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CDD 341
CDU 342(81)
Capa
“Metamorfoses”, Franz Weismann
Acervo do Ministério das Relações Exteriores
Fotógrafo: André Botelho Vilaron
Fernanda Frizzo Bragato Resumo: O presente artigo discute a contribuição teórica latino-
Doutora e Mestre em Direito pela americana para a construção e a consolidação do discurso
Universidade Vale do Rio dos Sinos universal dos direitos humanos no segundo pós-guerra, no
(UNISINOS). Graduada em Direito pela marco da inquestionada aceitação do protagonismo europeu
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Professora de Direitos
neste processo. A forma hegemônica de se compreender a
Humanos na Graduação e no Progra- história e a fundamentação destes direitos pressupõe que,
ma de Pós-Graduação em Direito da por meio de lutas políticas tipicamente burguesas e de de-
UNISINOS.
clarações marcadamente individualistas, o Ocidente seria
E-mail: fernanda_bragato@hotmail.com
o único responsável pela consolidação de um sistema de
Artigo recebido em 21/10/2010. pretensões e de valores morais que se tornaram catego-
Artigo aprovado em 18/03/2011.
rias jurídicas centrais a partir da segunda metade do século
XX. Com o intuito de desafiar este ponto de vista e destacar
outra face do discurso dos direitos humanos, o artigo, primei-
ramente, discute a teoria de Bartolomé de las Casas sobre a
dignidade dos índios americanos durante o período da con-
quista hispânica da América, demonstrando em que medida
ele prenunciou a dinâmica de como estes direitos se desen-
volveriam no século XX. A seguir, resgata o pioneirismo e o
protagonismo latino-americano no processo de construção
do Direito Internacional dos Direitos Humanos. De um lado,
em relação à proclamação de uma Declaração Internacional
de Direitos Humanos – a Declaração Americana sobre os
Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948 – que precede
em meses a Declaração Universal proclamada pela ONU em
dezembro de 1948 e, de outro, a atuação decisiva dos Estados
da América Latina para a elaboração e aprovação desta última.
1 Introdução
somente uma terceira fase ou geração dos direitos humanos, como sustentam, de
forma simplista, inúmeros teóricos e historiadores, mas uma profunda ressignificação
destes direitos, como indica, não por acaso, a substituição da expressão “direitos do
homem”, típica das declarações modernas do Ocidente (norte-americana e francesa),
por “direitos humanos”. Essa alteração não foi apenas semântica, mas representou a
assunção de que os direitos humanos não são pretensões egoísticas de um indiví-
duo autossuficiente e encorajado, por um sistema liberal de valores, a exercer suas
vontades sem consideração pelos outros ou pela comunidade e pelo mundo em que
vive e do qual depende.
No entanto, a forma convencional de se estudar a história e a fundamentação
destes direitos pressupõe que o Ocidente1 criou e desenvolveu essa idéia, a partir de
suas lutas políticas tipicamente burguesas e de suas declarações marcadamente indi-
vidualistas. E que, após ter se tornado suficientemente madura, foi exportada para os
demais países do mundo, sob duas formas: primeiro através da Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 10/12/1948 e, após, por meio de sucessivas legislações
domésticas, pelas quais os mais diversos países passaram a reconhecer os direitos
humanos ocidentais, seja em nível constitucional, seja em nível infraconstitucional.
Contrariamente a isto, lutas históricas, valores e concepções latino-americanos
têm contribuído, de forma significativa, para a construção e a consolidação do
discurso dos direitos humanos, sobretudo porque referir-se a eles como categoria
universal só faz sentido depois da Segunda Guerra Mundial e não depois da Revo-
lução Francesa, que só garantiu direitos à parcela proprietária da sociedade, como
Marx já havia registrado em sua crítica no século XIX (MARX, 1970). Apesar do histó-
rico de violações de direitos humanos no continente, inúmeros aspectos confirmam
o protagonismo latino-americano para a consolidação teórica deste discurso que,
por inúmeras razões, restaram esquecidos em face do discurso hegemônico. Um
deles são as teorias de Bartolomé de las Casas sobre a dignidade dos índios ameri-
canos durante o período da conquista hispânica da América, que se constituiu, nas
palavras de Carozza (2003, p. 292), no primeiro anúncio claro da moderna linguagem
dos direitos humanos, antecipando a forma como estes direitos se apresentariam na
segunda metade do século XX. Além disso, é marcante, embora praticamente esque-
cido, o pioneirismo latino-americano em relação à proclamação de uma Declaração
Internacional de Direitos Humanos, na medida em que a Declaração Americana sobre
os Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948 precede a Declaração Universal
1 Por Ocidente, refiro-me a uma noção que, muito mais que uma indicação geográfica, é uma concepção
ideológica que engloba, em seu centro, além da Europa Ocidental, certos contextos espaço-temporais
considerados suas extensões, como é o caso dos Estados Unidos da América, Canadá, Nova Zelândia e
Austrália, enquanto a América Latina constitui a sua periferia.
