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UM DIA INCERTO

Licyomar Hugo Ulrich

Capítulo 1

MAIS UM DIA COMO ONTEM

Dia após dia. Tudo igual. Rotina.


Acordar, trânsito, aula, trânsito, trabalho, trânsito, casa, televisão, estudar, rezar,
dormir, acordar, trânsito, aula, trânsito, trabalho, trânsito, casa, televisão, estudar,
rezar, dormir, acordar, trânsito, aula, trânsito, trabalho, trânsito, casa, televisão,
estudar, rezar, dormir, acordar, trânsito...
Dia após dia. Tudo igual. Rotina. Dia após dia a loucura vai se apossando da mente
dele.
Tudo igual, todo dia. Rotina se torna escravidão. Escravidão vai virando loucura. O
mundo é insano. Está tudo errado. Está difícil para ele ver sentido nas coisas.
Uma noite ele olha para um velho caderno de notas sobre sua escrivaninha e decide
que no dia seguinte irá escrever suas impressões sobre o mundo. Vai para a cama,
reza e dorme.
Ele sonha. É um sonho bom. Ele dorme e sonha com um sorriso nos lábios.
Então vai chegando a hora de acordar. Ele sempre acorda antes do relógio despertar.
Mas já são seis e vinte e nove e ele ainda não acordou. Está mergulhado em um sonho
bom.
O tic-tac do relógio vai soando no seu subconsciente. Sua mente está no limiar entre o
desperto, o sóbrio e o sonhando, o viajando.
Quando, em meio aos seus sonhos, surge um anzol. É grande, do tamanho de um
biscoito. É doce como um biscoito. Tem gosto de biscoito.
Ele está com a boca no anzol, sentindo o gosto de biscoito. Ele começa a despertar
tranqüilamente, com a boca no anzol doce, com gosto de biscoito.
Beep, beep, beep, beep, beep, beep...
O despertador toca. O anzol é puxado. Ele é fisgado e cai no chão, ao lado da cama.
Pensa no dia que vem. Fora dos sonhos, de volta à vida real.
Mas a sobriedade de sua mente se perdeu. Seu estado mental é incerto. Ele surtou,
mas não tem consciência disso. Na verdade a loucura começou a se apossar
definitivamente de sua mente naquele instante.
O que ele acumulou de loucura nesses dias de rotina surtaram hoje. É uma questão de
horas até ele ficar completamente louco. Mas ele não sabe disso.
Ele olha seu velho caderno sobre a escrivaninha. Pega uma caneta e rabisca as
primeiras palavras sobre suas impressões do dia de hoje:

“O anzol doce de um despertar tranqüilo


Me fisga e me puxa do rio de serenidade
Dos meus sonhos
Para o asfixiante chão da realidade”

Então ele se troca, toma banho, faz o dejejum, escova os dentes, pega a pasta da
faculdade, a pasta do trabalho, a chave do carro e sai.
Igual ontem, exceto pelo fato da insanidade estar tomando conta de sua mente, sem
ele saber.
Embarca no carro e se move no espaço. Ou seria no tempo? Ele segue pela rua. Ou
seria pelas horas? Segue para a faculdade, para o seu curso de especialização.
Se imagina em uma nave espacial, como quando era criança. Vai de encontro à
sabedoria, pensando na possível aula de hoje.
Imagina que se partir os sonhos e os desejos, fazendo o limite dos pedaços tender a
zero, e se somar os pedaços em relação ao tempo disponível, fazendo assim a
derivada seguida da integral desses sonhos e desejos, eles possam ser realizados.
De repente, trânsito. Congestionamento. Enquanto não pode seguir, ele rabisca mais
algumas palavras:

“Embarco nas horas em direção


À galáxia sabedoria
Derivando sonhos
Integrando momentos”

No meio dos pensamentos, dentro da sua nave como quando era criança, ele vê o seu
pai. Como quando era criança, e seu pai ainda estava entre os vivos, o pai dá um
conselho a ele.
Seu pai diz para ele estudar, que ele não leva nada do mundo a não ser o
conhecimento. Seu pai sempre dizia isso:
“Não busque conhecimento para conseguir mais coisas materiais, todos fazem isso e
quanto mais têm, mais procuram, nunca se satisfazem, nunca são felizes. Procure
conhecimento para sua satisfação pessoal. No fim de seus dias nada de material irá
sobrar...”
Fóóóón.
Uma buzina. O pai some. Trânsito. Tudo parado. Ele escreve mais um pouco:

“Vou porque meu pai já dizia


Conhecimento é a única coisa que se leva desse mundo demente
Onde todos querem sempre mais
E no final ninguém fica com coisa alguma”

Depois de muito trânsito, ele chega à faculdade. As pessoas parecem ser as mesmas
de ontem, que eram as mesmas de anteontem e que provavelmente serão as mesmas
de amanhã.
E elas parecem andar nos mesmos lugares e fazerem as mesmas coisas que faziam
ontem, que eram as mesmas de anteontem e que provavelmente serão as mesmas de
amanhã.
Ele entra na sala. Antes do professor chegar ele escreve em seu caderno:

