Você está na página 1de 188

O BRILHO QUE A

RAZÃO NÃO DEVASSA


Ensaios sobre a poética de Adélia Prado
CLEIDE OLIVEIRA

O BRILHO QUE A
RAZÃO NÃO DEVASSA
Ensaios sobre a poética de Adélia Prado

G RU PO M U LT I F OC O
Rio de Janeiro, 2020
Copyright © 2020 Cleide Oliveira

direção editorial Grupo Multifoco

edição Grupo Multifoco

revisão Cleide Oliveira

projeto gráfico e capa Caroline da Silva

impressão Gráfica Multifoco

direitos re serva d os a

GRUPO MULTIFOCO
Av. Mem de Sá, 126 - Centro
20230-152 / Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2222-3034
contato@editoramultifoco.com.br
www.editoramultifoco.com.br

to d os os direitos re serva d os .

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes sem autorização por escrito dos editores e autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

O48b Oliveira, Cleide.


O brilho que a razão não devassa: ensaios sobre a poética de Adélia
Prado/ Cleide Oliveira. – Rio de Janeiro : Multifoco, 2020.

185 p. ; 21 cm.

ISBN: 978-65-5611-070-7

1. Literatura brasileira 2. Poesia


I. Título

CDD: B869.91
Entre as palavras lindíssimas uma é Verbo, singra o
tempo como uma estrela cadente e volta ao escuro.
São assim as poéticas, as místicas, têm as hipérboles
e os êxtases, o brilho que a razão não devassa,
gozo prometido aos simples de coração.
Antônia, O homem da mão seca.
Nota sobre as citações

No corpo do texto os livros de poesia de Adélia são citados a


partir da reunião de seus poemas em 1991, exceto quando se tra-
tar dos livros A duração do dia (2010) e Miserere (2013), que não
constam em sua obra reunida. Já os livros de prosa são citados a
partir da coletêna de 2001 publicada pela Editora Siciliano, ex-
ceto quando se tratar dos livros Filandras (2002) e Quero minha
mãe (2005), que não constam nessa edição.
Nota explicativa

Os textos que compõem esse livro foram escritos no decorrer


de pouco mais de 10 anos, período em que me dediquei ao es-
tudo da poesia de Adélia Prado. Eles testemunham um percurso
teórico e isso fica claro na recorrência (e às vezes redundância)
de determinadas adesões teórico-metodológicas que frequentam
os ensaios. Apesar de serem ensaios independentes, podem ser
lidos como capítulos de um único corpo textual que percorre a
escrita adeliana a partir de uma perspectiva que põe em relevo
certos veios temáticos: o erotismo, a mística, as reflexões sobre a
temporalidade, a memória, a epifania do cotidiano.
Tendo sido anteriormente publicados em revistas acadêmicas
e em anais de eventos, se encontravam dispersos na imaterialida-
de ubígua da rede, e julgou-se que poderia haver interesse em sua
reunião física. Apesar de não haver mudanças significativas nos
ensaios, eles foram revistos e corrigidos em conformidade com as
exigências da nova mídia de publicação.
Os ensaios foram originalmente publicados: 1. Linguagem,
poesia e sagrado – publicado como Algumas reflexões sobre lingua-
gem, poesia e sagrado a partir da poesia de Adélia Prado em Reli-
gião em diálogo: considerações interdisciplinares sobre religião,
cultura e sociedade, Rio de Janeiro: Horizontal Editora, 2008,
p. 113-129; 2. Poesia e epifania – Revista da ANPOLL, v.30,
p.83-102, 2011; 3. A tríade adeliana, publicado como Erotismo,
mística e morte, Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ci-
ências da Religião, v.10, p.105-120, 2012; 4. O poeta ficou can-
sado – Revista Ipotesi, v.16, p.43-64, 2012; 5. Em roda de mim,
publicado como Em Roda de Mim: Ficções do Eu e Memorialis-
mo Poético em Adélia Prado, Revista todas as letras, v.16, p.83 -
94, 2014; 6. Uma ascese aos avessos, Revista Terceira Margem,
v.19, p.50-81, 2015; 7. O Discurso da alegria – publicado como
Literatura e (des)esperança, ou o discurso da alegria na poética de
Adélia Prado, Revista Margens, v.2, outubro 2006.
Sumário

1. FULGOR DIVINO NA OPACIDADE DA CARNE ........................ 11


Maria Clara Lucchetti Bingemer

2. LINGUAGEM, POESIA E SAGRADO ..........................................16


3. POESIA E EPIFANIA..................................................................... 33
4. A TRÍADE ADELIANA .................................................................. 55
5. O POETA FICOU CANSADO ...................................................... 72
6. EM RODA DE MIM .................................................................... 102
7. UMA ASCESE AOS AVESSOS .................................................. 119
8. O DISCURSO DA ALEGRIA ...................................................... 144

REFERÊNCIAS ..................................................................................161
NOTAS DE FIM ............................................................................... 168
APRESENTAÇÃO

Fulgor divino na opacidade da carne:


A leitura teopoética de Cleide Oliveira sobre a obra
de Adélia Prado

Desde que foi descoberta por Carlos Drummond de Andrade nos


idos dos anos 70, a mineira de Divinópolis Adélia Prado ocupa
lugar de destaque na poesia brasileira. É reconhecida nacional e
internacionalmente pelo sopro inspirado que anima seus poemas
e que Drummond comparou a algo vindo diretamente da Trans-
cendência para fecundar a imanência, ao escrever em uma de suas
crônicas que São Francisco em pessoa estava ditando poesias para
uma dona de casa de uma pequena cidade mineira.
Aí, nesta benção inicial do poeta maior, já estava declarada
a marca da poesia de Adélia: sua explícita conexão com o divino
revelado na criação e na humanidade, em “brilho que a razão não
devassa”. Portanto, não há título mais adequado e aderente ao
que é a poética adeliana do que este que Cleide Oliveira escolheu
para título de seu belo livro onde, em uma rica coletânea, lê e
analisa os poemas da mineira que um dia se encontrou no dilema
de ou virar doida ou santa e aceitou a vocação de ser poeta.
Sabemos que não por ouvir falar, mas por conhecimento ex-
periencial e real da intimidade profunda que tem a autora com os

11
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

textos adelianos. Sobre eles trabalha desde os tempos da univer-


sidade, em seus estudos de pós-graduação e posteriormente em
seu fecundo e competente trabalho acadêmico. É de fazer notar
igualmente o conhecimento que Cleide demonstra sobre a expe-
riência religiosa, ressaltando o melhor dela na poesia de Adélia.
Os textos aqui reunidos são uma feliz escolha de poemas
e textos em prosa poética da mineira de Divinópolis. Neles a
presença do sagrado e do divino são uma constante e inspira-
dora fonte de onde jorra a poesia salvífica de Adélia Prado. Pois
não foi a poeta mesmo que disse ser a poesia modo de salvação?
Cleide Oliveira passeia por esses poemas e textos de prosa poéti-
ca, deles extraindo e analisando detida e profundamente alguns
elementos que permitem penetrar mais no coração da poesia
da autora.
No primeiro deles, Linguagem, poesia e sagrado, a autora per-
corre a conexão bem típica da poeta entre linguagem poética e
realidade. Em erudita análise, a autora faz dialogar suas hipóteses
sobre a linguagem poética adeliana com pensadores de outras
áreas do saber e da magnitude de um Mircea Eliade ou de um
Heidegger. E assim vai apalpando o amago do texto poético de
Adélia que se interessa não tanto por vocábulos, mas pela fonte
de onde jorram as palavras, que é o Verbo de Deus em pessoa.
Assim o nomeará Adélia, embora Cleide enriqueça seu ensaio
relembrando que em todas as religiões e cosmogonias as palavras
instauram mundos e têm sua fonte na morada dos deuses. O lei-
tor se maravilhará com a análise sobre a linguagem poética dessa
para quem “as palavras doem feito um prazer”.
No ensaio Poesia e epifania a autora vai lidar com um conceito
da maior importância na história e na ciência da religião, que é
o de epifania. A filosofia o tem pensado, mas é do sagrado e do
divino que as epifanias se alimentam. E assim o aplica à poesia
de Adélia, que está constantemente encontrando brilhos e reve-

12
cleide oliveira

lações nos cotidianos fatos que formam a tessitura de sua vida e


da vida em geral. De novo a epifanica manifestação do sagrado
no cotidiano, que inclui uma pia entupida e os detritos que ela
“revela” vai se expressar nas palavras “que doem feito um prazer”.
Adélia então inventa língua estrangeira, palavras que vão no en-
calço das origens e constroem pontes entre o humano e o Aber-
to, inarticulado, que abre para o divino. E Cleide acompanha esse
processo epifanico em seu ensaio.
A Tríade adeliana é talvez o principal ensaio de toda a coletâ-
nea. É ali onde a autora vai detectar o coração da obra de Adélia,
formada pelos três universais: Deus, sexo e morte, aquilo em
que ela pensa todo dia. Enlaçando inseparavelmente o erótico e
a alma, que sempre foi considerada erroneamente como o campo
do etéreo onde o que é sólido e carnal se desmancha, Adélia for-
ma a tríade que vai percorrer toda a sua poesia, no itinerário que
terá vários momentos e diferentes sínteses entre os três elementos
dessa tríade. É essa tríade que fará a poeta contemplar “ o brilho
que a razão não devassa” e que Cleide escolherá inspiradamente
como título do livro que ora prefaciamos.
No capítulo intitulado O poeta ficou cansado encontramos
uma exploração que a autora faz da luta que a poeta tem com a
poesia que sabe ser sua vocação e a tentação de não mais respon-
der a ela. Essa luta é travada com Deus, já que é Ele mesmo a
fonte de inspiração de sua poesia e é a Ele que ela se queixa, qual
travestido Jó, dizendo que está cansada, que já não quer mais ser
seu arauto. Porém, em seguido movimento, confessa ser a poesia
meio de salvação, sendo, portanto, o distanciamento dela o rumo
certo da perdição. Comenta também a autora sobre o que é a
beleza com quem Adélia está sempre às voltas. Não se trata da
imposta pelos limites da estética de ontem ou hoje, mas os que
punge e grita de vida em todas as suas expressões, mesmo a dor, o
medo. Em meio à sacralidade do existir, a poesia nasce e acontece

13
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

e o poeta não tem o direito de ficar cansado, é o que nos procura


demonstrar Cleide Oliveira comentando Adélia.
No capítulo Em roda de mim é a vez de conhecermos mais do
despudor da casta e religiosa Adélia, pelas mãos de Cleide. Sendo
como é alguém irrepreensível do ponto de vista moral, Adélia,
esposa e mãe de filhos, católica praticante não tem reparos em
desvendar sua intimidade: sua, de sua vida, de sua casa, de seu
corpo. Ao fazê-lo estende os segredos de sua intimidade ao corpo
do outro com o qual se relaciona de uma e outra maneira. Cleide
explora a categoria da memória aplicando-a à poesia de Adélia
que vai escavar seu baú de memórias e transformá-las em poemas
a fim de empreender sempre de novo e de novo sua busca pela
própria identidade.
Chega então a vez de Cleide escrever sobre a antropolo-
gia de Adélia e muito concretamente sua visão da corporeidade
humana. Em Uma ascese aos avessos o leitor poderá encontrar
uma fina e precisa análise sobre esse que é o sacramento por
excelência para a poeta de Divinópolis, o canal para a revelação
do mistério divino: o corpo feminino. Para Adélia o corpo é
santo e o corpo da mulher especialmente, já que dele devem ser
exorcizadas todas as cargas pecaminosas que erroneamente lhe
foram impostas. Nisso consiste a ascese aos avessos que propõe
o título do capítulo, que guiará o leitor pela trilha da sacrali-
zação do corpo empreendida pela poeta com sua poesia. A ca-
tólica Adélia não poupará críticas à Igreja que é a sua mais cara
morada quando se refere à visão que a mesma Igreja veiculou
e transmitiu sobre o corpo e defende com ardor a inocência da
carne, fazendo esta defesa com o pano de fundo cristológico da
encarnação, paixão e páscoa de Jesus Cristo. Belo e importante
texto que seguramente será precioso para ateus e crentes em
sua vivencia e reflexão sobre o corpo que habitam e que é sua
condição de existência.

14
cleide oliveira

Finalmente, o último capítulo – O discurso da alegria – trata-


rá do tema da alegria. Desejo maior do ser humano, dom maior
do Espírito Santo por ocasião da ressurreição de Jesus de Nazaré
como Cristo de Deus, a alegria se encontra na superação do de-
sespero. Cleide Oliveira elabora aí um fascinante diálogo entre
o escritor francês Albert Camus e Adélia Prado. Conhecido por
sua literatura marcada pela revolta metafísica e obcecado pela
teodiceia, Camus postula perguntas sobre a condição humana
que vão encontrar respostas na literatura. E Georges Bataille,
outro pensador muito caro à autora deste livro que prefaciamos
segue a linha deste pensamento lançando perguntas sobre o mal
e o desespero. A poesia adeliana enfrentará as mesmas perguntas
encontrando na poesia seu caminho de resposta. E essa aconte-
cerá em experiências como a nomeação da beleza, a religiosidade
intrínseca à mesma, independente da fé ou crença do poeta. E
sobretudo com a superação do desespero, que é atravessado do-
lorosamente pelo escritor, pelo poeta, mas que no ato mesmo de
escrever já vai sendo superado, tendo seu telos, seu fim último, na
alegria. Alegria que provém em última análise da única fidelidade
possível: a fidelidade à poesia.
Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom
tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo,
fogo de Deus em Divinópolis disse Drummond em sua crônica
de apresentação da mineira de Divinópolis ao Brasil e ao mundo.
Esse fogo faz arder a todos que a leem. E ardeu fortemente na
mente e no coração de Cleide Oliveira, autora deste belo livro,
que levantou alto a tocha acesa da poesia adeliana para que o pú-
blico a ela apresentado agora possa por ela ser alimentado em seu
desejo de beleza e alegria.

Maria Clara Lucchetti Bingemer

15
Linguagem, poesia e sagrado

O que me fada é a poesia. Alguém já chamou Deus por esse


nome? Pois chamo eu que não sou hierática nem profética e
temo descobrir a via alucinante: o modo poético de salvação.
(Solte os cachorros)

No entendimento do senso comum, que permeia, em alguma


medida, o mundo acadêmico e literário, a compreensão da poesia
está comprometida com algumas premissas que determinam seu
papel e seu campo de ação no cotidiano prosaico, podendo ser
resumidas na seguinte afirmativa: “Poesia é cultura, civilização.
Sua matéria é um ‘algo” que não se encontra na vida — pois nem
tudo é poetizavel — mas sim nos livros e, antes, no olhar que
certos homens e mulheres — os poetas — lançam sobre a vida,
ou partes dela, iluminando-a e significando-a. O bom poema é
um artificio intelectual, complexo e orgânico, ao qual apenas se
tem acesso usando as chaves interpretativas “corretas”, que são
geralmente aquelas legitimadas pela critica e pelo cânone.”

16
CLEIDE OLIVEIRA

Assim, embora a poesia esteja presente na vida, e a vida seja


a sua matéria-prima, essa não é a vida comum, repleta de de-
mandas, algumas delas pouco “nobres”, mas sim uma espécie de
supra-sumo das experiências humanas, onde as paixões — nome
pomposo que damos aos desenganos que nos movem — ocupam
o papel principal.
Mas, felizmente, resta ainda uma outra concepção de poesia
que vai entender que essa forma singular de linguagem não se
descola do prosaico, muito embora também seja indissociável do
sagrado. Um exemplo é a poética de Adélia Prado, para quem
a poesia é possibilidade de redenção e transcendência, porta de
comunicação com o sagrado, pois, “Que outra coisa ela (a poe-
sia) é senão Sua Face atingida/ da brutalidade das coisas”? No
entanto, dizer que em Adélia Prado encontramos uma poética
do cotidiano não diz o mais importante sobre sua poesia, pois
diversos outros poetas voltaram sua atenção para o miúdo corri-
queiro; há entretanto nessa autora uma significativa novidade que
é a de transformar o mais banal cotidiano em espaço sagrado e
profético onde a manifestação hierofânica se dá. A narrativa po-
ética de Adélia Prado constrói um universo em que se recupera a
sacralidade de todas as dimensões da experiência humana. Como
o estudioso das religiões Mircea Eliade1 irá postular, para o ho-
mem religioso todas as suas experiências existenciais são passíveis
de serem sacralizadas: o comer, o beber, o os ciclos de vida e
morte, o sexo, o trabalho, a habitação de uma casa, o casamento,
a guerra, etc. O mundo e as coisas pulsam a nossa volta, mas
nem sempre percebemos isso, e o papel da poesia é justamente
o de desvelar esse pulsar do real, salvando-nos da fragmentação
caótica do mundo não-religioso e, logo, irreal, porque, como
veremos, realidade e sagrado se confundem2.
E é justamente essa interseção entre linguagem, sagrado e
realidade que me interessa. O sentido dessa interface encontra-se

17
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

diretamente relacionado a um entendimento de linguagem que


se resume na seguinte afirmação de Heidegger: “O homem se
comporta como se fosse o criador da linguagem. A linguagem,
no entanto, permanece soberana ao homem” (HEIDEGGER,
2002). Dizer que a linguagem é soberana significa, desde já, in-
serí-la no âmbito do sagrado, pois a soberania, a gratuidade e o
excesso são noções diretamente relacionadas a ele, no sentido em
que a soberania implica uma autoridade e um poder que não se
limita por outro. Assim, se a linguagem é soberana ao homem
não pode ser apenas a partir de sua ‘funcionalidade’ que a mesma
deve ser pensada, mas antes pelo que nela extrapola os lugares
demarcados de nosso pensar e imaginar. Aqui cabe retomar o
verso citado de Adélia: a poesia, lugar onde a linguagem encontra
sua máxima potência, é a face de Deus atingida pela brutalidade
das coisas; é seu rastro, é rito e anunciação de um real pleno de
significado e inteireza.

···

Um aspecto a ser mencionado na relação que se estabelece entre


poesia e sagrado, na obra de Adélia Prado, é a articulação per-
manente que a autora faz entre linguagem poética e realidade:
a poesia torna-se em Adélia instauradora do real, de modo que
ela afirmará, em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira,
que “experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só-
”(PRADO, 2000, p.23), e também: “Para mim a definição mais
perfeita de poesia é: a revelação do real” (p. 23). Digno de nota é
essa concepção da poesia enquanto certo tipo de linguagem que
não apenas traduz o real, mas, antes, que o revela, desvela. Essa
me parece ser uma forma tipicamente religiosa de conceber a lin-
guagem e a realidade, pois, conforme nos ensina Mircea Elliade,
para o pensamento mitico-religioso é a experiência do sagrado

18
cleide oliveira

que funda o mundo, de tal sorte que apenas o mundo cosmogo-


nizado pela epifania do sagrado possui realidade. De acordo com
Eliade “nos níveis arcaicos de cultura, o ser se confunde com o
sagrado... e mesmo a religião mais elementar é, antes de tudo,
uma ontologia” (ELIADE, 1992, p. 171). Abordando as especi-
ficidades do pensamento mitico-religioso, e defendendo-o como
uma dimensão inalienável das formas de cognição do mundo para
o humano, ele postula que existe uma continuidade entre sagrado
e realidade: “(...) pois o sagrado é o real por excelência, tudo que
pertence `a esfera do profano não participa do Ser, visto que o
profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem
modelo exemplar.”
Claro está que o real do qual se fala não pode ser essa con-
junção de tempo-espaço vivenciado pelo homem moderno,
emancipado dos mitos e dos deuses, e por isso mesmo condena-
do a habitar um mundo domesticado e não espantoso. Em suma,
um mundo sem densidade ou sacralidade, logo, sem realidade.
Isto porque o real não se esgota, como parece crer esse mesmo
homem ‘positivo’, em explicações tecnico-cientificas, mas abarca
todas as esferas e dimensões da experiência (humana e não-hu-
mana), esbarrando assim no absurdo intrínseco ao próprio existir,
pois, como já o disse o jagunço Riobaldo, viver não é entendível.
Para o poeta e ensaista Octávio Paz, existem algumas expe-
riências que podem deflagrar essa epifania do real: o erotismo,
a experiencia mística e a poesia3; quero ressaltar essa última, a
poesia, como uma forma de linguagem especial que preserva ain-
da um modo de apreensão das realidades cognoscíveis não-frag-
mentado, logo, pleno de sacralidade. Retomo aqui uma citação
de Heidegger já discutida: “O homem se comporta como se fosse
o criador da linguagem. A linguagem, no entanto, permanece
soberana ao homem”. A soberania, característica definidora da
experiencia religiosa em sua essência, é estendida à linguagem

19
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

porque é nela que o ser encontra sua vigência, constituindo rea-


lidades que depois serão cristalizadas e dessacralizadas, de modo
que será apenas na e pela poesia que esse dobrar e desdobrar
mítico do real poderá ainda ressoar: “O que buscamos no poe-
ma é o falar da linguagem” (Heidegger, 2002). No poema fala
aquilo que na linguagem cotidiana se cala, pois a própria lingua-
gem cotidiana é um “poema esquecido e desgastado, que quase
não ressoa”.
Mas, como seria esse lugar em que as palavras ainda ressoam,
límpidas e claras, despossuídas de cultura e civilização? Esse é o
lugar do mito, palavra primeira que propõe um mundo e uma
cosmogonia do mesmo, onde a “realidade não é apenas descrita,
mas constituída” (CRIPPA, 1975, p. 59). A compreensão de um
parentesco originário entre poesia e mito parece estar dependente
do entendimento de que a linguagem nos engendra e constitui,
hipótese que foi pressentida não apenas por diversos filósofos
como também por muitas narrativas míticas-religiosas que apon-
tam uma íntima relação entre o divino, a linguagem e o mun-
do. Heidegger, provavelmente um dos mais originais filósofos
do século XX, afirmará sobre a existência humana que ela “[...]
es poética en su fundamento”, “La poésia es el fundamento que
soporta la história” e “la poésia es la instauración del ser con la
palabra” (HEIDEGGER, 1973, p. 137 e 139). Por outro lado, em
quase todas as grandes religiões culturais encontramos a lingua-
gem relacionada ao poder criativo da divindade, quer seja como
instrumento utilizado por esta ou ainda como fundamento por
meio do qual o caos se organiza e torna-se possível o surgimento
da própria divindade. De acordo com Adolpho Crippa todas as
grandes religiões conferem um lugar prioritário à doutrina do
Verbo divino na criação do real, sendo a Palavra instituidora e
constitutiva desse mesmo real (1975, p. 91-102). Ernest Cassi-
rer é outro filósofo que argumenta haver uma relação originária

20
cleide oliveira

entre a consciência mítica e a lingüística, justificando esse vín-


culo primordial por meio de dados oferecidos por estudos da
religião que demonstram uma supremacia da Palavra (entendida
como energia substancial que possibilita a instauração dos seres)
“que se converte em uma arquipotência, onde radica todo ser e
todo acontecer” (2000, p. 64). O autor lembra que quando se re-
monta às cosmogonias míticas sempre se encontra a Palavra nessa
posição originária, e como exemplo cita uma narrativa sagrada
dos índios norte-americanos uitotos que se assemelha assombro-
samente ao evangelho de João: “No princípio a Palavra originou
o Pai”, concluindo que “Deve haver alguma função determina-
da essencialmente imutável, que confere à Palavra esse caráter
distintivamente religioso, elevando-a, desde o começo, à esfera
religiosa, à esfera do sagrado” (2000, p. 65). Entretanto, ressalta
Cassirer, não se trata da empresa de verificar empiricamente um
“antes” e um “depois” temporal entre o mito e a linguagem, isto
é, não importa se é a linguagem que tem suas fontes na consci-
ência mítica ou se a consciência mítica apenas pode se formar a
partir da linguagem, em outras palavras é infrutífero buscar saber
quem veio primeiro, o certo é que existe uma relação íntima en-
tre ambas que faz com que uma influa e condicione a outra, de
forma recíproca.
A poesia parece guardar em si o modo de operação do mito,
a solução de continuidade entre a sacralidade primeira da Palavra
mítica e a linguagem cotidiana, onde permanece, ‘desgastada’.
Para Cassirer, a linguagem tem sua “origem” entrelaçada a dos
mitos, sendo ambos insights subjetivos do espirito diante do mun-
do sensível, que obedecem a fases de desenvolvimento que vão
da pura impressão intuitiva e concreta das coisas, que operam
pela analogia e pela metáfora, até a progressiva abstração da lin-
guagem, transformando as palavras em meros signos conceituais
(CASSIRER, 2000). Nesse sentido, a interseção originária entre

21
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

palavra e sagrado torna-se mais profunda do que a modernida-


de quis nos fazer crer, e uma comprovação desse vinculo entre
consciência religiosa e consciência lingüistica está no fato de que
em “Em todas as cosmogonia míticas, por mais que remontemos
em sua historia, sempre volvemos a deparar com essa posição
suprema da Palavra”, que se “converte numa espécie de arqui-
potência, onde radica todo o ser e todo acontecer” (CASSIRER,
2000, p.64).
A partir da progressiva secularização do mundo, as estrutu-
ras de pensamento mitico- religioso vão se enfraquecendo, e o
homem se esquece que a linguagem, sua morada primordial, é
essencialmente instauração e cosmogonização de mundos e re-
alidades, e passa a entendê-la como representação (espelho) de
um real que se dispõe a ele sem fraturas ou buracos negros. Mas
o eco de uma outra relação com a linguagem aparece ainda em
algumas espécies de ‘linguagem especial’: os mitos, ritos, preces
e poemas, nos quais a gratuidade ocupa lugar preponderante, ar-
ticulando relações outras que não as de funcionalidade e utilidade
entre homens, coisas e palavras. Mas não seria correto entender
que essas ‘linguagens especiais’, dentre as quais analisamos a po-
esia, sejam ‘alienadoras’ do real, pois, muito embora, conforme
ressaltou Heidegger na análise de um poema de Hölderlin, o rei-
no poético pareça pertencer ao reino da fantasia, ele se caracteriza
essencialmente como um habitar da terra:

O habitar poético sobrevoa fantasticamente o real. O poeta


faz face a esse temor e diz, com propriedade, que o habitar
poético é o habitar “essa terra”. Assim, Hölderlin não so-
mente protege o “poético” contra a sua incompreensão usual
corriqueira mas, acrescentando as palavras “esta terra”, re-
mete para o vigor essencial da poesia. A poesia não sobrevoa
e nem se eleva sobre a terra a fim de abandoná-la e pairar

22
cleide oliveira

sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela,
e assim o traz para um habitar (2002, p. 169).

A poesia de Adélia Prado surge como um claro exemplo do


vigor de uma obra que opta pelo estranhamento de um cotidiano
que à primeira vista não julgaríamos poético, onde o ordinário
se abre para o extraordinário sem alardes, ou, mesmo, onde o
ordinário desvela-se como extraordinário porque pleno de reali-
dade, integridade e inteireza. Veja-se o trecho abaixo, retirado da
narrativa Cacos para um vitral :

Pressiono um desentupidor da pia da cozinha e vêm à tona


grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de
sabão e gordura e, sem avisos, um estado de sentir, ou de
ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas
de manequins posando em paisagens de inverno e outras
mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que pra-
zer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão
transitório, desfatiguemo-nos. É a unidade de tudo num
relance apanhada. É: tem pleno sentido ir até São Paulo
atrás de um novo cosmético. É: que pura bobagem tomar
banho todo dia. Está lá a coisa, o ser, o deus, fora de mim,
completamente outro, mas em intensa comunhão comigo
(2001, p.129).

Fragmentos compactos de sabão e gordura tornam-se os ins-


trumentos de uma experiência de apreensão da “unidade de tudo
num relance apanhada”, de re-ligação com aquele completamente
outro que margeia as fronteiras do mundo dos homens. Se, con-
forme afirma Heidegger, “o habitar poético sobrevoa fantasti-
camente o real”, qualquer mínima parcela de realidade pode ser
casa da poesia4, pois, nesse caso, a poesia integra esse fragmento

23
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

descolado a um real que nela se des-cobre enquanto tal.

···

No pequeno poema-narrativa de titulo A caçada Adélia Prado


narra as peripécias para se capturar a poesia, dispersa em imagens
tais como os signos do zodíaco, uma folhinha de Mariana, e um
monte de entulho e lixo a queimar. A poesia está portanto livre
das amarras do bom gosto ou do bom-senso: ela se encontra
na vida, e sua beleza trágica não se deixa amarrar em cânones
de salão. A poesia — “sem pompa, sem os brilhos, mas dura,
parecendo meio louca, tão serena” (Solte os cachorros, PRADO,
2001) — não se deixa capturar, se envolvendo em um embate de
sedução com o poeta-leitor em que já não se distingue caça e ca-
çador. A relação que se proclama/exige entre poeta/poesia/leitor
não é pacifica, mas tensa e apaixonada (a poesia é um phatos que
se deve gozar/sofrer), sem espaço para distanciamento literário.
Essa é, a meu ver, uma das grandes características da poesia de
Adélia Prado: nela não há abstrações, simulação de realidade via
representação (e sim vigência do real pelo enunciar poético) ou
erudição. A poesia é vivenciada como um ritual, um sacrifício
religioso5 onde as palavras são novamente restituídas ao âmbito
do sagrado por meio de um significativo corte com a linguagem
pacifica em que se apoia nosso mundo cotidiano. Veja-se exem-
plo em um trecho de O nascimento do poema:

(...)
Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras
belas? Mármore, sol, lixívia.
Entender me seqüestra de palavra e
coisa, arremessa-me ao coração da poesia.

24
cleide oliveira

Por isso escrevo os poemas,


para velar o que ameaça minha fraqueza mortal.
Recuso-me a acreditar que os homens inventaram as lín-
guas, É o Espirito quem me impele,
quer ser adorado
e sopra em meu ouvido este hino litúrgico:
baldes, vassouras, divida e medo,
desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno. Não
construi as pirâmides. Sou Deus.

O poema em Adélia Prado assume função liturgia: é rito,


anunciação do real (que se identifica com o sagrado). Mas isso
não se dá pela escolha de palavras nobres ou raras, seja pelo seu
sentido ou pelo ritmo que elas impõem ao poema. ‘Baldes, vas-
souras, dívida e medo’, palavras sem nenhum pedigree poético,
transformam-se em cântico sagrado, pois falam do miúdo do
cotidiano, que é onde a condição humana se manifesta6. O po-
ema é um ex-voto entregue no altar da poesia, um rompimento
definitivo com a aparente transparência da linguagem da praxis
cotidiana, regulada pelo movimento referencial entre isto e aqui-
lo. Entender isso é, de certa forma, desentender séculos de ins-
trumentalização da linguagem, é ser lançado perigosamente ao
coração da poesia.

···

Em trecho significativo do ensaio A linguagem , em que analisa


um poema de Georg Trakl, Heidegger questiona a relação, que
no entendimento do senso comum parece ser pacifica, que se
estabelece entre o nome e a coisa nomeada, perguntando se o
nomear seria “apenas atribuir palavras de uma língua a objetos
e processos conhecidos e representáveis como neve, sino, janela,

25
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

cair, tocar”(HEIDEGGER, 2003, p.15). E, respondendo a sua


própria pergunta ele conclui que

Nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. No-


mear é evocar para a palavra. Nomear aproxima o que se
evoca. (...) A evocação convoca. Desse modo, traz para uma
proximidade a vigência do que antes não havia sido convo-
cado (p.15).

Fica explicito nesse trecho uma concepção de linguagem tão


próxima das concepções arcaicas e míticas, onde a estreita de-
pendência entre língua, realidade e verdade encontra sua forma
exemplar na afirmação de João, o evangelista: “No principio era o
verbo”, quanto distante de algumas contemporâneas teorias lin-
güisticas, que vêem na linguagem apenas um sistema abstrato e
arbitrário de signos onde significantes e significados estão intei-
ramente ao dispor da vontade dos homens enquanto seres sociais
que “usam” da linguagem para a comunicação.
Entretanto, a lição heideggeriana é clara: “essa aproximação
(entre o que se evoca e o lugar de onde se evoca) não cria o que
evoca no intuito de firmá-lo e submetê-lo ao âmbito imediato das
coisas vigentes” (p.15). A palavra que nomeia, e que se torna o
próprio nome da coisa, não ‘cai’ sobre a coisa nomeada como um
laço que tivesse por função articular uma relação entre palavra
e coisa suficientemente estreita para que se estabelecesse a refe-
rencialidade da primeira em relação `a segunda; e, igualmente,
suficientemente ‘frouxa’ para que o arbitrário dessa relação ficasse
patente, permitindo novas articulações de sentido entre coisas e
palavras ausentes dessa vigência.
“Nomear é evocar para a palavra. Evocar é convocar, chamar
`a presença aquilo que vem a ser pela palavra, na palavra, da Pa-
lavra” (p.15). A partir da pro-vocação oferecida por Heidegger,

26
cleide oliveira

gostaria de pensar um pequeno poema de Adélia Prado, cujo


titulo Antes do nome já antecipa esse Aberto que concentra todas
as possibilidades do vir-a-ser e de onde brotam todos os nomes:

Não me importa a palavra, esta corriqueira.


Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os
sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta
que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é ver-
bo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentissimos,
Se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto
e terror.

A linguagem preexiste ao homem. Ao nascer já nos encon-


tramos mergulhados na linguagem, submissos a ela, de tal forma
que não somos nós (sujeitos) quem falamos a linguagem, mas é
ela que nos fala e nos cala; é como Wittgenstein nos ensinou:
os limites do nosso mundo são os limites da nossa linguagem.
Mas, “em momentos de graça, infreqüentíssimos”, a palavra, em
sua máxima potência de evocação do sagrado, pode ser apanha-
da, como um peixe vivo cuja viscosidade gélida provoca susto e
terror: é a epifania de um realíssimo que não se deixa abarcar
em fórmulas reducionistas que esgotam a explicação do mundo a
partir do olhar humano.
Como entender a linguagem desvinculando-a de sua rela-
ção com os deuses? Ela é, conforme intuição de narrativas cos-
mogônicas de diferentes culturas, o fundamento último de todo
vir-a-ser: dos deuses e dos homens. A palavra (em minúsculo)

27
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

não pode ser confundida com a Palavra-verbo, que é condição de


possibilidade para a primeira; pois é apenas “disfarce de uma coi-
sa mais grave, surda-muda”, uma coisa que “foi inventada para ser
calada”, sendo o limite mesmo onde esbarra nossa linguagem: é
a Palavra primeira, conforme atenta Adolpho Crippa, nas trilhas
do pensamento heideggeriano:

A linguagem surge com a Palavra instituidora, que abre


o espaço `a manifestação do Ser (...). A linguagem surge
como uma totalidade viva e significativa, unida a uma com-
preensão de mundo, dependente de uma revelação primor-
dial, a partir da qual pode afirmar-se e estruturar-se essa
mundivivência (1975, p.94).

O mesmo autor advoga para o mito um poder ontofânico de


proposição e constituição de realidade, realidade que não é ‘re-
presentada’, e sim ‘apresentada’ em uma linguagem que é tanto
produtora de mitos quanto produzida neles e por eles: “O mito
é palavra criadora e re-veladora. As realidades que participam do
Ser vem-a-ser num mundo aberto pela palavra-mito. Por isso
o mito, enquanto dizer fundamental, remete-nos `aquela vizi-
nha do divino (Gottesnähe) que envolve as origens das coisas”
(CRIPPA, p.69). E Torrano (2001), em seu estudo introdutório
da Teogonia de Hesíodo, demonstrará existir uma relação in-
trínseca entre mito, linguagem (Palavra), realidade e poder: “O
ser se dá na linguagem porque a linguagem é numinosamente a
força-de-nomear. E a força-de-nomear repousa sempre no ser,
isto é, tem sempre força de ser e de dar ser. Não se trata de uma
relação, mas de uma imanência reciproca: o ser está na lingua-
gem porque a linguagem está no ser (e vice- versa)” (p.29-30).
Há na linguagem um poder7 de se ‘configurar o mundo e de
decidir quais as possibilidades nele se oferecerão em cada caso ao

28
cleide oliveira

homem” (p.29-30), um poder que parece ter sido herdado pela


poesia, pois a mesma, como já o afirmou Octavio Paz, também
não re- presenta, mas a-presenta realidades (2003, p.50) que não
estão ‘fora’ do poema, mas que nele encontram sua presença e
verdade. Torrano também irá se referir ao poder ontopoético que
a palavra cantada assumiu em distintas culturas, um poder que,
sendo caracterizado essencialmente como ontofânico, permanece
ainda hoje na poesia. Assim, adverte Adolpho Crippa, não há
que se pensar que o mito tenha sido (ou possa ser) superado pela
consciência humana, pois essa “permanecerá poética e mítica, tal
é a sua constituição” (p. 47).

