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FORMAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL E INSTITUCIONALIDADE: EFEITOS

SOBRE A MOBILIDADE URBANA NA REGIÃO METROPOLITANA DE


FLORIANÓPOLIS
Resumo
Planejadores de cidades e regiões de todo o mundo tem buscado inovações em
matéria de transportes públicos e mobilidade, baseadas em novos paradigmas de
planejamento. No entanto, para que essas inovações se efetuem, urge que as
instituições superem barreiras impostas por múltiplas determinações, dentre as quais
destacam-se ingerências de grupos políticos conservadores; normas defasadas com
relação aos problemas concretos evidenciados no território; inexistência ou
intermitência de canais de financiamento e; baixa qualidade e quantidade de pessoal
e equipamentos para pesquisa. Na Região Metropolitana de Florianópolis (RMF), a
institucionalidade dos transportes públicos e da mobilidade foi produzida em distintos
contextos históricos, sob diferentes objetivos e interesses. As principais instituições
presentes na RMF, que historicamente atuaram sobre as condições de mobilidade
foram, até o presente momento, o Departamento de Transportes e Terminais
(DETER), o Departamento Estadual de Infraestruturas (DEINFRA), a
Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis
(SUDERF), o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) e as
prefeituras da região. Vale ressaltar que com o novo governo do estado, algumas
delas foram recentemente extintas e suas competências transferidas a novas
secretarias, sob o comando direto da chefia do executivo. A despeito disso, sempre
houveram desacordos entre essas instituições, sobre qual delas deveria possuir a
primazia sobre o planejamento dos transportes públicos de característica
metropolitana, o que inclui um impasse com as prefeituras, avessas à cessão de suas
atribuições sobre os transportes públicos municipais. Esses desacordos também
ocorrem no tocante à forma de gerir as infraestruturas rodoviárias da Ilha de Santa
Catarina, o que é um atraso do ponto de vista da governança do sistema,
considerando que os fluxos que perpassam essas vias já não tem mais a característica
rodoviária, para a qual o estado catarinense possui os atributos de gestão.
Atualmente, tratam-se de fluxos cotidianos de característica intra-urbana e
metropolitana, isto é, cuja operação deveria caber a um órgão metropolitano ou de
associativismo municipal, conhecedor das dinâmicas urbanas locais e regionais.
Finalmente, entre essas instituições também há impasses sobre os rumos do
planejamento. Em face aos congestionamentos e à perda de competitividade do
transporte público, o questionamento sobre qual é a melhor tecnologia de transporte
a ser utilizada tem sido recorrente. Assim, questiona-se se a região necessita de um
sistema BRT (Bus Rapid Transit), de transportes marítimos, uma quarta ponte para a
travessia rodoviária entre o continente e a Ilha de Santa Catarina, ou ainda, de um
sistema misto. O fato contundente é que nenhuma das instituições presentes na RMF
tem sido capaz de elaborar estudos – a partir do acúmulo de conhecimento sobre o
território –, em um nível de profundidade que possibilitasse um nível de assertividade
que se tornasse uma referência técnica para a tomada de decisões e posicionamentos
na esfera política. O objetivo desse artigo é analisar como essas fragilidades
institucionais são determinantes para a perpetuação e o acirramento das contradições
entre mobilidade, transporte e território na RMF.
Palavras-chave: mobilidade urbana, formação sócio-espacial, análise institucional.

