximos
que outrora constituíam uma comunidade fechada no espaço. A promiscuidade, que
instaura o convívio dos homens e das mulheres que integravam o conjunto de
moradores de uma mesma casa particular, se teria transformado em devassidão
desenfreada se não se houvesse ido de encontro à depravação dos costumes sob o
mesmo teto com as sanções mais terríveis e se não se tivesse criado, graças à
severidade de uma interdição social sem falhas, o instinto que excluiu de antemão
qualquer relação sexual dentro do grupo doméstico. Contra nossa tese tem-se
argumentado que essa proibição só teria vigorado, no seu início, dentro da “família
matrilinear”, quando o homem entra na família da mulher pelo casamento, e que esse
tipo de família não coincidiria nessa época com o total de pessoas que
compartilhavam a mesma moradia. Acreditamos, contudo, que o período da
adolescência prévio ao casamento, durante o qual o homem ficava sempre na casa
materna, era suficientemente prolongado para suscitar os perigos para a boa ordem
Georg Simmel | 707

dessa comunidade que a interdição do incesto quis prevenir. E que o fato de tal
proibição continuar vigorando para aqueles que tinham abandonado o lar seria
apenas uma cristalização, testemunha de uma época em que esses jovens não só
eram membros da família, mas coabitavam com ela. Essa teoria é corroborada pelo
fato de que em muitas tribos estruturadas em clãs que proíbem a união entre
membros que são ou se consideram descendentes de ancestrais comuns, se permite
corriqueiramente o casamento entre parentes consanguíneos sempre que, por
qualquer circunstância, morem em dois clãs diferentes. Dos panches 27 da Colômbia,
diz-se que os homens e mulheres de um mesmo povoado se consideravam irmãos
pelo que não se casavam entre si, mas que em compensação, se a verdadeira irmã
tinha nascido por acaso em um sítio diferente que o irmão, podiam casar-se entre
ambos. Enquanto a severidade da disciplina doméstica foi a regra nos lares romanos,
o casamento esteve proibido entre todas as pessoas sujeitas ao mesmo poder
paterno – isto é, os parentes até o sexto grau. Na medida em que se foi afrouxando
o laço estreito e a ordem que assegurava o bom funcionamento do grupo doméstico,
se atenuou também esse princípio, até que na época imperial se chegou mesmo a
legitimar o casamento entre tio e sobrinha – a profilaxia não pareceu ser ainda
necessária quando desapareceu a intimidade da convivência. Por toda parte se
constata essa tendência para prevenir e eliminar a tentação decorrente da
proximidade física, quando ceder a ela equivaleria a perturbar gravemente a ordem
familiar – distanciamento que, como é natural, se impõe amiúde com aquela radical
falta de nuance que, nos povos da natureza, faz com que toda norma que deveria ter
um alvo bem definido se aplique finalmente sem qualquer distinção, indo muito além
de seus próprios limites e da esfera do seu conteúdo. Assim, entre os brakna e outros
povos melanésios das ilhas Fiji, os irmãos não podem comer em companhia de suas
irmãs, ou falar diretamente com elas, da mesma forma que os primos têm proibido
fazê-lo com as primas e os cunhados com as cunhadas – proibição que não deixa

27
Os panches ou tolimas eram um povo ameríndio que habitava em ambas as margens do rio
Magdalena e a sua bacia. Considerados culturalmente similares aos povos caribenhos vizinhos, mas
linguisticamente não relacionados com eles, foram descritos pelos conquistadores espanhóis como
temíveis guerreiros. (NT)
708 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de evocar a que outrora impedia às mães e aos pais cingaleses 28 de olhar,


respectivamente, nos olhos de seus filhos e de suas filhas, que também não podiam
dirigi-los para eles. Desse mesmo grupo, fazem parte, nomeadamente, os preceitos
que proíbem toda relação social ou afetiva entre a sogra e o genro e entre o sogro e
a nora, e que podemos encontrar tanto entre diferentes populações ameríndias e
africanas como nas que moram nas ilhas dos mares do Sul, nas estepes mongóis ou
no subcontinente indiano. Entre os quirguizes da Ásia central, as mulheres jovens
não podem mostrar-se a qualquer membro masculino da família de seu marido, do
mesmo modo que, em muitos outros povos, os noivos não devem falar um com o
outro até depois de estarem casados, a semelhança do observado entre os sérvios e
certos eslavos do Sul, e entre diversas etnias indígenas do arquipélago Malaio 29
– como os alfures de Buru e os dayacos de Bornéu. Sem esquecer que na África
subsaariana se considera especialmente honroso que um homem se case com uma
menina que ele nunca encontrou. Por fim, um fato aparentemente contraditório revela
a mesma precaução, só que sublimada a um grau mais elevado: a lei islâmica proíbe
ver o rosto das mulheres, salvo aquelas com quem o crente não se pode casar.
Pode-se dizer que a regra que está por detrás de todos esses
condicionamentos psíquicos prescreve que as pessoas de sexo diferente, que não
podem ter relações sexuais entre si, não devem aproximar-se no espaço. Ora, as
mesmas razões que fundamentam essa regra servem de base a outra, conforme a
qual o casamento entre pessoas de diferente sexo que inevitavelmente compartilhem
o mesmo espaço deve estar normativa e psicologicamente proibido – o que se
pretende impedir é uma promiscuidade sexual que fugiria ao controle de qualquer
regulamentação. Por isso, muitas dessas proibições não se referem apenas aos
parentes de sangue, mas também aos irmãos de leite, aos membros do mesmo clã,
e em geral a todos aqueles que moram em estreita proximidade espacial. Nessa

28
Os cingaleses, são um povo resultante da mestiçagem dos indo-europeus que dominaram a ilha de
Ceilão desde o ano 500 a.C., com diversas populações anteriores, que adotaram a língua cingalesa.
Constituem o grupo étnico predominante no atual Sri Lanka. (NT)
29
O arquipélago Malaio, também conhecido como Insulindia, é um vasto território situado entre o
Sudeste asiático e a Austrália. Localizado entre os oceanos Índico e Pacífico, consta de mais de 20
mil ilhas, dentre as quais a de Buru, que pertence ao grupo das Molucas, e a de Bornéu ou Calimantã.
(NT)
Georg Simmel | 709

ordem de ideias, os indígenas jumas30 da Amazônia e algumas tribos da Austrália e


Sumatra não autorizam o casamento entre vizinhos da mesma aldeia. Quanto maior
é o número dos membros do grupo doméstico, mais severas são as proibições
matrimoniais entre eles, tal como acontece entre os eslavos do Sul acima citados, os
ilhéus de Nanusa31, os nair32 e outros grupos indianos. Evidentemente, quanto maior
era o grupo doméstico, mais difícil resultou manter a ordem e a decência nele: a
proibição do casamento entre parentes próximos não resultou então suficiente, e foi
mister acrescentar as amplas leis que, naqueles povos, ainda hoje estendem a
interdição matrimonial a todos os que vivem sob o mesmo teto – como acontece
entre os bosquímanos e cingaleses e também com os indígenas jurunas do Brasil 33,
entre os quais é frequente o casamento de parentes de segundo grau, e por isso cada
família possui uma moradia exclusiva. Da mesma maneira, se quis explicar a razão
de que entre os judeus esteja estritamente proibido o casamento entre irmãos, mas
se autorize o matrimônio de seus filhos, porque estes últimos não habitam juntos na
mesma casa. Geralmente, as interdições matrimoniais nos povos arcaicos são mais
extensas e severas que nas sociedades mais desenvolvidas, que ao longo de seu
processo civilizatório foram limitando essas proibições ao estrito círculo familiar

30
Os jumas pertencem a um conjunto de povos denominados kagwahiva, que migrou da região do
Alto Tapajós para as proximidades do Rio Madeira Caracterizam-se por um complexo sistema de
metades exogâmicas, que recebem o nome de dois pássaros Seu sistema de metades é patrilinear, ou
seja, todo indivíduo pertence à metade do pai. Além disso, só se pode casar com alguém que seja da
metade oposta. Isto faz com que a sociedade se divida ao meio, gerando dois grandes grupos que se
casam uns com os outros, sendo possível o casamento na mesma metade somente quando os
parceiros vivam distantes. Tudo se passa como se a distância geográfica provocasse uma distância
genealógica, transformando o casamento proibido numa união possível. (NT)
31
As ilhas Nanusa (as maiores das quais são Merampit e Karatung) formam parte do grupo das
Talaud, elas mesmas localizadas ao Norte do arquipélago de Sulawesi, na ponta mais setentrional da
Indonésia, fazendo fronteira com o sul da região de Davao nas Filipinas. São conhecidas por possuir
um patrimônio cultural excepcional. (NT)
32
Os nair, também conhecidos como nayars, são um grupo hindu de castas que habita desde tempo
imemorial no território que hoje corresponde ao estado indiano de Querala, no extremo sudoeste da
península indostânica. Historicamente, moravam em grandes unidades familiares que abrigavam
descendentes de um ancestral feminino comum. Têm sido muito estudados por causa desses grupos
domésticos e de seus incomuns costumes matrimoniais – que não são mais praticados e incluíam
dois rituais específicos de união (antes e após da puberdade), a prática da poligamia, e até da
hipergamia em algumas áreas. (NT)
33
Os jurunas são habitantes tradicionais das ilhas do rio Xingu, situadas entre a Volta Grande e o rio
Fresco. Vivem em grupos formados por parentelas bilaterais dispersos ao longo do rio e constituídos
em torno de um “dono” ou capitão: que reúne as características de mais-velho e de afim da maioria
dos homens maduros que são “donos” de grupos domésticos. Estes últimos são predominantemente
fundados nas relações entre mãe e filhas e entre sogro e genros. (NT)
710 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– pois a convivência pessoal se vai limitando pouco a pouco a essa esfera íntima.
Quanto mais extensa e diversa é a coletividade social que nos rodeia, menores serão
as subdivisões familiares que se consideram como um conjunto coerente e,
consequentemente, se estenderão a menos pessoas aqueles perigos da convivência
física contra os quais as interdições matrimoniais são uma medida preventiva
efetiva.
É certo que se afirmou, contra o argumento apresentado aqui, que a
convivência estreita das pessoas que moram em uma mesma casa faz se reduzir a
atração sensual. Pessoas que desde a infância se veem diariamente e o tempo todo
não se desejam com grande paixão, uma vez que o hábito da vida em comum esfria
a imaginação e as mútuas apetências – atiçadas apenas pela novidade e a distância.
Por isso, de acordo com esse raciocínio psicológico, os desejos de conúbio não dizem
respeito aos membros da própria família senão somente aos estranhos. Contudo, a
exatidão psicológica dessa teoria é muito relativa. O íntimo convívio não só esmorece
o ímpeto dos sentimentos, mas também pode amiúde agir como um estímulo da
afeição – caso contrário, não se conseguiria explicar a repetida experiência de que o
amor que tem faltado no momento de contrair núpcias surja depois durante o
casamento, nem seria tão perigosa, a certa idade, a primeira relação íntima com uma
pessoa do sexo oposto. Por outro lado, quando aparece a proibição de que se trata,
nos primórdios do processo civilizatório, não se tinha desenvolvido ainda esse forte
senso da individualidade ao abrigo do qual a mulher não é apenas atrativa pelo fato
de ser fêmea, mas por sua própria personalidade, diferente de todas as outras. Ora,
esse senso é a condição necessária para que o desejo se desvie das pessoas
conhecidas (que já não estão propriamente a dar-nos um novo encanto individual), e
tenda a orientar-se para individualidades que desconhecemos por completo.
Enquanto o desejo, na sua brutalidade original, domina o homem, as mulheres são
todas iguais para ele (exceto as velhas ou feias demais para seu gosto), e dificilmente
essa evoluída necessidade psicológica de mudança teria força suficiente para vencer
a indolência natural que o leva a perseguir, em primeiro lugar, as mulheres mais perto
dele. Um texto anônimo de 1740, intitulado Objeção despretensiosa, mas dirimente,
que se apresenta em relação à pretensão de dar eficácia jurídica ao matrimônio com
a irmã da esposa defunta, proscreve também o casamento com o irmão do marido
Georg Simmel | 711

falecido, seguindo um raciocínio semelhante ao que acabamos de desenvolver, mas


que produz aqui um efeito realmente estranho: “para que o homem não abuse de seu
eventual direito a casar-se com sua cunhada, durante as numerosas ocasiões que,
ainda em vida do marido, lhe oferece a convivência familiar”. Já o filósofo judeu
Maimônides34 apresentava como razão dessas interdições o risco de libertinagem,
demasiado óbvio para não ser notado pelas pessoas que moram sob o mesmo teto.
E se não fosse assim, em virtude da proibição de casamento todos os homens sabem
doravante que precisam direcionar alhures suas inclinações e seus projetos.
Em última análise, o efeito da proximidade espacial para a excitação da
sexualidade nos parece tão grande que, se queremos realmente manter um pouco de
ordem e decência, evitando um caos irremediável em todas as relações jurídicas e
morais, é preciso adotar as mais severas medidas de distanciamento entre as
pessoas que, justamente, estão chamadas a conviver entre si. Isso porque, se as
obrigações de decoro e reserva que se aplicam mesmo às pessoas estranhas fossem
as únicas que mantivessem os membros da família separados, iríamos ver que essas
regras são tão ou mais inócuas entre eles do que com os desconhecidos. Assim
sendo, é preciso levantar no meio dos familiares que vivem em estreita convivência
espacial uma barreira que não existe para os que carecem de todo ligame parental.
As consequências desastrosas da endogamia para a produção de uma boa
descendência não estão perfeitamente estabelecidas, nem seu conhecimento pelas
sociedades arcaicas parece ser verossimilmente suficiente para que elas proíbam a
união entre parentes como um grande mal. Em compensação, a manutenção de uma
boa ordem sexual é um requisito claramente reconhecido em quase todo lugar, e
aparenta ser a razão principal da proibição do incesto e de sua transformação em
evidência instintiva, como prevenção das tentações que, nesse caso, não poderiam
ter outra causa comum tão poderosa como a proximidade física35.

34
Moisés ben Maimon, mais conhecido como Maimônides (1138 - 1204), foi um filósofo, astrônomo,
médico e rabino judeu sefardi considerado um dos maiores estudiosos da Torá na época medieval,
tanto no al-Andalus natal, como no Marrocos e Egito. É sem dúvida um dos filósofos rabínicos mais
relevantes da história judaica, autor de algumas das obras fundamentais de todas as escolas
talmúdicas. (NT)
35
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “Sociologia dos sentidos”.
Doravante Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, nomeadamente das “consequências
psicológicas da proximidade e da distância para as ações sociais recíprocas” e de um quinto tipo de
relações objetivas no espaço, as oferecidas pela “migração e as formas de sociação”. (NT)
712 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Ao lado dessas consequências psicológicas, em sentido estrito, da


proximidade ou da distância nas ações sociais recíprocas, há outras de caráter mais
lógico (ou ao menos mais razoável) que não têm nada a ver com aqueles efeitos
imediatos, sensoriais e irracionais. As modificações que uma relação pode
experimentar quando seus elementos passam da distância à proximidade espacial
não se reduzem apenas à crescente intensidade do vínculo, mas também consistem
no seu eventual enfraquecimento, nas reservas e na repulsa que possam ter gerado.
Para além das antipatias diretas que podem proceder da proximidade sensível, age
aqui, principalmente, a decepção, o fim das ilusões fincadas em um parceiro ou a
perda da esperança depositada em alguém que nos imaginamos de uma maneira
distinta. Por acréscimo, quando falta a distância exterior, se torna necessário
reafirmar a distância interior: se delimitam as esferas pessoais, se recusam as
familiaridades desmedidas, se enfrentam, enfim, uma série de perigos simplesmente
impensáveis nos casos de afastamento espacial. Tomam-se também certas
precauções que o trato social impõe, e se tenta enveredar pelos caminhos (às vezes
sinuosos) que é necessário percorrer precisamente nos casos de relações pessoais
diretas, porque a relação indireta e à distância, amiúde interrompida e retomada, é
geralmente mais objetiva, permite superar as diferenças e os problemas originados
nas particularidades individuais, e torna menos prováveis a precipitação e a violência.
Um dos problemas sociológicos mais delicados que se deve enfrentar na complexa
arte de viver consiste em preservar, em uma relação de proximidade, os valores e a
fineza de maneiras que amiúde se encontram entre pessoas que mantêm uma
relação circunspecta ou pouco frequente. Involuntariamente estamos dispostos a
aceitar que a cordialidade e a intimidade da relação devem aumentar à medida que o
contato pessoal fique maior. No melhor dos casos, isso poderia resultar, depois de
uma pausada e prudente aproximação bem sucedida, na antecipação do tom e na
intensidade da relação desde os primeiros contatos, para depois perceber, em muitos
casos, que se tinha confiado demais na mera forma da relação espacial. Sentimos
um grande vazio, porque a pressa em conseguir a proximidade física nos fez
esquecer quanto tempo a cercania espiritual demora em alcançar o mesmo nível de
jubiloso empenho que os corpos atingiram. Desse modo, surgem os arrefecimentos
e retrocessos, que não levam consigo apenas esse excesso ilusório, mas também
Georg Simmel | 713

rasgam os valores que já tínhamos obtido – amor, amizade, comunhão de interesses


ou consenso intelectual. Essa situação é uma daquelas confusões bastante
frequentes entre os homens que podem, certamente, ser evitadas de antemão por um
sentido de prudência inato, mas que, uma vez sucedidas, não podem ser remediadas
por esse único meio – exigem considerações e deduções reflexivas. A proximidade
física nem sempre é a consequência adequada da cercania espiritual, mas, por vezes,
também ocorre como resposta a meros estímulos corporais – enquanto o outro fica
animicamente no status quo. Acontece então um fenômeno análogo ao que se
verifica no laboratório quando se produzem em um corpo, por meios mecânicos, as
mudanças que o calor causa nele... e o corpo se esfria.
Escolheremos um segundo exemplo, retirado de várias relações muito
distantes da intimidade daquelas mencionadas recentemente, para acompanhar os
efeitos previsíveis da diferença sociológica das distâncias espaciais. Quando em um
grupo de grandes dimensões existe uma minoria extremamente fechada, cuja
unidade se mantém pela comunhão de interesses, a sua atitude em face do conjunto
será muito diferente conforme ela resida dentro de um único espaço e de modo
compacto ou, ao invés, espalhada em vários e pequenos locais por todo o grupo. Não
se pode dizer a priori qual dos dois comportamentos é mais favorável para que uma
minoria consiga obter ou conservar uma posição de força, mantidas inalteradas
todas as outras circunstâncias. Quando esse subgrupo está em posicionamento de
proteção a qualquer tipo de pressão ou ato agressivo da maioria, o grau de poder
assume uma importância decisiva. Se esse poder é tão fraco que não se pode
propriamente falar de resistência, mas antes de uma atitude evasiva, de se tornar
invisível com o intuito de evitar ataques indiscriminados que reduziriam o grupo a
nada, o melhor seria tentar dispersar-se o mais possível. Se, em vez disso, as forças
fossem numericamente consideráveis e estivessem em condições de resistir a um
ataque, a atitude mais vantajosa seria a concentração. Do mesmo modo que os
cardumes de arenques procuram defender-se dos seus predadores se deslocando
em grupos compactos, oferecendo uma superfície de ataque restrita e poucos claros
para penetrarem no bando, assim as minorias expostas ao ataque de seus inimigos,
enquanto viverem unidas, vão ter mais oportunidades para se defenderem, para se
auxiliarem mutuamente e desenvolverem a consciência ativa do seu comum legado
714 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

cultural e histórico. Os judeus tiraram proveito da sua forma de distribuição


geográfica das duas maneiras. Como a sua diáspora os dispersou por todo o mundo
civilizado, nenhuma perseguição podia alcançar todos os seus grupos – de modo
que aqueles cuja vida se tornava impossível em um local determinado, tinham
sempre a possibilidade de encontrar em outro, amigos, amparo e proteção. Por outro
lado, como em cada localidade os judeus residiam em guetos (e se moravam fora
desses bairros, faziam-no sempre de um modo compacto), desfrutavam das
vantagens que decorrem de tal tipo de convívio para a defesa de todos os moradores
envolvidos nele. Porém, quando as energias da minoria chegam a um ponto em que
se torna possível passar à ofensiva para adquirir privilégios ou poder, a relação se
inverte: nesse estágio, uma minoria concentrada não será tão eficaz como outra
cujas forças possam colaborar desde distintos pontos de apoio. Enquanto naquele
momento em que as forças eram escassas (e por isso estavam consagradas quase
exclusivamente à defesa), o gueto foi vantajoso para os judeus, que podiam se ajudar
uns aos outros, esse confinamento resultou extremamente prejudicial para os
hebreus quando aumentaram em número e poder coletivo – pelo que,
contrariamente, tiveram tudo a ganhar com a sua disseminação entre a população.
Esse é um dos casos (não tão raros, como se poderia pensar) em que o crescimento
quantitativo absoluto transforma completamente as relações dentro de um grupo.
Se não encarássemos agora as minorias como elementos de estrutura
variável, adotando como um dado estável a sua concentração ou dispersão local, e
preferíssemos perguntarmos acerca da estrutura dos grupos totais que as incluem,
daí resultará a seguinte tendência. Se a minoria está concentrada no espaço, em uma
pequena entidade separada dentro de um grupo maior gerido por um poder central,
será favorável à implantação de uma forma de governo atenta aos particularismos,
que conceda autonomia a seus subgrupos. Porque se esse subconjunto minoritário
não pudesse cuidar de si mesmo por sua própria causa, nem viver a sua vida de
acordo com as suas próprias normas não terá nenhuma possibilidade técnica de
escapar a eventuais abusos infligidos pela coletividade maior que o cinge – mesmo
que o governo central seja democrático. Assim, um regime parlamentar que
submetesse a vida própria de cada subconjunto às meras decisões majoritárias, não
deixaria de violentar as minorias. Todavia, se estas últimas vivem tão dispersas que
Georg Simmel | 715

não parece provável que possam conseguir desenvolver o poder de se


autodeterminar e estabelecer suas próprias instituições, de nada lhes serviria a
autonomia dos subgrupos, porque em nenhum deles conseguiriam ser maioria.
Compreende-se assim que em tal caso, com suas forças dispersas, as minorias
pendam para a centralização do poder – desde que o maior reconhecimento que elas
possam esperar proviria ainda de um governo central unitário, ou até mesmo
despótico. Isso é assim porque as minorias esparsas só poderiam potencialmente
exercer uma influência positiva, através das personalidades eminentes que possam
produzir – com maiores possibilidades quanto mais onipotente seja o soberano e
mais pessoal a soberania. De maneira que não seria errado afirmar que, assim como
a proximidade de seus membros distancia as minorias do poder central, o
afastamento espacial desses elementos aproxima espiritualmente dele os
subconjuntos minoritários.
O efeito dessa distribuição no espaço é completamente diferente, quando não
se trata de um subgrupo, mas de um grupo total. Uma coletividade cujos elementos
vivem disseminados não manifesta facilmente tendências centralizadoras, a não ser
que outros fatores atuem em sentido favorável. Quando as comunidades rurais
suíças da Idade Média se converteram em estados de direito, reproduziram em
grande parte os traços fundamentais previstos nas cartas de foral36 para as vilas ou
cidades. No entanto, as comunidades rurais não se transvasaram inteiramente nos
moldes institucionais previstos para os municípios urbanos e, assim, por exemplo, a
assembleia primária do povo continuou sendo o órgão mais importante de
administração da justiça e de direção dos negócios públicos. Nesse caso, as causas
determinantes foram, de um lado, certa desconfiança (proveniente da dificuldade de
controle do órgão central no meio rural, donde as distâncias são grandes) e, por outro
lado, a menor intensidade e vigor das ações recíprocas que têm por cena o campo,
em comparação com aquelas características da população urbana compacta

36
Uma “carta de foral”, ou simplesmente “foral”, era um documento real utilizado em Portugal (e em
outras monarquias europeias com nomes e fins assemelhados), que visava estabelecer uma divisão
administrativa de distrito ou “conselho” e regular a sua administração, deveres e privilégios. Os forais
foram concedidos entre os séculos XII e XV e constituíam a base do estabelecimento do município,
pois tornavam o distrito livre do controle feudal, transferindo o poder para um "conselho de vizinhos",
com a sua própria autonomia municipal. (NT)
716 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

– grupo social que precisa de instituições objetivas que lhe sirvam como pontos de
referência no meio das flutuações e atritos produzidos pela vida citadina, decorrentes
do contato incessante e das diferenciações sociais de seus elementos.
Circunstâncias que estão também por trás de certo centralismo perceptível na
organização fundamentalmente democrática dos burgos medievais.
No entanto, a democracia verdadeiramente direta exige uma delimitação
estrita de sua esfera, como surge do texto já clássico de Os artigos federalistas: “o
limite natural de uma democracia é aquela distância exata do ponto central que
permita aos mais afastados cidadãos se reunirem com a frequência exigida por suas
funções públicas” 37 . Na Antiguidade grega, os cidadãos se sentiam desterrados
quando tinham que viver tão longe dos locais onde se realizavam as assembleias que
não conseguiam participar regularmente delas. A democracia e a aristocracia
coincidem nesse interesse pela autonomia direta quando seu quadro espacial é o
mesmo. A história de Esparta proporciona um bom exemplo. Os lacedemônios 38
sabiam muito bem que o povoamento disperso das planícies favorecia à aristocracia.
Nessas condições locais, até as democracias têm um viés aristocrático devido a sua
autossuficiência e a sua independência em relação aos poderes centrais dominantes
– como o demonstra o histórico devir dos povos germânicos. Quando Esparta quis
acabar com a democracia de Mantineia39, dividiu a cidade em uma série de distritos
isolados. Quanto aos próprios espartanos, para resolver o conflito entre o caráter
agrário de sua polis – na qual era muito marcado o distanciamento espacial tão
apropriado a seu sistema aristocrático – e a enérgica centralização que exigia o seu

37
Esta citação pertence a The Federalist, A collection of Essays written in favour of the New
Constitution as agreed upon by the Federal Convention, Nova Iorque, J. & A. McLear, 1788, § XIV. É da
lavra de James Madison, que com Alexander Hamilton e John Jay assinaram com o pseudônimo
coletivo de “O Federalista” os artigos da coletânea. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel:
“The natural limit of a democracy is that distance from the central point which will but just permit the
most remote citizens to assemble as often as their public functions demand”. (NT)
38
Habitantes do longo vale da Lacedemônia ou Lacônia. Outro nome dos espartanos. (NT)
39
Mantineia foi uma pequena cidade-estado grega situada ao sudeste da Arcádia, resultado da
reunificação, a meados do século VI a. C., de cinco pequenas localidades. Foi uma aliada de Esparta
em muitas ocasiões – até nas Termopilas, durante as Guerras Médicas, quando 600 homens de
Mantineia combateram junto a Leônidas. No entanto, em ocasiões mudou de campo e combateu os
lacedemônios. De tal sorte que, em 385 a. C. os mantineotas foram derrotados pelos espartanos na
sequela de uma dessas reversões de alianças, e tiveram que aceitar a divisão de sua cidade em
diversos distritos entre os quais foram redistribuídos, como em suas origens – seguramente com o
intuito de encorajar as aristocracias locais e conseguir a mudança da sua exemplar constituição que,
contrariamente à de Esparta, era democrática. (NT)
Georg Simmel | 717

militarismo, lançaram mão ao expediente de confiar o cultivo de suas terras a seus


servos, enquanto eles viviam bastante unidos em Esparta. O destino da nobreza
francesa durante o Antigo Regime apresenta algumas semelhanças com o processo
em pauta. O modo de vida desses aristocratas, apropriado à agricultura extensiva
que praticavam, permitiu que mantivessem uma altiva autonomia até que, aos
poucos, o governo crescentemente centralizador que culmina com Luis XIV, os privou
da sua supremacia jurídica e administrativa, atraindo-os simultaneamente a Paris. À
vista disso, a correlação que podemos estabelecer a esse respeito nos indica que
(contrariamente ao que sucede com as minorias de oposição), a concentração local
do grupo corresponde às tendências centralizadoras, enquanto a sua dispersão
espacial favorece às tendências autonomistas. E como essa relação aparece tanto
nos regimes democráticos como nos aristocráticos, segue-se que o fator espacial da
proximidade ou distanciamento é decisivo para determinar a forma sociológica do
grupo, ou ao menos contribui para isso.
E) Todas as formações sociológicas até aqui consideradas reproduzem até
certo ponto a coexistência estática no espaço. A delimitação e a distância, a fixidez
e a vizinhança são como transposições da configuração espacial da estrutura da
humanidade que se distribui no espaço. No entanto, esse fato acarreta
consequências completamente novas quando se considera a possibilidade de que os
homens se desloquem de um lugar para outro. As condições espaciais de sua
existência ganham movimento e, como a humanidade só pode adquirir a existência
que lhe conhecemos pela mobilidade, os deslocamentos de um lugar para outro em
sentido estrito (a migração) produzem por sua interação inúmeras consequências,
algumas das quais descreveremos aqui. Do ponto de vista sociológico, o que
fundamentalmente interessa são duas coisas: que formas de sociação se
estabelecem em um grupo migrante em contraste com os grupos que estão fixos no
espaço? Que formas resultam para o próprio grupo e para as pessoas migrantes
quando o grupo total não emigra, mas apenas alguns de seus elementos?
718 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

1. As duas formas principais do primeiro tipo são o nomadismo e os


movimentos denominados genericamente de “grandes invasões”40. Enquanto para
os nômades o movimento faz parte da sua própria natureza de vida (coisa que se
revela no caráter ilimitado e circular do movimento, cujo término não está fixado de
antemão e retorna sempre aos mesmos lugares), nas migrações de povos inteiros o
deslocamento é percebido antes como um estado intermediário entre duas formas
de vida diferentes – sejam ambas sedentárias ou uma delas nômade. Na medida em
que a análise sociológica se interessa unicamente pelo efeito da migração como tal,
não precisa distinguir esses dois tipos. Eis que o efeito que ambos os casos
produzem na forma social é o mesmo: a supressão ou atenuação das diferenciações
internas do grupo e, consequentemente, a carência de uma verdadeira organização
política – que se acomoda amiúde bem com uma monarquia despótica. Para essa
última correlação, importa recordar antes de tudo a relação que o nomadismo tem
com as sociedades patriarcais. Entre os povos caçadores, que sentem em maior grau
a necessidade de se dispersar e deslocar, o homem afasta sua mulher da
proximidade da sua família de origem, privando-a assim do apoio da parentela, para
manter a infortunada esposa inteiramente dependente dele – ao ponto de atribuir-se
a essa migração familiar a passagem, entre os autóctones norte-americanos, do
sistema de filiação e de organização social matrilinear para o patrilinear. A isso
acresce o fato de os povos nômades terem substituído em grande parte a caça pela
criação de gado transumante, atividades, ambas, que têm sido consideradas sempre
de alçada dos homens – pois essa gestão masculina dos meios exclusivos ou
essenciais de alimentação foi o pretexto plausível para sua dominação despótica. No
entanto, os despotismos político e familiar não só se favorecem reciprocamente, mas
acontece também que na vida nômade o despotismo político seja beneficiado pela
carência de toda sujeição dos indivíduos ao solo. A mesma circunstância que por
toda a parte torna os nômades vítimas e autores da pilhagem (a mobilidade da
propriedade) faz com que a sua própria vida seja tão precária e sem raízes. Por isso,
a resistência que possam oferecer a personalidades fortes e ambiciosas aqueles que

40
Expressão que corresponde ao que em alemão o autor denomina Völkerwanderung (migração dos
povos) e se aplica geralmente à série de movimentos populacionais que ocorreu entre os anos 300 e
800 a partir da Europa Central e que se estenderia a todo o continente. (NT)
Georg Simmel | 719

não se fixam muito tempo em um lugar não será tão vigorosa como a das pessoas
cuja existência está garantida por uma vida sedentária – até porque as
possibilidades de fugir às obrigações que são a contrapartida da segurança que o
sedentarismo proporciona (e que foram uma das armas empregadas com maior
sucesso pelos oficiais das corporações medievais contra as tendências
centralizadoras dos monarcas) estão excluídas, como iremos agora descobrir. Por
acréscimo, as concentrações despóticas são frequentemente conseguidas com
objetivos guerreiros, para os quais serão sempre mais sensíveis os nômades
ousados e fanáticos que os pacíficos camponeses apegados a seu terrão. É verdade
que, como já vimos, os grupos nômades estão desprovidos amiúde da organização
firme e severa que constitui de ordinário a técnica própria das formações guerreiras.
A grande dispersão e independência recíproca das diferentes famílias nômades não
as predispõem a um agir concertado, metódico e disciplinado, que é o apanágio da
divisão do trabalho – fruto do contato estreito, espacial ou dinâmico, de seus
elementos. No entanto, as concentrações despóticas características das grandes
invasões em massa protagonizadas por povos nômades que atravessam a história
europeia, tanto como a chinesa, a persa e a indiana, não eram, de certo, uma síntese
organizada, e seu dinamismo se baseava justamente na agregação mecânica de
elementos indiferenciados que se derramavam com a pressão regular e ininterrupta
de um deslizamento de lama. Por essa razão, onde se encontram menos biótipos
diferenciados é nas grandes planícies e estepes que incitam à vida nômade e
simultaneamente são a fonte e o destino das grandes migrações: a Europa oriental,
a Ásia septentrional e interior, o oeste norte-americano e os pampas sul-americanos,
cujo nivelamento etnográfico deve ser não só a consequência, mas também a causa
de seu nivelamento sociológico. Entre a mobilidade no espaço e a diferenciação das
existências sociais e pessoais há uma profunda relação. Ambas oferecem apenas
satisfações diversas a um aspecto das aspirações contraditórias das tendências
anímicas que constituem o grupo, cujo outro aspecto visa ao repouso, à uniformidade
e à unidade substancial entre o sentimento da vida e a sua imagem. Os conflitos e os
compromissos, as combinações e as alternativas no predomínio desses dois
aspectos podem servir de esquemas dentro dos quais se encaixam todas as
manifestações da história humana. A extraordinária necessidade que o homem
720 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

moderno experimenta de estabelecer distinções repousa simultaneamente nas duas


formas: a mudança de lugar e a diferenciação. Em outros casos, porém, essas formas
se combinam de maneira tal que as sociedades estáveis podem ter uma forte
diferenciação interna, enquanto as sociedades migratórias, que têm satisfeito
antecipadamente a exigência de diferenciação necessária à sua constituição
nervosa, precisam de uma nivelação social para satisfazer a outra tendência vital de
signo contrário.
A técnica da migração se transforma, assim, no suporte dessa relação
fundamental. Os membros de uma sociedade migratória dependem intimamente uns
dos outros, mas, ao contrário do que ocorre com os povos sedentários, a comunidade
de interesses adota mais a forma do efêmero – pois assim oculta (com a energia do
tempo presente que prevalece amiúde sobre o que é objetivamente mais importante)
as diferenças individuais, nos dois sentidos da palavra: como diversidade qualitativa
ou social, e como falta de harmonia; divergência ou desavença entre as pessoas. Nas
tribos nômades, os impulsos de expansão e de contração no espaço se opõem
violentamente. As urgências alimentares apartam os indivíduos tanto quanto
possível (e a distância física só pode produzir ainda mais distância psicológica
quantitativa), ao passo que as necessidades de proteção os reúnem e contêm a sua
distanciação 41. Livingstone42 refere que as subdivisões dos clãs africanos, que de
ordinário não se sentem muito ligadas entre si, permanecem, no entanto,
estreitamente unidas e se ajudam mutuamente quando a tribo inteira emigra. Na
Idade Média, em muitas ocasiões, comerciantes que viajavam juntos em caravana
costumavam introduzir uma ordem estritamente comunista entre eles, que não era
mais que uma manifestação daquele espírito graças ao qual as guildas ou hansas de
comerciantes constituíam no estrangeiro verdadeiras comunidades de vida,
sobretudo (e isso é muito característico) logo no início de sua evolução. Nesses