“Mais um dia como ontem


E amanhã mais uma vez”

Licyomar Hugo Ulrich​ ​4​ ​Um Dia Incerto

Capítulo 2

PSICODÉLICO TREM DO DESTINO


Especialização em telecomunicações. Uma boa pra quem mal consegue se comunicar
com a pessoa ao lado. Ainda mais agora que ele está pirando. Pelo menos, ele fica
feliz em fazer os outros comunicarem-se entre si.
Passa pela sua mente aquela frase pronunciada pela voz sintetizada de Stephen
Hawking no começo da música ​Keep Talking​, da sua banda preferida, Pink Floyd:
“For milions of years, mankind live just like the animals, than something happened
which unleashed the power of our imagination: We learned to talk”
Que na cabeça dele seria:
“Por milhões de anos, a humanidade viveu como os animais, aí alguma coisa
aconteceu que expandiu o poder da nossa imaginação: Nós aprendemos a falar”
Quando lembrava dessa frase, ele sentia mais orgulho por colocar as pessoas a se
comunicarem umas com as outras.
O professor dá início à aula, mas o seu pensamento está longe.
Lembrando da frase ele lembra da banda, e quer ouvi-la. Tira o ​disc-man da mochila e
coloca o único cd do Pink Floyd que tem consigo, o ​Animals​, onde eles comparam os
seres humanos a cães, porcos e ovelhas.
Ele passa a ouvir, abaixa a cabeça e sua mente entra naquele limiar entre o sóbrio e o
viajando. Agora, como ele está enlouquecendo, sua mente entra no estado entre o
viajando e o sonhando.
No começo dos sonhos, com as palavras do professor e a música do Pink Floyd
ressoando no que ainda existe de subconsciente sóbrio dele, surgem os trilhos.
Ele está em cima dos trilhos.
Então ouve o ruído de um trem distante. Ele olha em direção ao som e percebe que o
ruído vai se tornando mais alto.
Então surge a luz do trem. Do psicodélico trem do destino. E a luz do trem, que tem
todas as cores e ao mesmo tempo nenhuma, vem em sua direção, cada vez mais
rápido.
Ele fica estático, não consegue se mexer, não consegue correr. Uma desesperadora
sensação de vazio se apodera de sua alma.
Ele sente que logo será atropelado pelo trem da indiferença. Pelo trem da ignorância.
Pelo trem do preconceito. Pelo trem da opressão.
Ele não consegue se mexer, não consegue correr.
O trem chega mais perto e ele consegue ver os tripulantes do trem da indiferença. Do
trem da ignorância. Do trem do preconceito. Do trem da opressão.
E ao vê-los, ele tem uma surpresa. Estão lá os poderosos, os grandes, os mesmos que
estavam no telejornal.
Estão lá também cachorros opressores. Estão lá também porcos esbanjadores. E as
ovelhas, que são o povo, estão atrás dele, e serão atropeladas pelo trem logo depois
dele.
O trem chega bem perto, na eminência de atropelá-lo. Então o vazio dá lugar ao medo.
E o medo faz ele abrir os olhos, retornando do sonho.
Demora até ele perceber que foi um sonho. Uma viajem pelo seu subconsciente,
embalada pela música do Pink Floyd.
Ele pega seu caderno de notas e escreve:

“Fecho meus olhos, estou sobre os trilhos


Ouço ao longe o som negro do trem que se aproxima
E vem rápido e em minha direção
Meu corpo congela, minha alma esvazia e o trem se aproxima
O trem da indiferença, da ignorância, do preconceito e da opressão
E quando o trem chega perto, que surpresa!
Lá estão eles de novo: os grandes, os porcos, os cachorros
Fico com medo, abro os olhos”

Ele olha em torno de si. O professor fala sobre desenvolver novas tecnologias para não
ter que comprar essas tecnologias depois, enfim, para ganhar dinheiro.
Ele olha em torno de si. Todos concordam com que o professor diz. Ele também
concorda com que o professor diz.
Ele olha em torno de si e escreve sua conclusão depois da psicodélica viagem pelos
trilhos do trem da indiferença. Do trem da ignorância. Do trem do preconceito. Do trem
da opressão:

“Vejo o mundo a minha volta


E ele me oferece duas opções
Subir no trem
Ou ser esmagado por ele”

