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APRESENTAÇÃO

Não há senão uma tristeza: a de não ser santo.


Léon Bloy.

Louis Lavelle escreveu os ensaios que compõem este livro nos últimos anos de
sua vida. Os estudos sobre o caminho de perfeição seguido pelos quatro santos
mencionados em seu título (São Francisco de Assis, Santa Teresa d’Ávila, São João da
Cruz e São Francisco de Sales) foram publicados separadamente no Boletim da
Associação Fénelon, em 1941, e a larga introdução que os precede foi redigida depois.
Lavelle é um dos maiores metafísicos da história da filosofia ocidental (o padre
Sertillanges disse que era o “Platão dos nossos tempos”, e Jean-Louis Vieillard-Baron
que é “o autor do maior sistema de metafísica do Século XX”), e sua obra desmente
brilhantemente a afirmação que Heidegger fazia, na mesma época e não muito longe
dali, de que a metafísica estava morta e enterrada.
Isso não deve nos induzir ao erro e levar-nos a imaginar o filósofo encerrado em
sua torre de marfim, alheio à realidade concreta e passando o tempo a contemplar um
mundo de idéias abstratas. A metafísica é, na verdade, a ciência da realidade total, do
Ser enquanto tal e da relação íntima de todas as coisas com Ele e entre si mesmas,
exigindo do filósofo um contato constante com o próprio Ser e, ao mesmo tempo, com
os outros homens, seus irmãos e companheiros na grande jornada de colaborar na
criação deste mundo e, particularmente, na criação das suas próprias personalidades.
Prova evidente disso foi sua participação na Primeira Guerra. Por ocasião da
mobilização de 1914, já estava na Reserva, aos 31 anos. Solicita, entretanto, seu
engajamento. É enviado inicialmente ao Somme, e depois a Verdun, onde foi feito
prisioneiro em 1916. Permanecerá no Campo de Giessen por vinte e três meses, durante
os quais escreve, além de um diário, a tese de doutoramento que defenderá na Sorbonne
em 1921, A Dialética do Mundo Sensível, e freqüentemente deu aulas de filosofia para
seus companheiros de prisão.
Essa harmonia dialética entre a meditação profunda sobre a sua própria
existência o ensino compõe a trama de sua vida de filósofo. Começou sua atividade de
professor aos 26 anos, no ensino secundário; já em Paris, de 1924 a 1940, deu aulas
particulares e ensinou nos Liceus Henri IV e Louis-le-Grand; em 1941 é nomeado para
a cadeira de filosofia do College de France. Como jornalista, redigiu um grande número
de artigos (vários deles reunidos mais tarde em livro), dentre os quais uma crônica
mensal para o jornal Le Temps, colaboração que se estendeu de 1930 a 1942. Em 1934,
fundou, com seu amigo René Le Senne, também filósofo, a coleção Filosofia do
Espírito; ambos assinaram uma espécie de manifesto, no qual expressam a intenção
desse projeto: “É missão da filosofia atualmente, como o foi sempre, dar ao homem o
sentimento de sua existência e de sua autonomia, e elevar seu pensamento e sua alma
para o absoluto, princípio de toda inteligibilidade como de todo mistério.”
Em sua obra, Lavelle mostra que Deus, o Ser, Ato Puro, não é um ser exterior a
nós, mas habita em nosso interior – mais interior a mim do que eu mesmo –, e que toda
a criação deve sua existência a uma participação, mais ou menos ampla, mais ou menos
profunda, do próprio Ser divino. No caso dos homens e dos anjos, essa participação
inclui a capacidade de conhecer e de escolher, inteligência e vontade, o que implica na
responsabilidade de assumirmos a tarefa de forjar nossa própria personalidade, seja em
conformidade com a potência real que existe em nós, caminho da santidade, seja
desviando essa potência para objetivos espúrios, sugeridos, em última instância, pelo
amor-próprio, pela soberba dos homens e pelos poderes das trevas.
Quatro Santos é o único livro em que se debruça sobre o tema da santidade. Na
introdução, faz uma longa meditação sobre o chamado essencial feito por Deus a cada
um de nós, o de ser santo. Mais do que um chamado, aliás, é uma injunção, uma
exigência (“Sede santos, porque eu sou santo”, diz Ele no livro do Levítico, injunção
que encontramos explicitamente numa carta de São Pedro mas que, implicitamente, está
em cada página da Escritura). Entretanto, nossa maneira superficial e impensada de
compreender Deus e a nós mesmos interpreta essa frase como um mandamento imposto
de fora pra dentro, que nos cerceia e impede que realizemos nossa realidade mais íntima
e pessoal, quando, ao contrário, ela é a tradução verbal de uma exigência inscrita na
nossa própria natureza individual, no núcleo da nossa existência, que anseia pela
libertação de tudo aquilo que nos escraviza, dentro e fora de nós, a fim de permitir,
assim, que germinem e floresçam as possibilidades de ser que acabarão por formar,
enfim, nossa personalidade total.
É significativo que Lavelle o tenha redigido na última década de sua vida.
Escreveu os quatro ensaios sobre os santos aos 58 anos. Podemos imaginar que, já
vendo a morte despontar no horizonte, enquanto compunha os terceiro e quarto volumes
da sua obra maior, A Dialética do Eterno Presente, e concebia seu último volume, que
permaneceu inacabado, voltava também os olhos para os exemplos de realização
espiritual dados por esses santos, unindo sempre a meditação à realização espiritual,
completando, assim, o sentido de sua existência nesta Terra na presença de Deus,
filosófica e religiosamente. O livro foi publicado no ano mesmo de seu falecimento,
ocorrido em 1º de setembro de 1951. Transformado enfim no ser concebido pelo Ser
Eterno, faz agora a cada um de nós, através destas páginas, um convite à realização da
nossa própria natureza individual, ou seja, à santidade.

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