41
A justaposição incoerente de ambas as necessidades, que não encontram em uma perspectiva
superior as duas uma harmonia, uma organização ou uma forma complementar, é talvez a razão do
escasso e difícil desenvolvimento das tribos nômades. (NS)
42
David Livingstone (1813 – 1873) foi um missionário e médico escocês que se tornou famoso por ter
sido um dos primeiros europeus a explorar o interior do continente africano. Atravessou duas vezes o
deserto do Calaári, navegou o rio Zambeze e o lago Tanganica, procurou as fontes do rio Nilo,
descobriu as cataratas Vitória e cruzou Uganda, Tanzânia e Quênia, percorrendo em 15 anos 48 000
km de trilhas. Nas aldeias, tratava dos doentes, conquistando assim a amizade dos nativos, aos que
defendia dos traficantes de escravos. (NT)
Georg Simmel | 721

casos, no devem ter faltado à migração as tendências despóticas aliadas ao seu fator
nivelador. Ao menos, diz-se dos chefes das caravanas de comerciantes que na época
imperial romana percorriam desde Palmira43 toda a bacia do Eufrates, que eram os
personagens mais importantes da antiga nobreza, aos quais os participantes do
périplo ofereciam depois, muitas vezes, colunas honoríficas. É de supor, portanto, que
o seu poder durante a viagem tenha sido tão discricionário como o do capitão no alto
mar em uma situação muito semelhante. Se a migração conduz a uma associação
estreita que ultrapassa as diferenças habituais entre os homens é justamente porque
ela, em si e por si própria, individualiza e isola, reenviando o indivíduo a suas próprias
forças. Ao privar as pessoas do apoio da sua pátria, mas também das suas
hierarquias estabelecidas, a migração as insta eficazmente a superar o destino do
erradio – isolamento e instabilidade – associando-se, sempre que possível, a uma
unidade supraindividual.
Esse rasgo fundamental da migração aparece, com características
formalmente similares, em outros fenômenos cujo conteúdo é totalmente alheio ao
das manifestações acima referidas. As amizades feitas durante as viagens, na
medida em que sejam passageiras, podem criar amiúde uma real sensação de
intimidade e franqueza que carece de toda razão profunda. Parece-nos que para tal
concorrem três motivos: ter-se apartado do ambiente de vida habitual, partilhar as
impressões e encontros recentes, e estar ciente da próxima e definitiva separação. É
evidente que o segundo desses fatores produz uma união e uma espécie de
comunidade espiritual enquanto a partilha da experiência vivida dura e se impõe às
consciências. Os outros dois, porém, exigem uma análise sociológica mais
aprofundada. A propósito do primeiro, é preciso constatar que não há muitos homens
que saibam apenas por si próprios e graças a um instinto seguro onde se encontra
em verdade o limite intangível da sua privacidade espiritual, de que silêncios
necessita a sua individualidade para se conservar incólume. Apenas à força de

43
Palmira foi uma antiga cidade semita situada em um oásis perto da atual cidade de Tadmor, no
centro da Síria, 215 km a nordeste de Damasco. Fundada durante o Neolítico, a cidade foi
documentada pela primeira vez no início do segundo milênio a.C. como um posto avançado
importante para as caravanas que atravessavam o deserto sírio. Palmira aparece nos anais dos reis
assírios e é mencionada na Bíblia hebraica. Foi incorporada no Império Selêucida (séculos IV a.C.– I
d.C.) e posteriormente no Império Romano, sob o qual prosperou. (NT)
722 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

confrontos e desdéns, de decepções e adaptações conformadas, aprendemos


gradualmente o que podemos revelar aos outros sem passar por situações
constrangedoras, sem despertar a curiosidade mórbida em relação a nós mesmos,
nem produzir danos colaterais. Percebemos assim que a esfera espiritual do
indivíduo não está tão bem definida, em face das outras, como a de seu corpo, e que
esse limite, mesmo depois de ter superado as primeiras hesitações, nunca deixa de
ser relativo. Eis o que aparece claramente se se põem de lado as nossas relações
habituais – nas quais de alguma maneira delimitamos um círculo suficientemente
determinado, feito de direitos e deveres adquiridos aos poucos, da compreensão dos
outros e da sua compreensão de nós, provando as nossas forças e a nossa
capacidade de reação sentimental. Nesse âmbito, chegamos a saber com certeza o
que podemos dizer, o que devemos calar, e até qual é a proporção de silêncio e de
loquacidade que é preciso misturar para produzir e manter nos outros a imagem
adequada de nossa personalidade. Ora, como esse grau relativo de exteriorização,
determinado pela relação com as pessoas de nosso círculo, se transforma para
muitos indivíduos em um grau absoluto, intrinsecamente correto, esses indivíduos
perdem toda discrição e prudência no dizer quando se encontram em novos
ambientes, perante homens completamente desconhecidos. Por um lado, sucumbem
ao efeito de sugestões a que não conseguem resistir, desenraizados como se
encontram e, por outro lado, perdem toda certeza interior, de modo que uma vez
iniciada a intimidade ou a confidência, já não podem estabelecer limites a elas, que
escorregam assim como sobre um plano inclinado. A isso se acrescenta o terceiro
fator: renunciamos facilmente a nossa discrição habitual em face daqueles que não
voltaremos a ver após essa revelação única, unilateral ou recíproca. Todas as
sociações são influenciadas na sua forma e no seu conteúdo pela ideia que fazemos
da duração que achamos certo atribuir-lhes. Todo mundo sabe que a natureza
qualitativa da relação entre um homem e uma mulher é diferente em um casamento
para a vida toda, que em uma relação amorosa clandestina, que o soldado
profissional tem uma relação com o exército diversa da mantida por aqueles que
somente foram alistados nele por um ou dois anos. Ninguém entretanto parece ter
advertido que esses efeitos macroscópicos da duração de um acontecimento devem
intervir também em um grau menos flagrante, em proporção e, consequentemente,
Georg Simmel | 723

desta vez em um nível microscópico, em menor escala. Que um contrato seja


celebrado por um ou por dez anos; que uma reunião social seja projetada para um
dia inteiro, como os piqueniques, ou dure apenas algumas horas, à maneira das
comemorações informais ao fim de um expediente; que duas pessoas se encontrem
por acaso em uma table d’hôte44, onde os comensais mudam todos os dias, ou em
uma mesa de hotel prevista para estadias mais longas – eis certas questões capitais
para perceber os matizes do desenrolar de cada convergência de pessoas, suas
condições materiais e atmosfera, permanecendo inalteradas todas as outras
circunstâncias. É certo que seja qual for o significado da respectiva ação o tempo de
duração de um fenômeno social não está a ser considerado em si mesmo, e depende
do conjunto das circunstâncias: uma longa duração conduzirá frequentemente a uma
negligence45, ou até ao desprezo do laço que liga afetiva ou moralmente as pessoas,
porque se acredita demais na própria força moral e não se considera necessário
tornar mais robusto por novos incentivos um vínculo que de qualquer modo é
indissolúvel. Outras vezes, ao contrário, a consciência desse caráter inelutável, pode
levar à mútua adaptação e a certas concessões mais ou menos resignadas para que
a obrigação imposta se torne, no mínimo, tão suportável quanto possível. Por sua
vez, a brevidade prevista de uma relação pode induzir determinados indivíduos a
abraçá-la com a mesma intensidade de comprometimento com que outros
temperamentos podem transigir, por um breve lapso, com situações puramente
exteriores que não estão dispostos a aturar durante toda a sua maior extensão.
Essa alusão ao efeito que produz a ideia do que deve durar uma relação, sobre
cada um de seus fatores, visa simplesmente a demonstrar que, pela sua essência
sociológica, o encontro acidental e breve das pessoas pertence por natureza a um
contexto amplo e fundamental. A amizade feita durante uma viagem, geralmente
associada ao sentimento de que ela não nos obriga a nada e de que ficamos, no
fundo, anônimos para uma pessoa da qual vamos nos separar para sempre dentro
de algumas horas, induz-nos amiúde a fazer confidências extraordinárias, a ceder ao
impulso de revelação que, nas relações habituais de longo prazo, temos aprendido a

44
Table d’hôte é um galicismo que significa “mesa do anfitrião” ou “mesa de hóspedes” Trata-se de
uma terminologia do meio da restauração utilizada para indicar um tipo de cardápio associado a um
alojamento, que permite a várias pessoas comer juntas por um preço fixo. (NT)
45
Falta de interesse, de consideração por algo. Também em francês no texto de Simmel. (NT)
724 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

controlar, porque a experiência nos ensinou as suas desvantagens. Nessa mesma


ordem de ideias, se tem atribuído o sucesso amoroso dos militares ao fato de que
seu estatuto profissional implica uma mudança de local de afetação muito mais
frequente que a dos outros funcionários, no geral bastante sedentários – o
relacionamento com a gente de armas adquire, assim, para algumas mulheres a
aparência de um sonho fugaz, que não as compromete a nada e que, justamente por
sua brevidade, induz a exauri-lo e a se abandonar a ele. Até o avanço das ordens
mendicantes foi explicado no seu tempo pelo fato de que, como esses frades
beneficiavam do direito de ouvir confissões em toda a parte e estavam apenas a
passar pelos diferentes sítios, os penitentes se confessavam a eles com menos
constrangimento que aos padres-curas, que os conheciam pessoalmente e com
quem ficavam todos os dias. Como outras vezes, também nesta circunstância, os
extremos parecem ter uma significação análoga, oposta à do meio-termo.
Confidenciamo-nos aos mais próximos ou aos que são mais de fora, enquanto as
categorias intermédias constituem o verdadeiro espaço da discrição. Tanto que
mesmo nesses fenômenos tão diversos se pode apreciar o papel fundamental do
mesmo princípio formal: a estranha liberdade do homem quando emigra ou quando
fica na frente de um migrante – e passa então por cima das barreiras ordinárias da
individualidade, dando lugar a isso que anteriormente chamamos de comunidade
espiritual. Voltaremos a encontrar em ação as inúmeras (e às vezes irreconhecíveis)
transformações desse motivo sociológico que promove a nivelação do grupo
migrante, unificação que supera as individualidades.
2. É preciso considerar separadamente o efeito que a migração de uma parte
do grupo produz sobre a forma do conjunto dos elementos que não aderiram a essa
movimentação populacional. Dentre a enorme quantidade de fenômenos desse tipo,
citaremos apenas dois, um dos quais ilustrará o efeito tendente a unificar o grupo, e
o outro justamente àquele que visa a sua divisão em duas partes estruturadas. Para
articular os elementos afastados uns dos outros de um grupo muito estendido, em
épocas culturalmente desenvolvidas recorre-se a um sistema que se serve de
diversos meios, em especial da uniformidade da cultura objetiva, e acompanhada da
consciência de que em qualquer ponto do mesmo círculo determinados produtos
Georg Simmel | 725

culturais concretos46 são compartilhados, bem como certas reuniões funcionais47.


Em síntese, uma trama, um conjunto de fios com pontos de entrelaçamento
necessários, mas também contingentes, que mantêm unidas todas as partes de um
grupo culturalmente evoluído, ainda que com uma força muito desigualmente
repartida. Isso porque o grau e a natureza da cultura substancial não são
suficientemente homogêneos, nem as relações funcionais orientam todos os
elementos do grupo com o mesmo interesse e idêntica força. Contudo, na medida em
que esses fatores de unidade agem, precisam apenas a um nível muito limitado e
acidental do movimento das pessoas em grandes espaços. A vida moderna consegue
produzir a consciência da unidade social, em primeiro lugar, graças àquelas
uniformidades objetivas em que se reconhecem pontos de entrelaçamento comuns,
em segundo termo, graças a instituições conhecidas e respeitadas e, finalmente, pela
comunicação escrita. Quando faltam essa organização e essa técnica objetivas,
outro meio de unificação, que foi regredindo posteriormente adquire uma importância
fundamental: a viagem. O ato de partir de um lugar para outro, todavia, devido ao seu
caráter estritamente pessoal nunca poderá cobrir toda a superfície do território, nem
centralizar um espaço tão vasto, como o fazem aqueles outros meios anteriormente
referidos. No medievo e no início da era moderna, o mercador e o humanista, o
funcionário e o artesão, o monge e o artista, as sumidades da sociedade assim como
seus elementos mais divergentes, eram muito mais móveis do que agora. O que
sabemos de nossa pertença comum graças à correspondência e aos livros, aos
sistemas de transferência e registros contáveis, às reproduções mecânicas e
fotografias, tinha que tentar conseguir-se então através de pessoas que, para obter
esses dados, deviam empreender viagens de custosa realização e magros resultados
– a viagem pessoal é um meio totalmente inapropriado quando se trata de
comunicações objetivas, desde que o indivíduo que a faz leva como lastro o conjunto
de qualidades que define a sua individualidade e que nada tem a ver com o assunto

46
Língua, direito, forma geral de vida, estilo de edifícios e, entre outras, as características que
identificam e distinguem os implementos úteis ou necessários aos usos do cotidiano. (NS)
47
Desde a administração centralizada e, entretanto, onipresente, do Estado e da Igreja, até as
agremiações mais eletivas e, ainda assim, dispersas por toda a parte de empresários e trabalhadores,
as resultantes das relações comerciais de atacadistas e varejistas, assim como as associações mais
ideais, porém muito eficazes de antigos alunos, de veteranos de guerra, de colecionadores de qualquer
coisa, de pais e mestres e de professores universitários. (NS)
726 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

objetivo que motiva o deslocamento. E, se por causa da viagem, se adquiriam


relações pessoais e sentimentais, nada disso servia para o fim que nos interessa
aqui: tornar sensível e eficaz a unidade do grupo. As relações objetivas, que deixam
inteiramente de lado o individual (e podem, portanto, vincular qualquer elemento a
um número ilimitado de outros elementos), conseguem produzir muito mais
facilmente a consciência de que existe uma unidade estendida por cima dos
indivíduos. Contrariamente, a relação afetiva não só exclui amiúde por seu conteúdo
todos os outros, mas também se esgota na sua proximidade direta, de modo que a
sua contribuição à consciência de unidade do círculo, ao qual os dois elementos
pertencem, é mínima. É característico para esse traço subjetivo da relação (bem
como para a sua importância) o fato de que na Idade Média a conservação dos
caminhos e das pontes era um dever religioso. Que tantas comunicações hoje
asseguradas objetivamente só fossem realizadas outrora pelo deslocamento de
pessoas nos parece ser uma das razões da fraqueza relativa da consciência de
unidade dos grandes grupos de tempos passados.
De qualquer maneira, os deslocamentos têm sido amiúde o único ou,
comparativamente, o mais importante suporte da centralização política. Algumas
vezes, sob a forma de uma única turnê, que o rei cumpria para tomar pessoalmente
posse de cada parte de seu reino, tal como se diz que os antigos reis francos e os
primeiros monarcas suecos faziam, e em outras ocasiões percorrendo constante ou
periodicamente seus domínios, como os antigos czares russos e os imperadores
romano-germânicos – cada um dos quais entendia favorecer a coesão de seus
impérios, ao visitarem anualmente, no primeiro caso, todas as suas cidades, ou
substituindo, no segundo, a falta de uma capital imperial, que poderia ter sido
entendida como o sinal de uma inquietante descentralização, pela reunião ideal de
todas as partes do império na pessoa do soberano itinerante. Efeito reforçado pela
necessidade dos príncipes alemães de consumir os tributos cobrados em gêneros no
lugar da respectiva exoneração obrigacional, a causa da falta de meios de transporte
– que também criava uma espécie de relação pessoal entre cada região e seu senhor.
Georg Simmel | 727

A instituição dos itinerant justice 48 na Inglaterra de Henrique II 49 teve finalidades


análogas. Dadas às imperfeições da centralização e das comunicações, a
administração dos condados pelos baillis50 produziu grandes abusos, como era de
prever. Foram precisos então esses juízes volantes para que a suprema jurisdição51
do Estado chegasse a todas as partes do reino. Somente eles fizeram (graças à
distância que a sua qualidade de forasteiros lhes permitia manter em relação a todos
os litigantes, e à uniformidade de sua jurisprudência) das distintas comarcas do
território uma unidade jurídica e administrativa situada para além dos indivíduos e
centrada no rei. Enquanto os meios de agir à distância não transmitiram essa unidade
às instâncias das sedes locais, as forças-tarefas móveis de funcionários deslocados
da administração central constituem o modo mais eficaz de combater a dispersão
espacial em uma unidade política ideal.
A isso acresce a impressão sensorial que as pessoas produzem a partir do
ponto focal do conjunto e que regressam a ele. Essa visão imediata e concreta dá à
organização baseada em elementos móveis uma clara vantagem sobre aquela
mantida graças a meios abstratos. Uma organização filossocialista inglesa, a English
Land Restoration League 52 emprega para a sua propaganda entre os operários
agrícolas umas rulotes vermelhas (red van), nas quais moram os oradores e que,
deslocando-se de um ponto para outro, constituem, toda vez que aparecem, o centro
das assembleias e da agitação. Esse veículo, apesar da sua mobilidade e graças ao

48
Oficiais itinerantes nomeados pelo rei e enviados aos condados ingleses e à Irlanda para administrar
a justiça. (NT)
49
Henrique II (1133 – 1180), também conhecido como Henrique Plantageneta, rei da Inglaterra de
1154 até a sua morte, conde de Anjú e duque de Normandia e da Aquitânia. Foi um governante enérgico
e, às vezes, implacável, motivado por um desejo de restaurar as terras e privilégios de seu avô. Durante
seu longo reinado introduziu muitas mudanças legais que tiveram consequências duradouras e são
geralmente consideradas como as bases do common law inglês. (NT)
50
Funcionários reais encarregados no início de supervisar os prebostes, e logo de representar o rei e
fazer justiça no seu nome em um condado. (NT)
51
Poder do Estado, decorrente de sua soberania, para ministrar a justiça. (NT)
52
A English Land Restoration League (ELRL) era um grupo político favorável ao imposto único sobre a
terra e, a esse título, pode considerar-se um precursor histórico dos atuais movimentos partidários da
reforma agrária. A organização foi criada em 16 de abril de 1883 com o nome de Land Reform Union.
Na primeira reunião anual, em maio de 1884, se renomeou como indicado acima, programando uma
série de palestras e atos públicos em Londres. Em 1891, a liga instituiu a campanha da "red van",
espécie de rulote (veículo adaptado para servir de moradia arrastado por cavalos) de cor vermelha, na
qual um grupo de palestrantes viajava em torno de vários vilarejos. A turnê foi considerada um grande
sucesso e a Liga operou cinco rulotes nos anos seguintes. Em 1902, a ELRL mudou seu nome para o
de English League for the Taxation of Land Values, e desapareceu como organização autônoma algum
tempo depois de sua assembleia geral em 1950. (NT)
728 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seu aspecto conhecido de todos, constitui um elemento psicologicamente estático e,


pelas suas idas e vindas, cria nos partidários dispersos a consciência de sua unidade,
talvez com mais eficácia do que pudesse fazê-lo, em circunstâncias iguais, uma
eventual filial permanente da facção – a tal ponto que parece que outros partidos
estão prestes a imitar esse método.
O princípio do deslocamento pode servir não só para objetivar a unidade da
nação soberana e do partido, mas também a da religião. Os cristãos ingleses ficaram
muito tempo sem construir igrejas paroquiais. Pelo menos até meados do século VII,
os bispos percorriam as dioceses com os seus assistentes para celebrarem os ritos
eclesiásticos – pois se entendia que, embora a unidade de cada comuna auferisse
da construção de uma igreja uma estabilidade e evidência incomparáveis, isso
poderia favorecer as tendências particularistas de cada paróquia. A autoridade
episcopal tinha percebido com clareza que, em compensação, a unidade de toda a
diocese, ou mesmo a da Igreja em geral, se tornava muito mais visível graças ao
deslocamento de seus representantes. Ainda hoje, os anabatistas norte-americanos
exercem a sua catequese nas regiões afastadas valendo-se de carruagens especiais
(gospel-cars) adaptadas como capelas. Essa possibilidade de levar facilmente o
serviço divino por todo canto deve ser particularmente eficaz na propaganda, porque
faz sentir aos adeptos dispersos que eles não se encontram em lugares isolados e
esquecidos, mas pertencem a um todo unitário que se mantém coeso e unido por
laços vivazes e operantes.
Finalmente, a atitude ética do grupo perante os seus elementos transeuntes
constitui mais um exemplo dos fatores que em muitos casos envolvem o consenso
de seus membros. Na Idade Média, como a viagem (que se tinha tornado necessária
para vida econômica e intelectual) ia de par com inúmeros perigos e dificuldades, e
como por outro lado os pobres (que de uma maneira ou de outra precisavam de ajuda
da comunidade) vagavam continuamente e por todos os caminhos, podia acontecer
que a Igreja recomendasse os viageiros às orações cotidianas de todos os fiéis, ao
mesmo título que os doentes e os prisioneiros. Do mesmo modo, o Alcorão prescreve
que um quinto do butim corresponde a Deus, a seus enviados, aos órfãos, aos
mendigos e aos viageiros. Depois, a ajuda direta ao viageiro tomou uma forma
diferente (acompanhando o ritmo da evolução histórica geral), e se limitou a facilitar,
Georg Simmel | 729

objetivamente, as viagens com caminhos praticáveis, segurança reforçada e outras


instituições, partindo do pressuposto de que, subjetivamente, o viageiro cuidaria de
si mesmo e de suas necessidades – o que não deixou de ser uma simples presunção.
Aquela difundida obrigação religiosa para com o viageiro era o reflexo ético da ação
sociológica constante e da unidade funcional que criavam os que viajavam. Assim
como o viageiro, mesmo que não seja pobre, pode bem depressa necessitar de
alguma ajuda – com mais razão quanto menos desenvolvidas sejam as terras que
atravessa –, assim também, por contraposição, a emigração se oferece facilmente
ao pobre como um recurso quando se esgota a assistência a eles consentida. O fato
de que, por tais motivos, a pobreza e o forasteirismo se ofereçam muitas vezes como
um fenômeno unitário – a tal ponto que na Alemanha só recentemente começou a
desaparecer o tipo bem estudado do mendigo de estrada – é a principal causa das
dificuldades que encontra a assistência aos pobres quando se trata de itinerantes
sem abrigo. É que não há uma maneira segura para distinguir o operário em busca
de emprego que no caminho caiu em uma imerecida miséria, daquele que
voluntariamente se entrega à ociosidade, apesar de ser apto para o trabalho, e vai de
um lugar a outro para viver à custa dos demais.
Para além do efeito unificador da viagem sobre o grupo sedentário, que tenta
superar funcionalmente o distanciamento espacial graças às idas e vindas de alguns
de seus elementos, há outro efeito desses deslocamentos que, ao contrário, favorece
as forças antagônicas que se desenvolvem nele. É o que acontece quando uma parte
do grupo é, em princípio, sedentária, enquanto a outra se caracteriza pela sua
mobilidade, e essa diferença torna-se causa, instrumento ou motivo agravante de um
conflito, latente ou aberto, que já existia anteriormente. O melhor exemplo disso
talvez seja o aventureiro sem assento nem meios de vida estável, que vive de
expedientes e cuja constante mobilidade transporta a agitação e o rubato53 de sua
vida interior ao espaço. A diferença entre os temperamentos sedentário e aventureiro
oferece, por si só, inúmeras possibilidades de variação na estrutura e
desenvolvimento das sociedades. Cada um desses temperamentos vê no outro seu

53
Em música, tempo rubato ou apenas rubato (que significa “roubado” em italiano) é acelerar ou
desacelerar ligeiramente o tempo de uma peça à discrição do solista ou do maestro. O termo nasce
do fato de que o intérprete "rouba" um pouco do tempo de algumas notas e o compensa em outras.
Foi usado com frequência no romantismo, e é especialmente comum na música para piano. (NT)
730 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

inimigo natural e irreconciliável. Quando o aventureiro nato não tem a sorte de achar
uma atividade que corresponda a sua sensibilidade (o que é mesmo raro já que a
simples atividade regular no tempo se assemelha muito para ele à fixidez no espaço),
subsistirá como parasita dos elementos sedentários da sociedade. Eles, todavia, não
perseguem o aventureiro apenas porque o odeiem, mas também o odeiam porque
são obrigados a odiá-lo para sua própria sobrevivência. É precisamente isso que leva
o aventureiro a escolher essa situação tão exposta e perigosa, seu impulso a mudar
de posição, a capacidade e o prazer de tornar-se invisível no mundo real e construir,
a partir de fragmentos do mundo exterior, outro mundo (interior e cheio de sentido)
que é simultaneamente sua proteção contra as perseguições e vexames e a sua arma
ofensiva e defensiva. Assim como a sua relação com o espaço é a expressão
adequada da sua vida interior e de suas oscilações, o mesmo acontece com as
relações que mantém com o grupo social a que pertence.
Tratamos exclusivamente aqui de elementos singulares que se veem forçados
a uma vida sem assento por sua instabilidade e mobilidade, embora também sejam
capazes de engajar uma verdadeira luta contra a sociedade. As uniões de indivíduos
que mudam periodicamente de lugar são pouco frequentes, comparadas, ao menos,
com os numerosos casos de temperamentos erradios que existem por toda a
estrutura social. Esses grupos, ao contrário dos nômades, não constituíam
sociologicamente comunidades migratórias, mas comunidades de migrantes. O
princípio vital do caráter aventureiro vai, contudo, contra a própria natureza de uma
organização que, como tal, dificilmente poderá evitar alguma forma de fixidez.
Existem, seguramente, esboços que poderiam qualificar-se como sociações
inconstantes, mas que, em qualquer caso, só chegariam a abranger e regular uma
ínfima parte da vida, interior e manifesta, de seus membros. Uma coletividade desse
gênero, sem domicílio, eram as agremiações ambulantes da Idade Média. Foi preciso
todo o espírito de companheirismo associativo próprio daquela época para que essas
pessoas itinerantes criassem uma ordem fraterna – cuja radical oposição ao resto
da sociedade se reduz, ao menos no plano formal, quando a sua importância
aumentou, chegando até a instituição de certos cargos e dignidades como a de
“mestre”. A situação é ainda mais clara nos casos em que o deslocamento atualiza
um antagonismo social preexistente entre duas partes do mesmo grupo. As viagens
Georg Simmel | 731

dos artesãos pertencentes ao mesmo ofício ou profissão, sobretudo no medievo, são


talvez o melhor exemplo. As corporações nas quais os oficiais sustentavam as suas
reivindicações em face de burgos e mestres donos de oficina pressupunham a vida
itinerante. Ou, para dizê-lo de outra maneira, esses dois fatores tinham uma relação
recíproca indissolúvel. A vida itinerante teria sido tecnicamente fora de cogitação se
não houvesse existido uma instituição que garantisse ao oficial recém-chegado um
primeiro lugar de acolhimento, cuidado que recaía sobre seus colegas de profissão,
que tinham, eles próprios, passado (ou que iriam passar alhures) por uma situação
similar. E como as corporações se reservavam precisamente a gestão do mercado
de trabalho, o oficial não era, na realidade, um forasteiro em qualquer lugar do Império
germânico – e analogamente também nos outros países. Uma rede de transmissão
de informações entre os oficiais assegurava com relativa rapidez o equilíbrio entre a
oferta e a procura de trabalho em cada lugar, dando origem, graças às vantagens que
resultavam das consequentes viagens dos oficiais, a uma associação deles
espalhada por toda a antiga Germânia. O caráter itinerante desses artesãos fez com
que suas agremiações tivessem relações recíprocas mais estreitas e duradouras que
as das corporações de mestres com domicílio fixo e fez nascer entre os oficiais uma
comunidade de direito e costumes que garantia, ao indivíduo ou aos grupos mais
reduzidos, um apoio decisivo nas suas lutas pelo salário, por melhores condições de
vida, pela honra e a posição social. A vida itinerante dos oficiais só podia favorecer
no mais alto grau a constituição de suas corporações por área de trabalho. O oficial
nascido no lugar onde trabalhava, estava vinculado ao mestre pelo costume, pelo
afeto e pela comum relação mantida com pessoas e coisas. Em compensação, os
oficias vindos de todo o lado não tinham outro interesse além dos puramente
objetivos e técnicos. Os laços pessoais com o mestre se tinham soltado e só ficou a
orientação racionalista dos interesses e das relações que por toda a parte é a própria
do forasteiro e que, por exemplo, tem feito sempre dele o gestor dos negócios
financeiros. Assim, a posição de força dos oficiais foi reforçada diretamente por sua
vida itinerante e, ademais, pelo efeito indireto da sociação que ela motivava – que,
por acréscimo, permitia aos oficiais dispor de interrupções do trabalho e boicotes
contra os quais os mestres nada podiam fazer. Somente quando esses donos de
oficina compensaram os inconvenientes de sua fixidez por meio de acordos que
732 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

abrangiam toda a região em que poderiam deslocar-se os oficiais, estiveram em


condições de articular uma resposta à altura do desafio. Chegaram, assim, até nós
notícias da formalização de alianças de cidades e de corporações de mestres
celebradas para se apresentarem em uma frente unida, acordos que amiúde diziam
respeito a uma zona geográfica determinada, daquelas que constituíam um distrito
regular de deslocamento dos oficiais. Enfrentaram-se destarte duas formas
diferentes para tentar dominar o mesmo espaço. Perante a mobilidade que permitia
ao grupo distribuir os seus elementos para a ofensiva ou para ficar na defensiva,
levando-os sempre ao ponto de menor resistência e melhor desempenho, ergueu-se
o controle ideal do mesmo espaço pelas convenções do outro grupo, destinadas a
suprimir as suas diferenças internas, às que devia suas vantagens a mobilidade do
oponente. Foi preciso que todos os elementos do grupo de mestres adotassem a
mesma atitude e se unissem, para tornar ilusórias as possibilidades de sucesso do
conjunto dos oficiais itinerantes. Da mesma maneira, o Estado dos séculos XVII e
XVIII conseguiu acabar muito mais depressa com as corporações de mestres,
forçadas a ficar calmas, que com as associações de oficiais – cujos membros
podiam partir para qualquer outro território e impedir que seus colegas de profissão
se instalassem no lugar que eles estavam dispostos a deixar, causando assim graves
danos a sua economia. Por essa razão, os Estados germânicos do século XVIII só
puderam impor-se as agremiações de oficiais quando intervieram contra elas ao
mesmo tempo, em uma grande parte do Império.
O caráter formal das sociações depende em alto grau da frequência das
reuniões dos atores sociais que criam essas relações de interdependência. Tal
característica varia de modo surpreendente a partir do momento em que passamos
dos mestres para os oficiais. Devido a seu sedentarismo, os donos de oficina se
encontravam amiúde e, no geral, quantas vezes forem necessárias, mas apenas
dentro do círculo local limitado, enquanto o grupo dos artesãos jornaleiros se reunia
na sua totalidade com muito menos frequência e de um modo mais aleatório, mas
em compensação em um círculo maior que abrangia numerosos territórios
corporativos. Assim, apesar de o oficial que rescindia seu contrato ser sempre
duramente sancionado no medievo, se concedeu em 1331 aos oficiais tecedores de
Berlim o direito de pedir pagamento imediato e partir quando pensavam em
Georg Simmel | 733

abandonar a cidade. Depois, contrariamente, a mobilidade e o frequente


deslocamento dos operários impediram a certa parte deles de participar em greves,
colocando-os em desvantagem em face dos patrões sedentários. Nessa ordem de
ideias, naquelas categorias de trabalhadores itinerantes por sua mesma profissão,
como os sazonais e os marítimos, essa desvantagem chega mesmo a deixá-los
praticamente sem direitos. Assim, em caso de demanda por perdas e danos contra
seus patrões, esses trabalhadores não conseguem frequentemente reunir suas
testemunhas e conservá-las durante o lento processo judicial. De um modo geral,
parece que, à medida que nos aproximamos da época presente, vai-se tornando mais
favorável a posição do sedentário perante seu adversário fadado ao movimento. E
isso se explica pelos deslocamentos serem cada vez mais fáceis. Isso implica que,
mesmo o sedentário por natureza, ainda pode, a qualquer momento, ir a toda parte,
somando assim às vantagens da fixidez o proveito da mobilidade – ao passo que o
homem desimpedido, móbil por natureza, não beneficia igualmente dos préstimos do
sedentarismo.

Digressão sobre o estrangeiro

Se a emigração, enquanto significa a ação de se desfazer de um vínculo que


liga, física ou moralmente, um ou vários homens a um ponto do espaço, constitui o
conceito oposto ao sedentarismo, também representa, de certo modo, a união de
ambas as determinações – revelando, aliás, mais uma vez, que a relação com o
espaço não é mais do que a condição e o símbolo de relações com os homens. O
estrangeiro não é o itinerante, no sentido que demos a essa palavra até agora, não é
aquele que vem hoje e irá embora amanhã, mas aquele que vem hoje e deve ficar
amanhã – é o migrante em potência que, apesar de se ter detido, não se fixou ainda
por completo. Estabeleceu-se em dado círculo espacial – ou de um círculo cuja
delimitação é análoga à espacial –, mas a sua posição nele depende, sobretudo, do
fato de que não pertenceu a esse círculo desde sempre, de que traz consigo certas
qualidades que não provêm, nem podem provir, do lugar onde se encontra. A
combinação de proximidade e distanciamento, presente em todas as relações
humanas, tomou aqui uma forma que poderia sintetizar-se deste modo: assim como
734 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a distância na relação significa que o próximo está longe, o ser estrangeiro significa
contrariamente que o longínquo está próximo. A estraneidade constitui
evidentemente uma relação afirmativa, uma forma especial de ação recíproca. Os
habitantes de Sírio54 (se os houvesse) não seriam estrangeiros para nós – ao menos
no sentido sociológico do termo –, porque, mesmo tendo presença viva, seria como
se não existissem, se encontrariam para além do próximo e do longínquo. Ao invés
disso, o estrangeiro é um elemento do próprio grupo, como os pobres e as distintas
classes de inimigos interiores – um elemento cuja articulação imanente ao grupo
implica simultaneamente uma exterioridade e uma presença. As seguintes
observações, que de modo algum pretendem esgotar o tema, talvez possam explicar
como, no caso do estrangeiro, elementos distanciados e que parecem ser
incompatíveis podem criar uma forma de coexistência e de unidade na ação
recíproca.
Na história da economia o estrangeiro é frequentemente associado à figura do
comerciante – e o comerciante àquela do estrangeiro. Enquanto a economia está
essencialmente voltada para a subsistência, e todos os gêneros necessários são
produzidos internamente ou se troca apenas uma parte muito limitada deles, não se
necessita de nenhum intermediário dentro do círculo – só pode prever-se aqui a
presença de um comerciante para os produtos fabricados fora do círculo. E, se não
houver membros do grupo que saiam para procurar esses artigos (caso em que, os
“comerciantes forasteiros” seriam eles, naquela outra região), o comerciante tem que
ser estrangeiro – não existe outra possibilidade. Essa posição do estrangeiro torna-
se ainda mais evidente quando, em vez de abandonar de novo o lugar onde
desenvolve suas atividades, se instala nele. Pois, na maioria dos casos, isso só lhe
será possível quando possa viver do comércio. Em um círculo econômico fechado,
no qual a terra já foi distribuída e os artesãos sejam suficientes para satisfazer a
procura, haverá também um espaço para o comerciante – só o comercio permite
infinitas combinações e oferece à inteligência o meio de ampliar os horizontes e
aprofundar seus avanços, o que não fica normalmente ao alcance do produtor

54
Sírio, também chamada de Sirius. é a estrela mais brilhante do céu noturno, visível a olho nu.
Localizada na constelação do Cão Maior, dista 8,57 anos-luz da Terra (cada ano-luz equivale
aproximadamente a 9,460530×1012 km), sendo uma das estrelas mais próximas de nosso planeta.
(NT)
Georg Simmel | 735

primário, que tem escassa mobilidade e depende de uma clientela que evolui em
ritmo muito lento. O comercio pode sempre empregar mais pessoas que a produção
primária, constituindo por isso um campo propício para o estrangeiro, que chega de
certa maneira como um supranumerário em um círculo no qual todas as posições
econômicas estão ocupadas. A história dos judeus europeus proporciona o exemplo
clássico. Pela sua própria natureza, o estrangeiro não pode reivindicar a terra – não
só no sentido físico deste último termo, mas também no sentido metafórico de uma
substância vital que, embora não corresponda a um ponto concreto do círculo social,
está adscrita a uma de suas posições ideais. Mesmo nas relações mais íntimas de
pessoa a pessoa, ainda que o estrangeiro atraia, encante e envolva totalmente com
todas as qualidades possíveis, sempre despertará no outro a sensação de “homem
sem chão”55, enquanto se veja nele, precisamente, um estrangeiro. Ora, dedicar-se ao
comércio – e às transações puramente financeiras que são uma espécie de
sublimação daquela atividade – confere ao estrangeiro o caráter específico da
mobilidade, na qual se manifesta (por ocorrer dentro de um círculo bem definido)
aquela síntese do próximo e do distante, que representa o caráter formal da posição
do estrangeiro. Quem por essência é móbil, entra ocasionalmente em contato com
cada elemento particular, mas não se liga organicamente a nenhum deles por
relações fixas de parentesco, vizinhança ou profissão.
Esse conjunto de relações encontra outra expressão na objetividade do
estrangeiro. Como não tem raízes que o fixem a um substrato individual ou a suas
tendências divergentes, o estrangeiro adota globalmente em seu lugar a atitude típica
do “homem objetivo”, que não é meramente recuo e falta de participação, mas uma
amálgama sui generis de proximidade e afastamento, de indiferença e engajamento.
Recorde-se o que já referimos no capítulo dedicado à subordinação relativamente
aos casos em que o estrangeiro adquire uma posição dominante. O melhor exemplo
que pudemos encontrar foi o das cidades italianas que traziam de fora seus juízes,
porque os cidadãos nativos não estavam suficientemente isentos de interesses de
família ou partido. A objetividade do estrangeiro explica também o fenômeno

