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Carl F.

Schalk
Lutero
e a música
Paradigmas de louvor

M artim Lutero (1483-1546) foi o único entre os reformadores


do século XVI a defender a música como uma maravilhosa dádiva de
Deus a ser usada no louvor e na pregação da sua palavra e recom en­
dou sem hesitar o uso da música no fomento da vida cristã e no culto
da igreja.
Este livro oferece um estudo inédito sobre a importância
da música na vida e no pensam ento teológico de Lutero. Desta­
cam-se os paradigmas de louvor que aparecem em suas re­
flexões e seus escritos: música como criação e dádiva de Deus,
música como proclamação e louvor, música como canto litúr-
Lutero
e a música
gico, música como a canção do sacerdócio geral, música como
um sinal de continuidade com a igreja una.
As idéias de Lutero não representam tão-som ente uma
questão de interesse histórico, mas revelam concepções que
podem auxiliar na reflexão acerca da maneira como nós hoje Paradigmas de louvor
vemos e usamos a música da igreja.

Carl F. Schalk
i Editora
conselho nociona! de

t ISIC5
9788523308230
Editora

P Sinodal da IECLB
9 788523 308230 Sinodal
Uraduzido do original em inglês “Luther on Music - Paradigms of Praise” Apresentação
© 1988 Concordia Publishing House

Direitos para a língua portuguesa pertencem à


Editora Sinodal Lutero foi um apaixonado pela música, valorizou-a como poucos e
Caixa Postal 11 soube fazer dela um excepcional instrumento para o louvor a Deus e
93001-970 São Leopoldo/RS um importante meio na educação de crianças e jovens no lar, nas escolas
Tel.: (51) 3590 2366 e na sociedade. Da mesma forma, Lutero insistiu que a prática musical
Fax.: (51)3590 2664 da igreja deve estar sempre acompanhada de reflexão teológica.
w w w . editorasinodal. com. br
Consciente da carência de material em língua portuguesa nessa
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área e visando a contribuir nesse sentido, o Conselho Nacional de Música
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil mobilizou-se na
Tradução: Werner Ewald
oferta de subsídios para incrementar as discussões em torno do serviço/
Revisão: Brunilde Arendt Tornquist
ministério que a música, de maneira tão singular, desempenha na igreja
e na vida das comunidades cristãs.
Produção editorial: Editora Sinodal
Produção gráfica: Editora Sinodal O presente volume aborda a relação de Lutero com a música e
suas idéias sobre ela, baseando-se extensivamente em seus próprios
Esta publicação tem o apoio do Conselho Nacional de Música da Igreja escritos ou nos escritos de outras figuras de destaque no cenário musical,
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. teológico e político da época da Reforma. Está dividido em quatro partes.
Na primeira, estabelece-se a importância da música, em especial na
in fân cia e na juventude de Lutero, em sua educação escolar e em sua
vida no monastério, e como essas fases moldaram seu entendimento
S2971 Schalk, Carl F. sobre a função da música na vida cristã. A segunda parte expõe a forma
Lutero e a música: paradigm as d e louvor / Carl. F. Schalk ; como o entendimento de Lutero da música levou-o a um envolvimento
tradução W erner Ew ald. - São Leopoldo : Sinodal, 2006.
prático e variado com a música e os compositores de seu tempo. A
7 6 p .; 15,5x22 cm. terceira parte salienta distintos paradigmas ou modelos de conceber a
ISBInI 85-233-0823-7 música e seu uso na vida da comunidade cristã e da igreja. Na quarta e
Título original: Luther on music: paradigm s of praise.
última parte, discutem-se a atualidade e a importância das idéias de
1. Luteranismo. 2. Música. I. Título. Lutero sobre a música para os dias de hoje.

Boa leitura!
CDU 284.1:78
Conselho Nacional de Música da IECLB
r^ íp ^ fca çã o: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273
Sumário

Introdução........................................................................................... ...

Capítulo 1: Em casa e na escola em Mansfeld..................................


Magdeburg, Eisenach e Erfurt................................................. 14
O “Mosteiro Negro” .................................................................. 17

Capítulo 2: Rumo a uma tradição mais prática...................................20


De música speculativa a música practica.................................. 20
O envolvimento pessoal de Lutero na práxis m usical.............. 22
A música e os músicos na época de Lu tero.............................. 25
Apoio e suporte financeiro para a música na igreja.................. 29
Sobre a composição de hinos e música litúrgica.......................31
O empenho de Lutero como compositor.................................... 34
A educação musical das crianças na escola............................. 35
A educação musical de pastores e professores.........................37

Capítulo 3: Paradigmas de louvor....................................................... 39


Música como criação e dádiva de Deus.....................................40
Música como proclamação e louvor.......................................... 47
Música como canto litúrgico......................................................51
Música como a canção do sacerdócio g e ra l.............................. 55
Música como um sinal de continuidade^com a igreja u n a 59

Capítulo 4: Implicações das idéias de Lutero para o presente 66


Paradigma principal e paradigmas secundários....................... 66
Música como proclamação e ofício...........................................
Música da igreja e liturgia......................................................... ^
Música e sacerdócio g e ra l......................................................... ^
Música da igreja e continuidade............................................... ^3
IN T R O D U Ç Ã O

Qualquer estudo sobre o culto e a música na Igreja Luterana do


século 16 deverá considerar o papel direto e preponderante de Lutero
em seu desenvolvimento. Lutero foi importante não somente por ser o
ponto central de um novo movimento teológico; foi também o centro de
um novo movimento musical, que influenciaria profundamente a igreja
que viria a levar o seu nome.

Paul Henry Lang apontou, já há cinqüenta anos, que Lutero pode


ter sido ou deixado de ser qualquer coisa, mas não foi um diletante em
música.
No centro do novo movimento musical que acompanhou a Reforma
encontra-se a proeminente figura de Martim Lutero. Ele ocupa essa
posição não por causa de seu papel de liderança no movimento
protestante, e nada é mais injusto do que considerá-lo como uma
espécie de entusiástico e bem-intencionado diletante. O derradeiro
destino da música protestante alemã dependeu deste homem, o
qual, em seu tempo de estudante na cidade de Eisenach, cantando
todos os tipos de canções juvenis, e como sacerdote familiarizado
com o gradual e as missas polifônicas e motetos, vivia com música
soando em seus ouvidos.1

Quer seja em tempos de suprema alegria ou de profunda dor, su­


blime felicidade ou amargo desespero, Lutero viveu de fato “ com músi­
ca soando em seus ouvidos” . Esse aspecto de sua vida e experiência
moldaria de forma muito significativa o futuro da música na vida e no
culto de adoração a Deus do luteranismo do século 16.

Martim Lutero (1483-1546), o maior dos reformadores do século


16, foi o único entre os reformadores de seu tempo a defender a música

'LANG , Paul Henry. Music in Western Civilization. N e w York: W. W. Norton & Co.,
Inc.,1941. p. 207.
como uma maravilhosa dádiva de Deus a ser usada no louvor e na pre­ ticada forma artística com pouca ou nenhuma musica da qual o povo
gação da sua palavra. Dentre todos os reformadores protestantes de pudesse participar. Seguindo a liderança do reformador genebrês
seu tempo, somente Martim Lutero recomendou sem hesitar o uso da Calvino, a tradição reformada calvinista excluiu toda e qualquer forma
música no fomento da vida cristã e no culto da igreja. de música artística do culto público, permitindo tão-somente a salmodia
A música é uma esplêndida dádiva de Deus e eu gostaria de exaltá- comunitária. Em contraste a essas duas tradições e práticas, Lutero e a
la com todo o meu coração e recomendá-la a todos. Mas eu estou tradição reformada luterana encorajaram e ativamente fomentaram na
tão dominado pela diversidade e magnitude de suas virtudes e be­ vida cristã e no culto a Deus uma interação recíproca entre a mais sofis­
nefícios que (...), por mais que eu queira exaltá-la, minha exaltação
ticada das formas musicais e o mais simples dos cantos comunitários.
será insuficiente e inadequada (...). Se queres confortar os tristes,
aterrorizar os felizes, encorajar os desesperados, tornar humildes O resultado foi o florescimento de uma abundante, rica e profunda tra­
os orgulhosos, acalmar os inquietos ou tranqüilizar os que estão dição em música da igreja.
tomados por ódio (...) que meio mais efetivo do que a música pode­
rias encontrar?2 Essa visão singular, refletida de muitas maneiras nos escritos de
Lutero no decorrer de sua carreira, foi sem dúvida modelada, pelo me­
Diferentemente de Calvino, que restringiu o uso da música, e de
nos em parte, por sua experiência com música no seio de sua casa, em
Zwínglio, que a baniu completamente do culto comunitário, Lutero con­
sua educação escolar na juventude, em sua vida no monastério e como
cedeu à música - ao lado da teologia - o mais alto patamar. “ Somente
sacerdote. Essas experiências nos anos de formação de Lutero, às quais
uma coisa podemos mencionar (e que a experiência confirma): depois
ele mais tarde freqüentemente se refere, foram cruciais na configura­
da palavra de Deus, a música merece o mais alto louvor. " 3
ção de atitudes que se reafirmaram durante toda a sua vida em seu
A visão de Lutero influenciou profundamente todos os que entra­ empenho em relacionar música na vida e no culto da igreja à sua nova
ram em contato com ele. Firmemente ancorado em uma profunda estima percepção do evangelho. A história do papel da música na infância e
pela liturgia histórica da tradição católica ocidental, Lutero, por causa de na juventude de Lutero é o tema do primeiro capítulo.
sua experiência pessoal, instintivamente percebeu o excepcional poder
da música para mexer com o coração e a mente das pessoas. O segundo capítulo aborda a transformação do pensamento de
Lutero a respeito da música como uma ciência especulativa (musica
A partir dessa perspectiva, ele encorajou o ensino e a execução speculativa) para a música como uma arte prática e de performance
tanto das formas de arte musical mais sofisticadas de seu tempo - o (musica practica). Esse distanciamento da concepção típica da Alta
canto gregoriano e a polifonia - como de simples hinos comunitários. A Idade Média (musica speculativa) foi um passo altamente significativo
tradição latina da Renascença, à qual Lutero esteve exposto em sua e crucial, embora pouco enfatizado nas discussões sobre o pensamento
vida no monastério e como sacerdote, desenvolveu na igreja uma sofis-
» de Lutero. Centrando-se na íntima associação da música e da palavra,
Lutero trouxe novos e profundos insights (percepções) para refletir so­
bre a música na vida cristã, libertando-a de uma gama de idéias que
restringia e confinava o seu uso no louvor a Deus, transformando-a em
2“Prefácio à obra Symphoniae iucundae" de Jorge Rhau (1538), in Obras de Lutero, ed.
americana. Philadelphia e St. Louis: Fortress and Concordia, 1955, v. 53, p. 321-23. uma atividade vivificante, a “voz viva do evangelho” (viva voxevangelii).
Referências a esta edição serão citadas daqui por diante como OL. Sempre que possível,
Ainda mais importante na formação de sua concepção sobre mú­
serão indicados os textos correspondentes disponíveis na tradução brasileira Obras
Selecionadas de Martinho Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia. sica foi o desabrochar de sua perspectiva teológica, que se refletiu em
3 Idem. vários paradigmas - temas ou modelos de pensamento - que repetida-

8 9
mente aparecem em seus escritos. Considerando que Lutero nunca ex­ Capítulo 1
pôs sistematicamente suas concepções a respeito da música e sua re­
lação com a vida e a adoração da igreja, é necessário extrair suas idéias
e seus conceitos sobre música de seus comentários em prefácios de
hinários e escritos litúrgicos e exegéticos, de observações informais E M CASA E N A E S C O L A
anotadas por seus amigos e colaboradores, bem como das diversas ano­ EM M ANSFELD
tações que aparecem espalhadas em seus escritos. A tentativa de or­
ganizar os diversos comentários de Lutero sobre música, contidos em Nascido na cidade de Eisleben, Alemanha, em 10 de novembro de
variados “temas” ou padrões recorrentes de pensamento, é o foco do 1483, Lutero cresceu em uma família pobre, mas profundamente piedosa
terceiro capítulo. O capítulo quatro oferece algumas reflexões sobre o e que refletia as condições do campesinato: “austero, rude, por vezes
significado do pensamento de Lutero acerca da música para a igreja grosseiro, crédulo e devoto”5. Ele era muito estimado em casa e muito
em nossos dias. ligado a seu pai, Hans, com o qual orava antes de dormir. Sua mãe
Margarethe também era uma mulher piedosa. Uma pequena canção, a
A música que se desenvolveu na tradição luterana, especialmen­ qual Lutero recorda ouvir sua mãe cantando, é a única evidência que
te no período que vai de Lutero a Bach, “é o mais claro testemunho do temos de música em sua casa na infância. Qualquer que seja a melodia,
fato de que o povo e os músicos da igreja confirmam que as concepções Lutero relembra com carinho a pequena cantiga entoada por sua mãe:
de Lutero proporcionam um contexto saudável, benéfico e proveitoso “ Se as pessoas não gostam de você e de mim, o erro é nosso, sim”6.
para trabalhar, cantar e fazer música em louvor a Deus"4. Esse legado é
uma dádiva impagável aos músicos da igreja de todos os lugares. E Se as evidências de experiências musicais da infância de Lutero
são escassas, contamos com um cenário bem mais completo em rela­
herança inestimável para a igreja toda.
ção a atividades musicais nas escolas que ele freqüentou na juventude.
Nessas escolas, o contato e a experiência de Lutero com a música -
dentro e fora da igreja - começaram a formar suas atitudes pessoais.
Sua experiência nessas escolas lançou a base que determinou, ao me­
nos em grau significante, a direção que a música tomaria nas igrejas da
Reforma Luterana.

Lutero tinha mal-e-mal seis meses quando, no verão de 1484, sua


família mudou-se para Mansfeld, uma cidade situada no coração de uma
área de mineração e agricultura próxima às montanhas de Harz. A re­
gião era caracterizada por “morros, colinas, florestas e prados, em uma
colorida e complexa imagem de vida rural"7. Foi ali que Lutero, o filho
de um próspero mineiro turíngio, começou sua educação formal.

5 BAINTON, Roland. Here I Stand: A Life of Martin Luther. N e w York and Nashville:

Abingdon-Cokesbury, 1950. p. 26.


4 HALTER, Carl; SCHALK, Carl (Eds.). A Handbook of Church Music. St. Louis: 6Ibidem, p. 24.
Concordia, 1978. p. 16. 7 SCHWIEBERT, E. G. Luther at His Times. St. Louis: Concordia, 1950. p.106.

77
Não está bem determinado quando o jovem Martim começou sua modo mais formal, em que estavam incluídas tarefas no livro dos Sal­
educação elementar na escola de latim de Mansfeld. Embora sete anos mos ou outras seções da Vulgata, a tradução latina da Bíblia. Mais ou
fosse a idade de praxe, pode ser que Lutero tenha iniciado seus estu- menos ao término da sexta série, os alunos estavam inteiramente fami­
- dos mais cedo .8 Na escola de Mansfeld, um menino aprendia “ apenas liarizados com a maior parte do serviço religioso da Igreja Católica. No
quatro coisas: ler, escrever, cantar e latim”9. Lutero aprendeu com maior nível avançado, chamados Alexandristen, os alunos podiam servir tam­
perfeição duas coisas: latim e cantar.? A ênfase no canto - seguido do bém como cantores do coro e freqüentemente auxiliavam nos serviços
latim - dava-se porque “por tradição os estudantes deveriam partici­ religiosos dominicais. A fim de que participassem de forma mais inteli­
par como cantores em todas as atividades da igreja” 10. Além disso, as gente, aprendiam hinos, versículos, responsórios e Salmos e explica­
tarefas dos estudantes ções para a leitura das epístolas e dos evangelhos. O missal católico e
requeriam exercícios religiosos diários; como meninos cantores dos a Plenaria eram habitualmente usados na preparação de alunos avan­
coros, desempenhavam importante papel em procissões e festivais çados para a participação no serviço religioso .13
religiosos, que eram extremamente apreciados na Alta Idade Média
e ofereciam muitas oportunidades para apresentações musicais. A música desempenhava obviamente um papel importante na
Um espírito vibrante como o do jovem Lutero não somente recebeu educação dos alunos. Era-lhes ensinada a liturgia católica por meio da
treinamento nas técnicas da música, as quais mais tarde lhe foram participação nas coloridas procissões e eram iniciados em todos os ofícios
tão importantes, mas também guardou em seu íntimo muitas das religiosos, regulares ou especiais, celebrados durante o ano eclesiásti­
frases e imagens da litania solene do serviço cultual medieval, que
co. Além disso, os alunos também aprendiam rudimentos de teoria da
eram entoadas nos Salmos e hinos, em versículos e responsórios,
e as quais, mais tarde, lhe foram tão úteis.11 música, estudando a entonação dos Salmos em conjunto com elemen­
tos de iniciação musical. Em algumas escolas eram praticados também
A escola de Mansfeld, a Ratsschule ou escola municipal, contígua
o contraponto e o canto a várias vozes. Grande parte da instrução musi­
à igreja de São Jorge e próxima ao centro da cidade, era uma Trivialschule,
cal era de natureza religiosa, liderada pelo chantre14, que dominava a
onde era lecionado o trivium medieval - gramática, lógica e retórica12.
liturgia latina e era altamente versado em música.
De acordo com a praxe da época, a escola era dividida em três grupos.
O grupo mais jovem, os iniciantes ou Tabulisten, incluía em suas lições Pela manhã, as aulas normalmente começavam com orações e
—além de rudimentos de latim —o Benedicite, a oração antes das refei­ cânticos, comumente o Veni, Sancte Spiritus ou o Vení Creator. Durante o
ções, e o Gratias, a ação de graças depois das refeições. Aprendiam-se dia, as aulas eram intercaladas algumas vezes com minutos de oração e
a confissão dos pecados, o Credo, o Pai-Nosso, os Dez Mandamentos e uma canção. O material a ser memorizado pelos educandos era selecip-
a Ave-Maria. O grupo intermediário, os Donatisten, estudava latim de nado em grande medida de hinos, orações e versículos comumente en­
contrados no serviço religioso católico. Materiais e métodos usados nas
escolas tinham o objetivo de preparar bons católicos romanos.15
8Schwiebert sugeriu que Lutero havia ingressado na escola no dia de São Jorge, em
12 de março de 1488, com a idade de, mais ou menos, apenas quatro anos e meio Veja
SCHWIEBERT, p. 111. 13 Ibidem,p. 119.
14Pessoa com formação litúrgico-musical especializada e especialmente designada e
9BOEHMER, Heinrich. The Road to Reformation. Traduzido por John Doberstein e
Theodore Thppert. Philadelphia: Muhlenberg, 1946. p. 6 . encarregada de conduzir as atividades musicais de uma paróquia ou comunidade
“ Ibidem, p. 8 . eclesiástica. Também chamado Cantor. Nota do tradutor.
“ SCHWIEBERT, 1950, p. 110- 17. Essa instrução foi tão marcante para o jovem Lutero,
"FIFE, Robert Herndon. Young Luther. N e w York: The Macmillan Company, 1928. p. 37.
que ele, alguns anos mais tarde, em seu escrito “ Instrução dos Visitadores aos Párocos
12A descrição resumida a seguir encontra-se amplamente tratada em SCHWIEBERT,
(1528), recomendou exatamente esse tipo de educação musical para as esco as a
p. 110-17.
época. Cf. OL 40, p. 314- 20. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. ss.j