Introdução
A baixa qualidade das condições de mobilidade na Região Metropolitana de
Florianópolis (RMF) pode ser exemplificada desde a baixa frequência e altos tempos
de deslocamento por transporte público, até as condições inadequadas para os
deslocamentos não-motorizados. Na RMF, que possui uma das taxas de motorização
mais altas do país e índices de mobilidade nos quais o uso do automóvel supera
metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (COCCO, 2017), a
ineficácia desses serviços e infraestruturas é patente. A ausência de uma efetiva
integração físico-tarifária metropolitana para os ônibus urbanos e de um conjunto de
tecnologias mistas – que incluem sistemas ferroviários leves, transporte marítimo,
condições para o deslocamento a pé e por bicicletas etc. –, deflagram em um quadro
de grande iniquidade no que se refere à acessibilidade à cidade, estimulando o uso
diário do automóvel.
Não obstante, tais iniquidades são resultado de um conjunto de determinações,
dentre as quais se destacam a complexidade territorial, os baixos níveis históricos de
investimento em mobilidade urbana e as baixas capacidades institucionais associadas
ao planejamento. No presente artigo, trabalharemos mais detidamente sobre a
questão institucional, isto é, das capacidades de planejamento, considerando que
tanto o caráter multifacetado da morfologia urbana, quanto a existência de
ferramentas para operar em meio a investimentos descontínuos, dependem de um
acúmulo de conhecimento sobre o território, bem como de autonomia – chancelada
pela participação popular – para a ação sobre ele. Além disso, um desenvolvimento
institucional de longo prazo – que por seu turno, exige recursos contínuos em pessoal
e tecnologia – propicia a que essa complexidade seja trabalhada de modo integrado,
em modelos do tipo “dados abertos” (open data), favorecendo a comunicação
interinstitucional (VEENEMAN; MULLEY, 2017).
Em espaços nos quais foi construída historicamente uma interação efetiva entre
as diferentes estruturas de planejamento – tanto formais, quanto informais (RYE,
MONIOS et al, 2018). –, típicas de uma distribuição de competências (devolution)
(MACKINNON et al, 2010), enseja-se um ambiente propicio a uma maior qualificação
dos transportes públicos e demais condições de mobilidade urbana, haja vista que as
autarquias metropolitanas e municipais, quando bem providas de técnicos e equipes
multidisciplinares, passam a conhecer em maior detalhe os problemas do território do
que a burocracia do executivo. Ao contrário, em formações sócio-espaciais periféricas
(SANTOS, 1982; RANGEL, 2005) a práxis tem sido a de operar, ao mesmo tempo,
uma concentração de poder em secretarias diretamente controladas pelo poder
executivo e um esvaziamento das autarquias de planejamento, efetuado consoante
políticas de cunho neoliberal, sob a justificativa de “enxugamento” do Estado.
Esvaziamento esse que acaba por ser ocupado pela lógica da própria iniciativa
privada, que passa a intervir diretamente sobre o planejamento. O objetivo desse
artigo é compreender como a fragilidade das instituições públicas de planejamento
contribuem para a lógica de baixa qualidade dos serviços e infraestruturas para a
mobilidade na RMF, agudizando as contradições históricas entre mobilidade,
transporte e território.

Teorias para a análise da institucionalidade no planejamento da mobilidade

Parte significativa dos trabalhos que abordam a questão institucional em


mobilidade e transportes, o fazem conferindo centralidade ao conceito de governança,
associando-o a noções acessórias como dependência de trajetória (path dependence)
(SORENSEN, 2015; HRELDJA et al, 2013) e devolução de poder (devolution)
(MACKINNON et al, 2010), entre outras. A noção de dependência de trajetória,
desenvolvida por Brian Arthur (1994) e Paul David (1985), se enquadra no rol de
abordagens empregadas nas chamadas análises institucionais. A noção remete ao
fato de que uma vez estabelecidas, algumas instituições tendem a tornarem-se mais
difíceis de modificar ao longo do tempo, haja vista que – não havendo nenhum
movimento de ruptura – a sua formatação inicial e os resultados dela decorrentes,
tendem a reproduzir-se, por mais que sejam defasados em relação aos problemas
concretos atuais, aos quais, na realidade, deveriam oferecer soluções.
A noção de devolução de poder (que pode ser lida como devolução de
competências) (BRENNER, 2004) remete a um ajustamento qualitativo das
capacidades do Estado, ou seja, descentralizações de poder desde os governos
centrais, para instituições de escalas regionais, metropolitanas e locais, mas que não
significam uma “erosão dos poderes do Estado”, como é comum observar nos países
periféricos. É interessante destacar que ambas as noções interagem. Por exemplo,
em formações sócio-espaciais (SANTOS, 1982) conservadoras (e periféricas),
instituições e administrações da alta escala de poder, muito próximas ao poder político
executivo, podem ser avessas à cessão de suas atribuições a outras escalas, como
se tem observado na dificuldade de empoderar – em diversas regiões metropolitanas
brasileiras – autarquias (de regime especial)1 para o planejamento metropolitano, que
funcionem como rótulas de concertação interinstitucional; de integração entre políticas
de uso do solo, infraestruturas, serviços de mobilidade e transportes e; de realização
de estudos contínuos sobre o território. Noutros termos, de planejamento em sentido
amplo. Inclusive, como veremos a seguir, a pauta política em Santa Catarina tem sido
a da reconcentração de poder junto ao governo estadual2.
Não obstante, entendemos que esse conjunto de abordagens, conceitos e
noções, apesar de refletirem processos concretos da realidade objetiva são tributários
de dinâmicas mais profundas, ligadas ao processo histórico dos diferentes territórios
e à Economia Política em sentido amplo, tanto na escala nacional quanto regional.