55
Difícil não pensar no “homem sem sombra” de Alexander von Chamisso (1781 — 1838), autor de um
clássico da literatura alemã (Peter Schlemihl wundersame Geschichte) que já na sua época foi
entendido como uma metáfora do homem sem pátria – à imagem de Chamisso, nobre francês
emigrado que dizia sentir-se "estrangeiro em toda a parte”. (NT)
736 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

apresentado anteriormente (associado, é verdade, sobretudo ao viageiro, mas não só


a ele), e que nos induz amiúde a fazer confidências extraordinárias a um estrangeiro,
revelando-lhe coisas que se mantêm cuidadosamente escondidas das pessoas mais
próximas. A objetividade não é de modo algum descaso (procedimento que está além
de toda relação objetiva ou subjetiva), senão apenas uma classe, afirmativa e
particular, do interesse – da mesma maneira que a objetividade de uma consideração
teórica não significa que o espírito seja uma tabula rasa passiva na qual as coisas
inscreveriam suas qualidades, mas subentende, ao contrário, a atividade plena do
espírito, agindo conforme as suas próprias leis, eliminando as deformações e realces
excessivos ou aleatórios, cujas diversidades subjetivas poderiam produzir imagens
distorcidas do mesmo objeto. Também se pode definir a objetividade como uma
forma de liberdade. O homem objetivo não se sente constrangido por nenhuma
consideração que pudesse falsear antecipadamente a sua percepção, compreensão
e avaliação dos objetos. No entanto, o reconhecimento dessa liberdade, que permite
ao estrangeiro colocar em perspectiva as relações de proximidade, pode acarretar
igualmente para ele algumas consequências desagradáveis. Desde sempre, em
todas as revoltas, a autoridade atacada afirma que uma agitação de origem exterior
foi atiçada por emissários e elementos perturbadores provenientes do estrangeiro.
Contudo, ainda admitindo que possa haver, às vezes, uma parte de verdade nessa
imputação, ela contém, quase sempre, um exagero do papel específico do estrangeiro
– que, se em princípio é um homem mais livre prática e teoricamente, que examina
com menos preconceitos as circunstâncias, por isso mesmo as pondera à luz de
ideais mais genéricos e objetivos, sem deixar que sua ação seja comprometida pelos
hábitos, os afetos ou precedentes56.
Finalmente, a proporção de proximidade e de afastamento que dá ao
estrangeiro a qualidade da objetividade encontra, na prática, outra expressão no
caráter mais abstrato das relações com ele. Com o estrangeiro só se partilham certas

56
No entanto, quando os atacados afirmam aquilo falsamente, a sua versão dos fatos resulta de uma
conhecida tendência dos superiores a exonerar, apesar de tudo, os inferiores que estavam até então
em uma estreita relação com eles. Isso porque, ao aceitar a ficção de que os rebeldes no fundo não
são os responsáveis, que foram influenciados por agitadores estrangeiros e que a rebelião não havia
partido deles, os superiores se desculpam a si mesmos, e recusam antecipadamente que o levante
pudesse ter o menor motivo real. (NS)
Georg Simmel | 737

qualidades de ordem geral, ao passo que as relações estabelecidas com as pessoas


vinculadas organicamente se baseiam nas diferenças específicas perante o que é
simplesmente universal. Todas as relações mais ou menos pessoais efetuam-se,
com diferentes gradações, nos termos desse padrão de comportamento. O fator
decisivo não é simplesmente a existência de alguns pontos em comum entre os
elementos, ao lado de diferenças individuais, que podem afetar a relação ou ficar
longe dela. Esse próprio fator comum mudará profundamente seu efeito sobre a
relação dependendo de ser comum apenas a tais elementos (e, consequentemente,
geral dentro do grupo, mas singular e incomparável fora dele), ou de ser, essa
comunidade entre os membros do grupo, resultado do sentimento, compartilhado por
todos eles, de terem uma visão diferenciada de certas características que eles
compartilham com o resto da humanidade. No segundo caso, o efeito do comum se
enfraquece em proporção ao tamanho do círculo em que essa comunidade esteja
contida – pois embora funcione como base compartilhada por todos os elementos,
não os une por serem precisamente eles e não outros, já que poderia muito bem unir
em comunidade a quaisquer outros indivíduos. Também esse modo de relação inclui
simultaneamente proximidade e afastamento. Na medida em que os fatores de
semelhança têm uma natureza mais geral, a intensidade das emoções, ações ou
pensamentos, criada por eles, torna-se atitude de reserva e de distanciamento, as
forças vinculantes acabam perdendo seu caráter centrípeto, e se abre caminho para
o sentimento de que essa relação é casual. Ora, parece-nos que, relativamente ao
estrangeiro, essa configuração efetiva do conjunto prevalece sobejamente sobre os
fatores comuns individuais dos elementos, que se adéquam apenas à relação em
pauta. O estrangeiro está perto de nós na medida em que percebemos que entre ele
e nós existem certas semelhanças nacionais ou sociais, profissionais ou
simplesmente humanas; da mesma maneira que pensamos que está distante, que é
demasiado diverso de nós, quando essa semelhança supera a sua pessoa e a nossa
e sentimos que nos vincula apenas porque isso é o que faz, finalmente, com inúmeras
pessoas. Nesse sentido, até as relações mais íntimas adquirem nuances de
estranheza. No estado da primeira paixão, as relações amorosas rejeitam com a
maior firmeza essa ideia de generalização. Os amantes acreditam que nunca houve
um amor como esse, que nada se pode comparar nem à pessoa amada nem ao que
738 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

se sente por ela – e somente começam a afastar-se quando desaparece (não se sabe
muito bem se como causa ou como efeito) a ilusão de viver uma relação única. Tão
cedo como nos sintamos céticos sobre o valor dessa relação, surge o pensamento
de que, em última instância, ela estava apenas a cumprir um destino humano
universal, uma experiência ocorrida inúmeras vezes, e que, se não tivéssemos
conhecido precisamente essa pessoa por acaso, qualquer outra teria assumido a
mesma importância para nós. Talvez nenhuma relação (por mais íntima que seja)
fique livre da mácula dessa ideia, nos termos da qual o que é comum a dois
provavelmente não pode ser exclusivo deles, porque pertence a um conceito geral
que inclui muitas outras possibilidades de um fato semelhante. Ainda que essas
possibilidades não se concretizem, mesmo que amiúde as esqueçamos, elas surgem
de vez em quando como uma sombra entre as pessoas, como uma névoa que só
necessita adquirir contornos definidos para despertar ciúmes. Em muitos casos,
pode ser uma estranheza mais geral ou, ao menos, mais difícil de superar que aquelas
que causam frequentemente conflitos e desentendimentos: é a sensação mais ou
menos desconfortável de um indivíduo quando percebe que muito embora exista
entre duas pessoas semelhança, harmonia e proximidade, essas convergências não
são patrimônio exclusivo de tal relação, mas uma questão de caráter mais geral, uma
potencialidade entre nós e inúmeras pessoas. Por outro lado, existe outra espécie de
“estraneidade” que exclui precisamente a presença de fatores comuns baseados em
um bem mais geral partilhado por ambas as partes, cujo caso típico é a relação que
os gregos mantinham com os “bárbaros” – e todas aquelas situações em que se
nega aos outros as qualidades que se consideram verdadeira e exclusivamente
humanas. O “estrangeiro” não tem mais, então, sentido positivo. A interação com ele
também não merece o nome de “relação”, e ele próprio deixou de ser o que em todas
as considerações precedentes se supôs que fosse: um membro do grupo.
É nessa qualidade que ele está simultaneamente próximo e longínquo, o que
significa fundar a relação em uma semelhança humana puramente geral. No entanto,
entre esses dois elementos se cria uma tensão particular porque a consciência de
que só se compartilha o absolutamente genérico (o que é estabelecido como padrão
da sua humanidade) mais acentua o fator que não é comum. Daí que, no caso dos
estrangeiros por nacionalidade, naturalidade ou etnia, a única coisa que se consegue
Georg Simmel | 739

ver neles é a sua origem estrangeira que, aliás, é (ou talvez fosse) comum a muitos
estrangeiros – negligenciando-se todos os outros dados individuais que poderiam
colaborar na sua melhor caracterização. Por essa razão, os estrangeiros nunca são
percebidos realmente como indivíduos, mas como estrangeiros de determinado tipo
– perante os quais o fator do afastamento não é menos geral que o da proximidade.
Essa forma é a que, por exemplo, está por trás de um caso tão específico como o do
imposto que os judeus deviam durante a Idade Média em Frankfurt e alhures.
Enquanto a quota-parte paga pelos burgueses cristãos variava no tempo conforme a
riqueza de cada um, o tributo de cada judeu era fixado de uma vez por todas. Essa
imutabilidade devia-se ao fato de que a posição social do judeu era decorrência da
sua condição de judeu, e não dos lucros materiais por ele auferidos. Em matéria fiscal,
qualquer outro burguês possuía certo patrimônio, e seu imposto podia seguir as
evoluções dele. Em compensação, o judeu era imponível enquanto judeu e sua
posição fiscal era invariável. Naturalmente, aquela percepção do estrangeiro se
manifesta de um modo mais radical quando desapareceram inclusive essas taxações
discriminatórias e imutáveis (que restringiam a própria individualidade do tributo), e
todos os estrangeiros passaram a pagar por cabeça o mesmo imposto. Apesar de
não possuir um vínculo que remeta à evolução natural do grupo, o estrangeiro é um
membro orgânico de tal conjunto – cuja vida unitária pressupõe o estatuto particular
desse elemento adventício. Contudo, só sabemos definir a unidade singular dessa
posição, dizendo que se compõe de certa proporção de proximidade e afastamento,
que caracteriza toda relação específica e formal com o estrangeiro 57.
II. Enquanto nos fenômenos estudados até aqui o interesse sociológico
começava no ponto em que se iniciava a influência de uma configuração particular
do espaço, para outros o ponto sociologicamente essencial reside no processo
inverso, quer dizer, no efeito que as determinações espaciais de um grupo sofrem
como decorrência de suas configurações e energias propriamente sociológicas. Nos
exemplos seguintes consideramos essencial este ponto de vista, ainda que não

57
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou ao “estrangeiro”. Doravante
Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, nomeadamente dos “efeitos das formas de
sociação sobre a organização do espaço”. (NT)
740 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

possamos separá-lo totalmente do outro, da mesma maneira que também esse outro
ponto de vista não pode considerar-se independentemente deste.
A) A passagem de uma organização originária do grupo, fundada em laços de
sangue e origem comum, para outra mais mecânica, racional e política, se caracteriza
pela divisão do grupo de acordo com princípios espaciais. O que sobretudo se
manifesta dessa maneira é a unidade do Estado. O perigo que significa para o Estado
a organização baseada na origem comum (clânica ou tribal) consiste precisamente
em que esse tipo de organização é indiferente às relações espaciais. A coesão
produzida pelo parentesco é, em princípio, completamente independente do espaço
e tem algo de incompatível com a unidade política de base territorial. As organizações
políticas que se baseiam no princípio da origem comum tendem a desintegrar-se
quando atingem certos limites no seu desenvolvimento, porque cada uma das suas
subdivisões possui uma coesão rígida demais, orgânica, muito independente do
território comum. O interesse da unidade política exige, ao contrário, que seus
subgrupos (na medida em que tenham papel político) se constituam de acordo a um
princípio indiferente – e consequentemente menos excludente que o do parentesco.
Visto que, se queremos erguer a unidade estatal a uma altura igual por cima de todos
os elementos, as distâncias que existem entre eles (especialmente as
supraindividuais) devem estar limitadas de alguma maneira. O caráter absoluto,
exclusivo, do parentesco social entre os que descendem de um mesmo pai ou de um
ancestral comum, real ou imaginário, não se conjuga com a relatividade recíproca
das posições de todos os elementos do Estado, sobre os quais ele se erige como algo
único e absoluto. Ora, a organização do Estado em unidades territoriais, bem
delimitadas no espaço, responde melhor a essas exigências. Delas não se espera que
ofereçam a resistência ao interesse geral que, geralmente, produzem os reflexos
particularistas dos grupos baseados em relações parentais. Mais ainda: graças a
essas unidades territoriais resulta possível (ou necessário) que elementos das mais
diferentes classes, genéticas ou qualitativas, constituam uma unidade política desde
que estejam localmente próximos. Em suma, o espaço, reconhecido como
fundamento da organização, possui essa imparcialidade e uniformidade de
comportamento que o tornam o correlato apropriado do poder do Estado – que se
comporta de igual maneira a respeito do conjunto de seus súditos. O melhor exemplo
Georg Simmel | 741

disso é a reforma de Clístenes58, que conseguiu acabar com a influência particularista


das estirpes nobiliárias atenienses, dividindo o povo ático em filai e demos 59 ,
limitados no espaço, como fundamento da autonomia administrativa.
Sem uma intenção deliberada e, por conseguinte, de um modo rudimentar, o
mesmo princípio aparece na sociedade israelita após o estabelecimento na terra de
Canaã. Enquanto o sistema originário (a despeito de marcantes igualdades
econômicas, sociais e religiosas) era aristocrático, com algumas tribos e linhagens
distinguidas dominando as outras, doravante a pertença a um espaço local mais ou
menos restrito adquiriu uma importância crescente em detrimento da relação de
parentesco. A partir das diferentes tribos que se tinham instalado em um povoado e
de elementos sem origem tribal conhecida (nomeadamente da população cananeia
anterior) se constituíram unidades locais – surgindo, assim, ao lado dos “anciãos”
das tribos, os “anciãos” das cidades. E paralelamente a esse desenvolvimento do
princípio localista, uma série de indícios sugere que o caráter difuso da vida pastoral
deu lugar a uma tendência centralizadora. Surgiram novas cidades importantes,
rodeadas de propriedades rurais e vilarejos, verdadeiros centros de referência e
eventual refúgio, enquanto nos conselhos de anciãos já não foi o renome da origem
que contava, mas a riqueza. Tudo isso indica sempre uma tendência para a
unificação política, especialmente quando a riqueza monetária fica preponderante
– o mundo dos negócios e do dinheiro só pode alcançar extensivos poderes em uma
comunidade organizada de modo unitário. Por último, apareceu a monarquia. Em um
primeiro momento, ela não alterou drasticamente as relações sociais, mas, em todo
o caso, centralizou o aparelho fiscal e militar, além de dividir o país em províncias que
não coincidiam com as antigas divisões tribais – coisa que tem aqui especial
importância.

58
Clístenes (565 a.C.. — 492 a.C.) foi um político grego que levou adiante a obra de Sólon e, como este
último, é considerado um dos pais da democracia ateniense. Embora fosse um membro da
aristocracia, liderou uma revolta popular e reformou a constituição da antiga Atenas, em 508 a.C.
– proporcionando aos cidadãos o direito de voto e de ocupar os mais diversos cargos na polis,
independentemente do critério de renda. (NT)
59
As filai eram tribos, em numero de dez, cuja divisão nada tinha a ver com laços de parentesco. Essas
tribos, por sua vez, eram compostas por demos, que constituíam a menor unidade política e se
assemelhavam a um distrito ou comarca, com administração própria. (NT)
742 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

O mesmo fator se manifesta, sob uma aparência muito diferente, em um


momento da história da instituição dos hundreds60. Sabe-se que se tratava de uma
antiga instituição germânica de recrutamento militar, que habitualmente se
comparava, no abstrato, às partes de um organismo – que interagiriam
fisiologicamente, mas possuiriam um forte sentimento de solidariedade e intimidade
psicológica. Parece-nos que essa instituição se objetivou e formalizou apenas
quando a noção passou dos homens à circunscrição resultante da instalação de 100
pessoas submetidas a obrigações militares. Essa tendência culminou com o apogeu
da monarquia anglo-saxônica e as suas aspirações centralistas: daí em diante as
hundreds se transformariam em uma subdivisão territorial dos shires. O caráter
monárquico centralizador da Igreja católica e a sua organização unificadora se
revelaram também sob essa forma perante o particularismo pagão. Os santos
cristãos (que representam, às vezes, o papel dos antigos deuses ancestrais), já não
protegem a comunidade definida pelo parentesco, mas aquela assentada em um
lugar. O processo que acabamos de indicar, a migração da população do campo para
as cidades, predispõe, por si só, a adotar a forma de que falamos. Enquanto a vida no
campo favorece as existências aristocráticas isoladas e, consequentemente, a
organização em harmonia com as relações de família, a cidade se inclina
preferentemente por formas de vida mais racionais e mecânicas. Por conseguinte, a
cristalização da população em torno de uma cidade favorece à organização, o
princípio simplificador da localização em face do fisiológico e, como tem um caráter
mais centralista, cria as condições para a concentração das forças sociais para
futuras ações comuns. No início da época moderna, os suíços facilitaram muito sua
passagem de uma estrutura clânica para uma estrutura cantonal ao se associarem a

60
Na Inglaterra e no País de Gales o hundred foi a principal subdivisão de um condado (shire)
– colocado sob o controle de um shire-reeve (palavra da que derivou “xerife”). Nas suas origens,
quando a instituição foi introduzida pelos saxões, entre 613 e 1017, um hundred tinha o tamanho
suficiente para alimentar 100 famílias. À frente delas se encontrava um hundred-man ou hundred
eolder, encarregado da administração, da justiça, do recrutamento das tropas, e de seu comando. O
cargo não era hereditário, mas a partir do século X só era confiado a certas famílias. Posteriormente,
com a especialização das forças armadas, as funções militares dos hundreds se perderam e
converteram-se em uma subdivisão administrativa e judicial. Suas diversas funções permaneceram
até o século XIX, quando começaram a ser transferidas para novas instituições baseadas no condado
ou no município. Apesar de não terem desde então nenhum papel, os hundreds não foram formalmente
abolidos. (NT)
Georg Simmel | 743

cidades prósperas, enquanto os habitantes de Dithmarschen 61, em circunstâncias


semelhantes só realizaram muito imperfeitamente essa evolução, produzindo um
atraso estrutural que é a causa provável da perda da sua liberdade em meados do
século XVI. Da mesma maneira que na organização conforme princípios numéricos,
também na que se faz segundo princípios espaciais (intimamente vinculada a ela) se
expressa uma mecanização dos elementos sociais – ao contrário do que sucede com
as organizações fundadas na origem comum, cujos grupos de base têm algo da
unidade autônoma dos entes biológicos. Contudo, esse caráter das partes é a
condição de sua reunião em um conjunto mais extenso e da técnica de dominação
que essa unidade superior exerce sobre seus elementos.
A organização política não é a única cujo mais alto nível se alcança pela
divisão conforme princípios espaciais – embora eles representem em outros casos
o estágio inferior em face dos princípios dinâmicos e qualitativos. Está também a
economia. A diferenciação da produção no espaço adota duas formas típicas. A
primeira, como substituição dos ofícios itinerantes. Não foram apenas os
comerciantes que viajaram desde a Antiguidade clássica62: o mesmo aconteceu com
os armeiros e os ourives, e logo, na Alemanha, até os pedreiros que conheciam a
construção com pedra talhada (localmente desconhecida nas suas origens) vieram
a ser itinerantes – sem esquecer, antes da invenção da fotografia, os pintores de
retratos, que se deslocavam frequentemente de cidade em cidade até estar bem
avançado o século XIX. Nesse estádio, a demanda capaz de satisfazer um artesão
especializado, com base em um domicílio profissional estável, ainda não garantia
uma continuidade no tempo – razão pela qual o trabalhador devia procurar essa
demanda onde quer que se encontrasse para aproveitar suficientemente sua força

61
Dithmarschen é uma pequena região histórica da Alemanha septentrional (no Eslésvico-Holsácia)
constituída por charnecas, pântanos e pôlderes. Estende-se numa área de 40 km por 25 km entre os
rios Elba, Eider e o mar do Norte. Seus habitantes, embora nominalmente submetidos ao Sacro Império,
viveram independentes de fato. Seu país fez parte sucessivamente do condado de Stade, do ducado
de Saxônia (1144-1180), e do arcebispado de Bremen (contra o qual se revoltaram para formar parte
do Eslésvico). Em 1474, Cristiano I, rei de Dinamarca, obteve do imperador Federico III a reunião do
Eslésvico e a Holsácia, bem como da região de Dithmarschem em um ducado atribuído à coroa
dinamarquesa, mas o povo de Dithmarschem se sublevou. O rei João I de Dinamarca lhes fez em vão
a guerra em 1500. E apenas em 1559, Federico II (sobrinho-neto do anterior) os submeteu com a ajuda
dos duques de Holsácia, sendo então o país dividido. (NT)
62
Antiguidade clássica (também chamada de era clássica, período clássico ou idade clássica) é o
período da história cultural entre o século VIII a.C. e o século V d.C. centrado no mar Mediterrâneo,
compreendendo o mundo greco-romano. (NT)
744 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de trabalho. Todavia, quando a população se fez mais compacta ou aumentaram as


suas necessidades, essa divisão do trabalho ainda exclusivamente qualitativa
(indiferente, por necessidade, aos dados espaciais) foi substituída por uma divisão
de acordo com o lugar. Essa divisão podia permitir que o artesão, o comerciante ou
artista ficassem nas suas oficinas ou lojas, controlando desde lá, tanto quanto
possível, uma esfera de consumidores de determinado raio, de modo que os
produtores de certa região não pudessem prejudicar reciprocamente a sua
competitividade. Caso contrário, a diferenciação local podia ser feita, por exemplo,
como na antiga Índia, onde os membros de um único corpo de ofício se agrupavam
em um bairro específico ou em vilarejos de artesãos. Perante o caráter inorgânico e
contingente do ofício itinerante, a diferenciação local serve aqui à coerência racional
e orgânica da economia, tanto em seus estágios primitivos como nos mais
desenvolvidos. Só nesses últimos estágios, de avanço e progresso vigoroso, se
encontra a segunda forma econômica de diferenciação local, a repartição sistemática
das zonas de distribuição como pode decidi-lo, por exemplo, um grande truste. A
especificidade do caso provém do fato de que a localização dos membros do truste
não tem nenhuma relação espacial necessária com as zonas que lhes foram
atribuídas como mercado para seus produtos. Assim, no caso de trustes
internacionais pode haver circunstâncias alfandegárias ou de câmbio monetário ao
abrigo das quais um mercado determinado seja atribuído não ao produtor mais
próximo, mas a outro muito longínquo. A repartição local atinge desse modo o
máximo de racionalização. Se até o domicílio do sujeito é relativamente indiferente
(ou ao menos não é o único fator decisivo) para decidir acerca da configuração, ela
será determinada de fato pelo último e supremo elo de toda a cadeia de fins e meios,
a saber, a venda final aos consumidores. Quando todas as condições prévias dentro
da cadeia teleológica foram totalmente adaptadas a seu objeto definitivo, a estrutura
tende a ficar perfeitamente racionalizada, penetrada logicamente da unidade de
pensamento finalista. A organização a que se chegou por esse caminho é uma
organização local determinada pelas diferentes zonas territoriais de consumo
– ainda que essa diferenciação espacial foi realizada segundo pontos de vista
puramente racionais e indiferentes ao espaço.
Georg Simmel | 745

B) O exercício da soberania sobre os homens manifesta com frequência seu


modo de ser peculiar na relação específica que o poder político supremo do Estado
mantém com o território nacional. Consideramos a soberania territorial como
consequência e expressão da soberania sobre as pessoas. Por outras palavras, o
Estado exerce soberania sobre seu território, porque faz sentir o seu poder a todos os
habitantes dele. Certamente, poderia parecer que essa relação melhor se expressa
dizendo que o segundo enunciado é válido na sequência do primeiro: como não há
domínio que abranja de forma mais completa um grupo de pessoas que aquele que
delimita o espaço que elas ocupam (da mesma maneira que os teoremas
geométricos se aplicam necessariamente a todos os objetos que se encontrem no
espaço precisamente porque se aplicam ao espaço), parece que a soberania sobre o
território é a causa primeira e suficiente da dominação exercida sobre os habitantes
desse solo. Tal domínio territorial é, entretanto, uma abstração, uma formulação a
posteriori ou antecipada da soberania sobre as pessoas – que ademais de indicar
uma relação de dominação relativamente à pessoa de que se trate, no lugar em que
possa achar-se, significa que “em qualquer lugar deste território no qual se
encontrem essa ou outra pessoa, estarão todas submetidas da mesma maneira”.
Graças a suas infinitas possibilidades, o conceito da soberania territorial constitui
uma continuidade, antecipa na forma do espaço ininterrupto o que, como conteúdo
concreto, só pode ser realizado em lugares específicos. Isso porque a função do
Estado nunca pode ser outra que dominar as pessoas – pelo que dar esse mesmo
significado ao domínio eminente do Estado sobre um território seria um
contrassenso. Do ponto de vista conceitual, ele é apenas a expressão (e a
consequência, do ponto de vista jurídico) da exclusividade com que o Estado domina
seus sujeitos, reais ou possíveis, dentro das fronteiras nacionais. Naturalmente,
existiram bastantes formações históricas nas quais um poder estatal ou individual
possuía o solo e derivava dessa possessão a dominação sobre seus habitantes.
Assim ocorreu nas sociedades feudais ou patrimoniais onde os homens só eram
acessórios do solo, de modo que a venta de direito privado da propriedade imóvel os
convertia em sujeitos do novo proprietário – a tal ponto que nos títulos das senhorias
746 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

banais63 russas se constatava a existência de um número determinado de “almas”


incorporadas à terra. O mesmo princípio se encontra em uma esfera mais específica
quando se estabelece que cujus regio, ejus religio64.
Contudo, na realidade, nunca a soberania sobre os homens segue a
propriedade do território no mesmo sentido em que o aproveitamento dos frutos do
solo decorre da possessão da terra que os produz. A conexão entre as duas coisas
deve sempre ser estabelecida antecipadamente por normas ou atos de autoridade
específicos, quer dizer, a soberania sobre as pessoas deve ser sempre uma finalidade
explícita e não uma consequência normal da ordem regular das coisas. Se assim o
for, a soberania sobre o território em que vivem essas pessoas será, inevitavelmente,
algo secundário, uma técnica ou uma maneira sumária de se referir à soberania sobre
as pessoas, que é o que conta imediatamente, ao contrário do que acontece com a
disposição do solo para colher seus frutos ou aproveitá-lo de qualquer outro modo.
Nesse último caso, a posse da terra é o elemento imediatamente essencial porque
seu aproveitamento para a produção de alguma riqueza decorre, como é óbvio, de tal
relação de senhorio. Somente a confusão entre essas duas significações do domínio
sobre o território pode fazer esquecer de que aqui a noção de espaço é determinada
pela formação sociológica – isto é, por uma relação precisa de subordinação dentro
de um grupo. É por essa razão que no medievo europeu (e em geral ali onde o
aproveitamento da terra como objeto de direito privado não foi dominante na
consciência coletiva) o soberano não era frequentemente designado como rei do
país, mas apenas de seus habitantes – à imagem do que ocorria, aliás, nas antigas
monarquias semíticas.
Todavia, não é só o fato universal da dominação, mas também suas formas
particulares que desembocam em uma expressão de caráter espacial. Devido à
centralização funcional, que constituía a essência do Estado romano, o Império dos

63
A senhoria banal (ou senhoria nobre) era, no medievo europeu, um território cujo senhor adquiria
igualmente direitos administrativos e judiciais sobre as pessoas que moravam nas terras de seu
domínio. (NT)
64
Cujus regio, ejus religio é uma frase latina que significa "de quem é a região, dele se siga a religião",
ou seja, os súditos seguem a religião do governante. Trata-se de um princípio tão antigo como o
cristianismo de Estado (estabelecido originariamente na Armênia e no Império Romano pelo
imperador Constantino) que ganhou nova vida quando da Reforma protestante – sendo adotado
nomeadamente pelo tratado de paz de Augsburgo de 1555. (NT)
Georg Simmel | 747

césares pôde até seu fim passar por um território dependente de uma cidade, assento
desse poder centralizador – assim como mais tarde aconteceria, respectivamente,
com as monarquias absolutas de França e Inglaterra e as cidades de Paris e Londres.
Essa forma sociológica talvez tenha alcançado sua expressão espacial mais
consequente no Estado teocrático tibetano – no centro de cuja capital, Lassa, existe
um grande mosteiro, no qual convergem as principais estradas do país e onde está a
sede de seu governo65. Contrariamente, quando no fim da dinastia carolíngia o Estado
germânico se transformou em um império federativo, ele prescindiu de qualquer
centro político materializado no espaço, contentando-se com uma sede itinerante
ligada a uma pessoa. A carência de capital fixa e o deslocamento incessante do
soberano foram as consequências espaciais lógicas dessa estrutura política. O
caráter formal de tal relação acentua-se ainda mais quando a combinação ou
concorrência de certos acontecimentos em um Estado traz acarretada, em dado
momento, a mudança de sua capital de um lugar para outro. Tal circunstância pode
acontecer se a situação precedente está tão estreitamente associada à capital (seja
em razão da técnica administrativa ou de um modo puramente psicológico) que a
nova conjuntura exige logicamente um deslocamento da sede principal da
administração do país – pouco importando, no fundo, o lugar para onde se traslade
a capital, desde que seja alhures. Assim, os reinos escandinavos transferiram amiúde
para outro local suas capitais quando da introdução do cristianismo, bem como a
chegada de um novo monarca ao trono tem frequentemente motivado (sobretudo no
Oriente) o deslocamento da capital, projetando no espaço a mudança funcional.
Esse traslado é mais significativo nos casos em que a distância física entre os
dois lugares fica mais reduzida – como as limitadas mudanças espaciais carecem
geralmente de efeitos objetivos, elas põem em destaque com maior clareza a própria
existência do deslocamento. Na África meridional, quando muda o chefe entre os
povos da natureza, acontece com frequência que, para tornar bem visível até que
ponto o grupo depende dele, a sua residência (único hábitat que possa comparar-se

65
Provavelmente o autor se refere ao Palácio de Potala, edificado em 637 em um sítio usado para
refúgio de meditação pelo rei Songtsen Gampo. A construção atual (bastante ampliada e reformada)
data de 1645 e foi a principal residência dos dalai-lamas até à fuga do décimo quarto deles à Índia,
em 1959. Atualmente é um museu estadual da China, inscrito pela UNESCO no Patrimônio Mundial da
Humanidade. (NT)
748 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

a uma aldeia) se translade vários quilômetros. Em tais casos, o lugarejo do chefe


assume a aparência de uma vestidura que cobre a sua pessoa e se desloca com ela,
como se fosse um prolongamento da própria personalidade, um reflexo da sua
importância, que correrá finalmente seu mesmo destino. O fato de que o sentido
dessa localização do poder político provenha de sua relação com o domicílio dos
chefiados se expressa em um fenômeno algo paradoxal que ouvimos à respeito dos
tsuana66: quando as famílias estão descontentas com seu chefe elas não o expulsam,
mas são elas próprias as que vão embora da aldeia, podendo ocorrer o caso de o
chefe se encontrar completamente sozinho uma boa manhã no local – forma
negativa da configuração espacial que procede da relação de dominação. Na maneira
como o espaço se concentra ou distribui, no modo como se fixam ou trasladam seus
pontos, refletem-se com clareza as formas sociológicas próprias da soberania.
C) Algumas unidades sociais se traduzem em determinadas estruturas
espaciais. Temos um exemplo cotidiano disso com o lugar fixo, a “casa” que a família
e o clube, o regimento e a universidade, o sindicato e a comunidade religiosa
possuem. Por mais diferentes que sejam seus conteúdos, as associações com uma
casa própria têm uma característica sociológica comum perante os grupos mais
descomprometidos e livres como as amizades e os comitês de apoio, os
agrupamentos para fins transitórios ou ilícitos, os movimentos políticos e sociais e
todas essas formas de sociação que consistem na mera consciência de uma
convicção comum e de aspirações paralelas. Um terceiro tipo da mesma categoria
sociológica está constituído por aquelas estruturas de grande porte que certamente
não possuem em conjunto um domicílio fixo, mas estão conformadas por elementos
que têm individualmente uma casa. Assim, o exército se compõe de unidades, cada
uma das quais possui um quartel. A Igreja é a reunião de todos os fiéis da mesma
confissão que se dividem em paróquias. E a família, em sentido lato, é uma união de
diversos lares particulares com determinada fixidez, em face de qualquer par de
pessoas cuja relação é meramente amorosa ou sexual. Certamente, essa é apenas
uma das muitas determinações pelas quais a fusão de elementos própria de toda

66
Os tsuanas são o grupo étnico majoritário do Botsuana. Contudo, esse termo é por vezes utilizado
para indicar os naturais desse país de forma simples, podendo dessa maneira incluir os boxímanes e
outros. No século XIX, uma pronúncia comum de “botsuana” era “bechuania”, pelo que os europeus
passaram então a designar os habitantes da área por “bechuanos”. (NT)
Georg Simmel | 749

sociação se expressa – e que, por sua vez, contribuem a sustentá-la. É importante


compreender que não só a coesão impressa pelo centro se expressa em muitos
pontos periféricos, mas também as características essenciais do centro e dos pontos
periféricos passam continuamente de um para o outro. A verdadeira estrutura de uma
sociação não está determinada exclusivamente por seu motivo sociológico
fundamental, mas por um grande número de fios entrelaçados e de nós, de
afirmações e lacunas, que são apenas diferenças de grau perante o que é
sociologicamente decisivo: a constituição de uma unidade a partir de uma
pluralidade.
A “casa” da comunidade não foi concebida no sentido da simples propriedade
(essa coletividade, enquanto pessoa jurídica, poderia também possuir uma segunda
casa ou um terreno), mas como o lugar que, em seu caráter de local de domicílio e de
reunião, é a imagem espacial de suas energias sociológicas. A bem dizer, não se pode
afirmar, nesse sentido, que a comunidade tenha a casa, porque ela não tem
importância aqui como objeto susceptível de valor econômico, mas porque é a sua
casa. Ela concretiza o pensamento da sociedade mesma, localizando-o em uma
parte delimitada do espaço. A linguagem corrente faz-nos senti-lo quando chama o
“conjunto dos membros de uma família” uma “casa”; dando à palavra “igreja”
indiferentemente o sentido de “edifício onde se reúnem os fiéis para exercer o seu
culto” e o de “comunidade composta por cristãos, que forma um corpo social
organizado”; e admitindo mais de uma leitura para as palavras clube, universidade,
etc. Nessa ordem de ideias, a palavra alemã Sippe67 provém do sânscrito sabba que
designava originariamente a comunidade aldeã, mas posteriormente passou a
identificar a casa comum das suas reuniões.
Onde se constata com maior clareza a relação de solidariedade entre a própria
associação e a sua casa é nas confrarias de homens solteiros, que parecem
representar uma das comunidades antropológicas mais antigas e se encontram

67
Voz alemã que denominava o clã, a tribo e a linhagem. Por fidelidade ao autor, preferimos manter
no texto principal o exemplo de Simmel; contudo é bom que se diga que o exemplo pode aplicar-se
igualmente à palavra lusa “cepa”, que entre as suas acepções possui a de “estirpe, linhagem ou tronco
de família”, e cuja etimologia pode remontar-se à mesma raiz sânscrita, através do latim cippus e do
grego klêma. (NT)
750 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ainda hoje na Micronésia e na Melanésia 68 , bem como entre alguns ameríndios e


inuites. Trata-se de comunidades de vida com precedência sobre a família e que,
embora não excluam as atividades pessoais de seus elementos, oferecem a estes um
espaço comum para suas comidas e repouso noturno, bem como para seus jogos e
aventuras amorosas, reunindo em uma unidade comum um grupo de homens que só
compartilham seu celibato – situação para a qual dificilmente vamos achar
correspondência nas sociedades modernas. Evidentemente, essa forma de
comunidade encontra em uma casa (a “casa dos homens”) a sua corporificação
indispensável. Semelhante tipo de formação antropológica só pode ter lugar no
quadro de uma casa comum que será seu ponto de apoio e de cristalização, sua
expressão visível. Embora também aqui a comparação entre sociedades arcaicas e
modernas depara-se com grandes dificuldades, parece-nos que tudo se passa como
se as primeiras, com sua maneira de ser ingenuamente sensorial, distante dos
conceitos abstratos, tivessem uma necessidade comparativamente mais forte de
tornar visíveis, pelo volume fechado de uma casa, a coesão dessas comunidades e a
exclusão das outras. A casa comum é o meio de representação concreto desse
contato exterior e local sem o qual uma sociedade arcaica dificilmente desenvolveria
um sentimento comum de pertença.
Uma significação formal análoga tem tanto o jazigo comum como o lugar
sagrado onde o homem se encontra com seu deus. Enquanto hoje em dia o interesse
pelos monumentos funerários consagrados a sepultar vários mortos se reduz ao
quadro estrito da família, as corporações medievais de artesãos pediram sempre um
sepulcro comum à administração da igreja da qual dependiam. Por outro lado, o
templo não é apenas o local de reunião dos fieis (e o resultado e suporte de sua
comunidade), senão também a garantia e a projeção do fato de que a divindade está
localmente vinculada e participa ativamente no desfecho das preocupações de seus
fiéis. Por isso, nota-se com razão que, embora o culto às pedras empilhadas ou aos

