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CARTA 6

Desafios e oportunidades
para o futuro

D esde as primeiras edições do meu livro Teoria da contabilidade, eu aler-


tava: nosso futuro será uma realidade de computadores e robôs (isso
no final da década de 1970). Mais recentemente, adicionei... big data; agora,
teria que adicionar inteligência artificial (IA)!
Na verdade, a simples enunciação IA provoca desmaios, delírios e quase
suicídios em contadores, administradores, economistas e outros profissio-
nais, um pouco menos nos engenheiros, talvez.
Até agora os devices da IA têm sido capazes de ser tão inteligentes quanto
os humanos, e milhares de vezes mais rápidos, em aplicações que reque-
rem enorme quantidade de dados e repetições. Por exemplo, hoje, com IA, é
possível, por meio dos registros numéricos de dados sobre vendas, projetar
vendas futuras e a lucratividade. Enfim, em toda atividade onde há grande
número de dados, IA é capaz, em pouco tempo, de fazer projeções que leva-
riam, para um contador bem preparado, anos para definir futuros valores.
Até aí, não deveríamos nos desesperar. Pelo contrário, deveríamos ficar
contentes com o fato de a IA nos livrar de atividades repetitivas, liberando
tempo para as funções mais nobres de nossa atividade. (O grande problema
é verificar se, de fato, estamos dedicando tempo a essas atividades mais no-
bres, como contabilidade estratégica, por exemplo.)
A respeito da evolução futura da IA, existem visões diferenciadas entre os
estudiosos. A maioria avalia que não evoluirá a ponto de superar o homem
(mulher) nos problemas que exigem capacidade de imaginação, inteligência,
feeling, cultura geral, conexão rápida entre vários setores do nosso cérebro,
arte, experiência e outros fatores cognitivos. Outros dizem que, aos poucos,

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a IA evoluirá até o ponto de aprender essas vantagens humanas por repeti-


ção e erro. O filme Odisseia no espaço seria o auge assustador desse progres-
so da IA, quando o computador fica tão evoluído que não mais obedece a
seu dono!
Bem, levando-se em conta o que parece mais razoável ocorrer na evo-
lução da IA, restam os desafios que os contadores terão que enfrentar para
manter sua profissão atrativa e manter seus empregos.

Contabilidade e empresas digitais


Mesmo que as agências reguladoras não venham a tratar, explicitamente,
do assunto (o que seria um erro), contadores não poderão passar batido por
esse desafio. A importância dos ativos intangíveis, nesse tipo de entidade,
sobretudo os criados internamente, pode representar até quase tudo na ava-
liação do mercado com relação às empresas digitais. Nem por isso o conta-
dor vai deixar de aplicar a contabilidade regulatória, com as demonstrações
tradicionais, balanço, demonstração de resultados etc. Claro que o balanço
estará muito longe dos valores da marca e do valor atribuído pelo mercado à
entidade. Ainda assim, a demonstração de resultados sempre vai ser de inte-
resse para análise, pois até algumas atividades que vêm incrementar o valor
da empresa estão identificadas na demonstração de resultados, como cursos
de aperfeiçoamento para seus funcionários e muitas outras.
Entretanto, o contador deverá conhecer os métodos de avaliação de valor
da marca, bem como ser capaz de assessorar os interessados em identificar
os fatores que levam o valor da entidade a ser muito maior (ou menor, em
raros casos) do que o do patrimônio líquido tradicional da contabilidade
regulatória (pelo menos a que conhecemos até agora). O contador não pode e
não deve renunciar a uma de suas funções mais nobres, a de assessor e consultor.

Vocações básicas dos contadores


Muitos anos atrás, o AICPA dos EUA realizou importante pesquisa sobre
as qualidades básicas de um contador qualificado. Vários fatores e facetas
ressaltaram da pesquisa, mas lembro que um que me impressionou foi, ou
inato ou adquirido aos poucos, o sentido da relevância (materialidade) dos

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números, cifras e conjuntos de números e cifras nas demonstrações contá-


beis. Não existe, salvo em poucos casos bem restritos, uma fórmula mágica
para calcular a relevância ou materialidade. Contadores são adeptos da fa-
mosa regra dos 10%, mas ela nada tem de científico. Vivemos sempre às tur-
ras com esse conceito. Há contadores que, por vocação inata, se sobressaem
sobre os outros por essa qualidade! Outros aprendem a duras penas, com
muito esforço e muitos insucessos parciais.
Longe de mim querer dar uma fórmula: por exemplo, nem sempre algo
errado em um documento contábil, mas de valor muito pequeno, significa
que não seja relevante, visto que pode indicar um problema no sistema de
emissão. Para quem nasceu privo dessa qualidade inata (vocação), só nos
resta aplicar boa dose de bom senso!