···

Ainda hoje algumas palavras extrapolam o liame que se interpõe


entre elas e as coisas, projetando-se em um tempo, quiçá mítico,
em que palavras e coisas andavam coladas umas `as outras. Pala-
vra-coisa, coisa-palavra: nem aqui (coisa), nem ali (signo), o sen-
tido desliza entre um e outro, o sentido é ele mesmo outro, mas
também o Mesmo. E o poeta é aquele que, de forma bastante
próxima ao louco, conforme pontuou Foucault,

(...) sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas,


reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas si-
militudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar
deles, ouve um outro discurso, mais profundo, que lembra
o tempo em que as palavras ainda guardavam a semelhança
das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enunciar,
apaga na sua linhagem a distinção dos signos (2002, p.68).

Adélia Prado seria assim um exemplo de poeta que “não


quer escrever coisas com palavras”, antes, quer palavras “que se

29
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

podem comer, de tão doces/de tão aquecidas, corporificadas”


(poema Móbiles), pois está convicta de que “o que existe são coi-
sas/não palavras” (poema O nascimento do poema) o que requer a
invenção de palavras-coisas que, ao serem agrupadas em determi-
nada forma, dispensem “as coisas sobre as quais versavam” (poe-
ma A rosa mística) A partir da poética de Adélia Prado, podemos
afirmar que algumas palavras são corpóreas, e “doem como um
prazer”, configurando a palavra poética, que não se constitui ape-
nas enquanto abstração da percepção sensível de uma experiência,
mas sim como a vivência erótica da linguagem.
No meio da noite (1991) é um pequeno e singular poema
de Adélia Prado, no qual se elabora com mestria a inserção da
palavra poética no banal cotidiano, palavra que provoca um corte
na realidade comum para instaurar a bruma do mistério, da mís-
tica. Nele, a experiência mística de encontro com o sagrado se
dará a partir de coisa e palavra — nesse caso específico: a coisa
buganvília e a palavra singela — que, em sonho e em realidade,
transubstanciam a matéria do ordinário, dando-lhe inteireza e
concretude, tornando-o realíssimo:

Acordei meu bem para lhe contar meu sonho: sem apoio
de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro. Não
fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas. Eram
brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que
falavam:
“A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos da ale-
gria estão inchando úmidos, vão brotar sinos.” Doía como
um prazer.
Vendo que eu não mentia ele falou:

30
cleide oliveira

As mulheres são complicadas. Homem é tão singelo. Eu


sou singelo. Fica singela também.
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou. O que que
foi? — ele disse.
— As buganvílias....
Como nenhum de nós podia ir mais além, solucei alto e
fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

Chamo atenção para o deslocamento que se dá entre a ex-


periencia onírico-visual do sonho e a experiencia poética de uma
palavra que se revela “novíssima” em meio ao prosaico do cotidia-
no. Inicialmente são as buganvílias que transportam o eu-lírico
para esse lugar onde coisa e palavra se amalgamam, buganvílias
que não são adjetiváveis ou visíveis, mas sim o “próprio ato de
ver” que rasga as brumas do sonho para enunciar a esperança de
uma vida de onde “brotam sinos”. Em um segundo momento, no
entre-sonho de uma madrugada compartilhada, a palavra “singe-
la” se destaca no ar como as buganvílias se destacavam no sonho
e, como a coisa buganvília constituía “o próprio ato de ver”, a
coisa palavra constitui a experiência viva da linguagem, sem in-
tervalos ou fissuras conceituais e representativas, de tal modo que
em outro poema a poeta deseja: “Palavras, quero-as antes como
coisas” (poema Em português, 1991).
Palavras que doem feito um prazer. Palavras que, ao contrario
daquelas quotidianamente anunciadas, são perigosas, pois podem
nos atropelar com a sua concretude de palavra-coisa, ou nos sal-
var, como dirá a poeta em outro de seu poema: “A poesia me
salvará. Falo constrangida, porque só Jesus/Cristo é o Salvador,

31
O B R I L H O Q U E A R A Z ÃO N ÃO D E VA S S A

conforme escreveu/um homem (sem coação nenhuma) /atrás de


um crucifixo que trouxe de lembrança/de Congonhas do Cam-
po” (poema Guia, 1991).
Palavras novíssimas, que se destacam na bruma do sonho-
-linguagem com um “brilho que a razão não devassa”. Dize-las é
doer-se, mas é também experimentar um gozo sofrido, infinito
no breve instante em que o versos cintila no ar e aponta para um
“fora”, para o que não foi articulado, nominado, vivenciado. As
coisas falam, cabe ao poeta ouvir por nós seu discurso, “a men-
sagem secreta, /o inefável sentido de existir”(poema O coração
disparado, 1991) cumprindo seu papel de profeta e atalaia. Os
homens não inventaram as línguas, constata Adélia, pelo simples
fato de que a língua os precede, e é a poesia que faz com que nos
lembremos de que é na língua que construímos nossas moradas,
daí o caráter litúrgico e profético da palavra poética, palavra que
se encontra perigosamente próxima do inarticulado e do inefável,
afinal, ela é “Rastro de Deus, ar onde ele passou, casa que foi Sua
morada a poesia é” (Solte os cachorros, 1999).

32
Poesia e epifania

Convertendo o caos em cosmos

Um dos aspectos mais significativos da poesia de Adélia Prado é


o apelo a uma totalidade da experiência do real e do existir que
parece distante das pretensões cognitivas e estéticas da contem-
poraneidade. Sua poética é testemunho da presença/nostalgia de
uma sacralidade e de uma inteireza que se costuma associar às
sociedades pré-modernas, elaborando um espaço em que a lin-
guagem deixa de ser representativa e referencial para se tornar
palavra mítica, inteira e religiosa, no sentido em que pretende
religar o leitor a uma dimensão desconhecida da língua, que dei-
xa de ser um conjunto de signos convencionais e arbitrários para
constituir um universo em que palavras e coisas se irmanam, e a
realidade, porque sagrada, se oferece sem fraturas.
Quando penso em inteireza, quero dizer algo mais do que
a recuperação e a legitimação do corpo e do feminino desejante
que encontramos em Adélia. Inteira é a forma de experienciar a
realidade, “como se” nela não houvesse fissuras, de uma forma
mágica e mítica, conforme definição de Adolpho Crippa:

33
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

[...] a realidade que a experiência mítica alcança, chame-a


divina, humana ou mundana, apresenta-se como uma tota-
lidade cósmica, viva. Em conseqüência, a vida, individual e
coletiva, determinada por essa consciência, estará sempre
vinculada a uma totalidade ontológica (1975, p. 37).

O universo lírico-ficcional de Adélia se inscreve no campo


do sagrado, da totalidade. Em diversos momentos percebemos
que ela procede a uma sacralização do espaço, e essa cosmogo-
nização é realizada distendendo os limites da corporalidade até
o ponto em que o corpo e seus signos culturais e ideológicos se
transformem em espaço sagrado no qual o divino se manifesta.
Aparentemente, Adélia faz opção por uma vivência “religiosa”,
no sentido de um existir não fragmentado e pleno de realidade.
A identificação entre sagrado, realidade e poder própria da exis-
tência religiosa vem acompanhada de uma identificação entre o
profano e a pseudorrealidade do factual que é identificada ao caos
amorfo, ao não ser absoluto. O estudioso do fenômeno religio-
so Mircea Eliade chama atenção para o fato de que essa adesão
ao tempo e às realidades sagradas não significa uma recusa do
mundo factual, uma evasão no imaginário, implicando inautenti-
cidade existencial, para falarmos em termos sartreanos. Ao modo
de existir religioso não falta, adverte Eliade, nem autenticidade,
nem profundidade e, se a nós, modernos, essa opção de vida
parece uma recusa a assumir responsabilidades pelo próprio ser-
-no-mundo e uma autoalienação, é porque não compreendemos
que se trata de um tipo de responsabilidade diferente. O homem
religioso se sente irmanado e coparticipante da realidade cósmi-
ca, que é percebida como hierofânica, magicamente aberta à sua
participação, e é de forma coparticipante a essa realidade que ele
articula seu agir.

34
cleide oliveira

Ao contrário, parece-nos que, ainda aqui, é possível observar


a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma
característica essencial do homem das sociedades primitivas
e arcaicas. Porque, em suma, desejar estabelecer o Tempo
das origens é desejar não apenas reencontrar a presença dos
deuses, mas também recuperar o Mundo forte, recente e
puro, tal como era in illo tempore. É, ao mesmo tempo sede
do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta
experiência traduz-se pela certeza de poder recomeçar perio-
dicamente a vida com o máximo de “sorte”. É, com efeito,
não somente uma visão otimista da existência, mas também
uma adesão total ao Ser. Por todos os seus comportamen-
tos, o homem religioso proclama que só acredita no Ser e
que sua participação no Ser lhe é afiançada pela revelação
primordial da qual ele é o guardião. A soma das revelações
primordiais é constituída por seus mitos (ELIADE, 2001,
p. 83-84, grifo nosso).

E o que vem a ser hierofania? Do grego hieros (ἱερός) =


sagrado e faneia (φαίνειν) = manifesto, é o ato de manifestação
do sagrado. Esse é um termo cunhado por Eliade para explicar
a relação que se estabelece entre o humano e a manifestação do
sagrado:

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se


manifesta, se mostra como qualquer coisa de absolutamen-
te diferente do profano. A fim de indicarmos o acto da
manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania.
O termo é cômodo porque não implica qualquer precisão
suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu
conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos
mostra. Poderia dizer-se que a história das religiões – desde

35
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um


número considerável de hierofanias, pelas manifestações das
realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania
– por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qual-
quer, uma pedra ou uma árvore – e até à hierofania supre-
ma que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus
Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos
diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo ‘de
ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao
nosso mundo – em objectos que fazem parte integrante do
nosso mundo ‘natural’, ‘profano’. (ELIADE, 2001, p. 25).

Entendo que, ao optar pelo inteiro e pelo sagrado, a poesia


adeliana põe a desnudo uma estrutura básica do espírito humano,
ou seja, em minha perspectiva o apelo religioso é constituinte
de nossa identidade, algo como uma espécie de constante an-
tropológica, mesmo em caóticos tempos pós-modernos. Aliado
ao instinto religioso, o erotismo e a poiésis8 (ou poéticas, como
nos diz Antônia, uma das personagens de Adélia) seriam outras
formas de experienciar a inteireza da realidade – o realíssimo –,
que constituiriam o pano de fundo das nossas construções socio-
culturais. Tanto a linguagem mítico-poética quanto o erotismo9
se apresentam como um salto para a alteridade, para o completa-
mente outro, e nesse sentido exigem do humano um movimento
de pôr-se em risco, de desprendimento de si em busca de uma
experiência radical de totalidade, em que morte e vida se encon-
tram e se intersignificam.
A narrativa poética de Adélia Prado constrói um universo
em que se recupera a sacralidade de todas as dimensões da ex-
periência humana. Como Mircea Eliade irá postular, para o ho-
mem religioso todas as suas experiências existenciais são passíveis
de serem sacralizadas: o comer, o beber, os ciclos de vida e de

36
cleide oliveira

morte, o sexo, o trabalho, a habitação de uma casa, o casamento,


a guerra etc. A ele se tornam acessíveis experiências das mais
diversas a que poderiamos chamar de “cósmicas”, e são sempre
religiosas, dado que aquilo que é real, o Mundo e suas vivências,
são sagradas.
A poesia de Adélia é religiosa porque testemunha o pulsar do
mistério da vida: “A poesia me faz perceber a pulsação das coisas.
Isso é que é poesia, e a isso chamo também de experiência reli-
giosa” (2004). O universo ficcional criado por Adélia é profundo
e opaco, isto é, permeado de mistério; e a sede de “realidade” que
encontramos aqui é a mesma obsessão ontológica que Mircea Elia-
de definiu como própria do homem religioso. O mundo, tocado
pela poesia, torna-se mágico, harmônico, integrado. Veja-se o
que nos diz sobre o tema o filósofo theco Vilém Flusser:

Pessoas religiosamente surdas vivem em mundos rasos e


chatos, movimentam-se entre coisas transparentes (porque
em tese inteiramente explicáveis), e dirigem-se para a morte
que torna absurdos os mundos, as coisas e a própria vida.
A capacidade religiosa torna profundo o mundo, opacas as
coisas (porque nunca inteiramente explicáveis), e torna por-
tanto obscura a visão antes clara do mundo, como a contem-
plação da paisagem torna obscura a visão clara dos mapas”
(FLUSSER, 2002, p. 17).

O poema A despropósito (1991) ilustra exemplarmente o des-


locamento que a poeta opera no evento epifânico, que passa a se
dar no banal cotidiano:

Olhou para o teto, a telha parecia um quadrado de doce.


Ah! – falou sem se dar conta de que descobria, durando
desde infância, aquela hora do dia,

37
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

mais um galo cantando, a ocre, a marrom, a roxeada. Um


pasto,
não tinha certeza se uma vaca
e o sarilho da cisterna desembestado, a lata batendo no fun-
do com estrondo.
Quando insistiram, vem jantar, que esfria, ele foi e disse
antes de comer:
“Qualidade de telha é essas de antigamente”.

O poema nos fala de um acontecimento ordinário: um ho-


mem, deitado em sua cama, olha para o telhado enquanto ouve
ruídos que cotidianamente ali estão. Entretanto, de alguma for-
ma, a substância do mundo se deixa captar nesse instante banal e
um despropósito polifônico de signos salta da tela do mundo para
configurar uma composição em que vida e poesia tornam-se uma
mesma coisa: estranhamento e mistério.
O cotidiano perde sua pacificidade e ganha contornos má-
gicos e obscuros: a face de Deus, atingida pela brutalidade das
coisas, se mostra, sendo que a epifania é dada pela contemplação
de uma beleza que extrapola nossos conceitos de harmonia e de
equilíbrio, apresentando-se na pequenez do cotidiano, afinal, se
“A poesia é estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza
fundada na beleza” (PRADO, 2004), essa beleza é trágica, porque
experimentada pelo homem-humano no enfrentamento de sua
temporalidade e absoluta solidão em face do mistério das coisas
que são, em si mesmas, impenetráveis. Entretanto, pelo enunciar
poético as coisas se dão sem negaceios e mesmo a contempla-
ção de um telhado pode ser uma experiência de religação com
a finitude de seu existir e com o mundo, devolvido a si mesmo,
desestrumentalizado. Em um outro trecho, agora retirado de sua
prosa poética, a personagem Maria da Glória irá refletir sobre
experiências similares:

38
cleide oliveira

A mulher tinha um vestido esverdeado, punho e gola borda-


dos à máquina. Glória olhou, experimentando: não é pensa-
mento, nem sensação, são os dois juntos, alguma coisa que
preciso reter para contornar mas que escapa sempre. Seria
uma visão? É delicioso e redime tudo como a paixão de
Cristo nos redime. Seria a poesia face a face? (2001).

Quer seja em relação à poesia ou à prosa, há em Adélia uma


clara consciência desse aspecto sagrado da poesia – “Rastro de
Deus, ar onde ele passou, casa que foi Sua morada a poesia é”
(2001, Solte os cachorros). Vejam-se também os trechos a se-
guir, também de Cacos para um vitral: “No caderno de Glória:
um romance é feito de sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso
ter paciên- cia com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fa-
zem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram
núcleos” (p. 142). E agora Violeta, de Os componentes da banda:

[...] meu desejo é ter o resto da vida sem nenhuma per-


turbação, pra emendar os pedaços de tudo o que já senti e
pensei, fazer uma peça inteira, começo, meio e fim. Quando
faço uma boa música, de certa forma ela cristaliza para mim
alguma coisa, me religa a uma parte da qual fui separada
(2001, p 217).

Adélia confere à poesia o estatuto de elemento cosmogoni-


zante, que emendaria os cacos fragmentados da existência em um
todo orgânico, ainda que apenas experienciável apenas em ins-
tantes epifânicos, tal qual na experiência religiosa. “Querendo
uma coisa, tem que se largar mão de outra? A minha boca arada é
de inteiro que gosta” (2001, p. 43). É um desejo de inteireza que
move as protagonistas da prosa adeliana – que na verdade parecem
ser uma única e mesma personagem que se desdobra nos cinco

39
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

romances– em um périplo para assumir a sacralidade do corpo e


alcançar a santidade. A inteireza, que parece ser outro nome para
a santidade, compreende um estado de sentir e de existir que une
o inteligível, o ético e o estético, e parece ser tanto a anulação
da dicotomia corpo/alma quanto a recusa à fragmentação entre
sensível e cognoscível. Assim, nos diz a mesma Maria da Glória:

Desde a sua juventude invejava as amigas que comiam co-


mendo, namoravam namorando e até mesmo colavam co-
lando, com afinco e esmero, confundidas las próprias com
o objeto de suas ações. Como o pai na mesa, batendo o
osso no garfo para tirar o tutano, de tal modo embebido e
completo que ela entendia que era uma forma, o inteiro sem
fragmentos (2001, p. 123-124).

Felipa, protagonista do último romance de Adélia, retoma


a reflexão angustiada de Glória, duvidando da naturalidade dos
gestos humanos, desses incapazes de verdade: os antinaturais por
natureza (Poema Atalho, 1991)

Queria fazer coisas sem a consciência de fazê-las, como meu


pai. Era assim ele porque nunca ia ao cinema? Seus atos,
pelo menos quando não estava em frente de mulher, eram
atos puros, sem enfeite nenhum. Eu nunca me livro, será
meu natural o saber que não o sou? Pois mexo os olhos
segundo uma idéia como mexer os olhos. Sou mais humana
que ele? Mas mexer os olhos de maneira inconsciente é bas-
tante animal, mas não é também aí que somos mais felizes?
Correr, andar, nadar, comer, foder. Posso falar essa palavra
para Vós, copular seria falsidade insuportável e o Senhor lê
nos corações, estou é rezando, não me livrando das incon-
veniências do Alcino Maia, que nesse momento tem todo o
meu amor (2001, p. 420).

40
cleide oliveira

A inteireza parece estar em um estado no qual o sentir e o


agir sejam coextensivos, sem intervalos ou fissuras. Porque “O
mistério vai se mostrar através do corpo”, o périplo das perso-
nagens adelianas em busca da integridade é uma busca pela acei-
tação do corpo e pelo resgate de uma harmonia entre a ação e a
reflexão, por um estado além (ou aquém) do bem e do mal, mas
muito próximo da alegria: “Mas estar alegre era possuir intimida-
de, seu corpo não era mais feito de partes, mas uma só coisa har-
moniosa, ajustada, digna de amor e amar, fazer os outros felizes”
(Cacos para um vitral, 2001 p. 143). Aceitar o corpo é aceitar suas
demandas, seus limites e deslimites, e o desafio proposto a Maria
da Glória, Violante, Antônia, Felipa, Célia e às outras anônimas
personagens adelianas é a sacralização do corpo e o retorno à
unidade com o sagrado:

Ora, o que é o corpo? Necessitarei ainda de quantas paixões


para amansar meu orgulho e me deixar ver de frente, de cos-
tas, de quatro, comendo, descomendo, sem turvar os olhos?
Para isso caminho. Alguém me ensinará. Uma paixão, uma
grande paixão me tornará de tal forma que tanto se me dará
ser... (Cacos para um vitral, 2001, p. 193).

Li nas Seleções que Jesus foi crucificado nu, por que nin-
guém nunca falou deste acontecimento magnífico? Nenhum
artista lembrou-se? Roupa de baixo com renda fina e bor-
dados, luxo dos luxos, porque ninguém me vê, é só para
honrar o corpo que Deus fez. Eu amo o corpo significa eu
Vos amo Jesus meu (O homem da mão seca, 2001, p. 338).

A estratégia, mística, dessa poética é assumir o corpo como


espaço sagrado onde o mistério da vida e o da morte se revelam
e o encontro com a alteridade se dá, um outro que tanto pode

41
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

ser o humano (e é impressionante como o tema da compaixão –


o “sentir com” – é aí encenado) quanto o divino. A bússola da
poesia apontará sempre para o inteiro, que é identificado com
aquele a que não se predica pois nada está fora Dele: daquele Um
de quem nos falam místicos de tradições religiosas diversas. Se é
clara a convicção de que “Deus está no telhado. E é para isto só
que se nasce, para ver seu rosto terrível nos trespassando de facas”
(2001), a hierofania não se dá nos sítios do institucional, e, sim,
no doméstico cotidiano de mulheres que assumiram um modo
de vida religioso, porque sedento de uma realidade realíssima
como só o pode ser aquele espaço-tempo tocado pelo sagrado.
Acompanhemos a narrativa que Maria da Glória nos faz de um
desses momentos:

Pressiono um desentupidor da pia da cozinha e vêm à tona


grãos inchados, arroz com casca, fragmentos compactos de
sabão e gordura e, sem avisos, um es- tado de sentir, ou de
ver, não sei, que já me ocorreu olhando fotografias antigas
de manequins posando em paisagens de inverno e outras
mais coisas insólitas. É mais que felicidade, mais que pra-
zer. É: prestes a explodir. É: todo ser é belo. É: tudo é tão
transitório, desfatiguemo-nos. É a unidade de tudo num
relance apa- nhada. É: tem pleno sentido ir até São Paulo
atrás de um novo cosmético. É que pura bobagem tomar
banho todo dia. Está lá a coisa, o ser, o deus, fora de mim,
completamente outro, mas em intensa comunhão comigo
(Cacos para um vitral, 2001, p. 229).

Em uma obra em que é impossível dissociar o elemento re-


ligioso do cotidiano, é interessante notar o aspecto transgressivo
dessa encenação do relacionamento entre o humano e o divi-
no: Adélia nos narra uma história de amor que, em seus altos e

42
cleide oliveira

baixos, busca o final feliz, que será a fusão mística e o retorno à


Unidade e à continuidade, como afirma a personagem Clara, no
romance O homem da mão seca:

Eu já xinguei deus. O pensamento vinha e eu espantava,


vinha eu espantava. Eu queria juntar deus e fedaputa, foi
ficando tão apavorante, tão apavorante que eu falei de um
soco: deus fedaputa. Não aconteceu nada, eu fiquei calma
e a minha ruindade sumiu. Se não fizer assim não conheço
Ele. Me conta de onde eu tirei a vontade de xingar Ele?
Me conta. Eu não faço pecado não. Eu sou o próprio ele
em carne e osso. Deus dentro de nós fica com saudade de
quando não tinha feito nós e tudo era uma coisa só. A peleja
do mundo é que tudo que está partido e diferente quer ficar
junto e igual de novo. Se Jesus veio pra nos salvar ele sentiu
a maior culpa de todos. Sentiu a enorme culpa de ter saído
do pai dele, foi o homem que mais sofreu. Emprestou o
corpo para Deus sofrer (2001, p. 302, grifo do autor).

O contato com o sagrado irá requerer das personagens ade-


lianas a coragem de ir além das intermediações oferecidas pelo
institucional, rompendo as barreiras morais da religiosidade
envergonhada e tranquila para arriscar-se a uma profunda ex-
periência de aproximação com o sagrado. O apelo à unidade é
arrebatador, em um desejo de “conhecimento” de Deus que assu-
me, em alguns momentos, a maliciosa acepção bíblica do verbo.
Em Os componentes da banda, Violante já assegurava que “Tudo
quer copular, os biscoitinhos de nata, as limas verdes. Deus é
ato-puro-êxtase” (2001, p. 262), e aqui fica bastante plausível a
interpretação batailliana do erotismo, em que o autor entende
que tanto a vivência erótico-amorosa quanto a experiência mís-
tica possuem um mesmo núcleo, que é o desejo de recuperar

43
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

a unidade e a inteireza míticas10. Na citação acima transcrita, a


personagem Clara não é a protagonista do romance, e, sim, uma
personagem periférica, que possui a função de guiar a prota-
gonista Antônia em seu caminho rumo ao pleno conhecimento
de Deus, o que vai implicar uma profunda experiência de sa-
cralização do corpo, assumindo-o como “morada divina”, muito
próximo do que nos diz o apóstolo Paulo: “Ou não sabeis vós que
o vosso corpo é templo do Espírito Santo?” (I Coríntios 6:19,
BÍBLIA SAGRADA, 1997)
Clara ensina a Antônia (a personagem em aprendizado es-
piritual de O homem da mão seca que o corpo é santo porque
é através dele que o humano se revela em toda sua grandeza e,
paradoxalmente, fragilidade. A salvação do humano está em sa-
ber que muito embora esteja separado do Um, a sua integridade
pode ser reconquistada quando estende suas mãos e toca o outro,
encontra-se com o outro. A constatação de que Eu sou o próprio
ele em carne e osso é feita com profunda reverência pelo corpo,
espaço sagrado em que esse encontro com o alter pode se dar.
É interessante resgatar a intertextualidade desse romance com a
narrativa bíblica, em que o homem da mão seca é personagem
de um dos milagres de Jesus. O desafio proposto por Cristo a
esse homem é que o mesmo “estenda as suas mãos”, em uma
ação impossível (como estender as mãos se o estender as mãos é
a própria impossibilidade que se está tentando vencer?), se não
for precedida por uma fé absoluta. Também à Antônia é feito o
mesmo desafio de estender as suas mãos e tocar no “outro”, em
um gesto de compaixão, solidariedade e comunhão11.
Esse é um processo de progressiva aceitação do humano, cul-
minando em um sentimento íntimo de alegria e compaixão que
faz lembrar as admoestações de João, o apóstolo do amor, quan-
do o mesmo afirma que: “Ninguém jamais viu a Deus, se nós
amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito

44
cleide oliveira

o seu amor”; e também o apóstolo Paulo: “Agora, pois, perma-


necem a fé, a esperança e o amor, estas três, mas a maior des-
tas é o amor”. (I Coríntios 13:13., BÍBLIA SAGRADA, 1997).
Explica-se, assim, que todo amor tenda para o único amor, que
é o amor divino, e as personagens masculinas Gabriel, Lísias, Pe-
dro, Seu Eteloi Leh, Ramón, Thomaz, Teo, Santiago, Teodoro
e – condensação de todos eles – Jonathan formem um único e
mesmo amor, pois, se a “alma quer copular” (2001, p. 262), os
frutos dessa cópula são a fé, a esperança e o amor, mas, de to-
dos, o maior deles é o amor (I João 4, 12, BIBLIA SAGRADA,
1997). Um amor que tende para a Unidade:

A letra de Teo é inacreditável, encho páginas e páginas co-


piando ele, imitando seu traço sem nenhum enfeite. Escreve
do mesmo jeito de quando tinha quinze anos. Um ‘eme’ é
um ‘eme’, é só um ‘eme’. Não é uma montanha, nem uma
cobra disfarçada, nem um rio, é uma letra que serve para
escrever minha (adora- da Antônia), morto (de saudade),
mel (de abelha), mala (de viagem). Feliz Natal e Próspero
Ano-Novo foi o que pôs num cartão com neve, trenó e
renas quando éramos noivos. Quero ser como o Teo. Deus!
Estou escrevendo Teo, mas falando de Thomaz, a letra dele
é que é assim tal qual descrevi. Foi ele quem me mandou
o cartão! Já me aconteceu outras vezes. O que me comanda
não gosta de divisões (O homem da mão seca, 2001, p. 317,
grifo nosso).

Quando a epifania acontece é porque o processo de ascese se


completou e o humano estará de tal modo próximo do sagrado
que desejá-lo será desejar a Deus; a esse respeito note-se o relato
que Violante faz do momento posterior a uma experiência oní-
rico-epifânica:

45
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Tenho sonhado com peixes e três ou quatro vezes com mi-


údos demônios que exorcizo, pequenas limpezas depois da
limpeza grossa, da faxina de fundo que sofreu minha vida.
Tenho também escrito muitos textos como o da palavra so-
turno — que não precisam de música —, breve me nomearei
em toda a extensão, sem me envergonhar nem sofrer. Que
profunda alegria eu sinto, que desejo profundo de chorar,
de ser boa pro Pedro, pros meninos, de ser para Pulchra,
Beta e Alberto uma insubstituível irmã. No dia em que as
coisas consertaram, eu vinha da roça com Pedro, o poente
pejado de nuvens cinza-azulado que ocultavam o sol. No
meio delas, uma cavidade abria-se em forma de coração de
intenso e luminoso amarelo, um coração divino dardejando.
Tive certeza naquela hora: o Senhor nos ouve, nem um só
gemido nosso lhe escapa. Começava a ser doce estar na cruz,
alguma coisa em mim desatava-se, viciosas nós amoleciam,
tocar Pedro era tocar em Deus, o tempo todo dentro de
nós e eu sem perceber. Por isso Ismália diz resoluta: o seu
desejo é o desejo de Deus. Eu estava crescendo como bor-
boleta dentro da lagarta, compreendia palavras que toda vida
ouvira, repetira e mesmo ensinara, só agora, vendo no céu
uma claridade entre nuvens, em forma de coração intenso e
luminoso amarelo. O Criador dizia à criatura: amo-te. Não
tive medo da morte e respondi: eis-me (Os componentes da
banda, 2001, p. 252, grifo nosso).

A narrativa junta elementos que foram elaborados em todo o


périplo dessa e de outras mulheres retratadas por Adélia, estando
esses elementos diretamente relacionados com aquilo que deno-
minamos de tríade adeliana: erotismo, mística e morte. Os sím-
bolos cristãos (nesse caso, os peixes); a presença da poesia como
linguagem própria para a experiência mística; a aceitação do

46
cleide oliveira

corpo; a comunhão com o divino, implicando profunda compai-


xão pelo humano e alegria tão intensa que não abole o sofrimento
ou a tragicidade do existir; e o amor humano como hipóstase do
amor divino são alguns dos temas abordados nesse trecho, temas
que estarão presentes em toda sua obra, quer em verso ou em
prosa, confirmando um desejo de cosmogonização do caos coti-
diano de forma integrada e plena de significado, inclusive no que
diz respeito à forte consciência da temporalidade extrema que
somos, topos dos mais importantes nessa autora.
Todos esses aspectos temáticos não são alheios ao eixo forte-
mente integrado erotismo-mística e morte. À palavra poética pa-
rece ser dado um poder cosmogonizante que emenda esses cacos
e compõe um vitral (Cacos para um vitral é o nome do segundo
livro de prosa de Adélia) no qual o rosto que se desenha é uma
amálgama entre humano e divino. Não é gratuito, portanto, que
a poesia seja considerada face de Deus, verbo encarnado, possi-
bilidade de redenção e transubstanciação, testemunho e oráculo,
face que se deixa fustigar pela brutalidade das coisas. E mais uma
vez podemos perceber que nessa poética o sagrado reconcilia vio-
lência e pathos, deixando os átrios assépticos das catedrais para se
encontrar face a face com o humano.

Palavras que doem feito um prazer

O momento epifânico, que de outro modo se perderia no fluir


temporal, encontra na poesia seu repouso, segundo afirma a pró-
pria Adélia: “Qualquer arte – pintura, música, cinema, literatura
– onde eu consiga falar da minha pequena dor pessoal, do meu
pequeno medo, do meu pavor, do meu pânico, da minha doença,
da minha paixão; onde eu encontre uma linguagem para isto, um
signo, me descansa” (PRADO, 2004). A poesia assume também

47
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

a função de fixar o mundo e as realidades nele vividas, em espe-


cial a beleza, protegendo-a da corrosão do tempo e da morte, na
verdade, enganando o próprio tempo, abrindo uma fissura por
meio da qual poeta e leitor podem escapar da história e entrar no
tempo mítico-religioso, trans-histórico. O poema “A rosa místi-
ca” é paradigmático para se compreender o caráter cosmogônico
e sagrado que a palavra poética assume nessa autora, veja-se:

A primeira vez
que tive consciência de uma forma disse à minha mãe:
dona Armanda tem na cozinha dela uma cesta onde põe os
tomates e as cebolas;
começando a inquietar-me pelo medo do que era
bonito desmanchar-se,
até que um dia escrevi:
‘neste quarto meu pai morreu, aqui deu corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela e eram os beirais da morte’.
Entendi que as palavras daquele modo agrupadas dispensava
as coisas sobre as quais versavam, meu próprio pai voltava
indestrutível.
Como se alguém pintasse a cesta de d. Armanda me dizendo
em seguida:
agora podes comer as frutas. Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha? [...].

A palavra poética magicamente institui um reino que, nos


termos de Octávio Paz, faz com que o nomear instaure o ser, tor-
nando indestrutível o fato poético, transformando-o em lingua-
gem epifânica que revela a beleza do mundo. A religiosidade que
permeia essa poesia estende-se aos poemas metalinguísticos, em
que é radical a aproximação entre poesia e epifania, em harmonia

48
cleide oliveira

com uma tradição cristã que postula a identificação entre o Logos


e o divino na declaração de que “No princípio era o Verbo e o
Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1: 1, BÍBLIA
SAGRADA, 1997).
No poema “Antes do nome”, transcrito a seguir, encontra-
mos uma separação entre palavra e Palavra, em que a primeira é
êmula do universo linguístico referencial e a segunda, “muleta
que nos apoia”, conduz-nos a universos mágico-míticos onde a
lógica não impera e é possível, portanto, o entendimento daquilo
que se inscreve no campo do sagrado. Encena-se o mítico tempo
do nascimento da palavra, que é apenas disfarce do inefável segre-
do divino, do silêncio do inarticulado, da Palavra:

Não me importa a palavra, esta corriqueira.


Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, Os
sítios escuros onde nasce o “de”; o “aliás”,
O “o”, o ”porém” e o “que”, esta incompreensível muleta
que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é
Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma outra coisa mais grave, surda-
-muda, foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrenqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto
e terror.

A palavra almejada é aquela que recupera suas características


mágicas de condensar a percepção sensível em pontos mínimos,
absolutos e exatos, rejeitando o isolamento, a sistematização e a
associação de conceitos (a percepção abstrata da coisa) própria do
pensamento lógico-teórico (conforme CASSIRER, 2000). Nos
sítios escuros o poeta se embrenha à caça da palavra que revele

49
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

o ser a ele mesmo, tornando possível a compreensão do Logos


divino. A esse respeito, Margarida Salomão, já no livro de estreia
de Adélia, em 1976, afirmava que a poeta tem um verdadeiro
horror a abstrações que a põe em companhia de Octávio Paz, para
quem o poema não representa, mas apresenta o mundo. O poema
não quer dizer nada além daquilo que ele é: da coisa que ele é.

[...] a descontinuidade entre palavra e coisa, detectada por


Foucault no século XVII — descontinuidade que é respon-
sável por tantos desiquilíbrios: ora a palavra é maior que a
coisa, ora a coisa é maior que a palavra —, essa desconti-
nuidade simplesmente é abolida pela obra e graça de Adélia
Prado. As palavras, então, são tratadas como coisas: especí-
fico é o som de que dispõem; particular a estrutura que fiam
(SALOMÃO, 1986).

As coisas falam, cabe ao poeta ouvir por nós seu discurso, “a


mensagem secreta, /o inefável sentido de existir” (Poema A fala
das coisas, 1991, p. 197), cumprindo seu papel de profeta e ata-
laia, como se vê no poema “O nascimento do poema”, transcrito
a seguir, em que coisas e palavras se fundem na imagem poética,
arremessando o leitor ao coração da poesia. Os homens não in-
ventaram as línguas, constata a poeta, pelo simples fato de que
a língua os precede, e a poesia faz com que nos lembremos de
que é na língua que construímos nossas moradas, daí o caráter
litúrgico e profético da palavra poética, palavra que se encontra
perigosamente próxima do inarticulado e do inefável:

O que existe são coisas. Não palavras.


Por isso
te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro como olharei
montanha durante horas, ou nuvens.

50
cleide oliveira

Sinais valem palavras, palavras valem coisas, coisas não va-


lem nada.
Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo, não faltou a meu choro este arco-í-
ris: o luto ficará bem com meus cabelos claros.
Granito, lápide, crepe,
São belas coisas ou palavras belas? Mármore, sol, lixívia.
Entender me seqüestra de palavra e coisa, arremessa-me ao
coração da poesia.
Por isso escrevo os poemas
pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal.
Recuso-me a acreditar que homens inventam as línguas, é o
Espírito quem me impele,
quer ser adorado
e sopra no meu ouvido este hino litúrgico:
baldes, vassouras, dívidas e medo,
desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno. Não
construí as pirâmides. Sou Deus.

