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Editor
Agemir Bavaresco
Conselho Científico
Conselho Editorial
____________________________________________________________
SOCIOLOGIA
Estudos sobre as formas de sociação
Tradução científica de
Raúl Enrique Rojo
Prefácio de
Danilo Martuccelli
Todas as obras publicadas pela Editora Fundação Fênix estão sob os direitos da
Creative Commons 4.0 –
Http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
Este livro foi editado com o apoio financeiro do Ministério das Relações Exteriores
da República Federal da Alemanha através do Serviço Alemão de Intercâmbio
Acadêmico (DAAD).
Série Filsofia – 80
827p.
ISBN – 978-65-81110-33-8
https://doi.org/10.36592/9786581110338
Disponível em: https://www.fundarfenix.com.br
CDD – 340
_______________________________________________________________
1. Sociologia. 2. Georg Simmel. 3. Formas sociais. 4. Sociação.
Palavras liminares
Acerca desta tradução
Raúl Enrique Rojo ............................................................................................................. 9
Prefácio
Simmel, o clássico ambivalente
Danilo Martuccelli ..........................................................................................................15
Prefácio
Sociologia
Estudos sobre as formas de sociação ..........................................................................33
I. O problema da sociologia...........................................................................................35
Digressão sobre o problema: como é possível a sociedade? ...................................59
1
Esta nota é de Simmel: Cada um dos presentes capítulos contém uma série de exposições mais ou
menos afastadas do problema mencionado em seu título, que colabora, por além de sua relação com
essa expressão inicial, à problemática global de maneira relativamente autônoma. A intenção final e
a estrutura metodológica desses estudos exigiam tanto sua divisão num número reduzido de
conceitos fundamentais, como uma grande liberdade nas questões particulares tratadas na
abordagem desses conceitos. Por isso os títulos dos capítulos apenas abrangem de forma muito
imperfeita o conteúdo que só é indicado pelo índice que figura no final do segundo volume.
VII. O pobre .................................................................................................................. 493
Digressão sobre o caráter coibente de certos comportamentos coletivos .......... 513
primeira leitura da presente obra de Simmel na sua versão castelhana, darmos conta
de que a voz: “positivo”, estava despojada geralmente de toda valoração ética, e a
significar apenas: “afirmativo, que faz uma asserção” – como ocorre, por exemplo,
no Capítulo V, lugar em que a tradução hispânica fala da finalidade “positiva” da
mentira ou de seu caráter de “tática positiva”. “Negativo” tem efeito anfibológico
similar, como se pode perceber (superada uma primeira perplexidade) na digressão
única do Capítulo VII. Nesse caso, a versão espanhola fala (desde o próprio título) da
“negatividad” de certos comportamentos coletivos, aludindo a sua capacidade de
coibir ou reprimir, ou de expressar negação ou recusa. Felizmente, a língua
portuguesa possui dois bons adjetivos para qualificar o afirmativo e o impeditivo,
respectivamente, como: “assertivo” e “coibente”, sem deixar dúvidas acerca de seu
alcance semântico. Foi esse, por consequência, o caminho escolhido na nossa
tradução – apoiada, como ao longo de todo o trabalho, no Dicionário da Língua
Portuguesa e no Dicionário de Elementos Mórficos de Antônio Houaiss, reunidos na
sua versão eletrônica (Rio de Janeiro, Objetiva, 2009).
Realizar esta tradução, com suas numerosas vicissitudes, nos pareceu
alguma vez uma luta solitária e sem fim. De fato, porém, o projeto e a sua
concretização contaram com o auxílio, material e espiritual de várias pessoas e
algumas instituições. Dentre estas últimas, destacamos o Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que
nos ofereceu o espaço institucional necessário para o presente trabalho, e dispôs de
uma parcela de seus magros recursos para cobrir parcialmente as despesas da
revisão idiomática – que também contou com a ajuda econômica do Centro de
Estudos Europeus e Alemães (CEDEA), sediado em Porto Alegre, e a quem muito
agradecemos a sua valiosa colaboração. Rendemos tributo igualmente à Editora
Fundação Fênix, na pessoa do excelente Jair Inácio Tauchen que, sem poupar
esforços, conseguiu pilotar o projeto editorial deste livro. No entanto, se há alguém
que, desde o princípio, apoiou com seus conselhos e experiência a nossa tradução
foi a dileta e distinta colega Clarissa Eckert Baeta-Neves, que se tornou assim numa
grande animadora deste empreendimento acadêmico. Faltam-nos palavras para
expressar-lhe aqui o nosso sincero agradecimento. Que estendemos a Danilo
Martuccelli, que consentiu prefaciar a tradução em um tempo extraordinariamente
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diferentes assuntos que ele já examinara previamente – uma estratégia temática que
não foi alheia a sua condição de privatdozent, espécie de docente independente cuja
remuneração variava com o número de alunos.
O que está dito acima dá conta da especificidade relativa de Sociologia no
conjunto dos trabalhos de Simmel. Contudo, o esforço de sistematização presente
neste livro não conseguirá dissipar completamente as críticas ou restrições
expressadas amiúde relativamente a Simmel: a de ser um ensaísta, autor mais
preocupado com as ideias do que com as demonstrações, animado por uma
sensibilidade ao encontro da modernidade que, por vezes, nos faz lembrar Baudelaire
e seus textos de crítica dedicados à ideia de beleza moderna. Mesmo que não seja a
questão central dos trabalhos aqui reunidos, é possível reconhecer, para além da
curiosidade que leva nosso autor a abordar muitos dos temas desenvolvidos, uma
representação específica da modernidade. No entanto, é certo que a modernidade é
muito menos diretamente relevante na determinação do objeto de Sociologia. Porque
não há dúvidas de que o grande propósito desse livro, através de uma sucessão
vertiginosa e cambiante de olhares e explorações, é delimitar o que é próprio da
perspectiva sociológica, definir a disciplina, balizar seu campo.
Ainda que em Sociologia, Simmel não deixe de recorrer em algumas ocasiões
ao impressionismo, seu projeto explícito é assentar os fundamentos básicos da
sociologia como disciplina científica. Se a posteridade tem privilegiado a
interpretação de Simmel da modernidade (e a intenção de examinar as razões
objetivas de todas as inquietações subjetivas da modernidade), em Sociologia se
encontra sua verdadeira e específica visão da disciplina.
a imprecisão desse último conceito, mas, na verdade, é óbvio que para Simmel a
noção de forma designa uma representação e uma organização da experiência, bem
como uma manifestação, mais ou menos consolidada, de algumas práticas sociais
ou culturais. As formas (que outras escolas, e desde diferentes coordenadas
teóricas, também denominam instituições) são concretizações – figuras autônomas
e enquadramentos duradouros – que permitem articular o agir recíproco dos
indivíduos. A sociedade se desfaz como conceito total em benefício de toda uma
série de formas de sociação – mais ou menos duráveis, mais ou menos efêmeras,
mais ou menos antagônicas entre si. No entanto, se os aspectos dinâmicos são
indissociáveis das formas institucionalizadas, a dinâmica das relações sociais se
mostra reticente a toda formalização definitiva.
Aqui reside a base do gênio sociológico de Simmel, mas também uma parte
dos mal-entendidos que o acompanharam por toda a vida, mantendo-se até hoje.
Para Simmel, a sociedade é um conceito por demais contundente que erroneamente
produz uma imagem excessiva e totalizante da vida social, silenciando a dinâmica
efetiva das relações sociais. Mais ainda, a noção de sociedade não possui as
qualidades necessárias para revelar as particularidades da sociologia como
disciplina – porquanto, no fim das contas, todas as ações humanas se desenvolvem
na sociedade. O que define a sociologia é o estudo das maneiras nas quais os
indivíduos interagem reciprocamente e constituem uma unidade permanente ou
temporária através de diversas formas de sociação.
Essas formas produzidas na e pela própria vida social são o objeto privilegiado
da sociologia, que deve tentar isolá-las dos seus conteúdos (estados de espírito,
pulsões, interesses, objetivos dos indivíduos). Embora a subjetividade se encontre
na base de muitas das interpretações de Simmel, as formas de sociação são
irredutíveis a qualquer imagem que se forme sobre elas em sociedade. Daí (como o
leitor irá descobrir) a importância das reflexões digressivas de Simmel sobre a
psicologia social ou as analogias possíveis entre as relações psicológicas
individuais e coletivas. Essa separação analítica dá conta do fato de que uma
diversidade de comportamentos possa ter lugar no âmbito de quadros formalmente
idênticos, bem como de que um mesmo conteúdo ou interesse possa manifestar-se
em uma pluralidade de formas sociais. Na melhor das hipóteses (concede Simmel) a
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soma dessas formas sociais é o que pode ser chamado, por abstração, de sociedade.
No entanto, são as formas (modelos de sociação variados e constantes), as que dão
conta da regularidade das práticas humanas.
Por vezes, essa perspectiva tem sido denominada de sociologia formal. A
designação não é excessiva, desde que se reconheça a dinâmica dos processos
metamórficos e contraditórios por trás das formas sociais. Na verdade, a sociologia
formal de Simmel insiste tanto ou mais nos processos e nos mecanismos que a cada
instante recriam a sociedade, do que em uma classificação das principais formas da
vida social.
Desse modo, o problema da sociologia é explicitamente abordado desde o
primeiro capítulo, e aprofundado em torno de uma pergunta singular: como é possível
a sociedade? Simmel expõe aqui uma intuição que desenvolveu ou retomará várias
vezes ao longo da vida: a sociedade se produz através de seus indivíduos. Daí a
necessidade de estudar os processos que ocorrem nos indivíduos e que condicionam
a sua existência como membros da sociedade. Nosso autor afirma inclusive a
possibilidade de estudar as formas sociais independentemente dos estados
psíquicos dos indivíduos e nunca deixar de procurar compreendê-las em relação às
configurações concretas individuais. Simmel examina detalhadamente os três a
priori dessas formas de sociação. Primeiro, a vida social baseia-se em abstrações,
em imagens parciais dos outros. Só percebemos as demais pessoas através de
generalizações ou caracterizações, pelos papéis desempenhados dentro de
contextos específicos. Em segundo lugar, mesmo se o indivíduo é caracterizado
pelos papéis que representa, Simmel lembra-nos que todo indivíduo também é mais
qualquer coisa, que não se reduz apenas a sua dimensão social. Não há possibilidade
de “sociação total” do homem: as interações sociais e as relações de
interdependência não esgotam o ser humano em si mesmo, na sua dimensão ampla
e fundamental. Uma parte dele fica sempre de fora da vida social, o que permite
compreender que, para Simmel, o indivíduo é sempre mais do que a soma de todas
as suas manifestações. Em cada interação, o indivíduo é apreendido apenas sob um
aspecto sem que as suas outras determinações pessoais sejam minimamente
consideradas. E, por último, a vida em sociedade se desenvolve igualmente como se
todos os elementos estivessem predeterminados por posições objetivas na
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hierarquia social, seja qual for o genuíno desejo dos indivíduos. Nas sociedades
modernas, as pessoas são cada vez mais dependentes do agir de um número sempre
crescente de indivíduos e, ao mesmo tempo e de igual modo, são cada vez mais
independentes de cada indivíduo em particular. Uma dimensão coerciva da vida
social que Simmel retomará anos mais tarde, já no quadro de referência do vitalismo,
como uma oposição entre o objetivo e o subjetivo, que considerará característica da
tragédia da cultura moderna.
O tempo apagou a profunda originalidade de tal proposta. Como acontece
tantas vezes com os clássicos (eis onde reside seu estatuto e sua qualificação), esse
olhar modela hoje em profundidade a sociologia. Por isso, o leitor não deve esquecer
que está diante daquilo que é, com certeza, uma das primeiras versões do que anos
mais tarde (e através de uma criativa recepção da obra de Simmel em Chicago)
tornar-se-á o paradigma interacionista – e, de maneira mais ampla, uma
preocupação pelo cotidiano ou a microssociologia. No entanto, o leitor deve, acima
de tudo, ser sensível ao fato de que, ao fixar o seu olhar na vida social do começo do
século XX, Simmel arvora-se como um dos primeiros sociólogos a definir o objeto da
sociologia independentemente da sociedade e, por conseguinte, do Estado Nação – e
do quase monopólio dos problemas que afetam o Estado ou que o Estado define e
impõe. Sem descurar a dimensão estatal, Simmel se interessa por outra grande
família de problemas e de experiências. Isso constitui a principal originalidade de sua
obra, sem dúvida o seu talento único entre os clássicos, e também o que lhe valeu,
curiosamente, uma reputação de longa data como ensaísta.
É sua visão da sociedade como produto das interações dos indivíduos
(concebidos como atores sociais) o que explica tanto sua maneira de analisar os
fenômenos grupais, como a diversidade de práticas ou formas sociais que se tornam
objeto de sua avaliação crítica. Inclusive quando analisa, por exemplo, a questão do
pobre, seu olhar descentraliza a temática, desenvolvendo um particular interesse
pelas maneiras em que o pobre é produzido (através de uma infinidade de formas de
sociação – na verdade, de tipos de intervenção social), e pela dupla significação do
distanciamento do desvalido a respeito do coletivo – que esclarece à luz da metáfora
kantiana da “exterioridade” do espaço a respeito da consciência. Acuidade que, além
disso, encontramos na observação atenta que Simmel dedica em outros capítulos à
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razão final por detrás do estudo da vida social – que só se pode compreender a partir
das variadas formas de sociação.
O legado de Simmel
Danilo Martuccelli.
Université de Paris 5 – Universidad Diego Portales.
Prefácio1
1
O Prefácio foi escrito por Georg Simmel. (NT)
SOCIOLOGIA
ESTUDOS SOBRE AS FORMAS DE SOCIAÇÃO
I. O problema da sociologia
seja até agora desconhecida. Tudo o que designamos em geral como objeto é um
conjunto complexo de determinações e relações, cada uma das quais, mesmo
aparecendo numa pluralidade de objetos, pode converter-se, por sua vez, em objeto
de uma nova ciência. Toda ciência repousa sobre uma abstração, porque considera,
em cada um de seus aspectos e desde o ponto de vista de um conceito cada vez
diferente, a totalidade de uma coisa que nenhuma ciência nos permite abranger
como uma unidade. Diante da totalidade da coisa e das coisas, toda ciência nasce
de uma divisão do trabalho que descompõe esta totalidade em qualidades e funções
particulares, após encontrar um conceito que permite isolar estas últimas e
comprovar metodicamente sua presença nas coisas concretas. Assim, por exemplo,
os fatos linguísticos que ora são compreendidos como o material da linguística
comparada, estavam presentes desde há muito tempo em fenômenos submetidos a
estudo cientifico, mas a ciência especial da linguística comparada surgiu com a
descoberta do conceito graças ao qual esses fatos, antes dispersos em diversos
conjuntos linguísticos, passaram a constituir uma unidade e aparecer regulados por
leis particulares.
Da mesma maneira, a sociologia, enquanto ciência particular poderia achar
também seu objeto particular, dispondo segundo uma nova abordagem, certos fatos
perfeitamente conhecidos como tais, só que sem ter sofrido até então o efeito desse
conceito que permitiu compreender que o aspecto desses fatos correspondente a tal
abordagem é comum a todas as abordagens e constitui uma unidade cientifico
metodológica. Em face dos fatos extremamente complexos da sociedade histórica,
impossíveis de serem abrangidos sob um único ponto de vista científico, os
conceitos de política, economia, cultura, etc. produzem séries epistemológicas deste
tipo. Isso se dá de dois modos: por um lado, vinculando certas partes desses fatos e
apartando (ou utilizando apenas de uma forma acidental) os outros e, por outro lado,
dando a conhecer agrupamentos de elementos (ora individuais) que encerram uma
estrutura intemporal necessária. Se quisermos que a sociologia exista como ciência
particular, será necessário que o conceito de sociedade como tal submeta os dados
socio-históricos a uma abstração e reorganização novas, de sorte que (sem
contentar-se em reunir exteriormente esses fenômenos) algumas de suas
determinações, que até então só tinham sido consideradas em muitas outras
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por ela, não é a sociedade em si, mas simplesmente um conteúdo que se constitui
ou que é constituído por essa forma de coexistência, e que só produz com ela essa
estrutura concreta que habitualmente chamamos “sociedade” no sentido mais
amplo e usual. A abstração científica separa estes dois elementos indissoluvelmente
unidos na realidade: as formas da ação recíproca ou da sociação só podem ser
reunidas e submetidas a um ponto de vista científico unitário se o pensamento as
separa dos conteúdos, os que somente se tornam conteúdos sociais graças a elas.
Eis, segundo nosso parecer, o único fundamento que torna plenamente possível uma
ciência especial da sociedade como tal. Dessa forma e graças a ela os fatos que
designamos com o nome de realidade sócio-histórica seriam verdadeiramente
projetados sobre a tela do puramente social.
Todavia, ainda que semelhantes abstrações – as únicas que permitem
produzir ciência a partir da complexidade e até da unidade do real – tenham surgido
das necessidades próprias do conhecimento, é preciso, porém, que elas tenham
alguma legitimação proveniente da própria estrutura do objeto. Pois só a existência
de alguma relação funcional com os fatos pode evitar o perigo dos questionamentos
estéreis e o caráter aleatório da formação dos conceitos científicos. Mesmo se um
naturalismo ingênuo se engana considerando que o dado na realidade contém os
princípios de ordenação, analíticos e sintéticos, graças aos quais essa realidade
dada pode ser conteúdo de ciência, não é menos certo que as determinações que
pertencem verdadeiramente ao dado são mais ou menos flexíveis e se acomodam
mais ou menos àquelas regras: assim, por exemplo, ainda que um retrato transforme
fundamentalmente a figura natural humana, há, porém, figuras que mais bem se
acomodam que outras a esta transformação radical. Observando este critério
podemos, consequentemente, definir a maior ou menor legitimidade dos problemas
e métodos científicos. Assim, o direito de analisar os fenômenos histórico-
sociológicos em função de suas formas e de seus conteúdos, e de fazer a síntese
dos primeiros, repousará sobre duas condições que só os fatos permitirão verificar.
Por uma parte, é preciso que uma mesma forma de sociação se apresente com
conteúdos totalmente distintos para fins completamente diversos, e por outra, é
necessário que os mesmos interesses apareçam realizados em diversas formas de
sociação – bem como as mesmas formas geométricas se encontram nas mais
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diversas matérias e que a mesma matéria se apresenta nas formas espaciais mais
diversas (o que também sucede com as formas lógicas a respeito dos conteúdos
materiais do conhecimento).
Ora, ambas as coisas são de fato inegáveis. Encontramos as mesmas relações
formais de uns indivíduos com outros em grupos sociais que por seus fins e por toda
a sua significação são absolutamente diversos. Subordinação, concorrência,
imitação, divisão do trabalho, parcialidade, representação, solidariedade interna
acompanhada de fechamento a tudo o que vem de fora, e infinitas formas
semelhantes se encontram tanto numa sociedade política como em uma
comunidade religiosa, em um bando de conspiradores como em uma cooperativa
econômica, em uma escola de arte e em uma família. Por variados que sejam os
interesses que levam a essas sociações, as formas em que se apresentam podem
ser as mesmas. Por outra parte, um mesmo interesse pode mostrar-se em sociações
de formas diversas. O interesse econômico, por exemplo, se realiza tanto pela
concorrência como pela organização planificada dos produtores, às vezes fechando-
se a outros grupos econômicos, à vezes associando-se a eles. Os conteúdos da vida
religiosa permanecem idênticos do ponto de vista da doutrina, e adotam algumas
vezes uma forma de comunidade liberal, e outras, uma forma centralizada. Os
interesses baseados nas relações sexuais se satisfazem na pluralidade quase
incalculável das formas familiares. O interesse pedagógico conduz a uma relação
liberal entre o mestre e os alunos ou a uma forma despótica, pois produz ações
recíprocas individualistas entre o mestre e os discípulos, e também estabelece
relações mais coletivas entre eles. Por consequência, a forma com que se realizam
os mais distintos conteúdos, pode ser única e, da mesma maneira, permanecer única
a matéria assim como a convivência dos indivíduos em que a matéria se apresenta.
Em compensação, essa matéria pode ser oferecida em uma grande diversidade de
formas. Daí resulta que, na realidade a matéria e a forma dos fatos constituem uma
inseparável unidade da vida social, e que podemos extrair dela essa legitimação do
problema sociológico que reclama a determinação, ordenação sistemática,
fundamentação psicológica e evolução histórica das formas puras de sociação.
Este problema é totalmente oposto ao procedimento pelo qual se têm criado
as diversas ciências sociais existentes. Com efeito, a divisão do trabalho entre elas
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sociais naquele primeiro sentido, seu objeto é tudo o que ocorre na e com a
sociedade. A ciência social no segundo sentido tem por objeto as forças, relações e
formas por meio das quais os homens (enquanto atores sociais) se relacionam,
constituindo a “sociedade” senso stritissimo. Coisa que não aparece desvirtuada
pelo fato de que o conteúdo, as modificações especiais de seu fim e o interesse
material da sociação decidam amiúde ou sempre sobre sua conformação. Seria
totalmente errôneo objetar que todas estas formas (hierarquias e corporações,
concorrências e formas matrimoniais, amizades e usos sociais, governo de um ou de
muitos) não são mais que acontecimentos produzidos em sociedades já existentes,
porque se não existisse de antemão uma sociedade faltaria o pressuposto e a
ocasião para que surgissem as formas. Tal crença provém do fato de que, em todas
as sociedades que conhecemos, há grande número de formas de relações de
interdependência atuando, isto é, de sociação. Embora só ficasse uma delas,
teríamos ainda “sociedade”, de maneira que todas elas podem parecer
acrescentadas ou nascidas dentro de uma sociedade já acabada. Mas se
imaginássemos desaparecidas todas as formas singulares de sociação, já não
restaria nenhuma sociedade. Só quando se criam estas relações de
interdependência, por certos motivos e interesses, surge a sociedade. Por via de
consequência, pois, e ainda que a história e as leis das organizações totais assim
surgidas sejam coisa da ciência social em sentido amplo, tendo em conta que esta
ciência se tem já cindido nas ciências sociais particulares, podemos afirmar que
cabe uma sociologia em sentido estrito, com um problema especial: o problema das
formas abstratas, formas que, mais que determinar, constituem a própria sociação.
Dessa maneira, a sociedade, no sentido que interessa à sociologia, ou sob o
conceito geral abstrato que abarca todas estas formas, é o gênero do qual elas são
espécies, ou a soma dessas formas ativas que age em cada caso. Outra
consequência desse conceito é que um número dado de indivíduos pode ser
sociedade em maior ou menor grau. A cada aumento de estruturas sintéticas, a cada
criação de partidos, a cada união para uma obra em comum, a cada distribuição
precisa do mando e da obediência, a cada comida em comum, cada vez em que a
gente se atavia para os outros, o mesmo grupo se torna mais “sociedade” do que era
antes. Não há uma sociedade pura que seria a condição para o surgimento dos
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fica paralisado.
De igual maneira, deve ser o procedimento com todas as grandes relações e
ações recíprocas que formam a sociedade: com os partidos, com a imitação, com a
formação de classes, círculos e divisões secundárias, com a maneira em que certas
ações sociais recíprocas se encarnam em entidades particulares de natureza
objetiva, ideal ou pessoal, com a aparição e o papel que desempenham as
hierarquias, com a “representação” de comunidades por indivíduos, com a
importância de um inimigo comum para a coesão interna do grupo. Outros fatos se
acrescentam aos problemas maiores desse tipo: fatos, aliás, que são às vezes mais
específicos ou mais complexos, e contêm a forma determinante dos grupos, dentre
os quais citaremos como exemplo dos primeiros a significação do “terceiro
imparcial”, a do “pobre” como membro orgânico da sociedade, a da determinação
numérica dos elementos do grupo, a do primus inter pares e a do tertius gaudens.
Poderíamos ainda citar processos mais complexos, como por exemplo, o
cruzamento de múltiplos círculos em pessoas individuais, a função especial do
“segredo” na constituição de círculos, a modificação dos caracteres dos grupos
segundo a abrangência de indivíduos que se encontrem na mesma localidade ou de
elementos separados, e outros inumeráveis.
Como indicamos, prescindimos aqui da questão sobre a existência de uma
absoluta igualdade de forma com diversidade de conteúdo. A igualdade aproximada
em circunstâncias materiais muito distintas – assim como o contrário – que as
formas oferecem é suficiente para considerá-la em princípio possível. O fato de que
essa igualdade não se realize por completo demonstra justamente a diferença entre
o acontecer histórico-espiritual, com suas flutuações e complicações irredutíveis, à
plena racionalidade, e a capacidade da geometria para extrair com plena pureza de
sua realização material as formas submetidas a seu conceito. Tenha-se também em
conta que tal igualdade na forma da ação recíproca, qualquer que seja a diversidade
do material humano e real, e vice-versa, não é, por enquanto, mais do que um meio
auxiliar para realizar e justificar a distinção científica entre forma e conteúdo nos
diversos fenômenos complexos. Metodologicamente, essa distinção seria
necessária mesmo se os conjuntos reais dos fatos tornassem impossível o
procedimento indutivo que consiste em separar o igual do diverso, da mesma
48 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
não só a carência de uma base indubitável para lidar com o conceito fundamental de
sociologia, mas também os muitos aspectos dos acontecimentos em que a
subordinação a este conceito ou ao de conteúdo segue sendo arbitrária, mesmo em
caso de operar com ele de modo eficaz. Em que medida, por exemplo, o fenômeno da
“pobreza” é de natureza sociológica, isto é, um resultado das relações formais dentro
de um grupo, condicionado pelas correntes e mutações gerais que necessariamente
se produzem na coexistência dos homens, ou bem, simplesmente, uma
determinação material de certas existências particulares, exclusivamente desde o
ponto de vista do interesse econômico? Em geral, os fenômenos históricos podem
ser considerados a partir de três pontos de vista fundamentais: 1) em função das
existências individuais, que são os sujeitos reais das circunstâncias; 2)
considerando as formas de ação recíproca, que ainda que só se realizem entre
existências individuais, não são estudadas desde o ponto de vista das próprias ações
recíprocas, mas dos pontos de vista de sua coexistência, sua colaboração e ajuda
mútua; e 3) do ponto de vista dos conteúdos exprimíveis conceitualmente, das
situações ou dos acontecimentos nos quais se tem em conta, agora, não seus
sujeitos ou as relações que estes mantêm entre si, mas seu sentido puramente
objetivo expressado na economia e na técnica, na arte e na ciência, nas formas
jurídicas e nos produtos da vida sentimental.
Esses três pontos de vista se misturam continuamente. A necessidade
metodológica de distingui-los esbarra sempre na dificuldade de ordenar cada um
deles em uma série independente dos outros, e no anseio de obter uma imagem única
da realidade que compreenda todos seus aspectos. Além do mais, não se pode
determinar para cada um dos casos a profundidade com que eles se interpenetram,
de sorte que, por grande que seja a clareza e o rigor metodológicos, não se pode
evitar esta ambiguidade. O estudo dos problemas particulares parecerá pertencer
tanto a uma como a outra categoria e, ainda dentro de uma delas não se pode mantê-
la com segurança fora do processo da outra. Confiamos, todavia, que a metodologia
sociológica que aqui oferecemos resulte mais segura e ainda mais clara nas
exposições dos problemas particulares que nesta fundamentação abstrata. Com
efeito, no mundo das ideias não é estranho – diríamos que até é corrente tratando-
se de problemas gerais e profundos – que isso que uma metáfora inevitável nos
50 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
obriga a chamar de alicerces não seja tão sólido como o edifício construído sobre
eles. A prática científica, especialmente nas áreas até agora inexploradas, também
não poderá prescindir de certa dose de processo intuitivo, cujos motivos e normas
só depois virão a ser perfeitamente conscientes e conceitualmente elaborados. E
ainda sendo certo que o trabalho científico não pode em nenhuma esfera fiar-se
plenamente de procedimentos pouco claros até este momento, instintivos, que só
agem imediatamente no estudo de casos particulares, seria condená-lo à
esterilidade exigir-lhe uma metodologia plenamente acabada desde o primeiro
passo, quando aborda problemas novos1.
Dentro do campo dos problemas propostos, que distinguem, por uma parte, as
formas de ação recíproca produto das interações entre os indivíduos (concebidos
como atores sociais), e por outra, o fenômeno total da sociedade, certas partes dos
estudos aqui propostos se situam já quantitativamente fora dos problemas em geral
reconhecidos como sociológicos. Com efeito, a partir do momento em que nos
perguntamos sobre as influências recíprocas dos indivíduos cuja adição produz a
coesão constitutiva da sociedade, logo aparece uma série e até um universo dessas
formas relacionais que, no momento, não têm sido integradas à ciência social ou que,
quando integradas, permanecem sem que se perceba seu significado fundamental e
vital. Em geral, a sociologia se tem limitado a estudar aqueles fenômenos sociais nos
quais as forças de ação recíproca dos indivíduos têm cristalizado já em unidades,
1
Se tivermos em conta a infinita complexidade da vida social, e considerarmos que os conceitos e
métodos com os quais ela deve ser dominada intelectualmente acabam de sair de sua rudeza
primitiva, seria louca presunção pretender propor neste momento da pesquisa questões
suficientemente claras para conseguir compreender acabadamente os problemas e obter respostas
exatas. Mais digno nos parece confessar isto de antemão, pois desta forma, quando reconhecemos
sem reservas o problema, enquanto declarando perfeita esta ciência, tornaríamos questionável
inclusive o sentido de tais tentativas. Nesta ordem de ideias, os capítulos deste livro só devem ser
considerados- como exemplos no que tange ao método e, quanto ao conteúdo, como fragmentos do
que entendemos por ciência da sociedade. Em ambos os sentidos parecia apropriado escolher os
temas mais heterogêneos, misturando o geral e o especial. Se o que propomos aqui não forma um
conjunto sistematicamente coerente, se suas diferentes partes estão muito distantes umas das
outras, tanto mais amplo aparecerá o círculo dentro do qual uma sociologia mais acabada unirá os
pontos que já hoje podem fixar-se isoladamente. Se sublinharmos, nós mesmos, o caráter
fragmentário e incompleto deste livro, não quer dizer que pretendamos nos defender com fácil
precaução de objeções desse gênero. Pois, se a arbitrariedade indubitável na escolha dos problemas
particulares e dos exemplos parecesse uma falta, isso provaria apenas que não conseguimos fazer
compreender com suficiente clareza nossa ideia fundamental. Só se trata aqui do começo e guia para
um caminho infinitamente longo, pelo que pretender a plenitude sistemática seria, enganar-nos a nós
mesmos. Neste ponto, para o indivíduo, a plenitude completa só é possível num sentido subjetivo,
quer dizer comunicando quanto se tem conseguido ver. (NS)
Georg Simmel | 51
delas, pois o que mais interessa para nós são as motivações, os sentimentos, os
pensamentos e necessidades da alma. Por consequência, poderíamos dizer que
chegamos à inteligência causal de qualquer acontecer social quando, partindo de
certos dados psicológicos desenvolvidos conforme a “leis psicológicas” (por
problemático que seja este conceito), chegássemos a deduzir plenamente esses
acontecimentos. Também não cabe dúvida que apenas compreendemos da
existência histórico-social certos encadeamentos psíquicos que reconstruímos com
o auxílio de uma psicologia (por vezes instintiva e por vezes metódica), de tal sorte
que temos a convicção interior de que os desenvolvimentos em questão são
plausíveis ou psiquicamente necessários. Nesse sentido, toda história, toda
descrição de um estado social é um exercício de psicologia, com uma ressalva
decisiva e de extraordinária importância para as ciências humanas em geral, a saber:
o tratamento científico dos fatos psíquicos não compete exclusivamente à
psicologia. Ainda nos casos em que fazemos uso ininterrupto de regras e
conhecimentos psicológicos, ainda nos casos em que a explicação de cada fato
isolado só é possível por via psicológica – como ocorre, aliás, na sociologia –, não
é preciso que o sentido e a intenção dessa abordagem sejam referidos forçosamente
à psicologia, quer dizer à lei do processo psicológico, mas ao conteúdo mesmo e às
configurações do dito processo. Temos aqui apenas uma diferença de grau a
respeito das ciências da natureza exterior que, afinal de contas e como fatos da vida
psíquica que são, também se produzem dentro da alma. O descobrimento de
qualquer verdade astronômica ou química, assim como a reflexão sobre elas, é um
fato da consciência que uma psicologia poderia deduzir exclusiva e inteiramente dos
processos e desenvolvimentos psíquicos. Todavia, na medida em que seu objeto não
sejam apenas os processos psíquicos e passem a sê-lo o conteúdo e as relações
destes processos, as ciências em questão se constituem da mesma maneira em que
interpretamos um quadro em função de sua significação estética e histórico-
artística, e não pelas vibrações físicas que constituem ademais suas cores,
expressando toda a existência real do quadro.
A realidade é sempre impossível de abarcar cientificamente em sua
integridade imediata: temos que apreendê-la desde diversos pontos de vista
separados, criando assim uma pluralidade de objetos científicos independentes uns
Georg Simmel | 55
dos outros. Ora, a mesma abordagem se impõe para aqueles fatos psíquicos cujos
conteúdos não se reúnem em um mundo espacial independente, e que não
respondem de maneira visível à sua manifestação psíquica concreta. Por exemplo,
as formas e as leis de uma língua (que se têm formado evidentemente pelas energias
da alma e para os fins dela), são objeto, porém, de uma ciência da linguagem que
prescinde completamente daquela realização de seu objeto, que expõe, analisa ou
constrói por seu conteúdo objetivo e pelas formas que se dão nesse conteúdo. O
mesmo acontece com os fatos da sociação. O fato de que os homens se influenciem
reciprocamente, que alguns deles façam ou sofram algo ou se transformem porque
outros existem, se manifestam, obram ou sentem, naturalmente é um fenômeno da
alma, e a produção histórica de cada caso individual só pode compreender-se
reconstruindo psicologicamente, por meio de séries psicológicas plausíveis, por
interpretação, graças a categorias psicológicas, certos fatos exteriormente
observáveis. Porém, um propósito científico particular pode negligenciar
completamente esse fato psíquico tal qual ele se apresenta, e seguir seus conteúdos
separadamente, analisando-os, relacionando-os do mesmo modo em que eles
entram no conceito de sociação.
Assim, podemos constatar, por exemplo, que a relação de um poderoso com
outros mais fracos, quando tem a forma do primus inter pares, tende tipicamente a
converter-se em uma posição de poder absoluto do primeiro suprimindo
gradualmente os elementos de igualdade. Ainda que a realidade histórica seja um
processo psíquico, o que nos interessa desde o ponto de vista sociológico é como a
estes casos sucedem os diversos estádios de dominação e de subordinação, até que
ponto a dominação em certos sentidos é compatível com a igualdade em outras
relações, em que medida a dominação aniquila esta igualdade, assim como se a
união e a possibilidade de cooperação são maiores nos estádios anteriores ou
posteriores desta evolução, etc. Ou bem se descobre que as inimizades são mais
assanhadas quando surgem sobre a base de uma comunidade ou uma afinidade
anterior ou que está presente ainda de alguma maneira, da mesma forma que amiúde
se diz que o ódio maior é o que se dá entre parentes. Esse resultado só poderá
conceber-se e descrever-se de forma psicológica. Mas, se o consideramos desde um
ponto de vista sociológico, o que interessa não é a série psíquica que se desenvolve
56 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
2
Quando se inicia uma nova maneira de considerar os fatos, há que sustentar os distintos aspectos
de seus métodos em analogias tiradas de campos já conhecidos; mas unicamente o processo (acaso
Georg Simmel | 57
infinito) em virtude do qual o princípio se realiza dentro da pesquisa completa (realização que
demonstra seu grau de fecundidade), pode tornar supérfluas tais analogias e mostrar a igualdade de
forma oculta sob a diversidade de matérias. Este processo só eliminará evidentemente todo risco de
equívoco na medida em que torne as ditas analogias supérfluas. (NS)
58 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
dotam os indivíduos de tais pulsões para que produzam a sociedade? Qual é o a priori
que possibilita e conforma a estrutura empírica do indivíduo como ser social? Como
são possíveis, não só as elaborações individuais produzidas empiricamente e
incluídas no conceito universal de sociedade, mas também a sociedade em geral
como forma objetiva de almas subjetivas?
formar parte de uma sociedade, mas em todo caso cada um sabe que o outro está
vinculado a ele, mesmo quando este saber acerca das formas ou modos pelos quais
ambos se relacionam, todo este conhecimento da totalidade como sociedade, é
obtido de forma ordinária em relação a conteúdos individuais e concretos. Talvez
ajamos a esse respeito da mesma maneira que atuamos de acordo com a “unidade
do conhecimento” nos processos conscientes: encadeando um conteúdo concreto
em outro sem ter, apesar disso, outra consciência particular desta unidade que a
surgida de raras e posteriores abstrações. A questão se nos apresenta agora deste
modo: quais elementos gerais e a priori servirão de fundamento, que pressupostos
têm que agir, para que os processos singulares concretos da consciência do
indivíduo sejam verdadeiros processos de sociação? Que condições contidas neles
tornam possível que seu resultado seja – em termos abstratos – a produção de uma
unidade social, a partir de elementos individuais? Os fundamentos a priori
sociológicos terão a mesma e dupla significação que aqueles que “fazem possível”
a natureza. Por uma parte, determinarão de maneira mais ou menos perfeita os
processos reais de sociação como funções ou atividades do mundo das ideias;
enquanto por outra, serão os pressupostos ideais lógicos da sociedade perfeita
– ainda que talvez nunca realizada com essa perfeição. Um pouco como a lei da
causalidade, que por um lado vive e age nos processos efetivos do conhecimento e,
por outro, constitui a forma de verdade como sistema ideal dos conhecimentos
perfeitos – independentemente de que essa forma seja realizada ou não por esta
dinâmica, temporal e relativamente aleatória do mundo das ideias, e com abstração
da distância existente entre a verdade realmente conseguida e a verdade idealmente
pensada.
Quanto a saber se o estudo das condições do processo de sociação deve ou
não ser qualificado de epistemológico, trata-se a nosso ver de uma mera questão de
designação terminológica, pois, no fundo, os produtos resultantes e determinados
por essas condições não são conhecimentos, mas processos práticos e realidades.
Todavia, isso do qual falamos, o conceito geral de sociação, cujas condições
devemos estudar, tem algo de epistemológico: a consciência que os atores sociais
têm de seu mútuo relacionamento, de estar estabelecendo contatos e interações
sociais de reciprocidade. Talvez fosse mais justo chamá-la de conhecimento
64 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
imediato que de saber, pois o sujeito não se encontra aqui em face de um objeto do
qual vai adquirindo gradualmente uma ideia teórica, uma vez que é a consciência da
sociação a que imediatamente sustenta e contém em si seu sentido interno. Trata-
se de processos de ação recíproca que para o indivíduo significam o fato – não
abstrato, mas em todo caso capaz de ser abstratamente expressado – de estar
envolvido em relações de interdependência que ele próprio tem criado. Quais são as
formas fundamentais necessárias, ou ainda que categorias específicas o homem
deve apresentar para que surja esta consciência, e por conseguinte, quais são as
formas que deve ter esta consciência uma vez formada (a sociedade constituída
como fato sabido)? Eis o que bem pode constituir uma epistemologia da sociedade.
No que segue tentaremos de esboçar, como exemplo de tal estudo, algumas dessas
condições ou formas de sociação que agem a priori, ainda que não possam ser
designadas, como as categorias kantianas, com uma palavra só.
1) A imagem que uma pessoa tem de outra, graças ao contato pessoal, está
condicionada por certas deformações que não são simples erros devidos a uma
experiência incompleta ou a uma falta de acuidade visual ou a preconceitos
favoráveis ou desfavoráveis, mas a mudanças radicais na estrutura do objeto real. E
essas deformações vão, em princípio, em duas direções. Vemos o outro em certa
medida como o resultado de uma generalização, porque somos incapazes de nos
representar plenamente uma individualidade diferente da nossa. Toda imagem que
uma alma tem de outra está determinada pela semelhança. E ainda que não
estejamos diante da única condição do conhecimento espiritual (já que, por uma
parte, parece necessária uma desigualdade simultânea para que exista distância e
objetividade e, por outra, uma capacidade intelectual que se mantenha além da
igualdade ou desigualdade do ser), um conhecimento perfeito pressuporia, porém,
uma igualdade perfeita. Pareceria que cada homem tivesse em si um ponto profundo
de individualidade que não pudesse ser imaginado interiormente por nenhuma outra
pessoa em quem esse mesmo ponto fosse qualitativamente diverso. E se esta
exigência não é compatível logicamente com a distância e apreciação crítica
objetivas nas que repousa nossa representação do outro, isso prova somente que
nos é negado o conhecimento perfeito da individualidade alheia, e que as variações
dessa deficiência determinam todas as relações dos homens entre si. Ora, seja qual
Georg Simmel | 65
for sua causa, em todo caso sua consequência é uma generalização da imagem
espiritual do outro, uma imprecisão de contornos que põe essa imagem em relação
com outras, ainda que devesse ser única. Para os efeitos de nossa conduta prática,
imaginamos a todo homem como o tipo “homem” ao qual sua individualidade lhe faz
pertencer. Apesar de sua singularidade, o homem é pensado como parte de uma
categoria que decerto não coincide inteiramente com ele – circunstância que
diferencia esta relação daquela que existe entre o conceito geral e os casos
individuais incluídos nele. Para conhecer o homem não o vemos em sua
individualidade pura, mas amparado, elevado ou, às vezes também, rebaixado pelo
tipo ideal ao qual supomos que ele pertence. Ainda quando essa transformação seja
tão imperceptível que não possamos já reconhecê-la imediatamente, mesmo que os
habituais conceitos característicos não nos pareçam apropriados (como moral ou
imoral, livre ou servo, senhor ou escravo, etc.), isso não nos impedirá de designar o
homem, no fundo de nós mesmos, em função de certo tipo inexprimível em palavras
e com o qual não coincide seu ser individual.
E isso nos conduz mais longe ainda. A partir da total singularidade de uma
pessoa construímos uma imagem dela que não é idêntica a seu ser real, mas que
também não representa um tipo geral, senão a imagem que apresentaria essa
pessoa se fosse ela mesma plenamente, se realizasse, para o bem ou para o mal, a
possibilidade ideal que existe em todo ser humano. Todos somos fragmentos, não
só do homem em geral, mas também de nós mesmos. Somos esboços, não apenas
do tipo humano absoluto, não somente do tipo do bom ou do mau, mas também da
individualidade única de nosso próprio Eu, que como desenhado por linhas ideais,
contorna nossa realidade perceptível. Mas o olhar do outro completa esse caráter
fragmentário e nos converte no que não somos nunca pura e acabadamente. Não
podemos nos limitar a ver nos outros apenas esses fragmentos reais justapostos,
mas da mesma maneira como em nosso campo visual completamos o ponto cego
fisiológico sem nos dar conta dele, assim também com esses dados fragmentários
construímos uma alheia individualidade íntegra. A prática da vida nos obriga a formar
a imagem do homem a partir das únicas coisas concretas que sabemos
empiricamente dele. Mas é justamente por isso que essa imagem repousa naquelas
66 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
pertence. Sobre tudo isso paira, como princípio heurístico de conhecimento, a ideia
de sua determinação concreta, absolutamente individual. Mas, ainda que pareça que
unicamente quando tenhamos apreendido essa determinação individual poderemos
estabelecer nossa relação justa com o outro, essas modificações e transformações
que impedem seu conhecimento ideal são, justamente, as condições graças às quais
resultam possíveis as únicas relações que conhecemos como sociais – pouco mais
ou menos do mesmo modo que em Kant as categorias do entendimento, que
convertem as intuições dadas em objetos completamente novos, permitem que o
mundo dado seja cognoscível.
2) Existe outra categoria na qual os sujeitos se veem a si mesmos e aos outros
como construtores e formadores da sociedade empírica. Tal categoria pode
formular-se na afirmação aparentemente trivial de que cada elemento de um grupo
não é unicamente uma parte da sociedade, nem outra coisa diferente. Este fato age
como um a priori social na medida em que a parte do indivíduo que não está
orientada para a sociedade ou que não se confunde com ela não é simplesmente
deixada de lado, sem relação com a parte que tem sentido social, como algo que está
fora da sociedade, e ao qual esta última deve deixar espaço, quer queira quer não. O
fato de que o indivíduo em certos aspectos não seja um dos elementos da sociedade
constitui ao contrário a condição positiva para que ele seja um deles em outros
aspectos de sua natureza, de sorte que sua índole de incluído em certas relações de
interdependência está determinada, em parte, por sua condição de marginalizado de
outras interações sociais de reciprocidade. Nos estudos que seguem veremos
alguns tipos cujo sentido sociológico fica estabelecido em sua essência e
fundamento justamente pelo fato de estarem excluídos de certa forma de uma
sociedade para a qual, todavia, é importante sua existência: é o caso do estrangeiro,
do inimigo, do criminoso e ainda do pobre. Mas isso pode aplicar-se, com incontáveis
variantes, não só a estes tipos gerais, mas a toda existência individual. O fato de que
em todo momento nos vejamos envolvidos em relações com outros homens e direta
ou indiretamente determinados por essas relações, não depõe em nada contra isso,
já que a coletividade social se refere justamente a seres que não são inteiramente
abrangidos por ela. Sabemos que o funcionário não é somente funcionário, que o
comerciante não é apenas comerciante, que o oficial não é só oficial; no entanto, aos
68 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
olhos de todos aqueles que se deparam com eles, esse ser extrassocial – quer dizer,
seu temperamento e os reflexos de seu destino, seus interesses e o valor de sua
personalidade – mesmo que não altere significativamente suas atividades
burocráticas, mercantis e militares, imprime ao homem uma nuance particular de
forma que sua imagem social é modificada por imponderáveis extrassociais.
O trato dos homens dentro das categorias sociais seria distinto se cada um
aparecesse ao outro unicamente como o que ele é na categoria correspondente,
como sujeito do papel social que lhe tem sido atribuído. Os indivíduos, como as
profissões e as posições sociais, se distinguem segundo o grau em que admitem
junto com seu conteúdo social aquele outro elemento “estranho ao social”. Na série
desses graus, um dos polos pode estar constituído pela relação de amor ou de
amizade. Nesse tipo de relação, o que o indivíduo reserva para si mesmo, além da
atividade dedicada ao outro pode aproximar-se quantitativamente ao valor-limite
zero. Contemplando ou vivendo a relação amorosa desde dentro, a partir de seu
princípio (o terminus a quo do sujeito), mas também desde o ponto de vista de seu
fim, da entrega,(o terminus ad quem do ser amado), observa-se que não existe nessa
relação mais que uma vida única, que o ser amado assume inteiramente. Em outro
sentido, o sacerdote católico permite apreciar um fenômeno formalmente similar, por
quanto sua função eclesiástica recobriu e fez ficar totalmente sumida sua realidade
individual. No primeiro desses casos extremos, quando o elemento “alheio” à
atividade sociológica desaparece, é porque seu conteúdo se tem esgotado
totalmente na entrega ao outro; enquanto que no segundo caso isso é devido, em
princípio, ao desaparecimento dos conteúdos da atividade não social. O polo
contrário poderia ser representado pelas manifestações da civilização moderna
determinadas pela economia monetária, na qual o homem, considerado como
produtor, comprador ou vendedor, como trabalhador e, portanto, agente econômico,
se aproxima ao ideal da objetividade absoluta. Salvo nas posições de poder muito
elevadas e diretivas, a vida individual e a tonalidade da personalidade global estão
ausentes da atividade econômica. Os homens não são mais do que sujeitos de um
equilíbrio entre prestações e retribuições segundo normas objetivas, e tudo o que
não pertença a esta objetividade desaparece delas. O elemento “não social” atrai
para si a personalidade com sua coloração particular, sua irracionalidade e sua vida
Georg Simmel | 69
constituímos uma realidade separada: o ciclo dos elementos naturais passa por nós
como seres totalmente impessoais, e a igualdade perante as leis naturais reduz
nossa vida a um mero exemplo de sua necessidade. Da mesma maneira, em nossa
condição de seres sociais não vivemos em torno de um centro autônomo, mas a todo
momento somos conformados por relações recíprocas com os outros, sendo
comparáveis à substância corporal que, para nós, só existe como a soma de
múltiplas impressões sensoriais, mas não como existência em si e por si.
Todavia, sentimos que essa difusão social não dissolve inteiramente nossa
personalidade. Ademais não se trata apenas das reservas já mencionadas, de
conteúdos individuais cujo sentido e evolução se baseiam, certamente, na alma
individual e não têm lugar algum dentro do contexto social. Também não se trata
unicamente da formação dos conteúdos sociais, cuja unidade de alma individual não
é, por sua vez, integralmente social, do mesmo modo que não pode deduzir-se da
natureza química das cores a forma artística que as manchas cromáticas de um
quadro adquirem na teia. Antes de tudo, trata-se do conteúdo social da vida, mesmo
que possa ser explicado acabadamente pelos antecedentes e interações sociais, e
de que seja considerado simultaneamente também sob a categoria da vida
individual, como vivência do indivíduo e orientado exclusivamente a ele. Essas são
diversas categorias sob as quais se considera um e o mesmo conteúdo
comparativamente, à maneira como uma mesma planta pode ser considerada desde
o ponto de vista de suas características biológicas ou atendendo a sua utilidade
prática ou a seu valor estético. O ponto de vista a partir do qual a existência do
indivíduo é ordenada e compreendida pode situar-se dentro ou fora do indivíduo. A
totalidade da vida, com todos seus conteúdos deduzidos das condições sociais,
pode ser considerada como o destino central do ser que a vive, mas pode considerar-
se também, apesar de todas suas partes reservadas ao indivíduo, como produto e
elemento da vida social.
Por conseguinte, o fato da sociação coloca o indivíduo na dupla situação da
que partimos: ele faz parte dela e ao mesmo tempo se encontra em face dela. Ele é
um membro de seu organismo sem deixar de ser um todo orgânico e fechado, um ser
para a sociedade e um ser para si mesmo. Mas o essencial e o que dá sentido ao a
priori sociológico é que a relação de interioridade e de exterioridade entre o indivíduo
72 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
e a sociedade não são duas determinações que subsistam justapostas, uma à outra
– ainda que em ocasiões assim ocorra e possam chegar até a hostilidade recíproca –
, mas que ambas caracterizam a posição unitária do homem que vive em sociedade.
A existência do homem não é parte social e parte individual com cisão de seus
conteúdos, mas se encontra sob a categoria fundamental, irredutível, de uma unidade
que só podemos expressar mediante a síntese ou simultaneidade das duas
determinações logicamente opostas: o de ser ao mesmo tempo parte e todo, produto
da sociedade e elemento da sociedade, o viver pelo próprio centro e o viver para o
próprio centro. Como vimos precedentemente, a sociedade não está integrada por
seres que só se envolvem parcialmente em suas relações de interdependência, mas
por seres que se sentem como existências plenamente sociais e, por outro como
existências pessoais, sem por isso mudar de conteúdo. Não estamos dando conta
aqui de dois pontos de vista coexistentes, ainda que sem relação entre eles (como
ao considerarmos o mesmo corpo atendendo a seu peso ou a sua cor), mas de dois
aspectos que constituem a unidade disso que denominamos o ser social, a categoria
sintética – da mesma forma que o conceito de causa constitui uma unidade a priori,
mesmo que contenha em si dois elementos totalmente distintos, o do causativo e o
do causado. Consequentemente, um dos a priori da sociedade empírica, uma das
condições que fazem possível sua forma tal como a conhecemos, é essa faculdade
que possuímos de construir o conceito de sociedade a partir de certos seres
(capazes de sentir-se princípio e fim de suas próprias evoluções e destinos),
sociedade que tem em conta esses indivíduos, mas que também é conhecida, como
o princípio e fim dessas vidas e determinações.
3) A sociedade é constituída a partir de elementos díspares. Pois que ainda
nos casos em que certas tendências democráticas ou socialistas pairem ou
consigam certa “igualdade”, esta é sempre uma equivalência das pessoas, as
prestações e posições, e nunca a igualdade dos homens em sua estrutura, suas vidas
e destinos. Mesmo quando uma sociedade escravizada parece não constituir mais
que uma massa, como ocorre nos regimes despóticos orientais, essa igualdade de
todos com todos se refere unicamente a certos aspectos de sua existência (políticos
ou econômicos, por exemplo), mas não a sua totalidade, já que as qualidades
congênitas, as relações pessoais, os destinos vividos, têm inevitavelmente algo de
Georg Simmel | 73
necessidade de sua vida pessoal interior para a vida do todo – não poderá dizer-se
que participa da sociedade como produto das interações individuais, nem será a
sociedade esse conjunto contínuo de ações recíprocas que enuncia seu conceito.
A categoria da profissão representa consciência particularmente acentuada
desse estado de coisas. A Antiguidade clássica não conheceu esse conceito no
sentido da diferenciação pessoal e da sociedade organizada pela divisão do trabalho.
Mas seu fundamento, quer dizer, o fato de que a atividade social eficaz é a expressão
unívoca da qualificação interior, a ideia de que a subjetividade encontra sua
objetivação prática nas funções sociais, foi patrimônio também dos antigos. Só que
essa relação se verificava para eles num conteúdo continuamente uniforme. Seu
princípio aparece na frase de Aristóteles segundo a qual alguns por natureza estão
destinados a ser escravos e outros, senhores. Quando se elabora de uma maneira
mais fina o conceito, aparece nele uma estrutura particular. Por um lado, a sociedade
cria e oferece uma “posição” que, ainda que diferente das demais em conteúdo e
limites, pode em princípio ser ocupada por muitas pessoas, o que faz dela
consequentemente algo anônimo. .Mas, por outra parte, apesar desse caráter de
generalidade da posição, ela é ocupada por um indivíduo em razão de uma “vocação”
interior, de uma qualificação percebida como absolutamente pessoal. De uma
maneira geral, não podem existir profissões sem que de uma maneira ou outra exista
também essa espécie de harmonia entre estrutura e processo vital da sociedade, de
um lado, e disposições e pulsões individuais, de outro. Finalmente, é sobre ela que
repousa como condição universal a representação de que a sociedade oferece a cada
pessoa uma posição e um labor para os quais a pessoa tem sido “destinada”, e a
correlata e imperativa obrigação de buscá-la até encontrá-la.
A sociedade empírica só é “possível” graças ao a priori que culmina no
conceito de profissão, ainda que tal a priori, analogamente aos já tratados, não pode
designar-se por uma simples palavra-chave, como sucede com as categorias
kantianas. Os processos de consciência pelos quais se cumpre a sociação – a
unidade de muitos, a determinação recíproca dos indivíduos, a importância mútua do
indivíduo para a totalidade dos outros e desta totalidade para o indivíduo – se
verificam com uma condição fundamental que não é consciente em abstrato, mas
que assim se expressa na realidade da prática: o individualismo de cada um em
76 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
1
Lembremos que a primeira edição deste livro data de 1908. (NT)
2
A confiança que pode merecer o material histórico que utilizam estes estudos está determinada por
duas circunstâncias. Atendendo ao serviço que este material devia prestar, teria sido necessário
selecioná-lo em tantos e tão heterogêneos campos da vida histórico-social, que o trabalho de apenas
uma pessoa não poderia alcançar a dar conta do essencial, a menos que se valesse de fontes
secundárias. Fontes estas que, aliás, só poucas vezes poderiam ser confirmadas por uma pesquisa
pessoal dos fatos. Por outra parte, o trabalho teria que estender-se durante uma longa série de anos.
Compreende-se, por consequência, que nem todos os fatos puderam ser confrontados com o estado
momentâneo da pesquisa imediatamente anterior à publicação do livro. Se a exposição de fatos
sociais efetivos fosse o objeto – ainda que secundário – deste livro, não seria admissível essa
margem aqui concedida para afirmações não provadas ou errôneas. Mas este livro intenta mostrar a
possibilidade de uma nova abstração científica da existência social. Por consequência, o essencial
consiste em levar adiante esta abstração sobre alguns exemplos, mostrando que não carece de
sentido. Se se nos permite expressarmos com algum exagero em proveito da clareza metodológica,
diremos que o importante é que os exemplos sejam possíveis, e não que sejam reais. Pois sua verdade
não está (mais que em poucos casos) destinada a demonstrar a verdade de uma afirmação geral,
senão que, ainda nos casos em que a expressão pudesse fazê-lo crer, é simplesmente o objeto (em
si indiferente) de uma análise. A justeza e fecundidade dessa análise (e não a verdade acerca da
realidade de seu objeto) é o que nos propomos e é o que determina nosso sucesso ou fracasso. Em
princípio, o estudo poderia ilustrar-se inclusive com exemplos fictícios, de laboratório, apelando, para
dar-lhe sentido real, ao repertório de fatos conhecidos pelo leitor. (NS)
Georg Simmel | 81
e parecia ser viável. Mas isso se devia sem dúvidas ao fato de estar rodeada por uma
sociedade que vivia em condições completamente diferentes e por meio da qual
podia satisfazer as necessidades que sua própria produção não lhe permitia
evidentemente suprir. As necessidades humanas, por seu caráter aleatório ou
imprevisível que só permite satisfazê-las a condição de produzir por acréscimo
inúmeras coisas irracionais e inutilizáveis, não podem ser racionalizadas como a
produção. Por consequência, um círculo que pretenda evitar isto e se proponha à
plena sistematização e adequação de suas atividades a seus fins só poderá ser um
círculo pequeno, porque, assim, poderá receber de outro círculo maior que o abranja
tudo quanto precise para poder viver satisfatoriamente de acordo com certo nível de
cultura admissível.
Existem, além disso, grupos de índole confessional cuja estrutura sociológica
lhes impede de incorporar um grande número de membros, tais como valdenses,
menonitas e hussitas. Há seitas cujo dogma proíbe, por exemplo, o juramento, o
serviço militar ou a aceitação de cargos públicos. Em outras, questões tão pessoais
como o exercício de uma profissão, a organização da jornada e até o casamento
devem ser regradas pela comunidade. Isso para não falar de outras ainda em que os
fiéis têm uma vestimenta especial destinada a distingui-los dos demais homens e a
designá-los como membros da mesma comunidade. Ademais há comunidades cuja
experiência subjetiva de uma relação imediata com Jesus constitui enfim o seu nexo
propriamente dito, em que não cabe a menor dúvida de que sua extensão a círculos
mais amplos romperia o vínculo que mantêm unidos seus membros e que repousa
em grande parte justamente na atitude excepcional e de oposição adotada pelo
conjunto. Neste aspecto sociológico, ao menos, não deixa de estar justificada a
pretensão dessas seitas de representar o cristianismo primitivo, cuja expressão de
uma unidade ainda indiferenciada de dogma e vida, só foi possível em pequenas
comunidades contidas em outras maiores, as quais satisfaziam suas necessidades
vitais externas, permitindo, por oposição a elas, tomar consciência da singularidade
do grupo. Por essa razão, a extensão do cristianismo ao Estado todo modificou
completamente seu caráter sociológico, e não menos seu espírito e conteúdo.
Não cabe dúvida de que as corporações aristocráticas só podem ter uma
extensão reduzida, pelo mero fato de serem organizações baseadas em privilégios
82 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
pois para que algo seja comum a grande número de pessoas tem que ser acessível
até aos espíritos mais toscos e primitivos. Aliás, mesmo entre as personalidades
mais refinadas e distintas, não encontraremos muitas que coincidam com ideias e
impulsos complexos e muito elaborados, identificando-se apenas com ideias
relativamente simples e universais. Ora, como as realidades em que se devem
verificar praticamente as opiniões da massa são sempre complexas e se compõem
de grande número de elementos muito díspares, as ideias simples só têm
oportunidade de agir de um modo fanático, brutal, radical. Esse caráter se acentuará
ainda mais quando se trate da conduta própria de uma multidão arrebanhada. Em
tais casos, as incontáveis incitações que percorrem o agrupamento social produzem
extraordinária agitação nervosa que, com frequência, arrasta sem dar-se conta os
indivíduos que formam parte dele, engrossando em ondas os estímulos e
convertendo a multidão em presa da mais apaixonada das personalidades em
presença. Por essa razão, diz-se que a regra que estabelecia que o voto do povo
romano se verificasse por grupos fixos – tributim et centuriatim descriptis ordinibus,
classibus, aetatibus, etc. – era um meio de moderar a democracia, diferenciando-se
assim os quirites das democracias gregas que votavam unitariamente sob a
impressão imediata do orador. Naturalmente, essa fusão das massas em um
sentimento que suspende toda peculiaridade e reserva das pessoas é, em seu
conteúdo, de um radicalismo tão absoluto, tão alheio a toda mediação e ponderação,
que só poderia conduzir a resultados irrealizáveis e destrutivos, se na maior parte
das vezes a consequência desse excesso fanático não estivesse já compensada por
decaimentos interiores e derrotas. Acrescente-se a isso que a massas – no sentido
que demos ao termo – têm pouco a perder, mas acreditam, em compensação, ter
tudo a ganhar. Eis a situação em que amiúde são derrubados todos os obstáculos
que se opõem ao radicalismo. Por outro lado, os grupos se esquecem (com mais
frequência que os indivíduos) de que seu poder tem limites, e olvidam-no tanto mais
facilmente quanto mais desconhecidos são os membros do grupo entre si, como
sucede numa multidão reunida por acaso.
Independentemente deste radicalismo de caráter puramente afetivo,
sobretudo nos grandes grupos, observa-se que, por via de regra, os partidos
pequenos são mais radicais que os grandes – naturalmente dentro dos limites da
86 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
3
De começos do século XX. (NT)
Georg Simmel | 87
– seja porque competem com ele, como sucede no caso dos sindicatos de
trabalhadores, seja porque isso prova às pessoas de fora os limites do poder do
grupo, seja porque o grupo precisa integrar-se para que existam todos os elementos
de sua área de atuação ou interesse, como no caso de certos cartéis industriais. Por
consequência, quando surge para um grupo a questão – que não se aplica de modo
algum para todos – de sua completude (quer dizer a questão de saber se ele contém
verdadeiramente todos os membros que idealmente se conformam a seu princípio),
cabe distinguir cuidadosamente as consequências que se derivam da completude
daquelas que advêm do tamanho. Evidentemente, se o grupo está completo será
maior que se estivesse incompleto. Mas o que tem importância para certos grupos
não é a simples quantidade (expressão de seu tamanho), mas o problema de saber
se, com essa quantidade, fica preenchida certa área de competência prefixada.
Assim, no caso dos sindicatos de trabalhadores, as desvantagens acarretadas pelo
mero aumento numérico (a raiz da perda de coesão e de unidade), são compensadas
pelas vantagens opostas que resultam da aproximação à totalidade de membros
possíveis.
Em geral, as instituições dos grandes círculos explicam-se como
compensações ou substitutos da coesão pessoal e imediata que caracteriza os
círculos pequenos. Trata-se de órgãos que organizam e instrumentalizam as ações
recíprocas dos membros, agindo como sustentáculos da unidade social diante da
ausência de relações pessoa a pessoa. Com esse objeto surgem os cargos e as
representações do povo, as leis e os símbolos da vida social do grupo, as
organizações e os conceitos sociais gerais. Este livro trata em numerosas passagens
da formação e funcionamento destas instituições. Bastará aqui indicar sua relação
com o ponto de vista numérico. Essencialmente, todas essas formas se dão apenas
em estado puro e alcançam pleno desenvolvimento nos grandes círculos como
forma abstrata do nexo social, já que as formas concretas de coesão do grupo não
podem subsistir quando este atinge certa extensão. Sua finalidade, que se ramifica
em milhares de qualidades sociais, repousa em última instância sobre pressupostos
numéricos. O caráter de impessoalidade e objetividade, que em face dos indivíduos
apresentam essas encarnações das energias sociais, procede precisamente da
grande quantidade de elementos individuais ativos. A abundância e profusão de tais
88 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
elementos neutraliza o que eles têm de individual com tal sucesso que sua dimensão
universal se descola e distancia tanto que pode aparecer como algo que existe por si
só, que não necessita do indivíduo e que, muitas vezes, se nos afigura como algo
antagônico a ele. De maneira análoga ao que passa com o conceito que, reunindo o
que há de comum em fenômenos singulares e diversos, está tanto mais distante de
cada um deles quanto maior seja o número de fenômenos que o conceito em questão
abranja. (É por isso que os conceitos mais gerais, os que dominam um maior círculo
de individualidades – as abstrações metafísicas – adquirem uma vida à parte, cujas
normas e desenvolvimentos são frequentemente estranhos e até hostis aos do
indivíduo tangível). Por consequência, o grande grupo somente conseguirá sua
unidade – tal como ela se expressa em seus órgãos, em seu direito, em seus
conceitos políticos e em seus ideais – pagando o preço de uma grande distância
entre todas essas estruturas e o indivíduo, suas ideias e necessidades – enquanto
na vida social de um círculo pequeno estas atitudes mentais e exigências podem
imediatamente ser postas em prática e tidas em conta pelos indivíduos. Assim se
explicam as frequentes dificuldades que experimentam as organizações que
abrangem uma série de associações menores, fruto de uma contradição maior: as
situações reais são mais bem conhecidas e tratadas com cuidado mais próximo,
enquanto as relações justas e regulares entre todas as unidades são mais bem
determinadas longe do órgão central. Tal dualismo se apresenta constantemente,
por exemplo, na política de beneficência, nos sindicatos e na administração escolar.
As relações pessoa a pessoa, que constituem o princípio vital dos círculos pequenos,
são incompatíveis com a distância e a frieza das normas objetivas e abstratas, sem
as quais, porém, os grandes círculos não podem subsistir4.
4
Surge aqui uma dificuldade típica das relações humanas Em nossas atitudes teóricas e práticas a
respeito de todos os objetos possíveis, nos vemos constantemente impelidos de estar
simultaneamente dentro e fora deles. Por exemplo, quem argumenta contra o uso do tabaco teria que
fumar para saber do que está falando e, por outro lado, está claro que não deveria fazê-lo. Com efeito,
se não fuma lhe faltará o conhecimento dos prazeres que condena, e se fuma, não será legítimo que
condene o que pratica. Para formular uma opinião sobre as mulheres “em geral”, será necessária a
experiência que proporcionam as relações íntimas com elas, mas também será preciso estar livre e
longe das ditas relações que deformam sentimentalmente o juízo. Só quando estamos junto a uma
coisa, dentro dela, no seu mesmo nível, podemos chegar a seu conhecimento e compreensão, mas só
quando a distância suprime o contato imediato em todos os sentidos, possuímos a objetividade que
é tão necessária como a proximidade para julgar. Este dualismo da proximidade e da distância que é
preciso para ter um comportamento unitário e justo, pertence, de certa maneira, às formas
fundamentais de nossa vida e sua problemática. O fato de que um único e mesmo assunto só possa
Georg Simmel | 89
ser tratado corretamente dentro de um grupo pequeno por uma parte, mas que por outra deva sê-lo
também por um grande grupo, é uma contradição sociológica que constitui um caso particular do
caráter contraditório da condição humana em geral. (NS)
5
Coeteris paribus é uma expressão em latim que significa “mantido inalterado tudo o mais”. (NT)
90 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ação, ainda que esteja claro que, na prática e vista de fora, ela tem em cada caso
limites particulares, aleatórios e variáveis6.
Por meio do costume, cada círculo assegura o comportamento adequado de
seus membros ali onde a coerção do direito não pode aplicar-se e a moral individual
não é garantia suficiente. Dessa maneira, o costume funciona hoje como
complemento das duas ordens restantes, assim como ele era a única regulação da
vida nos tempos em que não existiam ou ainda germinavam as outras formas
diferenciadas das relações interna e externa do indivíduo com um grupo social. Fica
indicado destarte o lugar sociológico que ocupa o costume: entre o grande círculo
no qual os membros estão submetidos ao direito, e a individualidade absoluta, único
sustentáculo da moralidade livre. Pertence, pois, aos círculos mais estreitos, às
formações intermédias entre os grupos amplos e o indivíduo. Quase todos os
costumes são de classe ou profissão. Seus modos de expressão como o
comportamento exteriorizado, a moda, a honra, dominam apenas em cada uma das
subdivisões do grande grupo em que impera o direito, mas em cada um desses
subgrupos têm já outro conteúdo7. Por exemplo, confrontado a uma violação dos
6
O direito e a moral surgem pari passu em um meandro da evolução social. Isso se reflete no sentido
teleológico de ambos, que se remetem um ao outro mais do que à primeira vista se poderia pensar.
Quando a conduta estrita do indivíduo, que implica toda uma vida regulada pelo costume, dá lugar às
normas gerais do direito, que se distanciam muito de todo o individual, é de interesse social não deixar
livre à sua sorte a liberdade assim conseguida. Os imperativos morais complementam então os
jurídicos, preenchendo as lacunas produzidas pela desaparição do costume, regulador geral da vida.
Mas, em face do costume, as outras duas formas de regulação normativa, moral e direito, superam
em muito o indivíduo quando estabelecem o padrão que deverá orientar sua ação, ao mesmo tempo
em que atingem a recôndita intimidade dele. Pois, quaisquer que sejam os valores pessoais e
metafísicos que representem a consciência e a moralidade autônoma, seu valor social – único que
aqui nos interessa – radica em sua enorme utilidade profilática. O direito e o costume afetam a
atividade da vontade em sua manifestação exterior agindo preventivamente e pelo medo. Para tornar
supérfluo este motivo, um e outro necessitam na maioria das vezes – mas não sempre – serem
acolhidos a posteriori na moral pessoal. Conseguirão então estar na origem mesma do ato e modificar
a convicção profunda do sujeito até que ele chegue a realizar por si mesmo a atividade considerada
justa sem o sustento dessas forças externas? Ora, a sociedade não tem nenhum interesse na
perfeição puramente moral do sujeito, só se importa com ela – e a fomenta – na medida em que
representa a maior garantia imaginável para a realização por esse sujeito das ações consideradas
socialmente desejáveis. Com a moral individual, a sociedade cria um órgão que não só é muito mais
eficaz que o direito e o costume, mas que por acréscimo poupa os gastos e embaraços às instituições.
Por fim, essa tendência da sociedade a pagar o menos caro possível por aquilo que ela precisa, fez
aparecer a “tranquilidade de consciência” com a qual o indivíduo se recompensa a si mesmo por suas
boas ações, prêmio que, se ele não se outorgasse, deveria provavelmente ser-lhe concedido de uma
ou outra maneira pelo direito ou pelo costume. (NS)
7
Vide a discussão sobre a forma sociológica da honra nos capítulos consagrados à autoconservação
dos grupos e ao cruzamento dos círculos. (NS)
Georg Simmel | 93
bons costumes, o círculo estreito daqueles a quem a ofensa tem afetado ou que têm
sido testemunhas dessa ofensa, só reage enquanto uma violação da ordem jurídica
suscitar a reação de toda a comunidade. Como a opinião pública e certas reações
individuais que derivam imediatamente dela constituem o órgão executor do
costume, é impossível que seja administrada por um grande círculo. É fato que não
precisa de maior explicação, que os costumes dos comerciantes permitem ou
ordenam coisas distintas que os da aristocracia, e que os de um círculo religioso não
têm o mesmo alcance que os de um círculo literário, etc. Isso revela que o conteúdo
do costume consiste nas condições particulares necessárias a todo círculo reduzido,
o qual não dispõe para garanti-las nem do poder coercitivo do direito estatal, nem de
impulsos morais autônomos dignos de absoluta confiança.
Esses círculos têm simplesmente em comum com os primitivos (quando para
nós começa a história social) o escasso número de seus membros. As formas vitais
que bastavam então ao círculo, dada sua forte coesão, transladam-se a suas
subdivisões à medida que o círculo total foi crescendo. Nessas subdivisões estão,
com efeito, contidas aquelas possibilidades de relações pessoais, a igualdade
aproximada dos membros e a comunidade de interesses e ideais necessárias para
ancorar a regulação social a normas tão precárias e elásticas como as do costume.
Mas,quando o número de membros cresce de tal forma que eles se tornam
necessariamente autônomos, essas condições desaparecem para o círculo total. A
singular força vinculativa do costume resulta então pequena demais para o Estado e
excessivamente grande para os indivíduos, enquanto seu conteúdo, pelo contrário,
resulta exagerado para o Estado e escassamente significativo para os indivíduos O
primeiro reclama, assim, maiores garantias, ao passo que os segundos reivindicam
uma maior liberdade e, por isso, cada elemento só se encontra submetido ao
costume nos aspectos em que pertence ainda a círculos médios.
Se o grande círculo exige e autoriza (melhor que os de porte mediano e
pequeno) o severo e objetivo ordenamento normativo que se cristaliza no direito é
porque seus elementos dispõem de uma maior liberdade, mobilidade e
individualização. Se graças ao direito a coerção socialmente necessária fica
determinada com exatidão e tem que ser observada escrupulosamente, em
compensação, a força exercida pelo Estado resulta mais suportável para o indivíduo
94 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
8
Cada um dos estados nos Estados Unidos está subdividido administrativamente, em territórios
chamados condados (em inglês: county) – com exceção do Alasca, onde tais divisões são chamadas
de distritos (em inglês: boroughs), e da Louisiana, onde são chamadas de paróquias (em inglês:
parishes). (NT)
9
Uma reunião de cidades com fins judiciais. (NT)
Georg Simmel | 95
10
Dar o dízimo foi uma prática que começou segundo o Antigo Testamento, quando o “Povo de Deus”
recebeu a ordem de dar a décima parte das suas colheitas e rebanhos como instrumento de auxílio
100 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
israelitas e, mais tarde, foi adotada por outros povos, passou a designar o tributo em
geral – assim como a centúria é a divisão por excelência. A relação quantitativa, que
constitui a essência tanto do imposto como da divisão social, tem substituído
psicologicamente à determinação de seu conteúdo, como claramente se vê no fato
de a determinação numérica originária ter se cristalizado e designar todas as
modificações exteriores da proporção.
3) A determinação numérica, como forma de organização, adquire um lugar de
destaque dentro da evolução social. Com efeito, a divisão numérica aparece
historicamente como substituto ao princípio do clã. Em muitos povos os grupos
estavam compostos de subgrupos constituídos por laços de parentesco, cada um
dos quais era de fato uma unidade econômica, penal, política e de outras ordens.
Essa organização, bem fundada internamente, foi porém substituída pela repartição
em grupos de 10 ou 100 homens, constituídos para a realização dessas mesmas
tarefas solidárias. Semelhante substituição pode parecer à primeira vista algo
singular, uma esquematização carente de vida interior. Em vão buscaríamos nos
princípios imanentes que dão coesão àqueles grupos algo que justifique essa
substituição da raiz orgânica original por essa base mecânica e formalista. De fato,
a razão não pode estar mais que na totalidade composta por esses grupos, cujas
exigências são independentes dos princípios vitais de suas partes. À medida que a
totalidade, como unidade, vai obtendo mais conteúdo e poder, as partes (ao menos
no começo e antes de alcançar o grau superior de evolução) perdem sua própria
significação, transferem à totalidade o sentido que tinham por si mesmas, e se
adéquam mais a sua finalidade quanto menos ideias próprias vivem nelas e quanto
mais se organizam em partes mecânicas que só adquirem posição e importância por
sua contribuição à totalidade11. Todavia, isso não é verdade em certos tipos muito
aperfeiçoados de evolução. Há certas instituições sociais que, justamente porque
têm um tamanho considerável e estão perfeitamente organizadas, podem conceder
ao elemento individual a maior liberdade para sua realização pessoal ao viver
segundo normas particulares e formas próprias. Por outra parte, há outras
social, notadamente para os levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas. A palavra “dízimo” vem da palavra
hebraica malaser e da palavra grega dekate, que traduzida significa “um décimo”. (NT)
11
Vide o desenvolvimento desta ideia no capítulo sobre o cruzamento dos círculos. (NS)
Georg Simmel | 101
instituições que precisam que seus elementos tenham uma vida própria
extremamente intensa e diversificada para que sua força de conjunto alcance sua
máxima expressão. A transição do clã para a centúria caracterizou esse estádio
médio em que a falta de sentido e de caráter peculiar dos membros constitui um
progresso para a totalidade. Com efeito, só assim, em determinadas circunstâncias,
foi possível controlar facilmente os elementos individuais e dirigi-los segundo
normas simples sem que essa resistência que se desenvolve facilmente em todo
subgrupo que se sente fortemente coeso, se opusesse contra o poder central.
Quando a constituição ou ação dos grupos está determinada numericamente
– desde a antiga centúria até o moderno reinado das maiorias –, a individualidade é
subjugada. Eis um ponto no qual se manifesta muito claramente a profunda
discrepância entre a ideia verdadeiramente democrática da sociedade e o princípio
liberal e individualista. Constituir uma soma com um número “arredondado” de
pessoas e operar com elas sem ter em conta as particularidades dos indivíduos que
integram o conjunto resultante; contar os votos em lugar de ponderá-los; fundar as
instituições, as disposições, as proibições; as prestações e as concessões, desde um
primeiro momento, no número de pessoas que as aprovam, pode produzir
despotismo ou democracia, mas em todo caso supõe reduzir a verdadeira
personalidade individual ao fato formal de que ela é apenas uma. Quando um
indivíduo ocupa um posto em uma determinada organização unicamente pelo
número, seu caráter de membro do grupo domina completamente sua condição de
indivíduo diferenciado. A divisão em subgrupos numericamente iguais poderá ser tão
rústica e variável como nas centúrias dos germanos, dos peruanos ou chineses, ou
tão afinada, adequada e exata como a de um exército moderno, ela sempre revelará
de um modo claro e implacável a lei formal do grupo (que existe para si, ora como
tendência nova e ainda em estado permanente de luta e compromisso com
tendências diferentemente orientadas, ora impondo-se como autoridade absoluta).
O caráter supraindividual da agrupação e a plena emancipação da forma a respeito
de todo conteúdo da existência individual nunca imperam de modo tão absoluto e
radical como diante de princípios de organização reduzidos a relações estritamente
aritméticas. Por sua vez, a medida – muito variável – em que cada grupo se aproxima
102 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
desses princípios aritméticos indica até que ponto a ideia de agrupação em sua
forma mais abstrata absorve a individualidade de seus fatores.
4) Finalmente, existem outras importantes consequências sociológicas
vinculadas à determinação numérica – ainda que as quantidades eficazes dos
elementos sejam muito distintas segundo as circunstâncias. Referimo-nos a certas
ocasiões em que atribuímos ao adjetivo “social” o sentido de “próprio da vida
mundana”. Nesse sentido, é preciso convidar quantas pessoas para que elas
constituam uma “reunião social”? As relações qualitativas entre o anfitrião e os
convidados não decidem nada, e o convite de duas ou três pessoas que interiormente
não têm relação conosco não parece suficiente para dar forma a uma “reunião
social”. Uma reunião social se constitui, em compensação, quando, por exemplo,
convidamos os nossos quinze amigos mais íntimos. O decisivo é sempre o número,
ainda que a quantidade dependa em cada caso, naturalmente, da classe e intimidade
das relações entre os elementos. Três condições (as relações do dono da casa com
cada convidado, as que os convidados mantêm entre si e a maneira com que cada
participante sente essas relações) formam a base sobre a qual o número de
convidados pode definir se é reunião social ou mero encontro – amistoso ou
determinado por fins objetivos. Por conseguinte, em todos esses casos uma
modificação numérica produz uma transformação notável na categoria sociológica,
ainda que não possamos estabelecer a medida dessa modificação com nossos
meios psicológicos. Todavia, até certo ponto as consequências sociológicas
qualitativas da causa quantitativa poderão ser descritas.
Em primeiro lugar a “reunião social” exige um aparato externo determinado.
Aquele indivíduo com um círculo de conhecidos de umas 30 pessoas, por exemplo,
mas que convida não mais do que uma ou duas, não precisa fazer cerimônia. Mas se
convida as trinta ao mesmo tempo, imediatamente surgirão para ele novas
preocupações vinculadas à comida, à bebida, à roupa, às formas de comportamento
e, muito provavelmente, vai se dedicar com grande empenho a satisfazer o prazer
dos sentidos. Eis um exemplo que demonstra claramente como o simples fato de
formar parte de um conjunto numeroso de pessoas rebaixa o nível de seus
integrantes. Em uma reunião de poucas pessoas, a recíproca adaptação conformada,
as coincidências que constituem o conteúdo da relação social, podem incluir tantas
Georg Simmel | 103
12
Por essa razão aqueles que se queixam da trivialidade que reina na grande vida mundana dão
mostra de uma total incompreensão sociológica. Não pode, em princípio, elevar-se o nível
relativamente baixo que oferece sempre uma multidão considerável. Todos os produtos elevados e
refinados têm caráter individual e não podem ser o apanágio das comunidades. Em compensação,
podem ter um efeito de sociação quando se trata alcançar a unidade por meio da divisão do trabalho,
mas isso só é possível em escassa medida dentro de uma “reunião social”, pois que elevado a
proporções maiores somente conseguiria destruir o caráter essencial da referida reunião. Por isso,
quando uma individualidade – por forte e agradável que ela seja – se faz remarcar pessoalmente em
uma “reunião social” é com um instinto sociologicamente muito acertado que se considera isso como
uma leve falta de tato. (NS)
104 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
13
Como resulta das críticas ao clássico “paradoxo sorites” ou “do montão”, atribuído a Eubulides de
Mileto, filósofo grego da escola megárica, que viveu no Século IV a.C. (NT)
Georg Simmel | 107
que a dúvida se refere às quantidades médias, pois certos números muito pequenos
não constituem ainda com certeza a coletividade em questão, ao passo que outros
números muito elevados já representam uma comunidade, sem sombra de dúvidas.
Ora, na medida em que esses grupos numericamente insignificantes (a reunião
pequena, que não chega a ser “social”, o pelotão de soldados que está longe de
constituir um exército, os patifes que não são ainda um bando) apresentam algumas
qualidades sociológicas em contraposição às que são próprias das coletividades
maiores, deve-se considerar o caráter das agrupações que numericamente se
encontram entre as demasiado pequenas e as grandes como um composto de
ambas – de maneira que cada um desses dois tipos de coletividades possa ser
antevisto de maneira rudimentar em certos traços isolados, que, às vezes, surgem e,
às vezes, desaparecem ou se tornam latentes nas estruturas situadas na zona
numérica média. Na medida em que objetivamente elas participam também, paralela
ou alternativamente, do caráter bem definido das estruturas que estão situadas
acima ou abaixo, fica bem exposta a incerteza subjetiva de sua determinação. Não
se trata, pois, de fazer surgir de súbito uma característica sociológica absolutamente
precisa representada por uma figura carente de qualidades sociológicas sem que se
possa dizer o momento em que a transformação foi produzida. Trata-se de pôr em
presença, sob certas condições quantitativas, duas formas diversas, (cada uma com
certo número de feições próprias, qualitativamente diferenciadas, de uma entidade
social que elas compartilham em proporções diversas). Assim, pois, a questão de
saber a qual das duas formas o grupo pertence não só é alheia às dificuldades
epistemológicas das séries contínuas, mas se trata simplesmente de uma questão
mal colocada14.
14
Mais exatamente a situação é a seguinte: a cada número determinado de elementos corresponde,
segundo o fim e o sentido de sua combinação, uma forma sociológica, uma organização, uma solidez,
uma relação do todo com as partes, etc. A cada elemento que se agrega ou desagrega essa forma
sociológica sofre uma modificação, mesmo que seja infinitamente pequena e indeterminável. Mas,
como não temos uma expressão especial para esses infinitos estados sociológicos, ainda que
possamos apreciar seu caráter, muitas vezes não temos outro recurso que pensá-los como
compostos por dois estados, um dos quais diz mais e outro menos. Não há, nesses casos, fusão,
como também não há tal coisa no caso dos sentimentos divididos de amizade e amor, de ódio e
desprezo, de prazer e dor. Há aqui – e disso voltaremos a nos ocupar mais adiante –, na maioria das
vezes, um estado sentimental unitário, para o qual não temos nenhum conceito imediato, e que, por
conseguinte, preferimos circunscrever que descrever por meio da síntese e limitação mútua dos
outros dois. Aqui, como em muitos casos, não podemos compreender a unidade verdadeira do ser,
tendo que dividi-la em dois elementos, sem que nenhum coincida completamente e na íntegra com a
108 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
realidade, para logo fazer renascer essa unidade na imbricação de ambos. Mas essa não é mais que
uma análise que se realiza posteriormente e que não reproduz o processo de evolução real, a realidade
própria daquelas unidades. Por conseguinte, quando os conceitos das unidades sociais (reunião de
amigos e reunião social, pelotão e exército, facção e partido, adesão pessoal e escola, grupelho e
reunião de massas) não encontram aplicação porque o material humano de que se trata parece pouco
para um e demais para outros, existe todavia uma figura sociológica unitária que corresponde à
quantidade numérica, nem mais nem menos que naquelas figuras definidas. O que sucede
unicamente é que na falta de um conceito próprio para dar conta dessas infinitas nuances, devemos
designar suas qualidades como uma mistura das formas que correspondem às figuras de menor e de
maior número. (NS)
Georg Simmel | 109
habitante da Terra desde o começo dos tempos: seu estado está determinado
também pela sociação, ainda que esta envolva um signo negativo. Tanto o prazer
como o pesar da solidão são reações a influências sociais. A solidão é uma ação
recíproca da qual um de seus membros se afasta concretamente sob o efeito de
certas influências, e continua a viver e agir só de forma ideal no espírito do outro
sujeito. Como, aliás, se vê em certos casos de solidão física efetiva, raras vezes o
sentimento da solidão emerge com tanta violência e tão radicalmente, como ao
sabermos sós e sem relações, apesar de estarmos entre pessoas próximas de nós,
em uma reunião, no trem, na barulheira da rua de uma grande cidade. Para a
configuração de um grupo é essencial saber se ele favorece ou, ao menos, torna
possível, tal tipo de solidão entre os seus membros. É verdade que as comunidades
estreitas e íntimas rara vez consentem espaços intersticiais deste tipo em sua
estrutura. Mas, assim como falamos de déficit social (em determinadas proporções
a respeito das condições de conjunto) na produção de certos fenômenos antissociais
– como a delinquência, a prostituição, o suicídio e a depravação moral em geral –,
também temos que admitir que certas quantidades e qualidades de vida social criam
determinado número de existências temporária ou cronicamente solitárias, de cujo
número a estatística tem dificuldade a dar conta.
A solidão adquire outro sentido sociológico quando não consiste em uma
relação que se produz dentro de um indivíduo, entre ele mesmo e certo grupo ou na
vida social em geral, mas aparece como uma pausa ou uma diferenciação temporária
dentro de uma mesma e única relação. Isso é especialmente importante nas relações
destinadas, por seu princípio fundamental, à negação permanente da solidão, como,
o casamento monogâmico, em primeiro lugar. Na medida em que se expressam na
estrutura do casamento os mais delicados matizes interiores, processa-se uma
diferença essencial entre um casamento em que marido e mulher, apesar da perfeita
felicidade do convívio, têm sabido preservar o prazer da solidão, e um casamento em
que a relação nunca ê interrompida, seja porque o hábito da convivência arrebatou-
lhe seus encantos, ou a falta de confiança interior no amor mútuo deixa aos cônjuges
receosos de que tais interrupções acabem conduzindo à infidelidade – o que ainda é
pior. Assim a solidão, aparentemente limitada ao sujeito isolado, é um fenômeno que
consiste em rejeitar a sociabilidade, mas que tem, todavia, importância sociológica
110 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
delas reclama seu direito implacavelmente, com indiferença total aos demais
interesses e deveres, sem preocupar-se se harmonizam ou se incompatibilizam com
eles. Esse caráter das ditas relações, não menos que sua extensão quantitativa,
limita consequentemente a liberdade do indivíduo. Diante dessa forma de nossas
relações, a liberdade aparece como um processo permanente de libertação, e não
como um combate apenas pela independência do eu, senão pelo direito de assegurar
que em todo momento (mesmo na dependência) a vontade livre se mantenha.
Combate que é preciso renovar a cada vitória. Por conseguinte, a ausência de
vínculos coercitivos (esses comportamentos sociais negativos) não é quase nunca
uma possessão tranquila, mas um contínuo desligar-se de ataduras que, sem cessar,
limitam realmente a independência do indivíduo ou intentam limitá-la idealmente. A
liberdade não é o hábito de um indivíduo solitário, é uma atividade sociológica, não é
um modo de ser limitado ao número singular de um sujeito único, mesmo se a
considerássemos desde o ponto de vista desse único sujeito,
2) Como em seu aspecto funcional, a liberdade é em seu conteúdo algo mais
que a negação de relações se a reafirmação da intangibilidade da esfera individual
por outras esferas imediatas deriva da muito simples ideia de que o homem não só
quer ser livre, mas também utilizar sua liberdade para algo. Muito amiúde, porém,
esse uso consiste no domínio e aproveitamento de outras pessoas. Para o indivíduo
social, quer dizer, para aquele que vive em constante e recíproca relação com outros,
a liberdade não teria conteúdo nem fim algum se não desse a possibilidade ou o
direito de estender sua vontade aos outros. Em nossa língua, damos conta com
bastante propriedade de determinadas indelicadezas e violências quando dizemos
que “se tem tomado certas liberdades” com alguém (em particular com uma mulher),
da mesma forma que em outros idiomas o termo “liberdade” tem igualmente o
sentido de “direito” ou de “privilégio”. O sentido simplesmente negativo da liberdade
como relação do sujeito com si mesmo, complementa-se em ambas as direções com
algo positivo. A liberdade consiste, por um lado, em um processo de libertação e, por
isso ela se ergue contra um vínculo ou relação de dependência, e só como reação
contra ele adquire sentido, consciência e valor. Mas também é uma relação de poder
que se exerce sobre os demais, possibilidade de obrigar ou submeter os outros,
graças ao que alcança todo seu valor e aplicação. Por conseguinte, a liberdade
112 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
quando se limita ao sujeito em si e por si não é mais que uma espécie de linha de
demarcação entre suas duas significações sociais: o sujeito é obrigado pelos outros,
e o sujeito impõe uma obrigação aos outros. O sujeito, para dizê-lo de outro modo,
se aniquila, se reduz a nada, para revelar o verdadeiro sentido da liberdade como
relação sociológica ambivalente, ainda que ela seja apresentada como uma
qualidade do indivíduo.
Ora, como as conexões que dão consistência sociológica a formas como a
solidão e a liberdade são frequentemente nexos indiretos e muito variados, nos
parece que a forma sociológica mais simples desde o ponto de vista do método é a
que se produz entre dois elementos. Ela proporciona o esquema, a matriz e o material
de inumeráveis e eventuais formações de vários membros, embora sua significação
sociológica não repouse apenas em suas ulteriores ampliações e multiplicações. Ao
contrário, ela mesma é já uma sociação, na qual não só se realizam clara e
caracteristicamente numerosas formas sociais, senão que sua limitação a dois
membros é inclusive a condição que faz possível a aparição de toda uma série de
formas de relação. Formas essas, cuja típica natureza sociológica se manifesta
então não só pelo fato de que a infinita variedade das individualidades e dos motivos
de reunião não altera a similitude dessas formações, mas também porque, às vezes,
elas se dão tanto entre dois grupos (famílias, Estados, associações de diversos tipos)
como entre dois indivíduos.
A vida cotidiana demonstra como o número de dois coparticipantes dá um
caráter particular a uma relação. Um destino comum, uma empresa, um acordo, um
segredo, quando se limita a dois é bem distinto de quando se estende a três. Talvez
seja no segredo que isso fique mais visível, já que a experiência geral parece indicar
que quando o que se oculta só é sabido por apenas dois é justamente quando se
consegue a máxima garantia de sigilo. Os membros de uma sociedade secreta
político-religiosa – que se formou em começos do século XIX na França e Itália –
estavam organizados de acordo com uma ordem hierárquica, de tal sorte que os
segredos verdadeiramente importantes da associação só eram conhecidos pelos
titulares dos graus superiores. Que, por sua vez, unicamente podiam falar sobre a
questão sigilosa em reunião de dois. Tão decisivo parece, pois, o limite do número
dois para a manutenção do segredo que, quando não pode limitar-se a dois, é preciso
Georg Simmel | 113
conservar a quantidade daqueles que o conhecem para os que dele falem! Em termos
gerais, a diferença entre a relação dual e as outras consiste em que a relação entre a
unidade de seus membros e cada um deles se apresenta de uma maneira muito
diferente no grupo de dois que nos outros. Com efeito, embora o grupo de dois
apareça em face de um terceiro como uma unidade independente, distinta das
pessoas que a compõem, normalmente não ocorre o mesmo com seus
coparticipantes, pois nesse caso cada um deles se sentirá diante do outro, mas não
confrontado a uma coletividade superior a ambos. O organismo social repousa
diretamente sobre cada um dos dois membros. Por isso, a desaparição de um deles
acarreta a destruição do todo. Porque, faltando um dos dois, é impossível para o
membro subsistente perceber esse tipo de vida suprapessoal independente dele e do
indivíduo desaparecido. Em uma associação de três, o grupo pode subsistir apesar
da desaparição de uma pessoa.
Os grupos de dois dependem, pois, da cabal individualidade de cada um de
seus membros, e esta dependência faz a representação de seu fim acompanhar a de
sua existência mais imediatamente e de maneira mais sensível que no caso de outras
associações, nas quais cada membro sabe que depois de sua própria separação ou
morte a associação pode continuar existindo. Como a vida do indivíduo, a das
associações adquire determinada cor segundo o modo de representação de sua
morte. Por “representação” entendemos aqui não só um pensamento teórico,
consciente, mas uma parte ou modificação de nosso ser. A morte não se nos
apresenta como um acontecimento fatal que surgirá em dado momento, mas que até
então só existe como ideia ou profecia, como temor ou esperança, sem penetrar na
realidade de nossa vida. Ao contrário; o fato de que vamos morrer constitui uma
qualidade inerente a nossa vida desde seu começo. Em toda nossa viva realidade
existe algo que, depois, permitirá achar sua última fase ou revelação em nossa morte:
desde nosso nascimento somos seres destinados a morrer. Obviamente, somos
destinados a morrer de modo diverso. Não só pela distinta forma de reagirmos diante
da finitude humana e da maneira como nos representamos subjetivamente essa
condição e seu efeito derradeiro, mas também pelo modo altamente diferenciado
com que esse elemento de nosso ser se entretece com seus outros elementos. O
mesmo acontece com os grupos. Todo grupo de mais de dois membros pode, em
114 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sua ideia, ser imortal, o que confere a cada um de seus membros – seja qual for sua
relação pessoal com a morte – um sentimento sociológico absolutamente
particular15. Mas o fato de que uma associação de dois dependa de cada um de seus
elementos, não tanto quanto a sua vida, mas quanto a sua morte – pois ela precisa
do segundo membro para viver e não para morrer –, deve determinar também a
atitude do indivíduo em face da morte, mesmo que nem sempre de um modo
consciente e regular. Como não sentir nessas associações um matiz de perigo e de
coisa insubstituível que pode torná-las sede de tragédias sociológicas, mas também
de problemáticas e sentimentos elegíacos?
Essa emoção acompanhará todos os fenômenos em que o término da
associação tem raízes orgânicas em sua estrutura positiva. Temos recentemente
ouvido falar de uma estranha “Confraria do prato partido”, fundada em uma cidade
do Norte da França. Alguns anos atrás se reuniram vários industriais em um
banquete. Durante o jantar um prato caiu no chão e se fez em cacos de louça. Um
dos comensais notou que, por acaso, o número dos cacos em que se tinha partido o
prato era exatamente igual ao número de pessoas presentes. Esse sinal
– aparentemente fatídico – ensejou que os comensais formassem uma confraria em
que cada um passaria a dever proteção e amparo aos outros. Cada um dos presentes
ficou com um pedaço quebrado do prato, e firmou-se o acordo que, quando um deles
morresse, se remeteria seu caco ao presidente, que estava encarregado de colar os
pedaços recebidos, O último sobrevivente teria que colar o último caco e então o
prato assim reconstituído seria enterrado. A “Confraria do prato partido” seria então
definitivamente dissolvida. Com certeza, o tom sentimental que reinava no seio
dessa associação e que animava cada um dos seus membros teria sido totalmente
distinto se se houvesse aceitado novos membros que perpetuassem
indefinidamente a vida do grupo. O fato de estar destinados de antemão a morrer,
confere um tom particular a certos grupos – que as associações de dois possuem
desde sua constituição, pela limitação numérica de sua estrutura.
É pela mesma razão estrutural que, de fato, só as relações de dois estão
expostas a essa carência de colorido ou realce que designamos com o nome de
15
Vide a este respeito às explicações que damos no capítulo sobre a “Autoconservação dos grupos”.
Georg Simmel | 115
nossa existência – pressuposto este que nem sempre tem fundamento, pois muitas
vezes o típico, o compartilhado com muitos, é o essencial e substancial de uma
personalidade. O mesmo se pode dizer das associações. Elas também têm tendência
a fazer do elemento mais específico de seus conteúdos (esse que seus membros só
compartilham entre si e nunca com uma pessoa estranha ao grupo) o âmago e
sentido próprio da coletividade. Esta última, todavia, é a forma da intimidade. Com
certeza, em toda relação se misturam ingredientes que seus membros só encontram
nela, com outros elementos que não são exclusivos dessa relação e que o indivíduo
compartilha – de igual ou similar maneira – com outras pessoas. Mas, a partir do
momento em que se estima que o essencial da relação é aquela dimensão interna,
assim que sua estrutura afetiva põe o acento naquilo que cada um só dá ou exibe a
uma única pessoa, surge essa tonalidade particular que chamamos intimidade.
Qualidade esta que, porém, não repousa no conteúdo da relação. Duas relações
podem ser idênticas por conta da mesma proporção em que se misturam os
conteúdos individuais exclusivos e aqueles que se difundem também em outras
direções, mas, íntima, entretanto, será unicamente aquela em que os primeiros
apareçam como a base ou o eixo da relação.
Inversamente, se ante certas situações ou estados de ânimo somos levados
por vezes a fazer a uma pessoa relativamente estranha manifestações ou
confidências muito pessoais, daquelas que reservamos habitualmente aos mais
próximos, sentiremos claramente que esse conteúdo “íntimo” não basta para tornar
à relação íntima: pois, em sua substância e sentido, nossa relação habitual com essa
pessoa só repousa em seus elementos genéricos e não individuais.
Consequentemente, aquela comunicação de informações ou segredos, acaso jamais
revelados a ninguém, não será suficiente para incluir ao confidente no círculo de
nossos “íntimos” porque a confidência não constitui a base de nossa relação com
essa pessoa.
Essa nota essencial da intimidade se revela com frequência perigosa para
relações duais muito próximas, especialmente para o casamento. Os cônjuges
comunicam entre si as “intimidades” irrelevantes do dia, as amabilidades ou
baixarias da hora, as fraquezas cuidadosamente ocultas aos demais. E isso os leva
a pôr o acento e a substância da relação justamente nessas circunstâncias
Georg Simmel | 117
individuais, mas sem importância objetiva, enquanto aquela outra parte do eu, que é
compartilhada com os demais, e que talvez desde certa perspectiva seja o mais
importante da personalidade – o espiritual, a generosidade, a preocupação com o
interesse geral, as qualidades objetivas –, será considerada alheia ao casamento e
perderá gradualmente relevância pata os cônjuges,
Podemos ver agora com clareza como o caráter íntimo das relações de dois
está vinculado a sua especificidade sociológica que consiste em não constituir uma
unidade superior a seus elementos individuais. Pois essa unidade, ainda que suas
bases concretas não fossem nunca outras que os dois partícipes, representaria, em
certo modo, um terceiro que viria a interpor-se entre os dois. Quanto mais extensa
seja uma comunidade, tanto mais facilmente se formará uma unidade objetiva por
cima dos indivíduos, que será menos íntima. Estes dois caracteres estão
intimamente unidos. A condição da intimidade é que a relação consista apenas em
estar um em face do outro sem sentir, ao mesmo tempo, como existente e ativo
qualquer organismo supraindividual. Essa condição raras vezes se apresenta, porém.
Assim, o que caracteriza a fina estrutura dos grupos de dois é que seu sentido mais
intenso ficaria frustrado por um terceiro, ainda que a unidade fosse constituída pela
associação de dois. Este princípio vigora de tal modo que a intimidade se interrompe
inclusive no casamento tão logo nasça um filho. Pensamos que vale a pena explicar
em algumas palavras as uniões entre dois elementos.
O dualismo constitui a forma habitual de nossos conteúdos vitais e nos
conduz a conciliações cujo sucesso ou fracasso evidenciam com muita clareza o
papel da complementaridade dos opostos. Como primeiro exemplo ou modelo do
que dizemos, lembraremos que o masculino e o feminino tendem a uma forma de
união que somente é possível pela oposição de ambos e que, precisamente pela
paixão com que é procurada, aparece como algo profundamente inatingível. Em
nenhum outro caso a impossibilidade do eu de possuir real e absolutamente o não-
eu é mais bem sentida, apesar de as oposições parecerem criadas para completar e
amalgamar estas relações. A paixão procura acabar com os limites do eu e fundir um
ser no outro para formar o filho, a nova unidade que aparece: condição singularmente
dual da geração – proximidade sobre a qual resta um distanciamento e que não pode
alcançar o apogeu que a alma quer, distanciamento que, todavia, se aproxima da
118 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
fusão em um único ser no infinito – que situa o ser engendrado entre seus genitores,
de acordo aos variados sentimentos do casal e reagindo ora à primeira, ora ao
segundo. Assim sucede aos casamentos frios, nos quais os cônjuges são
interiormente estranhos um ao outro e não desejam filhos porque eles os
vinculariam. É que sobre o fundo dessa indiferença dominante aparece sua função
unificadora tanto mais ativa, quanto mais indesejada. Mas, outras vezes, são
casamentos muito apaixonados e unidos os que também não desejam filhos, porque
os filhos os separam. A unidade metafísica que ambos os cônjuges só apeteciam
constituir um com o outro escapa como água entre as mãos e se transforma em um
terceiro, um ser físico, que intervém entre eles. Esta intervenção, porém, aparece
como uma separação àqueles que procuravam unidade imediata, da mesma forma
que uma ponte, embora una duas margens, permite perceber a distância que existe
entre elas. E onde toda intervenção aparentava ser supérflua, pode ficar ainda pior
do que supérflua.
Todavia, o casamento monogâmico deveria talvez ser uma exceção a esse
caráter sociológico que temos considerado essencial nos grupos de dois: a falta de
unidade supraindividual. O fato nada raro de que personalidades de grande valor se
unam em casamentos decididamente maus e que, em compensação, pessoas cheias
de defeitos tenham conformado alguns muito bons, indica que esta instituição,
mesmo dependendo dos parceiros, pode ter um caráter que não corresponda a
nenhum deles. Quando, por exemplo, algum dos esposos padece de complicações,
dificuldades ou fraquezas, mas sabe, por assim dizer, guardá-las para si, dando só o
melhor e mais puro de seu ser à relação conjugal, que ele preserva de todos os
defeitos de sua pessoa, poderá pensar-se em um primeiro momento que sua atitude
é apenas uma forma de comportamento que enaltece sua pessoa. Mas depois
provavelmente perceber-se-á que o casamento é algo que vai além da pessoa, algo
valioso e sagrado por si mesmo, que está acima das mazelas capazes de afligir cada
um dos elementos. Na medida em que em uma relação cada membro só se
reconhece quando está junto ao outro e se conduz sempre em função dele, as
próprias qualidades – sem deixar evidentemente de ser suas – adquirem um tom,
sentido e posição completamente distintos dos que teriam se essas qualidades
unicamente formassem parte do conjunto complexo referidas ao próprio eu. Nesse
Georg Simmel | 119
16
Destas correlações tratamos detalhadamente no último capítulo. (NS)
Georg Simmel | 121
Por isso, a unidade na forma matrimonial moderna oferece uma margem maior
de liberdade para figuras particulares do que a pluralidade de formas socialmente
predeterminadas do passado – na medida em que sua generalidade aumenta
extraordinariamente o caráter objetivo e o valor autônomo da obrigação em face de
todas as modificações individuais das que se trata agora para nós17.
Algo análogo poderia descobrir-se também em um negócio cujos associados
sejam dois. Ainda que a fundação e exploração do negócio estejam baseadas na
colaboração de ambas as personalidades, o objeto da dita colaboração, quer dizer, o
negócio ou a “firma”, é uma realidade objetiva, a respeito da qual cada um dos
componentes tem direitos e deveres, da mesma forma e aspectos como poderia tê-
los um terceiro. Todavia, isso tem um sentido sociológico distinto do caso do
casamento. O “negócio”, como consequência do caráter objetivo da economia, é
certamente e desde o início algo distinto da pessoa do proprietário, seja ele
fisicamente um ou vários. A finalidade da relação recíproca dos coparticipantes está
fora de ela, ao passo que no casamento consiste nela mesma. No primeiro caso, a
17
Esta peculiar fusão entre o caráter subjetivo e objetivo, do pessoal e do supraindividual que o
casamento oferece, existe já no processo fundamental da relação sexual, que é o único traço comum
a todas as formas de casamento historicamente conhecidas. Pois que talvez nenhuma outra
determinação se encontre entre todas elas, sem exceção. Esse processo é sentido, por uma parte,
como o mais íntimo e pessoal, e por outra, como o geral e absoluto que submete a individualidade ao
serviço da espécie, à exigência orgânica geral da natureza. Nesse duplo caráter do ato, que é
plenamente pessoal, por um lado, e supraindividual, por outro, reside seu segredo psicológico.
Compreende-se assim por que esse ato pode ser a base da relação matrimonial, a qual precisamente
reproduz esse duplo caráter em um grau sociológico mais alto. Produz-se, porém, uma complicação
formal muito singular na relação do casamento com o ato sexual. Ainda que não seja possível uma
definição positiva do casamento, dada a heterogeneidade de suas formas, pode afirmar-se que existe
uma relação entre o homem e a mulher que não é casamento: a relação puramente sexual. Seja o que
o casamento for, ele é sempre e em toda parte algo mais que a relação sexual. Por muito divergentes
que sejam as direções em que o casamento transcende a relação sexual, pode se dizer que esse
transcender do sexual é o que constitui o casamento. Sociologicamente essa é uma estrutura quase
única. O exclusivo ponto que todas as formas matrimoniais têm em comum é, simultânea e
justamente, o que todas têm que superar para produzir um casamento. Só analogias muito longínquas
se poderiam encontrar em outros campos. Assim, os artistas, por heterogêneas que sejam as suas
tendências estilísticas ou imaginativas, têm que conhecer escrupulosamente os fenômenos naturais,
não para ficar neles, mas para cumprir sua missão artística específica, ultrapassando-os. Assim
também, todas as variedades históricas e individuais de cultura gastronômica têm em comum
satisfazer as necessidades fisiológicas, não para deter-se nisso, mas justamente para superar com
os mais diversos estímulos essa necessidade geral. Mas, dentro das formas sociológicas o
casamento parece ser o único exemplo ou, ao menos, o mais puro exemplar deste tipo, que podemos
caracterizar do seguinte modo: os distintos casos de um mesmo conceito social não contêm mais
que um elemento realmente comum a todos, mas unicamente chegam com ele à realização do dito
conceito quando acrescentam a esse elemento comum algo mais, quer dizer, algo que inevitavelmente
é individual e distinto nos diferentes casos. (NS)
122 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
relação se estabelece como meio para obter certos resultados objetivos, enquanto
no segundo, o objetivo é só um meio para a relação subjetiva. Tanto mais notável
resulta, pois, que no casamento, a objetividade e autonomia do grupo – das que
amiúde carecem os outros grupos de dois – cresçam, no entanto, psicologicamente
em relação à subjetividade imediata.
Existe, porém, uma característica de extrema importância sociológica, ausente
nos grupos de dois e que os de vários podem em princípio possuir sempre.