12
A educação inicial formal e a instrução religiosa de Lutero em monitor. Eles iam de casa em casa cantando e pedindo esmolas canta­
Mansfeld introduziram-no nos rudimentos do canto sob a direção de vam também em casamentos e funerais de ricos senhores feudais me­
professores que dominavam a liturgia católica e ajudaram a prepará-lo diante modesto pagamento. Essa prática garantia-lhes uma “bolsa de
para o culto. Desse modo, seu talento musical foi, de acordo com estudos” e era exercida “ sem nenhum desmerecimento ou vergonha,
Boehmer, “despertado e maravilhosamente desenvolvido como resul­ mesmo para os filhos de respeitados e bem situados indivíduos, caso
tado de seu aprendizado” 16. freqüentassem escolas distantes de casa"19. Postarim-mont-o f utom m_
feriu-se a essa experiência em “Prédica para que se Mandem as Crian­
ças à Escola" (1530)!
Magdeburg, Eisenach e E rfu rt Portanto não menosprezem aqueles que batem à sua porta dizen­
do: “Pão pelo amor de Deus”, cantando por um pequeno pedaço de
Por volta da Páscoa do ano de 1497, o jovem Martim, agora com pão; vocês estão ouvindo - como diz o salmo - o cantar de gran­
quatorze nos de idade, foi enviado à cidade de Magdeburg para conti­ des príncipes e senhores. Eu mesmo já fui um desses arrecadado­
res de migalhas que andam clamando de porta em porta, especial­
nuar seus estudos. Quase nada é conhecido a respeito do breve período
mente na minha querida cidade de Eisenach.20
de estudos em Magdeburg, nem mesmo a escola específica que ele
freqüentou. No entanto, como apontado por Bainton: Embora a história do encontro de Lutero com a senhora Cotta tem
sido altamente enfeitada e romantizada, pode ser bem verdade, de acor­
Cada cidade na qual Lutero foi para estudar estava cheia de igrejas e
do com o que Mathesius relata, que ela recebeu Lutero em sua casa
monastérios. Em todos os lugares encontrava-se sempre o mesmo:
campanários, torres de igrejas, claustros, sacerdotes, monges das várias porque gostava de “ seu jeito de cantar e de seu modo piedoso de orar
ordens, coleção de relíquias, badalar de sinos, anúncio de indulgên­ nas igrejas"21.
cias, procissões religiosas, curas em lugares santificados.17
Em Eisenach, segundo Melanchthon, Lutero "completou seus es­
Apenas um ano mais tarde, em 1498, por razões não muito claras,
tudos de latim; e como tinha inteligência perspicaz e esplêndidos dons
os pais de Lutero decidiram mandá-lo para a cidade de Eisenach, onde
para expressar-se, logo ultrapassou seus companheiros em eloqüência,
ele terminaria seus estudos antes de entrar para a universidade na ci­
linguagem e poética”22. Em Eisenach, Lutero foi também influenciado
dade de Erfurt, na primavera de 1501.
pelo vigário da igreja de Santa Maria, Johann Braun, “que nutria gran­
O currículo da Georgenschule em Eisenach seguia o típico currí­ de amor pela poesia e pela música e que representou uma ampliação
culo da Trivialschule e era uma continuação do tipo de educação que de interesses culturais que Lutero jamais havia antes experimentado"23.
Lutero havia iniciado em Mansfeld e Magdeburg. Ele ingressara no ní­ Após três anos em sua “ amada cidade” Eisenach, Lutero partiu para a
vel avançado da escola, e os ensinamentos que recebeu deixaram-no universidade de Erfurt.
profundamente impressionado.18

Em Eisenach, Lutero ingressou em um dos coros da escola, o


Kurrende, composto em sua maioria de jovens sob a direção de um "BOEHMER, 1946, p. 17.
20OL 46, p. 250. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 5, p. 357]
21Apud SCHWIEBERT, 1950, p. 127.
"BOEHMER, 1946, p. 9. “ Ibidem, p. 125.
"BAIN TO N, 1950, p. 27. “ GRIMM, Harold J. The Reformation Era 1500-1650. 2. ed. N e w York: M a c m i l l a n , 1973.
"SCHWIEBERT, 1950, p. 124-28. p. 77.

74 15
Na primavera de 1501, Martim Lutero, não bem ainda com dezoito O "Mosteiro Negro"
anos de idade, matriculou-se na universidade de Erfurt, entrando para
o departamento de artes liberais, no qual alguém bem preparado e for­ Quaisquer que tenham sido as razões que levaram Lutero a bus­
mado em uma boa Trivialschule poderia formar-se em dezoito meses. car salvação na vida monástica, a causa imediata foi seu pavor de ter
Lutero cursou as disciplinas curriculares, dando particular ênfase às sido quase atingido por um raio durante uma tempestade nas proximi­
obras de Aristóteles sobre filosofia natural, metafísica e filosofia moral, dades de Erfurt. Seu susto foi tão grande, que ele gritou aterrorizado:
bem como às ciências do antigo quadrivium - geometria conforme “Ajuda-me, Santa Ana, e eu me tornarei m onge” . Em 17 de julho de 1505,
Euclides, música segundo Jean de Meurs e Tinctoris24, e astronomia. O Lutero requereu admissão no “Mosteiro N egro” em Erfurt, a sede dos
interesse e envolvimento de Lutero com música evidentemente conti­ Eremitas de Santo Agostinho.
nuaram. Alguns anos mais tarde, Crotus Rubianus, relembrando a par­
A vida religiosa para um noviço no “Mosteiro Negro" consistia
ceria com Lutero em Erfurt, disse sobre ele: “Você era o músico e o
em uma rotina diária de exercícios religiosos. Aos monges “era exigida
filósofo erudito de nosso velho círculo”25.
a participação em muitas orações, as quais iniciavam bem cedo pela
A vida de estudante de Lutero em Erfurt foi sem dúvida muito manhã e sucediam-se em intervalos regulares até a vigília da meia-
similar a de qualquer estudante em um seminário teológico. Cada dor­ noite”28. Roland Bainton descreve um típico dia no mosteiro:
mitório, por exemplo, tinha prescrições definidas para o tipo e a quanti­
As orações ocorriam sete vezes ao dia. Depois de oito horas de sono,
dade de orações a ser rezada a cada dia .26 Em Erfurt, Lutero completou os monges eram acordados, entre uma e duas da madrugada, pelo
seu bacharelado e seu mestrado e, então, de acordo com o desejo de badalar do sino do mosteiro. À primeira chamada eles levantavam,
seu pai, iniciou os estudos de direito. Em 16 de julho de 1505, ele convi­ faziam o sinal da cruz e vestiam o hábito branco e o escapulário, sem
os quais os irmãos nunca deveriam sair de sua cela. Ao segundo
dou alguns amigos, incluindo “honradas senhoras e senhoritas” , para
badalar, cada um caminhava reverentemente até a igreja, ungia-se
um jantar de despedida. “A noite foi usufruída em companhia de boa com água-benta e ajoelhava-se diante do altar principal com uma
música, boa comida e alegria .”27No dia seguinte, abruptamente, Lutero oração de devoção ao Salvador do mundo. Então todos tomavam
entrou para o mosteiro dos agostinianos em Erfurt. seu lugar no coro. As matutinas duravam quarenta e cinco minutos.
Cada um dos sete períodos do dia terminava com o coro entoando o
Salve Regina (...). Depois da Ave-Maria e do PaterNoster, os irmãos,
em pares e silenciosamente, deixavam a igreja29.

Os irmãos do Mosteiro Negro, “quando não estavam estudando,


ensinando ou dirigindo um serviço religioso na ordem ou no monastério
(...), ocupavam-se tão-somente com cantar, orar e outras práticas
ascéticas que conduziam à santificação”30. No monastério, Lutero foi
24Apud BOEHMER, p. 24 e BLUME, Friedrich. Protestant Church Music: A History.
N e w York: W.W. Norton, 1974. p. 6 . também “instruído pelo regente do coro nas práticas litúrgicas especí­
25 KO ESTLIN, Julius. The T h eology of Luther. Traduzido por C harles E. Hay. ficas da congregação e no uso do Breviário da Ordem”31, para que ficas­
Philadelphia: Lutheran Publication Society, 1897. v. 1, p. 39.
26“ Os internos do Porta Coeli (uma escola em Erfurt que não poderia ser muito diferente
da escola São Jorge onde Lutero estudou) eram obrigados a orar todo o livro dos 28SCHWIEBERT, 1950, p. 147.
Salmos a cada quinze dias.” FIFE, 1928, p. 55-6. 29BAINTON, 1950, p. 37-8.
27 SMITH, Preserved. The Life and Letters of Martin Luther. Boston and N e w York: 30BOEHMER, 1946, p. 38.
Houghton Mifflin, 1911. p. 5. 31 Ibidem.

16 77
se completamente familiarizado com os sinais do regente e com os com­ Se eu tivesse filhos e deles pudesse cuidar,.jalfis_estudarianLnãp
apenas línguas e história, mas também canto e música (...). Os
plicados rituais dos vários ofícios religiosos que se seguiam das matu­
antigos gregos educavam seus filhos nessas disciplinas; desta for­
tinas até as completas .32 ma eles se tornavam pessoas com admiráveis habilidades, subse­
qüentemente aptos para tudo37.
Em 2 de maio de 1507, no domingo Cantate, quase dois anos após
sua entrada no monastério, Lutero relembrou: “Cantei minha primeira A experiência musical de Lutero no lar, em sua educação escolar
missa” 33. Enquanto estudava teologia, depois de sua ordenação como e em sua vida no monastério tornou-se uma parte importante do con­
sacerdote, nos dias em que tinha preleções para assistir, Lutero “não texto a partir do qual se desenvolveu seu peculiar ponto de vista sobre
tinha que participar, do começo ao fim, de todos os sete ofícios monás­ a música e seu uso na igreja. Dessas experiências, em conjunto com
ticos na igreja do monastério. Mesmo assim o coro ainda o exigia de tal seu crescente conhecimento e sua compreensão das Escrituras, surgi­
forma, que ele teve que se organizar com extremo zelo a fim de estudar ram também insights teológicos peculiares e interpretações que ajuda­
no tempo que lhe sobrava”34. Em uma carta a Johann Lang, Lutero co­ ram a modelar sua visão sobre o papel da música na vida e no culto do
mentou: “Eu dificilmente tenho algum tempo ininterrupto para condu­ povo de Deus de modo ainda mais significativo. No terceiro capítulo,
zir as Orações das Horas e celebrar [missa]"35. examinaremos algumas dessas ênfases teológicas - os paradigmas de
louvor - que tiveram talvez ainda maior importância.
Os agostinianos, em cujo mosteiro em Erfurt Lutero orava, canta­
va os Salmos e celebrava a missa, eram famosos e orgulhavam-se de
sua salmodia. Certamente não foi apenas coincidência, escreveu Erik
Erikson, “que Martim, para quem as canções assumiram tamanha e
exclusiva importância, escolheu a ordem que combinava o cultivo da
voz com estrita disciplina e sinceridade intelectual”36. Mais tarde, quan­
do Lutero tornou-se professor universitário, embora possa ter sido coin­
cidência da agenda acadêmica, suas primeiras preleções foram basea­
das nos Salmos.

As experiências musicais de Lutero no lar, na escola, no monastério


e como sacerdote não eram exclusividade dele. Outros contemporâneos
seus certamente receberam educação e tiveram experiência similar. Seu
entusiasmo pela música, contudo, manteve-se constante. Em 1524, seu
último ano como mèmbro da Ordem dos Eremitas Agostinianos, ele es­
creveu:

32A s últimas horas canônicas dos ofícios religiosos. Nota do tradutor.


33OL 54, p. 234.
^BOEHMER, 1946, p. 44. 37 “A osConselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que Criem e Mantenham
35“A Johann Lang" (W ittenberg, 26 de outubro de 1516), OL 48, p. 28. Escolas" (1524), OL 45, p. 369-70. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 5, p.
36 ERIKSON, Erik H. Young Man Luther. N e w York: Norton, 1958. p. 131-2. 302ss.|
C a p ítu lo 2 das a um sentido espiritual ou místico, vendo com freqüência alegorias
ocultas ou além do literal. Por isso, em sua preleção sobre o Salmo 98
(por volta de 1513-1515), Lutero sugere:
Fazer música com a harpa [ou a voz de um saltério] é fatigar-se em
R U M O A U M A T R A D IÇ Ã O M A I S P R Á T IC A trabalhos de fraquezas e sofrimentos; fazer música com trombetas
de metal é pregar o mistério do reino dos céus e exortar para coisas
espirituais e valiosas3.

De música specu/ativa à música practica Nesse mesmo período, em sua preleção sobre o Salmo 81, ele diz:
Tenho dito que a lira é Cristo alegoricamente e o saltério é sua obra
A educação formal de Lutero no quadrívium enfatizou fortemente e palavra, enquanto a harpa é a igreja unida a ele. E essa união é
a música como uma ciência especulativa (musica speculativa). Tendo agradável. Ou o mesmo Cristo é a harpa por causa do sofrimento e
é a lira por causa de sua realização, mas ambos, e ao mesmo tem­
por base, em grande medida, a compreensão de música derivada de
po, são agradáveis. Ou ele é a doce lira e precisa ser assumido
alguns filósofos gregos como Platão, Aristóteles e Boécio1, a Idade M é­ conjuntamente com a harpa (ou seja, ele com a igreja), ou é sua
dia entendeu a música real, ou seja, a música de execução prática, como ação refletindo seu próprio sofrimento4.
pertencente a um nível inferior, uma mera sombra da música das esfe­
Referindo-se novamente ao sentido das referências a instrumen­
ras celestiais. Essa visão tendia a conceber música como um reflexo do tos musicais no Salmo 33, ele diz:
equilíbrio e da continuidade de um universo ordenado.
Deus deve ser louvado pelos cristãos, e ele é louvado nos dias de
Exemplos do uso dessa linguagem por Lutero ao falar sobre músi­ hoje através de ambos [saltério e harpa] e com muitos outros ins­
ca aparecem especialmente em seus primeiros escritos, particularmente trumentos musicais. No entanto, é mais apropriado considerar os
instrumentos em um sentido místico, para que tão-somente Deus,
em suas preleções sobre os Salmos. Aparecem também posteriormente
e não o ser humano, possa ser louvado através deles (...).
em sua carreira, como, por exemplo, em seus escritos de 1530 sobre
(...) a harpa é o próprio Cristo segundo a natureza humana, o qual
Gênesis, onde ele comentou:
foi esticado na cruz por nós assim como uma corda na harpa. Por­
Não nos maravilhamos dos demais e incontáveis dons da criação, tanto, confessar com a harpa significa refletir sobre as obras e o
pois nos tornamos surdos para aquilo que Pitágoras habilmente sofrimento de Cristo segundo a carne, pois tal reflexão ecoa da
descreveu, a esplêndida e encantadora música advinda da harmo­ terra, da humanidade à divindade5.
nia dos movimentos das esferas celestiais2.
Para Lutero como teólogo, contudo, música não era em primeiro
Seguindo o exem plo de muitos Pais da Igreja primitiva e de plano assunto para especulações místicas ou alegóricas, mas uma arte
exegetas medieváis posteriores, Lutero, especialmente em seus primei­ prática, intimamente ligada à teologia, sendo seu objetivo o louvor ao
ros escritos, não hesitou em procurar passagens da Escritura relaciona­ Criador e a proclamação da palavra. Esse foi o impulso mais abrangente
da vivência pessoal de Lutero com música. A música não foi dada para
especulações, mas como arte prática, que “é o ecoar constante do lou-
1Boécio (cerca de 480 a 524 d.C.) foi escritor e teórico cujos tratados sobre música,
ba sea d os nas co n c ep çõ es dos filó so fos grego s, exerceram fo rte influência na
i compreensão de música como uma ciência especulativa na Idade Média. Nota do 3“Primeiras Preleções sobre os Salmos” (1513-5), OL 11, p. 275.
tradutor. 4Ibidem, p. 103.
2OL 1, p. 126. 5OL 10, 152-3.