A poesia visceral de Adélia Prado rejeita a explicação inte-


lectualizada e a própria versão funcional e utilitária da lingua-
gem; a palavra anunciada cumpre a ordem do poeta Drummond
– “Que cada coisa seja uma coisa bela” –, entretanto, a beleza não
será entendida como perfeição, equilíbrio ou harmonia, e, sim,
como representação desavergonhada desses cacos de realidade e
de eventos sem glamour ou da idealização que compõem o miúdo
cotidiano. O entendimento, a revelação e a cosmogonização da
irrealidade fragmentada encontram-se no coração da poesia, no
faz de conta que re-cria a percepção do mundo sensível, signifi-
cando-o e eternizando-o.
O que me parece digno de destaque é essa conciliação entre

51
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

uma profunda religiosidade – que apesar de um claro diálogo


com a tradição judaico-cristã não é catequética, e sim proble-
mática – e, ao mesmo tempo, uma comovente dignificação do
homem-humano. Adélia comunica um sentimento religioso que
extrapola os limites de sua inserção sociocultural: não é apenas
à comunidade cristã que sua poesia toca, todo aquele que “peleja
por alcançar algo maior do que ele mesmo” sente-se irmanado
com a convicção da poeta de que “Que a fonte da vida é Deus há
infinitas maneiras de entender” (poema O modo poético, 2001).
Há na poética adeliana uma clara retomada do tema da tem-
poralidade humana, localizando-se na contramão de um projeto
moderno de afastamento e insubstanciação da morte ao pôr em
cena a necessidade da re-significação do viver em face da finitude.
A sociedade a nós contemporânea tem feito o que pode para dri-
blar o envelhecimento e a morte e se ainda não temos um elixir
da juventude totalmente eficaz, inodoro e sem contraindicações,
pelo menos a velhice já está visualmente longe dos nossos olhos,
bombardeados à exaustão com a visão de corpos jovens e perfei-
tos. A velhice e a morte são progressivamente afastadas de nosso
contato visual para os hospitais, asilos e clínicas luxuosas, onde
uma aparência de ordem e assepsia tenta nos proteger da dor.
Entretanto, a voz da poeta insiste em nos lembrar que “a gran-
de tarefa é morrer”, (poema Campo geral, 1991). E ainda: “Nas
metrópoles, / o campo-santo acaba confundido, / rodeado de
bares. / E por causa disso iludem-se as pessoas/de ter nas mãos
a indomesticável” (poema O lugar da metrópole, 1991). Veja-se
também o conto “Amarelos”, no qual a individualização heroica
do protagonista se dá não a partir de grandes ou heróicos feitos
que o mesmo tenha realizado em vida, e, sim, daquilo que o tor-
na irmão de qualquer homem: a mortalidade.

52
cleide oliveira

Há um momento em que todos na sala calam-se, olhando


para o bico dos sapatos. Nesta hora, qualquer acontecimento
é bem-vindo. Uma borboleta gigante que saia detrás da cor-
tina, ou um mosquito que sobrevoe o cadáver são recebidos
com íntimo regozijo. Alguém pressuroso sairá a espantá-los,
todos acom- panhando atentos e por um minuto a dor ar-
refece, por um minuto descansa-se. Os periquitos no viveiro
começam grande algazarra e outro se lembra – socorrido – é
preciso dar de comer aos bichos, botar água pro cachorro.
E café?, acudirá um terceiro, é preciso fazer mais café, de
madrugada esfria e antes que es- cureça acho bom pegar uns
colchões emprestados. Qualquer providência tem um halo de
cósmica dimensão porque: um homem morreu. Um homem
que um dia viu na cozinha um gato de olho e pêlo amarelos
e tomado de grande susto disse com inocência: sai, criatura
de Deus! E por toda a vida viu neste episódio um grande
acontecimento, guardando-o como a um tesouro, sem saber
mesmo por quê. Recontou-o poucas vezes, reconhecendo-
-lhe a insubstância, pois era só aquilo: um gato de pêlo e
olho amarelos, um gato que por segundos fitara-o com a
mesma admiração e susto. Sai, criatura de Deus! Esta excla-
mação não pertencia ao morto, um homem de palavra difícil
pra navegar nos sustos. No entanto ele as dissera e admirava-
-se enormemente que houvesse saído de sua boca. Era muito
bonito? Muito bonito não dizia nada, era muito o que, meu
deus? Sua mulher tinha saído, os filhos estavam na escola, ele
foi pegar água na cozinha e viu o gato. Era preciso segurar
aquele acontecimento que lhe devolvia as palavras, exigente.
Não contou nada a ninguém naquele dia. Procurou nas tra-
lhas dos meninos papel e lápis de cor e desenhou o gato de
olhos e pêlo em amarelo, um desenho de que se envergonha-
va porque era muito feio e tosco, muito desajeitado. Contou

53
O B R I L H O Q U E A R A Z ÃO N ÃO D E VA S S A

pra mim o seu segredo, perdoando todos os meus pecados.


Sei, porque deixei que se visse nos meus olhos, como vira
ele próprio o gato. E só lhe disse isto: que visão magnífica!
Ele puxou a cadeira, sentou-se e repetiu com a alegria de
quem aprende língua estrangeira: pois é. Magnífica! Ficou
grato para sempre, meu cúmplice. Pois esse homem morreu.
Amarela está a sua face, a fraca luz da tarde, o perfil das pes-
soas sob a chama dos círios. Sua mulher à cabeceira deu um
grande uivo, sangrando a pele do mundo: ó meu Deus! Olhei
bem o seu rosto e supliquei como a que uivava, “Salva-nos
porque perecemos”. Entre os pés de latão que suportavam
os círios a faixa de luz amarela bateu na cruz de alumínio.
Alguém cochichou: os colchões já chegaram e já fiz mais
café. A morte nos visita e nós abrimos a casa, precisamos de
companhia e força para chorar (2002, p.133-135).

Palavras. Palavras que “doem feito um prazer” (poema No


meio da noite, 1991) quando operam o milagre de segurar acon-
tecimentos que de outro modo seriam impossíveis, não de serem
compreendidos, pois não é de inteligibilidade de que se trata, e,
sim, da experimentação do viver em sua plenitude obscura. O
gato amarelo de olhos amarelos prenuncia o amarelo do rosto
humano, da luz do fim de tarde e do rosto das pessoas tocadas
pelo reflexo dos círios. A morte, enroscada na trama da vida,
anuncia sua visita; a indesejada das gentes é delicada e cortês, an-
tecipando-se através de magnífico acontecimento do qual as pala-
vras cotidianas não davam conta, não alcançavam: “Era muito bo-
nito? Muito bonito não dizia nada, era muito o que, meu deus?”.
É preciso inventar língua estrangeira, palavras novíssimas que
remetam à origem e sirvam de pontes – pontes sobre o inarticu-
lado – entre o eu e o outro, tornando-os cúmplices do segredo
mais banal: que “precisamos de companhia e força para chorar”.

54
A tríade adeliana

“Erótico é a alma.”. A leitura rápida desse verso do poema Disri-


timia, de Adélia Prado (1991), pode enganar olhos menos aten-
tos que, acreditando ver um erro de concordância (afinal, erótica,
e não erótico, é a alma), deixam escapar certas sutilezas do verso.
Se erótica fosse a alma seria uma equação simples: revela a alma
certas qualidades sensoriais que tornam possível a identificação
entre física e metafísica, o que não chega a ser nenhuma no-
vidade, posto que esse foi um tema constantemente retomado
pelos românticos na enunciação da alma gêmea e no cultivo do
amor platônico. Entretanto, a simplicidade se desfaz na análise
acurada do enunciado acima: erótico é a alma, isto é, o campo
do substantivo erótico se deixa invadir pelo substantivo alma, e
a relação que se estabelece entre erótico e alma deixa de ser de
determinante e determinado, em que a alma seja determinada
pelo erótico, ou vice-versa, tornando-se de mútua equivalência,
em que isto se iguala a aquilo. Assim, todo o cenário do erótico se
expande a uma realidade que ultrapassa a corporalidade e se ins-
creve na transcendência, enquanto o signo alma torna-se pesado
e pungente, quase corpóreo.

55
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Erotismo, mística e morte formam uma tríade que abarca


toda a obra de Adélia, cujo eixo temático será alicerce de ou-
tras reflexões inter-relacionadas, como, por exemplo, os ques-
tionamentos de gênero, com a assunção da clara preferência pelo
universo feminino; a poética do cotidiano, explodindo frontei-
ras entre o universal e o provinciano; e as considerações antes
metafísicas que metalinguísticas sobre o fazer poético. Pensar o
erotismo nessa poética é pensar o homem circunscrito pelo hori-
zonte da morte. A declaração de que “a grande tarefa é morrer”,
do poema Campo-santo, parte de uma voz ficcional que expe-
rienciou a temporalidade que marca as relações dos homens de
si para si, de si para com o outro, e de si para com o mundo das
coisas que o rodeiam. A morte plasma o estar-no-mundo de cada
um de nós, seres descontínuos e perplexos ante essa radical sin-
gularidade. Otávio Paz (1982, p. 162) afirmará, sobre essa solidão
existencial, que “todos estamos sós porque somos dois”. Aqui é
preciso introduzir o conceito de outridade de Octávio Paz (2003),
que parece apontar para essa instabilidade permanente do huma-
no, dividido entre o instante vivido e as potencialidades que se
projetam no vazio do ainda não experienciado. Ser dois – eu e o
outro – é não ter o repouso de uma essência anterior ao meu pro-
jeto de vida, é estar sempre à procura de si, inventando-se. Para
Paz, existem, entretanto, alguns instantes, pontuais e epifânicos,
em que o homem encontra-se consigo mesmo, melhor diríamos,
concentra-se em si mesmo, apaziguado de seu trágico destino
de “saber que sabe que sabe”, novamente integrado ao compasso
cósmico do universo e do existir. Ele está diante do abismo, e já
não é permitido capitular, o grande salto será dado pela experi-
ência mística, pelo erotismo e pela palavra poética.

56
cleide oliveira

Erotismo e mística

Deflagra-se em Adélia uma íntima relação entre erotismo e mís-


tica. Em versos de O modo poético, a poeta dirá, sem pejo, que “é
em sexo, morte e Deus/ que eu penso invariavelmente, todo dia”
(1991), apontando para essa circularidade impressionante em te-
mas que o senso comum julga tão díspares, mas que, entretanto,
estão decalcadas naquilo que se convencionou chamar, por falta
de melhor nome, alma humana. Dentre tantos, os dois poemas a
seguir apresentam com bastante clareza a interseção entre erotis-
mo, religiosidade e poesia que é elaborada por Adélia Prado; são
eles Sedução e O pelicano:

A poesia me pega com sua roda dentada, me força a


escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta a saia pra eu ver,
amorosa e doida. Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
língua quente em meu pescoço, fala pau pra me
acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga, aproveito pra me safar. Eu
corro ela corre mais, Eu grito ela grita mais, sete
demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé e vem até a cabeça-
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

E agora O pelicano,

57
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Um dia vi um navio de perto.


Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! Eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como o sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia para que enfim
tocasse
no onde o que não tem pés caminha sobre a massa das
águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar vi – como vi o
navio – um sentimento. Travada de interjeições,
mutismos, vocativos de supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
– a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite eu estava
poetizada,
um desejo supremo me queria.
Ó misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito. Ó amor, e me
deixei afagar,
a visão esmaecendo-se, lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.

No primeiro poema o erotismo linguístico é explícito, e a


poesia aparece “amorosa e doida” no encalço do poeta, em uma
narrativa que tem o aspecto espontâneo e instintivo do cio ani-
mal, o que corrobora com a afirmação de que essa poesia não
é “cerebral”: seu discurso é “esdrúxulo”, porém, extremamente

58
cleide oliveira

magnético e sedutor, sulcando a carne do leitor com sua roda


dentada, imprimindo uma cicatriz e um signo em sua pele nua.
Já no segundo poema citado, é do erotismo sagrado que se
trata. A experiência do completamente outro12 é radical, sendo
identificada com a experiência erótica de olhar com uma “gula
sem pressa” Jonathan, o personagem-símbolo e síntese do amor
humano e divino (ou, se quisermos, do humano- divino) que
será extensivamente explorado por Adélia. Erotismo e sagrado
impõem uma mesma impossibilidade à linguagem, que esbarra
nos vocativos13, interjeições e mutismo: poetizada, a poeta põe a
“boca no jorro daquele peito”, incapaz de palavras, mais intensa
e verdadeira que o próprio navio que lhe foi passaporte para a
experiência mística.
Ainda sobre a mística, um dos vértices da tríade adeliana, é
interessante citar um trecho do romance O homem da mão seca,
aquele que, a meu ver, mais profundamente aborda o elemento
místico da religiosidade, e essa relação entre palavra poética e ex-
periência mística que é um dos elementos centrais dessa poética:

Entre as palavras lindíssimas uma é Verbo, singra o tempo


como uma estrela cadente e volta ao escuro. São assim as
poéticas, as místicas, têm as hipérboles e os êxtases, o bri-
lho que a razão não devassa, gozo prometido aos simples
de coração. Buscar as riquezas de Deus que quer de mim o
mesquinho, o covarde, a maldade oferecida em holocausto.
Dou-vos o pior de mim, a água turva em que fui gerada.
(O homem da mão seca, 2001, p. 369).

Entre Palavra e palavras tem-se o humano: toda beleza e fra-


gilidade do corpo, daquele que tem apenas corpo e palavras para
vivenciar a sacralidade e o mistério de “um mundo espantoso
em nosso redor, um mundo pronto a precipitar-se sobre nós,

59
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

desde que nós nos abramos a ele” (FLUSSER, 2002, p. 92), des-
coisificando-o. Do corpo à Palavra e da palavra ao corpo, eis o
périplo das personagens adelianas, que tateiam, cegas por esse
“brilho que a razão não devassa”, ao encontro da alteridade, que
pode ser, e frequentemente nos romances de Adélia o é, homens
e mulheres às voltas com o banal cotidiano, pelejando para al-
cançar uma coisa muito maior, algo que se encontra acima dos
interesses mesquinhos do dia a dia. Entretanto, é por meio desse
outro humano que o completamente outro será alcançado, pois é
a alteridade que revela “a água turva em que fui gerada”, e me
prepara para oferecer em sacrifício o pior de mim, aquilo que
não é divino, logo, que não pode ser assumido como valor, como
humano. Oferecendo-se em holocausto, o humano é dignificado,
sacralizado, utopicamente reintegrado à unidade. A poética de
Adélia fala de retorno e reconciliação, recuperando a caracterís-
tica da palavra mítica de aproximar realidades: a dos homens e a
dos deuses.
Em entrevista dada a Cecília Canalle (1996) Adélia afirma
que a poesia, à revelia dos poetas ateus, é intrinsecamente reli-
giosa: “eu não faço poesia religiosa, num sentido que muita gente
entende equivocadamente. O fato é que é a poesia é que é reli-
giosa, ela é sagrada”. A poesia é linguagem perfeita que não é
conteúdo ou assunto14, constituindo antes uma forma pela qual
o sagrado (o realíssimo) se revela. A poesia é busca pela Palavra
perfeita, anterior e fundamento de todas as palavras humanas, que
em sua forma poética são, como o disse Adélia em outro mo-
mento, o rastro que Deus deixa nas coisas... Logo, a poesia, mes-
mo aquela sem nenhum “assunto” religioso, é religiosa, porque
busca uma terceira margem da língua, estado epifânico em que:

É um desejo de prostração que dá na gente, um desejo de


adoração: você quer adorar e você sabe que não é mais aqui-

60
cleide oliveira

lo que você tá produzindo, não é o rastro, não é mais a


pegada como eu achava antes... Com aquela ânsia..., mas é
a coisa que se mostra atrás disso. (ADÉLIA PRADO, In:
CANALLE, 1996, p. 122).

Afinal, “existe um grão de salvação / escondido nas coisas


deste mundo” (poema A poesia, a salvação e a vida, Bagagem)
que permite que todo movimento humano seja entendido como
movimento para... Aqui cabe lembrar que esse movimento para
a transcendência se repetirá analogicamente nas experiências re-
ligiosas, eróticas e poéticas, como resposta à nostalgia de um es-
tado anterior que permanece enquanto sonho e mito, pois como
nos lembra Octávio Paz

O sagrado nos escapa. Ao tentarmos prendê-lo, percebemos


que ele tem sua origem em algo anterior que se confunde
com nosso ser. Assim ocorre com o amor e a poesia. As três
experiências são manifestações de algo que é a própria raiz
do homem. Nas três lateja a nostalgia de um estado anterior
(PAZ, 1982, p. 164).

Seria plausível, então, entender, apoiados na poética ade-


liana, a verdade religiosa como um desejo de colar os estilhaços
das vivências humanas, de recuperar um real impossível, que se
estilhaça e atomiza em meio à casualidade assustadora dos fenô-
menos? Para aquele tocado pela fímbria do sagrado, a busca pela
transcendência torna-se uma tortuosa e torturante negação das
condições de possibilidade para o existir; sendo a essência do ero-
tismo a recusa da fragmentação, não apenas a dita pós-moderna,
mas aquela outra, ancestral, do indivíduo com o todo indiferen-
ciado, pleno e plural. Encontrar-se com o sagrado é também se
encontrar com o humano, daí a proximidade entre o movimento

61
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

do erotismo sagrado (místico) e o erotismo dos corpos e cora-


ções, é o que afirma Octávio Paz:

A experiência do Outro culmina na experiência da Unidade.


Os dois movimentos contrários se implicam. Atirando-se para
trás já se dá o salto para adiante. O precipitar-se no Outro
apresenta-se como um regresso a algo de que fomos arranca-
dos. Cessa a dualidade, estamos na outra margem. Demos o
salto mortal. Reconciliamo-nos conosco (PAZ, 1982, p. 161).

A terceira margem é, portanto, a meta perseguida nos des-


caminhos da paixão, da experiência mística e da imagem poé-
tica. Ao mesmo tempo, essa busca, esse desejo de precipitar-se
no outro, faz parte daquilo que nos constitui enquanto homens.
Destarte, essa poética surge como testemunho dessa procura pela
unicidade, coesão e continuidade, uma lamentação e um protesto
pela fragmentação e relatividade do mundo não cosmogonizado
pelo numinoso:

O outro está sempre ausente. Ausente e presente. Há um


buraco, uma cova a nossos pés. O homem anda desampa-
rado, angustiado, buscando esse outro que é ele mesmo. E
nada pode fazê-lo tornar a si, exceto o salto mortal: o amor,
a imagem, a Aparição (PAZ, 1982, p. 162).

A poesia surge, então, como reconciliação de elementos apa-


rentemente divorciados, sendo ela mesma erótica, o que acaba
com a proclamada “novidade”, apontada por muitos na poesia de
Adélia, de unir signos sagrados a signos eróticos e, ainda mais,
de entretecê-los tendo como pano de fundo temático as conside-
rações sobre a morte. Podemos dizer que a poesia é erótica por-
que reconcilia, em termos linguísticos, elementos aparentemente

62
cleide oliveira

irreconciliáveis, fundindo-os na imagem, que é quando o isto e


o aquilo perdem sua plasticidade e se cristalizam na metáfora.
Ao mesmo tempo, essa operação alquímica está estreitamente
vinculada à religiosidade, pelo fato de possibilitar uma cosmogo-
nização do mundo, não sendo gratuito que inúmeras narrativas
sagradas atribuam um poder mágico à Palavra, poder de criação
e cosmogonização ontológica, como se vê no Gênesis bíblico:
“E disse Deus: Haja luz, e houve luz”.
Octávio Paz chama a atenção para essa relação entre ero-
tismo, mística e palavra poética que apontamos na poética de
Adélia Prado, alertando-nos para a existência de uma dimensão
sagrada do mundo que nos cerca, que se nos oculta e se desve-
la em raros momentos de hierofania possibilitados pela experi-
ência erótico-amorosa, pela erupção do numinoso e pela ima-
gem poética.

Às vezes, sem causa aparente — ou como dizemos em es-


panhol: porque sì —, vemos de verdade o que nos rodeia.
E essa visão é, a seu modo, uma espécie de teofania ou apa-
rição, pois o mundo se revela para nós em suas dobras e
abismos como Krishna diante de Arjuna. Todos os dias atra-
vessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes
nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de
ladrilho e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a
rua dá para outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro
fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora
ficamos espantados por eles serem assim: são assim as coisas
ou são de outro modo? Não, isso que estamos vendo pela
primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, no
qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E
à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos
e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas

63
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao


mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá.
Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, sus-
pensos no meio da tarde imóvel. Adivinhamos que somos
de outro mundo. É a “vida interior”, que retorna. (PAZ,
1982, p. 161).

A revelação epifânica ocorre quando os olhos se abrem e “ve-


mos de verdade o que nos rodeia”, o que pode ser um muro
coberto de hera, a roda amassada do primeiro velocípede, o rosto
do amado ou as montanhas do Himalaia. A partir do desloca-
mento do olhar facultado por essas experiências epifânicas – po-
esia, mística e erotismo - a poética adeliana põe em ação uma
desestrumentalização das coisas, dos homens e da memória, que
renascem de si mesmas e testemunham de um outro mundo co-
berto de signos e espantos. E é desse mundo novamente encan-
tado que a obra de Adélia nos fala. A poesia possui a função de
“revelar a condição paradoxal do homem” (PAZ, 1982, p. 189):
o fato de que, tendo a temporalidade inscrita em sua pele, rea-
liza a reconciliação entre vida e morte pelo encontro com a pró-
pria outridade constitutiva, o que, em outras palavras, significa
a mudança de enfoque de uma transcendência positiva (Deus) e
a possibilidade de uma transcendência negativa (o homem-hu-
mano). Nesse processo, que tem muito de epifânico, de torna-se
consciente de que somos o tempo e o tempo é a nossa medida, a
poesia terá papel essencial que se assemelha, em diversos níveis,
ao papel das narrativas religiosas, conforme defendido por Octá-
vio Paz no fragmento abaixo:

Não são as sagradas escrituras das religiões que constroem o


homem, pois se apóiam na palavra poética. O ato pelo qual
o homem se funda e se revela a si mesmo é a poesia. Em

64
cleide oliveira

suma, a experiência religiosa e a poética têm uma origem em


comum: suas expressões históricas – poemas, mitos, orações,
exorcismos, hinos, representações teatrais, ritos, etc. – são
às vezes indistinguíveis; as duas, enfim, são experiências de
nossa “outridade” constitutiva. A religião, porém, interpreta,
canaliza e sistematiza a inspiração, dentro de uma teologia, ao
mesmo tempo em que as igrejas confiscam seus produtos. A
poesia nos abre a possibilidade de ser que todo nascer contém;
recria o homem e o faz assumir sua verdadeira condição, que
não é a separação vida ou morte, mas uma totalidade: vida e
morte num só instante de incandescência. (1982, p. 190)

Através da imagem, espaço no qual os contrários se fundem,


o homem é convidado a recriar a imagem do mundo, comungan-
do com o poeta dessa experiência de cosmogonização:

E o próprio homem, desgarrado desde o nascer, reconcilia-


-se consigo quando se faz imagem, quando se faz outro. A
poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por
isso é limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas
para transformar o homem e fazer “deste” ou daquele “ou-
tro” que é ele mesmo. O universo deixa de ser um vasto
armazém de coisas heterogêneas. Astros, sapatos, lágrimas,
locomotivas, salgueiros, mulheres, dicionários, tudo é uma
imensa família, tudo se comunica e se transforma sem ces-
sar, um mesmo sangue corre por todas as formas e o ho-
mem ser por fim, seu desejo: ele mesmo. A poesia coloca
o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao
seu ser original: volta-o para si. O homem é sua imagem:
ele mesmo e aquele outro. Através da frase que é ritmo, que
é imagem, o homem – aquele perpétuo chegar a ser – é. A
poesia é entrar no ser (PAZ, 1982, p. 50).

65
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Conjugando nomes e coisas, abolindo ou reconciliando sig-


nificados contrários sem suprimi-los, a imagem poética, “reino
onde nomear é ser” (PAZ, 1982, p. 48) faz com que a palavra se
imobilize, perdendo sua utilidade e intercambialidade: “a lingua-
gem, tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser linguagem.
Ou seja, um conjunto de signos móveis e significantes. O poema
transcende a linguagem” (PAZ, 1987, p. 48). Daí o fato de a
poesia não re-presentar a realidade, mas, sim apresentá-la a nós,
desvelando o véu que a sequência intermitente de acontecimentos
amorfos faz cair sobre o espanto do ser. A poesia é mística por-
que recupera o espanto ante o outro, o completamente outro, e
erótica porque desejante de reconciliação, naquilo que Octávio
Paz chamou de “núpcias dos contrários”.
E a poesia de Adélia é permeada pelo signo da reconcilia-
ção, promovendo uma sacralização do banal cotidiano, ao mesmo
tempo em que carnavaliza15 elementos do discurso sagrado; a
experiência religiosa adquire sentido de festa, de gozo e comu-
nhão mística muito distante do olhar entediado que encontramos
nos oficiantes modernos. No poema abaixo, Sítio, percebemos
uma operação de sacralização espacial por meio da qual a igreja
torna-se locus sagrado, repleto de signos que, por oferecerem um
arcabouço simbólico-significativo, protegem contra a loucura e o
caos da não realidade:

Igreja é o melhor lugar.


Lá o gado de Deus para pra beber água, rela um no
outro os chifres
e espevita seus cheiros que eu reconheço e gosto, a
modo de um cachorro.
È minha raça, estou
em casa como no meu quarto. Igreja é a casamata de nós.
Tudo fica seguro e doce,
Tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita.

66
cleide oliveira

Lá as coisas dilacerantes sentam-se ao lado deste


humaníssimo fato que é fazer flores de papel
e nos admirarmos como tudo é crível. Está cheia de
sinais, palavra,
cofre e chave, nave e teto aspergidos contra vento e
loucura.
Lá me guardo, lá me espreito a lâmpada me espreita,
adoro
o que me subjuga a nuca como a um boi. Lá sou
corajoso
E canto com meu lábio rachado:
glória no mais alto dos céus a Deus que de fato é espírito
e não tem corpo, mas tem
o olho no meio de um triângulo donde se vê todas as
coisas,
até os pensamentos futuros. Lugar sagrado, eletricidade
que eu passeio sem medo.
Se eu pisar
o amor de Deus me mata.

O melhor lugar é aquele em que o divino se manifesta (por


meio da hierofania) estruturando, pela simples enunciação da sua
presença, o caos em cosmos. O espaço sagrado oferece proteção
“contra vento e loucura” e Deus não é uma abstração teológica,
possuindo a concretude geométrica de “olho no meio do triângu-
lo”. A rotura se dá, possibilitando a comunicação entre os espaços
sagrado e profano. Entretanto, não há uma esterilização deste úl-
timo, com a previsível espiritualização: “Tudo é ombro a ombro
buscando a porta estreita” e, “o humaníssimo fato/que é fazer
flores de papel” não impede que a hierofania aconteça. O cotidia-
no é sacralizado, plenificando-se do divino sem rejeição ou disso-
nância com o corpo, na contramão de uma longa tradição cristã a
poeta apregoa uma mística que se assume naturalmente erótica,
na qual se adora “o que me subjuga a nuca como a um boi”.
67
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Poesia e morte

Um outro espaço tocado pelo sagrado que será diversas vezes


retomado por Adélia é o campo-santo (cemitério), considerado
lugar “bom de passear. / A vida perde a estridência, o mau gosto
ampara-nos das dilacerações” (poema Campo Santo, 1991), isso
porque é no campo-santo que a poeta constata que assumir a
morte como parte intrínseca da vida é tarefa para a qual é preciso
se empenhar em um longo aprendizado que tem na poesia seu
maior pedagogo. Pela encenação da morte cotidiana das coisas,
das gentes e dos momentos vividos (em especial as lembranças da
infância, retomada como o tempo idílico dos primeiros espantos
e descobertas) ocorre o resgate pela memória daquilo que ajuda
a tornar compreensível “a mensagem secreta, / o inefável sentido
de existir”. (poema A fala das coisas, 1991). A poesia manda um
recado de alegria que encontra na esperança da ressurreição seu
motor, e a voz poética anuncia: “Quero estar cheia de dor mas
não quero a tristeza” (poema Códigos, 1991), porque “Tristeza é
o nome do castigo de Deus/e virar santo é rever a alegria./Isso eu
quero”(poema Choro a capela, 1991).
Entretanto, a fragilidade dos homens não é mascarada ou
omitida, em uma espécie de glorificação do corpo. Se “que a fon-
te da vida é Deus / há infinitas maneiras de entender” (O modo
poético, 1991), uma delas é a consciência da própria temporalida-
de. A esperança cristã da ressurreição assume vital importância
para manter essa “ilusão fantástica” de uma vida além da vida
e alimentar a alegria que move esse estar- no-mundo religioso.
Veja-se o poema Pistas (1991):

Não pode ser uma ilusão fantástica


o que nos faz domingo após
domingo visitar os parentes insistir

68
cleide oliveira

que assim é melhor, que de fato


um bom emprego é meio
caminho andado.
Não poder ser verdade
que tanto afã escave na
insolvência. Há voos
maravilhosos de ave,
aviões tão belos repousando nos
campos e o que é piedoso no morto:
não seu sexo murcho,
mas suas mãos empenhadas sobre o peito.

O reino do céu desejado é em tudo semelhante ao reino dos


homens, com uma única diferença: a morte foi derrotada e o
tempo se desdobra ciclicamente, permanecido sem fraturas, na
rotina perfeita que é própria do tempo sagrado16, como se verifica
no poema O reino do céu, abaixo:

Quando eu ressuscitar, o que quero é a vida repetida


sem o perigo da morte, os riscos todos, a garantia:
à noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descansaremos porque a sirene apita e temos que
trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus, para ganhar o
céu.

A constatação “morre-se” é inexorável, não obstante todo


insistente esforço para esquecê-la (cf. poema Bulha, 1991). Em
contraponto, leia-se o poema O dia da ira:

As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,

69
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

a mole carne tremendo entre as pernas vão desaparecer


quando soar a trombeta. Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram, como árvores,
como pedras,
exatos e dignos de amor. Quando o anjo passar,
o furacão ardente do seu voo vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.

É claro o diálogo com a mitologia judaico-cristã da ressur-


reição, presente de resto em grande parte da obra de Adélia. “As
coisas tristíssimas”, testemunho dessa arquitetura fragilíssima a
que chamamos humanidade, desaparecerão ao som da trombeta
apocalíptica e, com a certeza de que “mais Deus nos perdoará,
/ Ele que sabe o que fez ‹homem humano›” (poema Apelação,
1991), os habitantes da cidade esperam na praça por novos céus e
novos nomes, símbolo este último de novíssima identidade, pois,
como atesta o apóstolo Paulo, “as coisas velhas já passaram e eis
que tudo se fez novo” (2Cor 5:17, BIBLIA SAGRADA).
“A poesia, a mais ínfima, é serva da esperança”(Tarja, 1991)
e é também discurso profético que ressignifica o absurdo da exis-
tência, proclamando as boas-novas da salvação – a salvação do
niilismo e da suspeita de um insuperável nonsense nos projetos
humanos – em um permanente diálogo com o discurso cristão
que, entretanto, não se submete à sua moral platônica de mortifi-
cação do corpo e espiritualização das experiências erótico-amoro-
sas, porque convicta de que “sem o corpo a alma de um homem
não goza.” (poema A terceira via, 1991).
A poesia adeliana apresenta-se como testemunho desta vida
interior a que Octávio Paz alude. Se “a grande tarefa é morrer”

70
cleide oliveira

(poema Campo-santo, 1991), a morte não pode mais ser com-


preendida em oposição à vida, mas, sim, como parte intrínseca
dela. Viver é morrer e não apenas caminhar para a morte, como
o senso comum acredita, não sendo mero acaso que o sentimento
de plenitude advenha, quase sempre, da percepção de fugacidade
e efemeridade: o instante que se vive é também aquele que se
perderá no vivido, realizando-se no agora e abdicando de suas
potências e possibilidades. Entretanto, o homem encontra-se, na
maior parte do tempo, subjugado pela ilusão do tempo tripartido
em passado-presente-futuro, sem perceber que a morte engen-
dra-se em suas entranhas e que “sua graça, seu desastrado encanto
/ é por causa da vida” (poema Um homem habitou uma casa, 1991).
Seja prosa ou poesia, há na poética adeliana uma constante
afirmação de que os grandes temas – erotismo, mística e morte
(poema O modo poético, 1991) – são irrecusáveis à poesia, pois
essa se realiza na vida, que urge arrancando da poeta a declaração:

É difícil morrer com vida, é difícil entender a vida,


não amar a vida impossível.
Infinita vida que para continuar desaparece e toma outra
forma e rebrota,
árvore podada se abrindo,
a raiz mergulhada em Deus. (Um bom motivo, 1991)

Assim, fecha-se o círculo: erotismo e mística são faces de


uma mesma moeda, compondo aquilo que Bataille denomina
de movimentos para o sentimento de continuidade, salto sobre o
abismo existencial que nos separa do outro, do completamente
Outro17; movimentos em que a morte é antevista como horizon-
te-limite que dá o tom das realizações humanas e de seu vir-a-
-ser. E a poesia é código, veículo e guia para a compreensão de
que se “Deus mastiga com força a nossa carne dura”, “nem por
chorar estamos abandonados”. (poema A fala das coisas, 1991).

71
O poeta ficou cansado18

A sarça ardente

A religiosidade é um elemento inegável na obra de Adélia Prado,


quer se trate da prosa de ficção, quer de sua poesia. A própria
escritora irá, em suas muitas entrevistas, reiterar essa opinião e,
ao mesmo tempo, problematizar o rótulo de “poeta religiosa”
quando afirma que a poesia, à revelia dos poetas ateus, é intrinse-
camente religiosa: “eu não faço poesia religiosa, num sentido que
muita gente entende equivocadamente. O fato é que é a poesia
que é religiosa, ela é sagrada” (PRADO, 1996). Ora, se a poe-
sia é intrinsecamente religiosa, ainda quando o seu assunto ou
tema não seja identificado com nenhuma pretensão confessional,
o conceito de religiosidade deve ser mais bem investigado para
que seja determinada sua rentabilidade operacional em relação à
poética adeliana.
Em uma de suas entrevistas, significativamente intitulada
Mística e poesia (PRADO, 1997) Adélia nos dá uma definição
de poesia com a qual iniciaremos nosso percurso argumentativo:
“A poesia é a estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza

72
CLEIDE OLIVEIRA

fundada na beleza”. A poesia (que aqui não deve ser entendida


como gênero, mas como poiesis, arte que se realiza pela e na pala-
vra) torna-se para Adélia sinônimo de uma experiência que se ca-
racteriza pelo estranhamento do familiar e doméstico e tem como
conseqüência um sentimento de assombro/maravilhamento que
se assemelha à epifania religiosa. Essa é uma concepção de poesia
que remonta ao Romantismo, momento em que se articulam
fecundas aproximações entre as experiências poética e religiosa
que fundamentarão a estética moderna19, para a qual a arte acaba
por tornar-se o último reduto de experimentação do sublime e
do sagrado. Em Adélia são inúmeras as referências à poesia como
uma espécie de vestígio do sagrado que se perpetua no mundo
prosaico – “Rastro de Deus, ar onde ele passou, casa que foi Sua
morada a poesia é” (Solte os cachorros, 1999) – mas esse é um
rastro que se constrói a partir de um dramático encontro entre
humano e divino – “Que outra coisa ela é senão Sua Face atingi-
da/ da brutalidade das coisas” (1991, poema Guia). Note-se que
a poesia se interpõe entre o divino e o humano, sendo mais do
que código para traduzir a experiência do inefável e menos do que
uma experiência de Presença total e apaziguante, daí o inegável
sofrimento e angústia de um eu-lírico que, apesar de afirmar a
Presença divina, não desconhece do mundo Sua ausência. Se a
poesia é signo da ausência-presença do sagrado no mundo dos
homens, mesmo aquela sem nenhum “assunto” religioso é reli-
giosa, porque nos devolve um mundo que não se deixa aprisionar
em nossas teias discursivas, um mundo que nos causa estranheza
porque não transparente a nosso desejo de significação e presen-
ça20. A poesia torna-se linguagem perfeita exatamente porque
não é conteúdo ou assunto, mas um “caminho apócrifo de enten-
der a palavra/pelo seu reverso, captar a mensagem/pelo arauto,
conforme sejam suas mãos e olhos” (1991, poema Guia). Nesse
poema o que interessa notar é não tanto o apelo erótico e sensível

73
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

do sagrado que se anuncia pela palavra poética, e sim o relevo


destacado à materialidade dessa palavra; afinal, o que importa não
é “a mensagem”, mas o arauto, a concretude sedutora das mãos e
olhos do arauto-poeta.
A interseção que aqui faço entre sagrado e realidade não é
gratuita, sendo elaborada pela própria Adélia quando afirma que
a beleza (que em sua obra parece ser sinônimo de poesia) “revela
o real”, o que poderia levar algumas pessoas “a fugir ou temer”
esse poder da poesia (PRADO, 1997, p. 4-5). Por outro lado,
essa operação de desnudamento do real é percebida como algo in-
trinsecamente religioso, mas não no sentido que o senso comum
entende religiosidade:

A arte tem esse papel, que é como “correr uma corti-


na”... Você vê! É o caráter “epifânico” da poesia. Se ela não
faz isto, não acontece nada; mas se ela é verdadeira, acon-
tece. Esse momento de beleza é o momento profundo, de
profunda religiosidade. Você cai em adoração. Porque você
está vendo algo inominável.
Vocês já repararam num abacaxi? Todo mundo conhe-
ce um abacaxi. Que coisa difícil de conhecer um abacaxi.
Aquela coisa cascuda diante de você. Ele é impenetrável!
O abacaxi ou qualquer outro fenômeno, como uma árvo-
re... Mas se um artista pinta este abacaxi, faz pintura real
ou faz um poema, você fala: “Gente mas que coisa!”. Então
você vai lá na sua cozinha conferir o abacaxi que está lá. É
verdade, porque há um acontecimento revelador. A poesia
me faz perceber a pulsação das coisas. Isso que é poesia, e
a isso chamo também de experiência religiosa (PRADO,
1997, p. 5).

