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FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

Discurso histórico e narrativa literária / Jacques


D63I Leenhardt, Sandra Jatahy Pesavento (orgs.). - -
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.
(Coleção Momento)

1. Literatura - História e crítica. 2. Estilo literário


3. Historiografia. 1. Leenhardt, Jacques. II. Pesavento,
Sandra Jatahy. 111. Título.
20. CDD- 809
- 801.8
ISBN 85-268-0446-4 - 907.2

índices para catálogo sistemático;


1. Literatura - Hi.stória e crítica 809
2. Estilo literário 801.9
3. Historiografia 907.2

Coleção Momento
Copyright © by Jacques Leenhardt e Sandra Jatahy Pesavento

Coordenação Editorial
Curiós Roberto Lumurí

A.ssi.stente Editorial
Elisuheth Regina Murcbetti

Produção Editorial
Sandra Vieira Alves

Produção Gráfica
VIad Camargo

Preparação de Originais
Ivana de Albuquerque Mazetti

Revisão
Vilma Aparecida Albino

Editoração Eletrônica
Silvia Helena P. C. Gonçalves
Ednilson Tristão

Capa
VIad Camargo

1998
Editora da Unicamp
Caixa Postal 6074
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil
vvww.editora.unicamp.br
Fone: (019) 788.1097 Fone/Fax: (019) 788.1094
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O MARAVILHOSO COMO DISCURSO


HISTÓRICO ALTERNATIVO

Zilah Bernd
UFRGS

O segredo du verdade é o seguinte,


não existem fatos, só existem histórias.

João Ubaldo Ribeiro


Viva o povo brasileiro

Tudo quanto não for vida é literatura, a Históiria


também, a História .sobretudo, .sem querer ofender.
José Saramago
História do cerco de Lisboa

A primeira citação nos lembra que nunca temos acesso direto


aos fatos, mas que sempre entramos em contato com estes fatos
através de um texto. Portanto, se a literatura é representação da
realidade, a história de certa forma também o é, pois é através de
um texto que temos acesso às "verdades históricas".
Creio que isto leva Saramago' a afirmar que tudo que não é vida
é literatura. Para Saramago até a pintura é literatura, pois pintar não é
outra coisa senão escrever, ou fazer literatura, com pincéis.
Uma vez que tanto a literatura quanto a história lidam com a
mesma matéria-prima que é a palavra, as relações certamente
existem entre as duas disciplinas. Vejamos se podemos avançar de
maneira um pouco mais concreta no sentido de explorar e de melhor

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compreender estas relações.Comecemos por retomar alguns pontos
desenvolvidos por Walter Mignolo, em recente publicação da Edusp
(1993). Em artigo que analisa a relação entre "Literatura e história
na América Latina",^ o crítico remonta ao sentido etimològico das duas
palavras:
1. Os gregos desconheciam o conceito de "literatura", utilizando
o de poesis (fazer). Literatura só entra mais tarde remetendo a littera,
isto é letra, portanto aos letrados, aos intelectuais que detinham
grande saber.
2. Istoreo, que deu origem ao vocábulo "história", significava
fundamentalmente "informe de testemunhas oculares", passando com
o tempo a ser compreendido com o sentido de "testemunho dos
tempos".
O conceito de poesia foi aos poucos sendo substituído pelo de
literatura, associado ã noção de estética que em grego queria dizer
sensação. Com o tempo, o sentido de estética se restringiu ao sen
tido de sensação de beleza. E assim que literatura passa a integrar o
conjunto das artes, entendido como o "conjunto de produtos semió-
ticos orientados para a consecução de efeitos estéticos". Enquanto a
literatura entra, pois, para o sistema das "artes", a história entra para
o sistema das "ciências", concebidas como um "saber adquirido por
meio de documentação".
Grosso modo, qualquer leitor sensível é capaz de distinguir um
texto historiográfico de um texto literário porque cada um deles é
regido por uma convenção diferente, ou seja, a "convenção de ve
racidade" e a "convenção de ficcionalidade". Quando há "conven
ção de veracidade", o enunciador se compromete com o "dito" pelo
discurso e espera que seu discurso seja tomado como verdadeiro.
Neste caso o enunciador fica exposto ao erro. Quando há "conven
ção de ficcionalidade", o enunciante não se compromete com a "ver
dade" do "dito" pelo discurso, nem com o fato de seu discurso ser
tomado como "verdadeiro", não ficando, pois, exposto ao erro.
Assim, embora a convenção de ficcionalidade não seja essenci
al à literatura, veja-se os gêneros autobiografia e ensaio, por exem
plo, que prescindem da convenção da ficcionalidade, o discurso
historiográfico parece não existir sem a convenção de veracidade,
onde há relação direta com o referente (denotação).
Acontece que na prática, muitas vezes, há uma permeabilidade
de um discurso para o outro. Vejamos o exemplo que dá Alfredo Bosi:"^
"O inverno do ano passado foi muito rigoroso", tanto um romancista