20 21
assim como todo estudante de música da Alta Idade Média, ele
vor a Deus e à sua criação (...) (e) guia a pessoa que a pratica em dire­
[Lutero] cantava de forma aplicada e tocava o alaúde, evidente­
ção a Deus, instruindo-a para um melhor entendimento da palavra de mente com aptidão superior. De acordo com seu próprio testemu­
Deus (...) preparando-a a aceitar a graça divina, fazendo dela uma pes­ nho, ele não apenas improvisava acompanhamentos de alaúde para
soa melhor e um cristão mais feliz, livrando-a do diabo e de todas as sua própria voz ou para o canto grupai, mas também dominava a
arte de transcrever composições polifônicas vocais para serem exe­
maldades”6. cutadas ao alaúde7.
O conceito de Lutero foi verdadeiramente reformador, pois mu­ De acordo com anotações feitas em 1540 por Johann Mathesius
dou a ênfase de ciência especulativa que era dada à música para uma “ durante e após a refeição, o doutor [Lutero] algumas vezes cantava e
ênfase prática (musica practica), ou seja, a música como algo a ser exe­ tocava o alaúde. Eu cantava com e le "8. Em outro relato, Mathesius
cutado praticamente, uma arte de performance. Que a música ocupava destacou:
tal espaço na vida de Lutero evidencia-se claramente na forma como
Quando o doutor havia trabalhado até a exaustão, ele se divertia à
ele se aprofundou nos vários aspectos da música à medida que esses mesa, e às vezes cantava um pouco. Na presença das pessoas
tocavam sua vida pessoal e familiar, bem como no grande destaque apropriadas, cantávamos as últimas palavras de Dido contidas no
que deu à música na igreja. Dulces exuviae (“Doces Despojos”) de Virgílio. E Melanchthon tam­
bém se juntava ao canto9.
— Sua própria atividade musical, sua familiaridade com a música e
Lutero cultivou o hábito de cantar música polifônica em seu lar e
os músicos do seu tempo, sua preocupação com que pastores e profes­
o fazia, como ele mesmo diz, com sua “pequena e estúpida voz de te­
sores tivessem uma educação musical de qualidade, seu interesse em
nor”10. Anton Lauterbach, outro copista que registrou as atividades de
enfatizar que a música na igreja deveria receber suporte financeiro ade­
Lutero à mesa, escreveu sobre o Natal de 1538:
quado, seu encorajamento à educação musical das crianças, suas ten­
tativas em compor tanto hinos como peças polifônicas, juntamente com Nesta noite, ele (Martim Lutero) estava muito alegre. Suas conver­
sua colaboração direta com os músicos ocupados com a preparação de sas, seu canto e suas reflexões foram a respeito da encarnação de
Cristo, nosso Salvador11.
música para a liturgia, tudo aponta para uma ênfase em música como
uma arte prática e de performance com uma função direta, crucial e Em sua preleção sobre o Salmo 23, Lutero disse que a palavra
importante na vida e no culto da igreja. - deu-lhe mais força e consolo “do que quando estou sentado à mesa e
tenho tudo o que meu coração deseja: comida, bebida, alegria, prazer,
música e assim por diante” 12.
O envolvimento pessoal de Lutero na práxis musical Comentando a qualidade do canto em seu lar, no qual ele pronta­
» mente participava, Lutero, desculpando-se com os compositores cujas
O conhecimento e uso da musica practica por Lutero eram varia­ peças eram executadas, disse:
dos, intensivos e teoricamente bem fundamentados. Ele tocava flauta e
sua habilidade ao alaúde, ao que tudo indica, não era modesta. Segun­
7 Ibidem,p. 6 .
do Blume, 8NETTL, Paul. Luther and Music. Philadelphia: Muhlenberg, 1948. p. 13.
9Ibidem, p. 15.
“ BLUME, 1974, p. 6 .
nOL 54, p. 326.
“ “Comentário sobre o Salmo 23" (1535-36), OL 12, p. 172.
6BLUME, 1974, p. 10.

23
><*
Nós cantamos tão bem quanto podemos aqui à mesa e mais tarde.
Essa maneira informal de tocar e cantar na c o m p a n h ia de amigos
Se cometemos alguns deslizes, com certeza não é vosso erro, mas
sim nossa habilidade que ainda é muito pequena, mesmo que te­ trouxe, sem dúvida, encanto e satisfação aos participantes, pois, como
nhamos cantado (a peça) mais de duas ou três vezes (...) Portanto, Lutero observou, “nós freqüentemente repetíamos boas canções, em
vocês compositores devem nos desculpar se cometemos erros em especial aquelas que havíamos cantado com prazer e alegria"16.
vossas canções, pois certamente preferiríamos antes cantá-las bem
do que mal13.

Entre aqueles reunidos à mesa de Lutero encontravam-se ocasio­ A música e os músicos na época de Lutero
nalmente cantores mais jovens. Em uma comovente carta enviada a
Thomas Zink, cujo filho estivera em Wittenberg e falecera de grave doen­ Lutero estava bem familiarizado com a música e com muitos dos
ça, Lutero mencionou a participação do jovem nessas sessões informais compositores mais destacados de seu tempo. Seus comentários sobre
de canto: vários compositores, juntamente com sua correspondência, sugerem co­
Estimado amigo! Penso que a esta altura você já foi informado que nhecimento, familiaridade e envolvimento com tudo o que diz respeito
seu querido filho, Johann Zink, o qual foi enviado por ti para estu­ a esses, que excede qualquer coisa que se poderia n o rm a lm e n te espe­
dar conosco, foi acometido de severa doença; embora tenhamos
rar de um reformador como Lutero, envolvido como estava com solicita­
despendido todos os cuidados, atenção e medicamentos, a doen­
ça tornou-se muito forte e levou seu filho, carregando-o rumo ao ções de atenção de todos os lados.
céu, para o nosso Senhor Jesus Cristo. Todos nós éramos muito
Seu compositor predileto parece ter sido Josquin des Prezj(-í- 1521),
afeiçoados ao menino; ele era especialmente estimado por mim - e
convidei-o várias vezes a cantar em minha casa14. um dos maiores compositores da Renascença, sobre o qual ele disse:

O estilo das composições cantadas à mesa de Lutero é bem ca­ Josquin é um mestre das notas, as quais têm que expressar o que
ele deseja; por outro lado, outros compositores que escrevem obras
racterizado por ele em observações feitas em uma das “Conversas à
corais têm que se sujeitar ao que as notas lhes impõem17.
M esa” [Tischreden] e revela admirável compreensão da música polifô-
Em outra ocasião, comentou sobre a música de Josquin:
nica de seu tempo:
Tudo o que é lei não progride, mas o que é evangelho sim. Deus
Quão notável e maravilhoso é que uma só voz entoe uma despre­
tem pregado o evangelho também através da música, como pode
tensiosa e simples melodia (ou tenor, como os músicos dizem) en­
ser visto em Josquin, cujas composições fluem livres, suaves e ale­
quanto três, quatro ou cinco outras vozes são conjuntamente exe­
gres, não são forçadas ou endurecidas por regras e são como o
cutadas; essas vozes flutuam e oscilam ao redor da melodia princi­
canto do canário18.
pal com jovial exuberância e com incessantes e artísticas variações
harmoniosas, sonoridades a adornam e embelezam, e em celestial Nesses comentários, Lutero está claramente “ opinando como um
rondó entrelaçam-se em afáveis carícias e gracioso abraço; assim
músico o faria em termos de perícia e efetividade estética” 19.
que qualquer pessoa minimamente informada fica tocada e maravi­
lhada e conclui que nada há de mais raro no mundo do que uma
canção adornada por tantas vozes15.
16“Comentário sobre o Salmo 118” (1530), OL 14, p. 105. Outras referências à prática de
cantar de Lutero aparecem em OL 48, p. 233; 50, p. 81; 54, p. 96 e 430. [Obras
13BLUME, 1974, p. 6-7. Selecionadas de Martinho Lutero, v. 5, p. 19ss.]
14“A Thomas Zink” (22 de abril de 1532), OL 50, p. 51. Segundo informação contida na 17 BUSZIN, Walter E. Luther on Music. Johannes Riedel (Ed.). Pamphlet Series N. 3. St.
Edição de Weimar (W A, Br 6 , N. 1930, Introdução), Johann Zink era um menino cantor Paul: Lutheran Society for Worship, Music and the Arts, 1958. p. 13.
com voz de soprano. 18OL 54, p. 129-30.
15NETTL, 1948, p. 15-6. 19BLUME, 1974, p. 8 .

24
Outro compositor que Lutero tinha em alta estima era Ludwig como aritmética tampouco como astronomia, mas como música, de
Senfl. Assim como Josquin, Senfl era um católico a serviço de príncipes forma que consideraram teologia e música em estrita união e pro­
clamaram a verdade através de Salmos e cânticos. Mas por que
católicos. Em certa ocasião, após cantar uma das composições de Senfl,
estou a exaltar a música e tento retratar, ou melhor, borrar, tão im­
Lutero comentou com reverência e admiração: “Eu jamais poderia es­ portante tema neste pequeno pedaço de papel? Contudo, meu amor
crever um moteto como este, mesmo que me cortassem em pedaços” 20. pela música, que tantas vezes me encheu de vida e me libertou de
grandes desgostos, é abundante e incontido.
Sua melancólica carta de 4 de outubro de 1530 a Ludwig Senfl,
Mudando de assunto, pergunto se poderia copiar e me enviar, caso
escrita em Coburg enquanto aguardava impacientemente o processo da
o tenha, um exemplar da canção: “Em paz [eu me recostarei e ador­
Dieta de Augsburg, é um exemplo de sua amizade pessoal com outro mecerei]”. Pois este cantus firmus tem me encantado desde a juven­
proeminente compositor de seu tempo. Nessa carta, abaixo citada em tude, e mais ainda agora que entendo o sentido das palavras. Nunca
seu todo, Lutero expõe brevemente algumas de suas idéias sobre o va­ vi essa antífona arranjada para mais vozes. Não quero, contudo,
impor-lhe a tarefa de arranjá-la; antes, assumo que tenha disponível
lor espiritual da música e solicita a Senfl um arranjo coral para uma
um arranjo de outra fonte. De fato, eu espero que o fim de minha vida
determinada antífona gregoriana, a qual incluiu junto com a carta. esteja próximo; o mundo me odeia e não pode suportar-me, e eu, da
mesma forma, abomino e detesto o mundo; portanto, que o melhor e
Por ser o meu nome tão odiado, temo que você não receba e leia a
[mais] justo pastor acolha a minha alma. E assim já comecei a cantar
carta que estou lhe enviando, excelente Ludwig. Mas o amor pela
música, com o qual vejo que foi agraciado e dotado por Deus, tem essa antífona e estou ansioso por ouvi-la arranjada. Em caso de não
superado esse temor. Este amor também me enche de esperanças a ter ou não conhecer, incluo aqui uma cópia da melodia; se desejar,
pode arranjá-la - talvez após a minha morte.
de que minha carta não o exporá a nenhum risco. Pois quem, até
mesmo entre os turcos, censuraria aquele que ama e louva os ar­ O Senhor Jesus permaneça com você para sempre. Amém. Des­
tistas? Porque eles fortemente encorajam e honram a música, eu, culpe minha audácia e prolixidade. Envio respeitosas saudações a
pelo menos, todavia, louvo e respeito sobremaneira seus duques todos os participantes de seu coro.21
da Bavária, mesmo sendo eles tão pouco inclinados a meu favor.
Dois membros do círculo de pessoas mais próximas a Lutero eram
Não resta dúvida de que há muitas sementes de boa qualidade na
Johann Walter, o primeiro chantre luterano, e Georg Rhau, o primeiro e
mente daqueles que são tocados pela música. Aqueles, no entan­
to, que não são tocados [pela música], acredito que são como to­ maior editor de música da Reforma. Em 1524, quando ainda era jovem,
cos [de madeira] e blocos de pedra. Pois nós sabemos que música Walter publicou uma coleção de 43 corais polifônicos, para a qual Lutero
também é odiada e intolerada pelos demônios. De fato, eu aberta­ de muito bom gosto escreveu o prefácio .22 O trabalho de Walter como
mente sentencio, e não hesito em afirmar, que, com exceção da
mestre de capela na cidade de Torgau impressionou Lutero a tal ponto
teologia, [a música] tão-somente produz o que de outra forma so­
mente a teologia pode fazer, a saber, um temperamento calmo e que, em 1525, ele solicitou a ajuda de Walter na preparação da música
A
alegre. Prova clara [disso é o fato de] que o demônio, o criador de para a Missa Alemã de 1526. Neste mesmo ano, Lutero tambem interce­
sentimentos dè tristeza e inquietantes preocupações, bate asas para deu a favor de Walter junto ao príncipe-eleitor João, o Constante, quan­
longe do som da música quase da mesma forma que bate asas
do este dissolveu o coro da corte.
para longe da palavra da teologia. Essa é a razão por que os profe­
tas não fizeram uso de nenhuma arte com exceção da música; quan­
do estabeleceram sua teologia não o fizeram como geometria, nem

20PREUSS, Hans. Martin Luther, der Künstler, 1931 apud ANDERS, Charles. “Luther 21OL 49, p. 426-9.
and the Composers of His tim e". The Musical Heritage of the Church. St. Louis: 220 Geystlich Gesangk Buchleyn ou o assim chamado Hinário de Wittenberg, OL 53, p.
Concordia, 1970, v. 7. p. 41-50. 315-6.

26 27
Georg Rhau, outro amigo de Lutero do círculo de Wittenberg, era em produzir uma música interessante. Nas palavras de Lutero: A r t is s a t
chantre na Thomaskirche (igreja de São Tomás) em Leipzig no tempo h a b e t, sed ca re t s u a v ita te (ele possui suficientes habilidades artísticas,
do famoso debate de Leipzig (1519) entre Lutero e Johann Eck. Para mas faltam-lhe calor humano e entusiasmo)25.
aquela ocasião, ele regeu uma missa a doze vozes de sua própria com­
Lutero tinha também em alto conceito a música de Heinrich Finck
posição, que infelizmente está perdida. A afinidade de Rhau com a Re­
e Pierre de la Rue26, e Nettl conjetura que Lutero, em seus anos de infân­
forma levou-o a transferir-se para Wittenberg, onde ele se tornou o mais
cia e juventude, pode ter ouvido e até mesmo cantado as obras de mes­
importante editor de material musical para o movimento. Ele desenvol­
tres como Ockeghem, Obrecht, Isaac, Heinrich Finck e Adam de Fulda.27
veu e pôs em prática um plano em larga escala para providenciar músi­
ca para as necessidades da Igreja Luterana. Muitos dos volumes que No dia de ano-novo de 1537, Lutero lamentou a morte de alguns
ele publicou incluem prefácios de líderes da Reforma, tais como Me- músicos cuja obra ele muito apreciava. Claramente usando as palavras
lanchthon, Bugenhagen, Rhau e o próprio Lutero. “ dez anos" como estimativa, ele lamentou:
Que tristeza, quantos excelentes músicos faleceram nos últimos
Lutero estava familiarizado também com vários músicos de me­
dez anos: Josquin (morto em 1521), Pierre de la Rue (1518), Finck
nor destaque do seu tempo. Jõrg Planck, um organista na cidade de (1527) e tantos outros homens excelentes. O mundo é indigno de
Zeitz, foi alvo da crítica de Lutero: seus sábios homens28.
Que lex ira operatur (a lei opera com fúria) fica evidente no fato de Tais eram a perspectiva e o ponto de vista de Lutero. O mundo da
que Jõrg Planck toca melhor quando toca para si mesmo do que música era um local de música real (viva), de músicos e compositores
quando toca para outros; pois o que ele faz para o deleite dos ouvi­
reais (de carne e osso), muitos dos quais ele conhecia pessoalmente,
dos de outros soa ex lege (da obediência à lei), e onde há lex (lei)
há falta de alegria; onde há gratia (graça) há alegria23. correspondia-se com eles, considerava-os como amigos e parceiros de
trabalho e juntamente com eles buscou louvar a Deus por meio dessa
E para um certo Weller, um organista na cidade de Freiberg, Lutero
maravilhosa criação e dádiva.
escreveu:
Quando estiveres triste, diz a ti mesmo: “Venha! Eu tocarei uma
canção ao meu Senhor Jesus Cristo ao regai [pequeno órgão por­
tátil], seja o Te Deum Laudamus ou o Benedictus, pois as Escritu­
Apoio e suporte financeiro p ara a música na igreja
ras me ensinam que ele se regozija com canções alegres e com o
som das cordas”. Assim, com espírito renovado, estende as mãos Lutero foi também eminentemente prático em sua insistência em
para as claves (teclas) e canta até que teus pesares sejam levados, que os príncipes e senhores, bem como o povo em geral, dessem ade­
assim como fizeram Davi e Elias24.
quado auxílio aos chantres e coros. Condenava ironicamente aqueles
Quando o compositor Lukas Edemberger apresentou a Lutero al­ que pretendiam poupar dinheiro mitigando seu apoio financeiro.
gumas canções, a maioria delas escrita em estilo canônico, Lutero co­
mentou que não eram nem agradáveis nem prazerosas, pois o composi­
tor parecia mais interessado na composição contrapontística do que
25BUSZIN, 1958, p. 12.
26REESE, Gustav. Music in the Renaissance. (Rev. ed.). N e w York: W. W. Norton, 1954.
p. 674.
“ NETTL, 1948, p. 18-9. 27 NETTL, 1948, p. 9.
^Ibidem, p. 16. æApud BUSZIN, 1958, p. 13.

29
Diversos membros da nobreza e certos indivíduos importantes são Ele [Walter] compôs peças que são muito cantadas atualmente.
da opinião de que pouparam ao meu gracioso senhor a soma de Necessitamos de tais pessoas, não somente para garantir que a
3.000 florins induzindo-o a terminar com seus grupos musicais; ao boa música que está sendo utilizada não seja enterrada, mas tam­
mesmo tempo, no entanto, eles esbanjam 30.000 florins em coi­ bém para garantir que música nova e ainda de melhor qualidade
sas sem importância. Reis, príncipes e senhores têm o dever de seja escrita. Eu considero a manutenção do serviço dessas pes­
apoiar a música: é de fato apropriado e correto que soberanos e soas uma boa causa, com a qual Deus se alegra. Até agora as
governadores normatizem o uso e a propagação das belas-artes. pessoas têm mantido grupos musicais para pompa desnecessária
Enquanto alguns cidadãos do setor privado e o povo em geral e outros propósitos impróprios. Por que não deveria a nobre arte da
têm amor pela música e estão dispostos a financiar o seu cultivo, música permanecer ativa para a causa de Deus, uma vez que é
eles [os soberanos] não são capazes de oferecer-lhe subsistên­ usada para o serviço e a glória de Deus.34
cia e continuidade29.
Sem dúvida, Lutero via o apoio à música, às organizações musi­
E novamente: cais e aos músicos como uma boa obra para a glória de Deus. Fazer
O duque Jorge, o landgrave30 de Hesse, e o duque Frederico, o menos do que isso seria agir com deslealdade no uso dessa dádiva de
príncipe-eleitor da Saxônia, mantinham um coro e uma KantoreP1. Deus no serviço ao seu povo.
No momento, tais organizações musicais estão sendo mantidas pelo
duque da Baviera, pelo imperador Fernando e pelo imperador Carlos.
Pode-se ler na Bíblia que reis piedosos apóiam, mantêm e pagam
salários aos músicos32. Sobre a composição de hinos e música iitúrgica
Lutero importava-se também com a manutenção dos músicos da
igreja. Ele escreveu ao príncipe-eleitor João, o Constante, em 20 de ju­ O interesse de Lutero em música, como uma arte essencialmente
nho de 1526: prática, fez também com que ele desse atenção e se engajasse em es­
crever hinos, canções e, em menor escala, peças polifônicas. Para cada
Em conclusão, meu gracioso senhor, solicito novamente que Vossa
uma dessas áreas, Lutero deu sugestões específicas e não hesitou em
Excelência não permita que a Kantorei se acabe, especialmente
porque os membros que a compõem no momento foram instruídos ensaiar alguns exemplos para o que tinha em mente.
para esse trabalho; além disso, a arte [da música] é digna de rece­
Em 1523, Lutero escreveu a Georg Spalatin solicitando sua ajuda
ber apoio e manutenção de príncipes e senhores, muito mais do
que outros tantos esforços e empreendimentos para os quais nem em providenciar textos para cantos comunitários; na carta, Lutero es­
de longe há tanta necessidade (...). Os bens e as posses dos boçou suas idéias:
monastérios poderiam ser muito bem utilizados para cuidar dessas
[Nosso] plano é seguir o exemplo dos profetas e dos Pais da Igreja
pessoas. Deus se alegraria com tal ação33.
primitiva e compor salmos para o povo [no] vernacular, ou seja,
Nesse mesmo ,dia, Melanchthon também escreveu a João, o Cons­ cânticos espirituais, para que a palavra de Deus esteja entre as
tante, enfatizando que ele não despedisse um homem como Johann Walter: pessoas também na forma de música. Para isso estamos procuran­
do por poetas em todos os lugares. Já que você é dotado de abun­
dante [conhecimento] e elegância [no manuseio] do idioma alemão
29Ibidem, p. 13-4. e considerando que você poliu [seu domínio do alemão] através de
30Título usado por vários condes do Sacro Império Romano Germânico desde o século muita prática, eu te peço que trabalhes conosco nesse projeto (...).
12. Nota do tradutor.
Mas eu gostaria de evitar quaisquer novas palavras ou a linguagem
31 Refere-se aqui ao grupo de cantores e instrumentistas profissionais das cortes
protestantes nos séculos 16 e 17. Nota do tradutor.
32Ibidem, p. 14.
33 Ibidem, p. 9.
:MIbidem, p. 8-9.