74
cleide oliveira

A revelação religiosa de que nos fala o fragmento acima não


é a de uma transcendência positiva, quer seja a de uma divindade
pessoal ou de qualquer outro tipo de pessoa, animal ou objeto
sagrado. É o mais prosaico abacaxi que aparece diante de nossos
olhos atônitos: a impenetrabilidade daquela “coisa cascuda” nos
devolve um mundo misterioso, inquietante e belo, alheio a nos-
sos esforços cognoscentes que desejam transformá-lo em objeto
apreensível. “Você cai em adoração. Porque está vendo algo ino-
minável”, mas Isso que se recusa à nomeação não é um deus, ou
uma figura divina, não é nem mesmo um arquétipo da beleza – a
natureza, o rosto da pessoa amada, a inocência de uma criança,
etc – é apenas e tão somente a áspera recusa de um abacaxi que
se torna acontecimento revelador de uma outra maior recusa: de
repente nos mostra um mundo impermeável a nossos discursos,
um mundo ao qual podemos aceder apenas esteticamente. E a
poesia é justamente esse “correr a cortina” de nossas representa-
ções, restituindo as coisas – inclusive o abacaxi – a si mesmas em
um processo que lembra a experiência mística, na medida em que
seja um esbarrar-se do intelecto com a impossibilidade de cog-
nição/representação de um Isso experimentado como alteridade
absoluta, não cognoscível21.
A concepção adeliana da relação entre realidade e religiosida-
de, sendo a poesia um elemento provocador da epifania do real,
pode ser aproximada das considerações de Mircea Eliade (2001)
sobre como o ‘sentimento de real’ das sociedades arcaicas – nas
quais predomina o pensamento mágico-mítico – se relacionava
estreitamente com uma concepção religiosa do mundo. Nessas
sociedades, segundo Mircea Eliade, realidade e sagrado se con-
fundiam, pois o homem das sociedades arcaicas pretende viver
o mais perto possível do sagrado, que é percebido em radical
oposição ao profano, isto é, partes da vivência humana marca-
das pela naturalidade e cotidianidade se opõem a forças mágicas,

75
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

transcendentes, que permeiam a natureza e as suas relações inter-


pessoais. Essa escolha se dá por que, “o sagrado equivale ao poder
e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está
saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo re-
alidade, perenidade e eficácia. A oposição entre sagrado/profano
traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou
pseudo-real” (ELIADE, 2001, p. 18). Na verdade tal escolha é
feita, segundo Eliade, por que o espaço sagrado é “o único que é
real, que existe realmente” (ELIADE, 2001, p. 25). Eliade desta-
ca que na consciência mítica, da qual não nos emanciparemos ja-
mais, realidade e sagrado são co-participes, ou seja, apenas é real
aquilo que foi tocado pelo numinoso, e realidade aqui não está
sendo usado no sentido comum de um conjunto de apreensões
sensíveis/inteligíveis verificáveis pela maioria, e sim de densidade
ontológica, potência criativa/destruidora, caos sempre em movi-
mento entre ser e não-ser onde deuses, homens, animais, plantas
e coisas interagem de forma imprevisível.
Por outro lado, a reflexão adeliana da experiência poética
como um “perceber a pulsação das coisas” (1997, p. 5) que causa
atração-fascínio e estranheza pode ser aproximada da definição
de sagrado de outro importante estudioso das religiões, o ale-
mão Rudolf Otto (2005), que adota uma perspectiva de análise
do sagrado em que são priorizados seus aspectos irracionais, até
então desprezados pelas interpretações do sentimento religioso
que se concentravam em suas manifestações institucionalizadas.
De acordo com Otto, é preciso “limpar” o termo sagrado das co-
notações morais que se impregnaram nele. Assim, ele opta pelo
termo numinoso (do latim numen, deus) para captar sua essência:
diante de uma realidade que não se assemelha em nada a reali-
dade humana ou cósmica, o homem experimenta uma reação de
nulidade e profunda dependência que se traduz em sensação de
aniquilação e terror diante do numinoso. O sagrado é mysteriun

76
cleide oliveira

tremendum, diante do qual experimentamos um “sentimento de


estado de criatura” que é exemplarmente ilustrado pelo episódio
bíblico de Moisés no Monte Sinai, onde, diante da manifesta-
ção hierofânica da sarça ardente, Moisés é intimado a se apro-
ximar com os pés descalços, “porque o lugar em que tu estás é
terra santa” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, Êxodo, cap. 3,
vers. 5). Irredutível a qualquer outra, a experiência do sagrado se
faz acompanhar pelos sentimentos de arrebatamento, fascinação
e espanto:

Pero el misterio religioso, el auténtico mirum es – para de-


cir-lo caso da manera mas justa – lo heterogéneo en absoluto,
lo thateron, anyad, alienum, lo extraño y chocante, lo que se
sale resueltamente del círculo de lo consuetudinario, com-
preendido, familiar, intimo, oponiéndose a ello y, por tanto,
colma el ánimo de intenso asombro (OTTO, 2005, p. 38).

O sagrado pertence ao inefável, à categoria do arrêton (indizí-


vel), categoria compartilhada pelo belo e o sublime. A linguagem
que tomamos para traduzir esse “totalmente outro” é ineficiente,
atuando por analogias para captar algo que é inexprimível e in-
cognoscível. Experimentar o sagrado significa arriscar-se, pois
não possuímos bússola para navegar nesses mares tempestuosos,
entretanto, esse é um risco do qual o homem religioso não pode
se isentar, pois ele é sedento do sagrado, pois “o sagrado é o real
por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida
e fecundidade” (ELIADE, 2001, p. 31). Interessante exemplo do
perigo que o contato com o sagrado implica encontramos no
livro de Êxodo: quando Moisés sobe ao monte Sinai para, pela
segunda vez, receber as tábuas com os mandamentos divinos para
o povo hebreu. Por quarenta dias e quarenta noites Moisés esteve
no monte convivendo com a presença divina, e não comeu ou

77
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

bebeu nesse período. Após esse tempo ele desceu do monte ao


encontro do povo israelita que o aguardava, entretanto, Moisés
não sabia que algo estranho havia acontecido com o seu pró-
prio rosto, o contato tão íntimo com o sagrado havia deixado
marcas em sua pele, e seu rosto resplandecia de forma estranha
e assustadora: “Olhando Arão e todos os filhos de Israel para
Moisés, eis que a pele do seu rosto resplandecia; e tinham medo
de aproximar-se dele” (BÍBLIA SAGRADA, 1985, Êxodo cap.
34, vers. 30). Os israelitas temiam não apenas o contato direto
com o sagrado — na primeira entrega das tábuas da lei eles,
que aguardavam Moisés ao pé do monte, retiraram-se apavorados
com a hierofania divina e disseram a Moisés: “Fala-nos tu, e nós
ouviremos; não nos fale IAHWEH, para que não morramos”
(BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, Êxodo, cap. 20, vers. 19) —
mas também o contato com aqueles que haviam sido sacralizados
pela presença divina. O estratagema de Moisés foi cobrir o rosto
com um véu enquanto falava aos israelitas, e descobri-lo quando
falava face a face com Deus: “quando Moisés terminou de lhes
falar, colocou um véu sobre a face. Quando Moisés entrava diante
de IAHWEH para falar com ele, retirava o véu, até o momento
de sair. Ao sair, dizia aos filhos de Israel o que lhe tinha sido
ordenado” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, Êxodo, cap. 34,
vers. 33-34).
Segundo Otto, o sentimento religioso nasce da experiência
de uma Presença plena e potente, impossível de apreensão cog-
noscível ou sensível (pois é um “totalmente outro”), experiência
da qual o homem deduz por inferência sua “falta”, ou seu “estado
de criatura” imperfeita. Inspirado nos estudos de Rudolf Otto, o
poeta mexicano Octávio Paz, que nos legou importantes ensaios
sobre a teoria da poesia, cunha o neologismo outridad que será
bastante elucidativo para a compreensão da relação entre poesia
e sagrado que estamos argumentando. Claramente influenciado

78
cleide oliveira

pela filosofia heideggeriana, Octávio Paz (1982, p. 155) busca


explicar as experiências-limites do sagrado, do erotismo e da po-
esia, segundo ele, “a experiência do sobrenatural é a experiência
do Outro”, uma experiência que causa tanto fascinação e atração
quanto estranheza, estupefação, paralisia de ânimo, assombro
(PAZ, 1982, p. 156), revelando uma Presença que “mostra o
verso e o reverso do ser” (PAZ, 1982, p. 157). Entretanto esse
Outro está no plano da imanência, no histórico, isto é, é o ho-
mem defrontado com sua própria contingência e temporalidade,
com aquilo que Heidegger chama de “rude sentimento de estar
(ou se encontrar) aí” e Rudolf Otto de “sentimento de estado de
criatura”. Logo, a experiência de outridade é aquela em que a
‘essencial heterogeneidade do ser’ vem à tona e o homem dá-se
conta da fissura intolerável entre ele e o Absoluto, percebendo-se
como destituído de inteireza, como um pro-jetar-se no vazio,
um inscrever-se na historicidade. Assim, ser-para-a-morte, o
homem é presença (ser) e ausência (não-ser), vazio e anseio pela
totalidade, vida e morte. A “redenção” dessa condição original de
carência — o paradoxo proposto por Octávio Paz de ser menos
do que se é22 — está em “viver” a morte como parte intrínseca
do movimento da vida, indo ao encontro desse outro que afinal
sou eu mesmo, meu projeto de homem. Limítrofe à religião, à
poesia e ao erotismo, a outridad é um experimentar a separação
e união “presentes em todas as manifestações do ser, desde as
físicas até as biológicas” (PAZ, 2003, p. 109), experiência que
não pode ser “provocada” ou “dirigida” pelo sujeito, pois não se
encontra no âmbito no cognoscível, muito embora acessível a to-
dos os homens mediante as experiências do erotismo, da religião
e da poesia23.
Para Octávio Paz há uma tensão latente e irrecusável entre
o homem (sua “essência”) e seu projeto de homem (existência):
“Todos estamos sós porque somos dois. O estranho, o outro,

79
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

é nosso duplo [...] Somos seu lugar, a marca de sua ausência?”


(PAZ, 1982, p. 162). A experiência de outridade (religiosa e/ou
erótica), que é sempre sagrada, promove a reconciliação – ainda
que pontual e epifânica – entre diferentes temporalidades (o que
fomos, o que somos, o que seremos) apaziguando o desejo que
nos move após ter-nos “arrancados” de nossas margens costu-
meiras pelo salto que paradoxalmente nos conduz de volta ao
sentimento de unidade e identidade que está nesse encontro com
o outro que nos constitui.

A fascinação seria inexplicável se o horror ante a “outrida-


de” não estivesse, pela raiz, cingido pela suspeita de nossa
identidade final com aquilo que nos parece tão estranho e
alheio. A imobilidade também é queda; a queda, ascensão;
a presença, ausência; o temor, profunda e invencível atração.
A experiência do Outro culmina na experiência da Unidade.
Os dois movimentos contrários se implicam. Atirando-se
para trás já se dá o salto para um adiante. O precipitar-se no
Outro apresenta-se como um regresso a algo de que fomos
arrancados. Cessa a dualidade, estamos na outra margem.
Demos o salto mortal. Reconciliamo-nos conosco (PAZ,
1982, p. 161).

Pela experiência do sagrado o humano vivencia seu próprio


vazio e seu estado de imperfeição e insuficiência original que vem
de nossa própria mortalidade, tendo a poesia24 um papel essencial
nesse processo, pois por meio dela o homem poderia se aceitar
enquanto contingência e finitude (PAZ, 1982, p. 175) e recriar-
-se enquanto imagem poética. No pensamento de Octávio Paz a
poesia é um chamamento a nossas origens sagradas, ainda quan-
do estamos falando de uma experiência do sagrado dentro da ma-
terialidade do corpo e da linguagem. Em um mundo sem pontos

80
cleide oliveira

fixos ou portulanos, a poesia é palavra irmã do mito que retoma


a tarefa de articular o inarticulado, recuperando uma experiência
de sacralidade por meio da palavra, isto porque o próprio homem
é uma metáfora de si mesmo, um “ser que se criou ao criar uma
linguagem”, em um gesto de transcendência que o separou do
“mundo natural” e o tornou para sempre uma imagem em per-
manente auto-definição (PAZ, 1982, p. 42).

O traço distintivo do homem não consiste tanto em ser um


ente de palavras quanto na sua possibilidade de ser “outro”.
E porque pode ser outro é um ente de palavras. Elas são
um dos meios que ele tem para se tornar outro. Só que essa
possibilidade poética só se realiza se damos o salto mortal,
isto é, se efetivamente saímos de nós e nos entregamos e
nos perdemos no “outro”. Aí em pleno salto, o homem,
suspenso no abismo, entre o isto e o aquilo, por um instan-
te fulgurante é isto e aquilo, o que foi e o que será, vida e
morte, num ser-se que é ser total, uma plenitude presente.
O homem já é tudo o que deseja ser: rocha, mulher, ave,
os outros homens e os outros seres. É imagem, núpcias dos
contrários, poema dizendo-se a si mesmo. É, enfim, a ima-
gem do homem encarnando o homem (PAZ, 1982, p. 220).

Paz advoga o poder da poesia para destruir a ilusão de uma
separação entre morte e vida, essência e existência, e com isso
“Descobrir a imagem do mundo no que emerge como fragmento
ou dispersão, perceber no uno o outro, será devolver à lingua-
gem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. “A poesia:
procura dos outros, descoberta da outridade” (PAZ, 2003, p.
102, grifo nosso). Experiência de outridade (encontro do homem
consigo mesmo, com a alteridade e com o sagrado) por excelên-
cia, a poesia pode cumprir o papel de reconciliar vida e morte,

81
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

conferindo potência de vida ao morrer e consciência da própria


temporalidade ao viver porque implica um corte significativo na
vivência temporal do homem. Na experiência poética o enca-
deamento presente-passado-futuro é quebrado, instaurando um
tempo cíclico, mágico-mítico, em que todos os tempos ferem a
consciência e a sensibilidade de forma potencialmente integrada,
de modo que o tempo da poiésis é de fuga ao mundo corriqueiro
da necessidade e das premências, é tempo festivo, inútil e excessi-
vo: tempo que escapa às necessidades do mundo da razoabilidade
e da economia. Ao instaurar esse corte temporal a poesia abre a
possibilidade de uma transcendência negativa, ou seja, inaugura
um tempo mítico e horizontaliza a experiência do sagrado, que
passa a se dar no âmbito da linguagem. A ênfase na linguagem
busca recuperar uma experiência primordial de sacralidade que
esteja divorciada de instituições e elaborações teológicas ou me-
tafísicas. A linguagem torna-se o lugar onde podemos recuperar
o espanto e um pensamento que se abra para pensar o “fora” de
nossos bem demarcados sítios da racionalidade e bom-senso.

Tudo o que eu sinto esbarra em Deus

Até o momento fizemos um percurso teórico que parte de uma


compreensão estética (da poeta Adélia Prado) vinculada à pers-
pectiva fenomenológica (dos teóricos Mircea Eliade e Rudolf
Otto) do sagrado para concluir que a opção religiosa é um ethos,
uma forma de estar-no-mundo onde sagrado e realidade se con-
fundem. A partir dessa adesão teórica nos aproximamos das re-
flexões poético-filosóficas de Octávio Paz – nas quais é evidente
a influência heideggeriana –, onde as experiências religiosa e es-
tética se identificam por serem abertura à uma alteridade absolu-
ta, não-discursiva e/ou inteligível. Em Octávio Paz a epifania se

82
cleide oliveira

dá a partir da consciência profunda de nossa própria temporali-


dade e pelo investimento em uma transcendência negativa na e
pela linguagem25.
Pretendo menos me deter nas interseções entre essas concep-
ções que tomá-las como ponto de partida para pensar a poética
de Adélia Prado tanto a partir de uma perspectiva religiosa strictu
sensu – o que é inteiramente pertinente dada a declarada con-
fessionalidade de sua obra – quanto pela ampliação do conceito
de religiosidade, nos moldes que Octávio Paz o faz, de modo a
abranger essa experiência de saber-se carne, sangue e vísceras,
porém sedento de transcendência, que é tão visceral na poéti-
ca adeliana. Devido a multiplicidade de abordagens possíveis da
questão religiosa em Adélia Prado, escolhi um corpus de poemas
cuja análise evidenciasse a tensão entre uma voz lírica que se
constrói como poeta-profeta da beleza e um Deus que se enuncia
(e se desnuda) por meio dessa palavra humano-divina. Interes-
sa-me aqui perceber um percurso que vai desde os primeiros
poemas de Bagagem (1976) até seus últimos livros (Oráculos de
maio, 1999; A duração do dia, 2010), no qual a voz humana e a
Presença divina são protagonistas de uma relação amorosa onde
a abissal assimetria entre as partes vai sendo progressivamente
negociada, ao mesmo tempo em que determinados símbolos e
alegorias literários e religiosos são revisitados, como por exemplo
a figura do poeta-vate tão frequente em Adélia26.
Inicialmente destaco o poema abaixo, Anunciação ao poeta
(1991), onde determinados pressupostos da lírica adeliana são
formulados:

Ave, ávido.
Ave, fome incansável e boca enorme,
come.
Da parte do Altíssimo te concedo

83
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

que não descansarás e tudo te ferirá de morte:


o lixo, a catedral e a forma das mãos.
Ave, cheio de dor.

Já em um primeiro movimento de aproximação percebemos


que a voz lírica não pertence nem ao poeta nem ao Altíssimo,
personagens que aqui se encontram intermediados por um ser
que, à julgar pelo título, é um Anjo – palavra que significa lite-
ralmente “mensageiro” – em ação semelhante à do anúncio feito
à Maria de sua gravidez divina. A saudação feita – Ave – se faz
acompanhar de um epíteto bastante significativo, ávido, que nos
versos subseqüentes serão reforçados por adjetivações do mesmo
campo semântico: fome incansável e boca enorme. O que sabemos,
nos versos iniciais, sobre esse a quem se destina o vocativo “Ave”
é de sua avidez e fome, e nos versos seguintes saberemos também
de seu cansaço (vs. 5) e sua dor (vs. 7). O chamamento ao poeta
se faz imediatamente acompanhar do imperativo “come” (vs. 3),
ordem que sincroniza uma fome incansável ao designo divino para
saciá-la, e de tal modo fome e dor se interconectam que não
saberemos dizer qual é exatamente a dádiva divina: se a avidez
sem limites pela concretude do mundo (vs. 6), se a forma visceral
como esse mundo sensível atinge ao poeta. Chamo atenção para
o sexto verso, onde uma explicitação desse “tudo” que lhe ferirá
de morte é feita. Nesse elenco de possibilidades exemplares é de
notar o uso de substantivos marcados pelos sentidos do olfato, da
visão e do tato: o lixo, resto rejeitado pela civilização do consu-
mo; a catedral, ícone da angustiada busca humana por transcen-
dência e beleza; a forma das mãos, prosaica lembrança do corpo
e da temporalidade nele inscrita. O que fere de morte o poeta – e
que é compreendido como uma espécie de dom divino – não é
a beleza no sentido estrito de harmonia/equilíbrio, e sim o es-
petáculo belo-terrível da nossa humanidade. Nesse momento é

84
cleide oliveira

interessante recuperar uma fala de Adélia Prado, em uma de suas


entrevistas, que se ajusta perfeitamente à construção da perso-
nagem “poeta” que aparece nesse e em outros poemas da autora.
Quando questionada sobre a relação entre o aspecto sensorial,
muito forte em sua poesia, principalmente em Bagagem, com o
desejo de transcendência, Adélia responde:

AP: [...] eu quero.... eu amo o mundo, eu amo a carne, a


matéria, eu gosto da matéria. Por isso a religião me dá uma
resposta extremamente, totalmente satisfatória. Porque ela
me promete a ressurreição da carne. Já pensou na delicia?
A ressurreição da carne, a recriação do mundo, do cosmos,
a restauração de toda matéria em Cristo, a ressurreição, en-
fim. Então, você ama realmente o barro, a cor, como cria-
turas, são criaturas também, elas têm valor em si mesmas,
não só em referência a mim, mas porque são criaturas de
Deus. Elas dizem uma coisa, elas têm uma fala. A cor ver-
melha fala uma coisa, a amarela fala outra. Acho que mais
é esse amor pela Criação, amor pelo concreto, pela carne,
pela matéria.
AH: E a partir daí você atinge a espiritualidade?
AP: Não é a partir daí. A espiritualidade já está, não veio
aí. Isso não é forma de chegar, já chegou (LOPES, 1995, p.
28-29, grifo nosso).

A ressurreição da carne, dogma cristão dos mais importan-


tes, é um dos fundamentos da poética adeliana: é nessa esperança
de redenção da temporalidade que o discurso da alegria, tão mar-
cante em Adélia, se construirá, como fica claro, por exemplo, no
poema O reino dos céu (1991), onde a corruptibilidade da carne é
vencida sem que isso represente uma espiritualização do corpo,
como se vê em versos como:

85
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Quando eu ressuscitar, o que quero é


a vida repetida sem o perigo da morte,
os riscos todos, a garantia:
à noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descansaremos porque a sirene apita/e temos de
trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu.

Esse aspecto sensorial e material é de fato imprescindível


para compreender certa sacralização e erotização do corpo que
ocorre na obra adeliana; porém chamo atenção a outro aspec-
to relacionado: o entendimento de que a dimensão sensível e
imagética da experiência religiosa (e também da poética) não é
acessória ou veiculo para determinado conteúdo e sim parte es-
sencial da mesma. Na poética adeliana a coisa palavra27 constitui
a própria experiência da linguagem poética, sem intervalos ou
fissuras conceituais e representativas, de tal modo que as palavras
são corpóreas, e “doem como um prazer”, a palavra poética não é
apenas abstração da percepção sensível de uma experiência: logo,
a poeta não quer “escrever coisas com palavras”, desejando antes
palavras “que se podem comer, de tão doces/de tão aquecidas,
corporificadas”, pois está convicta de que “o que existe são coisas/
não palavras”, o que requer a invenção de palavras-coisas que, ao
serem agrupadas em determinada forma dispensem “as coisas so-
bre as quais versavam”, como veremos no poema A rosa mística a
ser comentado. Mas antes leiamos Genesíaco (1991), que possui o
mesmo estilo mítico-profético do anterior e compõe um cenário
atemporal para a reflexão metapoética:

Um homem na campina olhava o céu. As estrelas


pareciam aumentadas, de tamanho brilho.

86
cleide oliveira

Estrela, ó estrela, estrelas


ele suplicou como se injuriasse.
Os que alimentavam o fogo
aproximaram-se admirados:
nós também queremos, repeti para nós.
Ó noite de mil olhos, reluzente.
Os vocativos
são o principio de toda poesia.
Ó homem, ó filho meu,
convoca-me a voz do amor,
até que eu responda
ó Deus, ó Pai.

O titulo do poema possui dupla referência: em nível semân-


tico mais elementar genesíaco remete à gênese, origem, geração
ou nascimento de algo. Aparentemente ao nascimento desse ser
híbrido entre sacerdote e poeta, ou talvez a um tipo de teogonia
onde a linguagem ocupa posição central, o que pode ser consta-
tado pela observação dos versos iniciais onde um homem – redu-
zido aqui ao substantivo comum – articula seu espanto diante da
imensidão de um céu estrelado com palavras que são, ao mesmo
tempo, corriqueiras e mágicas, e tem como resposta uma voz
provisoriamente chamada de voz do amor, depois reconhecida
pelos vocativos Deus e Pai (vs. 14). Outra referência evocada pelo
titulo é o primeiro livro da Bíblia cristã e da Torá judaica, o Gê-
nesis, livro que narra as origens do universo e da vida segundo
a mitologia judaico-cristã. Então, mais uma vez fala-se aqui em
origens míticas – da vida, dos deuses ou do oficio mágico-sacer-
dotal de enunciação poética –, narrativa que, como é próprio dos
mitos, é protagonizada por homens e deuses. Quando prestamos
atenção aos versos finais do poema (vs. 11-14) revela-se uma
dimensão importante dessa relação entre o homem que “suplica

87
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

como se injuriasse” e essa voz do amor que o convoca (vs. 11) e


parece depender da resposta humana para se re-conhecer como
Deus e Pai (vs. 14). Uma conclusão preliminar é a de que a po-
esia – metonimicamente assinalada pelo verso terceiro – nasce a
partir de uma experiência de assombro/maravilhamento diante de
“algo” que se apresenta como incognoscível e espantoso. É de se
notar que as palavras pronunciadas pelo homem-poeta – “Estre-
la, ó estrela, estrelas” – não se afastam da linguagem referencial
a não ser pelo modo como são pronunciadas (como um vocativo),
o que leva “aos que alimentavam o fogo” (vs. 5) a pedir para
que o homem-poeta compartilhasse com eles aquela experiência
epifânica. E que experiência é essa, poderíamos perguntar, e os
versos seguintes (8-10) nos informam que é tanto uma conju-
ração mágica com função de “neutralizar” o assombro diante de
uma natureza que se apresenta como alteridade absoluta quanto
uma descoberta do “principio de toda poesia”. Á pedido de seus
ouvintes esse homem-poeta refaz o vocativo inicial transforman-
do-o no belo verso “Ó noite de mil olhos reluzentes”, que nomeia
o inominável e conduz à constatação de que ali, na invocação
sagrada, estava o princípio de toda poesia. Além do inegável inte-
resse que tem a reformulação adeliana de uma antiga e recorrente
concepção de um parentesco originário entre mito, linguagem e
poesia, é no mínimo curioso que a invocação humana (vs. 3 e 8)
seja exatamente simétrica ao chamamento divino do 11º verso –
“Ó homem, ó filho meu”-, o que nos leva à conjectura de que es-
sas vozes – humana e sagrada – se correspondem e co-pertencem.
O poema A rosa mística (1991) prolonga essas reflexões meta-
poéticas por meio da ficionalização da gênese do eu lírico adeliano.

A primeira vez
que tive consciência de uma forma
disse à minha mãe:

88
cleide oliveira

dona Armanda tem na cozinha dela uma cesta


onde põe os tomates e as cebolas;
começando a inquietar-me pelo medo
do que era bonito desmanchar-se,
até que um dia escrevi:
‘neste quarto meu pai morreu,
aqui deu corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte’.
Entendi que as palavras
daquele modo agrupadas
dispensavam as coisas sobre as quais versavam,
meu próprio pai voltava indestrutível.
Como se alguém pintasse
a cesta de d. Armanda
me dizendo em seguida:
agora podes comer as frutas.
Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?
E por que contristava a alma
sendo ela própria alegria
e diversa da luz do dia,
banhava-se em outra luz?
Era forçoso garantir o mundo
da corrosão do tempo, o próprio tempo burlar.
Então prossegui: ‘neste quarto meu pai morreu...
Podes fechar-te, ò noite,
teu negrume não vela esta lembrança.’
Foi o primeiro poema que escrevi.

89
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Como nos poemas Anunciação ao poeta e Genesíaco, há refe-


rência ao momento de gênese poética, porém sem os contornos
míticos dos anteriores. Já não se trata do arquétipo de poeta, mas
sim de uma figura historicamente construída e imersa em tem-
poralidade que a partir de uma epifania estética (vs. 1-2) constata
a fragilidade das construções humanas (vs. 6-7). Chamo atenção
para a relação de causalidade que se constrói, nesse poema, en-
tre epifania estética (“A primeira vez/que tive consciência de uma
forma”), angústia da finitude (“Começando a inquietar-me pelo
medo/do que era bonito desmanchar-se”) e poesia (“Entendi que
as palavras/daquele modo agrupadas/dispensavam as coisas sobre
as quais versavam”). As interseções que aqui se estabelecem entre
a epifania do cotidiano, tão própria da poesia adeliana, e a per-
cepção angustiada de temporalidade humana são bastante escla-
recedoras: o poema é fruto da dupla vivência da beleza (vs. 1-5) e
da morte (vs. 6-7), vivência que deflagra a necessidade imperiosa
de defender a frágil beleza sensível contra a impermanência do
mundo e do eu. A poesia, “a mais ínfima, é serva da esperança”
(poema Tarja, 1991) na exata medida em que torna possível “dis-
pensar as coisas sobre as quais versa” (vs. 16) e “burlar o próprio
tempo” (vs. 29), conferindo eternidade e universalidade ao tran-
sitório e particular da experiência humana, como a própria Adélia
diz claramente em conferência já citada:

Qualquer arte - pintura, música, cinema, literatura - onde


eu consiga falar da minha pequena dor pessoal, do meu
pequeno medo, do meu pavor, do meu pânico, da minha
doença, da minha paixão; onde eu encontre uma linguagem
para isto, um signo, me descansa... E eu falo: ‘Ah, tá bom...’
Quando você vê um poeta falar da sua dor, você fala: ‘Ai,
que bom; ele também sabe como é!’ Quando você encontra
isto no cinema, na música, você fica consolado, porque a sua

90
cleide oliveira

pequena dor foi elevada a um patamar de universalidade,


porque o artista ofereceu para você um espelho: ‘Olha, não
se assuste, você é humano, isto compete a nós humanos’.
Este é o papel da arte: oferecer para mim, que sou pequeno,
um signo, um sinal de natureza universal, e que ‘segura’
para mim aquela pequena emoção (PRADO, 1997, p. 2).

Nesse metapoema, além das reflexões sobre a função e o


papel da poesia na humana empreitada de iludir o tempo, um
outro poema – o primeiro – se elabora (vs. 9-13; 30-32), com
surpreendente unidade temática em relação às reflexões em cur-
so. A declaração final – “Podes fechar-te, ó noite, / teu negrume
não vela esta lembrança” – é síntese não apenas do poema, mas
de toda a poética adeliana, na qual o discurso da alegria se gesta
não pela negação da morte e da dor, mas sim como um corajoso
(temerário?) enfrentamento daquilo que em nós é frágil desejo de
beleza e unidade convivendo com nosso “ruidoso desamor/fel em
gotas de silêncio segregado” (poema Apelação, 1991).

Me imploram amor Deus e o mundo

Quero me deter agora no poema que dá título a esse ensaio – O


poeta ficou cansado – e que abre o livro Oráculos de maio, publi-
cado em 1999, após 11 anos sem Adélia Prado publicar poesia28.
A referência imediata que o poema traz implícita é a de Jonas,
o profeta desobediente e fujão que após ter recebido uma or-
dem divina direta para a ir à metrópole Nínive, toma caminho
diametralmente oposto (para Társis, local que era uma espécie
de “fim do mundo” para os hebreus da época) e acaba dentro da
barriga de um grande animal marinho, que a tradição popular
entendeu ser uma baleia (BÍBLIA DE JERUSÁLEM, 1997).

91
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Leiamos o poema:

Pois não quero mais ser Teu arauto.


Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Olha aqui cidadão,
Repara, minha senhora,
neste canivete mágico:
corta, saca e fura,
é um faqueiro completo!
Ó Deus
me deixa trabalhar na cozinha,
nem vendedor nem escrivão,
me deixa fazer Teu pão.
Filha, diz-me o Senhor,
Eu só como palavras.

O poema se inicia com uma conjunção explicativa (pois) que


localiza a voz lírica como resposta a um suposto questionamento
divino. É um poeta cansado que declara sua recusa a ser arauto
desse Tu oculto, e ainda retruca com perguntas, um tanto mal-
criadas, ao interlocutor invisível: a) porque apenas ele – o arauto
reticente – deve ir por destinos que não escolheu se não é o único
que possui voz? (vs. 4-5); b) já que a voz divina é mais potente

92
cleide oliveira

que a humana, porque não grita, Ele mesmo, sua mensagem (vs.
5-6)?; c) a conclusão irritada dos versos 9-11 é que “tudo progre-
diu na terra”, porque então a insistência anacrônica em métodos
arcaicos, e aqui a figura de comparação para o poeta-profeta é a
de um caixeiro-viajante a percorrer inimagináveis distâncias para
vender suas espantosas quinquilharias.... Mas, inesperadamente,
o tom desse quase monólogo muda a partir do 17º verso, passan-
do da exasperação à bajulação: o poeta não quer mais se arriscar
em geografias distantes, quer estar ali, no recanto mais recôndito
e doméstico da casa, matando a fome divina com o mais simbó-
lico e nobre alimento: o pão. Toda a insolência inicial se arrefece
no pedido, agora humilde, de que lhe seja dada permissão para
aposentar-se como arauto divino, mas a surpreende resposta (vs.
21-22), apesar da doçura com que é proferida, não deixa dúvidas
que o pedido foi negado. Agora identificado como Senhor, o Tu
do 5º verso desarma poeta e leitor quando afirma que seu único
alimento são as humanas palavras (vs. 22), daí que o imperativo
do oficio de poeta-sacerdote não ser apenas humano, mas sobre-
tudo divino.
Retorna nesse poema uma questão que foi abordada na lei-
tura dos poemas Anunciação ao poeta e Genesíaco, mas que apa-
recem aqui de forma mais explicita: a noção de uma interde-
pendência orgânica entre o divino e o humano quando se trata
da realização poética. Um Deus que só se alimenta de palavras
é, em alguma medida, um Deus a quem falta algo que apenas
poderá ser suprido por um dos mais contingentes bens humanos:
a linguagem. Dos primeiros aos últimos livros de sua poesia é
possível perceber um percurso - que não é linear ou progressivo,
parecendo-se mais como uma espiral em curvas arriscadas – de
enfrentamento entre voz poética e voz divina. O que me parece
digno de nota nesse percurso é uma tentativa de demarcação de
espaços de convivência e mútua cooperação entre o poeta e o

93
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Deus, e um poema exemplar para demonstrar essa argumentação


é Direitos Humanos:

Sei que Deus mora em mim


como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.

A afirmação do primeiro verso nos remete diretamente ao


apóstolo Paulo, que em sua Carta aos Coríntios admoesta: “Não
sabeis vós que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
está em vós e que recebestes de Deus? ... e que, portanto, não
pertenceis a vós mesmos?” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985,
I Coríntios, cap. 3, vers. 19). Entretanto, o reconhecimento dos
direitos de posse desse inusitado hóspede não silencia o grito de
liberdade do último verso: dizer que essa letra me pertence é
afirmar orgulhosamente uma potência humana – a escrita – que
poemas como Anunciação ao poeta (do primeiro livro adeliano)
não fazia suspeitar. O que podemos perceber nos últimos livros
adelianos é que a relação poeta-Deus vai ficando progressiva-
mente menos assimétrica, aproximando-se em alguns poemas de
uma clara co-dependência, como no ousado Consangüíneos, do
último livro (A duração do dia):

Não há culpados para a dor que eu sinto.