68
Micronédia e Melanésia são duas regiões situadas, respectivamente, no Pacífico ocidental (entre as
Filipinas, a Indonésia e a Nova Guiné), e no extremo oeste do mesmo oceano, ao nordeste de Austrália.
A primeira está formada por centenas de pequenas ilhas agrupadas em vários arquipélagos; enquanto
a segunda compreende ilhas de porte médio com uma população autóctone de características étnicas
distintas às dos nativos da Micronésia. A Alemanha possuiu até 1914 várias colônias em ambas as
regiões. (NT)
Georg Simmel | 751

postes erguidos pelos homens é aparentemente menos poético e mais tosco que a
adoração de uma fonte ou de uma árvore, na realidade, a primeira daquelas
homenagens supõe uma proximidade mais confiante entre o deus e os fiéis. No
objeto natural, o deus mora e o homem, que se aproxima dele somente a posteriori e
por acaso, não tem parte nisso. Em compensação, quando o deus se digna a morar
na humilde obra realizada pela mão de um homem, isso estabelece entre eles uma
relação completamente distinta: o humano e o divino acharam um lugar comum que
precisa dos dois fatores conjugados. A relação sociológica entre o deus e seus
adoradores (e só essa relação) adquire então materialidade em uma estrutura que
ocupa um lugar no espaço.
Pareceria que esse vínculo sociológico (que implica a sua localização em
determinados lugares e estruturas permanentes) ocasiona (pelo simples aumento
gradual de sua força e da proximidade dele resultante) as conhecidas disposições
que proíbem os que participam desse gênero de relações abandonarem doravante o
local onde elas se têm objetivado. Na verdade, o que acontece é o oposto. Se o grupo
impõe tais constrangimentos explícitos, é precisamente porque ele não acredita
suficientemente na sua própria coesão e na capacidade intrínseca de determinar o
comportamento de todos seus elementos. Ao menos, a permanência forçada em
dado lugar (bem como o contrário) pode corresponder a duas e inversas relações
sociológicas de poder. A liberalidade com a qual o Estado moderno trata seus
cidadãos emigrantes (permitindo que eles o abandonem completamente ou que
continuem gozando de seus direitos de nacionais mesmo estando longe dele) prova
que a consciência coletiva de sua identidade nacional e de seu poder chegou a um
nível que o torna superior a todos seus elementos particulares. Contrariamente, a
difusão espacial da família é (em comparação com sua concentração permanente no
lar ancestral) um sintoma do enfraquecimento progressivo do princípio familial. O
essencial nas medidas coercivas que se propõem alcançar a coerência do grupo
assegurando a presença dos indivíduos em um lugar específico (laço que se tornaria
assim no fundamento explícito da unidade do grupo) radica na vontade de privar a
seus elementos de todo direito que não possam exercer no local em que se
encontrem. Essa é uma característica típica dos preceitos e regras que antigamente
regiam as instituições, sobretudo antes da economia monetária – efeito e causa da
752 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

capacidade de abstração sociológica que torna o equilíbrio entre direitos e deveres


independente da proximidade espacial. Remetemos o leitor às considerações feitas
sobre o mesmo ponto desde a perspectiva da “fixidez” espacial, limitando-nos a citar
aqui dois exemplos significativos. A carta de foral que o rei Filipe Augusto 69 da França
outorgou em 1195 à cidade de Saint-Quentin70 concede um número surpreendente
de liberdades, entre elas o direito ilimitado de legiferar e de impor tributos no âmbito
comunal, bem como de possuir uma justiça autônoma. No entanto, dispõe também
que os burgueses estão expressamente obrigados a residir regularmente na cidade,
sendo-lhes só dado permanecer fora dela em certas épocas do ano. O outro exemplo
diz respeito às guildas de artesãos de Frankfurt. Essas corporações eram
independentes, no essencial, do conselho municipal, sem que houvesse necessidade
de ser burguês para pertencer a elas – isto é, quem abandonasse a cidade podia
conservar sua condição de membro da guilda. Foi só a partir de 1377, quando as
corporações se encontraram submetidas ao conselho, que ninguém pôde doravante
ser admitido em uma delas sem se fazer burguês – razão pela qual quem renunciasse
a sua condição de morador do burgo deixaria ao mesmo tempo de pertencer à
corporação. O primeiro caso é característico, porque diferencia claramente a
liberdade do município da de seus integrantes. No momento em que a coletividade
recebia o direito de autodeterminação e a liberdade de ação interna, pretendia-se
garantir a existência dessa coletividade tolhendo o direito de ir e vir de seus
elementos. No segundo exemplo adverte-se ainda mais radicalmente o poder do
local como corporificação da unidade do grupo. A guilda, cuja associação corporativa
tinha sido suscitada por um motivo profissional, era relativamente indiferente à
unidade municipal e, em consequência, ao problema do domicílio de seus membros.
Contudo, tão logo o caráter social da cidade se tornou central (mais formal e
funcional, não se focalizava apenas em um objetivo), ele se cristalizou de imediato
na exigência de um vínculo local. A perspectiva técnica da corporação era em si

69
Filipe Augusto (1165 – 1223), foi rei da França de 1180 até sua morte. Era o filho de Luis VII e de sua
terceira esposa Adélia de Champanha. É um dos reis mais admirados e estudados da época medieval,
não só pela extensão do seu reinado, como também pelas importantes vitórias militares, pelo aumento
dos domínios diretos da coroa (principalmente à custa dos reis da Inglaterra), e pelo fortalecimento
da monarquia contra o poder dos senhores feudais. (NT)
70
Saint-Quentin é um município francês, situado sob o rio Soma, no departamento do Aisne, na
histórica Picardia, atual região dos Altos da França. (NT)
Georg Simmel | 753

supralocal e permitia, consequentemente, aos indivíduos (na medida em que fosse


dominante) uma liberdade de movimentos maior do que o ponto de vista sociológico
do regulamento municipal – que não se acomodava com a mesma facilidade a uma
unidade abstrata e exigia a unidade concreta do espaço, efetivada pela obrigação de
residência.
É daí que provém um fenômeno intermediário: o direito municipal do ducado
de Brabante71. Em 1192, esse extenso senhorio medieval exigiu dos burgueses nele
domiciliados que jurassem fidelidade ao duque e a sua respectiva cidade, mas
concedeu o direito de partirem sem obstáculos, se o quisessem, após permanência
obrigatória de um ano e um dia. Embora as circunstâncias factuais sejam as mesmas
que as do tipo precedente, essa cláusula explícita faz sentir que age aqui um novo
ponto de vista. Supõe-se que, em troca da honra, da proteção ou dos direitos dos
quais o indivíduo goza em virtude de sua pertença à comunidade, deve ao coletivo
uma prestação – que devia ser quitada, nesse caso, por uma residência de
determinada duração. Dessa maneira, a comunidade faz com seus membros uma
espécie de acerto do qual surgem para ambas as partes certas obrigações e
garantias. A cidade, como unidade, adquire por essa via uma personalidade própria,
ao passo que se amplia na mesma proporção a distância entre ela e os indivíduos
– até o ponto de poder prescindir com muito mais facilidade da vinculação física e
local, que no estado anterior era o único meio de afirmar a sua unidade sociológica.
Essa expressão espacial da relação entre o indivíduo e seu grupo conserva o
mesmo sentido lógico quando outras condições de vida do grupo conferem a este,
como um tudo, uma aparência exatamente oposta. Entre alguns povos nômades
(como os árabes e os recabitas 72 com quem os israelitas mantinham relações)
estava proibido legalmente possuir terras ou edificar uma casa. Nesse caso, um
indivíduo que fixasse seus interesses em um dado lugar estaria começando a
separação do seu clã itinerante. Por conseguinte, a forma de vida que se define pela

71
O ducado de Brabante foi um estado do Sacro Império germânico estabelecido em 1183.
Desenvolveu-se a partir do landgraviato de Brabante e formou o coração dos Países Baixos históricos.
Possuía sete municípios: Antuérpia, Bois-le-Duc, Bruxelas, Léau, Lovaina, Nivelas e Tirlemont. (NT)
72
Os recabitas constituíam uma comunidade ascética de israelitas contemporâneos ao profeta
Jeremias, que no Antigo Testamento bíblico (Jer. 35, 8) os identifica como descendentes de Jonadabe,
filho de Recabe, o queneu, o qual viveu por volta do século IX a.C e teria ensinado seus descendentes
a se absterem de vinho, bem como não edificarem casas ou praticarem a agricultura. (NT)
754 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ausência de todo vínculo com um local específico expressa aqui a unidade


sociológica do grupo, tal como o faz, na forma contrária, a vinculação com um sítio.
Finalmente, o espaço vazio adquire, por nada conter, uma significação na qual
se manifestam determinadas relações sociológicas de caráter tanto assertivas como
coibentes. Não se trata aqui das consequências que determinado intervalo espacial
possa ter para as relações recíprocas que se verificam entre as pessoas situadas de
um lado e de outro do dito intervalo, mas de determinações espaciais que aparecem
como consequência de contingências sociais de outra índole. Na Antiguidade
clássica, os povos têm sentido amiúde a necessidade de que a sua fronteira não
coincidisse exatamente com a de outro povo, mas que entre ambas houvesse uma
faixa de terreno desabitada. Na época de Augusto buscou-se ampliar a segurança da
fronteira do Império despovoando, por exemplo, o território longo e estreito que se
estendia entre o Reno e o limes 73 , obrigando alguns povos como os usípetes e
tencteros 74 a se estabelecer na margem esquerda do rio ou se aventurar mais
profundamente no interior. Nesse momento, a faixa desabitada era ainda terra do
Império, mas a partir de Nero se decidiu criar também outra além da fronteira romana.
Já antes, os suevos75 tinham criado um deserto em torno de seu território, da mesma
maneira que o isarnholt ou limes danico e os bosques de Saxônia separavam,
respectivamente os danos dos alamanos76, e estes últimos dos eslavos. Mesmo as

73
O limes (limite, em latim) era o conjunto das fortificações, delimitações e ocupações sistemáticas
romanas nas bordas do seu Império. Elas assumiram um papel estratégico capital, pois tinham como
função conectar as diversas partes do território romano e incluir dentro de seus limites áreas de fácil
colonização, excluindo automaticamente aquelas cujas condições de ocupação não eram favoráveis.
(NT)
74
Os usípetes (ou usípios) e os tencteros foram dois povos germânicos, conhecidos como cavaleiros
excelentes que, acossados pelos suevos, teriam se refugiado no território dos menapés, na margem
do Reno oposta de onde fica Colônia hoje, depois de expulsos de suas terras tradicionais. Argumenta-
se que a pátria original dos dois povos seria a área do rio Weser. (NT)
75
Os suevos foram um grupo de povos germânicos originários da região compreendida entre os rios
Elba e Oder. Parte deles constituiu uma ameaça periódica contra os romanos no Reno, até que, no final
do império, os alamanos, incluindo elementos dos suevos, quebraram as defesas romanas. Uma parte
deles permaneceu na Suábia (região alemã, cujo nome deriva do gentílico dos invasores), enquanto
os outros criaram um reino na Galiza, que veio a ser o "embrião" de Portugal. (NT)
76
Os danos eram um povo germânico que vivia na região das ilhas e, posteriormente, na península de
Jutlândia da atual Dinamarca e na Escânia, no sul da Suécia. Eram da mesma linhagem dos sulones e
teriam expulsado os hérulos, de cujas terras então se apossaram. Quanto aos alamanos (em alemão,
Alemannen) eram um conjunto de povos germânicos estabelecidos no curso superior, médio e inferior
do rio Elba e ao longo do rio Meno. Estiveram em conflito permanente com o Império romano.
Inicialmente situados ao norte da província de Récia, foram contidos pelos romanos até meados do
século III, após dois séculos de confrontos. Conseguiram deslocar-se aos poucos para o oeste e
Georg Simmel | 755

tribos ameríndias procuravam entre elas separação por uma larga faixa de terra que
não fosse propriedade de ninguém. Com toda a certeza, as razões para isso residem
muito simplesmente nas necessidades de proteção dos grupos – suficientemente
prementes para criar uma relação que permite (como nenhuma outra) tirar vantagem
do espaço como extensão sem qualidade, como mera distância. Em geral, é a
fraqueza ou a vulnerabilidade que obrigam a tomar essas medidas, tal como, às
vezes, também compelem o indivíduo a procurar a solidão. Contudo, o mais
importante, do ponto de vista sociológico, é que a vantagem defensiva assim obtida
se paga com a consequente renúncia à ofensiva – conforme a ideia que inspira todo
o processo e que pode ser resumida na seguinte afirmação: “se não me fizerdes mal,
eu também não vos farei mal“. Esse esquema não se aplica apenas entre pessoas
que não têm nada a ver uma com a outra, mas também serve de máxima, assertiva e
consciente, de valor geral para indivíduos que possuem muitos pontos de contato e
que, portanto, se encontram frequentemente enfrentados a estímulos e perigos de
atritos e embates. Pelo efeito externo, essa máxima se conforma a outra regra de
conduta universal (serei para ti o que tu serás para mim) embora internamente o seu
significado seja outro – o comportamento da parte que enuncia a última regra,
mesmo que dependa da conduta da outra, revela ainda certo caráter agressivo ou, ao
menos, uma preparação para qualquer eventualidade. A primeira máxima, em
compensação, apesar de tomar a iniciativa, expressa todo o contrário da ofensiva e
da disposição para a luta – já que pelo simples fato de depor unilateralmente as suas
armas pretende que a outra faça o mesmo, seja qual for a disposição de seu ânimo.
No entanto, entre os numerosos casos em que o comportamento é determinado pela
máxima “se não me fizerdes mal, eu também não vos farei mal“, nenhum é tão claro
e visível como aquele do território desabitado que um grupo deixa perto de sua
fronteira – pois nesse caso a tendência interior se materializa perfeitamente na
forma espacial.
O princípio oposto ao deserto fronteiriço está representado pela convicção
enunciada por Tácito: “quaque terrae vacuae eas publicas esse” 77. Os germanos já

instalar-se definitivamente no território que compreende uma parte das atuais Vorarleberga (Áustria),
Suíça, Bade-Vurtemberga (Alemanha) e Alsácia. (NT)
77
Locução latina que significa que “as terras vazias são de todos”. (NT)
756 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

disseram isso, assim como mais recentemente os colonos norte-americanos


voltaram a afirmá-lo perante os autóctones. É evidente que existe uma diferença
fundamental na forma de relação entre dois grupos, conforme o espaço vazio entre
eles não pertença a nenhum dos dois ou possa potencialmente pertencer a ambos,
desde que aquele que o deseje possa assenhorear-se dele – desencadeando amiúde
o conflito que a outra maneira de ver justamente procurava evitar. Essa forma de
diferença tem uma importância característica. O fato de que uma coisa não pertença
de antemão a nenhuma das diversas partes pode logicamente ser confirmado
juridicamente, ora de modo a que nenhuma delas possa doravante se apropriar dela,
ora chegando à conclusão de que todas as partes podem fazê-lo, quer dizer,
prevendo que a primeira que consiga apoderar-se dela terá direito a possuí-la.
Mesmo as relações claramente pessoais se conformam a esse dilema.
Frequentemente, existe entre duas pessoas uma coisa ou uma área de interesse
intelectual ou sentimental que nenhuma delas toca, como se existisse algum tipo de
entendimento silencioso, quer porque esse contato ou essa referência seriam
dolorosos, quer porque ambas as partes temem um conflito. A razão dessa limitação
não deve ser procurada sempre na delicadeza sentimental: bem pelo contrário,
muitas vezes provém da covardia e da fraqueza. As pessoas deixam então entre elas
um espaço vazio e estéril, quando talvez uma intervenção franca, que não temesse o
primeiro embate, poderia torná-lo fecundo e dar ocasião para conferir novo ímpeto à
relação. Há, portanto, uma nuance completamente diferente quando essa
possibilidade está presente dos dois lados e ambas as partes considerem como uma
espécie de recompensa pela coragem a concessão de um privilégio ou
reconhecimento ao primeiro que entre nesse território. Nos jogos das crianças,
também se observa que às vezes existe uma coisa que é tabu para todos e que, por
conseguinte, está excluída como objeto de qualquer competição ou colaboração
– uma espécie de “não-propriedade-pública”, algo do qual não pode apoderar-se o
primeiro que queira ou possa fazê-lo. Os empresários deixam amiúde de fazer uso
de certas possibilidades (na utilização do pessoal, na criação de novas sucursais, na
atração dos consumidores) porque não se sentem confortáveis com a perspectiva de
terem de afrontar um conflito demasiado frontal. Uma concorrência aumentada,
porém, deita fora essa atitude resignada, atualiza todas as possibilidades e energias
Georg Simmel | 757

já existentes na própria esfera e faz de tudo que não era aproveitado antes uma
propriedade pública, no sentido de que o primeiro a aparecer pode tomar o que bem
quiser ou puder.
Finalmente, vemos fenômenos análogos no âmbito da ação em geral,
considerada à luz da moral. Como uma organização social nunca possui suficientes
leis e forças para garantir a observância absoluta por parte de seus membros da
conduta moral socialmente desejada, viu-se obrigada a esperar que eles se
abstivessem voluntariamente de aproveitar as lacunas das leis. O homem honrado
está envolvido por uma esfera de discrição no dizer ou no fazer que ele mesmo se
impõe relativamente a outrem, de renúncias a ações egoístas, que os pouco
escrupulosos realizam sem problemas porque apenas um impulso moral interno
poderia detê-los. O homem moral se encontra assim amiúde indefeso, porque não
quer usar as mesmas armas que o traste, que aproveita todas as vantagens
disponíveis, desde que possa fazê-lo sem correr perigo. Entre os homens honrados
existe um vácuo ideal no qual o sujeito imoral se introduz furtivamente para tirar
proveito. O teor e a natureza sociológica de círculos sociais inteiros se determinam,
no seu conteúdo e na forma sociológica, segundo a proporção em que aquela
renuncia às possibilidades egoístas se insere entre os indivíduos, protegendo cada
um contra os ataques de todos, ou de acordo com a extensão em que vigore como
determinante da conduta geral a máxima: “aquilo que não é proibido, é permitido”.
Percebe-se, assim, pela infinita diversidade de todos esses fenômenos, uma unidade
formal na diferença dos gêneros de conduta. Aquela contraposição entre o princípio
do deserto fronteiriço e o ânimo contrário, segundo o qual o território não possuído
pode ser ocupado por qualquer um, é então destituída de seu caráter contingente e
extrínseco, e reconhecida, na clareza de seu fundamento, pelo que ela é: a encarnação
concreta, o exemplo realizado no espaço, de uma típica relação recíproca funcional
entre indivíduos ou grupos.
A neutralidade do espaço inabitado adquire um sentido completamente
distinto quando ela o torna apto para serviços positivos. Vamos ver assim como a
sua função, até aqui limitada a servir de separação, pode consistir também em
funcionar como nexo. Às vezes, certos encontros de pessoas que seriam impossíveis
no território de alguma delas podem ter lugar em território neutro – cuja forma
758 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

permanente será, sobretudo em uma sociedade arcaica, a de uma faixa de terra


desabitada. Isso porque, a partir do momento em que haja habitantes, a sua
imparcialidade (e, consequentemente, a segurança das partes que ali se reúnam) não
estará nunca garantida de modo duradouro – especialmente para uma estrutura
mental, ainda dependente do sensível e concreto, que só poderia imaginar-se a
neutralidade de um território se o visse desabitado. Há um longo caminho a percorrer
desde esse ponto em que a neutralidade é definida como uma mera ausência para
chegar à neutralidade como uma forma de comportamento generalizado e
plenamente afirmativo – o que explica a neutralidade se limitar, em primeiro lugar. a
extensões mais ou menos reduzidas do espaço que, embora ofereçam determinadas
facilidades de relação, são em si mesmas indiferentes. De todos os diversos fatores
da vida, o espaço é o mais a propósito para representar intuitivamente a
imparcialidade. Quase todos os outros entes e formas da nossa existência têm
– devido a suas qualidades específicas – significações e possibilidades diferentes
para cada pessoa ou cada parcialidade. Somente o espaço se abre a todos sem
qualquer tipo de preconceito. Na prática, a melhor aproximação dessa neutralidade
do espaço, em geral, continua a ser a da terra desabitada, que não pertence a
ninguém e que não é mais que espaço. Por isso, esse é o lugar certo para as trocas
econômicas dos povos da natureza, que vivem confrontados a um estado de guerra
persistente, ao menos latente, e à desconfiança recíproca. Contudo, a relação
econômica, como intercâmbio de valores objetivos, representa, por si só, um princípio
de neutralidade que está acima de qualquer parcialidade. Até entre certos povos
ameríndios, que quase sempre estavam em pé de guerra, os comerciantes podiam
passar de um grupo para outro sem entraves. As zonas neutras (que, pelas razões
supra, nos imaginamos como espaços desabitados) se encontram, portanto, em todo
o lado, como correlato da troca neutral de mercadorias – tal como declarado na
antiga Inglaterra, onde se falava de “zonas fronteiriças entre dois ou mais mercados”
que eram reconhecidas como “um território neutro onde as pessoas podiam
encontrar-se” para a troca de mercadorias ”se não em termos amistosos, ao menos
sem hostilidades”78. Na realidade, o encontro se produz na linha fronteiriça, de modo

78
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “boundary place between two or more marks”... “a
neutral territory where men might meet”… “if not on friendly terms, at least without hostility”. (NT)
Georg Simmel | 759

que nenhuma das duas partes é obrigada a abandonar o seu próprio território. De
fato, assim como ao falarmos do “presente” não nos referimos ao momento presente
no sentido estrito da palavra, mas a um período de tempo no qual se amalgamam
fragmentos do passado e do futuro (considerados em referência a este exato
momento), da mesma maneira a linha fronteiriça se terá convertido numa faixa de
terra mais ou menos larga até transformar-se numa verdadeira zona, onde cada
parte, mesmo se dá alguns passos além da linha da marca do próprio território, não
entra na esfera do outro. O espaço neutro se converte dessa forma em um tipo
sociológico importante. Eis que, em qualquer lugar que aconteça um conflito entre
duas partes, a sua evolução dependerá em larga escala da possibilidade que cada
um dos adversários tenha de encontrar o outro sem entrar no seu território, quer dizer,
sem temer o ataque do inimigo nem ter de exigir a sua rendição. Se essa possibilidade
de encontro for confirmada, sem que nenhum dos dois tenha precisado abandonar
as suas posições, inicia-se esse processo de objetivação e diferenciação graças ao
qual a consciência das partes pode separar o objeto do conflito de outros interesses
que não têm nada a ver com ele e sobre os quais um acordo ou uma partilha são
possíveis – ainda que certos espíritos menos cultivados ou mais impulsivos os
incluam nas argumentações. Esses interesses inspiram geralmente (quando há um
nível cultural elevado) os argumentos ad hominem79 nos conflitos de princípios, e as
questões de princípio nos conflitos pessoais – em especial nos relativos às esferas
da sociabilidade, à Igreja, ao Estado, à arte ou à ciência, sempre que reina nelas uma
trégua, capaz de incluir desde seu entorno ideal até os locais que lhes são
consagrados. Há inúmeros exemplos que nos mostram as várias esferas em que são
possíveis as relações, as reuniões, o contato objetivo entre parcialidades adversas
quando referido a questões passíveis de conciliar-se, sem que isso signifique que o
conflito cessou. Em tais casos cada parte transpõe os limites que comumente a
separam do adversário, mas sem entrar no seu território. Quando a zona fronteiriça
vazia, desabitada entre dois povos faz às vezes de espaço neutro para as trocas ou

79
O argumento ad hominem (em latim, “contra a pessoa”) é uma falácia identificada quando se ataca
a pessoa que apresentou um argumento e não o argumento que ela apresentou. Assume muitas
formas, por exemplo, o caráter, a nacionalidade, a etnia ou a religião da pessoa; ou se sugere que ela,
por ter algo a ganhar com o tema em debate, é movida pelo interesse ou se diz mal dela por associação
ou pelas suas companhias. (NT)
760 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

qualquer outra relação social, representa, por seu caráter negativo, a estrutura mais
simples e visível daquelas que trabalham em favor dessa forma espantosamente
diferenciada de relação entre elementos antagônicos – tanto que, afinal de contas, é
o próprio espaço vazio que se revela como sustentáculo e expressão da ação
recíproca sociológica.
X. A ampliação dos grupos e a formação da individualidade

Os temas dos estudos deste livro, abordados em distintos capítulos, se


referiam, até agora, à grande variedade de conceitos gerais do campo sociológico em
geral que ofereciam (por vezes opondo-se um ao outro) os tipos históricos e figuras
por meio dos quais esses conceitos se manifestam. Os reagrupamentos seguiram a
necessidade prática da divisão em partes em razão de os fenômenos tratados e as
reflexões apresentadas terem um conceito em comum. O conteúdo de cada capítulo
não podia expressar-se em uma única explicação cuja demonstração iria surgindo
gradualmente, mas só graças a uma adição de explicações reunidas sob o mesmo
título. O estudo que segue pretende pertencer a outro tipo de abordagens: demonstrar
a existência de uma única relação, mesmo que tenha passado por muitas mudanças,
adquirido outra forma ou ficado menos visível. O que suas partes têm em comum não
é um conceito, mas um enunciado1. Em lugar de esforçar-se por encontrar uma forma
singular abstrata nos fenômenos reais nos quais ela pode manifestar-se – e cujo
conteúdo e orientação ela não determina –, o presente estudo se propõe expor uma
correlação precisa e uma evolução de formas de sociação que resultam de
influências recíprocas.
A especificidade individual da pessoa e as influências, os interesses e as
relações sociais que ligam o indivíduo a seu círculo, revelam, ao longo de sua mútua
evolução, uma relação que se manifesta como forma típica nas esferas mais opostas
da realidade social, tanto no tempo como na situação objetiva: essa individualidade
do ser e da ação amplia-se ao geral proporcionalmente à extensão do meio social da
pessoa. Dentre as diversas maneiras em que se verifica essa ampliação e se provoca
a correlação acima referida, mencionamos, em primeiro lugar, aquela produzida pela
aproximação de círculos até então separados. Se nós temos dois círculos sociais, M
e N, claramente diferenciados por suas qualidades específicas e opiniões que um tem
do outro, mas com elementos homogêneos e estreitamente vinculados entre si, toda
ampliação quantitativa produzirá uma diferenciação cada vez maior. As diferenças,
originariamente mínimas, que existem entre os indivíduos – consequência de como

1
Uma proposição afirmativa ou negativa de sentido completo e intenção declarativa, que pode ser
verdadeira ou falsa. (NT)
762 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

desenvolvem seus talentos ou aptidões inatas e adquiridas – se acentuam pela


necessidade de adquirir, por meios cada vez mais pessoais, recursos vitais que
devem satisfazer apetências conflitantes. A concorrência desenvolve a
especialização do indivíduo na medida em que aumenta o número dos concorrentes.
Ora, por distintas que possam ter sido as situações em M e N no ponto de partida do
processo, no longo prazo, ambos os grupos ficarão progressivamente mais
próximos. No entanto, o número de formas humanas fundamentais é relativamente
limitado e aumenta muito lentamente. Quanto maior o número de formas existentes
em um grupo, desde o início, quer dizer, quanto maior a dessemelhança dos
elementos de M entre si e de N entre si, mais provável é o surgimento de um número
crescente de formas semelhantes às do outro grupo. Com isso, o afastamento da
norma até agora aceitado para cada conjunto individualmente considerado
aumentará em todas as direções, o que deve necessariamente produzir uma
aproximação – primeiramente qualitativa ou ideal – dos membros de um círculo em
relação aos do outro. E isso deve acontecer, até mesmo entre grupos sociais
diferentes porquanto as formas de diferenciação são idênticas ou muito parecidas:
as relações de concorrência simples, a união de muitos fracos contra um forte, a
ambição individual, a tendência das relações individuais a ficarem mais violentas ou
acerbadas uma vez iniciadas, a atração ou repulsão entre os indivíduos em virtude
de sua diferenciação qualitativa, etc.
Mesmo sem considerar todas as associações de interesses objetivos, esse
processo conduzirá, com frequência, a relações efetivas entre os elementos dos dois
(ou mais) grupos que começam a assemelhar-se. Observa-se o fenômeno descrito
na simpatia que os aristocratas nutrem internacionalmente pelos integrantes de sua
classe – o que espantosamente independe da personalidade do indivíduo, o fator
habitualmente decisivo em matéria de atração ou repulsão. No entanto, surgem
também simpatias no outro extremo da escala social, pela especialização dentro de
cada grupo, originariamente independente dos outros, como o demonstra o
internacionalismo da socialdemocracia. Esse foi igualmente o alicerce sentimental
das antigas corporações de oficiais artesãos. Quando o processo de diferenciação
social conduziu à divisão entre os de cima e os de baixo, o mero fato formal de ocupar
determinada posição social cria, entre os membros dos mais diversos grupos, uma
Georg Simmel | 763

relação psicológica e material. Essa diferenciação do grupo social acrescerá a


necessidade e a tendência para ultrapassar as fronteiras de origem, sejam elas
espaciais, econômicas, ou espirituais. O incremento da individualização dos
elementos do grupo – e consequentemente sua mutua repulsão – faz surgir uma
tendência centrífuga capaz de lançar pontes entre os dois grupos, a despeito do
caráter centrípeto inicial.
Tomemos as corporações medievais de artesãos como exemplo. Sabe-se que
predominava nessas guildas, em suas origens, um espírito de rigorosa igualdade, ao
abrigo do qual seus integrantes eram por um lado compelidos a produzir a mesma
quantidade e qualidade que os demais e, por outro, procuravam proteger-se da
concorrência desleal de seus colegas por meio de normas reguladoras do volume de
vendas e negócios. Contudo, esse espírito de indiferenciação não pôde ser mantido
por muito tempo. Os mestres enriquecidos deixaram de vender apenas os produtos
que fabricavam, passaram a possuir mais de uma loja, e não mais limitavam o
número de ajudantes nem se sujeitavam a outras restrições semelhantes. Ao
conquistarem o direito de ampliar suas atividades, ao custo até de lutas renhidas,
tiveram porém que arcar com um duplo e inevitável resultado: a massa originalmente
homogênea dos membros da guilda diferenciou-se entre ricos e pobres, entre
capitalistas e trabalhadores. E, uma vez infringido o princípio de igualdade, de
maneira que alguns elementos trabalhassem para outros e que estes últimos
pudessem escolher livremente seu mercado conforme sua capacidade e suas
energias pessoais, com base no conhecimento das circunstâncias e no cálculo de
possibilidades, a corporação não pôde sobreviver ao maior número de integrantes e
à especialização e à individualização crescentes.
Por outro lado, essa transformação possibilitou a ampliação do mercado para
além do escopo inicial. A partir do momento em que se diferenciou do produtor, o
comerciante ganhou uma incomparável liberdade de movimentos, que se manifestou
em projetos de relações comerciais que até então pareciam inatingíveis
– demonstrando que a liberdade individual e a expansão das transações estão em
mútua relação. Assim, enquanto coexistiram limitações corporativas e grandes
estabelecimentos fabris (como, nos Estados alemães a meados do século XIX) foi
preciso conceder às manufaturas mais importantes a liberdade de produzir e
764 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

comerciar que, por razões corporativistas, buscava-se restringir aos grupos de


estabelecimentos pequenos. Consequentemente, a evolução iniciada a partir do
acanhado e homogêneo círculo das guildas tomou duas direções que prepararam a
dissolução dessas corporações: a individualização diferenciadora e a ampliação do
mercado. É também por essa razão que a diferenciação dos membros das guildas
inglesas, entre comerciantes e verdadeiros operários, apareceu mais claramente nas
indústrias de artigos de exportação2, como curtumes e tecelagens. A distinção que,
nessa relação, se combina simultaneamente com a ampliação, não se refere apenas
ao conteúdo do trabalho, mas também à sua orientação sociológica. O pequeno
grupo primitivo se bastava porque, embora houvesse nele certa divisão técnica do
trabalho, conservava o espírito de rigorosa igualdade – assegurando assim que cada
integrante trabalhasse para o grupo e cada contribuição fosse sociologicamente
centrípeta. No entanto, quando a canga da corporação desapareceu e o grupo passou
a trocar produtos especializados com outro grupo, a diferenciação entre aqueles que
produziam para o comércio exterior e os que trabalhavam para o consumo interno
ficou visível – colocando em evidência dois gêneros de vida total e psicologicamente
opostos.
A história da emancipação dos camponeses oferece na Prússia o exemplo de
um processo análogo. O camponês servo hereditário ocupava ali, até 1810, uma
singular posição intermédia em face da terra e de seu senhor. A terra pertencia ao
senhor, mas o camponês tinha alguns direitos sobre ela. De fato, ele trabalhava para
seu senhor no manso senhorial3, mas também cultivava por conta própria a parcela
que lhe tinha sido atribuída. A abolição da servidão conferiu ao camponês a
propriedade plena e exclusiva de certa parte da terra que até então possuía com
direitos restritos – e o senhor, por sua vez, precisou contratar trabalhadores
assalariados, que se recrutavam entre os pequenos proprietários de terras que
tinham preferido vendê-las. Enquanto na situação anterior o camponês reunia as
qualidades parciais de proprietário e de trabalhador por conta de um senhor, agora
ocorre uma radical diferenciação: alguns camponeses se tornam exclusivamente

2
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “articles of foreign demand”. (NT)
3
No manso senhorial, local onde o senhor habitava, juntamente com a sua família, encontravam-se
as mais importantes construções, como as fortificações, os fornos e os moinhos. Nessas terras, os
servos trabalhavam alguns dias da semana exclusivamente para o senhor. (NT)
Georg Simmel | 765

proprietários e os outros só se transformam em trabalhadores. Evidentemente, essas


mudanças favoreceram a liberdade de movimentos das pessoas, incentivando-as a
estabelecer relações em regiões mais afastadas. O que contou aqui não foi apenas a
supressão do vínculo oficial à gleba, mas também a nova posição do camponês (que
trabalhava ora aqui, ora acolá) e a livre disponibilidade dos bens – que possibilitou a
sua alienação e com ela as relações comerciais, a mudança de domicílio, etc.
Confirma-se assim a tese formulada no primeiro enunciado: a diferenciação e a
individualização afrouxam os laços com os vizinhos, mas em compensação criam
um vínculo novo – real ou ideal – com pessoas mais afastadas.
Uma relação análoga se encontra no mundo dos animais e das plantas.
Quando umas e outros têm sido domesticados, os indivíduos de uma mesma espécie
tendem a se diferenciar mais do que os indivíduos da mesma espécie no estado
natural. Contrariamente, as espécies de um mesmo gênero tomadas no seu conjunto
são reciprocamente mais próximas do que as espécies silvestres. O desenvolvimento
acentuado pela domesticação exacerba então, por um lado, a individualidade dentro
do próprio grupo e provoca, por outro, uma assimilação aos grupos alógenos, um
destaque da semelhança com um conjunto ampliado que excede o âmbito do grupo
originalmente homogêneo. Concordam completamente com isso os relatos que
afirmam que as subespécies de animais domesticados dos povos da natureza se
aproximam muito mais das características das espécies exóticas do que as
variedades conservadas entre as sociedades desenvolvidas – porque as
subespécies citadas não têm alcançado ainda o estádio de desenvolvimento em que
uma domesticação prolongada reduz as diferenças das espécies para acrescentar as
dos indivíduos. Se essa relação fosse certa, seria grande a tentação de traçar um
paralelo entre a evolução dos animais e o processo civilizatório dos humanos.
Conforme a ideia que temos dos primeiros estágios desse processo, os elementos
dos grupos sociais característicos têm uma maior igualdade qualitativa e formam na
prática uma unidade fechada, ao passo que os grupos, considerados em conjunto,
são estranhos e hostis uns aos outros. Quanto mais coesa seja a síntese dentro do
próprio grupo, mais severa será a antítese em face do grupo alógeno. Contrariamente,
na medida em que progride o processo civilizatório, acresce a diferenciação entre os
indivíduos e aumenta a aproximação aos outros grupos e a assimilação das regras e
766 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

normas sociais alheias, em determinado momento. Um inglês que morou muitos


anos na Índia dizia ser impossível para um europeu aproximar-se dos indianos, por
pouco que seja, nos territórios que existem castas, mas que, em compensação, era
fácil fazê-lo onde esse sistema de estratificação social não prosperava. O caráter
fechado da casta, que se manifesta tanto na sua homogeneidade interna como na
aversão (e mesmo na repugnância) sentida a respeito das outras castas (inferiores
ou superiores), impede a formação do “universal humano” que permite as relações
com alguém etnicamente diferente.
A mesma razão explica o fato de as grandes massas pouco cultivadas das
sociedades modernas serem mais homogêneas entre si e, ao mesmo tempo, estarem
afastadas das massas iletradas de outras sociedades por características mais
acentuadas das que diferenciam às classes cultivadas das duas sociedades. Essa
relação sintético-antitética se manifesta tudo ao longo do processo civilizatório. Ela
pode perceber-se no caso das antigas corporações germânicas de artesãos, que
vinculavam estreitamente a seus membros, mas para ampliar a distância das outras
guildas. Pelo contrário, as associações modernas (constituídas habitualmente para
uma finalidade determinada) não relacionam entre si seus membros nem padronizam
seu comportamento além do estritamente necessário para o cumprimento do fim
associativo – concedendo-lhes no resto completa liberdade, e tolerando que sejam
tão individualistas e singulares quanto quiserem. No entanto, em contrapartida,
visam alcançar uma reunião global de todas as associações, graças à divisão do
trabalho promovida pelo seu relacionamento, à nivelação, fruto da igualdade de
direitos e da economia monetária, e à solidariedade de interesses, que está implícita
na economia nacional. Esses exemplos projetam o que se pretende confirmar neste
estudo: que a falta de individualização dos elementos em um pequeno círculo, assim
como a sua diferenciação em um círculo amplo, se revelam tanto na justaposição de
grupos e de elementos coexistentes como na sucessão dos estágios de
desenvolvimento de cada grupo.
Essa ideia fundamental pode generalizar-se dizendo que em todo homem
existe, coeteris paribus, uma proporção constante entre o individual e o social, que
não faz mais do que mudar de forma. Quanto menor for o círculo, menor será a
liberdade individual. Em compensação, tal círculo terá em si mesmo algo de individual
Georg Simmel | 767

que, precisamente porque é pequeno, diferenciar-se-á radicalmente dos outros, se


delimitando melhor. Por outro lado, se se ampliasse o círculo no qual o indivíduo se
encontra, o coletivo dará mais espaço para o desenvolvimento da individualidade da
pessoa, mas por outro lado, como elemento desse conjunto, a pessoa em questão
possuirá menos particularidades, porque o grupo social estará, como grupo, menos
individualizado. Por conseguinte, a nivelação dos indivíduos não só corresponde à
relativa pequenez e coerência da comunidade, mas também (ou sobretudo) à sua
nuance individualista. Quer dizer: os elementos do círculo diferenciado estão
indiferenciados, e os do círculo indiferenciado estão diferenciados. Não se deve
entender tal afirmativa, porém, como uma “lei natural” da sociologia, mas como uma
mera fórmula fenomenológica que pretende condensar, em um conceito, a sucessão
regular de uma série de acontecimentos que, normalmente, se associam. Tal fórmula
não designa uma causa dos fenômenos, mas o fenômeno cuja coerência geral
profunda revela ser, em cada caso particular, a consequência de causas muito
diversas que ao combinarem-se desenvolvem as mesmas energias conformativas.
O primeiro aspecto dessas relações – a indiferenciação do grupo
diferenciado – se nos apresenta nos quacres4, cuja organização social nos reenvia
justamente as motivações mais profundas da Sociedade dos Amigos. Como conjunto
e princípio religioso que leva ao extremo o individualismo e o subjetivismo, o
quacrismo liga os membros da comunidade a uma maneira de ser e de se comportar
de um modo perfeitamente igualitário, democrático, que procura excluir as diferenças
individuais de gênero de vida. No entanto, por isso mesmo carece de toda
compreensão para o conceito de unidade superior que pretende encarnar o Estado e
para seus fins, de modo que a acentuada individualidade do grupo menor exclui a
particularidade individual de seus membros e praticamente impede a adesão ao
grupo mais amplo. Até nos detalhes se manifesta essa situação, de maneira que nos
assuntos comuns, como nas suas reuniões para louvar a Deus (onde os crentes