Referimos-nos ao fato de incumbir à entidade impessoal da responsabilidade de
seus próprios deveres, fato que caracteriza com tanta frequência a vida social, e não
precisamente em sua vantagem... Isso acontece em duas direções. Em toda
comunidade que seja algo mais que a mera justaposição física de dados indivíduos,
a indeterminação de seus limites e de seu poder é tal que seus membros facilmente
tendem a exigir que ela assuma toda sorte de tarefas que, em verdade, incumbiriam
a cada um deles individualmente. Essas tarefas são descarregadas sobre a
sociedade, da mesma forma que, em uma tendência psicológica comparável, se as
adia para seu próprio futuro, cujas possibilidades nebulosas deixam espaço livre
para tudo. Espera-se que o futuro, com forças espontâneas resolva tudo aquilo que,
no momento presente, não se deseja realizar. Em face do poder do indivíduo que,
mesmo evidente em suas relações, é claramente limitado, alça-se o poder sempre
um pouco místico da comunidade e da qual se espera que faça não só o que o
indivíduo não pode fazer, mas também tudo aquilo que ele não tem vontade de fazer.
E isso ocorre na crença de que a mencionada transferência dos encargos é
perfeitamente legítima. Um dos melhores conhecedores da América do Norte atribui
à fé no poder da opinião pública grande parte das fraquezas e obstáculos ao
funcionamento da máquina do Estado. Segundo ele, o indivíduo confia que a
coletividade reconhecerá e fará o que é justo, diminuindo assim sua iniciativa
pessoal a respeito dos interesses públicos. Esse sentimento, todavia, pode exaltar-
se até o ponto de chegar a constituir um fenômeno positivo que o mesmo autor assim
descreve: “quanto mais tempo tenha governado a opinião pública, tanto mais fácil
será que a autoridade da maioria se torne absoluta; e quanto mais difícil seja que
Georg Simmel | 123
18
Esta citação pretence a James Bryce, The American Commonwealth, Vol. 3, The Party System &
Public Opinion, Nova Iorque, Macmillan, 1899. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “The
longer public opinion has ruled, the more absolute is the authority of the majority likely to become, to
less likely are energetic minorities to arise, the more are politicians likely to occupy themselves, not in
forming opinion, but in discovering and hastening to obey it.” (NT)
124 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ou na comunidade. Pois que essa intimidade para a qual tendem as relações entre
duas pessoas frequentemente está na origem de todos os ciúmes.
Trata-se de outra manifestação do mesmo fenômeno sociológico
fundamental que se constata na observação dos grupos de dois. Os conjuntos de
dois únicos coparticipantes, pressupõem uma maior individualidade que – coeteris
paribus – aqueles formados por muitos elementos. O essencial, neste sentido, é que
nas associações de dois não há maioria capaz de impor-se ao indivíduo, coisa que
pode produzir-se ao se acrescentar um terceiro. Porém, naquelas relações em que é
possível que uma maioria seja capaz de coagir o indivíduo, não só a individualidade
se degrada, mas, na medida em que tais relações sejam voluntárias, elas serão
evitadas pelas individualidades muito marcadas. É verdade que convém neste ponto
distinguir dois conceitos que frequentemente se confundem: a individualidade
marcada e a individualidade forte. Há pessoas e coletividades dotadas de acentuada
individualidade, mas que carecem da força necessária para defender sua
singularidade contra as imposições que pretendem reprimi-las ou nivelá-las; ao
passo que a personalidade forte, amiúde se afirma precisamente em meio às
oposições, na luta para impor sua particularidade e resistir a todas as tentações de
adaptação e mistura. A primeira, a individualidade meramente qualitativa, evitará as
relações em face de uma maioria eventual, mas em compensação, poderíamos dizer
que ela está como que predestinada para as mais diversas associações de dois,
porque suas diferença e vulnerabilidade obrigam-na a procurar um complemento. O
outro tipo, a individualidade que se manifesta com mais intensidade, preferirá, ao
contrário, ver-se diante de uma pluralidade cuja superioridade numérica pode
permitir a conservação de sua superioridade dinâmica.
Essa predileção se justifica pelas que chamaríamos de “razões técnicas”. O
Consulado trino19 será muito mais cômodo a Napoleão do que uma dualidade. É que
ele, só necessitava ganhar para sua causa a um só de seus colegas – coisa que a
natureza mais forte consegue facilmente – para dominar legalmente o outro, que
19
O Consulado foi o regime político vigente na França revolucionária desde o golpe de estado de 18
de brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799), que pôs fim ao regime do Diretório (1795-1799), até
o início do Primeiro Império, em 1804. O governo era exercido por três cônsules – Jean Jacques Régis
de Cambacérès, Charles-François Lebrun e Napoleão Bonaparte – embora a ascendência de
Napoleão fosse indiscutível. (NT)
Georg Simmel | 127
dizer, os outros dois, de fato. Todavia, a relação de dois, no seu conjunto, favorece
mais a individuação relativamente mais intensa dos parceiros que a de vários, uma
vez que ela anula, por outro lado, a necessidade de sufocar a própria individualidade
para acomodá-la a um nível médio. Nessa ordem de ideias, se fosse verdade que as
mulheres constituem o sexo menos individualizado, se fosse certo que nelas as
diferenciações se apartam menos do tipo genérico que entre os homens, explicar-
se-ia a opinião, muito difundida, aliás, de que elas seriam, em geral, menos inclinadas
à amizade que os homens. Pois a amizade é uma relação que se baseia
exclusivamente na individualidade dos elementos, ainda mais até que o casamento,
que contém muitos elementos supraindividuais, independentes da peculiaridade
pessoal, da causa de suas formas tradicionais, de sua estrutura social e de seus
interesses reais. Com efeito, a diferença fundamental na qual repousa o casamento
não é em si mesma individual, mas se refere à espécie. Em compensação, a amizade
repousa sobre uma diferenciação puramente pessoal, compreendendo-se assim, por
um lado, por que as amizades verdadeiras e duradouras são em geral raras nos níveis
fracos de desenvolvimento pessoal e; por outro lado, por que a mulher moderna,
muito diferenciada, apresenta capacidade e inclinação extraordinárias para as
relações de amizade, tanto com os homens como com as mulheres. A diferenciação
absolutamente individual se impõe assim à da espécie, e vemos estabelecer-se uma
correlação entre a mais acentuada individualidade e uma relação que, neste nível, se
limita exclusivamente a dois – o que naturalmente não exclui que a mesma pessoa
mantenha simultaneamente diversas relações amistosas.
As relações de dois têm, pois, traços específicos. Demonstram-no não só o
fato de que a chegada de um terceiro as modifica totalmente, mas ainda mais outro
fato frequentemente observado: que as relações plurais, quando continuam a se
estender a quatro ou mais membros não seguem modificando-se em proporção.
Assim, por exemplo, o casal com um filho tem um caráter totalmente distinto da
união sem filhos, mas já não se diferencia tanto do casal com dois ou mais filhos.
Com certeza, a chegada de um segundo filho acarreta uma diferença que é, por sua
vez, mais considerável da que o terceiro filho introduz. Mas isso não contradiz a regra
enunciada, pois o casal com um único filho é também, em certo sentido, uma relação
de dois membros: os pais, como unidade, por um lado, e o filho pelo outro. O segundo
128 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
filho não é só o quarto elemento, mas também, desde o ponto de vista sociológico, o
terceiro membro da relação capaz de produzir seus próprios efeitos, pois dentro da
família, quando os filhos são crescidos, os pais constituem uma unidade efetiva com
mais frequência que o conjunto dos filhos.
O essencial na esfera das formas matrimoniais é também saber se
verdadeiramente se trata de monogamia ou se o marido tem uma segunda mulher.
No último caso, a terceira ou vigésima mulher carece, relativamente, de importância
para a estrutura do casamento. Dentro dos limites assim traçados, a escolha de uma
segunda mulher tem, ao menos em um ponto, muitas mais consequências que a
união posterior com mais mulheres. A presença de duas esposas pode ocasionar
vivos conflitos e grandes dificuldades na vida do homem, o que não ocorre quando o
número aumenta. Com efeito, nesse caso as mulheres sofrem degradação e
desindividualização tão radicais, a relação é tão abertamente reduzida a seu aspecto
físico (já que o espiritual é sempre de natureza individual) que, por via de regra, o
homem não se sente confrontado com os grandes transtornos que acompanham
uma relação dupla.
A afirmação de Voltaire a propósito da utilidade política da anarquia religiosa
está inspirada nesse:mesmo motivo fundamental, pois que duas seitas rivais dentro
de um Estado causariam inevitavelmente mais dificuldades e distúrbios do que
duzentas de seu gênero. A importância do dualismo de um dos elementos, em uma
associação de vários membros, não é menos específica e eficaz quando serve
precisamente para assegurar a relação de conjunto e não para impedi-la. Por isso
afirma-se que a colegialidade dos dois cônsules romanos preveniu os apetites
monárquicos com mais eficácia que o sistema ateniense dos nove magistrados
supremos. É a própria tensão da dualidade que age, ora para destruir, ora para
conservar, segundo as restantes condições da associação global. O essencial é que
essa última tem caráter sociológico totalmente distinto se a função em questão é
exercida por uma única pessoa ou por um número de elementos superior a dois. Da
mesma forma que os cônsules romanos, os colegiados dirigentes com frequência
compõem-se de dois membros, tal como ocorria nos casos dos dois reis de Esparta
– cujas constantes desavenças eram consideradas verdadeira garantia para a
segurança do Estado –, dos dois chefes militares supremos da Confederação
Georg Simmel | 129
20
Primeiro magistrado municipal de certas cidades da Alemanha e de outros países europeus,
equivalente a prefeito, no Brasil, e a presidente da Câmara, em Portugal. (NT)
21
O autor se refere à Aliança Franco-russa, que foi uma aliança militar entre a Terceira República
Francesa e o Império Russo que decorreu de 1892 a 1917. A aliança terminou com o isolamento
diplomático da França e prejudicou a supremacia do Império Alemão na Europa. (NT)
130 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
pública se desenrola em geral seguindo o provérbio: “quem não está comigo, está
contra mim”. A consequência dessa situação é a necessária divisão dos elementos
em dois partidos. Todos os interesses, convicções e impulsos que nos põem em
relação positiva ou negativa com os outros geralmente se definem em relação ao
princípio enunciado e podem ser organizados em uma série que vai da exclusão
radical de todo meio termo e de toda atitude imparcial, até a tolerância dos pontos
de vista contrários, como visões igualmente justificadas, incluindo uma escala de
opiniões mais ou menos de acordo com a nossa. Toda decisão que guardar relação
com o círculo mais vasto ou mais limitado em que vivemos e que nos atribua uma
posição que implique cooperação interna ou externa, benevolência ou simples
tolerância, desengajamento ou ameaça; toda resolução enfim dessa classe ocupa
determinado posto naquela escala. Cada uma delas desenha em torno de nós uma
linha ideal que inclui ou exclui firmemente as demais, que deixa lacunas nas quais
nem se suscita a questão de dentro ou fora, e que é traçada de forma a possibilitar a
inclusão ou a exclusão parcial ou um mero contato. A questão de saber se o dilema
do “comigo ou contra mim” será aventado (e, em seu caso, com que rigor será) não
depende somente da exatidão lógica de seu conteúdo, nem sequer da paixão com
que a alma possa aderir a esta alternativa, mas igualmente da relação que mantenha
quem formula a questão com seu círculo social. Quanto mais íntima e solidária essa
relação, menos o sujeito poderá coexistir com outros, como companheiros de igual
opinião. Quanto mais uma reivindicação ideal reúna todos os membros de uma
unidade, mais se encontrará cada um deles em face da brutal questão do pró ou
contra. O radicalismo com que Jesus formula esse dilema obedece ao sentimento
infinitamente forte da unidade entre todos os que têm recebido sua Boa-nova22. Em
face da notícia de salvação, a alternativa não se limita a pedir que seja aceita ou
rejeitada, mas pretende que seja admitida ou combatida. Eis a expressão mais forte
da unidade absoluta dos discípulos e da exclusão incondicional dos que não fazem
parte deles. O conflito pelo antagonismo é sempre uma relação: revela certa unidade
interna que, ainda pervertida, é mais forte que a coexistência indiferente ou a
tolerância das atitudes mornas. Esse sentimento sociológico fundamental irá
22
“Quem não está a meu favor, está contra de mim, e quem não ajunta comigo, dispersa” (cf.Mt 12,
30; Lc 11, 23). (NT)
132 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
incentivar, pois, a divisão de todos os elementos em dois partidos. Mas, quando falta
desse sentimento apaixonado que aspira a abarcar tudo, e obriga cada um a entrar
em uma relação positiva – de aceitação ou de combate – com a ideia ou exigência
que se apresenta; quando cada grupo parcial se conforma com sua existência, sem
pretender seriamente reunir a coletividade inteira no seu seio, então o terreno é
favorável à formação de uma pluralidade de partidos, à tolerância, aos partidos
mediadores, e a uma escala de mudanças progressivas. Se as épocas em que
nasceram os movimentos de massa foram favoráveis ao dualismo dos partidos, à
exclusão do indiferentismo e à diminuição da influência dos partidos de mediação,
isso se pode explicar pelo radicalismo que anteriormente reconhecemos como
característica dos grandes movimentos coletivos. Com efeito, a simplicidade das
ideias com que as massas são dirigidas favorece a abordagem das questões de seu
interesse na forma de um simples e peremptório “sim” ou “não”23.
O radicalismo que caracteriza os movimentos de massa não impede que, às
vezes, ele passe de um extremo a outro. Inclusive, é fácil entender que isso possa
acontecer em decorrência de motivos fúteis e desproporcionados. Imaginemos que
um evento X qualquer, que corresponde a um estado de ânimo a, se verifica diante
de uma massa reunida. Nessa reunião encontramos certo número de indivíduos, ou
apenas um, cujo temperamento e paixão natural tendem para a. O evento X afeta
vivamente esses indivíduos, diríamos até que “leva água a seu moinho”. Então,
podemos compreender que os indivíduos tomem a direção da massa, a quem o
evento X predispõe em favor de a, o que significa seguir destarte as sugestões
exageradas pela ocasião e provenientes do estado de ânimo desses indivíduos.
Enquanto isso, os indivíduos que por natureza se inclinam ao estado de ânimo b, o
contrário de a, guardam silêncio diante de X. Mas se surge algum evento Y, que
justifique b, aqueles que primeiro tinham tomado a direção da massa agora terão que
se calar, repetindo-se então o jogo na direção de b, com a mesma emergência
23
Através de toda a história, as tendências democráticas que conduziram os grandes movimentos
preferiram as regras, leis e princípios simples. À democracia lhe resultam antipáticas todas as
práticas complicadas, em que entram várias considerações e nas quais se têm em conta diversos
pontos de vista. Pelo contrário, a aristocracia abomina as leis fundamentais, universais e vinculantes,
concedendo a mais ampla margem às particularidades dos elementos individuais – das pessoas, dos
lugares e dos negócios. (NS)
Georg Simmel | 133
de maneira quase que inevitável, a função de mediador. Essa função deve ser
cumprida alternadamente pelos três elementos, já que o fluxo e refluxo da vida
comum dará existência concreta a essa forma em todas as combinações possíveis.
A imparcialidade requerida pela mediação pode basear-se em dois pré-
requisitos O mediador é imparcial quando é alheio aos interesses e conflitos
contraditórios, sem ser atingido por eles, como ao participar igualmente de ambos.
O primeiro caso é o mais simples e acarreta menos dificuldades. Nos conflitos entre
operários e patrões ingleses, por exemplo, recorre-se frequentemente a uma pessoa
imparcial que não deveria ser nem operário nem patrão. É notável o rigor com que,
nesse caso, se realiza a separação referida entre os elementos concretos e os
elementos pessoais do conflito. O papel do mediador imparcial exige como condição
prévia que ele não tenha nenhum interesse pessoal no assunto objeto da divergência.
Os conteúdos concretos das opiniões das partes se apresentam ao mediador como
se ele fosse um intelecto puro, impessoal, sem afetar nenhum dos níveis de sua
subjetividade. Em compensação, em face das pessoas e dos conjuntos de pessoas
que são o sustentáculo desses conteúdos antagônicos – teóricos para o mediador –
o terceiro deve sentir por eles um interesse subjetivo, já que em caso contrário não
assumiria as funções de mediador. Introduz-se, assim, um tipo de mecanismo
puramente objetivo que funciona sob o impulso de um pendor subjetivo. O
distanciamento pessoal a respeito do sentido objetivo do conflito e o simultâneo
interesse por sua significação subjetiva caracterizam assim a posição do mediador
imparcial. Que será tanto mais a propósito para sua função, quanto maior sucesso
tenha em desenvolver separadamente cada um desses dois aspectos, e ao mesmo
tempo conseguir que eles coexistam na diferença.
A posição do terceiro imparcial tende a se complicar quando ele deve sua
qualificação para agir como mediador ao fato de participar de igual forma de
interesses opostos, e não a manter equidistância de ambos. Mediações desse tipo
ocorrem frequentemente quando uma pessoa pertence localmente a um círculo de
interesses distinto aos da sua profissão. Assim, os bispos podiam intervir, às vezes,
entre o poder secular reinante em sua diocese e o papa; assim, o funcionário
administrativo, que conhece perfeitamente os interesses especiais de seu distrito,
será o mediador indicado quando se produza uma colisão com os interesses gerais
Georg Simmel | 139
do Estado do qual ele é servidor; da mesma maneira sucede com frequência que a
boa combinação de imparcialidade e de interesse se dê em pessoas que provindo de
um grupo geograficamente situado, moram em outro lugar, o que as predispõe à
função de mediação entre dois grupos geograficamente distintos. Nesses casos a
posição do mediador é difícil porque não se pode apreciar o equilíbrio perfeito de sua
atitude com absoluta certeza, nem a semelhança do seu interesse por ambos os
contendores, o que, finalmente e com frequência, provoca suspeitas entre as duas
partes. Mas, a situação mais delicada – e às vezes trágica – surge quando o terceiro
não tem interesses concretos em comum com uma e outra parte, mas é sua
personalidade por inteiro a que está próxima das duas. Esse caso assume sua forma
extrema quando o assunto que provoca o conflito não pode objetivar de forma
eficiente o sentido real da disputa, que não é propriamente mais do que o pretexto ou
a ocasião de dar livre curso aos rancores pessoais mais profundos. Nesse caso, o
terceiro, ligado intimamente às duas partes, seja pelo amor, pelo dever, pelo destino
ou pelo hábito, pode resultar muito mais dilacerado interiormente pelo conflito do
que se ele mesmo escolhesse um campo. Tanto mais que, nesses casos, o equilíbrio
dos interesses do mediador, que lhe impede inclinar-se de um ou de outro lado,
também não lhe permite reduzir o conflito a uma simples contraposição objetiva.
Este é um dos muitos tipos de conflitos familiares. Enquanto o mediador imparcial, a
raiz da igual distância que mantém a respeito das partes adversas, pode fazer justiça
com relativa facilidade às duas, aquele que se desempenha como tal, por estar
igualmente próximo de ambas, terá muitas mais dificuldades e cairá pessoalmente
nas alternativas mais dolorosas. Por isso, quando se escolhe um mediador é
preferível – mantendo-se inalterados todos os outros aspectos – aquele que é
igualmente desinteressado ao igualmente interessado. Assim, por exemplo, na Idade
Média, algumas cidades italianas procuravam frequentemente seus juízes em outras
cidades, para assegurar a imparcialidade em face das disputas internas.
Isso nos conduz à segunda forma de acordo pela intervenção de um terceiro
imparcial: a arbitragem. Ao agir como simples mediador o terceiro coloca término do
conflito nas próprias mãos das partes. Mas, ao eleger um árbitro, as partes se
desprendem desse poder decisório, e projetam, de certa forma, sua vontade de
conciliação fora de si, encarnando-a na pessoa do árbitro. O árbitro então adquire
140 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
24
O Deutsche Zentrumspartei (Partido Alemão do Centro ou simplesmente Zentum) foi um dos
partidos mais antigos da Alemanha, datando de 1870. Estava orientado pelos valores católicos e foi
um dos mais importantes no sistema político do Império Alemão. (NT)
25
A Alemanha do século XIX conheceu um agrarismo de massas focalizado em duas organizações: o
Bund der Landwirte (BdL), de tendência conservadora, criado em 1892 e a Federação dos Círculos
Camponeses Cristãos Alemães, organização católica criada em 1900 para reagrupar os diferentes
círculos que se desenvolviam no nível dos Länder desde três décadas atrás. (NT)
26
Em 1863 emergia na Alemanha a socialdemocracia. A 7 de agosto de 1869 August Bebel e Wilhelm
Liebknecht fundaram o Partido Social Democrata dos Trabalhadores (SDAP) com a meta de abolir o
Estado de classes e implantar um "Estado livre e popular". Em 1890, o partido transformou-se em
Partido Social Democrata da Alemanha (SPD). Era um partido de orientação marxista, revolucionário,
anticlerical e pacifista. (NT)
Georg Simmel | 147
27
O fiel da balança ou seu dono. (NT)
28
Leão o Grande foi o primeiro papa (e, por conseguinte, o primeiro bispo de Roma) a levar este nome
e a merecer o epíteto indicado. Governou a Igreja entre 29 de setembro de 440 e sua morte em 10 de
novembro de 461, sendo canonizado pouco depois. Leão foi muito importante para a centralização da
autoridade espiritual na Igreja e na reafirmação da autoridade papal. (NT)
148 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
quando a obrigação recaia em uma pessoa só. Em 1751, o governo da Boêmia proibiu
durante repartição das terras entre camponeses, que os proprietários fundiários
(partilhando as corveias 29 associadas ao conjunto da terra), impusessem a cada
parcela uma carga de corveia maior do que a parte proporcional a seu tamanho na
prestação total anterior. Quando uma tarefa é repartida entre dois elementos, a ideia
preponderante é que cada um deles deveria fazer menos do que antes fazia o único
elemento sobre quem recaia a prestação por inteiro, deixando em segundo plano o
cálculo exato da quota atribuída a cada novo prestador, apuração facilmente
deturpável.
Se no caso precedente a vantagem do terceiro resultava do simples fato
numérico da dualidade, da quantidade das partes, no caso seguinte essa vantagem
se produziu em virtude de uma dualidade determinada por diferenças qualitativas.
As faculdades judiciárias do rei de Inglaterra depois da conquista normanda tiveram
extensão inaudita para a Idade Média germânica. Aconteceu que Guilherme, o
Conquistador encontrou estabelecidos os direitos da população anglo-saxônica que,
em princípio, tinha que respeitar, enquanto seus normandos traziam consigo os
direitos de sua pátria. Todavia, era muito difícil harmonizar esses dois complexos
jurídicos, pois não chegavam a constituir um ordenamento normativo unitário que o
povo pudesse arvorar em face do rei, pois que graças a objetividade de seus
interesses, o monarca podia colocar-se entre anglo-saxões e normandos e anular
em grande medida as prerrogativas jurídicas dos súditos. O absolutismo achou,
assim, um ponto de apoio no antagonismo das duas nações – não só porque lutavam
constantemente entre si, mas porque sua diversidade dificultava a afirmação comum
do direito – começando, por isso também, a decrescer tão logo as duas
nacionalidades se fundiram realmente em uma só.
A situação favorável do terceiro desaparece, assim, geralmente, no momento
em que os outros dois se unem para formar uma unidade, quer dizer, quando na
relação em questão o grupo de três passa a ser de novo de dois. É muito instrutivo
observar, não só para esse problema particular, mas também para a vida dos grupos
29
A corveia era uma obrigação que consistia na prestação de serviços nas terras ou instalações do
senhor feudal. Assim, vários dias por semana o servo era obrigado a cumprir diversos trabalhos como,
por exemplo, fazer a manutenção do castelo, construir um muro, limpar o fosso da fortaleza, limpar o
moinho, ou realizar trabalhos de plantio e colheita no manso senhorial. (NT)
Georg Simmel | 149
em geral, que este resultado pode ser obtido também sem união pessoal ou fusão de
interesses, quando o objeto do antagonismo é subtraído ao conflito das pretensões
subjetivas com a fixação objetiva do motivo de desavença. O caso seguinte nos
parece especialmente esclarecedor. A indústria moderna conduz a uma constante
confusão de limites entre os diversos ofícios, e cria novas tarefas que não pertencem
historicamente a nenhum ofício existente, circunstância que produz, especialmente
na Inglaterra, frequentes conflitos de competência entre as diversas categorias de
operários. Nas grandes empreitadas os carpinteiros estão em constante disputa com
os marceneiros, os encanadores com os ferreiros, os caldeireiros com os funileiros,
os pedreiros com os telhadores, para saber a quem se deve confiar determinada
tarefa. Cada ofício abandona o trabalho no momento que acredita que outro interfere
minimamente nas suas respectivas competências. A contradição insolúvel provém,
nesse caso, do fato de atribuir direitos subjetivos claramente delimitados a objetos
que estão, por natureza, sujeitos à mudança. Semelhantes conflitos têm
comprometido amiúde gravemente a posição dos trabalhadores diante dos patrões.
Pois, se por um lado, os empresários aproveitam a vantagem moral decorrente de
sua posição de vítimas de uma greve declarada pelos trabalhadores como
consequência de dissensões internas das quais são alheios, por outra parte, as
desavenças permitem pressionar à vontade qualquer dos grupos profissionais
ameaçando-o com a contratação de outro igualmente competente para realizar a
tarefa em questão. O interesse econômico de cada categoria de operários em não
deixar que diminua seu trabalho corresponde ao temor de que o competidor o faça
por um preço menor e eventualmente provoque o abatimento do salário. Por isso as
associações profissionais propuseram como único remédio possível de fixar
conjuntamente com os patrões unidos o salário médio para cada tipo de trabalho,
deixando depois ao arbítrio dos empregadores determinar que classe de
trabalhadores contratarão para cada tarefa. Assim, o excluído não teme dano ao seu
interesse econômico, enquanto a objetivação do motivo do conflito priva o patrão de
alguma vantagem. Com efeito, o empregador não pode agora provocar o
rebaixamento do salário opondo os distintos grupos de operários, ainda que lhe reste
a escolha entre as diferentes categorias profissionais – que ora não lhe serve para
nada. O fator pessoal e o fator objetivo saem de seu antigo estado de indeterminação,
150 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
30
Homens, e não medidas. (NT)
154 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
prática corrente entre os incas. De fato, esse era o meio mais adequado para
provocar rivalidade entre eles, impedindo toda ação conjunta contra os
conquistadores no território submetido. Pois que a igualdade ou mesmo uma grande
diferença hierárquica teriam sido mais favoráveis para à ação comum. No primeiro
caso, porque a paridade teria facilitado a partição efetiva da chefia, e a subordinação,
quando precisa, ocorreria pela submissão dos iguais, menos reticentes por entendê-
la como necessidade técnica. E no segundo caso, porque a chefia de um só não teria
esbarrado na oposição do outro. Em compensação, uma leve diferença hierárquica
dificultaria a relação orgânica e satisfatória na união temida, pois um dos elementos
não deixaria de arguir sua vantagem relativa para reivindicar a supremacia absoluta,
ao passo que a desvantagem do outro não seria suficientemente grande para impedir
de alimentar a mesma ambição.
O princípio da repartição desigual de quaisquer bens, utilizado como meio para
que os ciúmes provocados suscitem a figura do divide et impera, é uma técnica muito
aplicada contra a qual, aliás, certos estados sociológicos oferecem proteção
– também em princípio. Tem-se procurado assim encorajar as tensões entre os
aborígines australianos distribuindo entre eles presentes distintos, para dominá-los
mais facilmente. Mas esse expediente costuma fracassar ante o comunismo
primitivo dos clãs, que redistribuíam imediatamente os presentes entre todos seus
membros sem ter em conta quem os tinha recebido. Todavia, é sobretudo da
desconfiança mais até que dos ciúmes que se lança mão como meio psicológico
para os mesmos fins. É que a desconfiança, contrariamente ao ciúme, permite
desvelar grandes conspirações. Quem se valeu com maior eficácia desse
estratagema foi o governo da República de Veneza ao estimular os meios para incitar
os cidadãos a denunciar qualquer pessoa suspeita. Ninguém estava seguro de que
seu mais íntimo amigo não estivesse a serviço da polícia da Sereníssima. Cortaram-
se pela raiz os planos revolucionários (que pressupõem sempre a confiança
recíproca de grande número de pessoas), de tal forma que na história de Veneza
apenas se registram rebeliões declaradas.
A forma mais brutal do divide et impera, o surgimento impetuoso de um estado
positivo de confronto entre dois elementos, é frequentemente o resultado intencional
da relação do terceiro elemento com ambos ou com objetos alheios a eles. Isso
Georg Simmel | 155
31
Veneza se estende sobre uma série de 119 ilhas que emergem da ampla lagoa marítima situada
entre o continente e o mar aberto. Todavia, sua base geográfica, na época que nos ocupa, se estendia,
além de suas possessões marítimas, à terra ferma, territórios continentais que hoje pertencem à Itália
e Croácia. (NT)
156 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
Mas, quando o terceiro não visa um objeto senão o domínio imediato dos
outros dois elementos, há dois pontos de vista sociológicos essenciais:
1) Certos elementos estão constituídos de tal maneira que só podem ser
combatidos eficazmente por outros do mesmo gênero. Assim, quando a vontade de
submetê-los não acha imediatamente um ângulo de ataque, não resta outro recurso
que dividi-los e manter entre suas partes uma luta, que só pode ter lugar com armas
semelhantes, até que ambas estejam suficientemente enfraquecidas para cair nas
mãos do terceiro. Da Inglaterra diz-se que só pôde conquistar a Índia pela Índia, da
mesma maneira que Xerxes tinha reconhecido muito antes que os gregos eram a
melhor arma contra a Grécia. Aqueles vinculados por interesses similares a outros
são os que melhor conhecem as fraquezas e pontos vulneráveis dos que se parecem
com eles, de sorte que o princípio do similia similis – a destruição de um estado
qualquer pela suscitação de outro análogo – pode repetir-se aqui em larga escala.
Assim como uma diferença qualitativa é em certa medida o melhor meio para que
determinados elementos se ajudem reciprocamente e se unifiquem (para enriquecer
mutuamente, crescer juntos e viver uma vida organicamente diferenciada), pareceria
que uma semelhança qualitativa é a forma mais segura de alcançar a destruição
recíproca (salvo naturalmente no caso em que uma das partes tenha uma força tão
superior em termos quantitativos que resulte indiferente a parecença das
estruturas). Se toda essa hostilidade, que culmina na luta fratricida, adquire caráter
destrutivo radical é porque a experiência e o conhecimento compartilhados, assim
como os instintos derivados da mesma origem comum proporcionam as armas mais
mortíferas a cada uma das partes para ferir o adversário. Aquilo que funda a relação
entre semelhantes – o conhecimento mútuo da situação exterior e a compreensão
simpática interior – é também o meio de infligir ao próximo as feridas mais
profundas, sem economizar esforços até chegar a sua destruição completa. Por essa
razão, combater o igual pelo igual, cindindo o adversário em duas partes
qualitativamente homogêneas é um dos maiores feitos do divide et impera.
2) Quando ao opressor não é possível deixar seu trabalho ao exclusivo cuidado
de suas vítimas e ele próprio tem que intervir no conflito, o esquema resultante é
bastante simples: ele dará apoio a uma das partes até que a outra seja esmagada,
tornando o sobrevivente uma presa fácil. O procedimento mais eficaz será favorecer
Georg Simmel | 157
quem de todas as formas já é o mais forte, tática que pode instrumentalizar-se por
omissão, como quando os mais poderosos são poupados em um conjunto de
elementos que se pretende dominar. Assim Roma, quando submeteu Grécia, impôs
uma ostensível reserva em face de Atenas e Esparta. Tal procedimento engendra
amiúde rancor e ciúmes em uma das partes, assim como arrogância e confiança
excessiva na outra, divisão que facilita a tarefa do opressor. A técnica está a serviço
de um desejo de poder do dominador e consiste em proteger o mais forte de dois
elementos interessados em resistir à opressão de um terceiro, até a destruição do
mais fraco por esse terceiro, que trocará logo de frente para atacar e submeter ao
elemento que ficou isolado. O esquema é empregado na fundação de grandes
impérios e em uma rixa de gangues de rua, de igual modo na manipulação dos
partidos políticos por um governo, que nos casos de concorrência econômica capaz
de confrontar um importante financista ou industrial a dois competidores menos
importantes, mas incômodos para o primeiro e desiguais entre si. O primeiro, para
impedir uma coalizão dos dois outros contra ele concluirá então um acordo, que lhe
assegure consideráveis vantagens ao mais forte dos competidores e sirva para
esmagar o mais fraco, sobre preços ou produção. Assim que consiga o acordo, o
poderoso já poderá prescindir de seu aliado e, achando-lhe indefeso, arruiná-lo
fazendo baixar os preços ou por qualquer outro método.
Passaremos de momento a outro tipo completamente distinto de formação
sociológica condicionada pelo número de seus elementos, Nas associações de dois
ou de três tratávamos da vida interna do grupo que se desenvolvia com todas as
nuances, sínteses e antíteses próprias, A questão não concernia ao grupo em seu
conjunto, em sua relação com outros grupos ou com um grupo maior do qual podia
formar parte, mas à relação imanente e recíproca de seus membros. Se, ao invés, nos
perguntássemos sobre a significação que a determinação numérica passa a ter para
a vida externa do grupo, diremos que sua função essencial é possibilitar sua divisão
em subgrupos diferentes. Como acima explicado, o sentido teleológico dessa divisão
é que o grupo total, quando dividido, resulta mais fácil de controlar e dirigir. Dividir
torna-se amiúde, assim, o primeiro gesto para organizar – diríamos que
mecanicamente – o grupo, pois, de um ponto de vista formal, permite manter a
estrutura, o caráter e as instituições dos subgrupos independentes do
158 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
32
“Estão unidos como dois dedos da mão” (NT)
33
Considerada desde outro aspecto mais geral, a divisão pelo número de dedos pode ser incluída na
tendência típica que consiste em utilizar a este fim sociológico os fenômenos que têm certo ritmo
natural e evocam, pelo menos por seu nome e símbolo, uma sequência de unidades compostas por
certo número de elementos e sua relação hierárquica. Durante o reinado de Luis Filipe da França se
constituiu uma sociedade secreta que levava o nome de “As Quatro Estações”. Seis membros sob a
direção de um sétimo chamado “Domingo”, formavam uma “semana”, quatro “semanas” um “mês”,
três “meses” uma “estação”, e quatro “estações” integravam a unidade superior que estava sob o
comando de um chefe supremo. Apesar do caráter lúdico dessas denominações tinha-se também o
sentimento de reproduzir uma forma unitária, composta de diferentes elementos, sugerida pela
natureza. Simbolismo favorecido pela coloração mística que frequentemente tinge as sociedades
Georg Simmel | 159
secretas, o que podia levar a pensar na transferência de uma força criadora cósmica à estrutura
arbitrária. (NS)
160 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
34
Ponto de partida, lugar de origem. (NT)
Georg Simmel | 161
No geral, a ninguém interessa que sua influência sobre outro determine a esse
outro, mas que a determinação do outro reverta sobre o determinante. Por isso existe
uma ação recíproca naquele desejo abstrato de domínio que se dá por satisfeito
diante da ação ou a passividade do outro ou quando seu estado positivo ou negativo
aparece ao sujeito como produto de sua própria vontade. É verdade que esse
exercício solipsista de um poder dominador, cujo sentido se reduz a quem exerce a
posição dominante com consciência de sua atuação, não é mais que uma forma
sociológica rudimentar que não produz mais sociação da que existe entre um artista
e a sua estátua, ainda que esta reaja sobre o escultor na consciência de seu poder
criador. Ademais, as ânsias de domínio não significam suprema desconsideração
egoísta, nem sequer nesta forma sublimada cuja finalidade não é em realidade a
exploração do outro, mas simplesmente a consciência de sua possibilidade. Pois se
as ânsias de domínio querem quebrantar a resistência interior do submetido
(enquanto o egoísmo se contenta ordinariamente com a vitória sobre sua resistência
exterior), não é menos certo que o ansioso continua, apesar de tudo, a sentir pelo
outro certo interesse já que este representa algum valor para ele. Somente quando o
outro é perfeitamente indiferente e se converte em um simples instrumento para
alcançar fins alheios a ele, desaparece a última aparência de colaboração ou
interação social de reciprocidade. O princípio formulado pelos juristas romanos
tardios, segundo o qual a societas leonina não pode considerar-se como um contrato
de sociedade, explicita a ideia de que o conceito de sociedade é suprimido quando
uma das partes é privada de toda significação. Do mesmo modo, referindo-se aos
trabalhadores das grandes empresas modernas – nas que é impossível toda
concorrência eficaz entre patrões rivais no recrutamento da mão de obra – diz-se
que a diferença entre a posição estratégica dos operários sem qualificação e a de
seus patrões é tão grande, que o contrato de trabalho celebrado entre eles deixa de
ser um verdadeiro contrato no sentido corrente da palavra, porque uns estão à mercê
dos outros. Dessa forma, a máxima moral segundo a qual nunca se deve utilizar um
ser humano como um simples meio aparece como a fórmula de toda sociação.
Quando a importância de uma das partes se torna tão pouco significativa que sua
166 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
1
Geração espontânea. (NT)
168 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
2
Aqui – e algo análogo sucede em muitos outros casos – o importante não é definir o conceito de
prestígio, mas apenas constatar a presença de certa variedade de interações entre os homens, sem
levar em conta qual seria sua denominação. Sucede às vezes que a pesquisa começa, como deve ser,
por aquele conceito que, segundo o uso da língua, melhor convém à relação que se estuda. Isto produz
a impressão de que o método se limita a definições, quando em realidade o que aqui fazemos não é
procurar o conteúdo de um conceito, mas descrever um conteúdo real que às vezes terá a fortuna de
concordar mais ou menos com um conceito já existente. (NS)
Georg Simmel | 169
3
“Il faut bien que je les suive, puisque je suis leur chef”. Contrariamente ao que afirma Simmel, estas
palavras são atribuídas a Alexandre-Auguste Ledru-Rollin, homem político (republicano social)
francês que as teria pronunciado durante as jornadas revolucionárias de 1848. (NT)
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tal caso é o acordado com os demais membros da sociedade e que consiste no pacto
de deixar-se governar por aquele soberano.
A desaparição do elemento de reciprocidade explica por que a tirania de uma
comunidade sobre um de seus próprios membros pode ser muito pior que a de um
príncipe. Quando a comunidade (e não nos referimos apenas à política) não vê seus
integrantes como distintos dela, mas como partes ou órgãos de si mesma, dá lugar,
muitas vezes, a manifestações de uma brutalidade muito distinta da crueldade
pessoal de um déspota. O fato de os elementos se verem como dois (mesmo
enfrentados e ainda que o segundo apareça como subordinado) pressupõe uma ação
recíproca que, em princípio, acarreta uma limitação também dos dois – salvo em
alguns casos individuais excepcionais. Cada vez que a relação com o subordinado
ostenta essa brutalidade específica – própria de uma comunidade avassaladora –
também deixa de existir a mencionada contraposição cuja ação recíproca permitia a
ação espontânea dos dois elementos, e consequentemente a limitação de ambos.
Isso se expressa com muita propriedade no primitivo conceito romano de lei.
A lei, em seu sentido mais estrito, exige submissão que não pressupõe voluntária
aquiescência ou resposta alguma de parte daquele que se encontra subordinado a
ela. O fato de que o regido pela lei tenha, por exemplo, participado de sua elaboração
ou inclusive que se haja dado a si mesmo a norma, carece aqui de toda importância.
Nesse caso, cinde-se simplesmente o subordinado em sujeito e objeto da legislação,
e a determinação da lei que vai do primeiro ao segundo não altera seu sentido porque
ambos coincidam em uma mesma pessoa física. Todavia, os romanos incluíram a
ideia de ação recíproca no conceito de lei desde o começo. Em sua origem, com
efeito, lex significava contrato, o que quer dizer também, evidentemente, que as
condições desse contrato são fixadas por quem o propõe, cabendo à outra parte
apenas sua adoção ou rejeição en bloc. Assim, originariamente, os termos lex publica
populi romani significavam que o rei tinha proposto a lei e o povo a tinha aceito.
Dessa forma, o conceito que parecia excluir resolutamente a ação recíproca
retornava a ela, pelo menos linguisticamente. A expressão propunha, com efeito, uma
imagem reduzida do processo de formação da lei e do papel privilegiado que cabia
ao rei romano, o único autorizado para falar ao povo. Tal prerrogativa significava,
sem dúvida, a unidade zelosamente exclusiva de seu poder (assim como na
172 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
dos outros e também de si. Porém os homens igualmente precisam se opor ao poder
dirigente, para ocupar, graças a essas ações e reações, o lugar que lhes convém no
sistema vital dos que obedecem. Estamos tentados a dizer que a obediência e a
oposição constituem dois aspectos de uma mesma conduta, orientados em direções
diferentes e que se apresentam como dois instintos autônomos. O caso mais simples
é o da política, na qual a comunidade, por muitos e adversos que sejam os partidos
que a integram, tem o interesse comum de limitar – senão de reduzir – as
competências da Coroa, mesmo que as considere indispensáveis e até sinta alguma
ligação sentimental. Na Inglaterra, muitos séculos depois da Carta Magna, se
mantém vivo o convencimento de que certos direitos fundamentais deviam ser
conservados e acrescentados para todas as classes, que a nobreza não podia
consolidar suas liberdades sem afirmar ao mesmo tempo a liberdade das classes
mais fracas, e que um direito comum para os nobres, os burgueses e os camponeses
era o corolário dos limites impostos ao governo pessoal. Devemos ressaltar que a
nobreza manteve esse objetivo final da luta, amiúde com o povo e o clero a seu lado.
E que, mesmo quando não se chega a esse tipo de unificação, surge graças à
dominação de uma pessoa – ao menos para os submetidos – um terreno de luta
comum onde os dominados se dividem entre os que estão junto e os que são
contrários ao senhor. Não há esfera sociológica submetida a um chefe supremo, em
que este pro et contra dos elementos não suscite vivas ações e relações recíprocas.
Frequentemente esses conflitos – apesar dos ódios, atritos e desgraças da guerra –
têm um poder de unificação largamente superior, em última análise, a muitas
coexistências pacíficas, mas também desprovidas de atrativos.
Como não se trata aqui de construir séries dogmáticas unilaterais, mas de
mostrar os processos fundamentais cujas medidas e combinações infinitamente
variadas desenvolvem suas manifestações superficiais em sentidos frequentemente
opostos, devemos assinalar que a submissão comum a um poder dominante conduz
não só à unificação, mas que às vezes, esbarrando em certas disposições, produz
resultados contrários. No século XVII, a legislação inglesa estabeleceu contra os
4
“não-conformistas” (isto é, fundamentalmente contra os presbiterianos e
4
Os protestantes não-conformistas ou dissidentes eram homens ligados às várias correntes ou
seitas protestantes não-anglicanas (batistas, anabatistas, quacres, congregacionais ou
176 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
5
Sublime Porta, Porta Otomana ou simplesmente Porta, era a designação corrente dada entre 1718 e
1922 ao governo do Império Otomano. O termo é uma tradução da expressão turca dada ao
monumental portão de entrada no palácio que alojava a corte otomana. (NT)
178 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
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Segundo relata Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso. (NT)
180 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
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“Temia que os melhores representassem um perigo para ele e que os piores fossem uma desgraça
para o Império” (NT)
Georg Simmel | 181
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Sorte de vassalos de vassalos, conhecidos como suseranos e até então vinculados ao monarca
apenas indiretamente, pela mediação de seus respectivos senhores. (NT)
182 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
tem que ser transformada de tal modo que sua unidade se divida em uma série de
conceitos e de sínteses determinados de maneira unilateral, e sequenciados de tal
sorte que um deles constitui geralmente a característica principal. Assim é possível,
por mútua limitação e desvio, projetar, com crescente exatidão, a imagem daquele
fenômeno social no novo plano da abstração, por exemplo, a da dominação do sultão
sobre súditos sem direitos; a do rei de Inglaterra sobre um povo, que depois de 150
anos da morte de Guilherme, o Conquistador se levanta corajosamente contra o rei
João; a do imperador romano que, de fato, não era mais do que o chefe das
comunidades mais ou menos autônomas que constituíam o Império. Todos esses
exemplos mencionados são formas monárquicas extraordinariamente diversas,
assim como era distinta a “nivelação” dos respectivos súditos. Todavia, essa
correlação deriva de um motivo comum presente em todas elas, de maneira tal que
a diversidade ilimitada dos fenômenos materiais imediatos deixa lugar a uma
espécie de linha ideal que desenha aquela correlação – que certamente, em sua
limpidez e regularidade, é uma figura científica abstrata.
A mesma tendência à dominação por meio da nivelação está presente em
fenômenos aparentemente opostos. É um comportamento típico que observamos
em Filipe, o Bom, duque de Borgonha, que trata de acabar com as liberdades das
cidades holandesas, mas que, por outro lado, concede importantes privilégios a
numerosas corporações. Pois, na medida em que todas essas diferenças de direitos
se originavam no puro arbítrio do soberano, elas denotavam a uniformidade da
submissão na qual se encontravam, a priori, os súditos. No exemplo citado, é
característico que os privilégios jurídicos, muito amplos em seu conteúdo, fossem de
duração muito breve, pelo que não se separavam jamais de sua fonte e origem.
Assim, o privilégio, que é aparentemente o contrário da nivelação, se revela em
alguns casos como forma superlativa da uniforme sujeição, espécie de correlato da
dominação absoluta.
Censurou-se incontáveis vezes à dominação de um só pelo contrassenso que
representa, por outras palavras, pela desproporção quantitativa entre o senhorio
individual e a pluralidade dos dominados, pela indignidade e injustiça na proporção
do que cada uma das partes investe nessa relação. A solução de tal contradição
oferece um conjunto muito singular e fecundo de elementos sociológicos
Georg Simmel | 183
9
Hugo Grócio, Hugo Grotius ou Huig de Groot (1583 – 1645) foi um jurista holandês a serviço da
República dos Países Baixos. É considerado o fundador, junto com Francisco de Vitória e Alberico
Gentili, do Direito Internacional, com base no Direito Natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta
e um grande nome da apologética cristã. (NT)
184 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
10
Ser independente. Diz-se da capacidade da pessoa livre de determinar-se sem depender de outrem.
(NT).
11
O direito de governá-los, que faz deles um povo. (NT)
12
No sentido de: “cotejo entre duas quantidades mensuráveis”. (NT)
Georg Simmel | 185
13
James Madison, Alexander Hamilton, John Jay. Federalist papers, nº 58, (NT)
14
Contra o governo de uns poucos. (NT)
15
Poderá ser alargada a máquina, mas serão poucas as molas para direcionar seus movimentos. (NT)
16
James Bryce, The American Commonwealth, op. cit., vide nota 18 do tradutor (NT) do Capítulo II.
(NT)
17
Por quão poucas pessoas o mundo é governado. (NT)
Georg Simmel | 187
18
Inglaterra anglo-saxônica é um termo que se refere ao período da história inglesa que vai do fim da
Britânia romana e o estabelecimento na Ilha dos reinos anglo-saxônicos no século V d.C. até a
conquista normanda do reino em 1066. (NT)
19
Moço que cuidava o palafrém, cavalo em que o soberano desfilava. (NT)
Georg Simmel | 189
20
Na antiguidade romana, os humiliores eram pessoas carentes de capitais e de bens ou escravos
libertos; espécie de plebe urbana qualificada pelos aristocratas de plebs sordida ou plebs humilis.
(NT)
21
Os moradores do senhorio de Genebra se dividiam em: 1) cidadãos ou burgueses. Os únicos com
direitos políticos. Para ser da “burguesia”, era preciso nascer na cidade, ter pai burguês de Genebra e
comprá-la. Além de uma importância em dinheiro era necessário pagar um seillot (ou pequeno balde)
e uma arma de fogo; 2) habitantes, que deviam ser admitidos como tais e pagar uma taxa de
habitação. Podiam obter a “burguesia”, mas tinham que residir certo número de anos em Genebra; 3)
nativos, que eram filhos de estrangeiros admitidos à habitação, nascidos na cidade. Estavam privados
de todo direito político e não podiam exercer certas profissões; e 4) súditos, habitantes de terras
dependentes do senhorio. (NT)
190 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
soberano unipessoal como nos projetos socialistas, que confiam a uma determinada
instituição a missão de levar à suprema posição diretiva a pessoa que mereça
efetivamente ocupá-la. Chega-se, em ambos os casos, a essa incomensurabilidade
fundamental entre o esquema das posições e a natureza do homem que é
interiormente mutável e não se adéqua com absoluta justeza às formas conceituais.
A isso se acrescenta ainda a dificuldade de conhecer a pessoa adequada para ocupar
cada posição de poder, sobretudo porque, muitas vezes, não se sabe se uma pessoa
merece ou não ocupar determinada posição de poder até tê-la preenchido. Por
motivos arraigados no mais profundo e valioso da natureza humana, a possibilidade
de um homem alcançar um novo poder ou uma nova função representa sempre um
risco, pois ainda que o candidato tenha se submetido às provas mais escrupulosas
e seus antecedentes fossem verificados exaustivamente, será sempre um ensaio que
pode ter ou não sucesso. Eis que a relação que o homem mantém com o mundo e
com a vida obriga a resolver sempre de antemão, quer dizer, antecipando-se a certos
fatos que ainda não se produziram, mas que deveriam ser conhecidos para tomar a
resolução racionalmente e com segurança. Essa dificuldade geral, a priori, de toda
ação humana se manifesta com particular clareza na elaboração de escalas de poder
social quando a hierarquia resultante não surge organicamente das próprias forças
dos indivíduos e das circunstâncias naturais da sociedade, mas da decisão
espontânea de um governante. É verdade que é um caso muito difícil de produzir-se
historicamente com absoluta nitidez – no máximo, as utopias socialistas acima
referidas seriam um paralelo –, mas observam-se suas particularidades e
complicações na realidade em suas formas mais rudimentares e misturadas a outros
fenômenos.
O outro modo de construir essa escala de poder até um ápice ou vértice
supremo vai em direção oposta. A partir de uma relativa igualdade originária dos
elementos sociais, há aqueles que adquirem maior importância que os demais. Por
sua vez, não é estranho que se destaquem indivíduos especialmente poderosos do
conjunto destes, até que a evolução culmine em um ou vários vértices. Nesse
sentido, a pirâmide da subordinação hierárquica é construída da base para o topo.
Não é preciso acumular exemplos desse processo, que se verifica em todo lugar,
ainda que com ritmos muito diversos. Ele talvez se apresente com mais propriedade
Georg Simmel | 191
22
“Compostas de indivíduos separados, com várias divisões e subdivisões, dirigidas por chefes com
graus sucessivos de posição e autoridade, distinguíveis por certas insígnias e sujeitos ao controle e
direção geral de um conselho supremo”. (NT)
194 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
É típico que uma relação formal entre elementos de um grupo persista mesmo
depois que uma mudança sociológica total impossibilite essa continuidade. A força
singular da dominação de um só (que sobrevive a seu próprio fim, transmitindo os
matizes de sua natureza e caráter a instituições cujo sentido consiste precisamente
em sua negação) é um dos casos mais notáveis desta vida própria da forma
sociológica graças à qual não só incorpora conteúdos materialmente diferentes,
como também infunde um espírito contrário a formas novas. É tão grande a
significação formal da dominação de um só que se conserva explicitamente mesmo
quando seu conteúdo é negado e, talvez, precisamente por causa da negação. Em
Veneza, o doge foi perdendo cada vez mais poder até que acabou com um papel
meramente decorativo. No entanto, conservou-se receosamente o cargo para evitar
desdobramentos que eventualmente poderiam levar a um verdadeiro rei ao trono.
Neste caso, a oposição não põe fim à dominação de um só com a finalidade de
fortalecer sua posição em sua própria forma; mas a mantém justamente para impedir
sua consolidação efetiva. Ambos os casos, de fato opostos, atestam igualmente a
força formal desse modo de dominação,
A força é de tal natureza, que muitas vezes os elementos mais díspares se
fundem nela. As monarquias, por exemplo, têm interesse em que as instituições
monárquicas se mantenham mesmo em lugares completamente fora de sua esfera
de ação. Observa-se, assim, que todas as realizações com certa forma social, por
mais afastadas que estejam umas das outras, se apoiam mutuamente, fato que se
manifesta nas relações de dominação mais diversas, mas sobretudo na aristocracia
e na monarquia. Isso, porque o preço que um regime paga por enfraquecer, por
razões políticas particulares, o princípio da própria forma de governo em outros
países, pode ser muito caro. Nessa ordem de ideias, atribuiu-se a resistência quase
insurrecional que o governo de Mazarino deveu enfrentar de parte do povo e do
parlamento, à política francesa que tinha favorecido os levantes de países vizinhos
contra seus respectivos governos. Pois o princípio monárquico se enfraqueceu em
tal grau que acabou voltando-se contra o autor daquela política, que acreditou
favorecer seus interesses fomentando as rebeliões. Pelo contrário, quando Cromwell
recusou o título de rei, os monarquistas ingleses ficaram muito tristes. Pois, ainda
que houvesse sido muito duro para eles ver esse regicida no trono, a simples
196 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
presença de um novo rei lhes teria parecido plausível para preparar a restauração.
Deixando de lado as razões utilitárias que podem abonar retroativamente a expansão
da monarquia, o sentimento monárquico age, às vezes, em face de determinados
fenômenos de maneira e sentido diretamente opostos aos interesses pessoais dos
monarquistas. Quando, durante o reinado de Luis XIV, eclodiu a sublevação
portuguesa contra a Espanha23, levante que devia ser muito grato ao rei da França24,
este disse, porém, comentando-a: “Por mau que seja um príncipe, a revolta de seus
súditos não deixa de ser um imenso crime”. Da mesma maneira, Bismarck refere que
Guilherme I sentia uma “repugnância monárquica instintiva” contra Bennigsen 25 e à
atividade que este tinha cumprido em Hanôver. Apesar do quanto Bennigsen e seu
partido tenham trabalhado pela prussificação de Hanôver esta atitude de um súdito
contra sua primitiva dinastia, feria os sentimentos monárquicos de Guilherme I.
Como vemos, a força íntima que a dominação de um só exerce é suficiente para
aproximar o próprio inimigo, em um impulso de afinidade de princípios, e para
considerar, no mais profundo de si, como um adversário a quem – ainda que seja um
amigo ou aliado – se opõe a algum monarca.
Finalmente, surgem outros traços de um tipo que até agora não temos tratado,
quando a igualdade ou desigualdade, a proximidade ou distância entre o superior e
o subordinado de qualquer outro ponto de vista, tornam-se problemáticas. É
essencial para a elaboração sociológica de um grupo determinar se ele prefere
submeter-se a um estrangeiro antes que a um membro do mesmo grupo ou vice-
versa, se considera uma e outra coisa igualmente útil e digna, ou se opõe a tudo. Na
Alemanha medieval, os senhores tinham originariamente o direito de nomear para
23
Golpe de Estado revolucionário ocorrido a 1º de dezembro de 1640, chefiado por um grupo
designado de “Os Quarenta Conjurados” e que se alastrou por todo o Reino, pela revolta dos
portugueses contra a tentativa de anulação da independência do Reino de Portugal pela Dinastia
Filipina castelhana. Culminou com a instauração da Quarta Dinastia Portuguesa – a Casa de
Bragança –, e a aclamação de D. João IV e, por isso, também é designado como a Restauração ou a
Aclamação da Independência de Portugal. (NT)
24
Que estava em guerra com a França. (NT)
25
Rudolf von Bennigsen (1824-1902) foi um político de Hanôver, fundador e principal figura do Partido
Nacional-Liberal. Em 1866, intentou infrutiferamente impedir o Reino de Hanôver de aliar-se aos
austríacos na Guerra contra a Prússia. Depois da derrota da Áustria e da anexação do Hanôver pela
Prússia, apoiou ao chanceler Otto von Bismarck e cooperou com ele afim de realizar a unidade alemã.
Visto como um traidor por uns e pragmático por outros, em 1866 se converteu em membro da câmara
de representantes prussiana, e posteriormente em deputado dos parlamentos da Confederação da
Alemanha do Norte, primeiro, e, do Segundo Reich, depois – até 1883. (NT)
Georg Simmel | 197
seus tribunais juízes e regedores vindos de fora e como bem quisessem. Mas por fim
tiveram que conceder às comunidades o direito de os funcionários serem escolhidos
no círculo dos vassalos. Inversamente, considera-se como uma outorga muito
importante feita pelo conde de Flandres em 1228 a seus “amados escabinos e
burgueses” de Gante permitir que os juízes e funcionários executivos, assim como
seus subordinados não fossem escolhidos entre os vizinhos de Gante, nem entre os
que estivessem casados com uma mulher desta cidade. Com certeza, essa diferença
responde de princípio a razões de eficácia: o forasteiro é mais imparcial, enquanto o
autóctone é mais compreensivo. Foi sem dúvida a primeira dessas razões a que
prevaleceu na vontade expressa pelos cidadãos de Gante, assim como na decisão
das cidades italianas que, como anteriormente já referimos, selecionavam
frequentemente seus juízes em outras cidades para assegurar-se que nem os laços
familiares, nem os conflitos políticos internos influiriam na administração da justiça.
Pelo mesmo motivo, governantes tão avisados como Luis XI da França e Matias I
Corvino da Hungria escolhiam seus funcionários, sempre que possível, no
estrangeiro ou entre pessoas pertencentes a uma classe inferior. Ainda no século
XIX, Bentham acrescenta outra razão de utilidade para explicar o motivo pelo qual,
mesmo na sua época, se considerava que os estrangeiros amiúde eram os melhores
funcionários públicos: simplesmente porque se lhes vigiava com zelo e sem
cerimônia. A preferência, em compensação, pelos próximos ou semelhantes parece
menos paradoxal, apesar de que ela possa conduzir a uma mecanização do princípio
do similia similibus26, como teria ocorrido, segundo se refere, com uma antiga tribo
líbia e, mais perto de nós, entre os axantes27, onde o rei reinava sobre os homens e a
rainha – sua irmã – sobre as mulheres. A tendência do poder central a eliminar a
jurisdição imanente dos subgrupos confirma nossa tese de que a subordinação aos
iguais favorece a coesão dos grupos. Ainda no século XIV estava muito difundida na
Inglaterra a ideia de que a comunidade local julgava a seus próprios membros, mas
o despótico Ricardo II decidiu que ninguém tinha direito de ser juiz criminal ou do
26
Locução latina que significa "semelhantes com semelhantes” e está por trás da ideia de que cada
qual deve corresponder com seu igual. (NT)
27
Os axantes são um dos principais grupos étnicos da região de Axânti em Gana (antiga Costa do
Ouro). Antes da colonização europeia, os axantes desenvolveram um grande e influente império na
África Ocidental. (NT)
198 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
goal delivery28 em seu próprio condado. Neste caso a coesão do grupo encontrava
seu correlato na liberdade individual. Mesmo durante o período de decadência da
monarquia anglo-saxônica, o direito a ser julgado por seus iguais, por seus pares,
era muito apreciado como garantia contra a arbitrariedade dos prebostes do senhor
ou do rei. O camponês da Coroa, esmagado por inúmeros encargos, velava
ciosamente sobre esse direito, o único a conferir conteúdo e valor ao conceito
jurídico da liberdade, na esfera do direito privado.
São, assim, com certeza, razões de educação e utilidade as que fazem preferir
algumas vezes a subordinação aos pares e outras ao estrangeiro. Todavia, não são
esses os únicos motivos que determinam a escolha: a eles se acrescentam outros
de caráter mais instintivo e sentimental, mas também mais abstratos e indiretos.
Aquelas primeiras razões utilitárias eram necessárias, com frequência, ao equilíbrio
dos dois pratos da balança. A maior compreensão dos de dentro e a maior
imparcialidade dos de fora se compensam, muitas vezes, tornando imprescindível
recorrer a outra instância para decidir entre elas. Aparece assim uma antinomia
psicológica de infinita importância para toda configuração sociológica: somos
atraídos por aquilo que nos é semelhante e pelo que difere de nós. Em que casos e
em que áreas uma ou outra tendência age? Qual delas predomina em nosso ser? Ao
que parece, isso depende das disposições primárias inerentes à própria natureza do
indivíduo. O diferente nos complementa, o semelhante nos fortalece. O diferente nos
excita e incita, o semelhante nos calma. Com meios completamente diversos, um e
outro nos fazem ter o sentimento de que nossa maneira de ser é justa e legítima. Se
perante determinado fenômeno sentimos que uma das duas tendências é a
adequada, a outra nos desgostará. O diferente aparece para nós como hostil e o
semelhante nos aborrece. O diferente pode representar um fardo demasiado pesado,
e o semelhante nos impor um peso leve demais. Finalmente, resulta difícil nos
posicionar a respeito de ambos: em face do diferente, porque carecemos de pontos
de referência ou comparação, e diante do semelhante, porque o igual a nós aparece
como supérfluo ou, pior ainda, nos dá a impressão de sermos nós mesmos os
redundantes. A profunda diversidade das relações que estabelecemos com um
28
Dizia-se dos magistrados facultados para julgar os prisioneiros e eventualmente prolongar sua
detenção. (NT)
Georg Simmel | 199
29
O autor se refere – e esse é o significado da palavra “crioulo” retido pela tradução – aos
“descendentes de europeus nascidos nas colônias hispano-americanas”. (NT)
30
A citação pertence a Henry Sumner Maine, Ancient law: its connection with the early history of
society and its relation to modern ideas. Londres: J. Murray, 1897. (NT)
202 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
somente ele, permite compreender que um país com um sentimento tão acentuado
do direito dos indivíduos tenha tratado com tanta dureza os dissidentes, judeus,
irlandeses e indianos e, em períodos anteriores, os escoceses. O desaparecimento
completo das formas e das normas pessoais na objetividade da existência coletiva
determina não só o agir, mas também o padecer das comunidades. A objetividade
age na forma da lei que, na falta de força vinculante (se ela não tem eficácia), deve
ser substituída pela consciência pessoal. Logo se conclui, porém, que esta percepção
que o ser humano possui do que é moralmente certo ou errado não constitui um traço
psicológico da coletividade, ainda mais quando o caráter coletivo do objeto da
conduta não induz a desenvolver sequer esse traço pessoal. Os abusos de poder, por
exemplo nas administrações das cidades estadunidenses, dificilmente teriam
alcançado tais proporções se os dominantes não fossem corporações, e os
dominados, coletividades. Daí que alguma vez se tenha acreditado poder diminuir
esses abusos aumentando consideravelmente as atribuições do mayor 31, para que
houvesse alguém a quem responsabilizar pessoalmente.
Há, no entanto, uma aparente exceção à regra de objetividade que rege as
ações do grande número, exceção que, em realidade, só confirma com mais
intensidade a regra. Referimos-nos ao comportamento de uma multidão, por
exemplo, ao do público do circo romano que mencionamos anteriormente. Existe,
com efeito, uma diferença fundamental entre, por um lado, a ação de um grande
número como formação particular unitária a encarnar uma espécie de abstração
– coletividade econômica, Estado, Igreja e, em geral todas as associações
designadas, real ou metaforicamente, como pessoas jurídicas – e, por outro lado, o
agir de uma multidão concreta circunstancialmente reunida. Em ambos os casos as
diferenças pessoais são suprimidas. Mas enquanto no primeiro isso leva a destacar
as feições mais aparentes, que estão de alguma forma acima do caráter individual,
no segundo caso os traços escusos emergem e, não por acaso, são identificados
como os baixos instintos dos elementos individuais. Uma multidão de pessoas em
contato físico sofre, com efeito, a influência de inúmeras sugestões e influências
31
Em inglês no texto. Dirigente do departamento executivo dos governos locais nos Estados Unidos.
Corresponde aproximadamente ao prefeito nas municipalidades brasileiras e ao presidente da câmara
municipal dos municípios portugueses. (NT)
208 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
32
Vide o estudo sobre a autopreservação no Capítulo VIII (NS).
Georg Simmel | 209
33
Vide Evangelho de São Marcos, capítulo 12, versículos de 13 a 17. (NT)
212 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
34
O conflito de duas partes alegra a terceira. (NT)
Georg Simmel | 213
elementos governados por eles, até à contribuição que coube aos surtos de febre
puerperal na Idade Média para a extraordinária força do poder patriarcal. Com efeito,
os homens mais fortes tomavam por esposas, sucessivamente, várias mulheres que
morriam depois de dar à luz, razão pela qual o poder do senhor da casa se concentrou
em uma pessoa, enquanto o poder da esposa se distribuía entre várias mulheres que
se sucediam umas às outras.
Os fenômenos da subordinação parecem trazer, à primeira vista, as mais
díspares consequências para os subordinados. Todavia, uma abordagem mais fina
a essa disparidade nos permitiu também identificar suas razões no próprio terreno
do tipo geral, sem renunciar ao caráter da forma que a todo e qualquer conteúdo se
presta. O mesmo sucede com a segunda das combinações que estudaremos: o caso
de várias instâncias dominantes, que em lugar de se opor ou ignorar-se
reciprocamente, estão em relação de subordinação entre si. Nesse caso, é decisivo
saber se o subordinado tem também relação imediata com aquele que manda sobre
seu superior direto, ou se a instância intermédia que o domina (por sua vez dominada
por uma instância mais alta) o separa igualmente do elemento supremo, assumindo
de fato a total representação dele em face de seu subordinado. O feudalismo deu
lugar a casos do primeiro tipo, nos quais o súdito dos suseranos era também súdito
da casa reinante. Temos uma imagem muito clara disto no feudalismo inglês da
época de Guilherme, o Conquistador, descrito por Stubbs da seguinte maneira:
“Todos os homens seguiam sendo primordialmente vassalos do rei, e a paz pública
seguia sendo sua paz. Seus suseranos podiam reclamar os serviços deles para
cumprir suas próprias obrigações, mas o rei podia convocá-los para formar suas
milícias, fazê-los comparecer perante seus tribunais e taxá-los sem a intervenção de
seus suseranos; e ao rei podiam os vassalos em contrapartida acudir em demanda
de proteção contra todos os inimigos”35. Por conseguinte, a posição do subordinado
35
Esta citação pertence a William Stubbs, The Constitutional History of England in its Origin and
Development, Oxford: Clarendon Press, 1891, vol. I, § 99. Em inglês no texto da edição alemã de
Simmel: “All men continued to be primarily the king's men, and the public peace to be his peace. Their
lords might demand their service to fulfill their own obligations, but the king could call them to the fyrd,
summon them to his courts, and tax them without the intervention of their lords, and to the king they
could look for protection against all foes”. (NT)
Georg Simmel | 215
ante seu senhor é favorável quando este último, por sua vez, se encontra subordinado
a um superior que oferece sua proteção ao primeiro.
Eis a consequência também natural da presente configuração sociológica.
Como é entre os elementos vizinhos na escala de subordinação que ordinariamente
nasce o ódio ou se deflagra algum conflito de competências, o elemento intermédio
se enfrenta amiúde com os elementos de cima e com os de baixo. Uma hostilidade
comum pode aproximar até elementos a quem todas as demais coisas distanciam e
que nenhum outro meio permitiria unir; como confirma uma das regras formais
típicas que impera em todas as esferas da vida social. Há, todavia, uma variante
dessa regra particularmente importante para o problema que aqui tratamos. Já no
antigo Oriente um soberano alcançava a glória ao apoiar a causa do fraco e oprimido
pelo mais forte, ainda que fosse apenas para provar que ele era mais poderoso do
que o opressor. Na Grécia, uma oligarquia, até então dominante frequentemente
qualificava de tirano o mesmo homem a quem as massas veneravam por libertá-las
da tirania, como ocorreu com Eufron de Sicião. E, sem dúvidas, é desnecessário
insistir sobre a frequência com que se repete na história o apoio do soberano as
massas até mesmo em sua luta contra a aristocracia. Inclusive, quando não se dá
esta relação imediata entre os graus mais altos e mais baixos da escala social para
dominar o intermédio, porque este e o inferior se encontram igualmente oprimidos
pelo grau superior, o simples fato de que também a classe média seja vítima de igual
repressão, produz um sentimento psicológico de alívio na classe inferior. Em muitos
povos africanos e asiáticos a poligamia adota uma forma segundo a qual só uma
das mulheres, a primeira, é considerada a esposa legítima, e as demais, ocupam ante
ela uma posição subordinada ou de servidão. Mas, simultaneamente, em relação ao
marido, a primeira não se encontra em melhor posição, pois para ele é tão escrava
como as outras. Sendo a natureza humana o que ela é, quando o superior impinge
ao dominante mais fraco o mesmo tratamento que dispensa ao subordinado inferior,
a este último lhe parecerá mais suportável sua dependência. É que o homem obtém
sempre certa satisfação com a opressão de seu opressor e identifica-se em ânimo,
não sem certo sentimento de superioridade, com o senhor de seu senhor, ainda que
essa estrutura sociológica não represente para ele nenhum alivio real em sua
condição de oprimido.
216 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
36
Em inglês no original: Intermediário. (NT)
Georg Simmel | 217
O caráter essencial das formações sociais, quer dizer, a raiz de onde provém
o caráter incomparável de seus resultados e insolubilidade de seus problemas
internos, é o surgimento de uma nova unidade formada de unidades fechadas em si
mesmas – como o são em maior ou menor grau as pessoas humanas. Não se pode
Georg Simmel | 219
fazer um quadro a partir de muitos quadros, uma árvore não nasce de outras árvores.
Uma totalidade autônoma não se forma de totalidades, mas de partes dependentes.
A sociedade é a única formação que converte a totalidade centrada em si mesma,
em simples membro de uma totalidade superior. A perpétua evolução das formas
sociais, tanto no grande como no pequeno, só é, em última instância, a tentativa
renovada de conciliar a unidade e totalidade interna do indivíduo com seu papel
social como’ parte de um todo, salvando a unidade e a totalidade da sociedade do
perigo de ser destruída pela autonomia de suas partes. Todo conflito entre os
membros de uma sociedade põe em perigo a existência do grupo. Por isso, a votação,
cujo resultado a minoria aceita por acordo, significa que a unidade do conjunto deve
sempre primar sobre os antagonismos das convicções e dos interesses. Apesar de
sua aparente simplicidade, é um dos meios mais geniais que se tem inventado para
fazer que a contradição entre os indivíduos desemboque finalmente em um resultado
unitário.
No entanto, essa maneira de conservar a adesão do dissidente, forma graças
à qual todo aquele que participa em uma votação aceita praticamente seu resultado
– a não ser que se separe do círculo –, não foi sempre tão evidente como nos parece
agora. A incapacidade intelectual, que não compreende a formação de unidades
sociais com elementos dissidentes, assim como um individualismo muito
acentuado, que não aceita submeter-se a nenhuma decisão sem tê-la antes
aprovado, têm sido a causa de que muitas comunidades não admitissem o princípio
da maioria e exigissem a unanimidade para todas as decisões. As resoluções das
comunidades das marcas de fronteira 37 germânicas, por exemplo, tinham que ser
unânimes, ficando rejeitada toda proposição que não exprimisse acordo ou
concordância geral, Até meados da Idade Média, o nobre inglês que divergisse de um
imposto, ou que não tinha estado presente no ato de sua aprovação, frequentemente
se negava a pagá-lo. O sentimento individualista se manifesta quando é exigida a
unanimidade para a eleição de um rei ou chefe, pois não se pede nem se espera
obediência de quem não votou a favor. Nesse sentido, no conselho das tribos
37
As marcas eram regiões fronteiriças fortificadas do reino franco na época carolíngia. O termo
propagou-se depois pela Europa e veio a ser empregado nas unidades políticas que se tornariam,
posteriormente, a Alemanha. (NT)
220 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
iroquesas, como, aliás, na Dieta38 polonesa, a decisão que tivesse sequer um voto
contra não era válida.
Todavia, a ideia de que seria contraditório colaborar em uma ação comum que,
como indivíduo, se tem rejeitado não conduz por consequência lógica a exigir
unanimidade para tudo. Se toda proposição que não obtivesse a totalidade dos votos
fosse rejeitada, não haveria o avassalamento da minoria, mas, em compensação, se
subjugaria à maioria. O desconhecimento de uma medida aprovada pela maioria é
muitas vezes um ato absolutamente positivo que tem consequências perceptíveis,
efeitos que, verdade seja dita, são impostos à comunidade pela minoria, graças ao
princípio da necessária unanimidade. Prescindindo da incongruência dessa
majoração da minoria, com a qual o princípio de unanimidade nega no fundo a
liberdade individual que pretende garantir, encontram-se casos na história nos quais
se vê praticamente que este tem sido amiúde seu resultado. Nada foi, por exemplo,
mais favorável à repressão das Cortes39 de Aragão pelos reis espanhóis que essa
“liberdade”. Até 1592, as Cortes aragonesas não podiam tomar nenhuma decisão
válida se um só dos membros dos quatro estamentos que as compunham chegasse
a divergir. Isto, porém, conduz a uma paralisia de sua ação que deu argumentos
plausíveis a quem pretendiam substituir esta assembleia por um poder menos
embaraçador.
Mas, quando não é possível o abandono de uma demanda, ou renunciar a um
resultado prático, que deve ser obtido a qualquer preço, como no veredito de um
tribunal de júri, então a exigência de unanimidade (que encontramos, por exemplo,
na Inglaterra e nos Estados Unidos) obedece à hipótese, mais ou menos
inconsciente, de que a verdade objetiva deve acarretar sempre a convicção subjetiva
e que, inversamente, a igualdade das convicções subjetivas é forçosamente o sinal
da verdade objetiva. Supõe-se, pois, que provavelmente a simples decisão
38
Designação da assembleia política ou legislativa de alguns Estados europeus e do Japão. No caso
provavelmente o autor se refere a uma assembleia de nobres convocada pelos reis poloneses (citada
em várias fontes como Dieta, Parlamentum generale ou Sejn) e da qual se tem notícia desde o século
XIV. A Dieta Geral, a primeira convocada pelo rei Joâo I Olbracht em 1493 perto de Piotrkóv, evoluiu
de encontros anteriores regionais e provinciais. (NT)
39
As Cortes foram assembleias políticas de caráter consultivo e deliberativo dos reinos tradicionais
hispânicos. As Cortes de Aragão existiram desde a fundação do reino em 1188, hasta o decreto de
Nueva Planta de 1711 que suprimiu as instituições e os privilégios locais ou fueros. (NT)
Georg Simmel | 221
majoritária não contém toda a verdade, já que caso contrário teria conseguido reunir
a totalidade dos votos. Por conseguinte, a crença (mítica no fundo, apesar de sua
clareza aparente) no poder da verdade, a certeza de que o que é logicamente
verdadeiro coincidirá com a realidade psicológica, serve aqui para resolver o conflito
radical entre as convicções individuais e a necessidade de obter delas um resultado
global unitário. Só que na prática esta crença, como a função individualista da
unanimidade, pode conduzir a uma inversão de sua tendência fundamental. Quando
os jurados devem permanecer reclusos até chegar a um veredito unânime, é quase
irresistível para a minoria a tentação de votar contra sua íntima convicção – que não
tem esperança de impor –, unindo-se a maioria, e evitar assim o prolongamento
absurdo e eventualmente insuportável da sessão.
Quando, ao contrário, as decisões se tomam por maioria, a subordinação das
minorias pode obedecer a dois motivos, cuja distinção tem a maior importância
sociológica. Com efeito, a submissão da minoria pode provir, em primeiro lugar, do
fato de que os muitos são mais fortes que os poucos. Ainda que em uma votação os
indivíduos sejam considerados como iguais, ou principalmente porque esse é o caso,
a maioria – tanto se ela tem sido o resultado de um voto direto ou formada por um
sistema de representação – teria a força física suficiente para constranger a minoria.
A votação tem então a finalidade de evitar o confronto direto de forças, antecipando
pelo processo de apuração dos votos seu resultado eventual, até a minoria se
convencer da ineficácia da resistência efetiva. Dois partidos ou subgrupos se
enfrentam, por consequência, no grupo total, entre os quais são decisivas as relações
de força, representadas aqui pelo voto. O sufrágio presta o mesmo serviço metódico
que as negociações (diplomáticas ou não) entre duas partes que desejam evitar a
ultima ratio do combate. Finalmente, também aqui, o indivíduo só cede (salvo raras
exceções) quando o adversário demonstra claramente que, em caso de se chegar à
luta, ele perderia tanto quanto pudesse ganhar. A votação, como as negociações, é
uma projeção das forças reais e de sua apreciação no plano intelectual, sorte de
antecipação simbólica do resultado que poderiam ter as hostilidades e violência
concretas.
Certamente, esse símbolo representa relações reais de poder e de
subordinação impostas à minoria. Mas, às vezes, a violência se sublima, passando
222 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que o grupo constitui uma unidade objetiva com vontade própria, suposição que
pode ser consciente ou estar implícita na prática, como se efetivamente existisse tal
vontade originária do grupo. Desde esse momento, a vontade do Estado, do
município, da Igreja ou da associação está acima dos eventuais antagonismos das
vontades individuais que concorrem a sua formação, assim como existe acima das
mudanças no tempo dos sujeitos que lhes servem de sustentáculo. E dado que essa
vontade é uma, tem que agir de um modo determinado e unitário. Mas como é
impossível contornar a existência de escolhas ou decisões antagônicas nos sujeitos
individuais, a contradição se resolve supondo que essa vontade coletiva é mais bem
conhecida ou representada pela maioria do que pela minoria. A submissão da parte
menos numerosa adquire, então, nessa hipótese um sentido muito distinto que antes,
pois, de principio, esse subgrupo não é excluído, mas incluído, e a maioria não age
em nome de seu próprio e maior poder, mas no da unidade ou totalidade ideal. A
minoria se submete a essa unidade – que fala pela boca da maioria – porque ela
forma parte a priori da totalidade em questão. Eis o princípio em que as votações nas
assembleias ou câmaras legislativas se baseiam, na medida em que cada deputado
se considera mandatário de todo o povo, em contraposição às representações de
interesses – que em última instância atendem unicamente ao princípio individualista
do confronto de forças ou de representações locais e repousam sobre a concepção
errônea de que a totalidade (soma) dos interesses locais é igual ao interesse da
totalidade (ser total).
Na evolução da Câmara dos Comuns inglesa pode observar-se o trânsito a
esse princípio sociológico fundamental. No começo, seus membros não se
consideravam como representantes de um número determinado de cidadãos, nem
da totalidade do povo, mas como os delegados de certas associações políticas
locais, municípios e condados que tinham o direito de participar da constituição do
Parlamento. Tal princípio localista – tão severo que durante muito tempo os
membros dos Comuns deviam ter seu domicílio no distrito pelo qual se elegiam –
possuía já certa natureza ideal, na medida em que ele ia além da simples adição dos
eleitores individuais. Ora, bastou que predominasse e se tornasse consciente o
interesse comum a todas essas corporações para que, aos poucos, aparecesse o
Estado (a comunidade superior à que todas pertenciam) como o verdadeiro sujeito
224 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
40
Trata-se do Trades Union Congress (TUC), fundado em 1868 e ativo até nossos dias, (NT)
Georg Simmel | 225
conflito dos interesses reais imediatos. A minoria não será menos alijada porque se
achou essa desculpa ardilosa para sua preterição ou esta receba outro nome graças
a um subterfúgio verbal. Pelo menos, deveria conferir-se ao conceito de maioria uma
nova significação. Com efeito, pode ser plausível – mas isso não é seguro de
antemão – que a maioria tenha um melhor conhecimento de algo. Particularmente,
isso é duvidoso quando o conhecimento e a ação subsequente sejam confiados à
responsabilidade pessoal do indivíduo, como acontece nas religiões mais
elaboradas. A história toda da religião cristã é, em boa parte, a da viva oposição entre
a consciência individual e as decisões e ações das maiorias. Quando no século II as
comunidades cristãs primitivas introduziram o costume de celebrar assembleias
para tratar de assuntos religiosos e leigos, se declarou expressamente que a minoria
dissidente não estava obrigada a cumprir as resoluções dessas assembleias.
Todavia, esse individualismo entrava em aberto e insolúvel conflito com a aspiração
unitária da Igreja. O Império Romano não desejava reconhecer mais que uma Igreja
unificada, e a própria Igreja tratava de afirmar-se imitando a unidade do Estado, de
modo que as comunidades cristãs, originariamente autônomas, tiveram que fundir-
se em uma instituição global, cujos concílios decidiam por maioria sobre conteúdos
dogmáticos. Evidentemente, tratava-se de um constrangimento inaudito exercido
contra as consciências individuais ou ao menos às comunidades, cuja unidade só
tinha consistido até então na igualdade dos ideais e das esperanças que cada um
guardava para si. Por razões internas e pessoais podia existir submissão em
questões de fé, mas que a maioria, só por sê-lo, exigisse esta submissão e
declarasse que os que dissentiam não eram cristãos era algo que unicamente podia
justificar-se outorgando ao voto da maioria – como já foi referido – um significado
totalmente novo: foi necessário admitir que Deus está sempre do lado da maioria!
Esta concepção perpassará doravante a evolução posterior que as variadas formas
de voto seguirão, seja como sentimento inconsciente fundamental ou sob outras
formulações. Que certa opinião expresse o sentido da unidade supraindividual
apenas porque aqueles que a professam representem uma quantidade maior que a
dos adeptos de outra opinião, eis um dogma indemonstrável e de tão escassos
fundamentos a priori que – a menos de recorrer a uma relação mais ou menos
mística entre aquela unidade e a maioria – fica verdadeiramente a flutuar no ar, ou
Georg Simmel | 227
mas de um dos sintomas desse profundo e trágico dualismo que cinde toda
formação social e toda constituição de uma unidade composta de várias unidades.
O indivíduo, cujo fundamento está nele mesmo e que unicamente pode responder por
seus atos quando sua íntima convicção os guia, não só deve adaptar sua vontade
aos fins dos outros (adaptação que, considerada de ordem ética, resta um assunto
de sua própria alçada e surge do mais íntimo de sua personalidade), mas também
devir um membro de uma totalidade cujo centro está alhures, fora dele. Não se trata
aqui de harmonias ou colisões acidentais entre ambas as exigências, mas do que
está em jogo, a saber, a dupla submissão interior a duas normas reciprocamente
estranhas: a que regula a evolução pessoal em torno de seu próprio centro e a que
regra o desenvolvimento à roda do polo social. O movimento que tem por eixo o
centro pessoal não tem nada a ver com o egoísmo, é algo tão definitivo como o
movimento focalizado no polo social, pois, como ele, tem a pretensão de ser o
verdadeiro sentido da vida. Ora, nas votações sobre o que o grupo deve fazer o
indivíduo não age como tal, mas nessa função de membro, com esse sentido
supraindividual. O dissenso do voto translada, porém, uma forma secundária da
individualidade (um reflexo de sua peculiaridade individual) a esse terreno
plenamente social. Mesmo essa outra individualidade, que pede apenas conhecer e
expressar a vontade da unidade supraindividual do grupo, é agora negada pela
submissão ao voto majoritário. A minoria, à qual ninguém está livre de chegar a
pertencer um dia, deve submeter-se (e não unicamente no sentido simples do termo,
quando poderes opostos negam convicções e aspirações e anulam sua ação, mas
em um sentido mais sutil ou refinado, pois mesmo tendo sido derrotada continua
dentro da unidade do grupo) e colaborar positivamente para o sucesso da resolução
tomada contra sua vontade e convicção, aparecendo ainda como coparticipante dela,
já que a unidade da resolução definitiva não contém traço algum de dissenso. Desse
modo, a decisão majoritária transcende a simples violência feita a um por muitos e
se converte na expressão exacerbada do dualismo radical entre a vida própria do
indivíduo e a existência da totalidade social, que a experiência chega amiúde a
harmonizar, mas que subsiste, em princípio. trágico e irreconciliável 41.
41
Pode dizer-se que chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou a “uma forma
especial da subordinação a um grupo”, a saber, o “princípio da submissão das minorias as maiorias”
Georg Simmel | 229
(vide supra). Doravante Simmel retoma sua análise dos modos de subordinação, baseada nos
elementos que podem impô-la. (NT)
230 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
nobreza. Isso contradiz a opinião dos nossos dias que distingue entre a pessoa e a
obra, e considera que a dignidade pessoal está mais bem garantida quanto maior
seja a objetividade da relação de dependência. Uma garota norte-americana
trabalhará numa fábrica sem sentir humilhação alguma, mas em contrapartida se
sentirá completamente desclassificada se tiver que trabalhar como cozinheira em
uma casa de família. No século XIII, em Florença, as corporações inferiores
compreendiam as profissões ao serviço imediato de outras pessoas (sapateiros,
hospedeiros, mestres de escola). Já os ofícios que, mesmo prestando um serviço às
pessoas, eram exercidos com maior objetividade e sem depender de ninguém em
particular, como os de comerciante de tecidos e tendeiro, constituíam as
corporações superiores. Na Espanha, ao contrário, onde estavam mais vivas as
tradições cavalheirescas, as relações que se estabeleciam de pessoa para pessoa
eram suportáveis, sendo em compensação aviltante a subordinação a exigências
mais objetivas, a adaptação conformada a uma ordem de trabalhos impessoais que
serviam a muitas e anônimas pessoas.
Nas teorias jurídicas de Johannes Althusius ainda se encontram vestígios
dessa aversão à objetividade da lei. Para ele, o summus magistratus legisla porque
o povo lhe conferiu mandato para que o fizesse, e não em sua condição de
representante do Estado, pois a ideia de que o soberano possa ser designado apenas
por mandato da lei e não escolhido pessoal ou implicitamente pelo povo era
totalmente estranha ao filósofo-burgomestre de Emden 42 . Em compensação, na
Antiguidade, a subordinação à lei parecia muito adequada justamente porque carecia
de toda conotação pessoal. Aristóteles celebrava a lei como to meson, o moderado,
imparcial, livre de paixões, enquanto Platão, nessa ordem de ideias, reconhecia que
o melhor remédio contra o egoísmo era o império da lei impessoal. Tal
argumentação, porém, não é mais do que uma motivação psicológica que não chega
ao cerne da questão, pois que reside na passagem do personalismo à objetividade
42
Johannes Althusius (1557–1638) foi um filósofo e teólogo calvinista alemão conhecido por sua
obra "Politica methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata" (A política metodicamente
concebida e ilustrada com exemplos sagrados e profanos) publicada em 1603 e reeditada em 1610 e
1614. As ideias apresentadas nessa obra o levaram a ser eleito em 1604 burgomestre da cidade–
estado de Emden, na Frísia oriental; (cargo que desempenhou até sua morte), e serviram de base para
considerá-lo o pai do federalismo moderno e grande defensor da soberania popular. (NT)
Georg Simmel | 231
43
Em francês no texto alemão de Simmel: “à falta de melhor”. (NT)
232 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
agrária russa. Nela a relação de sujeição estava vinculada à terra de tal sorte que o
servo só podia ser vendido com ela, excluindo, apesar de sua incrível dureza, a
escravidão pessoal que teria permitido a venta do sujeito. Malgrado as notáveis
diferenças de conteúdo e quantidade essa situação às vezes se repete na vida do
moderno operário fabril, acorrentado por seu próprio interesse ao estabelecimento
no qual trabalha por certas instituições. Por exemplo, permitir que ele compre uma
casinha própria ou investir em fundos pessoais em caixas de assistência, são
vantagens perdidas assim que ele abandonar a fábrica. Dessa maneira, o operário se
acha tão vinculado por objetos, que fica indefenso de uma forma muito particular em
face de seu patrão.
Diremos por último que, nas relações patriarcais mais primitivas, a mesma
forma de dominação vinha determinada não por um objeto exclusivamente espacial,
mas genitor. Os filhos pertenciam ao pai não só porque ele os tivesse engendrado,
mas porque a mãe lhe pertencia, da mesma forma que o dono da árvore dispõe
também de seus frutos. Por consequência, o dono da mãe dispunha também dos
filhos engendrados por outros pais. Esse tipo de dominação frequentemente era de
uma dureza humilhante, próprio de uma sujeição absoluta. Pois, derivando a
submissão do homem de sua vinculação a uma coisa, ele mesmo era rebaixado
psicologicamente à categoria de simples coisa. Quando a lei está na origem da
dominação, dize-se – com as necessárias salvaguardas – que o dominante alcança
o patamar da objetividade e quando, em compensação, o meio da dominação é uma
coisa, o subordinado se transforma em objeto. A situação do subalterno é mais
favorável no primeiro caso e mais desfavorável no segundo do que em muitas
situações de submissão estritamente pessoal.
A subordinação a um princípio objetivo só tem interesse sociológico imediato
em dois casos fundamentais. Em primeiro lugar, quando aquele princípio ideal
superior é considerado uma condensação psicológica de um poder real social e, em
segundo lugar, quando cria relações específicas e características entre os
simultaneamente submetidos. O primeiro caso se refere, sobretudo, aos imperativos
morais. Na consciência moral nos sentimos submetidos a um preceito que não
parece provir de nenhum poder humano, pessoal. Só percebemos em nós a voz da
consciência, ainda que a escutemos com uma força e determinação tais em face de
Georg Simmel | 233
todo egoísmo subjetivo, que parece proceder de uma instância situada fora de nós
mesmos. Sabe-se das muitas tentativas de resolver essa contradição deduzindo
preceitos sociais dos conteúdos da moralidade: aquilo que é útil para a espécie e o
grupo é exigido dos membros para sua conservação e inculcado gradualmente aos
indivíduos como instinto, de forma que aparecerá para eles mesmos como um de
seus sentimentos, autônomo, ao lado dos propriamente pessoais e frequentemente
em oposição a essas pulsões de afeto ou aversão. Explicar-se-ia assim a
ambivalência do preceito moral: que se apresenta, em parte, como um mandamento
impessoal ao qual temos que nos submeter incondicionalmente, sem que, por outra
parte, seja imposto por algum poder exterior, mas unicamente por nosso impulso
mais pessoal e íntimo. Seja como for, estamos aqui em presença de uma dessas
circunstâncias em que o indivíduo reproduz em sua consciência as interações entre
o grupo e ele mesmo como totalidade. Observa-se, há muito tempo, que as
representações da alma individual se comportam, em suas relações de associação e
dissociação, de diferenciação e unificação, como os indivíduos entre eles. Há,
todavia, uma singular especialização nesse fenômeno, que consiste em que aquelas
relações psicológicas internas ecoam não só as relações genéricas entre os
indivíduos, mas também aquelas com o círculo que os rodeia. O indivíduo exige de si
mesmo o que a sociedade exige de seus membros: subordinação e fidelidade,
altruísmo e trabalho, domínio de si e sinceridade.
Misturam-se nesse fenômeno vários e importantes motivos. A sociedade
aparece em face do indivíduo com preceitos capazes de constrangê-lo até que adote
um comportamento conforme e os meios mais ou menos grosseiros ou sutis dessa
forma de coação não sejam mais necessários. Ou pode ocorrer que sua natureza se
forme ou modifique de modo a que ele aja movido por um instinto, por uma vontade
unitária e imediata, que não pressupõe a consciência de uma lei. Assim, entre os
árabes pré-islâmicos, que desconheciam o conceito de coerção objetiva jurídica, a
decisão estritamente pessoal era a última instância. Tal decisão, porém, estava
completamente impregnada da consciência tribal e das exigências da vida coletiva.
No entanto, pode também ocorrer que a lei viva na consciência individual como
instância imperativa da autoridade social, ainda que independentemente da questão
de saber se a sociedade está por trás dela com todo seu poder de coagir ou com sua
234 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
44
Que o mundo pereça, mas faça-se a justiça. (NT)
Georg Simmel | 239
uma espécie de bens pessoais dos graúdos, consolidou-se com o tempo a ideia
objetiva de uma família que estava acima de cada um dos indivíduos que a
compunham, e à qual o patriarca preeminente também estaria submetido como
todos os outros membros: o pater famílias mandará, assim, doravante em nome da
unidade ideal. Vemos destarte surgir um tipo formal de extrema importância, isto é,
quem estiver no comando também se submete à lei emanada de sua própria
autoridade. No mesmo instante em que a vontade do dominante se torna lei, ela
passa a ter índole objetiva, abdicando de sua origem subjetiva e pessoal. Desde o
momento mesmo em que o senhor impõe uma norma como lei, ele adquire o caráter
de órgão de uma necessidade ideal e não faz mais que revelar a existência de um
princípio ou preceito que vigora em virtude de seu sentido interno e das exigências
da situação, independentemente de emanar ou não do soberano. Mais ainda: se, em
vez de ter base em uma legitimação mais ou menos clara, a lei repousasse apenas
na mera volição do soberano, este não poderia evitar, por essa circunstância, que seu
agir saísse da esfera da mera subjetividade. Pois o soberano leva o a priori, de si
mesmo, como legitimação supraindividual. Por isso, a forma interna da lei exige que
o legislador, quando a promulga, fique submetido a ela como pessoa, igual a todos.
Assim, na Idade Média, os privilégios das cidades de Flandres estipulavam
expressamente que os escabinos adjuntos ao burgomestre deviam garantir um justo
processo a todos, inclusive contra o próprio conde que tinha acordado o privilégio. O
mesmo critério está presente na decisão de um príncipe tão absoluto como o grão-
eleitor Frederico Guilherme 45 que, quando estabeleceu uma contribuição pessoal
sem a autorização do parlamento, não só mandou que fosse paga por toda sua Corte,
mas também a pagou ele próprio.
A época moderna nos oferece um exemplo similar sobre a aparição de um
poder objetivo ao qual devem submeter-se o dominante junto com seus
subordinados. Referimos-nos à organização da produção, porque os elementos
objetivos e técnicos a dominam antes que os pessoais. Muitas relações de
subordinação (que antes tinham um caráter pessoal, de maneira que, na relação em
questão, um dos membros era simplesmente o dominante e o outro o indiscutível
45
Eleitor de Brandemburgo, e duque de Prússia (1620-1688), conhecido como o "Grão-Eleitor" por
causa de seu poderio militar e político. (NT)
Georg Simmel | 241
que mantinham entre si, sem mencionar em absoluto sua relação com as outras
classes que, porém, devia constituir o conteúdo de seu aristocratismo. Um
sentimento análogo se repete cada vez que os aristocratas se chamam a si mesmos
de pares. Pode-se dizer que os pares somente existem uns para os outros: eles não
se sentem sequer suficientemente concernidos pelos demais nem mesmo para
expressar sua superioridade no nome coletivo, apesar de que, no fundo, é a causa
dessa superioridade que tal denominação se torna necessária46.
Há também outra maneira de realizar o conceito de dominação sem o
complemento lógico da subordinação correspondente. Ela consiste em transpor
certas formas, que se tinham constituído dentro de um grande grupo, para um círculo
menor em que a situação não as justifica. Nos grandes grupos, determinadas
posições implicam um poder, um grau de dominação, uma importância que elas
perdem quando são reproduzidas em um círculo menor, sem alterar sua forma.
Todavia, no círculo menor conservam o tom de superioridade e mando que possuíam
no maior, tom que se tem convertido em qualidade substancial da posição mesma,
independentemente de que a relação na qual esse tom estava justificado já tenha
sido produzida. Nesses casos, serve amiúde de intermediário um “título”, que nas
novas circunstâncias alude a um poder do qual só restam vestígios, ainda que se
46
Este é só um exemplo de um fenômeno sociológico geral. Certo número de membros de um grupo
tem a mesma relação com determinada condição que confere aos interesses do grupo conteúdo e
significado. No entanto, sucede que esse ponto decisivo, no qual convergem os elementos,
desaparece da denominação coletiva e talvez até da consciência de seus membros, destacando-se
unicamente a igualdade dos elementos, ainda que esta igualdade se produza exclusivamente no que
tange a este ponto. Assim com o mesmo nome de pares com que se designavam os nobres, se
denominou, nos séculos XII e XIII em muitas cidades francesas, seus jurados e magistrados
municipais. Quando se fundou em Berlim a “Sociedade por uma Cultura Ética”, um folheto foi
publicado com o seguinte título: Elementos preparatórios para um círculo de homens e mulheres que
têm iguais ideias. Não se dizia nem uma palavra que indicasse em que estas opiniões coincidiam. Nas
Cortes espanholas se constituiu aproximadamente em 1905 um partido que se denominava
simplesmente “Solidariedade.” Um grupo de artistas muniquenses, em fins do ano de 1890 se chamou
O grupo dos colegas, sem acrescentar a este título oficial nada que explicasse em que consistia esta
colegialidade e que diferença tinha esta associação com um agrupamento organizado de professores,
ou de atores, agentes e redatores. Tais fatos aparentemente insignificantes contêm um fato de grande
importância sociológica: que a relação formal entre certos indivíduos pode impor-se sobre o conteúdo
e a realidade dessa relação, pois isso não poderia acontecer se todas essas denominações não
traíssem de certa maneira a orientação da consciência sociológica. O fato de que os elementos de um
grupo sejam iguais ou professem as mesmas ideias, ou pertençam a mesma profissão, tem adquirido
uma importância extraordinária diante da matéria contida nessas formas sociológicas, matéria que
seria a única que poderia dar-lhe algum sentido. Enquanto o comportamento prático, mesmo que ele
esteja determinado pela matéria que tais denominações silenciam, se encontra também incontáveis
vezes sob a influência das puras relações e estruturas formais. (NS)
248 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sendo uma luta pela supremacia”47. Como é natural, essa fórmula geral não se realiza
sempre à letra, mas frequentemente e ao contrário, como uma tendência entre
muitas outras coincidentes, de forma fragmentária, indireta e modificada, das quais
sempre emerge, porém, a vontade de substituir a liberdade pela dominação. Vamos
tratar de imediato de seus principais tipos
Para o cidadão grego era absolutamente impossível a clara distinção entre a
liberdade e a dominação no espaço político. Faltava-lhe a esfera individual do direito
a protegê-lo contra as exigências e a arbitrariedade da vida pública e como garantia
de uma existência realmente independente. Em suma, o homem grego carecia de
liberdade constitucional oponível ao mesmo Estado. Por isso ele só conhecia, de fato,
uma única forma de liberdade: participar do poder do próprio Estado. Trata-se de um
tipo sociológico que corresponde exatamente aos movimentos comunistas da
Antiguidade, os quais não aspiravam à supressão da propriedade privada, mas a que
os deserdados tivessem participação maior nela. Finalmente, nos níveis inferiores,
ainda que não se possa falar de participar de poder algum, reproduz-se a forma
essencial de comportamento atribuído aos escravos gregos, cujas insurreições não
procuravam tanto quebrar as correntes da escravidão, quanto reduzir seu peso e
torná-lo mais suportável. Com efeito, esses levantes eram provocados mais pela
indignação contra os abusos individuais do que pela vontade de suprimir
radicalmente a instituição. Há uma diferença fundamental entre pretender obter a
proteção dos indivíduos, a supressão dos abusos e a promoção dos valores
almejados pela abolição da forma sociológica que lhes fundamenta, e procurar
consegui-las dentro da forma tradicional. Quando a situação global fundada sobre
as relações de dominação e subordinação é muito sólida, a libertação dos
dominados não significa de modo algum a liberdade de todos (que representaria uma
modificação fundamental da forma social), mas apenas sua promoção à classe
dominante. Veremos mais adiante as contradições práticas em que se traduziu a
contradição lógica aqui enunciada. O que conseguiu o terceiro estado na Revolução
Francesa foi aparentemente a simples libertação do peso dos privilégios dos
47
Esta citação pertence a William Stubbs, The Constitutional History of England in its Origin and
Development, Oxford: Clarendon Press, 1878, vol. III, § 21. Em inglês no texto da edição alemã de
Simmel: “like every other struggle for liberty it ended in being a struggle for supremacy”. (NT)
Georg Simmel | 251
privilegiados, mas em realidade o que obteve foi a dominação, nos dois sentidos
acima indicados. Graças a seu predomínio econômico pôs sob sua dependência as
classes até então dominantes, mas a continuação sua emancipação só teve
significado e consequências porque existia um “quarto estado” (ou porque o mesmo
processo conduziu a sua formação) que a burguesia pôde explorar e obter, assim,
vantagens e lucros que lhe permitiram elevar-se por cima dos outros elementos.
Por isso não é legítimo concluir por analogia que o “quarto estado” quer fazer
hoje o que fez então o terceiro. Eis um ponto no qual a liberdade manifesta a sua
relação com a igualdade, e também a quebra necessária dessa relação. Na medida
em que reina uma liberdade generalizada, existe simultaneamente uma igualdade
generalizada, pois a primeira expressa unicamente um ponto negativo, a saber, que
não há nenhuma dominação – determinação que, em virtude precisamente de seu
caráter negativo, pode ser comum a diversos elementos. Todavia, essa igualdade que
se apresenta como a primeira consequência ou acidente da liberdade, não é em
realidade mais do que o ponto de passagem que as ânsias de dominação dos
homens devem transpor desde que elas se apoderam das massas oprimidas.
Ninguém se contenta com a posição que ocupa em relação a seus pares, mas todos
pretendem conseguir outra que lhe seja mais favorável em algum sentido. Ora,
quando a maioria está insatisfeita e sente o desejo de elevar seu nível de vida, a
primeira expressão dessa aspiração consistirá em ser e ter a mesma coisa que são
e possuem os privilegiados deste mundo. A igualdade com as pessoas mais elevadas
é o primeiro conteúdo que preenche o instinto da própria elevação, como se pode ver
em qualquer círculo reduzido – entre os alunos de uma mesma turma, no balcão de
uma loja, em um quadro de funcionários. Esta é uma das razões pelas quais o rancor
dos proletários não se dirige frequentemente contra as classes mais elevadas, mas
contra o burguês, que está no nível imediatamente superior. O burguês é para o
proletário o primeiro degrau na escala da felicidade, no qual se concentra de
momento seu desejo de ascensão. O inferior contenta-se provisoriamente com ser
igual ao superior imediato, mas uma vez que conseguiu essa condição, considera-a
apenas o ponto de partida de outras novas ambições. Como demonstra uma muito
repetida experiência, o estágio almejado pelo inferior, que respondia antes a suas
aspirações, torna-se a primeira etapa da estrada sem fim que conduz à posição mais
252 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
desse grupo. A liberdade significa então nesse caso, que o próprio grupo como
unidade supraindividual, se converte no poder superior que domina cada um de seus
membros. O decisivo é, todavia, que o grupo parcial, ainda sem poder comportar-se
segundo bem lhe convenha – coisa que não torna, porém. fundamentalmente
subordinados a seus membros –, pode possuir um direito que lhe seja próprio, e que
será o vínculo que o interligará ao círculo maior circundante. Círculo este que é quem
administra, aliás, o direito e submete incondicionalmente a quem estiver
compreendido no grupo parcial. Nesses casos, o grupo mais restrito exige amiúde e
com a maior energia que seus membros se submetam a sua jurisdição, porque sabe
que é disso que depende a preservação de sua liberdade. No medievo, na Dinamarca,
o membro de uma guilda só podia demandar a outro membro perante o tribunal
dessa corporação. Não era formalmente impedido de reclamar seu direito também
em um tribunal público, real ou episcopal, mas isso era considerado – salvo que a
guilda o tivesse autorizado – um ato ofensivo contra a corporação e contra o
membro demandado, devendo pagar então uma multa aos dois. Foi o que ocorreu
em 1396 na cidade de Frankfurt, que tinha obtido do Imperador o privilégio de que
nenhum de seus burgueses pudesse ser demandado perante um tribunal estranho à
cidade. Neste caso foi arrestado um burguês de Frankfurt porque havia demandado
em um tribunal de fora da cidade a outros vizinhos dele que lhe deviam dinheiro.
A liberdade pode sempre ter dois aspectos: trazer consigo o respeito a uma
pessoa, um direito ou um poder, e pode implicar uma exclusão, a indiferença
desdenhosa de parte do poder superior. Assim sendo, a jurisdição própria dos judeus
para os litígios que os opunham entre si no Medievo, não se trata de um
contraexemplo, mesmo se, por vezes, se houvesse convertido em fonte de descrédito
e hostilidade. Outra coisa sucedia com os hebreus do oriente romano durante o
Império. Diz Strabon que os israelitas de Alexandria, por exemplo, tinham um juiz
supremo próprio para resolver seus litígios – um estatuto jurídico de exceção
advindo fonte de antissemitismo, mas reivindicado pelos mesmos judeus que
afirmavam que sua religião exigia uma administração de justiça particular e
exclusiva. Esta tendência se amplificou na cidade medieval de Colônia, onde os
hebreus desfrutaram, durante um breve lapso, do privilégio de fazer julgar por um dos
seus até os processos contra os cristãos. Em casos semelhantes é provável que os
254 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
vendedor devia conceder ao comprador uma indenização de uma quantia duas vezes
mais elevada do que ele teria que pagar ao funcionário real, se não houvesse sido
membro da guilda, e ressarcir a todos os outros membros da corporação com uma
multa que poderia atingir o dobro da que a cidade teria cobrado nesse caso. A
estrutura do círculo mais amplo permite outorgar mais liberdade ao indivíduo que o
círculo mais restrito que depende fundamentalmente da atitude assumida por seus
membros a seu respeito. É preciso, assim, que ele prove constantemente, através de
uma jurisprudência pouco ou nada inclinada à indulgência, o exercício firme e digno
da autoridade confiada, sem dar ao poder público nenhuma razão para intervir. Mas
essa autoridade sobre seus membros (que constitui a liberdade do grupo em última
instância) pode acarretar consequências mais graves que uma jurisprudência sem
concessões. É verdade que a grande autonomia das cidades alemãs favoreceu
extraordinariamente seu desenvolvimento até bem dentro do século XVI, mas depois
ela produziu um regime oligárquico, de nepotismo e compadrio que oprimiu
cruelmente aqueles que não participavam do poder. Somente o aumento dos poderes
do Estado, após uma luta de quase 200 anos, conteve o abuso tirânico da liberdade
das cidades e garantiu novamente a liberdade do indivíduo. A autonomia local, cujo
princípio provou o quão benéfico podia ser, encerra, apesar disso, o perigo das
assembleias locais dominadas pelo egoísmo dos interesses de classe. A correlação
do duplo movimento de aquisição da liberdade e de imposição de uma dominação
política (sua amplificação em conteúdo) degenerou em seu exagero patológico.
Todavia, é em uma direção totalmente diversa que se constitui, às vezes, o tipo
de que se trata aqui. Como temos visto, toda libertação de um grupo de indivíduos
que se tornam iguais sem necessidade de estar subordinados a outros tende a se
desenvolver aspirando a uma superioridade – sobretudo se nós observamos a
diferenciação que se produz em geral quando uma camada inferior atinge condições
de vida mais livres ou simplesmente melhores. No entanto, com frequência o
resultado desse movimento revela que, embora certas partes desse grupo que
unanimemente aspirava ascender o consigam efetivamente, isso significa apenas
que elas se assimilaram às camadas dominantes já existentes, enquanto as outras
continuam subordinadas. Como é natural, isso se produz com maior facilidade
quando entre as camadas animadas de tendência ascensional existe já uma
256 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
distinção entre dominados e dominantes. Em tais casos, uma vez que acaba a
rebelião contra a camada social que dominava a ambas, a diferença interna entre os
rebeldes (que durante a luta fora passada para segundo plano) logo reaparece e, em
razão disso, aqueles que anteriormente tinham uma posição superior assimilam-se
à camada superior combatida, enquanto seus antigos companheiros de luta ficam
ainda mais submetidos. O levante dos operários ingleses em 1830 oferece um bom
exemplo desse tipo de comportamento. Para conseguir o direito de eleger deputados
ao Parlamento, os operários se aliaram ao Partido reformista e às classes médias,
conseguindo a promulgação de uma lei que concedia o direito de voto a todos
– exceto os operários. De acordo com a mesma fórmula. a luta de classes em Roma
se desenvolveu por volta do século IV A C. Os ricos plebeus, que em interesse de sua
camada social desejavam o connubium48 e uma repartição mais democrática dos
altos cargos públicos, fizeram uma aliança com as classes médias e as camadas
inferiores. Como resultado desse movimento combinado se alcançaram os pontos
do programa que interessavam principalmente à grande burguesia, enquanto as
reformas que iriam favorecer a classe média e os pequenos agricultores se
desmancharam no ar. O mesmo ocorreu com a Revolução boêmia de 1848 que
permitiu aos camponeses acabarem com os últimos vestígios da servidão feudal. A
partir do momento em que essa finalidade foi atingida, surgiram claramente entre os
próprios camponeses as diferenças de posição que antes e durante a revolução
tinham ficado apagadas pela servidão comum. De tal sorte que, quando as classes
inferiores da população rural demandaram a repartição das terras comunais,
despertou-se imediatamente o instinto conservador dos camponeses mais
abastados, que se opuseram às pretensões do proletariado do campo (junto a quem
tinham vencido a revolta) do mesmo modo em que os senhores se tinham oposto às
suas. Acontece com típica frequência: que o mais forte, talvez quem contribuiu mais
à vitória, deseja depois colher sozinho todos os frutos. E sua participação,
relativamente preponderante no sucesso alcançado, embasará doravante a
48
O ius connubium, era o direito de contrair casamento válido segundo o antigo Direito romano. Os
filhos nascidos de pais unidos em virtude do ius connubium seguiam a condição do pai, sendo
também cidadãos, caso contrário a do pai não cidadão. Esta capacidade jurídica de celebrar “justas
núpcias” era própria só dos cidadãos romanos e dos latinos veteres (antigos habitantes do Lácio).