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quanto um historiador podem começar seus livros com a mesma frase.
Qual seria a diferença? A estrutura gramatical e o vocabulário são os
mesmos, porém quando o romancista diz que "o inverno do ano pas
sado foi muito rigoroso", ele está dentro de uma "convenção de
ficção" pela qual se o inverno do ano passado não foi de fato rigoro
so, isto não tem a menor importância. A frase do romancista, segun
do Bosi, não precisa passar pelo teste da realidade. Já para o historia
dor, é preciso que haja a possibilidade do teste. Enquanto o historiador
tem que se limitar a relatar o que aconteceu, o romancista pode relatar
o que poderia ter acontecido, ou o que aconteceu dentro de sua ima
ginação. Assim "a narração tem um campo de possibilidades maior
do que a história".
O que ocorre é que às vezes o discurso literário se constrói tão
próximo do referente histórico que é difícil perceber as nuanças:
tomemos o exemplo de Videiras de cristal, de Luiz A. de Assis Brasil,'
que narra o episódio dos muckers em São Leopoldo (Rio Grande do
Sul), ou então Agosto, de Ruben Fonseca,"^ que narra os aconteci
mentos históricos de agosto de 1954 que culminaram com o suicídio
do presidente Getúlio Vargas. Os fatos narrados passam pelo teste
da verificação da autenticidade, porém o que os caracteriza corno
romance e não como "história" é a presença de um narrador que conta
os fatos a partir de seu ponto de vista e quase sempre - aliás é o
que ocorre nos dois romances citados - tem uma existência ficcional,
isto é, não comprovada, como os demais personagens que emigram
diretamente da história real. Assim este narrador está despido da
"autoridade" que em geral conferimos ao historiador.
A convenção de ficcionalidade nos permite, pois, distinguir
narrador e autor. O narrador é uma instância independente do autor,
embora em muitos textos haja elementos suficientes para que se
estabeleçam correlações entre as características do narrador e a bio
grafia do autor. Tomemos novamente como exemplo um romance
do autor sul-rio-grandense LuizAntonio de Assis Brasil, Perversas famí
lias/' Os fatos narrados nos permitem inferir que se trata de um relato
autobiográfico em que as diversas gerações da família Assis Brasil,
intimamente associada ã história do Rio Grande do Sul, são evocadas.
Nada, porém, nos autoriza a fazer esta afirmação em caráter categó
rico, pois o autor arma todo um brinquedo de esconder com o narrador
e, mesmo que saibamos, por exemplo, que o "castelo" descrito de
maneira tão minuciosa em inúmeros capítulos é o Castelo de Pedras
Altas, o narrador impõe a convenção da ficcionalidade e, embora

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elementos do discurso histórico estejam presentes e as fronteiras
entre literatura e história fiquem difusas, sabemos tratar-se de uma
"imitação" do discurso histórico.