Fernanda Frizzo Bragato 15
pacitados e deveriam ser tutelados, para seu bem, por pessoas mais “civilizadas”, a
saber, as potências européias. A outra questão, derivada da anterior, era definir se
os civilizados europeus, em prol do objetivo anterior, tinham o direito de colonizar
os novos territórios conquistando-os e extraindo suas riquezas (RUIZ, 2007, p. 60).
Foi no contexto dos abusos perpetrados pelo sistema de encomiendas e de ou-
tras artimanhas político-jurídicas para engendrar a organização da exploração do
trabalho indígena, que os missionários franciscanos e dominicanos - encarregados
da missão evangelizadora nas novas terras – manifestaram sua reprovação imediata.
O dominicano Bartolomé de las Casas destacou-se, nos primeiros anos da coloni-
zação, como o principal teórico a sustentar a humanidade dos indígenas, contra-
pondo-se e deslegitimando as bases da conquista e as razões para a escravização,
as guerras e a evangelização forçada. A convivência direta com os índios foi deter-
minante para que ele renunciasse à sua encomienda e se tornasse, em seu tempo,
o mais fervoroso defensor dos povos nativos. Las Casas testemunhou a crueldade
com que eles eram tratados e que provocou um genocídio e a quase dizimação em
poucos anos de conquista (LAS CASAS, 1986, p. 438). Las Casas defendia o princípio
da igualdade entre todos os homens, considerando o grau civilizatório irrelevante
como critério de gradação ou medida de humanidade:
Porque los indios no eran siervos por derecho, porque no fueron conquista-
dos al principio por la introducción de la fe, ni por razón de su infidelidad,
porque la infidelidad en ellos no era pecado; ni menos son siervos por
compra, ni menos son siervos por natividad, porque naturalmente todos los
hombres son libres. (LAS CASAS, 1986, p. 459)
não dava nem à Igreja, nem aos Reis de Castela nenhum direito sobre os gentis.
A concessão aos colonos espanhóis de direitos sobre os índios foi amplamente
deslegitimada por sua argumentação, pois os índios só poderiam ser subjugados
e submetidos às regras e ao domínio espanhol, caso aceitassem espontaneamente
proferir a fé católica (BRUIT, 1995, p. 115). Com esse discurso, Las Casas esvaziava
a autoridade dos Reis Espanhóis sobre os índios que se recusassem a ouvir ou a
aceitar o Evangelho, reconhecendo sua dignidade, como indivíduos, e soberania,
enquanto povo.
Las Casas somou-se às vozes dos teóricos da chamada Escola de Salamanca que,
como observa Dussel, verteram aportes significativos para a construção das bases
do discurso humanista do Direito e que, embora relegado à obscuridade na segun-
da Modernidade, jogou um papel fundamental para a ressignificação dos direitos
humanos no marco do processo de universalização do segundo pós-guerra. Fizeram
parte da Escola de Salamanca pensadores como Francisco de Vitória e Domingos de
Soto que, a exemplo de las Casas, embora sem assumir a sua radicalidade na defesa
dos índios, criticaram profundamente as bases da colonização, atacando os títulos
jurídicos nos quais se apegavam os reis espanhóis para legitimar a ocupação do
Novo Mundo e subjugar seus habitantes.
A obra lascasiana, embora ainda pouco conhecida nos dias atuais, reúne e ante-
cipa os principais pressupostos do discurso humanista do pós-guerra e que inspirou
o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Trata-se do reconhecimento universal
da dignidade dos seres humanos, o que implica dizer o abandono de gradações que,
ao longo da história humana, serviram para animalizar, inferiorizar e rebaixar grande
parte da espécie humana como condição de interditar-lhe direitos fundamentais
para uma existência decente. Assim foi (e ainda é) com os negros, com os índios, com
os colonizados, com as mulheres, com os homossexuais e muitos outros que não se
enquadram nos mais altos padrões. O discurso de las Casas abalou a legitimidade do
poder de definir quem tem ou não o direito de viver, de comer, de escolher, de falar e
de decidir, quando demonstrou a artificialidade de qualquer vínculo de dependência
entre estes direitos e os atributos culturais. E mais, quando descortinou os propósi-
tos por trás das gradações, das inferiorizações e da atribuição de valores a este ou a
aquele modo de vida como condição para o gozo de certos direitos. Ruiz observa que
“o discurso dos direitos humanos tem sua origem na interpelação da alteridade das
vítimas com uma finalidade estritamente política: desconstruir o discurso legitima-
dor da dominação européia sobre os povos indígenas” (RUIZ, 2007, p. 60).