(NT)
Georg Simmel | 257
perderem seu melhor sangue. Por essa razão, a autoridade contra a qual se levanta
um conjunto numeroso de pessoas tem interesse em conseguir que esse grupo
escolha representantes encarregados das negociações. Isso vai quebrar pelo menos
o impulso irresistível e fora de controle da massa, que doravante será controlada por
suas próprias lideranças – coisa que já não conseguiam os superiores – assumindo
em face dos revoltosos a função normal da autoridade e preparando o retorno do
povo a sua submissão preexistente.
Todas essas manifestações, que se propagam nas mais diversas direções,
têm um denominador sociológico comum e constante, a saber: o desejo e a
conquista da liberdade em suas mais variadas significações, positivas e negativas,
cuja consequência necessária é a ambição e a conquista do poder. O socialismo e o
anarquismo negam, porém, a necessidade desse vínculo. Enquanto o equilíbrio
dinâmico dos indivíduos, a liberdade social, aparece aqui apenas como um ponto de
transição – real ou meramente ideal – além do qual a balança pende a um lado, os
socialistas e anarquistas consideram possível sua posição estável, à condição de
que a organização social em geral não se estruture em relações hierárquicas de
dominação, mas coordenada por todos os elementos. As razões frequentemente
aduzidas contra essa possibilidade – cuja discussão não interessa – podem
resumir-se em argumentos do terminus a quo 49 e do terminus ad quem 50 . A
desigualdade natural dos homens não se suprime por decreto e não deixa de
expressar-se sob ordenamento hierárquico vertical dos que mandam e dos que
obedecem, do mesmo modo que a técnica do trabalho civilizado exige para alcançar
sua máxima perfeição que a sociedade seja um constructo hierárquico, “um espírito
para mil mãos” 51 , uma estrutura feita de diretores e executantes. A natureza dos
sujeitos e as exigências da obra objetiva, os sustentáculos do trabalho e o
cumprimento de suas finalidades, coincidem na necessidade de uma organização de
dirigentes e subordinados, que a causalidade e a teleologia igualmente exigem. Eis a
demonstração decidida e decisiva de seu caráter justo e indispensável.
49
Ponto que marca o início de uma ação. (NT)
50
Ponto que determina o fim de uma ação. (NT)
51
“Basta um espírito para mil mãos!”, palavras de Fausto, no final da Segunda parte do drama epônimo
de Goethe. (NT)
Georg Simmel | 259
domínio entre mestre e oficial que alcançava toda a vida do dependente e excedia
amplamente a prerrogativa exigida pela relação de trabalho.
À mesma finalidade poderia servir outro tipo importante de formação
sociológica. Como é sabido, Proudhon quer abolir toda relação de subordinação.
Para isso defende a supressão de todas as instituições dirigentes que se
diferenciaram como sustentáculo das energias sociais, por conta da ação recíproca
dos indivíduos. Instituições que ele quer substituir pela ação mútua imediata entre
indivíduos livremente coordenados, novo fundamento de toda ordem e cooperação.
Mas talvez seja possível conseguir essa coordenação conservando a relação de
subordinação, contanto que ela seja recíproca. Estamos falando de uma constituição
ideal, na qual A determinaria B em certo sentido ou em certo tempo e, em
compensação, seria seu subordinado em outro sentido ou em outro tempo. Dessa
maneira, o valor organizativo das relações hierárquicas de subordinação se
conservaria, desaparecendo o que elas têm de opressão, parcialidade e injustiça. De
fato, existe um número imenso de manifestações em que a vida social se realiza
desta forma típica, ainda que apenas de uma maneira embrionária, fragmentária ou
oculta. Exemplos dela, em um círculo restrito, são as cooperativas operárias de
produção, onde os operários elegem um chefe de oficina. Enquanto os operários
estão subordinados ao chefe no aspecto técnico, são superiores a ele no que tange
à direção geral e resultados da empresa. Todos os grupos cujo chefe muda, por
eleições ou por revezamento rigoroso – por exemplo, os presidentes de associações
de amigos ou de pessoas que compartilham determinados aspectos de sua atividade
presente ou passada – transpõem a combinação de superioridade e subordinação,
mudando-a de simultânea em alternativa para conseguir as vantagens técnicas da
subordinação sem seus problemas pessoais. Todas as democracias radicais limitam
a duração do mandato de seus magistrados para conseguir isso. É uma das maneiras
de realizar, tanto quanto possível, o ideal de que todos e cada um cheguem um dia
ao poder. Daí provém também a frequente proibição da reeleição. Por sua vez, a
coexistência da dominação e da subordinação é uma das formas mais enérgicas de
ação recíproca. E quando está equitativamente distribuída nas diversas esferas, pode
significar um vínculo muito forte entre os indivíduos nem que seja pela intimidade de
suas mútuas relações.
262 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
prestamos atenção a certos conteúdos referidos por esta forma. Sem desconhecer
o paradoxo que a questão envolve, observa-se que a força das democracias consiste
em que todos são servidores justamente naqueles assuntos em que são mais
competentes, quer dizer, nas questões profissionais, em que devem obedecer aos
desejos dos consumidores ou às instruções do patrão ou de outros dirigentes,
enquanto todos se comportam como senhores nos assuntos de interesse geral ou
político da comunidade, acerca dos quais carecem de qualquer conhecimento
especial distinto do que possuem também os demais. Quando aquele que exerce o
poder em última instância possui também a maior competência, resulta inevitável a
opressão absoluta de todos os subalternos; por isso, se na democracia a maioria
numérica concentrasse saber e poder, sua tirania seria tão nefasta como a da pior
autocracia. Para evitar, pois, essa clivagem entre os de cima e os de baixo e preservar
a unidade do conjunto, seria necessária uma singular limitação em virtude da qual o
poder supremo fosse confiado àqueles que seriam subalternos em referência aos
conhecimentos objetivos.
Esta mesma alternância de dominação e subordinação entremeada pelas
mesmas potências foi a base na qual se assentou a ideia de Estado que nasceu da
fusão entre a constituição do Parlamento e a da Igreja, após da “Revolução Gloriosa”
na Inglaterra. O clero tinha uma profunda aversão ao regime parlamentar e
especialmente à sua reivindicada preeminência até em relação à classe clerical. A
paz se concluiu – pelo menos na sua grande parte – de tal sorte que a Igreja
Anglicana guardava uma jurisdição particular em matéria de casamentos e
testamentos, assim como na aplicação das penalidades para católicos e não
praticantes. Em troca dessa concessão esqueceu a sua doutrina da “obediência”
inquebrantável e reconheceu que a ordem divina não excluía uma ordem
parlamentar, a cujas disposições particulares estavam também sujeitos os clérigos.
No entanto, por sua vez, a Igreja dominava o Parlamento toda vez que para ingressar
nas duas câmaras era necessário prestar juramento, coisa que só os fieis da Igreja
de Estado podiam fazer sem empecilhos, os dissenters 52 depois de seguir um
52
Os dissenters ou dissidentes ingleses, também chamados de “não conformistas”, foram
reformadores que se opuseram à intervenção do Estado em questões religiosas e fundaram as suas
264 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
próprias comunidades. Dentre eles os mais conhecidos eram os baptistas, metodistas, presbiterianos,
quacres e congregacionais. (NT)
Georg Simmel | 265
nas paróquias, durante muito tempo na Virgínia os pastores foram engajados só por
um ano,
O mesmo fenômeno sociológico (ainda que algo modificado) se produz
também com similares características formais, no geral, nas hierarquias
burocráticas nas quais o chefe depende tecnicamente de seu subordinado. O alto
funcionário desconhece com frequência os detalhes técnicos ou a situação atual dos
assuntos de sua alçada. Contrariamente, o funcionário subalterno amiúde evolui
durante toda sua vida no mesmo círculo de problemas e adquire um conhecimento
especializado de seu estreito campo de incumbências, O chefe, porém, progride
rapidamente, mesmo ignorando detalhes, ao ocupar diversos postos, e apesar de
suas decisões pressupuserem o conhecimento desses pormenores. Já em Roma se
produziu uma situação deste tipo. Os cavalheiros e os senadores que gozavam do
privilégio de servir o Estado não adquiriam, todavia, nenhuma preparação teórica
prévia, esperando apenas que a prática lhes subministrasse os conhecimentos
necessários. Isso trouxe como consequência – desde os últimos tempos da
República – a dependência dos magistrados superiores de seu pessoal subalterno,
que não mudava constantemente e que por isso estava em condições de aprender
certo conhecimento rotineiro dos assuntos. Na Rússia, esse foi um fenômeno
constante que se viu favorecido especialmente pela maneira de preencher os cargos
públicos. As promoções funcionais se faziam segundo a posição hierárquica, mas
não limitadas a um ramo da administração. Aquele que tinha alcançado uma
categoria determinada podia ser transladado – à petição sua ou de seu superior –
com a mesma posição hierárquica, mas em uma administração completamente
distinta. Assim não era nada estranho que um estudante recém-formado se
convertesse em oficial do exército após seis meses de serviço no front, ao passo que
um oficial do exército podia obter no serviço civil qualquer posto de uma categoria
equivalente à sua patente. A consequência inevitável era amiúde a ignorância técnica
do funcionário superior, que se tornava assim dependente de seu subordinado mais
experiente e de suas competências. Como vemos, a reciprocidade das relações de
dominação e de subordinação faz frequentemente com que aquele que dirige
apareça como subordinado e com que aquele que efetivamente é um simples
executante se revele como o verdadeiro chefe. Coisa que pode prejudicar o bom
Georg Simmel | 267
nas suas posições relativas, terão que ser deduzidas dessas qualidades individuais
diferentes.
Destarte, se exigia dos príncipes de épocas primitivas (ou se supõe que eles
tivessem) qualidades extraordinárias em grau e combinação. O rei grego dos tempos
heroicos não só devia ser corajoso, sábio e eloquente, mas também tinha que se
distinguir nos exercícios atléticos e, se possível, ser um excelente carpinteiro,
construtor de navios e lavrador. A situação do rei Davi dependia em grande parte,
como já observado, de ele ser ao mesmo tempo cantor e guerreiro, leigo e profeta e
possuir a capacidade necessária para fundir o poder político temporal com a
teocracia espiritual. Partindo dessa origem, dessas superioridades naturais (que,
naturalmente, seguem agindo em todo momento no bojo da sociedade e estão
constantemente criando novas relações) se desenvolveram organizações estáveis
de dominação e subordinação. Os indivíduos nascem já nelas ou adquirem suas
diversas posições em virtude de qualidades completamente distintas das que
originariamente tinham fundado as relações hierárquicas em questão.
A transição do predomínio subjetivo para uma forma e fixação objetiva se
produz pela extensão estritamente quantitativa da esfera de dominação na qual o
domínio se exerce. Dois motivos de fato opostos têm importância para determinar
essa relação (em todas as esferas) entre o aumento da quantidade crescente de
elementos e a maior objetividade das normas que se aplicam a eles. O aumento de
elementos supõe um aumento das particularidades qualitativas que os mesmos
apresentam. Isto torna também mais improvável que um elemento qualquer, dotado
de uma individualidade subjetiva, mantenha uma relação similar ou igualmente
suficiente com cada um dos outros elementos. À medida que crescem as diferencias
dentro do campo dos subordinados ou de aplicação das normas, a chefia ou a norma
terá que perder seu caráter individual e adotar um caráter geral que paire acima das
flutuações subjetivas. Por outra parte, esse mesmo alargamento do círculo conduz
à divisão do trabalho e à diferenciação de seus elementos dirigentes. Estes, em um
grupo grande, já não podem ser, como o rei grego, o guia e a medida de todos os
interesses essenciais. Pelo contrário, é necessária uma especialização variada e
uma distribuição profissional do governo. Mas a divisão do trabalho está sempre em
interação recíproca com a objetivação da conduta e das relações; ela situa a obra do
Georg Simmel | 269
indivíduo em um contexto situado fora de sua esfera, a pessoa se situa além de seu
labor parcial, cujos resultados, atualmente circunscritos de forma objetiva, só
formam um todo quando coincidem com os de outras pessoas. O campo de ação de
tais causas terá feito passar as relações de dominação nascidas por acaso e em
razão das pessoas a uma forma objetiva na qual não é mais o homem senão a
posição quem domina e ordena. O a priori da relação já não são os homens com suas
qualidades, das quais surge a relação social, mas as relações que não são mais que
formas objetivas, “posições”, uma sorte de espaços e de contornos vazios que devem
logo ser “preenchidos” pelos indivíduos,
Quanto mais sólida e tecnicamente elaborada a organização do grupo, mais
objetivos e formais serão os esquemas da subordinação. Para preenchê-los
procuraram-se as pessoas adequadas, a não ser que se prefira achá-las pelo puro e
simples acaso do nascimento ou de outras circunstâncias. E não nos referimos
unicamente à hierarquia das posições na vida pública. Nos setores em que a
economia monetária domina, ela engendra uma formação social análoga. A
possessão ou a carência de certa quantia em dinheiro determina uma posição social,
quase com completa independência das qualidades pessoais daquele que a ocupa.
O dinheiro tem levado ao cúmulo a distinção acima referida entre o homem como
pessoa e como executante de uma obra ou sustentáculo de um sentido singular. A
posse dessa quantia garante, a todo aquele que possa conquistá-la ou adquiri-la de
algum modo, um poder e uma posição que surge ou desaparece com o fato de ter
esse dinheiro, mas não com a pessoa e suas qualidades. Os homens passam pelas
posições que correspondem a determinadas somas de dinheiro, como material
indiferente que preenche, de modo puramente fortuito, formas fixas e permanentes.
Desnecessário se torna salientar, por outro lado, que a sociedade moderna não
apresenta sempre e constantemente essa discrepância entre a pessoa e sua
posição. Ao contrário, na maioria dos casos a distinção entre o conteúdo objetivo da
posição e a pessoa como tal, poderá até conferir certo grau de flexibilidade a sua
situação, graças ao qual a proporção adequada se realiza sobre novas bases, amiúde
mais racionais – sem contar com as enormes possibilidades que as ordenações
liberais oferecem para conquistar uma posição que corresponda às capacidades de
cada um. Mesmo se as capacidades de que tratamos sejam, às vezes, tão específicas
270 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que a superioridade conseguida em virtude delas não recai sobre a real valia das
pessoas. É justamente em certas formações médias, como as de classe e
agremiação, que aquela discrepância alcança, por vezes, sua máxima expressão.
Com razão salienta-se que o sistema da grande indústria oferece a um homem de
excepcionais dotes mais ocasiões que antes para tornar-se visível. É verdade
também que a relação numérica entre os supervisores ou encarregados das fábricas
e os operários é hoje mais baixa que há duzentos anos entre os pequenos mestres-
artesãos e os operários assalariados. Em compensação, o talento fora do comum
pode permitir evoluir com maior certeza para posições de liderança. Todavia, o que
importa aqui é apenas a invulgar oportunidade de que as capacidades da pessoa e
sua posição discrepem nas relações de subordinação, divergência produzida pela
objetivação das posições, isto é, pelo seu distanciamento dos aspectos puramente
pessoais da individualidade.
Apesar da energia com que o socialismo censura a relação fortuita e cega
entre a série objetiva e gradual das posições e o mérito pessoal, deve reconhecer-se
que a organização por ele preconizada desemboca em uma forma sociológica
análoga. Com efeito, ele exige uma constituição e uma administração absolutamente
centralizadas e, por conseguinte, estritamente articuladas e hierarquizadas, supondo
que todos os indivíduos estão a priori igualmente capacitados para ocupar qualquer
posto dessa hierarquia. No entanto, agindo assim, eleva à condição de proposição
elementar e fundamental – pelo menos em relação a um assunto – algo que na
organização atual lhe parece sem sentido. Pois o fato de que, em estrita lógica
democrática, os subordinados elejam seus dirigentes, não oferece qualquer garantia
contra a natureza aleatória da relação entre a pessoa e sua posição; não só porque
para escolher a pessoa mais competente é preciso ser competente também, mas
porque o princípio da eleição pela base social produz em todos os círculos mais
vastos resultados absolutamente fortuitos. A única exceção à regra são os votos por
um partido. No entanto, nesses sufrágios eliminou-se o fator em relação ao qual
temos aventado aqui a questão de saber se as eleições produzem resultados
racionais ou casuais: o voto por um partido, enquanto tal, não recai, com efeito, sobre
um indivíduo porque ele possui determinadas qualidades, mas porque – extremando
as coisas – ele é o representante anônimo de certo princípio objetivo. Para ser
Georg Simmel | 271
porque até agora não se tem descoberto nenhum procedimento que permita
identificar com certeza “os melhores” e adjudicar-lhes o seu devido lugar. Nem o
método a priori de educação para formar uma casta de chefes, nem o método a
posteriori de seleção natural pela livre concorrência com vistas a superar o outro,
nem o método de certa forma intermédio de escolha das pessoas pelas massas ou
as elites não deram bons resultados. Em segundo lugar, porque raras vezes os
homens se resignam a acatar a superioridade, nem sequer a dos melhores dentre
eles, pois não gostam de reconhecer primazia alguma, pelo menos se eles não têm
parte nela. Por acréscimo, o poder (mesmo aquele que originariamente foi adquirido
com fumus boni juris53) frequentemente corrompe: nem sempre talvez o indivíduo, é
verdade, mas quase sempre os corpos e classes sociais. Resulta compreensível
assim a opinião de Aristóteles quando afirmava que, se ainda desde um ponto de
vista abstrato, o indivíduo ou espécie que superem em areté (virtude) os demais
merecem o domínio absoluto sobre todos eles, seria recomendável preconizar,
atendendo às conveniências práticas, uma mistura desse poder com aquele outro da
massa, para que o predomínio numérico da grande maioria colabore com a
superioridade qualitativa da elite virtuosa. No entanto, mesmo atendendo a essa
proposição moderadora, as dificuldades indicadas, inerentes ao “governo dos
melhores”, podem induzir considerar resignadamente a igualdade geral como a regra
prática que represente o mal menor em face das desvantagens de fato da
aristocracia dos virtuosos (único regime logicamente justificado). Pretexta-se em
favor dessa igualdade universal que, como finalmente é impossível expressar as
diferenças subjetivas nas relações objetivas de dominação de maneira segura e
constante, é preferível eliminá-las da determinação da estrutura social, e regular esta
como se tais diferenças não existissem.
Todavia, dado que a questão do mal maior ou menor só se resolve geralmente
em virtude de estimações pessoais, esse mesmo pessimismo pode conduzir a uma
conclusão diametralmente oposta, como é a de que nos círculos (grandes ou
pequenos) a questão é que alguém governe, sendo preferível a chefia de pessoas não
qualificadas à ausência de qualquer governo. Admite-se, assim. que o grupo social,
53
Fumus boni juris é uma expressão latina que significa “aparência de bom direito”. (NT)
Georg Simmel | 273
em virtude de uma necessidade interna e objetiva, tem que aceitar a forma das
relações de dominação e subordinação, tanto e tão bem que talvez não seja mais do
que um feliz acaso uma posição ser determinada a priori por uma necessidade
objetiva e ocupada por um indivíduo subjetivamente satisfatório.
Tal tendência formal parte de experiências e necessidades absolutamente
primitivas. Em primeiro lugar, acredita que a forma de dominação significa ou cria
um vínculo. Em coletividades rudimentares, que não dispunham de múltiplas formas
de ação recíproca, não existia outro meio para afirmar pertença formal a essa
totalidade que a subordinação dos indivíduos sem vínculo imediato com ela, aos
membros que a priori tinham essa pertença. Quando deixou de vigorar na Alemanha
a constituição primitiva, que reconhecia a plena igualdade pessoal e patrimonial
dentro da comunidade, o homem que não dispunha de terra carecia igualmente de
direito efetivo à liberdade, razão pela qual tinha que vincular-se a um senhor para
não cortar todos os laços que lhe uniam à comunidade e poder participar
indiretamente como protegido nas corporações públicas. A coletividade tinha
interesse nesse arranjo, pois não podia tolerar em seu território nenhum homem sem
vinculo. Por isso o direito anglo-saxão obrigava expressamente quem não possuísse
terras a procurar um senhor e prestar vassalagem, Da mesma maneira, na Inglaterra
medieval, o interesse da comunidade exigia que o estrangeiro se submetesse a um
senhor que devia protegê-lo. Pertencia-se, pois, ao grupo quando de posse de uma
parte de suas terras. Quem não tinha terras e, desejava unir-se ao grupo, tinha de
pertencer a alguém que, por sua vez, estivesse vinculado ao círculo pela relação
primária da propriedade fundiária.
A importância geral das pessoas dirigentes, apesar da indiferença relativa de
suas qualidades ingênitas, se repete com semelhança formal em várias
manifestações precoces do princípio eleitoral. Assim, por exemplo, as eleições para
o parlamento medieval inglês parecem ter sido conduzidas e acompanhadas com
negligência e indiferença espantosas. Ao que tudo indica, o importante era que o
distrito tivesse um representante no Parlamento. Quem poderia ser essa pessoa, em
compensação, era muito menos digno de atenção. Isso se manifestava também na
indiferença a respeito da qualificação dos eleitores, que nos admira frequentemente
na Idade Média. Vota quem estiver presente no momento, sem que a legitimação do
274 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
eleitor nem a existência de certo número de votantes tenha então grande valor.
Evidentemente, a indiferença a respeito do corpo eleitoral é sintoma da falta de
interesse no resultado do escrutínio e nas qualidades pessoais dos eleitos.
Finalmente, o convencimento de que a coação é necessária age no mesmo
sentido, supondo que a natureza humana requer algum tipo de violência física ou
moral imposta por alguém, para não cair em uma atividade desprovida por completo
de forma e propósito. Para o caráter geral deste postulado, é absolutamente
indiferente que a subordinação exigida seja a uma pessoa e seu arbítrio ou a uma lei.
Prescindindo de certos casos extremos nos quais não se pode invocar o valor da
subordinação como forma de assegurar o cumprimento de um conteúdo absurdo, a
excelência ou insuficiência de uma lei apenas têm um interesse secundário, como
sucede com as qualidades da pessoa que exerce o poder. Nesse sentido, se poderiam
invocar os efeitos do despotismo hereditário – que independem até certo ponto das
qualidades da pessoa –, em particular quando se trata da unidade política e cultural
de grandes territórios, onde essa forma arbitrária e absoluta de governo tem sobre a
federação o mesmo tipo de vantagem que o casamento tem sobre o amor livre.
Ninguém pode negar que a coação do direito e do costume mantém unidos
numerosos casais que moralmente deveriam separar-se. O que ocorre é que as
pessoas se submetem aqui a uma lei que simplesmente não se adéqua a seu caso.
Mas em outras circunstâncias, a mesma coação, por dura que subjetivamente seja
no momento, tem um valor insubstituível, porque permite manter unidos os que,
apesar de que moralmente deveriam continuar juntos, se teriam separado por um
desgosto, aborrecimento ou comportamento precipitado, destruindo
irreparavelmente suas vidas. Não importa que a lei do casamento seja boa ou má
como conteúdo; se adapte ou não ao caso em apreço, o mero constrangimento que
dela decorre ao impor o convívio, desenvolve valores individuais eudemonísticos e
éticos – para não mencionar a conveniência social – segundo o critério pessimista
que aqui se expõe (e que talvez seja parcial), que não poderiam produzir-se de
nenhuma maneira se aquele constrangimento desaparecesse. Em alguns casos, a
simples consciência do caráter obrigatório da união com o outro pode, com certeza,
tornar a convivência insuportável, mas em outros, porém, pode haver anuência aos
sentimentos ou às vontades do outro, domínio de si mesmo, e até um aprimoramento
Georg Simmel | 275
funda no fato de que o número dos homens qualificados para ocupar cargos
superiores é maior que a quantidade desses cargos. Seguramente em uma fábrica
há muitos operários perfeitamente capazes de ser supervisor ou patrão, assim como
há muitos soldados com condições de ser oficiais. Dos milhões de súditos de um
príncipe, um grande número poderia ser tão bom ou melhor que ele. A ideia do reinado
“pela graça de Deus”, expressa justamente o fato de que não são as qualidades
subjetivas que permitem decidir, mas outra instância que se alça acima dos critérios
humanos.
O contraste entre os que chegam a ocupar uma posição dirigente e o número
de qualificados para ocupá-la não deveria, porém, levar ao extremo de acreditar que,
ao contrário, há muitas pessoas ocupando as posições superiores sem ter
qualificação para isso. Por uma série de razões, esse tipo de desproporção entre
pessoa e posição aparece-nos bastante maior do que ela é em realidade. Em primeiro
lugar, a incapacidade para desempenhar um cargo diretivo é fácil de perceber, já que,
por razões obvias, é mais difícil de dissimular que outras incompetências humanas.
Isso sucede em particular porque há em posições subalternas muitos indivíduos
capacitados para desempenhar um cargo diretivo. Essa inadequação se deve
frequentemente, mais às exigências contraditórias da função do que às deficiências
pessoais do titular, a quem, todavia, se atribuirá seu resultado inevitável, como se
fosse uma culpa subjetiva. O conceito moderno de “governo do Estado”, por exemplo,
confere a quem ocupa um cargo diretivo uma infalibilidade que é a expressão de sua
absoluta objetividade de princípio. Naturalmente, comparados a essa infalibilidade
ideal, os funcionários concretos parecem amiúde imperfeitos.
Porém, as insuficiências estritamente individuais dos dirigentes são
relativamente raras. Se tivermos em conta as circunstâncias aleatórias, arbitrárias e
absurdas graças às quais as pessoas ocupam suas posições em todas as esferas,
seria um milagre incompreensível que não aparecessem muitos mais incapazes de
exercer suas funções, se não existissem em bom número as qualificações latentes
para esses cargos. Foi nessa hipótese que se basearam algumas constituições
republicanas quando se limitaram a exigir para a nomeação dos magistrados o
cumprimento de certas condições negativas, por exemplo, que o candidato não se
tivesse tornado indigno por alguma razão. Assim em Atenas, quando as nomeações
Georg Simmel | 277
54
Geração espontânea. (NT)
IV. O conflito
1
Provérbio atribuído ao autor latino do quarto século da Era Cristã Flávio Vegécio, que pode ser
traduzido como: "se quer paz, prepare-se para a guerra" (geralmente interpretado como querendo dizer
que a paz só pode ser obtida desde uma posição de força). (NT)
280 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
2
No Paraíso da Divina Comédia, Dante ascende a uma região além da existência física chamada
Empíreo, reserva de Deus e dos eleitos, que se revela em seu duplo aspecto: primeiro rio de chamas,
depois Rosa imensa e imensurável, cujas pétalas são os bancos destinados aos santos (a Rosa
Mística). (NT)
3
A Disputa do Sacramento é um afresco de Rafael Sanzio. Foi pintado em 1509 e decora a Sala da
Assinatura do Palácio Apostólico do Vaticano. Na parte superior está representada a “Igreja
triunfante”. Na parte inferior está a “Igreja militante”, constituída por teólogos, doutores e Papas, assim
como filantropos e literatos, que se situam em ambos os lados de um altar sobre o qual está a custódia
onde se expõe a Eucaristia. A cena é muito animada, os personagens parecem estar ocupados
Georg Simmel | 281
6
Expressão latina que quer dizer: “retida na mente”. (NT)
Georg Simmel | 285
estrito) um todo inseparável do modo de vida nas grandes cidades. Pois o que nessa
vida aparece imediatamente como uma dissociação não é, em realidade, mais do que
uma das formas elementares de sociação.
Por conseguinte, mesmo que as relações conflituosas não possam produzir
por si sós uma entidade social, resulta evidente que colaboram com as outras
energias unificadoras para, entre todas, construir a unidade vital do grupo. Assim
sendo, tais relações apenas se diferenciam das restantes formas de contato e
interação recíproca que a sociologia identifica nas variadas existências reais. Nem o
amor, nem a divisão do trabalho, nem a atitude comum em face de um terceiro, nem
a amizade, nem a pertença a um partido, nem a subordinação se bastam para
constituir e manter de modo duradouro uma unidade histórica. E quando, contudo,
isso sucede, o que passa é que o processo assim designado contém já uma
pluralidade de formas de relação diferenciáveis. A essência da alma humana não
admite deixar-se ligar às outras almas por um único fio, ainda que a análise científica
se detenha frequentemente nas unidades elementares para estudar sua capacidade
específica de vinculação. Mesmo indo mais longe e tomando as coisas
aparentemente em outro sentido, toda essa análise talvez não seja outra coisa que
uma atividade simplesmente subjetiva: acaso as associações entre os elementos
individuais sejam efetivamente unitárias, resultando esta unidade porém
inconcebível para nosso entendimento – unidade mística da qual tomamos mais
forte consciência precisamente nas relações mais ricas, aquelas que os conteúdos
mais variados tornam mais vivazes e animadas –, não nos restando outro recurso
que representá-la como a ação conjugada de uma pluralidade de energias
vinculantes. Estas se vão limitando e modificando mutuamente até que surge a
imagem que a realidade objetiva cria por um procedimento mais simples e unitário,
mas impraticável para o entendimento do observador que procura acompanhá-lo.
Assim sucede também nos processos da alma individual. A cada momento
eles são de natureza tão complicada, escondem uma quantidade tal de vibrações
diversas ou contraditórias, que sua designação por um só de nossos conceitos
psicológicos é sempre insuficiente e, no fundo, inexata. Do mesmo modo, nunca
usamos um único fio para amarrar os momentos vitais da alma individual – mera
imagem que o pensamento analítico se arrisca a dar da unidade da alma,
286 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
incompreensível para ele. Seguramente, muitas das coisas que devemos nos
representar como um sentimento contraditório, como uma justaposição de instintos
vários, como um conjunto de impressões contraditórias são em si mesmas uma
perfeita unidade. Mas o entendimento observador carece do esquema necessário
para perceber esta unidade e se vê obrigado a reconstruí-la como a resultante de
múltiplos elementos. Quando somos simultaneamente atraídos e repelidos por
certas coisas, quando em uma mesma ação parecem misturar-se a nobreza e a
mesquinhez, quando o sentimento que uma pessoa nos inspira se compõe de
respeito e amizade, de impulsos paternais (ou maternais) e eróticos ou de juízos de
valor éticos e estéticos, todos esses fenômenos da alma são amiúde
indubitavelmente unitários. Contudo, como não podemos defini-los diretamente nos
vemos obrigados a recorrer a toda sorte de analogias, de motivos precedentes ou de
consequências exteriores ulteriores para convertê-los em um conjunto de variados
elementos anímicos.
Se isto é exato, também certas relações aparentemente complexas que se dão
entre várias almas devem frequentemente ser unitárias na realidade. Por exemplo, a
distância que caracteriza a relação entre duas pessoas vinculadas de algum modo
se nos aparece amiúde como o resultado de uma inclinação que deveria, de fato,
acarretar maior intimidade entre elas, e de uma repulsão simultânea que, pelo
contrário, teria que separá-las completamente. Mas isto pode ser um erro crasso:
nada impede que a relação tenda a essa distância por si mesma. Ela teria desde um
começo, por assim dizer, determinada “temperatura” que não se produz pela
compensação entre certo “calor” real e certa “frieza” real. Nós acreditamos por vezes
que o grau de autoridade e de influência que se produz entre duas pessoas é
engendrado pela força de uma das duas partes que se compensa simultaneamente
por uma fraqueza relativa em outro domínio. Pode ser que força e fraqueza existam,
mas amiúde seu dualismo não se manifesta na relação real, que contrariamente se
determina pelo conjunto dos elementos, de maneira que só a posteriori podemos
descompor sua unidade imediata para isolar aqueles fatores.
As relações eróticas oferecem os exemplos mais frequentes. Muitas vezes
elas aparecem como um tecido de amor e de respeito ou desprezo; ou de amor e de
um sentimento de harmonia entre as duas naturezas, com a consciência de mútuas
Georg Simmel | 287
a seus opressores provavelmente era tão forte (e talvez maior) que durante a guerra
e acaso os vencedores respondessem aos derrotados com o mesmo sentimento,
Isso ocorria porque o ódio a quem nos odeia constitui uma medida preventiva
instintiva, e porque, como é sabido, temos o costume de detestar àqueles a quem
temos causado algum dano. E, no entanto, existia nessa relação um elemento que
criava uma comunidade: a circunstância que estava na origem da hostilidade, quer
dizer, a associação forçada dos lombardos às atividades econômicas dos
autóctones, criava ao mesmo tempo uma inegável correspondência entre os
interesses de ambos os grupos. Mas, enquanto a divergência e a harmonia se
misturavam inextricavelmente neste ponto o conteúdo do desentendimento se
desenvolvia efetivamente para converter-se no germe de uma comunidade futura.
A maneira mais difundida de existência concreta desse tipo de forma foi
submeter o inimigo prisioneiro à condição de escravo, em lugar de matá-lo. É verdade
que, em um número imenso de casos, essa escravidão assumiu a forma extrema da
inimizade absoluta interior, mas o mesmo motivo que a ocasionou, fez muitas vezes
aparecer uma relação sociológica que amenizou simultaneamente seus efeitos. Por
isso, pode ocorrer às vezes que se provoque o agravamento das hostilidades
justamente para pôr-lhes cobro. E não apenas sob a forma de uma cura de violência,
que confiaria em que o antagonismo irá acabar além de certo limite, por esgotamento
ou por convencimento de sua insensatez. Por vezes, nas monarquias, se dá à
oposição um príncipe como chefe, como o fez Gustavo Vasa 7 . Isso reforça a
oposição, com certeza, pois a nova condução permite somar novos elementos que,
de outro modo, teriam permanecido distanciados dela, mas possibilita, ao mesmo
tempo, seu controle e limita sua radicalização. Fingindo reforçar deliberadamente a
oposição, o governo a descabeça, justamente por esse aparente ato de boa vontade.
Outro caso extremo parece ocorrer quando o conflito se origina
exclusivamente no desejo de lutar. Se o conflito se deflagra por alguma motivação
(ambição de riqueza ou de poder, cólera ou vingança), o objeto ou situação que se
deseja alcançar não só submete a confrontação a normas comuns ou restrições
7
Gustavo I Vasa (1496 – 1560). Foi rei da Suécia de 1523 até sua morte. É considerado o fundador da
Suécia moderna, tendo introduzido a monarquia absoluta e hereditária, a administração nacional
centralizada e a fé protestante luterana como religião do Estado. (NT)
Georg Simmel | 291
recíprocas, mas, por representar uma finalidade alheia ao conflito em si, confere ao
antagonismo uma natureza ou caráter peculiar proveniente do fato de que esses fins
podem, em princípio, conseguir-se por outros meios, distintos do desfecho da luta. O
anelo de riqueza ou de poder e até o desejo de aniquilar o inimigo podem satisfazer-
se por outras estratégias ou manobras que não sejam o próprio conflito. Quando este
último é um simples meio determinado pelo terminus ad quem 8 , não há nenhum
motivo para não limitá-lo ou suspendê-lo se pode ser substituído por outro meio que
garanta o mesmo resultado. No entanto, quando o conflito é determinado
exclusivamente por seu terminus a quo subjetivo, diante de energias internas que só
podem ser satisfeitas pelo confronto direto, então é impossível substituí-lo por outro
meio, pois constitui sua própria razão de ser e significação e não pode, por
consequência, adquirir outra forma. Este tipo de conflito gratuito, sem outro motivo
ou justificativa que o conflito mesmo, parece determinado formalmente por certo
instinto de hostilidade cuja análise psicológica vale a pena empreender.
Foram os moralistas céticos que falaram de uma hostilidade natural dos
homens: para eles, homo homini lúpus9, e “há na infelicidade dos nossos melhores
amigos algo que de todo não nos desagrada”10. Mas a crença oposta, a que deduz o
altruísmo moral dos fundamentos transcendentais de nosso ser, não se distancia
muito desse pessimismo, pois confessa que na experiência calculável de nossas
volições não se encontra a entrega ao próximo. Para essa ideia, segundo a
experiência empírica e de acordo com a razão, o homem é um puro e simples egoísta,
fato natural que ele não pode contornar por obra da natureza mesma, senão pelo
deus ex machina de uma realidade metafísica. Parece, então que devemos colocar
certa hostilidade natural como forma ou base das relações humanas junto à simpatia
entre os homens. O interesse surpreendentemente forte que os padecimentos dos
demais inspiram ao homem poderia explicar-se por ambas as motivações.
Resultado também dessa antipatia natural é o fenômeno não raro do “espírito
de contradição”. Tal espírito não se encontra apenas no conhecido indivíduo que
vemos nos círculos de amigos e familiares, nos comitês ou no público dos teatros e
8
Terminus ad quem e términus a quo são expressões latinas que podemos respectivamente traduzir
aqui por: “causa fim” e “causa fonte”. (NT)
9
Expressão latina segundo a qual “o homem é um lobo para o homem”. (NT)
10
Observação que transcreve Kant na sua obra A Religião nos limites da simples razão. (NT)
292 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que constitui o desespero dos que estão ao seu redor. Também não encontra seus
exemplares mais característicos na esfera política, nos homens de oposição cujo tipo
clássico descreve Macaulay ao dizer de Robert Ferguson: “His hostility was not to
Popery or to Protestantism, to monarchical government or to republican government,
to the house of Stuarts or to the house of Nassau, but to whatever was at the time
established11. Todavia, todos esses casos considerados são necessariamente tipos
de “oposição pura”, pois geralmente se apresentam como defensores de direitos
ameaçados, paladinos de causas objetivamente justas, ou como os cavalheirescos
protetores das minorias. Certos fenômenos muito menos marcantes delatam, porém,
a nosso ver, com maior clareza a compulsão abstrata de oposição. Por exemplo, a
leve tentação (frequentemente inconsciente e pronta a se esvaecer) de se opor a uma
afirmação ou solicitação qualquer, sobretudo se ela é formulada em termos
categóricos. Até em momentos de harmonia e inclusive em naturezas
condescendentes surge esse instinto de oposição, com a necessidade de um
movimento reflexo e integrando-se ao comportamento global, mesmo sem
resultados perceptíveis. E ainda que quiséssemos considerá-lo como um instinto de
defesa – análogo àquele que faz muitos animais responder a um simples contato
mostrando automaticamente seus meios de proteção ou ataque –, não faríamos com
isso mais do que demonstrar justamente o caráter primário e básico da oposição.
Pois isso significaria que a pessoa ainda que não seja realmente atacada, mesmo
que se defronte a manifestações puramente objetivas das outras pessoas, não pode
assumir outra postura que a de oponente, e que o primeiro instinto pelo qual ela se
afirma é a negação do outro.
Mas acima de tudo parece inevitável reconhecer a existência de um instinto
conflituoso a priori, se considerarmos os fatos incrivelmente fúteis e até levianos que
originam os conflitos mais sérios. Um historiador inglês refere que no final do século
XIX dois partidos irlandeses tingiram de sangue o país por causa de uma inimizade
que surgiu por uma disputa acerca da cor de uma vaca, Na Índia, apenas umas
11
Em inglês no original alemão de Simmel. Este parágrafo corresponde ao Capítulo 15 do volume III
da obra de Thomas Babington Maculay, The History of England from the Accession of James II, e reza
em português: “Sua hostilidade não se dirigia ao papado ou ao protestantismo, ao governo
monárquico ou ao republicano, à casa de Estuardo ou à de Nassau, mas a tudo quanto em sua época
estava estabelecido”. (NT)
Georg Simmel | 293
12
O primeiro Concílio de Nicéia (325) se dedicou principalmente a determinar a natureza da segunda
Pessoa da Santíssima Trindade encarnada em Jesus Cristo. Enquanto os partidários de Arrio, negando
a divindade de Jesus, ensinavam que a natureza do Filho só é semelhante à substância ou à natureza
do Pai (omoiúsios), o Concílio de Nicéia afirmou que Cristo era homem em toda a plenitude do termo,
quer dizer, que possuiu a natureza completa de um homem, corpo e alma, e que, por conseguinte, era
idêntico segundo a natureza ao homem e, porém, consubstancial ao Pai (omoúsios). (NT)
294 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
prática são mais decisivas estimações mais conscientes e, não já aquela inclinação
fugaz – que delatava a existência de um instinto fundamental. O mesmo fato
essencial se revela quando consideramos que esses leves preconceitos que
obscurecem ou mancham a reputação e imagem que temos de outro, podem nos ser
sugeridos por pessoas completamente indiferentes, ao passo que um preconceito
favorável só pode ser inspirado por alguém que tenha autoridade sobre nós ou que
pertença ao círculo de nossos amigos. Talvez sem essa facilidade ou leviandade com
que o homem meio reage às sugestões desfavoráveis, o aliquid haeret 13 não
alcançaria sua trágica verdade.
A observação de numerosas antipatias, polêmicas, intrigas e conflitos abertos
nos poderia levar, certamente, à crença de que a hostilidade figura entre as energias
humanas primárias que não se desencadeiam pela realidade exterior de seus objetos,
mas que os objetos são criados pelas próprias energias. Afirmou-se, assim, que o
homem tem religião, não porque acredite em Deus, mas que acredita em Deus porque
tem na sua alma o sentimento religioso. A respeito do amor, todos reconhecem que,
sobretudo em nossa adolescência, não se trata de uma mera reação de nossa alma,
produzida pelo objeto (como uma sensação de cor em nosso aparelho óptico), mas
que a alma sente a necessidade de amar, e apreende um objeto qualquer que a
satisfaça, revestindo-o, às vezes, com aquelas qualidades que, aparentemente,
determinam o amor. Nada impede que – com as limitações às quais faremos
referência logo – também a evolução do afeto seja assim oposta ao amor. A alma
possuiria então uma necessidade arraigada de detestar e lutar e amiúde atribuiria a
certos objetos escolhidos as qualidades que despertam o ódio. Se isso não se
manifesta de um modo tão visível como no caso do amor, talvez seja porque o
instinto erótico, graças a sua inacreditável intensidade física na juventude,
demonstra de um modo inconfundível sua espontaneidade e determinação pelo
terminus a quo. Em compensação, o instinto de ódio só excepcionalmente passa por
estágios desta violência nos quais se possa revelar seu caráter subjetivo e
espontâneo14.
13
Literalmente: “algo fica”. Fragmento da sentença atribuída a Francis Bacon; Audacter calumniare
semper aliquid haeret (“difama com audácia, sempre algo fica”). (NT)
14
Todas as relações de um homem com os demais se diferenciam umas das outras em seu mais
profundo fundamento segundo a resposta que se dê à seguinte pergunta (mesmo se há inumeráveis
Georg Simmel | 295
nuances entre o sim e o não): sua base espiritual é um instinto que, como tal, se desenvolve ainda sem
estímulo externo e busca por sua parte um objeto adequado – seja que ele o encontre já adequado,
seja que ele o transforme em sua imaginação de acordo a suas necessidades até que se converta em
objeto adequado? Naturalmente, é preciso também que nossa alma tenha as possibilidades para isso,
pois, caso contrário, ficariam latentes e incapazes por si sós de configurar-se como instinto. As
relações entre os homens – relações intelectuais e estéticas, de simpatia e antipatia – se constituem
a partir desta distinção, e é desse fundamento que derivam suas formas de evolução, sua intensidade
e sua história ulterior. (NS)
296 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
15
Peça mecânica que no piano prolonga ou sustenta o som das cordas permitindo que estas vibrem
livremente. (NT)
Georg Simmel | 297
por impulsos que podem também ser satisfeitos de outro modo que não pelo
enfrentamento, e que na prática lançam uma ponte entre o conflito e outras formas
de ação recíproca.
De fato, não conhecemos mais do que um caso em que o atrativo do conflito e
da vitória fosse por si mesmo o único motivo, pois de ordinário esse prazer pelo
confronto é mais um elemento que se acrescenta ao antagonismo provocado por
outros incentivos. Referimos-nos aos conflitos lúdicos, especialmente àqueles nos
quais o vencedor não ganha nenhum prêmio fora do próprio jogo. Aqui a atração
puramente sociológica do predomínio e da superioridade se combina com distintos
fatores: nos jogos de habilidade, com o prazer puramente individual do movimento
preciso e bem sucedido; nos jogos de azar, com o favor da sorte que nos concede
uma misteriosa relação de harmonia com forças situadas além dos acontecimentos
individuais e sociais. Seja como for, os conflitos lúdicos não têm outra motivação
sociológica que o próprio conflito. As fichas sem valor pelas quais frequentemente
se luta com a mesma paixão que por moedas de ouro, ilustram bem o caráter formal
desse instinto que, às vezes, quando tem dinheiro envolvido, ultrapassa em muito o
interesse material. Todavia, devemos advertir que, justamente, esse dualismo
perfeito supõe, para sua ocorrência, formas sociológicas no sentido mais estrito da
palavra, quer dizer, processos de unificação. Os homens se reúnem para lutar e lutam
sob o império de normas e regras reconhecidas por ambas as partes. Como já foi
dito, tais processos de unificação em cujas formas o confronto têm lugar, não
participam, porém, na sua motivação, constituindo apenas a técnica sem a qual não
se poderia verificar um conflito que exclui toda base heterogênea e objetiva. No
entanto, as regras do jogo, rigorosas e impessoais, que enquadram a confrontação
lúdica constituem um verdadeiro código de honra que amiúde é observado por ambas
as partes com uma disciplina poucas vezes observada nas formas associativas de
cooperação.
Este exemplo nos oferece, quase com a clareza dos conceitos abstratos, a
coexistência dos princípios opostos de conflito e de união. Vemos assim como um
deles só adquire graças ao outro seu sentido pleno e sua efetividade sociológica. A
mesma forma é dominante no conflito jurídico, ainda que os elementos deste último
não estejam tão claramente separados. Sem dúvida, existe aqui um objeto do
298 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
conflito, cuja voluntária renúncia poderia pôr termo satisfatório ao litígio, coisa que
não sucede quando a origem do conflito está no puro prazer formal de lutar. E se
também é verdade que frequentemente se fala nos processos judiciais da paixão e
do prazer pelo próprio litígio que as partes experimentam na maioria dos casos, se
alude a algo totalmente distinto: ao enérgico sentimento do próprio direito, à
impossibilidade de suportar uma agressão real ou presumida na esfera jurídica com
a qual o “eu” se sente solidário. Toda essa obstinação, toda essa teimosia das partes
em rejeitar qualquer compromisso (que, com muita frequência, fazem os processos
prosseguirem até esgotar as próprias forças) não tem o caráter de uma ofensiva, nem
mesmo no demandante, mas o de uma defensiva no mais profundo sentido. Trata-
se da sobrevivência da pessoa, que se implica tão profundamente com seu
patrimônio e seus direitos que qualquer prejuízo a destrói e a leva consequentemente
a investir sua existência inteira nesse confronto. Em tais casos, por conseguinte, será
determinante o instinto individualista, e não o instinto sociológico do conflito.
Todavia, se consideramos a forma do conflito, veremos que o litígio judicial é,
de fato, absoluto. Isto é, as pretensões de ambas as partes são defendidas com
estrita objetividade e empregando todos os meios permitidos sem desviar-se ou
reduzir seu ímpeto por considerações pessoais ou exteriores de qualquer natureza.
O conflito jurídico é o conflito por excelência na medida em que não há envolvimento
de nada estranho ao conflito como tal e que não sirva a seus fins. Enquanto, mesmo
nas lutas mais encarniçadas, pode ter espaço para questões subjetivas, a
intervenção da sorte ou a mediação de um terceiro, tudo isso está excluído aqui pelo
apego ao objeto da lide, onde só há confronto e nada mais que confronto. O fato de
excluir do litígio jurídico tudo o que não seja conflito pode conduzir a um formalismo
que independe de seu conteúdo. Isso se produz, por um lado, nas argúcias jurídicas,
onde já não se contrapõem ou compensam certos fatores objetivos, mas apenas se
digladia com conceitos absolutamente abstratos. Por outro lado, o conflito muda às
vezes para elementos que não têm a mais mínima relação com o que deve ser
decidido na lide. Se, nas civilizações evoluídas, os debates jurídicos são conduzidos
por advogados profissionais, é para isolar cuidadosamente o litígio de todas as
Georg Simmel | 299
associações pessoais que não têm nada a ver com ele. Mas quando Otão, o Grande16,
dispôs que as questões jurídicas se resolvessem em Juízo de Deus, quer dizer, por
um combate singular entre cavaleiros profissionais, não restou mais do que a simples
forma de todo conflito de interesses. A forma determinava um confronto e que
houvesse um vencedor. Não existia mais nada em comum entre a disputa que devia
ser decidida e a luta que a decidia. O caso expressa com uma exageração caricatural
a redução da que estamos falando, esta limitação do debate jurídico ao exclusivo
fator do conflito.
Todavia, justamente por sua pura objetividade, esse tipo de conflito – o mais
impiedoso de todos, precisamente por estar além da oposição subjetiva entre
compaixão e crueldade – pressupõe necessariamente em seu conjunto uma unidade,
certa comunidade entre as duas partes, em tão alto grau, que não se encontra em
nenhuma outra relação. A submissão comum à lei, o reconhecimento mútuo de que
a decisão deve ter em conta apenas o valor objetivo das razões invocadas, o respeito
de formas invioláveis para ambas as partes, a consciência de que o procedimento se
desenvolve dentro de um poder e de uma ordem social que lhe dão sentido e
segurança, tudo isso faz o conflito jurídico repousar sobre uma ampla base de
unanimidades e coincidências entre os adversários. Analogamente, ainda que em
menor grau, as partes que contratam ou participam de um negócio comercial
constituem uma unidade na medida em que reconhecem, apesar de seus interesses
serem opostos, que certas normas são igualmente obrigatórias para todos. Os pré-
requisitos comuns que excluem do debate jurídico tudo o que é meramente pessoal
ostentam aquele caráter de pura objetividade ao que corresponde por sua vez o
caráter implacável, feroz e absoluto do confronto. Os conflitos jurídicos manifestam
não menos do que os de natureza lúdica essa interação recíproca entre a dualidade
e a unidade da relação social. E é justamente porque o confronto está circunscrito e
16
Otão I (912 – 973) comumente chamado de Otão, o Grande. Imperador Romano-Germânico, de 962
até sua morte; além de Rei da Itália, Rei da Germânia e Duque da Saxônia. Coroado pelo papa João XII,
é considerado o primeiro Imperador Romano-Germânico (pois embora Carlos Magno tenha sido
coroado imperador em 800, o seu império desagregou-se devido às disputas entre os seus
descendentes pela sucessão, e depois do assassínio de Berengário do Friul em 924 o trono imperial
permaneceu vazio durante quase quarenta anos). (NT)
300 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sustentado pela rigorosa unidade das normas e restrições comuns que ele se torna
extremo e absoluto.
Finalmente, a mesma coisa se produz sempre que as partes estão animadas
por um interesse objetivo, quer dizer, quando o que está em jogo no conflito (e
consequentemente o próprio conflito) está dissociado da própria pessoa delas.
Nesses casos podem ocorrer duas coisas: ou o conflito resta centrado em questões
puramente objetivas, fora dele e todos os aspectos pessoais ficam em paz, ou as
pessoas enquanto tais se envolvem no conflito sem por isso alterar ou cindir os
interesses objetivos que as duas partes têm em comum. Este último tipo aparece
caracterizado na expressão de Leibnitz, que se dizia disposto a seguir seu inimigo
mortal se pudesse aprender algo com ele. É tão evidente que isso pode atenuar e
apaziguar a própria inimizade, que aqui somente trataremos do resultado oposto. Por
além, quando a inimizade entre as partes vai de par com certa comunidade e
inteligência em um domínio objetivo, ela é acompanhada de um tipo de limpidez, de
segura confiança no próprio direito: a consciência dessa separação nos conforta na
ideia de que não devemos deixar que a antipatia pessoal invada um domínio que não
lhe diz respeito, ganhando assim uma boa consciência que ocasionalmente pode
acirrar a hostilidade. Pois que ao limitar a agressividade a seu verdadeiro foco (que
também é o que de mais subjetivo tem a pessoa humana) nos abandonamos a ela,
mais apaixonada e eficazmente livres que se este impulso tivesse o lastro inútil de
animosidades secundárias em domínios apenas contaminados pela animosidade
central.
Em compensação, quando esta mesma dissociação restringe o conflito aos
interesses impessoais, se se evita, por uma parte. o rancor e a irritação inúteis que
são o preço ordinário da personalização das querelas objetivas, por outra parte, a
convicção de não ser mais do que o representante de interesses supraindividuais (de
não lutar por si mesmo, mas pela causa) pode dar ao confronto um caráter radical e
implacável – análogo ao comportamento geral de certas pessoas muito
desinteressadas e idealistas que não pensam em elas mesmas, mas muito menos
pensam nos outros por se considerarem autorizadas para imolar todos os demais à
ideia pela qual se sacrificam. Este gênero de luta (que põe em jogo todas as forças
da pessoa enquanto a vitória só servirá à causa) tem um caráter distinto (pois o
Georg Simmel | 301
homem distinto e aquele que, sendo completamente pessoal, sabe porém manifestar
sua personalidade com reserva), permitindo que a objetividade produza a impressão
de nobreza. Mas, uma vez realizada a dissociação e objetivada a luta, ela não se
submete a nenhum controle. Isso passa a fazer sentido, pois toda contenção
chamaria atenção contra o interesse objetivo que anima o confronto. Sobre a base
da comunidade que as partes constituem, limitando-se cada uma à defesa de sua
causa objetiva e renunciando a todo elemento pessoal e egoísta, o conflito adquire
então um caráter incrivelmente violento, sem ser agravado, e também sem ser
atenuado por instâncias pessoais, obedecendo somente a sua lógica imanente.
O contraste entre a unidade e o antagonismo se manifesta mais
acentuadamente quando ambas as partes visam efetivamente um único e mesmo
fim, por exemplo, estabelecer uma verdade científica. Fazer a menor concessão,
renunciar por cortesia a humilhar sem compaixão o adversário, assinar a paz antes
de conseguir a vitória definitiva sobre ele, seria trair esse respeito pelo objeto, em
virtude do qual se tem excluído do conflito toda espécie de personalização. Da
mesma maneira se desenvolvem as lutas sociais desde Marx (ainda que sob outros
aspectos as diferenças sejam enormes). A partir do momento em que se reconheceu
que a situação dos trabalhadores está determinada pelas condições objetivas da
produção, independentemente da vontade e das capacidades dos indivíduos,
decresceu visivelmente o rancor pessoal tanto das lutas por princípios como das
reivindicações pontuais. O patrão não é mais, pelo simples fato de ser patrão, um
vampiro e um egoísta condenável. O operário não age sempre movido por uma cobiça
perversa. E ambas as partes começam pelo menos a não lançar aos rostos suas
demandas e táticas como se fossem os frutos da malícia pessoal. A objetivação, de
fato, foi conseguida na Alemanha por um caminho teórico e na Inglaterra pelos
sindicatos operários. Na Alemanha, a generalidade abstrata do movimento histórico
e de classes supera o caráter pessoal e individual do antagonismo; na Inglaterra, esse
aspecto é conseguido graças à unidade rigorosamente supraindividual que se impôs
às ações dos sindicatos operários e das associações patronais. Todavia, nem por
isso a violência da luta diminui. Ao contrário, tornou-se mais consciente, mais focada
e ao mesmo tempo mais abrangente e adaptada a seus fins, porque os indivíduos
302 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
têm consciência de que não lutam unicamente para eles mesmos, mas por um
objetivo grandioso e impessoal.
Um sintoma interessante dessa correlação encontra-se no boicote levado a
efeito pelos operários contra as fábricas de cerveja de Berlim em 1894. Foi uma das
lutas locais mais violentas de sua época, conduzida por ambos os partidos com a
maior energia, mas sem nenhuma manifestação de ódio pessoal – apesar da
previsão oposta – da parte dos instigadores do boicote contra os diretores das
fábricas. Inclusive, no meio do conflito, duas lideranças dos coletivos em luta
chegaram a expor sua opinião sobre o enfrentamento em uma mesma revista,
coincidindo na exposição objetiva dos fatos, ainda que discordassem das
consequências práticas daí deduzidas. O conflito prescindiu de todo elemento
subjetivo e pessoal limitando quantitativamente o antagonismo e tornando possível
uma espécie de respeito mútuo, um entendimento sobre tudo o que era pessoal e a
convicção de que os dois lados eram arrastados por necessidades históricas. A base
unitária, no entanto, não diminuiu a intensidade do conflito, que ganhou em
intransigência e determinação.
Evidentemente, o fato de os adversários terem algo em comum que permita
surgir o conflito, pode se manifestar em formas muito menos nobres do que as
anteriormente referidas. Isso sucede quando esse elemento comum não é uma
norma objetiva, nem um interesse superior ao egoísmo fruto do enfrentamento, mas
um conluio secreto a serviço de algum propósito compartilhado pelas partes
envolvidas, sem consideração aos interesses alheios. Em certo sentido, esse foi o
caso da recíproca evolução dos dois grandes partidos ingleses do século XVIII 17 .
Suas convicções políticas não eram fundamentalmente distintas, pois o que estava
em jogo finalmente para ambos era a subsistência do regime aristocrático. Era
curioso ver como dois partidos que se enfrentavam no campo da luta política não se
combatiam, todavia, de maneira radical – porque existia entre eles um acordo tácito
contra algo que não era um partido político. Essa singular limitação do conflito
relacionava-se com a corrupção parlamentar que prevalecia naquele período:
ninguém achava grave demais vender o seu apoio ao partido oposto, porque existia
17
O autor se refere aos partidos Whig e Tory. (NT)
Georg Simmel | 303
nas intenções e projetos dos dois partidos uma ampla – ainda que oculta – base
comum, que limitava o confronto a questões marginais. A facilidade com que a
corrupção se impôs demonstrou que a limitação do antagonismo pela existência de
um elemento comum entre as partes não torna o conflito forçosamente mais objetivo
e fundamental, mas que ao invés ela pode levar à perda de seu vigor, contaminando
seu sentido necessário.
Em outros casos mais claros, a síntese do monismo e do antagonismo das
relações pode produzir o resultado oposto quando a unidade é o ponto de partida e o
fundamento da relação, constituindo a base do conflito. Amiúde o antagonismo
torna-se então mais apaixonado e radical que nos casos em que não existe algum
tipo de vínculo, precedente ou coetâneo, entre as partes. A antiga lei judaica que
autorizava a bigamia proibia o casamento com duas irmãs (mesmo, se morta uma
delas, o viúvo pudesse desposar a outra), pois se acreditava que fomentaria os
ciúmes. Supunha-se aqui que os laços familiais favoreciam uma rivalidade mais forte
do que aquela que podia surgir entre pessoas estranhas. O ódio mútuo que nutrem
os pequenos Estados vizinhos, cuja concepção do mundo, relações e interesses
locais são inevitavelmente muito semelhantes e talvez até idênticos, é muito mais
exacerbado e irreconciliável do que entre grandes nações completamente distantes
no espaço e na maneira de ser. Essa foi a desgraça da Grécia Antiga e da Itália depois
da queda do Império Romano, fenômeno que sob uma forma ainda mais perniciosa
abalou a Inglaterra antes que a conquista normanda fundisse seus dois povos 18 .
Povos esses que viviam misturados nos mesmos territórios, vinculados por
interesses vitais constantes e reunidos por uma ideia unitária de Estado, mas eram,
todavia, completamente estranhos em seu ser mais profundo, incapazes de
compreender-se mutuamente e os piores inimigos no exercício do poder. O ódio,
como já foi referido aqui, era ainda mais feroz do que o existente entre dois povos
separados externa e internamente. As igrejas nos oferecem os exemplos mais
acentuados porque a menor divergência, em razão de sua relação obrigatória ao
dogma, adquire logo um caráter de antagonismo logicamente irredutível nas
18
O autor possivelmente refere-se aos descendentes dos colonos anglo-saxões que invadiram a
Britânia romana entre os séculos V e VI da Era Cristã, e a progênie dos viquingues estabelecidos desde
o século IX no Norte da Inglaterra e na região das Midlands Orientais. (NT)
304 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
19
O termo “católicos velhos” ou “veterocatólicos” se aplica aos fiéis de diversas Igrejas Católicas
nacionais ou independentes organizadas com o nome de Velha Igreja Católica, Antiga Igreja Católica
ou Igreja Veterocatólica por alguns intelectuais e bispos católicos romanos que rejeitaram as decisões
do Concilio Vaticano I (1869 – 1871) que definiu o dogma da Infalibilidade Papal. (NT)
Georg Simmel | 305
menor discrepância adquire uma transcendência relativa muito maior do que entre
estranhos, os quais estão preparados a todas as diversidades possíveis.
Daí os conflitos familiais, produzidos pelas mais absurdas ninharias, que põem
em evidência o caráter trágico das “bagatelas” que separam pessoas que viviam em
completo acordo. Evidentemente, sua inesperada ocorrência não prova em todos os
casos que as forças de conciliação tenham começado a regredir, pois pode suceder
que a grande similitude das qualidades, inclinações e convicções torne intolerável,
pela violência do contraste, o desacordo sobre um ponto absolutamente
insignificante. Compare-se a isso o resultado da atitude objetiva de reserva de nossa
personalidade que adotamos a respeito do estrangeiro, com quem (como não
compartilhamos nem qualidades nem interesses) é difícil que uma diferença de
pouca monta comprometa todo nosso ser. Com os muito diferentes a nós,
encontramo-nos apenas nos diversos pontos de uma negociação particular ou de
uma convergência de interesses. Por isso o conflito se limita as coisas concretas.
Mas, quanto mais coisas compartilhamos com outra pessoa, mais facilmente
associaremos nosso eu total a qualquer relação com esse outro. Daí a violência
absolutamente desproporcionada, às vezes, à qual se deixam arrastar, contra seus
íntimos mais próximos, pessoas que ordinariamente sabem controlar seus próprios
impulsos.
A felicidade e profundidade nas relações com uma pessoa com a qual nos
sentimos idênticos – união em que nenhuma relação ou palavra, ação ou dor comum
esteja verdadeiramente isolada, mas que cada uma delas revista (envolva, por assim
dizer) a alma por completo – é justamente a que faz uma querela nascente crescer
com uma paixão tão expansiva e que o conflito abranja a personalidade inteira do
outro. As pessoas com esse tipo de vínculo estão habituadas demais a incluir todo
seu ser e seu sentimento nas relações que mantêm para não dar também a seu
conflito um destaque e um relevo que transcende em muito o motivo concreto e sua
significação objetiva e que arrasta na ruptura a pessoa por inteiro. Todavia, as
pessoas muito cultivadas espiritualmente poderão evitar isto, pois é próprio delas
combinar a dedicação plena a uma pessoa com uma recíproca e total independência
dos elementos psíquicos na alma. Enquanto a paixão bruta mistura a totalidade da
pessoa com a irritação provocada por um fato circunstancial ou transitório, a
306 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
educação refinada não deixa esses estados ultrapassarem seus próprios e legítimos
limites, firmemente circunscritos. Tal evolução espiritual concede à relação entre
naturezas harmônicas a vantagem de adquirir clara consciência, justamente a raiz
desse conflito, de quão insignificantes são as diferenças que as opõem em
comparação com as forças que as vinculam.
Porém, se deixamos de lado esses casos, veremos que, especialmente nas
naturezas profundas, o refinamento de sua sensibilidade tornará mais apaixonados
os afetos e as repulsões quanto mais se destaquem uns e outras sobre o fundo de
um passado de cores diferentes, seguindo decisões súbitas e irrevocáveis de sua
relação em contraste com as alternativas cotidianas de uma convivência sem
discussão. Entre os homens e as mulheres uma aversão completamente elementar e
até um sentimento de ódio sem razões particulares, provocado por simples repulsão
recíproca é, às vezes, o primeiro estágio de relações cujo segundo momento será a
paixão amorosa. Podemos chegar à paradoxal hipótese de que, nas naturezas
destinadas a entrar em uma estreita relação sentimental, essa reviravolta é
determinada por uma espécie de sabedoria instintiva que consistiria em começar
pelo sentimento contrário àquele que será definitivo – como quem retrocede uns
passos antes de dar o salto – para atingir um clímax apaixonado e avivar a
consciência do que se ganha. A mesma forma aparece no fenômeno contrario: o
amor não correspondido engendra o ódio mais profundo. Aqui, o decisivo nessa
mudança de sentimentos não é apenas a sensibilidade refinada, mas, sobretudo, a
negação do próprio passado. Reconhecer que nosso amor profundo – e não
unicamente sexual – foi um engano e uma lamentável falta de perspicácia nos
humilha a nossos próprios olhos e supõe um atentado tal à segurança e unidade de
nossa consciência que, inevitavelmente, o objeto deste sentimento insuportável tem
que pagar por isso. A secreta compreensão de que a culpa é nossa fica oculta muito
adequadamente atrás do ódio, que permite facilmente atribuir a responsabilidade a
outro.
Essa especial violência dos conflitos que surgem em relações nas quais, por
sua essência, a harmonia deveria reinar, parece confirmar o princípio de que as
relações são fortes e estreitas quando não existe uma profunda falta de
entendimento entre as partes. No entanto, esse aparente truísmo não se aplica a
Georg Simmel | 307
20
Diz-se, por extensão de sentido, da valoração da paz, pacificação ou conciliação como condição ou
objetivo das relações humanas (do grego eirênê = paz). (NT)
308 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que cada uma das tendências procura dominar à outra não se alimenta só de seus
interesses egoístas, mas também do interesse superior na unidade do eu, para quem
esse conflito significa divisão e colapso se não acabasse com o triunfo inequívoco
de uma das partes. Da mesma maneira, os conflitos dentro de um grupo
estreitamente unido vão além do que exigiria o objeto e o interesse imediato de seus
elementos, já que se acrescenta a ele o sentimento de que o conflito não é apenas da
conta das partes, mas do grupo no seu conjunto. Cada parte luta assim em nome do
grupo, não devendo somente odiar na pessoa do adversário a seu próprio inimigo,
mas também ao inimigo da mais alta unidade sociológica a qual pertence.
Finalmente, existe um fato que em aparência seria exclusivamente individual
e que, entretanto, tem grande importância sociológica, porque vincula a extrema
violência do antagonismo com a intimidade no modo de proceder com outrem.
Referimos-nos aos ciúmes. A língua corrente não faz um uso inequívoco desse
conceito que, com frequência, é confundido com a inveja. Com certeza, essas duas
paixões desempenham papel extremadamente importante na estrutura das relações
humanas. Em ambas estamos a falar de um valor que um terceiro nos impede de
adquirir ou de guardar real ou simbolicamente. Quando se trata de sua consecução
falaremos preferencialmente de inveja, referindo-nos aos ciúmes quando o que está
em jogo é a conservação; advertindo que, naturalmente, o que importa não é a
distinção das palavras, mas a dos processos psicológicos que as palavras designam.
É característico do que designamos com o nome de ciúmes o fato de que o sujeito
ciumento acredite ter direito à possessão que afirma, enquanto na inveja, o sujeito
invejoso não se preocupa do direito, mas simplesmente de quão apetecível é o objeto
invejado, sendo-lhe indiferente que este bem lhe seja negado porque o possuí um
terceiro ou por causas que não remediaria o terceiro se perdesse o bem ou
renunciasse a ele. Em compensação, os ciúmes recebem sua direção e colorido
próprios precisamente pelo fato de que, se não podemos possuir um bem, é porque
ele se encontra nas mãos do outro, mas viria às nossas assim que esse obstáculo
fosse removido. Enquanto os sentimentos do invejoso giram sempre em torno do
objeto possuído, os do ciumento convergem para aquele que o possui. Pode-se
invejar a glória de alguém, ainda que aquele que sente inveja não tenha nenhum
direito a essa glória. Mas terá ciúmes do glorificado quem acredite merecer sua glória
Georg Simmel | 311
tanto quanto (ou mais) que ele. O que amargura e corrói a alma do ciumento é certa
ficção do sentimento – por injustificada e até insensata que seja – que lhe faz
acreditar que o outro lhe tem roubado o que lhe corresponde. Os ciúmes são um
sentimento de tão específica índole e intensidade que, uma vez engendrados por
qualquer combinação na alma, a situação típica completa da qual eles
precisam.sempre se constrói interiormente.
À igual distância, por assim dizer, da inveja e dos ciúmes definidos desse
modo, existe um terceiro estado emocional complexo situado nessa escala, e que
consiste em uma espécie de inveja malévola à qual podemos atribuir o nome de
despeito. Trata-se da apetência invejosa por um objeto não porque seja
particularmente desejado pelo o sujeito despeitado, mas apenas porque outro o
possui. Esse ressentimento se desenvolve em dos extremos que desembocam na
negação da própria posse. Por um lado, temos a forma apaixonada que prefere
renunciar ao objeto ou ainda destruí-lo, antes de consentir que o possua um terceiro.
Por outro lado, está a forma desdenhosa que consiste em sentir indiferença ou
aversão em relação com o objeto e, no entanto, achar intolerável a ideia de que outro
o possua. Essas formas de inveja malévola perpassam a conduta recíproca entre os
homens de mil maneiras em combinações diferentes, ocupando boa parte do vasto
campo de problemáticas sobre o qual se constituem as relações daqueles com as
coisas, como causa ou efeito de sua mútua interação. Não se trata aqui apenas de
apetecer-se por dinheiro ou poder, por amor ou posição social, da mesma forma que
a concorrência ou qualquer outra maneira de superar ou de eliminar uma pessoa não
é mais que uma simples técnica não muito diferente no fundo do fato de vencer um
obstáculo físico. Os sentimentos concomitantes que acompanham essa relação
(externa e meramente secundária das pessoas) evoluem nessas variantes do
despeito chegando a adquirir formas sociológicas próprias, nas quais a apetência por
objetos não é mais do que o conteúdo aparente, o que resulta de que nos últimos
graus da série se tenha suprimido completamente o interesse pelo conteúdo objetivo
do fim e só se conserve este como material totalmente indiferente em torno do qual
se cristaliza a relação pessoal.
Dessa base geral se deriva a importância dos ciúmes para nosso problema
particular, especialmente quando seu conteúdo é uma pessoa ou ainda a relação de
312 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
um sujeito com ela. De resto, parece que a língua corrente não reconhece a existência
de ciúmes provocados por um objeto puramente impessoal. O que interessa é a
relação entre o ciumento e o amor à pessoa pela qual surgem seus ciúmes em face
de um terceiro: a relação com a terceira pessoa tem um caráter formal sociológico
completamente distinto, bem menos peculiar e complicado. Pois, se este terceiro se
torna um objeto de cólera e de ódio, de desprezo e crueldade é justamente porque se
pressupõe a existência de um sentimento de pertença a um espaço comum, de um
direito interno ou externo, real ou imaginado, ao amor, à amizade, ao respeito ou a
uma aproximação, seja ela qual for. O antagonismo, seja ele bilateral ou unilateral, é
mais forte e amplo quanto mais incondicional seja a unidade sobre a qual surge e
quanto mais ansiosamente se procure superá-lo. Se a consciência do ciumento
parece tão frequentemente oscilar entre o amor e o ódio, é porque ambos os
sentimentos (o segundo se alça sobre o primeiro em toda sua extensão) ocupam
sucessivamente o lugar de destaque.
A condição anteriormente mencionada é muito importante: acreditar em um
direito à posse espiritual ou física, ao amor ou à veneração da pessoa que constitui
o objeto dos ciúmes. Um homem pode invejar outro homem pela posse de uma
mulher, mas somente aquele que pensa ter um direito qualquer de possuí-la será
ciumento. Essa pretensão pode, aliás, confundir-se com a simples força do desejo,
pois é uma característica dos humanos em geral a tendência a deduzir um direito do
vivo desejo: a criança se desculpa de não ter cumprido uma ordem dizendo que “tinha
muita vontade de fazer isso” que era proibido; assim como em um duelo, o amante
que conservasse um resto de consciência não poderia disparar contra o marido
ofendido se não considerasse que seu amor pela esposa do rival lhe confere um
direito sobre a adúltera que ele defende contra o mero direito legal do cônjuge traído.
Da mesma maneira que se considera na maior parte dos casos que o mero fato de
possuir equivale já ao direito de possuir, o estágio prévio da posse, a apetência, se
converte também em um direito, assim como o duplo sentido da palavra “reivindicar”
(intentar demanda para reaver algo sobre o que se tem direito, e pedir ou solicitar
algo com vigor como se tivesse direito de fazê-lo) demonstra que a vontade tende a
acrescentar ao direito de sua força, a força de um direito.
Georg Simmel | 313
consequências que obrarão mais facilmente quanto mais vezes já tenham agido. E
como toda palavra e ação humanas permitem variadas interpretações quanto a seu
propósito e intenção, elas oferecem um instrumento apropriado aos ciúmes que não
admitem mais do que uma única interpretação. Os ciúmes podem combinar o ódio
mais violento com a persistência do mais apaixonado amor, assim como o
sentimento da mais íntima comunidade com o aniquilamento de ambas as partes
– pois o ciumento destrói a relação assim como ela o induz a destruir o outro. Por
isso talvez o ciúme seja o fenômeno sociológico no qual a construção do
antagonismo a partir da unidade adquire sua forma subjetiva mais radical como
sentimento.
Os fenômenos agrupados na noção de concorrência nos oferecem tipos
particulares dessa síntese. Em primeiro lugar, o que determina a natureza sociológica
da concorrência é que se trata de uma disputa indireta. Aquele que elimina
imediatamente o adversário ou afasta-o sem cerimônias de seu caminho, não
concorre com ele. A língua corrente só admite a utilização do termo de concorrência
quando a luta implica esforços parciais paralelos de ambas as partes com o
propósito de alcançar um único e mesmo objetivo. As diferenças que distinguem
esse tipo de conflito de todos os outros podem ser sintetizadas da seguinte maneira:
a forma pura da concorrência não é primeiramente nem ofensiva nem defensiva
porque o que está em jogo na luta não se encontra nas mãos de nenhum dos
adversários. O homem que combate outro para pegar seu dinheiro, sua mulher ou sua
glória, usa uma técnica de comportamento muito distinta da empregada por aquele
que concorre com outrem para saber quem vai enfiar o dinheiro do público no seu
bolso, ganhar os favores de uma mulher ou beneficiar-se de maior notoriedade por
atos e palavras.
Em muitas outras classes de luta, a vitória sobre o adversário não acarreta um
prêmio, mas ela mesma é já esse galardão. No caso da concorrência, duas outras
combinações aparecem. Quando a vitória sobre o concorrente é cronologicamente
um primeiro quesito obrigatório, ela não significa ainda nada por si mesma, já que o
objetivo da ação só será alcançado quando se obtenha certo valor que, por natureza,
é absolutamente independente dessa luta. O comerciante que divulga com sucesso
entre o público o boato de que seu concorrente era insolvente, ainda está longe de ter
Georg Simmel | 315
ganhado se, por exemplo, muda subitamente a apreciação crítica do público sobre as
mercadorias que ele oferece. O amante que elimina ou ridiculariza seu rival, não
avançou um centímetro sequer se a dama rejeita também suas investidas amorosas.
Para que um prosélito pertença a uma confissão que procura converter-lhe não basta
que ela tenha desqualificado os credos concorrentes demonstrando sua
insuficiência. Será preciso, além disso, que a alma daquele adepto sinta
precisamente as necessidades que essa profissão de fé possa satisfazer. O que dá
uma coloração particular a esse tipo de luta concorrencial, é que o resultado do
confronto não significa por si mesmo a consecução do seu objetivo, como ocorre nos
casos em que o conflito está motivado pela cólera ou vingança, pelo castigo ou valor
ideal da própria vitória.
O segundo tipo de concorrência provavelmente se distingue ainda mais das
outras formas de confronto. A luta aqui consiste apenas no fato de que cada um dos
concorrentes visa o objetivo sem empregar a força contra o adversário. O corredor
que só se importa com sua própria rapidez; o comerciante que somente age tendo
em vista o preço de suas mercadorias; o militante propagandista que leva em conta
unicamente a força persuasiva de sua doutrina: eis exemplos desse espantoso tipo
de conflito, que se iguala a todos os outros em violência e empenho apaixonado dos
esforços consentidos, que é impulsionado a esse extremo pela ação do adversário,
mas que, todavia, vista do exterior, procede como se não existisse adversário algum,
e apenas houvesse um objetivo a alcançar. Por acréscimo, como ela não se desvia
nunca desse objetivo, essa forma de concorrência pode apresentar-se de modo que
o antagonismo seja puramente formal e não só sirva a um fim comum de ambas as
partes, mas que a vitória do vencedor possa também ser proveitosa ao vencido.
Quando do sítio de Malta pelos turcos em 1565, o Grande Mestre da Ordem dividiu as
fortalezas da ilha entre as diferentes nações as quais pertenciam os cavaleiros que
a defendiam, de maneira que a competição para saber qual seria a mais brava devia
servir à defesa do conjunto. Achamos-nos aqui diante de um genuíno caso de
concorrência em que se exclui a priori causar algum prejuízo ao adversário que
pudesse incapacitá-lo para o comprometimento de suas forças na competição. Se
esse exemplo é tão perfeito, é porque ainda que o desejo de vencer nesse combate
pela honra seja o estímulo que desencadeia este emprego tão peculiar da força, a
316 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
vitória só pode ser alcançada de maneira tal que seus resultados se estendam
também ao vencido.
Analogamente, em todas as competições de emulação no campo científico
aparece uma luta que não se torna contra o adversário, mas para um fim comum,
supondo-se que o conhecimento produzido pelos achados do vencedor represente
também um benefício e um sucesso para o vencido. Nas justas artísticas amiúde
falta essa sublimação do princípio, porque diante do caráter individualista da arte,
ambas as partes não são conscientes do valor total objetivo do qual elas participam
em igual medida, mesmo se ele só existe no mundo das ideias. Essa carência de
entendimento é ainda mais visível no caso da concorrência comercial com vistas à
realização plena do mercado que, todavia, insere-se no âmbito do mesmo princípio
formal. Eis que também nessa esfera a concorrência visa imediatamente à eficácia
mais acabada, e seu resultado é o proveito de um terceiro ou do conjunto. Por
conseguinte, nessa forma a subjetividade do fim último se abraça do modo mais
singular à objetividade do resultado final, permitindo que uma subjetividade
supraindividual, objetiva ou social, envolva as partes e sua rivalidade. Luta-se assim
contra o adversário sem ficar contra ele; quase poderíamos dizer que sem sequer
tocar-lhe. Dessa maneira, os impulsos subjetivos antagônicos nos conduzem à
realização de valores objetivos, e a vitória não é propriamente o resultado de um
conflito, mas da consecução de valores para além do antagonismo.
Nisto consiste o enorme valor da concorrência para o círculo social, no caso
de se manterem os concorrentes dentro desse coletivo. Nos outros tipos de
confronto – nos quais o prêmio da vitória está de antemão em poder de uma das
partes ou o motivo da luta radica na hostilidade subjetiva e não na obtenção de um
prêmio –, os valores e forças dos contendores se destroem reciprocamente. Com
frequência não resta como resultado à totalidade mais do que aquilo que a simples
subtração da força mais fraca deixa a mais forte. Pelo contrário, a concorrência,
quando não é alterada por outras formas de luta, aumenta no geral a provisão de
valores graças à incomparável combinação de seus elementos: desde o ponto de
vista do grupo, oferece motivos subjetivos como meios para produzir valores sociais
Georg Simmel | 317
objetivos, e desde o ponto de vista das partes utiliza a produção de valores objetivos
como meio de obter satisfações subjetivas21.
No entanto, essa elevação do valor do conteúdo, que a concorrência consegue
produzir graças a sua forma peculiar de ação recíproca, não é tão importante neste
caso como a imediatamente sociológica. Na medida em que o objetivo visado pela
concorrência das partes dentro de uma sociedade consiste geralmente em obter o
favor de uma ou numerosas terceiras pessoas, ele obriga às duas partes
concorrentes atrair esse terceiro cuja adesão se procura. Habitualmente ressaltam-
se os efeitos corruptores, devastadores e dissociadores da concorrência sem
reconhecer outra vantagem que a daqueles valores concretos que se podem
conseguir por seu intermédio. Mas, junto a isso se esquece com demasiada
frequência que, apesar de tudo, se deve ter em conta seu enorme poder de sociação.
21
Eis um modelo ou padrão que funciona como essência e princípio explicativo deste tipo frequente:
o meio é à espécie, ao grupo, em síntese, à entidade geral, o que a finalidade é ao indivíduo, e vice-
versa. Esse tipo se aplica especialmente e em muito ampla medida à relação do homem com a
realidade metafísica, quer dizer, com Deus. Quando surge a ideia de um plano divino universal, os fins
últimos dos entes individuais não são mais que etapas e meios que ajudam a alcançar o objetivo final
absoluto de todos os movimentos terrenos, tal como se encontram no espírito divino. Mas, para o
sujeito, dada a incondicionalidade de seu interesse pessoal, não só a realidade empírica, mas também
a transcendente são simples meios para seu fim. O bem-estar na Terra ou a salvação na eternidade,
a felicidade da serena perfeição ou da extática contemplação divina são procurados pelo homem
através de Deus, Providência universal. Do mesmo modo que Deus, como ser absoluto, se realiza
dando um rodeio através do homem, este chega a si mesmo dando um rodeio através de Deus. Há
muito tempo que se tem observado isso no que tange a relação entre o indivíduo e sua espécie, em
sentido biológico: a satisfação erótica que é para aquele um fim último, justificado em si mesmo, não
é para esta mais que o meio pelo qual se assegura sua persistência para além do instante. A
conservação da espécie que pode ser considerada, pelo menos metaforicamente, como seu fim não é
para o indivíduo, amiúde, mais do que o meio de perpetuar-se a si mesmo através de seus filhos, de
conseguir para seu patrimônio, suas qualidades e sua vitalidade, uma espécie de imortalidade. Nas
relações sociais, esse é o sentido do que se denomina harmonia de interesses entre a sociedade e o
indivíduo. A atividade deste último se regula para que sustente e desenvolva as disposições jurídicas
e morais, políticas e culturais dos homens; mas isso só se consegue quando os interesses próprios
do indivíduo, eudemonísticos e morais, materiais e abstratos se apoderam daqueles valores
supraindividuais, utilizando-os como meios: assim, a ciência, por exemplo, é um conteúdo da cultura
objetiva e, como tal, um fim último autônomo da evolução social que se basta a si mesmo e que se
realiza por meio do instinto individual de conhecimento, enquanto para o indivíduo a ciência existente,
junto com a elaborada por ele, não é mais do que um meio para satisfazer sua ânsia pessoal de
conhecimento. É verdade que estas relações não oferecem sempre tão harmoniosa simetria; pelo
contrário, frequentemente escondem a contradição segundo a qual tanto o todo quanto a parte se
tratam a si mesmos como fins últimos e, por conseguinte, os outros como meios, sem que nenhum
dos dois queira aceitar o papel de meio. Resultam daqui atritos que se fazem sentir em todos os pontos
da vida e que só permitem realizar-se aos fins do conjunto como aos das partes ao preço de certas
perdas. O desgaste recíproco das forças que não contribuem com nenhuma ajuda positiva ao
resultado final e a inutilidade das que se revelam mais fracas: eis em que consistem as perdas dentro
da concorrência que demonstra para além, com tanta clareza a simetria das séries de finalidades
convergentes. (NS)
318 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
A concorrência obriga, com efeito, o competidor, que vê um rival – e que amiúde não
seria um competidor sem isso –, a antecipar-se a ele e ir ao encontro do terceiro que
se quer convencer, a satisfazer os seus gostos, a juntar-se a ele, a descobrir seus
pontos fortes e fracos para se adaptar a eles, e a achar ou construir todos os atalhos
que poderiam ligar sua própria pessoa e seu próprio trabalho ao do outro. É verdade
que isso ocorre muitas vezes ao custo da dignidade pessoal e do valor objetivo da
produção. Sobretudo porque a concorrência entre os que possuem um nível cultural
e intelectual elevado e diferenciado induz àqueles que se destinam a conduzir as
massas, a se submeterem a elas. Pois, se querem exercer com sucesso a função de
professor ou chefe de partido, de artista ou jornalista será preciso obedecer aos
instintos e caprichos das grandes maiorias que são as que escolhem entre os
diversos competidores.
Sem dúvida, desse modo se verifica uma inversão das categorias e dos valores
sociais da vida, mas isso em nada diminui o valor formal da concorrência para a
síntese da sociedade. Ela chega incontáveis vezes a realizar o que só o amor pode
conseguir: adivinhar os mais íntimos desejos de outra pessoa mesmo antes que ela
esteja ciente deles. A tensão antagônica contra o concorrente aprimora a
sensibilidade do comerciante para captar as tendências do público até quase dar-lhe
uma espécie de sexto sentido apto a perceber as mudanças iminentes dos seus
gostos, das suas modas e dos seus interesses. Mas esse não é, todavia, um
fenômeno limitado apenas aos comerciantes, pois também acontece entre outros
aos jornalistas, aos artistas, aos editores e aos parlamentares. Por isso, a
concorrência moderna, definida como uma guerra desordenada de todos contra
todos, é simultaneamente um combate de todos por todos. Ninguém poderá negar
que há algo muito trágico no fato de que os elementos da sociedade ajam uns contra
os outros em vez de trabalhar em parceria; que inumeráveis forças estão a ser
desperdiçadas para combater um competidor quando poderiam ter sido utilizadas
em um trabalho positivo, e que até mesmo uma obra positiva e séria não serve de
nada nem será utilizada ou recompensada quando concorre com outra mais valiosa
ou somente mais atrativa. Todo este passivo da concorrência no balanço social está
contrapesado, porém, pela enorme força de síntese que a concorrência representa na
sociedade, que é uma competição pelo homem, uma luta constante pelo aplauso e a
Georg Simmel | 319
despesa, para obter concessões e sacrifícios de todo tipo; um combate dos poucos
para a conquista dos muitos, assim como dos muitos para a conquista dos poucos;
em uma palavra, um tecido de milhares de fios sociológicos, em que a consciência
se concentra sobre a vontade, o sentimento e o pensamento dos outros, que aqueles
que oferecem se adaptam aos que procuram, e que se multiplica com engenhosidade
as possibilidades de agradar aos outros e comprometer sua aprovação. Desde que a
solidariedade acanhada e ingênua das organizações primitivas e sociais foi
substituída pela descentralização, que foi o resultado imediato do alargamento
quantitativo dos círculos, parece que os esforços dos homens por conquistar seus
semelhantes e a adaptação de uns aos outros só são possíveis pagando o preço da
concorrência, quer dizer, lutando simultaneamente para eliminar um rival e para
seduzir um terceiro com quem acaso se compete em alguma outra esfera para obter
o favor do precedente.
Com a ampliação e a individuação da sociedade, muitos interesses que
mantêm unidos os membros do círculo só parecem estar vivos quando o conflito que
encerra a concorrência é suficientemente encarniçado e intenso como para impô-los
ao sujeito. Contudo, a força de sociação da concorrência não só aparece nesses
casos grosseiros e, por assim dizer, oficiais. Em incontáveis combinações, tanto na
vida familiar como nas relações eróticas, na conversação mundana como nas
polêmicas em torno de sérias convicções, nas sinceras manifestações de amizade
como no reconhecimento lisonjeiro que exterioriza a bajulação, encontramos duas
pessoas que competem para conquistar o favor de uma terceira, amiúde através de
meros sinais, gestos ou sugestões logo abandonados como aspectos parciais de um
fenômeno mais amplo. Particularmente, o antagonismo dos concorrentes
corresponde (em qualquer lugar onde a concorrência apareça) a uma oferta ou a um
processo de forte atração, a uma promessa ou a uma aliança que põe cada um dos
competidores em relação com um terceiro. Dessa forma, essa relação conflituosa
adquire (especialmente para o vencedor do confronto resultante) uma intensidade
que não teria conseguido sem a comparação singular e constante entre a própria
capacidade de sedução e a do concorrente, que só a concorrência permite e que os
acasos dela trouxeram a lume. Quanto mais o liberalismo penetra não só nas esferas
políticas e econômicas, mas também nas familiares e sociais, nas religiosas e
320 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
amistosas, e no trato geral entre as pessoas, quer dizer, quanto menos essas relações
estão predeterminadas e reguladas por normas históricas gerais e são abandonadas
aos equilíbrios instáveis e às conjunturas que variam de caso para caso, tanto mais
sua conformação depende de constantes concorrências. O resultado dependerá, por
sua vez, na maioria dos casos, dos diferentes graus de interesse, amor e esperança
que os concorrentes saibam suscitar em um ou em vários terceiros que estão no
centro dos movimentos concorrentes.
Tanto direta como indiretamente, o homem é o objeto mais precioso para o
próprio homem. Porque nele se acumulam as energias da natureza animal, que estão
nos animais que comemos ou que fazemos trabalhar para nós, assim como se
acumulam no reino vegetal, onde se armazenam as energias do sol, terra, água e ar.
O homem é o ente que resume o essencial do processo gradativo e progressivo das
mudanças e da seleção natural das espécies ao longo do tempo, e por isso é o mais
susceptível de aproveitamento. Assim, na medida em que cessa a escravidão, quer
dizer, o aproveitamento mecânico do homem, aumenta a necessidade de assumir o
controle espiritual dele. Dessa forma, a luta contra o homem, que supôs o intuito de
conquistá-lo e privá-lo de sua liberdade para submetê-lo à vontade de um senhor, foi
trocada por esse fenômeno complexo que é a concorrência, na qual o homem
enfrenta outro homem, pela conquista de um terceiro. Conquista que unicamente
pode conseguir-se pelos meios sociológicos da persuasão ou da convicção, pelo
aumento ou diminuição de uma oferta, pela sugestão ou a ameaça, em suma, pela
criação de um nexo espiritual, que (mesmo em caso de sucesso) se limita à criação
de um vínculo – que pode ser tão efêmero como aquele que se verifica comprando
em uma loja ou tão pleno de consequências como o casamento. À medida que
aumenta em nossa cultura a riqueza e intensidade em conteúdo da vida, é preciso
que a luta pelo bem de maior espessura intelectual e emocional, a alma humana,
ocupe um espaço maior aumentando e aprofundando consequentemente as ações
recíprocas que reúnem os homens e que constituem seus meios e objetivos.
Fica claro que o caráter sociológico dos círculos sociais se diferencia muito
segundo a quantidade e natureza das concorrências que eles permitam.
Evidentemente, esse é um aspecto do problema da correlação, a qual cada uma das
afirmações feitas até aqui fornece o seu contributo: existe uma relação entre a
Georg Simmel | 321
indiferença que não pode existir nas concorrências cujo resultado depende da
comparação dos esforços consentidos pelos participantes. Em compensação,
quando temos consciência de que a obtenção do prêmio independe da qualidade do
esforço realizado, ficamos diante da falta, do desapego e da objetivação do
sentimento que experimentamos pelo outro e por aquilo que ganhou quando
sabemos que o sucesso é fruto do merecimento, razão pela qual a inveja e a irritação
crescem então em terreno fértil. O eleito pela graça divina ou o jogador de Trente-et
Quarente 22 de sucesso não será odiado, mas sim invejado pelo perdedor, pois a
mútua independência dos esforços realizados por ele e o ganancioso deixa ambos
mais longínquos e indiferentes a priori um do outro que dos concorrentes em uma
luta econômica ou esportiva. Nesses casos justamente, o fato de que o fracasso será
merecido gera facilmente um ódio característico que tem por missão a transferência
de nossos próprios sentimentos de imperfeição sobre aquele que é a causa de tudo
isso.
Por conseguinte, a relação – de certo, muito frouxa – naqueles círculos cuja
comunidade está determinada por uma escolha gratuita de Deus, dos homens ou do
destino, é uma mistura específica de indiferença e inveja latente, que se atualiza
quando se produz a decisão, determinando no vencedor os sentimentos
correspondentes. Ainda que tais sentimentos se diferenciem muito dos estados e das
manifestações originados pela concorrência, possivelmente também existe em toda
concorrência genuína algo dessa relação gerada por probabilidades aleatórias
comuns, uma espécie de apelo das partes a um poder superior que decide por si
mesmo e não em função dos esforços realizados. Como a proporção de fatalismo é
muito variável, as relações de concorrência por ela geradas serão afetadas em graus
muito diversos até chegar ao tipo da escolha gratuita em que se tem eliminado por
completo o momento ativo de diferenciação que define a concorrência enquanto tal.
Pode-se assinalar, por fim, outra forma aparente de concorrência nos grupos
religiosos. Aquela que consiste na paixão ciosa por superar os outros na conquista
dos bens supremos, inclinação capaz de dominar completamente a conduta humana
22
Trente et Quarante, também chamado Rouge et Noir, é um jogo de cartas do século XVII de origem
francesa parecido com o Black Jack, jogado com seis jogos de cinquenta e duas cartas e uma mesa
especial. É ainda muito popular em cassinos da Europa Continental, especialmente na França, Itália e
Mônaco. (NT)
326 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
produção não é mais do que uma técnica para alcançar bens materiais como a
felicidade e a cultura, a justiça e a realização pessoal; e deve, por isso, ser substituída
pela livre concorrência sempre que esta pareça ser o meio mais apropriado para
consegui-los na prática. Esta não é uma questão apenas da alçada dos partidos
políticos. O problema de saber se a satisfação de uma necessidade ou a criação de
um valor deve confiar-se à concorrência de forças individuais ou à organização
racional, ao antagonismo ou à colaboração é uma questão de mil respostas parciais
e rudimentares, quer se trate de nacionalizações ou cartéis, de uma concorrência de
preços ou de jogos de crianças23. O mesmo problema aparece quando se quer saber
se a ciência e a religião dão um valor mais profundo à vida quando se articulam em
um sistema harmônico ou quando, ao contrário, cada uma delas trata de ser mais
convincente que a outra, no que tange às soluções que propõem aos enigmas da vida,
levando essa concorrência aos limites da tolerância. Questão que também é
importante para um diretor de grupos teatrais que deve decidir se é preferível para
conseguir o efeito dramático procurado deixar que cada ator afirme plenamente sua
individualidade e dar mais intensidade e vida ao conjunto graças à emulação de
esforços autônomos ou, pelo contrário, contar de antemão com uma visão de
conjunto a qual às individualidades terão que se adaptar. Questão que se reflete, por
fim, no interior de cada indivíduo quando, por vezes, sentimos que o conflito entre os
impulsos éticos e estéticos ou entre as escolhas intelectuais e instintivas determina
as decisões que mais autenticamente revelam nosso verdadeiro ser, ao passo que
em outras ocasiões permanecemos surdos às forças individuais contraditórias, a
menos que elas integrem um sistema de vida unitário, dirigido por uma única
tendência.
Não podemos compreender bem o socialismo, no sentido que habitualmente
outorgamos ao termo, como tendência política e econômica, se não admitimos
simultaneamente que se trata da elaboração absolutamente livre de uma técnica de
vida que abrange (tanto quanto o seu contrário, e sob formas mais ou menos
identificáveis e acabadas) todo o domínio problemático que apresenta o
entrosamento com uma pluralidade de elementos. Conhecido o caráter puramente
23
Provavelmente o autor se refere ao Landlord's Game, jogo criado em 1904, e que foi o precursor do
atual Banco Imobiliário, Monopólio ou Monopoly. (NT)
Georg Simmel | 329
porque os concorrentes não agem com dolo. Nenhum deles quer outra coisa que
obter a vitória graças a seus próprios esforços. E se isso se traduz na atribulação do
outro, trata-se apenas de uma questão secundária que não interessa ao vencedor,
ainda que não deixe de lastimá-lo. Ademais, falta à concorrência o elemento da
violência propriamente dita, já que derrota e vitória não passam de expressão
rigorosa e equitativa das forças concorrentes. O vencedor se expôs exatamente aos
mesmos riscos que o vencido, e este, em última análise, só pode atribuir o seu
fracasso à própria insuficiência.
Todavia, no que tange á ausência de dolo contra a pessoa prejudicada na
concorrência, é de toda justiça reconhecer que a similar carência desse elemento
subjetivo da culpabilidade não impede que a lei penal castigue como delitos uma boa
porção de comportamentos que, contudo, não têm sido produzidos por vingança,
perversidade ou crueldade. O falido que conserva e esconde uma parte de seu
patrimônio é responsabilizado porque prejudica os direitos de seus credores, mesmo
que pretenda apenas salvar determinado bem e se represente sua ação como uma
lamentável conditio sine qua non. O bêbado que percorre as ruas à noite aos brados,
provocando tumulto e desordem, é castigado por perturbar a paz e o sossego
públicos, ainda que só se propusesse extravasar sua alegria, sem sequer cogitar que
privava os outros do seu descanso. Então, o homem que arruína outros com seu
trabalho normal, simples e honesto deveria ser, pelo menos, acusado de negligência
culposa. Mas isso não é o que se passa na realidade, porque entra em jogo também
a igualdade de condições, o caráter voluntário de toda a ação e o sucesso da
concorrência que recompensa equitativamente as forças investidas. Eis aqui, porém,
argumentos que se poderia igualmente invocar para exculpar certos
comportamentos delituosos, como quase todas as formas de duelo. Quando em uma
luta, que ambas as partes aceitam voluntariamente e em iguais condições de
concorrência, um dos lutadores fica gravemente ferido, castigar o outro não parece
logicamente mais coerente do que punir a um comerciante que por meios leais
arruinou um colega. Se isto não se verifica deve-se, em parte, a razões técnico-
jurídicas, e principalmente a uma de caráter utilitário. A sociedade não pode
prescindir de determinadas vantagens da concorrência dos indivíduos, proveito que
transcende em muito as perdas causadas pela eliminação ocasional de alguns
334 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
indivíduos na luta concorrencial. Eis a razão evidente em que se funda o Código civil
francês sobre o qual se edificou o tratamento jurídico da concorrência desleal: tout
fait quelconque de l’homme qui cause à autri um dommage oblige celui par la faute
duquel Il est arrivé à le réparer 24 . A sociedade não toleraria que um indivíduo
prejudicasse outro na forma antes mencionada se o fizesse só em proveito próprio,
mas ela o tolera quando o prejuízo acontece como resultado de uma prestação
objetiva que tem valor para um número indeterminado de indivíduos. Do mesmo
modo, o Estado também não toleraria o duelo entre oficiais apenas por interesse
pessoal de um indivíduo que gostaria de matar o outro. Se ele consente esse tipo de
luta regrada, que tem por objetivo o desagravo da honra, e porque considera que o
conceito de honra reforça a coesão interna do corpo de oficiais – vantagem que
compensa para o Estado o sacrifício de um indivíduo.
É verdade que a legislação da França e da Alemanha limita desde algum tempo
os meios de concorrência em interesse dos próprios concorrentes. A intenção
fundamental que levou a tomar essas medidas foi a de proteger os comerciantes e
industriais isolados contra certas vantagens que seus concorrentes poderiam passar
a ter por meios moralmente repreensíveis. Assim, por exemplo, se proíbe toda
publicidade que, através de informações falsas, faça um comprador acreditar
erroneamente que determinado comerciante lhe oferece condições mais vantajosas
que os demais – mesmo quando daí não decorra engano efetivo do público. Também
não se permite iludir o comprador com a possibilidade de adquirir uma quantidade
de mercadoria que não se consegue em outras partes pelo mesmo preço – ainda que
a quantidade efetivamente vendida corresponda de fato à que é usual e o preço seja
o adequado. Por fim, se permite atualmente que um fabricante muito conhecido, com
uma grande clientela, impeça qualquer homônimo introduzir no mercado, com o
mesmo nome, um produto análogo ao seu se isso faz que o cliente acredite que se
trata do mesmo produto – não importa o quão melhor ou pior possa ser a mercadoria
oferecida em relação à primeira que levava o nome conhecido.
24
Em francês no texto da edição alemã de Simmel: “Todos os atos do homem que provoquem danos
a terceiros pelos quais tenha culpa obrigam-no a repará-los”. Trata-se do artigo 1240 do Código civil
francês. (NT)
Georg Simmel | 335
25
Trata-se do parágrafo 1 do artigo 263 do corpo de normas de 1871, que vigorava em tempos de
Simmel e que (com bastantes emendas) ainda o faz. (NT)
336 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
26
Este é, sem dúvida, um dos pontos em que se manifesta a relação da concorrência com os traços
mais marcantes da vida moderna. Antes do começo dos tempos modernos, o homem e sua missão
na vida, sua individualidade e o conteúdo objetivo de sua ação, pareciam mais solidários, mais
fundidos, de alguma maneira mais espontaneamente associados uns aos outros que posteriormente.
Durante as últimas décadas se têm desenvolvido com uma força e uma autonomia nunca vistas, por
uma parte, os interesses objetivos e a civilização material e, por outra, se tem aprofundado de um
modo inusitado também o eu, a pertença da alma individual a si mesma em face de todos os
preconceitos práticos e sociais. No homem moderno aparece perfeitamente diferenciada a
consciência das coisas da de seu próprio eu, e isto o torna a propósito para a forma de luta
representada pela concorrência. Dá-se nele a pura objetividade do procedimento, que deve sua
eficácia exclusivamente à coisa e a seus efeitos legais, com total indiferença da pessoa que está por
trás dela. Mas, ao próprio tempo, se tem também aqui a perfeita responsabilidade da pessoa, a
dependência do sucesso da energia individual, e isso porque as faculdades pessoais são medidas por
fatos impessoais. As tendências mais profundas da vida moderna, a objetiva e a pessoal, têm achado
na concorrência um de seus pontos coincidentes, no qual elas podem colaborar em uma prática
imediata, demonstrando que suas contradições são elementos complementares que constituem uma
unidade dentro da história das ideias. (NS)
Georg Simmel | 339
27
O autor se tem valido aqui metaforicamente do termo, proveniente da mecânica dos fluidos, “perda
dinâmica” (também conhecido como “perda da carga dinâmica”) que alude à perda de energia
dinâmica de um fluido devido à fricção das partículas do fluido entre si e contra as paredes da
tubulação que o contenha. (NT)
Georg Simmel | 341
caracteriza uma coalizão internacional enquanto tal é sua unidade como força
beligerante. Cada nação-membro pode conservar sua autonomia em todas as
demais questões, mas não nesta, se houver uma verdadeira aliança. De sorte que a
coalizão perfeita constituiria uma unidade absoluta em sua relação com as outras
nações – essencialmente em estado de guerra aberta ou latente –, permitindo que
seus membros conservem, contrariamente, plena independência em sua mútua
relação.
Tendo em conta a excepcional utilidade que uma organização unitária
representa em um conflito, acredita-se que cada parte deve ter o maior interesse em
que a parte contrária careça dessa unidade 28 . Todavia, podemos citar vários
exemplos do contrário. A forma centralizada de uma parte, motivada pela situação
conflituosa que ela atravessa, transcende esta situação e a leva amiúde a desejar que
o adversário que a enfrenta assuma também a referida forma. Nos conflitos entre
operários e patrões nas últimas décadas do século XIX esse fato tornou-se
particularmente evidente. Na Inglaterra, a Real Comissão do Trabalho29 declarava em
1894 que a sólida organização dos operários era favorável a os patrões do mesmo
ramo de atividade, bem como a dos patrões para os operários. Isso porque embora
seja verdade que as greves neste caso possam ser mais abrangentes e longas, em
compensação a organização é para ambas as partes mais favorável e menos
dispendiosa do que as frequentes negociações locais, as interrupções repetidas de
trabalho e os confrontos mesquinhos, inevitáveis e inacabáveis quando os
antagonistas não constituem conjuntos definidos e rigorosamente estruturados.
Exatamente da mesma maneira que uma guerra entre Estados modernos, por
destrutiva e onerosa que seja, oferece um balanço final mais favorável que os
incontáveis enfrentamentos e atritos dos períodos em que os governos estavam
menos centralizados.
Também na Alemanha os operários reconheceram que eles próprios estavam
interessados na existência de uma organização patronal forte e eficaz, justamente
28
Vide os estudos precedentes sobre o princípio divide et impera. (NS)
29
Trata-se da Royal Commission on Labour, que no mês de abril de 1891 foi encarregada na Inglaterra
de examinar em todo o território da Grã-Bretanha as relações entre patrões e operários, de estudar
especialmente as causas dos conflitos entre eles e de redigir um relatório sobre a possibilidade de que
a legislação interviesse com vista a remediar as anomalias detectadas. (NT)
342 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
para resolver os seus conflitos de interesse. Pois uma organização desse tipo pode
designar representantes com os quais os trabalhadores se sentem à mesa de
negociações com absoluta segurança, cientes de que as vantagens ali conseguidas
não serão negadas logo por patrões dissidentes. Se a organização unitária do
adversário se apresenta como um inconveniente para alguma das partes – pelo
simples fato de significar vantagem para a outra – ela é compensada pela disposição
de ambas as partes permitirem ao próprio conflito ser mais concentrado e fácil de
controlar, capaz de assegurar um acordo durável e verdadeiramente aproveitável por
todos os componentes do grupo. Em contrapartida, contra uma massa difusa de
adversários se conseguem, sem dúvida, frequentes vitórias parciais, ainda que muito
dificilmente se chega a ações realmente decisivas que ajudem a modelar as
correlações de poder resultantes. Esse caso ilustra categoricamente a conexão
fundamental entre a forma unitária e a ação conflituosa do grupo por mostrar como
a eficácia dessa conexão triunfa inclusive sobre a vantagem imediata de cada uma
das partes. Quanto à forma ideal objetiva da constituição mais conveniente para o
conflito, esta é a centrípeta por permitir alcançar o resultado concreto do confronto
pelo caminho mais seguro e mais breve. Tal teleologia, que paira acima das partes,
faz finalmente cada uma delas alcançar o que quer e consigue o resultado
aparentemente contraditório de converter a vantagem do adversário em proveito
próprio.
O sentido sociológico dessa formação será essencialmente diferente se o
grupo em seu conjunto se encontra confrontado a uma relação antagônica com um
poder exterior a ele (estreitando assim seus laços e acrescentando sua unidade na
consciência e ação); ou se cada elemento do grupo tem seu próprio adversário e a
cooperação se produz apenas porque o inimigo é o mesmo para todos. Nesse caso,
pode suceder que esses elementos nada tivessem a ver anteriormente uns com os
outros, ou que essa hostilidade comum tenha suscitado entre eles novas formações.
No primeiro caso será preciso ainda fazer uma distinção: o conflito ou a guerra de
um grupo pode, por uma parte, uni-lo por cima das discrepâncias e distanciamentos
individuais de seus membros; mas, por outra, deixa as divergências internas
assumirem clareza e determinação que antes não possuíam. Isso pode ser mais bem
observado em agrupamentos menores que ainda não atingiram o grau de objetivação
Georg Simmel | 343
enquanto isso fosse possível, mas expulsando-os de seu seio com uma energia única
quando intoleráveis.