É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor
como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.
Se me ajudar um remédio a respirar melhor,
obteremos clemência, Ele e eu.

94
cleide oliveira

Jungidos como estamos em formidável parelha,


enquanto Ele não dorme eu não descanso.

Não é mais apenas o poeta que é “cheio de dor” e sofre “feri-


do de morte” pela beleza do mundo (poema Anunciação ao poeta,
1991). Agora, em “formidável parelha”, Deus e eu-lírico (frequen-
temente ficionalizado como poeta-profeta na poesia de Adélia
Prado) se procuram em busca de clemência e descanso (vs. 5 e 7).
É preciso notar que não há uma hierarquia convencional em
ação: Deus pede amor como um filho à mãe que o rejeitou, e o
próprio eu-lírico necessita de prosaica medicação para respirar
melhor antes de poder atender Aquele que o convoca com dor.
A declaração inicial do primeiro verso apazígua qualquer tentati-
va de encontrar culpados para o problema do sofrimento, huma-
no e, nesse caso, também divino. Sofrem ambos, homem e Deus,
mas o pronome reflexivo do segundo verso (“me”) parece indicar
que, de algum modo, o sofrimento humano seja reflexo do so-
frimento divino: “É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor”.
Assim, a ousadia não é pequena, não se trata mais apenas de
afirmar um espaço de independência em relação ao divino, como
no poema anterior Direitos humanos, mas sim de uma construção
de personas onde Deus e poeta são aparentados (consanguíneos,
ou seja, possuem laços de sangue e identidade genética), mas
tal parentesco é apenas explicitado por um modo de sentir dor
(vs. 2-3) e um modo de buscar consolo, em outras palavras, pelo
afeto compartilhado.
Em outro poema de Oráculos de maio, com interessante ti-
tulo de Ex-voto, outras pistas para desvendar essa relação in-
trincada entre poeta e divino são dadas. O poema é anterior à
Consangüíneos, e não vai tão longe quanto esse nas afirmações
de um co-pertencimento e dependência entre divino e huma-
no, apenas acrescenta outro elemento ao enigma: a afirmação da

95
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

linguagem poética ser capaz de “segurar” e assegurar o mundo


contra a finitude29, e de que justamente essa capacidade, absolu-
tamente humana, nos tornaria mais “ricos” que Deus. Leiamos
ainda esse último poema:

1. Na tarde clara de um domingo quente


2. Surpreendi-me,
3. intestinos urgentes, ânsia de vomito, choro,
4. desejo de raspar a cabeça e me pôr nua
5. no centro de minha vida e uivar
6. até me secarem os ossos:
7. que queres que eu faça, Deus?
8. Quando parei de chorar
9. O homem que me aguardava disse-me:
10. ‘você é muito sensível, por isso tem falta de ar’.
11. Chorei de novo porque era meio verdade
12. e era também mentira,
13. sendo só meio consolo.
14. Respira fundo, insistiu, joga água fria no rosto,
15. vamos dar uma volta, é psicológico.
16. Que ex-voto levo à Aparecida,
17. se não tenho doença e só lhe peço a cura?
18. Minha amiga devota se tornou budista,
19. torço para que se desiluda
20. e volte a rezar comigo as orações católicas.
21. Eu nunca ia ser budista,
22. por medo de não sofrer, por medo de ficar zen.
23. Existe santo alegre ou são os biógrafos
24. que os põem assim felizes como bobos?
25. Minas tem coisas terríveis,
26. a Serra da Piedade me transtorna.
27. Em meio a tanta rocha

96
cleide oliveira

28. de tão imediata beleza,


29. edificações geridas pelo inferno,
30. pelo descriador do mundo.
31. O menino não consegue mais,
32. vai morrer, sem forças para sugar
33. a corda de carne preta do que seria um seio,
34. agora às moscas.
35. Meu coração é bom
36. mas não aceita que o seja.
37. O homem me presenteia,
38. Por que tanto recebo,
39. Quando seria justo mandarem-me à solitária?
40. Palavras não, eu disse, só aceito chorar.
41. Por que então limpei os olhos
42. quando avistei as roseiras
43. e mais o que não queria,
44. de jeito nenhum queria àquela hora,
45. o poema,
46. o ex-voto,
47. não a forma do que é doente,
48. mas do que é são em mim
49. e rejeito e rejeito,
50. premido pela mesma força
51. do que trabalha contra a beleza das rochas?
52. Me imploram amor Deus e o mundo,
53. sou pois mais rica que os dois,
54. só eu posso dizer á pedra:
55. ès bela até à aflição;
56. o mesmo que dizer è Ele:
57. sois belo, belo, sois belo!
58. Quase entendo a razão da minha falta de ar.
59. Ao escolher palavras com que narrar minha angústia,

97
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

60. Eu já respiro melhor.


61. A uns Deus os quer doentes,
62. a outros quer escrevendo (PRADO, 1991).

Inicialmente quero me deter no título, Ex-voto, termo que


nos versos 45-46 é identificado como sinônimo da poesia. A ex-
pressão é uma abreviação do latim ex-voto suscepto – o voto re-
alizado – e se refere a uma prática devocional bastante antiga, e
ainda muito comum no Brasil e na América Latina, de se ofere-
cer à divindade um objeto (fotos, pintura, placas com inscrições,
figuras esculpidas em madeira ou cera representando partes do
corpo curadas por meio do voto, etc) ou ainda algum tipo de
sacrifício ou interdição pessoal como parte de um rito devocio-
nal. É um objeto cerimonial, simbólico e religioso que alguns
fiéis católicos costumam entregar para o santo de sua devoção
em reconhecimento de uma graça recebida, a qual foi alcançada
mediante um “voto” feito, isto é, de uma promessa. Esses objetos
possuirão sempre curiosas formas relacionadas com a graça re-
cebida, podendo assumir formas de pés, mãos, fígados, orelhas,
etc, ou ainda serem objetos que fazem referência concreta ao
problema solucionado, e os exemplos clássicos seriam as muletas,
roupas de recém-nascidos ou mesmo bonecas que se misturam
de forma aleatória nas salas de ex-votos. São postados em igrejas,
capelas, cemitérios ou locais consagrados, e podem ter sentidos
diversos, como de agradecimento por um pedido alcançado, pa-
gamento de uma promessa, consagração ou renovação de pacto,
voto de fé, etc. Para nossa argumentação, é interessante notar
que os ex-votos possuem sempre uma relação imagética/sensorial
com a promessa e a dádiva alcançada, por exemplo, na Sala dos
Milagres da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (BA) de chu-
teiras de futebol a teses de doutorado dividem o espaço sagrado
como ícones de bênçãos recebidas. Um ex-voto nunca é signo

98
cleide oliveira

abstrato e arbitrário de uma experiência votiva, mas sim um ícone


que atualiza para o devoto tanto a semântica do sofrimento, da
doença e do desejo quanto a da esperança, da fé e da gratidão
amorosa a ele relacionadas.
O poema em análise é um pouco mais extenso do que os an-
teriores, entretanto nele encontramos a idêntica unidade temática
e uma mesma intenção reflexiva que o faz dobrar-se sobre si mes-
mo, revelando a compreensão adeliana do fenômeno poético e de
sua atuação e “papel” na vida humana. Apenas com fins didáticos
quero dividir o poema em cinco partes, o que nos permitirá vi-
sualizar alguns elementos interessantes para a análise, são elas:
a) do verso 1-7 temos uma voz lírica feminina que em extrema
angústia faz exasperada pergunta (vs. 7) a uma voz identificada
como Deus; b) do verso 8-17, após ter sido confortada, sem re-
sultados efetivos, pelo homem que a aguardava, a persona lírica
inesperadamente lança ao ar outra pergunta – agora sem desti-
natário -: qual ex-voto levar à Aparecida se não há nela doença
identificável, apenas um desejo de cura?; c) do verso 18-40 temos
reflexões dispersas, aparentemente ditadas pela livre associação,
mas que quando observadas de perto revelam girar em torno das
irrecusáveis questões éticas do sofrimento humano, do Mal e da
culpa; d) os versos que vão de 41-52 iniciam com uma declaração
de recusa a toda palavra, mas terminam com a confissão de ser
ilusória tal recusa, pois o poema rejeitado, juntamente com a
beleza das roseiras, já se gesta nesse lamento, e faz o sujeito lírico
“limpar os olhos” para melhor perceber sua beleza; e) nos versos
finais (53-63), a palavra poética é assumida como uma potência
humana capaz de seduzir até a Deus, e a vocação poética e profé-
tica do poeta é reafirmada como designo divino.
Se inicialmente o sujeito-lírico recusa a palavra poética (vs.
40), por motivo que parece estar relacionado ao potencial de su-
blimação da mesma, a partir dos versos 40-51 o poema vai ser

99
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

identificado ao “o que é são em mim” (vs. 48) e progressivamen-


te somos conduzidos à compreensão de que a poesia nos salvará
(como afirma o poema “Guia”, presente na obra Bagagem) por ser
uma possibilidade de transcendência, tanto no sentido de subli-
mação da dor pela criação estética quanto por nos dar algo que
a Deus falta: a capacidade de, diante da beleza – que pode ser
física (“a pedra”) ou metafísica (“Deus”) –, transformar o silêncio
epifânico em palavra inaugural que burla o tempo ordinário e nos
insere no tempo festivo do sagrado.
A poesia possui função de segurar a beleza do mundo, mas o
conceito de beleza adeliano transcende os limites da estética clás-
sica ou da ditadura dos corpos perfeitos que marca a cultura a nós
contemporânea. Belo será o que punge e grita de vida, de dor, de
horror, de medo e de esperança e revela o mistério do humano
corpo, apontando para a sacralidade do existir30, pois, se “tudo o
que eu sinto esbarra em Deus”, a experiência de transcendência
ocorre no miúdo do cotidiano e a beleza não será encontrada no
extraordinário, e sim em pequenas vivências do homem-humano
que aparecem desfiadas sem folclore ou disfarce na poesia ade-
liana, cujo grande escândalo será o de afirmar sem culpas que
“o grande escuro é Deus/ e forceja por nascer da minha carne”
(poema Nigredo, 1991).
Os versos finais (58-62) confirmam a analogia estrutural que
aparece desde o título entre poema e ex-voto, sendo ambos sa-
crifícios amorosos depositados aos pés de um Deus que quer (vs.
61) a alguns doentes e a outros escrevendo. Entretanto, antes de
um apressado julgamento desses versos inquietantes, passíveis de
serem lidos como afirmação/legitimação de um Deus sádico que
se alegra com o sofrimento humano, lembro de versos anteriores,
onde esse mesmo Deus aparece fragilizado, “implorando amor”
(vs. 52) ao poeta, aparentemente estando esse amor intrinseca-
mente relacionado à humana linguagem poética. A poesia parece

10 0
cleide oliveira

ser o fio de Ariadne a unir Deus e poeta em laços que não pode-
mos de todo compreender: se Ele é um Deus que só come pala-
vras (poema O poeta ficou cansado), o poeta é aquele que “respira
melhor ao narrar sua angústia”.
Por fim, uma última observação: muito embora na poética
adeliana o ofício do poeta seja compreendido de forma similar
a uma missão profética, a relação que nela se estabelece entre
o divino e o humano não é profissional, mas erótico-amorosa,
sujeita a desânimos, inquietações, cansaços, desistências e recon-
siderações mútuas, como ocorre de fato nos prosaicos relaciona-
mentos amorosos.

101
Em roda de mim

A memória instala a lembrança no sagrado.


Pierre Nora

Na fortuna crítica de Adélia Prado, em sua maior parte concen-


trada em teses e dissertações, dois dos traços mais freqüente-
mente destacados são o memorialismo poético e a poetização do
cotidiano, temas que aparecem de forma concentrada em seus
primeiros livros (Bagagem, de 1976 e O coração disparado de
1978) e de forma diluída no decorrer de uma obra que já abrange
15 livros, em prosa e poesia. Angélica Soares, por exemplo, cha-
ma atenção para a autoconsciência “da memória como promoto-
ra de um modo fugidio de experienciação, que é inalienável da
existência humana” (SOARES, 2011, p. 35); Ubirajara Moreira
(MOREIRA, 2000, p. 93) fala de uma verdadeira “poética da
casa”, onde o espaço doméstico, naturalizado como feminino e
posto em oposição depreciativa ao espaço público, masculino,
será lócus privilegiado pela poeta, pois ali se gestam e “se guar-

102
CLEIDE OLIVEIRA

dam as lembranças de objetos e situações que marcaram profun-


damente o sujeito lírico em suas vivências afetivas e espirituais”.
Sobre a presença desse universo íntimo e cotidiano Fátima Ali
dirá: “Um dos aspectos mais evidentes da poesia de Adélia é o seu
tom despudoradamente íntimo; a poesia de Adélia é toda voltada
para a intimidade: a intimidade da vida interiorana, a intimidade
da casa, da família, do corpo e, sobretudo, a intimidade relacio-
nada à vida e às coisas dessa mulher a quem a poeta dá voz em
toda a obra” (ALI, 2012, p.08). Para Suzi Sperber (SPERBER,
1996, p. 42) “O ponto de partida da poesia (de Adélia Prado) é a
palavra comum, assim como o trampolim para a transcendência
é a mesquinhez da vida humana. O que de mais mesquinho que
o próprio quotidiano, ou o quotidiano da mulher?”. Margarida
Salomão (1986, p. 10), em prefácio ao primeiro livro de Adélia,
desnudará a coluna vertical que sustenta sua poesia fazendo notar
que aí “o canto de plena louvação à vida se interrompe na consi-
deração do absurdo da morte”, mas a meditação sobre a finitude
(não apenas do corpo, mas também da memória do vivido) vai
encontrar no rememorar poético o fundamento e a substância
que garante “o mundo/ da corrosão do tempo” e pode “o próprio
tempo burlar” (poema A rosa mística, 1991).
Como se pode ver pelas referências citadas, a interseção entre
memorialismo poético e representação do doméstico cotidiano
tendo como sujeito de enunciação lírica uma voz feminina de
“tom despudoradamente íntimo” é característica bastante notada
na poética de Adélia Prado. Essa escrita de si projeta-se como
delimitação e afirmação de uma dicção singularizada cujas prin-
cipais características são: a) a filiação a uma tradição moderna
e modernista de poetas que pensam o estar no mundo como
não-lugar31 e, ao mesmo tempo, a afirmação de marcas de um
lirismo plasticamente desdobrável; b) a localização do discurso
poético em uma espacialidade doméstica e feminina, assumida

103
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

de forma surpreendentemente afirmativa; e c) a assunção de um


ethos religioso que tem como principal característica a vivência
do corpo e da matéria como espaços abertos para a experiên-
cia místico-epifânica. Nesse capítulo iremos examinar cada uma
dessas marcas distintivas do memorialismo adeliano, e para tanto
nos concentraremos nos livros Bagagem (1976) e O coração dis-
parado (1978), onde a questão que nos interessa se faz sentir de
forma contundente.

···

Em 1976 Adélia Prado estréia no cenário da literatura brasileira


com o livro Bagagem, que se abre com o poema Com licença
poética, em claro diálogo com o Poema de sete faces, também pri-
meiro poema de Alguma poesia, livro de estréia de Drummond
publicado em 1930. A disposição do poema como primeiro não
parece aleatória, antes revela intenções estéticas e éticas que, por
sua vez, anunciam rumos que sua poética trilhará desde então.

Quando nasci um anjo esbelto,


desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.

104
cleide oliveira

Minha tristeza não tem pedigree,


já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

A começar pelo título, todo poema é uma provocação: li-


cença poética é um ardil previsto e utilizado pelos poetas para
extrapolarem determinadas regras de ritmo, métrica, sintaxe, vo-
cabulário e tom adequado e deles esperado pela cultura literária
de um determinado tempo32. É uma liberdade autoconcedida à
bem da expressividade poética. Por outro lado, “com licença” é
um modo coloquial de pedir permissão para entrar em algum
recinto privado ou participar de um diálogo já estabelecido. O
título do poema encena dois movimentos que, sendo díspares e
conflitantes, se auto-anulam ou auto referendam: é tanto prerro-
gativa de liberdade que se reivindica (“licença poética”) quanto
educado pedido de permissão (“com licença”) para que a nova voz
se junte ao coro da lírica brasileira que tem em Drummond o po-
eta mais representativo do cânone modernista. Lembro ainda das
ressonâncias de Baudelaire no poema drummondiano, pensando
especificamente no poema O Albatroz. Baudelaire, precursor da
tradição lírica moderna retoma o apelo romântico do poeta-va-
te, ser de exceção em descompasso com os valores da sociedade
burguesa, sendo comparado nesse poema à uma enorme ave ma-
rinha que, mesmo sendo senhor dos azuis torna-se “sem jeito e
envergonhado” ao ser obrigado a se arrastar no convés “em meio
à corja impura”, pois “As asas de gigante impedem-no de an-
dar”33. Tão desajustado como a enorme e desajeitada ave marinha
de Baudelaire, o sujeito lírico drummondiano se anuncia gauche
por meio de um anjo torto, que ainda por cima é “desses que vi-
vem nas sombras”, mais outsider impossível34. Sinuoso como uma

105
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

serpente35 o poema adeliano propõe novas mitologias, sem de


todo recusar a idealização mítica: é um anjo esbelto esse, e toca
trombeta, o que nos remete a imagens bíblicas e apocalípticas
que tão bem se casam com o imaginário de Adélia. Se a missão
do poeta drummondiano é estar à deriva do mundo – ser gauche –
o imperativo adeliano será “carregar bandeira”, possível referência
a um problemático engajamento, visto que se trata de “espécie
ainda envergonhada” e o cargo pesado demais. Cabe lembrar aqui
como era intensa a demanda por comprometimentos nas artes
e na literatura naqueles idos anos 70, época de contracultura e
recrudescimento no combate à ditadura no Brasil. É conhecida a
história da escritora, ainda inédita e anônima, ter enviado alguns
poemas para o Jornal Pasquim, que à época abriu espaço para
revelação de novos poetas brasileiros. A recepção do Pasquim,
então no auge de um discurso político-engajado e contestador,
principalmente pela via do humor, foi desastrosa: a poeta foi ri-
dicularizada e comparada a uma “lavadeira nanica que perdeu o
sabão na beira do rio”. Para Antônio Hohlfeldt essa anedota sina-
liza “o desafio cultural e literário” que enfrenta uma “sintaxe tão
pessoal” como a de Adélia. Há na poesia brasileira de então duas
vertentes para serem trilhadas: os variados experimentalismos
formais ligados ao concretismo e/ou ao tropicalismo (a partir dos
anos 50) e uma vigorosa retomada da poesia político-ideológica
logo após o Golpe de 64. Por outro lado, em tempos de lutas
pelos direitos civis e políticos das minorias, especialmente das
mulheres, Adélia Prado manteve-se conscientemente afastada de
uma fácil e até esperada vinculação aos movimentos feministas,
muito embora próxima de uma surpreendente afirmação do uni-
verso e corpo feminino desejante. Hohlfeldt assim sintetiza as
recusas feitas pela sua poesia:

106
cleide oliveira

De um lado Adélia parecia ultrapassada porque aparentava


dar um passo atrás na luta das mulheres por seu discur-
so e espaço. Por outro lado, o machismo, sempre presente
nos processos culturais vigentes em nosso país, desgostava
desse mesmo discurso pelo excesso de sacristia que parecia
nele interferir. Mais que tudo, Adélia não fazia experimen-
talismos formais, insistia em uma poesia de idéias – ain-
da que através de ousadas imagens – sem estar vinculada
ideologicamente a nenhum movimento contrário à ditadura
(HOHLFELDT , 2000, p.73).

Em duplo jogo textual que busca filiação com a tradição mo-
dernista ao mesmo tempo em que afirma identidade singular,
a voz lírica se feminiza aceitando os subterfúgios que a cultura
julga caber a um corpo de mulher (vs. 8-10), sem abjurar da sina
(destino, missão) de inaugurar linhagens e fundar reinos (vs. 12).
Recusa-se a maldição de homem – ser gauche, coxo – por inade-
quada talvez, não por fragilidade, como fica claro ao atentar-se
para o adjetivo com o qual a poeta delineia-se em oposição aos
limites de uma tradição à qual não apelam questões de gênero:
desdobrável - diz-se essa voz feminina - resiliente, plástica, afe-
tiva e afirmativa de uma vontade de alegria ancestral (vs. 15-16).
Os reinos e linhagens que se inauguram dizem respeito a uma
poderosa e surpreendente voz na lírica brasileira contemporânea
que, desde os anos 70, diversifica-se em dicções múltiplas, tendo
como característica mais geral aquilo que Ítalo Moriconi chamou
de sujeito poético marcado: gênero, opção sexual, pertença étni-
ca, inserção geográfica e social tornam-se lugares discursivos a
partir dos quais o sujeito lírico se enuncia36.
Tanto Bagagem quanto O coração disparado, os dois pri-
meiros livros de Adélia, respectivamente de 1976 e 1978,
são pródigos em poemas que traçam a persona lírica que se

107
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

identificará com a poética adeliana. Em Todos fazem um poema


a Carlos Drummond de Andrade, 1991) a poeta refletirá sobre “o
incômodo do seu existir junto com o dele”, registrando o drama
dos poetas de sua geração tão bem caracterizado por Affonso
Romano de Santana: “Minha geração de poetas é emparedada de
um lado por Drummond e Cabral e de outro pelos concretos”·.
Comentando a postura do próprio João Cabral, última unani-
midade no cânone nacional, em relação às angustias de um po-
eta estreante ante uma tradição a qual é preciso afirmar dicção
própria, Paulo Franchetti esclarece: “(o que) Cabral julgava ser
o mais característico de sua própria geração: a necessidade de
construir um discurso individual à sombra dos grandes poetas
modernistas, contra cuja obra não faria sentido repetir o gesto
- que fora o deles contra o seu passado imediato – de desqua-
lificação e destruição” (FRANCHETTI, 2007, p. 256, nota 6).
Margarida Salomão, comentando a posição de Adélia Prado na
poesia contemporânea (o artigo é de 1986), fala da ameaça de um
“esgotamento” sentido pela tradição recente, cuja questão pre-
mente é “Como continuar sem repetir? (E mais crucial: como
continuar sem desvirtuar?)”. Adélia enfrenta esse embate “Aca-
tando os limites de uma outra caracterização crucial – a condição
de mulher”:

Trata-se de uma sina essencialmente corpórea, carnal: estar


no mundo não implica recusá-lo – na melhor hipótese, es-
quivar-se dele; antes implica uma comunhão sensorial com
as coisas, aquela proporcionada pelas “sensibilidades sem
governo”. Além do mais, comungar com o mundo é ad-
mitir-se elo numa cadeia, canal de perplexidade da espécie:
“semente” (SALOMÃO, 1986, p. 09).

108
cleide oliveira

Enfrentando o desafio da pergunta – “Eu sou poeta? Eu


sou?” (poema Todos fazem um poema a Carlos Drummond de
Andrade) – a poesia adeliana singulariza-se na afirmação de um
estar no mundo onde a opção pelo cotidiano feminino é radical,
como se vê no poema Grande desejo (1991):

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia.


sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.

Em outro poema (poema Fluência) o alívio de poder dizer


“Eu fiz um livro, mas oh meu Deus, / não perdi a poesia” pa-
rece contraparte da convicção de que a poesia é de Deus a “Face
atingida/da brutalidade das coisas” (poema Guia, 1991); dito de
outro modo, a poeta afirma a poesia como experiência epifânica
da beleza (beleza que em Adélia é indissociável do sagrado), e
não como artefato cultural, acessível aos que possuem as chaves
hermenêuticas corretas (que geralmente são aquelas legitimadas
pela critica acadêmica)37. Enfim, trata-se de uma lírica que faz
escolhas surpreendentes, pois, afinal não se trata apenas de uma
poesia “mística” ou “religiosa” no sentido de assunto ou tema, a
exemplo de um Murilo Mendes, um Jorge de Lima ou mesmo
uma Hilda Hilst, poeta que em 1984 publica o inebriante Po-
emas malditos, gozosos e devotos, em fulgurante diálogo com
a tradição da mística cristã. O religioso não é tema ou assunto
e sim, como afirma a autora em inúmeras entrevistas, a própria
substância de seu fazer poético, entendida a poesia como sagrada
strictu sensu38. Quanto à forma, a religiosidade da lírica adelia-
na é calcada em versos livres, de ritmo largo, solto e prosaico,
vocabulário coloquial, com forte oralidade e repleta de minei-
rismos, despida de certa gravidade ou grandiloquência, próprios
da poesia religiosa até então39. Inaugura-se com a poesia de Adé-
lia uma linhagem nova, na qual as afirmações aparentemente

109
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

contraditórias de que Qualquer coisa é a casa da poesia e Tudo que


eu sinto esbarra em Deus (subtítulos do livro O coração disparado)
não apenas se harmonizam mas sintetizam o projeto poético que
vai desenvolver ao longo de três décadas (seu último livro é de
2013, Miserere). A poesia encontra pouso em “qualquer casa” –
“o lixo, a catedral, a forma das mãos” (1991) – exatamente por-
que em cada fragmento do banal cotidiano “esbarra-se em Deus”.
A memória será importante elemento para a cosmogonização
do caos cotidiano em espaço aberto onde a epifania do sagrado
se dê, concretizando poeticamente a argumentação do historia-
dor Pierre Nora40 de que existe uma relação intrínseca entre a
memória de um povo e sua capacidade de conferir significado ao
mundo, o que me leva a uma possível definição de religiosidade
com a qual a poesia adeliana se filiaria: emprestar sentido à ale-
atoriedade dos fatos e vivências pessoais e coletivas por meio de
construções simbólicas e ritos (mitos, poemas, narrativas sagra-
das, sacramentos e teologias) que testemunhem do nosso espanto
e da nossa dor. Na poesia adeliana essa será uma experiência de
sentido indissociável da hermenêutica cristã, ainda que não res-
trita a ela, como fica claro nos dois poemas abaixo comentados:
Verossímil e A poesia, a salvação e a vida, II (1991):

Antigamente, em maio, eu virava anjo.


A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
‘canta alto, espevita as palavras bem’.
Eu levantava vôo rua acima.

A religiosidade popular com seus rituais, festejos e cerimô-


nias de beleza brutal e singela, se materializa em poemas como
esse, onde a perspectiva alegórica é assumida como estratégia de
significação de mundo: a representação da coroação de Nossa

110
cleide oliveira

Senhora - bela e comovente cerimônia ainda comum no interior


de Minas Gerais no mês de maio, que é realizada por crianças
travestidas de anjos - tem alto apelo imagético, especialmente no
último verso onde a transformação anunciada (“eu virava anjo”)
se concretiza no “levantar vôo rua acima”. A possibilidade desse
vôo simbólico é garantida por um processo de investimento afeti-
vo e simbólico: é a mãe que põe na menina o vestido e as asas, é a
mãe que recomenda empenho na vivência ritualística da coroação
(vs. 4). A experiência religiosa é comunitária e significativa, e por
isso pode ser retomada para dar verossimilhança ao ethos religioso
que anima a poética adeliana, cuja grande descoberta parece ser a
de que “súbito é bom ter um corpo para rir/e sacudir a cabeça. A
vida é mais tempo/ alegre do que triste. Melhor é ser”. (poema
Momento, 1991). No segundo poema o campo do sagrado vai se
estender para além da religiosidade institucional, sendo que sua
experimentação implicará a força de “um poder” que se desdobra
em três instâncias: no sonho (vs. 2), na palavra poética (vs. 3), na
rememoração de instantes epifânicos de um cotidiano doméstico
e desprovido de glamour (vs. 4-5):

Eu vivo sob um poder


que às vezes está no sonho,
no som de certas palavras agrupadas,
em coisas que dentro de mim
refulgem como ouro:
a baciinha de lata onde meu pai
fazia espuma com o pincel de barba.
De tudo uma veste teço e me cubro.
Mas, se esqueço a paciência,
me escapam o céu
e a margarida-do-campo.

111
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

E, similar a esse, o poema Registro (1991) reforça o apelo


sensorial como combustível para a memória:

Visíveis no facho de ouro jorrado porta adentro


mosquitinhos, grãos maiores de pó.
A mãe no fogo atiça as brasas
e acende na menina o nunca mais apagado da memória:
uma vez banqueteando-se, comeu feijão com arroz
mais um facho de luz. Com toda fome.

O que “refulge como outro” é a tessitura mesma da palavra


poética, presentificando fragmentos de vivencias significativas
que ganham cor, cheiro e sabor em uma poética que abdica de
toda abstração para nos falar do que, não obstante ínfimo e banal
(a baciinha de lata, a margarida do campo, o humílimo jantar),
é veste que se tece (lembremo-nos da proximidade semântica
entre texto e tecido) e recobre nossa fome de símbolos e ritos
com aquilo que a memória escolhe amar, pois “o que a memória
ama permanece eterno” (poema Para o Zé, 1991). Um aspecto
particularmente interessante nessa intrincada tessitura entre me-
mória e sagrado é uma imagética que apela fortemente para os
sentidos do leitor, em uma erotização da linguagem que já foi
detectada por Margarida Salomão: “Em Adélia Prado, a fala não
é reportada: comparece concreta - faz parte da vida. O mundo,
que a linguagem evoca, não é refletido: existe como a própria
linguagem. (...) O que dessa obra poética ressuma é um verda-
deiro horror à abstração” (SALOMÃO, 1986, p. 13, grifo nosso).
O poema A flor do campo (1991) é outro exemplo desse memo-
rialismo que funde forte apelo imagético e sensorial a uma poesia
de viés místico-erótico:

112
cleide oliveira

Mais que a amargosa pétala mastigada


seu aspro odor e seiva azeda
a lembrança antiga das camadas do sono:
há muito tempo, foi depois da missa,
eu e mais duas tias num caminho, as pernas delas
na frente, com meia grossa e saias.
No ar os cheiros do mato, as palavras cordiais,
o céu pra onde íamos, azul,
conforme as palavras de Nosso Senhor,
os lírios do campo, olhai-os,
a flor do mato, a infância.

Mais pungente do que o “aspro odor e (a) seiva azeda” da


presente pétala que se tem entre os dentes, a lembrança antiga
ressurge e presentifica um tempo mítico, idealizado, identificado
à infância do sujeito poético, quando não haveria fissura entre
palavra e ação ou entre ética e poética, de modo que “os lírios
do campo” da parábola bíblica se identificam à “flor do mato”
entrevista nesse caminhar entre as “palavras cordiais” e o azul do
céu “para onde íamos”. E por uma operação metonímica, lírios
do campo e flor do mato são mimetizados à infância, à qual é
preciso “olhar” de novo e mais uma vez, para quem sabe reter
uma perspectiva de despojamento que se assemelha ao despren-
dimento (abegescheidenheit) e abandono (gellassenheit) tão caro aos
místicos cristãos41.
O poema Primeira infância (PRADO, 1991) retoma o topos
da anunciação poética, na elaboração mítica do eu lírico poeta
que, à moda dos românticos, é ser de exceção eleito por designo
divino42. Há, todavia, uma sutil, mas não desprezível distinção:
o poema parodia uma forma discursiva de origem popular e me-
dieval, que são as narrativas de conto de fadas. Nele ressoa, sal-
vo engano, episódio do conto Bela Adormecida, recontado por

113
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Charles Perrault, no momento em que as sete fadas convidadas


para a grande festa em homenagem ao nascimento da princesa
distribuem vaticínios à criança venturosa. São outros imaginários
postos em circulação na poesia adeliana, uma saborosa mistura
de religiosidade popular (“benza-te a cruz no ouvido, na testa”),
forte solidariedade comunitária (“as amigas de minha mãe vatici-
nando:/vai ser muito feliz, vai ser famosa”) e augúrios proféticos
que metonimicamente anunciam, nas figuras de navios bordados
na roupa infantil, a odisséia em roda de si que então se inicia na
poesia adeliana:

Era rosa, era malva, era leite,


as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser famosa.
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da Trindade te proteja.
Em ponto marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.

O poema entretece um conjunto de imagens no qual pode-


mos perceber três das mais importantes características da poé-
tica adeliana: uma opção pelo imaginário e pela corporalidade
feminina; a localização espacial marcadamente interiorana; e o
ethos religioso, aspectos que se ligam de forma indissolúvel a uma
espécie de tríade que percorre todo seu exercício poético: o ero-
tismo, a mística e as considerações sobre a morte43. No poema
Atávica (1991, p. 46) outro elemento igualmente importante e
diretamente relacionado a essa tríade se anuncia, é a afirmação
de que “não tenho gosto na infelicidade/e por isso busco meu

114
cleide oliveira

caminho/como um verme sabe do seu, dentro da terra” (poema


Folhinha, 1991). Nesse caminho onde “A grande tarefa é morrer”
(poema Campo-santo, 1991) o que é “beleza sem esfuziamentos”
se mistura com “as tristezas maravilhosas” de tal modo que “o
discurso/ acaba cheio de alegrias” (poema Porfia, 1991).

Minha mãe me dava o peito e eu escutava,


o ouvido colado à fonte dos seus suspiros:
‘Ó meu Deus, meu Jesus, misericórdia’.
Comia leite e culpa de estar alegre quando fico
Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço,
cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos,
as tristezas maravilhosas.
Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes
que dão gosto, meu Jesus misericórdia.
Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

Localizando seu ofício poético em uma espacialidade domés-


tica e feminina, ao mesmo tempo em que afirma positivamente
uma vontade de alegria visceralmente sensorial e corpórea, o li-
rismo adeliano vai se delineando como um dos mais originais na
literatura brasileira, especialmente porque a, de certo modo espe-
rada, espiritualização da matéria (do corpo e do mundo sensível)
não ocorre. Para entender esse aspecto de fato novo na dicção
adeliana revisito uma de suas entrevistas onde a poeta, questiona-
da sobre a relação entre o apelo ao sensorial, muito forte em seus
dois primeiros livros, e o desejo de transcendência, responde:

AP: (...) eu quero.... eu amo o mundo, eu amo a carne, a


matéria, eu gosto da matéria. Por isso a religião me dá uma
resposta extremamente, totalmente satisfatória. Porque ela
me promete a ressurreição da carne. Já pensou na delicia?

115
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

A ressurreição da carne, a recriação do mundo, do cosmos,


a restauração de toda matéria em Cristo, a ressurreição, en-
fim. Então, você ama realmente o barro, a cor, como cria-
turas, são criaturas também, elas tem valor em si mesmas,
não só em referência a mim, mas porque são criaturas de
Deus. Elas dizem uma coisa, elas tem uma fala. A cor ver-
melha fala uma coisa, a amarela fala outra. Acho que mais
é esse amor pela Criação, amor pelo concreto, pela carne,
pela matéria.
AH: E a partir daí você atinge a espiritualidade?
AP: Não é a partir daí. A espiritualidade já está, não veio aí.
Isso não é forma de chegar, já chegou. (PRADO in: LO-
PES, 1995, p. 28-29, grifo nosso).