4
Membros da seita protestante inglesa conhecida como Sociedade dos Amigos, fundada no século
XVII. O quacrismo baseia-se na busca da manifestação divina de maneira pessoal, e não por meio de
sacerdotes ou ministros da Igreja. A presença de Deus dentro de cada pessoa é chamada pelos
quacres de “luz interior”, que eles acreditam ser a guia de suas vidas. O grupo tem uma longa tradição
de trabalhar pela paz e contra a guerra, sendo ademais conhecido por sua oposição à escravidão, aos
maus-tratos e à tortura contra prisioneiros e à violência contra a mulher. (NT)
768 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sentam-se em silêncio à espera de uma mensagem divina), qualquer fiel que a recebe
pode converter-se em pregador e compartilhar seu conhecimento com os outros. Em
contrapartida, a comunidade acompanha e supervisiona os assuntos pessoais. O
casamento, por exemplo, não pode ser celebrado sem a prévia aprovação de um
comitê constituído para examinar o caso. Os quacres, por conseguinte, são
individuais no comum e socialmente vinculados no individual. Os dois aspectos
dessa formulação encontram exemplo nas diferenças de configuração política dos
estados do norte e do sul dos Estados Unidos, sobretudo na época precedente à
Guerra de Secessão5. Os estados da Nova Inglaterra6 tiveram desde o começo um
acentuado caráter de sociedade local, constituindo townships 7 com uma clara
sujeição do indivíduo à comunidade – relativamente pequena e muito autônoma. Já
os estados do sul, que foram povoados por indivíduos aventureiros individuais, sem
inclinação pelo governo autônomo local 8 , logo constituíram counties, unidades
administrativas extensas sobre as quais recaía o verdadeiro poder estadual
– enquanto um estado da Nova Inglaterra não passava de ser uma reunião de
distritos autônomos 9 . As personalidades individuais mais independentes do sul,
quase anárquicas, concordavam com a estrutura estadual, mais abstrata e
desprovida de expressão, mas que as reunia. Contrariamente, as personalidades do
norte, associadas à solução dos problemas específicos de seu distrito, se inclinavam
a constituir formações urbanas menores dotadas de uma individualidade local
marcante e certas particularidades idiossincrásicas.
Com todas as ressalvas anteriormente apontadas, pode-se mencionar a

5
A Guerra de Secessão foi uma guerra civil travada nos Estados Unidos de 1861 a 1865, entre o “Norte”
(a União) e o “Sul” (os Confederados). Começou principalmente como resultado de uma longa
controvérsia sobre a escravidão dos negros. Os legalistas do norte, que também incluíam alguns
estados geograficamente ocidentais e do sul, proclamaram apoio à Constituição e enfrentaram os
secessionistas confederados do sul, que defendiam os direitos dos estados para manter a escravidão
e tinham iniciado as hostilidades. (NT)
6
A Nova Inglaterra é uma região geográfica extraoficial de grande valor histórico dos Estados Unidos,
localizada na ponta nordeste do país, que inclui os estados de Connecticut, Maine, Massachusetts,
New Hampshire, Rhode Island e Vermont. (NT)
7
Em alguns estados norte-americanos um township (ou civil township) é uma pequena área
geográfica que constitui uma unidade do governo local, geralmente um distrito ou divisão civil dos
condados ou counties – as principais entidades divisionais criadas pelos estados federados.
Portanto, os townships variam de estado para estado em seus poderes e sua organização. (NT)
8
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “local self government”. (NT)
9
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “combination of towns”. (NT)
Georg Simmel | 769

existência de tendências à individualização e à indiferenciação, determinadas pelas


constantes circunstâncias pessoais, históricas e sociais, puramente pessoais ou da
comunidade do elemento. Levamos uma existência dupla ou dividida: como
indivíduos que estão dentro do círculo social, perceptivelmente distanciados dos
demais membros, e como membros de um mesmo círculo, ignorando aquilo que não
diz respeito a esse grupo. Somos animados pela necessidade de individualização e
de socialização (Socialisierung)10 em cada aspecto de nossa existência. Ao excesso
de satisfação que advém da realização dos objetivos específicos do instinto de
diferenciação do indivíduo frente a outros membros do grupo, corresponde o
padecimento do mero ente social. Quer dizer, a individualização dentro do grupo será
acompanhada pela diminuição da individualidade do próprio grupo e vice-versa. Um
francês disse, a propósito da mania associativa dos alemães, que “é ela que habitua
o alemão a não levar em conta unicamente o Estado e a não contar apenas consigo
mesmo. Esse costume particular evita que ele se feche nos limites de seus próprios
interesses e confie ao Estado o exclusivo cuidado dos interesses gerais”. Tal
expressão negativa descreve tendências à individualização e à generalização
extremas que não evoluem, porém, em duas direções radicalmente opostas – uma
vez que a associação representa o meio-termo, a moderação que permite alcançar o
equilíbrio entre as exigências daquele instinto dualista.
Se utilizarmos esse enunciado como princípio heurístico (sem pretender
expressar a verdadeira causalidade dos fenômenos, mas afirmar que eles acontecem
como se fossem motivados por esse duplo desejo), obtemos uma norma geral, cujas
manifestações na realidade são favorecidas pelas diferenças de tamanho dos
grupos, mas que também podem vir a lume por outros meios. Assim, podemos
observar, em certos círculos nos quais domina a extravagância, o exagero e a
veleidade, uma submissão servil aos ditados da moda, que compelirá todo o mundo
a arremedar a insensatez que um só cometa. Ao invés, outros grupos, que seguem
de modo rigoroso um estilo de vida mais disciplinado e de escrupuloso cumprimento
das obrigações, valorizam individualmente una autonomia mais afinada, que permite
um grau de diferenciação mais radical que o conseguido pelos elementos que estão

10
Vide nossa nota 14 neste mesmo capítulo. (NT)
770 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

sempre atentos e atualizados com os acontecimentos e as inovações. Em suma, no


conjunto que tem um caráter muito individual, as partes são muito semelhantes entre
si, enquanto no outro mais austero, onde a totalidade carece de brilho e de
características marcantes, seus elementos se aproximam menos dos extremos, mas
têm entre eles fortes diferenças.
A moda é, como forma da vida social, um caso típico dessa correlação.
Contudo, o destaque que ela confere à pessoa só lhe compete a esse indivíduo devido
ao seu caráter de membro de uma classe que se distingue, em bloco, das outras
classes pela adoção do último grito da moda – que abandonará assim que deixar de
ser “último” e passar às outras classes, momento em que criará uma nova moda só
para si. A difusão da moda significa dentro da classe a nivelação, e por fora dela a
distinção em relação às outras classes. Nosso interesse aqui é nomeadamente a
correlação ligada à extensão dos círculos sociais e que vincula habitualmente a
liberdade do grupo à submissão do indivíduo. Disso é bom exemplo a combinação de
liberdade política e servidão comunal da Rússia pré-czarista. Particularmente, na
época da luta contra os mongóis11, havia na Rússia um grande número de unidades
territoriais (principados, cidades, povoados), que não estavam conectadas entre si
por nenhum vínculo estatal unitário, mas que desfrutavam, coletivamente, de uma
grande liberdade política. Em compensação, a vinculação do indivíduo à comunidade
municipal era estreitíssima a ponto de a propriedade da terra ser da comunidade e
não do indivíduo. A integração completa ao círculo comunal, que recusava ao
indivíduo a propriedade privada e amiúde mesmo a liberdade de movimento, ia de par
com a ausência de relações vinculantes entre o grupo e outro círculo político mais
amplo. Bismarck12 chegou a disser em certa ocasião que havia mais provincianismo

11
A luta contra os mongóis da Rússia se deu na sequência de uma invasão empreendida por um vasto
exército de nômades de origem mongol a partir de 1223 contra o Estado russo de Quieve, a essa altura
fragmentado em vários principados. As hostilidades tiveram início formal em 31 de maio de 1223,
quando os mongóis, com um exército de 25 mil homens, derrotaram os exércitos dos vários
principados russos na grande batalha do rio Kalka e só terminaram três séculos depois com a batalha
do rio Ugrá dos dias 8 a l2 de outubro de1480, que põe fim ao que os historiadores russos denominam
o “jugo tártaro-mongol”. (NT)
12
Otto Leopold Von Bismarck Schonhausen, príncipe de Bismarck, duque de Lauenburg
(1815 — 1898) foi um nobre, diplomata e político prussiano que se converteu no estadista mais
importante da Alemanha do século XIX e é reconhecido como uma destacada personalidade
internacional de sua época. Coube a ele lançar as bases dos Segundo Império ou Reich (1871-1918),
que levou os países germânicos a conhecer pela primeira vez na sua história a existência de um Estado
nacional único. (NT)
Georg Simmel | 771

em uma cidade francesa de 200 mil habitantes do que em uma cidade alemã de 10
mil. Ele ancorava essa afirmação no fato de a Alemanha estar estruturada por um
grande número de estados pequenos. Em um grande Estado unitário e centralista só
resta aos municípios certa autonomia espiritual. Por essa razão, quando uma de ditas
comunidades urbanas, pequena por força das coisas, se sente uma coletividade
digna de consideração, se encontrará nela inevitavelmente essa valoração excessiva
do mínimo que está no âmago do espírito provinciano. Em um Estado de menores
dimensões, o município pode, ao invés, sentir-se mais como uma parte do conjunto.
Por esse motivo, não precisa restringir-se exclusivamente a si mesmo, não possui
tanta individualidade e, por consequência, pode fugir com mais facilidade a esse fator
violento do nivelamento interior dos indivíduos cuja consequência é uma consciência
acentuada dos acontecimentos e interesses mais insignificantes e mesquinhos.
Dentro de um pequeno círculo por via de regra só pode conservar-se a individualidade
de duas maneiras: como chefe (pelo qual as personalidades fortes podem preferir ser
“cabeça de rato”13), ou passando a ter em relação ao pequeno círculo uma existência
exterior, pelas margens. Contudo, isso só é possível com uma grande firmeza de
caráter ou aquela amabilidade fingida característica das pequenas cidades.
Os círculos dos interesses sociais nos circundam e, quanto mais
estreitamente nos cingem, menores são. No entanto, o homem nunca é um mero ente
coletivo, assim como não é sempre um simples ente individual. Por isso não estamos
diante de um mais-ou-menos, de alguns aspectos da existência em que apareça a
predominância de um traço sobre o outro. Esse processo pode ter estágios em que
aspectos da pertença aos círculos sociais pequenos e grandes se sucedam. A adesão
a um círculo pequeno e coeso é em geral menos favorável à subsistência da
individualidade, assim como sua existência em uma comunidade cultural grande
pode tornar a pertença a uma família um fator capaz de favorecer psicologicamente
a individualização. O homem está desarmado perante a sociedade. Apenas quando
ele entrega uma parte do seu eu absoluto a outras pessoas e se vincula a elas, pode
manter ainda o sentimento de individualidade, sem voltar-se em excesso para dentro
de si mesmo, sem mágoas nem extravagâncias. Só assim, ampliando sua

13
Alusão ao ditado que afirma que “é melhor ser a cabeça de um rato do que a cauda de um leão”.
(NT)
772 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

personalidade e interesses, adicionando-os aos de uma série de indivíduos, o homem


pode adquirir a concentração de recursos materiais e simbólicos necessários para
contestar, junto com outros homens, a própria coletividade. É verdade que uma vida
sem família, em um vasto círculo, deixa uma grande margem de manobra à
individualidade – aqui entendida como arbitrariedade e divergência. Contudo, para a
diferenciação individual é frequentemente útil a pertença a um círculo pequeno
inscrito em um círculo maior, nem que seja a título de preparação e transição. Nessa
ordem de ideias, podemos sinalar uma dupla contribuição da família – que na sua
gênese, tinha uma importância política e concreta, mas foi adquirindo um significado
cada vez mais psicológico e ideal na medida em que avançava o processo
civilizatório. Em primeiro lugar, a família, como indivíduo coletivo, oferece a seus
membros uma diferenciação provisória, que ao menos os prepara para a
especialização e diversificação que corresponde à individualidade absoluta. E, em
segundo lugar, a família confere a seus integrantes uma proteção, ao abrigo da qual
essa individualidade pode-se desenvolver até adquirir a resistência suficiente para
enfrentar à totalidade. É bom que se diga, todavia, que em sociedades desenvolvidas,
onde os direitos individuais e os do círculo mais amplo amiúde têm a mesma
importância e agem simultaneamente sem invasão de competências, a pertença a
uma família representa uma combinação dos significados característicos do
pequeno grupo social e do grupo maior.
Em relação ao mundo animal já se fez a observação de que a inclinação para
constituir famílias é inversamente proporcional à formação de grandes grupos. A
relação monogâmica (e até mesmo a poligâmica) é algo tão exclusivo, o cuidado da
progênie ocupa de modo tal os pais, que a conclusão da socialização 14 é prejudicada
entre certos animais. Por isso são relativamente escassos os grupos organizados de
aves, enquanto os cães selvagens (dotados de uma vida sexual promíscua) vivem
amiúde em matilhas muito unidas. Inclusive entre os mamíferos menos ferozes, que

14
Aqui nosso autor tem utilizado na edição alemã a voz germânica “Socialisierung” (e não
“Vergesellschaftung”, que temos traduzido para o português como “sociação” e alude aos contatos e
relações sociais de reciprocidade). Neste lugar Simmel refere-se, então, ao processo que hoje em
quase todas as línguas ocidentais se chama de “socialização” (ou seus respectivos equivalentes) e
que evoca (só após os anos 1940) ao conjunto de atividades através do qual um indivíduo se torna
membro funcional de uma comunidade, assimilando a cultura que lhe é própria. (NT)
Georg Simmel | 773

infundem instintos familiares e sociais, adverte-se que sempre que predominam os


impulsos familiares (nomeadamente durante o cio e a reprodução), os sociais
diminuem consideravelmente. Da mesma maneira que a união dos pais e dos filhos
em uma família se vai tornando mais estreita na medida em que se reduz a prole
convivente. Por fim, no mundo submerso dos peixes, deve-se levar em conta que
aqueles cuja descendência fica abandonada a si mesma põem milhões de ovos,
enquanto os que geram seus filhotes dentro de seu corpo 15 ou constroem ninhos16
(e oferecem assim um começo de coesão familiar) produzem poucos ovos. Por fim,
afirmou-se que as relações sociais entre os animais não dependem do acasalamento
ou da paternidade, mas dos laços de irmandade. Isso ocorre porque eles concedem
ao indivíduo muito mais liberdade do que os outros e facilitam a sua incorporação ao
círculo maior conformado primeiramente por seus irmãos – de tal maneira que a
pertença a uma fratria animal seria o maior empecilho ao ingresso de indivíduos em
um agrupamento estendido de congêneres17.
Essa dupla e paradoxal função da família – que é um prolongamento da
personalidade do indivíduo, uma unidade na que se sente correr o próprio sangue,
impermeável à ação de outras unidades e que integra os indivíduos como membros,
mas que é também um ambiente onde o indivíduo se distingue de todos os outros,
configura uma maneira de ser própria e forja uma identidade oposta à deles –
ocasiona inevitavelmente a ambiguidade sociológica do grupo parental, que aparece
às vezes como uma estrutura unitária que age como um indivíduo, e por isso ocupa
uma posição característica nos círculos mais amplos, e em outras ocasiões age
como um círculo intermediário inserido entre o indivíduo e o círculo maior no qual
está contido. A história da evolução da família, tal como pode ser reconstruída a partir
de certos vestígios, repete o seguinte esquema: surge como um vasto círculo que
engloba todo o âmbito vital de seus elementos e tem em si mesmo, uma autonomia
e coesão muito extensas, para posteriormente contrair-se até adquirir uma

15
Como por exemplo, os platis, lebistes e molinésias entre outros, cujos filhotes assim gerados já
nascem aptos para comer, geralmente órgãos unicelulares, naúplios de artêmias, etc. (NT)
16
A construção de ninho (também chamada de nidificação) é um tipo de comportamento comum
na reprodução de várias espécies de peixes da família dos anabantídeos, como o peixe paraíso.
Entretanto, este importante comportamento de cuidado parental é também reportado por peixes
associados a recifes de corais como o grama brasileiro. (NT)
17
Conforme observado entre certos macacos antropoides, por exemplo. (NT)
774 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

conformação mais enxuta, que lhe permitirá representar doravante o papel do


indivíduo em um círculo social muito mais amplo. Depois que a desaparição da
família matriarcal foi consumada pela imposição do poder decisório do marido, o que
manteve a unidade da família não foi tanto a conexão biológica da filiação patrilinear,
mas sim o domínio que o pai exercia sobre determinado número de pessoas – entre
as quais se contavam ademais dos descendentes consanguíneos do patriarca, os
indivíduos que estavam sob a sua proteção, como seus genros e noras, os escravos
e as famílias deles. Dessa família patriarcal original surge, mais tarde, ainda que
diferenciada, a família moderna, marcada pelo parentesco biológico, em que pais e
filhos formam lares autônomos, Naturalmente, tal família é muito mais reduzida e
individual que a extensa família patriarcal, que podia garantir a sua subsistência e até
empreender uma ação militar. Contudo, uma vez que este grupo antigo se fragmentou
em famílias menores, foi possível a reunião (para alguns, desejável) de todas as
partes dentro de um grande grupo, como a comunidade suprafamiliar do Estado. O
Estado ideal platônico, afinal, não era mais do que o prolongamento dessa tendência
evolutiva que só poderia conduzir à completa supressão da família, com o indivíduo,
de um lado, e o Estado de outro.
É útil lembrar aqui algumas das dificuldades que o conhecimento sociológico
enfrenta ao levantar a questão do duplo papel da família. Quando um círculo maior e
outro menor não se encontram simplesmente um em frente ao outro para que as
situações individuais possam ser comparadas imediatamente, mas há vários
círculos de tamanhos diferentes e sobrepostos, a situação individual pode ser muito
mais difícil de determinar. Parte dessa dificuldade se deve ao fato de o círculo
intermediário ser de amplitude menor na comparação com o maior e mais amplo na
comparação com o menor. Para além dos efeitos que sentem do círculo maior, todos
os círculos circunscritos por ele têm o seguinte e duplo efeito: em relação ao maior,
funcionam amiúde como unidades de índole individual (indivíduos sociológicos) e,
em relação aos seus elementos, funcionam como conjuntos de ordem superior que
abrangem, talvez, além de seus indivíduos, outros conjuntos de ordem inferior.
Consequentemente, o grupo intermediário mantém sempre essa relação (coesão
interna, repulsão externa) em relação ao grupo mais geral e maior, mas também em
relação a uma entidade mais individual e menor. Essa entidade é um indivíduo
Georg Simmel | 775

relativo em relação aos grupos superiores, ainda que seja uma coletividade em
relação a seus próprios elementos. Por outras palavras: quando, como aqui, se
estuda a correlação habitual entre três instâncias caracterizadas por seu nível (o
elemento individual primário, o círculo pequeno e o círculo amplo), em alguns casos
um único e mesmo conjunto poderá desempenhar simultaneamente os três papéis,
de acordo com as relações nas quais se envolva. Isso não reduz de modo algum o
valor cognitivo da constatação dessa relação: demonstra, ao contrário, seu caráter
formal, capaz de ser aplicado em qualquer conteúdo.
Naturalmente, há muitos conjuntos sociológicos que concentram
exclusivamente no homem individual o valor da individualidade e a necessidade de
unicidade que experimentamos. Nesses conjuntos, perante o homem individual,
qualquer coletividade é considerada, em toda circunstância, como “o outro” por
excelência. Já vimos, porém, que o sentido e o desejo de individualidade nem sempre
se detêm no limiar da personalidade individual, pois que são algo mais geral e formal,
algo que pode referir-se a um grupo no seu todo, desde que esteja enfrentando outro
grupo mais vasto, comparado com o qual aquela figura coletiva (agora relativamente
individual) pode adquirir sua autonomia consciente, seu caráter único ou indivisível.
É isso que explica certos fenômenos que aparentemente contradizem a correlação
enunciada aqui, como o exemplo seguinte extraído da história dos Estados Unidos o
demonstra. O partido antifederalista (que um dia foi democrata-republicano e hoje é
conhecido como democrata tout court) tem defendido a independência e soberania
dos estados à custa da centralização e do governo nacional, invocando sempre o
princípio da liberdade individual e da não ingerência da coletividade nos assuntos do
indivíduo. Não há aqui contradição alguma com a liberdade individual, referida a um
círculo relativamente grande, porque o sentimento da individualidade recaiu
inteiramente sobre o círculo menor que, neste caso, inclui grande número de
indivíduos e passa a, desempenhar a mesma função do indivíduo unitário.
O limite entre as esferas nas que prevalece a aspiração individualista e aquelas
outras em que domina a sua antítese não pode ser determinado em princípio, porque
estamos falando de possíveis desejos pessoais profundos que podem se alastrar por
indeterminado número de estruturas concêntricas próximas. Às vezes, a intensidade
da aspiração individualista fica evidente desde o início conforme esferas
776 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

convencidas considerem antitéticas e anti-individualistas as ambições das esferas


vizinhas – seja qual for o setor em que determinada atividade se exerça ou difunda.
Outras vezes, em que a necessidade de distinção não se produz tão rapidamente,
aquele matiz individualista da aspiração pode tingir também as esferas imediatas Os
italianos, por exemplo, costumam ser politicamente regionalistas: cada província – e
até cada cidade – apresenta-se extremamente ciosa de suas qualidades e
liberdades, amiúde em radical oposição às outras províncias e localidades,
chegando-se mesmo a ignorar quase totalmente os direitos da nação. Seguindo
nossa fórmula geral, então, deveríamos deduzir que os elementos integrantes dessas
subdivisões individualistas teriam de ser coletivistas em algum grau. Tal não é o caso
pois que as famílias e os indivíduos experimentam um vivo prurido de autonomia e
distinção. Aqui, como no caso norte-americano, nosso exemplo compreende os três
níveis da correlação, a saber, os indivíduos, os círculos menores integrados por esses
indivíduos e um grupo maior que engloba o conjunto. Acontece que não há espaço
para aquela vinculação característica entre o primeiro e o terceiro níveis, em oposição
comum ao segundo. É que na consciência prática esse segundo nível está incluído
no primeiro. É como se o sentimento da individualidade superasse o limiar do
indivíduo, por compreender sua dimensão social que, normalmente, constitui a
antítese da dimensão individual.
Nesse “constructo social de três andares”, o primeiro e terceiro remetem um
para o outro e constituem uma antítese comum (nas mais diversas significações
dessa palavra) em face do elemento do meio – ao menos é o que as relações
objetivas e as relações do sujeito com aquelas instâncias parecem demonstrar. A
devoção pessoal apaixonada do indivíduo se destina habitualmente ao círculo
mínimo e ao mais amplo, mas não ao mediano. Aquele que se dedica totalmente a
sua família pode ser que também se sacrifique pela sua pátria ou, quem sabe, por
uma ideia universal como “a humanidade” e pelas exigências decorrentes dessa
noção, ou até pela polis e sua honra, quando elas ofereciam na prática a ideia de
pertença a um círculo vital mais amplo ou abrangente. Dificilmente esse indivíduo irá
imolar-se em benefício de uma entidade intermédia, como a sua província ou uma
associação particular. Um homem se sacrifica por uma pessoa ou pelas poucas que
formam seu círculo familiar e por muitas outras ainda, mas não por uma centena de
Georg Simmel | 777

indivíduos. Ao reunir o muito “próximo” e o muito “afastado” em uma mesma


categoria prática unitária, se estrutura uma metáfora de sentido psicológico que
corresponde à “proximidade” e à “distância” puramente espaciais. Nossos
sentimentos mais íntimos vinculam-nos àqueles com os quais mantemos contatos
mais constantes, quer dizer, a quem a nossa vida cotidiana está ligada. e àqueles dos
quais estamos separados por uma distância muito longa, por uma saudade profunda
e incurável. Em compensação, sentimos uma frieza relativa em face daqueles que
não estão completamente próximos a nós, sem ficar a uma distância intransponível.
Um notável conhecedor dos Estados Unidos explica essa dinâmica quando se refere
à pouca importância que o condado (county) tem para os estadunidenses. Diz ele
que esse distrito “é grande demais para despertar o interesse pessoal dos cidadãos,
focalizado nas cidades, e pequeno demais para ter dado origem a tradições que
exijam o respeito ou suscitem a afeição dos habitantes, que os preferem reservar
para o estado”18.
Essa paradoxal “aproximação dos extremos” vigora também em sentido
inverso. Assim, a casta indiana é endogâmica; mas apesar disso, dentro dela há um
círculo muito restrito no qual até o casamento é proibido. Tanto que a possibilidade
de aliança matrimonial só se aplica ao círculo médio. Ficam excluídos dela os
indivíduos, tanto do círculo maior como do círculo mínimo. De fato, esse modo de
correlação acentuou-se no decurso da história. A força e a extensão da influência
que exerciam antigamente as corporações de ofício sobre o indivíduo deixaram de
ser o apanágio dessa configuração de círculo para vir a sê-lo apenas do círculo
restrito da família e do círculo amplo do Estado.
Ao demonstrar que as formações relativamente mais individuais e as
relativamente mais vastas se relacionam umas com as outras passando por cima
das formas intermédias, atingimos o fundamento de um fato que já tem aparecido e
ao qual voltaremos: o círculo mais vasto favorece a liberdade individual, e o mais
restrito a reduz. Bem entendido que, neste contexto, a noção de liberdade individual

18
Esta citação pretence a James Bryce, The American Commonwealth, Vol. 3, The Party System &
Public Opinion, Nova Iorque, Macmillan, 1899. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “It is too
large for the personal interests of the citizens: that goes to the township. It is too small to have
traditions which command the respect or touch the affections of its inhabitants: these belong to the
state ” (NT)
778 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

tem diversos significados devido à variedade de nossas esferas de interesse – da


liberdade na escolha do cônjuge, à liberdade nos empreendimentos econômicos.
Citaremos um exemplo para cada uma dessas duas liberdades. Nas épocas em que
a sociedade estava estritamente dividida em classes, famílias, castas ou estamentos
definidos pela profissão ou nascença, só se dispunha de um círculo relativamente
reduzido para encontrar parceiro homem ou mulher – contrariamente ao que
acontece nas sociedades mais progressistas ou liberais. Contudo, conforme o que
podemos presumir a partir de certas analogias com o presente, a escolha não devia
ser difícil para os indivíduos, pois que a escassa diferenciação das pessoas e das
relações conjugais implicava que cada homem pudesse chegar a um acordo para
desposar quase qualquer moça do círculo em que isso era permitido, sem que
houvesse exclusões específicas apreciáveis. O avanço no processo civilizatório tem
modificado essa situação em dois sentidos. O círculo em que se pode escolher um
parceiro foi ampliado extraordinariamente na sequência da mistura dos estatutos
das pessoas, da supressão das barreiras religiosas, da diminuição da autoridade
paterna e da maior liberdade de movimentos, em sentido espacial e social. Em
compensação, a seleção individual é muito mais severa, eis que depende (de direito
e de fato) da inclinação puramente pessoal, da consciência de que entre todas as
pessoas só essas duas estão “destinadas” uma para a outra – evolução inaudita
mesmo para a burguesia do século XVIII. E a liberdade individual ganha assim um
significado mais profundo: é uma liberdade limitada pela individualidade. Como o ser
individual é único, o outro ser que pode complementá-lo e salvá-lo também é único.
As necessidades se concretizaram e, como corolário, se dispõe de um círculo o mais
amplo possível para a escolha, uma vez que quanto mais individuais sejam as
aspirações e as necessidades particulares, mais difícil será satisfazê-las em um
círculo limitado. Na situação anterior, a limitação na seleção da pessoa era muito
menor, mas o indivíduo era mais livre para escolher porque as pessoas que
objetivavam a sua preferência não se diferenciavam como agora – sendo elas
aproximadamente equivalentes, seu círculo não precisava ser muito amplo. Pode-se
dizer então que, embora os níveis relativamente baixos de complexidade social
restringissem o indivíduo, isso era até certo ponto compensado pela correlata
liberdade negativa da indiferenciação e o acréscimo na capacidade de escolha
Georg Simmel | 779

autônoma, fruto da simples equivalência dos objetos eletivos. Em estágios mais


avançados do processo civilizatório, as possibilidades sociais se ampliam, mas são
limitadas por aquele sentido positivo da liberdade segundo o qual cada escolha é (ou
deve ser em princípio) a expressão única de uma personalidade diferente das outras.
Voltemos ao sentido social da liberdade em geral. O feudalismo estabelecia
numerosos círculos restritos que vinculavam os indivíduos entre si e limitavam suas
obrigações recíprocas. Por essa razão, não havia no sistema feudal espaço para a
exaltação patriótica e para consciência cívica, nem tampouco para o
desenvolvimento do espírito empreendedor ou da iniciativa privada. Os mesmos
liames que não permitiam atingir as mais elevadas formas sociais de unidade
espiritual sufocaram o exercício das liberdades individuais antes que elas
nascessem. È por isso que a definição do homem “livre” na época feudal continua
exata e profunda: é aquele submetido ao direito do país – entendido como a
comunidade social e política à qual se pertence –, quer dizer, ao direito do círculo
mais amplo. Consequentemente, o servo ligado à gleba não é livre, pois que depende
de um senhor feudal, e está submetido exclusivamente ao direito de um círculo
restrito, Se a liberdade é mais susceptível aos excessos e se, como aqui referido, o
grupo mais amplo oferece mais espaço às formas e deformações extremadas do
individualismo, ao isolamento misantrópico, às formas de vida extravagantes e
arbitrárias e ao mais escandaloso egoísmo, isso é apenas consequência do fato de
que o grupo amplo nos submete a exigências reduzidas – como se preocupa menos
com o indivíduo, também reprime menos a manifestação aberta de todos seus
instintos, mesmo os mais perversos. O tamanho do círculo tem aqui uma
responsabilidade negativa. Trata-se especialmente de fenômenos que ocorrem fora
do grupo e para os quais um coletivo numeroso é mais indiferente que outro
minguado.
O significado da individualidade costuma ter duas dimensões: uma delas é a
acima referida, a liberdade, a responsabilidade de si mesmo que o homem deve
assumir em um meio social amplo e movimentado, por oposição à que deve exibir em
um grupo pequeno, que é, por definição, “restrito” no duplo sentido do termo, a saber,
reduzido na sua extensão e mais rigoroso, pela sua intervenção na atividade dos
membros e pelo escasso raio de ação que concede. Em vez disso, a outra dimensão
780 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

da individualidade é qualitativa. O indivíduo se distingue do resto dos congêneres por


seu ser e seu agir, pela sua forma ou pelo seu conteúdo (ou por ambos) que
pertencem unicamente a ele – e essa alteridade tem significado e valor positivos para
a sua vida. As formas do princípio ou ideal do individualismo na época moderna se
diferenciam pela predominância acordada à primeira ou à segunda dimensão de seu
significado. O século XVIII aspirava, no geral, fazer a individualidade assumir a forma
da liberdade, da libertação das energias pessoais relativamente a todas as tutelas
– religiosas, políticas ou econômicas. Esse projeto tinha como pressuposto
fundamental que os indivíduos se revelariam essencialmente iguais entre si assim
que fossem desembaraçados de todos os entraves históricos e sociais. A crença era
que “o homem em geral”, com a bondade e perfeição da sua natureza, estava contido
em toda pessoa, e que essas qualidades eram suficientes para libertar-se dessas
correntes que o deformavam e desviavam. O Iluminismo não percebeu que esse ideal
de individualismo, em que “liberdade e igualdade” eram dois valores em coexistência
pacífica e se reforçavam reciprocamente, podia também servir ao homem libertado
para distinguir-se, para dominar ou submeter-se, para ser melhor ou pior que os
outros, em suma, para desenvolver egoisticamente toda a diversidade das energias
individuais. Pois é evidente que esse individualismo esteve associado à supressão
(real e histórica ou ao menos desejada e propiciada) de todos os vínculos restritivos
e de proximidade entre os homens. Durante a Revolução francesa, os trabalhadores
foram mesmo proibidos de reunirem-se em associações para conseguir melhores
condições de trabalho, porque tal tipo de entidade teria restringido a liberdade
individual de seus membros. Esse individualismo tem como contrapartida uma
concepção cosmopolita. A própria coesão nacional cede o passo à ideia de
“humanidade”, que faz de cada indivíduo um “cidadão do mundo”. Os direitos
particulares de estamentos e classes são substituídos pelo direito do indivíduo que,
não por acaso, se denomina “direito do homem”, quer dizer, o direito que advém da
pertença ao círculo mais amplo que é possível conceber.
O outro significado da individualidade foi desenvolvido no século XIX,
teoricamente pelo Romantismo alemão19 e no que tange à prática pela divisão do