Para semelhantes organizações, é de extrema importância conservar certa
elasticidade 30 da forma. Não para transigir ou se reconciliar com as forças
antagônicas, mas para opor-se precisamente a estas com a maior veemência e sem
perder nenhum elemento útil. A elasticidade não consiste em ir além dos seus
próprios limites. Os corpos elásticos têm limites tão claros como os rígidos. A
elasticidade caracteriza, por exemplo, as ordens monásticas, que permitem canalizar
impulsos místicos ou fanáticos (que surgem aqui como en todas as religiões) de
modo a que possam resultar inofensivos para a Igreja, integrando-se
incondicionalmente a ela. Ao contrário, no protestantismo, cuja intolerância
dogmática foi maior em certas épocas, esses impulsos conduziram frequentemente
a dissidências e rupturas da unidade. Certas formas de conduta específicas do sexo
feminino parecem referir-se ao mesmo motivo. Entre os variadíssimos elementos
que constituem o conjunto das relações entre os homens e as mulheres, se encontra
também uma hostilidade típica que jorra de duas fontes: da relativa fraqueza física
das mulheres, que as expõe constantemente à exploração econômica e pessoal e à
privação de direitos 31 ; e da atitude dos homens que têm reduzido as mulheres à
condição de objetos de sua apetência sexual, obrigando-as a ficar na defensiva
diante deles. Mesmo se este conflito, que perpassa a história interna e pessoal da
espécie humana, dificilmente conduza a uma coalizão imediata das mulheres contra
os homens, existe, todavia, uma forma supraindividual que serve de proteção às
mulheres contra aqueles dois perigos e que interessa consequentemente ao sexo
feminino, por assim dizer, in corpore. Esta forma é a moralidade, cuja essência
sociológica se caracterizou supra, e sobre a qual vamos regressar tendo em conta as
consequências que produz nesta esfera.
Uma personalidade forte sabe defender-se individualmente contra as
agressões. Em todo o caso, basta-lhe a proteção da lei. Em contrapartida, uma
30
Sobre a elasticidade das formas sociais em geral, vide o final do capítulo dedicado a
autopreservação. (NS)
31
Falamos aqui da relação em que se encontraram os dois sexos na maior parte da história conhecida,
sem responder à questão de saber se isto será invalidado no futuro pelo desenvolvimento dos direitos
e do poder das mulheres, ou se isto já se tem produzido, em parte. (NS)
Georg Simmel | 345
pessoa mais fraca estaria perdida apesar dessa proteção se, de alguma maneira, os
indivíduos mais fortes não se contivessem a si próprios, preferindo reprimir-se a
abusar de sua superioridade. O autocontrole é possível, em parte, graças à moral,
mas como a moral não tem outro braço secular que a consciência do próprio
indivíduo, é assaz incerta e precisa ser completada pela moralidade. Esta última não
tem a precisão da norma jurídica nem oferece tanta segurança, mas ela está
garantida apesar de tudo por um medo instintivo acompanhado de certas
consequências sensivelmente desagradáveis para aquele que infrinja as suas regras.
A moralidade é a verdadeira força do fraco, que não saberia se defender em um
conflito sem limites para o uso da força. Por isso sua característica é essencialmente
a da proibição, da limitação. A moralidade produz assim certa igualdade entre os
fortes e os fracos que inibe a tal ponto qualquer relação entre eles baseada nas
proporções naturais que até prefere o fraco, como o demonstra, por exemplo, o
espírito da Cavalaria medieval. No confronto latente entre os homens e as mulheres,
os primeiros são os agressores e os mais fortes e as mulheres são obrigadas a
procurar o amparo da moralidade e a converter-se em guardiãs dela. Naturalmente
isso as compromete a respeitar estritamente (em seu próprio interesse) o conjunto
de prescrições da moralidade, inclusive nos casos em que não se trata de abusos dos
homens. Todas as normas da moralidade têm entre si uma relação solidária, de
maneira que a violação de uma delas enfraquece o princípio e, consequentemente,
todas as outras. Por isso as mulheres são unânimes amiúde sobre este ponto: elas
constituem uma unidade real, que corresponde à unidade singularmente ideal em que
os homens as reúnem quando eles falam das “mulheres” e que, em geral, tem o
sentido de uma oposição de partidos. A solidariedade que os homens atribuem às
mulheres é, pois, a que expressa o velho ditado de Freidank32: “Cada homem responde
somente de suas vergonhas, mas se cai uma mulher, se censura a todas”.
Solidariedade de sexo que oferece uma base real ao interesse que as mulheres
sentem pela moralidade considerada como um meio de luta. Finalmente é por isso
que se repete aqui a fórmula sociológica que agora estamos a discutir.
32
O “Livre-pensador”, pseudônimo de um poeta social suábio de começos do século XIII autor de
máximas e de obras de sabedoria popular. (NT)
346 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
33
O autor alude as ingênuas e seduzidas Margarida e Stella, figuras centrais, respectivamente, do
Fausto de Goethe e de Stella di Napoli, a ópera de Pacini, e as contrapõe à cortesã de bom coração
protagonista da Dama das Camélias (Marguerite Gautier) de Alexandre Dumas Filho, e a Messalina, a
terceira esposa do imperador Cláudio, que acabou perpetuada na arte e na literatura até os tempos
modernos como sinônimo de mulher de costumes dissolutos. (NT)
Georg Simmel | 347
sua linha de fogo, o protestantismo perde sua energia ou sua unidade interior, até o
ponto de chegar a repetir internamente o conflito com o inimigo, dividindo-se em um
partido liberal e um partido ortodoxo. Foi exatamente o mesmo que se passou
repetidamente na história dos partidos estadunidenses, quando o recuo de um dos
dois grandes partidos teve por consequência direta a decomposição imediata do
outro em subgrupos divergentes entre si.
Como se pode inferir do exposto no ponto precedente, não parece ter sido boa
para a unidade do protestantismo a falta de verdadeiros hereges. Em contraposição,
a consciência unitária da Igreja católica se fortaleceu indubitavelmente diante da
heresia e da atitude hostil adotada relativamente a ela. Graças à implacável
repressão da heresia, os diversos elementos da Igreja foram capazes de se orientar
e de manter a sua unidade, não obstante os interesses em jogo que poderiam tê-los
dissociado. Por isso, a vitória total de um grupo sobre seus inimigos está longe de
ser sempre uma aragem de fortuna em sentido sociológico; isso porque reduz a
energia que garantia sua coesão, permitindo assim que as forças deletérias, sempre
em ação, ganhem terreno. A dissolução da Liga Latina 34 no século IV a.C. tem sido
explicada como consequência da vitória final sobre os inimigos comuns dos
coligados. Talvez, a base sobre a qual se fundou a dita aliança – a tolerância, de uma
parte, e a submissão, de outra – deixara de ser completamente natural desde muito
tempo atrás, mas isso não se pôs de manifesto até que faltou o inimigo comum
graças ao qual os aliados tinham passado por alto, até então, suas contradições
internas. Em alguns grupos seria uma prova de bom senso político procurar inimigos
a fim de que a unidade dos elementos aja como interesse vital.
O último exemplo nos leva a emprestar particular importância a o sentido
unificador do conflito sobre o qual gostaríamos de voltar e nos estender. Graças ao
34
A Liga Latina (aprox. século VII a.C.-338 a.C.) foi uma confederação de aproximadamente 30 aldeias
e tribos latinas próximas da antiga Roma organizada para assegurar sua mútua defesa. A República
Romana em seus primórdios, formou uma aliança com a Liga Latina em 493 a.C.. O poder de Roma,
cada vez maior, conduziu gradualmente ao seu domínio sobre a liga. A renovação do tratado original
em 358 a.C. estabeleceu formalmente a liderança de Roma, e acabou desencadeando a Guerra Latina
(343 -338 a.C.). Com essa guerra, latinos e volscos fizeram uma tentativa final de se livrarem do
domínio romano, mas, mais uma vez, os romanos se saíram vitoriosos. No tratado de paz
subsequente, Roma anexou algumas cidades inteiramente e outras permaneceram como cidades-
estados autônomas, mas a Liga Latina foi dissolvida. Finalmente, as cidades latinas sobreviventes
foram ligadas a Roma por diferentes tratados bilaterais. (NT)
Georg Simmel | 349
conflito, não somente uma unidade se condensa com mais energia (eliminando
radicalmente todos os elementos que poderiam contribuir a apagar a nitidez dos
próprios contornos que a separam do inimigo), mas também induz a reunirem-se
pessoas e grupos que sem o antagonismo nada teriam em comum. O vigor com que
o conflito age nesse sentido aparece com particular clareza no fato de que a conexão
entre a situação conflituosa e o processo de unificação é suficientemente forte para
agir também em sentido contrário. As associações psicológicas, no geral, revelam
sua força pelo fato de obrar também retrospectivamente. Assim, por exemplo, se nos
representamos uma pessoa associada ao conceito de herói (quer dizer, se temos
presente mentalmente a ideia ou o conceito que corresponde ao herói e a vinculamos
a imagem evocada de certa pessoa), o enlace entre ambas as representações
alcançará sua intimidade máxima quando não possamos nos representar o conceito
de herói em geral, sem que surja imediatamente em nós a imagem daquela pessoa.
Pois bem, a união com vistas à luta é um processo tão corriqueiro e habitual que a
mera associação de elementos (mesmo quando não se tem feito com objetivos
agressivos ou simplesmente conflitantes), basta, em ocasiões, para que outras
instâncias vejam nela um ato ameaçador e hostil. Abundam os exemplos históricos.
Como o despotismo do Estado moderno se dirigiu contra a ideia medieval de
agremiação, os governos acabaram por considerar toda associação de cidades e
estamentos sociais (cavaleiros ou quaisquer outros elementos da sociedade) como
uma rebelião ou a expressão de um conflito latente. Carlos Magno proibiu as guildas
de adotar a forma de associação juramentada e autorizou exclusivamente as
associações sem juramento de caráter solene e com fins caritativos. Como vemos, a
proibição se focava expressamente no juramento, ainda que os fins da agremiação
estivessem autorizados, porque se podia facilmente associar o compromisso solene
pronunciado em público e a invocação de um valor moral reconhecido às intenções
hostis ao Estado. Nessa ordem de ideias, a Constituição morava de 1628 dispunha
que “concluir pactos ou alianças com qualquer fim e contra quem quer que seja
corresponde exclusivamente ao rei”. O fato de que, às vezes, a instância dominante
favoreça ou mesmo crie associações, não prova nada em contrário, mas confirma
aquilo que sublinhamos precedentemente – e isso não só, como é evidente, quando
a associação atua contra um partido de oposição pré-existente, mas também no
350 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
35
O autor se refere às três vitórias militares envolvidas na estratégia de fundação do novo Império
Alemão sobre controle prussiano, a saber, a Guerra dos Ducados do Elba de 1864 contra a Dinamarca,
de modo a adquirir o Eslésvico-Hosácia; a Guerra Austro-prussiana de 1866 contra o Império
Austríaco, de maneira a alijar este último dos assuntos internos da Alemanha e a permitir a fundação
– sem a interferência e participação austríacas – da Confederação da Alemanha do Norte, precursora
direta do Império Alemão de 1871; e da Guerra Franco-prussiana de 1870 a 1871 contra a França, após
a qual a confederação foi transformada no império Alemão e o rei Guilherme da Prússia foi proclamado
cáiser da Alemanha unificada, com o título de Guilherme I – coroado na Galeria dos Espelhos do
castelo de Versalhes, após a derrota francesa em Sedan. (NT)
Georg Simmel | 351
o perigo persa. No outro tipo, a unidade é menos completa, mas também menos
efêmera. A agrupação se faz em torno a um conflito que é singular, menos pelo
momento que pelo conteúdo, e permite que as demais atividades dos elementos
coligados não entrem em contato. Assim, existe na Inglaterra desde 1873 uma
Federation of Associated Employers of Labour, fundada para combater a influência
das trade unions. Nessa ordem de ideias, alguns anos depois, também se constituiu,
nos Estados Unidos, uma associação de patrões sem ter em conta os diversos ramos
da atividade industrial, para enfrentar coletivamente os movimentos de greve dos
operários.
Naturalmente, aparece mais acentuado o caráter de ambos os tipos quando
os elementos da unidade conflitante são não somente indiferentes entre si, mas
também hostis em outros períodos ou em outras circunstâncias. O poder unificador
do conflito fica particularmente evidenciado quando produz um insulamento
associativo, temporal ou temático, em circunstâncias de concorrência ou
animosidade. A oposição entre o antagonismo habitual e a momentânea
solidariedade combativa pode agravar-se até o ponto de que, para as partes,
justamente sua inimizade absoluta seja a causa de sua coalizão. No Parlamento
inglês, a oposição surgiu às vezes porque os ultrarradicais do partido ministerial que
não se sentiam satisfeitos com atuação do governo se uniam com os adversários de
princípio do partido governante para formar um grupo unido por sua comum
animosidade contra o gabinete. Assim, contra Robert Walpole se uniram os whigs
extremistas, dirigidos por William Pulteney, com os tories. Nesse caso, justamente o
radicalismo do princípio whig, que se alimentava da hostilidade contra os tories, foi o
que amalgamou seus adeptos com seus inimigos naturais. Se não tivessem sido tão
radicalmente opostos aos tories, os ultras não se teriam unido a estes para provocar
a queda do gabinete whig que não era suficientemente whig para eles.
Esse caso é tão surpreendente porque nele se vê como o adversário comum
une inimigos habituais que concordam em acreditar, cada um por seu lado, estar
perto demais do outro bando. Finalmente, o caso só tem de extraordinária a clareza
com que exemplifica uma experiência banal: nem os ódios mais tenazes impedem as
alianças sempre que visem um inimigo comum. Isso acontece especialmente quando
as duas partes coligadas – ou uma delas ao menos – perseguem objetivos muito
Georg Simmel | 353
(ou em algum outro círculo social), junto a outras pessoas de modos grosseiros e
vulgares. Sem que se tenha chegado a tentar algum ato concreto, sem que tenha
havido a menor troca de palavras ou de olhares, as primeiras têm o sentimento de
formar um partido, unidas estreitamente pela aversão comum ao plebeísmo
agressivo das outras – na sua opinião, pelo menos. Tal sentimento comum, que é
extremamente passageiro e sutil, mas ao mesmo tempo absolutamente desprovido
de ambiguidade, representa o último nível na hierarquia dessas associações em que
elementos inteiramente estranhos se sentem unidos pela comunidade de
antagonismo.
Quando não se pode medir a força associativa de uma oposição comum pelo
número de interesses coincidentes, mas pela duração e intensidade da associação,
a ameaça constante de um inimigo pode ser muito mais favorável à união que uma
luta atual. Diz-se a respeito do primeiro período da Liga Aqueia, por volta do ano 270
a.C., que Acaia encontrava-se rodeada de inimigos que, naquele momento estavam
demasiado ocupados para pensar em atacá-la. Pois bem, um período de perigo como
esse, sempre ameaçador, mas constantemente procrastinado foi especialmente
favorável para reforçar o sentimento de unidade dos aqueus. Eis um caso particular
de uma espécie muito curiosa: certa distância entre os elementos que devem
associar-se, de uma parte, e o interesse coincidente que lhes associa, por outra, é
uma situação particularmente propícia à coalizão dos elementos, em especial
quando se trata de círculos extensos. Isso também se aplica às relações religiosas.
Comparado com as divindades tribais ou nacionais, o Deus universal do cristianismo
está a uma infinita distância dos fieis, não tem nenhuma feição que possa aproximá-
lo à natureza individual de um povo ou nação. Em compensação, pôde reunir os
povos e as pessoas mais heterogêneas em uma comunidade religiosa incomparável.
Do mesmo modo podemos interpretar o fato de que as vestes indiquem
sempre a pertença a determinados estratos sociais, e de que amiúde parecem
cumprir melhor esta função social quando vêm do exterior. Vestir-se à moda de Paris
significa em outros países que se faz parte de uma camada social distinta, restrita e
exclusiva. Já o profeta Sofonias estigmatizava os poderosos e “os que se vestem
Georg Simmel | 355
36
Cf. Sf, 1,8. (NT)
356 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
próprio, a imagem unitária que nos formamos desta sequência raramente reproduz o
equilíbrio objetivo e o nível constante sobre o qual os elementos se sucedem um ao
outro. Pelo contrário, é quase inevitável que emprestemos à alternância um caráter
teleológico, de maneira que um dos elementos aparece sempre como o ponto de
partida, como o objetivamente original a partir do qual o outro surge, ao passo que a
nova passagem deste outro ao anterior se nos afigura um retrocesso. Assim, por
exemplo, ainda que assumamos que a evolução do universo consiste em uma eterna
alternância entre a regularidade qualitativa de quantidades de matéria concentrada e
a dispersão diferenciada dessas mesmas quantidades de matéria, e estejamos
convictos de que cada uma delas, por sua vez, procede sempre da outra e
inversamente, o funcionamento de nossas categorias intelectuais é tal que, apesar
disso, sempre consideramos o estado de indiferenciação como o estado original.
Quer dizer, nossa necessidade de explicação nos leva a deduzir a diversidade da
unidade antes do que o contrário, ainda que, objetivamente, acaso fosse mais exato
não considerar nenhuma delas como a primeira, e aceitar um ritmo infinito que não
permite determos-nos em nenhum estado calculado por antecedência, senão
deduzi-lo de outro precedente e oposto.
Isso também sucede com os princípios do movimento e do repouso. Ainda que
estes princípios se alternem infinitamente, tanto no conjunto como nas séries
particulares, temos a tendência de ver o estado de repouso como o original, o
primitivo que não requer ser deduzido de outro princípio. Quando consideramos um
par de períodos, sempre nos parece que um deles explica o outro, a tal ponto que
unicamente quando os temos colocado nessa relação, acreditamos compreender o
sentido da alternância. Não nos conformamos em ver simplesmente o fenômeno de
sucessão, sem que nenhum desses períodos seja designado como primário ou
secundário. Pois o homem é um ente excessivamente inclinado a fazer distinções e
valorações e a procurar finalidades para deixar de dar ênfase ou especial destaque a
certos momentos no fluxo ininterrupto dos períodos, interpretando-os segundo as
formas do domínio e da servidão, da preparação e do cumprimento, ou do transitório
e do definitivo.
O mesmo acontece com a guerra e a paz. Ambos os estados se oferecem tão
confundidos nos fatos sucessivos ou simultâneos da vida social que, em toda paz
358 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
elaboram-se as condições para a guerra futura e em toda guerra as da paz que virá.
Se refizermos em sentido contrário as séries da evolução social, veremos que não é
possível nos deter em nenhum ponto, pois, na realidade histórica, os dois estados
podem ser explicados sempre um pelo outro. Todavia, intuitivamente, nós
introduzimos uma distinção entre os elos da série: a guerra se nos afigura o elemento
provisório cuja finalidade não é outra que a paz e seus conteúdos. Enquanto
objetivamente, o ritmo desses elementos segue inteiramente um mesmo nível, com
valores iguais, nosso sentimento valorativo os converte, por assim dizer, em períodos
iâmbicos37, nos quais a guerra é a tésis38 e a paz é a ársis39. Assim no mais antigo
sistema político de Roma, o rei tinha que solicitar o consentimento dos cidadãos
antes de engajar-se em uma guerra, mas quando se tratava de negociar e fazer a paz
não tinha necessidade desse acordo – considerado um dado adquirido.
Isso já dá uma indicação de que a passagem da guerra para a paz representa
um problema mais sério do que o inverso. Este último caso não merece ser objeto de
uma análise aprofundada, pois as situações que dentro de um estado de paz podem
dar lugar a uma guerra declarada são já uma forma difusa, talvez imperceptível, ou
latente, de guerra. Assim, por exemplo, antes da Guerra de Secessão estadunidense,
a próspera situação econômica dos Estados norte-americanos do Sul – decorrente
da escravidão – era o fundamento real dessa guerra, mas enquanto essa situação
não produziu um enfrentamento antagônico com os Estados do Norte, desde que, por
enquanto, não se tratava mais do que da expressão concreta e empírica da realidade
de uma ou outra região, tal conjuntura se situava além da questão específica da
guerra e da paz. Porém, a partir do momento em que apareceu o estado de espírito
que devia conduzir à guerra, ele era em si mesmo uma acumulação de antagonismos
e conflitos recorrentes, animosidades e preconceitos, controvérsias de natureza
política na imprensa, episódios de tensão entre particulares, escaramuças nas
fronteiras e mútuas suspeitas morais até em temas alheios ao cerne do litígio. Por
conseguinte, o término da paz não está definido por nenhuma situação sociológica
37
Relativo ao iambo, sistema de versificação greco-latino que se compõe de uma unidade de tempo
breve seguida de outra longa. (NT)
38
Na versificação greco-latina a parte de uma sílaba breve não marcada pelo acento métrico (NT)
39
Na versificação greco-latina, a parte de uma sílaba longa marcada pelo acento métrico. (NT)
Georg Simmel | 359
Todavia, o desejo de paz tem outros motivos indiretos que é preciso distinguir
dos precedentes. Por um lado, o esgotamento das forças, capaz de simplesmente
acrescentar a necessidade de paz ao desejo de lutar, que resta constante; por outro
lado, a preterição do interesse no conflito em prol de um objeto superior. Este último
caso engendra hipocrisias morais de todo o tipo e numerosas mentiras a si mesmo:
se acredita ou se está a fazer de conta que se crê renunciar a guerra pelo interesse
ideal da paz, quando, em realidade, a única coisa que aconteceu foi a perda do
interesse pelo objeto do conflito e a preservação das energias para aplicá-las em
outras ações.
Nas relações profundamente arraigadas, o conflito termina quando, o que
poderíamos denominar de corrente de fundo, que o orientava em certa direção,
impedida de desviar-se, reaparece na superfície e acalma a violência das correntezas
contrárias que a agitavam. Em compensação, quando é a desaparição do objeto do
conflito a que põe fim às hostilidades, se veem aparecer nuances absolutamente
originais. Todo conflito que não é de natureza plenamente impessoal mobiliza as
forças individuais disponíveis e atua como um ponto de cristalização em torno do
qual se ordenam aquelas forças a uma maior ou menor distância – reproduzindo no
psiquismo a disposição formal das tropas principais e dos corpos auxiliares –,
outorgando ao conjunto complexo da pessoa, assim que ela entra em luta, uma
estrutura singular. Quando o conflito termina de uma das maneiras habituais
– vitória e derrota, reconciliação ou compromisso –, essa estrutura psíquica se
transforma em estrutura de paz, e o ponto central comunica às demais energias
implicadas a transformação nele operada com a passagem da excitação ao
apaziguamento. Todavia, amiúde, em lugar desse processo orgânico (ainda que
infinitamente variável) de extinção interna e progressiva do movimento conflituoso,
aparece (sobretudo quando o objeto do conflito desaparece subitamente) outro
processo completamente irracional e turbulento, em virtude do qual as hostilidades
parecem ainda continuar no vazio. Porque nosso sentimento talvez seja mais
conservador do que nossa inteligência, de modo que a excitação da agressividade
não se acalma nunca no mesmo instante em que nossa razão reconhece ter
desaparecido a causa da contenda. Sempre se produzem confusão e danos quando
os movimentos da alma, suscitados por um motivo qualquer, se veem bruscamente
Georg Simmel | 361
o espírito de luta ainda vivo. O sentimento de que é mais distinto entregar-se que
acalentar até o último momento quaisquer ilusões de que venha a haver uma
inverosímel mudança do destino, pode inspirar ainda mais a mesma decisão.
Suprimir essa possibilidade, e evitar a todo o custo que o adversário demonstre a
nossa derrota inevitável tem algo do velho estilo nobre e grande dos homens
conscientes, não apenas da sua própria força, mas também da sua fraqueza, sem ter
necessidade de se certificar dessa realidade de modo concreto. Finalmente, através
dessa forma de se reconhecer livremente vencido, o sujeito prova uma última vez seu
poder: mesmo quando derrotado pôde fazer seu último ato positivo e conceder algo
ao vencedor. Por isso, nos conflitos pessoais pode ser visto às vezes que a renúncia
de uma das partes, antes que a outra tenha triunfado plenamente, é sentida pelo
vencedor como uma espécie de ofensa – como se em realidade ele fosse o mais
fraco, a quem se considera com transigência por alguma razão, sem qualquer
constrangimento40.
Entre os meios de acabar um conflito, o compromisso é o perfeito reverso da
vitória. Precisamente, um dos critérios para classificar os conflitos consiste em saber
se eles, por sua natureza, são ou não suscetíveis de compromisso. Porém, isso não
depende unicamente de que o que está em causa nessa luta seja uma unidade
indivisível ou possa ser separado criteriosamente em diversas partes. Diante de
certos objetos não se pode falar de compromisso por repartição: não há conciliação
aceitável entre rivais que se disputam o amor de uma terceira pessoa; entre dois
compradores potenciais de um único e mesmo objeto de compartilhamento
impossível; assim como nos confrontos originados pelo ódio ou a vingança. No
entanto, chega-se a um compromisso em certas lutas que têm por objeto alguma
coisa indivisível desejada também por outrem, se esse objeto pode ser substituído.
40
Isso pertence à esfera de relações onde todo favor para com os outros é sentido como uma ameaça.
Há gestos de amabilidade reputados como ofensa, presentes que humilham, manifestações de
condolência consideradas insolentes familiaridades ou que agravam os sofrimentos da vítima e
dádivas que motivam uma gratidão forçada ou criam uma relação mais intolerável que a privação que
suprimem. Se esses conjuntos sociológicos são possíveis é porque frequentemente existe um
profundo hiato entre o conteúdo objetivamente expresso de uma situação, por uma parte, e sua
realização individual, por outra, percebida como um simples elemento de uma vida bastante complexa.
Nessa fórmula estão incluídos dilemas como os de saber se deve tratar-se a doença ou o doente, se
tem que ser punido o delito ou o delinquente, ou se a missão do mestre é transmitir um conteúdo de
ensino ou formar o aluno. Assim muitas coisas são objetivamente benéficas segundo seu conteúdo
conceitual, enquanto as consideradas como realidades individuais podem ser o contrário. (NS)
Georg Simmel | 363
Em tal caso, ainda que seja atribuído a um único indivíduo daqueles que o almejam,
a disputa termina se o favorecido indeniza a condescendência do outro com um valor
consequente e aceito. Pois que o caráter fungível41 dos bens não depende de alguma
igualdade objetiva de valor entre eles, mas da disposição das partes a terminar com
o antagonismo, transigir e compensar. Essa possibilidade se move entre dois casos
extremos: aquele da teimosia absoluta que rejeita a compensação mais racional e
generosa (que em outras circunstâncias teria convencido qualquer um a renunciar
de bom grado ao objeto disputado) pela mera razão de que é o adversário quem a
propõe, até outros casos em que essa parte que parecia tão atraída pelo caráter
individual do que estava em jogo, abandona-o com agrado em troca de um objeto
cuja capacidade para substituir o primeiro resulta amiúde incompreensível.
No conjunto, o compromisso, em especial o produzido pela fungibilidade,
ainda que para nós seja uma técnica da vida cotidiana e natural, constitui uma das
maiores invenções da humanidade. O impulso do homem primitivo, como o da
criança, é apoderar-se pura e simplesmente de todo objeto que lhe agrada, sem se
perguntar sequer se ele já não é de outras pessoas. Junto com a dádiva, o roubo é a
forma mais natural da troca de posses. Por isso, ela se produz raramente sem luta
nas sociedades arcaicas. Perceber que isso pode ser evitado oferecendo ao
possuidor do objeto cobiçado outro que nos pertence (diminuindo assim as despesas
e esforços totais que teríamos se prosseguíssemos ou começássemos um conflito)
é o princípio de toda economia civilizada e de todo comércio superior. Toda troca de
coisas é um compromisso. (Eis aqui o que constitui a miséria das coisas face ao
puramente espiritual: a troca de coisas representa sempre alguma privação ou
renúncia, enquanto o amor e todos os dons da alma podem trocar-se sem que seja
necessário compensar o enriquecimento de um lado com o empobrecimento do
outro). Quando se afirma que certas categorias sociais consideravam cavalheiresco
roubar e lutar pelo espólio, enquanto que comprar e trocar era reputado indigno e vil,
temos que atribuí-lo ao caráter de compromisso da troca, da concessão e da
renúncia, que faz delas o polo oposto do combate e da vitória. Toda troca pressupõe
que as valorações e os interesses adotam um caráter objetivo. O decisivo não é já a
41
São fungíveis os bens móveis substituíveis por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
(NT)
364 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
conflito, ou que subsista algum tipo de desavença irredutível, pois a simples ruptura
é suficiente. Ademais, no caso de relações íntimas que chegaram um dia a uma
separação completa, ver que as partes conseguem viver uma sem a outra contribui
frequentemente para este resultado. A vida continua, ainda que, por vezes, pode não
ser muito sorridente. Tudo isso não só desvaloriza a relação, mas (depois de
restabelecida a unidade) a transforma em algo que facilmente o indivíduo assumirá
como um tipo de traição e infidelidade da que já não pode remir-se, ou incorpora à
relação renovada desânimo e desconfiança nos próprios sentimentos.
É verdade que com frequência nos enganamos a esse repeito. A relativa e
surpreendente facilidade com que às vezes se suporta a ruptura de uma relação
íntima provém de conservar dentro de nós um pouco da emoção provocada pela
catástrofe. Esta última reanima em nós todas as energias possíveis, cujo impulso nos
ajuda e sustenta durante algum tempo e permite nos manter de pé. Mas, assim como
a morte de um ente querido não exibe todo seu horror ás primeiras horas (porque
apenas o tempo permite relembrar todas as situações nas quais ele agia, e que logo
nos parecerão carecer de sentido sem sua presença), assim também uma relação
próxima e valiosa não se desfaz nos primeiros e cruciais momentos da separação,
em razão de nossa imaginação estar ocupada com os motivos da ruptura. Também
aqui nós não conseguimos descortinar a perda de todas as horas que ao amargo
sabor das circunstâncias, e por esta razão não raras vezes é só muito mais adiante
que nossa sensibilidade (que inicialmente parecia suportar a ausência com certa
indiferença) reage verdadeiramente a ela. Da mesma maneira e por essa razão a
reconciliação de algumas relações é mais profunda e apaixonada quanto mais tempo
dura a ruptura. De maneira geral, isso torna compreensível que o tempo da
reconciliação, do “esquecer e perdoar”, tenha a maior importância para o
desenvolvimento estrutural posterior, pois o conflito só se considerará realmente
acabado quando as energias latentes tenham encontrado alguma forma de
atualização. É apenas em estados declarados ou ao menos conscientes, que o
espírito de luta fica verdadeiramente penetrado pelas tendências à reconciliação.
Assim como não se deve aprender muito depressa para que fique o que se aprende,
também não se deve esquecer com demasiada rapidez para que o esquecimento
adquira toda sua significação sociológica.
Georg Simmel | 367
De um lado, a relação real cria as condições que fazem com que a representação de
um pelo outro tenha este ou aquele aspecto e possua uma verdade legítima para este
caso preciso. Mas, de outro lado, a ação recíproca real dos indivíduos se funda na
imagem que cada um deles forja do outro. Estamos aqui perante um dos processos
circulares mais profundos da vida espiritual: um elemento pressupõe um segundo,
mas este, por sua parte, pressupõe o primeiro. Em caso de tratar-se de esferas
restritas, constitui-se um círculo vicioso que anula todo o conjunto, porém, em
esferas mais gerais e fundamentais representa a inevitável expressão da unidade na
qual convergem esses dois elementos; unidade que nossas formas de pensamento
só podem compreender fundando simultaneamente o primeiro elemento sobre o
segundo, e o segundo sobre o primeiro. Assim, nossas relações desenvolvem-se
sobre a base de um saber recíproco, o qual se funda, por sua vez, sobre a relação de
fato. Ambos os elementos aparecem indissoluvelmente unidos, revelando, por sua
alternância dentro da ação recíproca sociológica, que estamos diante de um dos
pontos em que o ser e a representação tornam a sua misteriosa unidade
empiricamente perceptível.
Nosso conhecimento sobre o conjunto da existência em que se funda nossa
atividade está determinado por limitações e distorções singulares. Naturalmente, não
se pode aceitar em princípio que “apenas o erro é a vida, e o saber, a morte”, porque
um ente mergulhado constantemente no engano procederia sempre em desacordo
com a realidade observada e, por conseguinte, pereceria. Todavia, se fizéssemos
ideia do quanto a nossa adaptação às nossas necessidades é deficiente e aleatória,
não há dúvida de que perceberíamos verdade suficiente dentro de nós, mas também
bastante ignorância, o que pressupõe assumir bastantes erros, quimeras e equívocos
para permitir a nossa ação prática: desde as grandes ideias que transformam a vida
da humanidade, mas que são praticamente inexistentes ou negligenciadas diante de
um estado geral da cultura que as torna inúteis e impossíveis, até a “mentira vital” 1
do indivíduo que tão frequentemente precisa acalentar quaisquer ilusões acerca de
seu poder e seu sentir para achar-se dono de si e realizado. Sob essa perspectiva
1
A expressão "mentira vital" o autor a pegou emprestada do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, um
de cujos personagens (o Dr. Relling de O Pato Selvagem) afirma que todo homem diz a si mesmo
– mesmo sem perceber – este tipo de mentiras estimulantes sobre sua própria pessoa para que sua
vida faça assim algum sentido. (NT)
374 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
impossível estruturar a vida moderna – que é uma “economia de crédito” bem para
além do sentido estritamente econômico do termo. Essa relação entre as épocas
pode ser transposta para outro tipo de distâncias. Quanto mais longe do centro de
nossa personalidade se encontrem certas terceiras pessoas, tanto mais fácil será
aceitarmos prática e interiormente sua mendacidade. Mas, quando as poucas
pessoas mais próximas nos enganam, a vida se torna insuportável. Se nos parece
necessário sublinhar sociologicamente este truísmo, é porque ele demonstra que as
proporções de veracidade e mentira compatíveis com a existência de relações
humanas tomam a forma de uma escala na qual se pode ler o grau de intensidade
dessas relações.
Todavia, além dessa relativa tolerância sociológica que as sociedades
arcaicas estavam a sentir pela mentira, podemos falar também de uma finalidade
assertiva desta. A primeira organização, hierarquização ou centralização de um
grupo se produz no geral pela submissão dos mais fracos aos física e
intelectualmente mais fortes. A mentira que consiga impor-se, quer dizer, que não
seja descoberta, se converte, sem dúvida, num instrumento para se aproveitar de
certa superioridade intelectual voltada à direção e submissão dos menos avisados.
É o direito do mais forte na esfera intelectual, tão brutal, mas não menos apropriado
na ocasião, que aquele exercido na esfera física como método de seleção com vista
a reproduzir a inteligência, ou a fim de alguns que não trabalham com as mãos
procurar o ócio necessário para produzir bens culturais, ou ainda para determinar
quem chefiará as forças do grupo. Contudo, à medida que estes objetivos possam
ser atingidos através de meios que não originem efeitos secundários tão indesejáveis
é lícito esperar que a mentira tornar-se-á menos necessária e haverá tanto mais
espaço para a consciência da sua imoralidade. Este processo ainda não está
acabado, longe disso. O comércio a retalho acredita até hoje que não consegue deixar
de gabar falsamente as qualidades de suas mercadorias e, por conseguinte, exagera
com sua consciência tranquila. Em compensação, os comerciantes atacadistas, e
mesmo os varejistas de grandes armazéns, ultrapassaram já esse estágio e podem
oferecer seus produtos com toda a honestidade. Quando os pequenos e médios
comerciantes aperfeiçoem também suas práticas profissionais, as demasias e
inverdades flagrantes nos reclamos e anúncios, que agora não se levam a mal de
378 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
fato, sofrerão a mesma condenação moral que hoje merecem nas esferas onde são
efetivamente desnecessárias. Num grupo, as relações fundadas na veracidade serão
no geral tanto mais adequadas quanto mais tenham por norma o bem de muitos e
não de uns poucos. Pois os iludidos, quer dizer, aqueles a quem a mentira lesa,
sempre serão mais numerosos do que os mentirosos que lucram com o engano. Por
isso a “informação” que pretende suprimir as falsidades, tem um caráter
marcadamente democrático.
Normalmente, as relações dos homens se fundam no fato de que seus
respectivos universos de representações possuem certos elementos comuns, e em
que determinados conteúdos espirituais objetivos constituem o material que aquelas
relações transformarão em vida subjetiva – a exemplo do que sucede com a
linguagem compartilhada, instrumento fundamental disso. Todavia, se olhamos para
as coisas mais de perto, veremos que o fundamento aqui mencionado não está
constituído apenas pelo que reciprocamente sabem estes homens uns sobre os
outros, ou pelo que alguns deles sabem que integra o conteúdo espiritual dos outros,
mas também (e de maneira muito especial) pelo que só alguns destes homens sabem
e é ignorado pelos outros. Por acréscimo, essa ressalva tem mais importância
assertiva que aquela outra já citada, que resulta da oposição entre a realidade ilógica
e casual do processo das representações e a seleção que nós realizamos da dita
sequência, de maneira lógica e teleológica, para ser comunicada aos demais. A
dualidade da natureza humana (ao abrigo da qual cada uma das expressões
exteriores do homem surge de várias fontes, e faz com que cada medida seja
percebida simultaneamente como grande ou pequena dependendo do tamanho
daquela a qual ela é comparada) dá como resultado que as relações sociológicas
também se encontrem determinadas de um modo ambivalente. Assim, a fim de
produzir a verdadeira configuração da sociedade é preciso que a concórdia, a
harmonia e a cooperação (que são consideradas as forças favoráveis por excelência
à criação de relações de interdependência e ao estabelecimento de contatos e
interações sociais de reciprocidade), sejam contrabalançadas pela distância, pela
concorrência e pela repulsão. As formas organizativas fixas (que parecem constituir
a sociedade enquanto tal) devem ser constantemente perturbadas, desequilibradas,
desgastadas pela ação de forças individualistas irregulares, de forma que
Georg Simmel | 379
2
Existe outro tipo de confiança que, por não referir-se ao saber ou a ignorância, só entra
tangencialmente na presente questão. Referimo-nos àquele que se designa com o nome de fé, de um
homem em outro, e que entra na categoria da crença religiosa. Assim como ninguém acredita em Deus
pelas “provas de sua existência”, pois estas provas apenas são a justificação posterior ou o reflexo
intelectual de uma atitude imediata da alma, também se “acredita” num homem, sem que esta fé esteja
justificada por provas que demonstrem que é digno dela, mas frequentemente, apesar das provas, de
sua indignidade. A confiança, esta entrega sem escrúpulos a uma pessoa, não se funda em
experiências ou em hipóteses, mas trata-se de uma atitude primária da alma relativamente à outra.
Este estado de fé provavelmente só aparece em sua forma completamente pura e livre de toda
consideração empírica dentro da religião; pelo que, em se tratando apenas de pessoas, necessitará
sem dúvidas sempre ser suscitada ou confirmada por pelo saber ou pela hipótese que temos
mencionado precedentemente. Enquanto, por outro lado, essas formas sociais da confiança, por
exatas e intelectualmente fundadas que elas possam parecer, comportam sempre um pouco dessa
“fé” sentimental, se não mística, do homem no homem. Talvez estejamos aqui em face de uma
categoria fundamental do comportamento humano que decorre do sentido metafísico de nossas
relações e que as causas conscientes e singulares da confiança só realizam de maneira empírica,
aleatória e fragmentária. (NS)
Georg Simmel | 381
pessoais influenciam nos interesses comuns, os indivíduos logo descobrem que não
podem dar-se ao luxo de fechar-se tão fortemente em si mesmos.
A par das associações para fins determinados e das próprias relações
arraigadas na personalidade, existe uma relação que tem um caráter sociológico
muito peculiar. Estamos a referir-nos ao que hoje, nas camadas superiores
cultivadas, se chama simplesmente de travar conhecimento. Neste sentido, se
“conhecer” não quer dizer, em nenhuma circunstância, que cada um dos
participantes desse processo se conheça mutuamente, isto é, que tenha penetrado
no que cada pessoa tem de verdadeiramente individual. Significa apenas que cada
um dos “conhecidos” tem notícia da existência do outro. A provar isso temos o fato
de que para travar conhecimento, é suficiente dizer o próprio nome, basta
“apresentar-se”. O que define este conceito de travar conhecimento é que uma
pessoa exista e não o que ela possa ser. Quando se diz que se “conhece” uma
determinada pessoa, mesmo que se diga conhecê-la “bem” ou “bastante”, de fato se
indica a falta de relações íntimas com ela. Nesse sentido, o que sabemos dos outros,
quando “travamos conhecimento” com eles, é unicamente o externo: seja no sentido
de “pura representação social”, seja no sentido de “apenas aquilo que os outros
estiverem a fim de nos mostrar”. O grau de conhecimento que supõe esta maneira de
“se-conhecer-bem” não se refere ao que o outro é “em si”, no seu foro íntimo, mas no
que é conforme a imagem que deseja oferecer a outrem e ao mundo. Por isso o
“conhecimento” neste sentido do trato social é o lugar adequado da “discrição”. Esta
última não consiste somente em respeitar o segredo do outro, sua vontade concreta
de nos ocultar alguma coisa bem definida, mas em evitar conhecer do outro o que ele
assertivamente não nos revele. Não se trata, pois, em princípio, de que não devamos
saber algo determinado, mas da reserva geral que nos impomos relativamente à
pessoa inteira. É uma forma particular da oposição típica dos imperativos: “tudo o
que não está proibido está permitido” e “tudo o que não está permitido está proibido”.
É assim que as relações entre os homens destrinçam a questão do saber recíproco
que possam possuir uns dos outros: o que não se oculta pode saber-se, e o que não
se revela, não deve saber-se. Esta última proposição corresponde a um sentimento
generalizado: aquele no qual em torno de todo ente humano existe uma sorte de
esfera ideal, cuja dimensão pode variar segundo as diversas direções e as distintas
Georg Simmel | 383
pessoas às quais ele se dirige. Esfera na qual ninguém pode penetrar sem destruir o
sentimento que o indivíduo tem de seu valor pessoal. A honra traça uma dessas
fronteiras em torno do homem. Com muita sutileza a língua alemã designa a afronta
como o fato de “acercar-se demais” (zu nahe treten). O raio dessa esfera ideal de
alguma maneira indica a distância que não pode transpor uma pessoa estranha sem
menosprezar a honra alheia. A uma esfera análoga alude o que se chama de
“importância” de uma personalidade. Perante “um homem importante” existe uma
obrigação internalizada de guardar a distância. Dever que não desaparece depressa,
mesmo numa relação íntima, e que só deixa de existir para aquele que não sabe
perceber o que é importante. Por isso essa esfera não existe para o “camareiro” que,
como presta serviços relativos aos cuidados pessoais de seu patrão, não saberá
reconhecer nele um “grande homem”, mesmo que o fosse. Mas isto se deve à própria
natureza do “camareiro” e não à do “grande homem”. É pelo mesmo motivo que todas
as familiaridades excessivas estão vinculadas a uma notória carência de
sensibilidade para as diferenças de importância entre as pessoas. Quem se comporta
familiarmente com uma pessoa importante, não revela muito apreço por ela nem a
valoriza demais – como superficialmente se poderia pensar –, mas demonstra, pelo
contrário, que não lhe professa genuína consideração. Assim como os pintores
sublinham frequentemente, em um quadro de muitas figuras, a importância de uma
delas dispondo em seu redor as outras a certa distância, também a metáfora
sociológica da importância é a distância, pois que mantém ao resto fora de
determinada esfera, preenchida pela personalidade com seu poder, sua vontade e sua
grandeza.
Outra esfera análoga, ainda que de outro valor, envolve exteriormente o
homem. Penetrar nessa esfera, preenchida por suas preocupações e qualidades
personalíssimas, para tomar conhecimento delas. supõe uma sorte de violação de
sua pessoa. Se considerarmos que a propriedade material é uma extensão do eu e
por isso toda irrupção em nosso patrimônio é sentida como uma violação da pessoa
– pois a propriedade é justamente o que obedece à vontade do proprietário, como o
corpo que, com uma simples diferença de grau, e nosso “bem” primeiro –, assim
também existe uma propriedade espiritual privada, cuja violação lesa o eu em seu
verdadeiro âmago. A discrição não é mais do que o sentimento do direito aplicado à
384 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que, enfim, possa justificar razoavelmente sua ação ou omissão. Estes são alguns
poucos exemplos nos quais o dever de discrição – renunciar a conhecer tudo o que
o outro não revela voluntariamente – tem que ceder o passo às exigências da práxis.
Mas, em outras formas mais sutis e menos inequívocas, nos assuntos por concluir,
nas indicações fragmentárias, e quando predomina o implícito ou não dito, toda a
relação entre os homens repousa no fato de que cada um sabe do outro alguma coisa
mais do que este lhe revela de bom grado, e frequentemente coisas que este
detestaria saber que o outro também sabe.
Individualmente isso pode ser considerado como uma indiscrição, ainda que
socialmente seja necessário como condição para o trato estreito e vivo. Todavia, é
extraordinariamente difícil traçar o limite jurídico dessas incursões na propriedade
privada espiritual. No geral, o homem se atribui o direito de saber tudo quanto possa
averiguar, sem recorrer a meios externos ilegais, unicamente pela observação
psicológica e pela reflexão. Mas, em realidade, a indiscrição cometida dessa maneira
pode ser tão violenta e moralmente condenável como escutar atrás das portas ou ler
às escondidas as cartas das outras pessoas. Com extraordinária frequência, porém,
os homens revelam a quem tenha um fino ouvido de psicólogo seus pensamentos e
qualidades mais secretos, e não apesar dos seus ansiosos esforços para escondê-
los, mais precisamente por causa deles. Espiar avidamente toda palavra impensada,
matutar sobre a significação de um tom de voz especial, refletir acerca do que pode
deduzir-se de certas declarações, ou do que quer dizer o rubor produzido pela
menção deste ou daquele nome, são todas coisas que não ultrapassam os limites da
discrição externa. Trata-se apenas do labor intelectual de cada um e, por
conseguinte, de um direito aparentemente indiscutível do sujeito, tanto mais que tais
abusos de nossa superioridade psicológica se produzem amiúde involuntariamente,
sem que possamos conter a nossa interpretação do outro e a reconstrução de sua
vida interior. Ainda que todo homem honesto se abstenha de pensar demoradamente
sobre as coisas que outrem oculta e não tire vantagem de suas imprudências e
momentos de desespero, o processo de conhecimento nesta esfera se verifica
frequentemente de um modo tão automático e seu resultado sucede de maneira tão
inopinada que a boa vontade nada pode fazer contra. E, se o que é indiscutivelmente
defeso torna-se por vezes inevitável, a delimitação entre o que está permitido e o que
386 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
está proibido é, sem dúvida, difícil. Até que ponto deve chegar o desinteresse
intelectual por “tudo o que é do outro”, decorrente da discrição? Em que medida fica
restringido esse dever de discrição pelas necessidades do trato e pela
interdependência entre os membros do mesmo grupo? Eis umas questões para cuja
solução não é suficiente nem o simples tato moral, nem o exclusivo conhecimento
das relações objetivas e suas exigências, já que ambas as coisas devem intervir
conjuntamente. A sutileza e complexidade desse problema (muito mais pessoal que
aquele que suscita a propriedade privada material) remetem-no a uma decisão
individual que não pode ser prevista por nenhuma norma geral.
Em face dessa forma prévia (ou, se quisermos, complementar) do secreto,
onde o que está em causa é a atitude do outro e não a daquele que dissimula, e na
qual a ênfase é colocada neste último no que tange à combinação ou mistura de
saber e ignorância mútua, chegamos a um novo ponto de viragem: há relações que
não se ordenam, como as que temos visto até agora, em torno de interesses
claramente delimitados e objetivamente estabelecidos (nem que seja apenas pelo
fato de sua “superficialidade”), mas que envolvem (ao menos na sua ideia) o
conteúdo inteiro da personalidade. As principais manifestações deste tipo são a
amizade e a vida conjugal. O ideal da amizade, tal como foi retomado da Antiguidade
e desenvolvido, curiosamente, em sentido romântico, repousa sobre uma absoluta
intimidade das almas, que corresponde também à comunidade das possessões
materiais dos amigos. Esse engajamento total do eu na relação é talvez mais
plausível na amizade que no amor, porque ela não está exclusivamente voltada para
um único elemento como acontece com o amor devido ao seu apelo aos prazeres
dos sentidos. Certamente, por vezes, verifica-se que, entre todas as razões possíveis
para se relacionar, possa haver uma que esteja à cabeça das outras, que estabeleça
certa organização semelhante à que se produz em um grupo que segue um líder. É
um elemento relacional muito forte que abre. com frequência, um caminho no qual
será acompanhado pelos demais que, de outro modo, se teriam mantido em estado
latente. Nessa ordem de ideias, é inegável que, na maioria das pessoas. é o amor
sexual o que abre mais amplamente o portal da personalidade. Para muitos, o amor
é mesmo a única forma de entregar seu eu por inteiro, da mesma maneira que, para
o artista, a forma de sua arte é a única que lhe permite expor sua vida interior. Entre
Georg Simmel | 387
3
Tecido vegetal fundamental que constitui a maior parte da massa dos vegetais. O autor fecha aqui a
metáfora botânica de que se valeu neste mesmo parágrafo quando falou de “casca”, “cerne” e “seiva
radical”. (NT)
Georg Simmel | 389
podem revelar e dar de uma vez esse patrimônio, da mesma maneira que uma árvore
quando dá os frutos de uma estação não compromete a colheita do ano vindouro.
Outro é, porém, o destino daqueles que não poupam os ímpetos do sentimento, a
entrega incondicional e a revelação de sua vida espiritual. Eles acabam gastando o
capital, e se privam daquela fonte de bens espirituais constantemente renovados, que
não pode ser alienada e é inseparável do eu. Em tais casos há o perigo de voltar uma
noite com as mãos vazias, de que o gozo dionisíaco da oferta deixe atrás de si uma
carência que refute retrospectivamente – coisa injusta, mas nem por isso menos
amarga – os devotamentos e entregas do passado e a felicidade que tinham trazido.
Somos feitos de tal modo, que – conforme já referido – não precisamos
apenas de uma dada percentagem de verdade e erro como base de nossa vida, mas
também de uma mistura de escuridão e clareza na imagem dos elementos que a
constituem. Penetrar até o mais profundo de algo é destruir seu encanto e impedir a
nossa imaginação de fantasiar em seu tecido de possibilidades. Nenhuma realidade
pode compensar essa perda, por se tratar de uma atividade autônoma que, no longo
prazo, não pode ser substituída por entrega ou prazer de qualquer espécie. Não basta
o outro conceder a nós uma dádiva que possamos aceitar, é preciso também que nos
ofereça a possibilidade de responder a seu gesto de maneira similar, adornando-o
com esperanças e idealizações, com belezas escondidas e encantos que ele mesmo
desconhece. Mas o lugar em que depositamos tudo isso (que foi produzido por nós
à sua intenção) é o horizonte confuso de sua personalidade, o intermédio onde a
crença substitui o saber. É necessário salientar que não se trata aqui de ilusões vãs
ou enganos, fruto do otimismo ou da paixão, mas simplesmente do fato de que uma
parte dos seres humanos, mesmo aqueles com os quais temos ficado mais íntimos,
tem que oferecer-se sob a forma do incerto e pressentível de modo a não perder seu
charme – expediente a que a maioria das pessoas recorre para substituir o poder de
sedução que dá à minoria uma vida interior e atração inesgotáveis. O simples fato de
ter um conhecimento psicológico absoluto, que abrange até os mais mínimos
pormenores do outro, esfria nosso ardor antes mesmo convertermos esse outro no
objeto de nossa predileção, paralisando a vitalidade das relações e fazendo-nos
pensar que no fundo seria inútil dar continuidade. Tal é o perigo das entregas sem
reserva e sem pudor – para além do sentido exterior desse termo –, a que nos
Georg Simmel | 391
Mesmo que o outro não note, o segredo muda o comportamento de quem o guarda
e, por conseguinte, a feição de toda a relação4.
A evolução histórica da sociedade se manifesta em numerosos domínios.
Muitas coisas que antes eram públicas passam á esfera protetora do secreto e, muito
do que era antes secreto, prescinde dessa proteção para ser manifesto. Trata-se de
uma evolução semelhante à outra, do espírito, em virtude da qual, atos executados
conscientemente, se degradam em uma prática inconsciente e maquinal, enquanto o
que era no passado inconsciente e instintivo, ascende à clareza da consciência.
Como essa evolução se distribui nas diversas formações da vida privada e da vida
pública? Como essa evolução conduz a estados cada vez mais adequados, por
quanto o segredo, primeiramente torpe e indiferenciado, passa a perdurar demais
para, só mais tarde, revelar a utilidade da dissimulação em muitos casos? Até que
ponto as consequências do quantum do segredo mudam a depender da importância
ou indiferença de seu conteúdo? Todas essas perguntas permitem antever a
importância do segredo na estrutura das ações recíprocas humanas. A ampla
negatividade ética do segredo não deve nos induzir em erro. O segredo é uma forma
sociológica geral, neutralmente mantida acima do valor de seus conteúdos. Assume
de uma parte o valor mais alto, o pudor delicado da alma distinguida, que oculta
justamente o melhor dela para não receber pagamento de elogios e louvores, que
embora outorguem o justo prêmio, tiram, contudo, o valor propriamente dito.
Entretanto, se o segredo não está vinculado diretamente ao mal, o mal está em
conexão com o segredo. Pois por razões que são fáceis de entender, o imoral se
oculta – mesmo quando o ato contrário às regras de conduta vigentes em dada
época não incorra em responsabilidade penal, como sucede com alguns desvios
sexuais. Sem falar sequer da rejeição social primária, o isolamento social é um efeito
real e importante da imoralidade tanto quanto as supostas imbricações da ética e do
social. O segredo é, entre outras coisas, a expressão sociológica da maldade moral,
4
Em muitos casos a dissimulação acarreta uma consequência sociológica que constitui um singular
paradoxo ético. Assim como uma relação entre dois pode ser destruída se um comete uma falta contra
o outro e ambas as partes são conscientes dela; a mesma relação, confrontada com idêntica falta,
pode sair fortalecida quando só o culpado sabe da ofensa. Pois em tal caso o faltoso realizará
considerações, manifestações de ternura, tentativas secretas de reparação, concessões e gestos de
desinteresse na direção do outro nos que não teria pensado se sua consciência estivesse tranquila.
(NS)
Georg Simmel | 393
ainda que o ditado clássico ”ninguém é tão mau assim que goste de ser visto como
tal” contradiga amiúde os fatos. Com efeito, frequentemente a provocação e o
cinismo impedem que o mal seja dissimulado, chegando os indivíduos mesmo a se
valer dele para exaltar a própria personalidade perante os outros e, por vezes, até se
gabar de atos imorais absolutamente inexistentes.
Como se compreende facilmente, o segredo pode ser utilizado como uma
técnica sociológica, como uma forma de ação sem a qual o nosso entorno social nos
impediria de alcançar certos fins. Em compensação, parecem menos evidentes seus
atrativos e valores, para além dessa significação utilitária mediata. Quais são, com
efeito, as razões da singular sedução que pode exercer por sua mera forma um
comportamento misterioso? Em primeiro lugar, a exclusão ostensiva e vigorosa de
todos os outros produz um sentimento igualmente enérgico de propriedade
exclusiva. Para muitos temperamentos, o que dá verdadeiro sentido à propriedade
não é a detenção material de uma coisa, nem a possibilidade de tirar dela qualquer
utilidade econômica, eles precisam saber, por acréscimo, que os outros sentem falta
dessa coisa da que são privados. Atitude que se funda evidentemente em nossa
sensibilidade para a diferença. Além disso, como a exclusão dos outros se produz
especialmente quando se trata de coisas de um grande valor, é psicologicamente
fácil chegar à conclusão inversa de que o que se recusa a muitos deve ser
particularmente valioso. É assim que a forma do segredo dá as mais diversas
espécies de sentimento de propriedade uma nuance característica, porque nesta
forma o valor próprio do conteúdo dissimulado perde a sua importância se
comparado ao mero fato de permanecer oculto para os demais. As crianças se
gabam frequentemente de poder dizer às outras: “sei algo que você não sabe”. E isso
de uma maneira tão habitual que a frase é pronunciada como um meio formal de se
vangloriar e de humilhar o outro, mesmo quando tudo seja inventado e o segredo não
exista. Em todas as relações, aliás, desde as mais importantes até as mais
irrelevantes, os ciúmes se manifestam dos outros em relação àquele que sabe o que
foi ocultado. As deliberações do Parlamento inglês, por exemplo, foram secretas
durante muito tempo, de modo que durante o reinado de Jorge III as informações
fornecidas pela imprensa ainda eram objeto de ações penais sob a alegação de que
violavam os privilégios dos parlamentares.
394 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
mesmo que seja apenas a nossa autodestruição. É por isso que o segredo se envolve
na possibilidade e na tentação de revelá-lo, pois que à ameaça externa de ser
descoberto soma-se o risco interno de descobri-lo, semelhante ao fascínio
vertiginoso do abismo. O segredo interpõe uma barreira entre os homens e, ao
mesmo tempo, uma tentação de quebrá-la pela indiscrição ou confissão que
acompanha a vida psíquica do segredo como os harmônicos acompanham ao som
fundamental5. De maneira tal que o significado sociológico do segredo só encontra
seu modo de realização, sua medida prática, na capacidade ou tendência dos sujeitos
a guardá-lo, quer dizer, em sua resistência ou fraqueza em face da tentação de trair.
Da contraposição desses dois interesses contraditórios (dissimular e revelar) surgem
os matizes e as fatalidades que atravessam o campo todo das ações humanas
recíprocas. Se, tal como dissemos anteriormente, toda relação entre os homens se
caracteriza pela quantidade de segredo que ela contém ou que está a sua volta, sua
evolução ulterior dependerá da proporção respectiva das energias que tendem a
guardar o segredo e das inclinações a revelá-lo. As energias que tendem a guardá-lo
procedem do interesse prático e do fascínio formal do segredo, enquanto as
inclinações a revelá-lo se baseiam na incapacidade de resistir a tensão do segredo e
nesse sentimento de superioridade que ele contém, de certa forma latente, e que se
atualiza plenamente apenas no momento da revelação. Por outra parte, Intervém
também aqui o prazer da confissão no qual podemos amiúde encontrar esse
sentimento coibente, e ate certo ponto perverso, de poder contido no
autodespojamento e no arrependimento.
Esses fatores que determinam o papel sociológico do segredo são de natureza
individual, mas o modo no qual as disposições naturais ou as complicações pessoais
se constituem em segredos depende, simultaneamente, da estrutura social da vida.
Chegamos assim a um ponto decisivo: o segredo é um fator de individualização da
maior importância em um duplo sentido típico. Por uma parte, as relações sociais
fortemente personalizadas permitem e fomentam o segredo em larga medida;
5
O autor se refere à série harmônica, em música. O som emitido por uma fonte sonora não é um som
simples, puro, de uma só frequência. É uma superposição de frequências múltiplas ou submúltiplas
(ditas harmônicos), cada uma delas com sua própria intensidade. Todavia, dessa vasta gama de
frequências, há uma delas que se sobressai e que as acompanha, sendo o modo fundamental de vibrar,
modo natural ou som fundamental. (NT)
396 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
proteger outro, seu quantum ficaria inalterado apesar da troca. Podemos, porém,
encontrar uma aplicação mais precisa para esse esquema geral. À medida que o
processo civilizatório se desenvolve, os assuntos da coletividade ficam mais
públicos e os assuntos individuais, mais secretos. Nas sociedades arcaicas, como
acima explicado, as relações entre os indivíduos não podiam ser protegidas da
indiscrição na mesma proporção que o estilo de vida moderno permite,
especialmente nas grandes cidades, onde se cria um padrão completamente novo de
discrição e reserva. Nos Estados do passado, ao contrário, os representantes dos
interesses públicos costumavam revestir-se de uma autoridade mística. Na medida
em que o espaço de sua soberania evoluiu e se ampliou, foram adquirindo, graças à
extensão do território, à objetividade de sua técnica, e à distância que os separava de
todas as pessoas singulares, uma segurança e dignidade que lhes permitiu agir
publicamente. A clandestinidade dos assuntos públicos, no entanto, revelava suas
contradições internas, produzindo as reações opostas da traição e da espionagem.
Ainda nos séculos XVII e XVIII os governos mantinham no mais rigoroso segredo o
montante da dívida pública, dos impostos ou dos efetivos militares. Os embaixadores
ficavam com nada melhor para ocuparem seu tempo do que espionar, desviar
correspondências e sacar informação às pessoas que “sabiam” algo, descendo até o
pessoal doméstico6. No século XIX, a publicidade se impôs nos assuntos do Estado,
a tal ponto que doravante os próprios governos publicassem oficialmente os dados
que até então os regimes pensavam que estavam obrigados de manter secretos para
poderem subsistir. Assim, a política, a administração e a justiça foram perdendo seu
caráter secreto e inacessível, ao passo que o indivíduo recebia a guarda de sua vida
pessoal, e a sociedade moderna desenvolvia uma técnica para fazer segredo dos
assuntos privados no meio da promiscuidade das grandes cidades, algo que só tinha
sido possível no isolamento geográfico.
6
Este movimento se realiza também em sentido inverso. Referindo-se à história da corte da Inglaterra
se tem dito que o verdadeiro conluio, as assembleias secretas, e as intrigas não têm início com o
despotismo, mas quando o rei começa a ter conselheiros constitucionais e o governo se converte num
regime aberto, de publicidade. É unicamente então que o rei (Eduardo II) faz a primeira tentativa de
constituir em face desses colaboradores, que em certo modo se lhe obrigou a aceitar, um círculo de
conselheiros oficiosos, quase clandestino, que cria, por si mesmo e em razão dos esforços que se
fazem para formar parte de ele, um encadeamento de engodos e conspirações. (NS)
398 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
Até que ponto essa evolução deve ser considerada desejável? Isso depende
dos valores entendidos como axiomas sociais. Uma democracia considerará a
publicidade um estado desejável em si mesmo, partindo do princípio de que todos
devem conhecer os acontecimentos e circunstâncias que lhes interessam, pois esse
saber é o pressuposto para intervir na sua resolução e também uma incitação
psicológica para fazê-lo. Resta saber, todavia, se esse raciocínio é correto. Quando
acima dos interesses individualistas surge uma instituição dominante que atende
certas reivindicações, esse sistema de poder objetivo facilitaria o agir secreto graças
a sua autonomia formal, sem, no entanto, renunciar a sua “publicidade” no sentido
da defesa concreta dos interesses de todos. Por conseguinte, não existe uma
conexão lógica da que possa deduzir-se o maior valor da publicidade. Contudo, vê-
se bem, nesse caso, o esquema geral da diferenciação cultural: o público torna-se
cada vez mais público, e o privado cada vez mais privado. Esta evolução histórica é
a expressão de uma significação objetiva mais profunda, segundo a qual aquilo que
é público por essência, aquilo que interessa a todos devido a seu conteúdo, fica
também cada vez mais público exteriormente, devido a sua forma sociológica;
enquanto os assuntos centrípetos do indivíduo – aqueles que têm uma existência
autônoma em si – adquirem, até em sua determinação sociológica, um caráter cada
vez mais privado, uma possibilidade crescentemente afirmada de permanecer
secretos.
Destacamos anteriormente que o segredo funciona também como um adorno
que se possui e que valoriza a pessoa que o detém. Isso traz consigo uma
contradição interna: aquilo que se guarda para si e se esconde dos outros adquire
justamente na consciência dos demais uma importância particular – o sujeito acaba
destacando-se justamente pelo que oculta. Isso prova que a necessidade de se
distinguir sociologicamente utiliza um meio em si mesmo contraditório, e também
que aqueles contra os que esta estratégia vai dirigida se deixam manipular, já que
pagam os custos da superioridade. Fazem-no com um misto de vontade e repulsão,
mas isso proporciona, na prática, o reconhecimento desejado. Tem chegado, pois, o
momento, de estudar justamente o polo sociológico aparentemente oposto ao
segredo. Estudar o adorno tem o intuito de apresentar a estrutura semelhante de sua
significação social. A essência do adorno está em sua capacidade de atrair os
Georg Simmel | 399
olhares dos outros para seu portador. Nesse sentido, o adorno é o contrário do
segredo que, no entanto, como acabamos de ver, também não renunciou a colocar a
tônica sobre a pessoa. O adorno cumpre a função de unir a superioridade sobre os
outros com a dependência em relação a eles, a boa vontade com a inveja, de maneira
que representa uma forma sociológica de ação recíproca – que, por sê-lo, exige um
estudo especial.
voluntária. De igual maneira que a inveja (que o adorno provoca) não significa outra
coisa que o desejo do invejoso de conseguir para si o mesmo reconhecimento e a
mesma admiração, e prova justamente até que ponto o invejoso associa tais valores
ao adorno. O adorno é a expressão por excelência do egoísmo, porque destaca seu
portador e comunica um sentimento de satisfação à custa dos outros – já que o
mesmo adorno usado por todos não adornaria a ninguém individualmente. Todavia,
simultaneamente, é expressão máxima de altruísmo, porque o agrado que produz é
experimentado pelos outros – o portador do adorno só desfruta dele no momento em
que se vê ao espelho – e é apenas pelo reflexo desse agrado que o adorno adquire
todo seu valor. Da mesma forma que a estética revela as muitas afinidades que
vinculam diversas manifestações vitais (que a realidade apresenta confundidas e
sem relação ou, ao invés, em conflito), assim também no meio das ações recíprocas
sociológicas, no campo em que se enfrentam o egoísmo e o altruísmo do homem, o
adorno, objeto estético que é, designa o ponto em que essas duas orientações
opostas dependem uma da outra, servindo alternativamente de meio e fim.
O adorno realça e amplia a impressão produzida pela pessoa, age como uma
irradiação emitida por ela. Por isso os metais brilhantes e as pedras preciosas são
sua substância, são “adornos” no sentido mais estrito do termo. Mais, de qualquer
dos modos, que o vestido e o penteado que, no entanto, também “adornam”.
Podemos falar aqui de uma espécie de radiatividade do homem, de uma auréola
maior ou menor de resplendores em torno do indivíduo e na qual submerge tudo o
que tem relação com ele. Elementos corporais e espirituais, influxos perceptíveis que
partem do homem e recaem no ambiente, se fundem e se associam estreitamente.
Tais influxos são, de certo modo, os portadores de uma fulguração imaterial e agem
como símbolo do indivíduo, mesmo sendo meramente exteriores e carecer de todo
poder de sugestão ou importância pessoal. A irradiação do adorno, a atenção sensual
que ele suscita alarga e intensifica a auréola que circunda a pessoa de tal maneira,
que o indivíduo torna-se mais quando está adornado. Acrescente-se a isso o fato de
que o adorno, por ser simultânea e frequentemente um objeto de valor considerável,
constitui uma síntese do ter e do ser dos indivíduos, uma coisa cuja simples posse
se transforma em uma intensa manifestação sensível dos sujeitos. Não acontece o
mesmo com a roupa que usamos todos os dias porque ela não aparece para nós
Georg Simmel | 401
que passam sem olhar para nós quando não estamos adornados. O fato de que o
adorno fosse convertido pelas mulheres das sociedades arcaicas em sua
propriedade privada (que essencialmente existe para os outros, e que unicamente
aumenta o valor e significação do eu graças ao reconhecimento obtido pelo adornado
enquanto tal) revela mais uma vez o seu princípio fundamental. Para as grandes
aspirações da alma – ampliar seu eu pelo fato de existir para os outros, e existir aos
olhos dos outros pelo fato de valorizar-se e ampliar seu eu – o adorno criou uma
síntese própria sob a forma do estético. E como essa forma paira acima da oposição
das diversas aspirações humanas, estas últimas encontram nessa forma não apenas
um espaço de tranquila convivência, mas também a possibilidade de construir-se
reciprocamente (quer dizer, uma em resposta à outra), que afasta o conflito de suas
manifestações concretas – como intuição e penhor de sua profunda unidade
metafísica7.
O segredo que, como temos visto, é uma determinação sociológica que
caracteriza as relações recíprocas entre os elementos de um grupo – ou melhor
ainda, que junto com outras formas de relação constitui esta relação total –, pode
estender-se também a um grupo inteiro com a aparição das “sociedades secretas”.
Quando o ser, fazer e ter de um indivíduo são secretos, a significação sociológica
geral dessa pessoa reveste as características do isolamento, a oposição e a
individuação egoísta. Nesse caso, o sentido sociológico do segredo é meramente
exterior, pois está constituído pela relação entre aquele que possui o segredo e
aquele que não o possui. Mas, a partir do momento em que um grupo faz do segredo
sua forma de existência, o sentido sociológico do segredo se torna interno e
determina doravante as relações recíprocas daqueles que o possuem em comum.
Todavia, como subsiste aqui também a exclusão dos não iniciados, com suas
nuances específicas, a sociologia das sociedades secretas deverá abordar o
complexo problema de identificar as formas imanentes definidas pelo
comportamento secreto de um grupo em face dos elementos externos. Contudo, não
faremos esse estudo preceder de uma classificação sistemática das sociedades
7
Pode dizer-se que chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou ao “adorno”.
Doravante Simmel retoma sua análise do “segredo”, e notadamente da “sociedade secreta”, questões
que constituem a matéria central do presente capítulo de sua obra. (NT)
406 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
positivo valor social, a sociedade secreta é, de fato, um estágio de transição que deixa
de ser necessário quando esses conteúdos existenciais alcançam um grau de
desenvolvimento suficiente. Em última análise, a proteção que o segredo proporciona
é semelhante à que se consegue quando, em vez de combater os entraves, se os
ladeia: chega uma hora em que temos a força de que precisamos para vencer esses
obstáculos e a manobra é já desnecessária. Podemos assim dizer que a sociedade
secreta é a forma social adequada para conteúdos que se encontram ainda de
alguma forma em seus começos, com a vulnerabilidade própria dos primeiros
estágios do desenvolvimento. Quando novos, o conhecimento e a moral, as religiões
e os partidos são, muitas vezes, ainda débeis, têm necessidade de proteção e, por
isso, se escondem. Por essa razão, as épocas em que surgem novas ideias contra os
poderes existentes, parecem predestinadas ao florescimento das sociedades
secretas, como aconteceu, por exemplo, no século XVIII. Assim, para referir só um
exemplo, naquela época existiam na Alemanha os elementos de um partido liberal,
mas sua concretização em uma organização política permanente era impedida pelos
poderes do Estado. A sociedade secreta passou a ser então a única forma em que
podiam se manter e desenvolver os germes de uma nova organização, tal como o
8
possibilitaram sobretudo os Iluminati . Ela, porém, protegeu tanto seu
desenvolvimento declinante quanto sua evolução ascendente.
Com efeito, as aspirações e forças sociais ameaçadas por outras novas
tendem a refugiar-se no segredo, que representa, de certo modo, um estágio
intermediário e transitório entre o ser e o não ser. Quando, ao fim da Idade Média,
começou na Alemanha a repressão do poder central em expansão, as corporações
municipais desenvolveram uma larga vida secreta através de assembleias e acordos
clandestinos, assim como pelo exercício secreto do direito e do poder – à maneira
dos animais que procuram um abrigo quando se sentem morrer. Talvez seja nos
processos evolutivos religiosos que apareça com mais clareza essa dupla função
protetora das sociedades secretas, como estágio intermediário para os poderes
ascendentes e para as forças decadentes. Enquanto as comunidades cristãs eram
8
Nome dado a vários grupos reais e fictícios. Historicamente, pelo geral, se refere aos Illuminati da
Baviera, uma sociedade secreta da época do Iluminismo fundada em 1º de maio de 1776. Os objetivos
da sociedade eram opor-se à superstição, ao obscurantismo, à influência religiosa sobre a vida pública
e aos abusos de poder do Estado. (NT)
408 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sempre o fator subjetivo. Por essa razão, as sociedades secretas – cujas formas
rudimentares começam com o primeiro segredo compartilhado por duas pessoas, e
cuja universal difusão por todos os lugares e em todos os tempos não foi ainda
devidamente estimada, nem sequer, aliás, no quantitativo – são uma excelente
escola de solidariedade moral entre os homens. Pois a confiança que um ser humano
deposita em outro possui um valor moral tão alto como a devida correspondência à
dita confiança; valor que talvez seja ainda mais livre e mais meritório, já que, quando
se confia em nós, estamos quase que engajados pelo parecer emitido com
antecedência a nosso respeito, de forma tal que teríamos que ser positivamente
malvados para não agir em conformidade com ele. Contudo, a confiança se
“deposita”, se “concede”. Não podemos exigir então que ela nos seja acordada com
os mesmos títulos com que exigimos não ser desiludidos depois de tê-la concedido.
Como é natural, as sociedades secretas procuram os meios para suscitar
psicologicamente a discrição, que não se pode impor aos indivíduos pela força. Em
primeiro lugar, figuram entre eles o juramento e a ameaça de castigo, que dispensam
qualquer comentário. Mais interessante é a técnica, frequentemente utilizada, que
consiste em submeter o neófito, desde o início, a um aprendizado do silêncio. Tendo
em conta a dificuldade já mencionada de calar, e atendendo, sobretudo, a estreita
associação que existe nos primeiros estágios entre o pensamento e sua expressão
verbal – para as crianças como para muitos povos da natureza pensar e falar é quase
o mesmo – é preciso, antes demais, aprender a calar de uma maneira geral, se o
objetivo é obter depois o sigilo em relação a certas ideias em particular9. Assim, diz-
se, acerca de uma sociedade secreta da ilha de Ceram, no arquipélago das Molucas,
9
As formas ou modos pelos quais os atores sociais se relacionam estão determinadas pela
capacidade de falar, mas estão modeladas pela capacidade de calar, o que, naturalmente, só se
manifesta de maneira fortuita e episódica. Quando todas as representações, os sentimentos e
impulsos jorram livremente no discurso, surge uma confusão caótica em vez de um concerto
minimamente organizado. Poucas vezes constata-se claramente a necessidade de saber calar-se,
para o estabelecimento de relações regulares e recíprocas entre ós homens, porque isso nos parece
ser óbvio. Trata-se, todavia, do resultado de uma evolução histórica que parte da verbosidade
característica das crianças e dos grupos étnicos primevos (que umas e outros necessitam para que
suas representações adquiram alguma concretude e segurança) e conclui na civilidade das culturas
evoluídas. Uma de cujas conquistas é o sentimento de saber quando se deve falar e quando é preciso
calar. Assim, por exemplo, o anfitrião polido sabe manter-se reservado enquanto seus convidados
conversam entre si, mas intervém tão pronto se produz um vazio na fala. As guildas medievais, cujos
estatutos sancionavam a quem interrompia o discurso do preboste, podem oferecer um exemplo
intermediário. (NS)
410 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que os jovens que solicitam o ingresso nela, não só devem calar sobre tudo o que
presenciam desde que entram, mas que durante algumas semanas não podem falar
uma palavra com ninguém, nem mesmo com sua família. Aqui não influi, com certeza,
unicamente o valor pedagógico do silêncio absoluto: a proibição geral de falar, em
um momento em que deveriam calar-se apenas coisas muito concretas, corresponde
a uma etapa de indiferenciação mental. Esse radicalismo é análogo àquele dos povos
subdesenvolvidos que recorrem à pena de morte para faltas menores (que mais tarde
receberão penas proporcionais a sua seriedade), ou que têm tendência a entregar
uma parte absolutamente desproporcionada de seus bens em troca de uma coisa
que os atraiu por um momento. Trata-se de uma espécie de “falta de jeito” específica,
similar em essência à incapacidade de veicular, para um movimento estritamente
delimitado, um estímulo nervoso igualmente circunscrito. O desajeitado move o
braço todo quando para atingir seu objetivo basta mover dois dedos, e o corpo inteiro,
quando um movimento apropriado do braço seria mais adequado. No caso em
apreço, a associação psicológica exagera enormemente o perigo de falar e, por isso,
não limita a proibição a seu objetivo concreto, mas a estende ao conjunto da função
que veicula. Em compensação, quando as sociedades secretas dos pitagóricos
prescreviam aos neófitos um silêncio de vários anos provavelmente pretendiam mais
do que uma mera aprendizagem da discrição pelo grupo, mas, nesse caso, a causa
não era aquela “falta de jeito”, senão o alargamento do fim diferenciado. Com efeito,
para os pitagóricos, o adepto não devia unicamente aprender a calar certas coisas
precisas, mas a reprimir-se e controlar-se, em geral. O grupo tinha como objetivo
uma estrita autodisciplina e uma pureza estilizada da vida, pelo que se o iniciado
conseguisse guardar o silêncio durante alguns anos, seria provavelmente capaz de
resistir a outras tentações além da indiscrição.
Outro meio de dar uma base objetiva à discrição foi empregado pela ordem
secreta dos druidas gauleses10. Seus mistérios consistiam principalmente em cantos
religiosos que todo druida devia aprender de cor. Mas, em razão de certas regras
– notadamente, graças à proibição de escrever os cantos –, era requerido para isso
um tempo extraordinariamente prolongado, que podia chegar a vinte anos. O longo
10
Povo celta que habitava a Gália, antigo país no território da França atual, que foi conquistado pelos
romanos. (NT)
Georg Simmel | 411
coisa clara em sua essência, ela é ainda mais clara na carta que na conversa. Em
troca, se essa coisa é propícia em princípio a interpretações diversas, resultará
também mais ambígua na carta do que na conversa. Se utilizarmos as categorias de
liberdade e dependência para expressar o estado em que se encontra o destinatário
da comunicação em face dela, diremos que, no que tange à substância lógica, sua
compreensão é mais dependente na carta do que na conversa, mas que, em
compensação, é mais livre no que diz respeito ao sentido pessoal e profundo.
Diríamos que a interlocução revela o segredo graças àquilo que o interlocutor deixa
ver sem deixar ouvir, isto é, com o auxílio dos múltiplos imponderáveis da relação,
enquanto, por outro lado, nada disso existe na carta. Por esse motivo a carta é mais
clara a respeito do que não se relaciona com o segredo do outro e é mais escura e
ambígua no caso oposto. Entendemos por “segredo do outro” seus estados de ânimo
e as qualidades existenciais que não podem exprimir-se logicamente, mas aos quais
nos referimos incontáveis vezes, até mesmo para melhor compreender o verdadeiro
significado de informações absolutamente concretas. Na conversa, os elementos
auxiliares da interpretação estão de tal maneira associados ao conteúdo conceitual
que formam uma unidade de intelecção. Talvez esse seja o exemplo mais flagrante
de um traço psicológico mais geral: a incapacidade absoluta do homem de distinguir
o que realmente vê, ouve e percebe por meio dos sentidos, daquilo em que esses
dados se transformam em virtude de suas interpretações, adições, subtrações e
modificações. Todavia, um dos sucessos intelectuais da comunicação escrita
consiste em distinguir e separar da unidade ingênua um de seus elementos,
salientando a pluralidade dos fatores que, em princípio, constituem o fenômeno em
aparência tão simples de nossa “mútua compreensão” 11.
Quando se estuda a técnica do segredo não se deve esquecer que, assim como
o sigilo pode favorecer os fins materiais da comunidade, a própria constituição da
comunidade pode servir, em muitos casos, para proteger o segredo de determinados
conteúdos. É o caso de uma série de sociedades secretas cuja substância está
constituída por uma doutrina sigilosa, por um saber teórico, místico ou religioso. O
segredo se torna então um fim sociológico em si mesmo, pois recai sobre um
11
Chega aqui a seu fim a presente e breve digressão, que o autor consagrou à “comunicação escrita”.
Doravante Simmel retoma e finaliza sua análise do “segredo” e da “sociedade secreta”. (NT)
416 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
para proteger-se, e evitando-os quando receia que eles possam ser mais perigosos
que o isolamento.
A iniciação gradual dos membros, acima referida, pertence a um grupo muito
grande de formas sociológicas, dentro do qual as sociedades secretas se destacam
de um modo especial. Referimo-nos ao princípio da hierarquia, à organização por
graus dos elementos de uma sociedade. Essa acuidade e caráter sistemático com os
quais as sociedades secretas realizam justamente a divisão de seu trabalho e a
hierarquização de seus membros estão vinculados a outro de seus traços que iremos
estudar mais tarde de um modo mais circunstanciado. Estamos a falar do caráter
marcadamente consciente de sua vida que substitui as forças orgânicas instintivas
por uma vontade de regulação permanente, e o crescimento desde dentro por uma
previsão construtiva. O caráter racional de sua estrutura se expressa de um modo
perceptível em sua arquitetura harmoniosa e clara. Tal era, por exemplo, a estrutura
da sociedade secreta tcheca Omladina, acima mencionada 12, constituída de acordo
com o modelo de um grupo de carbonários, e que ficou conhecida em 1893 por
ocasião de um julgamento. Os dirigentes da Omladina se dividiam em “polegares” e
“dedos”. No curso de uma sessão secreta, os membros presentes elegiam o
“polegar”; este designava, por sua vez, quatro “dedos” que escolhiam, por seu turno,
um segundo polegar, que se apresentava ao primeiro. O segundo polegar nomeava,
ademais, quatro dedos, que indicavam um terceiro polegar, e assim por diante. O
primeiro polegar sabia quem eram os outros polegares, que, por sua vez, não estavam
informados de sua recíproca existência. Quanto aos dedos, só se conheciam entre si
aqueles que estavam subordinados ao mesmo polegar. Toda a atividade da Omladina
estava dirigida pelo primeiro polegar, denominado o “ditador”. Ele inteirava os outros
polegares de todos os empreendimentos planejados, os polegares transmitiam as
ordens aos dedos que estavam subordinados a eles, e os dedos noticiavam aos
outros membros da sociedade secreta por quem eram responsáveis.
O fato de que a sociedade secreta deva ser organizada desde sua base,
refletidamente e por uma vontade consciente, oferece um vasto campo de ação ao
singular prazer que proporcionam semelhantes construções que apenas dependem
12
Vide Capítulo II, quando o autor faz referência à grande importância histórica do número dez e seus
derivados no estabelecimento das divisões sociais. (NT)
418 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
da vontade ou arbítrio daquele que age. Todo sistema – científico, ético ou social –
comporta uma quota de afirmação do próprio poder, submete uma matéria, alheia ao
pensamento, a uma forma moldada pela atividade cognitiva racional. E, se podemos
dizer o mesmo de todas as tentativas de organizar um grupo conforme princípios, o
mesmo raciocínio é aplicável por maioria de razão à sociedade secreta, que não
nasce naturalmente, mas que está a ser construída e tem que contar com menos
elementos parciais já constituídos que qualquer outro sistema despótico ou
socialista. Ao prazer de planejar e construir – que é já em si mesmo a expressão de
uma vontade de poder – se acrescenta nesse caso a tentação particular de dispor
sobre um vasto círculo (idealmente submetido ou que está prestes a sê-lo) de seres
humanos, criando um sistema de posições e de relações hierárquicas.
Caracteristicamente, tal prazer carece por vezes de qualquer finalidade e se espraia
na elaboração de constructos hierárquicos totalmente fantasiosos. É o caso, verbi
gratia, dos graus elevados da maçonaria degenerada, dentre os quais citaremos os
da “Ordem dos construtores africanos”, organização que vigorou na França e na
Alemanha em meados do século XVIII, e cuja finalidade, apesar de ter sido criada com
base em princípios maçônicos, era destruir a francomaçonaria. Pois bem, a
administração dessa sociedade, muito reduzida, aliás, estava a cargo de 15
funcionários: summus magister, summi magistri, locum tenens, prior, subprior,
magister, etc. Os graus de associação eram sete: aprendiz escocês, irmão escocês,
mestre escocês, cavalheiro escocês, eques regii, eques de secta consueta, eques
silentii regii, etc.
O ritual nas sociedades secretas evolui em condições de desenvolvimento
análogas às da hierarquia. Aqui também a falta de precedentes históricos que sirvam
de referência ou modelo à associação, assim como o fato de ter sido ela mesma
constituída a partir de uma base que procede do livre-arbítrio de alguém, concedem
uma grande liberdade e riqueza para criar suas formas. Talvez não exista uma feição
que melhor caracterize a sociedade secreta, e que a distinga com mais clareza das
sociedades que agem à luz do dia, que o valor outorgado aos costumes, fórmulas e
ritos, cuja observância é por vezes reputada como mais importante do que o
cumprimento dos fins específicos da associação – defendidos amiúde com menos
ansiedade que o segredo do ritual. Em tal ordem de ideias, é sintomático que a
Georg Simmel | 419
francomaçonaria progressista, que diz não ser uma sociedade secreta – e por isso
não ter razão alguma para ocultar o nome de seus membros, seus fins e suas
atividades –, sublinhe para abonar essa asserção que o juramento de secreto (que
ainda exige de seus membros) “se refere exclusivamente às formas do ritual
maçônico”. O primeiro artigo dos estatutos da ordem estudantil dos amicistas, que
data do século XVIII, é outro exemplo característico do que estamos a tentar dizer. ”O
sagrado dever dos membros é manter o mais profundo silêncio sobre coisas relativas
ao bem da Ordem. Entre elas figuram: a insígnia da Ordem, os sinais adotados para
o reconhecimento dos irmãos, os nomes destes, as solenidades, etc.”. O curioso é
que mais adiante, no mesmo estatuto, estão indicados detalhadamente e sem
qualquer tentativa de dissimulação o objetivo e a natureza da ordem. Em um livro de
exíguas dimensões em que se descrevem a constituição e a natureza da carbonária13,
a enumeração das fórmulas e dos ritos empregados para o acolhimento de novos
membros e para as reuniões preenche 75 páginas! Nem precisamos de mais
exemplos. O papel desempenhado pelo ritual nas sociedades secretas é bem
conhecido, desde as comunidades místico-religiosas da Antiguidade até os rosa-
cruzes 14 do século XVII, sem contar com os mais famosos bandos criminais. As
motivações sociológicas disso são aproximadamente as que descrevemos a seguir.
O que chama a atenção na observância do ritual nas sociedades secretas, não
é apenas o rigor com que se cumpre o conjunto de atos e práticas próprios do
cerimonial, mas, sobretudo, o receio com que se guarda seu segredo – como se traí-
lo fosse tão perigoso como desvelar os fins, as atividades ou mesmo a existência da
associação. Sem dúvida, o motivo é a necessidade de incorporar ao segredo um
conjunto complexo de formas exteriores para que toda a esfera das atividades e
interesses da sociedade torne-se uma unidade perfeitamente acabada. Dentro das
categorias que lhe são próprias, a sociedade secreta deve então procurar criar um
tipo de totalidade existencial; para isso, envolve e recobre seu objetivo com um
sistema de fórmulas que o resguarda e serve, da mesma maneira que o corpo é
invólucro e ferramenta da alma. E tudo isso deve ser posto pela sociedade sob a
13
Sociedade de ideias liberais, derivada da francomaçonaria, que surgiu na Itália em princípios do
século XIX e à qual pertenciam os carbonários. (NT)
14
Adeptos de uma sociedade de iluminados existente em Alemanha a partir do século XVI e difundida
pelos países vizinhos no século XVII. (NT)
420 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
15
A Liga da Corte Sagrada foi uma sociedade secreta alemã de inspiração cristã, criada na Vestefália
no século XIII, que permaneceu ativa até começos do século XIX. Sua origem é incerta, mas remonta
aos tempos carolíngios e guarda vínculos com os primitivos tribunais livres germânicos. De fato, os
tribunais da Liga eram conhecidos como tribunais livres (Freigerichte), talvez uma referência ao fato
de estar compostos por homens nascidos de ventre livre. Seus membros eram elegíveis para cargos
públicos e, ainda, reivindicavam para si liberdades excepcionais. (NT)
422 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que necessite acentuar tanto a sua autonomia quanto a sociedade secreta. O seu
segredo a circunda como um limite, fora do qual nada mais há do que oposições
materiais ou ao menos formais, e que por consequência encerra o grupo dentro dos
contornos de um domínio abstrato para constituir uma unidade acabada. Em todos
os grupos de outro tipo, o conteúdo da vida grupal, a atividade dos seus membros em
termos de direitos e deveres, ocupa de tal maneira a consciência desses elementos
que normalmente o fato formal da sociação não desempenha na prática papel
nenhum. Em compensação, a sociedade secreta não permite que desapareça de seus
membros a consciência clara e acentuada de que constituem uma sociedade: o
páthos do segredo – sempre perceptível e que se deve preservar a todo o momento –
confere ao vínculo formal do grupo uma significação própria que chega a ser superior
à importância do conteúdo. A sociedade secreta carece do crescimento orgânico, do
caráter instintivo da acumulação e de toda espécie de sentimento irrefletido de
coesão e unidade. Os conteúdos da sociedade secreta poderão ser irracionais,
místicos, emocionais ou o que mais se quiser, mas a sua formação é sempre
consciente e produzida pela vontade. Graças a essa consciência de ser uma
sociedade – consciência que é constantemente reforçada tanto no seu período
formativo como no decorrer da sua vida – a sociedade secreta é o contrário de todos
os grupos espontâneos nos quais a adesão é, em maior ou menor grau, apenas a
expressão de uma contiguidade arraigada em seus elementos. Essa condição da
sociedade secreta fica compreensível na medida em que as características formais
da constituição dos grupos em geral costumam ser reforçadas especificamente na
sociedade secreta e por que alguns dos seus traços sociológicos essenciais se
desenvolvem como meras intensificações quantitativas de outros tipos de relações
mais gerais.
Um desses traços já foi esboçado. Referimo-nos à caracterização e a coesão
do círculo por seu isolamento do entorno social. Eis o sentido dos sinais de
reconhecimento, às vezes muito complicados, por meio dos quais os membros
legitimam sua pertença à sociedade secreta. Note-se que, antes que houvesse uma
difusão mais geral da escrita, esses sinais eram ainda mais indispensáveis do que
depois, quando os seus outros usos sociológicos se tornaram mais importantes do
que a mera legitimação. No tempo em que faltavam certificados de admissão,
424 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
16
Conjunto específico daqueles que exerciam cargos e funções civis e militares no aparelho
burocrático da República de Veneza, nos séculos XV a XVIII. (NT)
17
Como o autor está se referindo à Suíça, provavelmente aluda a cidade de Friburgo em Nuitônia
(chamada em tudesco Freiburg im Üechtland, para distingui-la da alemã Friburgo em Brisgóvia). (NT)
426 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
isolamento e desses privilégios sociais – por apego aos quais a aristocracia prefere
opor-se a uma legislação geral e baseada em princípios universais.
Quando a noção de aristocracia não caracteriza a política de um grupo, mas
as ideias de um indivíduo, a relação entre isolamento e segredo se manifesta em
planos diferentes. A pessoa moral e intelectualmente distinta desdenha toda
ocultação, porque a sua distinção é espiritual e a sua autoconsciência a torna
indiferente: não importa a ela o que os outros saibam ou não, se a apreciam ou não
ou como a consideram os demais. Para ela, o segredo é uma concessão às outras
pessoas, uma maneira de ter em consideração a apreciação do grande público. Por
isso, a “máscara”, que muitos consideram como sinal e prova de uma alma
aristocrática que se distancia da multidão, vem comprovar a importância da massa
para aqueles que fingem ou dissimulam. A “máscara” da pessoa verdadeiramente
distinta consiste em que, mesmo ao se mostrar às claras, não a compreendem e, por
assim dizer, sequer a veem.
O isolamento de tudo o que esteja fora do círculo é então uma forma
sociológica universal que se serve do segredo como técnica para ganhar força e
importância. Tal isolamento assume um matiz específico graças aos múltiplos graus
em que se verifica a iniciação nas sociedades secretas, até que se alcança o
conhecimento dos seus mistérios mais profundos. A existência de graus de iniciação
já foi alumiada quando falamos dos traços sociológicos da sociedade secreta. No
geral, exige-se do noviço a declaração solene de guardar segredo sobre tudo o que
vier a experimentar, antes mesmo de ser admitido. Dessa maneira assegura-se o
isolamento absoluto e formal que o segredo produz. No entanto, uma vez que o real
conteúdo ou objetivo da sociedade se torna acessível ao neófito – quer este
propósito seja a purificação e a santificação da alma mediante a consagração aos
mistérios ou, ao invés, a absoluta supressão de toda barreira moral, como na Ordem
dos Assassinos 18 ou outros grupos criminais – o isolamento material se dá
diferentemente, de modo contínuo e relativo. De acordo com essa maneira de
conduzir as coisas, o novo membro ainda se encontra próximo do estado de não
18
A Ordem dos Assassinos (em arábico Ḥashāshīn) foi uma seita fundada no século XI por Hassan
ibn Sabbah, conhecido como O Velho da Montanha, que a instituiu com o objetivo de difundir uma
nova corrente do Islã xiita, o ismaelismo, que ele mesmo tinha criado. Sua sede era uma fortaleza
situada na região de Alamut, no atual Irã. (NT)
Georg Simmel | 427
iniciado, precisando ser posto à prova e instruído, até conhecer todos os objetivos da
associação e chegar a seu cerne. Com isto, consegue-se ao mesmo tempo proteger
o cerne da associação e isolá-lo- do exterior em um grau maior do que o produzido
pelo juramento feito por ocasião do ingresso na sociedade. Zela-se – como no caso
dos druidas de que já falamos – para que o neófito que ainda não foi posto à prova
não tenha muito a revelar, criando por meio das revelações graduais uma espécie de
esfera elástica que protege o mais íntimo e essencial da sociedade, dentro do
segredo geral que envolve o grupo por inteiro.
A característica mais evidente dessa medida de proteção é o contraste entre
os membros exotéricos e esotéricos, que é atribuído às ordens pitagóricas. O círculo
formado pelos parcialmente iniciados constitui uma espécie de anteparo que separa
a sociedade dos não iniciados. Em todo lugar o “intermediário” desempenha a função
dupla de unir e separar, que termina, porém, sendo uma só, pois segundo as
categorias que nós utilizemos ou a direção que demos a nossos olhares a
qualificaremos algumas vezes de união e outras de separação. Do mesmo modo,
também é vista aqui com bastante clareza a real unidade de duas atividades
aparentemente contraditórias: é precisamente porque os graus mais baixos da
associação medeiam a transição para o cerne do segredo que eles tornam
progressivamente estanque a esfera dissuasiva que envolve este cerne – e que o
protege com maior segurança do que qualquer alternativa abrupta e radical entre a
inclusão total e a exclusão total.
Na prática, a autonomia sociológica se manifesta sob a forma de egoísmo do
grupo. Com efeito, a associação procura alcançar seus fins com a mesma atitude de
indiferença para com os objetivos dos outros grupos que no âmbito individual se
chama de egoísmo. Para a consciência dos membros individuais, o grupo amiúde
justifica moralmente essa desconsideração afirmando que seus pressupostos e
finalidades têm um caráter objetivo e supraindividual, ou que seria impossível citar
uma única pessoa que tivesse usufruído de qualquer benefício advindo da conduta
egoística do grupo, ou mesmo que ele, por sua vez, exige dos seus membros
individuais desprendimento e espírito de sacrifício. Ora, não estamos aqui tentando
estabelecer qualquer valoração ética, mas de enfatizar que o isolamento do grupo de
tudo que o rodeia provém ou se define pelo egoísmo do próprio grupo. Todavia, no
428 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
caso dos círculos pequenos, que objetivam viver e manter-se dentro de um grupo
maior e se desenvolvem a olhos vistos, o egoísmo tem limites. Qualquer associação
ostensiva (não importando com que violência lute contra outras associações dentro
da sociedade maior ou ataque os fundamentos dessa mesma sociedade), deve
sempre afirmar que a realização dos seus objetivos virá em benefício de todo o
conjunto; e a necessidade dessa afirmação imporá algum limite ao egoísmo efetivo
da sua conduta. Tal não se faz necessário, porém, no caso das sociedades secretas
que, pelo menos em potência, podem contrapor-se a outros grupos ou à totalidade
– diferentemente das sociedades abertas que não podem confessar nem, por
conseguinte, exercer a hostilidade absoluta. Nada simboliza ou promove tão
decisivamente o isolamento da sociedade secreta a respeito do seu entorno social
quanto a eliminação dessa hipocrisia ou da real vontade de conciliação que integra
inevitavelmente a sociedade que age à luz do dia na teleologia do conjunto que a
circunda.
Apesar da delimitação quantitativa que caracteriza toda comunidade real,
existe, não obstante, uma série de grupos cuja tendência interna é a de incluir todos
os que não estão explicitamente excluídos. Em certos setores políticos, religiosos e
sociais, todo aquele que satisfaz determinadas condições externas, não
voluntariamente adquiridas, mas dadas pela própria existência, é passível de ser
considerado ”membro”. Por exemplo, todos os que nasçam em um território nacional,
pertencerão à comunidade nacional respectiva, a não ser que circunstâncias
específicas os excluam. Se formos membros de uma determinada classe social,
devemos assumir como nossas as convenções sociais e formas relacionais daquela
classe, se não quisermos nos tornar uns marginais, querendo ou não. A forma
extrema dessa pertença seria a Igreja, que pretende abarcar em seu seio a totalidade
dos humanos, de sorte que só um acidente histórico, uma obstinação no pecado ou
um desígnio particular de Deus poderia porventura excluir um ente qualquer da
comunidade religiosa, que virtualmente é também a sua. Separam-se aqui, pois, dois
caminhos que indicam claramente uma diferença fundamental na significação
sociológica das sociedades em geral, por muito que a prática misture os dois,
diminuindo o rigor da distinção. De um lado fica o princípio de incluir todos os que
não estejam explicitamente excluídos, e do outro, o princípio de excluir os que não
Georg Simmel | 429
mais não fosse porque habitualmente preenche por si mesma o seu próprio espaço,
já que dificilmente um indivíduo pertence a várias sociedades secretas –, exerce uma
espécie de autoridade absoluta sobre os seus membros, o que lhes deixa pouca
oportunidade de entrar em conflitos semelhantes aos que nascem da coordenação
das outras sociedades. A “paz interna”, que na verdade deveria reinar em toda
sociedade, é promovida de maneira formalmente insuperável pelas condições
peculiares e excepcionais da sociedade secreta. De fato, pareceria que, além dessa
razão de caráter mais realista, a simples forma do secreto mantém os membros ao
abrigo de outras influências e perturbações, facilitando assim o acordo entre eles.
Um político inglês chegou a explicar a força do gabinete britânico pelo segredo que o
rodeia: em sua opinião, basta haver tido alguma atuação na vida pública para saber
que é tanto mais fácil conseguir a unanimidade de um número pequeno de pessoas
quanto mais secretas forem suas deliberações.
A marcada centralização das sociedades secretas tem correspondência com
o grau de coesão particular que se produz dentro dessas associações. Elas oferecem
assim, exemplos de uma obediência cega e incondicional aos chefes, que, embora se
encontre também, evidentemente, em outras partes, resulta aqui espantosa se
levamos em conta o caráter amiúde anárquico do grupo e sua recusa de qualquer
outra lei que não a sua. Quanto mais criminais sejam os objetivos da sociedade
secreta, tanto mais ilimitado será, em geral, o poder dos chefes e mais cruel se
tornará seu exercício. Os “assassinos” levantinos acima referidos, os chauffeurs de
pâturons franceses19 e os garduñas espanhóis20, todos eles asseclas de sociedades
secretas baseadas essencialmente na rebelião e a recusa das leis, estavam
submetidos a um chefe supremo, que eles mesmos tinham colaborado parcialmente
a nomear, e a quem se vergavam sem crítica nem reserva. Para isso contribui sem
dúvida, o equilíbrio que há de existir sempre entre as necessidades de liberdade e de
19
Os chauffeurs de pâturons (em argot, “queimadores de pés”) ou simplesmente chauffeurs eram
bandos de criminosos, com uma organização bastante diversificada, que floresceram na França no
século XVIIi. Introduziam-se durante a noite nas residências e queimavam os pés dos moradores com
as brasas da sua chaminé para obrigá-los a confessar onde escondiam suas economias. (NT)
20
Sequazes da garduña, uma sociedade secreta criminosa que agiu na Espanha e suas colônias desde
meados do século XV até o século XIX. Teria nascido no contexto das fraternidades criminosas que, a
partir de diversos bandos incontrolados, extorquiam, assaltavam e roubavam as residências de
muçulmanos e judeus, Pretextavam colaborar com a Inquisição, e chegaram a desenvolver um poder,
extensão e complexidade organizativa comparáveis aos das grandes máfias modernas. (NT)
Georg Simmel | 431
lei, compensação que se manifesta também, como vimos, na severidade dos rituais.
Aqui, com efeito, coexistem os extremos de ambas as precisões: o excesso de
liberdade (que associações desse tipo possuíam no que concerne o restante das
normas vigentes) precisava, para conseguir o indispensável equilíbrio, ser
compensado por um excesso análogo de submissão e de renúncia à vontade
pessoal. Todavia, ainda é mais essencial outro motivo: a necessidade de
centralização, que é condição vital de toda sociedade secreta. Sobretudo, se o grupo,
como acontece com os bandos de malfeitores, vive e se mistura de variadas maneiras
com o círculo que o rodeia e se vê assim constantemente ameaçado pela traição e o
abuso, se nele não reinasse a coesão mais inflexível assegurada por uma autoridade
central.
Por isso as sociedades secretas estarão expostas a graves perigos, quando
por qualquer razão não desenvolverem essa autoridade rígida que garanta coesão.
Os valdenses21, por exemplo, originalmente não constituíam uma sociedade secreta;
seu grupo se tornou secreto no século XIII, obrigado por pressões externas que os
forçaram a ocultar-se. Isso tornou impossíveis as reuniões regulares, e foi causa de
discrepâncias doutrinais, que por sua vez provocaram a proliferação de seitas que
passaram a viver e a se desenvolver separadamente, sendo amiúde hostis entre elas
mesmas. Sucumbiram a sua fraqueza, porque lhes faltou um elemento essencial à
sociedade secreta: uma centralização ininterrupta. E se o poder da francomaçonaria
não está em relação com a sua difusão e os seus recursos, com certeza a causa é a
ampla autonomia de seus elementos, que não possuem uma organização unificada
nem uma autoridade central. Reduzida a comunidade apenas a princípios e sinais de
reconhecimento, seus membros se empenham em manter a igualdade e as relações
pessoa a pessoa, mas não a centralização, que condensaria suas energias e deveria
oferecer o complemento do isolamento próprio de toda sociedade secreta.
Se as sociedades secretas costumam ser dirigidas por um chefe desconhecido
é apenas pela exacerbação de um princípio formal. Referimo-nos ao fato de que os
graus inferiores, em razão do segredo, não devem saber a quem obedecem. Esse
21
Membros do valdismo, seita herética fundamentada na pobreza, criada no século XII por Pierre
Valdo, próspero comerciante de Lion (França), após renunciar a seus próprios bens e riquezas. (NT)
432 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
propósito pode chegar a extremos como no caso dos “cavaleiros guelfos” 22 , que
lutaram no início do século XIX pela liberação e unificação da Itália. Em cada um dos
seus vários desdobramentos, nas diferentes cidades onde existiam, os cavaleiros
tinham um conselho supremo de seis membros, que não se conheciam mutuamente,
e só se comunicavam através de um intermediário, ”o visível”. Mas a preservação do
segredo não era o único objetivo do desconhecimento desses chefes: a ignorância
exemplifica a sublimação mais extrema e abstrata da dependência de um centro. Na
verdade, a tensão que existe entre o subordinado e o chefe alcança o grau máximo
quando o chefe está além do visível, pois então resta apenas o fato, puro e implacável,
da obediência destituída de matizes pessoais. Se a obediência a uma instância
impessoal, a uma simples função, ao representante de uma lei objetiva, tem já um
caráter rigoroso e inflexível, essa submissão se acentua até tornar-se absoluta e
inquietante a partir do momento em que a pessoa que comanda é, por princípio,
desconhecida. Pois quando quem dá as ordens não é nem visível nem conhecido,
quando desaparece na relação entre chefe e subordinado a força sugestiva do
indivíduo e o poder da pessoa, somem também todas as limitações, as contingências
“humanas”, que caracterizam o ente singular e conhecido. A obediência é
acompanhada, em tais casos, do sentimento de ser submetido a um poder inatingível,
de limites indetermináveis, um poder que não se vê em lado nenhum, mas que pela
mesma razão se pode imaginar em toda a parte. Nas sociedades secretas de chefes
desconhecidos, a coesão sociológica geral do grupo, que noutros casos obedece à
unidade de comando, se transmuda a uma espécie de focus imaginarius, adquirindo
assim sua forma mais pura e mais intensa.
O traço sociológico que corresponde à subordinação centralista dos
elementos individuais na sociedade secreta é a sua desindividualização. Quando a
sociedade secreta não tem como finalidade imediata os interesses dos indivíduos
que a compõem, mas excede de certo modo seu papel, utilizando os seus membros
como meios para fins e ações estranhas e superiores a ela própria, a sociedade
secreta acentua o caráter de despersonalização, de nivelamento das individualidades
22
A dos “cavaleiros guelfos” foi uma sociedade secreta animada pelo neoguelfismo, um movimento
cultural e político que surgiu na Itália no campo católico e liberal nas primeiras décadas do século XIX,
participando das reflexões e propostas sobre quando e como conseguir a unificação italiana. (NT)
Georg Simmel | 433
pelo qual passa toda sociedade em geral, apenas pelo fato de sê-lo. Assim é como a
sociedade secreta compensa o caráter diferenciador e individualizante do segredo,
tal como descrito acima. Começa com as sociedades secretas dos povos da
natureza, cujos membros se apresentam e agem quase exclusivamente recobertos
por máscaras, a tal ponto que um dos principais especialistas nesta matéria pôde
dizer que, quando em uma sociedade tribal se encontram máscaras, deve-se pelo
menos presumir a existência de sociedades secretas em seu seio – pois a natureza
mesma das sociedades secretas exige certamente a ocultação dos seus membros
enquanto tais. No entanto, quando o indivíduo em questão se deixa ver e age
claramente como membro de uma sociedade secreta, e simplesmente não mostra
qual indivíduo – conhecido, de resto – é idêntico a esse membro, isso põe claramente
em evidência o desaparecimento da pessoa por trás do papel representado na
sociedade secreta. Na conspiração que organizaram grupos de exilados irlandeses
nos Estados Unidos, entre 1881 e 1886, que recebeu o nome de Campanha de
dinamite feniana 23 , os membros individuais do Clan na Gael, uma das principais
sociedades implicadas, nunca eram identificados pelos seus nomes, e sim por
números. É claro que isso tinha o objetivo prático de garantir o segredo, mas também
exemplifica como esse objetivo suprime a individualidade. Com pessoas que só são
chamadas por números e cujos nomes provavelmente seriam desconhecidos até dos
outros membros, os próprios chefes podem agir de maneira mais implacável, com
maior indiferença pelos desejos e capacidades individuais da que teriam se cada um
dos membros da associação fosse aceite enquanto entidade pessoal. Não é menor a
influência que a abrangência e a severidade do ritual têm no mesmo sentido, pois o
rito sempre indica que a forma objetiva predomina sobre o caráter pessoal nas
atividades e contribuições dos membros do grupo. A ordem hierárquica só admite o
indivíduo enquanto ator de um papel determinado de antemão, tendo para cada um
deles uma espécie de roupagem estilizada que oculta e apaga os contornos pessoais.