1
Autarquias de regime especial, em contraponto às de regime simples, possuem autonomia para
contratação de pessoal, licitação de serviços, entre outras atribuições próprias quando a instituição
possui orçamento próprio.
2
Trata-se da atual e controversa Reforma Administrativa levada a cabo pelo Governador Moisés da
Silva (PSL) e aprovada em junho de 2019, a qual, ao invés de reequipar autarquias e outras instituições
ligadas ao planejamento e à mobilidade urbana, as extingue ou as coloca demasiadamente vinculadas
à chefia do executivo. Muito embora, tenha racionalizado a quantidade de cargos comissionados de
natureza política.
Por isso, conferimos centralidade à categoria e método da formação sócio-espacial. É
justamente no contexto das formações sócio-espaciais periféricas, nas quais não
houve um desenvolvimento pleno de relações capitalistas, que a capacidade de
planejar é menor3.
O caso brasileiro é marcado historicamente pelo controle do Estado por parte de
elites heterogêneas pactuadas – ou seja, pactos de poder entre frações distintas da
classe dominante –, sendo as frações de classe mais retrógradas, territorialmente
instaladas em rincões regionais sob seu controle. Segundo Ignácio Rangel (2005),
cuja narrativa é base para diversos estudos sobre a formação social brasileira, essa
heterogeneidade teria fim com a hegemonia da burguesia industrial nacional, a qual
conduziria a uma maior homogeneização da sociedade e um maior nível de coesão
social, quer seja entre as elites ou entre as classes populares (RANGEL, 2005). Mas
esse processo não se completou. Ora, o interesse no planejamento da mobilidade
urbana4 e em sua institucionalidade – considerando que as instituições são parte do
próprio complexo de transportes e mobilidade – só se dá se a reprodução qualitativa
das forças produtivas sociais forem, de fato, um processo fundamental para a
produção ampliada de valor de uma determinada sociedade (JARAMILLO, 1985).
Finalmente, devido à típica alternância histórica entre economia exportadora e
economia internalizada (RANGEL, 2005) – isto é, sem assumir uma perspectiva de
longo prazo para o desenvolvimento –, sociedades como a brasileira são tipicamente
“projetistas”, ou seja, não estabelecem no longo prazo a necessidade de
desenvolvimento qualitativo de suas forças produtivas sociais, para a qual amplas
condições de qualificação profissional, cultura, lazer, moradia, proximidade e
mobilidade (SILVEIRA, COCCO, 2013) são de imperiosa necessidade. Ademais, no
caso brasileiro, não havendo uma contra-hegemonia popular desde a base da
sociedade civil, e nem mesmo uma coesão e hegemonia da burguesia industrial, os
chefes de poder executivo e as redes de pessoal imediatamente sob seu controle,
tendem a concentrar poder, fato que remonta à ação típica das antigas oligarquias.
Nesse caso, há pouca devolução de poder (MACKINNON et al, 2010). Como veremos
a seguir, essa fragilidade do corpo de planejadores – que é a própria fragilidade das
instituições de planejamento – conduz a uma permeabilidade maior com relação aos
interesses da iniciativa privada sobre a mobilidade urbana enquanto business, assim
como aumenta a ingerência de interesses políticos de curto prazo e que sabotam,

3
Nesses países, há um “aparato estatal [vide suas instituições de planejamento] menos avançado no
sentido da unificação dos interesses gerais das classes burguesas” (JARAMILLO, 1983, p.138), isto é,
que seja capaz de realizar condições gerais de produção e reprodução a uma classe burguesa industrial
em geral. Ainda segundo Jaramillo (1983), nessas formações sócio-espaciais, o Estado e suas
instituições tendem a instrumentalizar interesses imediatos de frações estreitas das classes dominantes
– em geral oligarquias regionais –, obtendo, dessa forma, uma margem limitada de ações de longo
alcance.
4
O planejamento aqui é visto não como algo estático e delimitado no tempo e no espaço, para a
consecução de certas “obras”, mas como atividade dinâmica e contínua que inclui a aquisição constante
de dados do território, que subsidiem a maior eficácia possível dos projetos, bem como seu
aperfeiçoamento contínuo em função das demandas do tecido social em sua diversidade (ASCHER,
2010; RANGEL, 2005).
como se observa em vários exemplos, a qualidade e a eficácia das tecnologias de
transporte.

