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Introdução
A baixa qualidade das condições de mobilidade na Região Metropolitana de
Florianópolis (RMF) pode ser exemplificada desde a baixa frequência e altos tempos
de deslocamento por transporte público, até as condições inadequadas para os
deslocamentos não-motorizados. Na RMF, que possui uma das taxas de motorização
mais altas do país e índices de mobilidade nos quais o uso do automóvel supera
metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (COCCO, 2017), a
ineficácia desses serviços e infraestruturas é patente. A ausência de uma efetiva
integração físico-tarifária metropolitana para os ônibus urbanos e de um conjunto de
tecnologias mistas – que incluem sistemas ferroviários leves, transporte marítimo,
condições para o deslocamento a pé e por bicicletas etc. –, deflagram em um quadro
de grande iniquidade no que se refere à acessibilidade à cidade, estimulando o uso
diário do automóvel.
Não obstante, tais iniquidades são resultado de um conjunto de determinações,
dentre as quais se destacam a complexidade territorial, os baixos níveis históricos de
investimento em mobilidade urbana e as baixas capacidades institucionais associadas
ao planejamento. No presente artigo, trabalharemos mais detidamente sobre a
questão institucional, isto é, das capacidades de planejamento, considerando que
tanto o caráter multifacetado da morfologia urbana, quanto a existência de
ferramentas para operar em meio a investimentos descontínuos, dependem de um
acúmulo de conhecimento sobre o território, bem como de autonomia – chancelada
pela participação popular – para a ação sobre ele. Além disso, um desenvolvimento
institucional de longo prazo – que por seu turno, exige recursos contínuos em pessoal
e tecnologia – propicia a que essa complexidade seja trabalhada de modo integrado,
em modelos do tipo “dados abertos” (open data), favorecendo a comunicação
interinstitucional (VEENEMAN; MULLEY, 2017).
Em espaços nos quais foi construída historicamente uma interação efetiva entre
as diferentes estruturas de planejamento – tanto formais, quanto informais (RYE,
MONIOS et al, 2018). –, típicas de uma distribuição de competências (devolution)
(MACKINNON et al, 2010), enseja-se um ambiente propicio a uma maior qualificação
dos transportes públicos e demais condições de mobilidade urbana, haja vista que as
autarquias metropolitanas e municipais, quando bem providas de técnicos e equipes
multidisciplinares, passam a conhecer em maior detalhe os problemas do território do
que a burocracia do executivo. Ao contrário, em formações sócio-espaciais periféricas
(SANTOS, 1982; RANGEL, 2005) a práxis tem sido a de operar, ao mesmo tempo,
uma concentração de poder em secretarias diretamente controladas pelo poder
executivo e um esvaziamento das autarquias de planejamento, efetuado consoante
políticas de cunho neoliberal, sob a justificativa de “enxugamento” do Estado.
Esvaziamento esse que acaba por ser ocupado pela lógica da própria iniciativa
privada, que passa a intervir diretamente sobre o planejamento. O objetivo desse
artigo é compreender como a fragilidade das instituições públicas de planejamento
contribuem para a lógica de baixa qualidade dos serviços e infraestruturas para a
mobilidade na RMF, agudizando as contradições históricas entre mobilidade,
transporte e território.
1
Autarquias de regime especial, em contraponto às de regime simples, possuem autonomia para
contratação de pessoal, licitação de serviços, entre outras atribuições próprias quando a instituição
possui orçamento próprio.
2
Trata-se da atual e controversa Reforma Administrativa levada a cabo pelo Governador Moisés da
Silva (PSL) e aprovada em junho de 2019, a qual, ao invés de reequipar autarquias e outras instituições
ligadas ao planejamento e à mobilidade urbana, as extingue ou as coloca demasiadamente vinculadas
à chefia do executivo. Muito embora, tenha racionalizado a quantidade de cargos comissionados de
natureza política.
Por isso, conferimos centralidade à categoria e método da formação sócio-espacial. É
justamente no contexto das formações sócio-espaciais periféricas, nas quais não
houve um desenvolvimento pleno de relações capitalistas, que a capacidade de
planejar é menor3.
O caso brasileiro é marcado historicamente pelo controle do Estado por parte de
elites heterogêneas pactuadas – ou seja, pactos de poder entre frações distintas da
classe dominante –, sendo as frações de classe mais retrógradas, territorialmente
instaladas em rincões regionais sob seu controle. Segundo Ignácio Rangel (2005),
cuja narrativa é base para diversos estudos sobre a formação social brasileira, essa
heterogeneidade teria fim com a hegemonia da burguesia industrial nacional, a qual
conduziria a uma maior homogeneização da sociedade e um maior nível de coesão
social, quer seja entre as elites ou entre as classes populares (RANGEL, 2005). Mas
esse processo não se completou. Ora, o interesse no planejamento da mobilidade
urbana4 e em sua institucionalidade – considerando que as instituições são parte do
próprio complexo de transportes e mobilidade – só se dá se a reprodução qualitativa
das forças produtivas sociais forem, de fato, um processo fundamental para a
produção ampliada de valor de uma determinada sociedade (JARAMILLO, 1985).