Literatura e história nas Américas

Se a correlação entre literatura e história é importante no nível


da literatura em geral, ela se reveste de uma importância ainda maior
no que tange o Brasil e os demais países da América que tiveram um
passado colonial e onde a história foi escrita pelos conquistadores em
um primeiro momento, e posteriormente pelos colonizadores.
Contudo versões não-oficiais dos acontecimentos históricos circularam
paralelamente na fala não-autorizada das camadas populares que, atra
vés de suas lendas, contos, mitos, canções e toda forma de criações
orais, contaram, de maneira simbólica e a partir de um outro ponto
de vista, estes acontecimentos. A oralidade cria, assim, um espaço de
conservação dos resíduos históricos e uma vertente dialógica na qual
se inspiram os escritores latino-americanos que navegam nas águas
do maravilhoso. Não temos, pois, uma história, mas várias histórias
e, analisada desta perspectiva, a literatura adquire uma importância
maior, na medida em que resgata e traz à tona a fala esquecida dos
colonizados. A literatura nas sociedades pós-coloniais terá esta ca
racterística de preencher os vazios da história oficial, trazendo para
dentro do texto as versões populares dos diferentes fatos históricos,
revestidas pelo simbolismo do imaginário popular e prenhes de sig
nificações outras.
Assim, um autor como João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo
brasileiro,'' apresenta a visão maravilhosa de acontecimentos histó
ricos contada a partir da perspectiva das classes desfavorecidas (ín
dios e negros), dos quais só conhecíamos a versão narrada pelas elites
dominantes (brancos escravagistas). Como assinalamos em epígrafe,
a história retém os fatos que correspondem, de algum modo, às exi
gências do momento e aos preconceitos do vencedor. Libertando o
saber intuitivo, manifesto nos mitos, nas tradições orais e nos ritos
religiosos de uma comunidade, o escritor resgata fragmentos da his
tória, secretada no inconsciente da comunidade, impossíveis de se
rem acessados de outro modo.®
João Ubaldo Ribeiro, nas inúmeras descrições dos rituais afros
da Bahia que oferece ao leitor, longe de pretender evocar o exo-

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tismo neles contido, descortina pouco a pouco o mundo dos negros,
principalmente o mundo da noite (tempo da prática dos rituais), des
conhecido dos brancos que conhecem apenas o mundo do dia, tempo
do trabalho e da humilhação dos castigos. Ao trazer à tona sínteses
da sabedoria popular e os relatos fragmentados da oralidade, o autor
está valorizando e legitimando a versão popular como aquela que
traz as marcas da verdadeira história do negro no Brasil, opondo-a a
discursos de outras personagens que representam as camadas letra
das da população. Adotando a perspectiva do maravilhoso, o autor
reverte o esquema tradicional que só dava crédito aos saberes veicu
lados através da palavra escrita, revalorizando os relatos orais que
trazem em seu bojo a sabedoria, o conhecimento da vida e a outra
face da história dos oprimidos. Esta focalização o coloca em interlo-
cuçào privilegiada com os autores latino-americanos que souberam
compreender que, por trás da magia do vodu e do maravilhoso dos
contos e mitos populares, se inscreve uma outra visão da história
dos vencidos. Is.so o insere na tradição latino-americana do real mara
vilhoso onde, como assinala Irlemar Chiampi,'^ o real e o maravilhoso
combinam-se harmonicamente sem antagonizar as duas lógicas.
Como se pode constatar, esta recomposição da memória histó
rica, através dos textos literários - embora não se queira confundir
com "os acontecimentos verdadeiros" - está intimamente ligada a
um trabalho de recomposição identitária, pois que a afirmação
identitária passa necessariamente pelo resgate da memória históri
ca, a qual funcionará como substrato, como fundamento a partir do
qual poderá construir-se a identidade de uma comunidade.
Ao assumir a "honrosa condição de cronista maior", segundo a
expres.são de Alejo Carpentier, o escritor desvela formas privilegia
das de percepção dos acontecimentos. Na América Latina é freqüente
essa tendência de o escritor assumir a figura do cronista, passando o
autor a acolher o processo histórico não apenas como fonte infor
mativa mas como possibilidade de reconstruir o imaginário. Assim
os textos passam a ser feitos de entrecruzamentos de sentidos que
culminam com a desestabilização do discurso da história.
Em recente tese de doutorado sobre os autores antilhanos, Maria
Nazareth Fonseca'" avalia a importância dos autores do Caribe, con
cluindo que estes autores com o intuito de saírem da situação peri
férica, como são considerados pelos centros hegemônicos, orientam
sua produção literária no sentido da reconstrução da memória cultural,
rememorando percursos que se teceram no avesso da história. Assim,