O contexto espacial e institucional e as políticas de transporte e mobilidade

No que se refere ao planejamento e ao projetamento urbanos, certamente que


uma das questões mais emblemáticas – e que mais atrai a atenção dos planejadores,
acadêmicos e políticos na RMF – é o problema travessia continente-ilha. A travessia
continente-ilha se conforma como o elo de ligação entre as demandas das cidades da
área continental da RMF e da parte insular do município de Florianópolis e se faz
atualmente através das pontes Colombo Machado Salles e Pedro Ivo Campos,
edificadas entre 1975 e 1991, respectivamente (Figura 1). Essas pontes, dada a
intensidade dos deslocamentos pendulares entre os municípios da parte continental e
a ilha, estão cotidianamente congestionadas.

Figura 1 – Municípios da atual região metropolitana de Florianópolis-SC.

Fonte: Organização própria, 2019.

Gráfico 1 - Matriz modal dos deslocamentos cotidianos na RMF, em 2014.


Fonte: Consórcio Logit Strategy, 2014.

Como se pode observar (Gráfico 1), o uso dessas infraestruturas é


preponderantemente efetuado por transporte individual privado, ou seja, automóveis
e motocicletas, o que exibe de modo claro a baixa competitividade do transporte
público na região. Com relação às instituições que deveriam atuar sobre esses
problemas, os principais órgãos de natureza autárquica, cujas ações tem incidido
historicamente sobre a mobilidade são o Departamento de Transportes e Terminais
(DETER), o Departamento Estadual de Infraestruturas (DEINFRA), a
Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis
(SUDERF), o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), a Associação
Nacional de Transportes (ANTT) e o Departamento Nacional de Infraestruturas de
Transporte (DNIT). Essas autarquias, agências e institutos tem coexistido com as
secretarias estaduais e municipais, além de associações de direito privado.
Historicamente, há um padrão evidente de uso das instituições como locus de
hegemonia política, a partir da distribuição de cargos de confiança e com baixo ou
nulo quadro técnico, o que penaliza a atividade de planejamento tal como a
conceituamos inicialmente. É o caso histórico das Secretarias de Desenvolvimento
Regional (SDRs) criadas em 2005 e posteriormente denominadas de Agências de
Desenvolvimento Regional (ADRs). De fato, como expõe Marcon (2009), após sua
criação pelo governador Luís Henrique da Silveira, quem de fato estrutura o formato
das ADRs é o “poder de pressão dos deputados e suas bases políticas”. As limitações
ao desempenho dessas instituições não tardaram em se manifestar, como é o caso
da alta rotatividade dos ocupantes dos cargos comissionados, o preenchimento dos
cargos comissionados sem a qualificação técnica necessária; quadros de servidores
efetivos em quantidade insuficiente e deficiências na geração e análise de informação,
isto é, na pesquisa intensiva de conhecimento do território (MARCON, 2009). Além
disso, quaisquer ações efetivas cuja iniciativa partia das ADRs, ao fim e ao cabo
deveriam passar pela aprovação das secretarias diretamente ligadas ao poder
executivo, ou seja, não possuíam qualquer autonomia.
Nota-se que estas instancias de planejamento criadas verticalmente – que na
prática não exerciam a atividade de planejamento – interromperam iniciativas de base,
que principiavam em se destacar, como foi o caso do Fórum Catarinense de
Desenvolvimento e da própria Associação de Municípios da Grande Florianópolis
(GRANFPOLIS), os quais já propunham ações estratégicas para questões regionais
– como é o caso dos transportes e da mobilidade –, através de pactos firmados entre
os municípios e pactos sociais entre organizações públicas e privadas. A substituição
dos fóruns regionais por conselhos regionais submetidos diretamente às ADRs
significou retirar o protagonismo de iniciativas que eram, em tese, embriões de
estruturas de base, mais coesas e de maior amplitude, que congregavam diferentes
setores sociais interessados no planejamento.
No ano de 2014 o governo do estado aprova a lei de criação da Suderf. No
entanto, tal como foi elaborada, essa instituição consubstancia interesses parcelares,
isto é, os interesses do COMDES (Conselho Metropolitano para o Desenvolvimento
da Grande Florianópolis), que na prática representa um pacto de interesses de partes
do empresariado da região, do capital imobiliário e do setor comercial. Não por acaso,
os objetivos da Suderf enquanto autarquia metropolitana têm se limitado à questão
dos transportes públicos, negligenciando problemas fundamentais ao
encaminhamento mais amplo da mobilidade urbana regional, como é o caso do uso
do solo metropolitano, da necessidade de densificação urbana e de inovações
institucionais necessárias à eficiência econômica do próprio transporte público, como
é o caso de estímulos à formação de usos e rendas mistas do solo urbano
(CERVERO, 2016)5. Adentrar de modo contundente essas questões, certamente a
autarquia afrontaria interesses do próprio COMDES.
A criação da Suderf também gerou certa inquietação dentro das prefeituras e
demais administrações, na medida em que a autarquia pleiteou – e ainda pleiteia –
assumir competências de planejamento de transportes públicos. Contudo, as ações
que deram origem à Suderf, longe de estruturarem uma nova rótula de governança
para o sistema, capacitada a agir – dotada recursos, pessoal e sistemas de normas
favoráveis – e atuar de modo concertado com os demais entes, possuem, na
realidade, vícios de origem. Segue, portanto, a tradição problemática das ADRs, com
uma dependência de trajetória (SORENSEN, 2015) similar àquela que relegou as
ADRs à condição de suportes para a distribuição de cargos de confiança, objetivando
pactos e hegemonias políticas regionais.
Por exemplo, em meio à criação da Suderf, a abertura de uma PMI
(Procedimento de Manifestação de Interesse) em 2014, para a escolha de um novo
sistema de transporte de massa para a RMF fracassou, exibindo a profunda
fragilidade das instituições públicas no que se refere à capacidade de escolha
tecnológica – e demais fatores de produção do serviço de transporte público – e de
objetivos em termos de desenvolvimento regional. Na ocasião, devido à anomia
institucional, os agentes privados passaram a posicionar-se entre os órgãos do estado
e as principais prefeituras da região, buscando atalhos para a venda de suas