Finalmente, devido à típica alternância histórica entre economia exportadora e
economia internalizada (RANGEL, 2005) – isto é, sem assumir uma perspectiva de
longo prazo para o desenvolvimento –, sociedades como a brasileira são tipicamente
“projetistas”, ou seja, não estabelecem no longo prazo a necessidade de
desenvolvimento qualitativo de suas forças produtivas sociais, para a qual amplas
condições de qualificação profissional, cultura, lazer, moradia, proximidade e
mobilidade (SILVEIRA, COCCO, 2013) são de imperiosa necessidade. Ademais, no
caso brasileiro, não havendo uma contra-hegemonia popular desde a base da
sociedade civil, e nem mesmo uma coesão e hegemonia da burguesia industrial, os
chefes de poder executivo e as redes de pessoal imediatamente sob seu controle,
tendem a concentrar poder, fato que remonta à ação típica das antigas oligarquias.
Nesse caso, há pouca devolução de poder (MACKINNON et al, 2010). Como veremos
a seguir, essa fragilidade do corpo de planejadores – que é a própria fragilidade das
instituições de planejamento – conduz a uma permeabilidade maior com relação aos
interesses da iniciativa privada sobre a mobilidade urbana enquanto business, assim
como aumenta a ingerência de interesses políticos de curto prazo e que sabotam,
3
Nesses países, há um “aparato estatal [vide suas instituições de planejamento] menos avançado no
sentido da unificação dos interesses gerais das classes burguesas” (JARAMILLO, 1983, p.138), isto é,
que seja capaz de realizar condições gerais de produção e reprodução a uma classe burguesa industrial
em geral. Ainda segundo Jaramillo (1983), nessas formações sócio-espaciais, o Estado e suas
instituições tendem a instrumentalizar interesses imediatos de frações estreitas das classes dominantes
– em geral oligarquias regionais –, obtendo, dessa forma, uma margem limitada de ações de longo
alcance.
4
O planejamento aqui é visto não como algo estático e delimitado no tempo e no espaço, para a
consecução de certas “obras”, mas como atividade dinâmica e contínua que inclui a aquisição constante
de dados do território, que subsidiem a maior eficácia possível dos projetos, bem como seu
aperfeiçoamento contínuo em função das demandas do tecido social em sua diversidade (ASCHER,
2010; RANGEL, 2005).
como se observa em vários exemplos, a qualidade e a eficácia das tecnologias de
transporte.
5
Transit Oriented Development (TOD) se refere ao conjunto de ferramentas institucionais e
tecnológicas para o planejamento, que possibilitam um desenvolvimento concomitante dos transportes
públicos de massa e das densidades mistas de uso do solo, gerando tanto uma melhor
microacessibilidade aos transportes, por parte da população, quanto uma maior eficiência econômica
para os transportes, através da manutenção de altos Índices de Renovação de Passageiros (IRP) na
maior parte das linhas (CERVERO; DAI 2014).
diferentes tecnologias de transporte. Esse fato é exemplar no que se refere aos efeitos
da ausência de estudos territoriais prévios que orientem o Estado.
Vale ressaltar que há, na região, diversos exemplos históricos que demonstram
a fragilidade das ações de planejamento e seu resultado negativo na forma de
projetos. Por exemplo, o vigente Sistema Integrado de Transportes de Florianópolis
(SIT), o qual foi implementado em 2004 durante a administração da Prefeita Ângela
Amin (1996-2004), careceu de ampla participação da sociedade e uma articulação
com o governo do estado. Vale ressaltar que o projeto e a sua execução foram, quase
em sua totalidade, elaborados e executados por consultorias privadas de engenharia
civil e de transportes, dentro de uma concepção que privilegiou a integração do
sistema de ônibus stricto sensu. Observa-se, por exemplo, que a acessibilidade a
terminais como o TICAN (Terminal de Integração de Canasvieiras) e o TISAN
(Terminal de Integração de Santo Antônio de Lisboa) é reduzida em função do sitio no
qual estão instalados. Há, portanto, pouca integração do sistema com o território.
A falta de diálogos entre múltiplos níveis institucionais (VEENEMAN; MULEY,
2018) também prejudicou a utilidade de terminais na área continental da região,
utilidade essa que exigiria concertações com outras instituições públicas. Naquela
ocasião, uma integração de trabalho com a então autoridade estadual – o DETER –,
poderia gerar avanços no sentido de uma integração do sistema de ônibus estadual
de característica metropolitana, com o sistema municipal florianopolitano, o que não
ocorreu. Atualmente, o terminal que seria o responsável por essa integração física
encontra-se abandonado.