23
A Campanha de dinamite feniana (Fenian dynamite campaign) foi uma série de atentados à bomba
orquestrada por irlandeses exilados nos Estados Unidos contra o Império Britânico, entre os anos de
1881 e 1885. As operações foram associadas ao fenianismo, isto é, às organizações revolucionárias
irlandesas que pretendiam criar uma república irlandesa independente, como o Clan na Gael (ou
“Família dos gaélicos”), a Irmandade Republicana Irlandesa, a Irmandade Feniana, e os Irlandeses
Unidos de América. A campanha era uma forma de guerra assimétrica direcionada ao governo, alvos
militares e policiais britânicos. (NT)
434 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
se uma associação especial virá um dia a usar as suas energias e os seus recursos
em princípio legais a propósitos odiosos; daí a suspeita e o medo que os poderes
centrais devotam a qualquer forma de associação dos seus súditos. Quanto mais
fácil não será suspeitar de que perigo as associações secretas dissimulam por trás
de seu sigilo! As sociedades orangistas24 que se organizaram na Inglaterra de inícios
do século XIX com o objetivo de combater o catolicismo, evitavam qualquer
discussão pública, trabalhando sempre em segredo por meio de relações e
correspondências pessoais. Foi justamente esse comportamento reservado que as
fez parecer perigosas: suspeitou-se de que that men, who shrank from appealing to
public opinion, meditated a resort to force 25 . Só por causa do seu sigilo, as
sociedades secretas se afiguram demasiadamente próximas de uma conspiração
contra os poderes existentes. Mas isso não passa de uma suspeita exacerbada que,
em geral, as associações secretas despertam no mundo da política, como bem
mostra o exemplo seguinte. As guildas germânicas mais antigas ofereciam aos seus
membros uma proteção jurídica efetiva, assim substituindo o amparo que viria do
Estado. Por isso, os reis dinamarqueses as favoreceram, vendo nelas um suporte à
ordem pública. Todavia, por outro lado, pela mesma razão, essas corporações foram
consideradas competidoras do Estado, e por isso os decretos reais dos antigos
monarcas carolíngios as condenaram como conjurações. A tal ponto a sociedade
secreta é considerada uma inimiga do poder central que, inversamente, se dá esse
nome a qualquer associação política indesejável!
24
Fraternidades fundadas no final do século XVIII para comemorar os privilégios civis e religiosos
concedidos por Guilherme de Orange aos protestantes, em particular a sua vitória na batalha do Boyne
em face do rei católico Jaime II em 1690, assim como em resposta aos primeiros avanços do
nacionalismo irlandês que já tinha conseguido representação no Parlamento britânico e impulsionado
algumas tentativas separatistas. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “homens que evitavam expor-se à opinião pública, viessem
a tentar um golpe de força”. (NT)
VI. O cruzamento dos círculos sociais1
1
Uma parte deste capítulo foi tomada em empréstimo a nossa obra Über soziale Differenzierung.
Soziologische und psychologische Untersuchungen, Kapitel V. (NS) [Sobre a diferenciação social.
Estudos sociológicos e psicológicos, Capítulo V, publicada originariamente por Duncker & Humblot,
Leipzig, 1890. (NT)]
438 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ao contrário, têm com ele uma relação fundada objetivamente sobre as mesmas
disposições, inclinações, atividades, etc. E, deste modo, a associação baseada na
convivência exterior é substituída cada vez mais por uma associação fundada nas
relações de conteúdo. Da mesma maneira que o conceito mais abrangente reúne o
que um grande número de intuições muito diversas tem em comum, assim os pontos
de vista práticos mais abrangentes reúnem os indivíduos similares provenientes de
grupos totalmente estranhos entre si e sem vínculos recíprocos. Surgem, assim,
novos círculos de contato, que se entrecruzam nos mais diversos ângulos com os
círculos precedentes, relativamente mais naturais e constituídos com base nos
sentidos.
Lembraremos, por exemplo, que os grupos independentes, cujas associações
antigamente constituíram as universidades, estavam divididos segundo a
nacionalidade dos estudantes. Mais tarde, este modo de repartição foi substituído
pelas comunidades de estudos, que levaram às faculdades. Neste caso, vê-se com
muita clareza, como a comunidade geográfica e fisiológica, determinada pelo
terminus a quo, foi substituída radicalmente por outra síntese elaborada a partir do
ponto de vista da finalidade, do interesse interno e objetivo ou, se quisermos,
individual. Na mesma forma, ainda que em condições um pouco mais complexas, foi
produzida a evolução dos sindicatos ingleses. Inicialmente, reinava neles a tendência
a definir os diversos grupos pelo recrutamento local, excluindo-se os operários que
vinham de fora, critério que resultou em irremediáveis atritos e inveja entre as seções
assim divididas. Mas este estágio foi superado lentamente quando os operários
tentaram agrupar-se por profissão em todo o país. O fato seguinte, por exemplo,
consagrou essa mudança de forma. Quando os tecelões de algodão se pronunciaram
pela generalização de uma remuneração salarial uniforme por peça produzida se viu
claramente que essa reivindicação teria por consequência a concentração da
indústria nos centros favoravelmente localizados e significaria a ruína dos povoados
mais afastados. Todavia, até os representantes dessas localidades remotas votaram
a favor da remuneração salarial uniforme porque era o melhor para o conjunto da
profissão. Muito embora inicialmente se tratasse apenas de operários associados
com base numa atividade semelhante, a ênfase dessas associações recaía na
vizinhança geográfica, o que levava, sem dúvida, a cada profissão a estabelecer
Georg Simmel | 439
2
Refeições em comum realizadas amiúde à tarde pelos homens das cidades dóricas, especialmente
em Esparta e Creta. (NT)
440 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
os espartanos tinha já conseguido vencer o poder das associações por clãs. No resto
da Grécia, cada subdivisão do exército estava constituída por um mesmo clã ou por
um mesmo distrito; unicamente em Esparta o interesse militar objetivo superou tais
preconceitos, determinando por si só a divisão do exército.
Mesmo nos povos da natureza, como os africanos, observa-se como as
formações guerreiras centralizadas destroem a organização das tribos. Ademais, na
medida que as mulheres são em geral as representantes do princípio de associação
natural de tipo familiar, entende-se bem por que, nas organizações guerreiras, existe
uma hostilidade explícita contra tudo o que é feminino, estando as mulheres
desprovidas de poder social. O matriarcado, relativamente frequente nos povos
guerreiros, pode advir, por um lado, da separação rigorosa entre a vida civil e a vida
militar e, por outro, de motivos profundamente enraizados na psicologia pessoal. O
guerreiro é, com certeza, tirânico e brutal em casa, mas chega a ela fatigado, gosta
da comodidade física e do repouso, bastando que alguém cuide dele e se encarregue
de dirigir os assuntos práticos do lar para que fique apaziguado e indolente,
descuidado e satisfeito. Porém, não existe qualquer relação entre esses aspectos da
vida civil e o ponto de vista objetivo que faz explodir a tribo, e que cria a partir de seus
fragmentos uma nova entidade puramente racional. A questão decisiva aqui é que os
guerreiros formam um todo organizado a partir de interesses militares e excluem
quaisquer outros propósitos. Para atender outra perspectiva, os guerreiros podem,
sem dúvida, dispersar-se de novo em associações absolutamente diferentes, as
quais, todavia, seriam irracionais se interferissem com o todo organizado da primeira
associação.
Na escolha de companheiros da sissítia espartana, a liberdade era um
princípio de racionalização – o que frequentemente não é. Pois, graças a ela, as
qualidades da pessoa eram os fundamentos decisivos da união – um motivo de
associação totalmente novo e revolucionário que, apesar do viés arbitrário e
irracional que pudesse haver em outras circunstâncias, era claramente
compreensível, contrariando os motivos até então prevalentes. Nesse mesmo
sentido a “liberdade de associação” atuou nos três últimos séculos da Idade Média
germânica. Nos primeiros tempos das comunidades aldeãs livres a associação dos
membros derivava de sua localização geográfica; depois, na época feudal, a relação
Georg Simmel | 441
com um único senhor criou outra razão de unir-se muito distinta, porém claramente
externa; deveu-se aguardar o reconhecimento da “liberdade de associação” para que
esse fundamento passasse a ser a própria vontade dos indivíduos agrupados.
Compreende-se facilmente que isso conduziu ao surgimento de formações
absolutamente singulares para a vida em comum dos indivíduos, assim que aqueles
antigos motivos (que pareciam obedecer sobretudo ao destino e estavam longe de
assentar-se nas pessoas) foram substituídos ou neutralizados por outros
fundamentos espontâneos.
Todavia, a forma de associação posterior desenvolvida sobre um modo
anterior e originário, não é necessariamente mais racional. Suas consequências, para
a vida interior do indivíduo e para sua posição exterior, adquirem nuances
particulares quando as duas espécies de vínculos que o governam (os irrelevantes à
vontade pessoal do sujeito e os livremente escolhidos) estão fundadas em causas
igualmente profundas e orgânicas, situadas para além do seu livre arbítrio ou
fantasia. Os indígenas da Austrália, de cultura social pouco desenvolvida, vivem em
pequenas bandas de caçadores coletores, relativamente muito unidas. Ademais,
todos eles se dividem em cinco gentes ou associações totêmicas, de modo que, em
cada banda, se encontram membros de diversas gentes, e cada gente se estende
sobre várias bandas. Dentro da banda, os membros do clã totêmico não formam uma
união rígida. Seu vínculo perpassa igualmente todas essas divisões, constituindo
todos juntos uma grande família. Quando, numa batalha entre duas bandas, os
membros do mesmo clã totêmico se encontram, eles se evitam reciprocamente e
procuram outro adversário (o mesmo se refere, também, dos habitantes das ilhas
Mortlack). As relações sexuais entre homens e mulheres se conformam
simplesmente aos vínculos de pertença à mesma gente, ainda que os parceiros
nunca se tenham encontrado antes, por pertencerem a bandas diferentes. Para estes
entes de parcos recursos, incapazes de um modo de associação verdadeiramente
racional, pertencer a dois grupos, rigorosamente separados de modo horizontal e
vertical, significa com certeza um enriquecimento de seu sentimento de vida, tensão
e duplicação da existência que de outro modo não poderiam viabilizar.
Outro cruzamento de forma igual, mas de conteúdo e efeitos muito diversos,
ocorre na vida familiar das sociedades complexas, em virtude da pertença a um
442 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
mesmo gênero. Quando, por exemplo, a mãe do marido intervém numa briga
conjugal, seus instintos – na medida em que agem a priori, e independentemente dos
aspectos específicos de cada caso – tenderão a defender as razões do filho, que é
do seu sangue e, outras vezes, mais para a nora, que é de seu gênero. A comunidade
de gênero figura entre os motivos de associação que perpassam constantemente a
vida sociológica e se entrecruzam com todos os demais, das mais variadas maneiras
e com diversos alcances. Em geral, funcionará como uma causa orgânica, natural,
em face da qual a maioria das outras terá algo de natureza individual, voluntária e
consciente. Todavia, no caso mencionado, talvez se possa ter o sentimento de que a
relação entre mãe e filho é determinada e age naturalmente, ao passo que a
solidariedade entre duas mulheres é uma coisa à parte, refletida, mais importante
como conceito universal do que como energia imediata. A comunidade de gênero
constitui muitas vezes um tipo especial de motivo de associação: em sua realidade
concreta, ela é absolutamente primária, fundamental, oposta a todo arbítrio. Para
tornar-se ativa, entretanto, precisa amiúde de mediação, de reflexões e atividades
conscientes, a tal ponto que outra motivação objetivamente mais tardia e fortuita,
pode funcionar ante a comunidade de gênero como primária e necessária
– confirmando mais uma vez o ditado segundo o qual “o último pros hemas (para
nós), é o primeiro phusei (por natureza)”3.
No que diz respeito a essa posição intermédia entre o caráter orgânico e o
racional, o motivo sociológico da comunidade com afinidade por idade se assemelha
formalmente à comunidade de gênero, podendo inclusive constituir, em
circunstâncias pouco complexas, um princípio que sirva de base à divisão do grupo
por inteiro. Assim, em Esparta, por volta do ano 220 a.C., os partidos políticos se
designavam com os nomes de presbíteroi (anciões), néoi (jovens), neanískoi (moços
– na flor da idade), etc. Em alguns povos da natureza os homens se organizam em
classes de idade. E cada uma delas se atribui uma posição social diversa, assim
como distintas funções e maneiras de viver. Tal motivo de associação é
absolutamente pessoal e, ao mesmo tempo, cabalmente supraindividual,
Aparentemente, a associação só é possível dessa forma supraindividual onde a
3
Por razões tipográficas optamos por transliterar em caracteres latinos as palavras gregas escritas
em itálico neste e no parágrafo seguinte, e que figuram em caracteres gregos no original do autor. (NT)
Georg Simmel | 443
4
A expressão Quattrocento refere-se aos eventos culturais e artísticos do século XV na Itália
analisados em conjunto. Engloba tanto o final da Idade Média quanto o começo da Renascença. (NT)
5
Roberto I de Nápoles, cognominado O Sábio (1278 -1343), foi um nobre napolitano da Casa capetiana
de Anjú, Rei de Nápoles, Duque da Calábria, rei titular de Jerusalém, e conde da Provença e Forcalquier.
(NT)
6
Francisco Petrarca (1304 – 1374) foi um intelectual, poeta e humanista italiano, famoso,
principalmente, devido ao seu romanceiro, sendo considerado o inventor do soneto. Baseado no
trabalho de Petrarca (e também nos de Dante e Boccaccio) Pietro Bembo criou, no século XVI, o
modelo para o italiano moderno. (NT)
7
Trata-se do Colégio de França,. Este estabelecimento de ensino superior foi fundado, como dito, por
Francisco I em 1530, para atender a um pedido do erudito Guilherme Budé. Originariamente
denominado Colégio Real, teve diferentes designações (Colégio das Três Línguas, Colégio Nacional e
Colégio Imperial), antes de receber seu nome atual em 1870. Com sede em Paris, a instituição segue
Georg Simmel | 445
uma parte, e todo o resto que pudesse ter algum valor. Essa separação permitiu que
o Senado de Veneza escrevesse à Cúria romana, quando extraditou a Giordano
Bruno8, que este era “um dos mais perigosos hereges”, que tinha feito “as coisas mais
repreensíveis e levado uma vida devassa e quase diabólica”, mas que, “de resto, é um
dos espíritos mais distintos que se possa imaginar, dono de uma sabedoria maior e
de uma infrequente abertura de espírito”. O humor vagabundo, assim como o espírito
aventureiro dos humanistas, e até mesmo seu caráter às vezes volúvel e imprevisível,
correspondia à independência do espiritual a respeito de todas as demais exigências
impostas aos homens – autonomia que era o âmago da vida dos humanistas e os
fez indiferentes às necessidades. Evoluindo na paisagem variegada das diversas
formas de vida, cada um dos humanistas reproduzia a condição do humanismo, que
abrangia em um único quadro de interesse intelectual o pobre monge erudito e o
grande capitão ou a magnificente princesa. O que abriu caminho para a ocorrência
de um fato extremamente importante para determinar com precisão e exatidão a
estrutura da sociedade: a possibilidade de utilizar o critério da intelectualidade como
princípio para a diferenciação e formação de círculos novos – algo do qual já tinha
havido exemplos na Antiguidade. Até então esses critérios tinham sido ou voluntários
(econômicos, militares, políticos) ou afetivos (religiosos) ou produto de uma mistura
de ambos (familiares). O fato de que a intelectualidade, o gosto ou interesse
pronunciado pelo conhecimento, constitua círculos cujos membros procedem de um
grande número de círculos já existentes é uma espécie de intensificação do
fenômeno acima indicado, no sentido de que os agrupamentos relativamente tardios
(criados com frequência a partir de uma reflexão consciente e uma finalidade
razoável) têm caráter racional. Essa natureza formal das formações secundárias se
exprime do modo mais claro e decidido na constituição de círculos centrados em
interesses intelectuais.
Ora, o número dos diversos círculos aos quais o indivíduo pertence é um dos
melhores indicadores para medir sua cultura. O homem moderno pertence
sem confundir-se com as universidades ou outros centros de pesquisa, pois ainda que ofereça
dezenas de cursos e seminários, são todos de livre frequência e sem direito a diplomas oficiais. (NT)
8
Giordano Bruno (1548 – 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana, acusado de heresia e de defender erros
teológicos. (NT)
446 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
primeiramente à família de seus pais, depois àquela que ele próprio tundou e, por
conseguinte, à de seu cônjuge, e por fim a sua profissão, que o vinculará a diversos
círculos de interesse (em toda profissão organizada em superiores e subordinados,
cada um pertencerá ao círculo de sua loja, de seu departamento ou de seu escritório
particular, que em cada caso reunirá os níveis superiores e inferiores, mas ele
também pertencerá ao círculo constituído pelos de sua mesma categoria dentro de
cada loja, etc.). O indivíduo é consciente de sua nacionalidade e de pertencer a
determinada classe social. Além disso, pode ser oficial da reserva, fazer parte de
algumas associações e ter um estilo de vida e formas de relacionamento que o
ponham em contato com diversos círculos. Tudo isso supõe grande quantidade de
grupos. Alguns deles estão no mesmo pé de igualdade, mas outros podem ser
ordenados de forma tal que um deles apareça como a relação original que leva o
indivíduo a relacionar-se ou pertencer a um círculo mais longínquo, em razão de suas
características particulares que o diferenciam de outros membros do primeiro
círculo. Isso não impede que a conexão com o círculo de origem continue subsistindo
– tal como acontece com um indivíduo que faz parte de um grupo complexo que, pelo
fato de ingressar depois, psicologicamente, em outras associações mais objetivas,
não perde os laços que o ligam ao complexo do qual participa no espaço e no tempo.
Na Idade Média, o indivíduo podia pertencer a círculos típicos de valor menos
singular que o correspondente a seu estatuto de natural ou habitante livre de um
burgo. A Liga Hanseática 9 vinculava várias cidades entre si, fazendo o indivíduo
entrar em um círculo de ação que não só ultrapassava os limites de cada burgo, mas
as fronteiras do próprio Império. As corporações profissionais, por sua vez, não se
preocupavam com a alçada jurídica das cidades, mas integravam o indivíduo em
associações que iam além das demarcações urbanas e se estendiam por toda a
Alemanha. E da mesma maneira que o vínculo corporativo deixava para trás as
fronteiras da cidade, o liame da camaradagem dos artesãos transpunha os limites da
guilda.
9
A Liga Hanseática foi uma aliança de cidades mercantis alemãs ou de influência germânica que
estabeleceu e manteve um monopólio comercial sobre quase todo o norte da Europa e o Báltico entre
os séculos XII e XVII. Abrangeu cerca de cem cidades, com Lubeque como centro. Ainda que de início
tivesse caráter essencialmente econômico, desdobrou-se posteriormente numa duradoura aliança
política. (NT)
Georg Simmel | 447
deles deixa ainda uma margem de ação relativamente ampla. Porém, quanto maior o
número de grupos, menor é a probabilidade de que existam outras pessoas com a
mesma combinação de grupos, assim como é menor a probabilidade de que os
numerosos círculos se cruzem novamente em outro ponto. Assim como o objeto
concreto perde sua individualidade quando graças s uma de suas qualidades fica
subsumido a um conceito geral, mas torna a recobrar os atributos que constituem
sua unicidade à medida que surgem outros conceitos gerais nos quais suas restantes
qualidades podem ser subsumidas (para usar termos platônicos, cada coisa participa
em tantas ideias como qualidades possui, obtendo sua determinação individual), o
mesmo sucede com a pessoa em face dos diversos círculos a que pertence.
Foi dito que o objeto substancial que temos perante nós é a síntese das
impressões sensíveis que nos produz, de modo que seu ser é tanto mais firme quanto
maior seja o número de impressões qualitativas que determine sua existência. Da
mesma maneira, é a partir dos diversos elementos da vida que todos nós ficamos
socialmente misturados, por constituirmos o que chamamos de subjetividade por
excelência, ou a personalidade, capaz de combinar de modo individual e próprio os
elementos da cultura. Uma vez que a síntese do subjetivo produz o objetivo, a síntese
do objetivo engendra, por sua vez, uma subjetividade nova e mais elevada. De igual
modo, a pessoa se abandona ao círculo social e submerge nele para voltar a
recuperar sua singularidade pelo cruzamento de círculos sociais em seu interior. De
resto, sua determinação final se converte, assim, em uma espécie de contrapartida
de sua determinação causal. Considerando sua origem, nós a explicamos como o
ponto de cruzamento de inumeráveis fios sociais. A pessoa configura-se como o
resultado da herança dos mais diversos círculos e períodos de adaptação, da mesma
maneira que interpretamos sua individualidade como a singularidade das
quantidades e as combinações de elementos da espécie. Mas, se passamos a
considerá-la novamente junto com a pluralidade de seus instintos e interesses nas
organizações sociais, podemos dizer que a pessoa constitui um reflexo que restitui o
que recebe, de forma análoga, porém mais consciente e elevada.
A personalidade moral adquire novas determinações, e é confrontada com
problemas imprevistos ao deixar de enraizar-se firmemente em um único círculo,
para situar-se na interseção de muitos outros. À sua antiga posição, certa e sem
Georg Simmel | 449
10
Ideia que o filósofo Franz Rosenzweig faz sua quando diz que “traduzir significa servir dois senhores
ao mesmo tempo”. (NT)
11
Povo banto pastoril, habitante da colônia do Sudoeste Africano alemão, hoje Namíbia. Quase setenta
por cento de seus indivíduos foram exterminados entre 1904 e 1907 vítimas do que é considerado
como o primeiro genocídio do século XX. (NT)
450 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
12
O bis in idem é um fenômeno do direito que consiste na repetição (bis) de uma sanção sobre o
mesmo fato (in idem). (NT)
454 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
13
Estes termos designam, em realidade, uma parte da massa dos servidores cuja condição social
melhorou consideravelmente na vaga das transformações econômicas que conheceu Ocidente
durante os séculos XI e XII, a saber, os representantes da burguesia urbana nascente. (NT)
14
Termo latino pós-clássico usado na Idade Média principalmente no território do Sacro Império para
designar agentes ou servidores especiais. Originariamente, se tratava de servos que tinham
capacidades administrativas superiores e que foram empregados por seus senhores para
desempenhar uma série de funções nas cortes, nas milícias, nos feudos e territórios e na
administração pública. Com o passar do tempo a classe foi regulamentada, aumentando seu prestígio,
vindo a constituir um estrato social de grande relevo, assumindo os cargos administrativos mais
elevados como senescal, mordomo, camareiro, castelão, juiz, burgomestre e marechal. (NT)
Georg Simmel | 455
15
No antigo direito inglês, os justice in Eyre eram os mais altos magistrados encarregados de aplicar
a lei florestal medieval. A este título presidiam uma corte itinerante para punir os infratores dessa
normativa e investigar o estado dos bosques e o comportamento dos oficiais que deviam cuidar deles.
(NT)
16
Os barons of the Exchequer ou barones scaccarii, eram os juízes da corte inglesa conhecida como
Exchequer of Pleas (Tribunal do Tesouro). Constavam de um Chief Baron of the Exchequer (Barão
Chefe do Tesouro) e vários Barões de puisne (isto é, juniores). Juntos, julgavam como um tribunal de
common law e de equidade, resolvendo disputas tributárias. (NT)
17
Um tribunal se reúne in Banco quando um caso é ouvido perante todos os juízes dessa corte e não
por um painel de magistrados selecionados a partir deles. Assim ocorria durante a Idade Média na
mais alta jurisdição judicial da Inglaterra. (NT)
18
Razão de ser ou de saber. (NT)
Georg Simmel | 457
19
Segundo as descrições de Henri Saval (advogado e historiador francês do século XVII), contidas na
sua Chronique escandaleuse de Paris ou Histoire des mauvais lieux (1883), e que provinham, em parte,
do Jargon ou langage de l’argot, (um livrinho popular que Olivier Chereau de Tours teria escrito por
volta de 1630), os mendigos de Paris estavam hierarquizados e perfeitamente organizados em uma
corporação, com “leis” e uma língua (o argot) próprias; tendo chegado a eleger um “rei” que recebia o
nome de “grande Coesre” ou “rei de Thunes”. (NT)
460 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
visível quando esse impulso (em face de todas as conexões baseadas em outros
motivos) é suficientemente independente e forte, para reunir todos os crentes de uma
mesma confissão por cima das diferenças provenientes de seus outros
engajamentos. Evidentemente, esta última das formas sociológicas em que pode se
expressar a essência da religião é eminentemente individualista: o sentimento
religioso libera-se aqui do sustento que sua imbricação no plexo dos demais laços
sociais lhe oferecia e se refugia na alma individual e na sua responsabilidade
– tentando logo assentar na própria alma as pontes que a ponham em comunicação
com as almas da mesma religião, que talvez não coincidam já em nada mais. O
cristianismo em seu sentido mais puro é uma religião individualista – só fica atrás
do budismo primitivo que, aliás, não é uma religião propriamente dita, mas uma
doutrina da salvação pessoal sem mediação transcendente –, o que lhe permitiu
espalhar-se na imensa variedade dos grupos nacionais e locais. Da mesma maneira
e inversamente, a consciência que o cristão tem de levar a sua fé dentro de si a
qualquer comunidade (sem importar o caráter do grupo e as obrigações que ele
imponha), deve, com certeza, ter fortalecido seu sentimento de determinação
individual e de autoconfiança.
O valor sociológico da religião é um reflexo de sua ambivalência genérica
perante a vida. Ora ela se opõe a todos os conteúdos de nossa existência, sendo o
pendant, o equivalente da vida em geral, intangível em seus seculares movimentos e
interesses; ora, apesar de tudo, toma partido entre todos os partidos da vida por cima
dos quais se situava a princípio. Torna-se assim um elemento ao lado de todos os
outros elementos, e se complica numa pluralidade de relações e alternativas que,
naquele primeiro sentido tinha rejeitado. Produz-se assim um curioso
entrelaçamento: a recusa de todo vínculo sociológico, própria da religiosidade
profunda, permite ao indivíduo pôr o círculo de seus interesses religiosos em contato
com todos outros tipos de círculos cujos membros não partilham com ele outros
conteúdos comuns da vida – e os cruzamentos ocasionados servem, por sua vez,
para dar relevo e determinar sociologicamente os indivíduos e os grupos religiosos.
Esse esquema se repete logo nas especificações do religioso e nas suas singulares
combinações com os demais interesses dos sujeitos. Quando dos conflitos entre a
Georg Simmel | 463
20
Seguidores do protestantismo, especialmente aqueles de orientação calvinista, que foram assim
denominados pelos católicos franceses durante os séculos XVI e XVII. (NT)
21
O autor se refere à China da dinastia Qing, que vigorou até 1912. (NT)
22
Em sua acepção geográfica de origem, um “ultramontano” é uma pessoa que vive além dos montes.
A partir do século XVIII o termo qualificava os juristas que deram um valor absoluto às decisões da
Cúria romana. Na disputa entre canonistas próximos de Roma e canonistas galicanos (que defendiam
a independência administrativa da Igreja Católica Romana de cada país com relação ao controle papal)
a palavra adquiriu uma conotação pejorativa equivalente a de obscurantista ou papista. No espaço
germanófono esta utilização consolidada pela prática desapareceu aos poucos, apesar de um breve
recrudescimento na Suíça em certos meios protestantes extremistas, até os anos 1950. (NT)
464 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
mais gritante seja a união de Inglaterra e Escócia, de 170723. O benefício para ambas
as partes da constituição de um único Estado provinha da subsistência das duas
Iglesias 24 . Até então as instituições política e religiosa estiveram estreitamente
associadas em ambos os reinos – e só quando política e religião foram separadas
os interesses políticos puderam amalgamar-se, coisa que os interesses religiosos
não teriam admitido. Como se tem dito a propósito destes dois países: they could
preserve therefore harmony only by agreeing to differ 25 . Uma vez ocorrida esta
separação, com sua sequela de possíveis cruzamentos, a liberdade assim adquirida
não poderia voltar atrás por uma decisão das partes. Porque o princípio cuius regio,
eius religio26 unicamente tem legitimidade quando não precisa ser expressamente
consagrado, e resulta apenas da expressão do estado originário de unidade orgânica
e da indiferenciação primitiva.
Nesta ordem de ideias, é digno de nota um fenômeno singular. Ele se produz
quando o ponto de vista religioso, passando por cima dos restantes motivos de
separação, fusiona pessoas e interesses que na realidade deveriam ser
diferenciados, porque esta união é sentida como se estivesse motivada por razões
exclusivamente objetivas de distinção. Assim, por exemplo, em 1896, os operários
judeus de Manchester se reuniram numa associação que devia compreender
expressamente todas as categorias de trabalhadores (em especial alfaiates,
sapateiros e padeiros) e que pretendia fazer causa comum com os demais sindicatos
em tudo o que fazia aos interesses dos operários – ignorando que esses outros
sindicatos estavam organizados conforme a divisão do trabalho e segundo as
categorias objetivas dos diferentes tipos de trabalho (de um modo tão radical que, na
época, as trade unions se tinham negado a entrar na Internacional porque esta última,
23
Da qual resultou um trono britânico único, a dissolução dos parlamentos escocês e inglês e sua
substituição pelo novo parlamento da Grã-Bretanha, em Westminster. (NT).
24
Respeitada apesar da concomitante unificação das instituições políticas, ela aludia às confissões
anglicana e presbiteriana, predominantes em cada um dos dois países. (NT)
25
Em inglês no original alemão de Simmel: “Por esta razão, somente poderão conservar sua harmonia
concordando na necessidade de diferenciar-se”. A citação corresponde a Thomas B. Macaulay,
History of England from the accession of James II, Nova Iorque, International Book, 1890, vol,3, p. 241.
(NT)
26
Cuius regio, eius religio (também: cuius regio, illius religio), é um ditado latino, que afirma que o
governante de um país tem o direito de impingir sua religião aos seus súditos. É a forma abreviada de
um princípio jurídico estabelecido na Paz de Augsburgo e na Paz da Vestefália. A expressão latina foi
cunhada pelo professor Joachim Stephani, da Universidade de Greifswalder, em uma publicação de
1612. (NT)
Georg Simmel | 465
as leis do Estado) podem não conter preceito algum referente àquela exclusiva
maneira de proceder27. Os círculos particulares que podem coincidir também em uma
única pessoa elaboram conceitos especiais ou restritos da honra, enquanto o círculo
mais amplo cria um conceito geral ou abstrato da honra diferente daquele que vigora
em alguns círculos particulares, embora, de resto, possa reger igualmente a conduta
dos membros desses grupos. Tudo isso converteu as complexas normas da honra
em símbolos dos círculos. Existe uma honra negativa de classe, espécie de ”desonra
de classe” que pode ser relativamente permissiva em relação ao comportamento
considerado honorável do ponto de vista da moral universal ou do conjunto da
sociedade, e que, em vez de acrescentar exigências – como faz a honra positiva de
classe –, subtrai-lhe certa latitude. Assim algumas categorias de comerciantes,
particularmente os especuladores, mas também o pequeno penny-a-liner28 e o demi-
monde29 podem permitir-se certas atitudes justificadas pela consciência de classe
sem qualquer pejo para recorrer a práticas que, em geral, não são consideradas muito
honrosas. Mas junto a esta desonra de classe, o indivíduo pode, quanto ao resto, ser
absolutamente honrado (no sentido tradicional) nas suas relações humanas
cotidianas. Desse modo, o respeito à honra específica de sua classe não impede que
o indivíduo se comporte desonrosamente segundo as ideias básicas das formas de
viver. Assim, diversos aspectos da pessoa podem obedecer a outras tantas
concepções da honra que são reflexos dos diferentes grupos aos quais ela pertence
simultaneamente. Por exemplo, a mesma exigência pode apresentar-se com ênfases
diferentes. “Não tolerar uma ofensa sem digna reparação” pode ser o lema de alguém
que se comporta de formas muito díspares na sua vida privada, no escritório ou como
oficial reformado. Respeitar a honra das mulheres para defender sua honra de
homem pode ter resonâncias diferentes numa família de pastores protestantes ou
num círculo de tenentes novos. Um membro deste último grupo, proveniente do
primeiro, poderia perceber nele mesmo, pelo conflito entre esses conceitos de honra,
27
Este aspecto será tratado com mais pormenor no capítulo sobre a autopreservação. (NS)
28
Termo coloquial e geralmente pejorativo usado para se referir a um jornalista que é pago para
escrever textos de baixa qualidade, apressados ou redigidos "a pedido", muitas vezes com um curto
prazo O termo é usado para se referir a um tipo de escrevedor que é considerado como um
"mercenário" ou "caneta para contratar", que expressa as opiniões políticas de seus clientes em
artigos geralmente pagos pelo número de palavras ou linhas. (NT)
29
Grupo de mulheres mundanas, de moral ambígua, e de aqueles que as frequentam. (NT)
468 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
30
Naturalmente, isso pode também produzir-se sobre outra base política, por exemplo, quando
tendências decididamente individualistas se confrontam com uma forte tutela do Estado. Neste caso
a ênfase recai sobre o elemento individual da associação, da margem de liberdade de que esse
elemento desfruta perante a coerção do Estado, graças à qual o indivíduo adquire um ponto de apoio
formal contra aquele. Como no caso mencionado no texto, cruzamos também aqui sentimentos
sociológicos de liberdade e sujeição, só que ali os primeiros pertencem ao agrupamento político e os
segundos ao associativo. Aqui sucede o contrário. O mesmo acontece no segundo exemplo do texto.
(NS)
470 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
31
O Conseil d’en-haut era o nome atribuído ao Conseil d’Etat ou Conseil des Affaires sob Luis XIV e
Luis XV. Era assim chamado porque tinha sua sede no segundo pavimento do castelo de Versalhes,
perto dos aposentos reais. (NT)
32
O Diretório foi o regime político adotado pela Primeira República francesa entre o 4 brumário do ano
IV (26 de outubro de 1795) e o golpe de Estado do l8 brumário do ano XVIII (9 de novembro de 1799).
Foi assim chamado porque o poder executivo era exercido por cinco membros, denominados diretores.
(NT)
Georg Simmel | 471
33
Na verdade, a estrutura de governo da Monarquia espanhola tudo ao longo dos séculos XVI a XVIII
se define como polisinodal, quer dizer, com multiplicidade de Conselhos. Estes derivam do Consilium
ou Curia Regis, reunião de notáveis que aconselhavam a tomada de decisões políticas aos monarcas
alto-medievais em cumprimento do dever de conselho, que junto com a ajuda militar eram o resumo
dos compromissos do vassalo com seu senhor. (NT)
34
Em italiano no original alemão de Simmel: “das Índias, de Castela, de Aragão, da Inquisição, da
Câmara, das Ordens, da Guerra, da Fazenda, de Justiça, da Itália, de Estado” Em diversos momentos
também existiram os Conselhos de Flandres, da Cruzada e de Portugal. Este último, criado em 1582,
seguiu existindo apesar da Restauração portuguesa de 1640, pois Filipe IV não reconheceu a
independência lusa. Foi extinto com o Tratado de Lisboa de 1668. (NT)
472 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
exemplo, dos médicos naturistas que afirmam poder curar todos os males
exclusivamente com água. Bem se vê que esta é uma medicina tão parcial como a
dos médicos egípcios. A diferença é que, graças ao progresso moderno, a medicina
não tem mais um caráter local, mas uma natureza funcional – o que prova que,
mesmo evoluída, segue reconhecendo a diferença entre os métodos exteriores e
mecanicistas e os princípios heurísticos objetivamente adequados. Podemos
encontrar também essa forma (que substitui a antiga diferenciação ou classificação
por uma nova distribuição) nos estabelecimentos mercantis que vendem todos os
insumos necessários para a produção de objetos complexos, como, por exemplo, o
material destinado às estradas de ferro, os artigos de que os donos de restaurantes
e de hotéis precisam, aqueles dos que se abastecem dentistas e sapateiros, assim
como os que fornecem as tendas e demais estabelecimentos que comercializam os
utensílios de casa e cozinha, etc. O ponto de vista unitário, que reúne objetos
provenientes dos círculos de fabricação mais variados não é outro que a sua
referência a um terminus ad quem, ou seja, a uma mesma finalidade, para a qual
todos eles servem – embora, por outro lado, a divisão do trabalho se firme sobre a
unidade de um terminus a quo, quer dizer, de um mesmo modo de produção na
origem dos objetos fabricados. Essas lojas (que têm, certamente, como condição
necessária a unidade mencionada) representam uma maior divisão do trabalho na
medida em que reúnem, desde um ponto de vista novo, elementos que provêm de
ramos da indústria completamente heterogêneos, mas que estão ligados por uma
relação de pertença também nova, sutil e fundamental.
35
Finalmente, as centrais de compras representam também outros
cruzamento e organização da esfera objetiva por um princípio não objetivo,
sobretudo aquelas que reagrupam as encomendas de determinadas categorias
profissionais: operários, oficiais e funcionários. As ordens de compra das duas
últimas categorias se referem, com poucas exceções, aos mesmos artículos
35
Uma “central de compras” é uma organização que tem por objeto reagrupar as ordens de compra
ou encomendas de um conjunto de membros. A estrutura oferece simultaneamente condições de
promoção e melhores condições de venda como resultado de economias de escala e estratégias de
negociação. Pois no geral se conseguem melhores preços dos fornecedores, em situações nas quais
os compradores, agindo individualmente, não teriam força para negociar com empresas ou centrais
de vendas de porte médio ou grande. (NT)
Georg Simmel | 473
propostos, razão pela qual o elemento de separação das duas centrais é puramente
formal e independente da própria coisa. Aperceber-nos-emos facilmente, porém, de
sua utilidade: a grande loja destinada aos funcionários alemães é uma sociedade por
ações, que encara seus clientes como qualquer outro comerciante, que deveria,
portanto, mais bem atingir os seus fins quanto maior for o número de pessoas que
compre no estabelecimento, sem que a limitação a um determinado círculo fosse
necessária para funcionar e obter resultados. Todavia, se ela tivesse sido aberta
como uma simples central de vendas acessível a todos sem distinção, ou mesmo
como um estabelecimento comum, que vende boa mercadoria a um bom preço, o
sucesso teria sido seguramente menor. Foi precisamente essa limitação a algumas
pessoas, completa e objetivamente inútil, que permitiu suprimir os obstáculos e as
hesitações que normalmente tornam os negócios mais difíceis, restrição que exerceu
grande atração sobre todos aqueles que faziam parte desse círculo exclusivo, ainda
que, no fundo, a causa dessa atração não tenha sido outra que a exclusão dos
demais. A totalidade desses fatos – talvez com exceção do último mencionado –
carece de importância sociológica. Eles servem aqui apenas como analogias das
combinações sociológicas, para demonstrar que as formas e normas gerais que
dominam em tais desenvolvimentos se aplicam para muito além da esfera
sociológica. A unidade exterior e mecânica das coisas, a decomposição e
recomposição racional e objetiva dos elementos, a construção de novas totalidades
a partir de pontos de vista mais elevados e mais amplos, são formas típicas da alma
humana. Do mesmo modo que as formas sociológicas se manifestam em um número
infinito de conteúdos, essas mesmas formas revelam funções fundamentais e mais
gerais que jazem no fundo da alma. Forma e conteúdo são apenas conceitos
relativos, categorias do conhecimento para o controle dos fenômenos e para sua
organização intelectual, de modo que uma mesma coisa, em determinada relação e
observada de cima, apresenta-se como uma forma, enquanto na observação de baixo
defini-se como um conteúdo.
A coesão dos operários assalariados é um excelente exemplo de síntese para
a unidade e formação da consciência social. Isso é particularmente interessante pelo
elevado nível de abstração que se antepõe às particularidades supraindividuais. Seja
qual for o trabalho de cada indivíduo, construir canhões ou brinquedos, o fato formal
474 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
de profissão de seus membros – como já dissemos mais acima – mudou logo esse
critério para organizá-los em sindicatos profissionais, essa não foi mais que uma
decisão técnica mais útil para os interesses gerais dos operários, pois também aqui,
no fundo, o ponto de partida e de chegada sempre foi o conceito de “operário
genérico”.
Este conceito que neutralizava 36 todas as diferenças profissionais e que
possuía apenas uma significação lógica, passou a ter também uma feição jurídica.
Os direitos à proteção do operário em face dos infortúnios laborais, e o conjunto de
ações dos poderes públicos que asseguram a saúde e a assistência dos
assalariados, criaram o conceito jurídico de operário ao qual atribuíram um conteúdo
– nos termos do qual o simples fato de alguém exercer, sob as ordens de outrem e
mediante salário, um trabalho (especialmente manual ou mecânico) traz para ele
certas consequências jurídicas. Decorrências que não acabam por aqui, pois além
dessas significações lógicas, éticas e jurídicas, a transversalidade da supressão de
todas as diferenças de ofício tem outros correlatos estritamente factuais, como
possibilitar a “greve geral” – greve que não serve aos fins de um único sindicato, mas
para obter certos direitos políticos para o conjunto da classe trabalhadora, como a
greve dos cartistas37 ingleses em 1842 ou a greve dos operários belgas em 1893. É
interessante constatar de que modo o conceito de “operário”, uma vez que ele
apareceu em sua universalidade absoluta, introduz o mesmo caráter e as mesmas
consequências até nas estruturas menores. Na França, existe desde 1884 uma lei
sobre associações profissionais que autoriza a vinte ou mais pessoas que pertençam
ao mesmo ofício ou a uma atividade conexa, a constituir, sem autorização do
governo, um sindicato profissional. Na esteira da normativa citada, formou-se depois
um sindicato de “operários ferroviários” que não exercem, de fato, as mesmas
atividades profissionais. O que esses ferreiros, carregadores de malas, guarda-
chaves, assentadores de trilhos, estofadores, condutores de locomotivas e
mecânicos têm em comum é exclusivamente ser operários ao serviço da estrada de
36
Utilizamos aqui o verbo “neutralizar” em sua significação linguística de “anular uma oposição em
determinados contextos, continuando a funcionar em outros”. (NT)
37
Partidários do movimento político de cunho reformista, na Inglaterra dos anos 1837 a 1848,
denominado “cartismo”, do qual resultou a Carta do Povo, redigida em 1838, que continha o programa
do grupo. (NT)
476 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ferro. O objeto da constituição desse sindicato é que, através dele, cada uma dessas
profissões pode exercer sobre a administração uma forte pressão que por si só não
seria capaz de fazer sentir. Pelo mesmo modus operandi de lógica formal o
significado de “operário genérico” se transforma no de “ferroviário genérico”,
conceito meramente prático em que se apagam todas as particularidades do seu
trabalho. A forma com que o conceito mais amplo chega ao mesmo resultado
costuma ser a coalizão de coalizões. Nesse caso, (em que a primeira associação
elimina todos os aspectos pessoais e apenas resta o conceito puro de marceneiro ou
de sapateiro, de soprador de vidro ou de tecelão), surge clara e facilmente, como
instância suprema, o conceito puro de “operário”, que suprime todas as diferenças
advindas do conteúdo do trabalho. Ao pedreiro, naturalmente pouco importa que o
tecelão da manufatura de algodão que pertence a sua mesma federação sindical,
obtenha um salário horário maior ou menor. Por conseguinte, se a federação sindical
procura obter melhores condições de trabalho, não faz isso desde o ponto de vista
do indivíduo, mas desde aquele do conjunto dos operários.
O mesmo acontece quando patrões de diversos ramos de atividade básica se
associam. O patrão de uma empresa inserida em certo ramo ou área do mercado, não
tem interesse pelas relações que possa manter com seus próprios operários o patrão
de outro ramo de atividade. A posição do patrão é buscar o fortalecimento da
associação dos empregadores em geral em face do operário genérico. Esse conceito
genérico de patrão aparece necessariamente em correlação com o de operário. Tal
sincronismo lógico, entretanto, não se torna imediatamente psicológico e prático.
Sem dúvida, essa dinâmica decorre essencialmente de três tipos de razões: o número
dos patrões é menor do que dos operários (quanto mais exemplares existem de um
gênero, mais facilmente o conceito geral se forma); a concorrência dos patrões entre
si, que não existe entre os operários; e, finalmente, a atividade patronal se confunde
com o conteúdo de cada ramo, o que se atenua nos últimos tempos pela sublimação
do capitalismo. As técnicas industriais modernas tornam o operário muito mais
indiferente à especificidade do seu trabalho do que o patrão à particularidade da sua
fábrica. Por estar vinculado aos outros operários para além do conteúdo particular
de seu trabalho, o assalariado percebe o fenômeno antes que o patrão. No entanto, a
solidariedade dos operários tem levado também à solidariedade dos patrões, que
Georg Simmel | 477
38
Proveniente etimologicamente do italiano merceria (antigo merciaria) por sua vez derivado de merce
“mercadoria”, e este do latim merx,cis “mercadoria”, igualmente. (NT)
478 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
portanto, de chegar a sentir aquilo que é comum a todos. Por outro lado, como já dito,
as consequências práticas da criação de conceitos gerais mais elevados nem sempre
se apresentam cronologicamente, pois que costumam aparecer como um estímulo,
constituído em ação recíproca, que ajuda a se produzir a consciência da comunidade
social. Assim, a classe dos artesãos adquiriu amiúde a consciência de sua
comunidade graças aos aprendizes. Quando no baixo medievo o trabalho se
depreciou pelo emprego excessivo de aprendizes, o único efeito que se conseguiu
limitando essa prática a um só ramo de atividade foi que os aprendizes expulsos
invadissem os outros ramos. Somente uma estratégia comum pôde resolver isso
– de um modo que só foi possível pela pluralidade de ofícios, mas que provocou a
consciência da unidade de todos eles, superando suas diferenças específicas.
Finalmente, junto aos tipos operário e comerciante, citaremos um terceiro
como exemplo de criação de um grupo mais abstrato, cujas qualidades conceituais
gerais se confundiam com as determinações particulares de seus elementos. Tais
elementos, aliás, determinam o ponto de cruzamento do novo círculo com as relações
que ele deixou atrás (mas ainda conserva) como círculo individual. Referimos-nos à
evolução sociológica que recentemente o conceito de “mulher” alcançou e, que nos
oferece complicações formais que, de outro modo, não seriam facilmente
observáveis. Na posição sociológica de cada mulher, existia até agora algo muito
singular. O que a excluía de todo agrupamento propriamente dito, de toda
solidariedade concreta com as outras mulheres, era precisamente seu caráter mais
geral – que permitia associá-la a todos os outros seres humanos femininos sob o
conceito mais vasto: ela é mulher, e deve assegurar as funções próprias de seu
gênero. Isso porque, precisamente, sua definição genérica a reposicionava nos
limites estritos de seu lar, dedicada apenas a pessoas singulares, impedida de sair
do círculo de relações determinado pelo casamento, família, vida social, e
eventualmente pelas obras de caridade e religião. As situações análogas das
mulheres em seu ser e seu agir têm um conteúdo que as impede de tirar partido de
suas semelhanças para formar associações, pois o que é comum a todas elas
consiste em estar plenamente consagradas a seu próprio círculo, o que exclui
qualquer outra mulher numa situação idêntica. Por conseguinte, sua condição geral
de mulher está a priori destinada a inscrever-se organicamente no círculo de
480 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
encontra amiúde a hostilidade mais apaixonada para com os homens. Essa situação
é fácil de entender. Na medida em que a igualdade de condição mais se acentua,
como valor e qualidade da mulher perante o homem (respeito de quem ela estava
antes em uma posição subordinada ou, pelo menos, de alteridade radical e, portanto,
de dependência) tanto mais enérgico deve ser o sentimento de autonomia da mulher.
No entanto, essa liberdade parcial faz que aquilo que a mulher tem em comum com
as outras mulheres fique mais visível e eficaz – tornando evidente o que até então
não aparecia com suficiente clareza por causa da relação de subordinação ou
complementaridade em que ela se encontrava. Estamos, portanto, em presença de
um caso extraordinariamente puro de formação de um círculo superior, constituído
por um conceito genérico, a partir de círculos mais estreitos que mantinham cada
elemento em uma relação singular.
O que não se pode contradizer pelo fato de que o feminismo do proletariado
tenha tomado uma direção prática absolutamente oposta a do feminismo da
burguesia. É fato que o desenvolvimento industrial permite liberdade
socioeconômica à mulher proletária – por mais miserável que seja sua liberdade
individual. A garota proletária vai à fábrica com uma idade na que necessitaria ainda
da atmosfera de convivência da casa dos pais, ao passo que; a mulher burguesa
casada se desliga de seus deveres para com o lar, o marido e os filhos em virtude do
trabalho remunerado fora de casa. Consequentemente, a mulher fica liberada do
vínculo singular que a destinava à subordinação ao homem ou, pelo menos, a uma
atividade completamente distinta da do marido. A transcendência desse fato
sociológico independe de que possa ser considerado indesejável ou nocivo, e de que
a mulher proletária anseie muitas vezes a limitação dessa liberdade, tenha saudades
da família e queira ser em maior grau companheira conjugal e mãe. Na classe
burguesa, o mesmo desenvolvimento econômico afasta da casa familiar um número
incalculável de atividades domésticas, simplesmente funcionais ou verdadeiramente
produtivas, impedindo assim que um número imenso de mulheres tire o máximo
partido de suas potencialidades, enquanto, no essencial, continuam presas ao lar.
Elas aspiram por consequência à liberdade de ter uma atividade econômica ou de
outro tipo, sentindo-se intimamente alheias ao círculo específico da casa, assim
como a proletária o sente exteriormente. Essa diferença entre as camadas sociais
482 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
nas quais se tem operado esse alheamento está na origem da disparidade das
aspirações práticas: a mulher de uma dessas classes deseja voltar para casa
enquanto a de outra classe tenta ficar de fora. Mas, mesmo que a despeito de tal
diversidade de aspirações, haja lugar para certas coincidências (desde que no
referente à regulação jurídica do casamento, ao regime de bens da sociedade
conjugal, ao pátrio poder sobre os filhos, etc., o feminismo concerne igualmente às
duas classes), subsiste o principal: o isolamento sociológico da mulher,
consequência da fusão com o lar, está ameaçado de dissolução pela moderna
industrialização. Isso poderá acontecer sob a forma do demasiado ou do insuficiente.
Em ambos os casos, a autonomia adquirida e a emancipação almejada salientam a
efetividade do ser mulher, que cada mulher partilha com outras mulheres certas
situações e necessidades práticas. Quando ela perdeu aquele isolamento originado
na orgânica inscrição no círculo de interesses do lar, o conceito geral de mulher
perdeu seu caráter puramente abstrato e se tornou dominante em um grupo coerente
que se manifesta em certa medida através de sociedades exclusivamente femininas
de assistência mútua, de ligas de defesa dos direitos da mulher, de associações
estudantis de jovens mulheres, de congressos femininos e de toda forma de agitação
das mulheres em prol de seus interesses políticos e sociais. Tendo em conta as
notáveis relações do conceito de mulher com o conteúdo específico da vida dos
indivíduos (muito mais estreitas que no caso dos operários e comerciantes), ainda
não é possível prever quais serão as orientações objetivas e os limites deste
movimento. Contudo, muitas mulheres já se sentem no ponto de cruzamento de
grupos que as ligam a pessoas e conteúdos de sua vida pessoal e às mulheres em
geral.
Se no caso precedente a diferenciação consistiu em extrair o círculo superior
do círculo específico individual (o círculo superior só existia em estado latente),
também é missão da diferenciação separar os círculos mais próximos, uns dos
outros, em função da posição de seus membros. Um bom exemplo disso é a guilda
medieval, que vigiava todas as facetas da personalidade de seus integrantes,
chegando a regular sua conduta pessoal em função dos interesses do ofício. Aquele
que era admitido como aprendiz por um mestre se convertia simultaneamente (entre
outras coisas) em membro da família do artífice. Em uma palavra, a atividade
Georg Simmel | 483
profissional era o centro da vida toda, incluindo a vida política e até a sentimental.
Entre os motivos que levaram à dissolução desta comunidade, nos interessaremos,
de momento, pela divisão do trabalho. A força de todo círculo de interesses que
estruture um grupo de indivíduos diminuirá, caeteris paribus39, na medida em que se
reduza sua extensão. A limitação da consciência determina que uma atividade
diversificada, com uma pluralidade de representações vinculadas a ela, atraia a seu
campo o restante das representações desse universo; sem para isso ver-se
obrigadas a ter relações objetivas entre elas. A necessidade de passar rapidamente
de uma representação para outra, faz com que numa ocupação em que não haja
divisão do trabalho seja preciso tal quantidade de energia psíquica – usando a
linguagem simbólica a que devemos recorrer quando se trata de problemas
psicológicos complexos – que o prosseguimento dos outros objetivos pode ficar
comprometido, permitindo que os interesses assim enfraquecidos caiam, por razão
de maioria, sob a dependência associativa daquele círculo central de representações.
Assim como um homem movido por uma grande paixão relaciona a este sentimento
até as coisas mais remotas e com menor contato com seu conteúdo, também dessa
forma assiste-se a uma centralização espiritual análoga quando a profissão não
deixa livre mais que uma quantidade relativamente fraca de consciência para as
outras relações da vida. Confrontamo-nos aqui com uma das consequências
internas mais importantes da divisão do trabalho. Ela repousa no mencionado fato
psicológico segundo o qual (dentro de um espaço temporal específico e mantendo
os outros fatores) necessitamos de mais imaginação quanto mais frequentemente a
consciência deva passar de uma representação a outra. Essa rápida mudança das
representações tem a mesma consequência que a intensidade da paixão no caso
precedente. Por isso – em igualdade de circunstâncias – uma atividade sem divisão
do trabalho ocupará uma posição mais central na vida de um homem que uma
ocupação muito especializada, em particular nos períodos em que as outras relações
da vida não tinham ainda a variedade e as sugestões alternativas características da
época moderna. Acrescente-se a isso que, sendo as ocupações especializadas de
caráter essencialmente mecânico, deixam mais espaço na consciência para outras
39
Expressão latina que significa: “se todas as demais coisas ligadas a ela permanecem iguais”. (NT)
484 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
tirará daí a conclusão de que a moral nada tem a ver com a religião, deduzindo a
autonomia do conjunto dos valores norteadores das relações sociais, e não, por
exemplo, a ideia (tão justificada do ponto de vista lógico como a outra) de que cada
um dos sistemas éticos que organizam a vida das múltiplas comunidades humanas
se vincula com o âmago universal da religião. O mesmo não acontece, por exemplo,
quando um homem que só consegue a satisfação do dever cumprido pondo em
prática uma forma de altruísmo que nele está associada constantemente a uma
dolorosa superação do eu (a uma espécie de ascetismo atormentado), vê outro
homem obter o mesmo sossego e contentamento, mas praticando um altruísmo
espontâneo, livremente assumido, e vivendo uma vida simples e alegre. Não será fácil
o primeiro concluir que essa paz interior que ele procura e esse íntimo sentimento de
autovaloração provavelmente não tenham nada a ver com a dedicação aos outros;
limitando-se a deduzir que a forma específica, ascética, do altruísmo não é
necessária para conseguir a dita tranquilidade de consciência, e que ela pode ser
alcançada por meio de outro altruísmo que, conservando o essencial de todo amor
desinteressado ao próximo, possua forma e matiz distintos. Nesse contexto, a
separação acima referida do interesse profissional em relação aos outros interesses
da vida, por meio da variedade de ofícios, é um fenômeno intermediário cuja
consequência principal se aproxima do primeiro caso. A profissão de um homem
deverá ser sempre associada à totalidade de sua vida. Quer dizer que este elemento
absolutamente universal e formal funcionará invariavelmente como centro de
orientação para muitos outros pontos da vida. Porém, esse não é mais que um efeito
formal, funcional, da profissão – comparável, inclusive, ao relaxamento progressivo
dos laços que vinculam o ofício à vida pessoal propriamente dita.
A crescente diferenciação das profissões mostrou ao indivíduo que a mesma
orientação em diferentes esferas da vida podia estar vinculada a diversos ofícios e,
por conseguinte, ser significativamente independente da profissão. E a diferenciação
de todas as demais esferas da vida (que aumenta igualmente com a difusão da
cultura) conduz também à mesma conclusão. A diversidade da profissão – se todos
os demais interesses fossem idênticos – e a diversidade dos interesses – se todas
as profissões fossem iguais – deveriam conduzir identicamente à separação
psicológica e real de uns e outras. Sem ignorar a distância que existe entre
486 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
dia no burgo devia, nos termos da lei, prestar juramento à commuia, assim como
quem quisesse afastar-se dela devia também perder a proteção do burgo.
Finalmente, essas confrarias se fortaleceram de tal modo que acabaram por
incorporar – não sempre por sua própria vontade – toda a população que habitava
dentro do perímetro urbano. Como podemos ver, tínhamos aqui primeiramente a vida
em comum, puramente local e relativamente casual, dos vizinhos do povoado. Mas
essa convivência tornou-se, aos poucos, para alguns, uma associação voluntária,
fundada em um princípio e para alcançar um objetivo, até que todo esse conjunto
restrito de pessoas vinculadas por um laço comum se transformou no sustentáculo
de uma forma nova e superior de união, sem que seu objeto e coesão fossem
essencialmente modificados. O círculo racional, organizado em função de uma ideia
unitária, não cruza o círculo primitivo (ou natural), limita-se apenas a ser a forma
superior e abstrata, por assim dizer, ao abrigo da qual parece que o antigo se renova.
Essa evolução formal se repite, com conteúdo absolutamente diferente, na relação
que se estabelece entre as colônias e sua metrópole. Desde Colombo e Vasco da
Gama, a colonização europeia teve que enfrentar os efeitos negativos causados pelo
tratamento discriminatório que sofreram os longínquos territórios em que se
promoveu esse processo (que não obtinham vantagem alguma do vínculo de união
com a metrópole, apesar de estarem sujeitos a tributo) e eram considerados como
meras possessões. Este tipo de relação, objetivamente injustificada, conduziu à
emancipação da maior parte das colônias. O fundamento que abonava sua
independência só foi enfraquecido quando, no âmbito britânico 40, nasceu outra ideia
que traduz o propósito de que a colônia seja uma simples província ultramarina da
mãe-pátria, com os mesmos direitos que as outras províncias situadas no território
metropolitano. Pois que a forma de união deixou de consistir então numa simples
junção, rígida e externa, para converter-se em um vínculo conforme o sentido mais
elevado do termo commonwealth – que pressupõe uma união elástica, por
40
O autor deve aludir a um projeto político que teve suas origens quando, em 1884, Lorde Earl
Rosebery, durante uma visita à Austrália, descreveu as mudanças que estava sofrendo o Império
Britânico, depois de que algumas de suas colônias se tornaram mais independentes, como a formação
de um Commonwealth of Nations. Esta “comunidade” começou a tomar corpo com as Conferências
imperiais, que reuniram representantes dos britânicos e das suas colônias logo, periodicamente,
desde a primeira em 1887. (NT)
488 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
41
Na Grécia pré-homérica as phratrias ou trittys, eram os grupos em que se dividiam as tribos
atenienses e de outras cidades áticas Três phratrias compunham uma phylè. (NT)
Georg Simmel | 489
por sinais externos notórios. Essa estrutura orgânica tinha muitas vantagens: ela
tornava cada formação capaz de uma grande coesão, atiçava entre as unidades uma
notável emulação e dispensava até certo ponto ao comando em chefe de ocupar-se
dos indivíduos e de formar os responsáveis do enquadramento da tropa. No entanto,
o preço a pagar por essas vantagens era frequentemente alto: os antigos
preconceitos e querelas readquiriam força, paralisando o movimento de conjunto da
unidade, o que, em geral, privava as diversas seções de solidariedade e enlace entre
elas – circunstância ainda mais chocante quando cada uma possuía individualmente
as qualidades exigidas. Por conseguinte, o todo constituído por esses elementos não
remetia ao desenvolvimento natural deles, a despeito de seu caráter orgânico – ou
talvez por causa dele. Em compensação, desde o ponto de vista do conjunto, a
estrutura impessoal e rigorosa dos exércitos mais recentes (que não leva em conta a
eventual relação interna que poderia existir entre os elementos da seção) é muito
mais orgânica, entendendo-se por esse conceito a regulação unitária e adequada da
mínima parte da formação por uma ideia central, a saber, a influência recíproca dos
elementos. A nova ordem atinge imediatamente o indivíduo e (graças a que suas
divisões e concentrações cruzam inexoravelmente todas as outras) destrói os laços
orgânicos em proveito de um funcionamento preciso e exigente, mas infinitamente
mais favorável à finalidade da qual essa forma mais orgânica (no sentido primário do
termo) extraía seu valor. Surge aqui o conceito de técnica, tão essencial para as
épocas avançadas. Contrariamente aos tempos primevos, nos quais a vida era mais
direta, instintiva e unitária, em virtude da técnica é possível alcançar fins que são da
ordem do espírito com meios predominantemente mecânicos. Essa evolução se
manifesta também nos princípios que regem as eleições parlamentares notadamente
na maneira com que as circunscrições eleitorais estabelecidas a este fim cruzam os
grupos existentes. A princípio, as representações de classe – como no reinado de
Filipe IV de França42 os estados gerais eram os representantes do clero, da nobreza
e das cidades – parecem ser mais naturais e orgânicas, em face da divisão
puramente convencional dos corpos eleitorais – como os estados gerais dos Países
42
Também chamado de Filipe, o Belo, foi rei da França como Filipe IV, de 1285 até sua morte em 1314.
Foi também rei da Navarra como Filipe I, de 1284 a 1305 em virtude de seu casamento com Joana I.
(NT)
490 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
43
Cognominado "O Prudente", foi rei da Espanha como Filipe II de 1556 até sua morte em 1598, rei de
Portugal e Algarves como Filipe I a partir de 1581, e “senhor dos Países Baixos”. (NT)
Georg Simmel | 491
engrenagem social é hoje vasta e complexa demais para que cada um de seus
elementos possa expressar um pensamento completo, limitando-se a contribuir,
apenas como parte de um todo, à realização de uma ideia. Por outro lado, certa
diferenciação priva, com frequência, as atividades de sua dimensão moral, de modo
que o mecânico e o espiritual acabam levando uma existência separada, própria.
Assim, por exemplo, a atividade da operária de uma máquina de bordar só tem para
esta trabalhadora um sentido mecânico, muito menos espiritual do que tinha o seu
labor para a bordadeira de antigamente – enquanto a potência moral que animava
esse trabalho tem passado para a máquina e se objetivado nela. Podem, desta
maneira, as instituições, as hierarquias e agremiações sociais tornarem-se mais
mecânicas e artificiosas e servir, todavia, ao progresso da cultura e a unidade interna
do todo, contanto que exista um fim social superior ao qual elas devem estar
subordinadas, fim este que impede que se arroguem a posse do espírito e do sentido
que outrora representavam o arremate da série teleológica. É o que explica a
passagem do princípio gentílico ao princípio da década para a divisão em grupos
sociais, mesmo se este último aparenta ser uma associação de elementos
objetivamente heterogêneos, em face da homogeneidade da família.
VII. O Pobre
prestações deriva de um direito – no sentido mais lato deste termo, do qual o direito
jurídico constitui uma parte menor –, teríamos que tomar então como aceitável que
as relações humanas influenciam profundamente os valores morais do indivíduo e
determinam sua orientação. Ora, ao incontestável idealismo desse ponto de vista
opõe-se a não menos profunda rejeição de toda gênese interindividual do dever.
Nossos deveres – se diz – são deveres para conosco próprios, e não existem outros.
Seu conteúdo pode certamente estar orientado para os outros homens, mas sua
forma e sua motivação como deveres não nos vêm do próximo, pois que surgem do
eu e das necessidades internas do eu como entidades puramente abstratas e
autônomas, independentes de tudo o mais que não se identifique com nossa
individualidade. É somente no que diz respeito ao direito que o outro é o terminus a
quo da motivação de nossas ações morais, mas em compensação, para a moral em
si, o outro não é mais do que o terminus ad quem. Em última análise, somos nós
próprios o único responsável pela moralidade de nossos atos, só prestamos contas
a nosso eu melhor, à estima que sentimos por nós mesmos, ou qualquer que seja o
nome que se dê a esse ponto enigmático que, em última instância, a alma encontra
em si mesma – e a partir do qual ela decide livremente em que medida os direitos
dos outros são deveres para ela.
As diferentes concepções da assistência dos pobres nos oferecem um
exemplo ou símbolo empírico desta dualidade fundamental que caracteriza nossos
sentimentos profundos sobre o sentido da ação moral. O dever de assistência pode
aparecer como o simples corolário do direito do pobre. Sobretudo nos países onde a
mendicidade e um ofício regular, o mendigo acredita, com maior ou menor
ingenuidade, que tem um direito à esmola, de maneira que quando alguém lhe recusa
seu óbolo, ele protesta amiúde como se tivessem lhe sonegado um tributo
obrigatório. Dentro do mesmo tipo, a justificação do direito à assistência pela
pertença do necessitado ao grupo tem, porém, um caráter totalmente distinto. A
concepção que encara o indivíduo como o produto do seu meio social confere àquele
o direito a solicitar do grupo uma compensação por suas necessidades prementes e
por suas perdas. Mas, mesmo quando a responsabilidade individual não se tem
diluído a esse extremo, pode-se afirmar que, do ponto de vista social, o direito do
necessitado é o fundamento de toda a assistência aos pobres. Pois que apenas se
Georg Simmel | 495
“deserdou”, e que por isso pode ser assaltado de consciência limpa, até o mendigo
humilde, que pede uma esmola “pelo amor de Deus”. como se cada indivíduo
estivesse obrigado a colmatar as lacunas de uma ordem que Deus quis, mas não tem
realizado plenamente. O pedido do pobre vira-se neste caso para o indivíduo, porém
não para um indivíduo determinado, mas para qualquer um, em razão da
solidariedade universal. Além dessa correlação, que considera a cada indivíduo como
representante da criação inteira para os efeitos das demandas que se dirigem a ela,
os reclamos do pobre podem voltar-se para as coletividades particulares. O Estado,
o município, a paróquia, a sociedade profissional, o círculo de amigos, a família,
podem manter grande variedade de relações com seus membros, mas parece que em
cada uma destas relações existe um elemento que se atualiza em caso de
empobrecimento do indivíduo e se converte em direito à assistência. Eis o que estas
relações sociológicas têm em comum ainda que sejam de natureza muito
heterogênea. Os direitos dos pobres, que nascem de semelhantes vínculos,
misturam-se de modo singular nas sociedades arcaicas, nas quais o indivíduo se
encontra determinado pelos usos tribais e pelas obrigações religiosas que formam
ali uma unidade indiferenciada. Entre os antigos semitas, por exemplo, o corolário
que decorre do direito do pobre a partilhar a refeição, não era a generosidade pessoal,
mas a pertença social e o costume religioso. Quando a assistência dos pobres
encontra sua razão suficiente em um simples vínculo orgânico entre os elementos, a
tônica é colocada principalmente no direito do pobre – que pode estar baseado na
unidade metafísica e ser, portanto, de ordem religiosa, ou fundar-se na unidade
biológica e ter, por conseguinte, um caráter tribal e familiar. Logo veremos que,
quando, pelo contrário, a assistência dos pobres é teleológica (quer dizer, depende
de um fim que se procura alcançar com ele), e não causal (isto é, em decorrência da
unidade real e ativa dos membros do grupo), o direito de reivindicação do pobre
regride até extinguir-se por completo.
Enquanto nos casos frisados precedentemente o direito e o dever apareciam
como as duas faces de uma relação absoluta, a perspectiva é completamente
diferente se optamos por uma abordagem que privilegie o dever de quem dá e não o
direito daquele que recebe. No caso extremo, o pobre desaparece enquanto sujeito
com direitos específicos e ponto fulcral dos interesses envolvidos. A motivação da
Georg Simmel | 497
1
Mt, 19, 16-30. Conf. também Mc, 10, 17-31 e Lc, 18, 18-30. Dos três evangelhos sinópticos que
relatam este episódio da vida pública de Jesus, só o de Mateus chama o interlocutor do Mestre de
“moço rico”. (NT)
2
Circunstância corroborada pela conclusão que tira Jesus da atitude final do moço: “Como é difícil a
quem tem riquezas entrar no Reino de Deus!” (Mc, 10, 23). (NT)
498 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
pessoal, pois não faz outra coisa que atenuar o sofrimento dos indivíduos mais
necessitados. Nisso se diferencia das outras instituições orientadas para a
segurança e o bem-estar públicos. Tais instituições pretendem favorecer todos os
cidadãos: o exército e a polícia, a escola e as comunicações, a administração de
justiça e a Igreja, a representação parlamentar e a pesquisa científica, todas essas
instituições se valem de estruturas materiais e humanas que servem à realização de
ações que não se dirigem, em princípio, às pessoas consideradas como indivíduos
diferenciados, mas a seu conjunto – porque é a unidade de muitos ou de todos eles
que constitui o seu objeto. Em compensação, a assistência dos pobres visa, na sua
atividade concreta, ao indivíduo e a sua situação. Esse indivíduo é, para a forma
moderna e abstrata da beneficência, o alvo a ser alcançado, mas de modo algum o
fim último, que não é outro que a proteção e o progresso da coletividade. A tal ponto
que o pobre não pode considerar-se nem sequer como meio para consegui-lo – o
que melhoraria sua posição – pois a ação social não se serve dele mesmo, mas
apenas de certos meios objetivos, materiais e administrativos, destinados a suprimir
os danos e perigos que o pobre significa para o bem comum. Esta situação formal
não só se apresenta na vida social coletiva, mas também, de modo evidente, em
círculos mais estreitos. Está, inclusive, no seio das famílias que se prestam
inumeráveis ajudas para resolver as necessidades individuais de algum de seus
membros, não pelo próprio necessitado, mas para que a família não se envergonhe e
perca a sua boa reputação por causa da pobreza de um de seus integrantes. Da
mesma maneira, a assistência que os sindicatos ingleses concedem aos operários
desempregados volta-se mais a evitar que o assistido seja constrangido a trabalhar
em troca de um salário miserável (o que iria reduzir a remuneração média de toda a
formação profissional), que a atenuar o sofrimento individual do socorrido.
Se considerarmos, pois, esse sentido da assistência dos pobres, parece
evidente que esta forma de tirar dinheiro dos ricos e de dá-lo aos pobres não visa de
maneira alguma à equalização de situações individuais, nem se propõe (sequer
tendencialmente) à eliminação do fosso social que os separa. Em contradição
flagrante com todas as aspirações socialistas e comunistas, que pretendem suprimir
a estrutura atual de nossa sociedade, a assistência se baseia nessa mesma estrutura,
propondo-se atenuar apenas o que for preciso de certas manifestações extremas da
Georg Simmel | 499
diferença social, para que ela continue a ser o sustentáculo da estrutura em questão.
Se a assistência repousasse no interesse do indivíduo pobre, não haveria em
princípio qualquer limite imposto à transferência de riquezas no seu benefício, até
que a igualdade fosse atingida. Mas, como é feita com o interesse geral da totalidade
social em vista – dos círculos políticos, familiares, e outros determinados
sociologicamente –, ela não tem motivos para ter uma atitude quantitativa ou
qualitativamente mais generosa em relação ao sujeito que a exigida pela manutenção
da totalidade no seu status quo.
Quando esta teleologia social centralista é dominante, a assistência dos
pobres oferece a maior tensão sociológica possível entre o fim imediato e o fim
indireto de uma ação. O alívio do sofrimento subjetivo é uma finalidade tão categórica
para a sensibilidade, que uma unidade social capaz de privá-lo deste caráter de
última instância e fazer dele uma mera técnica para seus fins supraindividuais, terá
conseguido um assinalado triunfo. Pois que esta técnica permite à unidade social
distanciar-se suficientemente do indivíduo e colocar-se a uma distância dele que
(ainda que pouco aparente) é, pela sua frieza e caráter abstrato, mais impiedosa e
radical do que os sacrifícios exigidos do indivíduo em favor da comunidade, nos quais
o meio e o fim frequentemente se encontram numa mesma série sentimental.
Ao considerarmos esta relação sociológica, explicamos a singular
complexidade de direitos e deveres com a qual nos deparamos na assistência dos
pobres por parte do Estado moderno. Muitas vezes encontramos-nos com o princípio
segundo o qual o Estado tem o dever de assistir os pobres, mas isso não implica que
o pobre tenha o direito de ser assistido. O pobre não tem – como, por exemplo, já foi
dito expressamente na Inglaterra – nenhum direito de intentar uma ação junto dos
tribunais e procurar reparação se recusarem injustamente a ele um auxílio. É que o
direito correspondente a determinado dever do Estado não é o direito do pobre, mas
sim o direito que qualquer cidadão tem a que o imposto que paga para socorrer os
desvalidos seja suficiente e empregado de maneira a cumprir efetivamente os
objetivos públicos da assistência dos pobres – sem contar que do ponto de vista do
pobre, todas essas relações entre direitos e deveres são coisas que, geralmente,
passam despercebidas. Por conseguinte, em caso de se negligenciar esta
assistência, não seria o pobre quem teria legitimidade ativa para propor uma ação
500 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
últimos, que não possuíam nenhum direito jurídico de exigir esse auxílio estatal. O
princípio fica bem claro quando a lei positiva impõe aos parentes abastados do pobre
o dever de alimentá-lo. À primeira vista, parece efetivamente que, neste caso, o pobre
pode de maneira legítima fazer valer, junto da sua família cheia do necessário à
subsistência, um direito que o Estado não assume e cuja execução se limita a
garantir. Todavia, o sentido profundo do preceito é outro. A comunidade política cuida
do pobre por razões de utilidade, e logo após se apoia nos parentes, porque o custo
da assistência seria excessivo para ela, ou pelo menos, é assim que ela o considera.
A ação de alimentos proposta diretamente, por exemplo, por um pobre contra seu
irmão endinheirado, é única e exclusivamente da alçada da moral, e não tem nada a
ver com um direito juridicamente vinculativo do necessitado. A lei só se importa de
servir os interesses da comunidade e, neste caso, consegue fazê-lo de duas
maneiras: auxiliando o pobre, e tirando dos parentes ricos o valor quantitativo do
auxílio.
Eis, com efeito, a estrutura sociológica dos preceitos legais sobre a obrigação
alimentar, cuja intenção não é dar apenas uma forma juridicamente vinculativa a
deveres morais, como evidenciam os fatos, tais como o seguinte. É verdade que a
obrigação moral de assistência entre irmãos e irmãs se impõe por ser um dever ou
uma necessidade irresistível. Porém, quando se tratou de lhe atribuir força legal no
primeiro projeto de Código civil alemão 3 , a “exposição de motivos” reconheceu a
“dureza extraordinária” dessa obrigação, e justificou sua introdução afirmando que,
caso contrário o encargo para a assistência pública, representado pela prestação de
alimentos aos pobres, seria grave demais, e o sistema entraria em colapso. Isto é
exatamente o que prova o fato de que, muitas vezes, a importância da obrigação legal
de alimentos seja claramente superior a tudo o que se poderia exigir em termos de
moral individual. O Supremo Tribunal do império proferiu julgamento contra um
idoso, que se encontrava numa situação de extremada pobreza, forçando-o a
entregar todos os seus haveres (cerca de cem Marks4) a título de alimentos a favor
de um filho aleijado, apesar de o ancião ter exposto de modo crível que ele em breve
3
Ou Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Em desenvolvimento desde 1881, o código civil da Alemanha
tornou-se efetivo a 1º de janeiro de 1900 e foi considerado um projeto grandioso e inovador. (NT)
4
O Mark ou marco do ouro alemão, conhecido também como Goldmark, foi uma moeda usada pelo
Império alemão de 1873 a 1914. (NT)
502 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
seria também inválido, e que aquele dinheiro era a sua última reserva. À luz do que
precede, é muito duvidoso que, neste caso, possa falar-se de um direito moral do
filho. A ignorância desse direito diz muito sobre a sociedade, porque a única coisa
que tira o sossego dos agentes sociais é saber se podem recorrer ao parente para
jogar sem custo sobre os ombros dele a obrigação que a coletividade tem
relativamente com o pobre, de acordo com as normas gerais. De resto, esse sentido
profundo da obrigação alimentar está simbolizado igualmente pela maneira como ela
é cumprida na prática. Em primeiro lugar, se assiste o pobre, a seu pedido, e depois
se parte em busca de um filho ou de um pai, que, eventualmente e em conformidade
com a sua situação econômica é condenado a reembolsar não a totalidade dos
montantes pagos, mas, provavelmente, a metade ou um terço. O objetivo
exclusivamente social da regra jurídica também reaparece na disposição segundo a
qual a obrigação de pagar alimentos à luz do Código civil alemão só se aplica quando
ela não “comprometa o estilo de vida do obrigado em conformidade com a sua
posição social”. É, no mínimo, contestável que, em certos casos, não seja moralmente
obrigatório um auxílio que exponha a risco aquele a quem for justo exigir pagar
alimentos, por exemplo. Mas, apesar de tudo, a coletividade renuncia a exigi-lo
porque o fato de que um indivíduo desça de “sua posição social” causa um dano à
própria situação do conjunto; dano, aliás, que parece se antepuser em importância
social à vantagem material que a coletividade poderia conseguir do obrigado. A
obrigação alimentar não tem nada a ver, então, com qualquer direito do pobre em
relação à sua família abastada. Pois o dever de prover alimentos não é mais do que
o dever geral de assistência do Estado, mas transferido aos parentes e sem
correlação com ação ou pretensão alguma do pobre.
Porém, a imagem da corrente de água acima empregada, não era
absolutamente exata. Porque o pobre não é apenas pobre, mas também cidadão.
Enquanto tal se beneficia dos mesmos direitos que a lei concede a todos os membros
do Estado como corolário da obrigação pública de assistir os necessitados.
Recorrendo ainda àquela figura, poderíamos dizer que o pobre é, ao mesmo tempo, o
córrego e o ribeirinho, no mesmo sentido que o cidadão mais rico também pode ser.
No entanto, as funções do Estado, que idealmente concernem do mesmo modo a
todos os indivíduos no gozo de seus direitos civis e políticos, representam conteúdos
Georg Simmel | 503
muito diferentes de acordo com as diversas posições sociais que ocupam. Por esta
razão, como o pobre não participa na assistência aos desvalidos como sujeito com
fins próprios, mas só como elo de uma organização teleológica do Estado que está
muito além dele, seu papel nesta função do Estado não tem o mesmo alcance do que
o de um cidadão abastado. Contudo, o que interessa do ponto de vista sociológico é
perceber que a posição particular que o pobre assistido ocupa não lhe impede, de
modo algum, de ser uma parte integrante da totalidade política do Estado. – a
despeito da sua situação individual que o converte, por um lado, no fim último da
assistência e, por outro, faz dele uma matéria inerte, um objeto desprovido de direitos
submetido às intenções globais do Estado. Apesar ou, mais precisamente, em virtude
de essas duas características, que parecem excluir o pobre assistido da totalidade
política aludida, ele se integra organicamente à estrutura global, participa, como
pobre, da realidade histórica da sociedade, que vive nele e sobre ele, e acaba
constituindo um elemento sociológico formal ao mesmo título que o funcionário, o
contribuinte, o professor ou o intermediário de qualquer negócio. Sua posição é,
aproximadamente, a mesma do indivíduo estranho ao grupo, que, evidentemente, não
forma parte da comunidade na qual vive, mas que precisamente por isso permite que
nasça uma entidade total superior que compreende simultaneamente as partes
autóctones e o estrangeiro, cujas ações recíprocas peculiares estão na origem do
grupo, no sentido mais amplo do termo, e caracterizam o novo círculo histórico real.
Assim, o pobre está, de certo modo, fora do grupo, mas esse distanciamento não é
nada mais do que uma maneira particular de ação recíproca entre o desvalido e o
coletivo, que permite que o primeiro se integre ao segundo.
Esta forma de representarmos essa dinâmica é a única que permite resolver a
antinomia sociológica do pobre, que reflete as dificuldades sócio-éticas da sua
assistência. A tendência solipsista do tipo medieval de esmola, que mencionamos
acima, resultava apenas de motivações objetivas do doador e negligenciava de certo
modo seu destinatário, o pobre, ao arrepio do princípio segundo o qual não devemos
jamais tratar um ser humano como um simples meio, mas sempre como um fim. Ora,
em princípio, aquele que recebe é também alguém que dá, pois o doador, por sua
parte, recebe de volta um acolhimento, uma reação favorável de aceitação. Isto é o
que torna a dádiva uma ação recíproca, um processo sociológico. Mas se o donatário,
504 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
5
A Alta Idade Média foi o período inicial do medievo, que se estendeu da queda do Império Romano
do Ocidente, em 476, até o enfraquecimento do feudalismo no início do século XI. (NT)
6
Bens de mão-morta era o nome que recebiam as propriedades das igrejas e comunidades
eclesiásticas que estavam sob a proteção especial do monarca. Os bispos e frades não podiam vendê-
Georg Simmel | 505
las, precisando em todo caso solicitar o consentimento do conselho municipal. A Igreja chegou assim
a acumular uma imensa quantidade de bens territoriais e urbanos que a tornaram na maior proprietária
da Idade Média. (NT)
506 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
7
A respeito desta confederação, vide, no Capítulo IV, nossa nota 38, alusiva à formação do novo
Império Alemão sobre controle prussiano. (NT)
Georg Simmel | 507
Eis, pois, a situação-limite da posição formal do pobre, e que revela até que
ponto essa posição depende do nível geral de evolução da sociedade. O pobre
pertence ao círculo superior, quer dizer, ao maior e eficaz círculo na prática. Não
pertence a uma parte da totalidade, mas à totalidade mesma: esse círculo é, enquanto
unidade, o lugar ou poder ao qual o pobre se reporta como indivíduo sem condições
de suprir suas próprias necessidades. Só para esse círculo (que por ser o maior e
mais externo não é circundado por algum outro em que possa recair a obrigação)
deixa de existir essa dificuldade que os homens que conhecem a prática assistencial
dizem ser própria das pequenas associações beneficentes – a relutância em socorrer
alguns casos de pobreza grave e prolongada devido ao medo de que, depois de se
ocupar desses pobres, mesmo que uma vez, tenham que arcar para sempre com seu
desvalimento. Destaca-se aqui uma característica muito importante para a interação
recíproca dos homens e que poderíamos chamar de indução moral: quando fazemos
uma boa ação de qualquer tipo (embora seja a mais espontânea e singular) sem estar
sujeitos a qualquer coação, nos sentimos obrigados a dar continuidade a esse
comportamento beneficente; obrigação que na realidade não decorre apenas de um
direito ou pretensão de quem recebeu o benefício, mas de nosso sentimento de
outorgantes. É bem sabido, por experiência prática, que os pedintes que recebem
regularmente uma esmola, em breve consideraram terem o direito de exigi-la, e que
cabe ao doador o dever de proporcioná-la. De modo que se o autor da liberalidade
deixa de cumprir essa suposta obrigação, o morador de rua pode interpretar a recusa
como um atentado contra sua propriedade e sentir uma irritação que não se
manifestaria contra aquele que nunca deu esmola. Isto funciona inclusive em um
nível mais elevado: quem protege um necessitado por algum tempo, mesmo tendo
indicado antes com exatidão a duração do auxílio, não poderá deixar de sentir uma
ligeira sensação de mal-estar quando cancelar as doações, como se cometesse uma
falta. É o que reconhece, em plena consciência, uma lei talmúdica do código ritual
Yore Deah: “quem quer que tenha socorrido três vezes um pobre dando-lhe a mesma
quantia de dinheiro, se compromete implicitamente a prosseguir com o auxílio,
mesmo que ele não tivesse a menor intenção de fazê-lo”. O compromisso adquire
assim a qualidade de um voto solene que só pode ser dispensado por razões muito
especiais (como, por exemplo, o próprio empobrecimento).
Georg Simmel | 509
Este caso é muito mais complexo do que amar a pessoa que se tem
beneficiado. Neste último evento, que só tem certo parentesco com o primeiro,
percebe-se a contrapartida simétrica do princípio odisse quem laeseris 8 . Pois se
compreende bem que se possa projetar a satisfação advinda da realização de nossas
próprias ações boas sobre quem deu ocasião concreta para elas. No amor por aquele
por quem fazemos sacrifícios, nos amamos essencialmente a nós mesmos, assim
como nos odiamos a nós mesmos quando odiamos àquele contra quem cometemos
injustiças. Mas esse sentimento de obrigação que o benefício feito deixa na alma do
benfeitor, essa forma singular da noblesse obligée 9 , não pode explicar-se por
psicologia tão simplista. Com efeito, pensamos que esse caso se relaciona com uma
condição a priori: a de que toda ação desse gênero – apesar de sua aparente
liberdade, de seu suposto caráter de opus supererogationis10– procede de um dever
(que em tal conduta se subentende sempre uma obrigação profunda) que a ação
benéfica revela e, de certo modo, torna sensível. Acontece aqui o mesmo que sucede
com a indução científica, que também não se contenta em aceitar a igualdade entre
um processo passado e outro futuro, simplesmente porque o primeiro tenha tal ou
qual estrutura, mas porque se pode deduzir do primeiro uma lei que o determina da
mesma maneira que determinará necessariamente qualquer outro processo futuro.
Isso se relaciona claramente com o argumento que está na origem deste estudo. Se,
no geral, todo gesto de altruísmo, todo ato de fazer o bem ou de caráter generoso,
não é – mesmo nos casos extremos e em última instância – mais do que dever e
obrigação, podemos dizer que todo ato de beneficência é, em seu sentido mais
profundo – se quisermos, do ponto de vista da metafísica e da moral –, o mero
cumprimento de um dever que, naturalmente, não se esgota com a primeira ação
benevolente, mas continua a existir enquanto subsista a ocasião determinante. Se
assim fosse, o socorro ofertado a uma pessoa, seja ela qual for, seria a ratio
cognoscendi11, o sinal que nos faz ver que uma das linhas ideais do dever entre dois
8
Locução latina que pode ser traduzida como “odiar a quem se tenha ferido”. (NT)
9
Expressão francesa que pode ser traduzida como “a nobreza obriga” ou “quem quer ser nobre deve
se comportar nobremente”, (NT)
10
Diz-se da “obra que fica além do que é necessário ou obrigatório”. (NT)
11
Quer dizer, o “modo como conhecemos” algo, em oposição a sua ratio essendi, que seria a “razão
de ser” desse algo. (NT)
510 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
seres humanos passa por aqui, e revela o caráter intemporal do liame que persiste
depois da assistência.
Vimos até agora duas formas da relação entre o direito e o dever: o pobre tem
um direto de receber o auxílio e existe um dever de assistência, do qual é beneficiária
a sociedade e não o pobre – dever do que depende a autoconservação da sociedade
e que pressupõe a exigência de que alguns de seus órgãos e certos círculos assistam
aos pobres. Além destas formas, vige uma terceira, que de um modo geral rege a
consciência moral, e impõe à coletividade e às pessoas abastadas uma obrigação de
assistir o pobre – prestação que não tem outro fim que o alívio da situação dos
necessitados. A esta obrigação corresponde um direito do pobre, que é a outra face
da relação puramente moral que existe entre os carentes e as pessoas prósperas. Se
estivermos certos, desde o século XVIII o clima espiritual mudou a tonalidade dessa
relação. O ideal da humanidade e dos direitos da pessoa substituiu, notadamente na
Inglaterra, o espírito centralista da lei dos pobres (poor law) de Isabel I12 (de acordo
com a qual era preciso procurar um trabalho para o pobre no interesse da
comunidade) pelo princípio de que todo pobre – que ele possa e deseje trabalhar ou
não – tem direito a um rendimento mínimo garantido. Em compensação, para a
beneficência moderna, a correlação entre o dever moral (do doador) e o direito moral
(do destinatário) é resultado do labor precípuo do doador Evidentemente, o peso
dessa forma de beneficência recai essencialmente na caridade privada, em
detrimento da ação pública, pelo qual trataremos agora de determinar a significação
sociológica desse peso partindo da perspectiva moral aludida.
Em primeiro lugar, convém constatar aqui a tendência, já indicada, de
considerar a assistência dos pobres como um assunto próprio do círculo mais amplo
(o do Estado) embora inicialmente fosse abrangido em todo o lado pelo município
local. Isso decorria, em princípio, do elo associativo criado pela comuna, pois que o
indivíduo via a cidade em detrimento do Estado como o organismo supraindividual
que estava sobre ele e ao seu redor. Consequentemente, enquanto esse processo não
12
As poor laws foram um sistema de ajuda social aos pobres na Inglaterra e Gales que se desenvolveu
a partir da Idade Média tardia e das leis Tudor que pretenderam dar conta dos problemas causados
pelos então chamados “vadios e mendigos”, antes de ser codificado durante a década de 1587-1598
para tratar dos "pobres impotentes”. O primeiro desses estatutos, conhecido como a “antiga lei dos
pobres”, foi aprovado durante o reinado de Isabel I. (NT)
Georg Simmel | 511
foi objetiva e psicologicamente invertido pela liberdade de circulação, era natural que
os vizinhos socorressem aos indigentes. A isto se acrescenta uma circunstância
extremamente importante para a sociologia do pobre: de todas as reivindicações
sociais fundadas em uma qualidade geral da pessoa (por oposição às de caráter
individual), a do pobre é a que mais impressiona. Prescindindo de estímulos agudos
como os provocados por um acidente ou pela aproximação com objetivo sexual, não
há nada como a emoção decorrente do sofrimento e a miséria que aja com tanta
impessoalidade e indiferença a respeito das demais qualidades do seu objeto e, ao
mesmo tempo, com imperiosidade tão imediata e efetiva. Eis o que confere caráter
especificamente local ao dever de assistir os pobres. Colocá-lo no centro de um
círculo suficientemente amplo para funcionar apenas a partir do conceito geral de
pobreza, em vez de ser impulsionado pela impressão imediata, é um dos caminhos
mais longos que as formas sociológicas têm percorrido entre a percepção sensorial
e a abstração. Ora, na medida em que a assistência aos pobres se transformava em
uma obrigação pública abstrata (na Inglaterra desde 1834, na Alemanha mais ou
menos nos meados do século XIX) sua natureza mudou em conformidade com esta
forma de centralização – pois se o Estado manteve a obrigação do município para a
maioria das prestações aos pobres, só reconheceu esse círculo menos amplo como
seu representante. A organização local converteu-se em uma simples técnica para
conseguir a maior eficácia objetiva. e a cidade deixou de ser o ponto de partida, mas
o ponto de trânsito dos auxílios. Por isso, as associações de beneficência se fundem
em nome da consecução de um objetivo (por exemplo, na Inglaterra se organizam de
tal modo que cada uma delas possa sustentar uma workhouse13), ou até mesmo – a
tendência é essa – para mantê-las afastadas das influências partidárias locais. O
emprego crescente de funcionários sociais assalariados aponta na mesma direção.
Relativamente aos pobres, estes agentes são muito mais representantes da
coletividade (de quem recebem seu salário) do que os voluntários, que realizam seu
13
Na história britânica uma workhouse era um lugar onde as pessoas pobres que não tinham com que
subsistir podiam viver e trabalhar. O exemplo mais antigo delas data de 1652 em Exeter, embora
existam provas escritas da presença de instituições similares anteriores a essa data. A vida nessas
casas era intencionalmente dura, de forma a dissuadir a entrada daqueles em condições físicas para
o trabalho e garantir que apenas os realmente necessitados as procurassem. Com o avanço do século
XIX, as workhouses gradativamente se tornaram refúgios para os idosos, pessoas com deficiência e
doentes. (NT)
512 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
trabalho sem remuneração e agem de certo modo mais como seres humanos,
considerando não tanto o ponto de vista simplesmente objetivo, mas sobretudo o
humano, mostrando indulgência e compreensão para com os outros. Finalmente, há
uma partilha de responsabilidades muito significativa em termos sociológicos. É
muito útil que a assistência aos pobres continue sendo prestada no essencial pelos
municípios, ao menos porque cada caso deve ser tratado individualmente, o que só é
possível na proximidade e com um conhecimento preciso do espaço em que se
exerce a atividade. Sem esquecer que, se é o município que concede o auxílio, deve
também obter os recursos necessário – pois, do contrário, seria talvez generoso
demais com os fundos públicos. Todavia, existem casos de extrema necessidade
material nos quais não há esse perigo que se pretende evitar, porque se pode
determinar sua procedência ou fundamento, assim como o volume dos auxílios
segundo critérios absolutamente objetivos: os doentes, os deficientes visuais ou
auditivos e enfim os insanos e outros excepcionais. Nesses casos, a assistência tem
um caráter mais técnico e, por consequência, o Estado, como a grande associação,
encontra-se mais bem equipado para fazer frente a ela. A maior abundância de
recursos e a administração centralizada do Estado demonstraram sua superioridade
em lidar com esses casos em que as pessoas e a situação local são menos
determinantes. E a esta determinação qualitativa dos serviços diretos do Estado se
acrescenta a determinação quantitativa que distingue tais prestações daquelas da
caridade privada: o Estado, como geralmente os serviços públicos, só se volta para
as necessidades mais urgentes e imediatas. Em toda parte, e na Inglaterra mais do
que em qualquer outra, a assistência aos pobres se baseia no princípio firmemente
estabelecido de que não se deve tirar do bolso dos contribuintes mais do que o
mínimo absoluto indispensável à sobrevivência do pobre.
Tudo isso está profundamente condicionado pelo caráter das ações coletivas
no domínio do espírito. O elemento comum dessas forças ou interesses de um grande
número de indivíduos só pode deter-se em suas particularidades pessoais quando
se tratar de uma organização com divisão do trabalho, cujos membros
desempenham diferentes funções. No entanto, quando é preciso realizar uma ação
unitária, seja por um órgão que funcione de maneira imediata ou pela via
representativa, o conteúdo dessa ação só pode compreender o mínimo de
Georg Simmel | 513
14
O autor se refere a Tito Lívio. (NT)
15
Locução latina que pode traduzir-se como: “com alguma ressalva” ou “com ceticismo”, assumindo
que há possibilidade de falha. (NT)
Georg Simmel | 515
preparar sua unidade. Assim, fez-se notar que, embora os gregos tivessem grandes
diferenças culturais entre eles, se compararmos árcades 16 e atenienses com seus
contemporâneos cartagineses ou egípcios, persas ou trácios17, se encontram entre
os helenos numerosos traços distintivos comuns de caráter coibente: em nenhum
lugar da Grécia histórica houve sacrifícios humanos ou mutilações voluntárias;
nunca se aceitou ali a poligamia como forma de união, nem a venda de crianças como
escravas, nem se obedeceu a uma pessoa de maneira cega e ilimitada.
Consequentemente, apesar de todas as diferenças assertivas, essa comunidade de
características coibentes tinha que produzir a consciência de pertencimento comum
a um círculo de cultura que ia além das polis particulares.
O caráter coibente do vínculo, que faz do grande círculo uma unidade, se
manifesta sobretudo nas suas normas, Isto decorre do fato de que as determinações
obrigatórias de qualquer tipo são mais simples e numerosas quanto maior seja, em
igualdade de condições, o círculo de sua vigência – desde as regras da cortesia
internacional, muito menos numerosas que as que vigoram nos círculos menores, até
o fato de que os estados particulares do Império Alemão amiúde tinham 18 uma
constituição menos extensa quanto maiores em território. Poderíamos enunciar
assim uma regra segundo a qual, em principio, os traços comuns que vinculam entre
si os elementos para formar uma unidade social passam ter menos conteúdo à
medida que o círculo se amplia. Por isso, embora à primeira vista possa parecer
paradoxal, são necessárias menos normas para manter unido um círculo grande que
um círculo pequeno. No que tange à qualidade das normas de conduta que um círculo
precisa impor a seus membros para subsistir, tais disposições adquirem um caráter
mais proibitivo e coibente à medida que o círculo é mais extenso. Os vínculos
assertivos, que ligam os elementos entre si e conferem à vida do grupo seu
16
Naturais ou habitantes da Arcádia, antiga região do Peloponeso, Grécia. (NT)
17
Naturais da Trácia, antiga região macedônia, do sudeste da Europa, habitada por populações de
etmia pelásgica. Atualmente é dividida entre a Grécia, Turquia e Bulgária. (NT)
18
O Império Alemão (também chamado de Kaiserreich por alguns historiadores alemães) existiu
desde a sua consolidação como Estado-nação em janeiro de 1871 (Unificação alemã) até a abdicação
do cáiser Guilherme II em novembro de 1918. Este extinto Estado era constituído de 27 territórios
constituintes (a maioria deles governados por famílias reais), os maiores dos quais eram os reinos de
Prússia, Baviera, Vurtemberga e Saxônia. (NT)
516 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
19
Por isso uma locução inglesa diz: the business of everybody is the business of nobody (“problema
de todos diz respeito a ninguém”). Esse caráter coibente peculiar que tem toda ação transferida a uma
pluralidade aparece também na explicação da indiferença e indolência dos estadunidenses (tão
enérgicos quanto ao resto) em face dos abusos públicos. Estima-se ali que a opinião pública tem o
dever de fazer avançar as coisas. Daí o fatalismo que making each individual feel his insignificance,
disposes him to leave to the multitude the task of setting right what is every one else’s business just
as much as his own (NS) [“Fazendo sentir a sua insignificância a todos os indivíduos, os predispõe a
confiar à multidão o cuidado de endireitar o que deveria ter sido corrigido por cada indivíduo como se
se tratasse de seus próprios assuntos”. A locução e a cita estão em inglês no original alemão de
Simmel. O trecho citado pertence a James Bryce, The American Commonwealth. Vol 3, The Party
System & Public Opinion. Nova Iorque e Londres, Macmillan, 1895, p. 207. NT]
Georg Simmel | 517
apesar da discrepância entre nossa imagem interna e externa do mundo, a lógica cria
certo patamar comum de inteligência que não se pode abandonar sem que toda
comunidade intelectual seja abolida. Todavia, se olhamos mais de perto, veremos
que a lógica não proporciona ou significa algum tipo de posse de existência real. O
que chamamos de ”regras da lógica”, não passa de um conjunto de normas, que não
podem ser infringidas, mas cujo cumprimento não confere nenhuma distinção nem
outorga qualquer qualidade específica. Todas as tentativas de adquirir um
conhecimento particular através da mera lógica fracassaram, e a sua significação
sociológica é, por conseguinte, coibente, como a do Código penal. Apenas a
transgressão de seus preceitos leva o indivíduo a uma situação arriscada e exposta,
mas respeitar essas normas não dará ao elemento mais do que a perspectiva, teórica
ou prática, de permanecer na comunidade. Não há dúvida de que uma miríade de
divergências internas pode fazer a associação intelectual fracassar, mesmo que se
respeite rigorosamente a lógica. Porém, quando suas regras são infringidas,
forçosamente a associação intelectual também fracassará – assim como a coesão
moral e social pode desfazer-se, caso o indivíduo transgrida as normas, embora se
tenha escrupulosamente evitado descumprir o Código penal. O mesmo acontece com
os convencionalismos sociais no sentido mais estrito do termo, quando eles estão
realmente generalizados em um círculo. A observância dessas normas não
funcionará como marca ou traço distintivo de alguém, mas a sua transgressão será
altamente significativa – porque basta apenas não desrespeitar o que um círculo
tenha de mais geral, enquanto as normas específicas que mantêm a coesão dos
círculos menores darão ao indivíduo uma nuance e diferença mais assertivas quanto
mais específicas elas sejam. É também nisso que se baseia a utilidade prática das
fórmulas de cortesia social tão desprovidas de conteúdo. Mesmo que tais palavras
ou expressões consagradas pelo uso e impostas pelas convenções sejam utilizadas
por alguns indivíduos, nada podemos afirmar sobre a assertiva existência da estima
e consideração que essas pessoas dizem nos professar. Contrariamente, a mais leve
infração ou inobservância das ditas fórmulas revela claramente que não existem
aqueles sentimentos. Dirigir na rua (a alguém ou reciprocamente) cumprimentos ou
saudações não prova que se tenha apreço, admiração ou respeito pelo destinatário
dessa demonstração de cortesia, mas a omissão da saudação prova claramente o
Georg Simmel | 519
20
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “o caráter coibente de certos
comportamentos coletivos”. Doravante Simmel retoma e finaliza sua análise do “pobre” e da
“pobreza”. (NT)
520 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
protege tanto a vítima eventual como o culpado contra uma reação subjetiva
excessiva, o que quer dizer que a sociedade define como medida objetiva da pena a
que corresponder ao interesse social e não aos desejos ou às finalidades da vítima.
E isso não se aplica apenas às relações reguladas pela lei. Toda camada social (salvo,
talvez, a mais desafortunada) pretende que cada um de seus membros dedique um
mínimo de cuidados à roupa que vai vestir; fixa os limites da vestimenta “correta”,
abaixo dos quais já não se pertence a determinado estrato social. Todavia, tais
categorias definem também um limite na outra extremidade (ainda que não seja com
a mesma determinação, nem de um modo tão consciente): certas roupas luxuosas e
elegantes podem, às vezes, parecer afetadas e inapropriadas a determinada posição
social, e fazer quem as vista ultrapassar certo limite superior (colocado por seus
congêneres) além do qual será tratado como um estranho ao grupo. Por conseguinte,
o grupo também não permite a expansão livre do indivíduo por esse lado, opondo a
seu arbítrio subjetivo um limite objetivo, quer dizer, um limite imposto pelas
condições da vida supraindividual. Ora, esta é a forma fundamental que reproduz a
assunção pela comunidade da assistência aos pobres. No início, a sociedade só
parecia ter interesse em limitar o auxílio, de forma a permitir que o pobre recebesse
igualmente seu quinhão, isto é, que não recebesse pouco ou quase nada. Existe,
porém, na prática, outro interesse de efeito menor: que o pobre não receba demais. A
assistência privada não só pode ser censurável por insuficiência, mas também por
excesso, habituando os pobres a ociosidade, aplicando os meios dos quais ela dispõe
de forma economicamente improdutiva e favorecendo arbitrariamente uns em
detrimento de outros. O impulso subjetivo de beneficência incide nos dois extremos,
e embora o perigo do excesso não seja maior que o da privação, a norma objetiva que
extrai do interesse da coletividade um critério que inexiste no sujeito também se alça
sobre o dispêndio.
Todavia, essa superação do ponto de vista subjetivo concerne ao agente da
prática beneficente e ao favorecido por igual. O serviço público de assistência inglês,
por exemplo, intervém somente ante uma carência de recursos objetivamente
comprovada – porque a permanência obrigada em um workhouse é tão difícil de
aturar que só pode ser arcada em casos de extrema e real necessidade. E, agindo
desse modo o Estado renuncia totalmente a verificar o mérito pessoal do indigente,
522 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
a comprovar se ele é pessoalmente digno de ser assistido. Por isso, o serviço público
– que se limita a cuidar das misérias mais prementes – é completado pela
beneficência privada – dirigida às pessoas meritórias selecionadas individualmente.
Sua missão consiste em reabilitar o pobre já protegido contra a fome, em preocupar-
se com as necessidades do indigente, para as quais o labor objetivo do Estado só
oferece alívio momentâneo. A ação beneficente dos agentes privados não é aqui
determinada pela necessidade enquanto tal, pelo terminus a quo, mas pelo ideal de
criar indivíduos independentes e economicamente produtivos. O Estado age em
sentido causal, enquanto a beneficência privada toma providências em sentido
teleológico. Por outras palavras: o Estado socorre a pobreza, a beneficência privada
auxilia o pobre. Manifesta-se aqui uma diferença sociológica da maior importância.
Os conceitos abstratos (graças aos quais certos conceitos isolados puderam
cristalizar-se e desprender-se da realidade individual complexa) adquirem amiúde,
na prática, vida e eficácia que só parecem corresponder às manifestações
acabadamente concretas. Isso começa com as relações íntimas. O sentido de
algumas relações amorosas só se pode expressar dizendo que não se procura o ser
amado, mas o amor como valor sentimental – por vezes, com surpreendente
indiferença a respeito da individualidade da pessoa amada. Nas relações religiosas,
amiúde parece que a existência de determinada classe e quantidade de religiosidade
é tudo o que importa, sem levar em conta a identidade do sustentáculo desse
sentimento – dado que o comportamento do sacerdote ou a relação dos fiéis com a
comunidade são determinados apenas por esse elemento genérico,
independentemente dos motivos particulares que dão origem, avivam ou esmorecem
no indivíduo esse estado de espírito. Nesse caso, aliás, os indivíduos não suscitam
particular interesse, pois que importam apenas como suportes daquele elemento
impessoal ou, para melhor dizer, nada importam. Do ponto de vista social e ético,
certo racionalismo exige que as relações entre os homens estejam alicerçadas na
sinceridade subjetiva. Todos aqueles a quem se dirige um discurso, com
prescindência das circunstâncias em que se exponha esse raciocínio, deveriam ter o
direito de exigir sua verdade como uma qualidade objetiva. Não pode haver um direito
à verdade que seja condicionado pelas circunstâncias, mais ou menos extenso em
função de cada caso individual. O fundamento, o conteúdo ou o valor das trocas
Georg Simmel | 523
21
Pro rata é uma expressão latina que tem um sentido de divisão, podendo ser traduzida livremente
como “segundo uma proporção determinada”. (NT).
524 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
22
Talvez valha a pena advertir aqui (ainda que sem conexão com o assunto que estamos a tratar) que
essa situação do indivíduo coberto pelo invólucro da entidade social, na qual arraiga e frutifica o
indivíduo, pode apresentar-se sob a forma exatamente inversa. Assim como o indivíduo aparece no
primeiro caso como uma espécie de entidade transitória para a entidade social, assim também a
sociedade pode funcionar como simples instância intermediária da evolução individual. Esse processo
gradativo parte do âmago, do fundo substancial inato da pessoa (que não podemos representarmos
em sua pureza, além da forma que lhe imprimiu o meio histórico, mas que estamos a sentir como a
matéria permanente de nossa existência pessoal e a soma de suas possibilidades – nunca esgotadas
na totalidade) e acaba ao final de nossa existência, quando estamos a oferecer uma aparência (ou um
conjunto complexo de aparências) na qual se manifesta o que de mais completo, de mais nítido e sem
falhas e de mais bem elaborado pode produzir a existência desde o ponto de vista individual. Entre
ambos os extremos de nossa vida se encontram as influências sociais recebidas, as condições nas
quais a sociedade nos faz adquirir as feições que acabamos por apresentar, todo esse universo de
exigências e inibições que temos que atravessar. Encarada dessa forma, é justamente a sociedade,
com suas ações e suas realizações, a que representa esse estágio para além e para aquém do qual se
encontra a entidade pessoal. Essa entidade pessoal é a depositária das energias graças as quais um
estágio individual passa ao seguinte. Estas energias cobrem com seu invólucro (“envolvem”, por assim
dizer) a sociedade do mesmo modo que desde o outro ponto de vista os estágios e fatos sociais
envolvem o indivíduo, e a sociedade serve de intermediária entre os fundamentos gerais do indivíduo
e suas manifestações pontuais. (NS)
Georg Simmel | 525
23
Locução francesa utilizada para identificar uma mulher pertencente à alta sociedade ou a um grupo
social que se destaca ou sobressai. (NT)
24
Expressão latina que se refere a uma pessoa, animal ou coisa tratada como prescindível, que pode
ser usada a título experimental, sem preocupação por eventuais perdas ou danos. (NT)
528 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
pobres que não recebem assistência. Este último ponto reflete o caráter relativo do
conceito de pobreza. É pobre aquele cujos recursos não são suficientes para atender
os seus próprios fins. Esse conceito, puramente individualista, se reduz quanto a sua
aplicação na prática, uma vez que determinados fins podem ser considerados como
independentes de toda fixação arbitrária e pessoal. Em primeiro lugar, os fins que a
natureza impõe: alimento, vestimenta, moradia. No entanto, não é possível
determinar com segurança a medida dessas necessidades que seria válida em toda
a parte e em todas as circunstâncias nem abaixo da qual se poderia falar de pobreza
absoluta. Ao contrário, cada âmbito da vida em geral, cada classe social particular
tem necessidades típicas que, se não podem ser satisfeitas, significam pobreza. Daí
provém esse fato banal em todas as culturas suficientemente desenvolvidas de que
há pessoas pobres dentro de sua classe que não seriam consideradas tais dentro de
outra inferior, porque seus recursos são suficientes para satisfazer as necessidades
típicas de uma classe com menor poder aquisitivo. Certamente, pode ocorrer que o
homem que viva em pobreza extrema não sofra pela discrepância entre seus
recursos e as necessidades de sua classe, de modo que não exista para ele pobreza
em um sentido psicológico. Assim como também pode acontecer que o homem mais
rico se fixe objetivos que ultrapassem os desejos supostos de sua classe e seus
próprios meios de modo a que psicologicamente ele se sinta pobre. Por conseguinte,
pode não existir a pobreza individual em alguém – insuficiência dos recursos para as
necessidades ou fins da pessoa –, existindo a pobreza social; e pode existir, pelo
contrário, um homem que seja individualmente pobre sendo socialmente rico. A
relatividade da pobreza não implica a relação dos recursos individuais com os fins
individuais efetivos – isso é algo absoluto e, em seu sentido profundo, independente
de quanto está além do indivíduo –, mas com os fins do indivíduo consoantes à
respectiva classe e a seu a priori social, que varia de classe para classe. De resto, é
um dado muito característico para a história social a quantidade de necessidades
que cada grupo considera como o ponto zero acima ou abaixo do qual começam a
riqueza ou a pobreza. Nas sociedades complexas, essa quantia deixa sempre uma
margem, às vezes considerável, para a sua fixação. Que relação há entre a posição
deste ponto e a verdadeira mediana? É absolutamente necessário pertencer à minoria
privilegiada para não ser considerado pobre? Ou, pelo contrário, existe uma classe
Georg Simmel | 529
social que, por instinto e para evitar os sentimentos de pobreza colocou o limite para
além do qual começa verdadeiramente a pobreza, muito baixo? Um fenômeno
individual pode deslocar esse limite (como sucede facilmente, por exemplo, quando
uma pessoa rica se instala em uma pequena cidade ou em qualquer outro círculo
estreito)? Ou o grupo continua a aderir à definição de ricos e pobres que ele
estabeleceu de vez? Eis certamente diferenças sociológicas profundas.