5
Transit Oriented Development (TOD) se refere ao conjunto de ferramentas institucionais e
tecnológicas para o planejamento, que possibilitam um desenvolvimento concomitante dos transportes
públicos de massa e das densidades mistas de uso do solo, gerando tanto uma melhor
microacessibilidade aos transportes, por parte da população, quanto uma maior eficiência econômica
para os transportes, através da manutenção de altos Índices de Renovação de Passageiros (IRP) na
maior parte das linhas (CERVERO; DAI 2014).
diferentes tecnologias de transporte. Esse fato é exemplar no que se refere aos efeitos
da ausência de estudos territoriais prévios que orientem o Estado.
Vale ressaltar que há, na região, diversos exemplos históricos que demonstram
a fragilidade das ações de planejamento e seu resultado negativo na forma de
projetos. Por exemplo, o vigente Sistema Integrado de Transportes de Florianópolis
(SIT), o qual foi implementado em 2004 durante a administração da Prefeita Ângela
Amin (1996-2004), careceu de ampla participação da sociedade e uma articulação
com o governo do estado. Vale ressaltar que o projeto e a sua execução foram, quase
em sua totalidade, elaborados e executados por consultorias privadas de engenharia
civil e de transportes, dentro de uma concepção que privilegiou a integração do
sistema de ônibus stricto sensu. Observa-se, por exemplo, que a acessibilidade a
terminais como o TICAN (Terminal de Integração de Canasvieiras) e o TISAN
(Terminal de Integração de Santo Antônio de Lisboa) é reduzida em função do sitio no
qual estão instalados. Há, portanto, pouca integração do sistema com o território.
A falta de diálogos entre múltiplos níveis institucionais (VEENEMAN; MULEY,
2018) também prejudicou a utilidade de terminais na área continental da região,
utilidade essa que exigiria concertações com outras instituições públicas. Naquela
ocasião, uma integração de trabalho com a então autoridade estadual – o DETER –,
poderia gerar avanços no sentido de uma integração do sistema de ônibus estadual
de característica metropolitana, com o sistema municipal florianopolitano, o que não
ocorreu. Atualmente, o terminal que seria o responsável por essa integração física
encontra-se abandonado.
Recentemente, o governador Carlos Moisés da Silva (PSL), eleito em 2019,
aprovou uma Reforma Administrativa que extingue algumas das instituições aqui
analisadas. O atual governador extinguiu 20 ADRs, mas, por outro lado, extinguiu
também duas secretarias de estado, seis secretarias executivas, duas autarquias,
uma sociedade de economia mista e cinco conselhos, objetivando poupar R$ 500
milhões de reais durante quatro anos6. Entre essas instituições estão o DEINFRA, o
DETER e a Secretaria de Estado do Planejamento. As competências do DEINFRA e
do DETER foram transferidas para a Secretaria de Estado de Infraestrutura e
Mobilidade e as atribuições da Secretaria de Estado do Planejamento, para a
Secretaria de Administração. No entanto, algumas áreas de atuação dessas
autarquias foram dispersadas, como é o caso da cartografia, estatística e
planejamento urbano, absorvidos pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico
Sustentável. Ademais, parte das atribuições do DETER (fiscalização do transporte
intermunicipal de passageiros) foi repassada à Agência Reguladora de Serviços
Públicos de Santa Catarina (ARESC). Finalmente, outras autarquias foram
reconcentradas, sendo vinculadas ao gabinete da chefia do executivo, como é o caso
da Suderf.
O fato é que nem sempre uma racionalização administrativa significa ampliação
da capacidade de planejamento. Pelo contrário, os órgãos de planejamento são física
e funcionalmente separados do executivo justamente para que a atividade de
planejamento não seja preterida por rotinas administrativas. Para todos os efeitos,