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afirma a autora "por um contramovimento desestabilizador, possibi
litam o resgate de uma história que não pôde ser escrita, que ficou
silenciada por controles acionados pelo contexto cultural e social".
Se nos colocássemos a pergunta; o que pode a literatura, que
poder tem o texto literário, às vésperas do terceiro milênio, diante
do extraordinário fascínio dos multimeios eletrônicos? A reposta
poderia ser, a literatura pode pouco, ou quase nada, mas ela tem
um poder que nenhum outro texto tem que é o de conter outros
textos, que é o de ser espaço de transformação dos discursos em
circulação na sociedade em texto, de ser, enfim, também aquilo que
ela esconde. Em tempos de regimes de exceção, é a literatura, atra
vés de sua linguagem simbólica e imagética, que diz o que não pode
ser dito, escapando à severidade da censura. O escritor latino ame
ricano utiliza então de forma astuciosa a convenção de ficcionalidade
na tentativa de preservar dizeres desacreditados por serem veicula
dos oralmente, salvando-os da ameaça de extinção representada pelo
desaparecimento dos últimos "cantadores" (conteurs/griots), fiéis
depositários do saber popular.
A não-aceitação da linearidade histórica pelos escritores latino-
americanos e a proposta do realismo maravilhoso como discurso histó
rico alternativo, voltado para o questionamento de uma historiografia
tradicional que não contemplou a participação popular em seus rela
tos, constitui-.se em um fator de transtextualidade que aponta para um
desejo de reconstrução de uma identidade americana, de afirmação de
uma americanidade que começa a definir seus contornos. A conven
ção de ficcionalidade, libertando o escritor da submissão ã narrativa
linear imposta a uma certa historiografia de base tradicional e finalista,
permite-lhe - através do jogo com modalidades narrativas múltiplas
e da possibilidade quase ilimitada de confrontar diferentes vozes —
rasurar o discurso histórico, corroer os rituais discursivos esclerosados
e desconstruir "verdades históricas" dadas como incontestáveis.
Situando-se na fronteira entre tradição popular e letrada, abrigan
do formas impuras ou híbridas, absorvendo e mesclando a pluralidade
dos discursos em circulação na sociedade, a literatura do maravilhoso
americano revisita a história das Américas, desvendando seus pontos
obscuros. Esta missão de desvelamento torna-se tão vital que Edouard
Glissant chega a afirmar em Le discours antillais^^ que, no contexto
do Caribe, é à literatura (ao escritor) e não mais à história (ao histo
riador) que cabe a edificação da consciência histórica do povo.

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NOTAS

1 José Saramago. Hislóriu do cerco de LL-:hou. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.
2 Walter Mignolo, "Lógica das diferenças e política das semelhanças: da lite
ratura que parece história ou antropologia e vice-versa", in: Litenituru e
históriu nu Américu Lutinu, São Paulo, Edusp. 1993. pp. 115-35.
3 Alfredo Bosi, op. c/f., nota 2, pp. 135-41.
4 Luiz Antonio Assis Brasil, Videirus de cristul. Porto Alegre, Mercado Aber
to, 1990.
5 Uuben Fonseca, A^o.sfo, Rio de Janeiro, 1993.
6 Luiz Antonio Assis Brasil, Perversus fumílius. Porto Alegre, Mercado Aber
to, 1992.
7 João Ubaldo Ribeiro, Vivu o povo hrusileiro, Rio de Janeiro, Nova Fron
teira, 1984.
8 Cf. Zilah Bernd, Literuturu e identidude nucionul. Porto Alegre, Editora da
UFRGS, 1992.
9 Irlemar Chiampi, O reul muruvilhoso, São Paulo, Perspectiva, 1980.
10 Maria Nazareth S. Fonseca, Reinos negros em terrus de muruvilhus, Belo
Horizonte, tese de doutorado apresentada na UFMG, 1993.
11 Edouard Glis.sant, Le discours untiliuis, Paris, Seuil, 1980.

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