A pobreza aparece em todas as camadas sociais que, por sua vez, têm
elaborado um padrão típico de necessidades para cada indivíduo – o que muitas
vezes traz como consequência que a indigência não seja atenuada. Todavia, o
princípio da assistência vai além do que mostram suas manifestações oficiais.
Quando, por exemplo, em uma família numerosa, os membros mais ricos e mais
pobres trocam presentes, isso geralmente é ocasião para que os mais abastados
socorram aos mais desvalidos. E não só porque as prendas oferecidas pelos
primeiros sejam amiúde mais valiosas que as que eles recebem dos segundos, mas
também porque a qualidade dos objetos dados como agrado aos necessitados revela
sua condição de socorro: os mais pobres ganham presentes úteis – isto é, objetos
que os ajudam a permanecer dentro do padrão típico de sua camada social. Por isso,
dentro desse conjunto sociológico, os presentes são absolutamente diferentes
segundo as diversas classes sociais. A sociologia da dádiva coincide, em parte, com
a sociologia da pobreza. O presente permite desenvolver uma hierarquia das relações
humanas de reciprocidade de uma enorme riqueza, tanto do ponto de vista do seu
conteúdo como do espírito com o qual ele é ofertado, da maneira de dar – e também
do modo de receber. Dádiva, roubo e troca são as formas externas de ação e reação
recíprocas que se relacionam imediatamente com a posse. Cada uma delas combina
uma extraordinária riqueza de manifestações espirituais que determinam o processo
sociológico. Elas correspondem aos três motivos do agir: altruísmo, egoísmo e norma
objetiva – pois a essência das trocas consiste na substituição de certos valores por
outros objetivamente iguais, ficando os fatores subjetivos de bondade ou cobiça fora
do processo, já que no conceito puro de troca o valor do objeto não é medido pelas
apetências do indivíduo, mas pelo valor do outro objeto. Ora, dessas três formas da
ação recíproca (dádiva, roubo e troca), é a dádiva que apresenta a maior riqueza de
conjuntos de elementos sociológicos, porque nela a intenção e a situação do
530 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
25
Esta é aproximadamente a definição do delito que Ernst von Beling deu em 1906 no seu famoso livro
Die Lehre vom Verbrechen – que seguramente Simmel devia conhecer e rezava textualmente: “ação
típica antijurídica, culpável, submetida a uma adequada sanção penal, que preenche as condições
objetivas de penalidade”. (NT)
532 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
26
Norwich é uma cidade da Ânglia Oriental, no Leste da Inglaterra. Durante o Medievo foi a segunda
maior cidade inglesa, depois de Londres e um dos lugares mais importantes do reino. (NT)
Georg Simmel | 533
aqueles que se encontram em tal situação nas grandes cidades, acorram, em grande
quantidade, a certos locais de refúgio. Quando se erguem nas redondezas de Berlim
os primeiros palhares, vão para lá os sem teto, os Penner, para passar a noite no
aconchego do feno. Entre eles há um tipo de organização incipiente, uma vez que
esses desabrigados têm uma espécie de chefe de distrito que distribui os lugares nos
albergues noturnos e dirime as querelas dos membros da confraria. Os Penner zelam
escrupulosamente para que nenhum criminoso se junte ao grupo e, quando isso
acontece, o entregam para a polícia, à qual, por vezes, prestam bons serviços. Aliás,
os chefes de distrito são pessoas conhecidas, e as autoridades sabem sempre onde
encontrá-los quando precisam de algum informe sobre qualquer indivíduo suspeito.
Diríamos que a pobreza precisa atingir o ponto extremo da falta de moradia fixa para
que o fator associativo seja eficaz. De resto, dá para ver que o crescimento da
prosperidade geral, a vigilância da polícia e, sobretudo, a consciência social (que,
misturando curiosamente boas e más motivações, não “pode suportar” a visão da
pobreza) obrigam cada vez mais os indigentes a tentarem esconder-se. E isso
mantém os pobres mais afastados e contribui para que sejam muito menos
solidários do que acontecia na Idade Média, por exemplo. A classe dos pobres,
particularmente na sociedade moderna, constitui uma síntese sociológica muito
peculiar. Possui uma grande homogeneidade no que tange ao seu significado e à sua
localização no corpo social, mas está totalmente desprovida de homogenia quanto à
questão da qualificação individual dos seus elementos. É o ponto final comum de
todos os destinos, o oceano em que desembocam as existências mais díspares,
provenientes de todas as camadas sociais. Não há nenhuma mudança, evolução,
ascensão ou queda da vida social que não deposite um sedimento na classe dos
pobres, como a aluvião transportada por uma enxurrada. O mais terrível nessa
pobreza – contrariamente ao fato de ser pobre, que cada qual resolve do seu modo,
e que significa apenas uma nuance na posição individual – é o fato de ter pessoas
cuja condição, aos olhos do grupo humano em que vivem, consiste em serem apenas
pobres e nada mais. Isso se vê claramente quando reina um regime no qual as
esmolas são distribuídas a mãos cheias e sem discernimento, como no Medievo
cristão ou sob a autoridade do Alcorão. No entanto, precisamente porque a miséria
aparecia então como um fato oficialmente reconhecido e irremediável, não era
534 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
A luta, que a experiência imediata nos permite reconhecer na vida das pessoas
– a necessidade constante de conquistar algo, de se defender de ataques, de resistir
às tentações, de restabelecer um equilíbrio perdido – prossegue além e aquém (por
assim dizer) da existência espiritual dos indivíduos. Os fenômenos fisiológicos de
dentro do nosso corpo oferecem a mesma imagem de luta incessante. A
autopreservação da vida física nunca é uma simples permanência estática, mas uma
atividade consagrada a vencer as resistências da doença, a produzir os anticorpos
destinados a neutralizar patógenos hospedados no próprio organismo, uma resposta
a certos ataques que se tornariam destrutivos sem tal reação. E essas são também
as formas universais sob as quais as entidades supraindividuais conduzem as suas
vidas. Quando dizemos dessas entidades que “se preservam” – e não apenas dos
ataques externos que ameaçam a sua existência –, resumimos em tal oração
incontáveis processos ininterruptos que se manifestam dentro desses organismos
sob a forma de agressões e contra-ataques, perigos e esquivas, repulsas e
combinações entre os seus vários elementos. Compreendem-se, todavia, os motivos,
ao falarmos da preservação do Estado e da confraria, da Igreja e da associação, da
família e da escola, de não conseguirmos ver o processo de compensações
constantes, a busca de meios sempre novos contra perigos incessantemente
renovados, senão uma mera subsistência, a sequência continuada de um perfeito
repouso. E isso por várias razões. Em primeiro lugar, porque o indivíduo só percebe
por si mesmo a instabilidade da vida, a permanente sucessão de ofensiva e defesa,
já que os processos análogos nas coletividades se distribuem entre muitos
indivíduos, em vários pontos separados pelo espaço, pelo conteúdo e pelo interesse,
sem chegar a atingir facilmente a consciência das pessoas, exceto no que se refere
ao seu resultado, que é a permanência do conjunto. Em segundo lugar, porque esses
processos se desenrolam com maior frequência em entidades de grandes
proporções e, portanto, com mais lentidão, inércia, e durante um tempo tão
prolongado que as transições de seus diversos estágios são dificilmente advertidas.
Por fim, o fator mais difícil, e talvez mais eficaz: todas essas entidades coletivas não
agem sobre nós apenas como realidades históricas específicas, cuja significação se
536 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
esgotaria no seu processo de vida temporal, mas como algo eterno, como um
conceito abrangente, como uma lei universal ou forma geral cujo sentido e validade
não se esvaziam com o caso ou a realização singular que ora aparece e logo se
dissipa. Não há dúvida que o conceito de indivíduo também independe do fato de que
as energias da realidade engendram ou aniquilam ora um, ora outro indivíduo; no
entanto, sentimos que mesmo o Estado individualmente considerado ou a Igreja
particular1 têm retirado tantos elementos do conceito geral de Estado ou daquele de
Igreja “universal”2, que a entidade histórica participa, de algum modo, da condição
supraindividual, da eternidade, do universal ou da forma, completamente alheia às
mudanças da vida.
O fundamento desse sentimento pode resumir-se no fato de que as entidades
coletivas dessa natureza possuem uma relativa eternidade em face de seus membros
individuais; que elas são indiferentes às particularidades desses elementos e
sobrevivem à passagem deles pela terra – do que falaremos mais à frente. É por isso
que essas entidades entram na categoria da lei, cuja validez independe de suas
aplicações particulares, ou da forma, cuja significação ideal nada tem a ver com a
pluralidade de suas aplicações materiais. Porém, as entidades coletivas somente
adquirem essa afinidade com o eterno desde o ponto de vista do indivíduo, diante de
cuja existência inconstante e efêmera erguem-se como algo inabalável e
permanente. Se ignorarmos essa comparação, tais organizações ficam igualmente
sujeitas à lei da ascensão e do declínio – mesmo que o “andamento” ou ritmo seja
bastante diferente entre seus elementos individuais, pois que também essas
organizações sofrem aquilo que não podemos deixar de chamar processo vital: a
autopreservação durante algum tempo, que não é a rigorosa ausência de conflitos,
nem a imobilidade interna, mas a soma de processos imanentes, quer dizer, a defesa
de um equilíbrio sempre em perigo e restabelecido após frequentes prejuízos, a
preparação, consciente ou inconsciente, de meios para o fim (que nunca resulta
evidente) de viver o próximo instante.
1
Segundo o cânon 368 do Código de direito canônico, as igrejas particulares, “das quais se constitui
a uma e única Igreja católica” são fundamentalmente as dioceses – ademais de outras porções “do
povo de Deus” como as prelazias e abadias territoriais, os vicariatos, as prefeituras e as
administrações apostólicas. (NT)
2
Que é o que quer dizer “católica”. (NT)
Georg Simmel | 537
perante um dos casos em que a ordem cronológica dos fatos apresenta clara
analogia com sua ordem espacial.
Assim como, a partir da simples justaposição das pessoas – isto é, da reunião
de seres que conservam separadamente sua integridade individual –, se consegue
dar forma à unidade social; do mesmo modo que a separação aparentemente
intransponível que o espaço impõe entre os homens pode ser vencida pelo laço
espiritual que se crie entre eles, tampouco a separação temporal dos indivíduos e das
gerações impede que uns e outras constituam para nós um todo único e interrupto.
Nos seres separados no espaço, tal unidade é determinada pelas ações recíprocas
verificadas nesse âmbito. Tratando-se de seres complexos, a unidade não significa
mais do que a coesão dos elementos proporcionada por forças exercidas
reciprocamente. Todavia, no caso de seres separados no tempo, sua unidade não
pode ocorrer desse modo porque falta a ação recíproca: os mais antigos podem agir
sobre os mais recentes, mas não vice-versa. É precisamente por essa razão que a
preservação da unidade social, apesar das mudanças de indivíduos, constitui um
problema específico que não fica resolvido apenas com a mera explicação das razões
dessa unidade em um dado momento.
O primeiro fator, aquele que mais imediata e evidentemente serve de
fundamento à continuidade da unidade coletiva, é a permanência da localização, do
território sobre o qual vive o grupo. O Estado e ainda mais a cidade – mas também
muitos outros grupos humanos –, apoiam, em primeiro lugar, a sua unidade em
determinada base territorial, que representa o substrato duradouro de todas as
alterações de seu conteúdo. Na Grécia clássica, a permanência na propriedade
fundiária era sobretudo o que determinava a continuidade do grupo familiar. Disso
decorriam dois efeitos: em primeiro lugar, qualquer diminuição desse patrimônio
imobiliário por venda era visto como uma ação ética e socialmente condenável, não
só em detrimento dos filhos, mas também dos ancestrais porque equivalia a romper
a cadeia de existência familial. Em segundo lugar, e diante disso, qualquer acréscimo
desses bens imóveis era praticamente impossível no contexto da época. De tal modo
que essa coesão (reforçada desde os dois extremos da árvore genealógica) era capaz
de manter a família como entidade indestrutível, por princípio, a despeito das
vicissitudes existenciais de seus membros. Pode parecer curiosa a significação da
Georg Simmel | 539
3
“Estado territorial” (Flächenstaat) é um termo técnico dos historiadores e juristas alemães da época
para designar o Estado moderno, surgido na Europa da Renascença, definido por sua continuidade
territorial na qual se exerce plenamente a soberania estatal. (NT)
540 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
4
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “Bombard Boston! You talk as though Boston were a
locality. Boston is not a place; Boston is a state of mind. You can no more shoot it with a gun than you
could shoot wisdom, or justice, or magnanimity.” (NT)
542 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
forças objetivas que o mantinham unido ficavam mais fracas, mais energicamente
se fechou na sua condição hereditária, fazendo do parentesco e das alianças
matrimoniais as condições essenciais para o ingresso nas guildas. A história das
corporações se caracteriza pela preferência outorgada aos filhos dos mestres.
Essencialmente, com algumas exceções, a guilda era uma associação que se
transmitia hereditariamente aos filhos. No entanto, a vantagem material e o egoísmo
familiar nem sempre foram as razões para a transmissão hereditária, também
influenciada pelo ideal social objetivo de estabilidade e continuidade da agremiação.
Da mesma maneira, a ideia que introduz esse “exclusivismo corporativo” – todo
mestre deve receber a mesma “côngrua” ou retribuição que os outros – não é
meramente individualista, pois garante uma homogeneidade interna capaz de manter
a unidade do grupo, e evitar sua fragmentação. Todavia, essa exclusão da
concorrência trazia naturalmente como consequência a restrição numérica, e a
técnica mais simples para conseguir esse resultado era favorecer os filhos dos
mestres, quer dizer, excluir aqueles que geneticamente não faziam parte do grupo.
Por todo o lado, o exclusivismo de uma classe privilegiada e o afastamento rigoroso
do parvenu são a expressão ou o meio de sua continuidade. A persistência é
garantida – não exclusivamente, mas da maneira mais simples e mais clara – pela
transmissão dos privilégios dentro da série genética, pois essa é a melhor maneira
de impedir que o organismo se disperse em uma pluralidade de direções, grupos de
interesse e traços de caráter. Augusto, que dava a maior importância à manutenção
permanente da classe senatorial, assegurou seu caráter socialmente estanque
proibindo os seus membros de casarem com libertos, atores e os filhos de uns e de
outros. Em compensação favorecia por todos os meios possíveis a transmissão
hereditária da dignidade senatorial aos filhos dos senadores. Os laços de sangue lhe
pareciam o único “aglutinante” capaz de manter a coesão do ordo senatorius. O
exclusivismo, o estreitamento, por assim dizer, na dimensão da largura, se combina
com sua extensão na dimensão longitudinal do tempo. E na moderna vida de família,
tal como ela se apresenta, sem coesão, atomizada, dilacerada de mil maneiras por
antagonismos internos e afãs de autonomia, a única coisa que ainda caracteriza a
família como unidade na sucessão das gerações é a comunidade genética, e a
hereditariedade biológica estreitamente unida a ela. Todos os outros laços que
Georg Simmel | 543
totalidade das formas de vida do grupo. Se fosse o caso, seria duvidoso realmente
dizer que se trata do “mesmo” grupo de antes do momento crítico. Unicamente o fato
de que a modificação, em cada momento dado, alcance apenas parte da vida total do
grupo possibilita a manutenção da unidade. Podemos expressar isso
esquematicamente da seguinte maneira: se a totalidade dos indivíduos ou de outros
elementos da vida de um grupo, em dado momento, pode ser definida como a b c d e,
e em um momento posterior como m n o p q, poderíamos falar de preservação da
unidade se a evolução seguir o curso seguinte: a b e d e – m b c d e – m n c d e – m
n o d e – m n o p e – m n o p q, de tal modo que cada estágio difira de seus vizinhos
por apenas um elemento, e que cada momento partilhe com seus vizinhos os
mesmos traços essenciais.
Essa continuidade na sucessão dos indivíduos que sustentam a unidade do
grupo aparece de modo mais patente e notável quando repousa na procriação. Ela,
porém, também tem a ver com outros casos em que essa transmissão física está
expressamente excluída, como acontece no clero católico, dentro do qual a unidade
se mantém porque sempre há quantidade suficiente de sacerdotes para ensinar aos
novos ordenados. O celibato até se mostrou mais vantajoso do que o laço biológico
para a continuidade da coesão do grupo. Foi observado com razão que, dada a
tendência medieval de tornar as profissões hereditárias, o clero se teria convertido
em uma casta sem o celibato. É esse, aliás, o meio utilizado pelo clero secular russo
– obrigado a se casar – para atingir o máximo de continuidade possível. Como os
servos não podiam ser sacerdotes, e os aristocratas não queriam sê-lo, em ausência
de uma verdadeira classe média, os popes viram-se obrigados a assumir a própria
renovação: seus filhos se tornavam também sacerdotes e não se casavam mais do
que com as filhas de outros clérigos – as derrogações precisavam de autorização
especial. Deste modo o sacerdócio russo se converteu em uma casta reduzida à
endogamia, cuja falta de relações familiares fora do âmbito eclesial lhe conferiu algo
da posição de exceção e da persistência interna do clero celibatário. É notável que
essa exacerbação da continuidade biológica tenha conduzido a aproximar-se das
consequências da mais estrita exclusão da transmissão física. Todavia, a
superioridade desse último sistema é indubitável. Especialmente, se levamos em
conta que a continuidade de natureza genética teria exposto à Igreja da Europa
Georg Simmel | 545
5
A fé apostólica no tocante ao “Espírito” foi confessada pelo segundo Concílio Ecumênico, em 381,
em Constantinopla: “Cremos no Espírito Santo, que é Senhor e que dá a vida; ele procede do Pai”. (NT)
6
A “consagração” é o ato sacramental que integra na ordem dos bispos, presbíteros e diáconos. Ele
transcende uma simples designação, pois confere uma investidura, um dom do Espírito que permite
exercer um “poder sagrado” que, para os crentes, só poderia vir do Cristo, por meio de sua Igreja. (NT)
7
Para que o Evangelho sempre se conservasse vivo e inalterado na Igreja, os apóstolos deixaram
como sucessores os bispos, a eles transmitindo seu próprio encargo de magistério. Esta transmissão,
realizada no Espírito, é chamada de “Tradição” e, por meio dela, a Igreja perpetua e transmite a todas
as gerações tudo o que ela acredita ser e tudo o que crê. (NT)
546 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sua essência, o espírito objetivo dos cargos, se mantenha através das mudanças de
indivíduos – a exemplo do que acontecia na antiga Roma, onde (como no caso do
sacerdócio que acabamos de ver) os magistrados procediam no fundo dos deuses, e
a consagração para atingir essa dignidade só podia ser dada pelo predecessor
imediato. Mesmo hoje, os funcionários existentes em dado momento não
desaparecerão do grupo até depois de passar certo tempo suficientemente longo
com seus sucessores, período durante o qual os novos elementos terão assimilado
plenamente o espírito, a forma e a tendência do conjunto ao qual foram se
incorporando. A perenidade dos grupos depende da lentidão e da perfeita
progressividade dessas mudanças.
O fato designado pelo termo “perenidade” tem a maior importância. A
preservação da unidade coletiva, por determinado período de tempo virtualmente
ilimitado, confere ao grupo um significado que, coeterus paribus, é infinitamente
superior ao de cada indivíduo. A vida individual, com seus conjuntos de objetivos,
seus valores e seu poder, está organizada para terminar num período de tempo
limitado e, de alguma forma, cada indivíduo deve partir do zero. A vida do grupo
carece, no entanto, de tal limite temporário fixado a priori, e suas formas estão
dispostas como se pudesse viver para sempre. Graças a isso, armazena uma soma
de realizações, de energias e de experiências em virtude das quais supera as
conquistas constantemente interrompidas da vida individual. Na Inglaterra. foi essa,
desde a alta Idade Média, a fonte do poder das corporações urbanas. Desde o início,
as guildas tinham o direito “de perpetuar a sua existência, preenchendo as vagas
surgidas assim que elas acontecerem”. É verdade que os antigos privilégios se
referiam apenas aos “burgueses e seus herdeiros”, mas, na verdade, essa faculdade
foi exercida sob a forma de um direito a receber novos elementos, de modo que
qualquer que fosse o destino reservado aos membros e a sua descendência física, a
corporação, como tal, foi mantida inteira e conservada sempre. A cooptação é o
princípio formal, extraordinariamente importante, que representa aqui o papel da
consagração sacerdotal. Ela preserva o caráter do grupo de forma idêntica e durante
um período de tempo ilimitado, por analogia com a vida do organismo, que absorve
apenas os elementos que lhe convêm e que consegue assimilar. Representa assim
uma espécie de prolongação da vida individual, na qual, por acréscimo, se substitui a
Georg Simmel | 547
8
A Guerra das Rosas foi uma série de lutas dinásticas pelo trono da Inglaterra, ocorrida entre 1455 e
1485, de forma intervalada, durante os reinados de Henrique VI, Eduardo IV e Ricardo III. Em campos
opostos encontravam-se as casas de Iorque e de Lencastre, ambas originárias da dinastia
Plantageneta e descendentes de Eduardo III, rei da Inglaterra entre 1327 e 1377. (NT)
548 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
– coesão formal ajudada pelo fato de ser a classe “individualmente mais pobre, mas
coletivamente mais rica”. Essa circunstância confere uma vantagem a todos os
grupos quando concorrem com um indivíduo. Diz-se da Companhia das Índias
Orientais9 que, para conquistar o subcontinente indiano, não utilizou outros meios
que os usados pelo Grão Mogol10, mas que a superioridade que a empresa tinha com
relação a outros usurpadores consistia no fato de que ela não podia ser
assassinada...
Por isso, certas instituições muito especiais são necessárias quando a vida do
grupo está estreitamente vinculada à existência de uma pessoa reinante. A história
de todos os interregnos mostra bem os perigos oferecidos por essa forma
sociológica para a preservação do grupo – perigos que, com certeza, aumentam na
medida em que o soberano esteja realmente no cerne das funções por meio das quais
o grupo preserva ou recria a sua unidade, em todos os momentos. Por essa razão,
um intervalo de soberania pode ser bastante indiferente quando o príncipe só exerce
um poder nominal – reina, mas não governa –, ao passo que, ao contrário, mesmo
uma colmeia estará à beira da anarquia se for privada de sua rainha. Todavia, não é
apenas o problema da vulnerabilidade humana o que ameaça a autopreservação do
grupo, pois quando sua salvaguarda depende de uma pessoa, é o caráter da própria
pessoa que pode conduzir a diversos ataques. Foi o que sucedeu, por exemplo,
durante a época merovíngia 11 (que sob muitos aspectos preservou a anterior
estrutura estatal romana) quando o poder público se transformou em um patrimônio
pessoal transmissível e divisível. Esse princípio, que fundamentava o poder dos reis,
9
A Companhia das Índias Orientais (EIC) foi uma empresa inglesa e mais tarde britânica formada para
negociar principalmente com o subcontinente indiano e a China. Era uma companhia majestática
formada por comerciantes de Londres em 1600, com o nome de Company of Merchants of London
Trading to the East Indies a quem a rainha Isabel I concedeu o monopólio do comércio com as Índias
orientais. A empresa acabou por dominar grandes áreas da Índia com seus próprios exércitos
privados, exercendo o poder militar e assumindo funções administrativas. Durou até 1858, quando,
após a Rebelião Indiana de 1857, a Coroa Britânica decidiu assumir o controle direto da Índia. (NT)
10
Designação usada pelos portugueses para o imperador mogol. O Império Mogol foi um Estado
existente entre 1526 e 1857 (com um interregno entre 1540 e 1555) que chegou a dominar quase todo
o subcontinente indiano. Entrou em declínio a partir do início do século XVIII e foi extinto em definitivo
pelo poderio britânico. No seu auge foi possivelmente o Estado mais rico, sofisticado e poderoso do
planeta. (NT)
11
Período histórico da Europa ocidental cristã, que compreende a dinastia de reis francos fundada por
Meroveu e consolidada por Clóvis I (465-511) e seus descendentes, que governaram a Gália e a
Germânia de 500 a 751. (NT)
Georg Simmel | 549
voltou-se contra eles, assim que os membros da alta nobreza que tinham contribuído
para a formação do reino pretenderam receber também seu quinhão de poder. Poder
que, uma vez transmitido a outros, se virava contra o príncipe, que havia sempre
considerado tal potestade como um atributo de sua exclusiva alçada. Outro tipo de
perigo para a coesão social resulta precisamente da unicidade da pessoa reinante,
quando suas diversas competências são acompanhadas de diferentes graus de
poder. A Reforma Inglesa12 deu ao rei a supremacia em questões eclesiásticas, dado
que lhe foram atribuídos os direitos e deveres que correspondiam a Igreja Romana,
até então autônoma. Mas, como o monarca estava limitado nas questões seculares
pelas decisões do Parlamento e pela autonomia dos municípios, disso resultou uma
contradição que os Stuart tentaram resolver transformando sua realeza de direito
divino em uma monarquia absoluta, também nos assuntos profanos. Finalmente, a
inevitável discrepância entre essa pretensão e as tradições constitucionais e
administrativas inglesas, acabou por comprometer gravemente a permanência da
forma de governo.
Os grupos políticos tentaram resolver alguns dos perigos da personalização
do poder, especialmente aqueles provenientes do tempo que decorre entre dois
reinados, propondo o princípio de que o rei não morre. Enquanto, no início da Idade
Média, vigorava a regra consuetudinária segundo a qual se o rei morrer, sua paz
morrerá com ele, o princípio da ausência de interregno permite materializar a ideia de
autopreservação do grupo. Na Inglaterra, não se voltou a reconhecer juridicamente
qualquer interregno desde a subida ao trono de Eduardo I em 1272. Contudo, essa
forma se encontra já no plano antropológico, com uma variante que lembra a
consagração dos sacerdotes. Assim, por exemplo, em muitos lugares da costa
ocidental da África central, frequentemente se acredita que o reino é dirigido por um
“grande espírito” que habita a pessoa reinante. É também desse modo que os dalai-
lamas tibetanos constituem uma série contínua de soberanos obtida do mesmo
12
A Reforma Inglesa (ou Reforma anglicana) foi uma série de eventos ocorridos no século XVI através
dos quais a Igreja da Inglaterra rompeu com a autoridade do papa e da Igreja Romana. Está associada
com o processo mais amplo da Reforma Protestante, mas começou mais como uma disputa política
do que teológica. O rompimento com a Igreja de Roma teve efeito a partir de uma série de atos do
Parlamento aprovados entre 1532 e 1534, dentre os quais o Ato da Supremacia, que declarava o rei
Henrique VIII como "Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra na Terra". (NT)
550 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
modo. Nem a personalidade dos soberanos nem a sua origem têm qualquer
influência, e a única coisa que importa é que o espírito tenha passado realmente do
soberano desencarnado ao seu sucessor. É óbvio que essa separação entre o
verdadeiro detentor da soberania e seu esteio visível constitui uma ameaça tanto
mais grave para a segurança do indivíduo suporte quanto a hereditariedade não
acrescenta uma persistência real à continuidade ideal deste último. Após a morte do
primeiro imperador da China, foram destituídos de seu cargo, poder ou dignidade
alguns potentados porque os sofrimentos do povo eram considerados a prova de que
a divindade se tinha retirado deles. Em tais casos, os membros da nobreza ou os
altos funcionários se tornavam meros mortais que podiam ser expulsos e punidos,
porque a mesma divindade os tinha rejeitado e afastado de sua presença.
Questionado sobre o bom fundamento do assassinato de Shang Yang13, um sábio
chinês respondeu: “Quem desrespeita a virtude é um malvado, e o governante que
coloca a sua vontade ou a de seus senhores acima das leis é um tirano; ora, malvados
e tiranos são nada mais do que pessoas privadas. Ouvi dizer que Wei Yang foi morto
enquanto particular, mas não que o senhor de Shang 14 tenha sido assassinado”. No
século XIII, foi dito na Inglaterra que. quando o papa cometia uma injustiça, não o
fazia agindo na qualidade de papa; da mesma forma que o rei também não poderia
violar como rei os direitos de outrem, pois era um ministro de Deus. Todavia, se o
fizesse, não agiria como rei, mas como ministro do diabo. Na mesma época, um
pensamento formal análogo dizia que o rei era o depositário não do espírito divino,
mas da lei; por isso, não existiria nem sequer um reino onde imperasse o mero arbítrio
e não a lei. Ainda durante o período da Guerra Civil Inglesa, no tempo de Carlos I, a
oposição fiel à constituição, que ainda acreditava na continuidade da monarquia, mas
sem contestar as faltas do rei, recorria à ficção de que “o rei no parlamento estava
13
Shang Yang (circa 390 – 338 a.C.) foi um pensador, político e proeminente jurista chinês. Nascido
no Estado vassalo Zhou de Wei durante o período dos Estados Guerreiros, se destacou como
funcionário, chanceler e reformador ao serviço do Estado de Qin. Considerado o inspirador da política
centralizadora e despótica do primeiro imperador chinês, instituiu o serviço militar obrigatório, obrigou
a que todas as pessoas tivessem uma “ocupação produtiva” (na agricultura ou no exército) e
estabeleceu um sistema de espionagem recíproca entre os súditos. Por seu papel na guerra contra
Wei, Yang recebeu 15 cidades em Shang (o atual Shensi) como seu feudo pessoal, pelo que foi
conhecido como “o senhor de Shang”. Se lhe atribui o Shangjun shu ("Livro do senhor de Shang"), uma
das principais obras, pragmática e autoritária, da escola legalista chinesa. (NT)
14
Seu gentílico era Gongsun e seu prenome Yang. Como membro do clã Wei também era conhecido
como Wei Yang. E o nome Shang Yang alude à posição de “senhor de Shang”. (NT)
Georg Simmel | 551
nova força psicológica para concentrar o grupo e manter a sua coesão – no preciso
momento em que ela devia perder a sua antiga força, baseada na mera pessoa,
sobretudo quando o grupo crescia.
Com isso, o conceito da unidade do poder político adquire uma base
inteiramente nova, que corresponde à unidade do grupo e é o pressuposto lógico de
sua autopreservação. Enquanto o poder supremo não se distinguiu ainda da
personalidade mortal do rei – não afirmou sua imortalidade –, essa identificação traz
como consequência certo caráter absoluto do poder, no sentido de que é, na
realidade, impossível articular a organização da soberania a partir de elementos
diferentes – como o rei e o parlamento. Porque esse entrosamento é sempre de
natureza objetiva, supraindividual, incompatível com o personalismo incontestável
de um poder que nasce e morre com seu titular. Caráter objetivo que contradiz
também a falta de constrangimentos de um poder que se estabelece e adota suas
próprias formas a cada novo soberano. É interessante seguir esse processo na teoria
de Jean Bodin15 que, em 1577, foi o primeiro a deduzir a indivisibilidade da soberania
de seu caráter de poder supremo. Como ainda não consegue distinguir claramente a
soberania do soberano, Bodin acha a forma mista de governo contraditória. Devido a
sua concepção personalista, esse sistema político parece a ele uma dualidade de
soberanias independentes e iguais dentro do mesmo Estado. E é pela mesma razão
que Bodin pensa que a eventual restrição constitucional imposta a um soberano, não
se aplica ao seu sucessor “visto que quem herda um trono é também, por sua vez,
soberano”. Isso significa, portanto, que a realeza (persistente através de todas as
mudanças de pessoas) não é capaz de agir, mas unicamente a personalidade, que
atribui ao rei não só seus atributos físicos (como a mortalidade e a indivisibilidade),
mas também suas singularidades psíquicas (como a obstinação arbitrária e a
deslealdade). Só há aqui uma aparente contradição com o princípio dos príncipes
italianos da Renascença, segundo o qual eles não estavam obrigados (como as
simples pessoas privadas) a cumprir com sua palavra, se assim aconselhasse a
15
Jean Bodin (1530 — 1596) foi um teórico político e jurista francês, professor de direito em Toulouse
e membro do Parlamento de Paris – um dos tribunais soberanos ou supremos do Antigo Regime. O
autor é reconhecido pelos seus estudos de suma importância para o avanço dos conceitos de
soberania e absolutismo dos Estados, e por seus pensamentos a respeito do modelo de governo ideal
que também tiveram muita influência na Europa. (NT)
Georg Simmel | 553
16
Dentro dessa categoria também há espaço para o fenômeno particular que poderíamos designar
com o neologismo de “lealismo”: a devoção pessoal e incondicionada a um indivíduo, não por ser
quem é, senão porque é o detentor da soberania. Não se trata aqui do poder sugestivo que em geral
possui o conceito de soberano e que, sem dúvida, oferece curiosas manifestações. Referimos-nos
apenas ao soberano do próprio grupo. “Eu sou fiel a meu príncipe até fazer a Vendeia – escrevia
Bismarck [aludindo à sangrenta revolta de artesãos e camponeses dessa região francesa que, em
1793, se insurgiram contra a Revolução e a favor da Igreja católica e do sistema monárquico] –, mas
no que tange a todos os outros não me sinto minimamente obrigado de mexer um dedo”. Esse
sentimento é também diferente da fidelidade medieval, que só funciona de pessoa para pessoa, e do
patriotismo, para quem a unidade social, mesmo se projetada em uma forma pessoal, deve a sua vida
ao conjunto do grupo e não à pessoa na qual se encarna. Esse sentimento específico se dirige a algo
social e supraindividual que vive, no entanto, na forma de uma personalidade plena – matiz que o
distingue da devoção que inspira os sacerdotes, na qual a personalidade significa ainda menos,
comparada com a representação da divindade – mas também de uma pessoa, não por causa dela
mesma, mas porque define uma porção finita da vida em si infinita do grupo, verdadeiro objeto dessa
veneração. Do mesmo modo, olhamos com respeito fenômenos naturais fugazes, e talvez não muito
importantes, porque adivinhamos as leis cuja validez eterna se manifesta através de sua contingência.
A ideia de que o rei não morre produz o caso típico desse sentimento fundamentalmente novo em
comparação com a adesão ao soberano puramente pessoal. (NS)
554 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
respeito e obediência que ela suscita. Trata-se, antes, de uma expressão da reserva
do monarca. O sentido da severa etiqueta palaciana é de não se tratar da pessoa do
rei, mas do rei enquanto tal, qualquer que seja a sua característica individual. A
experiência prova que a etiqueta não é apenas uma barreira para os súditos, mas
para o próprio soberano. Da mesma maneira que os sujeitos do rei devem tratar seu
senhor curvando-se às formas que uma norma supraindividual tornou obrigatórias,
ao rei se impõem certas formas exteriores, amiúde independentes de suas
preferências e estados de ânimo.
A maneira mais evidente em que a existência perdurável do grupo se manifesta
na imortalidade do soberano é a condição hereditária da dignidade régia – forma com
que se tenta evitar os perigos envolvidos no princípio da imortalidade. A conexão
genética da família reinante reflete o mesmo nexo ideal dentro do grupo. Não se pode
exprimir com maior precisão e propriedade a prolongação da existência do grupo,
ininterrupta no tempo, que com a substituição do pai pelo filho – destinado e
preparado antecipadamente à sucessão em todo momento. Contrariamente, poucas
coisas contribuíram mais diretamente para a decadência do Império romano do que
a falta de uma sucessão hereditária regulada. O corolário da forma hereditária é a
estabilidade incondicional do monarca no trono. Quando se carece dessa
estabilidade, o soberano desconfia sobretudo da sua família, e esforçar-se-á por
tornar seus membros inofensivos, como acontece nomeadamente no Oriente,
matando-os, cegando-os, ou confinando-os a um mosteiro – o que pode muito bem
contribuir para a extinção da estirpe real. A sucessão hereditária do trono só revela
seu sentido quando estiver preenchida essa condição que faz dela simultaneamente
o símbolo e o suporte da continuidade segura da forma do grupo. Por isso, foi
observado com razão que, mesmo se primitivamente a realeza entre os anglo-
saxônicos estava condicionada às aptidões guerreiras pessoais do soberano, pôde
sobrevir depois uma época de “reis crianças” – mas só quando o reino saxão se
consolidou por três longas, ininterruptas e brilhantes dinastias. Graças a esses
governos, a linhagem assentou-se firmemente sobre o trono, firmeza que se
expressou no fato de que (devido ao princípio hereditário) pudessem ocupá-lo
pessoas que não atingiam plenamente as condições pessoais até então
indispensáveis para reinar. Daí em diante, a forma do grupo se manteve pelas suas
Georg Simmel | 555
próprias forças e só precisou de um soberano, mesmo que ele não tivesse qualidades
individuais notáveis. Por outro lado, a monarquia inglesa forneceu a base sólida do
princípio hereditário valendo-se do conceito medieval do domínio eminente17 do rei
sobre todo o território e as propriedades da Coroa – conceito resultante da
imbricação da família real (que herdava essas propriedades) com os elementos mais
permanentes da vida prática –, base essa que o Império germânico nunca estruturou.
É por isso que os antigos juristas ingleses tratavam a sucessão ao trono de acordo
com o direito de primogenitura, como a sucessão da propriedade fundiária. O fato de
a perenidade do grupo se vincular (como já dissemos) à indestrutibilidade do solo,
encontra aqui expressão e mediação na imortalidade do rei e na imortalidade da
família real.
Assim se supõe que, em tempos muito antigos, a grande propriedade fundiária
teria sido uma das origens da monarquia hereditária. Uma excepcional riqueza
assegurava, em todo o caso, ao seu detentor posições de topo no grupo. No entanto,
enquanto essa riqueza consistisse essencialmente em rebanhos, por exemplo, seria
muito precária e poderia descambar rapidamente. Somente quando ela fosse feita de
bens imobiliários haveria possibilidade de mantê-la de forma duradoura nas mãos
de uma pessoa ou de uma família. A estabilidade da propriedade fundiária, mesmo
que esteja apenas sob o controle do chefe, favorece a durabilidade da forma
constitucional e fornece ao princípio hereditário um fundamento adequado e
formalmente análogo. Finalmente, a solidez da ideia do Estado poderia expressar-se
dizendo que em seus domínios são criados os “rebanhos de ferro” 18 . Desde o
momento que a qualidade hereditária da função reinante torna essa dignidade
independente das qualidades pessoais do soberano (o que constitui também seu
ponto fraco), fica claro que o entrosamento do grupo e a articulação de suas funções,
são agora também independentes – e portanto, tornam-se mais objetivos e passam
a adquirir solidez e durabilidade que não têm nada a ver com a contingência da
pessoa que os representa.
17
Prerrogativa de restringir a propriedade individual, em nome do interesse público. (NT)
18
Quer dizer, os rebanhos que deveriam fornecer os mantimentos de reserva quando os gêneros
alimentícios escasseassem, como as rações de combate do exército alemão, ditas também “de ferro”.
Tropos que permitem evocar mutatis mutandi a tigela de arroz “de ferro" (tiě fàn wǎn), metáfora que
descrevia a estabilidade do emprego público na China da era maoista. (NT)
556 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
(por exemplo, os dotes políticos e profissionais dos indivíduos) por uma feliz
coincidência seja adequado ao conteúdo das pretensões objetivas (verbi gratia, os
requisitos necessários ao exercício de determinada função), mas sim de algo muito
mais importante: ambos os aspectos são estranhos entre si, no que diz respeito a
sua forma e significação interior. Por muito que nos custe admiti-lo, as flutuações da
existência individual, os processos da vida pessoal, se insurgem contra a objetividade
e estabilidade das exigências que provêm da forma social. Uma enorme parte da
história de nossa espécie se reduz às consequências dessa contradição e às
tentativas de remediá-la.
Ora, há uma determinação da vida pessoal que se aproxima desse caráter
supraindividual e estereotipado próprio das formas sociais: as realidades da
descendência e da hereditariedade. E isso, no duplo sentido da semelhança
qualitativa entre descendente e ascendente (parecença que se acentua pela
educação e a tradição), e da comunidade real de interesses (o sentimento de um
vínculo objetivo e subjetivo e a unidade familiar) que situa em uma linhagem aos
ascendentes e descendentes, fazendo deles graus de uma mesma escala – ainda que
sejam qualitativamente diferentes. De ambos os lados, a paternidade e a filiação
prevalecem sobre as hesitações e contingências da vida pessoal. As semelhanças
herdadas e adquiridas deixam adivinhar uma característica passada de pai para filho,
que é estável por si só e apresentaria muito poucas alterações entre esses diferentes
sujeitos. Por sua vez, a solidariedade funcional da família é a imagem da forma do
grupo ampliado que confere firmeza e solidez ao indivíduo isolado e vacilante – na
medida em que esse sujeito carrega em si tal coesão supraindividual e é fortalecido
por ela. Quando uma função social é transmitida de pai para filho, ou se mantém na
mesma família, esse fenômeno típico se revela em sua finalidade última e instintiva
como uma tentativa de reduzir a discrepância fundamental entre a forma social
objetiva (com suas exigências correlatas) e a subjetividade do indivíduo encarregado
de preenchê-la.
A herança da função soberana do chefe político talvez seja o melhor exemplo.
A direção de um grupo é obtida, na origem, pela usurpação de uma personalidade
eminente ou violenta, ou pela eleição daquele mais adequado. Esse modo de
designação subjetivo é depois substituído pelo método da sucessão dinástica,
558 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
aparentemente mais irracional, que pode colocar no trono crianças, pessoas com
deficiências mentais ou indivíduos desesperadamente carentes de aptidões para o
cargo. No entanto, a luta ou a eleição para um indivíduo assumir a coroa, com base
nas suas qualidades pessoais, comportam perigos e choques, introduzem as
contingências e irracionalidades do ser humano, ao ponto de essas desvantagens
(pelo menos em circunstâncias estáveis) superarem em muito os riscos inerentes à
dinastia hereditária. O caráter supraindividual do grupo, sua solidez fundamental em
comparação com as oscilações de um mero processo vital, refletem na identidade
supraindividual de seus dirigentes, sucessores dos antigos titulares (à imagem do
filho que herda o pai) independentemente das suas qualidades individuais. Essa
estabilidade objetiva é tão essencial que ultrapassa outras formas graças às quais
se tentou frequentemente harmonizar as vantagens da herança e da escolha pessoal
– fazendo que o soberano fosse eleito entre os membros da casa real. Tal foi o
costume dos antigos germanos, e o dos califas omíadas de Córdova19, que escolhiam
seu sucessor entre seus numerosos descendentes. Heródoto diz que o magistrado
supremo dos caônios 20 do Epiro provinha sempre da mesma família; enquanto os
arcontes21 atenienses foram, durante muito tempo, eleitos dentro da casa real. Até a
extinção da estirpe dos jagelões22 (1572) os poloneses elegeram também seu rei sem
ter em conta regras sucessórias pessoais dentro dessa família reinante. As razões
desse método aparecem muito claramente nos dados que possuímos de certas
bandas de aborígenes australianos. O líder era ali escolhido dentre os filhos do chefe
morto, e a opinião geral concordava em que o segundo filho era, com frequência,
19
O Califado de Córdova foi a forma de governo islâmico que dominou a maior parte da Península
Ibérica e do Norte da África, com capital em Córdova, desde 929. Todos os califas de Córdova foram
membros da dinastia omíada. O Califado de Córdova corresponde de fato à época de máximo
esplendor político, cultural e comercial de Al-andalus, e perdurou oficialmente até 1031, ano em que
foi abolido, após um período de revoltas, fragmentando-se em múltiplos reinos conhecidos como
taifas.(NT)
20
Os caônios foram uma antiga tribo grega que habitou o Epiro, região localizada no Noroeste da
moderna Grécia e sul da Albânia. Pelo século V a.C., conquistaram e miscigenaram-se com os vizinhos
tesprócios e molossos. Os caônios fizeram parte da Liga Epirota até 170 a C. quando seu território foi
anexado pela República Romana. (NT)
21
Magistrados da antiga Grécia, originalmente com poder de legislar e dignidade vitalícia próxima à
realeza, mas posteriormente reduzidos a um cargo apenas honorífico. (NT)
22
Os jaguelões foram uma dinastia real originada na Lituânia que reinou em alguns países da Europa
Central, notadamente na Polônia, entre os séculos XIV e XVIII. O nome provém de Jogaila ou Jagiello,
depois chamado Ladislau II, o primeiro rei polonês daquela dinastia. A família era um ramo da dinastia
lituana Gediminaičių. (NT)
Georg Simmel | 559
23
Frederico II (1194 – 1250) foi imperador Romano-Germânico e rei da Itália de 1220 até sua morte,
além de rei da Sicília a partir de 1198, rei da Germânia desde 1212 e rei de Jerusalém entre 1225 e
1228. Era filho do imperador Henrique IV, da dinastia Hohenstaufen e de Constança, herdeira dos reis
normandos da Sicília. Foi um homem de extraordinária cultura, energia e habilidade, chamado por um
cronista contemporâneo stupor mundi (a maravilha do mundo), por Nietzsche “o primeiro europeu” e
por muitos historiadores o primeiro governante moderno: Frederico II estabeleceu na Sicília e no Sul
da Itália algo muito parecido com um reino moderno, tendo um governo centralizado e uma burocracia
eficiente. (NT)
24
Maximiliano de Béthune, duque de Sully (1560 – 1641). Barão de Rosny, de Henrichemont e de
Boisbelle, marquês de Nogent-le-Rotrou, conde de Muret e de Villebon, visconde de Meaux, marechal
da França, mais conhecido como duque de Sully foi um soldado corajoso, ministro francês, um dos
560 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
líderes da facção religiosa dos huguenotes e braço direito do rei Henrique IV, da dinastia Bourbon, no
governo da França. (NT)
Georg Simmel | 561
25
Vocação hereditária é a convocação de pessoa com direito a suceder para que receba a herança
deixada pelo antigo titular. (NT)
26
O título de almirante de Castela foi criado pelo rei Fernando III, o Santo, em 1204 com ocasião da
reconquista de Sevilha. Essa denominação honorífica foi logo revestida de grande autoridade, poder e
preeminências. Entre as múltiplas atribuições e faculdades do almirante, figurava a de ter voz e “voto
de qualidade” no Conselho de Castela. Desde 1405 até 1705, o título se converteu em patrimônio dos
Henríquez, descendentes do infante Fadrique Afonso de Castela, filho natural do rei Afonso XI, o
Justiceiro, No século XV, durante o reinado dos três últimos reis da dinastia Trastâmara, a instituição
do almirantado se transformou, as funções de serviço à Coroa perderam importância e o cargo serviu
apenas ao empenho arrecadador da família Henríquez. O almirante de Castela deixou de participar
pessoalmente nas guerras navais, enquanto a marinha de guerra castelhana substituía as galeras
reais por veleiros privados contratados para cada campanha. Em 1728, após vários anos sem fazer
uma nova designação para essa denominação honorífica, Felipe V decidiu não a prover. (NT)
27
Condestável de Castela foi um título criado pelo rei João I em 1382 para substituir ao de alferes-mor
do reino. Nele recaía o mando supremo do exército e desde suas origens teve caráter vitalício, mas
não hereditário. Esse tipo de transmissão seria levada a cabo até 1473, quando Henrique IV, o
Impotente, nomeou condestável a Pedro Fernández de Velasco, a partir de quem o título seria
hereditário e meramente honorífico. Deixou de existir em 1713, por motivo do desenlace da Guerra de
sucessão espanhola. (NT)
562 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
28
Guilherme II, também conhecido como Guilherme, o Ruivo (circa 1056 – 1100), foi rei da Inglaterra
de 1087 até sua morte, com influência e poder até a Escócia e a Normandia. Era o filho de Guilherme I,
o Conquistador, e de Matilde de Flandres. Seu reinado foi difícil. Impopular junto do povo, Guilherme
teve que resolver conflitos com a Igreja e enfrentar as revoltas dos condes da Nortúmbria e de Eu,
assim como os ataques do rei da Escócia. Os historiadores do século XII deixaram uma imagem
bastante negativa do rei normando, lembrando sobretudo a sua moral duvidosa, os seus maus
costumes e a sua morte dramática, com apenas 40 anos de idade, atingido por uma seta enquanto
caçava. (NT)
Georg Simmel | 563
esfera) exercerá certas atividades e terá certo tipo de vida; todavia, por outro lado,
essa qualificação pessoal está relacionada a certo nível de integração social. A
herança de uma função social, de um cargo, expressa de maneira objetiva tal atitude
subjetiva. Para ser socialmente adequada, a transmissão pressupõe tanto uma
particularidade pessoal como uma limitação dessa mesma qualidade peculiar a um
nível geral fixado pela tradição. Desse modo, a passagem (de traços físicos,
psíquicos, etc.) à descendência suscita e pereniza determinada relação de
proximidade entre o fator individual e o fator social. É essa dinâmica que prepara sua
superação para uma forma mais elevada. Nesse caso, ambas as partes adquirem um
direito melhor e mais extenso: o indivíduo porque pode fundar sua atividade numa
escolha pessoal e em qualidades independentes da série de gerações que lhe
precederam, e a sociedade porque passa a ter a liberdade completa de escolher seus
funcionários, como compensação ao direito concedido ao indivíduo. À igualdade da
obrigação das duas partes na forma sociológica estudada, corresponde a igualdade
de direitos que aparece quando ela é ultrapassada29.
A objetivação da coesão do grupo pode também eliminar a forma pessoal a
ponto de vincular-se a um símbolo material, que aparece então como causa ou efeito
dessa associação íntima entre os membros do conjunto. Enquanto a Liga
anfictiônica30 surgiu para o cuidado comum do templo de Delfos, o Paniônion, templo
da Liga jônica31, foi erigido como símbolo da confederação já existente. Na mesma
29
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou aos “cargos hereditários”.
Doravante Simmel retoma sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente dos
“símbolos materiais e imateriais da coesão do grupo” e da ”formação de órgãos e a autopreservação
social”. (NT)
30
A Liga anfictiônica (do grego anfictionia que etimologicamente significa “fundação conjunta”) era
uma liga religiosa que agrupava 12 povos (não cidades), quase todos da Grécia central, nos tempos
do período arcaico, antes do surgimento da polis. Ao longo da história houve várias ligas desse tipo,
sendo a mais importante a de Delfos, junto do templo de Apolo. A Liga lutou em três Guerras sagradas
desencadeadas por ela para dominar o templo em questão. Durante a terceira e a quarta destas
guerras (355 a.C. – 346 a.C. e 339 a.C. – 338 a.C.), o rei Filipe II da Macedônia usou a sua posição na
Liga para dominar os assuntos da Grécia. (NT)
31
A Liga jônica foi uma confederação formada por 12 cidades da antiga Jônia (região da costa
sudoeste da Anatólia, hoje na Turquia), em meados do século VII a.C., depois da Guerra meliara (acerto
de contas final entre o antigo estado da Cária e os jônicos que haviam colonizado as terras na foz do
rio Meandro, e que saíram finalmente gananciosos). Diante da ameaça persa crescente, os cários
decidiram unir-se à coalizão jônica que os tinha derrotado, na forma de uma Liga jônica, construindo
um novo centro religioso e político em Mélia (último baluarte cário na guerra e sede de um antigo culto
a Posídon Helicorno). Os jônicos, após se misturaram aos cários, decidiram continuar a cultuar
Posídon, e um novo templo conhecido como Paniônion, foi erguido em homenagem ao deus e como
Georg Simmel | 567
símbolo da confederação, por volta de 540 a.C. Suas ruínas e a localização de Mélia foram descobertas
em 2004. (NT)
32
A Coroa Imperial era a mais importante das Insígnias imperiais, que incluíam também a Cruz
imperial, a Espada imperial e a Lança dita “do destino”, considerada uma relíquia da Crucificação de
Jesus Cristo. Durante a entronização a Coroa era dada ao novo monarca, juntamente com o Cetro e o
Orbe imperial, que só poderiam ser utilizados na cerimônia. (NT)
33
Henrique I da Germânia, o Passarinheiro (876 – 936), foi duque de Saxônia a partir de 912 e rei dos
germanos de 919 até a sua morte, em 936. Primeiro da dinastia otoniana de reis e imperadores
germanos, é considerado o fundador e primeiro rei do império alemão medieval, até então conhecido
como “França Oriental”. Recebeu o epíteto de "passarinheiro" porque teria recebido a notícia da sua
ascensão ao trono no momento em que consertava as suas redes de apanhar pássaros. Sucedeu-lhe
no trono seu filho Otão I do Sacro Império Romano-Germânico. (NT)
34
Conrado, o Jovem (881 – 918), foi rei da França Oriental de 911 a 918. Ele foi o primeiro rei a ser
eleito pela nobreza (após a morte do jovem rei Luis, a Criança) e a ser ungido pelo papa. O duque
Henrique da Saxônia esteve em conflito com ele até 915 e sua luta contra Arnulfo, duque de Baviera,
custou-lhe a vida. De acordo com cronistas da época, Conrado em seu leito de morte persuadiu seu
irmão mais novo, Eberardo da Francônia a oferecer a coroa real a Henrique da Saxônia, um dos seus
principais oponentes, já que ele considerava que “o Passarinheiro” era o único duque capaz de manter
o reino unido diante das rivalidades internas e as contínuas incursões magiares. O conselho não foi
seguido até 919 quando Eberardo e os outros nobres francos aceitaram que Henrique fosse eleito rei.
(NT)
35
Cunegunda de Luxemburgo (975 – 1033) foi esposa do imperador Henrique II, o Santo, e também
santa católica. Era uma descendente de sétima geração de Carlos Magno, filha de Siegfried do
Luxemburgo e Edviges de Nordgau. Em 1014, Cunegunda tornou-se imperatriz, recebendo em Roma,
juntamente com Henrique, a coroa imperial das mãos do papa Bento VIII. Após a morte de Henrique
em 1024, ela se tornou regente, juntamente com o seu irmão e entregou a Insígnia imperial a Conrado
II, o Sálico, que tinha sido eleito para suceder seu marido. É bom que se diga que Cunegunda era
perfeitamente consciente da importância destas joias, que muito tinham ajudado Henrique quando da
sua própria eleição, depois da morte de seu primo Otão II em 1002. (NT)
36
Cidade alemã no Sul do Palatinado, a uns 20 quilômetros da fronteira francesa. Foi um burgo livre
do Sacro Império, mas na época mencionada no texto pertencia ao principado episcopal de Spira. (NT)
568 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
37
José II (1741 – 1790) foi imperador romano-germânico e arquiduque de Áustria de 1765 até a sua
morte, além de rei da Hungria, Croácia e Boêmia a partir de 1780.. Era o filho mais velho da imperatriz
Maria Tereza e seu marido, o imperador Francisco I. (NT)
38
Presburgo, (hoje Bratislava, capital da Eslováquia), foi capital da Hungria desde 1536, quando
passou a ser parte da monarquia dos Habsburgo. A cidade foi desde então a sede da coroação dos
reis e do arcebispado (1543), principal assento da nobreza e das mais importantes organizações e
edifícios governamentais. Entre 1536 e 1830, 11 reis e rainhas húngaros foram coroados na Catedral
de São Martinho de Presburgo. (NT)
39
Carlos IV (1316 – 1378), nascido como Venceslau, foi imperador romano-germânico, rei da Itália de
1355 até sua morte, além de rei da Boêmia e da Germânia a partir de 1346, e conde de Luxemburgo
entre 1346 e 1353. Era filho dos reis João e Isabel da Boêmia. (NT)
Georg Simmel | 569
uma comunidade é uma maneira muito eficaz de feri-la de morte e acabar com a sua
unidade. Nessa linha de pensamento, quando a comuna de Corbie 40 foi extinta em
1308 por causa das suas dívidas, passando seus direitos à Coroa, removeu-se o
badalo do sino maior do campanário para significar que o município tinha deixado de
existir. Já na Prússia, sob o reinado de Frederico Guilherme I 41, quando os oficiais
artesãos se opuseram às tendências mercantilistas e despóticas do governo, o chefe
da polícia escreveu ao rei: ”Essas pessoas se afiguram constituir um corpus ou status
in republica especial”. Por esse motivo, propunha que se mandasse “remover sem
cerimônia suas insígnias e outros ídolos para que não constituam um corpus
particular tal como imaginam ser até hoje”. Preocupação presente um século depois
em uma lei da reação inglesa, que em 1819 previra que a realização de uma reunião
“com bandeiras, estandartes ou outros emblemas ou insígnias” seria punida com
vários anos de prisão.
Todavia, quando a coesão social se perde dessa forma, é quase seguro que o
grupo já deveria estar em um processo desagregador com bastante antecedência e
que, nesse caso, a perda do símbolo material que representa a unidade do conjunto,
é o sinal da perda de coerência padecida por seus elementos. Porque quando não é
assim, a perda do símbolo do grupo não só não produz efeitos destruidores, mas
reforça diretamente a coesão. Ao perder a sua realidade corporal, o símbolo pode
exercer um efeito muito mais potente, profundo e indestrutível como simples
pensamento, saudade ou ideal. Esses dois efeitos opostos da ruína do símbolo
coletivo se manifestam nos resultados que ocasionou a destruição do Templo de
Jerusalém pelas legiões de Tito. O significado sociológico do Templo de Sião tinha
sido dar um simples elemento tangível à coesão puramente dinâmica dos judeus
40
Corbie é uma pequena cidade perto de Amiens que surgiu a partir da abadia que lhe deu nome, um
dos centros de iluminura da época merovíngia. No século XIII o comércio do bleu de guède (pigmento
azul tirado de uma erva crucífera) era muito ativo na Picardia e fez a prosperidade de Corbie. No
entanto, a partir da segunda metade desse século uma crise econômica interrompeu o comércio dos
tecidos de luxo. A comuna se empobreceu e, cheia de dívidas, teve que voltar-se ao rei. Ora, Filipe, o
Belo preferiu apoiar o abade de Corbie em vez da comuna – que sofreu assim o rigor da dominação
abacial e perdeu os símbolos de poder comunal (os badalos dos sinos, a torre municipal ou beffroi,
etc.). (NT)
41
Frederico Guilherme I (1688 – 1740), também chamado de "o Rei Soldado", foi rei da Prússia e eleitor
de Brandemburgo de 1713 até sua morte. Famoso por sua avareza, seu desprezo pelas coisas do
espírito, sua brutalidade e sua vontade de assumir o controle de tudo em cada detalhe. Confirmou, no
entanto, a influência crescente da Prússia no concerto das potências europeias e acrescentou a
importância do exército na sociedade. (NT)
570 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
– súditos dos partos ou dos romanos e falantes de aramaico ou grego. O que ele
representava em si, desse ponto de vista, era perfeitamente indiferente. O templo só
era importante porque tornava visível uma comunidade funcional e evocava a
possibilidade do retorno do povo judeu, disperso e dividido, a um ponto focal de
concreta idealidade. Ora, sua destruição atingiu seu objetivo – acabar com o Estado
teocrático judeu, uma contradição e um perigo para a unidade política do Império
romano – aos olhos de numerosos hebreus para quem essa centralização não era
muito importante. Se por um lado favoreceu a separação entre a Igreja paulina e o
judaísmo, a ruína do templo contribuiu, por outro, a alargar consideravelmente o
fosso entre o judaísmo e o resto do mundo, além de fazer com que os judeus da
Palestina, respeitassem com a força do desespero sua coesão nacional e religiosa.
O fim do símbolo coletivo age de duas maneiras sobre a preservação do grupo: de
modo destrutivo, quando as ações recíprocas de coesão dos elementos estão muito
fracas, e de modo reconstrutivo quando essas ações são tão fortes que podem
substituir o símbolo tangível perdido por uma imagem espiritualizada e idealizada.
A importância do símbolo material para a preservação de uma sociedade será
muito maior se esse objeto, para além de seu valor simbólico, representa também
uma possessão real e se o seu efeito centralizador depende – ou aumenta – do fato
de concentrarem-se nele os interesses materiais de todos os membros do grupo.
Nesse caso, garantir a posse assume particular importância para a preservação de o
grupo, pois que representa abrigá-la de todo mal, dano o perigo, mais ou menos como
a imortalidade do rei quando o cerne do grupo é uma pessoa. O meio que se usa
habitualmente para alcançar tal objetivo é o dos bens de mão-morta: declara-se
inalienável o patrimônio das corporações que devem ser eternas.
Assim como o caráter perecível do indivíduo se reflete na fragilidade de seus
bens, a imortalidade da associação se expressa na imprescritibilidade e na
inalienabilidade de seus bens. Desse modo, o patrimônio das corporações,
especialmente das eclesiásticas, se assemelha ao covil do leão, onde tudo entra e
nada sai. Da mesma maneira que para o homem distinguido a imortalidade não é
apenas o desejo banal de seguir vivendo, nem o mero anseio de quantidade de vida,
mas deve simbolizar uma qualidade da alma, certa elevação de seu valor além das
contingências terrenas que só pode exprimir-se assim – também a imortalidade do
Georg Simmel | 571
patrimônio era muito mais do que um simples instrumento da cobiça da Igreja se não
um símbolo da eternidade do princípio que possibilita sua coesão. A mão-morta
permitia que as associações se beneficiassem de um ponto de fixação indestrutível,
de um meio de valor inestimável para a preservação do grupo. Esse caráter se
fortalecia porque suas possessões consistiam essencialmente em propriedades
fundiárias. Diferentemente de toda propriedade mobiliária, em particular do dinheiro,
a propriedade fundiária se revela inamovível e indestrutível, o que a torna apta a servir
de conteúdo aos bens de mão-morta – enquanto sua fixidez local permite que os
coparticipantes achem nela o ponto firme em relação ao qual podem orientar-se e
reunir-se (diretamente ou em seus interesses) sem medo de errar. Para além da
vantagem material e também por causa dela, trata-se de uma maneira genial de
consolidar e manter unido o grupo em sua forma.
No entanto, é precisamente essa circunstância que compromete amiúde o
grupo em um conflito de características sociológicas, porque a coletividade, cuja
preservação favorece sempre, faz parte de uma sociedade política maior. Quase
todas as sociações humanas, independentemente de seu teor e de sua essência,
trabalham no sentido de que alguns de seus participantes se reúnem em unidades
sociais que desenvolvem internamente um instinto egoísta de autopreservação. A
forma e a tendência dessas unidades menores reproduzem em proporções reduzidas
a configuração e orientação do grupo global de que elas fazem parte – e justamente
por isso, entram em contradição com ele. O papel que lhes cabe como partes e
membros de um conjunto mais amplo não se coaduna com aquele que representam
como conjuntos considerados no todo. Mais adiante abordamos a natureza dessa
relação trágica que se repete no âmbito de toda sociedade de dimensão significativa,
Alertaremos por enquanto até que ponto ela imprime a sua marca no sistema da
mão-morta. Como já dissemos antes, é extremamente importante para a
manutenção de um grupo total unitário ter um território que forneça um fundamento
firme e Inabalável para a sua unidade e delimitação. No entanto, pode ser perigoso
que um dos componentes do todo reivindique para si parte desse território. O conflito
de interesses entre a parte e o todo se manifesta de dois modos: imediatamente, no
fato de que, na maioria dos casos, a mão-morta tem pedido e obtido derrogações
tributárias; e de modo mediato, no fato mais importante de que, no geral, a mão morta
572 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
42
Eis uma das características e diferenciações sociológicas mais importantes na sociação: o grau em
que os diversos grupos facilitam ou dificultam o ingresso e a saída de seus membros. Desse ponto de
vista, poderia se estabelecer uma escala de sociações. Os grupos que procuram ter o maior número
possível de membros, porque tiram a sua força da sua mera extensão, não deixarão de facilitar o
ingresso e de evitar a saída. Pelo contrário, os grupos aristocráticos tornam a entrada, em geral, mais
difícil. No entanto, quando acreditam demais em si mesmos, facilitam amiúde a saída, porque não
querem reter quem já não quer assumir as obrigações da nobreza e se tornou assim indigno de
574 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
que o grupo (e seus interesses) se colocou para além da esfera de interesses de seus
membros individuais, e que o coletivo vive uma vida própria e toma conta dos valores
recebidos, separando-os totalmente de seu proprietário individual, a quem não vai
(nem pode) devolvê-los, assim como um corpo orgânico não pode devolver as
substâncias que ingere. Os antigos sindicatos ingleses, que só exigiam contribuições
muito baixas constataram que seus membros entravam e saíam da associação com
grande facilidade. O aumento das contribuições mudou tudo. Doravante, quando uma
seção sindical está descontente de algum procedimento adotado pela associação
profissional, pensa bem antes de se separar, pois perderia sua parte em um
patrimônio considerável acumulado ao longo do tempo. Esse modus procedendi43
não só favorece imediatamente a preservação continuada do grupo, como está a
avivar psicologicamente nos seus membros a ideia da existência supraindividual do
grupo, independente de todas as veleidades individuais.
Existe outro aspecto da autopreservação que merece a nossa atenção: a
irrevogabilidade como técnica que permite concretizar e tornar visível a unidade
fundamental do grupo. Trata-se do expediente de que se valem as comunidades que
consideram imodificável toda decisão legalmente adotada. A cautela empregada por
uma confraria religiosa grega que pretendia reexaminar uma disposição tomada há
muitos anos constitui, a nosso ver, um bom exemplo (a contrario sensu) disso:
“deveria ser autorizado, desta vez, introduzir uma voz discordante relativamente à
participar das suas prerrogativas. Na nobreza reencontramos aquela atitude formal do conjunto em
face do indivíduo, cujo ponto culminante se encontra, como indicamos anteriormente, na Igreja
católica. De fato, em todas as épocas, a Igreja católica teve a tendência de tratar mesmo as pessoas
perigosas, os heréticos e os cismáticos, o maior tempo possível, como se fossem evidentemente uma
parte de si, e a ignorar o que os separava dela, como se não tivessem dito nada. Porém, no momento
em que isso não era já possível não tinha problemas em expulsar o herético e o dissidente sem
contemplações, compromissos ou a menor fórmula de transição. Nessa prática se encerra uma parte
importante da força e da sabedoria da Igreja católica, que se manifesta em uma enorme generosidade
enquanto ainda é possível conservar o herege, e na radical expulsão dele quando já não está ao
alcance conservá-lo. Dessa forma uniu as vantagens de uma extensão máxima com as de uma
rigorosa delimitação. Pelo que tange à pertença, a relação do indivíduo ao grupo pode ser resumida
na fórmula: “para entrar somos livres, para sair somos escravos”, mas também na fórmula contrária,
uma vez que a entrada e a saída são mais uma vez igualmente fáceis e difíceis. Ademais, há que ter
em conta a variedade dos meios graças aos quais tais facilidade e dificuldade se instauram: são
econômicos ou morais, agem como lei objetiva, como vantagem egoísta dos membros ou como
influência espiritual sobre eles? Tudo isso exigiria um profundo estudo cujo material seria constituído
por todos os tipos de grupos existentes e/ou os problemas formais últimos de sua vida, que deveriam
cruzar-se segundo duas categorias essenciais: a da vida do grupo em sua existência supraindividual
e a relação do indivíduo com essa unidade social. (NS)
43
Expressão latina que significa: “maneira de proceder”, “procedimento”. (NT)
Georg Simmel | 575
prescrição em vigor”. Em tais casos, o que foi resolvido uma vez conforme as regras
da comunidade se torna “solidário” 44 da vida dela, como se fosse parte de seu ser,
que não pode ser então modificado. Sua intemporalidade (seu caráter eterno, se
preferimos) se manifesta na crença de que o momento anterior, quando a decisão foi
tomada, não se diferencia de qualquer dos momentos posteriores. Essa técnica
sociológica de preservação se repete em maior grau em certas associações que
dispõem, mesmo se em dissolução, que o patrimônio social não será repartido entre
os membros, mas investido em outra associação com finalidades similares. A
autopreservação não se refere à existência física do grupo, mas a sua ideia, que se
encarna igualmente bem no outro grupo que a herda, e cuja continuidade se presume
ficar mantida e demonstrada precisamente pela transposição do patrimônio de um
grupo ao outro. Em muitas das associações de trabalhadores franceses da década
de 1840, constatamos claramente essa tendência. Seus estatutos preveem que o
patrimônio da associação não pode ser distribuído em qualquer caso. A
consequência dessa ideia foi a frequente formação de sindicatos pelas associações
de mesma profissão, que contribuíam para constituir um patrimônio coletivo,
permitido pelas cotizações das associações que se fundiam em uma nova unidade
– da mesma forma que as contribuições individuais dos trabalhadores se
incorporavam aos fundos das diversas associações. Dessa maneira o pensamento
que presidiu a criação de tais associações foi sublimado. O sindicato vira a abstração
encarnada (espécie de substância autônoma) dos interesses dos trabalhadores, que
até então só tinham existido de fato como associações mais individuais e
dependentes de seus conteúdos particulares. A motivação social desses
agrupamentos atingiu assim um nível capaz de manter a motivação ao abrigo de
todas as vicissitudes individuais e materiais – se outras forças não tivessem agido
destrutivamente.
Vamos agora tratar de outro meio de autopreservação social cuja relação com
uma substância material se tem apagado, e que se assenta em fundamentos
puramente espirituais. (Ainda que, dentro da esfera ideal, há toda uma escala de
fundamentos e bases que essencialmente – quanto ao seu significado – não se
44
No sentido concreto, mecânico, que Carnot deu ao termo; que se aplica a peças ou órgãos
vinculados a um mesmo movimento. (NT)
576 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
45
A posição formal que daí resulta tem sido tratada para o costume no Capítulo II. (NS)
578 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
apropriada aos círculos menores compreendidos dentro de outro círculo maior. Tais
círculos menores preservam sua coesão interna, sua unidade e sua demarcação
relativamente a outros círculos do grupo maior graças às exigências que formulam a
seus indivíduos e estão compreendidas no conceito de honra. O que entendemos por
honra humana em geral (ou, dito de maneira diferente, por honra puramente pessoal)
é um conceito abstrato, possível pela supressão das fronteiras entre categorias de
pessoas fundadas no mérito, na importância ou na capacidade pessoal – no bom ou
mal sentido. Na verdade, não se pode citar nem sequer uma ação que atente à honra
humana, quer dizer, que seja contrária a toda forma de honra. Para o asceta, é uma
questão de honra deixar-se cuspir, e para as adolescentes de certas tribos africanas
é particularmente honroso ter o maior número possível de relações sexuais. Assim,
os conceitos essenciais da honra se adéquam às características específicas dos
grupos fechados: a honra familiar, a honra militar, a honra do comerciante e, por que
não, a honra dos trapaceiros. Quando o indivíduo pertence a círculos diferentes, pode
participar de diversas honras, independentes umas das outras, questão que já
consideramos importante como uma das manifestações do “cruzamento” social.
Alguém que perdeu sua honra familiar pode manter intacta sua honra como
comerciante ou pesquisador científico e vice-versa. O ladrão pode cumprir à risca os
preceitos da honra dos malfeitores embora tenha infringido qualquer outro tipo de
honra. Uma mulher pode ter perdido sua honra sexual e, ainda assim, permanecer,
em todas as demais coisas, a pessoa mais honrada do mundo, etc. A origem da honra
na teleologia de determinado círculo menor fica clara no fenômeno que é sua
consequência necessária: a honra exige certas coisas, mas também autoriza outras,
ou seja, aquilo que é perfeitamente suportável e indiferente para a honra de certo
círculo é absolutamente proibido para a honra de outro. O condescendente conceito
de honra elaborado pelo corpo de oficiais de mais de um exército moderno, concede
certas licenças no comportamento sexual de seus integrantes que não são
compatíveis com a honra de um homem em muitos outros círculos. A honra dos
operadores comerciais, muito rigorosa em alguns aspectos, permite exaltar as
qualidades das mercadorias, de tal forma que semelhantes afirmações contrárias à
verdade desonrariam um funcionário ou um homem de ciência. A referida honra dos
malfeitores é a sua manifestação mais evidente. Considerados seriamente, os
Georg Simmel | 579
indivíduo a fazer da sua salvação o seu dever, assim, mutatis mutandis, pode-se dizer
que a honra faz do dever social do homem a sua própria salvação. Por isso, no que
diz respeito à honra, as figuras do direito e do dever se confundem: conservar a honra
é um dever tão grande que podemos deduzir dele o direito aos maiores sacrifícios
– não de si mesmo, mas ainda impostos aos outros, invadindo a esfera privada. Seria
absolutamente incompreensível a sociedade impor a salvaguarda desse bem
estritamente pessoal da honra aos indivíduos, e atribuir-lhe tal ênfase social e moral,
se não fosse uma forma e uma técnica cujo conteúdo e finalidade apontam à
preservação do grupo. Graças a essa relação – porque se trata aqui essencialmente
da preservação e não do progresso e da evolução – compreende-se que a sociedade
conceda antecipadamente esse bem às pessoas, de tal forma que elas não
necessitem adquiri-lo, bastando apenas que não o percam: presume-se que todas
sejam honoráveis. A sociedade pode proceder com essa aparente liberalidade,
porque o comportamento que se exige para não perder a possessão de um bem tão
pessoal não tem outro conteúdo que o interesse social. Tal presunção vai tão longe
que a sociedade permite ao ofensor (adúltero ou caluniador) lutar com as mesmas
armas que o ofendido inocente, dado que, como o autor da ofensa ainda é
“honorável”, se pressupõe a possibilidade de que tivesse direito para agir desse
modo. No entanto, cada estamento (em seu caráter de detentor sociológico da honra)
só concede essa presunção favorável a seus próprios membros, o que faz com que
– exceto quando se trata de elementos do mesmo grupo notoriamente
desacreditados – não se deva “dar satisfação” aos membros dos demais
estamentos. É assim que a honra (não apesar, mas graças à forma puramente
pessoal das suas manifestações e da sua consciência) constitui um dos meios mais
admiráveis, elaborados instintivamente, para a preservação da existência do grupo.
Depois de tratar das conexões da autopreservação social com uma pessoa
individual, com uma substância objetiva e com um conceito ideal, passaremos aos
casos em que a continuidade grupal repousa em um órgão constituído por uma
pluralidade de pessoas; isto é, quando o princípio objetivo no qual a unidade coletiva
se manifesta tem o caráter de um grupo. Assim, na comunidade religiosa, a sua
coerência e razão de vida se encarnam no sacerdócio; em todo partido político, na
sua representação parlamentar; em toda associação duradoura, no seu conselho de
Georg Simmel | 581
46
Não pretendemos afirmar que este estado lógico (em tese, o mais simples possível), tenha sido
sempre, realmente, o ponto de partida histórico da evolução social. No entanto, pode ser aceito para
descobrir o significado efetivo dos órgãos sociais baseados na divisão do trabalho – mesmo no caso
de ser uma ficção, o que, com toda a certeza, não é para um número incalculável de casos. (NS)
582 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
47
A isso se acrescenta um fato da maior importância sociológica para a forma, a saber, que o
“representante”, em geral, não é mais que um indivíduo do grupo, a quem a sua missão não eleva por
cima dessa igualdade de princípio. Em compensação, o “funcionário” enquanto tal é diferente de todos
os indivíduos do grupo – mesmo se como particular pode ocupar uma posição análoga. Isso produz
singulares efeitos quando, por exemplo, patrões e operários negociam convenções coletivas de
trabalho. A lei alemã sobre esse tipo de contratos determina que os acordos devem ser celebrados
pelos “interessados”, quer dizer, por patrões e operários em representação de seus respectivos
grupos. Essa decisão pode atribuir-se a exigências estritamente técnicas, pois se supõe que só os
interessados terão a motivação e os conhecimentos dos problemas que são exigidos. No entanto,
sociologicamente deve-se ao fato de que as partes em presença não são necessariamente (e,
geralmente, de modo nenhum) “pessoas jurídicas” ou assemelhadas. Especialmente no que diz
respeito aos operários, seus representantes serão amiúde eleitos por assembleias frequentadas por
multidões volúveis e incontroláveis. Por consequência, está absolutamente fora de questão que todos
aqueles concernidos pela convenção coletiva tenham outorgado procuração a esses representantes.
Nesse caso, falta o que tornaria os ditos mandatários supérfluos: a unidade social objetiva que
colocaria ao grupo em posição sobranceira a todos seus membros, os casualmente presentes como
os ausentes. Essa é, de fato, a situação típica do “representante”, quer dizer, do membro de uma
massa, formada pela soma de seus elementos, a quem essa massa outorga um mandato – no geral
imperativo, com uma lógica sociológica perfeita. Contrariamente, o “funcionário” que age em nome do
espírito da unidade supraindividual do grupo, possui uma liberdade muito maior em face do conjunto
dos membros atuais. Precisamente, ao contrário da situação daquele representante dos operários, os
secretários gerais dos sindicatos ingleses têm um poder esmagador, quase ditatorial (apesar da
Georg Simmel | 585
organização democrática dessas agremiações), porque se dedicam aos assuntos do grupo como
únicos funcionários permanentes – e não como “interessados”. (NS)
586 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
48
A maior agilidade dos órgãos criados pela divisão do trabalho não impede que, sobretudo quando
representam os interesses mais essenciais do grupo, essas entidades especializadas tenham um
caráter conservador. E devem tê-lo, porque sua missão é preservar a unidade do grupo, em torno da
qual oscilam (com uma amplitude imprevisível e uma contingência que não tem suficientemente em
conta essa unidade) os acontecimentos singulares produzidos pelos indivíduos do grupo. O princípio
do grupo, que antes era realizado por ele de um modo imediato – embora talvez não com tanta
consciência e perfeição técnica – é transferido para os funcionários. As regras morais do cristianismo
nos proporcionam um exemplo muito claro. Nos primeiros tempos, todos os membros da comunidade
cristã estavam obrigados a observar a mesma moral rigorosa de bispos e sacerdotes. No entanto, isso
se tornou impraticável com a enorme difusão do cristianismo, e os membros da comunidade recaíram
na mediocridade moral. Todavia, se esperava – e se obteve – dos funcionários eclesiásticos que eles
preservassem a moral particular indissoluvelmente ligada à essência da religião. Aquilo que tinha sido
a condição de admissão de todo indivíduo na cristandade tornou-se doravante uma exigência para a
ordenação. Nesse caso, o conservadorismo da burocracia repousa na profunda razão sociológica de
ter sido transferida para ela a função sociológica que antes correspondia ao grupo inteiro, cuja
expansão qualitativa e quantitativa requereu a constituição de um órgão diferenciado, especialmente
indicado para tais fins. O conservadorismo revela-se, assim, não como um mero acidente da
burocracia, mas como expressão de seu sentido sociológico – embora deixando margem para
manifestações diversas e contrárias. (NS)
49
Divisão territorial do distrito de Bad Dürkheim, no estado alemão da Renânia-Palatinado, no
sudoeste do país. (NT)
Georg Simmel | 587
representá-la em tudo o que um município tem que fazer”. Dessa forma, em inúmeros
casos, a representação de uma pluralidade de elementos por poucos indivíduos se
funda num simples fator objetivo: a reunião de poucas pessoas oferece (mesmo sem
qualidades eminentes peculiares) a vantagem genérica de uma maior flexibilidade,
de poder reunir-se com mais rapidez e de tomar decisões muito mais precisas que
as de um grupo de grandes proporções. Tanto que poderíamos falar aqui do princípio
do órgão inespecífico: a preferência qualitativa atribuída aos representantes em face
da ação imediata do grupo total repousa, exclusivamente, no seu baixo número. O
Estado romano era, originariamente, a totalidade dos cidadãos reunidos em
assembleia popular, e os juristas posteriores dirão que foram apenas as dificuldades
oferecidas pela reunião do populus em um lugar para fins legislativos que
aconselharam senatum vice populum consuli 50 . O caráter inespecífico do órgão
representativo ou dirigente encontra a sua expressão mais radical nos casos em que
essa pessoa (de existência física ou ideal) nem sequer é eleita porque o cargo é
assumido rotativamente pelos elementos do grupo total. Talvez possamos encontrar
o melhor exemplo disso entre os primeiros sindicatos ingleses (trade clubs) quando,
em meados da década de 1800, designaram os integrantes de uma comissão que
precisaram nomear seguindo a ordem em que os nomes foram escritos nas listas da
agremiação – porque, dado o nível de escolaridade desses operários, era bastante
duvidosa a qualificação de qualquer um deles para as funções de representação. O
rodízio mecânico manifesta aqui, com toda a clareza, a principal vantagem do fator
quantitativo: em vez de atuar muitos, agem poucos.
A dificuldade de agrupar pessoas em um mesmo local não se encontra
unicamente nos casos em que é preciso reunir todo o grupo: também está presente
nas relações econômicas. Enquanto as trocas e as compras só se realizaram através
da reunião do produtor e do consumidor, sem outro de permeio, é evidente que esses
atos ou contratos ficaram muito imperfeitos e difíceis – bloqueados com
extraordinária frequência pelas dificuldades que a sua obrigada e simultânea
presença em um mesmo local acarretavam. No entanto, quando aparece o
intermediário entre produtor e consumidor e, no final, surge uma classe de
50
“Que o Senado tome as decisões em lugar do povo”. (NT)
588 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
51
A Pnyx era uma colina na Atenas da Grécia antiga com cerca de 400 metros, ao sudoeste da ágora,
onde a assembleia do povo (a Eclésia) da democracia ateniense se reunia. (NT)
52
A Ting era uma assembleia de homens livres na Escandinávia do medievo viquingue, convocada
para legislar, fazer justiça e tomar decisões administrativas. (NT)
Georg Simmel | 589
53
A geração espontânea foi uma teoria, hoje desacreditada e obsoleta, que considerava possível a
formação espontânea de determinados seres vivos a partir de matéria orgânica, inorgânica ou de uma
combinação de ambas. Essa formação ocorreria sem necessidade de intervenção de qualquer tipo de
propágulo, gameta ou qualquer outra forma de reprodução a partir de indivíduos da mesma espécie.
(NT)
592 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
grupo; todavia, a única coisa que ele vai fazer será proceder de acordo com suas
obrigações. Com a mesma objetividade que rege as suas atividades e decisões, o
funcionário vai aferir também o grau de seu engajamento, assim como a sua
personalidade subjetiva (sem se deixar influenciar pelo conteúdo de sua atividade)
tampouco gastará energias para além daquelas que está objetivamente obrigado a
consumir. Da mesma maneira, a objetivação do órgão fará com que se percam, ao
lado de certos aspectos questionáveis da personalidade, alguns outros de grande
apreço como a cordialidade, a doação sem reservas, e a magnanimidade que não
distingue entre os interesses próprios e os do próximo. Como a objetividade é sempre
o correlato da divisão do trabalho, o que se elogia sob o nome de objetividade do
funcionário é a simples consequência da intensificação da complexidade na
organização da burocracia – liberada já das confusões e também das divisões
inerentes à vida do grupo total.
3. Se tais vantagens (que a constituição de órgãos revela relativamente à ação
do grupo total para a perenidade desse mesmo conjunto) se referem ao tempo54 e ao
ritmo dos processos de autopreservação do grupo, é preciso assinalar que
igualmente dizem respeito a suas qualidades. Mais uma vez, o primeiro fator decisivo
é a regra psicológica cuja importância nos espantou repetidamente: a ação global da
multidão estará sempre a um nível relativamente baixo do ponto de vista intelectual.
O ponto de convergência de grande número de pessoas deve situar-se à mesma
altura dos menos esclarecidos deles; porque, se é possível que os instruídos
consintam em dar um passo em direção aos iletrados para proporcionar-lhes
conhecimentos, mais árduo parece ser o caminho do saber para todos os ignorantes.
São estes últimos, assim, os que determinam o ponto de encontro entre as duas
realidades: aquilo que é comum a todos só pode ser o que é próprio dos que possuem
menos. Esta regra, que é de grande valor para todas as ações coletivas – desde o
comportamento de uma multidão furiosa na rua, até as assembleias de uma
sociedade científica –, não tem naturalmente validez mecânica e uniforme. A
condição do homem superior não é o resultado de um acréscimo de qualidades iguais
às que o inferior possui em quantidade menor, de modo que, em todos os aspectos,
54
No sentido musical do termo, quando utilizado como unidade abstrata de medida da velocidade das
pulsações de um trecho musical. (NT)
594 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
o primeiro teria tudo o que o segundo tem, mas não vice-versa. O homem superior é,
em alguns aspectos, tão diferente pela sua natureza do inferior que não pode de
modo algum adotar o seu ponto de vista, nem na realidade, nem sequer na sua
imaginação. O “camareiro” não compreende o “grande homem”, da mesma maneira
que o “grande homem” não compreende ao “camareiro” 55 . Somente a metáfora
espacial do inferior e do superior leva a crer em uma simples diferença de grau, nos
termos da qual bastaria que o homem superior se despojasse do que tem “em
demasia” para encontrar-se no mesmo nível do inferior. No entanto, se a diferença é
tão ampla e geral que não possa reduzir-se à unidade, embora o superior descenda
e se anule um predomínio quantitativo, é também impossível obter uma verdadeira
ação coletiva. Uma pessoa pode colaborar ostensivamente com outras em alguma
coisa, mas isso não significa que ela tenha comprometido algumas das qualidades
que definem sua individualidade, as condições de ser de sua verdadeira
personalidade. Se uma coletividade quer agir realmente em comum, isso só será
possível nas esferas que permitem ao superior descer ao nível do inferior. Portanto,
é um erro otimista definir como “médio” esse nível social: o caráter das ações
coletivas tende a situar-se não na linha média, no juste milieu56 entre os elementos
superiores e inferiores, mas se identifica com os inferiores. Essa é uma verdade
confirmada pela experiência de todas as épocas – desde Sólon57 que dizia que os
atenienses eram astutos como uma raposa, quando se os considerava
separadamente, mas que reunidos na colina de Pnyx se transformavam em um
rebanho de cordeiros, até Frederico, o Grande58 que afirmava que seus generais eram
as pessoas mais sensatas do mundo, quando falava a sós com eles, mas uns
55
Simmel se tem referido já às distintas naturezas do “grande homem” e do “camareiro” no capítulo V
da presente obra, ao desenvolver o tema da “discrição” e tratar da obrigação de “guardar distância”.
(NT)
56
Juste milieu (que significa "caminho do meio" ou "meio termo") é um termo francês que descreve
filosofias políticas que tentam encontrar um equilíbrio entre os extremos. (NT)
57
Sólon (638 a C. – 568 a C.) foi um estadista, legislador e poeta grego, considerado por seus
contemporâneos um dos sete sábios da Antiguidade. Em 594 a C. iniciou uma profunda reforma das
estruturas social, política e econômica da polis ateniense. (NT)
58
Frederico II (1712 - 1788) conhecido como Frederico, o Grande, governou o Reino da Prússia de 1740
a 1786. Suas realizações mais significativas incluíram suas vitórias militares, sua reorganização dos
exércitos prussianos, seu patrocínio das artes e do Iluminismo e seu sucesso final na Guerra dos Sete
anos contra as principais potências europeias da época. (NT)
Georg Simmel | 595
Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759 — 1805), foi um poeta, filósofo, médico e historiador
vurtembergo. É um dos grandes homens de letras da Alemanha do século XVIII e, assim como Goethe,
Wieland e Herder, um dos principais representantes do Classicismo de Weimar, tido como um dos
precursores do Romantismo alemão. (NT)
59
Expressão latina que pode ser traduzida como: “juntos” ou “todos juntos”. (NT)
60
Dião Crisóstomo (circa 40 — circa 120) foi um orador, escritor, filósofo e historiador da Grécia Antiga
que viveu no período da dominação romana. Seu apelido Crisóstomos significa “boca de ouro”, em
alusão a sua admirável eloquência. Considerado um dos maiores retóricos e sofistas da Grécia, seus
escritos versam sobre política, ética, filosofia e estadismo. (NT)
61
Carl Maria von Weber (1786 — 1826) foi um barão, compositor e diretor de ópera nascido na Holsácia
(ducado dinamarquês hoje parte da Alemanha) que desempenhou um papel importante na transição
da música clássica à romântica; celebrado notadamente por suas óperas Der Freischutz (O Franco-
atirador), Euryanthe e Oberon. (NT)
596 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
intelectuais), mas isso de nenhuma maneira acontece quando o grupo deve agir
como uma unidade. Podemos qualificar as mencionadas relações imediatas dos
elementos individuais de movimentos “moleculares” do grupo e os outros de
movimentos “molares” dele62. Nos primeiros, a representação dos indivíduos não é
possível, nem conveniente de princípio, enquanto nos molares a dita representação é
tanto possível como desejada. A experiência dos grandes sindicatos ingleses – para
dar um exemplo entre muitos outros – demonstrou que as assembleias de massa
adotam, amiúde, as decisões mais insensatas e prejudiciais (por isso se tem dado as
aggregate meetings a alcunha de aggravate meetings63), razão pela qual a maioria
das associações profissionais as substituiu por reuniões de delegados. Toda vez que
um grupo de grande dimensão pretende gerir seus assuntos por si mesmo e sem
intermediários, a necessidade correlata de que cada elemento compreenda e aprove
de alguma maneira a decisão que tem que ser tomada, condena a esta última à norma
da trivialidade. Só quando essa gestão passa a uma organização composta por
relativamente poucas pessoas é possível valorizar o talento específico. A
determinação e o conhecimento de causa (que são sempre o apanágio de poucos)
têm de lutar laboriosamente para impor a sua influência quando quem decide é o
grupo total, ao passo que tal predominância é um dado adquirido em um órgão
especializado64.
62
Referentes à massa de uma substância, em oposição às moléculas que formam parte dessa massa.
(NT)
63
Jogo de palavras entre assembleias aggregate (= de massa) e assembleias aggravate (= que se
tornaram piores, mais preocupantes). (NT).
64
Decerto também se produzem fenômenos contrários. Dentro da burocracia, acontece muitas vezes
que por estreiteza de espírito e de visão impede-se que o talento encontre o lugar que lhe é devido,
enquanto a grande massa pode facilmente seguir um indivíduo dotado de inteligência acima da média,
renunciando as suas próprias opiniões. Para uma ciência abstrata como a sociologia, é inevitável que
as conexões típicas que apresenta, não possam esgotar a plenitude e a complexidade da realidade
histórica. Por mais valioso e eficaz que seja o sistema que essa ciência proponha, o acontecimento
concreto deve sempre conter uma série de forças divergentes que poderá mascarar seu efeito no
resultado global perceptível. Mesmo a física em parte é composta de algumas relações entre
movimentos regidas por leis que, no mundo empírico, nunca ocorrem com a pura lógica que lhe
conferem o cálculo matemático ou as experiências de laboratório. No entanto, isso não significa que
as relações de forças sejam menos reais e ativas em todos os casos em que se verifiquem as
condições cientificamente constatadas, ou seus começos. Acontece que, além delas próprias, há
sempre outra série de forças e condições que agem sobre a mesma substância: na resultante de
ambas, que constitui afinal de contas o verdadeiro curso dos acontecimentos, a parte das relações
descobertas pode escapar à observação direta e só contribuir ao efeito final em uma proporção
imperceptível. Essa deficiência que revela perante a realidade todo conhecimento típico e legal,
alcança visivelmente sua culminância nas ciências do espírito, porque em sua esfera não somente os
fatores de cada caso particular se confundem em um entrelaçado inextricável senão o destino
Georg Simmel | 597
daqueles que se quis analisar fica subtraído à constatação matemática ou experimental. Qualquer
relação de causa e efeito a ser considerada como normal em virtude de acontecimentos históricos ou
probabilidades psicológicas parecerá não ocorrer em muitos casos em que suas condições estejam
reunidas. Isso não significa necessariamente um erro na transmissão ou exposição de algum fato,
mas apenas que para além das forças identificadas ocorre a ação de outras forças talvez contrárias,
que prevaleceram no efeito total visível. (NS)
598 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
65
Jean-François Paul de Gondi, mais conhecido como o Cardeal de Retz (1613 — 1679), foi um político,
eclesiástico e memorialista francês. Sucessivamente bispo in partibus de Corinto, coadjutor de Paris,
cardeal arcebispo dessa cidade e abade de Saint Denis, se indispôs desde cedo com Mazzarino, que
o aprisionou nos castelos de Vincennes e de Nantes. Evadido, se refugiou nas suas possessões,
primeiro, e depois em Roma. Político hábil e influente participou da Fronda (vide infra) e não cessou
de intrigar até seus últimos anos. Exceleu nas belas letras, e suas Memórias são consideradas uma
obra prima da literatura francesa do século XVII. (NT)
66
A Fronda, (ou as Frondas), foi uma série de guerras civis ocorridas na França entre 1648 e 1653
concomitantemente à Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), e alguns anos após a Guerra dos Trinta
Anos – em que a monarquia se viu diante de uma série conflitos contrários a ela partindo de diversos
segmentos da sociedade. (NT)
Georg Simmel | 599
e os supera. Eis uma esfera que a psicologia social poderá considerar seu objeto
privilegiado de estudo: aqueles objetos de indiscutida natureza espiritual da
sociedade e que, ainda assim, não dependem dos indivíduos, de modo que a menos
que tenham caído do céu, só podem ter por criador e suporte a sociedade, esse ente
ideal que está além dos indivíduos. Esse é o ponto de vista a partir do qual se falou
de alma do povo, de consciência da sociedade, ou de espírito da época como se
fossem forças reais e profícuas. Vamos suprimir esse misticismo que pretende situar
certos processos espirituais fora das almas – sempre individuais. Preferimos
distinguir entre os processos espirituais concretos (nos que surgem e têm lugar o
direito e o costume, a linguagem e a cultura, a religião e as formas de vida), e os
conteúdos ideais desses mesmos processos, pensados em si mesmos. Do
vocabulário e das formas sintáticas da língua que encontramos nos dicionários e nas
gramáticas, das normas jurídicas contidas nos códigos, do conteúdo dogmático da
religião, pode-se dizer que vigoram – embora não no sentido supra-histórico em que
“vigoram” as leis naturas e as normas da lógica –, que possuem dignidade própria,
independentemente de seu cumprimento pelos indivíduos em cada caso concreto.
Essa vigência de seu conteúdo não é, todavia, uma existência espiritual que requeira
um suporte empírico, como também o teorema de Pitágoras 67 não precisa desse
esteio – tendo em conta a diferença expressada. É evidente que esse teorema tem
também uma natureza espiritual que não aparece no triângulo físico, porque
expressa uma relação entre seus lados que no encontramos na existência concreta
de nenhum deles. Por outro lado, essa imaterialidade do teorema pitagórico também
não se confunde com o fato de ser pensado por almas individuais, já que sua vigência
independe totalmente do fato de ser aceito ou não – da mesma maneira que a língua,
as normas jurídicas, os imperativos morais e as formas culturais conservam seu
conteúdo e sentido, com total independência da perfeição ou defeito, frequência ou
raridade com que apareçam nas consciências empíricas. Eis aqui uma categoria
particular que, certamente, só se concretiza na história, mas que, na realidade e
plenitude de seus conteúdos, ainda que pareça demandar um criador e um
67
O teorema de Pitágoras é uma relação matemática entre os comprimentos dos lados dos triângulos
retângulos. Na geometria euclidiana o teorema afirma que: ”em qualquer triângulo retângulo, o
quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos
catetos”. (NT)
Georg Simmel | 603
68
A batalha de Maratona foi uma das mais famosas da Antiguidade. Opôs em 490 a.C. (na praia que
lhe deu nome, costa leste da Ática, perto de Atenas) uma expedição persa aos hoplitas atenienses e
plateanos que obtiveram a vitória, e puseram assim fim a primeira Guerra Médica. Essa batalha teve
um papel político importante, afirmando o modelo democrático ateniense e dando asas,
simultaneamente, aos projetos de poder de certos líderes militares atenienses, como Milcíades e
Aristides. (NT)
608 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
geralmente por sua ação recíproca (com seu correlato de semelhança, de influências
idênticas, de fins utilitários comuns) e pertence, portanto, ao âmbito da psicologia
social, que aqui, mais uma vez, revela ser não uma disciplina paralela à psicologia
individual, mas uma subdivisão dela69.
As circunstâncias indicadas contribuem para que uma sociedade que não
construiu os órgãos apropriados fique exposta às influências dissociadoras e
destrutivas que toda estrutura social gera no seu próprio âmbito. Um dos fatores que
concorrem decisivamente para esse resultado são as personalidades que têm um
efeito antissocial e destrutivo – notadamente quando em face de determinada forma
social, se dedicarem, no geral, inteiramente a essa luta, ainda que apenas
indiretamente. A esse completo empenho das forças engajadas na vitória da sua
causa deletéria é preciso opor também o conjunto das energias das pessoas
comprometidas na defesa da ordem existente. A experiência ensina, porém, que as
forças específicas que personalidades decididas podem mobilizar, através de sua
participação ativa em assuntos e circunstâncias de relevância política e social,
dificilmente podem ser neutralizadas pela soma das energias parciais de muitos
indivíduos. Por isso, a autopreservação social precisa constituir órgãos, sobretudo
perante poderes individuais fortes, que embora não ajam como potências destrutivas
e socialmente negativas, tentam submeter o grupo. Se as diversas confissões
protestantes se mostraram impotentes em face dos príncipes e não puderam (da
mesma maneira que a Igreja católica) preservar sua soberania como instituições
sociais, isso se deveu – a nosso ver – em grande parte a que o princípio radicalmente
individualista sobre o qual se fundaram (a fé pessoal do fiél) não lhes permitiu
constituir o espírito objetivo supraindividual que a Igreja católica soube visibilizar
– não só pela sólida organização de sua hierarquia (cuja cabeça pessoal era uma
alternativa real ao poder dos monarcas), senão pelas ordens religiosas, que com
admirável sapiência harmonizaram o rigor e a teologia da coesão eclesial com a
grande variedade de suas relações com o mundo profano (perante o qual seus
integrantes apareciam como ideais exemplos de santidade, confessores,
69
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “psicologia social”. Doravante
Simmel retoma a sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente dos “órgãos” e
das ”formas rígidas de autopreservação”. (NT)
Georg Simmel | 609
70
Entre 1212 e 1250, no Sacro Império germânico, concederam-se grandes poderes soberanos a
príncipes seculares e eclesiásticos, o que fez surgir estados territoriais independentes. Daí a
denominação de “príncipes territoriais”, (por oposição aos “príncipes imperiais” ou do Sacro Império)
para identificar a sua nobreza. Após a Paz de Vestefália (1648) que terminou com a Guerra dos Trinta
anos, o poder dos príncipes territoriais aumentou, em detrimento da autoridade imperial central.
71
Principais categorias sociais em que estava dividida a sociedade feudal: nobres, eclesiásticos e
burgueses. (NT)
610 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
profissional que deve viver também dele; da mesma maneira que a dimensão erótica
do amor dos amantes é mais arrebatadora que a do amor conjugal.
Essa não é entretanto mais que uma forma excepcional que deve servir como
alerta para advertir que um órgão independente e que se afasta da vida em comum
do grupo pode transformar seu efeito de preservação em efeito de destruição.
Propomos dois tipos de explicação para confirmar as considerações acima expostas.
Em primeiro lugar, quando o órgão ganha vida própria, e fica forte demais para o
grupo (ao ponto de seu valor não estar mais ligado ao seu grau de utilidade para essa
coletividade, mas ao que ele é em si mesmo), sua preservação pode entrar em conflito
com a perenidade do conjunto a que deveria servir. A burocracia é um caso quase
sempre inofensivo, mas que precisamente por isso representa muito bem esse tipo
de problema. A burocracia, organização formal para gerir uma administração
estendida, desenvolve no seu seio uma esquematização cega que frequentemente
entra em rota de colisão com as necessidades variáveis da vida social prática. De um
lado, porque a técnica escriturária e minuciosa dos trabalhos de gerência dos
negócios públicos ou privados não foi concebida para solucionar os problemas muito
individualizados e complexos que devem ser resolvidos pelos funcionários
intervenientes; e de outro lado, porque o tempo que a máquina burocrática precisa
para funcionar está amiúde em gritante contradição com a urgência do caso
particular. Quando uma entidade que funciona com essas deficiências esquece seu
papel de simples órgão ancilar e se comporta como se ela fosse o fim em si da sua
existência, a distância entre as suas formas de vida e aquelas da comunidade irá,
muito simplesmente, crescer até prejudicar o grupo total, e tornar incompatíveis,
assim, tanto a sua autopreservação, como a perenidade do órgão. Poder-se-ia
comparar, desse ponto de vista, a esquematização burocrática com a da lógica – que
mantém com o conhecimento da realidade o mesmo tipo de relação que a burocracia
mantém com a administração das grandes corporações estatais ou privadas. É uma
forma ou instrumento indispensável para o vínculo orgânico com os conteúdos que
deve configurar, mas é nesses conteúdos que residem todo o seu sentido e toda a
sua finalidade. Quando, ao contrario, a lógica se ergue em conhecimento autônomo
e pretende edificar sobre seus próprios fundamentos um saber completo (ignorando
os conteúdos reais, dos quais é apenas a forma), ela se constrói um mundo que
612 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
geralmente está muito distante do real. Na sua abstração (a respeito de uma ciência
particular), as formas lógicas são um mero órgão do conhecimento acabado das
coisas. A partir do momento em que elas se abstêm de desempenhar esse papel,
aspiram a uma autossuficiência completa e se acham o fim do conhecimento (e não
um simples meio dele), tais formas se convertem, para a conservação, a extensão e
a coesão do conjunto do saber, em um empecilho do mesmo tipo do que a
esquematização burocrática representa para o conjunto dos interesses do grupo. O
colegiado (Magistrat) criado pelo antigo sistema prussiano de administração local72
(Städteordnung) era de fato menos coerente, competente e circunspecto que os
atuais burocratas de carreira, mas exatamente por isso estava mais pronto a perdoar
e ser compassivo, mais disposto a levar em conta a pessoa do administrado e a
admitir a exceção que podia ser de seu interesse perante a regra inexorável. Nesse
sistema, a função abstrata do Estado ainda não tinha atingido o grau de objetividade
(e de empáfia) que a burocracia lhe confere hoje.
Nem o próprio direito é alheio a essa estrutura sociológica. O direito não é mais
do que a forma das relações recíprocas dos membros do grupo consideradas como
as mais necessárias para a preservação desse conjunto. Não basta por si só para
assegurar a sua perenidade e muito menos para garantir o progresso da sociedade,
mas é o mínimo que se deve preservar como fundamento da existência do grupo. Os
órgãos constituídos nesse caso são de dois tipos. Por um lado, “o direito”, quer dizer,
a forma e a norma abstraídas das ações exigidas de fato e que, no geral, realmente
se cumprem. Esse “direito” se diferencia das mencionadas ações, adquire coesão e
completude lógicas, e se torna, assim, uma norma de ação, um órgão ideal que se
ergue imperativo em face do agir real. Por outro lado, esse órgão ideal que serve à
preservação do grupo ainda precisa de um órgão concreto eficaz contra as infrações.
E como, por razões técnicas, se desfez aquela unidade primitiva em que o pater
familias ou o grupo reunido em assembleia fazia justiça, eis que se torna necessário
72
O “sistema de administração local” (Städteordnung) prussiano mencionado por Simmel foi adotado
em 1808 como resultado da ação reformadora do Barão vom Stein. De acordo as suas prescrições as
cidades deviam ser dirigidas por duas instâncias: uma assembleia comunal e um colegiado composto
por personalidade eleitas por essa assembleia – que representava a todos os habitantes da cidade.
Ainda que não existisse uma clara divisão de competências entre essas duas instâncias, de fato o
colegiado (Magistrat) se encarregava da execução das decisões da assembleia. (NT)
Georg Simmel | 613
73
Axiomas jurídicos latinos aparentemente contraditórios que, respectivamente, podem ser
traduzidos como: “que o mundo pereça, mas se faça justiça” e “suma justiça, suma injustiça”;
querendo significar que “razão alguma deve impedir que se faça justiça”, mas que ‘”da aplicação
excessivamente rigorosa da lei facilmente podem resultar injustiças”. (NT)
614 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
74
Essa relação, da qual já falamos anteriormente, figura entre os temas que deverão ser abordados
em um estudo posterior acerca do papel que desempenham as determinações puramente temporais
na constituição e na vida das formas sociais. De que maneira as relações (das mais íntimas às mais
oficiais) se alteram em função de sua duração, sem necessidade de exercerem influência sobre
elementos exteriores; como uma relação recebe de antemão diversas formas e nuances de acordo
com o fato de ter sido prevista para durar um determinado período de tempo ou sempre; como o efeito
da limitação muda por completo conforme o final da relação, da instituição da nominação, etc., tenha
sido fixado previamente numa data precisa ou fica, ao contrário, indeterminado dependendo da
demissão, do enfraquecimento dos fatores de união, da alteração das circunstâncias ou das
condições externas – tudo isso deveria ser objeto de estudos detalhados. No capítulo dedicado ao
espaço encontram-se algumas observações sobre isso. (NS)
Georg Simmel | 615
prolongar a função individual para além da duração da vida da pessoa envolvida. Isso
implicava, no entanto, consequências contraditórias: algumas vezes a herança do
cargo conferia ao seu titular uma autonomia que lhe permitia agir livre de qualquer
influência dentro do Estado, e outras vezes o rebaixava a qualidade de beneficiário
de uma dignidade desprovida de conteúdo, meramente nominal. Ora, a duração do
emprego ou função pessoal tem a mesma dualidade nos efeitos. A função de xerife
tinha grande importância na Inglaterra medieval, mas a perdeu quando Eduardo III,
em 1338, dispôs que nenhum xerife permaneceria nas suas funções mais de um ano.
Ao contrário, os missi dominici 75 que foram na época de Carlos Magno um órgão
essencial do poder central para o governo das províncias, só eram nomeados por um
ano, mas perderam sua importância (e toda a instituição entrou em decadência)
quando, mais tarde, as nomeações se fizeram por tempo indeterminado. Parece
lógico supor que a longa duração ou a vitaliciedade do emprego possam acarretar
geralmente a sua emancipação, e consequentemente firmar a sua importância,
quando abrange um conjunto de tarefas regulares, que favoreçam uma rotina que só
pode proporcionar a experiência – e que está fora do alcance de quem muda amiúde
de emprego o função. Em compensação, quando uma função suscite desafios
sempre renovados e problemas imprevistos, diante da necessidade de tomar
decisões rápidas para responder com flexibilidade e consistência a condições e
requisitos incomuns, será conveniente transfundir sangue novo ao órgão, É que os
funcionários recém-chegados trazem amiúde ímpetos inovadores e não estão
expostos ao perigo de cair na rotina.
Tornar autônomos esses empregos, quando seus titulares mudam
frequentemente, não causará grandes prejuízos ao grupo. Pelo contrário, a regular
rotação dos funcionários que exerçam atividades públicas ou particulares muito
independentes e que requeiram um alto grau de responsabilidade serviu amiúde de
contrapeso e proteção contra os abusos ou mau uso do emprego para interesses
75
Os missi dominici eram os comissários imperiais responsáveis por supervisionar a administração
local no Sacro Império romano germânico. Existem semelhanças superficiais entre o missus
dominicus e o original romano que lhe serviu de modelo, o corretor, mas os missi, diferentemente dos
corretores, não eram enviados regularmente à mesma região. Os missi dominici eram sempre
nomeados em pares, um clérigo (bispo ou abade) e um leigo (conde ou duque), geralmente escolhidos
entre os membros da corte imperial, e distribuídos pelas unidades administrativas do império
(missiaticum) que tinham de visitar. (NT)
616 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
portanto tenho que ser seu chefe”. Esse subjetivismo egoísta da convicção quanto
ao exercício da função, tolda o sentido e a orientação da pura objetividade,
indispensável para alcançar certa altura e perfeição dessa função, mas
simultaneamente evita o perigo de uma emancipação orgulhosa e burocrática do
órgão, relativamente à vida imediata do grupo total. E, na medida em que esse perigo
for mais ou menos ameaçador para a estrutura do grupo, ele favorecerá ou impedirá
que a função pública se constitua em um fim em si mesmo.
