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Capítulo 1
Então ele se troca, toma banho, faz o dejejum, escova os dentes, pega a pasta da
faculdade, a pasta do trabalho, a chave do carro e sai.
Igual ontem, exceto pelo fato da insanidade estar tomando conta de sua mente, sem
ele saber.
Embarca no carro e se move no espaço. Ou seria no tempo? Ele segue pela rua. Ou
seria pelas horas? Segue para a faculdade, para o seu curso de especialização.
Se imagina em uma nave espacial, como quando era criança. Vai de encontro à
sabedoria, pensando na possível aula de hoje.
Imagina que se partir os sonhos e os desejos, fazendo o limite dos pedaços tender a
zero, e se somar os pedaços em relação ao tempo disponível, fazendo assim a
derivada seguida da integral desses sonhos e desejos, eles possam ser realizados.
De repente, trânsito. Congestionamento. Enquanto não pode seguir, ele rabisca mais
algumas palavras:
No meio dos pensamentos, dentro da sua nave como quando era criança, ele vê o seu
pai. Como quando era criança, e seu pai ainda estava entre os vivos, o pai dá um
conselho a ele.
Seu pai diz para ele estudar, que ele não leva nada do mundo a não ser o
conhecimento. Seu pai sempre dizia isso:
“Não busque conhecimento para conseguir mais coisas materiais, todos fazem isso e
quanto mais têm, mais procuram, nunca se satisfazem, nunca são felizes. Procure
conhecimento para sua satisfação pessoal. No fim de seus dias nada de material irá
sobrar...”
Fóóóón.
Uma buzina. O pai some. Trânsito. Tudo parado. Ele escreve mais um pouco:
Depois de muito trânsito, ele chega à faculdade. As pessoas parecem ser as mesmas
de ontem, que eram as mesmas de anteontem e que provavelmente serão as mesmas
de amanhã.
E elas parecem andar nos mesmos lugares e fazerem as mesmas coisas que faziam
ontem, que eram as mesmas de anteontem e que provavelmente serão as mesmas de
amanhã.
Ele entra na sala. Antes do professor chegar ele escreve em seu caderno:
Capítulo 2
Ele olha em torno de si. O professor fala sobre desenvolver novas tecnologias para não
ter que comprar essas tecnologias depois, enfim, para ganhar dinheiro.
Ele olha em torno de si. Todos concordam com que o professor diz. Ele também
concorda com que o professor diz.
Ele olha em torno de si e escreve sua conclusão depois da psicodélica viagem pelos
trilhos do trem da indiferença. Do trem da ignorância. Do trem do preconceito. Do trem
da opressão:
Capítulo 3
O professor explica aquelas equações do quadro. Ele assobia alto, de olhos fechados,
a canção Over the Rainbow, o brigando o professor interromper a explicação. Todos os
colegas olham para ele, sem entender o que ocorre. O professor também não entende.
Enquanto assobia ele viaja por uma paisagem formada à partir da letra da música. Ele
sobe por um arco-íris e chega lá no alto. Observa o lugar, exatamente igual àquele que
ele ouviu em uma canção de ninar. O céu é azul e tudo que ele ousa sonhar se torna
realidade. E todos acham bom, ninguém o critica pelos seus sonhos. Ele acha aquilo
um lugar legal. Uma irmandade perfeita. Não há posses nem bens materiais, todos
trabalham para o bem coletivo. Não há fronteiras, nem religião. Não há nada para
matar ou morrer. Todos vivem em paz e dividem o mundo todo.
O professor manda ele parar de assobiar e diz para sair caso a aula não esteja
interessante. Ele pára e abre os olhos, não porque o professor mandou, mas porque
ele quis.
Na verdade ele nem sabe que o professor mandou. Ele não sabe onde está. Ele não
sabe de nada. A loucura dominou sua mente.
Ele pega o caderno e dá um nome para o lugar onde esteve. Resolve voltar para lá,
mas antes escreve:
Ele não consegue lembrar quem havia sonhado com aquele lugar. Ele olha fixamente
para um ponto no chão tentando lembrar quem era. Quando então, avista John
Lennon, que lhe diz:
“ I hope someday you join us”
Que na cabeça dele seria:
“Eu espero que algum dia você se junte a nós”
Ele sabia que John Lennon havia ousado sonhar. Mas nesse mundo. Talvez por isso
ele tenha sido assassinado. Esmagado pelo trem.
No meio de sua loucura ele faz uma última meditação. Decide que entre ser esmagado
pelo trem ou ter que subir nele, ele preferia embarcar para Utopia.
No meio de sua loucura ele escreve as últimas palavras no caderno:
MUNDO INSANO
Aquele paciente havia passado os seis últimos anos sentado naquela cadeira, olhando
para um ponto fixo no chão, com um estranho sorriso nos lábios, como se estivesse
extremamente feliz.
No televisor, começa a ser transmitido um show da banda Mundo Insano, que faz a
última apresentação da turnê do álbum Um Dia Incerto. O mestre de cerimônias
anuncia a primeira música, Mais Um Dia Como Ontem.
O enfermeiro e o médico que estão na sala se espantam ao ver que aquele paciente
move os olhos em direção ao televisor e desfaz o sorriso. Era a primeira vez em seis
anos que alguma coisa chamava-lhe a atenção.
A música começa com o som de um despertador tocando, quando entram os
instrumentos e então o vocalista começa a cantar da seguinte maneira:
“O anzol doce de um despertar tranqüilo...”
À medida que o vocalista canta o sorriso vai voltando aos lábios do paciente.
Quando chega o refrão, o público vai ao delírio:
“Derivando sonhos, integrando momentos”
A canção termina com o vocalista repetindo várias vezes as frases:
“Mais um dia como ontem
E amanhã mais uma vez”
Quando é anunciada a música Psicodélico Trem do Destino, o público vibra. O
vocalista começa a cantar, sendo o instrumental feito apenas pelos acordes de um
teclado ao fundo:
“Fecho meus olhos, estou sobre os trilhos...”
Então entram as guitarras, bateria e baixo, tornando a música agitada na parte que diz:
“E vem rápido e em minha direção...”
A música volta a ficar lenta no final, apenas com o teclado fazendo o instrumental
quando ele canta:
“Subir no trem
Ou ser esmagado por ele”
Na última música, todo o público canta junto com a banda. O médico fica totalmente
boquiaberto quando o paciente começa a cantar também. Não entende como ele
poderia conhecer aquela música, tendo ficado os últimos seis anos absolutamente
catatônico. O paciente olha dentro dos olhos do médico e grita com toda a força a
última parte música:
“E quem não for
Se fodeu”
O vocalista apresenta a banda e depois se apresenta. O paciente então o reconhece. É
o rapaz que sentava ao seu lado no curso de especialização. Havia ficado com o
caderno. Que mundo insano.
Os olhos do paciente fixam novamente um ponto no chão. O sorriso fica
definitivamente nos seus lábios. O corpo fica nesse mundo insano, mas sua mente
retorna para Utopia. Dessa vez para não voltar mais.
E lá ele viveu feliz, para todo o sempre.