30
usada na corte. Afim de ser entendido pelo povo, somente as pala­ A experiência e instrução de Lutero no estilo do cantochão servi­
vras mais simples e mais comuns deveriam ser usadas para o can­ ram-lhe de base para saber como transferir essa gloriosa tradição musi­
to; ao mesmo tempo, no entanto, elas devem ser genuínas e apro­
priadas. E, além disso, o sentido deve ser cristalino e o mais próxi­ cal para uma liturgia na língua vernácula. Em suas considerações so­
mo possível do salmo. Aqui você necessita de criatividade: mante­ bre o tópico de uma missa em vernáculo, ele modestamente sugeriu:
nha o sentido, mas não se prenda às palavras; [de preferência] “Eu não estou qualificado para essa tarefa, a qual requer ambos: talen­
traduza-as por outras mais apropriadas35. to em música e o dom do Espírito”40. Idéias mais específicas de Lutero
Nessas recomendações transparece a preocupação de Lutero com sobre a relação entre o canto e as palavras são expressas mais clara­
que as canções populares no vernáculo sejam o resultado não apenas mente em seu escrito “Contra os Profetas Celestiais com Respeito às
do uso habilidoso da linguagem, mas também de uma autêntica arte Imagens e Sacramentos" (1525), onde ele escreveu:
poética cristã, para a qual apenas a piedade não é material suficiente. Muito me aprazeria ter uma missa em alemão já hoje. Tenho me
Lutero reitera essa idéia em sua “Instrução dos Visitadores aos Párocos ocupado com isso, mas eu gostaria imensamente que ela tivesse
no Eleitorado da Saxônia” (1528): “Caso alguém queira compor hinos um autêntico caráter alemão. Aprovo a tradução do texto em latim e
a retenção da entonação latina ou das notas, embora tal procedi­
em alemão, não o deixem presumir que possa fazê-lo a menos que este
mento não soe elegante ou bem acabado. Ambos, o texto e as
alguém tenha o dom da graça para isso"36. notas, prosódia, melodia e maneira de execução devem brotar au­
tenticamente da língua-mãe e de suas inflexões; do contrário, tudo
Lutero não apenas providenciou a participação de poetas e ou­
não passará de imitação e macaqueação41.
tras pessoas experientes na composição de hinos comunitários, mas
ele mesmo lançou-se à tarefa, escrevendo textos originais para hinos A fim de que a música para a Missa Alemã estivesse em confor­
bem como revisando antigos textos e conformando-os às novas con­ midade com suas idéias, Lutero convidou Johann Walter e Konrad
cepções da Reforma.37 Da mesma forma, Lutero também se lançou à Ruppsch de Torgau, dois músicos com os quais estava bem familiariza­
tarefa de escrever melodias para hinos. Em geral é aceito que pelo me­ do e cujas opiniões respeitava, a vir para Wittenberg e auxiliá-lo. As
nos três melodias de hinos são de autoria do próprio Lutero: Wir glauben memórias de Johann Walter sobre a visita, escritas nos últimos anos de
ali an einen Gott, Ein feste Burg e Isaiah dem Propheten das geschah38, sua vida e registradas na Syntagma musicum de Michael Praetorius
um Sanctus em forma de hino composto para a Missa Alemã. Conside­ (1615-1620), refletem claramente o sólido entendimento de Lutero so­
rando sua educação e experiência musical e o fato de Lutero viver numa bre música. Evidenciam também o envolvimento direto de Lutero na
época em que a tradição dos Meistersinger 39 prescrevia que o autor da produção de várias das melodias da Missa Alemã.
poesia e da melodia fosse a mesma pessoa, seria estranho que ele não Quando ele, Lutero, há quarenta anos, quis introduzir a Missa Ale­
tentasse dar expressão musical aos seus próprios textos. mã em Wittenberg, ele comunicou esse desejo ao príncipe-eleitor
da Saxônia e ao falecido duque João. Recomendou com insistên­
cia que Sua Excelência Eleitoral trouxesse o velho mestre-cantor, o
ilustre Konrad Ruppsch, e a mim para Wittenberg. Na ocasião, dis­
35“A Georg Spalatin” (Wittenberg, fim de 1523), OL 49, p. 68-9.
cutiu conosco as melodias gregorianas e a natureza dos oito mo­
“ OL 40, p. 300.
dos e, ao final, ele mesmo aplicou os oito modos às epístolas e ao
^ e j a OL 53 para uma avaliação comumente aceita desses hinos nos quais Lutero
tomou parte, como revisor ou como autor do texto original. [Obras Selecionadas de
evangelho, dizendo: “Cristo é um Senhor amável, e suas palavras
Martinho Lutero, v. 7, p. 485ss.] são doces; portanto nós queremos usar os seis modos para o evan-
38 ‘Nós cremos todos em um só Deus", "Castelo Forte” e “A o profeta Isaías aconteceu
o seguinte” . Nota do tradutor. 40“A Nicolau Hausmann” (Wittenberg, 7 de novembro de 1524), OL 49, p. 90.
“ Corporação de artesãos-artistas da Alemanha dos séculos 14 a 16. Nota do tradutor. 41OL 40, p. 141. _ _ _ _ _ _

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32 33
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gelho; e porque Paulo é um apóstolo sério, nós queremos arranjar bre um outro versículo favorito de Lutero: “Não morrerei; antes viverei,
os oito modos para as epístolas”. O próprio Lutero escreveu a mú­
e contarei das obras do Senhor” (Salmo 118.17). Foi este o versículo que
sica para os trechos bíblicos e para as palavras da instituição do
verdadeiro corpo e sangue de Cristo, cantou-as para mim e pediu Lutero escreveu com as notas em estilo de cantochão na parede de sua
minha opinião a respeito. Ele manteve-me por três semanas para sala de estudos em Coburg.
anotar corretamente os cantos do evangelho e das epístolas, até
que a primeira missa foi cantada em Wittenberg. Eu tive que estar
Ao que parece, Lutero gostava tanto desse versículo, que ele mes­
presente na missa e levar comigo para Torgau uma cópia desta mo escreveu uma versão polifônica, em que a voz condutora do tenor
primeira missa. Pode-se ao mesmo tempo ver, ouvir e entender como consistia em uma versão levem ente floreada do oitavo modo de
o Espírito Santo tem agido não somente nos autores que escreve­ entonação dos Salmos.44 Um pequeno moteto sobre o texto em latim
ram os hinos em latim e os musicaram, mas no próprio senhor Lutero,
que criou a maioria da poesia e da melodia dos cantos em alemão.
(Non m oriar sed vivam ) foi publicado com o nome de Lutero em
No Sanctus em alemão pode ser visto como ele arranjou melodia e Wittenberg (1545) no drama Lazarus, de autoria de Joachim Greff. Re­
texto com a correta prosódia e harmonia musical em um verdadeiro conhece-se, em geral, que Lutero escreveu tal moteto .45 E possível que
trabalho de mestre. Na ocasião, fui tentado a perguntar à Sua Re­ uma segunda composição, “Höre Gott mein Stimm’ in meiner Klage”
verência de onde vinham aquelas peças e o seu conhecimento, o
que fez com que o amável homem risse de minha simplicidade. Ele
(Ouve, Senhor, minha voz no meu lamento), também seja de autoria de
me disse que o poeta Virgílio lhe havia ensinado, ele, que é artisti­ Lutero .46
camente tão capaz de ajustar métrica e palavras ao que quer trans­
mitir. Toda música deveria ser concebida de tal forma que suas no­
tas estejam em harmonia com o texto.42
A educação musical das crianças na escola
Lutero estava tão preocupado com o correto modo de entoar os
cantos da Missa Alemã, que incluiu numerosos exemplos musicais, entre Entre os principais interesses de Lutero estava a educação das
os quais exemplos de como entoar a epístola e o evangelho, a música crianças nas escolas. Ao escrever “Aos Conselhos de Todas as Cidades
para as palavras da instituição e a música para o Sanctus alemão .43 da Alemanha para que Criem e Mantenham Escolas” (1524), Lutero sa­
lientou:
Falo por mim mesmo: se eu tivesse filhos e tivesse condições, não
O empenho de Lutero como compositor deveriam aprender apenas as línguas e História, mas também deve­
riam aprender a cantar e estudar Música (...)47.
Já nos referimos à habilidade e ao envolvimento de Lutero na com­
A educação musical que Lutero recebeu na infância deixou nele
posição de melodias para hinos. No entanto, ele também tinha uma
uma marca indelével; alguns anos mais tarde, em sua "Instrução dos
modesta habilidadfe para escrever música polifônica. Em 1530, Lutero
Visitadores aos Párocos” (1528), ele recomendou o mesmo tipo de edu-
escreveu para o compositor Ludwig Senfl solicitando-lhe um arranjo da
antífona “Em paz me deito e adormeço, porque, Senhor, só tu me fazes
repousar seguro” (Salmo 4.8) em uma composição polifônica para várias “ Fórmula melódica de entonação dos Salmos e outros textos relativa ao Sistema M odal
vozes. Senfl respondeu a Lutero enviando uma composição musical so- em música. Nota do tradutor.
45OL 53, p. 339-41.
46Veja MOSER, H. J. “Der Zerbster Lutherfund” . In: Archiv für Musikwissenschaft 2
“ NETTL, 1948, p. 75-6. (1920): p. 337, citado em REESE, p. 673.
43OL 53, p. 61-90. 47OL 45, p. 369. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 5, p. 319]
1

cação musical nas escolas da época. Ao sugerir que as crianças fossem sa ou vespertinas após o sermão .53 Em seu escrito “Exortação à Oração
divididas em três grupos, recomendou que o primeiro grupo, o mais Contra os Turcos” (1541), ele deu uma sugestão mais detalhada:
jovem, “deve receber ensinamentos musicais e cantar com os demais”48.
Esta é a maneira que devemos orar na presente crise com os turcos.
A respeito das crianças do segundo grupo, ou grupo intermediário,
O povo deve ser estimulado à devoção sincera através da oração
Lutero recomendou: “Todas as crianças, grandes e pequenas, devem
pública nas igrejas. Agradar-me-ia, caso isso agradasse também a
praticar música diariamente na primeira hora da tarde”49. Quanto ao pastores e à comunidade, entoar o Salmo 79 após o sermão aos
terceiro grupo, o dos mais velhos, disse: “Quando as crianças estive­ domingos, tanto no culto da manhã como no da tarde - ou alterna­
rem bem instruídas em gramática, as melhores podem ser selecionadas damente.
para um terceiro grupo. Juntamente com as outras, elas devem praticar Depois disso, um menino integrante do coro com boa voz dá um
música durante a tarde”50. Seguindo sua própria recomendação, alguns passo à frente e canta em solo a antífona: “Senhor, não de acordo
com nossos pecados”. Após isso, um segundo menino do coro can­
anos mais tarde, Lutero escreveu para Marcus Crodel:
ta a outra antífona: “Senhor, não te recordes das iniqüidades dos
Estou lhe enviando meu filho João para que seja incluído no grupo nossos antepassados”. Em seguida, todo o coro, ajoelhando-se,
de meninos que serão instruídos em gramática e música (...). E canta: “Ajuda-nos, ó Senhor”. Lembremo-nos de fazer tudo isso com
diga a Johann Walter que eu oro por seu bem-estar e que confio muita reverência, assim como o fazíamos durante a Quaresma no
meu filho a ele para aprender música, pois eu, é claro, formo teólo­ tempo em que estávamos sob a dominação do papado. As pala­
gos, mas gostaria também de formar filósofos e músicos51. vras ajustam-se tão perfeitamente à nossa situação com os turcos,
basta segui-las de coração.
O ensino de música nas escolas também recebia implementação
Após isso, se desejar, a comunidade pode cantar: “Concede-nos a
prática mediante a participação de crianças no culto. Essa atividade
paz” ou o Pai-Nosso em alemão54.
funcionava também como uma maneira do povo aprender como deve­
ria proceder durante o culto. Para Lutero, a música era parte indispensável da boa educação,
não somente a música voltada a si mesma, mas também em relação à
O povo irá aprender dos pupilos o que, quando e como deve cantar
função que ela poderia desempenhar na vida dos jovens quando parti­
e orar na igreja; irá também aprender o que cantar no ato da
encomendação de corpos ou junto à sepultura. Quando os pupilos cipam do culto; ele defendeu a educação musical e promoveu sua in­
ajoelharem e cruzarem as suas mãos em oração e o mestre-escola clusão no currículo escolar sempre que teve a oportunidade.
marcar o tempo com seu bastão enquanto cantam “E foi feito ser
humano”, o povo irá imitá-los.52

Por vezes, Lutero fez sugestões suplementares sobre a participa­ A educação musical de pastores e professores
ção dos jovens, por exemplo, que eles poderiam cantar a litania na mis­
Lutero, em sua extrema preocupação com a música na igreja e na
escola, foi inflexível no que diz respeito à educação musical tanto de
pastores como de professores. Aqueles que tinham a incumbência de
“ OL 40, p. 316; veja p. 314-20. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 308] educar os jovens bem como aqueles incumbidos de liderar o culto pú-
49Ibidem.
“ Ibidem, p. 319.
51“A Marcus Crodel” (Wittenberg, 26 de agosto de 1524), OL 50, p. 231-33. 53“Da Guerra Contra os Turcos” (1529), OL 46, p. 172. [Obras S e l e c i o n a d a s de Martinho
“ “Dos Concílios e da Igreja” (1539), OL 41, p. 137. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 6 , p. 419-20]
Lutero, v. 3, p. 300ss.] MOL 43, p. 231. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 6 , p. 456s.[

36 37
blico da igreja deveriam ser bem instruídos em música para correspon­ Capítulo 3
der a essas importantes responsabilidades.
A necessidade exige que a música permaneça nas escolas. Um
professor deve saber cantar; do contrário, não o considerarei. An­
tes que um jovem seja admitido ao ministério, ele deve praticar PA R A D IG M A S D E L O U V O R
música na escola.55

Lutero desprezava particularmente aqueles que “queriam ser teó­ Onde quer que cristãos tenham se reunido para adorar e louvar a
logos quando não sabiam nem sequer cantar"56. No entanto, tinha gran­ Deus, eles entoaram canções - de fé e confiança, de penitência e con­
de admiração por aqueles que ensinavam os jovens a cantar e a prati­ fissão, de exílio e renascimento, de confissão e salvação. Ao longo de
car a palavra de Deus. vinte séculos de história cristã, palavras e música juntas têm sido um
Se o professor é um homem piedoso e ensina os meninos a enten­ meio para cantar o velho canto em uma nova terra.
der, a cantar e a praticar a palavra de Deus (...), então (...) as esco­
A maneira como a igreja viu a relação entre música e sua vida co­
las são em verdade hodiernos e permanentes concílios, que talvez
sejam mais efetivos do que muitos outros grandes concílios.57 munitária, no entanto, nem sempre foi perspicaz e consistente. A fim de
admitir isso, a igreja teve que ignorar os vários pontos de vista conflitantes
O envolvimento de Lutero em todos os setores da música com os
que adotou, oficial ou extra-oficialmente, no transcorrer da história. Su­
quais tomou contato reflete que ele entendia a música como uma arte
gerir que essas diferentes percepções sejam o resultado arbitrário de um
prática e de performance, que exercia grande poder na vida pessoal e na
vago espírito de inovação, contudo, é interpretar mal a história. Elas po­
vida de adoração a Deus de cada cristão. Quer se tratasse de sua própria
dem, com melhor proveito, ser entendidas como resultado da interação
participação em atividades musicais práticas, de sua familiaridade com
entre pontos de vista teológicos específicos, práticas musicais e circuns­
a música e com muitos dos músicos do seu tempo, de sua insistência em
tâncias culturais da época. Em alguns casos, com o aparecimento de novas
que a música e os músicos da igreja recebessem apoio adequado, de seu
correntes teológicas, práticas musicais e devocionais adaptaram-se às
envolvimento pessoal na preparação de música para a liturgia, de suas
novas tendências. Outras vezes, a seqüência foi revertida, ou seja, a pie­
composições de hinos e tentativas de escrever pequenas peças polifôni-
dade popular exigiu mudanças no estilo e na prática musical, requeren­
cas, de sua ênfase na importância da educação musical ou de sua exi­
do um ajustamento no entendimento teológico.
gência que pastores e professores fossem adequadamente preparados e
instruídos em música, ele foi muito além de ver a música apenas como Em diferentes momentos da história da igreja, certos paradigmas
ciência especulativa. Para Lutero, música era uma arte para ser pratica­ - modelos conceituais ou modos de refletir sobre música - dominaram
da e executada, uiha arte que deleitava a alma e trazia vida para a pala­ de tal maneira que determinaram não somente como a igreja entendeu
vra do evangelho. Para ele, música era, invariavelmente, a viva vox o papel da música, mas também como, em que medida e sob quais
evangelii, a viva voz do evangelho, uma dádiva de Deus para ser usada condições o uso da música foi permitido em sua vida e em seu culto.
em toda a sua plenitude no louvor e na oração cristã. Nas reflexões e nos escritos de Martim Lutero aparecem clara­
mente certos temas aos quais ele retorna repetidas vezes, certos
“ PLASS, Ewald M. What Luther Says. St. Louis: Concordia, 1959. p. 980. “paradigmas de louvor" que ajudaram a formar seu entendimento so­
“ ‘‘Preleção Sobre Tito" (1527), OL 41, p. 176.
Dos Concílios e da Igreja" (1539), OL 41, p. 176. [Obras Selecionadas de Martinho bre o papel da música no cultus Dei e no todo da vida dos cristãos.
Lutero, v. 3, p. 396] Nenhum dos paradigmas que Lutero expôs era, estritamente falando,