O segundo grupo de razões (que confirma a afirmação feita supra no sentido
de que “um órgão que se torna independente e se afasta da vida em comum do grupo
pode, por vezes, transformar seu efeito de preservação em efeito de destruição”) está
voltado para o fato de que não só a possibilidade de um antagonismo entre a parte e
o todo, entre o grupo e seus órgãos, deve pôr certos limites à autonomia destes
últimos, mas que isso é conveniente também para que, se necessário, a função
diferenciada possa voltar ao todo. A evolução da sociedade tem a característica
singular de a sua autopreservação exigir a reversão temporal ao todo de certos
órgãos já diferenciados. Não devemos imaginar qualquer tipo de analogia com o que
se passa em determinados órgãos animais na sequência das mudanças ocorridas
nas condições de vida como, por exemplo, a atrofia do aparelho visual em animais
que vivem constantemente em cavernas escuras. Nesses casos, é a própria função
que se tem tornado supérflua – é por essa razão que o órgão que desempenha tal
função está a definhar lentamente. Em compensação, nas evoluções sociais de que
estamos a falar, a função continua a ser indispensável – e quando ocorre a
insuficiência do órgão, a dita função tem que reverter as ações recíprocas que se
verificam entre os elementos primários do grupo. Em alguns casos, a estrutura do
grupo está disposta de antemão a uma alternativa desse tipo entre as funções
imediatas e as realizadas com um órgão de permeio. É o que acontece nas
sociedades por ações, cuja direção técnica compete ao conselho de administração,
apesar de a assembleia geral ter poderes para exonerar o conselho ou para impor-
lhe certas diretivas que esse órgão não teria assumido por si mesmo ou carecia das
incumbências necessárias para adotar. Esse é o caso, sobretudo, da superioridade
do parlamento sobre o gabinete ministerial no sistema de governo estritamente
parlamentarista. O governo inglês haure, agora e sempre, sua força do húmus
618 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
nutriente do povo, de uma forma que já foi mais ou menos destilada no parlamento.
Formalmente, porém, as competências dessa assembleia poderiam acarretar toda a
espécie de inconvenientes para a autopreservação continuada do grupo
– notadamente porque suas intervenções e sua proeminência institucional podem
obstaculizar a resolução objetiva e coerente dos assuntos. Na Inglaterra, contudo,
esse risco é atenuado, em parte, pelo conservadorismo generalizado e, mormente,
pela diferença sutil entre os funcionários e os ramos da administração submetidos à
alçada imediata do parlamento, de um lado, e aqueles que gozam de uma autonomia
e continuidade relativas, por outro lado. Pequenas coletividades, que confiam a
gestão de seus assuntos a um birô ou comitê, estão habitualmente organizadas para
que seus órgãos restituam seus plenos poderes ao conjunto (por vontade própria ou
pela força dos acontecimentos) assim que se sentem incapazes de suportar o peso
das suas responsabilidades e funções. Toda revolução em que o governo é derrubado
por um grupo político e volta a confiar a legislação e administração à iniciativa
imediata dos seus elementos humanos pertence à formação sociológica em pauta.
É evidente que essa possibilidade de reversão ao todo de certos órgãos não é
efetível em todos os grupos. No caso de grupos muito amplos, ou que incluem
elementos de uma vida muito complexa, a recuperação da administração pelo próprio
grupo está pura e simplesmente descartada. Nessas situações, a constituição dos
órgãos ficou irreversível – pois mesmo quando surge um antagonismo irredutível
entre o grupo e seus órgãos, os membros do grupo não pensam em reassumir as
funções atribuídas aos órgãos, mas apenas substituir as pessoas que integram
essas entidades executivas por outros candidatos mais apropriados. Seja como for,
o processo de retorno das energias grupais, dos órgãos à sua fonte originária, se
processa ainda em casos de uma feitura sociológica transcendente, mesmo como
fase de transição antes da constituição de novos órgãos. O caso do episcopalismo
estadunidense 76 constitui um bom exemplo. Até fins do século XVIII, a Igreja
76
A Igreja episcopal é formada pelo conjunto de igrejas protestantes de governo episcopal em
comunhão com a Igreja de Inglaterra e por igrejas que não fazem parte da Comunhão anglicana, mas
se orientam no etos anglicano. O movimento como um todo é conhecido como episcopalismo e
originou diversas observâncias e denominações, principalmente pelas tensões geradas pela
combinação, por necessidades políticas, de uma doutrina originalmente calvinista, uma tradição
católica e um sistema de governo episcopal. Durante a Revolução Americana, o clero anglicano do
Norte intentou manter laços com a Sociedade inglesa para a propagação do evangelho e apoiar a
Georg Simmel | 619
Inglaterra, enquanto os do Sul tenderam a simpatizar mais com a Revolução. Para 1784, a maioria das
autoridades das comunidades religiosas que se reconheciam como episcopais acordou a necessidade
de redigir uma constituição vinculante para toda a igreja; revisar o Livro de orações comum para que
fosse apropriado para sua utilização na igreja episcopal estadunidense e obter a consagração de
bispos na Sucessão apostólica para dar a essa igreja a supervisão e o ministério episcopal adequados,
mas o direito canônico inglês impediu a consagração na metrópole de qualquer clérigo americano que
não prestasse juramento de lealdade à Coroa inglesa. (NT)
77
Esta citação pretence a Samuel Wilberforce, History of the Protestant Episcopal Church in America,
2a. ed., Nova Iorque, W. Hearned, 1846, p. 195-6. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “Never
had so strange a sight been seen before in Christendom, as this necessity of various members knitting
themselves together into one. In all other cases the unity of the common episcopate had held such
limbs together: every member had visibly belonged to the community of which the present bishop was
the head” (NT)
620 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
elementares e os órgãos nascidos desses grupos não era suficientemente dúctil para
que, em caso de desaparecimento ou de insuficiência desses órgãos, as funções
necessárias de autopreservação retornassem a sua fonte originária.
A constituição de órgãos diferenciados é um meio auxiliar essencial para a
autopreservação social: com ela, a estrutura da sociedade adquire um novo membro.
A questão ganha relevo quando o problema consiste em saber como o instinto de
autopreservação determina a vida do grupo do ponto de vista funcional. Podemos
dizer que saber se tal processo se desenrola em uma unidade indiferenciada ou em
órgãos especializados, é secundário nesse caso, porque do que sobretudo tratamos
aqui é da forma ou do tempo (ou ritmo) em que ocorrem os processos da vida
coletiva. E nesse ponto, duas possibilidades fundamentais se apresentam. O grupo
pode ser mantido, em primeiro lugar, pela melhor e mais bem sucedida conservação
de suas formas que possamos conseguir mediante a firmeza e rigidez delas – que
ofereceriam assim uma resistência substancial aos perigos que a espreitam, e
manteriam a relação de seus elementos ao longo de todas as eventuais mudanças
de seu contexto. No entanto, o grupo também pode ser mantido, em segundo lugar,
pela maior labilidade de suas formas para acompanhar com bom êxito a mudança
das condições exteriores – e assim manter-se em constante fluxo para adaptar-se a
toda transformação das circunstâncias. Essa dualidade de possibilidades decorre de
uma regra que preside o comportamento de todas as coisas e encontra
correspondência em todas as esferas possíveis, inclusive na física. Um corpo está
protegido contra o risco da sua destruição (por pressão, choque, ou golpe) quer pela
rigidez e coesão indestrutível de seus elementos, quer por sua flexibilidade e
elasticidade que, ainda sofrendo deformação, lhe permite retomar à forma original
– assim que a ação de tração, vergadura ou compressão se encerre. A
autopreservação do grupo também, seja por estabilidade ou por labilidade, está
vinculada à coerência de um ente que pode se manifestar de dois modos: o
percebemos como um porque se revela coeso perante as situações e os estímulos
mais variados, ou porque em qualquer circunstância se comporta da forma particular
que a ela corresponde – da mesma maneira que, se se muda um dos dois fatores de
um cálculo, essa operação tem de dar o mesmo resultado quando o outro fator muda
também da mesma maneira. Assim, consideraremos “coerente” um homem que
Georg Simmel | 621
78
Marco Pórcio Catão Uticense, também conhecido como Catão, o Jovem (para se distinguir do seu
bisavô, Marco Pórcio Catão, o Velho, (95 a.C. — 46 a.C.) foi um político romano célebre pela sua
inflexibilidade e integridade moral. Partidário da filosofia estoica, era avesso a qualquer tipo de tirania.
Opunha-se, particularmente, a Julio César (sendo retratado por Salustio como a antítese desse
estadista). Sumamente eloquente, foi no entanto muito parco em suas críticas. (Segundo Plutarco,
quando um dos seus companheiros disse que as pessoas achariam defeito nele por seu silêncio,
respondeu-lhe que bastava que não culpassem a sua vida, e que ele começaria a falar quando não
fosse dizer o que era melhor que não fosse dito) Suicidou-se depois da vitória de Julio César na
batalha de Tapso. Quanto a Augusto, fundador do Império romano, sobrinho-neto de Julio César,
adotado e declarado seu herdeiro civil testamentário, também agiu como seu sucessor político. (NT)
622 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
79
Se em uma sociedade ameaçada pelas reivindicações divergentes de seus elementos, uma guerra
exterior serve com frequência para preservar seu equilíbrio e reunir os elementos desgarrados do
Estado, essa é uma exceção aparente que, de fato, só confirma a regra. Porque a guerra lança mão
das energias que ainda compartilham, apesar de tudo, os elementos mais opostos da sociedade e faz
com que a consciência desses interesses vitais e fundamentais adquira tal relevo que, justamente à
raiz da comoção provocada pelo conflito bélico, tais energias percam aquilo que podia torná-las
socialmente nocivas: seu caráter divergente. Em compensação, quando não há energia suficiente para
ultrapassar os antagonismos que se arrastam indefinidamente entre os membros do grupo, a guerra
produz o efeito mencionado no texto principal. Quantas vezes a guerra deu o golpe de misericórdia a
Estados internamente desgovernados! Quantas vezes mesmo grupos apolíticos divididos por lutas
intestinas se viram na alternativa de esquecer seus rancores ou dar rédea larga a seu ressentimento!
(NS)
Georg Simmel | 623
mediações sociais o tornará muito mais radical e afetará subitamente até mesmo os
que não simpatizem com ele ou sejam totalmente alheios às transformações
decorrentes – enquanto a presença de diversos estratos sociais diferenciados
permitirá o desenvolvimento gradual das suas consequências ou da sua difusão.
Desta maneira, as classes médias desempenham o papel de molas ou amortecedores
que, em caso de brusca evolução, servem para reduzir e distribuir os impactos
inevitáveis na estrutura do conjunto. Daí provém o caráter liberal das sociedades com
classes médias desenvolvidas e influentes. E inversamente, em nenhuma parte é tão
necessário manter a todo o custo a paz social, a estabilidade e o caráter conservador
do grupo que nas comunidades em que está em jogo a perenidade de uma estrutura
social descontinua caracterizada por fortes diferenças internas. Constatamos, de
fato, que diante de enormes e irreconciliáveis oposições de classe, a paz e a
estabilidade das formas sociais reinam com maior facilidade do que nos casos de
aproximação, de mediação e de mistura entre os extremos da escala social. Nesses
últimos casos, a preservação do conjunto no status quo ante é muito mais compatível
com situações instáveis, recuos visíveis e tendências extremistas. As constituições
aristocráticas representam por isso o espaço político próprio do conservadorismo.
Entre os motivos dessa correlação, que tratamos mais adiante, um só nos diz respeito
por enquanto: as aristocracias criam as diferenças sociais mais acentuadas – mais
do que a monarquia, que amiúde tende ao nivelamento e só produz diferenças de
classe acentuadas quando se combina com o princípio aristocrático, coisa que não
se baseia em qualquer necessidade interna nem, muitas vezes, externa. Podemos
acrescentar que as constituições aristocráticas estão por natureza predispostas a
uma continuidade tranquila, porque não têm que se preocupar nem com as incertezas
da sucessão ao trono, nem com os estados de espírito das massas populares.
Essa relação entre a estabilidade da atitude social e a proporção das
diferenças sociais se revela também na direção oposta. Quando a autopreservação
do grupo resulta da estabilidade imposta do exterior pela força, dela se seguem,
muitas vezes, diferenças sociais acentuadas – como o demonstra a história da
servidão rural na Rússia. Sempre houve entre os eslavos orientais uma marcada
tendência para o nomadismo, reforçada pela extensão das terras onde aquele grupo
étnico vivia ou se movimentava. Com o correr do tempo, o despotismo dominante
624 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
não encontrou uma maneira melhor de garantir a exploração regular das terras que
privar os camponeses da sua liberdade de circulação, o que aconteceu em 1593, sob
o czar Teodoro I80. E uma vez que o camponês ficou ligado à gleba, foi perdendo
gradativamente as outras liberdades do passado – e a imobilidade obrigatória e
forçosa se tornou (como foi mais do que comum no resto da Europa) no instrumento
graças ao qual o proprietário fundiário pôde oprimi-lo cada vez mais. Aquela medida,
que originalmente era apenas provisória, fez do camponês afinal de contas um
simples semovente no rol dos bens de uma propriedade rural. Por conseguinte, o
instinto de autopreservação do grupo não só produz uma tendência à estabilidade
das formas de vida em caso de diferenças sociais acentuadas, mas também, quando
o dito instinto produz imperativamente tal estabilidade, podem decorrer dela
crescentes diferenças sociais, demonstrando o valor de regra da correlação em tela.
Outro caso em que a autopreservação do grupo alcança o mais alto grau de
estabilidade e rigidez de suas formas é o das estruturas obsoletas, cuja própria
existência não se justifica mais porque seus elementos se referem a outras relações
e formas de vida que têm deixado de existir. Desde o fim da Idade Média, as
corporações comunais germânicas, que viram a sua ação e os seus direitos
cerceados pelo crescente poder da administração central, substituíram a força vital
coesiva decorrente da importância de seu papel social, pela sua máscara e aparência
– que conseguiram manter graças a um derradeiro meio de autopreservação: sua
introversão ou estrito fechamento para o mundo exterior, a fim de impedir totalmente
o ingresso de novos membros. Qualquer aumento quantitativo de um grupo exige
determinadas mudanças e adaptações qualitativas, que não se podem realizar sem
quebrar a estrutura ultrapassada do conjunto. Em um capítulo anterior, vimos como
a forma social depende da determinação numérica de seus elementos: a estrutura
social apropriada para certo número de indivíduos deixa de sê-lo quando esse
número cresce. E o processo de transformação em uma nova comunidade requer a
80
Teodoro I (l557 – 1598) foi o czar da Rússia de 1584 até a sua morte. Era filho do czar Ivã, o Terrível
e da sua primeira esposa Anastásia Romanovna, que morreu quando o jovem príncipe tinha três anos.
Homem piedoso, Teodoro teve pouco interesse na política, e o país foi efetivamente administrado em
seu nome por Boris Godunov, o irmão de sua amada esposa Irina. Sua morte sem filhos extinguiu a
dinastia Rurique, permitindo que Boris Godunov se aproveitasse do vácuo político para ocupar o trono,
mas sua coroação contestada iniciou um período de distúrbios no território russo, conhecido
atualmente como o “Tempo de dificuldades”. (NT)
Georg Simmel | 625
81
Locução latina que significa “não agitar o que está quieto” e pode traduzir-se em forma de provérbio
que aconselharia “não despertar ódios ou dissensões adormecidas”. (NT)
626 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
governo emissor e de não ser exportável. Tal é justamente a sua maior vantagem:
fica no país, está ali à disposição de todas as empresas e não entra nessa troca de
metais preciosos com outros países, em que, o crescimento relativo da massa
monetária e o decorrente aumento do preço das mercadorias favorecem a
importação de produtos estrangeiros e as transferências de numerário. A limitação
da circulação do dinheiro a seu país de origem constitui, assim, um meio de
preservação da forma social, protegendo-a da impiedosa concorrência dos
mercados mundiais. No entanto, um país economicamente próspero e com uma
dimensão que o torne capaz de lidar com qualquer concorrente, não precisaria desse
meio, nem teria que se preocupar com a instabilidade, com as mudanças e com o
aumento da interdependência recíproca com outros países – transformações que
muito provavelmente reforçariam a própria forma de vida.
Não se deve pensar, contudo, que os grupos relativamente pequenos procurem
sempre a sua perenidade na forma de estabilidade, enquanto os grandes o fariam
apenas sob a forma de labilidade. Não existem relações tão simples e definitivas
entre entidades e modos de comportamento dessa extensão, porque cada relação
abrange uma enorme quantidade de características ou especificações que fazem
parte das combinações recíprocas mais variadas. Os círculos maiores são
precisamente aqueles que exigem com mais clareza a estabilidade das suas
instituições, que os grupos mais reduzidos podem substituir por uma adaptação
rápida. Por exemplo, certa tendência dos sindicatos ingleses a mudar de tempos em
tempos a sede e a titularidade da sua administração central, fazendo-as suceder em
alternância entre os diferentes ramos regionais filiados, acabou por dar lugar à
estabilização da sua direção em um local determinado e na pessoa de indivíduos
previamente estabelecidos. O grande círculo pode adaptar-se a essa estabilidade de
suas instituições, porque seu tamanho deixa sempre espaço suficiente para
mudanças, divergências e adaptações segundo as épocas e as latitudes. Pode
mesmo dizer-se que o grande círculo acentua as duas tendências, da mesma
maneira que sublinha a generalização e a individuação, enquanto o pequeno círculo
apresenta uma ou outra, ou ambas de modo imperfeito.
Em psicologia individual, o fator essencial em que se encarna plenamente a
perenidade de uma relação, sob a forma da estabilidade, leva o nome de fidelidade.
Georg Simmel | 627
82
Locução latina que significa literalmente: “pelo matrimônio ulterior das almas”. Aqui o autor alude
metaforicamente ao instituto jurídico da “legitimação”, através do qual os progenitores que tiveram
filhos fora do matrimônio podem reconhecer estes como próprios e havidos no casamento, graças à
sua legítima união celebrada ulteriormente – sob certas condições. (NT)
632 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
paribus, a dos elementos que pertencem a essa facção desde sempre. E isso pode
chegar a tal ponto que, em muitas ocasiões, as mais altas funções do Estado podem
ser reservadas aos estrangeiros, como ocorreu no Império otomano dos séculos XVI
e XVII, onde os nacionais estavam excluídos dos cargos de maior responsabilidade
na corte, que eram confiados exclusivamente aos jenízaros – quer dizer, aos cristãos
nascidos nessa fé que tinham renegado voluntariamente dela ou a filhos de cristãos
que foram tirados aos seus pais desde à infância e criados como turcos. Eles eram
os súditos mais fiéis e devotados. Essa particular fidelidade do renegado parece ser
fruto das circunstâncias nas quais ele entra na sua nova relação. Tais circunstâncias
agem no trânsfuga por mais tempo e de forma mais indelével que se as houvesse
vivido sem segundas intenções nem romper com crenças anteriores. Ainda que a
fidelidade seja a própria vida de relação refletida no sentimento, com independência
do eventual desaparecimento dos motivos que deram origem a essa relação, ela agirá
com maior energia e segurança quanto mais tempo se mantiverem vivos os motivos
iniciais e quanto menos provas de resistência se exijam à força da pura forma, quer
dizer, da relação enquanto tal. E isso vá acontecer de um modo muito especial, no
caso do renegado, pela clara consciência que ele tem de que não pode retroceder, e
também porque (como se nele se desenvolvesse uma aguda sensibilidade às
diferenças) a relação anterior, da qual se separou, continua a ser o pano de fundo da
relação atual. É como se o renegado sempre fosse repelido pela velha crença e
atraído uma vez mais pela nova relação. A fidelidade do renegado tem uma força tão
grande porque ela conserva ainda aquilo de que a fidelidade pode prescindir: a
persistência consciente dos motivos que deram origem à relação – persistência que
se amalgama aqui à força meramente formal dessa relação de um modo mais sólido
que naqueles casos que não têm um passado contraditório que impede qualquer
volta à primitiva relação.
A mera estrutura conceitual da fidelidade ilustra que se trata de um sentimento
sociológico – ou sociologicamente orientado. Outros sentimentos, embora vinculem
estreitamente os homens entre si, têm, apesar de tudo, um caráter mais inteiramente
centrado no mesmo sujeito. Inclusive o amor ou a amizade, o patriotismo ou a
solidariedade social consistem em um sentimento ou emoção que ocorre e persiste
no próprio indivíduo, imanente a ele, como se revela claramente na apóstrofe de
Georg Simmel | 633
83
“Wenn ich dich liebe, was geht's dich an?”, interpelação que Philine, personagem do romance Os
anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, dirige subitamente ao protagonista (conf. op. cit.,
livro IV, capítulo 9). (NT)
634 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
– o essencial é que a forma externa nunca evolua de verdade. O mais elevado nível
possível de estabilidade externa nas relações interiormente variáveis é,
evidentemente o das formas jurídicas: a forma do casamento, que resiste inflexível
às mudanças da relação pessoal entre os cônjuges; o contrato entre dois parceiros
comerciais, que dividem os lucros pela metade mesmo que um faça todo o trabalho
e o outro nada; a qualidade de membro de uma comunidade cívica ou religiosa
embora venha a ser alheia ou desprovida de interesse para o indivíduo. Mesmo
deixando de lado esses casos evidentes, pode todavia ser observado a todo o
momento como as relações que se estabelecem entre indivíduos e grupos visam,
imediatamente, consolidar as suas formas; como essas formas condicionam, mais
ou menos rigidamente, o futuro desenvolvimento da relação, e como elas, uma vez
mais, não têm capacidade de adaptação às intensas oscilações da relação recíproca
concreta e as suas mudanças moderadas ou violentas. Afinal de contas, nada mais
acontece aqui do que a repetição da discrepância que existe dentro do homem. A vida
interior que sentimos como fluência, processo incessante de altos e baixos, de ideias
e de humores, se cristaliza, mesmo para nós, em fórmulas e direções validadas e
reconhecidas. Na maioria dos casos essas formas exteriores legitimadas são
reconhecidas pelo simples fato de serem exprimidas através de palavras. Pode
acontecer, naturalmente, que em casos afortunados (pondo de parte excepcionais
distorções concretas em questões de pormenor), elas representem o centro de
gravidade, o “ponto fixo” em torno do qual a vida oscila pendularmente para um lado
e outro. Contudo, isso não impede a oposição formal constitutiva entre a essencial
mobilidade da vida anímica subjetiva e a capacidade de suas formas, que não
exprimem nem estruturam um ideal, uma negação ou contradição intelectual da sua
realidade, mas apenas essa vida como ela é. E já que as formas externas, tanto na
vida intelectual como na social, não são fluentes como a própria evolução interna,
mas de ordinário se mantêm constantes durante certo tempo, seu esquema consiste
algumas vezes em antecipar essa realidade interna e outras vezes em estar por trás
dela.
Precisamente, no momento em que as formas ultrapassadas revelam-se
impotentes para dar conta da vida palpitante, esta última oscila para um de seus
extremos e cria formas que antecipam a sua real e vital ocorrência, sem poder ainda
Georg Simmel | 635
ter ocultado até agora as provas de que a vida e a coesão da sociedade seriam
afetadas de maneira considerável se não houvesse gratidão.
Em primeiro lugar, a gratidão complementa a ordem jurídica. Toda a economia
das trocas humanas se baseia no esquema da entrega e da equivalência. Ora, a
equivalência pode ser imposta para grande número de entregas e prestações,. Em
todos os intercâmbios econômicos de forma jurídica, em todas as obrigações
decorrentes de uma relação juridicamente regulada, o direito impõe a troca de
prestação e contraprestação, e cuida dessa reciprocidade, sem a qual não existiria
nem coesão nem equilíbrio sociais. Porém, existem também muitas outras relações
que fogem ao império da forma jurídica, e nas quais não é possível dizer que a
compensação do favor preexistente fosse obrigatória. Nesses casos, a gratidão
aparece como complemento tecendo o vínculo da reciprocidade, mesmo nos casos
em que não exista nenhuma coerção externa que garanta a recíproca prestação. A
gratidão é, assim, um complemento da norma jurídica no mesmo sentido da honra,
como já demonstramos.
Para apreciar corretamente a especificidade desse vínculo importa
compreender que a ação pessoal dos homens, especialmente se exercida sobre as
coisas – como no roubo e na dádiva, as formas primitivas da mudança de posse –
se desenvolve no sentido de se tornar uma troca, tomando essa palavra no seu
significado objetivo. A troca é a “coisificação” da ação recíproca dos homens.
Quando um deles dá uma coisa e recebe de um segundo outra coisa do mesmo valor,
a pura espiritualidade da relação entre ambos é transfundida às coisas. E essa
coisificação da relação, a sua identificação crescente com as coisas que se dão e
recebem, torna-se tão perfeita que, nas economias mais desenvolvidas, desaparece
completamente a interação pessoal, e as mercadorias adquirem vida própria,
independente. As relações entre as mercadorias, o ajuste de seu valor, se realizam
por simples operação contábil, enquanto os homens são reduzidos a meros
executores das tendências à compensação e à transferência que as mercadorias
possuem. O igual se troca pelo que é objetivamente similar, e o próprio homem é, de
fato, um elemento indiferente, embora, obviamente, prossiga todo esse processo em
seu interesse exclusivo. A relação entre humanos se transforma assim em uma
relação entre objetos.
Georg Simmel | 637
Ora, a gratidão nasce nas e pelas relações recíprocas entre os homens, mas
se interioriza do mesmo modo que aquela relação entre as coisas se tornava
explícita. A gratidão é o resíduo subjetivo do ato de oferecer e de receber. Assim como
na troca das coisas a ação recíproca se confunde com o ato imediato da correlação
das prestações, na gratidão, esse ato some (em suas consequências, sua
significação subjetiva e seu eco espiritual) nas profundezas da alma. A gratidão é a
memória moral da humanidade. Desse ponto de vista, se diferencia da fidelidade por
sua natureza mais prática e impulsiva, e por constituir (ainda que possa ficar
interiorizada) a potencialidade de novas ações, espécie de ponte ideal que a alma
encontra para estabelecer comunicação com outrem, respondendo ao mais leve
estímulo – que sem a gratidão talvez tivesse resultado ineficaz. Depois de superado
seu estado nascente, qualquer sociação se baseia no prolongamento dos
sentimentos (e das pulsões que estão na sua origem) para além do momento em que
surgiram. As interações individuais dos homens podem proceder do amor ou da
cobiça, da obediência ou do ódio, da sociabilidade ou da sede de poder: esse estado
espiritual que serve de fundamento à relação geralmente não se esgota na ação, mas
continua a viver de alguma maneira na própria situação criada pelo estado espiritual.
A gratidão é um desses prolongamentos no sentido mais categórico: a perenidade
ideal de uma relação mesmo durante um longo período após a sua interrupção e a
conclusão do ato de oferecer e receber. Embora a gratidão seja um sentimento
puramente pessoal ou até piegas, torna-se um dos entrelaçamentos mais sólidos da
trama social graças à estreita ligação e ao encadeamento dos vínculos que dele
resultam. A gratidão não só é o terreno fértil e sentimental no qual a ação recíproca
isolada frutifica, mas também o espaço onde, por força da sua presença fundamental
(ainda que frequentemente inconsciente e misturada com uma série de outros
motivos), os atos humanos sofrem certa mudança na sua maneira de ser, adquirem
intensidade peculiar, se vinculam com o passado, chegam à dedicação abnegada e
desinteressada da própria pessoa, asseguram a continuidade da vida em comum. Se
acabássemos de repente com qualquer resposta a uma recordação deixada nas
almas como resultado de benefícios recebidos, a sociedade – ao menos tal como a
638 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
84
Na realidade, a dádiva é uma das funções sociológicas mais importantes. Se na sociedade não se
oferecesse algo de que se desfruta sem pedir contrapartida, e não se aceitasse algo que é oferecido
ou entregue gratuitamente – sem ter em conta a troca – não haveria sociedade. Porque a dádiva não
é, de forma alguma, a simples ação de um sobre o outro, mas precisamente o que se espera que seja
uma função sociológica: uma ação recíproca. Aceitando ou rejeitando a dádiva, o outro exerce um
efeito de retorno bem definido sobre o primeiro ator. A maneira como se admite a dádiva
(agradecendo-a ou não, esperando-a ou surpreso, contente ou insatisfeito, tratado com carinho ou
humilhado por isso), produz um efeito bem evidente no doador – embora, obviamente, não se possa
exprimir com conceitos e expressões adaptadas aos vários graus de reconhecimento.
Consequentemente, a dádiva é (sozinha e ainda sem nenhum retorno aparente) uma ação recíproca.
(NS)
Georg Simmel | 639
algum atrativo estético de sua pessoa em resposta à força e dominância com que o
primeiro (de natureza mais vigorosa) consentiu subjugá-la. É verdade que talvez não
exista uma relação recíproca em que a troca, (o ofertado e o recebido em
compensação) tenha por objeto bens qualitativa e rigorosamente iguais. Contudo,
nos casos citados, em que essa inevitável disparidade nas relações humanas é
absoluta e consciente, encontra a sua máxima expressão e suscita um difícil
problema (ético e teórico) a essa sociologia que poderíamos chamar de “interna”. De
fato, sempre há uma sutil e íntima desproporção quando alguém oferece suas posses
intelectuais (sem comprometer seriamente seus sentimentos) em uma relação,
enquanto o outro só pode dar em troca seu amor: todos esses casos têm algo de fatal
para o sentimento porque evocam, em maior ou menor grau, a compra e a venda. A
diferença entre a troca em geral e a compra reside no fato de que a compra traduz a
reciprocidade das prestações e diz respeito a duas coisas totalmente heterogêneas
que só podem se relacionar e comparar por seu comum valor monetário. Assim, nos
tempos em que não existia a moeda metálica, quando se comprava a produção de
um artesão com uma vaca ou uma cabra, essas eram coisas absolutamente
heterogêneas, cujo respectivo valor econômico abstrato aproximava e tornava
intercambiáveis. A moderna economia monetária leva essa heterogeneidade ao
extremo. É que nessa forma econômica (em todas as transações que têm por objeto
coisas susceptíveis de ser intercambiadas), o dinheiro, que representa o universal
– quer dizer, o valor de troca dos objetos permutáveis – não está em condições de
exprimir sua peculiaridade individual. Daí que os objetos sofram, na mesma medida
em que são considerados negociáveis, uma espécie de desvalorização, de
depreciação de sua individualidade em proveito do universal, comum a essa coisa, a
todas as outras coisas igualmente alienáveis e ao próprio dinheiro em primeiro lugar.
Um pouco dessa heterogeneidade essencial existe nos casos acima referidos, em
que duas pessoas se oferecem reciprocamente bens íntimos heterogêneos, e com os
quais a gratidão pela dádiva antecedente se exprime em uma moeda completamente
distinta – que, por essa razão, introduz na troca algo do caráter a priori incoerente da
compra e venda. Compra-se amor dando inteligência, se obtêm o encanto de uma
pessoa, de cuja intimidade se quer usufruir, dando em troca a sugestão ou
dominância que essa pessoa deseja sentir exercer-se sobre ela, ou da qual quer se
640 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
85
“Solo virgem”. Em inglês no texto de Simmel. (NT)
642 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
uma tentativa de dar algo “em vez de”. Talvez seja essa a razão pela qual certas
pessoas não gostam de receber obséquios e evitam, na medida do possível, ser
homenageadas. Se o benefício e a gratidão girassem em torno apenas da coisa
oferecida, esse sentimento de aversão seria incompreensível, porque sempre seria
possível compensar o favor recebido e quitar, por completo, a mais íntima obrigação.
Na verdade, essas pessoas devem provavelmente intuir que a compensação não
pode conter aquele fator decisivo, a liberdade da primeira oferta, e preferem rejeitá-
la antes que contrair uma obrigação inexaurível 86 . O fato de que essas pessoas
sejam, em geral, as que possuem fortes tendências à independência e ao
individualismo, sugere que a situação de gratidão gera facilmente certa nuance de
vínculo indestrutível, certo character indelebilis87 moral. Uma vez que aceitamos um
serviço, um sacrifício ou um benefício se estabelece uma relação íntima que nunca
se extinguirá por completo, porque a gratidão talvez seja o único sentimento que
pode ser moralmente exigido e experimentado em todas as circunstâncias.
A realidade de nossa vida interior, seja por ela própria, seja em resposta a uma
realidade exterior, nos impede ocasionalmente, de respeitar e estimar (estética, ética
ou intelectualmente), mas ainda assim podemos continuar sendo gratos a quem
alguma vez mereceu nosso reconhecimento. A alma pode se adaptar sem problemas
a essa exigência, a tal ponto que talvez não haja defeito do sentimento mais
severamente julgado do que a ingratidão. Nem sequer a infidelidade é socialmente
sancionada com semelhante rigor. Há, por exemplo, certas relações que só
funcionam com um “capital sentimental” constituído desde o início que, por sua
própria natureza, se consumirá inexoravelmente aos poucos, de modo tal que seu
esgotamento não implique nenhuma verdadeira infidelidade. No entanto, nos seus
começos, esse tipo de relações pode ser confundido com outros relacionamentos
que (para manter a comparação) vivem de suas “rendas”, de maneira que toda a
paixão e a prodigalidade de sua vida em comum não chegam a reduzir gravemente o
86
Essa é, naturalmente, uma formulação extrema, mas seu desvio em relação ao que existe é inevitável
em análises que isolam elementos da realidade espiritual e que agem sempre misturados em
conjuntos diversos, de maneira indireta e amiúde embrionária. (NS)
87
Expressão latina que significa “caráter indelével”. Utiliza-se geralmente para indicar a espécie de
marca que não se pode apagar ou eliminar (como o carimbo de uma moeda) que certos sacramentos
cristãos (como o batismo, a confirmação e a ordem, que são irrevogáveis e não se podem ser
repetidos), deixam nas pessoas que os recebem. (NT)
Georg Simmel | 643
estado de espírito de obrigação generalizada (não por acaso dizemos “obrigado”) que
não pode ser remido por nenhuma prestação concreta. A gratidão é um dos fios
microscópicos, mas infinitamente tenazes, que mantém unidos os elementos da
sociedade e, por conseguinte, reúne finalmente todos eles em uma vida comum e
estável88.
Assim como certos círculos desenvolvem a estabilidade e a rigidez estrutural
como condição de sua autopreservação, outros têm, ao contrário, necessidade de
maximizar a flexibilidade e labilidade das suas formas sociológicas – por exemplo,
aqueles grupos que vivem dentro de um grupo maior e têm a própria existência
apenas tolerada ou mesmo levada adiante per nefas89. É exclusivamente graças à
mais perfeita elasticidade que uma sociedade semelhante pode conciliar uma sólida
coesão com a sucessão de ofensivas e retiradas que ela conhece. Tem que poder
esconder-se em qualquer buraco, esticar-se ou contrair-se consoante as
circunstâncias, da mesma maneira que um corpo em estado de agregação fluido
deve poder assumir qualquer forma que lhe seja propícia. Assim, os bandos de
malfeitores ou subversivos têm de ser capazes de dividir-se rapidamente e agir em
grupos separados, de submeter-se incondicionalmente ora a um chefe ora a outro,
de preservar, contra ventos e marés, o mesmo espírito de corpo, por contato direto
ou indireto, de se organizar de novo, imediatamente e da forma que for possível,
depois de cada dissolução, etc. Esse processo permite- alcançar essa
autopreservação que dá razão aos ciganos quando dizem: de si próprios: “é inútil
enforcar-nos, porque não morremos”. Algo semelhante foi dito a respeito dos judeus:
a força da sua coesão social, seu sentimento de solidariedade recíproca (tão eficaz
na prática), a exclusão peculiar (mas nem sempre completa) dos gentios90, todo esse
vínculo sociológico só teria perdido a sua conotação confessional, após a
88
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “fidelidade” e a “gratidão”.
Doravante Simmel retoma a sua análise da “autopreservação dos grupos sociais”, notadamente das
”formas lábeis de autopreservação”, bem como da “divisão do trabalho e a coesão do grupo”. (NT)
89
Expressão latina que pode ser traduzida aqui como: “por vias ilícitas”. Habitualmente integra a
locução per fas er nefas, que quereria dizer: “por vias justas e injustas” ou, melhor: “por todos os meios
possíveis”. (NT)
90
Termo normalmente usado a partir do século XVII para se referir aos não judeus. Com o mesmo
sentido de gentio existe o termo de origem hebraica gói. Em tempos recentes, ambos os termos
deixaram de ser bem vistos, preferindo-se, muitas vezes, usar em substituição a expressão: “não
judeu”. (NT)
Georg Simmel | 645
Emancipação judaica91, para adquirir outra, capitalista. Por essa razão, até foi dito
que a organização “invisível” dos judeus seria “invencível”, porque embora o ódio
contra eles conseguisse privá-los, em primeiro lugar, do poder da imprensa, depois
daquele que o dinheiro dá, e finalmente do usufruto de direitos iguais, mesmo assim
não será por isso que o liame social hebraico desatar-se-á – a coletividade judaica
perderia sua organização política, mas reforçaria outra vez a sua primitiva forma
confessional. Esse cenário sociopolítico já aconteceu em alguns lugares e pode vir a
se generalizar. Mesmo a adaptabilidade individual do judeu, a sua notável capacidade
para desempenhar as tarefas mais diversas e de adaptar-se às condições de vida
mais variáveis, poderia ser entendida como um reflexo da forma sociológica do grupo
no indivíduo. Ao menos parece ser unânime a opinião que a compreensão e
docilidade do judeu e sua aptidão para aplicar-se a diferentes atividades econômicas
é um dos fatores de sua obstinada resiliência. Um bom trabalhador inglês não pode
ser privado do salário que julga ser justo para o trabalho qualificado que ele sabe
realizar: se necessário, faz greve, ou aceita um trabalho não qualificado, ou procura
qualquer outro modo de ganhar a vida, antes de trabalhar na sua especialidade por
um salário inferior à norma que ele declaradamente assumiu. O judeu, ao contrário,
prefere o mais insignificante salário ao desemprego, mas em compensação não
conhece o descanso tranquilo de quem atingiu seu objetivo, e constantemente espera
ter uma promoção: para ele, nenhum mínimo é demasiado pouco, e qualquer máximo
é insuficiente. A amplitude de oscilação 92 dessa ambição, que indubitavelmente
passa da vida individual à do grupo, é para os judeus um meio de autopreservação,
tal como o são a rigidez e inflexibilidade para o operário inglês. Nesse contexto, pouco
importa, de fato, que a opinião acima referida sobre a história dos judeus seja ou não
pertinente. O que nos parece instrutivo é o que dela resulta: que a autopreservação
91
A Emancipação judaica foi o processo interno e externo de libertação dos judeus de Europa,
incluindo o reconhecimento de seus direitos como cidadãos iguais e a concessão formal de sua
cidadania como indivíduos. Tal processo ocorreu gradualmente entre o final do século XVIII e o início
do século XX. (NT)
92
Simmel se vale metaforicamente do conceito de amplitude do movimento oscilatório, proveniente
da física. O exemplo mais simples de movimento oscilatório que existe é o movimento do pêndulo (e
o relógio de pêndulo é o exemplo clássico desse tipo de movimento). Dizemos, assim, que um corpo
se movimenta de forma oscilatória quando executa movimentos (ida e volta) em torno de certa
posição que esteja em equilíbrio. Nesse contexto, a amplitude de oscilação ou amplitude do
movimento corresponde à distância entre a posição de equilíbrio e a posição extrema que é ocupada
pelo corpo em movimento oscilatório. (NT)
646 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
de uma unidade social pode ocorrer justamente pela mudança da sua forma aparente
ou da sua base material, e que sua permanência repousa no seu caráter lábil (na sua
maleabilidade ou flexibilidade).
Essas duas possibilidades de autopreservação social se opõem de maneira
característica nas suas relações com outros conceitos sociológicos mais amplos. Se
a preservação do grupo depende intimamente da perenidade da maneira de ser
peculiar de uma camada social (a mais alta, a mais numerosa e a média), isso irá
exigir nos dois primeiros casos a estabilidade da vida social e, no último, sua
labilidade. Como anteriormente referido, as aristocracias são, no geral,
conservadoras. Porque se são realmente o que sugere o seu nome – o governo dos
melhores – serão a expressão adequada das desigualdades reais que existem entre
os seres humanos. Nesse caso (e sem pretender saber se alguma vez se realiza de
um modo mais do que parcial), faltará o impulso que conduz a todas as
transformações políticas: a discrepância entre as qualificações próprias das pessoas
e sua posição social – o ponto de partida de algumas das empresas mais insensatas
da humanidade, assim como de suas maiores e mais corajosas realizações.
Admitindo hipoteticamente esse caso mais favorável da aristocracia, será
conveniente, para a sua manutenção em longo prazo, a preservação de toda a sua
maneira de ser e organização. Isso porque qualquer ensaio de mudança ameaçaria
essa correlação rara e sutil entre qualificação e posição (seja na realidade ou nos
sentimentos das pessoas envolvidas), e desse modo daria motivo a uma
transformação fundamental da constituição. No entanto, o motivo essencial para tal
reformulação será, em primeiro lugar, o fato de que essa absoluta equidade nas
relações de dominação (apanágio das aristocracias) quase nunca acontece – pois o
governo dos poucos sobre os muitos se assenta amiúde sobre bases muito
afastadas de uma conformidade ideal ao princípio do bem comum. Em tais situações,
o grupo dominante terá o maior interesse em não suscitar qualquer movimento
inquietante e inovador que pudesse provocar as inevitáveis reivindicações
(justificadas ou não) dos dominados – desde que aquelas não se limitariam a uma
mudança das pessoas, mas acarretariam o fim do próprio regime. A partir do
momento em que as instituições têm fundados receios quanto a sua sobrevivência,
assumem uma atitude defensiva (latente ou manifesta), se não pura e simplesmente
Georg Simmel | 647
93
Sine qua non é uma locução adjetiva, do latim, que significa “sem a qual não”. É uma expressão que
faz referência a uma ação ou condição que é indispensável, que é imprescindível ou que é essencial.
Assim, quando é referida a uma condição, indica circunstância indispensável à validade ou à
existência de um ato. (NT)
648 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
94
À outrance é uma locução adverbial do francês, que significa “com exagero”, “excessivo”. (NT)
Georg Simmel | 649
que a sua forma social se sustente sobre a camada social mais numerosa a quem
seja reconhecida igualdade de direitos – coisa que geralmente se verifica nos povos
agrícolas, como os camponeses da antiga Roma e a comunidade de homens livres
do medievo germânico. Nesses casos, o conteúdo dos interesses sociais determina
de antemão a estrutura de suas formas, O camponês é a priori conservador: seu
trabalho exige longos prazos, instituições duradouras e perseverança obstinada. A
imprevisibilidade das condições meteorológicas (das quais depende) leva-o a certo
fatalismo que, diante dos poderes externos, prefere recorrer à paciência antes que ao
recuo – porque sua técnica não consegue responder às modificações conjunturais
com mudanças qualitativas rápidas como as que podem empreender industriais e
comerciantes. Além disso, o camponês se preocupa mais com a paz interior do que
com a forma de seu Estado – o que os políticos sabem utilizar desde sempre. Por
conseguinte, as condições técnicas criam nos grupos cuja forma coincide com uma
ampla camada camponesa, as disposições favoráveis para conseguir tal preservação
pela solidez e a perseverança e não pela labilidade de seus processos vitais.
A situação é bem diferente quando a direção recai nas camadas médias, e a
forma social do grupo depende da sua preservação. Só as camadas médias do grupo
têm um limite superior e outro inferior, de tal modo que constantemente acolhem
indivíduos provenientes dos estratos alto e baixo que, por sua vez, engrossam, com
elementos originários dessa categoria social mediana, heterogênea e plural. Ela é,
portanto, conotada pelo signo da flutuação. A finalidade de seu comportamento
consistirá fundamentalmente em acomodamentos, variações e concessões, graças
aos quais os movimentos inevitáveis do conjunto são orientados de tal maneira que
ao menos se mantenha a forma e a energia essencial do grupo, malgrado todas as
mudanças de conjuntura. Poderíamos dizer assim que a continuidade define e denota
a forma sociológica de um grupo caracterizado pela grande extensão e
preponderância das camadas médias. Essa forma não existe nem quando uma
uniformidade completa dos indivíduos, sem gradações, é dominante, nem quando o
grupo se compõe de uma camada superior e de outra inferior, separadas sem
transição ou mediação de nenhuma natureza. As camadas médias proporcionam, de
fato, aos outros dois estratos sociais um elemento sociológico completamente novo:
não é simplesmente um terceiro elemento, que se soma aos dois anteriores e que
650 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
estabeleceria com cada um deles as mesmas relações (talvez com alguma nuance
quantitativa) que eles próprios mantinham entre si. A novidade consiste, como já
dissemos, em que essa categoria social possui um limite superior e outro inferior,
interfaces através das quais ocorre uma troca constante com os outros dois estratos,
graças a cuja flutuação ininterrupta se produz uma confusão das fronteiras e uma
série de transferências incessantes. Isso porque não se obtém uma verdadeira
continuidade da vida social quando os indivíduos ocupam posições distintas, embora
a sua distância seja mínima – o que sempre conferiria uma estrutura social
descontínua. Para que a estrutura social seja contínua é preciso que os indivíduos
circulem por posições mais elevadas e mais baixas: só dessa maneira a distância
entre as camadas sociais se transforma em uma verdadeira continuidade. No destino
das pessoas, é preciso que se possa encontrar a posição superior e a inferior, para
que a imagem sociológica evidencie uma autêntica comunicação entre o topo e a
base. E isso é o que exatamente caracteriza as camadas médias, muito mais do que
ficar de permeio entre os outros dois estratos sociais.
Só é preciso um pouco de reflexão para perceber que essa pausada gradação
deve aplicar-se igualmente às diferenças que se apresentem dentro das próprias
camadas médias. A continuidade das posições (no que se refere ao prestígio, ao
patrimônio, à atividade, à educação, etc.) não resulta apenas das reduzidas
diferenças que elas revelariam se fossem classificadas em uma escala objetiva, mas
sobretudo da frequência com que uma pessoa passa por uma pluralidade de
posições – e cria assim uma espécie de uniões pessoais constantemente variáveis
entre essas situações objetivamente distintas. Nessas circunstâncias, o quadro
social de conjunto ostentará um caráter lábil: as camadas médias dominantes
facilitam a adaptação de seus indivíduos às mais variadas circunstâncias, de tal
forma que a autopreservação do grupo (através da mudança das condições internas
ou externas) se realiza finalmente menos pela estabilidade e rigidez coesiva dos
elementos que por sua disposição a transigir e seu pragmático transformismo. A
mera existência da diferenciação em uma sociedade dá a seus indivíduos uma
liberdade de movimentos maior sem- ameaçar a preservação social. Pretendeu-se
justificar o conservadorismo intolerante da maioria ateniense – do qual Sócrates foi
vítima – dizendo que pela uniformidade da população, toda comoção era
Georg Simmel | 651
95
O autor se refere ao Capítulo IV da presente obra. (NT)
658 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
seus conteúdos e de suas vicissitudes – unidade que será ainda mais perceptível
quanto mais intensa seja a mudança desses outros elementos. Assim, por exemplo,
a vitalidade surpreendente do vínculo matrimonial é, coeteris paribus, uma função da
diversidade e da troca de destino da união que se destacam sobre a imobilidade
formal da comunidade conjugal. É essencial para o homem que existam, como
condição indispensável dos diversos momentos de sua vida, seus respectivos
opostos. A multiplicidade das formas e a mudança dos conteúdos são essenciais
para a preservação do grupo, não só na medida em que produzem o sentimento de
variação em virtude do qual a unidade se destaca em face das mudanças transitórias;
mas também e sobretudo, porque essa unidade permanece sempre igual a si mesma,
enquanto as formações, interesses, e objetivos são cada vez mais diversos. Graças
a isso a unidade adquire perante todas as interrupções aquela chancela de firmeza e
efetividade que a verdade possui em face do erro. Como é sabido, a verdade por si
mesma, não possui em cada caso específico uma proeminência ou superioridade
espiritual para impor-se ao erro: a sua vitória final é provável porque é apenas uma,
ao passo que os erros sobre o mesmo objeto são incontáveis. Por isso também é
provável, que cada erro se repita amiúde, não mais como erro em geral, mas como
erro específico.
Da mesma maneira, a unidade do grupo social tem a probabilidade de se
manter, de se fortalecer e de se aprofundar em face de todas as interrupções e
vacilações porque esses incidentes são sempre de tipo diferente, enquanto a unidade
é sempre a mesma. Em virtude desse estado de coisas, os efeitos da variabilidade
social, favoráveis à preservação do grupo, podem subsistir sem que o fato mesmo da
mudança signifique necessariamente uma concorrência séria ao princípio de
unidade.
IX. O espaço e a sociedade
1
O autor alude a um corpo de magistrados, os chamados “escabinos”. O cargo de escabino, em
diferentes épocas e lugares, assumiu diversos significados: No Flandres medieval, e até as décadas
finais do século XVII, o escabinado correspondia ao atual conselho municipal, tendo funções
legislativas e executivas, pois atuava como auxiliar do burgomestre – primeiro magistrado municipal.
(NT)
Georg Simmel | 661
2
Na Alta Idade Média, uma marca era um feudo criado em uma zona de fronteira, em decorrência da
conquista ou da separação de outro território, ao qual o soberano atribuía uma função particular de
defesa contra eventuais ataques provenientes de territórios vizinhos. Na sua origem assim eram
designados numerosos territórios fronteiriços do Império carolíngio e, por extensão, a uma província
fronteiriça, militarizada ou não. (NT)
3
Agentes ou servidores especiais encarregados de uma série de funções nas cortes (conf. nossa nota
14 no capítulo VI da presente obra). (NT)
4
Mansão suntuosa, mantida pela corte em diversas cidades do reino, destinada à eventual residência
do monarca quando de seus deslocamentos momentâneos ou visitas. (NT)
664 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
5
Judiaria era a denominação tradicional do bairro judeu ou da parte de uma cidade em que os judeus
eram obrigados, por lei, a residir. Por extensão, o termo aplicava-se a qualquer parte de um
aglomerado populacional habitado majoritária ou exclusivamente por pessoas de cultura judaica. (NT)
6
Termo empregado para fazer referência ao medievo, à renascença e ao século XVII. Engloba, assim,
tudo o que se refere à “Idade Média” segundo a ideia que dessa época se tinha feito o século XIX,
período durante o qual o termo foi inventado. (NT)
Georg Simmel | 665
seja, manteria determinada relação, como conjunto definido e organizado, com esse
território urbano – como poderia fazê-lo qualquer outra religião. O princípio da Igreja
é não espacial. Por esta razão, mesmo que se estenda sobre qualquer espaço, não
impede a existência de outra entidade análoga. Dentro do espacial. passa-se um
pouco a mesma coisa que com o contraste entre o eterno e o atemporal. Por natureza,
o atemporal é absolutamente indiferente ao problema do agora, do antes e do depois.
E ele é, portanto e no fundo, acessível e presente em cada momento. Em
compensação, o eterno é uma noção de tempo, concebido como infinito e
ininterrupto. No espacial (como não possuímos termos análogos para exprimi-lo),
diremos que a diferença correspondente fica entre, de um lado, as entidades que se
sobrepõem ao espaço, que por seu próprio sentido não têm nenhuma relação com o
espaço (e que por essa mesma razão têm uma relação uniforme com todos os pontos
dele) e, por outro lado, aquelas entidades que também têm uma relação uniforme com
todos os pontos do espaço (mas não como uma indiferença uniforme, senão como
uma solidariedade ativa com ele). O melhor exemplo da primeira forma é a Igreja, e o
melhor da segunda forma, é o Estado. Entre as duas intercalam-se certas formas
intermédias, sobre algumas das quais já nos referimos. A natureza formal de
numerosos tipos de estrutura social pode assim ser esclarecida à luz da posição
ocupada por elas em uma escala que vai da inserção territorial completa, e da
exclusividade daí decorrente, até a independência plena da espacialidade e seu
corolário, a possibilidade da coexistência de várias estruturas análogas em uma
mesma porção de espaço. Desse modo, a proximidade, o afastamento, a
exclusividade ou a diversidade da relação do grupo com seu território configuram a
razão e o símbolo da sua estrutura.
B) Outra qualidade do espaço, que exerce uma influência capital nas ações
sociais recíprocas, consiste na possibilidade de dividi-lo para um melhor
aproveitamento em fragmentos que se consideram unidades e que estão limitados
por fronteiras – efeito e causa simultâneos desse fenômeno. Quer que a
configuração da superfície terrestre nos forneça indícios suficientes para supor a
existência de uma moldura, dentro da qual possamos inscrever nossas fronteiras na
ausência de qualquer demarcação, quer que linhas puramente ideais (como os
divisores de águas) separem fragmentos homogêneos do terreno (que por sua vez
666 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
têm diferentes centros de gravidade a um lado e outro da linha), o certo é que sempre
concebemos o espaço que um grupo social preenche de alguma maneira como uma
unidade – unidade que exprime e sustenta a unidade do grupo, do mesmo modo que
a unidade do grupo é o suporte da unidade espacial. A moldura, o limite de uma
fração, tem um significado semelhante para o grupo social e para a obra de arte 7.
Respectivamente, ela exerce duas funções, que no fundo são apenas os dois
aspectos de uma mesma: delimitar a obra de arte perante o mundo circundante e
encerrá-la em si mesma. A moldura proclama a existência de um mundo em seu
interior, um mundo que apenas obedece a suas próprias normas e que não está
envolvido nas determinações e movimentos de seu entorno. Ao simbolizar a unidade
autossuficiente da obra de arte, a moldura reforça simultaneamente a realidade e a
impressão que ela produz. Do mesmo modo, a sociedade se caracteriza como
socialmente coesa quando tem seu espaço existencial delimitado por linhas
claramente conscientes, e vice-versa: a unidade das ações recíprocas, a relação
funcional de todos os elementos entre si, encontra a sua expressão espacial na
fronteira que lhe serve de moldura. Talvez não haja prova mais evidente da força
particular da coesão estatal que esse caráter sociologicamente centrípeto, essa
adesão das pessoas, em última analise, puramente espiritual, à imagem quase visual
de uma fronteira claramente definida. Raras vezes nos damos conta da maneira
maravilhosa em que a extensão do espaço corresponde aqui à intensidade das
relações sociológicas, até que ponto a continuidade do espaço permite traçar em
toda parte fronteiras subjetivas – precisamente porque não tem nenhum lugar de
fronteira absoluta. Perante a natureza, qualquer estabelecimento de fronteiras é
arbitrário, mesmo no caso das ilhas, porque, em princípio, o mar também pode ser
objeto de posse. É justamente em relação a essa ausência de predeterminação do
espaço natural que o rigor absoluto das fronteiras materiais (assim que são traçadas)
põe em relevo o poder formal da coesão social e a sua necessidade interna. Por isso,
no caso das fronteiras “naturais” (montanhas, rios, mares, desertos) talvez não seja
tão grande a consciência da circunscrição do espaço como em face das fronteiras
meramente políticas que se limitam a traçar uma linha geométrica entre dois
7
Conf. o artigo do mesmo autor: A moldura. Um ensaio estético (Der Bildrahmen. Ein äesthetischer
Versuch) de 1902. (NT)
Georg Simmel | 667
8
Essa paixão pela terra natal, particular os habitantes dos países montanhosos, como típica “saudade
de casa” (emoção puramente individual) talvez dependa da diferença significativa do território, que
vincula a consciência a esse solo e a singularidade de sua forma – e com frequência ao próprio bocado
de terra que o indivíduo possuía ou habitava. Em si mesmo, não há nenhuma razão para que o
montanhês ame mais a sua “pequena terra” que o habitante das planícies. É verdade, porém, que a
vida sentimental se liga mais fortemente e de maneira mais eficaz às configurações diferenciadas,
incomparáveis e percebidas como únicas – e, consequentemente mais a um velho povoado de ruas
tortuosas e traçado irregular que a uma cidade moderna modelada pelo acento voluntário da linha
reta, mais à montanha onde cada pedaço de terra tem uma forma individual e irrepetível do que aos
campos de várzea, cujas parcelas são todas iguais. (NS)
668 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
essas benesses. No entanto, a fertilidade torna seu vale tão exuberante que pode
impedir à população assentada em suas margens materializar seus desejos e
necessidade de manifestar descontentamento. Tais fatores benéficos conferiram à
região, a uniformidade de uma vida sempre igual, a ordenação sequencial de uma
regularidade quase mecânica, que manteve o vale do Nilo em um conservadorismo
secular, que não era nem sequer uma possibilidade na beira do mar Egeu – pelo
menos por razões geográficas.
O conceito de fronteira é extraordinariamente importante em todas as relações
dos homens entre si, embora o seu sentido não seja sempre sociológico. Essa noção
frequentemente indica que uma personalidade encontrou seus limites,
especialmente no que tange a seu poder ou a sua inteligência, à sua capacidade de
sofrimento ou de prazer – sem contudo começar nesse ponto a esfera de outra
personalidade, cuja própria fronteira deixaria mais visíveis os limites da primeira
personalidade. Nesse último caso, a fronteira sociológica implica uma ação recíproca
muito peculiar. Cada um dos dois elementos age sobre o outro, impondo-lhe uma
fronteira. O conteúdo de este agir, entretanto, consiste precisamente em não querer
ou não poder agir para além dessa fronteira e, consequentemente, sobre o outro. Esse
conceito geral de limitação recíproca provém da noção de fronteira espacial – que,
no fundo, só é a cristalização ou espacialização de processos anímicos de
delimitação, os únicos reais. Não são os países, as terras, os territórios das cidades
ou de algumas divisões administrativas que se limitam mutuamente, mas seus
habitantes ou proprietários que exercem essa ação recíproca que acabamos de
indicar. Quando duas personalidades (ou conjuntos delas) fazem fronteira entre si, a
sua vizinhança confere a cada uma delas certa coesão interna independente de
quaisquer circunstâncias. Essa dependência é mútua e cria uma espécie de relação
dinâmica com o centro. É precisamente assim que se estabelece isso que simboliza
a fronteira espacial entre os dois termos: o remate perfeito da positividade normativa
do poder e do direito dentro da sua própria esfera – pela consciência de que esse
poder e esse direito carecem de validez para além de tal fronteira. A fronteira não é
um fato espacial com efeitos sociológicos, mas um fato sociológico que toma forma
espacial. O princípio idealista de que o espaço só seria uma representação nossa
– ou mais exatamente, que seria produzido por aquela atividade sintética ao abrigo
Georg Simmel | 669
da qual damos forma ao material de nossas sensações – adota aqui uma forma
específica que permite afirmar que a forma do espaço que chamamos de fronteira é
uma função sociológica. Evidentemente que a fronteira é, antes de mais, uma
entidade perceptível e espacial que colocamos no meio da natureza sem ter em
conta, na prática, o seu valor sociológico. No entanto, esse fato age
significativamente, por sua vez, sobre a consciência da relação entre as partes.
Embora essa linha não faça mais do que marcar a diferença da relação recíproca
entre os membros de uma esfera e as relações que eles mantêm com os habitantes
da esfera limítrofe, ela vira uma energia viva, capaz de impulsionar os elementos a
unirem-se mais intimamente de um lado e de outro da fronteira – e que podem
repelir-se uns aos outros, através do limite, como cargas elétricas de mesma
polaridade ou sinal.
9
Conf. Cap. V da presente obra. (NT)
670 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
10
Expressão latina que pode traduzir-se como: “estado nascente” ou “gênese”. Depois de Simmel só
Max Weber (no Cap. III, § 11 de Economia e Sociedade) e, muito mais tarde, Francesco Alberoni (no
livro que dedicou em 1989 a esse fenômeno, intitulado Genese) se referiram em termos sociológicos
ao status nascendi. (NT)
Georg Simmel | 671
Distinguir o membro de pleno direito daqueles que não o são significa traçar uma
fronteira entre esses últimos e o resto da coletividade à qual, porém, pertencem em
diferentes gradações. Se objetivássemos o conjunto de direitos atribuídos aos
diversos tipos de membros de uma entidade com a metáfora gráfica dos raios
emitidos desde o núcleo dessa comunidade na direção dos indivíduos que a
integram, poderíamos delimitar o variado alcance de tais direitos, marcando pontos
sobre as linhas que representariam as irradiações propagadas. Quer dizer, os direitos
são reconhecidos em diferente grau relativamente aos membros. Esses pontos
indicariam as fronteiras da sua participação, a alguns elementos – que não existiriam
para outros –, demarcando simultaneamente dentro do próprio indivíduo não
admitido plenamente na comunidade a parte da sua personalidade aceita no grupo e
a parte que torna o indivíduo alheio. Tal situação formal pode, em algumas ocasiões,
ficar trágica quando o grupo limita o grau em que um indivíduo pertence a ele sem,
no entanto, interiorizar a fronteira correspondente nesse elemento – que acredita
formar parte integralmente de um grupo que em realidade só lhe concede uma
assimilação parcial.
É característico e está bem fundamentado que os direitos e deveres dos
membros parciais do grupo sejam definidos de um modo mais preciso que as
prerrogativas e obrigações dos membros de pleno direito. Como estes últimos
participam plenamente do destino e da finalidade da associação, não é possível
estabelecer de antemão a medida das prestações, encargos e vantagens decorrentes
da sua participação no poder – restando-lhes apenas esperar para ver o que advirá
ao conjunto e acompanhar o curso dos acontecimentos com base na sua posição
como membros do grupo. Em compensação, os membros parciais lidam amiúde com
os aspectos particulares, declarados e definidos pela associação. No geral, o que os
distingue dos membros de pleno direito não é uma questão de intensidade (uma
relação mais fraca com a totalidade e unidade do grupo, por exemplo), mas uma
questão de extensão: os membros parciais sabem o que devem proporcionar e
podem revindicar com relativa independência da sorte final do grupo e deles mesmos,
enquanto os membros de pleno direito ignoram tais delimitações da sorte reservada
ao conjunto e à parte. O sentido sociológico profundo da presença ou da ausência
dessas delimitações da pertença reside no fato de que, no caso dos membros
672 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
parciais, a maior precisão da relação lhe confere um caráter mais objetivo que no
caso dos membros de pleno direito. Como exemplo de uma esfera muito especial,
lembraremos a diferença de posição que existe entre a “criada para todo o serviço”
(ou, mais perto de nós, a “empregada doméstica”) e a “faxineira”. A relação das
empregadas domésticas com a “casa”, por frouxa que possa parecer em comparação
com a mantida com os servidores nas sociedades patriarcais, conserva uma
natureza orgânica. Suas tarefas seguem a sorte dos acontecimentos familiares e,
mesmo que seja em pequena escala, contribuem frequentemente ao ambiente que
reina no lar – uma vez que não há uma delimitação exata das funções das
empregadas domésticas. Contrariamente, a faxineira é contratada para realizar
trabalhos claramente determinados por seu empregador, tanto no seu conteúdo
como no número de horas em que deverão ser realizados – pelo que a sua relação
com o patrão terá um caráter estritamente laboral e alheio às alternativas da vida do
lar. E mesmo que seu salário seja fixado em proporção as suas prestações, não
existirá comprometimento subjetivo e pessoal com a família da casa, senão uma
relação puramente objetiva constituída por um conjunto predeterminado de direitos
e obrigações.
O exemplo por excelência, descrito noutras passagens desta obra, é a
transformação da corporação medieval de artesãos no moderno sindicato de
operários. A guilda reivindicava a entrega total de seus membros, mas em
compensação era solidária com eles em diversos aspectos de sua vida. Já a atual
associação profissional de trabalhadores, mesmo quando não é uma associação
para fins determinados, se limita exigir dos sindicados o pagamento de uma
contribuição monetária periódica, limitada em seu montante, correspondida por uma
prestação do sindicato, também quantitativa e legalmente restringida à defesa e
coordenação dos interesses profissionais de seus filiados. Neste caso, o fenômeno
da delimitação entre a parte e o todo provocou, sem qualquer ambiguidade, a
objetivação de toda a relação. É interessante observar como já na Idade Média se
marcou um limite às pertenças. Uma guilda aristocrática anglo-saxônica do século
XI dispôs que, quando um de seus membros matasse um homem em legítima defesa
ou por vingança justificada, os outros membros deveriam contribuir ao pagamento
Georg Simmel | 673
11
Indemnização em dinheiro fixada pelas antigas leis germânicas para pôr fim às vinganças. (NT)
12
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “let all bear it, let all share the same lot”. (NT)
13
A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, hoje Ordem Franciscana Secular foi criada por
volta de 1221 para congregar os leigos que desejavam seguir são Francisco e participar do carisma
franciscano sem deserção da própria família e sem renunciar a seu trabalho e as suas propriedades.
(NT)
674 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
com seu conteúdo. No geral, por razões facilmente compreensíveis, o conteúdo tem
mais importância para os fenômenos de delimitação que para outras formas
sociológicas. Por mais que habitualmente a limitação quantitativa de um interesse
comum imponha limitações recíprocas aos interessados, isso já não acontece com
certos interesses. Os tipos desses casos se encontram nos sistemas axiológicos
mais variados a começar pelas pastagens coletivas, às quais cada pastor pode enviar
todo o gado que possua, e terminando pelos prados eternos que todas as ovelhas
remidas podem atingir e possuir por inteiro sem diminuir a parte das demais
integrantes do rebanho.14
Se até há pouco temos falado sobretudo das ações recíprocas que se
desenrolam entre os dois lados da fronteira, oferecemos agora pelo menos um
exemplo daquelas que a própria fronteira produz como moldura do grupo. O essencial
aqui é a largura ou a estreiteza do quadro, embora não seja o único fator essencial,
já que a forma que o quadro espacial imprime ao grupo, a maior ou menor
estanquidade da moldura e a sua uniformidade, o fato de que o elemento que
constitua o quadro esteja formado por vizinhanças diversas ou por um mesmo
elemento em toda a sua extensão (como ocorre, com as ilhas e com os enclaves15
político-territoriais do tipo da república de São Marinho ou dos Estados principescos
indianos16), tudo isso tem uma importância indubitável para a estrutura interna do
grupo, embora aqui só possamos mencioná-lo. A largura ou a estreiteza do quadro
nem sempre coincidem com a grandeza ou pequenez do grupo: antes ela depende
das forças de expansão que existam no interior da coletividade. Quando essas forças
têm espaço suficiente para agir sem serem detidas pelas fronteiras na sua fase de
expansão, o quadro é largo ainda que reúna uma população numerosa – como no
caso do despotismo oriental. Em contrapartida, o quadro é estreito quando, apesar
14
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou às “fronteiras sociais”. Doravante
Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, notadamente da “influência do quadro espacial
do grupo”, da “fixação no espaço” e da “distância e proximidade das ações recíprocas”. (NT)
15
Um enclave é um território com distinções políticas, sociais e/ou culturais cujas fronteiras
geográficas ficam inteiramente dentro dos limites de outro território. (NT)
16
Os Estados principescos da Índia eram principados ou reinos localizados no subcontinente indiano
durante o Raj (o Império britânico das Índias) e sobre os quais reinava um soberano local, chamado
de "príncipe" pelos ingleses, mas que era na verdade um rei de pleno direito. Os Estados principescos
gozavam de autonomia local e possuíam seus próprios monarcas e instituições, mas se encontravam
sob proteção britânica, o que os tornava meros vassalos. Foram abolidos com ocasião da
independência indiana em 1947. (NT)
Georg Simmel | 675
de poucas pessoas viverem nele, funcione como um obstáculo para além do qual
certas energias tentam agir constantemente por não poderem desenvolver-se para
dentro. O efeito dessa situação sobre a forma social salta à vista, por exemplo, no
caso de Veneza – onde a limitação de seu território, exigente e impossível de ser
ignorada, conduziu à chamada expansão dinâmica pelo mundo antes de a uma
ampliação territorial pela força que, aliás, tinha poucas possibilidades de êxito nesse
contexto. Contudo, uma política que dirigia o seu olhar para espaços distantes e ia
muito além das fronteiras adjacentes, exigia grandes condições intelectuais que não
poderiam reunir os popolani17 da cidade dos doges. Esse fator impediu a democracia
direta em Veneza. Seu quadro de vida espacial exigia a formação de uma aristocracia
que – como já dito – governava o povo da mesma forma que os oficiais de um navio
comandam a sua tripulação.
A influência do quadro espacial do grupo na forma sociológica não se esgota
na delimitação política. A sua largura ou estreiteza produz efeitos (e consequentes
mudanças) onde quer que um grupo de pessoas esteja reunido. O próprio caráter que
se atribui amiúde à multidão congregada – impulsividade, entusiasmo,
disponibilidade – depende em parte de encontrar-se ao ar livre, ou ao menos em um
lugar de grandes proporções – se comparado com os locais em que habitualmente
transcorre a vida. Os espaços abertos dão aos homens uma sensação de liberdade,
de possibilidades ilimitadas, de horizontes longínquos – algo que dificilmente pode
surgir em cômodos de reduzidas dimensões. E o fato de que aqueles locais
espaçosos possam amiúde ficar relativamente estreitos e abarrotados, não faz mais
do que aumentar esse efeito estimulante. Por conta disso, o impulso individual
atravessa suas fronteiras habituais, acrescentando esse sentimento coletivo que
funde o indivíduo em uma unidade que supera a sua pessoa e o arrasta como uma
torrente poderosa muito além de seus propósitos e de suas responsabilidades
pessoais. A força sugestiva e excitante da grande massa e das suas manifestações
anímicas (forma sob a qual o indivíduo deixa de reconhecer seu próprio agir) se
acentua mais quanto maiores sejam a concentração dessa massa e o espaço que ela
17
Nem patrícios, nem cidadãos os popolani eram a parte da população veneziana privada de direitos
políticos, de privilégios econômicos e até de um patronímico, sendo definidos mais por omissão que
de maneira positiva. (NT)
676 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
objetivos da vida como estabilização e ordem fixo. Entre outras razões porque essa
conexão (facilmente compreensível) nem sempre se verifica – desde que, justamente
nas situações muito consolidadas (nas que a possibilidade de desorganização não é
algo a temer), se poderá prescindir de certas regulações e intervenções legais, que
são muito necessárias quando reina a incerteza e o grupo se encontra exposto à
desagregação.
O que nos interessa é que se o grupo fixa seus membros individuais
legalmente no espaço, a maneira de fazer isso permitirá organizar os fenômenos de
acordo com determinada ordem de graus, que vão da obrigação absoluta de
residência em uma vizinhança definida até a plena liberdade de residência. A
obrigação de residência apresenta-se sob duas maneiras clássicas: a obtida
proibindo abandonar em qualquer caso o domicílio, e a que, mesmo autorizando o
afastamento sanciona-o com a perda da pertença ao grupo, ou de certos direitos
ligados ao caráter de residente. Dentre os muitos exemplos que se podem mencionar,
somente citaremos o do direito da cidade holandesa de Harlém18, que em 1245 dispôs
que não podia haver cidadãos não residentes. Todos os cidadãos estavam obrigados
a morar na cidade e só podiam abandoná-la durante 40 dias por ano para a
semeadura e a colheita. Note-se que não se trata da livre circulação entre os distintos
distritos de uma unidade política importante, mas apenas do direito de abandonar a
entidade política e continuar cidadão dessa entidade. Um bom exemplo do outro tipo
de vinculação é o direito de votar nos municípios das províncias orientais da Prússia,
que até o ano 1891 só era concedido aos residentes permanentes, e daí em diante foi
outorgado a todos os contribuintes dos impostos estaduais. Quanto menos
desenvolvido o raciocínio abstrato de um grupo, mais difícil será compreender a
possibilidade de o indivíduo pertencer a esse conjunto sem presença no local – e
tanto mais subordinadas estarão as relações concretas a essa presença pessoal dos
integrantes do grupo. Ao contrário, um intelecto mais dúctil e uma visão mais ampla
das situações permitem solucionar o problema de modo a satisfazer as exigências
essenciais de pertença ao grupo, mesmo em caso de ausência física. Tanto que,
18
Harlém é uma cidade neerlandesa, hoje capital da província da Holanda do Norte a qual foi em
tempos uma das mais poderosas das Províncias Unidas dos Países Baixos. A cidade é localizada nas
margens do rio Spaarne, a cerca de 20 km ao oeste de Amsterdã e próximo das dunas costeiras.
Durante séculos, tem sido o centro histórico da produção de bolbos de tulipas. (NT)
678 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
19
Quanto mais sociológico é um conceito, quer dizer, quando em vez de designar algo substancial ou
individual signifique uma mera fórmula de relação, mais fortemente ele determinará linguisticamente,
por si mesmo, seus conteúdos ou seu suporte. Assim, a “dominação” (Herrschaft) não é mais do que
a relação funcional entre aquele que manda e quem obedece, mas na língua alemã essa palavra
designa também os próprios superiores e ainda o território sobre o qual se estende seu domínio.
Curiosamente, a palavra mais especificamente sociológica que existe, a relação (Verbältnis), tem
conhecido uma extensão inaudita, na linguagem familiar dos germanófonos, no seu sentido de relação
erótica. Os amantes “têm” uma relação, são considerados uma unidade sociológica, “são” uma relação
e, finalmente, cada um deles “é” para o outro, a relação dele. (NS).
682 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
20
O faubourg Saint-Antoine é um dos antigos faubourgs (subúrbios) de Paris atualmente incorporados
à cidade. Ficava próximo à abadia Saint Antoine-des-Champs, que deu nome à aglomeração e à rua
principal que a atravessa. Sua vocação para objetos de mobília vem de longe, reunindo grande número
de lojas de venda de móveis e oficinas de marceneiros. Concentra-se hoje aí uma importante
coletividade de origem turca e balcânica. (NT)
21
Ao rei de Sião (atual Tailândia); Estrela de ouro. (NT)
Georg Simmel | 683
22
O motivo (de incalculável importância sociológica) de que o que é qualitativamente similar deve
associar-se também no espaço, tem achado sua expressão absoluta na residência comum dos
defuntos. (NS)
684 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
23
Hipódamo de Mileto (ca. 498 a.C;— 408 a.C.) foi um arquiteto, urbanista, médico, matemático,
meteorologista e filósofo grego. Tendo vivido no auge do período clássico, é considerado o "pai" do
planejamento urbano em quadrículas, designado hipodâmico em sua homenagem. (NT)
24
Os generais de Alexandre Magno que disputaram entre si o império daquele depois de sua morte
são conhecidos com o nome de “diádocos”. (NT)
25
Omar ibne Alcatabe (circa 586 — 644), conhecido em português simplesmente como Omar, foi o
segundo e mais poderoso dos primeiros quatro califas muçulmanos, chamados de “os bem guiados”.
Governou entre 634 e 644. (NT)
Georg Simmel | 685
Roma conseguiu a unidade mais perfeita entre ambas as determinações. Essa cidade
é única, uma criação histórica e geográfica incomparável, localizável por um sistema
de infinitas coordenadas que dá realidade ao provérbio “todas as estradas se dirigem
a Roma”. Por acréscimo, a enorme extensão e riqueza de seu passado, o fato de que
Roma apareça como o epicentro de todas as mudanças e contrastes da história, fez
com que perdesse completamente a restrição da localização em um ponto. Por ter a
sua “santa sé” em Roma, a Igreja adquiriu um local de residência estável com todas
as vantagens de poder ser sempre encontrada, da continuidade concreta e visível, e
da segurança que proporciona a centralização de suas ações e de suas próprias
instituições. E nada disso precisou ser pago com as dificuldades e limitações que as
localizações de poder em um ponto fixo acarretam, porque Roma não é nenhum
ponto. Roma estende-se ao longo dos destinos e das aventuras que nela ocorreram,
que fazem seus efeitos psicológico e sociológico se prolongar além de seus limites
espaciais, fornecendo à Igreja a precisão da fixação local. Para servir os fins da Igreja
nas suas relações soberanas com os crentes, Roma propõe a localização e a
singularidade mais absolutas que nenhum lugar possuiu, e ao mesmo tempo se
sobrepõe à limitação e às contingências da existência individualmente fixa. As
grandes organizações precisam, devido a sua própria condição, de um ponto central
no espaço, pois elas não podem sobreviver sem estabelecer relações de
subordinação e hierarquia. Além disso, o posto de comando deve possuir uma
posição fixa para ter seus subordinados ao alcance da mão e para que estes saibam
sempre onde encontrar o indivíduo ou conjunto de pessoas encarregado de dirigir a
organização. No entanto, quando não se dá essa maravilhosa fusão de localização e
ubiquidade característica de Roma, são necessárias certas renúncias. Tomemos
como exemplo o caso dos franciscanos. Originariamente, esses religiosos
pertencentes à ordem fundada por são Francisco de Assis careciam de domicílio fixo,
porque o seu distanciamento de todas as amarras terrenas, a sua pobreza e a sua
missão de pregadores assim o exigiam. Só quando a extensão da ordem reclamou
“ministros”, foi necessário que eles tivessem, pelas razões acima referidas, um
domicílio permanente – os frades não puderam doravante prosseguir a vida sem
fixar-se em um convento. Todavia, por muito útil que isso tenha sido para o
crescimento e o melhor cumprimento de sua missão, aquele desprendimento
686 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
incomparável e a segurança interior dos primeiros irmãos, de quem se dizia que não
tinham nada, mas possuíam tudo, desapareceu. Desde o momento em que os
franciscanos assumiram como os outros homens uma residência fixa, sua forma de
vida se banalizou e a liberdade, embora continuasse a ser grande, deixou de ser
infinita, já que estavam vinculados ao menos a um ponto fixo.
Em comparação, a centralização do culto judaico em Jerusalém, semelhante
em muitos aspectos a Roma, produziu efeitos muito diferentes. Enquanto o templo
de Jerusalém existiu, um fio invisível o ligava a cada um dos judeus dispersos pelas
mais diversas localidades, com as suas diferentes nacionalidades e línguas, e
inclusive com os seus vários interesses e matizes religiosos. O templo era o ponto de
contato que servia de intermediário nas relações, em parte reais e parcialmente
ideais, de todo o judaísmo. Possuía, entretanto, uma condição em virtude da qual a
sua significação local era muito maior que a romana: só no templo de Jerusalém se
podia sacrificar – Iahweh não tinha outro altar para os sacrifícios. A destruição
romperia esse laço devindo excessivo: à energia e à nuance específicas que o culto
de Iahweh tinha extraído dessa localização absolutamente singular, sucedeu um
deísmo incolor, que favoreceu a separação do cristianismo, tornando-a mais rápida
e radical. O lugar central de Jerusalém foi substituído pelas sinagogas autônomas, e
a coesão efetiva dos judeus ficou menos de caráter religioso e mais de cunho étnico.
Eis as consequências dessa exacerbação localista que colocou o vínculo sociológico
em face do dramático dilema do tudo ou nada.
D) O espaço apresenta ainda um quarto tipo de relações objetivas que se
transformam no mundo da vida (Lebenswelt) e das ações recíprocas sociológicas
pela proximidade ou pela distância sensível entre as pessoas que mantêm qualquer
relação digna desse nome. Basta um simples olhar para se convencer de que duas
associações, cuja coesão se deva à igualdade fundamental de interesses, energias e
sentimentos, terão distinto caráter conforme seus membros sejam vizinhos ou
estejam separados uns dos outros no espaço. E isso não apenas no óbvio sentido de
uma diferença nas relações totais (uma vez que não se trata unicamente de que se
acrescentem àquela relação outras relações determinadas pela proximidade
corporal), mas no sentido de que a relação espacial modifica as outras relações
– incluídas as possíveis à distância. Um cartel econômico ou uma amizade, uma
Georg Simmel | 687
espiritual, não transmite a ideia de um destino que persegue com sanha uma ou outra
pessoa, senão que é o fruto do azar dos humanos.
Se as relações a grande distância pressupõem sobretudo certo
desenvolvimento intelectual, inversamente, o caráter mais sensível da proximidade
local se manifesta no fato de que, com vizinhos muito próximos, deve haver, no geral,
relações amistosas ou hostis, quer dizer, baseadas em um sentimento categórico
– parece que a indiferença recíproca é impossível quando existe proximidade
espacial. É verdade que o predomínio do intelecto significa sempre uma diminuição
dos sentimentos extremos. Tanto por seu conteúdo objetivo como por sua função
anímica, essa preponderância da inteligência é o princípio de imparcialidade que
permite superar as contradições, no meio das quais se sucedem alternadamente o
sentimento e a vontade – nem as épocas históricas nem os indivíduos fortemente
marcados pelo intelecto se distinguem geralmente pelo primado ou excesso de amor
ou de ódio. Todavia, essa correlação, que também pode ser aplicada as diversas
relações que se verificam entre os homens, não age sempre no mesmo sentido. Por
mais eficaz que o intelecto seja para identificar pontos comuns que permitam chegar
ao mútuo consenso, a intelecção estabelece, ao mesmo tempo, certa distância entre
os indivíduos – o que possibilita a aproximação e a coincidência dos que estão mais
longe, criando em contrapartida uma relação objetiva e mais fria entre os próximos.
A relação com pessoas distantes no espaço aparenta, assim, com frequência, certa
serenidade, moderação e falta de paixão, que o pensamento ingênuo acredita ser a
consequência imediata da distância, do mesmo modo que imputa a diminuição da
velocidade de um projétil à mera extensão do espaço que ele deve percorrer. Na
verdade, o papel da distância espacial consiste unicamente em eliminar os estímulos,
atritos, atrações e repulsões que a proximidade sensível produz, assegurando que,
na complexidade dos fenômenos anímicos, das interações sociais, predominem os
processos intelectuais. Perante aquele fisicamente próximo de nós, e com quem
temos contato recíproco nas situações e ambientes mais diversos, sem possibilidade
de antecipação ou escolha, só costumam expressar-se sentimentos definidos e sem
nuances, originados das pulsões de afeto ou aversão – desde que essa proximidade
pode ser a causa tanto dos momentos mais sublimes como do constrangimento
mais insuportável. Sabe-se, há muitos anos, que os ocupantes da mesma casa só
Georg Simmel | 691
podem ser amigos ou inimigos. Assim, quando já existem relações muito próximas,
que uma proximidade espacial permanente não possa acrescentar na sua essência,
será melhor evitar tal contiguidade que acarreta um vasto leque de possibilidades
nefastas, que permitem ganhar pouco, mas perder muito – porque se é bom ter por
amigo o vizinho, pode ser perigoso ter por vizinho o amigo. Não existe,
provavelmente, nenhuma relação amistosa que não intercale, na sua proximidade,
alguma separação, substituindo assim esse afastamento espacial às medidas,
amiúde penosas e vexatórias, necessárias para conservar a distância interior no caso
de contacto ininterrupto. Duas exceções confirmam o fundamento dessa regra da
polaridade dos sentimentos na convivência estreita – proximidade que em ambas
pode dar-se no meio da maior indiferença e sem comprometer qualquer reação
sentimental mútua. A primeira exceção alude ao convívio das pessoas de um nível de
cultura elevado, enquanto a segunda se refere às relações de vizinhança na grande
cidade moderna. No primeiro caso, o predomínio da intelectualidade reduz as reações
impulsivas à excitação do contato e, no segundo, os contatos incessantes com
inúmeras pessoas produzem o mesmo efeito embotando a sensação – a indiferença
para com quem frequentamos é aqui uma simples medida de precaução sem a qual
a metrópole escorcharia e esmagaria a nossa alma. Quando temperamentos
apaixonados e veementes demais se opõem a esse efeito apaziguador da vida
citadina, procuram-se, por vezes, outras medidas preventivas. Na Alexandria
imperial, por exemplo, dois dos cinco bairros estavam habitados principalmente por
judeus, a fim de evitar, na medida do possível, os conflitos de vizinhança causados
pela afirmação da etnicidade de hebreus e gentios. Por conseguinte, se um mediador
procura antes de tudo manter duas partes hostis (que chegam ao confronto físico)
espacialmente separadas, isso não contradiz o fato de que, justamente, se esforce
em reuni-las quando estão muito afastadas. Em muitas pessoas, a fantasia que se
acalenta à distância conduz a um exagero extremo dos sentimentos, ao lado do qual
a excitação produzida pela proximidade sensível, por maior que seja, parece limitada
e finita.
A par dos efeitos evidentes da proximidade espacial e da consciência,
sociologicamente importante, de dispor constantemente de tais efeitos, embora não
sejam utilizados de fato, achamos que a consequência da proximidade para a forma
692 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
de sociação tem relação também com a importância dos sentidos com que os
indivíduos se percebem uns aos outros.
olhou para ele. No mesmo ato em que o sujeito pretende conhecer o objeto, esse
mesmo objeto se desvela. Não se pode perceber por meio dos olhos sem ser
percebido ao mesmo tempo. Tentando pôr a alma do outro à vista, a própria alma se
revela ao outro. Mas como de toda a evidência isso só acontece olhando-se ao
mesmo tempo e de modo imediato nos olhos do outro, nos encontramos aqui com a
reciprocidade mais perfeita no campo das relações humanas.
Compreende-se porque a vergonha nos faz baixar os olhos, nos furtar ao olhar
do outro. Não só para não comprovar que o outro nos vê em uma situação tão penosa
e perturbante, mas também para privar o outro de uma ocasião de nos conhecer. O
olhar aos olhos do outro não serve apenas para que eu o conheça a ele, mas também
serve a ele para conhecer-me a mim. Na linha que une os dois olhares, cada um
transmite ao outro a sua própria personalidade, o próprio estado de ânimo, as
próprias pulsões. Nessa relação sociológica e sensível a “política da avestruz”
encontra expressão prática: quem não olha para o outro, evita, até certo ponto, o seu
olhar. Para que o homem se revele a seu próximo, não basta que esse outro olhe para
ele, é preciso que ele olhe para o seu semelhante.
O significado sociológico do olhar depende, antes de tudo, da expressão do
rosto, que se apresenta como o primeiro objeto do olhar entre os seres humanos.
Poucas vezes se compreende claramente até que ponto o próprio aspecto prático de
nossas relações depende do conhecimento recíproco, consciente e instintivo, que
tenhamos dos outros – isso não só no que se refere ao externo ou às intenções e
estados de ânimo momentâneos deles, mas também do que sabemos do seu ser, de
seus alicerces morais e da imutabilidade da sua natureza, que será o que
inevitavelmente colorirá as nossas relações, momentâneas ou duráveis, com outrem.
Todavia, o rosto é o lócus de todos esses conhecimentos, o símbolo de todo o que o
indivíduo traz como pressuposto de sua vida. No rosto estão inscritos os vestígios
do passado transformados em traços indeléveis. Quando percebemos o rosto
humano desde essa perspectiva, se introduz na relação um elemento alheio as suas
eventuais finalidades práticas: o rosto permite compreender o homem olhando
apenas para ele, sem esperar que ele aja. Considerado como órgão expressivo, o
rosto é de natureza puramente “teórica”, não age como a mão, como o pé ou o corpo
inteiro, não é veículo da conduta reservada ou pública do homem, mas fala dela. O
Georg Simmel | 695
forma do tempo. O olhar nos revela também a permanência de seu ser, os vestígios
de seu passado na forma substancial de seus traços, de tal modo que vemos quase
em um instante a sucessão dos atos da sua vida. Embora o rosto revele igualmente
o estado de ânimo do momento, inferimo-lo tão bem da palavra falada, que na
contribuição efetiva do olhar predomina o caráter duradouro da pessoa graças a ele
conhecida.
Por isso os matizes sociológicos que coloram a situação do cego e do surdo
são completamente diferentes. Para o cego, o outro só existe verdadeiramente no
tempo, na sucessão temporal de suas palavras. Ele ignora a simultaneidade inquieta
ou inquietante dos traços de um ser, os vestígios deixados por todo o passado que
podemos encontrar no rosto, às vezes enigmático, dos seres humanos – quiçá seja
esse o segredo fundamento do estado de ânimo (aprazível e calmo, uniformemente
amistoso com quem os rodeiam) que verificamos com tanta frequência entre os
cegos. Geralmente, o que vejamos de um homem será interpretado pelo que ouçamos
dele – o contrário é muito mais raro. Por isso, quem vê sem ouvir viverá muito mais
confuso, hesitante e intranquilo que aquele que ouve sem ver. Encontramo-nos aqui,
na presença de um fator importante para a sociologia das metrópoles. Em
comparação com as cidades pequenas, a vida quotidiana das cidades grandes e
importantes se baseia muito mais no olhar do que no ouvir. A razão disso não é
apenas o fato de que nas cidades pequenas as pessoas que encontramos nas ruas
são frequentemente indivíduos que conhecemos bem, com quem trocamos qualquer
palavra amistosa, ou cuja visão evoca em nós a sua personalidade total além de sua
aparência visível, sobretudo por causa dos meios de transporte coletivo. Antes das
ferrovias, dos ônibus e bondes no século XIX, os homens não podiam sequer imaginar
que algum dia poderiam ou deveriam ficar olhando-se reciprocamente durante
minutos ou horas sem falar um com o outro. As comunicações modernas fazem com
que a maior parte das relações sensíveis estabelecidas entre os homens sejam
confiadas exclusivamente, e cada vez mais, a seu olhar – o que deve basear os
sentimentos sociológicos gerais em fundamentos muito diferentes. O viés
enigmático que acabamos de constatar no homem, somente visto quando
comparado com aquele que podemos ouvir, contribui com certeza ao caráter
Georg Simmel | 697
simbolizar essa condição, porque age como um apêndice passivo do rosto humano,
o menos movediço de todos os órgãos da cabeça. Paga, no entanto, esse egoísmo
por sua incapacidade de desviar-se ou de se fechar como os olhos: o ouvido não faz
mais do que receber, mas em troca está fadado a colher tudo o que estiver ao seu
alcance – o que, como se verá mais adiante, acarreta igualmente consequências
sociológicas. O ouvido necessita o concurso da boca e da palavra falada para
produzir o ato interiormente unificado de tomar e dar – e mesmo assim, em
alternância: não se pode falar direito enquanto se ouve, nem ouvir com clareza
enquanto se fala, ao passo que o olho funde os dois aspectos no milagre do “olhar”.
Por outro lado, o egoísmo formal do ouvido se contrapõe a sua estranha relação com
os objetos susceptíveis de apropriação privada. No geral, só se pode “possuir” o
visível, porque o meramente audível desaparece no momento mesmo em que é
percebido pelo ouvido, e não é, portanto, passível de ser “possuído”. E, se as grandes
famílias dos séculos XVII e XVIII se esforçavam por possuir composições musicais,
escritas expressamente para elas, que não podiam ser divulgadas, foi essa uma
curiosa exceção, à qual devemos algumas das mais belas páginas de Bach,
compostas sob encomenda principesca. A distinção de uma casa incluía a posse de
peças musicais que não podiam ser ouvidas por outrem. Para nossa maneira de ver,
há aqui certa perversão, porque o ouvido é, por natureza, supraindividual: tudo o que
soe em um espaço devem ouvi-lo todos os que ali se encontrem – porque, se algum
deles o percebe isso não impede que outros presentes também o escutem. Daí
provém também a conotação psicológica particular que reveste uma palavra quando
é, apesar de tudo, destinada exclusivamente a uma pessoa. Aquilo que um diz ao
outro poderiam ouvi-lo inúmeras pessoas com a única condição de estarem
presentes. Quando o conteúdo de algo que foi dito exclui essa possibilidade formal,
a comunicação dessas palavras adquire um inconfundível matiz sociológico. Não há
quase nenhum segredo que possa ser transmitido exclusivamente pelo olhar.
Contudo, a sua comunicação pelo ouvido implica no fundo uma contradição, porque
se utiliza uma forma sensorial, que como tal se dirige a um número ilimitado de
pessoas, para transmitir um conteúdo que exclui essa participação plural. Esse é o
profundo paradoxo do segredo comunicado oralmente, da conversa confidencial:
recusa-se explicitamente a admitir o caráter sensível da linguagem falada, cujas
700 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
26
A distinção entre sentidos superiores (visão e audição) e sentidos inferiores (tato, olfato e paladar),
remonta à Grécia antiga (conf. Platão, Fédon, 65b), e se baseia na diferença do grau de separação ou
702 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
a estranha confusão e a peculiar escuridão das suas impressões podem levar a crer.
Não há dúvida de que cada pessoa dá um cheiro característico ao ar que fica em
torno dela, sendo essencial que, das duas direções possíveis das impressões
sensíveis que daí resulta (a que vai em direção ao sujeito que o cheira com prazer ou
desgosto, e a que se dirige ao objeto como meio de reconhecimento), a primeira seja
de longe a mais importante. Com o mero olfato, não se identifica um objeto do mesmo
modo que a visão ou a audição permitem: a sensação fica presa dentro do sujeito, tal
como o revela o fato de que faltem expressões objetivas que por si só signifiquem
seus traços característicos. Quando afirmamos que algo cheira azedo, queremos
apenas dizer que tem um odor semelhante àquele de um objeto de sabor azedo. As
sensações do olfato fogem à descrição por palavras muito mais que as impressões
sensíveis que temos visto até agora: simplesmente não é possível projetá-las no
plano da abstração. Por isso, as repulsões e afinidades instintivas fundadas na esfera
olfativa que podem associar-se aos homens encontram tão poças resistências de
pensamento e vontade – e infelizmente tiveram com frequência grande importância
na relação sociológica entre duas etnias estabelecidas no mesmo território. Nesse
sentido, tanto a difícil aceitação dos afrodescendentes pela alta sociedade
estadunidense, como a recíproca e escusa aversão de judeus e alemães foi reduzida
amiúde ao simples fato de seu cheiro corporal. O contato pessoal entre pessoas
cultivadas e operários, amiúde recomendado como meio de favorecer a evolução
social de nossa época, essa aproximação de “dois mundos que não sabem como
vivem mutuamente”, que foi reconhecida como ideal ético por muitos indivíduos
ilustrados, teria fracassado (na opinião de alguns deles) porque não lhes haveria sido
possível vencer as impressões olfativas. Evidentemente, numerosas pessoas das
classes abastadas consentiriam de boa vontade sacrifícios consideráveis ao seu
próprio conforto se isso lhes fosse solicitado em nome de interesses de ordem social
e moral, renunciando dessa forma a muitos privilégios e regalias em proveito dos
deserdados – e se isso ainda não aconteceu de um modo mais acentuado, deve-se
proximidade entre o objeto percebido e o sujeito que o percebe. Diz-se assim que os sentidos
superiores, por ser o seu objeto de percepção externo ao próprio corpo do sujeito que percebe, são de
natureza intelectual e, portanto, capazes de produzir conhecimento fiável e objetivo. Em compensação,
os sentidos inferiores, como seu objeto de percepção tem caráter interno, seriam de natureza corporal
e só produziriam conhecimento subjetivo. (NT)
Georg Simmel | 703
Ora, o olfato é, em princípio, um sentido que age a uma distância mais curta que a
visão e a audição, e se não o utilizarmos para percepções objetivas como alguns
povos da natureza, em compensação as nossas reações subjetivas perante as suas
impressões são ainda mais enérgicas. O sentido último desse fenômeno não é outro
senão o acima indicado, mas em um grau superior ao dos outros sentidos: um
homem com um olfato muito apurado recebe, provavelmente por causa desse
aperfeiçoamento, muitos mais aborrecimentos que agrados. Por acréscimo, essa
repulsão, esse fator de isolamento que devemos ao refinamento do sentido do olfato,
é reforçado ainda mais pelo seguinte motivo. Quando sentimos o cheiro de alguma
coisa, aspiramos profundamente pelo nariz tal impressão (ou o objeto de onde ela
provém), a inalamos ou absorvemos profundamente, quase que a assimilamos, pelo
processo vital da respiração, a um ponto que se nos afigura inalcançável para
qualquer outro sentido – mesmo para o paladar, quando comemos. Cheirar o odor
pessoal de alguém é a percepção mais íntima que podemos ter desse indivíduo, que
penetra, assim, em figura sublimada, dentro de nós. É evidente, portanto, que, na
medida em que a sensibilidade para as impressões olfativas aumente se produzirá
uma seleção e um distanciamento que constituem, até certo ponto, uma das bases
sensoriais da reserva sociológica do indivíduo moderno. Nessa ordem de ideias, é
significativo que um homem de um individualismo excludente tão apaixonado como
Nietzsche diga, com chocante frequência, ao referir-se aos tipos de homem que ele
odeia que eles “não cheiram bem”. Enquanto os outros sentidos estabelecem
milhares de pontes entre os homens, e podem compensar as repulsões com atrações,
permitindo que a mistura de seus valores sentimentais positivos e negativos matize
o conjunto concreto das relações humanas, se pode definir, ao contrário, o olfato
como o sentido dissociador – não só pelo fato de produzir muitas mais repulsões do
que atrações, ou porque as suas decisões têm algo de radical ou mesmo de
inapelável, que dificilmente podemos mudar em outras instâncias sensíveis ou
espirituais, mas sobretudo porque a reunião de muitas pessoas não cria para o olfato
a mesmas atrações que oferece (ao menos em determinadas circunstâncias) aos
demais sentidos. Pelo contrário, na maior parte dos casos, as agressões ao olfato
aumentam proporcionalmente ao número de indivíduos entre os quais nos
encontremos. Mesmo que seja apenas por isso, o refinamento cultural induz (como
Georg Simmel | 705
o casamento. Não vamos entrar na controvérsia sobre a razão de ser de tal proibição,
até porque o problema parece-nos mal colocado. Neste caso, como em todos os
relativos a fenômenos sociais muito generalizados e importantes não podemos
procurar “a razão”, mas as razões. A humanidade é demasiado diversa e rica em
formas e motivos para que se possa compreender, com causas únicas e deduções
lineares, fenômenos que encontramos nos pontos mais afastados da Terra, como
resultado de evoluções longas e evidentemente muito diferentes. Da mesma maneira
que a polêmica sobre o caráter monógamo ou polígamo “por natureza” do homem
está errada sem sombra de dúvidas (desde o início dos tempos até os nossos dias
houve naturezas monogâmicas, poligâmicas, celibatárias ou que reuniam todas
essas tendências), assim também nos parece que todos os motivos apresentados
para explicar a proibição do incesto devem, de fato, ter influído, sem que nenhum
deles possa pretender ser a única causa. Os vínculos de amizade e de aliança com
tribos ádvenas, bem como as relações hostis que conduziram ao rapto das mulheres,
os instintos eugênicos tanto quanto o desejo do homem de separar à mulher da sua
família e privá-la do seu apoio, tudo isso deve ter contribuído à proibição do incesto
em proporções variáveis. No entanto, o fator essencial talvez fosse a manutenção da
boa ordem dentro da mesma casa, que exige a exclusão das relações sexuais entre
irmãos, pais e filhos e, no geral, de todas as uniões entre aqueles parentes próximos
que outrora constituíam uma comunidade fechada no espaço. A promiscuidade, que
instaura o convívio dos homens e das mulheres que integravam o conjunto de
moradores de uma mesma casa particular, se teria transformado em devassidão
desenfreada se não se houvesse ido de encontro à depravação dos costumes sob o
mesmo teto com as sanções mais terríveis e se não se tivesse criado, graças à
severidade de uma interdição social sem falhas, o instinto que excluiu de antemão
qualquer relação sexual dentro do grupo doméstico. Contra nossa tese tem-se
argumentado que essa proibição só teria vigorado, no seu início, dentro da “família
matrilinear”, quando o homem entra na família da mulher pelo casamento, e que esse
tipo de família não coincidiria nessa época com o total de pessoas que
compartilhavam a mesma moradia. Acreditamos, contudo, que o período da
adolescência prévio ao casamento, durante o qual o homem ficava sempre na casa
materna, era suficientemente prolongado para suscitar os perigos para a boa ordem
Georg Simmel | 707
dessa comunidade que a interdição do incesto quis prevenir. E que o fato de tal
proibição continuar vigorando para aqueles que tinham abandonado o lar seria
apenas uma cristalização, testemunha de uma época em que esses jovens não só
eram membros da família, mas coabitavam com ela. Essa teoria é corroborada pelo
fato de que em muitas tribos estruturadas em clãs que proíbem a união entre
membros que são ou se consideram descendentes de ancestrais comuns, se permite
corriqueiramente o casamento entre parentes consanguíneos sempre que, por
qualquer circunstância, morem em dois clãs diferentes. Dos panches 27 da Colômbia,
diz-se que os homens e mulheres de um mesmo povoado se consideravam irmãos
pelo que não se casavam entre si, mas que em compensação, se a verdadeira irmã
tinha nascido por acaso em um sítio diferente que o irmão, podiam casar-se entre
ambos. Enquanto a severidade da disciplina doméstica foi a regra nos lares romanos,
o casamento esteve proibido entre todas as pessoas sujeitas ao mesmo poder
paterno – isto é, os parentes até o sexto grau. Na medida em que se foi afrouxando
o laço estreito e a ordem que assegurava o bom funcionamento do grupo doméstico,
se atenuou também esse princípio, até que na época imperial se chegou mesmo a
legitimar o casamento entre tio e sobrinha – a profilaxia não pareceu ser ainda
necessária quando desapareceu a intimidade da convivência. Por toda parte se
constata essa tendência para prevenir e eliminar a tentação decorrente da
proximidade física, quando ceder a ela equivaleria a perturbar gravemente a ordem
familiar – distanciamento que, como é natural, se impõe amiúde com aquela radical
falta de nuance que, nos povos da natureza, faz com que toda norma que deveria ter
um alvo bem definido se aplique finalmente sem qualquer distinção, indo muito além
de seus próprios limites e da esfera do seu conteúdo. Assim, entre os brakna e outros
povos melanésios das ilhas Fiji, os irmãos não podem comer em companhia de suas
irmãs, ou falar diretamente com elas, da mesma forma que os primos têm proibido
fazê-lo com as primas e os cunhados com as cunhadas – proibição que não deixa
27
Os panches ou tolimas eram um povo ameríndio que habitava em ambas as margens do rio
Magdalena e a sua bacia. Considerados culturalmente similares aos povos caribenhos vizinhos, mas
linguisticamente não relacionados com eles, foram descritos pelos conquistadores espanhóis como
temíveis guerreiros. (NT)
708 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
28
Os cingaleses, são um povo resultante da mestiçagem dos indo-europeus que dominaram a ilha de
Ceilão desde o ano 500 a.C., com diversas populações anteriores, que adotaram a língua cingalesa.
Constituem o grupo étnico predominante no atual Sri Lanka. (NT)
29
O arquipélago Malaio, também conhecido como Insulindia, é um vasto território situado entre o
Sudeste asiático e a Austrália. Localizado entre os oceanos Índico e Pacífico, consta de mais de 20
mil ilhas, dentre as quais a de Buru, que pertence ao grupo das Molucas, e a de Bornéu ou Calimantã.
(NT)
Georg Simmel | 709
30
Os jumas pertencem a um conjunto de povos denominados kagwahiva, que migrou da região do
Alto Tapajós para as proximidades do Rio Madeira Caracterizam-se por um complexo sistema de
metades exogâmicas, que recebem o nome de dois pássaros Seu sistema de metades é patrilinear, ou
seja, todo indivíduo pertence à metade do pai. Além disso, só se pode casar com alguém que seja da
metade oposta. Isto faz com que a sociedade se divida ao meio, gerando dois grandes grupos que se
casam uns com os outros, sendo possível o casamento na mesma metade somente quando os
parceiros vivam distantes. Tudo se passa como se a distância geográfica provocasse uma distância
genealógica, transformando o casamento proibido numa união possível. (NT)
31
As ilhas Nanusa (as maiores das quais são Merampit e Karatung) formam parte do grupo das
Talaud, elas mesmas localizadas ao Norte do arquipélago de Sulawesi, na ponta mais setentrional da
Indonésia, fazendo fronteira com o sul da região de Davao nas Filipinas. São conhecidas por possuir
um patrimônio cultural excepcional. (NT)
32
Os nair, também conhecidos como nayars, são um grupo hindu de castas que habita desde tempo
imemorial no território que hoje corresponde ao estado indiano de Querala, no extremo sudoeste da
península indostânica. Historicamente, moravam em grandes unidades familiares que abrigavam
descendentes de um ancestral feminino comum. Têm sido muito estudados por causa desses grupos
domésticos e de seus incomuns costumes matrimoniais – que não são mais praticados e incluíam
dois rituais específicos de união (antes e após da puberdade), a prática da poligamia, e até da
hipergamia em algumas áreas. (NT)
33
Os jurunas são habitantes tradicionais das ilhas do rio Xingu, situadas entre a Volta Grande e o rio
Fresco. Vivem em grupos formados por parentelas bilaterais dispersos ao longo do rio e constituídos
em torno de um “dono” ou capitão: que reúne as características de mais-velho e de afim da maioria
dos homens maduros que são “donos” de grupos domésticos. Estes últimos são predominantemente
fundados nas relações entre mãe e filhas e entre sogro e genros. (NT)
710 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
– pois a convivência pessoal se vai limitando pouco a pouco a essa esfera íntima.
Quanto mais extensa e diversa é a coletividade social que nos rodeia, menores serão
as subdivisões familiares que se consideram como um conjunto coerente e,
consequentemente, se estenderão a menos pessoas aqueles perigos da convivência
física contra os quais as interdições matrimoniais são uma medida preventiva
efetiva.
É certo que se afirmou, contra o argumento apresentado aqui, que a
convivência estreita das pessoas que moram em uma mesma casa faz se reduzir a
atração sensual. Pessoas que desde a infância se veem diariamente e o tempo todo
não se desejam com grande paixão, uma vez que o hábito da vida em comum esfria
a imaginação e as mútuas apetências – atiçadas apenas pela novidade e a distância.
Por isso, de acordo com esse raciocínio psicológico, os desejos de conúbio não dizem
respeito aos membros da própria família senão somente aos estranhos. Contudo, a
exatidão psicológica dessa teoria é muito relativa. O íntimo convívio não só esmorece
o ímpeto dos sentimentos, mas também pode amiúde agir como um estímulo da
afeição – caso contrário, não se conseguiria explicar a repetida experiência de que o
amor que tem faltado no momento de contrair núpcias surja depois durante o
casamento, nem seria tão perigosa, a certa idade, a primeira relação íntima com uma
pessoa do sexo oposto. Por outro lado, quando aparece a proibição de que se trata,
nos primórdios do processo civilizatório, não se tinha desenvolvido ainda esse forte
senso da individualidade ao abrigo do qual a mulher não é apenas atrativa pelo fato
de ser fêmea, mas por sua própria personalidade, diferente de todas as outras. Ora,
esse senso é a condição necessária para que o desejo se desvie das pessoas
conhecidas (que já não estão propriamente a dar-nos um novo encanto individual), e
tenda a orientar-se para individualidades que desconhecemos por completo.
Enquanto o desejo, na sua brutalidade original, domina o homem, as mulheres são
todas iguais para ele (exceto as velhas ou feias demais para seu gosto), e dificilmente
essa evoluída necessidade psicológica de mudança teria força suficiente para vencer
a indolência natural que o leva a perseguir, em primeiro lugar, as mulheres mais perto
dele. Um texto anônimo de 1740, intitulado Objeção despretensiosa, mas dirimente,
que se apresenta em relação à pretensão de dar eficácia jurídica ao matrimônio com
a irmã da esposa defunta, proscreve também o casamento com o irmão do marido
Georg Simmel | 711
34
Moisés ben Maimon, mais conhecido como Maimônides (1138 - 1204), foi um filósofo, astrônomo,
médico e rabino judeu sefardi considerado um dos maiores estudiosos da Torá na época medieval,
tanto no al-Andalus natal, como no Marrocos e Egito. É sem dúvida um dos filósofos rabínicos mais
relevantes da história judaica, autor de algumas das obras fundamentais de todas as escolas
talmúdicas. (NT)
35
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “Sociologia dos sentidos”.