Fraquezas da formação usual dos contadores


Apesar de todos os esforços e, talvez, por causa do baixo nível cultural de
boa parte dos que ingressam nos cursos superiores de Ciências Contábeis,
ainda hoje, o elenco de disciplinas dos cursos de graduação tem falhas gra-
ves. Falta de disciplinas de cultura geral, de métodos quantitativos e da área
de Sistemas de Informação. Isso é algo usual até nas melhores faculdades!
Só poderá ser sanado por meio de tremendo esforço por parte dos alunos e,
depois, formados. Lamentavelmente, muito pouco se lê na área contábil, até
em cursos de mestrado! Por isso é que perdemos empregos principalmente
para engenheiros e mais vezes em bancos. Na área financeira, bem como
em muitas outras, a facilidade de fazer previsões, de utilizar algoritmos é
muito importante. Na área de Sistemas de Informação dos tipos SAP e ou-
tros, usualmente, contadores não têm facilidade. Mesmo em Matemática
Financeira, normalmente, os cursos são de apenas um semestre. Que dirá
dos aplicativos estatísticos mais avançados, econométricos, das séries da
bolsa de valores etc. Temos notado, mesmo em cursos de mestrado, difi-
culdades nessas áreas por parte de formados em Ciências Contábeis. Assim,
essas falhas devem ser sanadas com muita dificuldade por cursos especiais,
leituras e muito esforço próprio.
Contabilidade segue a Economia? Certamente, grande parte das transa-
ções registradas pelo sistema contábil é de natureza econômica. Entretanto,

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na Contabilidade de Custos o sistema contábil realiza apropriações do que,


em um primeiro momento, representou gastos para o sistema de produção.
Hoje em dia, todavia, o campo dos stakeholders aumentou bastante, ape-
sar de a estrutura conceitual inicial do IASB dar clara preferência aos acio-
nistas ou cotistas e aos credores, incluindo fornecedores, trabalhadores da
empresa, governo, instituições ambientais e outros interessados. O relato
integrado nada mais é do que a face escrita dessas preocupações ampliadas
com vários usuários da informação. Historicamente, a Contabilidade sem-
pre se adequou aos desenvolvimentos econômicos e sociais nas várias épo-
cas, desde os rudimentares desenhos nas paredes das cavernas dos homens
pré-históricos, pintando principalmente animais, uma espécie de inventário
rudimentar, passando pelas antigas civilizações sumério-babilonense, egíp-
cia, grega, romana, medieval, luzindo extraordinariamente na renascença
italiana, revolução industrial, surgimento das grandes potências econômi-
cas da Europa, Estados Unidos e mais recentemente Ásia. Note-se que a
Contabilidade não apenas serviu para contabilizar os fenômenos econômi-
cos das várias épocas, bem como, em um efeito circular, facilitou os progres-
sos econômicos e civilizatórios nos vários países e continentes citados! Se
fosse, a Contabilidade, apenas um sistema de contabilização e de controle,
seria o caso de atribuir-lhe uma importância secundária. Na verdade, as em-
presas e nações, a economia em geral, se nutrem das melhores decisões que
a Contabilidade proporciona aos que tomam tais decisões!
Aliás, segundo o historiador econômico Schumpeter, não teria sido pos-
sível escrever a história da Economia se não existissem os livros diários dos
comerciantes de vários países europeus, principalmente das repúblicas da
Renascença italiana! Assim, em alguns casos, Contabilidade e Economia es-
tão interligadas, mas são campos de conhecimento distintos. E, sem dúvida,
a Contabilidade é a mais antiga, nas suas raízes históricas, com relação a
publicações.

Contador do futuro
Sem dúvida, o século XXI é o da tecnologia e da informação! Na infor-
mação, o contador tem uma participação preponderante. Não devemos
ter receio da IA, mas aproveitar o tempo livre que ela nos deixará, a fim

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de exercitar as funções mais nobres que nosso cérebro – inigualável e que


nunca será superado – possa desempenhar. Já afirmei outras vezes que a
Contabilidade segue a sociedade. Federigo Melis, o grande historiador, foi
além: o progresso da Contabilidade segue a evolução da civilização humana.
Vamos, todos, contadores profissionais de diversas especializações e, prin-
cipalmente, professores e pesquisadores, nos engajar nesta nobre missão: aper-
feiçoar-nos no presente para brilharmos como uma das estrelas do futuro.

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