38
novo. Todos podiam ser encontrados na história da igreja, mas foram Oh, quão sábia a invenção do professor que imaginou como ele
poderia ao mesmo tempo cantar e aprender coisas úteis2.
freqüentemente obscurecidos por outros paradigmas que distorceram
ou ofuscaram seu afloramento. O Espírito Santo, sugeriu Basílio, combinava o prazer da melodia
com ensinamentos a fim de que, através do deleite e da suavidade do
A contribuição de Lutero concentrou-se em um grupo de paradig­
som, nós recebêssemos sem perceber o que era útil nas palavras3.
mas e elevou-o a uma posição de decisiva importância. Desta forma ele
iniciou um movimento que iria reformar o modo como a igreja entendia Por outro lado, Basílio advertia com a mesma ênfase a respeito
e praticava a arte da música em sua vida e em seu culto. Para Lutero, dos perigos da música ao admoestar que “não seja o cristão seduzido
havia cinco compreensões centrais, cinco “paradigmas de louvor” : 1 - pelos prazeres da melodia às paixões da carne”4. Em suas Confissões,
música como criação e dádiva de Deus; 2 - música como proclamação e Agostinho observou:
louvor; 3 - música como canto litúrgico; 4 - música como a canção do As diferentes paixões de nosso espírito têm seus próprios estados
sacerdócio geral de todos os crentes; 5 - música como um sinal de con­ de ânimo correspondidos na variedade da voz e do cantar e que
são, por alguma misteriosa associação, incitados5.
tinuidade com a igreja una.
Conseqüentemente, ele advertia sobre os perigos que via na mú­
sica:
M úsica como criação e dádiva de Deus Repetidas vezes sucede que sou mais tocado pela voz do que pelo
conteúdo da canção. Nesse momento, eu confesso a mim mesmo
Desde os tempos da igreja primitiva até a Idade Média, dois ter pecado gravemente e preferiria não ter ouvido a música6.
paradigmas ou modelos especialmente determinantes na função da As conseqüências de perceber música como guardiã e formadora
música na vida e no culto da igreja foram a música como instrutora ou da moral foram claramente evocadas por Calvino, que era fortemente
pedagoga e a música como guardiã da moral. O primeiro paradigma influenciado por Agostinho, no século 16.
refletia a contínua necessidade da igreja de doutrinação, não apenas Dificilmente há algo no mundo com maior poder de alterar e desviar
para a formação dos crentes, mas também para confrontar visões heré­ para uma ou outra direção a moral das pessoas (...). Ela [a música]
ticas exteriores a ela e apostasias em seu interior. O segundo refletia a tem um poder secreto de tocar nossos corações de uma ou outra
contínua influência e importância do pensamento de filósofos como forma. Por esse motivo nós temos que estar sempre muito atentos
em sua regulamentação, de forma que ela possa nos ser útil e de
Platão, Aristóteles e Boécio na formação da atitude da igreja em rela­
nenhuma maneira nociva.7
ção à música.1
Lutero não negou a importância de nenhum desses modelos. Na
Portanto, já no quarto século, São Basílio, em reação ao primeiro verdade, tais modelos encontram-se refletidos em suas próprias ideias
desses paradigmas, escreveu entusiasticamente em sua Homilia sobre e escritos. No prefácio ao hinário de Wittenberg de 1524, ele recomen­
o Primeiro Salmo:
2 STRUNK, Oliver. Source Readings in Music History. N e w York: W. W. Norton, 1950. p.
65.
3 Ibidem, p. 65.
4 Ibidem, p. 66 .
'Para uma discussão mais abrangente sobre esse tópico veja o artigo de Cari Schalk 5 Ibidem, p. 74.
“A Sedução da Música da Igreja", em Church Music 79. St. Louis: Concordia, 1979. p. 6 Ibidem, p. 74.
2 - 10 . 7 Ibidem, p. 347.

40
dou entusiasticamente o canto de hinos, Salmos e canções espirituais Lutero contrasta aqueles que entendem a música como uma dá­
“de forma que a palavra de Deus e os ensinamentos cristãos possam diva de Deus com os entusiastas que condenavam e desejavam, sem­
ser lentamente instalados e implantados de diversas formas"8. Ele ob­ pre que possível, destruir todo e qualquer tipo de arte sacra.
serva que as canções nessa coletânea foram arranjadas “para dar aos Também não sou da opinião de que, pelo evangelho, todas as ar­
jovens - que devem de qualquer forma ser educados em música e ou­ tes devam ser massacradas e desaparecer, como pretendem al­
tras belas-artes - algo que os afastasse das baladas românticas e can­ guns pseudo-espirituais. Na verdade, eu gostaria que todas as ar­
tes, especialmente a música, estivessem a serviço daquele que as
ções carnais e, em seu lugar, lhes ensinasse algo de valor” 9.
concedeu e criou.12
Embora Lutero não tenha negado a importância desses primeiros
No seu “ Tratado Sobre as Últimas Palavras de Davi” (1543), Lutero
modelos, ele preferiu apontar para um paradigma mais básico e pri­
observou que essa “maravilhosa criação e dádiva de Deus” auxilia con-
mordial que, simultaneamente, abarcava e suplantava ambos. Para
cretamente a conhecer e proclamar o Messias, muito mais do que o
Lutero, esse paradigma, esse foco vital de consciência e compreensão
mero ato de ler ou falar.
- que para ele representava a base para se entender a música na vida e
adoração do povo de Deus —, era a música como criação e dádiva de O livro dos Salmos é uma doce e encantadora canção porque ele
canta e proclama o Messias mesmo quando uma pessoa não canta
Deus.
as notas, mas tão-somente recita e pronuncia as palavras. Ainda
As próprias palavras de Lutero ratificam esse argumento repeti­ assim, a música, ou as notas, que são uma maravilhosa criação e
dádiva de Deus, auxilia nisso concretamente, de forma especial
das vezes. No prefácio para a Symphoniae iucundae, de Georg Rhau, quando o povo canta em conjunto e participa com reverência.13
Lutero enfatizou repetidamente a música como dádiva de Deus.
De modo similar, em suas “Conversas à M esa” , Lutero fala de mú­
Certamente eu gostaria de honrar a música com todo o meu cora­
sica como uma dádiva de Deus que deveria ser ensinada aos jovens, par­
ção como a esplêndida dádiva de Deus, o que ela é de fato, e
recomendá-la a todos (...). ticularmente em contraste com os fanáticos que pregavam o contrário.

E você, jovem amigo, que essa nobre, benéfica e agradável cria­ Música é uma extraordinária dádiva de Deus e muito próxima à
ção de Deus lhe seja confiada (...). Ao mesmo tempo habitue-se, teologia. Eu não abriria mão de meus poucos conhecimentos musi­
através dessa criação, a reconhecer e a louvar o Criador.10 cais em troca de nada. Aos jovens deveria ser ensinada essa arte,
pois ela forma pessoas finas e habilidosas.14
Desconsiderar a música como criação de Deus é, para Lutero, pôr
Não estou contente com aqueles que desdenham a música, assim
em dúvida nossa própria humanidade. como os fanáticos fazem; pois música é uma doação e um presen­
Alguém que reflete a respeito [da música] e, no entanto, não a con­ te dado por Deus, não um presente dado por seres humanos (...).
sidera como a maravilhosa criação de Deus só pode ser um estúpi­ Eu coloco a música próxima à teologia e lhe concedo o mais alto
do e não merece ser chamado de ser humano; a essa pessoa não louvor.15
deveria ser permitido ouvir nada além do zurro dos asnos e do gru­
nhido dos porcos.11
"BUSZIN, Walter E. Luther on Music. Johannes Riedel (Ed.). Pamphlet Series N. 3. St.
Paul: Lutheran Society for Worship, Music and the Arts, 1958. p. 6 .
OL 53, p. 316. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 481] “ “ Prefácio ao hinário W ittenberguense” (1524), OL 53, p. 316. [Obras S e l e c i o n a d a s de
9Ibidem, p. 316. Martinho Lutero, v. 7, p. 481]
“ Ibidem, p. 321- 24. 13OL 15, p. 273-74.
BUSZIN, Walter E. Luther on Music. Johannes Riedel (Ed.). Pamphlet Series N. 3. St. 14 PLASS, Ewald M. What Luther Says. St. Louis: Concordia, 1959. p. 979.

Paul: Lutheran Society for Worship, Music and the Arts, 1958. p. 6 . “ Ibidem, p. 980.

42 43
Lutero comentou também que o poder da música levou-o muitas Para Lutero, os resultados práticos de tal ponto de vista eram ób­
vezes a pregar. “A música é a maior das dádivas de Deus. Ela tem tão vios. Quando a música é vista, em primeiro lugar, como dádiva de Deus,
freqüentemente me estimulado e inspirado, que sinto o desejo de pregar. ”16 ela é colocada próxima à teologia em importância, e isso dá à igreja a
Lutero diz, nas mais variadas formas, que música é uma dádiva liberdade de usar sem temor toda e qualquer música.
oferecida por Deus no ato da criação. Assim como comentou Eugene Em um pequeno e notável escrito, Lutero levou adiante a discus­
Brand, música, para Lutero, era “parte e parcela da maneira como o são e comentou que no cultivo da música no mais alto nível de excelên­
mundo está feito e contribui para sua preservação. Ela não é primaria­ cia são evidenciadas a bondade e a sabedoria de Deus:
mente uma arte ou uma ciência; ela é uma criatura de Deus” 17. Dito do Quando o aprendizado [musical] é adicionado a tudo isso e a músi­
modo mais simples possível, a concepção primordial de Lutero sobre a ca artística, a qual corrige, desenvolve e refina a música natural,
relação entre música, vida cristã e culto é que ela é a boa e graciosa então, finalmente, é possível provar com admiração (mesmo sem
dádiva de Deus, o Criador, oferecida à humanidade para que nós, em compreender) a absoluta e perfeita sabedoria de Deus em sua mag­
nífica obra musical20.
retorno, a utilizemos no louvor a Deus e na proclamação do evangelho.
Lutero entendia que as formas musicais mais desenvolvidas e ele­
Não perceber toda a criação, especialmente a música, como dádi­
vadas de seu tempo - o canto gregoriano e a polifonia - deveriam ser
va de Deus poderia ser atribuído, diz Lutero, a uma falha no discerni­
ensinadas aos jovens e cantadas nas igrejas, juntamente com canções
mento daquilo que os filósofos gregos descreveram como a inata “har­
comunitárias mais simples. A tradição renascentista latina, como ob­
monia das esferas” , embutida na própria criação.
servado anteriormente, desenvolveu uma sofisticada arte musical para
Não nos maravilhamos dos demais e incontáveis dons da criação, a igreja com pouca, ou nenhuma, música para o povo. A tradição
pois nos tornamos surdos para aquilo que Pitágoras habilmente
descreveu como a esplêndida e encantadora música advinda da
calvinista excluiu completamente a música artística do culto comuni­
harmonia dos movimentos das esferas celestiais.18 tário, fazendo uso tão-somente da salmodia congregacional. A Reforma
Luterana, em contraste com as duas tradições acima e decorrente do
Em contraste com a lógica humana, a qual vê a criação por si só
entendimento básico de Lutero da música como criação e dádiva de
como ímpia, os cristãos, por meio do Espírito, vêem o mundo como dá­
Deus, encorajou, com bons resultados, a interação das formas musicais
diva de Deus para o benefício da humanidade e por isso entoam cânticos.
mais elevadas e desenvolvidas com o simples canto comunitário. O re­
A lógica vê o mundo como extremamente ímpio e conseqüente­
sultado foi uma próspera tradição de música da igreja imbuída de exce­
mente resmunga. O Espírito vê tão-somente os benefícios de Deus
no mundo e, portanto, inicia um cântico.19 lência, simplicidade e profundidade, amplamente comprovada no de­
senvolvimento do tesouro da música coral, organística e comunitária
nos anos após a Reforma.

16Ibidem, p. 982.
Em 1538, Lutero escreveu um prefácio poético intitulado “Um Pre­
17 BRAND, Eugene. “Luther: The Theologian of M usic” . Pastoral Music 8 , n. 5 (June- fácio a Todos os Bons Hinários” para a apologia em rimas de J oh an n
July 1984), p. 21. Volume integralmente dedicado a concisos e valiosos artigos sobre Walter - “Glória e Exaltação à Louvável Arte da Música" -, na qual
uma grande variedade de temas relacionados a Lutero e à música escritos por Margaret
Sihler-Anderson, John Ferguson, Carl Volz, Carl Schalk, Victor Gebauer, Mark Bangert,
Carlos Messerli e Mons Teig.
18“ Preleções sobre G ênesis” (1535-36), OL 1, p. 126. 20“Prefácio a Symphoniae iucundae de Georg Rhau” (1538), OL 53, p. 324. Para outra
19“Preleções sobre Isaías, Capítulos 40-66” (1527-30), OL 1, p. 126. tradução dessa passagem veja BUSZIN, p. 6 .

44
Walter desenvolveu toda uma teologia da música com base nos isola­ maestrina da música.
dos comentários de Lutero sobre o tema. Lutero, em seu prefácio, pôs Para nosso querido Senhor ela entoa seu cântico,
em seu louvor noite e dia,
suas palavras nos lábios de Frau Musica [Senhora Música]. Vale a pena a ele eu ofereço meu canto
citá-lo integralmente como um exemplo da admiração de Lutero por e agradeço por toda a eternidade.21
essa boa criação e dádiva de Deus.
Ao enfatizar a música como criação divina, e não como criação
A Senhora Música [diz:] humana, e como dádiva de Deus às pessoas para que a usem em seu
Dentre todos os prazeres sobre a terra louvor e adoração, Lutero preparou o cenário para que compositores,
não há maior que seja dado a aiguém comunidades, coros e instrumentistas fossem livres para desenvolver
do que aquele que eu proporciono com meu canto
seus talentos e suas habilidades até o mais alto grau possível. A músi­
e com doces sonoridades.
Não pode haver má intenção ca que se desenvolveu na tradição luterana é a evidência eloqüente de
onde houver companheiros cantando bem, que a igreja, juntamente com seus músicos, reconheceu no paradigma
ali não há zanga, briga, ódio nem inveja; de Lutero, ou seja, a música como criação e dádiva de Deus, um ele­
toda mágoa tem que ceder,
mento preponderante para alicerçar o desenvolvimento de uma rica
mesquinhez, preocupação e o que mais atribular
não mais oprimem o coração. cultura musical na qual podem viver, trabalhar, tocar e louvar a seu Deus.
Além disso, cada qual tem o direito
desse prazer não ser pecado,
cada pessoa pode ser livre em sua alegria,
M úsica como proclamação e louvor
pois nesse prazer não pode haver pecado,
mas agrada a Deus muito mais
do que todos os prazeres do mundo inteiro. O paradigma fundamental de Lutero para a música na vida da
Através de minha força o diabo foge, igreja é que a música é criação e dádiva de Deus. Porém música, como
e suas obras de maldade, pecado e assassínio.
criação e dádiva de Deus, foi dada à humanidade com o intuito de ser
Isso demonstra o ato do rei Davi,
que, com doce toque da harpa, usada com um propósito específico. Este propósito era, na ótica de
pacificou Saul e impediu que praticasse matanças. Lutero, o louvor e a glorificação do Criador, especialmente por meio da
Para a palavra e verdade divinas proclamação de sua palavra. Para Lutero, a principal função da música
silencia e prepara o coração.
no culto e em todas as esferas da vida cristã era, por conseguinte, a
Assim como Eliseu certa feita declarou,
ao encontrar o espírito pela execução da harpa. proclamação doxológica: doxologia ou louvor ao Criador, o “Deus fonte
A melhor época do ano é para mim de todas as bênçãos” , e proclamação em agradecimento à redenção do
quando cantam todos os pássaros, mundo conquistada em Jesus Cristo.
enchendo a terra e o céu
com canto agradável e abundante. Ninguém falou de forma tão clara e direta como Lutero sobre a
E, rainha de todos, [a] rouxinol união de palavra e música com o objetivo de que Deus seja louvado e
o coração de todos alegrará
sua palavra proclamada a todo o mundo.
com seu canto maravilhoso.
Por isso, devemos ser-lhe sempre agradecidos.
Mas primeiro a Deus, nosso Senhor,
que por sua palavra a criou
2tOL 53, p. 319-20. [Obras Selecionadas de M aitinho Lutero, v. 7, p. 483]
para ser uma grande cantora

47
Não foi sem razão que os patriarcas e os profetas queriam que Como já foi observado anteriormente, Josquin des Prez era um dos
somente boa música estivesse intimamente associada com a pala­
compositores preferidos de Lutero, que destacou em especial o uso que
vra de Deus. Por isso nós temos tantos hinos e Salmos onde men­
sagem e música [Sermo et vox] unem-se para comover a alma do Josquin fez da música como meio para a proclamação do evangelho.
ouvinte (...). Afinal, a dádiva da linguagem, combinada com a dádi­ Deus tem pregado o evangelho também através da música, como
va do canto, foi dada somente ao ser humano para que saiba que pode ser visto em Josquin, cujas composições fluem livres, suaves
deve louvar a Deus com ambas, palavras e música, a saber, procla­ e alegres, não são forçadas ou enrijecidas por regras; antes, são
mando a [palavra de Deus] por meio da música e providenciando como o canto do canário.26
palavras com doces melodias.22
Em seu escrito “Das Boas Obras” (1520), Lutero deixou claro que,
Em sua carta a Ludwig Senfl, Lutero reiterou o entendimento de no que lhe dizia respeito, “depois da fé não podemos fazer obra maior
que a música deveria ser tida como ímpar entre as artes para a procla­ do que louvar, pregar, cantar e de todos os modos enaltecer e exaltar a
mação do evangelho.
glória, a honra e o nome de Deus"27. Em outra ocasião, Lutero comentou
Esta é a razão pela qual os profetas não fizeram uso de nenhuma que “ este é o genuíno e excelente culto do Novo Testamento: celebrar e
arte com exceção da música; quando estabeleceram sua teologia louvar o filho de Deus com cantos, escritos e pregações”28.
não o fizeram como geometria, nem como aritmética tampouco como
astronomia, mas como música, de forma que consideraram teologia Lutero sintetiza suas idéias sobre culto, louvor e canto em dois
e música em estrita união e proclamaram a verdade por meio de comentários sucintos: o primeiro em seu comentário sobre o Salmo 147
Salmos e cânticos.23
e o segundo em sua preleção sobre Isaías 42.10.
Lutero acreditava que a palavra, poderosamente pregada pelos após­ Deus não exige grandes sacrifícios ou tesouros preciosos e caros
tolos, continuou a ser “pregada" de muitas formas, incluindo a música. pelas suas bênçãos. Não, ele pede pela mais fácil das obras, isto é,
[O evangelho] tem sido proclamado de forma abundante e clara; o canto e louvor.29
evangelho tem sido enfatizado poderosa e magistralmente pelos O culto do Novo Testamento (...) nada mais é do que canto, louvor
apóstolos; agora é anunciado em todas as partes através da pala­ e agradecimento. Este é um canto singular. Deus não quer nossos
vra falada e através da pena; ele é escrito, cantado, retratado etc.24 sacrifícios e obras. Ele está satisfeito com o sacrifício do louvor.30

De fato, o poder da palavra associada com a música - bem como Da mesma forma que Lutero é claro a respeito da importância do
em outras artes, como a oratória, escrita e pintura - é tanto, que seus louvor e da proclamação, é igualmente claro a respeito do conteúdo
ouvintes são obrigados a reconhecer sua autenticidade. dessa proclamação.
A palavra de Deus está sendo oferecida de modo tão lúcido e claro Não quero que ninguém cante e entoe nada além de Cristo, no
em pregação, canto, fala e pintura, que eles [reis, príncipes e se­ qual tão-somente eu tenho tudo. Somente ele eu proclamo, ape­
nhores] têm que admitir que é a verdadeira palavra de Deus.25 nas ele eu glorifico, pois ele se tornou minha salvação, isto é, mi­
nha vitória.31

26OL 54, p. 129-30.