Capítulo 3

PARTINDO RUMO À UTOPIA

O professor explica aquelas equações do quadro. Ele assobia alto, de olhos fechados,
a canção ​Over the Rainbow, o​ brigando o professor interromper a explicação. Todos os
colegas olham para ele, sem entender o que ocorre. O professor também não entende.
Enquanto assobia ele viaja por uma paisagem formada à partir da letra da música. Ele
sobe por um arco-íris e chega lá no alto. Observa o lugar, exatamente igual àquele que
ele ouviu em uma canção de ninar. O céu é azul e tudo que ele ousa sonhar se torna
realidade. E todos acham bom, ninguém o critica pelos seus sonhos. Ele acha aquilo
um lugar legal. Uma irmandade perfeita. Não há posses nem bens materiais, todos
trabalham para o bem coletivo. Não há fronteiras, nem religião. Não há nada para
matar ou morrer. Todos vivem em paz e dividem o mundo todo.
O professor manda ele parar de assobiar e diz para sair caso a aula não esteja
interessante. Ele pára e abre os olhos, não porque o professor mandou, mas porque
ele quis.
Na verdade ele nem sabe que o professor mandou. Ele não sabe onde está. Ele não
sabe de nada. A loucura dominou sua mente.
Ele pega o caderno e dá um nome para o lugar onde esteve. Resolve voltar para lá,
mas antes escreve:

“Utopia aqui vou eu, nada vai me segurar


Lá eu vou poder sonhar, ninguém vai me criticar
Lá é um lugar legal, é o lugar ideal
Sem fronteiras nem religião, todos com amor no coração”

Ele não consegue lembrar quem havia sonhado com aquele lugar. Ele olha fixamente
para um ponto no chão tentando lembrar quem era. Quando então, avista John
Lennon, que lhe diz:
“ I hope someday you join us”
Que na cabeça dele seria:
“Eu espero que algum dia você se junte a nós”
Ele sabia que John Lennon havia ousado sonhar. Mas nesse mundo. Talvez por isso
ele tenha sido assassinado. Esmagado pelo trem.
No meio de sua loucura ele faz uma última meditação. Decide que entre ser esmagado
pelo trem ou ter que subir nele, ele preferia embarcar para Utopia.
No meio de sua loucura ele escreve as últimas palavras no caderno:

“É o lugar que John sonhou


E talvez por ter sonhado, ele foi assassinado
Eu me junto a John agora, estou indo sem demora
Utopia aqui vou eu
E quem não for
Se fodeu”

Ele entra em uma nave e parte para Utopia.


Os colegas se assustam ao verem as convulsões e o professor corre para ajudar, mas
não há mais o que fazer. A mente dele perde o contato com esse mundo insano. O
corpo permanece nesse mundo, mas a mente vai para Utopia.
Capítulo 4

MUNDO INSANO

Aquele paciente havia passado os seis últimos anos sentado naquela cadeira, olhando
para um ponto fixo no chão, com um estranho sorriso nos lábios, como se estivesse
extremamente feliz.
No televisor, começa a ser transmitido um show da banda Mundo Insano, que faz a
última apresentação da turnê do álbum Um Dia Incerto. O mestre de cerimônias
anuncia a primeira música, Mais Um Dia Como Ontem.
O enfermeiro e o médico que estão na sala se espantam ao ver que aquele paciente
move os olhos em direção ao televisor e desfaz o sorriso. Era a primeira vez em seis
anos que alguma coisa chamava-lhe a atenção.
A música começa com o som de um despertador tocando, quando entram os
instrumentos e então o vocalista começa a cantar da seguinte maneira:
“O anzol doce de um despertar tranqüilo...”
À medida que o vocalista canta o sorriso vai voltando aos lábios do paciente.
Quando chega o refrão, o público vai ao delírio:
“Derivando sonhos, integrando momentos”
A canção termina com o vocalista repetindo várias vezes as frases:
“Mais um dia como ontem
E amanhã mais uma vez”
Quando é anunciada a música Psicodélico Trem do Destino, o público vibra. O
vocalista começa a cantar, sendo o instrumental feito apenas pelos acordes de um
teclado ao fundo:
“Fecho meus olhos, estou sobre os trilhos...”
Então entram as guitarras, bateria e baixo, tornando a música agitada na parte que diz:
“E vem rápido e em minha direção...”
A música volta a ficar lenta no final, apenas com o teclado fazendo o instrumental
quando ele canta:
“Subir no trem
Ou ser esmagado por ele”
Na última música, todo o público canta junto com a banda. O médico fica totalmente
boquiaberto quando o paciente começa a cantar também. Não entende como ele
poderia conhecer aquela música, tendo ficado os últimos seis anos absolutamente
catatônico. O paciente olha dentro dos olhos do médico e grita com toda a força a
última parte música:
“E quem não for
Se fodeu”
O vocalista apresenta a banda e depois se apresenta. O paciente então o reconhece. É
o rapaz que sentava ao seu lado no curso de especialização. Havia ficado com o
caderno. Que mundo insano.
Os olhos do paciente fixam novamente um ponto no chão. O sorriso fica
definitivamente nos seus lábios. O corpo fica nesse mundo insano, mas sua mente
retorna para Utopia. Dessa vez para não voltar mais.
E lá ele viveu feliz, para todo o sempre.

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