Doravante Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, nomeadamente das “consequências
psicológicas da proximidade e da distância para as ações sociais recíprocas” e de um quinto tipo de
relações objetivas no espaço, as oferecidas pela “migração e as formas de sociação”. (NT)
712 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
36
Uma “carta de foral”, ou simplesmente “foral”, era um documento real utilizado em Portugal (e em
outras monarquias europeias com nomes e fins assemelhados), que visava estabelecer uma divisão
administrativa de distrito ou “conselho” e regular a sua administração, deveres e privilégios. Os forais
foram concedidos entre os séculos XII e XV e constituíam a base do estabelecimento do município,
pois tornavam o distrito livre do controle feudal, transferindo o poder para um "conselho de vizinhos",
com a sua própria autonomia municipal. (NT)
716 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
– grupo social que precisa de instituições objetivas que lhe sirvam como pontos de
referência no meio das flutuações e atritos produzidos pela vida citadina, decorrentes
do contato incessante e das diferenciações sociais de seus elementos.
Circunstâncias que estão também por trás de certo centralismo perceptível na
organização fundamentalmente democrática dos burgos medievais.
No entanto, a democracia verdadeiramente direta exige uma delimitação
estrita de sua esfera, como surge do texto já clássico de Os artigos federalistas: “o
limite natural de uma democracia é aquela distância exata do ponto central que
permita aos mais afastados cidadãos se reunirem com a frequência exigida por suas
funções públicas” 37 . Na Antiguidade grega, os cidadãos se sentiam desterrados
quando tinham que viver tão longe dos locais onde se realizavam as assembleias que
não conseguiam participar regularmente delas. A democracia e a aristocracia
coincidem nesse interesse pela autonomia direta quando seu quadro espacial é o
mesmo. A história de Esparta proporciona um bom exemplo. Os lacedemônios 38
sabiam muito bem que o povoamento disperso das planícies favorecia à aristocracia.
Nessas condições locais, até as democracias têm um viés aristocrático devido a sua
autossuficiência e a sua independência em relação aos poderes centrais dominantes
– como o demonstra o histórico devir dos povos germânicos. Quando Esparta quis
acabar com a democracia de Mantineia39, dividiu a cidade em uma série de distritos
isolados. Quanto aos próprios espartanos, para resolver o conflito entre o caráter
agrário de sua polis – na qual era muito marcado o distanciamento espacial tão
apropriado a seu sistema aristocrático – e a enérgica centralização que exigia o seu
37
Esta citação pertence a The Federalist, A collection of Essays written in favour of the New
Constitution as agreed upon by the Federal Convention, Nova Iorque, J. & A. McLear, 1788, § XIV. É da
lavra de James Madison, que com Alexander Hamilton e John Jay assinaram com o pseudônimo
coletivo de “O Federalista” os artigos da coletânea. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel:
“The natural limit of a democracy is that distance from the central point which will but just permit the
most remote citizens to assemble as often as their public functions demand”. (NT)
38
Habitantes do longo vale da Lacedemônia ou Lacônia. Outro nome dos espartanos. (NT)
39
Mantineia foi uma pequena cidade-estado grega situada ao sudeste da Arcádia, resultado da
reunificação, a meados do século VI a. C., de cinco pequenas localidades. Foi uma aliada de Esparta
em muitas ocasiões – até nas Termopilas, durante as Guerras Médicas, quando 600 homens de
Mantineia combateram junto a Leônidas. No entanto, em ocasiões mudou de campo e combateu os
lacedemônios. De tal sorte que, em 385 a. C. os mantineotas foram derrotados pelos espartanos na
sequela de uma dessas reversões de alianças, e tiveram que aceitar a divisão de sua cidade em
diversos distritos entre os quais foram redistribuídos, como em suas origens – seguramente com o
intuito de encorajar as aristocracias locais e conseguir a mudança da sua exemplar constituição que,
contrariamente à de Esparta, era democrática. (NT)
Georg Simmel | 717
40
Expressão que corresponde ao que em alemão o autor denomina Völkerwanderung (migração dos
povos) e se aplica geralmente à série de movimentos populacionais que ocorreu entre os anos 300 e
800 a partir da Europa Central e que se estenderia a todo o continente. (NT)
Georg Simmel | 719
não se fixam muito tempo em um lugar não será tão vigorosa como a das pessoas
cuja existência está garantida por uma vida sedentária – até porque as
possibilidades de fugir às obrigações que são a contrapartida da segurança que o
sedentarismo proporciona (e que foram uma das armas empregadas com maior
sucesso pelos oficiais das corporações medievais contra as tendências
centralizadoras dos monarcas) estão excluídas, como iremos agora descobrir. Por
acréscimo, as concentrações despóticas são frequentemente conseguidas com
objetivos guerreiros, para os quais serão sempre mais sensíveis os nômades
ousados e fanáticos que os pacíficos camponeses apegados a seu terrão. É verdade
que, como já vimos, os grupos nômades estão desprovidos amiúde da organização
firme e severa que constitui de ordinário a técnica própria das formações guerreiras.
A grande dispersão e independência recíproca das diferentes famílias nômades não
as predispõem a um agir concertado, metódico e disciplinado, que é o apanágio da
divisão do trabalho – fruto do contato estreito, espacial ou dinâmico, de seus
elementos. No entanto, as concentrações despóticas características das grandes
invasões em massa protagonizadas por povos nômades que atravessam a história
europeia, tanto como a chinesa, a persa e a indiana, não eram, de certo, uma síntese
organizada, e seu dinamismo se baseava justamente na agregação mecânica de
elementos indiferenciados que se derramavam com a pressão regular e ininterrupta
de um deslizamento de lama. Por essa razão, onde se encontram menos biótipos
diferenciados é nas grandes planícies e estepes que incitam à vida nômade e
simultaneamente são a fonte e o destino das grandes migrações: a Europa oriental,
a Ásia septentrional e interior, o oeste norte-americano e os pampas sul-americanos,
cujo nivelamento etnográfico deve ser não só a consequência, mas também a causa
de seu nivelamento sociológico. Entre a mobilidade no espaço e a diferenciação das
existências sociais e pessoais há uma profunda relação. Ambas oferecem apenas
satisfações diversas a um aspecto das aspirações contraditórias das tendências
anímicas que constituem o grupo, cujo outro aspecto visa ao repouso, à uniformidade
e à unidade substancial entre o sentimento da vida e a sua imagem. Os conflitos e os
compromissos, as combinações e as alternativas no predomínio desses dois
aspectos podem servir de esquemas dentro dos quais se encaixam todas as
manifestações da história humana. A extraordinária necessidade que o homem
720 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
41
A justaposição incoerente de ambas as necessidades, que não encontram em uma perspectiva
superior as duas uma harmonia, uma organização ou uma forma complementar, é talvez a razão do
escasso e difícil desenvolvimento das tribos nômades. (NS)
42
David Livingstone (1813 – 1873) foi um missionário e médico escocês que se tornou famoso por ter
sido um dos primeiros europeus a explorar o interior do continente africano. Atravessou duas vezes o
deserto do Calaári, navegou o rio Zambeze e o lago Tanganica, procurou as fontes do rio Nilo,
descobriu as cataratas Vitória e cruzou Uganda, Tanzânia e Quênia, percorrendo em 15 anos 48 000
km de trilhas. Nas aldeias, tratava dos doentes, conquistando assim a amizade dos nativos, aos que
defendia dos traficantes de escravos. (NT)
Georg Simmel | 721
casos, no devem ter faltado à migração as tendências despóticas aliadas ao seu fator
nivelador. Ao menos, diz-se dos chefes das caravanas de comerciantes que na época
imperial romana percorriam desde Palmira43 toda a bacia do Eufrates, que eram os
personagens mais importantes da antiga nobreza, aos quais os participantes do
périplo ofereciam depois, muitas vezes, colunas honoríficas. É de supor, portanto, que
o seu poder durante a viagem tenha sido tão discricionário como o do capitão no alto
mar em uma situação muito semelhante. Se a migração conduz a uma associação
estreita que ultrapassa as diferenças habituais entre os homens é justamente porque
ela, em si e por si própria, individualiza e isola, reenviando o indivíduo a suas próprias
forças. Ao privar as pessoas do apoio da sua pátria, mas também das suas
hierarquias estabelecidas, a migração as insta eficazmente a superar o destino do
erradio – isolamento e instabilidade – associando-se, sempre que possível, a uma
unidade supraindividual.
Esse rasgo fundamental da migração aparece, com características
formalmente similares, em outros fenômenos cujo conteúdo é totalmente alheio ao
das manifestações acima referidas. As amizades feitas durante as viagens, na
medida em que sejam passageiras, podem criar amiúde uma real sensação de
intimidade e franqueza que carece de toda razão profunda. Parece-nos que para tal
concorrem três motivos: ter-se apartado do ambiente de vida habitual, partilhar as
impressões e encontros recentes, e estar ciente da próxima e definitiva separação. É
evidente que o segundo desses fatores produz uma união e uma espécie de
comunidade espiritual enquanto a partilha da experiência vivida dura e se impõe às
consciências. Os outros dois, porém, exigem uma análise sociológica mais
aprofundada. A propósito do primeiro, é preciso constatar que não há muitos homens
que saibam apenas por si próprios e graças a um instinto seguro onde se encontra
em verdade o limite intangível da sua privacidade espiritual, de que silêncios
necessita a sua individualidade para se conservar incólume. Apenas à força de
43
Palmira foi uma antiga cidade semita situada em um oásis perto da atual cidade de Tadmor, no
centro da Síria, 215 km a nordeste de Damasco. Fundada durante o Neolítico, a cidade foi
documentada pela primeira vez no início do segundo milênio a.C. como um posto avançado
importante para as caravanas que atravessavam o deserto sírio. Palmira aparece nos anais dos reis
assírios e é mencionada na Bíblia hebraica. Foi incorporada no Império Selêucida (séculos IV a.C.– I
d.C.) e posteriormente no Império Romano, sob o qual prosperou. (NT)
722 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
44
Table d’hôte é um galicismo que significa “mesa do anfitrião” ou “mesa de hóspedes” Trata-se de
uma terminologia do meio da restauração utilizada para indicar um tipo de cardápio associado a um
alojamento, que permite a várias pessoas comer juntas por um preço fixo. (NT)
45
Falta de interesse, de consideração por algo. Também em francês no texto de Simmel. (NT)
724 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
46
Língua, direito, forma geral de vida, estilo de edifícios e, entre outras, as características que
identificam e distinguem os implementos úteis ou necessários aos usos do cotidiano. (NS)
47
Desde a administração centralizada e, entretanto, onipresente, do Estado e da Igreja, até as
agremiações mais eletivas e, ainda assim, dispersas por toda a parte de empresários e trabalhadores,
as resultantes das relações comerciais de atacadistas e varejistas, assim como as associações mais
ideais, porém muito eficazes de antigos alunos, de veteranos de guerra, de colecionadores de qualquer
coisa, de pais e mestres e de professores universitários. (NS)
726 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
48
Oficiais itinerantes nomeados pelo rei e enviados aos condados ingleses e à Irlanda para administrar
a justiça. (NT)
49
Henrique II (1133 – 1180), também conhecido como Henrique Plantageneta, rei da Inglaterra de
1154 até a sua morte, conde de Anjú e duque de Normandia e da Aquitânia. Foi um governante enérgico
e, às vezes, implacável, motivado por um desejo de restaurar as terras e privilégios de seu avô. Durante
seu longo reinado introduziu muitas mudanças legais que tiveram consequências duradouras e são
geralmente consideradas como as bases do common law inglês. (NT)
50
Funcionários reais encarregados no início de supervisar os prebostes, e logo de representar o rei e
fazer justiça no seu nome em um condado. (NT)
51
Poder do Estado, decorrente de sua soberania, para ministrar a justiça. (NT)
52
A English Land Restoration League (ELRL) era um grupo político favorável ao imposto único sobre a
terra e, a esse título, pode considerar-se um precursor histórico dos atuais movimentos partidários da
reforma agrária. A organização foi criada em 16 de abril de 1883 com o nome de Land Reform Union.
Na primeira reunião anual, em maio de 1884, se renomeou como indicado acima, programando uma
série de palestras e atos públicos em Londres. Em 1891, a liga instituiu a campanha da "red van",
espécie de rulote (veículo adaptado para servir de moradia arrastado por cavalos) de cor vermelha, na
qual um grupo de palestrantes viajava em torno de vários vilarejos. A turnê foi considerada um grande
sucesso e a Liga operou cinco rulotes nos anos seguintes. Em 1902, a ELRL mudou seu nome para o
de English League for the Taxation of Land Values, e desapareceu como organização autônoma algum
tempo depois de sua assembleia geral em 1950. (NT)
728 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
53
Em música, tempo rubato ou apenas rubato (que significa “roubado” em italiano) é acelerar ou
desacelerar ligeiramente o tempo de uma peça à discrição do solista ou do maestro. O termo nasce
do fato de que o intérprete "rouba" um pouco do tempo de algumas notas e o compensa em outras.
Foi usado com frequência no romantismo, e é especialmente comum na música para piano. (NT)
730 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
inimigo natural e irreconciliável. Quando o aventureiro nato não tem a sorte de achar
uma atividade que corresponda a sua sensibilidade (o que é mesmo raro já que a
simples atividade regular no tempo se assemelha muito para ele à fixidez no espaço),
subsistirá como parasita dos elementos sedentários da sociedade. Eles, todavia, não
perseguem o aventureiro apenas porque o odeiem, mas também o odeiam porque
são obrigados a odiá-lo para sua própria sobrevivência. É precisamente isso que leva
o aventureiro a escolher essa situação tão exposta e perigosa, seu impulso a mudar
de posição, a capacidade e o prazer de tornar-se invisível no mundo real e construir,
a partir de fragmentos do mundo exterior, outro mundo (interior e cheio de sentido)
que é simultaneamente sua proteção contra as perseguições e vexames e a sua arma
ofensiva e defensiva. Assim como a sua relação com o espaço é a expressão
adequada da sua vida interior e de suas oscilações, o mesmo acontece com as
relações que mantém com o grupo social a que pertence.
Tratamos exclusivamente aqui de elementos singulares que se veem forçados
a uma vida sem assento por sua instabilidade e mobilidade, embora também sejam
capazes de engajar uma verdadeira luta contra a sociedade. As uniões de indivíduos
que mudam periodicamente de lugar são pouco frequentes, comparadas, ao menos,
com os numerosos casos de temperamentos erradios que existem por toda a
estrutura social. Esses grupos, ao contrário dos nômades, não constituíam
sociologicamente comunidades migratórias, mas comunidades de migrantes. O
princípio vital do caráter aventureiro vai, contudo, contra a própria natureza de uma
organização que, como tal, dificilmente poderá evitar alguma forma de fixidez.
Existem, seguramente, esboços que poderiam qualificar-se como sociações
inconstantes, mas que, em qualquer caso, só chegariam a abranger e regular uma
ínfima parte da vida, interior e manifesta, de seus membros. Uma coletividade desse
gênero, sem domicílio, eram as agremiações ambulantes da Idade Média. Foi preciso
todo o espírito de companheirismo associativo próprio daquela época para que essas
pessoas itinerantes criassem uma ordem fraterna – cuja radical oposição ao resto
da sociedade se reduz, ao menos no plano formal, quando a sua importância
aumentou, chegando até a instituição de certos cargos e dignidades como a de
“mestre”. A situação é ainda mais clara nos casos em que o deslocamento atualiza
um antagonismo social preexistente entre duas partes do mesmo grupo. As viagens
Georg Simmel | 731
a distância na relação significa que o próximo está longe, o ser estrangeiro significa
contrariamente que o longínquo está próximo. A estraneidade constitui
evidentemente uma relação afirmativa, uma forma especial de ação recíproca. Os
habitantes de Sírio54 (se os houvesse) não seriam estrangeiros para nós – ao menos
no sentido sociológico do termo –, porque, mesmo tendo presença viva, seria como
se não existissem, se encontrariam para além do próximo e do longínquo. Ao invés
disso, o estrangeiro é um elemento do próprio grupo, como os pobres e as distintas
classes de inimigos interiores – um elemento cuja articulação imanente ao grupo
implica simultaneamente uma exterioridade e uma presença. As seguintes
observações, que de modo algum pretendem esgotar o tema, talvez possam explicar
como, no caso do estrangeiro, elementos distanciados e que parecem ser
incompatíveis podem criar uma forma de coexistência e de unidade na ação
recíproca.
Na história da economia o estrangeiro é frequentemente associado à figura do
comerciante – e o comerciante àquela do estrangeiro. Enquanto a economia está
essencialmente voltada para a subsistência, e todos os gêneros necessários são
produzidos internamente ou se troca apenas uma parte muito limitada deles, não se
necessita de nenhum intermediário dentro do círculo – só pode prever-se aqui a
presença de um comerciante para os produtos fabricados fora do círculo. E, se não
houver membros do grupo que saiam para procurar esses artigos (caso em que, os
“comerciantes forasteiros” seriam eles, naquela outra região), o comerciante tem que
ser estrangeiro – não existe outra possibilidade. Essa posição do estrangeiro torna-
se ainda mais evidente quando, em vez de abandonar de novo o lugar onde
desenvolve suas atividades, se instala nele. Pois, na maioria dos casos, isso só lhe
será possível quando possa viver do comércio. Em um círculo econômico fechado,
no qual a terra já foi distribuída e os artesãos sejam suficientes para satisfazer a
procura, haverá também um espaço para o comerciante – só o comercio permite
infinitas combinações e oferece à inteligência o meio de ampliar os horizontes e
aprofundar seus avanços, o que não fica normalmente ao alcance do produtor
54
Sírio, também chamada de Sirius. é a estrela mais brilhante do céu noturno, visível a olho nu.
Localizada na constelação do Cão Maior, dista 8,57 anos-luz da Terra (cada ano-luz equivale
aproximadamente a 9,460530×1012 km), sendo uma das estrelas mais próximas de nosso planeta.
(NT)
Georg Simmel | 735
primário, que tem escassa mobilidade e depende de uma clientela que evolui em
ritmo muito lento. O comercio pode sempre empregar mais pessoas que a produção
primária, constituindo por isso um campo propício para o estrangeiro, que chega de
certa maneira como um supranumerário em um círculo no qual todas as posições
econômicas estão ocupadas. A história dos judeus europeus proporciona o exemplo
clássico. Pela sua própria natureza, o estrangeiro não pode reivindicar a terra – não
só no sentido físico deste último termo, mas também no sentido metafórico de uma
substância vital que, embora não corresponda a um ponto concreto do círculo social,
está adscrita a uma de suas posições ideais. Mesmo nas relações mais íntimas de
pessoa a pessoa, ainda que o estrangeiro atraia, encante e envolva totalmente com
todas as qualidades possíveis, sempre despertará no outro a sensação de “homem
sem chão”55, enquanto se veja nele, precisamente, um estrangeiro. Ora, dedicar-se ao
comércio – e às transações puramente financeiras que são uma espécie de
sublimação daquela atividade – confere ao estrangeiro o caráter específico da
mobilidade, na qual se manifesta (por ocorrer dentro de um círculo bem definido)
aquela síntese do próximo e do distante, que representa o caráter formal da posição
do estrangeiro. Quem por essência é móbil, entra ocasionalmente em contato com
cada elemento particular, mas não se liga organicamente a nenhum deles por
relações fixas de parentesco, vizinhança ou profissão.
Esse conjunto de relações encontra outra expressão na objetividade do
estrangeiro. Como não tem raízes que o fixem a um substrato individual ou a suas
tendências divergentes, o estrangeiro adota globalmente em seu lugar a atitude típica
do “homem objetivo”, que não é meramente recuo e falta de participação, mas uma
amálgama sui generis de proximidade e afastamento, de indiferença e engajamento.
Recorde-se o que já referimos no capítulo dedicado à subordinação relativamente
aos casos em que o estrangeiro adquire uma posição dominante. O melhor exemplo
que pudemos encontrar foi o das cidades italianas que traziam de fora seus juízes,
porque os cidadãos nativos não estavam suficientemente isentos de interesses de
família ou partido. A objetividade do estrangeiro explica também o fenômeno
55
Difícil não pensar no “homem sem sombra” de Alexander von Chamisso (1781 — 1838), autor de um
clássico da literatura alemã (Peter Schlemihl wundersame Geschichte) que já na sua época foi
entendido como uma metáfora do homem sem pátria – à imagem de Chamisso, nobre francês
emigrado que dizia sentir-se "estrangeiro em toda a parte”. (NT)
736 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
56
No entanto, quando os atacados afirmam aquilo falsamente, a sua versão dos fatos resulta de uma
conhecida tendência dos superiores a exonerar, apesar de tudo, os inferiores que estavam até então
em uma estreita relação com eles. Isso porque, ao aceitar a ficção de que os rebeldes no fundo não
são os responsáveis, que foram influenciados por agitadores estrangeiros e que a rebelião não havia
partido deles, os superiores se desculpam a si mesmos, e recusam antecipadamente que o levante
pudesse ter o menor motivo real. (NS)
Georg Simmel | 737
se sente por ela – e somente começam a afastar-se quando desaparece (não se sabe
muito bem se como causa ou como efeito) a ilusão de viver uma relação única. Tão
cedo como nos sintamos céticos sobre o valor dessa relação, surge o pensamento
de que, em última instância, ela estava apenas a cumprir um destino humano
universal, uma experiência ocorrida inúmeras vezes, e que, se não tivéssemos
conhecido precisamente essa pessoa por acaso, qualquer outra teria assumido a
mesma importância para nós. Talvez nenhuma relação (por mais íntima que seja)
fique livre da mácula dessa ideia, nos termos da qual o que é comum a dois
provavelmente não pode ser exclusivo deles, porque pertence a um conceito geral
que inclui muitas outras possibilidades de um fato semelhante. Ainda que essas
possibilidades não se concretizem, mesmo que amiúde as esqueçamos, elas surgem
de vez em quando como uma sombra entre as pessoas, como uma névoa que só
necessita adquirir contornos definidos para despertar ciúmes. Em muitos casos,
pode ser uma estranheza mais geral ou, ao menos, mais difícil de superar que aquelas
que causam frequentemente conflitos e desentendimentos: é a sensação mais ou
menos desconfortável de um indivíduo quando percebe que muito embora exista
entre duas pessoas semelhança, harmonia e proximidade, essas convergências não
são patrimônio exclusivo de tal relação, mas uma questão de caráter mais geral, uma
potencialidade entre nós e inúmeras pessoas. Por outro lado, existe outra espécie de
“estraneidade” que exclui precisamente a presença de fatores comuns baseados em
um bem mais geral partilhado por ambas as partes, cujo caso típico é a relação que
os gregos mantinham com os “bárbaros” – e todas aquelas situações em que se
nega aos outros as qualidades que se consideram verdadeira e exclusivamente
humanas. O “estrangeiro” não tem mais, então, sentido positivo. A interação com ele
também não merece o nome de “relação”, e ele próprio deixou de ser o que em todas
as considerações precedentes se supôs que fosse: um membro do grupo.
É nessa qualidade que ele está simultaneamente próximo e longínquo, o que
significa fundar a relação em uma semelhança humana puramente geral. No entanto,
entre esses dois elementos se cria uma tensão particular porque a consciência de
que só se compartilha o absolutamente genérico (o que é estabelecido como padrão
da sua humanidade) mais acentua o fator que não é comum. Daí que, no caso dos
estrangeiros por nacionalidade, naturalidade ou etnia, a única coisa que se consegue
Georg Simmel | 739
ver neles é a sua origem estrangeira que, aliás, é (ou talvez fosse) comum a muitos
estrangeiros – negligenciando-se todos os outros dados individuais que poderiam
colaborar na sua melhor caracterização. Por essa razão, os estrangeiros nunca são
percebidos realmente como indivíduos, mas como estrangeiros de determinado tipo
– perante os quais o fator do afastamento não é menos geral que o da proximidade.
Essa forma é a que, por exemplo, está por trás de um caso tão específico como o do
imposto que os judeus deviam durante a Idade Média em Frankfurt e alhures.
Enquanto a quota-parte paga pelos burgueses cristãos variava no tempo conforme a
riqueza de cada um, o tributo de cada judeu era fixado de uma vez por todas. Essa
imutabilidade devia-se ao fato de que a posição social do judeu era decorrência da
sua condição de judeu, e não dos lucros materiais por ele auferidos. Em matéria fiscal,
qualquer outro burguês possuía certo patrimônio, e seu imposto podia seguir as
evoluções dele. Em compensação, o judeu era imponível enquanto judeu e sua
posição fiscal era invariável. Naturalmente, aquela percepção do estrangeiro se
manifesta de um modo mais radical quando desapareceram inclusive essas taxações
discriminatórias e imutáveis (que restringiam a própria individualidade do tributo), e
todos os estrangeiros passaram a pagar por cabeça o mesmo imposto. Apesar de
não possuir um vínculo que remeta à evolução natural do grupo, o estrangeiro é um
membro orgânico de tal conjunto – cuja vida unitária pressupõe o estatuto particular
desse elemento adventício. Contudo, só sabemos definir a unidade singular dessa
posição, dizendo que se compõe de certa proporção de proximidade e afastamento,
que caracteriza toda relação específica e formal com o estrangeiro 57.
II. Enquanto nos fenômenos estudados até aqui o interesse sociológico
começava no ponto em que se iniciava a influência de uma configuração particular
do espaço, para outros o ponto sociologicamente essencial reside no processo
inverso, quer dizer, no efeito que as determinações espaciais de um grupo sofrem
como decorrência de suas configurações e energias propriamente sociológicas. Nos
exemplos seguintes consideramos essencial este ponto de vista, ainda que não
57
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou ao “estrangeiro”. Doravante
Simmel retoma sua análise do “espaço e a sociedade”, nomeadamente dos “efeitos das formas de
sociação sobre a organização do espaço”. (NT)
740 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
possamos separá-lo totalmente do outro, da mesma maneira que também esse outro
ponto de vista não pode considerar-se independentemente deste.
A) A passagem de uma organização originária do grupo, fundada em laços de
sangue e origem comum, para outra mais mecânica, racional e política, se caracteriza
pela divisão do grupo de acordo com princípios espaciais. O que sobretudo se
manifesta dessa maneira é a unidade do Estado. O perigo que significa para o Estado
a organização baseada na origem comum (clânica ou tribal) consiste precisamente
em que esse tipo de organização é indiferente às relações espaciais. A coesão
produzida pelo parentesco é, em princípio, completamente independente do espaço
e tem algo de incompatível com a unidade política de base territorial. As organizações
políticas que se baseiam no princípio da origem comum tendem a desintegrar-se
quando atingem certos limites no seu desenvolvimento, porque cada uma das suas
subdivisões possui uma coesão rígida demais, orgânica, muito independente do
território comum. O interesse da unidade política exige, ao contrário, que seus
subgrupos (na medida em que tenham papel político) se constituam de acordo a um
princípio indiferente – e consequentemente menos excludente que o do parentesco.
Visto que, se queremos erguer a unidade estatal a uma altura igual por cima de todos
os elementos, as distâncias que existem entre eles (especialmente as
supraindividuais) devem estar limitadas de alguma maneira. O caráter absoluto,
exclusivo, do parentesco social entre os que descendem de um mesmo pai ou de um
ancestral comum, real ou imaginário, não se conjuga com a relatividade recíproca
das posições de todos os elementos do Estado, sobre os quais ele se erige como algo
único e absoluto. Ora, a organização do Estado em unidades territoriais, bem
delimitadas no espaço, responde melhor a essas exigências. Delas não se espera que
ofereçam a resistência ao interesse geral que, geralmente, produzem os reflexos
particularistas dos grupos baseados em relações parentais. Mais ainda: graças a
essas unidades territoriais resulta possível (ou necessário) que elementos das mais
diferentes classes, genéticas ou qualitativas, constituam uma unidade política desde
que estejam localmente próximos. Em suma, o espaço, reconhecido como
fundamento da organização, possui essa imparcialidade e uniformidade de
comportamento que o tornam o correlato apropriado do poder do Estado – que se
comporta de igual maneira a respeito do conjunto de seus súditos. O melhor exemplo
Georg Simmel | 741
58
Clístenes (565 a.C.. — 492 a.C.) foi um político grego que levou adiante a obra de Sólon e, como este
último, é considerado um dos pais da democracia ateniense. Embora fosse um membro da
aristocracia, liderou uma revolta popular e reformou a constituição da antiga Atenas, em 508 a.C.
– proporcionando aos cidadãos o direito de voto e de ocupar os mais diversos cargos na polis,
independentemente do critério de renda. (NT)
59
As filai eram tribos, em numero de dez, cuja divisão nada tinha a ver com laços de parentesco. Essas
tribos, por sua vez, eram compostas por demos, que constituíam a menor unidade política e se
assemelhavam a um distrito ou comarca, com administração própria. (NT)
742 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
60
Na Inglaterra e no País de Gales o hundred foi a principal subdivisão de um condado (shire)
– colocado sob o controle de um shire-reeve (palavra da que derivou “xerife”). Nas suas origens,
quando a instituição foi introduzida pelos saxões, entre 613 e 1017, um hundred tinha o tamanho
suficiente para alimentar 100 famílias. À frente delas se encontrava um hundred-man ou hundred
eolder, encarregado da administração, da justiça, do recrutamento das tropas, e de seu comando. O
cargo não era hereditário, mas a partir do século X só era confiado a certas famílias. Posteriormente,
com a especialização das forças armadas, as funções militares dos hundreds se perderam e
converteram-se em uma subdivisão administrativa e judicial. Suas diversas funções permaneceram
até o século XIX, quando começaram a ser transferidas para novas instituições baseadas no condado
ou no município. Apesar de não terem desde então nenhum papel, os hundreds não foram formalmente
abolidos. (NT)
Georg Simmel | 743
61
Dithmarschen é uma pequena região histórica da Alemanha septentrional (no Eslésvico-Holsácia)
constituída por charnecas, pântanos e pôlderes. Estende-se numa área de 40 km por 25 km entre os
rios Elba, Eider e o mar do Norte. Seus habitantes, embora nominalmente submetidos ao Sacro Império,
viveram independentes de fato. Seu país fez parte sucessivamente do condado de Stade, do ducado
de Saxônia (1144-1180), e do arcebispado de Bremen (contra o qual se revoltaram para formar parte
do Eslésvico). Em 1474, Cristiano I, rei de Dinamarca, obteve do imperador Federico III a reunião do
Eslésvico e a Holsácia, bem como da região de Dithmarschem em um ducado atribuído à coroa
dinamarquesa, mas o povo de Dithmarschem se sublevou. O rei João I de Dinamarca lhes fez em vão
a guerra em 1500. E apenas em 1559, Federico II (sobrinho-neto do anterior) os submeteu com a ajuda
dos duques de Holsácia, sendo então o país dividido. (NT)
62
Antiguidade clássica (também chamada de era clássica, período clássico ou idade clássica) é o
período da história cultural entre o século VIII a.C. e o século V d.C. centrado no mar Mediterrâneo,
compreendendo o mundo greco-romano. (NT)
744 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
63
A senhoria banal (ou senhoria nobre) era, no medievo europeu, um território cujo senhor adquiria
igualmente direitos administrativos e judiciais sobre as pessoas que moravam nas terras de seu
domínio. (NT)
64
Cujus regio, ejus religio é uma frase latina que significa "de quem é a região, dele se siga a religião",
ou seja, os súditos seguem a religião do governante. Trata-se de um princípio tão antigo como o
cristianismo de Estado (estabelecido originariamente na Armênia e no Império Romano pelo
imperador Constantino) que ganhou nova vida quando da Reforma protestante – sendo adotado
nomeadamente pelo tratado de paz de Augsburgo de 1555. (NT)
Georg Simmel | 747
césares pôde até seu fim passar por um território dependente de uma cidade, assento
desse poder centralizador – assim como mais tarde aconteceria, respectivamente,
com as monarquias absolutas de França e Inglaterra e as cidades de Paris e Londres.
Essa forma sociológica talvez tenha alcançado sua expressão espacial mais
consequente no Estado teocrático tibetano – no centro de cuja capital, Lassa, existe
um grande mosteiro, no qual convergem as principais estradas do país e onde está a
sede de seu governo65. Contrariamente, quando no fim da dinastia carolíngia o Estado
germânico se transformou em um império federativo, ele prescindiu de qualquer
centro político materializado no espaço, contentando-se com uma sede itinerante
ligada a uma pessoa. A carência de capital fixa e o deslocamento incessante do
soberano foram as consequências espaciais lógicas dessa estrutura política. O
caráter formal de tal relação acentua-se ainda mais quando a combinação ou
concorrência de certos acontecimentos em um Estado traz acarretada, em dado
momento, a mudança de sua capital de um lugar para outro. Tal circunstância pode
acontecer se a situação precedente está tão estreitamente associada à capital (seja
em razão da técnica administrativa ou de um modo puramente psicológico) que a
nova conjuntura exige logicamente um deslocamento da sede principal da
administração do país – pouco importando, no fundo, o lugar para onde se traslade
a capital, desde que seja alhures. Assim, os reinos escandinavos transferiram amiúde
para outro local suas capitais quando da introdução do cristianismo, bem como a
chegada de um novo monarca ao trono tem frequentemente motivado (sobretudo no
Oriente) o deslocamento da capital, projetando no espaço a mudança funcional.
Esse traslado é mais significativo nos casos em que a distância física entre os
dois lugares fica mais reduzida – como as limitadas mudanças espaciais carecem
geralmente de efeitos objetivos, elas põem em destaque com maior clareza a própria
existência do deslocamento. Na África meridional, quando muda o chefe entre os
povos da natureza, acontece com frequência que, para tornar bem visível até que
ponto o grupo depende dele, a sua residência (único hábitat que possa comparar-se
65
Provavelmente o autor se refere ao Palácio de Potala, edificado em 637 em um sítio usado para
refúgio de meditação pelo rei Songtsen Gampo. A construção atual (bastante ampliada e reformada)
data de 1645 e foi a principal residência dos dalai-lamas até à fuga do décimo quarto deles à Índia,
em 1959. Atualmente é um museu estadual da China, inscrito pela UNESCO no Patrimônio Mundial da
Humanidade. (NT)
748 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
66
Os tsuanas são o grupo étnico majoritário do Botsuana. Contudo, esse termo é por vezes utilizado
para indicar os naturais desse país de forma simples, podendo dessa maneira incluir os boxímanes e
outros. No século XIX, uma pronúncia comum de “botsuana” era “bechuania”, pelo que os europeus
passaram então a designar os habitantes da área por “bechuanos”. (NT)
Georg Simmel | 749
67
Voz alemã que denominava o clã, a tribo e a linhagem. Por fidelidade ao autor, preferimos manter
no texto principal o exemplo de Simmel; contudo é bom que se diga que o exemplo pode aplicar-se
igualmente à palavra lusa “cepa”, que entre as suas acepções possui a de “estirpe, linhagem ou tronco
de família”, e cuja etimologia pode remontar-se à mesma raiz sânscrita, através do latim cippus e do
grego klêma. (NT)
750 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
68
Micronédia e Melanésia são duas regiões situadas, respectivamente, no Pacífico ocidental (entre as
Filipinas, a Indonésia e a Nova Guiné), e no extremo oeste do mesmo oceano, ao nordeste de Austrália.
A primeira está formada por centenas de pequenas ilhas agrupadas em vários arquipélagos; enquanto
a segunda compreende ilhas de porte médio com uma população autóctone de características étnicas
distintas às dos nativos da Micronésia. A Alemanha possuiu até 1914 várias colônias em ambas as
regiões. (NT)
Georg Simmel | 751
postes erguidos pelos homens é aparentemente menos poético e mais tosco que a
adoração de uma fonte ou de uma árvore, na realidade, a primeira daquelas
homenagens supõe uma proximidade mais confiante entre o deus e os fiéis. No
objeto natural, o deus mora e o homem, que se aproxima dele somente a posteriori e
por acaso, não tem parte nisso. Em compensação, quando o deus se digna a morar
na humilde obra realizada pela mão de um homem, isso estabelece entre eles uma
relação completamente distinta: o humano e o divino acharam um lugar comum que
precisa dos dois fatores conjugados. A relação sociológica entre o deus e seus
adoradores (e só essa relação) adquire então materialidade em uma estrutura que
ocupa um lugar no espaço.
Pareceria que esse vínculo sociológico (que implica a sua localização em
determinados lugares e estruturas permanentes) ocasiona (pelo simples aumento
gradual de sua força e da proximidade dele resultante) as conhecidas disposições
que proíbem os que participam desse gênero de relações abandonarem doravante o
local onde elas se têm objetivado. Na verdade, o que acontece é o oposto. Se o grupo
impõe tais constrangimentos explícitos, é precisamente porque ele não acredita
suficientemente na sua própria coesão e na capacidade intrínseca de determinar o
comportamento de todos seus elementos. Ao menos, a permanência forçada em
dado lugar (bem como o contrário) pode corresponder a duas e inversas relações
sociológicas de poder. A liberalidade com a qual o Estado moderno trata seus
cidadãos emigrantes (permitindo que eles o abandonem completamente ou que
continuem gozando de seus direitos de nacionais mesmo estando longe dele) prova
que a consciência coletiva de sua identidade nacional e de seu poder chegou a um
nível que o torna superior a todos seus elementos particulares. Contrariamente, a
difusão espacial da família é (em comparação com sua concentração permanente no
lar ancestral) um sintoma do enfraquecimento progressivo do princípio familial. O
essencial nas medidas coercivas que se propõem alcançar a coerência do grupo
assegurando a presença dos indivíduos em um lugar específico (laço que se tornaria
assim no fundamento explícito da unidade do grupo) radica na vontade de privar a
seus elementos de todo direito que não possam exercer no local em que se
encontrem. Essa é uma característica típica dos preceitos e regras que antigamente
regiam as instituições, sobretudo antes da economia monetária – efeito e causa da
752 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
69
Filipe Augusto (1165 – 1223), foi rei da França de 1180 até sua morte. Era o filho de Luis VII e de sua
terceira esposa Adélia de Champanha. É um dos reis mais admirados e estudados da época medieval,
não só pela extensão do seu reinado, como também pelas importantes vitórias militares, pelo aumento
dos domínios diretos da coroa (principalmente à custa dos reis da Inglaterra), e pelo fortalecimento
da monarquia contra o poder dos senhores feudais. (NT)
70
Saint-Quentin é um município francês, situado sob o rio Soma, no departamento do Aisne, na
histórica Picardia, atual região dos Altos da França. (NT)
Georg Simmel | 753
71
O ducado de Brabante foi um estado do Sacro Império germânico estabelecido em 1183.
Desenvolveu-se a partir do landgraviato de Brabante e formou o coração dos Países Baixos históricos.
Possuía sete municípios: Antuérpia, Bois-le-Duc, Bruxelas, Léau, Lovaina, Nivelas e Tirlemont. (NT)
72
Os recabitas constituíam uma comunidade ascética de israelitas contemporâneos ao profeta
Jeremias, que no Antigo Testamento bíblico (Jer. 35, 8) os identifica como descendentes de Jonadabe,
filho de Recabe, o queneu, o qual viveu por volta do século IX a.C e teria ensinado seus descendentes
a se absterem de vinho, bem como não edificarem casas ou praticarem a agricultura. (NT)
754 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
73
O limes (limite, em latim) era o conjunto das fortificações, delimitações e ocupações sistemáticas
romanas nas bordas do seu Império. Elas assumiram um papel estratégico capital, pois tinham como
função conectar as diversas partes do território romano e incluir dentro de seus limites áreas de fácil
colonização, excluindo automaticamente aquelas cujas condições de ocupação não eram favoráveis.
(NT)
74
Os usípetes (ou usípios) e os tencteros foram dois povos germânicos, conhecidos como cavaleiros
excelentes que, acossados pelos suevos, teriam se refugiado no território dos menapés, na margem
do Reno oposta de onde fica Colônia hoje, depois de expulsos de suas terras tradicionais. Argumenta-
se que a pátria original dos dois povos seria a área do rio Weser. (NT)
75
Os suevos foram um grupo de povos germânicos originários da região compreendida entre os rios
Elba e Oder. Parte deles constituiu uma ameaça periódica contra os romanos no Reno, até que, no final
do império, os alamanos, incluindo elementos dos suevos, quebraram as defesas romanas. Uma parte
deles permaneceu na Suábia (região alemã, cujo nome deriva do gentílico dos invasores), enquanto
os outros criaram um reino na Galiza, que veio a ser o "embrião" de Portugal. (NT)
76
Os danos eram um povo germânico que vivia na região das ilhas e, posteriormente, na península de
Jutlândia da atual Dinamarca e na Escânia, no sul da Suécia. Eram da mesma linhagem dos sulones e
teriam expulsado os hérulos, de cujas terras então se apossaram. Quanto aos alamanos (em alemão,
Alemannen) eram um conjunto de povos germânicos estabelecidos no curso superior, médio e inferior
do rio Elba e ao longo do rio Meno. Estiveram em conflito permanente com o Império romano.
Inicialmente situados ao norte da província de Récia, foram contidos pelos romanos até meados do
século III, após dois séculos de confrontos. Conseguiram deslocar-se aos poucos para o oeste e
Georg Simmel | 755
tribos ameríndias procuravam entre elas separação por uma larga faixa de terra que
não fosse propriedade de ninguém. Com toda a certeza, as razões para isso residem
muito simplesmente nas necessidades de proteção dos grupos – suficientemente
prementes para criar uma relação que permite (como nenhuma outra) tirar vantagem
do espaço como extensão sem qualidade, como mera distância. Em geral, é a
fraqueza ou a vulnerabilidade que obrigam a tomar essas medidas, tal como, às
vezes, também compelem o indivíduo a procurar a solidão. Contudo, o mais
importante, do ponto de vista sociológico, é que a vantagem defensiva assim obtida
se paga com a consequente renúncia à ofensiva – conforme a ideia que inspira todo
o processo e que pode ser resumida na seguinte afirmação: “se não me fizerdes mal,
eu também não vos farei mal“. Esse esquema não se aplica apenas entre pessoas
que não têm nada a ver uma com a outra, mas também serve de máxima, assertiva e
consciente, de valor geral para indivíduos que possuem muitos pontos de contato e
que, portanto, se encontram frequentemente enfrentados a estímulos e perigos de
atritos e embates. Pelo efeito externo, essa máxima se conforma a outra regra de
conduta universal (serei para ti o que tu serás para mim) embora internamente o seu
significado seja outro – o comportamento da parte que enuncia a última regra,
mesmo que dependa da conduta da outra, revela ainda certo caráter agressivo ou, ao
menos, uma preparação para qualquer eventualidade. A primeira máxima, em
compensação, apesar de tomar a iniciativa, expressa todo o contrário da ofensiva e
da disposição para a luta – já que pelo simples fato de depor unilateralmente as suas
armas pretende que a outra faça o mesmo, seja qual for a disposição de seu ânimo.
No entanto, entre os numerosos casos em que o comportamento é determinado pela
máxima “se não me fizerdes mal, eu também não vos farei mal“, nenhum é tão claro
e visível como aquele do território desabitado que um grupo deixa perto de sua
fronteira – pois nesse caso a tendência interior se materializa perfeitamente na
forma espacial.
O princípio oposto ao deserto fronteiriço está representado pela convicção
enunciada por Tácito: “quaque terrae vacuae eas publicas esse” 77. Os germanos já
instalar-se definitivamente no território que compreende uma parte das atuais Vorarleberga (Áustria),
Suíça, Bade-Vurtemberga (Alemanha) e Alsácia. (NT)
77
Locução latina que significa que “as terras vazias são de todos”. (NT)
756 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
já existentes na própria esfera e faz de tudo que não era aproveitado antes uma
propriedade pública, no sentido de que o primeiro a aparecer pode tomar o que bem
quiser ou puder.
Finalmente, vemos fenômenos análogos no âmbito da ação em geral,
considerada à luz da moral. Como uma organização social nunca possui suficientes
leis e forças para garantir a observância absoluta por parte de seus membros da
conduta moral socialmente desejada, viu-se obrigada a esperar que eles se
abstivessem voluntariamente de aproveitar as lacunas das leis. O homem honrado
está envolvido por uma esfera de discrição no dizer ou no fazer que ele mesmo se
impõe relativamente a outrem, de renúncias a ações egoístas, que os pouco
escrupulosos realizam sem problemas porque apenas um impulso moral interno
poderia detê-los. O homem moral se encontra assim amiúde indefeso, porque não
quer usar as mesmas armas que o traste, que aproveita todas as vantagens
disponíveis, desde que possa fazê-lo sem correr perigo. Entre os homens honrados
existe um vácuo ideal no qual o sujeito imoral se introduz furtivamente para tirar
proveito. O teor e a natureza sociológica de círculos sociais inteiros se determinam,
no seu conteúdo e na forma sociológica, segundo a proporção em que aquela
renuncia às possibilidades egoístas se insere entre os indivíduos, protegendo cada
um contra os ataques de todos, ou de acordo com a extensão em que vigore como
determinante da conduta geral a máxima: “aquilo que não é proibido, é permitido”.
Percebe-se, assim, pela infinita diversidade de todos esses fenômenos, uma unidade
formal na diferença dos gêneros de conduta. Aquela contraposição entre o princípio
do deserto fronteiriço e o ânimo contrário, segundo o qual o território não possuído
pode ser ocupado por qualquer um, é então destituída de seu caráter contingente e
extrínseco, e reconhecida, na clareza de seu fundamento, pelo que ela é: a encarnação
concreta, o exemplo realizado no espaço, de uma típica relação recíproca funcional
entre indivíduos ou grupos.
A neutralidade do espaço inabitado adquire um sentido completamente
distinto quando ela o torna apto para serviços positivos. Vamos ver assim como a
sua função, até aqui limitada a servir de separação, pode consistir também em
funcionar como nexo. Às vezes, certos encontros de pessoas que seriam impossíveis
no território de alguma delas podem ter lugar em território neutro – cuja forma
758 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
78
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “boundary place between two or more marks”... “a
neutral territory where men might meet”… “if not on friendly terms, at least without hostility”. (NT)
Georg Simmel | 759
que nenhuma das duas partes é obrigada a abandonar o seu próprio território. De
fato, assim como ao falarmos do “presente” não nos referimos ao momento presente
no sentido estrito da palavra, mas a um período de tempo no qual se amalgamam
fragmentos do passado e do futuro (considerados em referência a este exato
momento), da mesma maneira a linha fronteiriça se terá convertido numa faixa de
terra mais ou menos larga até transformar-se numa verdadeira zona, onde cada
parte, mesmo se dá alguns passos além da linha da marca do próprio território, não
entra na esfera do outro. O espaço neutro se converte dessa forma em um tipo
sociológico importante. Eis que, em qualquer lugar que aconteça um conflito entre
duas partes, a sua evolução dependerá em larga escala da possibilidade que cada
um dos adversários tenha de encontrar o outro sem entrar no seu território, quer dizer,
sem temer o ataque do inimigo nem ter de exigir a sua rendição. Se essa possibilidade
de encontro for confirmada, sem que nenhum dos dois tenha precisado abandonar
as suas posições, inicia-se esse processo de objetivação e diferenciação graças ao
qual a consciência das partes pode separar o objeto do conflito de outros interesses
que não têm nada a ver com ele e sobre os quais um acordo ou uma partilha são
possíveis – ainda que certos espíritos menos cultivados ou mais impulsivos os
incluam nas argumentações. Esses interesses inspiram geralmente (quando há um
nível cultural elevado) os argumentos ad hominem79 nos conflitos de princípios, e as
questões de princípio nos conflitos pessoais – em especial nos relativos às esferas
da sociabilidade, à Igreja, ao Estado, à arte ou à ciência, sempre que reina nelas uma
trégua, capaz de incluir desde seu entorno ideal até os locais que lhes são
consagrados. Há inúmeros exemplos que nos mostram as várias esferas em que são
possíveis as relações, as reuniões, o contato objetivo entre parcialidades adversas
quando referido a questões passíveis de conciliar-se, sem que isso signifique que o
conflito cessou. Em tais casos cada parte transpõe os limites que comumente a
separam do adversário, mas sem entrar no seu território. Quando a zona fronteiriça
vazia, desabitada entre dois povos faz às vezes de espaço neutro para as trocas ou
79
O argumento ad hominem (em latim, “contra a pessoa”) é uma falácia identificada quando se ataca
a pessoa que apresentou um argumento e não o argumento que ela apresentou. Assume muitas
formas, por exemplo, o caráter, a nacionalidade, a etnia ou a religião da pessoa; ou se sugere que ela,
por ter algo a ganhar com o tema em debate, é movida pelo interesse ou se diz mal dela por associação
ou pelas suas companhias. (NT)
760 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
qualquer outra relação social, representa, por seu caráter negativo, a estrutura mais
simples e visível daquelas que trabalham em favor dessa forma espantosamente
diferenciada de relação entre elementos antagônicos – tanto que, afinal de contas, é
o próprio espaço vazio que se revela como sustentáculo e expressão da ação
recíproca sociológica.
X. A ampliação dos grupos e a formação da individualidade
1
Uma proposição afirmativa ou negativa de sentido completo e intenção declarativa, que pode ser
verdadeira ou falsa. (NT)
762 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
2
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “articles of foreign demand”. (NT)
3
No manso senhorial, local onde o senhor habitava, juntamente com a sua família, encontravam-se
as mais importantes construções, como as fortificações, os fornos e os moinhos. Nessas terras, os
servos trabalhavam alguns dias da semana exclusivamente para o senhor. (NT)
Georg Simmel | 765
4
Membros da seita protestante inglesa conhecida como Sociedade dos Amigos, fundada no século
XVII. O quacrismo baseia-se na busca da manifestação divina de maneira pessoal, e não por meio de
sacerdotes ou ministros da Igreja. A presença de Deus dentro de cada pessoa é chamada pelos
quacres de “luz interior”, que eles acreditam ser a guia de suas vidas. O grupo tem uma longa tradição
de trabalhar pela paz e contra a guerra, sendo ademais conhecido por sua oposição à escravidão, aos
maus-tratos e à tortura contra prisioneiros e à violência contra a mulher. (NT)
768 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
sentam-se em silêncio à espera de uma mensagem divina), qualquer fiel que a recebe
pode converter-se em pregador e compartilhar seu conhecimento com os outros. Em
contrapartida, a comunidade acompanha e supervisiona os assuntos pessoais. O
casamento, por exemplo, não pode ser celebrado sem a prévia aprovação de um
comitê constituído para examinar o caso. Os quacres, por conseguinte, são
individuais no comum e socialmente vinculados no individual. Os dois aspectos
dessa formulação encontram exemplo nas diferenças de configuração política dos
estados do norte e do sul dos Estados Unidos, sobretudo na época precedente à
Guerra de Secessão5. Os estados da Nova Inglaterra6 tiveram desde o começo um
acentuado caráter de sociedade local, constituindo townships 7 com uma clara
sujeição do indivíduo à comunidade – relativamente pequena e muito autônoma. Já
os estados do sul, que foram povoados por indivíduos aventureiros individuais, sem
inclinação pelo governo autônomo local 8 , logo constituíram counties, unidades
administrativas extensas sobre as quais recaía o verdadeiro poder estadual
– enquanto um estado da Nova Inglaterra não passava de ser uma reunião de
distritos autônomos 9 . As personalidades individuais mais independentes do sul,
quase anárquicas, concordavam com a estrutura estadual, mais abstrata e
desprovida de expressão, mas que as reunia. Contrariamente, as personalidades do
norte, associadas à solução dos problemas específicos de seu distrito, se inclinavam
a constituir formações urbanas menores dotadas de uma individualidade local
marcante e certas particularidades idiossincrásicas.
Com todas as ressalvas anteriormente apontadas, pode-se mencionar a
5
A Guerra de Secessão foi uma guerra civil travada nos Estados Unidos de 1861 a 1865, entre o “Norte”
(a União) e o “Sul” (os Confederados). Começou principalmente como resultado de uma longa
controvérsia sobre a escravidão dos negros. Os legalistas do norte, que também incluíam alguns
estados geograficamente ocidentais e do sul, proclamaram apoio à Constituição e enfrentaram os
secessionistas confederados do sul, que defendiam os direitos dos estados para manter a escravidão
e tinham iniciado as hostilidades. (NT)
6
A Nova Inglaterra é uma região geográfica extraoficial de grande valor histórico dos Estados Unidos,
localizada na ponta nordeste do país, que inclui os estados de Connecticut, Maine, Massachusetts,
New Hampshire, Rhode Island e Vermont. (NT)
7
Em alguns estados norte-americanos um township (ou civil township) é uma pequena área
geográfica que constitui uma unidade do governo local, geralmente um distrito ou divisão civil dos
condados ou counties – as principais entidades divisionais criadas pelos estados federados.
Portanto, os townships variam de estado para estado em seus poderes e sua organização. (NT)
8
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “local self government”. (NT)
9
Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “combination of towns”. (NT)
Georg Simmel | 769
10
Vide nossa nota 14 neste mesmo capítulo. (NT)
770 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
11
A luta contra os mongóis da Rússia se deu na sequência de uma invasão empreendida por um vasto
exército de nômades de origem mongol a partir de 1223 contra o Estado russo de Quieve, a essa altura
fragmentado em vários principados. As hostilidades tiveram início formal em 31 de maio de 1223,
quando os mongóis, com um exército de 25 mil homens, derrotaram os exércitos dos vários
principados russos na grande batalha do rio Kalka e só terminaram três séculos depois com a batalha
do rio Ugrá dos dias 8 a l2 de outubro de1480, que põe fim ao que os historiadores russos denominam
o “jugo tártaro-mongol”. (NT)
12
Otto Leopold Von Bismarck Schonhausen, príncipe de Bismarck, duque de Lauenburg
(1815 — 1898) foi um nobre, diplomata e político prussiano que se converteu no estadista mais
importante da Alemanha do século XIX e é reconhecido como uma destacada personalidade
internacional de sua época. Coube a ele lançar as bases dos Segundo Império ou Reich (1871-1918),
que levou os países germânicos a conhecer pela primeira vez na sua história a existência de um Estado
nacional único. (NT)
Georg Simmel | 771
em uma cidade francesa de 200 mil habitantes do que em uma cidade alemã de 10
mil. Ele ancorava essa afirmação no fato de a Alemanha estar estruturada por um
grande número de estados pequenos. Em um grande Estado unitário e centralista só
resta aos municípios certa autonomia espiritual. Por essa razão, quando uma de ditas
comunidades urbanas, pequena por força das coisas, se sente uma coletividade
digna de consideração, se encontrará nela inevitavelmente essa valoração excessiva
do mínimo que está no âmago do espírito provinciano. Em um Estado de menores
dimensões, o município pode, ao invés, sentir-se mais como uma parte do conjunto.
Por esse motivo, não precisa restringir-se exclusivamente a si mesmo, não possui
tanta individualidade e, por consequência, pode fugir com mais facilidade a esse fator
violento do nivelamento interior dos indivíduos cuja consequência é uma consciência
acentuada dos acontecimentos e interesses mais insignificantes e mesquinhos.
Dentro de um pequeno círculo por via de regra só pode conservar-se a individualidade
de duas maneiras: como chefe (pelo qual as personalidades fortes podem preferir ser
“cabeça de rato”13), ou passando a ter em relação ao pequeno círculo uma existência
exterior, pelas margens. Contudo, isso só é possível com uma grande firmeza de
caráter ou aquela amabilidade fingida característica das pequenas cidades.
Os círculos dos interesses sociais nos circundam e, quanto mais
estreitamente nos cingem, menores são. No entanto, o homem nunca é um mero ente
coletivo, assim como não é sempre um simples ente individual. Por isso não estamos
diante de um mais-ou-menos, de alguns aspectos da existência em que apareça a
predominância de um traço sobre o outro. Esse processo pode ter estágios em que
aspectos da pertença aos círculos sociais pequenos e grandes se sucedam. A adesão
a um círculo pequeno e coeso é em geral menos favorável à subsistência da
individualidade, assim como sua existência em uma comunidade cultural grande
pode tornar a pertença a uma família um fator capaz de favorecer psicologicamente
a individualização. O homem está desarmado perante a sociedade. Apenas quando
ele entrega uma parte do seu eu absoluto a outras pessoas e se vincula a elas, pode
manter ainda o sentimento de individualidade, sem voltar-se em excesso para dentro
de si mesmo, sem mágoas nem extravagâncias. Só assim, ampliando sua
13
Alusão ao ditado que afirma que “é melhor ser a cabeça de um rato do que a cauda de um leão”.
(NT)
772 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
14
Aqui nosso autor tem utilizado na edição alemã a voz germânica “Socialisierung” (e não
“Vergesellschaftung”, que temos traduzido para o português como “sociação” e alude aos contatos e
relações sociais de reciprocidade). Neste lugar Simmel refere-se, então, ao processo que hoje em
quase todas as línguas ocidentais se chama de “socialização” (ou seus respectivos equivalentes) e
que evoca (só após os anos 1940) ao conjunto de atividades através do qual um indivíduo se torna
membro funcional de uma comunidade, assimilando a cultura que lhe é própria. (NT)
Georg Simmel | 773
15
Como por exemplo, os platis, lebistes e molinésias entre outros, cujos filhotes assim gerados já
nascem aptos para comer, geralmente órgãos unicelulares, naúplios de artêmias, etc. (NT)
16
A construção de ninho (também chamada de nidificação) é um tipo de comportamento comum
na reprodução de várias espécies de peixes da família dos anabantídeos, como o peixe paraíso.
Entretanto, este importante comportamento de cuidado parental é também reportado por peixes
associados a recifes de corais como o grama brasileiro. (NT)
17
Conforme observado entre certos macacos antropoides, por exemplo. (NT)
774 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
relativo em relação aos grupos superiores, ainda que seja uma coletividade em
relação a seus próprios elementos. Por outras palavras: quando, como aqui, se
estuda a correlação habitual entre três instâncias caracterizadas por seu nível (o
elemento individual primário, o círculo pequeno e o círculo amplo), em alguns casos
um único e mesmo conjunto poderá desempenhar simultaneamente os três papéis,
de acordo com as relações nas quais se envolva. Isso não reduz de modo algum o
valor cognitivo da constatação dessa relação: demonstra, ao contrário, seu caráter
formal, capaz de ser aplicado em qualquer conteúdo.
Naturalmente, há muitos conjuntos sociológicos que concentram
exclusivamente no homem individual o valor da individualidade e a necessidade de
unicidade que experimentamos. Nesses conjuntos, perante o homem individual,
qualquer coletividade é considerada, em toda circunstância, como “o outro” por
excelência. Já vimos, porém, que o sentido e o desejo de individualidade nem sempre
se detêm no limiar da personalidade individual, pois que são algo mais geral e formal,
algo que pode referir-se a um grupo no seu todo, desde que esteja enfrentando outro
grupo mais vasto, comparado com o qual aquela figura coletiva (agora relativamente
individual) pode adquirir sua autonomia consciente, seu caráter único ou indivisível.
É isso que explica certos fenômenos que aparentemente contradizem a correlação
enunciada aqui, como o exemplo seguinte extraído da história dos Estados Unidos o
demonstra. O partido antifederalista (que um dia foi democrata-republicano e hoje é
conhecido como democrata tout court) tem defendido a independência e soberania
dos estados à custa da centralização e do governo nacional, invocando sempre o
princípio da liberdade individual e da não ingerência da coletividade nos assuntos do
indivíduo. Não há aqui contradição alguma com a liberdade individual, referida a um
círculo relativamente grande, porque o sentimento da individualidade recaiu
inteiramente sobre o círculo menor que, neste caso, inclui grande número de
indivíduos e passa a, desempenhar a mesma função do indivíduo unitário.
O limite entre as esferas nas que prevalece a aspiração individualista e aquelas
outras em que domina a sua antítese não pode ser determinado em princípio, porque
estamos falando de possíveis desejos pessoais profundos que podem se alastrar por
indeterminado número de estruturas concêntricas próximas. Às vezes, a intensidade
da aspiração individualista fica evidente desde o início conforme esferas
776 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
18
Esta citação pretence a James Bryce, The American Commonwealth, Vol. 3, The Party System &
Public Opinion, Nova Iorque, Macmillan, 1899. Em inglês no texto da edição alemã de Simmel: “It is too
large for the personal interests of the citizens: that goes to the township. It is too small to have
traditions which command the respect or touch the affections of its inhabitants: these belong to the
state ” (NT)
778 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
19
O Romantismo alemão (Romantik) surge em um contexto de resistência ao movimento iluminista
francês como crítica ao modo excessivamente racionalista e materialista de conceber o homem e o
Georg Simmel | 781
trabalho. Supõe que o indivíduo ocupa (e deve ocupar) um posto que mais ninguém
pode preencher, que esse lugar lhe aguarda na organização do conjunto, e que por
isso o homem deve procurá-lo até encontrá-lo, que esse caráter único e
incomparável do seu ser e essa diferenciação crescente de sua contribuição
proporcionam o sentido pessoal e social e o sentido psicológico e metafísico da
existência humana. Apesar de que o século XVIII não considerou este conceito de
individualismo contraditório com o seu, parece indubitável que não tem nada a ver
(que está em contradição fundamental) com aquela ideia do “homem em geral”, da
natureza humana que existe por igual em todos e que só precisa da liberdade para se
fizer efetiva. De um lado, valoriza-se o que é comum a todos os homens, do outro
aquilo que os diferencia. Contudo, essas duas noções coincidem exatamente na
correlação que ora tentamos explicar. A ampliação do círculo, que acompanha a
primeira noção de individualismo, favorece igualmente a aparição da segunda.
Porque embora a segunda noção não se refira a toda a humanidade; mesmo que em
vez de imaginar os indivíduos como átomos iguais e absolutamente “livres” os veja
como entes que (graças a suas particularidades e a divisão do trabalho advinda) se
complementam e se necessitam mutuamente; ainda que historicamente essa noção
tinha favorecido o nacionalismo e um certo antiliberalismo em vez do
cosmopolitismo, ela também necessita, para poder surgir e subsistir, que o grupo
atinja dimensões relativamente grandes. Não faz falta insistir no fato de que a
simples ampliação do círculo econômico, o aumento da população e a
internacionalização da concorrência contribuem para a imediata especialização do
trabalho. O mesmo acontece com a diferenciação espiritual, sobretudo porque ela
surge geralmente do encontro de talentos intelectuais latentes com produtos
intelectuais objetivamente presentes. A relação mútua dos sujeitos ou a pura energia
interior do homem raramente são suficientes para fazer com que surjam todas as
particularidades espirituais do indivíduo. Ao contrário, para isso parece necessário
que alcance determinada extensão o que chamamos de espírito objetivo, as tradições
e as experiências da espécie fixadas em milhares de formas, da arte e do saber que
se encontram em figuras tangíveis, de toda a cultura que o grupo histórico possui
mundo (que a juízo de seus cultores estaria na origem do reducionismo positivista) e a reivindicação
nostálgica de um mundo antigo mais ou menos fantasiado. (NT)
782 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
20
Contradictio in adjecto é, em latim, uma contradição entre partes de um argumento. Ocorre quando
a característica denotada pelo adjetivo está em contraste com o substantivo. (NT)
21
Doutrina fundada por Zenão de Cício (335 – 264 a.C.), e desenvolvida por várias gerações de
filósofos, que se caracteriza por uma ética em que a imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a
aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, o único apto a
experimentar a verdadeira felicidade. (NT)
Georg Simmel | 783
político social que liga o indivíduo com os outros é a fonte das normas éticas, o
interesse estoico, no que diz respeito à prática, refere-se apenas à pessoa individual.
A elevação da pessoa para alcançar o ideal prescrito pelo sistema virou a
preocupação exclusiva da prática estoica, tanto que as relações dos indivíduos entre
si apenas apareciam como um meio para conseguir aquele fim individualista ideal. É
verdade, todavia, que o conteúdo desse fim era determinado pela ideia de uma razão
universal que atravessa tudo o que é individual. Essa razão – de cuja realização no
homem, conforme o ideal estoico, todos os indivíduos participavam –, constituía o
laço de igualdade e fraternidade entre todos eles, acima das barreiras da
nacionalidade e das fronteiras sociais. Por isso, o individualismo dos estoicos
encontrou complemento no seu cosmopolitismo. A ruptura dos laços sociais mais
próxmos (favorecida nessa época pela situação política e por considerações
teóricas) deslocava o centro de gravidade do interesse ético ora para o indivíduo, ora
para o círculo mais amplo, a saber, aquele ao qual pertence qualquer ser humano.
A realidade histórica seguiu esse esquema com inúmeras mudanças. Se o
cavaleiro medieval combinava um modo de vida orientado para a demonstração do
valor individual e um marcado caráter cosmopolita, se a sua determinação de contar
apenas consigo mesmo deixava espaço às formas que criaram uma cavalaria
europeia acima de todas as fronteiras nacionais, essa fórmula ressume também as
tendências que estiveram tão vivas no antigo Império germânico e que causariam a
sua desagregação. O Império se dissolveu pelo particularismo de seus elementos e
pelas relações que o vinculavam aos outros protagonistas da política global
europeia: a retração e a extensão fragmentaram a entidade nacional intermediária.
Aquele particularismo já havia sido provocado pelo mesmo conjunto de fatores, ainda
que em outra escala. Quando elementos já diferenciados ou que estão predispostos
a constituírem-se como diferentes são integrados à força a uma unidade maior, a
consequência costuma ser ainda mais incompreensão e rejeição mútua. O grande
quadro comum que exige diferenciação para poder subsistir, também provoca atritos
recíprocos entre os elementos, um agravamento das oposições que não teria surgido
sem esse constrangimento dos elementos no seio do grupo. A unificação dentro de
um grande conjunto comum é um meio de se individualizar, mesmo a título
transitório, e de tomar consciência de si. Pode-se dizer que foi a própria política de
784 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
supremacia mundial dos imperadores medievais que desencadeou (se não mesmo
suscitou) o particularismo dos povos, das províncias e os principados. A reunião
intencional – e parcialmente conseguida pelos imperadores germanos –, de
numerosos territórios heterogêneos em um grande conjunto, primeiro criou e tornou
consciente o que se supunha deveria ter sido eliminado mais tarde: a individualidade
das partes.
O mesmo esquema seguiu de um modo ainda mais visível a cultura da
Renascença italiana. Estabeleceram-se a bases da individualidade perfeita e
defendeu-se uma concepção geral e moral que ia muito além dos limites do estrito
quadro social. Dante deixa isso bem claro quando diz que, apesar de seu amor
visceral por Florença, ele e os seus iguais tinham “por pátria o mundo, como os peixes
o mar” 22 . De uma maneira indireta e a posteriori esse ponto encontra a sua
confirmação no fato de que as formas de vida criadas pela Renascença italiana foram
amplamente aceitas pelo mundo ocidental, precisamente porque ofereciam então
uma margem de manobra sem precedentes à individualidade. Como sintoma dessa
evolução, vamos nos limitar aqui a evocar a pouca importância atribuída à nobreza
nessa época. A nobreza, aliás, só tem sentido próprio quando representa um círculo
social claramente diferenciado de todos os outros por sua forte coesão – para baixo,
mas também para o alto. Negar o seu valor significa o desaparecimento de ambas as
características; denota o reconhecimento da dignidade superior da pessoa humana
independentemente do círculo em que ela tenha nascido e traduz também um
nivelamento no que se refere àqueles sobre os quais se ergueu o anterior
engrandecimento. Esses dois fatos encontrarão uma expressão sem reservas na
literatura renascentista.
22
“Nos autem, cui mundus est patria velut piscibus equor”. A frase pertence a De vulgari eloquentia,
I.VI.3. (NT)
Georg Simmel | 785
23
Naturalmente, a segunda destas formas só se aplica a nobreza dos estados monárquicos, mas pela
coerência do presente capítulo nos referiremos aqui apenas a ela, e não à nobreza dos regimes
aristocráticos. (NS)
786 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
nem deixa aparecer uma instância que teria ficado por natureza e direito mais
próxima do trono do que qualquer outra. Do mesmo modo, se não existe na Rússia
uma aristocracia capaz de constituir um autêntico estamento, senão apenas
aristocratas isolados que, às vezes, constituem um círculo – do que falaremos com
mais detalhes adiante –, isso se deve igualmente à posição absolutista do czar e ao
fato de a massa subalterna do povo também não chegar, na prática, a tecer uma teia
de relacionamentos que possa provocar a concentração em um corpo homogêneo
com os que estão acima dela. Ao invés, nos países em que os estamentos estão mais
desenvolvidos e as relações entre as diferentes camadas sociais são mais intensas,
em uma complexa mistura de síntese e antítese, a dupla fronteira da nobreza, que é
também é uma dupla relação, experimentará ainda mais variações – que diluirão as
características da própria nobreza, mas podem renovar sua importância, com o qual
a nobreza muitas vezes perderá as características da sua posição, embora graças a
isso adquira uma importância renovada. Napoleão I o demonstrou até a caricatura
pelas razões que reservadamente invocou quando criou a sua nova nobreza. Contam
que ele dizia aos democratas que, a caste intermediare que daí resultaria, seria
decididamente democrática porque, todos e em todo momento, poderiam formar
parte dela sem preconceitos hereditários. No entanto, quando ele falava aos grandes
senhores, preferia dizer que o novo corpo protegeria o trono. Ao se dirigir aos
monarquistas moderados o Imperador lembrava que a nova nobreza, ao transformar-
se em um poder dentro do Estado, devia impedir todo poder absoluto. E quando os
interlocutores do Imperador eram os jacobinos, ele entendia que a sua criação devia
aniquilar de vez a antiga nobreza. Finalmente, Napoleão I tratava de tranquilizar aos
aristocratas de velha cepa, convidando-os a aceitarem as novas dignidades porque
elas iriam simplesmente reavivar as de outrora...
Essa posição em duas frentes da nobreza se funda em um sentimento de
segurança e independência e se reflete em outra dualidade voltada mais para o
íntimo. A nobreza nasce com algumas pessoas que, por uma razão ou outra, se
encontram em melhor situação que as demais. Contudo, uma vez que ela apareceu,
certas pessoas impõem-se às outras por pertencer à nobreza. Os numerosos e
“Casta intermédia”. Em francês no texto de Simmel. Esses seriam os termos usados polo Imperador
para referir-se a ela. (NT)
Georg Simmel | 787
24
Dortmund é uma importante cidade da Vestefália alemã, na região do Vale do Rhur. Na Idade Média
era uma cidade livre imperial. (NT)
25
Valenciennes é uma cidade e comuna do norte da França no departamento do Nord junto ao rio
Escalda. Historicamente, foi a capital do condado borguinhão do Hainaut. (NT)
788 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
coisa sem ter direito para tal, era com violência, em um gesto de pilhagem – que fora
do contexto de uma campanha militar vitoriosa era considerado um crime punido
com uma sanção muito mais grave que a do furto. A posição nobre do cavaleiro o
impedia de sofrer uma punição menor. O nobre posiciona-se, logo de início, a uma
altura tal que, se peca, deve pecar gravemente – pois que pessoa tão proeminente
não pode cometer uma falta tão mesquinha como o furto, sancionada com uma pena
menor.
Os direitos e os deveres da aristocracia sacerdotal bramânica se contrapõem
de modo mais sutil e até mais radical. Provavelmente nunca existiu uma hierarquia
que tenha dominado tão incondicionalmente e possuído prerrogativas tão
fantásticas como a dos brâmanes. Ao considerarmos, porém, a vida desses
sacerdotes, que gozavam de poder tão inédito, que pronunciavam sentenças
Inapeláveis e pareciam ser os únicos com direitos no meio do povo – a tal ponto de
que o próprio rei não era mais do que o súdito do sacerdote –, ver-se-á que essa vida
era de uma dureza tão insuportável, de severidade tal nas suas formas, fórmulas,
mortificações e restrições, que quiçá poucos europeus iriam querer pagar esse preço
para desfrutar dos direitos do sacerdote brâmane, o homem mais poderoso da Índia
tradicional, e também o menos livre. A liberdade, no entanto, tal vez teria parecido
desprezível ao brâmane, porque esse grau de autonomia significaria que algum
momento da vida poderia ser indiferente para ele. Para a massa pode ser indiferente
fazer isso ou aquilo, mas para o membro da alta nobreza cada momento deve estar
prefixado por uma lei, porque quaisquer instantes são igualmente importantes. Os
fenômenos desse tipo estão condensados na máxima noblesse oblige 26 . Todos
esses constrangimentos e entraves às vantagens da nobreza são, na realidade, a
marca indispensável de sua distinção e de sua exclusividade. Havia muitas coisas
permitidas à massa que eram proibidas aos nobres. Nesse tratamento diferenciado
está implícito o profundo menosprezo e a indiferença que inspiram tais condutas
consideradas indignas de uma norma estrita. As pessoas não nobres podem aderir
(se o desejarem) às mesmas proibições. Contudo, isso não tem nada a ver com sua
26
Em francês no texto alemão de Simmel. . Esta expressão significa, à letra, “nobreza obriga” e é
utilizada quando se pretende dizer que pertencer a uma família de prestígio ou ter um nome honrado
ou famoso obriga a proceder de uma forma à altura do nome que se tem. (NT)
Georg Simmel | 789
posição e suas obrigações sociais. Não é mais que uma questão do foro privado e
deveria ser tratada como tal. Para o nobre, reitera-se, é uma obrigação social, ou mais
exatamente é um privilégio de sua condição não se permitir fazer muitas coisas.
Talvez o melhor exemplo desse tipo de coisas seja o exercício do comércio, cuja
proibição acompanha toda a história da nobreza desde o tempo dos antigos egípcios.
Se a nobreza não cessa de repetir quod licet Jovi not licet bovi27, seu princípio contém
também a máxima oposta, quod licet bovi not licet Jovi. Se a forma sociológica da
nobreza se constrói a partir da delimitação estrita do grupo que diz respeito ao ser
das pessoas (tanto que as diferenças individuais são apenas símbolos de uma
maneira de ser perfeitamente autônoma e fechada), essa diferenciação a respeito de
tudo o que não é nobre só é obtida com as duas determinações juntas: a nobreza tem
direitos que os outros não possuem, e vice-versa.
Evidentemente, a convivência em um grupo cria, pelas condições íntimas de
sua ação recíproca, essa estrutura específica da nobreza que manifesta seu caráter
de forma ao conservar simultaneamente seus traços essenciais através da
diversidade infinita dos grupos e de suas outras características formais e materiais.
A nobreza da antiga Roma ou do reino normando, entre os indianos ou sob o Ancien
régime europeu 28 , oferece traços sociológicos coincidentes apesar da extrema
diferença dos gêneros de vida – traços que se encontram ainda nas suas formas
rudimentares, lábeis e passageiras em todos os pequenos grupos nos quais uma
parte se separa das outras por considerar-se “a aristocracia”, quer no quadro de uma
família estendida, quer no de uma classe de trabalhadores ou de uma ordem religiosa.
Com referência à aristocracia em sentido estrito, ilustrou-se essa comunidade de
traços, fazendo notar que “os nobres se conhecem melhor em uma noite que os
burgueses em um mês”. Isso se deve, evidentemente, ao fato de que as condições
comuns da existência na nobreza vão bastante além do estritamente pessoal e se
tornam o pressuposto natural de toda relação. Os aristocratas coincidem em tão
grande medida nos seus interesses, no seu modo de conceber o mundo, na sua
consciência de si próprios, no significado do lugar que ocupam na ordem social e são
27
Máxima latina que significa: “o que está permitido a Júpiter, não pode fazê-lo um boi”. (NT)
28
Antigo Regime europeu. Modo de viver característico das populações europeias durante os séculos
XV, XVI, XVII e XVIII, isto é, desde as descobertas marítimas até às revoluções liberais. Em francês no
texto alemão de Simmel. (NT)
790 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
29
Vide alcance desta expressão no começo do Capítulo V da presente obra. (NT)
30
As Guerras Napoleônicas desencadearam uma série de conflitos e alianças de nações europeias
para enfrentaram o Império francês liderado por Napoleão Bonaparte. Este conflito foi uma
continuação direta das chamadas Guerras Revolucionárias, que começaram em 1792 durante a
Revolução francesa. Inicialmente, o poderio da França cresceu exponencialmente, com os exércitos
de Napoleão conquistando boa parte da Europa. (NT)
Georg Simmel | 791
como a chamada “cadeia dos nobres” (Adelskette). Tal cadeia era uma associação
semissecreta que apareceu na época do Congresso de Viena31. A nobreza sentiu que
a Revolução francesa tinha enfraquecido o seu papel, mesmo nos Estados alemães,
em virtude da manumissão dos camponeses, e procurou, então, aproveitar a
solidariedade entre os nobres para criar uma estrutura versátil que lhes permitisse
recuperar a sua preponderância. Essa cadeia da nobreza germânica afirmava ser, nos
respectivos estatutos, estranha a toda atividade política. Mesmo que isso implicasse
boa parte de engano ou ilusão, expressava o essencial: a indiferença das fronteiras
políticas ou geográficas para tudo o que é comum a qualquer nobre por ser nobre. A
semelhança dos interesses puramente materiais não teria sido suficientemente forte
para criar essa união pangermânica da nobreza não fossem os vínculos profundos
da forma da nobreza – ainda a interpretar. Por fim, um último exemplo: explica-se
frequentemente a grande importância da nobreza no Império Austro-Húngaro e as
prerrogativas consideráveis que lhe foram concedidas em todo o tempo nesse país,
sugerindo que, entre os componentes extremamente heterogêneos e díspares da
monarquia dos Habsburgo, a nobreza representava um elemento qualitativamente
uniforme e homogêneo que favorecia de maneira significativa a coesão do conjunto.
A igualdade formal da posição da nobreza nas diversas partes desse país compósito
teria favorecido uma nobreza austro-húngara quando não existia uma verdadeira
nação com esse nome – pois que a unidade que possui a nobreza graças a sua
posição sociológica constante predispô-la a servir de cimento à unidade do Império.
Todos os casos apresentados até agora não são mais que fenômenos mais ou
menos exteriores, decorrentes da estrutura sociológica interna à nobreza, mas ainda
não permitem conhecer a sua essência. A análise sociológica da nobreza se
concentra, de fato, na relação absolutamente singular do conteúdo social geral da
vida desse subgrupo com a individualidade de seus membros. O indivíduo não é
simplesmente integrado a uma unidade de outros indivíduos que existem antes dele,
com ele e após dele, associados de acordo com uma fórmula que não se encontra
31
O Congresso de Viena foi uma conferência entre embaixadores das grandes potências europeias
celebrada na capital austríaca, entre setembro de 1814 e junho de 1815, com a intenção de redesenhar
o mapa político do continente europeu após a derrota da França napoleônica na primavera anterior.
Esse congresso pretendia também restaurar os tronos das famílias reais derrotadas pelas tropas de
Napoleão. (NT)
792 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
32
Simmel alude aqui metaforicamente ao direito que algumas legislações concedem aos herdeiros de
promoverem o inventário dos bens antes de aceitarem ou rejeitarem a herança, para ressaltar que
unicamente os valores positivos acumulados pelos melhores membros do grupo beneficiarão aos
novos integrantes do conjunto. (NT)
Georg Simmel | 793
preferida na esperança de que forneceria como de costume uma pessoa apta para
exercer a função de chefe. Quando posteriormente a família toda foi enobrecida, o
mérito e dignidade que algum de seus membros tinha adquirido outrora foram
creditados como merecimentos de toda estirpe, projetando-se sobre o futuro de seus
integrantes. A metáfora dos metais nobres, da “nobreza” da prata ou do ouro, é
instrutiva. Ao que nos parece, essa nobreza dos metais, em primeiro lugar, diz
respeito a sua relativa inalterabilidade. Quer dizer, ao fato de poder conservá-los
permanentemente devido ao seu valor, sem que as fusões sucessivas mudem outra
coisa que a sua forma, enquanto a substância de seu valor fica relativamente
constante. Verifica-se algo de semelhante no sentimento que a nobreza tem de si e
que inspira nos demais. É como se seus membros individuais não fossem mais do
que formas de uma substância valiosa que se conserva através de toda a série
hereditária.
A relação que o indivíduo mantém com seu grupo histórico adquire assim um
matiz particular. A nobreza reivindica uma imortalidade do valor que suas
encarnações sociológicas tratam de concretizar. Se na Rússia não existiu uma
aristocracia, um estamento fechado, ao menos até o czar Teodoro III , o antecessor
de Pedro I, o Grande, tal deve-se ao fato de que as honrarias e dignidades atribuídas
a cada indivíduo eram exclusivamente recompensas por serviços prestados,
decorriam do seu labor de funcionário – circunstancia que, por sua vez, exigia uma
classificação das famílias. Isso porque um singular princípio era predominante:
ninguém podia estar às ordens de um superior que houvesse estado às ordens do pai
do candidato. Esse princípio resultou numa série de conflitos sobre fatos e direitos
das familiais interessadas, além de rivalidades e emulações declaradas e encobertas.
Processo que evitou, no entanto, a constituição de um estamento fechado em si
mesmo e fez que as energias e excelências particulares não ficassem concentradas
naquela substância comum a todos, única e permanente, que constitui a estrutura
sociológica da nobreza.
Teodoro III (1661 – 1682) foi czar da Rússia de 1676 até a sua morte. Era o filho mais velho
sobrevivente do czar Aleixo com a sua primeira esposa Maria Miloslavskaia. Ascendeu ao trono após
a morte do seu pai e foi sucedido pelo seu irmão Ivan V e o seu meio-irmão Pedro I. Tinha problemas
de saúde desde a sua infância e morreu um pouco antes de completar 21 anos. As notícias sobre a
sua morte levariam à revolta de Moscou de 1682.
794 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
De quanto ficou dito, emerge a razão pela qual a nobreza é tão apegada ao
princípio da hereditariedade. No que diz respeito à antiga estrutura clânica, defendeu-
se a ideia de que os nobres dos diferentes clãs pertenceriam a um único estamento,
que tenderia sempre à endogamia – ao casamento com membros do próprio grupo
para conservar sua nobreza –, enquanto o clã, como tal, era normalmente exogâmico
– e não permitia, por conseguinte, o cruzamento de indivíduos aparentados. Se a
nobreza é uma espécie de fundamento ou base sólida e indestrutível que legitima a
todos os seus membros e é transmitida às gerações vindouras, compreende-se que
qualquer nobre deve provir unicamente desse círculo – e que ademais não possam
misturar-se com ele os indivíduos em cujo círculo não se herde as vantagens que
constituem o fundamento da nobreza. É que só dessa maneira assegura-se que
todos os membros participam, efetivamente, da força, das ideias e da importância do
conjunto, para que aquela relação paradoxal em que o valor do conjunto recai em
cada indivíduo seja realizada. Essa reprodução interpares cria a condição para que o
estamento adquira seu fechamento e autossuficiência sem igual – que o tornam
capaz de atender às próprias necessidades e, por assim dizer, privam-no até do
direito de precisar de algo além de si mesmo.
A nobreza é assim semelhante a uma ilha no mundo, comparável à obra de
arte, em que cada uma das partes extrai seu sentido do conjunto – e cuja moldura
indica que não penetra nela o mundo exterior, nem necessita recorrer a tal esfera.
Essa é a forma que confere à nobreza grande parte do atrativo estético que exerceu
em todas as épocas. Tal atração não depende unicamente do indivíduo, não se refere
apenas a sua boa família e aos cuidados e exercícios corporais que, ao longo de
gerações, aprimoraram suas formas físicas e sociais melhor que as de outros
estamentos. A imagem de conjunto da nobreza está aureolada pelo brilho da
sedução, que deriva do prazer estético que inspira sua forma independente e
autossuficiente e a harmonia de suas partes – traços que, como vimos, estão
presentes também na obra de arte. É verdade que esse reflexo de uma realidade
permanente mesmo ante os acidentes múltiplos e mutáveis da fisiologia e da história
sobre o ser individual, corre o risco de desembocar no vazio de uma vida decadente.
Os conteúdos e papeis transmitidos socialmente, se precisarem transformar-se em
um verdadeiro valor vital, devem ser lastreados, em algum momento, em um indivíduo
Georg Simmel | 795
e na sua energia – única potência moral capaz de dar soluções estéticas a algo. Por
isso as mais eminentes figuras da nobreza levaram uma existência pessoal mais
segura de si, demonstraram um sentimento uniforme de independência e de
responsabilidade individual. Esse é o resultado da intimidade (única entre as formas
sociológicas) com que uma energia (que perpassa as três dimensões do passado, do
presente e do futuro) se entrelaça com a existência dos indivíduos e se transforma
em um valor vital mais elevado. Contudo, quando o fator individual é fraco demais
para dar forma pessoal à substância supraindividual, sobrevêm os casos de
decadência referidos há pouco. Inevitavelmente, a própria substância se transforma
em mera forma, e o sentido da vida se reduz a manter a honra específica do
estamento, a compostura e as aparências, como finalmente aconteceu com a
nobreza do Ancien régime.
A importância da “árvore genealógica” simboliza profundamente essa relação
que o indivíduo mantém com a família – e, mais além, com o grupo nobiliário em
geral. A substância que dá forma ao indivíduo deve ter passado pelo tronco único do
conjunto, assim como a substância que cria o ramo e o fruto é a mesma que tem
produzido também o tronco. Essa estrutura sociológica explica o desdém pelo
“trabalho” que a aristocracia pôs em evidência ao longo de toda a história social. Só
nos últimos tempos a democratização da economia parece ter produzido alguma
mudança. No verdadeiro “trabalho”, o sujeito dedica-se a um objeto de cada vez e,
embora o fruto do trabalho volte para ele como troca, a ação fica voltada para (e se
esgota em) a feitura de um produto impessoal – quer se trate da formação ou
transformação de noções em uma pesquisa, da formação pedagógica de um
discípulo ou da elaboração de qualquer bem material. Ora, isso contradiz a
significação fundamental da vida para os aristocratas. Para eles, essa representação
mental é absolutamente pessoal e relaciona-se ao próprio ser do sujeito, ao seu valor
e àquilo que procede diretamente dele, determinado pelo terminus a quo – enquanto
que o trabalho constitui uma atividade eminentemente utilitária dirigida a um objeto
exterior, determinada pelo terminus ad quem. Por isso Schiller distingue as naturezas
vulgares, que contam com o que elas fazem, das naturezas nobres, que contam com
o que elas são. O nobre se ocupa, mas não trabalha – determinações que aparecem
sob uma multidão de variantes e desvios nos casos empíricos específicos. Guerra e
796 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
33
Adolf Glassbrenner (1810 – 1876) foi um escritor satírico de origem prussiana, que integrou o
movimento da Jovem Alemanha. Depois de trabalhar por um curto período de tempo como
escriturário, ingressou no jornalismo e em 1831 editou o periódico Dom Quixote que foi suprimido em
1833 devido às suas tendências revolucionárias. A seguir publicou duas séries de crônicas e imagens
da vida de Berlim entre 1833 e 1858, e assim tornou-se um dos fundadores da moderna literatura
satírica alemã de caráter popular. (NT)
798 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
ampla zona de contato entre todos os nobres – pela exigência de uma igualdade de
nascimento, que configurou uma espécie de garantia psicológica da unidade
qualitativa e histórica do estamento, e pela técnica de sua tradição, que permitiu
reunir e conservar, como em uma cisterna estanque e comum, todos os méritos e
conquistas do grupo. No entanto, parece cada vez mais evidente que a estrutura
supraindividual daí resultante encontra seu fim e sentido na existência dos
indivíduos, no seu poder e importância, na liberdade e autonomia de sua vida. A
nobreza deu uma solução única ao equilíbrio entre o conjunto e o indivíduo, entre as
especificidades dadas e os desenvolvimentos pessoais da vida, associando, em suas
manifestações históricas mais autênticas, os valores individuais à estrutura global, e
encaminhando, por outro lado, a evolução desta última ao progresso, crescimento e
autonomia do indivíduo34.
Finalmente, o aparecimento da economia monetária ainda é o exemplo mais
marcante que a história universal oferece da correlação entre a ampliação da
sociedade e a tendência à individualização da vida, em todos os seus conteúdos e as
suas formas. A economia natural de troca direta dá origem a círculos econômicos
reduzidos, relativamente fechados sobre si mesmos – pois a mera dificuldade de
transporte reduz o tamanho dos círculos e a técnica do sistema não permite alcançar
uma real diferenciação e individualização das atividades. A economia monetária
introduz dois tipos de mudança nessa situação. A aceitação geral do dinheiro, bem
como seu fácil transporte e por fim a sua sublimação em ordens de pagamento
bancário e transferências de divisas permitem agir a distâncias ilimitadas,
transformando todos os países do mundo em um único círculo econômico com
interesses cada vez mais imbricados, produções complementares e usos comerciais
semelhantes. Por outro lado, a moeda produz uma enorme individualização do
homem enquanto ator econômico. A forma do salário em dinheiro e a disponibilidade
dele tornam ao trabalhador muito mais independente que a remuneração em gêneros,
conferindo-lhe uma liberdade de movimentos sem precedentes. As normas liberais,
habitualmente identificadas com a economia monetária, põem o indivíduo em livre
34
Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “nobreza”. Doravante Simmel
retoma sua análise da “ampliação dos grupos e a formação da individualidade”, notadamente da
“correlação entre a ampliação da sociedade e a tendência à individualização da vida” e da ”influência
exercida pelo alargamento do círculo sobre a diferenciação das vontades”. (NT)
800 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
35
Em francês no texto alemão de Simmel. “Volonté générale” significa, à letra, “vontade geral”. Essa
expressão é quiçá uma das mais fugidias de Jean-Jacques Rousseau. Talvez o sentido mais imediato
do conceito de vontade geral, no Contrato social do pensador genebrês, apareça em conexão com a
ideia de "corpo social". Nessa conexão, a vontade geral não seria outra coisa senão a "vontade do
corpo político" entendido como "ser moral" – seria a vontade do soberano. (NT)
36
Roberto Dudley, primeiro conde de Leicester (1532 – 1588) foi um estadista inglês e o favorito da
rainha Isabel I desde a ascensão ao trono da monarca e até sua morte. Campeão da causa protestante
internacional, liderou a campanha inglesa em apoio à Revolta holandesa (1565 – 1587). Sua aceitação
do cargo de tenente-general (governador) das Províncias Unidas enfureceu a Isabel. Além do mais, a
expedição foi um fracasso militar e político, e arruinou o conde financeiramente. (NT)
Georg Simmel | 803
37
O Papa São Gregório VII (circa 1020/1025 — 1085) foi o 157º papa da Igreja católica de 1073 até a
sua morte, tendo sido um dos mais influentes e decisivos pontífices ao longo da história. Teve sua
vida e obra conduzidas pela convicção de que a Igreja, como criação divina, e o papado, como a sua
cabeça, colocam-se sobre todas as estruturas humanas, em particular sobre o estado secular,
coincidindo naturalmente em uma diminuição do poder dos bispos locais – o que motivou algumas
lutas contra as esferas mais altas do clero. Essa batalha pelos fundamentos da supremacia papal tem
o seu apogeu na obrigatoriedade do celibato dos sacerdotes e no ataque à simonia. Em 1074 publicou
uma encíclica dispensando da obediência aos bispos que permitiam o casamento dos clérigos e, no
ano seguinte, sob fortes protestos e resistências, encorajou medidas contra eles, privando-os de seus
rendimentos. (NT)
38
O autor alude à proporção da participação fundamental de cada um dos termos entre os quais se
dá a correlação existente entre a ampliação da sociedade e a tendência para a individualização da
vida. (NT)
806 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
de governo exigia uma norma equivalente para seus indivíduos. Não havia mais que
a comunidade no mais lato sentido do termo de um lado, e as pessoas individuais do
outro. O direito romano mais antigo ignora as corporações, e esse espírito
permaneceu vivo nas legislações inspiradas nele. Ao contrário, no direito germânico,
os princípios de direito que regulavam a vida da comunidade eram os mesmos que
regiam as relações de ordem privada entre os indivíduos. Contudo, essas
coletividades não eram ainda os conjuntos gigantescos do Estado romano, mas
pequenas unidades organizadas para atender as necessidades diversificadas e em
constante mudança dos indivíduos – que não requeriam aquela distinção entre
direito público e direito privado, porque as pessoas estavam muito mais ligadas a seu
conjunto.
A correlação que nos ocupa se mostra como evolução coerente no caso do
direito de vingança, tal como se deu, por exemplo, na Arábia. A essência desse direito
repousa na solidariedade e na autonomia de clãs muito fechados. A vingança recaía
sobre o clã por inteiro ou sobre a família do assassino, e era levada a cabo por todo
o clã ou pela família da vítima. Perante esse estado de coisas, Maomé se propôs
estabelecer a distinção aqui indicada. Era preciso que acima daqueles grupos
particulares, nivelando-os por meio de uma religião comum, se erguesse uma
comunidade nacional ou estatal que, através de seus órgãos, proferisse as sentenças
legais, e substituísse assim o direito dos interesses particulares por uma autoridade
suprema respeitada por todos. Como consequência, a sentença disse apenas
respeito ao indivíduo culpado, desaparecendo doravante a responsabilidade coletiva
do grupo particular – ficando então, frente a frente e com clareza a comunidade mais
ampla e o indivíduo, como resultado da diferenciação daquelas estruturas
intermédias.
Esse tipo formal reaparece com a mesma nitidez, embora com um conteúdo
completamente diferente, como sucessão de estágios de uma série homogênea, na
antiga Roma, quando, no decurso da história, a família patriarcal se fragmentou. A
partir do momento que os direitos e os deveres civis, em tempos de guerra ou de paz,
se impuseram irremediavelmente aos filhos e aos pais, quando os filhos puderam
adquirir determinados papel e influência, partes do butim de guerra, etc., abriu-se
uma brecha na patria postestas. Brecha que se ampliou até destruir o patriarcado em
Georg Simmel | 807
39
Trata-se dos itenerant justice, oficiais itinerantes nomeados pelo rei e enviados aos condados
ingleses e à Irlanda para administrar a justiça, aos quais se referiu o autor no Capítulo IX da presente
obra. (NT)
808 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
40
Ulrico Zuínglio (1484 — 1531) foi um teólogo suíço, líder da Reforma protestante helvética.
Independente de Martinho Lutero, e sem a sua formação teológico-doutoral, Zuínglio chegou a
conclusões semelhantes pelo estudo das Escrituras do ponto de vista de um erudito humanista. Não
deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas. (NT)
Georg Simmel | 809
41
Tratar-se-ia de um tipo de falácia de composição que pode ser definida como uma inferência
inválida pela qual o que pode ser baseado com exatidão sobre uma classe, distributivamente, também
poderia ser, de maneira real, afirmado sobre essa classe, coletivamente. (NT)
810 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
Filósofos adeptos do cinismo, uma corrente filosófica fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates,
no final do século V a.C. Ele foi seguido por Diógenes de Sinope, que levou o cinismo aos seus
extremos lógicos e passou a ser visto como o arquétipo de filósofo cínico e de seus ideais. Ganharam
o epíteto de “cínicos” porque faziam as suas necessidades, como os cães (cynicus em latim, pelo
grego kynikos), no olho da rua – na qual viviam a causa de seu desprendimento das coisas materiais.
(NT)
812 | SOCIOLOGIA: Estudos sobre as formas de sociação
o sujeito a adotar uma atitude egoísta, ao menos perante seu círculo restrito. Até
Henrique III e Eduardo I, os estamentos ingleses estavam profundamente separados
porque seus interesses frequentemente iam além das fronteiras de sua pátria. Assim,
por exemplo, um nobre inglês tinha muito mais interesse em uma guerra exterior
conduzida pela nobreza do que nas lutas intestinas e rivalidades decorrentes da
conservação de um direito na Inglaterra; o burguês se interessava muito mais pela
organização das relações comerciais com as cidades flamengas do que pelas
cidades inglesas – a menos que se tratasse da sua; e os grandes dignitários
eclesiásticos se sentiam ligados demais a uma unidade eclesial internacional para
dar mostras de simpatias especificamente inglesas. Só a partir da época dos reis
mencionados42 esses estamentos fundiram-se para formar uma nação, cessando o
mútuo distanciamento, originado pelo egoísmo resultante daquela expansão
cosmopolita dos interesses.
Para além dessa influência que a ampliação do circulo exerce sobre a
diferenciação das vontades está a importância dessa ampliação no surgimento do
sentimento do eu. É inegável que o estilo de vida moderno, precisamente pela
labilidade incessante de suas características e pela padronização de gostos, hábitos,
opiniões e valores – processos de simplificação que podem representar
empobrecimento cultural – produzem nivelamentos inauditos que atingem as
estruturas simbólicas da forma pessoal de vida. Contudo, as tendências opostas não
devem ser ignoradas, por paralisadas e reificadas que possam aparentar no efeito
geral. Se a vida em um círculo amplo e a relação recíproca com ele produzem um
grau de autoconsciência superior àquele que permite desenvolver um pequeno
círculo, isso se deve sobretudo à personalidade que se manifesta justamente pela
mudança dos diversos sentimentos, pensamentos e ocupações. Quanto mais
uniforme e serena a corrente da vida, quanto menos os extremos da vida sensível se
distanciem de seu nível médio, com menos força o sentimento da própria
personalidade surgirá. Em compensação, quanto maior e mais enérgica a tensão e o
confronto dos extremos, mais revigorada fica a dita personalidade. Da mesma
maneira que a permanência só se concebe na mudança, pois que a mudança por
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Esses dois reinados abarcam a história de quase todo o século XIII inglês. (NT)
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Expressão latina que significa: “o motivo determinante ou a razão de agir”. (NT)
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seres que não podem ser expulsos do lugar que ocupam, nem ocupar (em
consequência da impenetrabilidade da matéria) o mesmo lugar de outros seres no
espaço. Que os movimentos peculiares de cada grupo desses seres constituam uma
“luta” é uma interpretação psicológica. A relação adversativa, a unidade que se cria
como resultado desses movimentos adversos, à chamada por nós de “luta”, não pode
ser definida, nem o essencial nela pode ser apreendido exteriormente – só podemos
quando muito vivê-la intimamente. Isso nos permite abordar a dupla conexão. Em
primeiro lugar, a conexão real, proporciona os esquemas de nosso comportamento
exteriorizado por meio das experiências psicológicas que designamos como
hostilidade e colaboração, associação e rompimento. E, em segundo lugar, a conexão
ideal permite que interpretemos, classifiquemos e denominemos essas experiências
como os modos de comportamento dos indivíduos, percebidos exteriormente. É
quase impossível para nós tomar uma decisão ou adquirir uma convicção sem um
prévio confronto de motivos e estímulos – mesmo rudimentar, quase inconsciente e
rapidamente superado. Toda a nossa vida espiritual é pontuada por esses
enfrentamentos. Portanto é lógico supor que, entre os processos interindividuais
(que progridem sempre sobre a base dos desenvolvimentos individuais), um
determinado número se firme, no referente à forma e à interpretação, nessa relação
confltuosa.
O mesmo acontece em sentido inverso. A luta real que descobrimos ao nos
envolvermos ou testemunharmos o fenômeno fornece o esquema e a interpretação
de processos íntimos. Isso acontecerá, sobretudo, quando o indivíduo não está
vinculado exclusivamente a uma das partes em disputa, mas demonstra interesse
por ambos os adversários. Nesse caso, as “duas almas que habitam o mesmo corpo”
imitarão e reproduzirão as relações de conflito e reconciliação, de separação e de
unidade, de dominação e de subordinação entre os objetos do interesse. A luta que
se desenvolve fora de nós fica compreensível quando é reproduzida nas relações de
nossas representações. Poder-se-ia dizer, então, que a representação da luta é uma
luta de representações. E se tal acontece com as relações de separação, agora
evocadas sumariamente, o mesmo ocorre relativamente às relações de união e
exclusão, de dominação e subordinação, de imitação e organização, e com muitas
outras. O exterior é conformado e interpretado à luz do interior, do mesmo modo que
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Chega aqui a seu fim a presente digressão, que o autor consagrou à “analogia entre as relações
psicológicas individuais e as relações sociais”. Doravante Simmel retoma sua análise da “ampliação
dos grupos e a formação da individualidade”, nomeadamente do modo como “a evolução das
representações intelectuais revela a tendência a perceber clara e distintamente o individual e o geral”.
(NT)
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pouca igualdade essencial que não podia admitir uma origem comum, mas sim atos
específicos de criação. Quanto à dupla necessidade de nosso espírito, desejoso de
evocar ao mesmo tempo a síntese e as menores diferenças, ela o satisfazia reunindo
em uma noção única uma grande quantidade de indivíduos similares e, em
contrapartida, separando esse conceito de todos os outros. Simultaneamente, a
pouca atenção prestada à individualidade no grupo era compensada, de acordo com
o ponto de partida aqui exposto, pela individualização radical desse conjunto perante
os outros, e pela exclusão de uma igualdade geral de grandes classes ou do mundo
orgânico em geral. A nova teoria modificou essa atitude em dois sentidos: satisfez o
desejo de síntese graças à ideia de unidade geral de todos os seres vivos, que fez de
um micro-organismo originário a origem da multidão de manifestações da vida; e
deu resposta à necessidade de diferenciação e especificação atribuindo a cada
indivíduo um grau particular no processo de evolução de todos os seres vivos. Dessa
maneira, a teoria da evolução genética flexibilizou os rígidos limites que separavam
as espécies, destruiu ao mesmo tempo a imaginária diferença essencial entre as
qualidades individuais e aquelas da espécie, e apreendeu o universal de maneira mais
geral e o individual de modo ainda mais específico do que o concebia a teoria anterior.
Ora, eis precisamente a relação de complementaridade que também se manifesta nas
evoluções reais das sociedades.
A evolução psicológica de nosso conhecimento também apresenta, em geral,
essa dupla orientação. Um estado pouco evoluído do pensamento é por um lado
incapaz de ter acesso às generalizações mais transcendentes e de captar as leis
válidas para todos os casos, cujo cruzamento produz o indivíduo particular. O
pensamento confuso carece, por outro lado, de acuidade na percepção e de
discernimento para avaliar com bom senso ou ao menos compreender a
individualidade. Quanto maior a sua elevação, mais perfeitamente o espírito
diferenciará as duas direções e menos fica conformado ao que lhe é dado a conhecer
dos fenômenos do mundo. Procurar reduzir a leis suficientemente gerais esses
fenômenos significa fazer a particularidade desaparecer até que não reste nenhuma
combinação de fenômenos capaz de contradizer sua subsunção em uma lei. Todavia,
por contingentes e transitórias que sejam essas combinações, elas existem de fato.
Quem quiser conhecer os elementos gerais e constantes da existência deve perceber
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também a forma do individual em tais elementos. Isso porque só uma visão exata do
fenômeno singular permite conhecer as normas que definem as relações constantes
entre os fenômenos complexos. O pensamento confuso constitui um obstáculo à
evolução de ambas as tendências porque não distingue os elementos do fenômeno
em questão na sua especificidade individual, nem as leis superiores às que ele
obedece. Essa questão está intimamente vinculada ao antropomorfismo. Na
concepção do mundo o antropomorfismo recua na exata medida em que os homens
percebem que sua sujeição às leis da natureza é semelhante à dos outros seres
– pois desde esse momento renunciam a se representar e julgar o resto do mundo
segundo às normas particulares da combinação contingente personificada por eles.
A visão antropomórfica suprime a importância e a justificação próprias dos
fenômenos e processos diferenciados na natureza. Tudo adquire então uma
conotação humana. Somente elevando-nos para aquilo que está acima da mesma
humanidade, as leis universais da natureza, podemos ter a uma visão coerente e justa
do mundo capaz de conhecer e reconhecer cada coisa no conjunto de atributos que
constitui o ser independente, na sua individualidade. Estamos convencidos de que
referir todos os movimentos do mundo à lei universal da mecânica dos átomos,
permitiria enxergar com mais acuidade o que faz cada ser diferente de todos os
demais.
Essa relação epistemológica e psicológica se amplia, embora conserve a
mesma forma de desenvolvimento, quando se trata de universais metafísicos e não
das leis da natureza. O fervor do espírito pensante junto com o poder de abstração
intelectual é o que faz brotar do âmago da alma a floração metafísica. É a intimidade
da convivência com os fenômenos do mundo que nos permite pressentir as forças
mais universais e supraempíricas que sustentam a coesão interna desses
fenômenos. Entretanto, o mesmo sentir profundo e concentrado nos inspira com
frequência um temor reverencial à individualidade dos fenômenos, sejam eles
íntimos ou exteriores, temor que nos impede de encontrar subsídio nos conceitos e
imagens mais gerais para expressar a angústia ou simplesmente a ininteligibilidade
de nossa experiência momentânea. A nossa preocupação não consiste em saber de
onde vem e para onde vai esse destino, mas por que é justamente esse o nosso
destino, por que se deu essa combinação determinada, que não pode ser comparada
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Nos campos da filosofia e a estética, o termo pejorativo filistinismo descreve desde o século XIX os
costumes, os hábitos e o caráter ou o modo de pensar de um filisteu, que se manifesta como uma
atitude anti-intelectual que socialmente subestima e despreza a arte, o belo, o intelecto e a
espiritualidade. O termo, com esse alcance, deriva de Matthew Arnold, que adaptou para o inglês a
palavra alemã Philister, usada pelos estudantes universitários nas relações antagônicas que
mantinham com os habitantes da cidade de Iena. Nada tem a ver, pois, com os antigos (e muito menos
com os atuais) habitantes da região hoje conhecida como Palestina. (NT)
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características. Mas uma vez que o fato existe, é grande a tentação de considerar as
categorias direta ou indiretamente sociais como as únicas adequadas para ser
utilizadas em todos os casos de exame do conteúdo da vida humana. Ora, essa
apreciação está completamente errada. O fato de sermos seres sociais pode colocar
esse conteúdo sob esse ponto de vista, mas isso não quer dizer que tal entendimento
seja o único possível. Para referirmos à oposição mais geral, pode-se perceber,
conhecer e sistematizar os conteúdos humanos que só se realizam na sociedade,
tendo em conta exclusivamente seu ser objetivo. A validez interna, as relações e o
significado objetivo de todas as ciências, técnicas e artes são independentes da
questão do caráter – social ou outro – de sua origem e das condições de sua
ocorrência – independência rigorosamente equivalente à autonomia de seu ser
objetivo com relação aos processos psicológicos que permitiram chegar a elas.
Naturalmente, também podem ser consideradas do ponto de vista psicológico ou
social. É perfeitamente legítimo pesquisar sob que condições sociais puderam-se
atingir os conhecimentos científicos que hoje possuímos. No entanto, a exatidão dos
enunciados científicos, a coerência sistemática do corpus e a validez de seus
métodos não dependem de algum critério social nem são influenciadas pela sua
emergência em dado momento da história social – pois que dependem de normas
impessoais e intemporais, quer dizer, puramente objetivas. De fato, todos os
conteúdos da vida estão submetidos a essa dupla categorização. Podem ser
considerados como os resultados da evolução social, como os objetos de ações
recíprocas humanas, mas também e, sob a mesma justificação quanto a seu ser
objetivo, como elementos de conjuntos lógicos, técnicos, estéticos e metafísicos de
significados oriundos de si mesmos e não de sua concretização histórica derivada
de circunstâncias sociais.
Todos esses conteúdos da vida distribuem-se por outras duas categorias
essenciais, porém. Têm como sustentáculos diretos alguns indivíduos. Alguém os
concebeu, eles preenchem alguma consciência, proporcionam prazer ou dor a outra
pessoa. Sendo sociais, esses fenômenos são também, ao mesmo tempo, individuais,
compreensíveis graças aos processos espirituais de determinado indivíduo e,
teleologicamente, têm certo significado para essa pessoa. É verdade que tais
conteúdos não existiriam sem a vida em sociedade. Mas também não se teriam
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Esta frase que Baruch Espinosa verte em Ethica. Pars secunda. De natura et origine mentis
(proposição 7), pode ser traduzida como: “uma e a mesma coisa, mas duas maneiras de expressar”.
(NT)
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