“ Ibidem, p. 323-24. 27OL 44, p. 39. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 2, p. 97ss.]
23OL 49, p. 428. “ ‘‘Comentário sobre o Salmo 45” (1533-34), OL 12, p. 300.
“ ''Sermões sobre o Evangelho de São João" (1537), OL 24, p. 404. “ “Comentário sobre o Salmo 147" (1532), OL 14, p. 111.
Comentário sobre o Salmo 101" (1534), OL 13, p.168. [Obras Selecionadas de Martinho “ "Preleções sobre Isaías, Capítulos 40-66" (1527-30), OL 17, p. 72.
Lutero, v. 6 , p. 160] 31“Preleções sobre Isaías, Capítulos 1-39" (1527-29), OL 16, p. 129.

48 49
Assim também na assembléia dos justificados, cantar, ensinar, pre­ Na concepção de Lutero, “falar e cantar” sempre foi um único con­
gar e confessar não glorificam as obras, a santidade ou a sabedoria hu­ ceito, resultado da inevitável explosão de cantos de júbilo no coração
manas, mas tão-somente a graça de Deus revelada em Cristo. do redimido. Talvez em nenhum outro lugar isso foi expresso de forma
mais clara do que na primeira estrofe daquele que é provavelmente o
Eles [os justificados] louvam somente a graça, as obras, as pala­
vras e o poder de Deus assim como revelados a eles em Cristo. seu mais conhecido e querido hino de Natal:
Esse é o seu sermão, seu hino de louvor.32
Eu venho a vós dos altos céus
Cantar e louvar o Trino Deus por tudo aquilo que ele fez pela hu­ trazendo boas novas a todos os lares;
boas-novas de grande alegria eu trago,
manidade, especialmente por sua bondade revelada em Jesus Cristo, é
das quais quero falar e cantar.35
proclamar a todas as pessoas a benevolente e graciosa vontade de Deus
Música como louvor e proclamação doxológica era um segundo e
para com elas. Silenciar a respeito da graça de Deus em Jesus Cristo já
vigoroso paradigma no pensamento de Lutero sobre a música na vida
não é mais uma opção para o cristão. Fiéis que se recusam a cantar e
do povo de Deus. Em certo sentido, era a extensão lógica da sua per­
falar sobre à fé que têm demonstram que não crêem. Lutero diz:
cepção da música como boa criação e dádiva de Deus às pessoas. Dife­
Deus tem confortado nossos corações e mentes através de seu
rentemente de alguns outros reformadores, que viram a música como
Filho amado, o qual deu por nós para nos redimir do pecado, da
morte e do diabo. Quem nisso crê sinceramente não pode calar a um incômodo em potencial que necessita de cauteloso direcionamento
respeito, mas deve com alegria e boa vontade cantá-lo e anunciá- e controle, Lutero, na liberdade do evangelho, podia exultar nessa boa
lo com vontade, para que também outros ouçam e se acheguem. dádiva de Deus, alegrar-se em sua força para louvar seu Criador e dar
Mas quem quer que seja que não queira escutar, cantar e falar
glórias por sua capacidade de tocar os corações e as mentes das pes­
sobre isto, esse demonstra que não crê e não faz parte do novo e
alegre testamento.33 soas enquanto proclama o evangelho.

Na conclusão de seu comentário sobre 1 Coríntios 15, Lutero res­


salta o imperativo de que os cristãos cantem a sua fé.
M úsica como canto litúrgico
E Paulo apropriadamente conclui com um canto entoando: “Graças
a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Lutero entendia a música no culto comunitário como parte funcio­
Cristo”. Podemos juntar-nos a esse canto e desta forma sempre
nal e própria do contexto da liturgia histórica. Seu princípio conserva­
celebrar a Páscoa, louvando e glorificando a Deus por uma vitória
que não foi vencida ou conquistada numa luta travada por nós (...), dor com respeito à reforma litúrgica, isto é, que a liturgia histórica da
mas apresentada e dada a nós pela misericórdia de Deus (...). Po­ igreja deveria ser preservada, com exceção daquelas partes que confli-
rém, nós temos que (...) cantar sobre essa vitória em Cristo.34 tavam com seu entendimento do evangelho, é bem conhecido. Em um
comentário feito em sua missa em latim de 1523, Lutero diz.

Comentário sobre o Salmo 118” (1530), OL 14, p. 81. [Obras Selecionadas de Martinho
Lutero, v. 5, p. 5 9 ]
Prefácio ao Hinário de Babst" (1545), OL 53, p. 338. [Obras Selecionadas de Martinho
Lutero, v. 7, p. 482] 35Hinário Luterano 85 (ênfase minha). O texto original em alemão diz “ Davon ich sm g n
34,1 Comentário sobre 1 Coríntios 15” (1533), OL 28, p. 213 (ênfase minha). Para um und sagen w ill". Esta nuança se perdeu em muitas das traduções recentes. ras
comentário similar feito por Lutero em seus sermões sobre o Evangelho de São João Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 551. No hinário Hinos do Povo e eus
veja OL 24, p. 421-22. volume 1, hino n° 15]

50 57
(...) nem agora nem jamais foi nossa intenção abolir totalmente todo paração com a forma anterior. (...) Com referência a isso, Martim
o serviço litúrgico a Deus36. Lutero disse: “Seria bom manter a liturgia inteira com sua música,
omitindo apenas o cânon”.40
Esse intento foi mais formalmente incorporado no Artigo 24 da
Que o propósito de Lutero nesse tópico foi de fato implementado
Confissão de Augsburgo (1530), quando os confessores do luteranismo
do século 16 declararam: fica claro, mesmo em uma investigação superficial, em sua Missa em
Latim (Formula Missae et Communionis pro Ecclesia Vuittembergensi,
Nossas igrejas são falsamente acusadas de abolir a missa. Na ver­
1523) e em sua Missa Alemã (Deutsche Messe, 1526). Embora a Missa
dade, a missa é preservada entre nós e celebrada com a maior
reverência. Praticamente todas as cerimônias habituais são manti­ em Latim tenha sido planejada para ser usada especialmente nas cir­
das, à exceção do fato de que hinos em alemão são inseridos aqui cunstâncias em que recursos musicais mais incrementados estivessem
e ali entre as partes em latim37. disponíveis e a Missa Alemã para as ocasiões em que se dispunha de
Essa atitude inclui a música, que era tradicionalmente associada recursos musicais mais modestos, ambas eram serviços cantados. Os
com a celebração da missa. dois serviços prevêem o canto ou a entonação para as leituras bíblicas,
para a oração de coleta, para o Credo e outras partes do culto, preven­
Deixe que a prática antiga continue. Deixe a missa ser celebrada
com vestimentas consagradas, com entonações e todas as cerimô­ do a participação do coro das mais variadas maneiras.
nias costumeiras, em latim, reconhecendo o fato de que essas são O interesse de Lutero por uma música adequada para a liturgia
meras questões internas, as quais não põem em risco a consciên­
cia humana.38 levou-o, em 1525, a convencer o eleitor a enviar dois dos líderes musi­
cais de sua corte - Konrad Ruppsch e Johann Walter - a Wittenberg
Um comentário similar a esse aparece no escrito de Lutero “Acer­ para auxiliá-lo na preparação da música para a Missa Alemã. O relató­
ca da Ordem do Culto na Comunidade” (1523): rio de Walter41, dizendo que o próprio Lutero compôs as entonações
Deixe que as entonações das missas do domingo e das vespertinas para as leituras, as palavras da Instituição e o hino para o Sanctus, é
sejam conservadas; elas são muito boas e procedem das Escrituras39. confirmado por anotações contidas em uma folha solta na qual Lutero
Juntamente com a introdução de reformas em Leipzig, essa con­ apontou alguns dos princípios que deveriam ser observados em músi­
cepção é reiterada em um interessante diálogo entre Lutero e Melanch- ca litúrgica .42 Entre esses princípios estava a preocupação com um
thon, anotado nas “Conversas à M esa” em 1539. abrangente tratamento silábico do Salmo do Intróito e a necessidade

Logo após houve uma consulta sobre as cerimônias, sobre como a


de novas terminações para as entonações melódicas, a fim de melhor
comunhão deveria ser celebrada. (...) Então Filipe declarou que ele ajustá-las às exigências da língua alemã.
ouvira de muitos que nossas cerimônias são feitas de tal forma que
O cuidado e a preocupação de Lutero com a música para a liturgia
as pessoas pensam que não foram introduzidas mudanças em com­
evidenciam seu desejo de que a liturgia continuasse a ser cantada, não
interessando quão modestos fossem os recursos à disposição. E também

36“Formulário da Missa e da Comunhão para a Igreja de W ittenberg" (1523), OL 53, p.


20. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7 , p. 157]
37C A XXIV 1; Thppert, p. 56. [Confissão de Augsburgo. São Leopoldo: Sinodal; Porto
Alegre: Concórdia; Curitiba: Encontro, 2005. p. 29] ■“ OL 54, p. 360-61 (ênfase minha).
38“ Sobre o Receber dos Dois Elementos no Sacramento" (1522), OL 36, p. 254 (ênfase 41Veja capítulo 2, p. 20. j
minha). “ “A Missa Alem ã e a Ordem do Culto” (1526), OL 53, p. 55-57. [Obras e e
“ OL 53, p. 13. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7 , p. 68 ] Martinho Lutero, v. 7, p. 173]

53
52
prova, de sua grande preocupação com o fato de que fosse dada continui­
ção do ano eclesiástico e os que se desenvolveram no luteranismo
dade à prática de uma liturgia musical, uma herança que pertencia a
conectados com a prática do hino de tempore (hino do dia), todos eram
Lutero como parte da tradição católica ocidental.
veículos que permitiam a participação da comunidade na liturgia de
Com relação aos hinos, é largamente conhecido que a grande con­ tradição histórica, porém, daquele momento em diante, através de um
tribuição da Reforma Luterana foi a restauração do canto comunitário. meio musical especialmente talhado para as exigências do canto grupai.
Menos observado é que o desejo de Lutero pela participação ativa da Para Lutero, os hinos não eram simplesmente um meio de permitir que
comunidade através dos hinos era o resultado de seu interesse em que a comunidade participasse no culto de um modo geral. Eles eram um
o povo participasse ativamente no ato de cantar a liturgia. Para a maio­ meio de habilitar a comunidade a participar especificamente na pró­
ria do protestantismo nos dias de hoje, os hinos são, quando muito, en­ pria liturgia da tradição católica ocidental, uma tradição que ele conti­
tendidos como canções cristãs genéricas, vagamente anexadas ao cul­ nuou a sustentar e afirmar.
to. Para Lutero, no entanto, o hino comunitário era um veículo para en­ Mesmo um estudo superficial do luteranismo do século 16 confir­
volver o crente no entoar da liturgia.
ma esse ponto de vista. O chamado “Hinário de Babst (Geistliche
Não foi por acaso que entre os hinos mais populares dos primeiros Lieder, 1545) - talvez o mais completo, representativo e cuidadosamen­
tempos da Reforma encontrava-se um conjunto de hinos associados com te editado hinário luterano do século 16 e o último para o qual o próprio
o Formulário da Missa (Kyne, Glória, Credo, Sanctus e Agnus Dei).43 Por­ Lutero escreveu o prefácio —reflete claramente esse ponto de vista, tanto
tanto, na visão de Lutero, quando luteranos do século 16 cantavam seu em sua organização como na escolha dos hinos que o compõem. As
hino em forma de Credo ( “Nós Todos Cremos em um Só Deus”), eles não versões musicais do Te Deum alemão, do proprio Lutero, e da litania
estavam cantando uma versão enfadonha e qualquer, uma alternativa apontam para essa mesma conclusão.
pobre e de segunda categoria para o texto em prosa do Credo. Eles esta­
Música no culto - seja ela a música da comunidade ou do coro -
vam, na verdade, cantando o Credo com um texto e através de um meio
era vista por Lutero e por seus seguidores como um meio para celebrar
musical especificamente ajustado às exigências do canto comunitário.
a liturgia histórica, a qual, como o Artigo 24 da Confissão de Augsburgo
Ao observar o conjunto de hinos associados ao nome de Lutero44, lembrava aos luteranos daquela época, foi “mantida entre nós e é cele­
bem como a maioria dos hinos dos primeiros tempos do luteranismo, brada com a mais alta reverência”45.
surpreendemo-nos ao notar os estreitos laços de sua origem com as
ordens históricas e sua utilidade como um meio de habilitar a comuni­
dade a participar na liturgia. Os hinos de Lutero relacionados ao Ordi­ M úsica como a canção do sacerdócio geral
nário da Missa, os hinos associados com os Próprios, os muitos hinos
pensados para os ofícios matutinos e vespertinos, os hinos de celebra- Lutero entendeu a ativa participação da comunidade no culto
como conseqüência necessária da doutrina do sacerdócio geral de to­
dos os crentes. Esse ensinamento, já anunciado no Antigo Testamen­
Divino Pai Celeste” (Lutheran Worship (LW 209) Lutheran Book of Worship
43 “Senhor,

[LBW] 168, “Tbda Glória seja dada a Deus nas Alturas" (LW 215, LBW 166); “Nós Cremos to46, recebeu sua definição clássica no Novo Testamento:
Tbdos num só Deus” (LW 213, LBW 374); “Isaías Profeta Poderoso em Espírito Elevado"
(LW 214) e “Isaías em uma Visão no Passado” (LBW 528); e “Cristo, tu Cordeiro de Deus”
« n r cl ° 3) 6 " CrÍSt° ’ Cordeiro de Deus” <LW 7' incluído entre os "Cânticos e Entonações” ). 45AC XXIV 1; Tappert, p. 56. [Confissão de Augsburgo, 2005. p. 29]
L 53, p. 189-309. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7 , p. 485ss.]
46Êxodo 19.5-6.

55
“Vocês, porém, são um povo eleito, sacerdócio real, nação santa, si mesmos, não duvidando de que ele o faça e que se ofereça a si
povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as mesmo como sacrifício por eles - (...) todos esses, onde quer que
virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilho­ estejam, são verdadeiros sacerdotes (...). Por isso todos os homens
sa luz”.47 cristãos são sacerdotes e todas as mulheres são sacerdotisas, se­
jam jovens ou velhos, senhores ou servos, senhoras ou servas, doutos
Na visão de Lutero, essa doutrina seria a força espiritual e o poder ou leigos. Aqui não há diferença, a não ser que a fé seja diversa51.
que perpassam todos os aspectos da vida cristã, incluindo o culto. “Pro­
Tal ponto de vista tinha, para Lutero, implicações claras a respei­
clamar as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua ma­
to da função do “ sacerdócio geral" no culto. A preocupação de Lutero
ravilhosa luz” tinha, para Lutero, uma conexão óbvia com a função da
com essa ênfase doutrinal refletiu-se em seu pensamento e escritos so­
música e o culto como louvor e proclamação.
bre o culto e a música de várias formas, entre elas, sua preocupação
Sua ênfase na doutrina do sacerdócio geral de todos os crentes - com que os fiéis não somente estivessem presentes ao culto, mas que
que todos têm acesso livre a Deus por meio do único mediador Jesus eles se tornassem participantes ativos na ação litúrgica. Louvor, pro­
Cristo - foi desenvolvida particularmente nos primeiros anos da Refor­ clamação e adoração não deveriam ser campo exclusivo de sacerdotes,
ma, quase de forma simultânea à sua preocupação com o desenvolvi­ coros e líderes do culto, mas deveriam envolver todo o povo de Deus.
mento das duas missas, a Missa em Latim e a Missa Alemã48. Lutero Em seu sermão no ato de dedicação da igreja do castelo em Torgau, em
abordou o tema quase sempre em conexão com os abusos cometidos 1544, a primeira nova igreja que seria construída na Saxônia desde a
na celebração da missa e concomitantemente com o mau entendimen­ Reforma, Lutero destacou que a comunidade, o sacerdócio geral reuni­
to do sacerdócio na igreja ro m aria do como um todo, é o foco da palavra pregada, do louvor e da oração.
Em seu escrito “Do Cativeiro Babilónico da Igreja” , Lutero expôs Vocês [a comunidade reunida] devem, também, lançar mão do
o tema claramente. “Portanto, todo aquele que se considera cristão fi­ aspersório e do incensário de modo que o propósito desta nova casa
seja tão-somente que o nosso querido Senhor fale a nós por meio de
que seguro de que nós somos todos igualmente sacerdotes .”49
sua santa palavra e que nós respondamos a ele por meio da oração e
Com respeito à passagem de 1 Pedro 2.2,5, Lutero esclareceu que do louvor.52
“eles fazem o sacerdócio comum a todos os cristãos”50. Em seu “Trata­ Pois quando eu prego, quando nos reunimos como comunidade,
do sobre o Novo Testamento", ele escreveu: isto não é minha palavra ou minha ação; porém é feito em favor de
todos vós e em favor da igreja toda. (...) Assim também todos eles
Pois todos aqueles que têm a fé de que Cristo é um sacerdote em oram, cantam e dão graças conjuntamente; não há nada que al­
favor deles diante de Deus, no céu, deitando sobre ele, apresentan­ guém possua ou faça para si somente; porém, o que cada um tem
do por intermédio dele, sua oração, seu louvor, sua necessidade e a pertence também ao outro.53
Considerando que todos são sacerdotes, cada participante do culto
471 Pedro 2.9. tem um papel crucial a desempenhar nesse sacrifício de louvor e ora­
^De especial importância para o entendimento da visão de Lutero sobre a doutrina do ção. A comunidade reunida não deveria mais ser passiva no culto, mas
sacerdócio geral são seus escritos “Do Cativeiro Babilónico da Igreja” (1520), “ Da
Liberdade Cristã” (1520), “ Tratado sobre o Novo Testamento, isto é, a Respeito da participante ativa na liturgia.
Santa M issa’ (1520), “ O Abuso da M issa” (1521) e “ Resposta ao Super Cristão, Super
Espiritual e Super Informado Livro do Bode Velho Emser de L eip zig” (1521). [Obras
Selecionadas de Martinho Lutero, v. 2 , p. 417] 51OL 35, p. 101. 3 3 3
49OL 36, p. 116. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v 2 p 4171 52“ Sermão da Dedicação da Igreja do Castelo em Torgau” (1544), OL 51, p.
“ OL 36, p. 141. “ Ibidem, p. 343.