Recentemente, o governador Carlos Moisés da Silva (PSL), eleito em 2019,
aprovou uma Reforma Administrativa que extingue algumas das instituições aqui
analisadas. O atual governador extinguiu 20 ADRs, mas, por outro lado, extinguiu
também duas secretarias de estado, seis secretarias executivas, duas autarquias,
uma sociedade de economia mista e cinco conselhos, objetivando poupar R$ 500
milhões de reais durante quatro anos6. Entre essas instituições estão o DEINFRA, o
DETER e a Secretaria de Estado do Planejamento. As competências do DEINFRA e
do DETER foram transferidas para a Secretaria de Estado de Infraestrutura e
Mobilidade e as atribuições da Secretaria de Estado do Planejamento, para a
Secretaria de Administração. No entanto, algumas áreas de atuação dessas
autarquias foram dispersadas, como é o caso da cartografia, estatística e
planejamento urbano, absorvidos pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico
Sustentável. Ademais, parte das atribuições do DETER (fiscalização do transporte
intermunicipal de passageiros) foi repassada à Agência Reguladora de Serviços
Públicos de Santa Catarina (ARESC). Finalmente, outras autarquias foram
reconcentradas, sendo vinculadas ao gabinete da chefia do executivo, como é o caso
da Suderf.
O fato é que nem sempre uma racionalização administrativa significa ampliação
da capacidade de planejamento. Pelo contrário, os órgãos de planejamento são física
e funcionalmente separados do executivo justamente para que a atividade de
planejamento não seja preterida por rotinas administrativas. Para todos os efeitos,
6
A Lei 741/2019, que implementa a Reforma Administrativa do atual governo, foi sancionada em 12 de
junho de 2019.
claramente trata-se de uma reconcentração de poder e historicamente, a anomia
institucional dos órgãos de planejamento – que se desenvolve na esteira dessa
reconcentração – não raro dá lugar a ingerências ainda mais nocivas da iniciativa
privada sobre atividades que lhes são alheias.
7
Isso foi observado na cidade de Salt Lake City, Utah (EUA), segundo estes estudos.
ausência de uma rede de corredores exclusivos tem levado a velocidade comercial
dos ônibus, nos horários de pico, a apenas 8 km/h (COCCO, 2017).
Comparativamente, o tempo médio regional dos deslocamentos por transportes
público são de 57,6 minutos contra 31,2 minutos em automóvel individual (LOGIT;
STRATEGY et al, 2014). Não obstante, há também percepções equivocadas,
potencializadas pelo desconhecimento da população com relação a outras tecnologias
de transporte público e mobilidade. É o caso do quesito “pontualidade”, o qual foi bem
avaliado em sete das dez cidades do estudo. Ora, a população da RMF nunca
vivenciou um sistema de transporte público que operasse de modo segregado do
tráfego misto, daí que sua tolerância em relação aos atrasos recorrentes do sistema
de ônibus é maior8. Caberia, nesse caso, a existência de um corpo de planejadores
que apresentasse à população outras tecnologias.
Finalmente, essa fragilidade institucional se manifesta em uma anomia do
corpo de planejadores (quando ele existe), ante essas circunstancias. Reflete-se
também na incapacidade das instituições em assumirem papéis de integração de
trabalho, funcionando como rótulas de concertação de uma governança multi-nível,
articulando as ações de outras instituições públicas ligadas direta e indiretamente à
questão da mobilidade. Observa-se que mesmo entre instituições estaduais – como é
o caso do DEINFRA e da SUDERF – o histórico é de graves desentendimentos sobre
qual das instituições deveria concentrar competências de planejamento sobre os
transportes públicos de característica metropolitana. Esses atritos ocorrem também
entre essas instituições e as secretarias de transporte municipais, avessas à cessão
de suas competências sobre os transportes públicos (COCCO, 2017). Já entre o IPUF,
a SUDERF e o DEINFRA, o histórico é de uma patente falta de diálogo, no que se
refere à forma de gerir as infraestruturas rodoviárias da Ilha de Santa Catarina, aonde
se localiza Florianópolis, a cidade principal da região. Tentativas de cessão de
atribuições foram efetuadas, mas a prefeitura de Florianópolis, por vezes, se negou a
assumir competências sobre as rodovias da Ilha (as SCs), devido ao temor de não
poder arcar com os custos de manutenção das mesmas.
Como analisamos anteriormente, muitas dessas instituições foram
recentemente extintas e suas competências foram transferidas para a Secretaria de
Estado de Infraestrutura e Mobilidade. Entretanto, ao mesmo tempo, não há
sinalização de que essas mudanças recentes darão competências e condições
concretas de planejamento e ação, a uma instituição-rótula integradora de trabalho.
Ou seja, não há indícios de que o estado dotará alguma das agora “subsecretarias”
com: estrutura própria de gestão de pessoas; autonomia para compras, licitações,
contratos de terceirização e gerencia própria de tecnologia da informação, atribuindo
à mesma competências de autarquia especial9. Estaríamos diante de uma nova
reconcentração de poder, sem empoderamento das atividades de planejamento?
8
Isso faz, inclusive, com que a estrutura política atue especulando com o desconhecimento da
população, ou seja, apresentando o sistema BRT à opinião pública como sendo a tecnologia do estado
da arte em transportes.
9
Vale frisar que o estado de Santa Catarina não possui nenhuma autarquia especial, ou seja, com
autonomia decisória sobre seu próprio orçamento.
Conclusão
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