6
A Lei 741/2019, que implementa a Reforma Administrativa do atual governo, foi sancionada em 12 de
junho de 2019.
claramente trata-se de uma reconcentração de poder e historicamente, a anomia
institucional dos órgãos de planejamento – que se desenvolve na esteira dessa
reconcentração – não raro dá lugar a ingerências ainda mais nocivas da iniciativa
privada sobre atividades que lhes são alheias.

Escolha tecnológica e ingerência da iniciativa privada sobre o planejamento

Na literatura crítica sobre transportes e mobilidade, cada vez mais a


importância do Estado é reiterada, em face à ingerência da esfera privada em
assuntos de planejamento (BRENNER, 2001; DOCHERTY et al, 2018). Nota-se que
essa ingerência ocorre justamente em contextos de fragilidade do agente público,
donde as instituições de planejamento tornam-se meros recipientes para a distribuição
de cargos comissionados com pouca capacidade técnica (MARCON, 2009). Ao
contrário, um quadro técnico de qualidade, que opere a partir de uma instituição
pública de planejamento, potencializada a partir de processos de devolution
(MACKINNON et al, 2010), pode dissuadir decisões políticas – por exemplo, em
momentos de crise econômica – que ocorram em prejuízo dos serviços públicos.
Podemos citar a eliminação de horários e linhas de transporte, comuns nesse tipo de
contexto. Por outro lado, esses agentes podem persuadir essa mesma estrutura
política, a partir de argumentos com base técnica consistente, sobre a necessidade
de mudanças de rumo nas políticas de mobilidade.
Contudo, o que vem ocorrendo na RMF tem contrariado as boas práticas do
setor. O “vazio” institucional público no planejamento – reconcentrando poder no
executivo e em parte, na prefeitura da capital – tem levado a políticas de mobilidade
apressadas e simplistas do ponto de vista da complexidade do espaço regional.
Segundo o próprio ex-governador do estado, Raimundo Colombo, “o Governo
catarinense deve ser o governo da realização, do ‘fazejamento’ [ignorando, assim, o
planejamento]”. É na esteira desse processo que se sedimenta o discurso de que a
região “comportaria apenas um BRT (Bus Rapid Transit)”, sendo, as demais
tecnologias, “inviáveis sob o ponto de vista técnico-financeiro”. Além disso é
interessante notar que, ao se deixar que agentes do mercado decidam e tomem a
frente na realização de estudos e, inclusive, do processo de planejamento, parte de
suas abordagens são endossadas pela própria esfera pública. Por exemplo, um dos
consultores de uma empresa privada, contratada para a realização dos estudos sobre
a mobilidade urbana regional em 2014, declarou que “a escolha pelo modo/modal de
transporte, quem decidirá é a sociedade”, mas na mesma fala afirmou que, “o BRT foi
a solução encontrada pelos países pobres para dar conta da mobilidade nas cidades,
e nós [no Brasil], somos pobres”.
Assim, se assiste, no meio político e institucional da RMF, à consolidação de
um discurso pró-BRT como única tecnologia possível, enquanto se ignora a
importância de “economias de variedade” (ASCHER, 2010) – que podem incluir o
BRT, mas não se limitar a ele – capazes de atender à complexidade das atuais
demandas por mobilidade. O discurso pró-BRT é, inclusive, institucionalizado, na
medida em que os resultados do estudo encomendado pelo governo do estado,
expõe, artificialmente, características positivas aos sistemas BRT e negativas às
demais tecnologias, desconsiderando o contexto espacial dessas intervenções.
Muitas das características apresentadas pela equipe de consultores privados,
na elaboração do estudo para a RMF são passíveis de questionamento, embora
concordemos que os BRTs – devido à sua imagem associada ao ônibus convencional
– têm mais dificuldade em consolidar uma imagem de eficácia e de modernidade
(HENSHER; GOLOB, 2008). Contudo, outros estudos têm demonstrado que em
subespaços nos quais o VLT é inserido, não ocorrem apenas transferências de
usuários de ônibus ao novo sistema – de linhas de ônibus desativadas para a
passagem do VLT –, mas também a atração de novos usuários, que anteriormente