56 57
A doutrina do sacerdócio geral de todos os crentes também irra­ Sua compreensão do coro como uma parte da comunidade reunida, ser­
diou um espírito democrático que revestiu de humildade e, ao mesmo vindo à comunidade com essa forma tão ímpar e conjuntamente ofere­
tempo, de dignidade o ofício de cada cristão, especialmente a partici­ cendo sua adoração e oração, era, mais uma vez, outro exemplo da dou­
pação de cada um no culto. Porém tal espírito democrático não levou trina do sacerdócio geral em ação.
Lutero a adotar baixos padrões de música, ou de ordem litúrgica, ou a
Onde o entendimento das implicações da doutrina do sacerdócio
abandonar a beleza ou a ordem. Para Lutero, o fator determinante era o
geral se espalhou e se pôs em circulação, já não era mais possível man­
sacerdócio do povo, e não sua educação, espiritualidade ou pobreza
ter a piedade individualista e privativa que anteriormente dominava. O
cultural.
culto não podia mais ser visto como algo feito por outros em favor do
Essa compreensão, a qual coloca o povo de Deus, a comunidade reu­ povo. O culto passou a ser visto, mais propriamente, como o povo de
nida, em um lugar determinado, no centro da atividade litúrgica e musical, Deus, a assembléia do sacerdócio geral no exercício de seu ministério
tirou a comunidade reunida do isolamento e a colocou no meio de um em­ comunitário de louvor, proclamação e oração, em seu próprio favor e
preendimento litúrgico e musical vivificante e ativo, em que, musicalmen­ em favor do mundo todo.
te falando, o coral - o hino comunitário da Reforma - veio a ser a força
A doutrina do sacerdócio geral não podia mais ser usada como
geradora central. Tbdos foram encorajados - independente do nível indi­
desculpa para um fazer musical que se contentava em permanecer em
vidual de habilidade musical —a se juntar ao louvor comunitário.
um nível inferior. Quando assim acontecia, tal procedimento estava em
Ele quer ouvir as multidões e não você ou eu isoladamente, ou um discordância com a visão de Lutero, o qual via a grande dignidade do
único e isolado fariseu. Portanto cante com a comunidade e você
sacerdócio geral como o mandato mais significante para encorajar a
cantará bem. Mesmo que o seu cantar não seja melodioso, ele se
mesclará ao som do grupo. Porém, se você cantar sozinho, você participação ativa de todos - comunidade, coro, ministros líderes e au­
sofrerá críticas.54 xiliares, compositores -, fazendo uso do melhor de suas habilidades.
Cada co-participante da comunidade reunida participava de forma única
Pois toda a música do culto, seja ela cantada pela comunidade,
e de acordo com suas habilidades e seus talentos. Ao mesmo tempo,
pelo coro ou pelos ministros ou tocada por instrumentistas, era, em reali­
cada um ajudava o outro a oferecer o que tinha de melhor no louvor a
dade e verdade, o canto provindo do sacerdócio geral, confessando e
proclamando ao mundo as boas-novas de Deus em Cristo. Deus e na proclamação do seu nome.

A introdução do vernacular ofereceu ao povo tanto a Escritura


como a liturgia, de uma forma que nunca havia antes experimentado. A M ú sica como um sin al de continuidade
organização de uma Missa Alemã por Lutero, embora ele tenha adver­ com a igreja una
tido que essas drdens fossem meramente descritivas e não prescriti-
vas, ajudou os luteranos a se adaptar à variedade de circunstâncias nos Na visão de Lutero, a continuidade com a prática da igreja una
anos que se seguiram. A renovação de muitas melodias gregorianas, era um importante fator na configuração da música e do culto do povo
empreendida por Lutero, tornando-as mais facilmente cantáveis como de Deus. Alguns outros reformadores radicais, tais como Zwínglio e
hinos comunitários, acelerou a participação da comunidade na liturgia. Calvino, empenharam-se em estabelecer sua identidade enfatizando
suas diferenças com a Igreja Católica, censurando tudo aquilo que po
“ "Uma Exposição sobre o Pai-Nosso para o L e ig o ’’ (1519), OL 42, p. 60.
deria relembrá-los da vaidade papal. O previsível resultado de tal atitu

59
!

de iconoclasta está refletido na assim chamada “limpeza” das igrejas histórico, lançando-se à tarefa de recuperar aquilo que seria, na per­
em 1524, quando Zwínglio e seus colegas entraram nas igrejas e joga­ cepção de alguns, a forma imaculada do culto dos tempos antigos. An­
ram fora relíquias, caiaram pinturas, removeram imagens, paramentos tes, seu princípio de reforma litúrgica foi manter tudo aquilo que em
e livros de ofícios esplendidamente encadernados e fecharam ou des­ boa consciência pudesse ser mantido, revisando ou eliminando somen­
montaram órgãos. “Música alguma, de qualquer tipo, ressoaria nas igre­ te aqueles textos e práticas que conflitavam com o seu entendimento
jas novamente; o povo deveria dar ouvidos tão-somente à palavra de do evangelho. Em seu escrito “Ordem da Missa e da Comunhão para a
Deus.”55 Renúncia à tradição católica ocidental significou que restaram Igreja de Wittenberg” (1523), ele afirmou:
para Zwínglio, para o preparo de sua liturgia da Comunhão, tão-somen­ Por isso confessamos em primeiro lugar que nem agora nem ja­
te os recursos de sua própria criatividade. Lutero, muito pelo contrário, mais foi nossa intenção abolir totalmente todo o culto a Deus, mas
apenas purificar novamente esse que está em uso, mas que está
procurou afirmar, sempre que possível, a continuidade do movimento
viciado pelos piores acréscimos, e mostrar o uso evangélico58.
da Reforma com a igreja universal, tanto em suas formas litúrgicas como
em sua prática musical. Para Lutero, os elementos que corromperam a missa eram basica­
mente dois: o Cânone da Missa e o Ofertório, os quais enfatizavam a
Tal ênfase na continuidade da Reforma Luterana com a igreja una
compreensão da igreja romana da missa como sacrifício. Nesse mesmo
está claramente refletida na Confissão de Augsburgo, um documento
documento acima citado, Lutero esclareceu este ponto muito bem:
que buscou “restaurar a unidade”56. Da mesma forma, o Livro de Con­
córdia, cinqüenta anos mais tarde, afirmou que a Reforma Luterana es­ No presente livro, porém, não queremos analisar se a missa é um
sacrifício ou uma boa obra. A respeito disso ensinamos o suficiente
tava baseada no “venerável consenso daquilo que a universal e orto­ em outra parte. Nós a compreendemos como sacramento, testa­
doxa igreja de Cristo tem crido, lutado por, combatendo muitas here­ mento, ação de graças, como se diz em latim, ou eucaristia em
sias e erros, e repetidamente afirmado”57. grego, Mesa do Senhor, Ceia do Senhor, memória do Senhor, co­
munhão, ou qualquer nome evangélico que agrade, desde que a
No início do Livro de Concórdia encontravam-se os três credos designação não esteja poluída pela idéia de sacrifício ou obra59.
ecumênicos, confessados e aceitos por toda a igreja. O entendimento
Lutero compreendia com clareza que a missa, juntamente com a
de Lutero da Reforma como um movimento confessional e reformador
música que acompanhava suas várias cerimônias, foi, com freqüência,
dentro da Igreja Católica é um claro testemunho da importância dada
deturpada como sendo boa obra.
por ele à questão da continuidade com a igreja universal.
Infelizmente se compreende e se usa hoje a palavra “serviço de Deus”
Lutero também não tentou passar uma esponja no passado e ini­ numa acepção tão imprópria que quem a ouve não pensa nessas
ciar tudo de novo nas questões de liturgia, práticas de culto e música, obras de Deus, mas antes no badalar dos sinos, na alvenaria e no
como se nada tiVesse acontecido desde os tempos do Novo Testamen­ madeiramento das igrejas, no incensário, no brilho das velas, no
burburinho nas igrejas, no ouro, na prata, nas pedras preciosas das
to ou da igreja primitiva. Ao contrário da prática adotada por alguns
vestimentas dos meninos do coro e celebrantes, nos cálices e nas
outros, Lutero não rejeitou todo o culto da igreja e seu desenvolvimento custódias, nos órgãos e nas imagens, nas procissões e nas entradas
solenes e, acima de tudo, no palavrório e no desfiar de rosários.60

“ THOMPSON, Bard. Liturgies of the Western Church. Cleveland and N e w York: The
World Publishing Company, 1961. p. 142. “ OL 53, p. 20. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 157]
CA Prefácio 10; Tappert, p. 3. [Confissão de Augsburgo, 2005, p. 6 ] “ Ibidem, p. 22. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 159]
57Prefácio ao Livro de Concórdia; Tappert, p. 3 . “ “Comentário sobre o M agnificat" (1521), OL 21, p. 350.

60 61
No entanto, e isto deveria ficar bem claro, sua ira foi direcionada mente. Em seu escrito “Instrução dos Visitadores aos Párocos” , Lutero
àqueles que viam esses elementos do culto como um meio de acumular lamenta que “as antigas cerimônias tenham sido completamente aban­
justificação e como meio de tornar-se “piedosos através de boas obras” . donadas em muitos lugares e pouco se tem lido ou cantado nas igre­
jas” 65. Ele passa então a oferecer uma variedade de sugestões, todas
Que grandes tolos são todos aqueles que querem tornar-se piedo­
sos através de obras (...) tilintar de sinos, queima de velas, cantos, reforçando o compromisso com as práticas tradicionais .66
fazendo barulho ao órgão e recitando orações com todas as suas
Para Lutero, rejeitar a dádiva da tradição era andar solitariamente
ações externas.61
e ser amputado da mútua edificação da convivência universal dos san­
Lutero declarou explicitamente: "Cristãos não se tornam justos tos. Quanto a qualquer tentativa de retornar à forma de culto pura e
realizando boas obras; mas uma vez justificados por fé em Cristo, eles inalterada da igreja primitiva, Lutero comentou:
fazem boas obras”62. Isso, no entanto, não levou Lutero a concluir que
Também os exemplos dos pais [suas ordens litúrgicas] são desco­
todas essas cerimônias deveriam ser extintas.
nhecidos em parte. Os que são conhecidos são tão variados que
A igreja tem outros sinais exteriores pelos quais ela não é santifica­ nada certo pode ser estabelecido67.
da, nem no corpo nem na alma, e que também não são instituídos
Aceitar as dádivas da tradição era, para Lutero, estar conectado
por Deus nem ordenados por ele. Mas acontece, como já dissemos
várias vezes anteriormente, que se tornam necessários ou úteis por com cristãos de outros tempos e lugares e ser relembrado de modo sin­
questões externas e que são convenientes e de bom costume.63 gular de que a igreja de seus dias era, de fato, parte da única, santa,

Que todas essas cerimônias externas poderiam não apenas ser católica e apostólica convivência dos santos.
necessárias, úteis, próprias e boas, mas também edificantes ao serviço Tal ponto de vista resultou no fato de que a revisão da liturgia da
do evangelho foi afirmado por Lutero já no documento que, em certo tradição católica ocidental feita por Lutero assemelhava-se muito à tra­
sentido, deu início à Reforma. Na Tese 55, das Noventa e Cinco Teses, dição primitiva. O escopo básico da tradição católica ocidental perma­
Lutero proclamaria com audácia: neceu intacto em grande medida. No ano anterior à publicação do seu
Se as indulgências, que são o menos importante, são celebradas primeiro escrito sobre liturgia, Lutero observou em "Sobre o Receber
com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o evange­ dos Dois Elementos no Sacramento” :
lho, que é o mais importante, deve ser anunciado com uma cente­
Deixe que a antiga prática continue. Deixe que a missa seja cele­
na de sinos, procissões e cerimônias64.
brada com vestimentas consagradas, com entonações e todas as
A atitude de Lutero com relação à tradição que ele recebeu sobre cerimônias usuais, em latim, reconhecendo o fato de que todas
culto e música foi de profundo agradecimento e apreço pelas boas dá­ essas coisas são sinais externos, os quais não põem em risco a
consciência das pessoas68.
divas de Deus, que são a liturgia, os hinos e a música, que nutriram os
fiéis por gerações. Tais dádivas não deveriam ser descartadas leviana­ Alguns anos mais tarde, em 1539, essa mesma questão foi o tema
de uma conversa informal ligada à introdução de reformas em Leipzig.

61 “ Sermão sobre o Evangelho para o Culto Principal de Natal" (1522), OL 52, p. 79.
62“ Preleção sobre Gálatas" (1535), OL 26, p. 256. 65OL 40, p. 306. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 259ss.]
Dos Concílios e da Igreja” (1539), OL 41, p. 173. [Obras Selecionadas de Martinho “ Ibidem, p. 307-11. _
Lutero, v. 3, p. 428] 67“Formulário da Missa e da Comunhão para a Igreja de W ittenberg (1523), , P-
64‘A s Noventa e Cinco Teses ou Disputa sobre o Poder e Eficácia das Indulgências” 37. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 7, p. 171]
(1517), OL 31, p. 30. [Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 1, p. 158] “ Veja p. 52.

62 63
Quando observo todos os santos, especialmente no Novo Testa­
Havia aqueles que não viam mudança alguma na ordem do culto em
mento, constato que com todos eles se dá o mesmo. Também em
comparação com a sua forma anterior à Reforma. A troca de idéias entre suas tendas ouço uma voz de júbilo, alegres cantos e hinos de
Lutero e Melanchthon foi mencionada anteriormente.69A visão de Lutero salvação e vitória e de como Deus os ajuda. E imediatamente can­
com respeito à importância da coesão com a tradição da igreja, especial­ tamos com eles, louvando e agradecendo a uma só voz, assim como
também estamos unidos na confiança no mesmo Deus e como tam­
mente em contraste com a visão de homens como Calvino e Zwínglio, foi
bém no sofrimento somos iguais em todas as coisas.70
digna de nota e dificilmente poderá ser enfatizada a contento.
Já no “Prefácio aos Salmos” (1528), Lutero esclareceu que, quan­
E especialmente interessante observar que à medida que compo­
do cantamos o saltério, unimo-nos a todos aqueles que o cantaram an­
sitores luteranos no século 16 e início do século 17 começaram a provi­
tes de nós.
denciar música para o culto luterano, eles continuaram a fazer composi­
Quando essas palavras [os Salmos] agradam a uma pessoa e
ções musicais que se encaixariam naturalmente nas liturgias históricas.
empatizam com ela, isso também serve para que ela adquira a cer­
Composições corais para o Ordinário da missa, composições polifônicas teza de estar na comunhão dos santos e de que acontece com ela
para coro do serviço de hinos tradicionais das matutinas e vespertinas, como aconteceu com todos os santos, pois todos cantam com ela
composições simples e festivas de cânticos, tais como o Magnificat - uma e a mesma pequena canção.71
estas e muitas outras obras delineadas para a liturgia tradicional conti­ Em uma bela passagem em seu “Tratado Sobre as Últimas Palavras
nuaram a ser uma parte significativa da produção dos mais destacados de Davi”, escrito em 1543, já próximo do fim de sua vida, Lutero afirmou:
compositores luteranos da época. Além disso, muitas dessas composi­
Santo Ambrósio compôs muitos dos hinos da igreja. Eles são chama­
ções foram feitas para textos em latim. Georg Rhau, o proeminente editor dos hinos da igreja porque a igreja os aceitou e os canta como se a
e compositor do século 16, amigo de Lutero e o mais importante editor da própria igreja os tivesse escrito e como sendo a canção da igreja.
Reforma, planejou e executou um programa de publicações musicais que Portanto, não é costume dizer “Por isso cantem Ambrósio, Gregório,
providenciaria música para o culto luterano e que refletia claramente essa Prudente, Sedúlio” mas “Por isso cante a igreja cristã”. Essas são,
pois, agora as canções da igreja, as quais Ambrósio, Sedúlio etc.
preocupação com a coesão com a prática musical e de culto dos tempos cantam com a igreja e a igreja com eles. Quando falecem, a igreja
pré-Reforma. Muitas músicas dos compositores pré-Reforma eram ainda sobrevive através deles e continua cantando suas canções.72
úteis para a igreja pós-Reforma dada a similaridade de práticas e formas
Aqui não havia exclusividade paroquial nem auto-suficiência de
litúrgicas; e peças musicais de antigos compositores católicos foram fre­
certas províncias de ordens religiosas, mas uma postura de solidarie­
qüentemente incluídas em várias publicações musicais planejadas para
dade e continuidade com a igreja universal. Essa atitude continuaria a
serem usadas no meio luterano.
animar o culto e as práticas musicais do luteranismo até que, mais tar­
A atitude de Lutero em relação ao canto da igreja dos primeiros de, as práticas individualistas, privadas e pessoais tanto do pietismo
tempos é expressa com especial ternura e apreço em seu comentário como do racionalismo invadiriam o luteranismo e causariam uma de­
ao Salmo 118, escrito em 1530, no momento em que a causa da Reforma vastação em sua liturgia e sua música.
estava lutando por sua sobrevivência na Dieta de Augsburgo e Lutero
estava confinado a uma posição de quase impotência no castelo de 70“ Comentário ao Salmo 118” (1530), OL 14, p. 79. [Obras S e l e c i o n a d a s de M a r t i n h
Coburg. Lutero, V. 5, p. 56] M -rfm hn
71‘‘Prefácio ao Livro dos Salmos” (1545), OL 35, p. 256. [Obras Seleciona as e
Lutero, v. 8, p. 36]
69Veja p. 52. 72OL 15, p. 274.