19
O Romantismo alemão (Romantik) surge em um contexto de resistência ao movimento iluminista
francês como crítica ao modo excessivamente racionalista e materialista de conceber o homem e o
Georg Simmel | 781

trabalho. Supõe que o indivíduo ocupa (e deve ocupar) um posto que mais ninguém
pode preencher, que esse lugar lhe aguarda na organização do conjunto, e que por
isso o homem deve procurá-lo até encontrá-lo, que esse caráter único e
incomparável do seu ser e essa diferenciação crescente de sua contribuição
proporcionam o sentido pessoal e social e o sentido psicológico e metafísico da
existência humana. Apesar de que o século XVIII não considerou este conceito de
individualismo contraditório com o seu, parece indubitável que não tem nada a ver
(que está em contradição fundamental) com aquela ideia do “homem em geral”, da
natureza humana que existe por igual em todos e que só precisa da liberdade para se
fizer efetiva. De um lado, valoriza-se o que é comum a todos os homens, do outro
aquilo que os diferencia. Contudo, essas duas noções coincidem exatamente na
correlação que ora tentamos explicar. A ampliação do círculo, que acompanha a
primeira noção de individualismo, favorece igualmente a aparição da segunda.
Porque embora a segunda noção não se refira a toda a humanidade; mesmo que em
vez de imaginar os indivíduos como átomos iguais e absolutamente “livres” os veja
como entes que (graças a suas particularidades e a divisão do trabalho advinda) se
complementam e se necessitam mutuamente; ainda que historicamente essa noção
tinha favorecido o nacionalismo e um certo antiliberalismo em vez do
cosmopolitismo, ela também necessita, para poder surgir e subsistir, que o grupo
atinja dimensões relativamente grandes. Não faz falta insistir no fato de que a
simples ampliação do círculo econômico, o aumento da população e a
internacionalização da concorrência contribuem para a imediata especialização do
trabalho. O mesmo acontece com a diferenciação espiritual, sobretudo porque ela
surge geralmente do encontro de talentos intelectuais latentes com produtos
intelectuais objetivamente presentes. A relação mútua dos sujeitos ou a pura energia
interior do homem raramente são suficientes para fazer com que surjam todas as
particularidades espirituais do indivíduo. Ao contrário, para isso parece necessário
que alcance determinada extensão o que chamamos de espírito objetivo, as tradições
e as experiências da espécie fixadas em milhares de formas, da arte e do saber que
se encontram em figuras tangíveis, de toda a cultura que o grupo histórico possui

mundo (que a juízo de seus cultores estaria na origem do reducionismo positivista) e a reivindicação
nostálgica de um mundo antigo mais ou menos fantasiado. (NT)
782 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

como bens simultaneamente supraindividuais e ainda assim acessíveis a todos. O


particular desse espírito, que está ao alcance de todos e se cristaliza em produtos
objetivos, é fornecer o material e o incentivo para elaborar as qualidades espirituais
pessoais. A essência da formação cultural pessoal consiste em que o nosso talante
exclusivamente pessoal é criado ora como a forma desse conteúdo proporcionado
pelo espírito objetivo, ora como conteúdo da forma fornecida pelo mesmo espírito
objetivo. Somente essa síntese dá à nossa vida espiritual toda a sua particularidade
e a sua personalidade, uma vez que ela encarna de forma sensível seu caráter
incomparável e absolutamente individual. Eis a relação que vincula as diferenciações
espirituais e as dimensões do círculo gerador do espírito objetivo. Esse círculo pode
ser o círculo social real e também ter um caráter mais abstrato, histórico e literário
– mas, em todo o caso, a sua maior dimensão aumentará as possibilidades de que,
graças aos seus produtos (por objetivos e gerais que sejam), se desenvolva a
particularidade, o caráter único e a individualidade de nossa vida interior e a sua
produtividade intelectual, estética e prática. O individualismo da igualdade, para não
ser desde o início uma contradictio in adjecto 20 , precisa ser entendido como
autonomia e liberdade que não sejam limitadas por nenhuma obrigação socialmente
vinculativa. O mesmo pode-se dizer do individualismo da desigualdade, que tira a
consequência dessa liberdade, baseando-se na variedade infinita dos talentos
humanos, o que torna essa dessemelhança incompatível com a igualdade. Ambas as
formas de individualismo, apesar da sua contradição fundamental, coincidem em um
mesmo ponto: só podem desenvolver-se na medida em que a extensão quantitativa
do círculo que contém o indivíduo ofereça espaço, incitação e matéria para isso.
Voltando a correlação anteriormente referida (entre uma individualidade
firmemente constituída e muito apreciada, e uma convicção cosmopolita que
superava com a indiferença o entorno social imediato do indivíduo), gostaríamos, em
primeiro lugar, de lembrar a doutrina estoica 21. Enquanto para Aristóteles, o liame

20
Contradictio in adjecto é, em latim, uma contradição entre partes de um argumento. Ocorre quando
a característica denotada pelo adjetivo está em contraste com o substantivo. (NT)
21
Doutrina fundada por Zenão de Cício (335 – 264 a.C.), e desenvolvida por várias gerações de
filósofos, que se caracteriza por uma ética em que a imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a
aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, o único apto a
experimentar a verdadeira felicidade. (NT)
Georg Simmel | 783

político social que liga o indivíduo com os outros é a fonte das normas éticas, o
interesse estoico, no que diz respeito à prática, refere-se apenas à pessoa individual.
A elevação da pessoa para alcançar o ideal prescrito pelo sistema virou a
preocupação exclusiva da prática estoica, tanto que as relações dos indivíduos entre
si apenas apareciam como um meio para conseguir aquele fim individualista ideal. É
verdade, todavia, que o conteúdo desse fim era determinado pela ideia de uma razão
universal que atravessa tudo o que é individual. Essa razão – de cuja realização no
homem, conforme o ideal estoico, todos os indivíduos participavam –, constituía o
laço de igualdade e fraternidade entre todos eles, acima das barreiras da
nacionalidade e das fronteiras sociais. Por isso, o individualismo dos estoicos
encontrou complemento no seu cosmopolitismo. A ruptura dos laços sociais mais
próxmos (favorecida nessa época pela situação política e por considerações
teóricas) deslocava o centro de gravidade do interesse ético ora para o indivíduo, ora
para o círculo mais amplo, a saber, aquele ao qual pertence qualquer ser humano.
A realidade histórica seguiu esse esquema com inúmeras mudanças. Se o
cavaleiro medieval combinava um modo de vida orientado para a demonstração do
valor individual e um marcado caráter cosmopolita, se a sua determinação de contar
apenas consigo mesmo deixava espaço às formas que criaram uma cavalaria
europeia acima de todas as fronteiras nacionais, essa fórmula ressume também as
tendências que estiveram tão vivas no antigo Império germânico e que causariam a
sua desagregação. O Império se dissolveu pelo particularismo de seus elementos e
pelas relações que o vinculavam aos outros protagonistas da política global
europeia: a retração e a extensão fragmentaram a entidade nacional intermediária.
Aquele particularismo já havia sido provocado pelo mesmo conjunto de fatores, ainda
que em outra escala. Quando elementos já diferenciados ou que estão predispostos
a constituírem-se como diferentes são integrados à força a uma unidade maior, a
consequência costuma ser ainda mais incompreensão e rejeição mútua. O grande
quadro comum que exige diferenciação para poder subsistir, também provoca atritos
recíprocos entre os elementos, um agravamento das oposições que não teria surgido
sem esse constrangimento dos elementos no seio do grupo. A unificação dentro de
um grande conjunto comum é um meio de se individualizar, mesmo a título
transitório, e de tomar consciência de si. Pode-se dizer que foi a própria política de
784 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

supremacia mundial dos imperadores medievais que desencadeou (se não mesmo
suscitou) o particularismo dos povos, das províncias e os principados. A reunião
intencional – e parcialmente conseguida pelos imperadores germanos –, de
numerosos territórios heterogêneos em um grande conjunto, primeiro criou e tornou
consciente o que se supunha deveria ter sido eliminado mais tarde: a individualidade
das partes.
O mesmo esquema seguiu de um modo ainda mais visível a cultura da
Renascença italiana. Estabeleceram-se a bases da individualidade perfeita e
defendeu-se uma concepção geral e moral que ia muito além dos limites do estrito
quadro social. Dante deixa isso bem claro quando diz que, apesar de seu amor
visceral por Florença, ele e os seus iguais tinham “por pátria o mundo, como os peixes
o mar” 22 . De uma maneira indireta e a posteriori esse ponto encontra a sua
confirmação no fato de que as formas de vida criadas pela Renascença italiana foram
amplamente aceitas pelo mundo ocidental, precisamente porque ofereciam então
uma margem de manobra sem precedentes à individualidade. Como sintoma dessa
evolução, vamos nos limitar aqui a evocar a pouca importância atribuída à nobreza
nessa época. A nobreza, aliás, só tem sentido próprio quando representa um círculo
social claramente diferenciado de todos os outros por sua forte coesão – para baixo,
mas também para o alto. Negar o seu valor significa o desaparecimento de ambas as
características; denota o reconhecimento da dignidade superior da pessoa humana
independentemente do círculo em que ela tenha nascido e traduz também um
nivelamento no que se refere àqueles sobre os quais se ergueu o anterior
engrandecimento. Esses dois fatos encontrarão uma expressão sem reservas na
literatura renascentista.

Digressão sobre a nobreza

O desenvolvimento social criou com a nobreza uma daquelas estruturas


intermédias que configura a correlação que enunciamos. Esse caráter de estrutura
intermédia aparece no duplo sentido que, no começo dos presentes estudos,

22
“Nos autem, cui mundus est patria velut piscibus equor”. A frase pertence a De vulgari eloquentia,
I.VI.3. (NT)
Georg Simmel | 785

atribuímos ao conceito de sociedade em geral. A nobreza é uma forma


supraindividual, sociológica, da reunião de indivíduos que se insere entre os
elementos individuais e o círculo maior que compreende a própria nobreza, assim
como a associação profissional, a família e o partido político. E por outro lado, ela é
um conglomerado concreto de pessoas que constitui um nível intermediário entre o
poder dominante e a grande massa do grupo político23. Esse duplo conjunto se baseia
em características tão sutis e tão distantes do objeto principal deste capítulo que nos
pareceu preferível apresentá-las separadamente.
A referida posição intermédia que a nobreza ocupa entre os elementos
hierarquicamente superiores e inferiores do grupo é formalmente distinta da que
antes observávamos na “classe média”. Isso, porque a peculiaridade sociológica das
camadas médias consiste em estar abertas nas suas duas fronteiras, enquanto a
nobreza se caracteriza por estar fechada (com muitas nuances) em ambos os
extremos. Uma é susceptível de expandir-se para cima e para baixo, a outra se retrai
nas duas direções. Embora, como é fácil de compreender, a nobreza esteja mais
disposta a abrir suas fronteiras para cima e fechá-las para baixo, há exemplos
históricos nos quais apareceu enfrentada ao soberano como um corpo
absolutamente autônomo, fechado e centrado em torno de seus próprios interesses.
Aproveitando essa posição independente em ambas as direções, a nobreza agiu de
duas maneiras: inserindo-se como uma cunha entre o monarca e grandes setores do
povo, para obstruir as ações do primeiro em benefício do segundo – como se viu com
frequência na época da servidão camponesa e de diversas maneiras nas estruturas
feudais – mas exercendo também uma ação unificadora, cumprindo uma função de
intermediário, representante de um dos extremos junto do outro – como o fez amiúde
na Inglaterra. Quando ambos os limites não podem ser claramente definidos nos
países monárquicos, a formação da nobreza fica muito tolhida – como é o caso na
Turquia onde nunca existiu uma nobreza de verdade. Isso é fruto, em parte, do fato
de o Islã considerar o povo dos crentes como uma aristocracia, uma elite perante os
infiéis, e em parte, da supremacia absoluta do sultão, que não admite intermediários

23
Naturalmente, a segunda destas formas só se aplica a nobreza dos estados monárquicos, mas pela
coerência do presente capítulo nos referiremos aqui apenas a ela, e não à nobreza dos regimes
aristocráticos. (NS)
786 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

nem deixa aparecer uma instância que teria ficado por natureza e direito mais
próxima do trono do que qualquer outra. Do mesmo modo, se não existe na Rússia
uma aristocracia capaz de constituir um autêntico estamento, senão apenas
aristocratas isolados que, às vezes, constituem um círculo – do que falaremos com
mais detalhes adiante –, isso se deve igualmente à posição absolutista do czar e ao
fato de a massa subalterna do povo também não chegar, na prática, a tecer uma teia
de relacionamentos que possa provocar a concentração em um corpo homogêneo
com os que estão acima dela. Ao invés, nos países em que os estamentos estão mais
desenvolvidos e as relações entre as diferentes camadas sociais são mais intensas,
em uma complexa mistura de síntese e antítese, a dupla fronteira da nobreza, que é
também é uma dupla relação, experimentará ainda mais variações – que diluirão as
características da própria nobreza, mas podem renovar sua importância, com o qual
a nobreza muitas vezes perderá as características da sua posição, embora graças a
isso adquira uma importância renovada. Napoleão I o demonstrou até a caricatura
pelas razões que reservadamente invocou quando criou a sua nova nobreza. Contam
que ele dizia aos democratas que, a caste intermediare que daí resultaria, seria
decididamente democrática porque, todos e em todo momento, poderiam formar
parte dela sem preconceitos hereditários. No entanto, quando ele falava aos grandes
senhores, preferia dizer que o novo corpo protegeria o trono. Ao se dirigir aos
monarquistas moderados o Imperador lembrava que a nova nobreza, ao transformar-
se em um poder dentro do Estado, devia impedir todo poder absoluto. E quando os
interlocutores do Imperador eram os jacobinos, ele entendia que a sua criação devia
aniquilar de vez a antiga nobreza. Finalmente, Napoleão I tratava de tranquilizar aos
aristocratas de velha cepa, convidando-os a aceitarem as novas dignidades porque
elas iriam simplesmente reavivar as de outrora...
Essa posição em duas frentes da nobreza se funda em um sentimento de
segurança e independência e se reflete em outra dualidade voltada mais para o
íntimo. A nobreza nasce com algumas pessoas que, por uma razão ou outra, se
encontram em melhor situação que as demais. Contudo, uma vez que ela apareceu,
certas pessoas impõem-se às outras por pertencer à nobreza. Os numerosos e


“Casta intermédia”. Em francês no texto de Simmel. Esses seriam os termos usados polo Imperador
para referir-se a ela. (NT)
Georg Simmel | 787

conhecidos “privilégios” da nobreza servem de exemplo, sobre o qual não


acreditamos que seja preciso voltar. Vale a pena insistir, em compensação, sobre
outro aspecto de sua posição no que se refere às limitações e desvantagens que ela
pode carrear consigo. Florença viu nascer por volta do ano 1300 um movimento
democrático radical que chegou a impor aos nobres restrições e obrigações
particularmente pesadas, ao ponto de a nobreza se tornar um fardo. A preeminência
original da nobreza continuava, mas com um sinal negativo. Era como se a condição
excepcional dos nobres subsistisse sem o habitual apanágio de determinada posição
e só para justificar as restrições e sacrifícios especiais que eles assumiam. Algo
análogo se encontra em uma disposição legal do século XVIII do muito democrático
cantão suíço de Turgóvia. Tratava-se de suprimir os privilégios estamentais e, para
isso, foi introduzido na lei fundamental do cantão um preceito segundo o qual,
desempenhar uma função pública exigia renunciar à nobreza. Por conseguinte, recaía
sobre os nobres, de certo modo, a pena de proibição do exercício de função pública
– restrição que lhes foi imposta em contrapartida de suas prerrogativas sociais.
Essas desvantagens impostas à nobreza aparecem com seu verdadeiro viés
paradoxal quando são o reverso de seus privilégios penais. Enquanto inúmeras vezes
as faltas do nobre têm penas mais brandas que as do plebeu, também se encontram
certos casos como o da corporação Reinoldsguilde, no Dortmund 24 medieval. Era
uma guilda extremamente ilustre e distinta. Conhecida como a “a guilda maior”, se
seus membros cometessem um ataque à integridade física ou moral de algum
integrante de qualquer outra corporação, deviam pagar, para além das sanções
pecuniárias normais, aplicáveis a todo indivíduo que houvesse cometido o mesmo
agravo, uma multa adicional ao conselho da própria guilda. Uma disposição da carta
de foral da cidade de Valenciennes25 do século XII vai ainda mais longe. Fixou-se ali
determinada pena para o furto cometido por um vilão ou um burguês. No entanto, a
pena de apropriação indébita para um cavaleiro era bem diferente. É que se supunha
que um nobre não furta, mas pilha ou saqueia. Furtar, não estava na sua natureza,
um nobre era incapaz (por assim dizer) de furtar e, quando se apropriava de qualquer

24
Dortmund é uma importante cidade da Vestefália alemã, na região do Vale do Rhur. Na Idade Média
era uma cidade livre imperial. (NT)
25
Valenciennes é uma cidade e comuna do norte da França no departamento do Nord junto ao rio
Escalda. Historicamente, foi a capital do condado borguinhão do Hainaut. (NT)
788 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

coisa sem ter direito para tal, era com violência, em um gesto de pilhagem – que fora
do contexto de uma campanha militar vitoriosa era considerado um crime punido
com uma sanção muito mais grave que a do furto. A posição nobre do cavaleiro o
impedia de sofrer uma punição menor. O nobre posiciona-se, logo de início, a uma
altura tal que, se peca, deve pecar gravemente – pois que pessoa tão proeminente
não pode cometer uma falta tão mesquinha como o furto, sancionada com uma pena
menor.
Os direitos e os deveres da aristocracia sacerdotal bramânica se contrapõem
de modo mais sutil e até mais radical. Provavelmente nunca existiu uma hierarquia
que tenha dominado tão incondicionalmente e possuído prerrogativas tão
fantásticas como a dos brâmanes. Ao considerarmos, porém, a vida desses
sacerdotes, que gozavam de poder tão inédito, que pronunciavam sentenças
Inapeláveis e pareciam ser os únicos com direitos no meio do povo – a tal ponto de
que o próprio rei não era mais do que o súdito do sacerdote –, ver-se-á que essa vida
era de uma dureza tão insuportável, de severidade tal nas suas formas, fórmulas,
mortificações e restrições, que quiçá poucos europeus iriam querer pagar esse preço
para desfrutar dos direitos do sacerdote brâmane, o homem mais poderoso da Índia
tradicional, e também o menos livre. A liberdade, no entanto, tal vez teria parecido
desprezível ao brâmane, porque esse grau de autonomia significaria que algum
momento da vida poderia ser indiferente para ele. Para a massa pode ser indiferente
fazer isso ou aquilo, mas para o membro da alta nobreza cada momento deve estar
prefixado por uma lei, porque quaisquer instantes são igualmente importantes. Os
fenômenos desse tipo estão condensados na máxima noblesse oblige 26 . Todos
esses constrangimentos e entraves às vantagens da nobreza são, na realidade, a
marca indispensável de sua distinção e de sua exclusividade. Havia muitas coisas
permitidas à massa que eram proibidas aos nobres. Nesse tratamento diferenciado
está implícito o profundo menosprezo e a indiferença que inspiram tais condutas
consideradas indignas de uma norma estrita. As pessoas não nobres podem aderir
(se o desejarem) às mesmas proibições. Contudo, isso não tem nada a ver com sua

26
Em francês no texto alemão de Simmel. . Esta expressão significa, à letra, “nobreza obriga” e é
utilizada quando se pretende dizer que pertencer a uma família de prestígio ou ter um nome honrado
ou famoso obriga a proceder de uma forma à altura do nome que se tem. (NT)
Georg Simmel | 789

posição e suas obrigações sociais. Não é mais que uma questão do foro privado e
deveria ser tratada como tal. Para o nobre, reitera-se, é uma obrigação social, ou mais
exatamente é um privilégio de sua condição não se permitir fazer muitas coisas.
Talvez o melhor exemplo desse tipo de coisas seja o exercício do comércio, cuja
proibição acompanha toda a história da nobreza desde o tempo dos antigos egípcios.
Se a nobreza não cessa de repetir quod licet Jovi not licet bovi27, seu princípio contém
também a máxima oposta, quod licet bovi not licet Jovi. Se a forma sociológica da
nobreza se constrói a partir da delimitação estrita do grupo que diz respeito ao ser
das pessoas (tanto que as diferenças individuais são apenas símbolos de uma
maneira de ser perfeitamente autônoma e fechada), essa diferenciação a respeito de
tudo o que não é nobre só é obtida com as duas determinações juntas: a nobreza tem
direitos que os outros não possuem, e vice-versa.
Evidentemente, a convivência em um grupo cria, pelas condições íntimas de
sua ação recíproca, essa estrutura específica da nobreza que manifesta seu caráter
de forma ao conservar simultaneamente seus traços essenciais através da
diversidade infinita dos grupos e de suas outras características formais e materiais.
A nobreza da antiga Roma ou do reino normando, entre os indianos ou sob o Ancien
régime europeu 28 , oferece traços sociológicos coincidentes apesar da extrema
diferença dos gêneros de vida – traços que se encontram ainda nas suas formas
rudimentares, lábeis e passageiras em todos os pequenos grupos nos quais uma
parte se separa das outras por considerar-se “a aristocracia”, quer no quadro de uma
família estendida, quer no de uma classe de trabalhadores ou de uma ordem religiosa.
Com referência à aristocracia em sentido estrito, ilustrou-se essa comunidade de
traços, fazendo notar que “os nobres se conhecem melhor em uma noite que os
burgueses em um mês”. Isso se deve, evidentemente, ao fato de que as condições
comuns da existência na nobreza vão bastante além do estritamente pessoal e se
tornam o pressuposto natural de toda relação. Os aristocratas coincidem em tão
grande medida nos seus interesses, no seu modo de conceber o mundo, na sua
consciência de si próprios, no significado do lugar que ocupam na ordem social e são

27
Máxima latina que significa: “o que está permitido a Júpiter, não pode fazê-lo um boi”. (NT)
28
Antigo Regime europeu. Modo de viver característico das populações europeias durante os séculos
XV, XVI, XVII e XVIII, isto é, desde as descobertas marítimas até às revoluções liberais. Em francês no
texto alemão de Simmel. (NT)
790 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

tão conscientes dessa conformidade que podem passar diretamente às


circunstâncias pessoais muito antes que os membros de outras classes, os quais
devem primeiro saber com que base comum podem contar. Os nobres não precisam
para “travar conhecimento”, para manifestar a sua individualidade conforme a
imagem que dela desejam oferecer a outrem e ao mundo 29, de tantas preliminares
como os burgueses – que, primeiramente, têm de procurar o a priori a partir do qual
emerge a particularidade de suas ideias, de seus interesses e da sua maneira de ser.
Essa homogeneidade da posição sociológica formal se manifesta em uma
série de fenômenos históricos. Já se chamou a atenção para a curiosidade de muitas
grandes famílias nobres de diversos países europeus serem de origem estrangeira.
Na Inglaterra, os Fitzgerald e os duques de Leicester procedem de Florença, assim
como os duques de Portland, da Holanda. Na França, os de Broglie são do Piemonte,
os duques des Cars, de Perúgia e os les Luynes, de Arezzo. Na Áustria, os Clary
procedem de Florença, do mesmo modo que na Prússia, os Lynar vêm de Faença e
na Polônia, os Poniatowski são de Bolonha. Na mesma Itália, berço de tantas
linhagens nobres, os Rocca procedem da Croácia, os Ruspoli, da Escócia, os Torlonia,
da França, etc. A nobreza, no entanto, parece muito pouco afeita a essas
transplantações, devido aos vínculos com a propriedade fundiária e o nacionalismo
tradicional que acompanha frequentemente a concepção conservadora do mundo.
Devem ser muito fortes, por conseguinte, os motivos que propiciem semelhantes
mudanças naquela que se chamou república internacional dos nobres.
Nota-se esse fenômeno também nas associações particulares da nobreza
nacional. Até o início do século XIX, os nobres alemães mantinham escassas
relações entre si. A maior parte ocupava-se de tratar dos seus assuntos dentro do
círculo residencial estreito ou da pequena pátria. Durante as Guerras Napoleônicas30,
porém, se encontraram os nobres alemães das mais variadas regiões, e isso criou
entre eles um contacto que conduziu à criação de organizações bastante singulares

29
Vide alcance desta expressão no começo do Capítulo V da presente obra. (NT)
30
As Guerras Napoleônicas desencadearam uma série de conflitos e alianças de nações europeias
para enfrentaram o Império francês liderado por Napoleão Bonaparte. Este conflito foi uma
continuação direta das chamadas Guerras Revolucionárias, que começaram em 1792 durante a
Revolução francesa. Inicialmente, o poderio da França cresceu exponencialmente, com os exércitos
de Napoleão conquistando boa parte da Europa. (NT)
Georg Simmel | 791

como a chamada “cadeia dos nobres” (Adelskette). Tal cadeia era uma associação
semissecreta que apareceu na época do Congresso de Viena31. A nobreza sentiu que
a Revolução francesa tinha enfraquecido o seu papel, mesmo nos Estados alemães,
em virtude da manumissão dos camponeses, e procurou, então, aproveitar a
solidariedade entre os nobres para criar uma estrutura versátil que lhes permitisse
recuperar a sua preponderância. Essa cadeia da nobreza germânica afirmava ser, nos
respectivos estatutos, estranha a toda atividade política. Mesmo que isso implicasse
boa parte de engano ou ilusão, expressava o essencial: a indiferença das fronteiras
políticas ou geográficas para tudo o que é comum a qualquer nobre por ser nobre. A
semelhança dos interesses puramente materiais não teria sido suficientemente forte
para criar essa união pangermânica da nobreza não fossem os vínculos profundos
da forma da nobreza – ainda a interpretar. Por fim, um último exemplo: explica-se
frequentemente a grande importância da nobreza no Império Austro-Húngaro e as
prerrogativas consideráveis que lhe foram concedidas em todo o tempo nesse país,
sugerindo que, entre os componentes extremamente heterogêneos e díspares da
monarquia dos Habsburgo, a nobreza representava um elemento qualitativamente
uniforme e homogêneo que favorecia de maneira significativa a coesão do conjunto.
A igualdade formal da posição da nobreza nas diversas partes desse país compósito
teria favorecido uma nobreza austro-húngara quando não existia uma verdadeira
nação com esse nome – pois que a unidade que possui a nobreza graças a sua
posição sociológica constante predispô-la a servir de cimento à unidade do Império.
Todos os casos apresentados até agora não são mais que fenômenos mais ou
menos exteriores, decorrentes da estrutura sociológica interna à nobreza, mas ainda
não permitem conhecer a sua essência. A análise sociológica da nobreza se
concentra, de fato, na relação absolutamente singular do conteúdo social geral da
vida desse subgrupo com a individualidade de seus membros. O indivíduo não é
simplesmente integrado a uma unidade de outros indivíduos que existem antes dele,
com ele e após dele, associados de acordo com uma fórmula que não se encontra

31
O Congresso de Viena foi uma conferência entre embaixadores das grandes potências europeias
celebrada na capital austríaca, entre setembro de 1814 e junho de 1815, com a intenção de redesenhar
o mapa político do continente europeu após a derrota da França napoleônica na primavera anterior.
Esse congresso pretendia também restaurar os tronos das famílias reais derrotadas pelas tropas de
Napoleão. (NT)
792 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

em mais nenhum caso: a especificidade consiste em considerar que o que enaltece


a cada membro individual do subgrupo é o melhor e mais precioso possuído pelo
conjunto. O presente estudo tem amiúde insistido sobre a proximidade entre o nível
global de um grupo e o valor de tudo o que é realmente compartilhado, por um lado,
e o nível dos membros menos importantes, por outro. Essa solução se impõe de
modo que os inferiores possam ter acesso ao que deve ser comum para todos,
porque geralmente o superior pode se rebaixar ao nível do inferior, mas este último
não pode alcançar seu nível superior – um pouco como quando cem homens devem
marchar no mesmo passo, e o comprimento da passada é determinado por aquele de
marcha mais reduzida. Na nobreza, em compensação, o pressuposto é o contrário. O
valor da individualidade de um grupo nobre (tanto no sentido mais restrito da família
nobre, como no mais amplo da nobreza de todo um país ou de uma época) participa
do brilho alcançado pelos membros mais distintos desse grupo. É como se todos se
atribuíssem a herança do estamento, a benefício de inventário 32 , e os valores
positivos acumulados pelo grupo em razão dos méritos, das distinções e das
honrarias dos melhores refletissem seu esplendor em cada indivíduo, de um modo
mais direto do que em qualquer outro grupo. Se a percepção intuitiva dessa
circunstância alimenta o preconceito que os outros estamentos têm a respeito da
nobreza, ela própria a reivindica, por seu lado, como motivo de orgulho e ponto de
apoio individual e social oferecido ao conjunto.
A nobreza revela uma perseverança peculiar, proveniente da sua estrutura
sociológica, para a conservação de seu “espírito objetivo”, das contribuições
individuais cristalizadas em tradições, em formas fixas, resultados de trabalhos, etc.
Aquilo que em cada família nobre considera-se motivo de distinção, glória e valor
contribui à posição geral da “nobreza” que, por conseguinte, deve distinguir-se de seu
poder e patrimônio meramente objetivos. Essa transferência se manifesta inclusive
em uma forma muito curiosa de sentido inverso. Nas antigas organizações gentílicas,
a nobreza surgia frequentemente porque o chefe da gens era tradicionalmente
escolhido na mesma estirpe. Essa linhagem não era privilegiada de antemão, mas era

32
Simmel alude aqui metaforicamente ao direito que algumas legislações concedem aos herdeiros de
promoverem o inventário dos bens antes de aceitarem ou rejeitarem a herança, para ressaltar que
unicamente os valores positivos acumulados pelos melhores membros do grupo beneficiarão aos
novos integrantes do conjunto. (NT)
Georg Simmel | 793

preferida na esperança de que forneceria como de costume uma pessoa apta para
exercer a função de chefe. Quando posteriormente a família toda foi enobrecida, o
mérito e dignidade que algum de seus membros tinha adquirido outrora foram
creditados como merecimentos de toda estirpe, projetando-se sobre o futuro de seus
integrantes. A metáfora dos metais nobres, da “nobreza” da prata ou do ouro, é
instrutiva. Ao que nos parece, essa nobreza dos metais, em primeiro lugar, diz
respeito a sua relativa inalterabilidade. Quer dizer, ao fato de poder conservá-los
permanentemente devido ao seu valor, sem que as fusões sucessivas mudem outra
coisa que a sua forma, enquanto a substância de seu valor fica relativamente
constante. Verifica-se algo de semelhante no sentimento que a nobreza tem de si e
que inspira nos demais. É como se seus membros individuais não fossem mais do
que formas de uma substância valiosa que se conserva através de toda a série
hereditária.
A relação que o indivíduo mantém com seu grupo histórico adquire assim um
matiz particular. A nobreza reivindica uma imortalidade do valor que suas
encarnações sociológicas tratam de concretizar. Se na Rússia não existiu uma
aristocracia, um estamento fechado, ao menos até o czar Teodoro III , o antecessor
de Pedro I, o Grande, tal deve-se ao fato de que as honrarias e dignidades atribuídas
a cada indivíduo eram exclusivamente recompensas por serviços prestados,
decorriam do seu labor de funcionário – circunstancia que, por sua vez, exigia uma
classificação das famílias. Isso porque um singular princípio era predominante:
ninguém podia estar às ordens de um superior que houvesse estado às ordens do pai
do candidato. Esse princípio resultou numa série de conflitos sobre fatos e direitos
das familiais interessadas, além de rivalidades e emulações declaradas e encobertas.
Processo que evitou, no entanto, a constituição de um estamento fechado em si
mesmo e fez que as energias e excelências particulares não ficassem concentradas
naquela substância comum a todos, única e permanente, que constitui a estrutura
sociológica da nobreza.


Teodoro III (1661 – 1682) foi czar da Rússia de 1676 até a sua morte. Era o filho mais velho
sobrevivente do czar Aleixo com a sua primeira esposa Maria Miloslavskaia. Ascendeu ao trono após
a morte do seu pai e foi sucedido pelo seu irmão Ivan V e o seu meio-irmão Pedro I. Tinha problemas
de saúde desde a sua infância e morreu um pouco antes de completar 21 anos. As notícias sobre a
sua morte levariam à revolta de Moscou de 1682.
794 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

De quanto ficou dito, emerge a razão pela qual a nobreza é tão apegada ao
princípio da hereditariedade. No que diz respeito à antiga estrutura clânica, defendeu-
se a ideia de que os nobres dos diferentes clãs pertenceriam a um único estamento,
que tenderia sempre à endogamia – ao casamento com membros do próprio grupo
para conservar sua nobreza –, enquanto o clã, como tal, era normalmente exogâmico
– e não permitia, por conseguinte, o cruzamento de indivíduos aparentados. Se a
nobreza é uma espécie de fundamento ou base sólida e indestrutível que legitima a
todos os seus membros e é transmitida às gerações vindouras, compreende-se que
qualquer nobre deve provir unicamente desse círculo – e que ademais não possam
misturar-se com ele os indivíduos em cujo círculo não se herde as vantagens que
constituem o fundamento da nobreza. É que só dessa maneira assegura-se que
todos os membros participam, efetivamente, da força, das ideias e da importância do
conjunto, para que aquela relação paradoxal em que o valor do conjunto recai em
cada indivíduo seja realizada. Essa reprodução interpares cria a condição para que o
estamento adquira seu fechamento e autossuficiência sem igual – que o tornam
capaz de atender às próprias necessidades e, por assim dizer, privam-no até do
direito de precisar de algo além de si mesmo.
A nobreza é assim semelhante a uma ilha no mundo, comparável à obra de
arte, em que cada uma das partes extrai seu sentido do conjunto – e cuja moldura
indica que não penetra nela o mundo exterior, nem necessita recorrer a tal esfera.
Essa é a forma que confere à nobreza grande parte do atrativo estético que exerceu
em todas as épocas. Tal atração não depende unicamente do indivíduo, não se refere
apenas a sua boa família e aos cuidados e exercícios corporais que, ao longo de
gerações, aprimoraram suas formas físicas e sociais melhor que as de outros
estamentos. A imagem de conjunto da nobreza está aureolada pelo brilho da
sedução, que deriva do prazer estético que inspira sua forma independente e
autossuficiente e a harmonia de suas partes – traços que, como vimos, estão
presentes também na obra de arte. É verdade que esse reflexo de uma realidade
permanente mesmo ante os acidentes múltiplos e mutáveis da fisiologia e da história
sobre o ser individual, corre o risco de desembocar no vazio de uma vida decadente.
Os conteúdos e papeis transmitidos socialmente, se precisarem transformar-se em
um verdadeiro valor vital, devem ser lastreados, em algum momento, em um indivíduo
Georg Simmel | 795

e na sua energia – única potência moral capaz de dar soluções estéticas a algo. Por
isso as mais eminentes figuras da nobreza levaram uma existência pessoal mais
segura de si, demonstraram um sentimento uniforme de independência e de
responsabilidade individual. Esse é o resultado da intimidade (única entre as formas
sociológicas) com que uma energia (que perpassa as três dimensões do passado, do
presente e do futuro) se entrelaça com a existência dos indivíduos e se transforma
em um valor vital mais elevado. Contudo, quando o fator individual é fraco demais
para dar forma pessoal à substância supraindividual, sobrevêm os casos de
decadência referidos há pouco. Inevitavelmente, a própria substância se transforma
em mera forma, e o sentido da vida se reduz a manter a honra específica do
estamento, a compostura e as aparências, como finalmente aconteceu com a
nobreza do Ancien régime.
A importância da “árvore genealógica” simboliza profundamente essa relação
que o indivíduo mantém com a família – e, mais além, com o grupo nobiliário em
geral. A substância que dá forma ao indivíduo deve ter passado pelo tronco único do
conjunto, assim como a substância que cria o ramo e o fruto é a mesma que tem
produzido também o tronco. Essa estrutura sociológica explica o desdém pelo
“trabalho” que a aristocracia pôs em evidência ao longo de toda a história social. Só
nos últimos tempos a democratização da economia parece ter produzido alguma
mudança. No verdadeiro “trabalho”, o sujeito dedica-se a um objeto de cada vez e,
embora o fruto do trabalho volte para ele como troca, a ação fica voltada para (e se
esgota em) a feitura de um produto impessoal – quer se trate da formação ou
transformação de noções em uma pesquisa, da formação pedagógica de um
discípulo ou da elaboração de qualquer bem material. Ora, isso contradiz a
significação fundamental da vida para os aristocratas. Para eles, essa representação
mental é absolutamente pessoal e relaciona-se ao próprio ser do sujeito, ao seu valor
e àquilo que procede diretamente dele, determinado pelo terminus a quo – enquanto
que o trabalho constitui uma atividade eminentemente utilitária dirigida a um objeto
exterior, determinada pelo terminus ad quem. Por isso Schiller distingue as naturezas
vulgares, que contam com o que elas fazem, das naturezas nobres, que contam com
o que elas são. O nobre se ocupa, mas não trabalha – determinações que aparecem
sob uma multidão de variantes e desvios nos casos empíricos específicos. Guerra e
796 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

caça, as típicas ocupações históricas da nobreza, não são “trabalho” no verdadeiro


sentido da palavra, apesar de toda a fadiga e do esforço vinculados a elas, porque o
fator subjetivo predomina claramente aqui sobre o objetivo. O resultado não aparece
(como no trabalho) dissociado da personalidade do sujeito, nem lhe absorve a sua
energia, adquirindo, assim, uma personalidade alheia à de seu produtor. Isso porque
o importante naqueles exercícios nobiliários é a proeza, a façanha do próprio sujeito.
Talvez a única analogia com o tipo de atividades do aristocrata seja o mister do
artista, que também não cria o objeto em si, mas comunica uma forma que representa
a expansão do movimento subjetivo de sua exclusiva interioridade. Há, no entanto
uma sutil diferença. A atividade do artista e seu valor decorrem desse momento único
e misterioso de sua individualidade por trás do qual não encontramos nenhuma
instância ulterior que sustentaria ou se expressaria no criador, enquanto a atividade
e a consciência específicas do nobre repousam nessa substância transmitida pela
família e pelo estamento, que só encontrou no aristocrata uma forma individual e
absolutamente firme e senhora de si.
Contudo, essa caracterização da nobreza pela acumulação ou cristalização
ideal de patrimônios materiais ou simbólicos apresenta uma curiosa exceção. Na
China uma disposição faz com que a nobreza hereditária diminua aos poucos. Para
isso teve que cair por terra o a priori individual da essência da nobreza, a saber, a
indivisibilidade e imprescritibilidade dos haveres e merecimentos, das dignidades e
honrarias, dos direitos e deveres que foram adquiridos no seio da família e do
estamento e dos quais participa cada membro. Na China, a nobreza nunca e
concedida a ninguém de maneira absoluta. Não existe ali essa nobreza que se
mantém permanentemente em uma família, permitindo uma acumulação de
importância e de poder. Contrariamente, o que conta no Império do Meio é uma
gradação, finita ainda que extremamente tênue, das dignidades que ela traz consigo
– a tal ponto que as nossas línguas indo-europeias não parecem dar conta das sutis
nuances dos graus. Nessa série, o filho ocupa sempre um grau inferior ao do pai, de
maneira que, após certo número de gerações, a nobreza acaba. Se as nossas
informações estão corretas, a mais alta nobreza, a dos príncipes, é concedida por 26
gerações ao final das quais a família desce para a burguesia – rebaixamento que se
aplica até mesmo aos príncipes da família imperial que não chegaram ao poder. Essa
Georg Simmel | 797

anomalia, só pode acontecer em uma nobreza de funcionários e segue a mesma


trajetória que a evolução normal, mas com sinal negativo. O valor da substância
nobiliária, na sua evolução normal (embora possa partir de uma concessão original),
acresce gradualmente com a acumulação progressiva de feitos de merecimento.
Contrariamente, na China, o máximo valor dessa substância nobre é plenamente
concedido de uma única vez, e depois é consumido aos poucos com a sucessão
progressiva das gerações. No Taiti, por sua vez, vigora a forma de evolução normal,
mas exagerada de uma maneira muito instrutiva. Quando um nobre taitiano tem um
filho, o pai abdica no descendente a sua dignidade social, porque “o filho tem um
ancestral mais que o pai”. Ainda que os taitianos não conhecessem a literatura
satírica popular alemã referida ao Berlim do século XIX, quem tenha alguma
familiaridade com ela dificilmente deixará de associar o ditado daqueles ilhéus do
Pacífico meridional com um conhecido verso de Adolf Glassbrenner33. Referimos-nos
àquele em que descreve a nulidade insultante e a gravidade afetada de um nobre e
conclui dizendo que, todavia, podia estar orgulhoso de algo, já que “assim que tiver
morrido, será também um ancestral”. A ideia de fundo é a mesma dos taitianos.
Quanto a seu ditado, tendo em conta a base sociológicoa que a nobreza tem
defendido com grande sucesso ao longo de toda a história europeia, ele não carece
de sentido – como haverá quem sugira, a julgar por certas situações sociais de
conjunto e por certos tipos de decadência nos quais já não subsiste aquela base.
De fato, essa base pode ser definida aproximadamente da seguinte maneira,
nos mais diversos gêneros de vida. Todo homem combina doses variáveis de
predestinação e contingência, de formas peculiares conferidas pelo nascimento e de
elementos incorporados depois, de herança social e de gestão individual desse
legado. Comprovamos como em todos os indivíduos as especificidades
socioculturais refletidas principalmente na língua, na religião e nas maneiras de agir
de seu grupo étnico, de seu estamento e da sua família (em suma, tudo aquilo que o