não utilizavam transporte público (WERNER et al, 2016)7.
Além disso, parte do próprio estudo encomendado pelas autoridades estaduais
ao consórcio de consultores privados, exibe avaliações dos usuários no que se refere
às qualidades e deficiências do sistema de transporte público vigente na RMF (parte
da “Pesquisa de Imagem dos Transportes”), as quais são justamente pontos altos de
qualidade em outras tecnologias de transporte, quando corretamente implementadas
(Gráfico 1).

Gráfico 1: Pesquisa de imagem do transporte público na Região Metropolitana de


Florianópolis.

Fonte: Logit; Strategy, 2014.

Nessa pesquisa de imagem (Gráfico 1), observa-se que o usuário possui


percepções corretas, pois o tempo médio de viagem por transporte público na RMF é,
de fato, o dobro do tempo utilizando transporte privado, o que conduz a uma valoração
negativa desse quesito (LOGIT; STRATEGY et al, 2014). Os congestionamentos e a

7
Isso foi observado na cidade de Salt Lake City, Utah (EUA), segundo estes estudos.
ausência de uma rede de corredores exclusivos tem levado a velocidade comercial
dos ônibus, nos horários de pico, a apenas 8 km/h (COCCO, 2017).
Comparativamente, o tempo médio regional dos deslocamentos por transportes
público são de 57,6 minutos contra 31,2 minutos em automóvel individual (LOGIT;
STRATEGY et al, 2014). Não obstante, há também percepções equivocadas,
potencializadas pelo desconhecimento da população com relação a outras tecnologias
de transporte público e mobilidade. É o caso do quesito “pontualidade”, o qual foi bem
avaliado em sete das dez cidades do estudo. Ora, a população da RMF nunca
vivenciou um sistema de transporte público que operasse de modo segregado do
tráfego misto, daí que sua tolerância em relação aos atrasos recorrentes do sistema
de ônibus é maior8. Caberia, nesse caso, a existência de um corpo de planejadores
que apresentasse à população outras tecnologias.
Finalmente, essa fragilidade institucional se manifesta em uma anomia do
corpo de planejadores (quando ele existe), ante essas circunstancias. Reflete-se
também na incapacidade das instituições em assumirem papéis de integração de
trabalho, funcionando como rótulas de concertação de uma governança multi-nível,
articulando as ações de outras instituições públicas ligadas direta e indiretamente à
questão da mobilidade. Observa-se que mesmo entre instituições estaduais – como é
o caso do DEINFRA e da SUDERF – o histórico é de graves desentendimentos sobre
qual das instituições deveria concentrar competências de planejamento sobre os
transportes públicos de característica metropolitana. Esses atritos ocorrem também
entre essas instituições e as secretarias de transporte municipais, avessas à cessão
de suas competências sobre os transportes públicos (COCCO, 2017). Já entre o IPUF,
a SUDERF e o DEINFRA, o histórico é de uma patente falta de diálogo, no que se
refere à forma de gerir as infraestruturas rodoviárias da Ilha de Santa Catarina, aonde
se localiza Florianópolis, a cidade principal da região. Tentativas de cessão de
atribuições foram efetuadas, mas a prefeitura de Florianópolis, por vezes, se negou a
assumir competências sobre as rodovias da Ilha (as SCs), devido ao temor de não
poder arcar com os custos de manutenção das mesmas.
Como analisamos anteriormente, muitas dessas instituições foram
recentemente extintas e suas competências foram transferidas para a Secretaria de
Estado de Infraestrutura e Mobilidade. Entretanto, ao mesmo tempo, não há
sinalização de que essas mudanças recentes darão competências e condições
concretas de planejamento e ação, a uma instituição-rótula integradora de trabalho.
Ou seja, não há indícios de que o estado dotará alguma das agora “subsecretarias”
com: estrutura própria de gestão de pessoas; autonomia para compras, licitações,
contratos de terceirização e gerencia própria de tecnologia da informação, atribuindo
à mesma competências de autarquia especial9. Estaríamos diante de uma nova
reconcentração de poder, sem empoderamento das atividades de planejamento?