A poesia adeliana articula signos antigos – a platônica dico-


tomia corpo versus alma – a significados novos, assumindo como
verdade revelada a constatação de que “o corpo não tem desvãos/
só inocência e beleza” (poema Deus não rejeita a obra de suas
mãos, 1991), e que “erótica é a alma” (poema Disritmia, 1991).
A partir da exposição do corpo do Cristo na execrável cruz, a
inocência da carne e as potências inauditas do amor são reveladas:
um amor que se dá no corpo, e não apesar dele, como afirma o
poema Festa do corpo de Deus (1991). Aliás, esse poema explicita
a lógica teológica que alimenta o tão decantado erotismo ade-
liano: se “sem o corpo a alma de um homem não goza” (poema
A terceira via, 1991), é porque corpo e alma, imanência e trans-
cendência são percebidos de forma não hierarquizada, como con-
trapartes de um único todo indiviso. Descoberta surpreendente
que vem pela contemplação da concretude do corpo humano do
Cristo na cruz, e pela revelação de um deus fragilizado que se
deixa estar impotente, ao alcance de nossas mãos. A recuperação
do feminino desejante que se fará na poética adeliana apenas será

116
cleide oliveira

possível pela inicial descoberta da inocência do corpo, corpo que


deixará de ser lócus de interdição para se tornar fonte de encon-
tro e reconciliação: do humano com a própria temporalidade, do
eu com o corpo do outro – o que exigirá um olhar compassivo
(com-pathos) para a alteridade - e do humano com o divino, um
divino que significativamente irá assumir forma humana em Jo-
nathan, personagem que aparecerá na poesia adeliana a partir de
O pelicano (1987)44.
Concluindo esse percurso que buscou compreender como o
memorialismo adeliano se articula com a autoafirmação de uma
dicção feminina, prosaica e místico-erótica, quero comentar o
poema O vestido, um dos mais belos de O coração disparado:

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça


meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Aqui estão todos os elementos que destacamos como parte


do memorialismo adeliano: o apelo sensorial e imagético; a per-
cepção da memória como uma potência espontânea, plástica, viva
e afetiva, capaz de presentificar o que foi vivido como significati-
vo e pleno; o lirismo feminino, erotizado; a representação do co-
tidiano doméstico como lócus onde a epifania se dá. A memória
deixa de ser o resguardo avarento de afetos ameaçados por tempo
e traça (vs. 1) para se tornar possibilidade de autopreservação

117
O B R I L H O Q U E A R A Z ÃO N ÃO D E VA S S A

identitária (vs. 10). Tocar a seda macia do vestido torna-se gesto


ritualístico, e por isso religioso, que traz à vida aquilo que de ou-
tra forma se perderia na voragem dos dias: o presente se atualiza e
se reconstrói com a memória do vivido, e o sujeito lírico continua
a viagem empreendida em roda de si.

118
Uma ascese aos avessos

Uma poética do corpo

O mistério vai se mostrar através do corpo.


(O homem da mão seca)

Diversas leituras interdisciplinares sobre a obra (prosa e poesia)


da escritora mineira Adélia Prado destacam a presença e amplitu-
de que a figuração do corpo e do universo feminino nela assume.
Em sua análise da poesia contemporânea Ítalo Moriconi toma a
poesia de Adélia Prado como exemplo do que denomina “sujeito
poético a priori marcado”, para o qual não interessa mais falar em
nome do sujeito universal, mas sim explicitar as marcas de uma
subjetividade pulsante, “Marcado por quem se é concretamente
na esfera pública”, sendo as marcas de gênero, aquelas inscritas
no corpo, as mais significativas. Em estudo sobre sua obra An-
tonio Hohfeldt dirá que “sua literatura constitui uma espécie de
contra discurso da domesticação do corpo”, e Eliana Yunes (2004)
que, em Adélia, “o corpo com sua sensibilidade é uma antena

119
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

poderosa da expressão de Deus e não refugo ao demônio”. Já a


leitura teológica de Bingemer (2011) destaca a convicção, central
para o cristianismo, “de que o corpo humano é condição de pos-
sibilidade da encarnação e, sobretudo, da experiência do divino”.
E, ainda um último exemplo, agora sob o prisma da psicanálise
e dos estudos feministas, é oferecido por Scorsolini-Comin e
Santos, que farão as seguintes afirmativas sobre a corporalidade
místico-erótica da poética adeliana:

Na esteira desse movimento contemporâneo de reordena-


mento dos papéis sociais e da construção de relações mais
igualitárias entre os gêneros, a mulher tematizada por Adé-
lia Prado oscila em um movimento pendular entre continuar
tributária de uma tradição herdada ou tomá-la nas mãos
para transformá-la e ressignificá-la. São mulheres ora ino-
centes, ora possuídas pela fúria de seus desejos carnais, o
que pode ser observado em diversas de suas obras, e mesmo
na dimensão de um só poema: são mulheres com fome, com
desejo, mas também castas e devotadas ao marido - portan-
to, envolvidas em conflitos e irremediavelmente dilaceradas.
Ao situarem essas criaturas na fronteira entre matéria e es-
pírito, a poetisa as faz conhecedoras de sua indissociabilida-
de. Como lidar, então, com o permanente mal-estar gerado
pela consciência dessa ambiguidade constitutiva, dessa du-
pla cidadania – um tanto carne, um tanto espírito? O cami-
nho apontado pela autora é o da entrega plena à dimensão
do sagrado, mas não o sagrado tomado em sua dimensão
unicamente transcendental, mas a vivência de sua dimen-
são mundana, ou seja, a absorção na esfera do profano que,
sutilmente, conduz à sacralização do cotidiano, em um inte-
ressante movimento de ascese invertida. Isso se torna possível
pela abolição dos limites entre o sagrado e o profano e pela

120
cleide oliveira

dissolução das fronteiras entre o corpo e o espírito, instau-


rando uma concepção singular de erotismo (2013, p.05).

De fato, permeia sua obra uma concepção poética na qual


corpo e palavra são elementos complementares que põem em
jogo de espelhos física e metafísica, sagrado e profano, imanência
e transcendência, com intuito de inverter a hierarquia platônica
que relegava ao corpo o papel de “cárcere” a sustentar a alma,
essa sim, sedenta de beleza e verdade. Como observei em outro
momento, o verso Erótico é a alma é exemplar para compreender
essa carnavalização da hierarquia platônica realizada por Adélia
Prado: aparentemente um erro de concordância (afinal, erótica,
e não erótico, é a alma), uma leitura mais atenta nos revela o que
penso ser o cerne de sua poética. Se erótica fosse a alma, seria por
possuir qualidades imagéticas e sensíveis que tornariam possível
a comunicação entre física e metafísica, concepção facilmente as-
sociada a uma cosmovisão romântica, na qual todas as interações
eu-mundo são determinadas pelos nossos afetos e esses, por sua
vez, são a contraparte de uma dança cósmica tanto bela quanto
terrível. Mas não é exatamente disso que se trata: erótico é a
alma, isto é, o campo do substantivo erótico se deixa invadir
pelo substantivo alma, e a relação que se estabelece entre erótico
e alma deixa de ser de determinante e determinado, em que a
alma seja determinada pelo erótico, ou vice versa, para se tornar
de mútua equivalência, onde isto se iguala à aquilo. O erótico se
expande a uma realidade que ultrapassa a corporalidade e se ins-
creve na transcendência, enquanto o signo alma torna-se pesado
e pungente, quase corpóreo. A esse movimento estou chamando
de ascese aos avessos, por distinguir-se dos movimentos ascé-
ticos tradicionais, que se pautam em um processo de controle,
domesticação e, quiçá, apagamento do corpo e de suas marcas
com vistas a sua definitiva espiritualização, pois o corpo é, de

121
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

modo geral, entendido como empecilho para o exercício místico


e/ou intelectivo.
A ascese adeliana, entretanto, não é um exercício de autoco-
medimento e moderação, mas um vigoroso embate entre os pres-
supostos com os quais o Ocidente cristão subjugou o corpo (o
sensível) em defesa da alma (o inteligível, o ideal) - em especial o
corpo feminino, considerado como falta e ausência – e uma reli-
giosidade plena e potente enraizada no corpo. E por que chamar
de ascese esse processo, se há nele tão pouco da ética metafísica
que permanece subjacente aos exercícios ascéticos de controle do
corpo? Porque implica um rigoroso exame de si e o progressivo
desprendimento de uma concepção do corpo como lócus profa-
no, interdito, acompanhado de um movimento de emancipação
que o transforma em lócus privilegiado para a experiência do
sagrado. A obra adeliana empreende um diálogo intenso com de-
terminadas concepções neoplatônicas que alimentam a tradição
cristã, para as quais o corpo é objeto de interdição e a ascese dos
afetos e paixões a alternativa para a epifania mística. Por outro
lado, a afirmação do corpo, erotizado, mas não transfigurado em
fetiche de consumo, é dependente de uma revisão do papel da
corporeidade por meio da figura do Cristo, recuperando o estra-
nhamento dessa personagem divino-humana com a constatação
reiterada de que “Jesus tem um par de nádegas!/ Mais do que
Javé na montanha/ essa constatação me prostra” (poema Festa do
corpo de Deus).
Há certamente erotização do corpo e da palavra na poética
de Adélia Prado, e por erotização entenda-se tanto a presentifi-
cação do corpo quanto a transfiguração do banal cotidiano por
meio de epifanias poéticas. Penso que esse processo de erotiza-
ção e sacralização do corpo, do espaço e da palavra realizada na
poética de Adélia Prado se faz por meio de dois procedimen-
tos complementares: a) uma profunda tomada de consciência da

122
cleide oliveira

temporalidade/corporalidade humana, que ocorre de forma si-


métrica à revelação da humanidade do Cristo; b) uma espécie de
ascese negativa que, ao contrário do esperado nos movimentos
ascéticos (que de forma geral se orientam para um “enfraqueci-
mento” do corpo) abre o imanente e o sensível para o mistério,
mistério que toma a forma e os motivos da religiosidade cristã
popular. Não obstante, ao contrário do esperado, a ascese ade-
liana não significa o apagamento do corpo - por meio de exer-
cícios mortificantes - ou uma espiritualização da palavra poética,
antes, o corpo que se desenha nessa obra é um corpo feminino,
desejante, inteiro e inocente; e a palavra almejada é aquela que
recupera suas características mágicas de condensar a percepção
sensível em pontos mínimos, absolutos e exatos, palavra-coisa
que tem peso, textura, cheiro e sabor.
Tendo em outros momentos examinado as características
mágico-míticas da linguagem de Adélia Prado, o modesto ob-
jetivo desse capítulo é mapear, no conjunto de sua prosa, esse
processo de inversão da dialética platônica corpo-alma pela via
da sacralização e erotização, tendo como pano de fundo o périplo
das personagens femininas da prosa adeliana, personagens que
apesar de múltiplas parecem ser uma única mulher em proces-
so de autoconhecimento e revelação, de forma semelhante aos
romances de formação (bildungsroman), com a distinção de que
na prosa adeliana “o aprendizado acende lucidez de gozo e dor”.
Essa afirmação fica bem evidente nos quatro primeiros romances
de Adélia que,

Lidos em seu conjunto, parecem ser um único roman-


ce, com uma única personagem feminina em processo de
construção e revelação, não importa que os nomes mudem,
nem que se alterem os narradores em primeira ou terceira
pessoa. Como se fossem quatro evangelhos, vão narrando a

123
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

caminhada de paixão, morte e “ressurreição” de uma mu-


lher, às voltas com o cotidiano doméstico, com aspirações
de alma grande, aflições e agonias que, num crescendo, atin-
gem um estado epifânico, de quase êxtase, em descobertas
que vão do corpo à linguagem (YUNES, 2004, p. 33).

Semelhantes tanto na cosmovisão que constitui o espaço-


-tempo dessas narrativas, quanto em estilo, linguagem e temas
abordados, os primeiros cinco livros de Adélia se aproximam ain-
da na configuração das personagens: temos uma protagonista fe-
minina, de classe média baixa, entre 40 e 50 anos, mãe de filhos,
e religiosa, que vive às voltas com a demarcação do cotidiano,
mimetizado a partir de um rico mosaico de afetos e memórias.
Essa personagem feminina possui sempre uma amiga íntima,
companheira de uma jornada espiritual empreendida no impon-
derável cotidiano (seus nomes são Stela, Ismália, Gema, Amarilis
e Alba), um marido que parece já alcançado a inteireza almejada
(chamam-se Gabriel, Pedro, Thomaz, Teodoro), e uma figura
masculina objeto de um desejo tão ardente quanto platônico (são
os Albano, Ramon, Jonathan, Eteloi Leh, Soledad, etc). Outro
elemento recorrente é a presença de elementos simbólicos que
povoam os sonhos das personagens, os quais, apesar da multipli-
cidade aparente, convergem para interpretação similar, dentro da
tessitura narrativa: são ovos, borboletas, recém-nascidos e peixes
que falam de um desejo de renovação e reconciliação por parte
das protagonistas em insistente conflito existencial. No caso dos
peixes a referência cristã ganha contornos unívocos, remetendo
tanto ao amor humano quanto à concretude encarnada do Cristo.
Nos últimos livros de prosa de Adélia, respectivamente Fi-
landras e Quero minha mãe, essas semelhanças estruturais são
enfraquecidas, ainda que os temas, motivos e atmosferas perma-
neçam, bem como um percurso místico-existencial que conduz

124
cleide oliveira

as protagonistas a um processo de descoberta, aceitação e mara-


vilhamento com “a inocência da carne”, espantosa revelação sin-
tetizada na epígrafe com a qual abrimos nosso texto: “o mistério
vai se revelar através do corpo”.

A sacralização do corpo em Adélia Prado

Deus não me fez da cintura para baixo


para o diabo fazer o resto.
Ou tudo é bento, ou nada é bento.
(Os componentes da banda)

O primeiro livro em prosa de Adélia Prado é Solte os cachorros,


publicado em 1979. Narrativa cujo ritmo desenfreado se ajusta
ao imperativo contido no título, o livro, originalmente designado
sob a rubrica de contos (primeira edição de 1979), se organiza
em três seções. A primeira, Solte os cachorros, é composta por
26 fragmentos numerados onde uma voz não nomeada (ou com
vários nomes: Gerontília, Dolores, etc.), mas identificável como
de idade próxima aos 40-50 anos, professora primária, casada
e mãe de filhos, à modo de um diário sem freios, escreve suas
percepções de mundo onde, apesar do tom despojado e paro-
dicamente caipira, reflete sobre questões tão complexas como o
engajamento social e/ou feminista, o ser da poesia, os equívocos
da educação pública no Brasil, etc. Já as outras duas seções têm
título “Sem enfeite nenhum” (com dois textos – contos? – não
numerados) e “Afresco”, com 12 pequeníssimos textos onde o
diálogo com a tradição cristã se intensifica.
Nesse inicio de seu exercício ficcional já se encontram os
grandes eixos temáticos que serão explorados nas demais narra-

125
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

tivas, como o fluir do tempo e a consciência da morte (a grande


e todas as pequenas mortes diárias), o desejo de costurar os mi-
núsculos fios do cotidiano buscando significar a experiência in-
dividual e comunitária, as questões político-sociais a partir da
perspectiva da mulher comum que questiona a justiça social, o
sofrimento humano causado pelo próprio homem, a necessidade/
impossibilidade de engajamento político, as questões de gênero,
etc. Antônio Hohfeldt, analisando a prosa de Adélia, ressalta que

(...) no texto de Solte os cachorros é que se constitui uma


espécie de modelo a ser, posteriormente, reiterado, desdo-
brado, enriquecido, reinventado, revisitado, enfim, mas sem
se perder os elementos essenciais que caracterizam a perso-
nagem narradora e que, a partir do volume seguinte, será
sempre alguém identificado através de um nome de batismo
que pretensamente a diferencie da escritora, constituindo-a
em uma alteridade mas que, nem por isso se afasta de sua
própria experiência, mesmo que construída numa terceira
pessoa do singular (2000).

Certo descompasso entre a materialidade do corpo e suas de-


mandas, nem sempre nobres, e aquilo que, por falta de nome
melhor chamamos alma, já estão presentes em Solte os cachorros:
“Meu corpo é muito satisfeito, considerado em si mesmo; já mi-
nha alma, às vezes tira a roupa e fica feito um árabe na direção
do Meca, pondo e tirando a cabeça do chão sem entender as pan-
tufas” (1999, p. 23). Por outro lado, o desejo pelo inteiro, sem
fragmento, é explicitado: “Querendo uma coisa tem que abrir
mão de outra? A minha boca arada é do inteiro que gosta” (1999,
p.23). Um dos significados menos conhecido do vocábulo “ara-
da”, de sabor regional, é “esfomeado”, “faminto”, e nesse adjetivo
se concentra certa declaração de princípios do erotismo que move

126
cleide oliveira

os primeiros livros adelianos, um erotismo que se sintetiza na


afirmação carnavalizadora de que “Eu quero é o seio de Deus,
quero encontrar Abraão e me insinuar junto dele, até ele perder
o juízo e me fazer um filho, que terá muitas terras e ovelhas”
(1999, p. 43). Muito embora a antropomorfização do divino seja
corriqueira em diversas confissões de fé, o que chama atenção é
um procedimento que se repetirá em toda obra adeliana: a pre-
ferência pelas imagens concretas e sensoriais (ou sensuais) para a
representação do sentimento religioso. Esse é um dos primeiros
indícios de que toda hierarquia platonizante será transgredida,
ainda que as polaridades continuem em um nível de tensão cres-
cente, como veremos.
O próximo livro em prosa, Cacos para um vitral, de 1980,
apresenta uma estrutura narrativa e personagens que será repe-
tida nos próximos romances de Adélia. A narrativa centra-se em
Glória, que possui vários pontos de contato com a biografia da
autora: é uma dona-de-casa e professora primária do interior de
Minas Gerais, mãe de filhos envolta com os afazeres domésticos
que lança um olhar crítico sobre o mundo que a cerca, em um
processo de auto descoberta que tem seu motor nas reflexões so-
bre a temporalidade. Nesse romance, especificamente, o tema do
envelhecimento e da morte abre e fecha a narrativa (a morte de
Dona Zilá, acontecimento contemporâneo ao tempo da narrativa,
e o rememorar da morte do pai por Glória, ato por meio do qual
a esperança cristã da ressurreição é reafirmada), articulando-se
intimamente com um desconforto crescente em relação a própria
corporalidade, e a procura pela recuperação da inteireza-integri-
dade do corpo redimido de sua “analidade”:

Deus me prova às vezes: um gosto de cadáver na boca, eu sin-


to gosto de cadáver, sei que é cadáver, gosto e o odor con-
fundidos na minha boca, a morte viva se nutrindo de mim.

127
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Quando recuperava a alegria, Glória ficava íntima. E des-


cobria: desde toda a vida, o medo, o sentimento de culpa
não a preservavam, antes a endureciam. Mas estar alegre era
possuir intimidade, seu corpo não era mais feito de partes, mas
uma só coisa harmoniosa, ajustada, digna de amor e amar,
fazer os outros felizes (1999, p. 143).

Mas, entre um e outro ponto, entre a agoniada reflexão sobre


a temporalidade que nos constitui e cuja marca mais evidente
é nossa frágil corporeidade, e esse discurso da alegria que ad-
vém da mística revelação da integridade do corpo, inteiro sem
fragmentos, pleno e potente em sua mais absoluta contingência,
está o rio pelo qual atravessam essas mulheres adelianas, em cada
uma de suas narrativas. A personagem Glória é importante para
compreender esse movimento pendular entre duas cosmovisões
diametralmente opostas do corpo: o corpo que tem “gosto de
cadáver”, contaminado pela temporalidade, e o corpo redimido,
recuperado de sua potência sacra, “uma só coisa harmoniosa”,
veja-se outro trecho do mesmo romance:

A vida parecendo resumir-se em excrementos, odores, con-


sistência e dejetos de matérias nojentas. O que era aquilo?
Ela a ponto de adoecer, pensando coisas absurdas: o corpo
de Deus que a gente come, também ele uma gruta de deje-
tos? (1999, p. 148)

Fica claro que a ascese adeliana, ainda que não seja um movi-
mento de disciplinarização e controle, é uma pedagogia do corpo,
pois é o corpo que precisa aprender que “não tem desvãos/ só
inocência e beleza”, e a referência a esse processo como uma pai-
xão não deixa dúvidas quanto ao paradigma dessa aprendizagem:
o deus-homem, Jesus Cristo. De forma sintética, o poema Festa

128
cleide oliveira

do corpo de Deus (1991), em livro publicado apenas um ano após


Cacos para um vitral, mostra como o processo de desvelamento
da sacralidade intrínseca ao corpo é dependente da revisão de
uma cosmovisão negativa sobre o corpo que durante séculos pre-
dominou na produção teórica e no imaginário cristão:

Como um tumor maduro


a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
“Ó crux ave, spes única
Ó passiones tempore”.
Jesus tem um par de nádegas!
Mais do que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
É próprio do sexo o ar
que nos faunos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com esse embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha pra mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas

129
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor.

O poema nos fala um embuste, um mistério e uma desco-


berta. O embuste – com o qual os demônios por séculos porfiam
em cegar aos humanos – é a culpabilização do corpo, em especial
do corpo feminino, assujeitado por práticas e saberes acumulados
que nos dizem, desde Platão, que o corpo é fonte de pecado e
impureza, além de empecilho tanto à vivência da via contempla-
tiva (espiritual) quanto da via especulativa (ciência). O mistério
é o corpo desse deus – o único a que eu saiba – que se torna
carne e sangue, desnudando-se de toda sua plenitude, como nos
diz belamente o apostolo Paulo, para se tornar fraco, impotente e
cheio de demandas. A revelação do corpo de Cristo – que afinal
tem, quem diria, “um par de nádegas!” (poema Festa do corpo de
Deus), é considerada mais importante que a grande revelação de
IAHWEH à Moises, revelação que foi um dos eventos princi-
pais na formação da religiosidade judaico-cristã. A descoberta, que
advém da exposição do corpo do Cristo na execrável cruz, é a da
inocência da carne e das potências inauditas do amor: um amor que
se dá no corpo, e não apesar dele. Esse é um poema central para a
compreensão do erotismo e da mística adeliana, na medida em que
explicita o que considero o cerne de sua poética: a constatação de
que corpo e alma, imanência e transcendência são percebidos como
contrapartes de um único todo indiviso, de tal modo que se chega
à afirmação, apenas aparentemente herética, de que “sem o corpo
a alma de um homem não goza” (poema A terceira via, 1991).
O próximo livro de prosa publicado por Adélia foi Os com-
ponentes da banda, em 1984, e tem como protagonista Violante,

130
cleide oliveira

também professora primária e compositora, casada com Pedro,


e às voltas com seu drama particular de estar dividida entre a
negação do corpo - “Sem intestinos a vida seria outra”, desabafa a
personagem à beira de uma crise nervosa – e o dado extraordiná-
rio da encarnação do Cristo: “Reclamo para mim o privilégio de
ser quem mais se maravilha com a Encarnação do Filho de Deus.
Nesse romance é bastante sensível a tensão entre as duas polari-
dades: o corpo renegado em seus humores e demandas, um corpo
que envelhece e morre, mas que também se abre para os afetos
e para a experiência epifânica da beleza (seja ela poética, seja ela
religiosa, pois em Adélia as duas instâncias não se diferenciam);
e o corpo gloriosamente belo e inocente, sagrado, não obstante
sua fragilidade intrínseca:

O dia em que eu não me importar mais com minha condição


anal e nem tiver mais necessidade deste eufemismo estúpido
para designar aquela parte do corpo, aí sim, os zombadores
verão o que é atravessar enxame de marimbondos, caminhar
sobre brasas e outros milagrezinhos (1999, p. 240).

E é nessa mesma narrativa que a ênfase na encarnação do


Cristo não deixará dúvidas sobre a importância que esse dogma
cristão terá para a sacralização/erotização do corpo na obra da
autora: “Que seria de mim se Deus não fosse um homem que se
pode tocar, crucificar, beijar, comer? O que seria de mim”, per-
gunta-se Violante. Cabe notar que, apesar de atualmente a en-
carnação ser um dogma pacífico para a teologia, a simples junção
dos verbos “tocar”, “crucificar”, “beijar” e “comer” ainda causam
espanto quando entendidos como ações concretas do Deus-ho-
mem, e não alegorias. A religiosidade presente na obra adeliana
recusa terminantemente uma divindade etereamente assenta-
da sobre nuvens, no pacífico mundo das idéias, reafirmando o

131
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

mistério desse deus que se fez corpo e habitou no meio de nós,


sujeito às mesmas intempéries da matéria. Creio que um dado
essencial para compreender a obra adeliana, em especial a forma
realmente inovadora com que o erótico e o sagrado nela se amal-
gamam, são os dogmas cristãos da encarnação e ressurreição. Ve-
jamos ainda outro trecho de Os componentes da banda, quando
Violante constata que “Deus é ato-puro-extase”, e se entrega sem
pudores a esse erotismo difuso, de viés místico, que se sustenta
na assunção da dignidade do corpo como lócus de experienciação
do sagrado:

(....) a santidade é possível, temos urgência de santos, eu


posso, vou começar agora, o Cordeiro na mesa com alfaces
amargas me convoca, que lindo não se dizer almeirão, mas
alfaces amargas! A carne do cordeiro, do que, estando para
ser entregue, deu graças, pegou o pão, partiu-o e deu-o a
seus discípulos dizendo: “Isto é o meu corpo...” Corpus,
corpus, corpo, que desejo eu tenho de me chamar Encarna-
ção Vigo Viante, que palpitante amor eu sinto por Jesus, que
se confunde com Pedro, com o moço que me abraçou, com
Jonathan, Amiel, Eteloi Leh, e até Nélio, Nélio transfigu-
rado, dizendo coisas bonitas: Encarnação, é imprescindível o
carinho físico para a harmonia do espírito e da digestão das
gorduras (1999, p.261).

A esperança cristã da ressurreição assume vital importância


para manter “ilusão fantástica” de uma vida além da vida e ali-
mentar a alegria que move esse estar-no-mundo religioso. Cabe
lembrar que o reino do céu desejado é em tudo semelhante ao
reino dos homens, com uma única diferença: a morte foi der-
rotada e o tempo se desdobra ciclicamente, permanecido sem
fraturas, na rotina perfeita que é própria do tempo sagrado:

132
cleide oliveira

(...)
Quando eu ressuscitar, o que quero é
a vida repetida sem o perigo da morte,
os riscos todos, a garantia:
à noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descansaremos porque a sirene apita
e temos de trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu. (Poema O reino do céu)

As protagonistas adelianas parecem repetir com o Apóstolo


Paulo: “Se esperamos em Cristo apenas por essa vida somos os
mais miseráveis de todos os homens”. Mas, contrária a uma pers-
pectiva dolorista e repressora, em especial do corpo feminino,
Adélia retorna ao imaginário do cristianismo primitivo, e enfa-
tiza um Cristo homem, cujo corpo será modelo para a recupe-
ração da dimensão sacra inerente ao humano, veja-se um último
exemplo de Os componentes da banda: “Depois de ressuscitado,
apareceu em Emaús na beira do mar e comeu, comeu peixe com
eles, peixes na brasa e pão. Minha boca se abrasa, quero pei-
xes também, pão de escuro cereal”. Novamente a preferência por
imagens sensíveis e concretas para representar um deus cujo cor-
po (mesmo após a sua ressurreição) tem idênticas demandas às
do corpo humano, e por isso pode partilhar com seus discípulos
uma refeição rústica à beira do mar de Tiberíades.
O homem da mão seca foi publicado em 1994, após 10 anos
sem Adélia Prado publicar prosa. O livro faz inúmeras referências
ao fato de a narradora precisar “contar seus sonhos à doutora”,
o que parece ser menção a um dado biográfico da autora, pois a
narrativa é publicada depois de anos de silêncio, quando atravessa
uma crise depressiva e “não consegue escrever”. Leiam-se pala-
vras da própria Adélia em entrevista:

133
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Eu comecei a escrever O homem da mão seca com muito en-


tusiasmo, sabia tudo o que queria. Fiz o primeiro capítulo e
aí deu um branco. Foi uma crise muito grande. Eu não sabia,
mas era uma depressão forte. Estava muito deprimida e não
percebia. Só via que não estava dando conta de escrever. (...)
Depois de um processo interior muito grande eu acabei des-
cobrindo que “o homem da mão seca” era eu. Isso foi a coisa
mais espantosa do mundo. Quando eu descobri, acabei o livro.

O romance é narrado em primeira pessoa por Antônia, pri-


meira das protagonistas adelianas a ser exclusiva e desde o prin-
cípio poeta, escrevendo em seus três cadernos – “A beleza do
mundo”, “O amor do mundo”, “A dor do mundo” – poéticas.
É interessante notar o diálogo intertextual com a Bíblia cristã
explícito já no título do romance, que faz referência ao episódio
narrado nos evangelhos de Marcos 3 e Lucas 6, onde Jesus cura
um homem da mão mirrada, ou seca. O desafio proposto por
Cristo a esse homem é que o mesmo “Estenda as suas mãos”, em
uma ação impossível (como estender as mãos se essa é a própria
impossibilidade que se está tentando vencer?), se não for prece-
dida por uma entrega absoluta. Também a Antonia é feito desafio
idêntico de estender as suas mãos e tocar no “outro”, em gesto
de compaixão, solidariedade e comunhão. Mais do que nomear
a narrativa, o episódio bíblico é seu fio condutor, metaforizando
a necessidade de decisão entre a graça imerecida e a culpa que
impede o gozo do corpo e da alegria, e se alimenta do medo. Ín-
dice de todos os medos que tomam Antônia (aliás, grande parte
das protagonistas adelianas são possuídas por medo difuso, cujo
fundo comum é o assombramento com a finitude humana) é o
medo de tratar o molar sensível, doloroso. O que parece tolo
medo infantil de ir ao dentista assume proporções metafísicas
de um embate entre culpa e graça, veja-se desabafo de Antônia:

134
cleide oliveira

Deus me cansa, pois me pede incessantemente o que não


sou capaz de oferecer-Lhe: sem anestesia, deixa o dentista
tratar seu molar sensível. Não posso, respondo, não dou
conta, é impossível para mim. Vou destruir sua cidade, alei-
jar Thomaz, matar seu filho, deixar no purgatório a alma
de seu pai. Pelo menos mulher, pede o Espírito Santo. Eu
não posso. Nem o Espírito Santo sou capaz de pedir, pois
tenho horror de que venha e me dê coragem pra tratar meu
dente com dor. Eu não quero, ter coragem me dá pavor
(1999, p. 270).

Para vencer o medo é preciso que Antônia, como nos ensi-


nam as místicas das mais diversas tradições, “escolha a morte do
ego”, de modo que sua vontade perfeita seja a vontade perfeita
de Deus. Em episódio final, Antônia finalmente percebe que a
liberdade absoluta é a entrega absoluta, e após uma pequena rus-
ga com o marido onde “Mais fácil parecia deixar amputar um
dedo que estendê-lo na direção de Thomaz”, encontra redenção
exatamente como o personagem bíblico, assumindo os riscos do
encontro com a alteridade:

Estendi-a na direção de Thomaz, a mão mirrada e a recobrei


perfeita como a outra, sã. O que se fora de mim não me per-
dia, antes comigo mesma desposava-me, era um júbilo, eu
salvava Thomaz, acolhendo o que me salvava, convertia-me
no Salvador, lembrei Arlete, ‘tem hora que Ele é eu’, lem-
brei eu mesma, ‘tenho tanta vontade de benzer as pessoas’, e
a minha vontade perfeita era a vontade de Deus, a amor em
moto contínuo que nem a mesmo se julga, uma alegria de
seiva, as campainhas da glória dormindo em suas sementes,
lembrei de horas antigas mas aí já era tudo poéticas, a man-
dala girava, desistira de dominar seu desenho e descansava

135
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

num pequeno ponto com uma atenção tão grande que ela
se movia aquecida movendo consigo o mundo, bola solta no
azul, outra poética formando-se, como bem disse o doutor,
‘quando passar a treva, a fonte jorra outra vez’. Como se
em meu próprio corpo toquei em Thomaz sem lhe pedir
perdão, uma outra Antônia, a verdadeira, viajava com ele a
Páramos (1999, p. 382).

Nesta narrativa as implicações históricas do embate entre


graça e culpa – cuja manifestação mais evidente é o medo - serão
articuladas à revisão de uma cosmovisão negativa do corpo, tema
que de resto possui unidade surpreendente na totalidade da prosa
adeliana, veja-se como o trecho abaixo se harmoniza com as re-
flexões já citadas de Glória (Cacos para um vitral) e Violante (Os
componentes da banda): “Alguém simplesmente apaziguado com
sua analidade, ou é uma maravilha ou é um tédio enorme. Me
interessam o corpo de Thomaz, do Teo, de Jesus” (1999, p. 324).
Interessa notar a relação de contigüidade entre esses três corpos
“interessantes”: Thomaz é o fiel marido amado, exemplo a ser
admirado e seguido, Teo – nome de óbvia ressonância religiosa
com o qual nomeia a Soledad, personagem que se confunde com
Jonatham – é o ermitão “iluminado” pelo qual Violante sente um
misto de admiração e desejo, e Jesus, o deus-encarnado. Cada
um desses personagens se ecoa no outro o desejo de unidade que
anteriormente mencionamos como singular na poética adeliana.
Manuscritos de Felipa é de 1999, e nele praticamente desa-
parece a figura masculina objeto de desejo, com exceção de uma
breve menção a Jonathan, personagem que costuma frequentar
a poesia adeliana. É uma narrativa subdividida em 40 capítulos
numerados em algarismos romanos onde Felipa irá empreender,
como afirma no capítulo de abertura, “uma viagem em sua pró-
pria casa” que terá como fio condutor as reflexões angustiadas e

136
cleide oliveira

amedrontadas de uma mulher de meia-idade sobre o envelheci-


mento, o medo da morte – a própria e a dos que a cercam -, e a
finitude que nos constitui. São recorrentes os sonhos, interpre-
tados pela protagonista como oráculos a serem decifrados em
seu processo de aprendizagem espiritual. Um desses sonhos nos
é particularmente interessante por narrar a recuperação do corpo
“glorioso”, potente e gozoso, que no sonho se dá pelo poderoso
símbolo do feminino que é a amamentação:

Olhava o menino de Rebeca, uma criança de colo, miudi-


nha de corpo mas saudável. Sentia-lhe a popa na concha da
mão, era muito bom. Começou a chorar e, percebendo-lhe
a fome, sentei-me e dei-lhe o seio. Mamou sofregamente,
eu sentia formar o leite abundante, era gozoso, e pensei: por
isso dispenso orgasmo. Troquei de seio e o menino con-
tinuou até se fartar, até regurgitar, passava a mão na bar-
riguinha, falando do estampado de sua camiseta. O gozo
perdurava. Conversando com as pessoas, mostrava a criança,
sabia que era a avó e não a mãe, Mas era formidável que os
outros também soubessem. A essência desse sonho chamei:
“A gloria do corpo” (1999, p. 472).

Esse sonho é narrado no capítulo final dos Manuscritos de


Felipa, quando a protagonista parece ter enfim completado seu
percurso de autoconhecimento, processo que será reiterado ci-
clicamente em cada uma das narrativas adelianas, comprovando
que não há nelas nenhuma ilusão de soluções fáceis. Em muitas
dessas narrativas o uróboro se fecha em evento extático, onde a
protagonista experimenta intensa consolação e gozo místico (o
final de Os componentes da banda é exemplar), características que
aparecem, ainda que de forma diluída, nesse trecho citado, pois
“Os afetos dos sonhos (nos) ensinam” que “a glória do corpo”

137
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

não está em sua espiritualização e/ou domesticação, mas na re-


cuperação dessa alegria primitiva de se ter um corpo onde vida
e morte são experienciadas sem subterfúgios (note-se a metáfora
vivaz da anciã amamentando, o que nos remete tanto à finitude
que nos constitui quanto a uma afirmação vigorosa da potência
de/para a vida inerente ao ser humano).
O próximo livro a ser comentado, Filandras, foi publicado
em 2001. O titulo possui, entre outras definições, a de “fios del-
gados e longos”, “flocos que esvoaçam pelo ar e cobrem os vege-
tais”. Digno de nota é que a escrita desse livro foi anunciada pela
voz ficcional de Felipa (MF). O livro é composto de 43 histórias
que podem ser lidas em separado, mas que ganham maior den-
sidade quando os frágeis fios dessas histórias de mulheres tão
distintas - a avoada Olinda; a racional Célia; a sedutora Calix-
tinha; a insegura Ester; a cafona Cremilda e seu envergonhado
marido Raimundo – se enfeixam e compõem um frágil mural
do que em nós humanos é belo e comovente. Como a própria
Adélia diz: “Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele.
Não sei de alguém que tenha mais. O cotidiano de Divinópolis
é igual ao de Hong Kong, só que vivido em português”. Apesar
da rubrica contos que consta na capa para definir o gênero dessa
publicação, há tal repetição de temas, motivos circulares (tanto
no livro em questão como na obra de Adélia em geral, como a
questão religiosa, a reflexão sobre os gêneros, o registro de um
cotidiano provinciano poetizado, o difícil embate com a morte,
etc) e de personagens que se repetem (o marido Teodoro, que
aparece nos fragmentos “O desbunde”; “De afrodisíacos”; “O ra-
tinho”; “A caixa-preta”, etc) que não parece correto considerar os
“capítulos” de forma independente, e sim como um vitral que se
compõe de muitas e ínfimas peças. Há em Filandras um trecho
particularmente significativo por de certa forma resumir a par-
ticular interpretação adeliana do papel da humanidade de Cristo

138
cleide oliveira

para a descoberta da sacralidade do corpo. O fragmento, de titulo


Corpo, inicia uma reflexão sobre a imanência que, sem negar a
dicotomia corpo/alma – “Corpo, esse estranho hóspede da alma”
– assume clara preferência pela concretude do corpo:

Deus tem um corpo e, como quem pede ao amante, põe


tua mão sobre a minha para que o meu medo acabe, nasce e
morre entre nós pedindo compaixão e água. (....) Eu nunca
mais quisera levantar minha cabeça da terra para sempre
adorar o que, tendo sangue, pulsações e vísceras, diz numa
voz que só de imaginá-la subtrai-me a consciência: Sou Teu
Deus, não temas, lava e beija meus pés, traz-me de encontro
ao peito e diz-me como se diz aos meninos assustados: pára
de chorar, eu estou (2002, p. 90).