33
Adolf Glassbrenner (1810 – 1876) foi um escritor satírico de origem prussiana, que integrou o
movimento da Jovem Alemanha. Depois de trabalhar por um curto período de tempo como
escriturário, ingressou no jornalismo e em 1831 editou o periódico Dom Quixote que foi suprimido em
1833 devido às suas tendências revolucionárias. A seguir publicou duas séries de crônicas e imagens
da vida de Berlim entre 1833 e 1858, e assim tornou-se um dos fundadores da moderna literatura
satírica alemã de caráter popular. (NT)
798 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

torna depositário de conteúdos e de normas preexistentes), vêm junto com o


imprevisível e o pessoal, fruto de seu livre arbítrio. O primeiro representa uma espécie
de a priori, e o segundo seria como uma singularidade que, combinada com o
primeiro, produz o fenômeno empírico. As proporções dessa mistura variam
fortemente nos grandes tipos sociais, e adquirem uma forma absolutamente original
no caso da nobreza. Isso porque a determinação científica por conceitos abstratos
da nobreza independe naturalmente do fato de que as complicações da realidade
interfiram nessas proporções puras e constantemente as confundam,
descaracterizem ou singularizem. Em nosso caso essas determinaciones
transmitidas inicialmente confluem como as águas de um rio: enquanto todos os
conteúdos da vida (a educação como o casamento, a profissão como as opiniões
políticas, as tendências estéticas como o estilo de vida) estão ligados ao estamento,
todas as normas que proporcionam ao indivíduo o material de sua vida como um
produto semiacabado passam por um único canal. É verdade que sempre existiram
especificidades dadas e vinculativas de um rigor igual ou superior, por exemplo, nas
corporações de ofício e no sacerdócio, nas profissões hereditárias e nas restrições
de casta ou classe. O que distingue a nobreza, porém, é que o outro elemento vital (a
personalidade, a liberdade, a autoconfiança) alcançou entre os aristocratas,
simultaneamente, muito maior importância e valor que aquele que adquiriu em outros
grupos – pois como essa substância herdada não atingiu entre eles a configuração
objetiva, unicamente a forma e energia do indivíduo podem dar vida a esse conjunto
de qualidades transmitidas. Embora essa substância obrigue frequentemente o
indivíduo nobre a fazer ou não alguma coisa, o sentido de todo o constructo é que a
realidade dos valores acumulados pelo estamento e a família favorece a essência do
indivíduo autônomo e independente – sem por isso sofrer alguma restrição, mas um
enriquecimento. Na nobreza, a existência plena, centrada em si mesma e responsiva
não é, como em muitas outras estruturas muito socializadas, um desvio do bem ou
do patrimônio comum, mas supõe a sua preservação, e até seu acréscimo. Entre os
extremos, em que o indivíduo é engolido por seu grupo ou o enfrenta com uma
autonomia agressiva, encontra-se a síntese curiosa da nobreza, que conseguiu fundir
seus membros no grupo geral em um grau até então desconhecido. Obteve êxito, a
julgar pela severidade imposta à própria vida do grupo nobiliário, que criou uma
Georg Simmel | 799

ampla zona de contato entre todos os nobres – pela exigência de uma igualdade de
nascimento, que configurou uma espécie de garantia psicológica da unidade
qualitativa e histórica do estamento, e pela técnica de sua tradição, que permitiu
reunir e conservar, como em uma cisterna estanque e comum, todos os méritos e
conquistas do grupo. No entanto, parece cada vez mais evidente que a estrutura
supraindividual daí resultante encontra seu fim e sentido na existência dos
indivíduos, no seu poder e importância, na liberdade e autonomia de sua vida. A
nobreza deu uma solução única ao equilíbrio entre o conjunto e o indivíduo, entre as
especificidades dadas e os desenvolvimentos pessoais da vida, associando, em suas
manifestações históricas mais autênticas, os valores individuais à estrutura global, e
encaminhando, por outro lado, a evolução desta última ao progresso, crescimento e
autonomia do indivíduo34.
Finalmente, o aparecimento da economia monetária ainda é o exemplo mais
marcante que a história universal oferece da correlação entre a ampliação da
sociedade e a tendência à individualização da vida, em todos os seus conteúdos e as
suas formas. A economia natural de troca direta dá origem a círculos econômicos
reduzidos, relativamente fechados sobre si mesmos – pois a mera dificuldade de
transporte reduz o tamanho dos círculos e a técnica do sistema não permite alcançar
uma real diferenciação e individualização das atividades. A economia monetária
introduz dois tipos de mudança nessa situação. A aceitação geral do dinheiro, bem
como seu fácil transporte e por fim a sua sublimação em ordens de pagamento
bancário e transferências de divisas permitem agir a distâncias ilimitadas,
transformando todos os países do mundo em um único círculo econômico com
interesses cada vez mais imbricados, produções complementares e usos comerciais
semelhantes. Por outro lado, a moeda produz uma enorme individualização do
homem enquanto ator econômico. A forma do salário em dinheiro e a disponibilidade
dele tornam ao trabalhador muito mais independente que a remuneração em gêneros,
conferindo-lhe uma liberdade de movimentos sem precedentes. As normas liberais,
habitualmente identificadas com a economia monetária, põem o indivíduo em livre

34
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “nobreza”. Doravante Simmel
retoma sua análise da “ampliação dos grupos e a formação da individualidade”, notadamente da
“correlação entre a ampliação da sociedade e a tendência à individualização da vida” e da ”influência
exercida pelo alargamento do círculo sobre a diferenciação das vontades”. (NT)
800 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

concorrência com todos os outros. Finalmente, essa concorrência e aquela extensão


do círculo econômico obrigam a uma especialização das atividades que o mundo não
tinha conhecido até então. Isso porque, tal diferenciação dos talentos específicos só
é possível pelas compensações que podem surgir em um círculo suficientemente
grande. Na economia, o dinheiro é o vínculo que estabelece as relações entre a
extensão máxima do grupo econômico e a maior diferenciação de seus membros,
tanto para a sua liberdade e a sua responsabilidade, como para a diferenciação
qualitativa da divisão do trabalho – ou para melhor dizer, graças ao dinheiro, o grupo
da economia natural, pequeno, fechado em si mesmo e homogêneo, se transforma
em outro cujo caráter unitário divide-se em dois aspectos: ampliação e
individualização.
A evolução política concretiza esse conjunto em um grande número de esferas
particulares, embora com amplas variações na proporção da participação
fundamental. Tal vez a situação pudesse ser caracterizada dizendo que não se trata
de um movimento contínuo e homogêneo a partir do círculo pequeno e socialmente
coeso até o grupo maior e a diferenciação das personalidades, mas uma escolha e
uma alternativa. Assim, no estágio desenvolvido, algumas vezes predomina a
constituição de um grupo amplo e o aumento da importância dos órgãos centrais, e
outras vezes, o acento recai na autonomia dos elementos individuais. Em outras
palavras: a ampliação do círculo vai de par com o desenvolvimento da ideia de uma
personalidade suprema, em favor da qual a vontade individual abdica, e não está em
relação com o desenvolvimento da personalidade dos próprios membros do círculo.
Mencionaremos alguns exemplos que dizem respeito a diferentes setores da política.
Comecemos pela política agrícola. Quando, no final da Idade Média, as comunidades
camponesas de homens livres se dissolveram, os estados centralizados (em plena
expansão) dividiram as terras comuns seguindo dois critérios alternativos. Ora as
terras foram incorporaram ao aparelho administrativo do Estado, porque se tratava
de um bem público, ora renunciou-se a essa solução preferindo distribuí-las como
propriedade privada aos legítimos transmissários. Tal fenômeno diz diretamente
respeito às duas tendências coexistentes, que se orientam preferencialmente, ou
para o individual (nesse caso, pelas normas do direito romano, que entronizava os
princípios que regem as relações de ordem privada entre os indivíduos), ou para o
Georg Simmel | 801

geral – exemplificadas, na espécie, pela ideia de que a adjudicação dos bens


comunais devia servir à agricultura do país, quer dizer, ao maior número possível. Em
um contexto material e geral muito diferente, a mesma forma reapareceu no século
XIX, quando das transformações sofridas pela Allmende, a propriedade coletiva dos
municípios suíços. Essas terras passaram, em princípio, a ser propriedade de
pequenas comunidades, corporações locais ou aldeãs. Mas de acordo com a
legislação de alguns cantões (Zurique e São Galo, entre outros), preferiu-se distribuí-
las, junto de particulares ou de municípios maiores – pois se entendeu que os órgãos
sociais mínimos possuíam uma base territorial e populacional pequena demais para
que a sua propriedade revertesse em benefícios públicos.
Essas formas adotadas pela política agrícola se estenderam a todas as esferas
da política interna durante a evolução que os Estados germânicos experimentaram
depois da Idade Média. As corporações de artesãos, dominantes na sociedade
medieval, cristalizaram-se em círculos particulares e restritos, diferenciados entre si
e do conjunto, de maneira que a vida pública corria o risco de se fragmentar em uma
soma incoerente de subgrupos egoístas. Perante eles e para dissolvê-los, os
suseranos imperiais impuseram, a começos da Idade Moderna, a ideia da
generalidade omnipresente, adotando a forma do absolutismo régio que propunha “a
mesma lei para todo mundo”. Isso significava que o indivíduo ficava livre dos
entraves provenientes dos privilégios das corporações, convertidas em meras
associações de direito privado, um assunto pessoal de coparticipantes individuais.
No entanto, simultaneamente, esses mesmos indivíduos perdiam as vantagens de
que usufruíam como membros do conjunto – que os constrangia a unir-se de um
modo muitas vezes antinatural com os outros colegas. Tratava-se
fundamentalmente de uma estratégia bifronte para destruir as associações
intermédias, restritas e homogêneas, cujo predomínio tinha caracterizado a época
anterior, para que prosperasse, por cima, apenas o poder do Estado e, por baixo, a
liberdade do indivíduo, sem obstáculos nem mediações.
Se o Estado readquiriu a sua eficácia prática sob a forma da personalidade
suprema, do soberano absoluto, isso não é um contraexemplo do esquema
fundamental. De fato, tal figura é apenas uma representação simplificada e funcional
de um processo que se produziu dessa maneira num grande número de casos, tanto
802 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

na sucessão como na simultaneidade. Trata-se da relação, frequentemente


observada na história, entre republicanismo e tirania, e entre despotismo e
nivelamento. Aristocracia e burguesia oferecem à consciência social e política uma
pluralidade de círculos restritos e vizinhos uns dos outros. Daí que quando qualquer
constituição de índole aristocrática ou burguesa procura ultrapassar seus próprios
limites desemboque ora na unificação autoritária de um poder pessoal, ora em um
socialismo de matiz anarquista que proclama o direito absoluto da pessoa livre e a
supressão de todas as diferenças. A destruição da estrita delimitação dos grupos
dentro de um daqueles conjuntos está tão estreitamente vinculada à acentuação da
individualidade que, tanto a unicidade de uma pessoa dominante como a liberdade
individual de todos os elementos do grupo, se liga a ela como duas variações do
mesmo motivo. Nessa ordem de ideias, afirma-se que, se as aristocracias políticas
(constituídas conforme o tipo sociológico dos círculos fechados e firmemente
delimitados) raramente têm um grande sucesso militar, isso provavelmente se
explique pela profunda aversão desses regimes aos dois elementos que, alternativa
ou simultaneamente, são chamados a suceder-lhes. Os aristocratas, por um lado,
desconfiam dos generais vitoriosos munidos de plenos poderes e, por outro lado,
mostram-se relutantes em encorajar o levante generalizado e a ação unificada de
todo o povo, ainda que seja contra um inimigo comum. É tão estreita a correlação
que existe entre a volonté générale35 e a autocracia, que muitas vezes essa expressão
foi utilizada oficialmente para dissimular intrigas destinadas, em última instância, a
reprimir a dita vontade. Por exemplo, quando Roberto Dudley, conde de Leicester 36
foi convidado a ser tenente-general das Províncias Unidas holandesas em 1586,
pretendeu obter um poder irrestrito por cima das pequenas corporações (até então
dominantes nos estados-gerais e os estamentos locais) invocando princípios

35
Em francês no texto alemão de Simmel. “Volonté générale” significa, à letra, “vontade geral”. Essa
expressão é quiçá uma das mais fugidias de Jean-Jacques Rousseau. Talvez o sentido mais imediato
do conceito de vontade geral, no Contrato social do pensador genebrês, apareça em conexão com a
ideia de "corpo social". Nessa conexão, a vontade geral não seria outra coisa senão a "vontade do
corpo político" entendido como "ser moral" – seria a vontade do soberano. (NT)
36
Roberto Dudley, primeiro conde de Leicester (1532 – 1588) foi um estadista inglês e o favorito da
rainha Isabel I desde a ascensão ao trono da monarca e até sua morte. Campeão da causa protestante
internacional, liderou a campanha inglesa em apoio à Revolta holandesa (1565 – 1587). Sua aceitação
do cargo de tenente-general (governador) das Províncias Unidas enfureceu a Isabel. Além do mais, a
expedição foi um fracasso militar e político, e arruinou o conde financeiramente. (NT)
Georg Simmel | 803

absolutamente democráticos. Afirmava Leicester que a vontade do povo era a única


soberana, e que essa vontade o tinha escolhido. No entanto, professava que tanto
comerciantes e advogados, como camponeses e artesãos não poderiam intervir no
governo, devendo limitar-se a obedecer. A democratização viera (pretensamente)
levar tão longe o nivelamento que os estamentos superiores e inferiores foram
privados dos seus direitos, deixando subsistir apenas a unidade ideal do “povo” em
abstrato. Logo os opositores a Leicester responderam que esse novo conceito do
“povo” apenas visava alçar uma única pessoa a soberania absoluta.
Essa relação fundamental anteriormente mencionada se manifesta também
na política municipal. Desde a Idade Média, revelou-se nas cidades inglesas a
tendência de as corporações ou um magnata governarem as maiores enquanto nas
pequenas o poder cabia ao povo. Na medida em que à pequenez do círculo
corresponde uma homogeneidade dos elementos que justifica a participação igual
no poder, nos círculos maiores se produz uma clivagem, entre a única pessoa
dominante, de um lado, e a massa de indivíduos sem qualquer notoriedade, do outro.
A administração das cidades estadunidenses tem o mesmo esquema, ainda que mais
rudimentar. Quando as cidades são pequenas, acredita-se que a maneira mais
adequada para governá-las consiste em que um grupo de pessoas assuma cada uma
das suas funções. Nas cidades maiores, pelo contrário, parece mais conveniente
confiar cada função a um único titular. A vida complexa das grandes cidades exige
que a sua representação e a sua direção sejam atribuídas a pessoas individuais
plenamente responsáveis, ao invés do que acontecia com o círculo pequeno, capaz
de administrar-se a si próprio de um modo indiferenciado, contando sempre com um
número suficiente de elementos para realizar essas tarefas. Tal diferença sociológica
corresponde plenamente à evolução através da qual a tendência política geral dos
estados da União americana confirma o tipo fundamental que nos propusemos
demonstrar aqui – segundo o qual, nos últimos decênios, aquele processo se
encaminha por todo o lado ao enfraquecimento do parlamentarismo, substituído por
duas orientações diferentes: pelo plebiscito e pela criação de instituições
monárquicas, quer dizer, pela entrega do poder a indivíduos.
Finalmente, a política eclesiástica proporciona exemplos que guardam
analogia com certos fenômenos puramente religiosos. O politeísmo da Antiguidade
804 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

clássica comportava numerosos traços característicos do que aqui resumimos sob


o conceito de “grupo restrito”. Na maioria dos casos, os cultos se diferenciavam uns
dos outros por limites precisos, internos e locais – enquanto os círculos de fiéis eram
centrípetos, ora indiferentes, ora hostis com os demais. Até os próprios deuses
estavam frequentemente sujeitos a uma complexa hierarquia aristocrática,
confinados a diversas esferas de atuação. Ao começo de nossa era, nos territórios
de cultura clássica, essa evolução conduziu ao monoteísmo, à entronização do Deus
único e pessoal que assumiu doravante a alçada dos antigos deuses, particulares e
isolados. E isso significou (nossa correlação surge agora quase como uma
necessidade lógica) a queda das barreiras que separavam os círculos dos crentes.
As cercas dos apriscos desapareceram, um só Pastor bastou para um único rebanho
e se conformou na esfera religiosa um “círculo amplo” com nivelação perfeita de
todos os membros: a “igualdade perante Deus”. Era o fim do vínculo entre a
comunidade religiosa e a comunidade política (característico das religiões pré-
cristãs), e da unificação do grupo religioso em torno do deus singular e exclusivo
– que tolerava, porém, a adoração de quantos mais se quisesse. Mas era também o
fim da solidariedade política homogênea desse grupo, da religião como obrigação
política e social, da responsabilidade de cada elemento pelas faltas da comunidade
em face de seu deus. Apareceu o indivíduo religioso com sua responsabilidade
própria, o cenobita que, isolado em sua cela, vive retirado do mundo e dos homens
com o exclusivo laço que a relação direta e imediata da alma individual com Deus lhe
oferece – um Deus que não deixa de ser “seu” por ser ao mesmo tempo de todos, e
que talvez o seja precisamente por essa razão. A individualidade dentro do grupo
amplo e global de iguais, consequência da dissolução e combinação de todos os
círculos particulares precedentes, foi a contrapartida da personalidade única e
absoluta do Deus que acabou com a pluralidade dos deuses singulares.
Essa forma de evolução, que o cristianismo na sua pureza originária oferecia,
se repetiu na política da Igreja católica. Também nela reapareceu a tendência a
constituir círculos isolados, a criar delimitações precisas de categorias e interesses,
e a estabelecer uma aristocracia do clero acima dos laicos. No entanto, já Gregório
Georg Simmel | 805

VII37 conseguiu – aliando a afirmação veemente de suas ambições pessoais de poder


a uma demagogia ousada – impor-se a essas veleidades de seus bispos, ainda que
ao preço de violentos conflitos. É verdade que o celibato ajudou eficazmente à
política papal – o sacerdote casado se teria vinculado a um círculo restrito,
facilitando a emergência de um partido de oposição coerente na Igreja, enquanto o
celibatário, no seu isolamento individual, tinha que fazer corpo com a comunidade.
Finalmente, a obra continuou com grande sucesso graças à doutrina moral e religiosa
dos jesuítas – que se opuseram sempre à propensão do clero a formar um
estamento, (favorecendo o caráter universal do sacerdote, que em nada difere dos
fieis de qualquer grupo) e, por oposição a toda estrutura aristocrática da Igreja,
visaram o nivelamento unitário de todos os crentes e, simultaneamente, certo
absolutismo papalino.
A relação a que nos referimos38 (e que toma forma dos modos mais variados
da simultaneidade, da sucessão e da alternativa radical) talvez pudesse expressar-
se simbolicamente dizendo que o pequeno grupo pode ser definido como uma
grandeza equidistante dos extremos das grandezas do grupo amplo e da
individualidade – de modo que esse grupo restrito (fechado sobre si mesmo e
independente de todo outro fator) obtém o mesmo resultado em probabilidades de
vida que a combinação dos dois outros termos da correlação. Escolheremos agora
alguns exemplos tirados da história do direito e que dizem respeito a esferas
absolutamente distintas pelo contexto de época e lugar em que se inserem. A
onipotência do conceito romano de Estado tinha como contrapartida um jus privatum
ao lado do jus publicum. A norma de conduta do conjunto universal das instituições

37
O Papa São Gregório VII (circa 1020/1025 — 1085) foi o 157º papa da Igreja católica de 1073 até a
sua morte, tendo sido um dos mais influentes e decisivos pontífices ao longo da história. Teve sua
vida e obra conduzidas pela convicção de que a Igreja, como criação divina, e o papado, como a sua
cabeça, colocam-se sobre todas as estruturas humanas, em particular sobre o estado secular,
coincidindo naturalmente em uma diminuição do poder dos bispos locais – o que motivou algumas
lutas contra as esferas mais altas do clero. Essa batalha pelos fundamentos da supremacia papal tem
o seu apogeu na obrigatoriedade do celibato dos sacerdotes e no ataque à simonia. Em 1074 publicou
uma encíclica dispensando da obediência aos bispos que permitiam o casamento dos clérigos e, no
ano seguinte, sob fortes protestos e resistências, encorajou medidas contra eles, privando-os de seus
rendimentos. (NT)
38 
O autor alude à proporção da participação fundamental de cada um dos termos entre os quais se
dá a correlação existente entre a ampliação da sociedade e a tendência para a individualização da
vida. (NT)
806 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

de governo exigia uma norma equivalente para seus indivíduos. Não havia mais que
a comunidade no mais lato sentido do termo de um lado, e as pessoas individuais do
outro. O direito romano mais antigo ignora as corporações, e esse espírito
permaneceu vivo nas legislações inspiradas nele. Ao contrário, no direito germânico,
os princípios de direito que regulavam a vida da comunidade eram os mesmos que
regiam as relações de ordem privada entre os indivíduos. Contudo, essas
coletividades não eram ainda os conjuntos gigantescos do Estado romano, mas
pequenas unidades organizadas para atender as necessidades diversificadas e em
constante mudança dos indivíduos – que não requeriam aquela distinção entre
direito público e direito privado, porque as pessoas estavam muito mais ligadas a seu
conjunto.
A correlação que nos ocupa se mostra como evolução coerente no caso do
direito de vingança, tal como se deu, por exemplo, na Arábia. A essência desse direito
repousa na solidariedade e na autonomia de clãs muito fechados. A vingança recaía
sobre o clã por inteiro ou sobre a família do assassino, e era levada a cabo por todo
o clã ou pela família da vítima. Perante esse estado de coisas, Maomé se propôs
estabelecer a distinção aqui indicada. Era preciso que acima daqueles grupos
particulares, nivelando-os por meio de uma religião comum, se erguesse uma
comunidade nacional ou estatal que, através de seus órgãos, proferisse as sentenças
legais, e substituísse assim o direito dos interesses particulares por uma autoridade
suprema respeitada por todos. Como consequência, a sentença disse apenas
respeito ao indivíduo culpado, desaparecendo doravante a responsabilidade coletiva
do grupo particular – ficando então, frente a frente e com clareza a comunidade mais
ampla e o indivíduo, como resultado da diferenciação daquelas estruturas
intermédias.
Esse tipo formal reaparece com a mesma nitidez, embora com um conteúdo
completamente diferente, como sucessão de estágios de uma série homogênea, na
antiga Roma, quando, no decurso da história, a família patriarcal se fragmentou. A
partir do momento que os direitos e os deveres civis, em tempos de guerra ou de paz,
se impuseram irremediavelmente aos filhos e aos pais, quando os filhos puderam
adquirir determinados papel e influência, partes do butim de guerra, etc., abriu-se
uma brecha na patria postestas. Brecha que se ampliou até destruir o patriarcado em
Georg Simmel | 807

favor do acrescimento da racionalidade estatal, do direito do conjunto sobre cada um


de seus membros, mas também em proveito da pessoa – pois que através do
relacionamento direto com o todo o indivíduo pôde adquirir uma importância que o
regime patriarcal tinha reduzido consideravelmente.
Por último, um processo formalmente semelhante verifica-se perante um
fenômeno curiosamente misto em que, a correlação referida, só pode ser advertida
se nossa linha de pensamento for rigorosamente considerada. Até a época dos
normandos, cada xerife ou juiz real da Inglaterra tinha jurisdição vitalícia de uma
comuna, de modo que a administração da justiça tinha certo matiz localista no qual
se confundiam os interesses do lugar e do reino. Desde meados do século XII, porém,
comissões de juízes itinerantes39 passaram a exercer a jurisdição real, percorrendo
vastas regiões. Evidentemente, desempenhavam o serviço em um grau mais alto de
generalização e de isenção com relação a considerações locais – enquanto os
assuntos da comuna eram examinados pelo jury local, cuja importância foi
crescendo com o passar do tempo. Nesse caso, a circunscrição urbana, com seus
interesses eminentemente localistas, desempenha o papel do indivíduo em nossa
correlação. Tratava-se de um indivíduo social cuja vida jurídica evoluíra até então
juntamente com a do reino, mas que, em certo momento, adquirira uma clara
autonomia, graças à qual começou a existir paralelamente ao direito da coletividade
global (doravante mais bem definido) ou mesmo a confrontar esse direito.
Costuma-se dizer que o homem como elemento social cede lugar ao home
indivíduo – o que significa advertir que há perda daquelas qualidades que constituem
sua essência ou natureza de mero homem. À medida que isso acontece, o vínculo
que une ao homem (para além de seu grupo social) a tudo o que é simplesmente
humano fica mais restrito, sugerindo a noção de uma unidade ideal da humanidade.
No entanto, isso é apenas uma consequência da ideia que fazemos da relação entre
o individual e o social. É preciso, portanto, não se deixar enganar pelo significado de
tal ideia, pois que a compreensão dessa tendência, seu verdadeiro conteúdo
logicamente necessário, está ainda escurecida por limitações históricas de todo tipo.

39
Trata-se dos itenerant justice, oficiais itinerantes nomeados pelo rei e enviados aos condados
ingleses e à Irlanda para administrar a justiça, aos quais se referiu o autor no Capítulo IX da presente
obra. (NT)
808 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Em Platão encontramos, por um lado, um grande interesse pela individualidade


pura, pelo cumprimento da própria missão pessoal, que se amplia no ideal de
amizade – e que, contudo, se contrapõe a seu interesse pelo Estado puro, que
negligencia completamente as associações intermédias e os interesses que elas
representam. A maneira com que Platão sublinha a formação e a atividade do
indivíduo, o valor da sua alma como entidade autônoma, deveria logicamente ter-lhe
permitido superar os últimos obstáculos da forma grega de Estado, como o fizeram
outros filósofos da sua época. Apenas a contingência de suas tendências políticas e
de suas ideias nacionalistas gregas impedira Platão de tirar as verdadeiras
consequências de seu ideal de formação do indivíduo: que além dele só existe, como
valor coletivo, o conjunto da humanidade.
O cristianismo atua de maneira análoga ao exaltar a concentração absoluta de
todos os valores sobre a alma e a sua salvação e esquecer o vínculo que une o
indivíduo à integralidade de todas as existências humanas. Esse processo de
unificação e de assimilação deve ser estendido à humanidade inteira e encontra, por
gradual que seja a semelhança obtida, um limite inexorável na pertença a uma igreja
– aproximadamente no sentido em que Zuínglio 40 dizia que deviam desaparecer
todas as ordens, seitas e associações particulares, porque todos os cristãos são
irmãos, mas unicamente os cristãos.
Em contrapartida, como era lógico, o individualismo extremo manteve
contatos frequentes com a teoria da igualdade de todos os homens. É
psicologicamente explicável que a terrível desigualdade em que os indivíduos
nasciam, em certas épocas da história social, desencadeasse uma reação em duas
direções, tanto do lado dos direitos individuais como do lado do princípio da
igualdade ou da isonomia, porque as grandes massas amiúde carecem na mesma
medida de ambos os bens. Somente levando em consideração essa relação bifronte
compreende-se uma figura como a de Rousseau. O desenvolvimento crescente do
ensino escolar revela a mesma tendência: pretende suprimir as desigualdades
clamorosas de nível intelectual e, criando certa igualdade, garantir a todos os

40
Ulrico Zuínglio (1484 — 1531) foi um teólogo suíço, líder da Reforma protestante helvética.
Independente de Martinho Lutero, e sem a sua formação teológico-doutoral, Zuínglio chegou a
conclusões semelhantes pelo estudo das Escrituras do ponto de vista de um erudito humanista. Não
deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas. (NT)
Georg Simmel | 809

indivíduos a possibilidade (negada anteriormente) de fazer valer os seus talentos. Já


citamos acima a forma adotada pela nossa correlação através da ideia de “direitos
humanos”. O individualismo do século XVIII pedia somente liberdade, a supressão
desses corpos e instâncias “intermediários” que separavam os homens da
humanidade, quer dizer, que impediam o florescimento da verdadeira natureza
humana, que constitui o âmago e o valor da existência de cada indivíduo – e que
estava obscurecida e mutilada pelos grupos e vínculos particulares criados pela
história. Consequentemente, a partir do momento em que o indivíduo é capaz de
caminhar com suas próprias pernas, descobrindo as últimas e essenciais reservas
que há nele, está nas mesmas condições que todos os outros. A liberdade revela a
igualdade. A individualidade que merece o seu nome e que não é desvirtuada por
violências sociais, representa a unidade absoluta do gênero humano e se confunde
com ela. Não é preciso explicar aqui que essa convicção teórica e ética do século
XVIII foi construída a partir de situações bem concretas e teve um efeito incalculável.
Esse ulterior significado do individualismo, segundo o qual a realidade da
natureza humana implica uma alteridade na qualidade e no valor de uns
relativamente a outros – pelo que o desenvolvimento e o acrescimento dessa
alteridade seriam uma exigência ética – equivale, na verdade, a negar qualquer
igualdade. Parece-nos completamente inadmissível deduzir a igualdade partindo do
princípio de que cada um seria algo tão peculiar e incomparável como todos os
outros. Ainda que isso fosse verdade, se trata de uma qualidade positiva
determinante da essência ou da natureza da pessoa ou da coisa que se qualifica, mas
de uma característica individual que se manifesta somente na comparação com
outras – outras apenas no juízo do sujeito, que não encontra nela o que achou nas
demais. Isso vai ficar mais claro ao compararmos dois objetos. O objeto branco e o
objeto preto não têm uma qualidade comum por um não ser branco e o outro não ser
preto. É uma falácia 41 afirmar a igualdade do gênero humano baseando-nos na
singularidade quantitativa dos indivíduos. Todavia, o ideal da unidade do gênero
humano não é incompatível com essa premissa. A diversidade dos indivíduos pode

41
Tratar-se-ia de um tipo de falácia de composição que pode ser definida como uma inferência
inválida pela qual o que pode ser baseado com exatidão sobre uma classe, distributivamente, também
poderia ser, de maneira real, afirmado sobre essa classe, coletivamente. (NT)
810 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

ser considerada uma espécie de divisão do trabalho, embora não signifique


realmente uma produção econômica, nem sequer uma cooperação direta entre todos.
É verdade que isso pode nos conduzir a especulações de metafísica sociológica.
Quanto mais incomparável o indivíduo e mais peculiar e específica a posição que seu
ser, seu agir e seu destino lhe atribuam na organização do conjunto, mais esse
conjunto deverá considerar-se como uma unidade, como um órgão metafísico em
que cada alma é um membro que não pode ser substituído por outro, e cuja própria
vida pressupõe a existência de todos os demais e a sua ação recíproca. Quando a
necessidade de sentir como uma unidade a totalidade das existências anímicas do
mundo é experimentada, essa diferenciação individual (na sequência da qual os
diferentes seres se complementam) fará que os indivíduos precisem uns dos outros
e cada um ocupe o lugar que lhe seja atribuído pelos demais. Isso opera de modo a
suprir aquela necessidade de unidade muito melhor que a igualdade (Gleichheit) dos
seres que, no fundo, permitiria a cada um ocupar o lugar de qualquer outro, e daria ao
indivíduo, a impressão de ser, na realidade, supérfluo e sem verdadeira conexão com
o conjunto.
O ideal de igualdade (que une em um sentido diferente a individualização
extrema com a extrema ampliação do círculo das existências ligadas entre si) é
fomentado, sobretudo, pela doutrina cristã da alma imortal e infinitamente valiosa.
Para a alma (que, perante Deus, só conta consigo própria, com sua individualidade
metafísica) o valor absoluto da própria existência é igual ao das demais. Na medida
em que o infinito e o absoluto ignoram as gradações, as diferenças empíricas dos
homens não têm qualquer significado em face do eterno e do transcendente, perante
o qual todos são iguais. Os indivíduos não são unicamente a soma de suas
qualidades (pois isso os tornaria tão diferentes como elas), mas, para além dessas
características, cada um deles é uma unidade absoluta, graças a sua personalidade,
a sua liberdade e a sua imortalidade. A sociologia do cristianismo oferece o maior
exemplo, tanto histórico como metafísico, da correlação aqui exposta. A alma
absolutamente independente, liberada de todas as suas amarras e de todas as
relações históricas criadas levando em consideração qualquer fim, tornada apenas
para as potências do outro mundo (iguais para todos), forma com as demais almas
um ente homogêneo que abrange sem exceção tudo o que é animado. A pessoa
Georg Simmel | 811

absoluta e a ampliação absoluta do círculo de seus semelhantes são dois aspectos


da unidade da convicção religiosa em pauta. Embora seja metafísica ou um sentido
atribuído à vida, temos de reconhecer que influi em larga medida, como convicção a
priori e sentimento, nas relações históricas dos homens e nas atitudes que adotam
em relação aos outros.
A importância sociológica que a visão geral do mundo sonhado, como causa
e efeito da correlação aqui defendida, revela-se mesmo quando o problema do
tamanho de nosso entorno não se limita ao mundo dos homens e passa à própria
objetividade – cujas formas criamos amiúde por analogia com as formas que
conhecemos no social. Pode-se dizer que a Antiguidade clássica carecia de uma
noção ampla e clara da objetividade e de uma ideia profunda e acentuada da
subjetividade. O conceito de lei natural e de sua imperatividade relativa (originada na
objetividade pré-definida do procedimento teórico experimental da ciência e
indiferente a todos os “valores” do ser), era tão alheio a esse período da história como
a noção do eu com sua liberdade e produtividade, sua problemática e seu valor
capazes de contrabalancear o mundo. A alma dos antigos não se distanciava tanto
de si, nem adentrava tanto em si mesma como mais tarde, graças a síntese ou, se
quisermos, a antítese do sentimento cristão da vida e as modernas ciências físico-
naturais e do espírito. Isso estava em relação íntima e, ao menos, mediata com a
estrutura política e social do mundo grego. A primazia notável do círculo estatal
reduzido nesse universo situava normalmente o individuo em uma esfera intermédia
do mundo e da vida, entre o máximo da humanidade e o mínimo da individualidade,
fazendo da queda dessa restrição a condição necessária para dar espaço à evolução
para ambos os extremos.
Nossa correlação é mais perceptível na esfera ética que na sua importância
para a imagem metafísica do mundo. Os cínicos romperam o estreito vínculo (típico
dos gregos) que ligava o indivíduo a sua polis, colocando a serviço dessa