8
Isso faz, inclusive, com que a estrutura política atue especulando com o desconhecimento da
população, ou seja, apresentando o sistema BRT à opinião pública como sendo a tecnologia do estado
da arte em transportes.
9
Vale frisar que o estado de Santa Catarina não possui nenhuma autarquia especial, ou seja, com
autonomia decisória sobre seu próprio orçamento.
Conclusão

A questão da institucionalidade no setor de mobilidade e transportes, na Região


Metropolitana de Florianópolis, nos mostra como a formação sócio-espacial se
manifesta tanto no espaço tangível, como em suas instâncias sociais intangíveis.
Assim, contradições tangíveis que se manifestam no espaço geográfico, perduram
pela falta de uma instituição que atue como rótula de planejamento, financiamento e
de governança multi-nível. Portanto, o cerne da questão não está nas noções de
dependência de trajetória e devolução de poder, mas em como se estruturaram as
forças políticas que incidem sobre esses processos institucionais. No caso da RMF, a
busca por hegemonias políticas por parte da elite regional e estadual catarinense
ensejou, historicamente, falsas devoluções de poder, criando instituições sem
autoridade e autonomia sobre suas próprias atribuições, para levar a cabo tarefas de
planejamento. Esse cenário dificultou, no decorrer da história, a eficácia de vários
projetos em transporte e mobilidade a começar pelo próprio Sistema Integrado de
Transportes (SIT), de Florianópolis, que não se expandiu no sentido de constituir um
sistema metropolitano justamente pela falta de concertação em múltiplos níveis. Além
disso, a fragilidade histórica dessas instituições públicas significou, em muitos casos,
uma a interferência do setor privado em tarefas que seriam exclusividade do Estado,
isto é, que exigem uma visão socialmente abrangente e de longo alcance em termos
espaciais e temporais. Como exemplo, tomamos as narrativas propaladas por uma
parte do próprio pessoal técnico de planejamento, que tem preconizado a opção pelo
BRT como único sistema de transporte viável para a RMF.
Ademais, a recente Reforma Administrativa é temerária haja vista que apesar de
sinalizar para uma racionalização institucional, com a extinção de muitas instituições
e concentração de cargos distintos em secretarias próximas ao poder executivo, não
prevê uma potencialização de capacidades às instituições que permaneceram ativas.
Assim, serão necessárias analises futuras dos resultados dessa reforma, que até o
momento aparenta uma reconcentração de poder sem contrapartida no sentido de
ampliar capacidades de planejamento. O discurso do atual governo estadual tem sido
de que a mera proximidade física de atribuições antes alocadas em distintas
instituições será mais favorável ao planejamento, quando, na verdade, pode inclusive
dispersar o planejamento e substitui-lo, no cotidiano, por preocupações típicas da
burocracia do executivo.

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