64 65
Capítulo 4 informações úteis sobre Deus ou as pessoas nem existem para, em pri­
meiro lugar, servir a fins psicológicos. Mais propriamente, esses ele­
mentos são a maneira como a comunidade cristã expressa louvor, pro­
clamação, adoração e agradecimento pelo que Deus fez e continua a
IM P L IC A Ç Õ E S D A S ID É IA S D E L U T E R O fazer entre nós. Assim que perdermos de foco essa orientação básica,
imediatamente surgirão problemas.
PARA O P R E S E N TE
Um segundo paradigma muito difundido na igreja de hoje é o en­
Se as idéias de Lutero representarem tão-somente uma questão tendimento da música como entretenimento. Embora raras vezes seja
de interesse histórico, qualquer consideração sobre as implicações de publicamente admitido, é talvez o mais difundido modo prático opera­
seu pensamento em nossos dias é supérflua. No entanto, se suas idéias tivo de se ver a relação entre música e culto no protestantismo norte-
proporcionarem algum suporte à maneira como a igreja de hoje enten­ americano contemporâneo. A música funciona no culto como uma dis­
de sua relação com a música, faz-se necessário dizer, mesmo de uma tração momentânea, uma mudança psicológica de ritmo, estimulando
forma introdutória, como as concepções de Lutero poderiam auxiliar a nossos ouvidos com novos e surpreendentes artifícios. Quase nunca se
moldar a maneira como nós refletimos e usamos música na igreja hoje. fala de modo franco e direto sobre o fato de que a típica ênfase norte-
americana no consumismo e voluntarismo associa-se para assegurar
que a igreja, com um programa musical “bem-sucedido” , seja usada
Paradigma principal e paradigmas secundários para “ atrair” . E se há um caminho seguro para “ atrair" em nossa situa­
ção de alta competitividade, este caminho é o entretenimento. Tal ati­
Se para Lutero o principal paradigma para a música na vida da tude é fomentada pelo tão difundido entendimento de ver os membros
igreja era ser criação e dádiva de Deus, torna-se difícil - se não impossí­ da comunidade em adoração como espectadores. Afinal, nós vamos à
vel —discutir qualquer uma das idéias de Lutero sobre música sem es­ igreja para ouvir, ver, divertir-nos (mas atenção, diversão religiosa), para
clarecer essa idéia central. Muito poderia ser dito sobre isso, mas va­ ser espectadores. E ai do pregador ou músico de igreja que não esteja à
mos simplesmente apontar para o fato de que nos dias de hoje temos altura! Raramente as igrejas, de todas as tradições, estão isentas da
permitido muito facilmente que esse paradigma central seja substituí­ possibilidade de se deixar contaminar pela atitude de ver o culto e a
do por outros modelos mais periféricos e menos satisfatórios. música sacra como divertimento.

Um desses paradigmas periféricos é o entendimento de que a


principal função qla música é instruir. Com certeza, como apontado an­
M úsica como proclamação e ofício
teriormente, o modelo da música como instrutora tem uma longa e im­
portante história, em particular na igreja da Reforma, a qual de modo
Na ótica de Lutero, a música sacra funciona como a viva vox
correto enfatizou o ensino e a aprendizagem. Porém, quando a música
evangelii, como a “viva voz do evangelho” , louvando a Deus e procla
do culto é feita em primeiro plano para servir a propósitos pedagógicos
mando sua palavra ao mundo. Isso acontece, em parte, quando música
- ou pior, metas institucionais e programáticas -, algo está seriamente
é associada com textos que falam clara e diretamente de Lei e Evange
errado. Tanto a liturgia e o sermão como os cantos cristãos não são, em
lho, de pecado e salvação. Sob tal perspectiva, a música na igreja não
primeira instância, dispositivos que servem para nos preencher com pode jamais ser simplesmente considerada como instrutiva, pedagógi

66
ca, de entretenimento ou outra maneira de preencher a comunidade contrapartida na atenção que a igreja e seus músicos dispensam em
cristã com informação utilitária. É o próprio evangelho expondo a total sua tarefa de transmitir musicalmente a palavra de Deus.
alienação do ser humano de Deus, sempre denunciando, porém, sem­ Música como ofício tem passado por momentos difíceis ultima­
pre trazendo a palavra final de reconciliação, esperança e promessa. mente, gerando os mais variados pontos de vista, que nos têm feito
Textos, portanto, são de crucial importância. Assim é também a própria perder o rumo. Entre esses está ainda a compreensão muito comum de
música à qual os textos estão associados. que a música é essencialmente o resultado de “inspiração artística"
Se a música, de alguma forma, participa da proclamação da pala­ (ilustrada pela bem-conhecida estória de Händel, que se retirou para
vra, pergunta-se como isso ocorre. Ocorre quando ela reflete de modo seu pequeno quarto no sótão e ressurgiu poucas semanas mais tarde
fiel e em seus próprios termos a honestidade, integridade, autenticida­ com a partitura da peça O Messias em suas mãos, o resultado de um
de e beleza da mensagem do evangelho. Talvez esteja na hora de colo­ ininterrupto e ofuscante lampejo de “inspiração") e a noção de que a
car de lado terminologias que descrevem a música como sendo “o per­ finalidade da música no culto é a beleza. Erik Routley, entre outros au­
feito estojo para a perfeita jóia que é o evangelho” , ou o conceito de tores, lembra que “ adorar o Senhor na beleza da santidade” significa
música como “embelezadora" do culto, ou ainda a idéia da música como nada mais do que “ adorar o Senhor com adornos apropriados” . Deixan­
a embalagem que envolve o presente do evangelho, uma embalagem do de lado o fato de que duas pessoas raramente concordam sobre o
que pode ser descartada uma vez revelado o presente, que é o evange­ que em verdade constitui a beleza, de que qualquer “canção ou prelú­
lho. Todas essas idéias erram o ponto. Música sacra não pode jamais dio para órgão, por mais nauseante que seja, sempre haverá aquele
ser vista simplesmente como parte da embalagem. Ela é parte do de­ que o achará belo” , a raiz do problema reside no fato de que tal visão
sembrulhar, que ou contribui para ou desvia da fiel proclamação e do enfatiza o efeito ao invés da eqüidade da coisa feita. Se música é de fato
testemunho. criação de Deus e dádiva para as pessoas, então proclamar o evange­
lho com música que reflete descuido, superficialidade, banalidade e —
Música sacra é tanto proclamação como ministério. Quer alguém
talvez pior do que tudo —presunção é contradizer na arte da música a
fale do púlpito, da galeria do coro ou das teclas do órgão, quer seja o
verdade, honestidade e integridade do próprio evangelho.
evangelho proclamado pela fala ou pelo canto, deve ser a mesma pala­
vra que é anunciada com fidelidade e recebida com coração confiante e Muita música ouvida em igrejas hoje pode ser caracterizada por
arrependido. melodias e ritmos banais, harmonias sentimentalóides e empenho pelo
efeito fácil. Tal desonestidade básica, falta de integridade e desrespei­
Compreender música como dádiva e criação de Deus tem também
to pelo ofício de lidar com os elementos da música, encobertos freqüen­
implicações para o ofício da música e a integridade da composição mu­
temente por uma pátina de atrativo superficial, prestam um mau servi­
sical. Falar de música como ofício significa interessar-se pela aptidão
ço ao evangelho, ao qual tal música pretende servir. Nós prontamente
como música para o propósito para o qual foi planejada, sua conveniên­
censuramos tal abordagem em relação à arquitetura para igrejas, auto­
cia como música para sua função, sua “bem-acabada" construção como
móveis e refrigeradores. É chegado o momento de que aqueles que dão
música. Para a igreja, preocupar-se com a perícia profissional da música
forma às canções da fé ouçam seriamente essa crítica e a transfiram
e seu uso no louvor e na oração é um reflexo direto do cuidado que ela
para o culto e a música da igreja.
dispensa ao uso dessa grande e boa dádiva de Deus. O zelo de Lutero em
seu trabalho como tradutor da Bíblia para encontrar a palavra exata para
expressar conteúdos específicos da Escritura necessita encontrar

68 69
M úsica da igreja e liturgia tado será trazer riqueza e profundidade ao culto, que não é possível de
nenhuma outra maneira.
Em igrejas de tradição litúrgica, a música da igreja encontra seu Para colocar-se a si mesma e sua própria arte sob tal disciplina, a
lugar mais confortável e apropriado no contexto da liturgia. É na liturgia, música da igreja terá que achar uma maneira de voltar a uma simplici­
em toda a sua integridade e riqueza, que o povo de Deus pode expres­ dade bem mais radical. “Radical" no sentido de “proceder de ou ir em
sar da melhor forma sua adoração e seu louvor comunitário. Na riqueza direção à raiz ou à fonte, ao fundamento, ao básico” . “Simples” no sen­
da adoção de práticas como o ano eclesiástico e o lecionário, a comuni­ tido do “não-artificial, modesto, despretensioso” . Tal simplicidade ra­
dade cristã encontra uma acolhedora disciplina na qual ela está expos­ dical originar-se-á de uma melhor compreensão do que de fato engloba
ta ao total desígnio de Deus. É, portanto, a tradição vivificante do lou­ e significa o culto, suas prioridades musicais, o fluir da ação litúrgica e
vor comunitário, proclamação, oração e edificação mútua - a liturgia - o uso da música como proclamação doxológica. A música, nesse pris­
que melhor determina como a música é usada, qual deve ser seu espí­ ma, enfatiza a especificidade da ação litúrgica associada à ela; ela não
rito e ânimo e a apropriabilidade da seleção de determinadas peças prejudica a ação litúrgica.
musicais para as diversas ocasiões.
Se uma nova e radical simplicidade emana, em parte, de um en­
Isso requer que o músico de igreja dê atenção primordial àqueles tendimento mais claro do culto, isto significará também afastar-se da
textos que são de particular significância litúrgica para uma celebra­ música pretensiosa, que se empenha pelo “grande efeito" com mate­
ção específica. Para muitos músicos de igreja, isso significará um radi­ riais musicais que não se justificam e coloca sua recompensa na sedu­
cal realinhamento de prioridades. Significará uma reorganização nas tora aceitação do ouvinte baseada em atrativos superficiais.
prioridades dadas a vários segmentos dos atuais repertórios musicais.
Diante de tal pano de fundo, todos nós teremos que admitir que
Com certeza, isso significará uma busca mais séria por parte do canto
da igreja por música que ressalte a especificidade das celebrações. estivemos agindo de uma forma que não deveríamos e que as coisas
que deveríamos ter feito não fizemos. Em alguns casos, músicos de igreja
Colocar-se sob a disciplina da liturgia significará também um encararam seu chamado como um meio para enaltecimento pessoal ou
realinhamento radical das expectativas da comunidade. Comunidades da comunidade. Mais freqüentemente, talvez, nossos lapsos sejam o
que entendem a música como "anexos do culto", não importa quão belos resultado de uma falta de entendimento ou de insensibilidade às ne­
sejam, devem ser levadas a ver a relação orgânica entre a liturgia e o cessidades específicas da liturgia numa celebração específica.
canto da igreja de maneira cuidadosa, gradual e cativante. Colocar-se
sob a disciplina da liturgia é colocar à disposição da comunidade a Colocar-nos, como músicos de igreja, sob a disciplina da simplici­
riqueza e experiência da igreja na adoração ao longo dos séculos, ao dade radical significará renunciar à música pretensiosa e bombástica

mvés de colocá-la à mercê da experiência mais limitada e menos que satisfaz o ouvinte, explora o efeito fácil e quer agradar a todo custo.
satisfatória do indivíduo ou à mercê de modismos passageiros disfar­ Significará aplicar à música da igreja o princípio da arquitetura de que
çados de relevantes. Colocar o próprio ministério musical ou de prega­ a função precede a forma e que menos é mais. Sugerir um retomo a uma
ção sob a disciplina da liturgia será, para muitos, como começar em um simplicidade radical não implica necessariamente uma austera espar-
novo lugar. Porém, quando nos desenvolvemos sob tal disciplina - e tanidade musical. Significa, porém, que muita música destinada ao cul­
to pode refletir uma ostentação que é irrelevante ou injustificada pelas
quando ajudamos as comunidades a também crescer sob ela —, o resul­
circunstâncias litúrgicas.

77
!

M úsica e sacerdócio gerai M úsica da igreja e continuidade

Se a música do culto é parte do exercício do sacerdócio geral de Em conclusão, Lutero entendeu a continuidade com a igreja tina
todos os crentes, então a música da igreja não é primeiramente algo como um elemento crucial na moldagem da música e do culto do povo
para se escutar, mas algo no qual o fiel participa. Enfatizar a natureza de Deus. Tal continuidade mostra-se tanto na conexão com a igreja do
participatória da música da igreja é simplesmente dizer que o Senhor, passado como com a igreja do presente. No culto e na música, Lutero
cuja palavra ouvimos na leitura da Escritura e na prédica, a quem con­ optou por uma continuação das práticas herdadas ou existentes; so­
fessamos no Credo e que se doa a nós no Sacramento do Altar, é o mes­ mente onde tais práticas eram contrárias à sua compreensão do evan­
mo Senhor a quem honramos e adoramos em melodias e canções. gelho é que ele as revisou, aperfeiçoou ou eliminou. O que a atitude de
Lutero concernente à continuidade da tradição sugere para hoje? Pro­
Compreender a música da igreja como participatória é acentuar
ponho cinco respostas exploratórias:
que a liturgia não é jamais um mero drama que observamos nem é um
evento que esperamos que nos entretenha para garantir que retornemos 1 - A compreensão de continuidade no culto e na música sugere
na semana seguinte. Afirmar que a música da igreja é participatória é uma atitude rumo à tradição herdada que poderia ser útil hoje. Ela de­
afirmar que não vamos à liturgia para ser espectadores, mas partici­ monstra reconhecido agradecimento e apreço pela boa dádiva da
pantes engajados, e engajados - em certa extensão, pelo menos - no hinologia, liturgia e música da igreja herdada de nossos pais e mães na
canto comunitário. igreja. Muitos elementos dessa tradição têm nutrido fiéis através de
gerações. Agradecidos, recebemos essa herança como dádiva de Deus
Isso significa novas responsabilidades para os músicos da igreja
quando eles se dão conta das implicações para o ensino e estudo que a a todos nós.
ênfase na participação comunitária inevitavelmente envolve. Não se 2 - A ênfase de Lutero na continuidade sugere também que evite­
trata de simplesmente ensinar uma nova liturgia ou um novo hino, mas mos, sempre que possível, trilhar caminhos individualistas nas ques­
do ensino e da aprendizagem que alargam os horizontes do culto da tões de culto e música da igreja. Aceitar a dádiva da tradição é conectar-
igreja para todos os que estão envolvidos. Somente dessa forma as co­ nos com cristãos de outros tempos e lugares, relembrando-nos que so­
munidades podem evitar colocar-se na posição em que muitas já se mos, em verdade, parte da una, santa, católica e apostólica igreja. Re­
encontram - em termos de repertório de hinos comunitários, por exem­ jeitar essa dádiva é andar a trilha isoladamente, decepar-nos da mútua
plo, usando um restrito círculo de hinos “prediletos” e cantando, eter­ edificação da igreja una.
namente, tão-somente aquilo que já conhecem.
3 - Além disso, o acento que Lutero deu à continuidade propõe
A música d^ igreja como meio de participação não objetiva sim­ que, no nosso caminho rumo ao futuro, nós enfatizemos aqueles aspec­
plesmente proporcionar às pessoas algo para fazer. Significa envolvê- tos de nosso culto e vida musical que temos em comum com os cristãos
las de modo mais fidedigno e efetivo no cantar da liturgia e desse modo de todos os lugares. O recente trabalho entre cristãos de variadas de­
expandir seu entendimento e sua participação na vida de oração inte­ nominações para desenvolver um lecionário comum, formas comuns
gral da igreja. Fazer uso da música da igreja ou dos hinos simplesmente de culto e um conjunto de hinos em comum tem enfatizado os benefícios
como um passeio por uma nostálgica trilha é aviltante não apenas para dessa legítima continuidade com as irmãs e irmãos cristãos de outras
a música e a liturgia, mas também para a comunidade como sacerdócio comunhões. Qualquer que seja o sentimento que alguém nutre em rela­
geral entoando o canto da igreja. ção aos m an u ais de culto e hinários atualmente em uso em sua denomi-

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nação, fica claro que aquilo que hoje existe em comum entre todos os ralidade, arrogância e outros males. Depois da teologia eu confiro à
cristãos em termos de forma de culto e hinologia é muito maior do que música o mais alto lugar e a mais alta honra.1
em qualquer tempo do passado. Que assim continue sendo para toda a igreja e para todos os seus
4 - A ênfase na continuidade com o passado não se dá jamais em servos enquanto a igreja continuar a louvar a Deus e proclamar sua
detrimento do novo. Tal continuidade é sempre o contexto ou ambiente palavra a todo o mundo por meio de sua excelente e graciosa dádiva da
música nos salmos, hinos e cânticos espirituais, que compõem o tesouro
para novas manifestações do Espírito no culto e na música. Firmemen­
ímpar que chamamos de a canção da igreja.
te enraizados em uma rica tradição, nós não evitamos o novo, mas nos
precavemos de modismos, excentricidades ou quixotescas tentativas
de inovação pela inovação.

5 - Concluindo, continuidade com a igreja cristã universal em


questões de culto e música da igreja será um importante fator em ex­
pansão nos anos vindouros. Há muitos hinários com canções de fé de
várias culturas do mundo. Liturgias - até mesmo liturgias luteranas -
não são mais simplesmente derivadas de modelos alemães do século
16. Vêem-se tentativas de formas litúrgicas e hinários em comum ultra­
passando linhas denominacionais. Ainda não está exatamente clara a
forma que tudo isso finalmente assumirá. Porém a direção é clara, e
nenhum grupo específico de cristãos será ou poderá ser capaz de man-
ter-se indefinidamente em sua visão particularizante e provincialista,
seja ela qual for.

Esses são, portanto, alguns aspectos da palavra de Lutero para


nossos dias. Muito dependerá do fato se consideramos Lutero como um
santo engessado, que ocasionalmente retiramos da estante para aben­
çoar algum projeto ou preocupação atual e, tão logo tenha servido a
nossos propósitos, o recolocamos de volta na prateleira, ou se permiti­
mos que seu pensamento a respeito do culto e da música impregne
nossas ações de jnodo prático e provocativo. Em sua inacabada tese “A
respeito da música", Lutero escreveu:
Aquele que despreza a música, como fazem todos os fanáticos,
não me agrada. Pois música é uma dádiva e generosidade de Deus
e não uma dádiva de seres humanos. A música espanta o demônio
e torna as pessoas felizes; ela induz a esquecer toda a raiva, imo­

'BUSZIN, 1958, p. 11.

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