Filósofos adeptos do cinismo, uma corrente filosófica fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates,
no final do século V a.C. Ele foi seguido por Diógenes de Sinope, que levou o cinismo aos seus
extremos lógicos e passou a ser visto como o arquétipo de filósofo cínico e de seus ideais. Ganharam
o epíteto de “cínicos” porque faziam as suas necessidades, como os cães (cynicus em latim, pelo
grego kynikos), no olho da rua – na qual viviam a causa de seu desprendimento das coisas materiais.
(NT)
812 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

desconstrução, de um lado a autarkia, a autossuficiência do sábio, a quem basta ser


virtuoso para ser feliz e. do outro, o sentimento cosmopolita que professavam para
eliminar o elemento intermédio do patriotismo. A ampliação do círculo abarcado pelo
olhar e os interesses do indivíduo pode suprimir essa forma particular de egoísmo
que cria a limitação real e ideal da esfera social, e até favorecer a generosidade e um
elã entusiasta da alma, que ela não pode alcançar quando a vida pessoal se limita ao
círculo restrito dos que partilham os mesmos interesses. No entanto, quando o
caráter ou as circunstâncias impedem esse resultado, frequentemente o oposto
emerge. Em grande escala, a economia monetária e as tendências liberais a ela
associadas fragmentaram ou afrouxaram, como já mencionamos, as associações
restritas (das corporações às nações) inaugurando a economia mundial e
favorecendo um egoísmo econômico sem escrúpulos. Quanto menos o produtor
conhece os consumidores pela ampliação do círculo, mais seu interesse se torna
exclusivamente ao lucro que possa obter. Quanto mais anônima e sem qualidades é
a clientela, mais importante será para o empresário o resultado puramente
quantitativo do trabalho: o dinheiro. Se desconsiderarmos as categorias superiores
onde a energia do trabalho procede do idealismo abstrato, mesmo entre aqueles que
ganham a vida com o suor do rosto, o trabalhador comprometerá toda a sua pessoa
e seu interesse ético quando conheça pessoalmente seus chefes ou patrões, o que
só acontece nos pequenos círculos. À medida que o círculo aumenta com quem
trabalha, e cresce a indiferença que os iguais inspiram, vão desaparecendo os fatores
que limitavam o egoísmo econômico. Em muitos sentidos, a natureza humana e as
circunstâncias estão dispostas de tal maneira que, quando as relações do indivíduo
ultrapassam certo limite, ele só se atém aos interesses próprios. E não se trata
apenas da extensão exclusivamente quantitativa do circulo, capaz de reduzir ao
mínimo o interesse pessoal, mas ainda da variedade qualitativa dentro do círculo que
impede a fixação do interesse em um ponto particular, deixando então que o egoísmo
surja como resultante lógica da paralisia recíproca de pretensões contraditórias. Por
esse motivo formal considera-se, por exemplo, que a diversidade e a heterogeneidade
intrínsecas das possessões dos Habsburgo foram umas das razões de a sua política
servir aos interesses da própria casa reinante. Finalmente a extensão espacial do
círculo de interesses, que não significa necessariamente a ampliação do grupo, induz
Georg Simmel | 813

o sujeito a adotar uma atitude egoísta, ao menos perante seu círculo restrito. Até
Henrique III e Eduardo I, os estamentos ingleses estavam profundamente separados
porque seus interesses frequentemente iam além das fronteiras de sua pátria. Assim,
por exemplo, um nobre inglês tinha muito mais interesse em uma guerra exterior
conduzida pela nobreza do que nas lutas intestinas e rivalidades decorrentes da
conservação de um direito na Inglaterra; o burguês se interessava muito mais pela
organização das relações comerciais com as cidades flamengas do que pelas
cidades inglesas – a menos que se tratasse da sua; e os grandes dignitários
eclesiásticos se sentiam ligados demais a uma unidade eclesial internacional para
dar mostras de simpatias especificamente inglesas. Só a partir da época dos reis
mencionados42 esses estamentos fundiram-se para formar uma nação, cessando o
mútuo distanciamento, originado pelo egoísmo resultante daquela expansão
cosmopolita dos interesses.
Para além dessa influência que a ampliação do circulo exerce sobre a
diferenciação das vontades está a importância dessa ampliação no surgimento do
sentimento do eu. É inegável que o estilo de vida moderno, precisamente pela
labilidade incessante de suas características e pela padronização de gostos, hábitos,
opiniões e valores – processos de simplificação que podem representar
empobrecimento cultural – produzem nivelamentos inauditos que atingem as
estruturas simbólicas da forma pessoal de vida. Contudo, as tendências opostas não
devem ser ignoradas, por paralisadas e reificadas que possam aparentar no efeito
geral. Se a vida em um círculo amplo e a relação recíproca com ele produzem um
grau de autoconsciência superior àquele que permite desenvolver um pequeno
círculo, isso se deve sobretudo à personalidade que se manifesta justamente pela
mudança dos diversos sentimentos, pensamentos e ocupações. Quanto mais
uniforme e serena a corrente da vida, quanto menos os extremos da vida sensível se
distanciem de seu nível médio, com menos força o sentimento da própria
personalidade surgirá. Em compensação, quanto maior e mais enérgica a tensão e o
confronto dos extremos, mais revigorada fica a dita personalidade. Da mesma
maneira que a permanência só se concebe na mudança, pois que a mudança por

42
Esses dois reinados abarcam a história de quase todo o século XIII inglês. (NT)
814 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

acidentes destaca a continuidade da substância, o eu aparecerá como o permanente


ante a mudança de conteúdos psicológicos, quando essa mudança ofereça
abundantes ocasiões. A personalidade não é o estado singular atual, nem a qualidade
ou destino singular por mais peculiar que seja. É algo que sentimos além daquelas
particularidades e que surge da consciência da realidade de tais singularidades,
ainda que a personalidade a posteriori não seja mais que o signo, a ratio
43
cognoscendi de uma individualidade coerente mais profunda que baseia e
determina aquela variedade – mesmo que não tenhamos consciência imediata dela,
deduzindo-a apenas progressivamente dos diversos e mutáveis conteúdos da vida.
Enquanto os estímulos psíquicos, em particular os sentimentos, são
quantitativamente reduzidos, o eu aparente se confunde com eles e fica latente, se
descolando deles apenas na medida em que a sua abundância e diversidade
demonstre à consciência que ela afinal constitui o fator comum de todos esses
estímulos. É o mesmo que ocorre com um conceito superior associado, para nós, a
suas manifestações concretas, ao conhecermos muitas de suas expressões, e não
uma ou poucas variantes. Quanto mais puro e elevado esse conceito, com mais
clareza ele se separará, por contraste, daquelas manifestações singulares. No
entanto, essa mudança dos conteúdos do eu, capaz de torná-lo reconhecível pela
consciência como o ponto fixo no fluir dos fenômenos psíquicos, fica muito mais
clara dentro de um círculo amplo do que na vida de um círculo restrito. Os estímulos
do sentimento têm especial importância para produzir a consciência subjetiva do eu
e se encontram precisamente onde o indivíduo muito diferenciado convive com ouros
indivíduos também muito diferenciados, produzindo então comparações, atritos e
relações especializadas que, por sua vez, desencadeiam reações, que ficariam
latentes em um círculo estreito e indiferenciado, mas que aqui (à raiz de seu número
e diversidade) suscitam o sentimento de que o eu é o elemento absolutamente
“pessoal”.
Os grupos relativamente grandes alcançam um grau significativo de liberdade
e autonomia íntima e pessoal para seus membros por um caminho indireto. Esse
caminho é o da formação de órgãos que cristalizam e objetivam as ações recíprocas

43
Expressão latina que significa: “o motivo determinante ou a razão de agir”. (NT)
Georg Simmel | 815

originárias e imediatas dos indivíduos, transladando-as a pessoas e conjuntos


específicos. Na medida em que o grupo aumenta, quanto mais clara e completa essa
divisão do trabalho, mais livre fica o indivíduo das ações recíprocas e dos conflitos
que essa distribuição de tarefas impõe, facilitando o atendimento de seus assuntos
e tendências centrípetas. A criação de órgãos é o meio de compatibilizar a unidade
do grupo com a ampliação da liberdade do indivíduo. É verdade que os órgãos
vinculam todos os elementos do grupo ao conjunto e, por conseguinte, a cada um
dos elementos entre si. No entanto, o importante é que as ações recíprocas diretas
anteriores a essa organização implicavam uma contribuição especializada de todos
os elementos em determinadas tarefas, dando lugar ao desperdício de recursos
humanos. Quem nunca foi juiz durante toda a sua vida e o será apenas quando
convocado ao júri, não só se encontrará impedido de exercer a própria atividade
durante esse tempo, mas também, no exercício de sua função judiciária, estará muito
mais tolhido do que o juiz profissional por representações e interesses estranhos ao
labor jurisdicional. Em vez disso, se a função judiciária fosse reservada a juízes
especializados, e tivesse que ir ao foro, o faria somente porque isso está
verdadeiramente ligado ao seu interesse. Quando todo pai de família é sacerdote tem
de exercer essa função independente de sua vontade. Se houvesse uma igreja com
sacerdotes profissionais, iria ao templo quando se sentisse realmente motivado.
Antes da divisão do trabalho, cada indivíduo devia consumir o que produzia mesmo
consciente da descoberta de outros desejos e necessidades diferentes. Em vez disso,
quando há produtores especializados para tudo o que é imprescindível, qualquer um
pode procurar o que bem entenda sem precisar consumir o que não quer. Como se
pode ver, a diferenciação pela criação de órgãos sociais não significa que o indivíduo
cortou o vínculo com o conjunto, mas que ele não dedica a esse vínculo mais do que
a parte objetivamente necessária de sua personalidade. O ponto em que entra em
contato em algum momento com a comunidade ou com a sua estrutura não
compromete mais as partes de sua pessoa que não têm nada a ver com esse ponto.
O órgão social, resultado e sinal do crescimento do grupo, desfaz as conexões que
obrigavam o indivíduo a coletar e entregar, durante suas atividades, elementos que
não correspondem àquilo que ele gostaria de colher ou dar.
816 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

Finalmente, na esfera do intelecto, as relações entre as nossas representações


teóricas se desenvolvem frequentemente seguindo o mesmo tipo formal que
pudermos observar nas relações entre indivíduos, e confirmam, até mais do que seria
possível com exemplos sociais pertinentes, o seu significado profundo, além de todas
as individualidades (quase poderíamos dizer além da sua significação objetiva) e que
nos casos empíricos só se realiza (com pureza aproximada) na história.

Digressão sobre a analogia entre as relações psicológicas individuais e as relações


sociais

Esta analogia em si mesma não é de natureza sociológica, mas filosófico


social, porque o seu objeto não é o conhecimento da sociedade, mas apreender uma
conexão geral em que a forma social é apenas um dos exemplos. Não é de hoje a
observação de que os indivíduos que vivem em sociedade se comportam, em muitos
aspectos, da mesma forma que os elementos psíquicos em um espírito individual.
Poder-se-ia pensar em uma combinação geral de elementos psíquicos, em certas
formas de relação recíproca que se repetiriam regularmente. Imaginar, por exemplo,
um conglomerado relativamente restrito e homogêneo de elementos de qualquer
natureza que só seria ampliado se cada um desses elementos obtivesse perante os
demais um acréscimo de diferenciação qualitativa e de autonomia. Isso porque, a
autonomia de cada elemento não poderia coexistir com a limitação por outros de seu
espaço vital e de ação, e conduziria a uma expulsão mutua, a uma espécie de luta
pela existência entre os elementos indivíduais. Nesse sentido, se um elemento
individual desenvolvesse uma característica que fizesse dele, como coletivo, uma
contraparte do grupo global, faria surgir nesse elemento uma tendência à completude
e perfeição que seria incompatível com seu papel de parte e membro do conjunto.
Temos daqui o conflito entre o caráter especializado ou parcial de um elemento ou
de um subgrupo do conjunto e seu caráter, virtual ou efetivo, de unidade fechada em
si mesma, etc. Em suma, poder-se-ia conceber tipos genéricos de relações
psicológicas que incorporem as formas sociológicas como um caso particular – o
caso no qual os elementos são indivíduos socializados – da mesma maneira que
essas formas por sua vez integram os grupos particulares de sociações concretas.
Georg Simmel | 817

Obteríamos, assim, um fundamento mais sólido para a definição do Estado como


“uma forma maior de homem”.
Se descartarmos essa formulação, precisaríamos examinar as relações
imediatas entre a sociedade e os indivíduos e ver como elas produzem aquelas
mútuas semelhanças. Duas premissas ajudam a formular essa questão. Primeira:
que efeitos a alma individual produz na totalidade da existência anímica para suscitar
nesse conjunto as formas de suas próprias estática e dinâmica? Segunda: perante
determinada totalidade, quais são as influências que esse conjunto exerce sobre a
alma individual e que produzem as situações paralelas às suas? Tomemos como
exemplo o fenômeno da formação de “partidos” ou facções. Os contraditórios
interesses do espírito de cada indivíduo a respeito do que acredita importante, útil ou
vantajoso, lutam inúmeras vezes entre si, como os próprios indivíduos. Durante essa
luta, outros conflitos se organizam em torno das representações dominantes,
fortalecendo a crença em cada imagem, da mesma maneira que os integrantes de
um partido se agrupam em torno de seu líder. Diversos conjuntos de sentimentos e
de ideias procedentes de outras frentes de combate se incorporam então à disputa,
por afinidades, reais ou virtuais, com algum dos interesses em pugna, exatamente
como uma oposição partidarista em um grupo social e mesmo que no fundo não
tenham nada a ver com o conflito interno – conflito que acentua a divisão de partes
essenciais do círculo ao incluir indivíduos e outros círculos objetivamente longínquos
dele. O efeito desse processo é a cisão do grupo. Todas as fases da luta – o equilíbrio
das forças que paralisa temporariamente o confronto, a vitória aparente de um
partido que apenas serve para que a outra facção reagrupe suas forças, a influência
que podem ter sobre a decisão definitiva do conflito as meras suposições quanto a
seu resultado, o engajamento total ou parcial das forças – estão presentes no
decurso dos conflitos íntimos e dos exteriorizados.
Essa analogia, contudo, não é pacífica. Tentaremos dar ao menos um exemplo
das duas problemáticas de tal relação de semelhança. Provavelmente, as
experiências íntimas do sujeito constituem um esquema que serve de a priori para as
suas experiências no mundo físico – uma forma que subsume o material dado e
graças à qual esse material é interpretado. Determinar o que é “luta” (Kampf) sempre
é uma experiência absolutamente íntima. Por fora se vislumbram certas ações de
818 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

seres que não podem ser expulsos do lugar que ocupam, nem ocupar (em
consequência da impenetrabilidade da matéria) o mesmo lugar de outros seres no
espaço. Que os movimentos peculiares de cada grupo desses seres constituam uma
“luta” é uma interpretação psicológica. A relação adversativa, a unidade que se cria
como resultado desses movimentos adversos, à chamada por nós de “luta”, não pode
ser definida, nem o essencial nela pode ser apreendido exteriormente – só podemos
quando muito vivê-la intimamente. Isso nos permite abordar a dupla conexão. Em
primeiro lugar, a conexão real, proporciona os esquemas de nosso comportamento
exteriorizado por meio das experiências psicológicas que designamos como
hostilidade e colaboração, associação e rompimento. E, em segundo lugar, a conexão
ideal permite que interpretemos, classifiquemos e denominemos essas experiências
como os modos de comportamento dos indivíduos, percebidos exteriormente. É
quase impossível para nós tomar uma decisão ou adquirir uma convicção sem um
prévio confronto de motivos e estímulos – mesmo rudimentar, quase inconsciente e
rapidamente superado. Toda a nossa vida espiritual é pontuada por esses
enfrentamentos. Portanto é lógico supor que, entre os processos interindividuais
(que progridem sempre sobre a base dos desenvolvimentos individuais), um
determinado número se firme, no referente à forma e à interpretação, nessa relação
confltuosa.
O mesmo acontece em sentido inverso. A luta real que descobrimos ao nos
envolvermos ou testemunharmos o fenômeno fornece o esquema e a interpretação
de processos íntimos. Isso acontecerá, sobretudo, quando o indivíduo não está
vinculado exclusivamente a uma das partes em disputa, mas demonstra interesse
por ambos os adversários. Nesse caso, as “duas almas que habitam o mesmo corpo”
imitarão e reproduzirão as relações de conflito e reconciliação, de separação e de
unidade, de dominação e de subordinação entre os objetos do interesse. A luta que
se desenvolve fora de nós fica compreensível quando é reproduzida nas relações de
nossas representações. Poder-se-ia dizer, então, que a representação da luta é uma
luta de representações. E se tal acontece com as relações de separação, agora
evocadas sumariamente, o mesmo ocorre relativamente às relações de união e
exclusão, de dominação e subordinação, de imitação e organização, e com muitas
outras. O exterior é conformado e interpretado à luz do interior, do mesmo modo que
Georg Simmel | 819

o íntimo é induzido e compreendido a partir de sua exteriorização – alternativamente


e simultaneamente. Essa relação entre as formas subjetivas imanentes e as da
sociação age como a relação das mesmas formas subjetivas com as do espaço
concreto. Sabe-se há muito tempo que as expressões que traduzem o movimento
das representações (como ascensão e queda, fusão e separação, obstáculo e retorno,
opressão e sutileza, etc.) tomam de empréstimo seus qualificativos dos processos
do mundo exterior – simbolismo sem o qual não teríamos nem percepção interna
nem denominação alguma para essas experiências. Porém isso vai mais alem: ao
analisarmos com mais cuidado esse simbolismo veremos que ele se manifesta
igualmente em sentido inverso. Tudo aquilo que é realmente processo, relação ou
imagem característica nesses fenômenos externos existe para nós como
adequações ou movimentos subjetivos da alma que projetamos sobre cenas
concretas do mundo espacial. As simples mudanças locais a que se referem essas
determinações do sensível não poderiam produzir por si qualificativos de nossa vida
interior, se ela não lhes proporcionasse nuances, significações e sínteses atuantes,
mas nem sempre aparentes. Mesmo antecipadamente precisamos introduzir
sentimentos e sensações de força e movimento nos acontecimentos de nosso
mundo espacial, para encontrar figuras de linguagem e expressões que determinem
as realidades de nossa vida interior.
A interioridade pura do sujeito ainda manterá uma relação (análoga àquela
estabelecida com a pura exterioridade) com uma terceira esfera: a sociedade – onde
a alma individual sai de si mesma, é verdade, mas não no mundo espacial senão na
supraindividualidade das ações recíprocas com outras almas. Também nessa esfera
o comportamento íntimo deve padronizar e estimular as relações subjetivas
externadas que, por sua vez, viabilizam as representações a partir das quais aquele
comportamento é conformado e interpretado. Quiçá possamos finalizar as presentes
reflexões com uma ressalva indispensável. Distinguir no acontecer da alma certas
operações mentais definidas como “representações”, cujos movimentos e
combinações fazem o dito acontecer compreensível, não está tão na natureza das
coisas nem é tão evidente e exato como costumamos imaginar. Antes, isso conduz
a dividir um processo de fluxo contínuo em elementos claramente separados. Os
conteúdos desse processo (revelados a nós na forma de nossa consciência) tornam-
820 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

se uma espécie de seres hipersubstancializados, dotados de energias e que agem e


padecem por conta própria. Quando compreendemos a vida da alma como um
movimento de representações, não pensamos realizar uma descrição imediata do
que acontece, mas pretendemos traduzir esse acontecer da alma servindo-nos de
imagens ou símbolos subsumidos em categorias que não são suas. Por isso, não nos
parece inapropriado que a imagem dos indivíduos em torno de outro indivíduo nos
conduzisse àquela objetivação da vida espiritual. A nossa existência se nos oferece
como desenvolvida por e entre seres móveis por natureza, que se aproximam e se
distanciam no ritmo de suas forças e fraquezas. As pessoas ao nosso redor formam
o primeiro e único mundo que realmente nos interessa. Assim sendo, imaginamos
como obvio aproveitar as formas da delimitação, da autonomia e da capacidade de
ação que esses elementos nos apresentam para organizar e permitir a compreensão
de nosso mundo interior – como acontece no mundo exterior, mas determinado por
forças espirituais. Da mesma maneira que qualquer indivíduo é para nós “uma
representação”, cada representação será uma pessoa individual – quer dizer, a nossa
faculdade representativa aparenta ser um jogo de entidades que (como os homens)
se firmam e cedem, se unem e separam, posicionam forças suficientes ou
insuficientes. A unidade do indivíduo e da sociedade (evasiva e inefável) revela-se
em que a alma é a imagem da sociedade e a sociedade é a imagem da alma44.
Quando elaboramos os nossos conceitos, reunimos primeiramente em uma
categoria certo número de objetos de acordo com suas características mais
destacadas, e o contrapomos radicalmente a outro conceito elaborado da mesma
maneira. No entanto, na medida em que se acrescentam outras qualidades que
individualizam os objetos subsumidos no primeiro conceito, os rígidos limites
conceituais ficam menos nítidos. A história do espírito humano está repleta de
exemplos desse processo, dentre os quais a transformação da antiga teoria das
espécies em teoria da evolução talvez seja o caso mais surpreendente. A antiga
concepção achava que entre as espécies biológicas havia limites tão precisos e tão

44
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “analogia entre as relações
psicológicas individuais e as relações sociais”. Doravante Simmel retoma sua análise da “ampliação
dos grupos e a formação da individualidade”, nomeadamente do modo como “a evolução das
representações intelectuais revela a tendência a perceber clara e distintamente o individual e o geral”.
(NT)
Georg Simmel | 821

pouca igualdade essencial que não podia admitir uma origem comum, mas sim atos
específicos de criação. Quanto à dupla necessidade de nosso espírito, desejoso de
evocar ao mesmo tempo a síntese e as menores diferenças, ela o satisfazia reunindo
em uma noção única uma grande quantidade de indivíduos similares e, em
contrapartida, separando esse conceito de todos os outros. Simultaneamente, a
pouca atenção prestada à individualidade no grupo era compensada, de acordo com
o ponto de partida aqui exposto, pela individualização radical desse conjunto perante
os outros, e pela exclusão de uma igualdade geral de grandes classes ou do mundo
orgânico em geral. A nova teoria modificou essa atitude em dois sentidos: satisfez o
desejo de síntese graças à ideia de unidade geral de todos os seres vivos, que fez de
um micro-organismo originário a origem da multidão de manifestações da vida; e
deu resposta à necessidade de diferenciação e especificação atribuindo a cada
indivíduo um grau particular no processo de evolução de todos os seres vivos. Dessa
maneira, a teoria da evolução genética flexibilizou os rígidos limites que separavam
as espécies, destruiu ao mesmo tempo a imaginária diferença essencial entre as
qualidades individuais e aquelas da espécie, e apreendeu o universal de maneira mais
geral e o individual de modo ainda mais específico do que o concebia a teoria anterior.
Ora, eis precisamente a relação de complementaridade que também se manifesta nas
evoluções reais das sociedades.
A evolução psicológica de nosso conhecimento também apresenta, em geral,
essa dupla orientação. Um estado pouco evoluído do pensamento é por um lado
incapaz de ter acesso às generalizações mais transcendentes e de captar as leis
válidas para todos os casos, cujo cruzamento produz o indivíduo particular. O
pensamento confuso carece, por outro lado, de acuidade na percepção e de
discernimento para avaliar com bom senso ou ao menos compreender a
individualidade. Quanto maior a sua elevação, mais perfeitamente o espírito
diferenciará as duas direções e menos fica conformado ao que lhe é dado a conhecer
dos fenômenos do mundo. Procurar reduzir a leis suficientemente gerais esses
fenômenos significa fazer a particularidade desaparecer até que não reste nenhuma
combinação de fenômenos capaz de contradizer sua subsunção em uma lei. Todavia,
por contingentes e transitórias que sejam essas combinações, elas existem de fato.
Quem quiser conhecer os elementos gerais e constantes da existência deve perceber
822 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

também a forma do individual em tais elementos. Isso porque só uma visão exata do
fenômeno singular permite conhecer as normas que definem as relações constantes
entre os fenômenos complexos. O pensamento confuso constitui um obstáculo à
evolução de ambas as tendências porque não distingue os elementos do fenômeno
em questão na sua especificidade individual, nem as leis superiores às que ele
obedece. Essa questão está intimamente vinculada ao antropomorfismo. Na
concepção do mundo o antropomorfismo recua na exata medida em que os homens
percebem que sua sujeição às leis da natureza é semelhante à dos outros seres
– pois desde esse momento renunciam a se representar e julgar o resto do mundo
segundo às normas particulares da combinação contingente personificada por eles.
A visão antropomórfica suprime a importância e a justificação próprias dos
fenômenos e processos diferenciados na natureza. Tudo adquire então uma
conotação humana. Somente elevando-nos para aquilo que está acima da mesma
humanidade, as leis universais da natureza, podemos ter a uma visão coerente e justa
do mundo capaz de conhecer e reconhecer cada coisa no conjunto de atributos que
constitui o ser independente, na sua individualidade. Estamos convencidos de que
referir todos os movimentos do mundo à lei universal da mecânica dos átomos,
permitiria enxergar com mais acuidade o que faz cada ser diferente de todos os
demais.
Essa relação epistemológica e psicológica se amplia, embora conserve a
mesma forma de desenvolvimento, quando se trata de universais metafísicos e não
das leis da natureza. O fervor do espírito pensante junto com o poder de abstração
intelectual é o que faz brotar do âmago da alma a floração metafísica. É a intimidade
da convivência com os fenômenos do mundo que nos permite pressentir as forças
mais universais e supraempíricas que sustentam a coesão interna desses
fenômenos. Entretanto, o mesmo sentir profundo e concentrado nos inspira com
frequência um temor reverencial à individualidade dos fenômenos, sejam eles
íntimos ou exteriores, temor que nos impede de encontrar subsídio nos conceitos e
imagens mais gerais para expressar a angústia ou simplesmente a ininteligibilidade
de nossa experiência momentânea. A nossa preocupação não consiste em saber de
onde vem e para onde vai esse destino, mas por que é justamente esse o nosso
destino, por que se deu essa combinação determinada, que não pode ser comparada
Georg Simmel | 823

com nenhuma outra. Enquanto as mais elevadas generalizações metafísicas provêm


de uma sensibilidade apurada, aquela que merece nossa atenção vê-se comovida
pela percepção e contemplação do mundo empírico das individualidades. Essa
operação intelectual está organizada com suficiente delicadeza para perceber no
individual todas as vacilações, oposições e maravilhas perante às quais passam os
temperamentos menos sensíveis contentando-se com a mera contemplação dessa
sucessão vertiginosa de singularidades. Parece-nos desnecessário esclarecer que
nos referimos ao temperamento estético. Este representa talvez a forma mais
acabada dessa diferenciação – que se tenta atenuar as imperfeições de nosso
mundo terreno ao construir um mundo ideal habitado por formas puras e modelares,
também se envolve sem reservas na especificidade e na individualidade dos
fenômenos e de seu destino. Escapamos da estreiteza da vida (equivalente
metafísico e espiritual do “círculo social restrito”) avançando igualmente em ambos
os sentidos. O temperamento estético, produtivo ou receptivo, nos deixa ver a
exemplaridade, o verdadeiramente supraindividual das manifestações mais
singulares e incomparáveis, bem como os valores mais pessoais que caracterizam o
mais amplo e extenso. Por isso o autêntico inimigo do temperamento estético é o
filistinismo45, que enaltece a mediocridade, fica confinado ao círculo restrito e ignora
tanto o direito à individualidade como o dever de atingir a universalidade.
Se como indicamos, as reflexões precedentes pertencem no fundo à filosofia
social e só entram em nosso raciocínio como esclarecimentos e confirmações da
conexão sociológica estabelecida, esta última, em compensação, se amplia em um
aspecto final de caráter muito geral. Essa conexão sociológica não vigora apenas no
seio da sociedade, mas pode também incluir a sociedade considerada como um todo.
A humanidade não criou a sociação como sua forma de vida – ao menos não como
a única possibilidade lógica. O ser humano poderia ficar antissocial, da mesma
maneira que, ao lado dos animais sociais, há outros que não apresentam essas

45
Nos campos da filosofia e a estética, o termo pejorativo filistinismo descreve desde o século XIX os
costumes, os hábitos e o caráter ou o modo de pensar de um filisteu, que se manifesta como uma
atitude anti-intelectual que socialmente subestima e despreza a arte, o belo, o intelecto e a
espiritualidade. O termo, com esse alcance, deriva de Matthew Arnold, que adaptou para o inglês a
palavra alemã Philister, usada pelos estudantes universitários nas relações antagônicas que
mantinham com os habitantes da cidade de Iena. Nada tem a ver, pois, com os antigos (e muito menos
com os atuais) habitantes da região hoje conhecida como Palestina. (NT)
824 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

características. Mas uma vez que o fato existe, é grande a tentação de considerar as
categorias direta ou indiretamente sociais como as únicas adequadas para ser
utilizadas em todos os casos de exame do conteúdo da vida humana. Ora, essa
apreciação está completamente errada. O fato de sermos seres sociais pode colocar
esse conteúdo sob esse ponto de vista, mas isso não quer dizer que tal entendimento
seja o único possível. Para referirmos à oposição mais geral, pode-se perceber,
conhecer e sistematizar os conteúdos humanos que só se realizam na sociedade,
tendo em conta exclusivamente seu ser objetivo. A validez interna, as relações e o
significado objetivo de todas as ciências, técnicas e artes são independentes da
questão do caráter – social ou outro – de sua origem e das condições de sua
ocorrência – independência rigorosamente equivalente à autonomia de seu ser
objetivo com relação aos processos psicológicos que permitiram chegar a elas.
Naturalmente, também podem ser consideradas do ponto de vista psicológico ou
social. É perfeitamente legítimo pesquisar sob que condições sociais puderam-se
atingir os conhecimentos científicos que hoje possuímos. No entanto, a exatidão dos
enunciados científicos, a coerência sistemática do corpus e a validez de seus
métodos não dependem de algum critério social nem são influenciadas pela sua
emergência em dado momento da história social – pois que dependem de normas
impessoais e intemporais, quer dizer, puramente objetivas. De fato, todos os
conteúdos da vida estão submetidos a essa dupla categorização. Podem ser
considerados como os resultados da evolução social, como os objetos de ações
recíprocas humanas, mas também e, sob a mesma justificação quanto a seu ser
objetivo, como elementos de conjuntos lógicos, técnicos, estéticos e metafísicos de
significados oriundos de si mesmos e não de sua concretização histórica derivada
de circunstâncias sociais.
Todos esses conteúdos da vida distribuem-se por outras duas categorias
essenciais, porém. Têm como sustentáculos diretos alguns indivíduos. Alguém os
concebeu, eles preenchem alguma consciência, proporcionam prazer ou dor a outra
pessoa. Sendo sociais, esses fenômenos são também, ao mesmo tempo, individuais,
compreensíveis graças aos processos espirituais de determinado indivíduo e,
teleologicamente, têm certo significado para essa pessoa. É verdade que tais
conteúdos não existiriam sem a vida em sociedade. Mas também não se teriam
Georg Simmel | 825

concretizado socialmente em sociedade sem a mediação dos indivíduos. Se nos


perguntássemos que necessidades impulsionaram determinado indivíduo a sua
prática religiosa, que peripécias pessoais levaram alguém a fundar uma seita, que
valor tem essa atividade e aquela experiência para o desenvolvimento de sua alma,
tal problema não seria incompatível com outro que submetesse os mesmos fatos ao
ponto de vista da sociedade. Que contexto histórico fez aparecer essas necessidades
psicológicas, que ações recíprocas formais entre seus elementos e com os indivíduos
de fora fazem de tal movimento uma “seita”, o espírito público sofre um
enriquecimento ou uma fratura com tais movimentos religiosos e, se for o caso, qual?
O indivíduo e a sociedade são conceitos metodológicos para o conhecimento
histórico e para a valoração e a criação de normas – por partilharem entre si o âmbito
de determinados acontecimentos e situações ou por apreenderem a sua unidade, que
não se pode conceber diretamente, sob dois pontos de vista. Analogamente, um
quadro pode ser contemplado como fenômeno fisiológico óptico ou como produto
cultural que, por sua vez pode ser considerado do ponto de vista da técnica pictórica
ou de seu tema e de seu valor sensível. Se tivéssemos que expressar isso com o
radicalismo ideal dos conceptos, que na prática só se manifesta de modo
fragmentário, diríamos que todos os acontecimentos e todas as construções ideais
da alma humana podem ser compreendidos, sem exceção, como conteúdos e
normas da vida individual e como conteúdos e normas da existência social – da
mesma maneira que para Espinosa, a existência cósmica absoluta pode ser
compreendida integralmente quer sob o atributo da extensão, quer sob o atributo do
pensamento, ou como ele mesmo diz: una eademque est res, sed duobus modis
expressa46.
Depois de lidar com esses dois pontos de vista, resta ainda abordar, mesmo
que de modo superficial, um terceiro ponto ligado metodologicamente a eles. Temos
sublinhado que a sociação era apenas a forma social histórica que a espécie humana
tinha dado a sua vida e que, para a análise científico-conceitual, de maneira alguma
se pode confundir com ela. Por essa razão pode-se estudar os dados e conteúdos da

46
Esta frase que Baruch Espinosa verte em Ethica. Pars secunda. De natura et origine mentis
(proposição 7), pode ser traduzida como: “uma e a mesma coisa, mas duas maneiras de expressar”.
(NT)
826 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação

realidade histórica em função do valor e do significado que eles possuam como


elementos da vida humana, como etapas da sua história, prescindindo de seu
significado especificamente social. Não importa que essa “humanidade” seja
desprovida da consciência de sua unidade ou careça de coerência concreta e
desenvolvimento continuado. Se quisermos, essa “humanidade” é uma “ideia”, como
“a natureza”, e talvez também como “a sociedade”, uma categoria para examinar
fenômenos singulares sem que o seu significado exista separadamente ou constitua
uma qualidade excepcional. Está claro, contudo, que perante cada situação, cada
condição ou ação de um homem deve-se perguntar: o que significa como momento
específico do desenvolvimento humano, que condições prévias todo o gênero
humano teve que reunir para que isso fosse possível, o que a humanidade como tipo
biológico, ético ou anímico ganhou ou perdeu com isso? Responder a essas
perguntas de certo modo, não impede em nada que demos respostas absolutamente
distintas a essas questões se fossem levantadas da mesma maneira desde o ponto
de vista da sociedade do ator individual. Mesmo que habitualmente não seja esse o
caso, embora o que conta como ganho ou perda para história geral da humanidade
tenha o mesmo significado para o círculo social mais restrito, apesar de que o
socialmente essencial possa também configurar-se como fundamental para a
evolução ou para o sistema da humanidade, tudo isso não impede que a
hierarquização e a valoração de qualquer conteúdo da vida, desde o ponto de vista
do conjunto da humanidade, sejam em princípio diferentes das que lhe correspondem
desde o ponto de vista da sociedade, nem que as duas sejam independentes quanto
a seus motivos fundamentais – embora seja sempre o mesmo fato, o mesmo homem
e o mesmo conteúdo de cultura ordenado em uma ou outra hierarquia.
Todavia, mesmo que a categoria dos valores e desenvolvimentos do tipo
humano se distinga metodologicamente da categoria do ser e do agir do indivíduo
tanto como da categoria social, as duas primeiras estão mais próximas e formam
uma espécie de aliança confrontada com a categoria social. Os indivíduos
representam o material da ideia de humanidade e das questões aventadas do ponto
de vista deles próprios. Para aquela ideia é secundário saber se as contribuições
desses indivíduos à adequação e educação da humanidade são proporcionadas na
forma de sociação ou de uma atividade puramente pessoal nos pensamentos, nas
Georg Simmel | 827

convicções, na criação artística, nas práticas eugênicas ou na relação religiosa com


deuses e ídolos. De qualquer maneira, a existência e a ação do indivíduo devem
inserir-se em uma ou outra das formas que permitem a conexão ou técnica
intermediária pela qual a individualidade pode ser eficaz, na prática, como elemento
da humanidade. Apesar do caráter inquestionável das formas particulares que
orientam a sociação, o indivíduo e a humanidade continuam a ser os dois polos
metodológicos do estudo da vida humana. Historicamente e factualmente, é provável
que essa correlação desempenhe um reduzido papel na existência da sociedade
– apesar de que o presente capítulo procurou demonstrar a influência dessa
correspondência em muitas épocas históricas e que o individualismo moderno volta
os olhos para ela mais de uma vez. Mesmo assim, essa correlação é, no mínimo, uma
estrutura ideal auxiliar que permite atribuir à “sociedade” o seu lugar no conjunto dos
conceitos que ordenam metodologicamente o estudo da vida humana. Da mesma
maneira que, na evolução, o pequeno grupo “socializado” (sozialisierten) vira sua
contrapartida interna e histórica (alternativa ou simultânea) ao se ampliar e
especializar para formar o grupo maior e ser um elemento singular da sociedade,
assim, do último ponto de vista que poderíamos considerar aqui, a sociedade
apresenta-se como uma forma especial de agregação para além da qual se
encontram as ideias de humanidade e de indivíduo, que submetem os seus
conteúdos a outras formas de estudo e valoração.

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