O resgate da sua obra desafia, portanto, uma das verdades mais incontestáveis
sobre os direitos humanos no século XX: que o seu reconhecimento sustentou-se no já
consolidado discurso dos direitos na forma como surgiram e foram reconhecidos nas
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2 Sobre essa tendência latino-americana de ter reconhecido o status fundamental dos direitos sociais,
antes que qualquer outro povo, Glendon especula que uma de suas razões pode ser encontrada nas Encí-
clicas Papais do fim do século XIX e do início do século XX (Rerum Novarum e Quadragesimo Anno) que,
na América Latina, encontraram ambiente propício para uma ampla aceitação (GLENDON, 2003, p. 35).
3 Artigo 1. Os propósitos das Nações Unidas são: [...] 3. conseguir uma cooperação internacional para
resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião.
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filosofias representadas nas Nações Unidas. Isso porque muitos elementos da tra-
dição legal latino-americana contemplavam aspectos de tradições não-ocidentais
(GLENDON, 2003, p. 32). Em primeiro lugar, por enfatizar a importância da família e
a ideia de que os direitos são sujeitos a obrigações e a limitações. De fato, na consul-
ta organizada por Jacques Maritain a uma série de pensadores e escritores de nações
membros da UNESCO, que formaram a Comissão da UNESCO para as Bases Filosó-
ficas dos Direitos do Homem, em 1947, é possível observar que Mahatma Gandhi
destacou justamente a dimensão do dever para a preservação do direito de todos:
Em segundo lugar, essa aceitação se deu porque tanto o esboço chileno quando
o panamenho basearam-se numa extensiva pesquisa transnacional com o objetivo
de encontrar aceitação de um amplo grupo de países que nada tinham de homogê-
neo. E, por fim, porque foram os primeiros documentos a demonstrar a tendência de
combinar os direitos políticos e civis com os direitos sociais, econômicos e culturais
(GLENDON, 2003, p. 34). Carozza sublinha que, sob a voz do chileno Hernan Santa
Cruz, a América Latina tornou-se a maior defensora da inclusão dos direitos econô-
micos e sociais nos esboços da Declaração Universal (CAROZZA, 2003, p. 286). Assim,
as contribuições latino-americanas, e não o modelo soviético ou norte-americano,
foram auxílios cruciais para que os extremos do individualismo e do coletivismo não
tenham acarretado o fracasso da Declaração, propiciando a elaboração do principal
documento internacional de direitos humanos até hoje (GLENDON, 2003, p. 39).
Dentro desse marco político e filosófico, a Nona Conferência dos Estados Ame-
ricanos que se reuniu em Bogotá, na Colômbia, em 1948, não só proclamou a Carta
da Organização dos Estados Americanos, que contém uma série de provisões gerais
acerca dos direitos humanos, mas também proclamou a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem. O mais importante dos artigos da Carta da OEA a
respeito do tema é o artigo 5(j), que declara que “[...] os Estados Americanos procla-
mam os direitos fundamentais dos indivíduos sem distinção de raça, nacionalidade,
credo ou sexo”. Mas a Carta não definiu os direitos mencionados no referido artigo
nem estabeleceu mecanismos para assegurar a sua implementação. A Declaração o
fez em parte, elencando os direitos e estatuindo que “a proteção internacional dos
direitos do homem deve ser o principal guia para a evolução do direito americano”,
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5 Conclusão
De acordo com as análises realizadas no presente artigo, a primeira experiência
histórica do discurso dos direitos humanos ocorreu na América Latina, com as de-
núncias da escravidão e do massacre dos índios levada a cabo por Bartolomé de las
Casas e com as sucessivas reivindicações baseadas no direito natural de liberdade
fundada na pertença de todos a uma humanidade comum. A raridade dos relatos
indígenas da colonização destaca a importância desta obra não apenas no que se
refere aos testemunhos oculares do massacre e da exploração, mas, sobretudo, por
revelar a diferente concepção de mundo dos colonizados e dos colonizadores. Essa
concepção aporta novos significados para a compreensão dos direitos humanos no
contexto latino-americano, na medida em que traz à tona formas de pensar que se
distanciam do etnocentrismo e valorizam a diversidade, a coexistência e o respeito
Fernanda Frizzo Bragato 29
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