Um Deus que tem um corpo, frágil estrutura de sangue e


vísceras que tem sede, fome, cansaço, dor, medo. Um Deus que
nos pede colo e compaixão como uma criança assustada, um
Deus encarnado, exposto nu e impotente na execrável cruz, será
o paradigma para o périplo que as personagens adelianas pre-
cisam empreender rumo à descoberta da inocência da carne. A
resolução da dicotomia corpo/alma se resolve pela encarnação do
Cristo que, sem negar a fragilidade intrínseca a nossa corporali-
dade, redescobre nela sua sacralidade latente: “Remiste o corpo,
eu digo, tenho agora um corpo para adorar, o corpo de Deus, um
corpo que por oculta e misteriosa maneira eu sei que é o corpo
dos homens”.
Último livro em prosa publicado por Adélia, a narrativa Que-
ro minha mãe (2005), é classificada como novela e composta de
pequenos fragmentos sem títulos, nos quais temos um narra-
dor-protagonista, Olímpia, dona-de-casa mãe e avó casada com
Abel, que luta contra o medo ao descobrir que tem um câncer

139
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

no útero e acreditar-se condenada à morte. Fragilizada pela do-


ença Olímpia inicia uma poderosa reflexão sobre a própria vida,
incluindo aqui a morte, que ela acredita acompanhá-la desde a
juventude (sua mãe morreu ainda em sua adolescência e Olímpia
desde mocinha assume o encargo de “ajudar os moribundos a fe-
char os olhos”) e também sobre as potencialidades do feminino.
É interessante notar que a medida que a narrativa avança Olím-
pia vai se aproximando de outras figuras femininas e do femini-
no que a constitui – em especial da mãe – conquistando “uma
nova dispensação quanto ao meu próprio sexo”, e libertando-se
de uma “arraigada e preconceituosa admiração pelo homem”.
Há a descoberta gozosa de um “novo território para se colonizar”,
a “confirmação de um especial papel do feminino no mundo”.
E como seria esse feminino? Em palavras de Olímpia, “Como se
a grande profundidade houvesse permanecido sepultada em mim,
assomou, com meu pequeno calvário, um rosto paciente, o que se
pode mostrar sem artifício algum e sem legenda se saberá: é um
rosto feminino de mulher”.

O corpo sem desvãos

Não quero a faca nem o queijo


Eu quero a fome.
(Bagagem)

Para terminar esse passeio despretensioso pela prosa adeliana


quero me deter com maior vagar em um episódio de sua ultima
narrativa, por entender que nele estão concentrados os dilemas
que alimentam o percurso das mulheres adelianas em seu périplo
de auto-desvelamento e afirmação do feminino, bem como os

140
cleide oliveira

elementos que tornam possível essa ascese (entendida enquanto


exercício de despojamento dos “embustes” que os demônios neo-
platônicos “porfiaram por séculos e séculos por nos cegar”) tão
singular que é a da poética adeliana. O trecho, apesar de longo,
merece leitura atenta:

O corpo me limita, a pele, a casa, o quarto, a roupa,


os óculos, o sofrimento de dona Luizinha que não entende
eu não comparecer às suas bodas de ouro. É ilusão voar
de asa-delta, estamos todos retidos e em culpa, o maior de
todos os limites. (....) Nada posso contra isso. Até o cartei-
ro manda em mim, ‘assina aqui dona, senão o pacote fica
retido no correio’. Voo muito nos sonhos. Como fluir e es-
capar à ferrugem? (....) O meu espírito está preso à carne. (....)
(2005, p. 36)
Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com
ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com
Ele grudado a minha calda? (....) Sensação de confinamento
outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muros, tudo me
poda, me cerca de arame farpado. (...) Ó mãe, mãezinha,
mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem
escondeu isto de você e de mim? (...) (2005, p. 41)
Experimento a palpável misericórdia, a carruagem não
vai virar abóbora, o vestido é meu e não preciso andar cur-
vada para mostrar gratidão. Pode brinquinho de ouro, curso
de dança pode, vestido de pano macio, ‘Olímpia, a glória
de Deus é que o homem viva’, obrigada, doutora, a cadeia
abriu-se, o vôo impossível acontece, o avião sobe é por causa da
resistência do ar, Abel cansou de ensinar-me. Como se ti-
vesse voltado do Peru na corrente cósmica, agora está minha
mãe. Desenvolta e bonita cozinha para Jonathan, os olhos
verdes realçados com rímel. Vou me casar com o seu con-

141
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

sentimento. Meu pai exibe a cara do meu último sonho, re-


provando um pouco por eu ter chegado tarde em casa, mas
orgulhoso por ser a escolhida de um príncipe. (2005, p. 75)

Os trechos citados estão em fragmentos distintos do livro,


mas em todos eles encontramos a mesma noção de “contenção”
e “retenção” relacionada com a culpa: no primeiro trecho a afir-
mação “estamos todos retidos e em culpa, o maior de todos os
limites”, se completa com a que se segue, “O meu espírito está
preso à carne”, sintetizando o veio platonizante que marca o cris-
tianismo ocidental; no segundo trecho a questão da culpa é de-
senvolvida, com a declaração de que “tenho rabo preso com ele,
o que me impede de voar”, e, sendo “ele” Deus, se estreitam os
laços entre a sensação de confinamento (ligada ao corpo e à maté-
ria) e a culpa; no terceiro trecho o conflito corpo-alma é anulado
pela “palpável misericórdia” que transforma a Olímpia asceta em
Olímpia-Cinderela, agora sem medo de a carruagem virar abóbo-
ra. É pela misericórdia que Olímpia descobre a alegria da graça,
pela qual entende o que de outro modo pareceria absurdo: “o
avião sobe é por causa da resistência do ar”. Dito de outra forma,
o que é em nós pesado e pungente, por sua extrema fragilidade
e impotência frente ao dado inelutável da morte, o que em nós
pesa e pende, ancorando-nos em uma radical temporalidade, é
isso mesmo, O CORPO, que nos possibilita o “voo impossível”
para a transcendência. Mais do que negar a dicotomia corpo-al-
ma, a poética adeliana a toma como um problema, uma questão
a qual não se pode fugir e, sustentando-se em um imaginário
essencialmente cristão, resignifica os supostos limites da nossa
corporalidade, tomando-os não como estreiteza e confinamento,
e sim como potência a ser explorada.
Quando “as cadeias se abrem” para o pleno vôo de Olímpia
retornam o Pai e a Mãe mortos e também Jonathan, o misterioso

142
cleide oliveira

personagem que havia se diluído nos últimos livros de Adélia.


Há, nesse fragmento final, o resgate do corpo pela graça: des-
cobre-se que “a glória de Deus é que o homem viva”, e por isso
o desejo é assumido sem subterfúgios, tanto o desejo de beleza
(são legítimos os “brinquinhos de ouro” e “o vestido de pano ma-
cio”), quanto o de anular a morte (desejo metaforizado nos pais
que retornam e na juventude recuperada). Erótica se faz a alma
quando a carne sensível se torna amorável, e o corpo se abre para
experimentar o desejo infinito.

143
O discurso da alegria

Dar nome ao desespero é superá-lo. Uma literatura desesperada


é uma contradição em termos
(Camus, O homem revoltado).

A poesia, a mais ínfima, é serva da esperança


(Adélia Prado, Solte os cachorros).

Em seu livro O homem revoltado, onde pretende fazer uma espécie


de genealogia da revolta e da revolução, entendidas tanto quanto
movimentos internos, ético-morais, de um sujeito que diz “não”
ante uma situação injusta quanto como uma tomada de posição
factual para mudar tal situação, Albert Camus afirma que o cer-
ne de toda revolta é uma recusa do real enquanto determinadas
condições de possibilidades que implicam em dor, morte e em
um sofrimento que não pode ser justificado por nenhuma força
ou valor externo ao homem. Assim, a revolta não se encontra

14 4
CLEIDE OLIVEIRA

meramente no plano da história das revoluções políticas e sociais


(se é que as houve), mas no plano da metafísica, e a revolta é
inerente à própria definição de homem moderno. Nesse sentido,
o arquétipo da revolta é o mito de Prometeu, que rouba o fogo
dos deuses para dar aos homens outras condições de vida, mesmo
sabendo que aquela ação lhe custaria a amizade com o Olimpo.
Outro paradigma, já no plano do humano, é Caim, que se revolta
contra uma aparentemente e gratuita preferência de Deus por
seu irmão Abel, cometendo o primeiro assassinato da historia.
Camus define o homem revoltado como aquele

(...) homem situado antes ou depois do sagrado e dedicado


a reivindicar uma ordem humana em que todas as respostas
sejam humanas, isto é, formuladas racionalmente. A partir
desse momento, qualquer pergunta, qualquer palavra é re-
volta, enquanto, no mundo do sagrado, toda palavra é ação
de graças. Seria possível mostrar, dessa forma, que nele só
pode haver para a mente humana dois universos possíveis: o
do sagrado (ou, em linguagem crista, o da graça) e o da re-
volta. O desaparecimento de um equivale ao surgimento do
outro, embora este aparecimento possa ocorrer sob formas
desconcertantes. Ainda nesse caso encontraremos o Tudo ou
Nada. A atualidade do problema da revolta depende apenas
do fato de sociedades inteiras desejarem hoje em dia manter
uma distância com relação ao sagrado. Vivemos em uma so-
ciedade dessacralizada. Sem duvida, o homem não se resume
à insurreição. Mas a historia atual, por suas contestações,
obriga-nos a dizer que a revolta é uma das dimensões essen-
ciais do homem. Ela é a nossa realidade histórica (CAMUS,
1999, p. 34).

145
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

A revolta metafísica nasce de uma recusa do real, de um


desejo de corrigir um mundo ao qual falta unidade e beleza,
elementos que serão obsessivamente procurados tanto por ide-
alizadores da revolução (Camus cita Nietzche, Hegel, Marx, os
revolucionários russos, Sade e os românticos dândis, como por
exemplo, Blake, Baudellaire, Lautréamont) quanto pela litera-
tura, em especial Camus cita o romance, que para ele vem a ser
“a correção deste nosso mundo, segundo o destino profundo do
homem”(p. 302). Para Camus, tanto a revolta quanto a arte são
filhas de um mesmo desejo de unidade:

É justo portanto dizer que o homem tem a idéia de um


mundo melhor do que este. Mas melhor não quer dizer di-
ferente, melhor quer dizer unificado. Esta paixão que ergue
o coração acima do mundo disperso, do qual no entanto não
se pode desprender, é a paixão pela unidade. Ela não de-
semboca numa evasão medíocre, mas na reivindicação mais
obstinada. Religião ou crime, todo esforço humano obede-
ce, finalmente, a esse desejo irracional e pretende dar à vida
a forma que ela não tem. O mesmo movimento que pode
levar à adoração do céu ou à destruição do homem conduz
da mesma forma à criação romanesca, que dele recebe, en-
tão, sua seriedade (p. 301).

A literatura seria então, para Camus, um espaço onde nossa


humana paixão pela unidade encontra satisfação, pois o mundo
que se organiza na economia perfeita de uma obra de literatura
é tanto uma recusa ao mundo real quanto uma integração, via
estilização, do mesmo. Na literatura, ao contrario da vida, existe
coerência e integridade nas paixões e razões experenciadas, a lite-
ratura é esse lugar onde Heathcliff (Wuthering Heights de Emily
Brontë) permanece fiel a sua loucura de amar e odiar uma mulher

146
cleide oliveira

para além dos limites da vida sem que o cotidiano miúdo, que
transforma toda paixão em cinza, interfira no trágico dessa esco-
lha. A literatura eterniza o que é etéreo, sacraliza o que é banal,
confere coerência interna ao que é pura fragmentação aleatória.
Daí, por certo, as aproximações entre literatura e morte men-
cionadas por Blanchot e Foucault: a literatura, identificada por
Foucault com a pessoa do Ulisses da Odisséia, “(...) persegue essa
palavra fictícia, confirmando-a e conjurando-a ao mesmo tempo,
nesse espaço vizinho da morte mas erigido contra ela, no qual a
narrativa encontra o seu lugar natural. Os deuses enviam seus
infortúnios aos mortais para que eles os narrem, mas os mortais
os narram para que esses mesmos infortúnios jamais cheguem ao
seu fim, e que seu término fique oculto no longínquo das pala-
vras, lá onde enfim elas cessarão, elas que não querem se calar”
(2001, p. 47-48). Escrever é, então, marcar na carne branca do
papel os signos de um mundo que se transubstancia nesse pro-
cesso, de modo a não lhe faltar mais unidade e coerência; a escri-
ta, mais especificamente a escrita ocidental, é reduplicação de si
mesma, casa de espelhos onde a palavra reverbera e se perpetua
indefinidamente, na busca de adiar o momento final de silêncio
e morte. Conforme assinala Tatiana Levy, sobre o pensamento
de Blanchot,

O grande paradoxo da arte talvez seja o fato de sua rea-


lização residir na irrealização ou, para acompanhar o pensa-
mento de Blanchot, na negação. É preciso negar o real para
se construir a (ir)realidade fictícia. A “outra coisa” fundada
pela literatura, ou pela arte em geral, é sempre, em relação
ao real, irreal. O mundo é aqui realizado pela negação de
todas as realidades particulares.
(....) A negação, assim como a morte, faz parte da pala-
vra literária. Se a linguagem comum a recusa, a linguagem

147
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

literária, ao contrario, aproxima-a de si. Na literatura, o ato


de nomear é antes “um assassinato diferido”, um gesto de
negação. A palavra literária só encontra seu ser quando re-
flete o não ser do mundo (2003, p. 23).

No prefácio de A literatura e o mal, obra que contem uma


série de pequenos ensaios sobre as relações entre a literatura e a
transgressão dos interditos impostos pelo mundo da razão e do
trabalho, Bataille identificará a literatura com a infância — tem-
po de soberana liberdade inculpada — reencontrada. Em ensaio
sobre o mesmo Wuthering Heights, ele exemplifica esse movi-
mento de soberania:

Há uma vontade de ruptura com o mundo, para melhor en-


laçar a vida em sua plenitude e descobrir na criação artística
o que a realidade recusa. É o despertar, a utilização pro-
priamente dita, de virtualidades ainda insuspeitas. Que esta
libertação seja necessária a todo artista é incontestável; ela
pode ser sentida mais intensamente naqueles em que os va-
lores éticos estão mais fortemente arraigados. É enfim esse
acordo íntimo da transgressão da lei moral e da hipermoral
o sentido último de Wuthering Heights (1989, p. 20).

Por compreender que a literatura é uma forma soberana, Ba-


taille a identifica ao Mal (à transgressão), afirmando que ela põe
a desnudo o jogo entre razão e desrazão sem, no entanto, ter ne-
nhum compromisso com a permanência do interdito. A literatura
é perigosa porque “Sendo inorgânica, ela é irresponsável. Nada se
apóia nela. Ela pode dizer tudo” (1989, p.22).

(...) o Mal, que se liga em sua essência à morte, é também,


de uma maneira ambígua, um fundamento do ser. O ser

148
cleide oliveira

não é consagrado ao Mal, mas deve, se o pode, não se deixar


encerrar nos limites da razão. Ele deve antes de tudo aceitar
esses limites, é-lhe necessário reconhecer a necessidade do
cálculo do interesse. Mas nos limites, na necessidade que
ele reconhece, ele deve saber que nele uma parte irredutível,
uma parte soberana escapa (p. 27).

Em alguns momentos Bataille parece identificar a literatura


como atualmente a única possibilidade de transgressão dos valo-
res sociais apoiados na discursividade dos saberes, que encontram
no interdito seu alicerce. A literatura se dirige ao indivíduo, e não
ao corpo social, a esse indivíduo ela “não oferece nada senão o
instante: ele é somente literatura” (p.22). A literatura é portanto
irresponsável: inútil, dispendiosa e soberana, da mesma forma
que os movimentos eróticos, que não se comprometem com a
economia social ou à preservação dos seres em sua descontinui-
dade: no erotismo dos corpos, no amor-paixão ou na mística o
indivíduo ‘desiste’ — ao menos temporariamente ou ritualmente
— da procura pela estabilidade e felicidade na individuação e
ascende a um estado de arrebatamento muito próximo da mor-
te, pois é a busca de um vazio45 — lembremos-nos de Mestre
Eckhart, místico medieval, que afirmava: “Deus é nada” —:

O que é sempre reencontrado nesses momentos de ruptura e


de morte é a inocência e a embriaguez do ser. O ser isolado
se perde em outra coisa que não ele. Pouco importa a repre-
sentação dada da “outra coisa”. É sempre uma realidade que
ultrapassa os limites comuns. Também tão profundamente
ilimitada que antes de tudo não é uma coisa; é nada (p. 23).

Não importa o “objeto” e sim o movimento. Movimento


que a literatura encena, possibilitando uma compreensão dos

149
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

mecanismos que ali se encontram em ação, formando o binômio


dialético sem síntese do interdito e da transgressão. A literatura,
enquanto recusa do real (Camus), é o Mal (Bataille), mas essa
recusa não é absoluta: nela o real se ‘harmoniza’, ganha den-
sidade e unidade; todas as peças se encaixam e o desespero é
superado. Mas não há que se pensar na literatura como obra de
um novo deus de barro — o gênio romântico—, pois ela é pura
exterioridade, espaço não-representativo onde a linguagem sub-
siste dobrada sobre si mesma, sem sujeito e sem arreios; ataque e
transgressão ao tempo judaico-cristão, que deixou de ser cíclico
(e mítico) e para dar origem a história , e com ela a um tipo de
morte absoluta que não deixa consolo.
Hoje, é na literatura que o tempo volta a ser outro que não o
do relógio: é um tempo denso e esférico, múltiplo e contraditó-
rio, onde a morte é, senão vencida, pelo menos adiada46. A lite-
ratura torna-se então uma tentativa de adiar a morte (Blanchot):
escreve-se para não morrer, tematizando-se um vazio primordial
que é aquele onde as palavras ainda não nasceram (o Fora, con-
forme Blanchot), isto é, onde as palavras testemunham de um
não-ser implícito em todo ser, “A palavra literária só encontra
seu ser quando reflete o não ser do mundo” (LEVY, 2003, p.23),
tornando-se profética (atalaia do divino) quando se gesta em um
deserto que é o pressuposto da aliança deus-homem:

O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que


estar nele é sempre estar fora, e a fala profética é então
aquela fala em que se exprimiria, com uma força desolada,
a relação nua com o Fora, quando ainda não há relações
possíveis, impotência inicial, miséria da fome e do frio, que
é o principio da aliança, isto é, de uma troca de palavras em
que se destaca a espantosa justeza da reciprocidade (BLAN-
CHOT, 2001, p.115).

150
cleide oliveira

O deserto, lugar de onde parte a voz profética que anuncia


a aliança, é, de forma simultânea, espaço de esperança e de de-
sespero, por isso sua perfeita adequação enquanto metáfora da
escrita literária. Do deserto surge o deus-homem que, após longa
e dolorosa luta com o Lúcifer, o anjo-demônio, pôde levantar
sua voz para anunciar a revolução de um novo reino, reino que,
paradoxalmente, já se fora gestado dentro de cada um daqueles
que aceitara esse discurso da alegria em meio ao mais violento
sofrimento47. È exatamente a partir dessa metáfora, da literatu-
ra como um deserto, ou seja, como um não-lugar no qual não
se pode permanecer confortavelmente, que gostaria de pensar a
relação entre literatura e (des)esperança, sendo que, aqui, o ar-
tifício de velar-desvelar a preposição des tem por objetivo buscar
articulações mais sutis que explícitas entre os substantivos litera-
tura, esperança e desespero. Para tanto remonto às citações que
servem de epígrafe ao presente ensaio, onde encontramos uma
concepção de literatura que parece apontar para um campo de
ação da literatura que não cabe em definições estreitas, quer do
mero escapismo ou de um engajamento não problemático.
Afirmar que “uma literatura desesperada é uma contradição
em termos” significa que literatura e desespero são irreconciliá-
veis? Isto é, seria afirmar que a literatura tem um compromisso
com o discurso da esperança, o que implicaria que ela assumisse
certos pactos de fala e de silêncio que garantissem seu bom-com-
portamento e submissão enquanto instrumento político e ideo-
lógico para a garantia de uma dada ordem (social, estética, reli-
giosa, intelectual, etc) ? E, seguindo o mesmo raciocínio, quando
Adélia Prado, poeta de marcada influência judaico-cristã, afirma
que a poesia, “a mais ínfima, é serva da esperança”, de que tipo
de ‘servidão’ aqui se fala, posto que a poesia (a literatura) foi
anteriormente identificada com a soberania, ou, em palavras de
Bataille, com o Mal? Essas, e outras, maiores perguntas, estarão

151
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

guiando um pequeno percurso que ora faremos pela poesia de


Adélia Prado, na qual ressaltamos, desde já, a complexa articula-
ção entre poesia e alegria em uma configuração temática que lo-
caliza o homem-humano no exato, e branco, horizonte da morte.

O que há nesse exílio que nos move? 48

Na escrita poético-ficcional de Adélia Prado as considerações


sobre a temporalidade assumem destacada importância. Em di-
versos momentos ficará claro que, para Adélia, “A grande tarefa
é morrer” (poema Campo santo, 1991), uma tarefa na qual nos
consumimos cotidianamente, pois a morte não é um ponto fora
para o qual nos movemos: ela engendra-se em nossas entranhas
e “sua graça, seu desastrado encanto/ é por causa da vida”(poema
Um homem habitou uma casa, 1991). Há nessa poesia permanente
reflexão sobre as variadas e diversas mortes que experienciamos
antes que a grande lição tenha sido aprendida: a memória, resgate
do vivido e do sonhado, restaura a coesão do mundo ao fixar na
eternidade efêmera da palavra a matéria frágil que se transfor-
ma em “lasca de tábua podre, /tiras de pano e poeira” (poema
Porfia, 1991).
Se a poesia é poeira sagrada que fica nas coisas tocadas pelo
divino, a verdade desta afirmativa não implica que haja uma este-
tização, via espiritualização, do corpo e de seus signos: em Adé-
lia, o mistério se mostra através do corpo (O homem da mão
seca, PRADO, 1999), mas para que isso ocorra é preciso que o
homem-humano seja aceito com suas demandas e limites, den-
tre esses limites, a morte, aprendizado duríssimo, porque, “Fora
os olhos dos retratos, /ninguém sabe o que é a morte” (poe-
ma Paixão, 1991). Daí poder se dizer “sem soberba ou horror:/é
em sexo, morte e Deus/ que eu penso invariavelmente todo dia”

152
cleide oliveira

(poema O modo poético, 1991), e “Não há como não pensar na


morte, / entre tantas delícias, querer ser eterno” (poema O alfa-
beto no parque, 1991). Aí encontra-se o discurso da alegria: em
um posicionamento trágico frente às experiências que compõem
a vivência do homem-humano,

Depois do féretro, o relógio bate,


Alguém faz o café, todos bebem.
Quisera lamuriar-me, erguer meus braços tentada
A pecar contra o Santo Espirito.
Mas a vida não deixa. E o discurso
acaba cheio de alegria. (poema Porfia, 1991)

Se não há recusa à dor, a poesia torna-se um discurso onde


se tenta encontrar um adjetivo para o existir, para demarcar “mais
fácil os contornos da vida:/ aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e
dor, / onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:/em
que direção se vai?”(poema Discurso, 1991). Nessa empreitada, o
poeta é tentado à lamentação, “Mas a vida não deixa. E o discur-
so/ acaba cheio de alegria” (poema Porfia, 1991), pois a poesia, “a
mais ínfima, é serva da esperança”(poema Tarja, 1991), e é tam-
bém discurso profético que re-significa o absurdo da existência,
proclamando as boas novas da salvação — salvação da suspeita de
um insuperável nonsense nos projetos humanos — em um per-
manente diálogo com o discurso cristão que, entretanto, não se
submete a sua moral platônica de mortificação do corpo e ascese,
porque convicta de que “sem o corpo a alma de um homem não
goza” (poema Tarja, 1991)
E porque é a alma quem goza, “erótica é alma” (poema Disri-
timia, 1991), verso que explicita uma concepção da relação entre
física e metafísica na qual o jogo de forças articulado desde Platão
ganha súbito e admirável equilíbrio. O corpo é aceito em suas

153
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

demandas49, e assumido enquanto locus onde a hierofania pode


se dar, corpo que deixa de ser pacifico ou neutro (moderno) para
tornar-se trágico, no sentido em que seja uma estrutura aberta
premida pela temporalidade e pela beleza:

(...)
Me mata Jonathan, com sua faca,
Me livra do cativeiro do tempo.
Quero entender suas unhas,
O plano não se fixa, sua cara desaparece.
Eu amo o tempo porque amo este inferno,
este amor doloroso que precisa do corpo,
da proteção de Deus para dizer-se
nesta tarde infestada de pedestres.
Ter um corpo é como fazer poemas,
pisar margem de abismos,
eu te amo.
Seu relógio,
incongruente como meus sapatos,
uma cruz gozosa, Ó Félix Culpa!

Félix Culpa é um conceito teológico usado para explicar, na


teologia cristã, a articulação entre pecado e graça. A culpa, o pe-
cado de não ser o que se é, ou seja, não sermos divinos, quando
foi a própria mão de YAHVE que nos imprimiu no barro pri-
mordial, torna-se graciosa, feliz, porque é condição de possibi-
lidade para a manifestação da Graça, na pessoa do deus-homem
(o Cristo). A temporalidade é um cativeiro do qual não se pode
escapar, pois é nele que se inscreve o corpo, um corpo que não
será descartado nem mesmo com a esperança cristã da ressurrei-
ção, como aparece no poema O reino do céu (1991):

154
cleide oliveira

Quando eu ressuscitar, o que quero é


a vida sem perigo da morte,
os riscos todos, a garantir:
à noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descasaremos porque a sirene apita
e temos que trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu.

Ressalto aqui a impressionante subversão do mito judaico-


-cristão da ressurreição da carne a partir de uma concepção de
tempo cíclico (mítico), onde as coisas se repetem, festivamente e
indefinidamente, e por isso nada mesmo morre.
Ter um corpo é estar submerso em mistério, “pisar margem
de abismos”, pois o corpo é a matéria da poesia, espaço do qual
precisamos nos aproximar, localizar nosso discurso dentro e a
partir dele, no sentido em que seja preciso superar a dicotomia
corpo-espirito, ou corpo-mente, em prol de erotização da alma.
A beleza, então, não deve ser entendida dentro dos padrões clás-
sicos de equilíbrio, perfeição e simetria, mas sim enquanto po-
tência de vida, re-velação do real. Em uma de suas entrevistas
Adélia fará uma afirmação que ajuda a esclarecer sua concepção
de beleza, e a relação desta com a arte:

Há pessoas que não suportam a beleza. Sabem por que?


Porque ela revela o real, e nem sempre eu quero o real.
Por exemplo, às vezes eu quero exatamente, com a arte, fu-
gir da realidade. Então eu não estou fazendo arte, pode ter
certeza absoluta. Por isto que os governos fortes, as dita-
duras, têm pavor da arte verdadeira, porque ela revela, ela
desnuda (2004).

155
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

Em Adélia há uma clara consciência de que a poesia seja


soberana, isto é, ela não se identifica com o poeta, diz ela em
entrevista ao Cadernos de Literatura: “Você não pode ficar bobo,
confundir o livro com você. A boniteza do livro com a sua”.
A poesia é intrinsecamente religiosa, mesmo aquela poesia feita
por poetas ateus, ou seja, religiosa no sentido mais profundo do
termo: como re-velação, epifania do real (2001, p.36). Em outra
entrevista ela diz:

A poesia, a poesia verdadeira é sempre “epifânica”; ela revela


e a beleza dela é isto. A beleza não é o assunto. Eu posso
falar pessimamente sobre pores-de-sol e madrugadas e fazer
um texto insuportável. Em arte, a beleza não é do tema,
é da forma. E se a beleza está na forma qualquer assunto
me serve, qualquer coisa é a casa da poesia. Ela não recusa
absolutamente nada que diz respeito à experiência humana,
porque ela guarda, na sua forma, exatamente esta revela-
ção - é só “olhos de ver”. Por isso é que a Bíblia, e todas as
escrituras sagradas de todas as religiões, sobrevivem há mi-
lênios, há séculos e séculos, por causa da linguagem. É por
causa da linguagem. Os teólogos falariam aqui: “É por causa
de Deus”. É, mas eu estou falando a mesma coisa. É uma
linguagem divina. A linguagem da arte é divina. Isto não é
uma força de expressão. Eu acho que isto pode ser traduzido
de forma literal, porque o poeta, o artista, rigorosamente
falando, não é o criador de sua obra, isto é impossível (...)
(2001)

Está em jogo uma concepção de poesia como capacidade de


nomeação e instauração da beleza, possibilidade que só o humano
tem de fixar na palavra a realidade pungente do mundo:

156
cleide oliveira

Me imploram amor Deus e o mundo,


sou pois mais rica que os dois,
só eu posso dizer á pedra:
és bela até à aflição;
o mesmo que dizer è Ele:
sois belo, belo, sois belo! (poema Ex-voto, 1991)

A poesia é aqui identificada com o amor — ‘Me imploram


amor Deus e o mundo’50 — , riqueza que pertence ao poeta, pois
apenas ele é capaz de, pela palavra cantada, trazer à presença51 o
ser das coisas e do próprio sagrado, dando-lhes permanência e
verdade. Nesse sentido, esse Deus que aparece em Adélia precisa
do poeta porque as palavras são seu alimento (poema O poeta
ficou cansado, 1991) e sua carne, não sendo a poesia outra coi-
sa “senão Sua Face atingida/da brutalidade das coisas” (poema
Guia, 1991). Ferido de morte, ferido pela beleza do mundo52,
o poeta-profeta encontra-se no deserto, sem descanso e cheio
de dor, onde, mesmo cansado, não poderá desistir do encargo
de arauto divino, e o poema será um ex-voto entregue no altar
da Palavra.
Aqui podemos retornar a pergunta com a qual iniciamos o
percurso pela poesia de Adélia Prado: qual as relações mais gerais
que podem ser estabelecidas entre literatura e (des) esperança a
partir da poética adeliana? Ou, de outra forma, afirmar que a lite-
ratura é fonte de esperança não significa que a mesma deva fazer
concessões que necessariamente irão limitar sua soberania? Creio
que não seja assim. O próprio Camus deixa bem claro, em sua
argumentação sobre as proximidades entre revolta e literatura,
essa última entendida enquanto locus -produtor de unidade cujo
nome é beleza, que “Sem dúvidas a beleza não faz revoluções”
(1999, p. 317), mas invariavelmente as revoluções sentem neces-
sidade da beleza, pois que essa se funda na dignidade da pessoa

157
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

humana, e esse é um ponto de convergência bastante significa-


tivo com a obra de Adélia Prado, onde um dos temas centrais
e articuladores são as considerações sobre o homem-humano.
Encontramos nessa obra uma comovente defesa do humano, que
se vê despojado de suas pretensões ‘heróicas’ para encontrar re-
denção na “inocência da carne” revelada pelo humaníssimo corpo
de Cristo pendurado na cruz: “Jesus tem um par de nádegas!/
Mais do que Javé na montanha/ esta revelação me prostra” (poe-
ma Festa do corpo de Deus).
Revolta e literatura, que têm assim em comum a mesma
recusa à história, tomam caminhos necessariamente diferentes
em sua busca pela unidade do real: “A arte é uma exigência de
impossível `a qual se deu forma” (CAMUS, 1999, p. 311), e ne-
nhum possível transitório (nenhuma revolução) é suficiente para
matar no homem essa sede excessiva que o conduz aos desertos
onde se gesta a literatura, que “parece sempre buscar a ruptura
final” (BLANCHOT, 2001, p. 124).
Adélia Prado narra uma história que me parece paradigmáti-
ca para entender essa relação entre o humano, a beleza e a trans-
cendência que postulamos como o princípio constitutivo para
explicar a relação entre literatura e esperança:

Conheci um homem muito simples, ferreiro e a escolarida-


de dele era só até o 3º ano primário. Mas ele plantava jardim
em sua casa. Quando ele fazia jardim, falava assim: “Eu não
gosto de canteiro quadrado, é muito sem poesia. Eu gosto
de um “fingimento” de lua, de um “fingimento de estrela”.
Olha que coisa fantástica! Um ‘fingimento’ . E aquilo que
era ‘fingimento’ para ele era o mais profundo de sua alma,
era expressão da beleza, da busca da necessidade de beleza. A
arte tem esse papel na sua natureza — de salvação, porque
ela toca naquilo que em mim é mais precioso, que não tem

158
cleide oliveira

preço. Não tem preço meu desejo de beleza. Para o desejo


de meu coração o mar é uma gota. Quem é que dá conta de
exprimir o seu desejo? Não tem ninguém. Ele é infinito e a
arte é uma forma, um referencial que fala: “Olha, ‘segurei’
para você! (2004, p. 02)

E, em outro momento, a autora complementa:

A arte não tem função, sua natureza não se presta a nenhum


uso, a nenhuma instrumentalização. Serve para aquilo que
é individual, pequeno, limitado e precário encontre atra-
vés dela uma significação de natureza universal e, portanto,
de transcendência. Qualquer arte - pintura, música, cine-
ma, literatura - onde eu consiga falar da minha pequena
dor pessoal, do meu pequeno medo, do meu pavor, do meu
pânico, da minha doença, da minha paixão; onde eu en-
contre uma linguagem para isto, um signo, me descansa...
(PRADO, 2004)

“Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, / Eu


já respiro melhor” (poema Ex-voto, PRADO, 1991), afirma a
poeta, em consonância com Camus, quando o mesmo diz que
nomear o desespero já é superá-lo. Assim, a arte, a literatura
em especial, é fonte de esperança na exata medida em que se
dispõe a tematizar o desespero. Mas, ainda assim, a literatura
não pode se datar, pondo-se `a serviço desse ou daquele discurso
histórico contingencial, pois com isso ela perde sua soberania,
logo, o caráter prioritariamente sagrado que possui, e sagrado
aqui entendido dentro do contexto batailliano de festa e excesso
em oposição ao mundo do trabalho e da discursividade racional.
A arte como forma, e não como conteúdo, essa é a proposta
de Adélia Prado, para quem a poesia “já diz aprioristicamente,

159
O B R I L H O Q U E A R A Z ÃO N ÃO D E VA S S A

necessariamente, ontologicamente” o seu tempo (2004, p. 25),


daí a constatação de que seu discurso tem certas especificidades
que o tornam independente do político, filosófico e sociológico,
pois “A única fidelidade que um poeta tem que ter é com a po-
esia” (2004, p. 25).

160
Referências

ALI, Fátima, 2012. Um país de memória e sentimento: alguns


temas na poesia de Adélia Prado. Dissertação. Porto Alegre:
UFRGS, 2012, 93p.

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renas-


cimento: o contexto de François Rabelais. Trad. de Yara Frates-
chi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da Universidade de
Brasília, 1987.

BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Edi-


tores, 1987.

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. de Suely San-


tos. Porto Alegre: LP & M, 1989.

BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo:


Ed. Vida, 1997

161
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

CASSIRER, Ernst. Mito e linguagem. São Paulo: Perspectiva,


2000.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Deus: experiência origi-


nante e originária. O texto materno-teologal de Adélia Prado.
DE MORI; Geraldo; SANTOS, Luciano; CALDAS, Carlos
(orgs). Aragem do sagrado: Deus na literatura brasileira con-
temporânea. São Paulo: Loyola, 2011.

BLANCHOT, Maurice. A palavra profética. In: O livro por vir.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BORGES, Jorge Luis. O milagre secreto. In: Ficções. São Pau-


lo: Globo, 2001.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. São Paulo: Record, 1999.

CANALLE, Cecília. Fundamentos filosóficos da poética de


Adélia Prado: subsídios antropológicos para uma filosofia da
educação. (Dissertação) São Paulo: FEUSP, 1996.

CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva,


2000.

CRIPPA, Adolpho. Mito e cultura. São Paulo: Ed. Convívio,


1975.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

FLUSSER, Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de


realidade. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.

162
cleide oliveira

FOUCAULT, Michel. A linguagem ao infinito. In: Ditos e es-


critos. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2001.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Mar-


tins Fontes, 2002.

FRANCHETTI, Paulo. Pós-tudo: a poesia brasileira depois de


João Cabral. Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa.
Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 253-289.

FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. São Paulo:


Duas Cidades, 1978.

GALIMBERT, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e


a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis:


Vozes, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Arte y poesía. México: Fondo de Cul-


tura Económica, 1973.

———. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Que é isto, a filosofia? Conferências e escritos filosó-


ficos. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

HOHLFELDT, Antônio. A epifania da condição feminina. Ca-


dernos de Literatura Brasileira – Adélia Prado. Rio de Janeiro:
Instituto Moreira Salles, 2000, p.69-120.

163
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

JARCZYK, Gwendoline; LABARRIÉRE, Pierre-Jean. Introdu-


ção. ECKHART, Meister. Sobre o desprendimento e outros
textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 61 p.

LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Fou-


cault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relumé Dumara, 2003.

LOPES, Antônio Herculano. Adélia Prado: uma entrevista.


Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa-Ministério da
Cultura, 1995, 39p.

MCGINN, Bernard. As fundações da mística. Das origens ao


século V. Tomo I. São Paulo: Paulus, 2012.

MELO NETO, João Cabral. Da função moderna de poesia.


Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2003, p. 765-770.

MOREIRA, Ubirajara Araújo. Uma poética da casa. UNILE-


TRAS 22, dezembro 2000, p. 81-104.

MORICONI, Ítalo. Como e porque ler a poesia brasileira do


séc. XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, 153p.

NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lu-


gares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, 1993, p. 7-28.

OLIVEIRA, Cleide Maria de. Do corpo à palavra, da Palavra ao


corpo: algumas reflexões sobre o complexo erotismo, místicas e
poesia. Dissertação. Rio de Janeiro: PUC- Rio, 2005.

OTTO, Rudolf. Lo santo, lo racional y lo irracional en la idea


de Dios. Madrid: Allianza Editorial, 2005.

164
cleide oliveira

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1982.

______. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano,


2001.

______. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.

PLATÃO. Íon. Tradução, apresentação e notas Cláudio Oliveira.


Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1976.

______. Os componentes da banda. Rio de Janeiro: Guanabara,


1985.

______. Poesia reunida. 3.ed. São Paulo: Siciliano, 1991.

______ . Prosa reunida. São Paulo: Siciliano, 2001.

______ . Filandras. Rio de Janeiro: Record, 2002.

______. Quero a minha mãe. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______. A duração do dia. Rio de Janeiro: Record, 2010.

______. Entrevista. In: CANALLE, Cecília. Fundamentos fi-


losóficos da poética de Adélia Prado – subsídios antropológicos
para uma filosofia da educação. (Dissertação) São Paulo: FEUSP,
1996, em anexo, 110 p.

165
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

______. Entrevista. Programa Roda Viva, em 05/09/1994.

______. Entrevista. Cadernos de Literatura Brasileira. Rio de


Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2001.

______. Entrevista concedida a Walter Cabral de Moura. En-


contros de escrita, dezembro de 2001. Acessado em http://www.
escritas.hpg.ig.com.br/adeliaprado.htm, em 20/04/02.

______. Mística e poesia. Conferência realizada no Centro


Loyola e publicada pela Magis Revista de Fé e Cultura. Catálogo
organizado por BINGEMER, Maria Clara Lucchetti e YUNES,
Eliana. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2004.

ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. A escritura silenciosa: uma


análise filosófica do discurso místico. Revista Olhar, UFSCar, v.
10, 2004. Rui Barbosa-Ministério da Cultura, 1995.

SALOMÃO, Margarida. Prefácio. PRADO, Adélia. Bagagem.


Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, 5ª edição, p.7-14.

SCORSOLINI-COMIN, Fabio; SANTOS, Manoel Antônio


dos. A etérea duração do dia: gênero na poética encarnada de
Adélia Prado. Psicol. estud. 2013, vol.18, n.1, pp. 3-13.

SILVA, Dora Ferreira da; LEPARGNEUR, Hubert. Angelus


Silesius: a mediação do nada. São Paulo: T.A; Queiroz, 1986,
81 p.

SOARES, Angélica. A natureza imaginativa da memória: Cecília


Meireles e Adélia Prado. IPOTESI, Juiz de Fora, v. 7, n. 13,
jan./jun. 20, 2011, p.165-176.

166
cleide oliveira

SPERBER, Suzi Frankl. Adélia Prado: a poesia como ascese.


Lusorama. Zeitschrift für Lusitanistik nº 31. Anno XII. Frank-
furt am Main: Johann Wolfgang Goethe Universität - Institut
für Romanische Sprachen und Literaturen, 1996: p. 38-50.

STEINER, George. Presenças reais: as artes do sentido. Lisboa:


Editorial Presença, 1993.

TORRANO, A. A. (tradução e estudo introdutório). O mundo


como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos
deuses. São Paulo: Editora Iluminuras, 1995.

YUNES, Eliana. Para gostar de Adélia (e de Jonathan). Revista


Magis – Cadernos de Fé e Cultura, Centro Loyola de Fé e Cul-
tura/PUC, Rio de Janei- ro, n. 46, set., 2004.

167
Notas de fim

1. “... o homem religioso é acessível a uma série infinita de ex-


periências que poderiam ser chamadas de “cósmicas”. Tais ex-
periências são sempre religiosas, pois o Mundo é sagrado. Para
chegar a compreendê-las, é preciso ter em mente que as prin-
cipais funções fisiológicas são suscetíveis de se transformar em
sacramentos. Come-se ritualmente, e a alimentação é diversa-
mente valorizada segundo as diferentes religiões e culturas: os
alimentos são considerados sagrados, ou um dom da divindade,
ou uma oferenda aos deuses do corpo (como é o caso, por exem-
plo, da Índia). A vida sexual, como vimos, também é ritualizada
e, em conseqüência, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuva,
semeadura) e aos atos divinos (hierogamia Ceu- Terra). Por ve-
zes, o casamento é valorizado em plano triplo: individual, social
e cósmico. Por exemplo: entre os Omaha, a aldeia é dividida em
duas metades, chamadas respectivamente Céu e Terra. Os casa-
mentos só podem ser realizados entre as duas metades exógamas,
e a cada novo casamento repete-se o hieros gamos primordial: a
união entre a Terra e o Céu.” ELIADE, 2001, p. 139.

168
CLEIDE OLIVEIRA

2. O filosofo theco Vilém Flusser defende que a noção de reali-


dade encontra-se diretamente relacionada com nossas concepções
religiosas, sendo que a religiosidade se relaciona diretamente com
a percepção que um determinado tempo histórico possui da rea-
lidade; em tempos pré-modernos todo o universo possuía uma
dimensão sacra, e o cosmos se ‘revelava’ em uma simples folha de
laranjeira: o mundo era, conforme sinaliza Foucault, uma grande
rede de signos analógicos que se auto-referenciavam, apontando
para o Supremo Arquiteto. Na medida em que avançou o pro-
cesso de secularização e desencantamento (conforme apontado
por teóricos tais como Weber) da realidade, o sagrado foi sendo
identificado progressivamente com o conhecimento científico,
tecnológico e logocêntrico de um mundo apaziguado, em que
as forças anímicas desconhecidas tinham sido inteiramente der-
rotadas pela luz ofuscante da razão (FLUSSER, 2002). Outros
autores que estão interessados em compreender a religiosidade
humana igualmente relacionam sagrado, realidade e linguagem,
como por exemplo Mircea Eliade, Ernest Cassirer e Adolpho
Crippa, conforme será discutido no decorrer desse e dos próxi-
mos capítulos.

3. Tal interseção será melhor detalhada no capítulo 3.

4. Referência ao verso “Qualquer coisa é a casa da poesia”, pri-


meira epígrafe do livro “O coração disparado’, de Adélia Prado.

5. Sobre esse aspecto de rito e sacrifico que relaciono ao poema


cabe citar um trecho de Heidegger, em que o mesmo analisa as
proximidades entre poesia, pensamento e linguagem: “Mas, pelo
fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de
modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso
encontro que medita sobre a filosofia é levado a discutir a relação

169
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

entre o pensar e o poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera


um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem,
intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto,
se abre ao mesmo tempo um abismo, pois “moram nas mon-
tanhas mais separadas”. (grifo nosso, HEIDEGGER, 2005, p.
40). E também Octavio Paz sobre o mesmo tema afirma que na
imagem poética o sentido é sacrificado no altar da língua, ope-
ração que produz uma terceira margem onde isto e aquilo, pala-
vras e coisas, podem enfim se reconciliar naquilo que ele chama
de núpcias dos contrários: “Com efeito, a linguagem é sentido
disto ou daquilo. O sentido é o nexo entre o nome e aquilo que
nomeamos. Assim, implica distância entre um e outro. Ao anun-
ciarmos certa classe de proposição (“o telefone é comer”, “Maria
é um triângulo”, etc) produz-se um sem-sentido porque o obje-
to torna-se insalvável: a ponte, o sentido rompeu-se. O homem
fica só, encerrado em sua linguagem. Com a imagem sucede o
contrário. Longe de aumentar, a distância entre palavra e coisa
se reduz ou desaparece por completo: o nome e o nomeado são
a mesma coisa. O sentido — na medida em que é nexo ou ponte
— também desaparece; já não há nada que aprender, nada que
assinalar. Mas não se produz o sem-sentido ou o contra-sentido
e sim algo que é indizível e inexplicável, exceto por si mesmo”
(PAZ, 2003, p. 49, grifo nosso).

6. O homem-humano é um dos temas centrais e articuladores de


toda a obra adeliana, quer seja poética ou em prosa. Encontramos
em Adélia uma comovente defesa do humano, que se vê des-
pojado de suas pretensões ‘heróicas’ para encontrar redenção na
“inocência da carne” revelada pelo humaníssimo corpo de Cristo
pendurado na cruz: “Jesus tem um par de nádegas!/ Mais do que
Javé na montanha/ esta revelação me prostra” (poema Festa do
corpo de Deus). Em minha dissertação de mestrado exploro as

170
cleide oliveira

ambivalências dessa religiosidade corpórea em uma obra cujas


influências cristãs (e, logo, platônicas) são assumidas sem subter-
fúgios, (OLIVEIRA, 2005).

7. Muito embora essas relações de poder estejam em um plano


bem mais amplo que o das relações humanas, não há como es-
quecer todas as imbricações entre discurso e poder (aqui em um
sentido histórico) que a linha de estudos da análise do discurso
vem articulando, principalmente a partir das pesquisas do russo
Michail Bakthin.

8. Essa é uma ideia defendida tanto por Bataille quanto por Oc-
távio Paz, como veremos em outros ensaios.

9. Ver notas 23 e 25.

10. Ver notas 23 e 25.

11. Ver: Marcos 3: 1-5 (BÍBLIA SAGRADA, 1997), e também o


romance O homem da mão seca (2001, p. 382-383).

12. Do alemão “ganz andere”, termo cunhado por Rudolf Otto


para designar os aspectos irracionais da experiência com o sa-
grado, significando a manifestação de uma realidade em tudo
diferente das realidades naturais, experiência que é inexprimível,
dando ao homem a sensação de profunda impotência e temor.
Otto adota uma perspectiva de análise do sagrado em que são
priorizados seus aspectos irracionais, até então desprezados pelas
interpretações do sentimento religioso que se concentravam em
suas manifestações institucionalizadas. De acordo com ele, é pre-
ciso “limpar” o termo sagrado das conotações morais que se im-
pregnaram nele. Assim, ele opta pelo termo numinoso (do latim

171
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

“numen”, deus) para captar sua essência: diante de uma realidade


que não se assemelha em nada à realidade humana ou cósmica, o
homem experimenta uma reação de nulidade e profunda depen-
dência que se traduz em sensação de aniquilação e terror diante do
numinoso. O sagrado é mysteriun tremendum, diante do qual ex-
perimentamos um “sentimento de estado de criatura” que é exem-
plarmente ilustrado pelo episódio bíblico de Moisés no Monte
Sinai onde, diante da manifestação hierofânica da sarça ardente,
Moisés é intimado a se aproximar com os pés descalços, “porque
o lugar em que tu estás é terra santa” (Êxodo 3:5). Para Otto, o
sagrado é irredutível a qualquer outra realidade, a experiência do
sagrado se faz acompanhar pelos sentimentos de arrebatamento,
fascinação e espanto: “Pero el misterio religioso, el auténtico mi-
rum es – para decir-lo caso da manera mas justa – lo heterogéneo
en absoluto, lo thateron, anyad, alienum, lo extraño y chocante,
lo que se sale resueltamente del círculo de lo consuetudinario,
compreendido, familiar, intimo, oponiéndose a ello y, por tanto,
colma el ánimo de intenso asombro” (OTTO, 2005, p. 38).

13. Os vocativos podem ser entendidos como esse esgotamento


da linguagem diante de um realíssimo impossível de ser dialo-
gado. Essa interpretação parece coerente com algumas posições
assumidas pela autora, quer em sua poética, quer em reflexões
metalinguísticas; em conferência sobre a intercessão entre mís-
tica e poesia a autora dirá: “Eu acredito que os vocativos são
o princípio de toda a poesia. Quando você fala assim: “Oh tu!
Oh, vós!” Não há mais o que dizer. A poesia, como a filosofia,
nasce de um sentimento de admiração e perplexidade. Então, o
vocativo, para mim, é puramente poesia” (PRADO, 2004). Esse
posicionamento reaparece em sua poesia, onde encontramos o
seguinte verso: “Os vocativos / são o princípio de toda poesia”
(poema Genesíaco, 1991).

172
cleide oliveira

14. Em outra entrevista, Adélia dirá: “O poema está a serviço


da beleza, mais nada. Não se permite ser usado para doutrinas
políticas, filosóficas ou religiosas. Odeia engajamentos, não se
vincula, não é assunto, é forma” (PRADO, 2001).

15. Termo que Bakhtin utiliza para caracterizar a cultura popu-


lar da Idade Média e Renascimento, em cujo imaginário predo-
minava o princípio material e corporal que, entretanto, aparece
“sob a forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o
corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e
indivisível, é um conjunto alegre e benfazejo” (BAKHTIN, 1987,
p. 17). Em relação à poesia de Adélia, o termo é utilizado lato
sensu, isto é, apontando para a dimensão corpórea que o sagrado
assume nessa poética.

16. “A rotina perfeita é Deus” afirma um dos versos do poema


Mural (1991).

17. Ver notas 23 e 25.

18. Todos os títulos, subtítulos e a epigrafe do artigo são trechos


ou partes de poemas adelianos, quais sejam: o título do ensaio,
do poema O poeta ficou cansado (Oráculos de maio, 1999); a
epigrafe do poema Nigredo (A faca no peito, 1988); os subtítulos:
de Bagagem (1976), O coração disparado (1978) e Oráculos de
maio (1999).

19. Sobre as relações entre a estética moderna, em especial a


poesia, e a religião ver os estudos de FRIEDRICH, 1978 e de
PAZ, 1982 e 1984.

173
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

20. Autores diversos vão defender que a arte, de forma geral,


seja sempre um desejo de presença e transcendência, como por
exemplo George Steiner, para quem toda arte pressupõe uma
“presença” que garanta a possibilidade de que “haja alguma coisa
dentro do que dizemos”. Tal presença pode ser a idéia de Deus,
as idéias platônicas, a essência aristotélica ou tomista, a cons-
ciência cartesiana, a lógica transcendental de Kant ou mesmo o
“Ser” de Heidegger. Toda criação estética seria, para Steiner, uma
imitação daquele evento mítico em que o Verbo é pronunciado,
rompendo com o caos primordial e construindo o nosso cosmos.
Segundo ele “A atribuição de beleza à verdade e ao sentido ou é
uma flor de retórica ou uma declaração teológica. É uma teolo-
gia, explicita ou recalcada, mascarada ou confessa, substantiva ou
figurada, que garante o pressuposto da criação e do sentido nos
nossos encontros com os textos, com a música e com a arte. O
sentido do sentido é um postulado transcendente” (1993, p. 28).

21. Sobre a aproximação entre a experiência mística e estética


indico o interessante ensaio de Silvia Velloso Rocha (2004), para
quem a dificuldade que há para a descrição dos êxtases místicos é
a mesma que encontramos quando tentamos descrever um objeto
sem representação prévia. Dessa premissa a autora deriva que o
que há na mística não é a experiência de uma presença objetiva
transcendente, “não é apenas a experiência de alguma coisa que
não se pode representar, mas a percepção da impossibilidade de
se representar todas as coisas”. Assim, no êxtase, é a própria exis-
tência sensível que é “percebida subitamente como intensamente
desejável e sobretudo como intensamente real”. O êxtase místico,
fim último da experiência, seria uma espécie de revelação do ca-
ráter intrinsecamente incognoscível do mundo quando despido
da capa modeladora das representações.

174
cleide oliveira

22. Afirma Paz: “A necessidade de expiar, como a não menos


imperiosa da redenção, brotam de uma falta; não no sentido mo-
ral da palavra, mas em sua acepção literal: somos pouco ou nada
diante do ser que é tudo. Nossa falta não é moral: é insuficiência
original. O pecado é ser pouco” (PAZ, 1982, p. 177).

23. Tanto Octávio Paz quanto Georges Bataille aproximam as


experiências do erótico, do sagrado e da poesia, entendendo que
são experiências (do) limites nas quais o homem vivencia aquilo
que lhe excede (BATAILLE, 1987; PAZ, 1982 e 2001).

24. Penso que essa afirmativa de Paz poderia ser estendida para a
arte de forma geral, mas nesses trechos comentados o autor se re-
fere especificamente desse poder ao mesmo tempo transgressivo
(a poesia desestabiliza as noções de identidade e de não contradi-
ção sobre as quais se erigiu a discursividade ocidental na medida
em que pela palavra poética “as pedras são plumas”) e arcaico (o
ato poético é festa, comunhão e rito, inserindo-se na zona do
sagrado pela recuperação das “origens” mágicas da linguagem)
da palavra poética.

25. Na verdade, para Octávio Paz, a experiência de outridad acon-


tece não apenas mediante a poesia e/ou a experiência estético-re-
ligiosa do mundo, mas também pelo erotismo. Para Paz nessas
experiências (poesia, mística e erotismo) “lateja a nostalgia de um
estado anterior” de unidade e identidade do ser. O encontro com
outridad desafia o homem a uma experiência radical de êxodo e
dissolução do eu: “A verdade é que na experiência do sobrenatu-
ral, como na do amor e na da poesia, o homem se sente arrancado
ou separado de si. E a essa primeira sensação de ruptura segue-se
outra de total identificação com aquilo que parecia alheio e no
qual nos fundimos de tal maneira que já não é distinguível e

175
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

separável de nosso próprio ser. Por que não pensar então que
todas essas experiências têm por centro algo mais antigo que a
sexualidade, a organização econômica ou social, ou qualquer ou-
tra “causa”?”. (PAZ, 1982, p. 163-164). Em minha dissertação
de mestrado eu analiso as aproximações entre essas experiências
limites (erotismo, mística e poesia) tanto em Octávio Paz quanto
em Georges Bataille (OLIVEIRA, 2005).

26. É possível detectar a aproximação entre o poeta e o sacerdote/


mago em culturas das mais diversas, mas esse não é meu objetivo
aqui, de modo que fico apenas com a referência ao Íon, de Platão,
onde são lançadas as bases de uma compreensão que relaciona
“inspiração poética” e “voz divina” que fará tradição, em especial
após o Romantismo. Veja a citação seguinte, bastante elucidativa
dessa aproximação entre poesia e sagrado: “Sócrates – Dizem-nos
os poetas, justamente, que é de certas fontes de mel dos jardins e
vergéis das Musas que eles nos trazem suas canções, tal como as
abelhas, adejando daqui para ali do mesmo modo que elas. E só
dizem a verdade. Porque o poeta é um ser alado e sagrado, todo
leveza, e somente capaz de compor quando saturado do deus e
fora do juízo, e no ponto, até, em que perde todo o senso. En-
quanto não atinge esse estado, qualquer pessoa é incapaz de com-
por versos ou vaticinar. Porque não é por meio da arte que dizem
tantas e tão belas coisas sobre determinados assuntos, como se dá
contigo em relação a Homero [...]”. (PLATÃO, 2011)

27. “Palavras, quero-as antes como coisas”, dirá a poeta no poema


Em português, de A faca no peito, 1988; os demais poemas cita-
dos nesse trecho são respectivamente dos seguintes livros: A faca
no peito (1988); Terra de Santa Cruz (1981); O pelicano (1987);
A faca no peito (1988), todas as citações foram feitas a partir da
edição da reunião de sua prosa, de 2001 .

176
cleide oliveira

28. O livro de poemas imediatamente anterior foi A faca no peito


(1988), onde é soberana a presença ficcional de Jonathan, perso-
na que desaparecerá em publicações posteriores. No mesmo ano
da publicação de Oráculos de maio Adélia publica outro livro de
prosa, Manuscritos de Felipa (1999). O livro de ficção imediata-
mente anterior a esse é O homem da mão seca, de 1994, publicado
após longos anos de silêncio nos quais a autora teve uma aguda
crise de depressão. Então, creio haver alguma significação no fato
de o poema em questão ser aquele que abre seu primeiro livro
após um silêncio poético de 11 anos e uma crise depressiva de-
clarada pela autora.

29. Na conferencia Mística e poesia já citada Adélia afirma: “Este


é o papel da arte, é ‘segurar’ para mim a minha experiência hu-
mana. Não a minha pequena dor apenas, mas a dor universal
[...].Van Gogh pinta os girassóis dele e fala: ‘Ai, graças a Deus.
Agora eu posso descansar. Não quero nem mais saber de giras-
sol. Ele já está aqui’. É porque ele pega exatamente a qualidade
imortal da experiência, que é a idéia a que nós estamos chegando
- a qualidade epifânica da poesia. A poesia, a poesia verdadeira é
sempre ‘epifânica’; ela revela e a beleza dela é isto (1997, p. 03).

30. No romance O homem da mão seca (1994) a personagem


Antônia nos dirá: “O mistério vai se mostrar através do corpo”.

31. Do grego: οὐ (não) + τόπος (lugar) = utópico.

32. Apenas para esclarecer, as regras mudam de um tempo histó-


rico e de estética literária para outra, o que é “desobediência” para
uma dada cultura literária – por exemplo, o verso livre moder-
nista, em especial a chamada fase heróica que rejeitou virulenta-
mente os rigores parnasianos - torna-se regra para outra.

17 7
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

33. Tradução de Guilherme de Almeida.

34. As proximidades entre esses poemas já foi destacada por Íta-


lo Moriconi, que lê o ‘Poema de sete faces’ como uma paródia da
figura do albatroz, de Baudelaire: “A ironização e banalização do
caráter demoníaco da subjetividade moderna, que Drummond
opera ao despi-la de qualquer pathos maior, colocando-a como
efeito prosaico de alguns goles de conhaque (bebida adorada pe-
los boêmios mineiros....), mostra-nos o quanto sua poética nasce
no intuito de relativizar Baudelaire (....)” (MORICONI, 2002,
p. 127).

35. A menção dessa metáfora ardilosa que tantas vezes foi usada
de forma misógina para caracterizar o feminino não é ingênua,
ou seja, não desconsidera a ideologia que se esconde atrás dessa
simbologia de fundo judaico-cristão. A esse respeito lembro a
admirável Lúcia, do Lucíola de Alencar, Anjo-lúcifer que en-
carna as falsas dicotomias prazer-pureza às quais o feminino se
viu preso durante milênios. E é contra esse falso embuste que a
poesia de Adélia Prado investe artilharia pesada, postulando a
inocência do corpo e sua abertura à experienciação do sagrado.
O já citado Lucíola, de Alencar, é exemplar em sua tentativa de
captar as ambigüidades do feminino sem, no entanto, conseguir
se libertar dos próprios preconceitos. Cito aqui trecho excelente
do cap. VIII, onde Lúcia assumirá, como lasciva cortesã, a li-
berdade que tanto assustou Paulo: “Sedenta de gozo, era preciso
que o bebesse por todos os poros, de um só trago, num único e
imenso beijo, sem pausa, sem intermitência e sem repouso. Era
serpente que enlaçava a presa nas suas mil voltas, triturando- lhe
o corpo; era vertigem que vos arrebatava a consciência da própria
existência, alheava um homem de si e o fazia viver mais anos em
uma hora do que em toda a sua vida”.

178
cleide oliveira

36. “A marca pessoal como conditio sine qua nom da fala, do


escrito”, (MORICONI, 2002, p. 138).

37. Em entrevista ao Programa Roda Viva, em 05/09/1994, Adé-


lia defende a amplitude da assimilação da linguagem poética,
contrapondo-se a um discurso generalizado pela crítica de que
entre a poesia moderna e o grande público haveria um abismo de
incompreensões (veja-se, por exemplo, as posições de João Ca-
bral, anteriormente citado, em sua conferência Da função moder-
na de poesia, de 1954, onde afirma “escrever é agora uma atividade
intransitiva”). Quatro décadas após dirá Adélia: “Eu quero dizer
uma coisa: uma vez eu li um poema, aquele poema Casamento
[poema do livro Terra de Santa Cruz, publicado em 1981], na
televisão, e, em Divinópolis, uma senhora simples, uma dona
Maria, uma mulher do povo, falou comigo assim: “Gostei demais
daquele jeito que você falou como que arruma peixe, na tele-
visão”. Quer dizer, é um discurso assimilável. Em Divinópolis,
alguém falou comigo assim: ”Olha, menina, gostei muito, você
escreveu um negócio sobre a seca agora, não é [referia-se ao ro-
mance O homem da mão seca]?” [risos] Agora, eu espero que a
hora em que eu esteja falando sobre como abrir e retalhar peixe,
essa coisa de feira, de tomate, de batatinhas... eu acredito que o
poema que está falando sobre isso, essa pessoa que lê esse poema
entende esses registros: “Ah, eu também sou dona de casa, eu
também faço biscoito, eu também sei limpar peixe”. Ela entende
esses registros, mas a alegria dela é sobre aquilo que ela vê atrás
disso, senão não era poesia. Sabe como é a poesia para mim? Sabe
esse livro que está sendo muito vendido, o Olho mágico ? Para
mim, é isso: você pega o texto e começa [gesticula, indicando que
o livro está próximo dos seus olhos], você fica zarolho ali, não é?
[risos] De repente, emergem daquelas palavras, daquele texto ou
daquele poema, dos registros mais simplórios: [fecha os olhos e

179
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

declama o poema Casamento] “[Há mulheres que dizem:]/ Meu


marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes./ Eu
não. A qualquer hora da noite me levanto, / ajudo a escamar,
abrir, retalhar e salgar./ É tão bom, só a gente sozinhos na cozi-
nha, / de vez em quando os cotovelos se esbarram, / ele fala coisas
como ‘este foi difícil’/ ‘prateou no ar dando rabanadas’/ e faz o
gesto com a mão./ O silêncio de quando nos vimos a primeira
vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo./ Por fim, os
peixes na travessa, / vamos dormir./ Coisas prateadas espocam:/
somos noivo e noiva”. Essa mulher entendeu não foi isso de abrir
o peixe, ela entendeu quando um silêncio profundo como um rio
passou na cozinha. E essa mulher não tem nem escolaridade ne-
nhuma, e ela entendeu isso. Então, eu não tenho que me preocu-
par se estou falando de sexo, de religião, de batatas e de cozinha.
Quer dizer, isso é a minha experiência doméstica, eu sou mulher
e sou doméstica. Eu sou primeiramente uma doméstica. Então
a minha poesia tem esses registros, ela é assimilável por esse
aspecto. Mas eu tenho certeza de que não é só isso, senão vocês
não estariam aqui me chateando tanto [risos]. (PRADO, 1994).

38. Diz Adélia: “eu não faço poesia religiosa, num sentido que
muita gente entende equivocadamente. O fato é que a poesia é
que é religiosa, ela é sagrada (é aquilo que a gente estava falando
antes), então esses registros de natureza religiosa, confessional,
são coisas da história da biografia do autor, que nada tem que ver,
não é?” (PRADO, 1996).

39. Veja-se, por exemplos, a inspiração bíblica e o tom entre


místico e profético dos versos de Augusto Frederico Schmidt,
Jorge de Lima, certo Murilo Mendes e certo Vinícius de Moraes.

180
cleide oliveira

40. Repito aqui a epígrafe com que abrimos nosso texto, ago-
ra contextualizada: “A memória é fenômeno sempre atual, um
elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do
passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda
a detalhes que a confrontam; ela se alimenta de lembranças va-
gas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas,
sensível a todas as interferências, cenas, censuras ou projeções. A
história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise
e discurso critico. A memória instala a lembrança no sagrado, a
história a liberta, e a torna sempre prosaica”. (NORA, 1993, p. 9).

41. O contexto do texto bíblico citado no poema esclarece o ar-


gumento: a citação faz parte de um dos sermões de Jesus a seus
seguidores, que versa, de maneira geral, sobre a inutilidade de se
preocupar com o cuidado de si e o resguardo dos bens materiais,
perecíveis, descuidando-se daquilo que de fato importa: o reino
de Deus e sua justiça. Entre uma série de imagens retiradas do
contexto palestino de então, Cristo dirá: “E, quanto ao vestuário,
por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles
crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo
Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles”.
Mateus 6, 28-29, grifo nosso. Quanto à aproximação do poe-
ma com a noção de desprendimento, cara à mística, o termo é
formulado por Meister Eckhart a partir do médio alemão abe-
geschiedenheit e significa “o perfeito repousar-em-si, o ser-uno-
-consigo-mesmo da alma, retirado em relação ao homem e ao
mundo” (LABARRIÉRE & JARCZYK, 2004, p. XIII). Quan-
to ao termo abandono, cito um aforisma de Angelus Silesius,
místico polonês do séc. XVII: “A impotência que pode: Quem
nada deseja, nada tem, nada sabe, nada ama, nem quer./ Sem-
pre muito mais tem, sabe, deseja e ama” (tradução de SILVA e
LEPARGNEUR, 1986).

181
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

42. Vejam-se trechos do poema Arquétipo, de Fagundes Varela:


“Ele era belo; na espaçosa fronte/ O dedo do Senhor gravado
havia/ O sigilo do gênio”; já Castro Alves dirá: “Sinto em mim o
despertar do gênio”.

43. No poema O modo poético dirá: “É em sexo, morte e Deus


que eu penso todo dia” (1991).

44. Nos poemas em que Jonathan aparece é radical a aproxima-


ção entre determinados símbolos e elementos da mística cristã
e o discurso erótico, lembrando-nos dessa proximidade inquie-
tante entre o erotismo e a mística (como nos escritos de Teresa
D’Avilla e San Juan da Cruz, para ficar em um exemplo da mís-
tica ibérica cristã).

45. Um vazio que parece estar paradoxalmente próximo da ple-


nitude. Em outro trecho de Mestre Eckhart, o místico identifica
Deus como “um negar do negar”. Aqui cabe retomar a defini-
ção de Galimberti do sagrado como lugar de indiferenciação e
inconsciência, onde não há diferença, logo, não há linguagem,
racionalidade, ética ou moral. E, se não há diferença não há ne-
gação ou singularização, apenas unidade. Galimberti identifica o
sagrado ao inconsciente, de modo que os deuses seriam projeções
dos homens “e a monstruosidade deles está dentro de nós, a sa-
cralidade deles é a nossa maldição; por isso traduzimos sacer ora
por “sagrado” ora por “maldito””. GALIMBERT, 2003.

46. Lembro aqui um conto de Borges citado por Foucault (O


milagre secreto): é a historia de um escritor, Jaromir Hladick,
condenado a morte que no ultimo segundo antes que a bala dis-
parada atinja sua cabeça recebe de Deus mais um ano de vida
para poder terminar de escrever sua obra, uma obra que poderia

182
cleide oliveira

justificá-lo e também a Deus. Jaromir escreve, no ultimo se-


gundo, transformado em ultimo ano em que uma gota de suor
escorre sobre sua testa imóvel, sua obra final, não para a pos-
teridade, ou para Deus, de quem “não conhecia as preferências
literárias”, ele escreve para não morrer, “urdindo no tempo um
labirinto invisível” que é a própria literatura; labirinto no qual,
como Teseus sem Ariadne, estamos fadados a perambular, esqui-
vando-nos, mas não indefinidamente, desse encontro definitivo
com o Minotauro portador da morte.

47. “Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de


Deus, Jesus lhes responderá: Não vem o reino de Deus com visí-
vel aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o rei-
no de Deus está dentro de vós.” Lc 17:20-24. Há que se lembrar
o contexto dessas palavras: os judeus contemporâneos do Cris-
to, em especial a elite intelectual e religiosa da qual os fariseus
faziam parte, aguardavam um Messias político, que viria para
libertar o povo judeu do domínio romano. Torna-se compreen-
sível que as palavras de Jesus, apontando para um reino que não
era político, mas interior ao homem, causassem tanto espanto e
escândalo entre os seus contemporâneos.

48. Poema Cinzas, 1991.

49. Aliás, esse é um tema obsessivo na obra adeliana, em espe-


cial na prosa, onde as personagens, que afinal são uma e mesma
personagem que se desdobra nos cinco livros (com exceção de
Filandras, uma coletânea de contos) , vivenciam um processo de
‘ascese negativa’, ou seja, não é uma purificação do corpo em prol
do fortalecimento do espirito, entes, é uma profunda aceitação do
corpo — o seu e o do outro — com suas demandas (seus fluídos,
debilidades, inconsistências, prazeres...), processo que, quando

183
o b r i l h o q u e a r a z ão n ão d e va s s a

completado, culminara em uma profunda comunhão com o ou-


tro, que também é Deus, o completamente outro. Não obstante,
tal ascese, retomada em cada um de seus livros, aponta para o
caráter epifânico e pontual dessa comunhão.

50. Em outro livro de Adélia aparece uma definição de amor que


corrobora esse interpretação do mesmo enquanto um principio
de criação que seja sagrado: “Amor eu disse. Não é este o nome
do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro?”. Solte
os cachorros, 2001, p. 42.

51. Conforme destaca Torrano, em seu estudo introdutório sobre


a Teogonia de Hesiodo, a palavra cantada, a que a poesia moderna
remonta, possui um poder ontofânico de “poder fazer o mundo
e o tempo retornarem `a sua matriz original e ressurgirem com
o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram `a luz pela
primeira vez” (p.20) . Nesse sentido, a poesia possui um poder de
desvelamento e desocultação que os antigos gregos identificavam
com a Verdade – alétheia, palavra que indica o “não-esquecimen-
to, no sentido em que eles experimentavam o Esquecimento não
como um fato psicologico, mas como uma forca numinosa de
ocultação, de encobrimento. Desde as reflexões de Martin Hei-
degger estamos afeitos a traduzir alethéia por re-velação (como fiz
no v. 28), desocultação, ou ainda , não-esquecimento. Isto porque
a experiência que originariamente os gregos tiveram da Verdade
é radicalmente distinta e diversa da noção comum hodierna que
esta nossa palavra verdade veicula” (p.25). TORRANO, 2001.

52. ‘Por causa da beleza do mundo’ é o subtítulo que inicia A faca


no peito, livro de poemas editados em 1988, que tem como sin-
gularidade o fato de que 24 dos seus 36 poemas serem elaborados
em torno da figura enigmática de Jonathan, personagem que

184
cleide oliveira

aparece na poesia e prosa adeliana, e que ora é identificada com a


própria poesia ou mesmo com a voz narrativa da poeta, ora com
Jesus Cristo, ora com o sexo masculino.

185
form ato 14x21cm
mio lo Papel Offset 75g/m²
c apa Papel Supremo 250g/m²
tip o gr a fia Junicode 11/15
impre s são Gráfica Multifoco

Você também pode gostar