filho, cometido por um jovem em surto psicótico - usuário de maconha e frequentador dos rituais do Santo Daime -, reacendeu o debate público sobre a relação entre o abuso de substâncias psicoativas e o desenca deamento de psicoses. O discurso médico se vale dos termos "comorbidade" e "duplo diagnóstico" para se referir à ocorrência simul tânea - em um mesmo paciente - de duas categorias diagnósticas: a esquizofrenia e a dependência química, por exemplo (ABEAD, 2004). Trata-se, evidentemente, de questão complexa e desafiadora:� "Isto é, as doenças mentais levam à dependência de substância, a depen dência de substância leva à doença mental ou tanto a do ença mental quanto a dependência são manifestações sintomáticas das mesmas neuropatologias subjacentes?" (OMS, 2006, p. 16!-162). Essa noção - de "duplo diagnóstico" - não se apli ca na psicanálise, uma vez que esta não considera a to xicomania como uma estrutura clínica em si, mas como uma nova forma de sintoma ou um modo de enlaça mento psíquico. Os drogaditos, nessa perspectiva, não constituem grupo homogêneo: "[... ] um psicótico que se drogue não vai ser de forma alguma igual a um neuró tico, ainda que consumam a mesma substância e as mes mas quantidades" (ZAFFORE, 2008, p.94). Aqui, é o lugar e a função da droga na economia libidinal de cada sujeito - ou seja, seu modo de gozo -, bem como seus efeitos na relação com o Outro, que nos possibilitam identificar a estrutura clínica em questão. Sem descartar a possibilidade de o uso regular da droga ter um "papel desencadeador da atividade aluci natória e delirante do sujeito" (SANTIAGO, 2001, p. 179).�a perspectiva psicanalítica considera que seu con sumo por psicóticos não produz necessariamente desor dem psíquica. Ele pode se constituir, no nível
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imaginário, em uma "saída identificatória", que algu ns sujeitos psicóticos encontram ao se inserir "em algum grupo de toxicômanos ou alcoolistas" (SANTIAGO, 2001, p. 185). A droga pode também servir para amarrar o gozo em torno de um delírio, no caso da paranoia, ou aplacar a invasão do gozo, na esquizofrenia (LAURENT, 2014; GA LANTE et al., 2008). Para um adolescente psicótico - usuário de maco nha - atendido em 2orr no Centro Mineiro de Toxico mania (CMT), a droga funcionava como um remédio para "acalmar a cabeça", moderar o excesso de gozo que invadia seu corpo: "Sem ela, meus pensamentos me ator mentam, fico louco", ele dizia. Nesse sentido, cabe obser var que é preciso prudência ao propor a abstinência em determinados tratamentos, pois há casos em que, como resultado desse "sucesso terapêutico", temos o desenca deamento de uma psicose. Contribuição mais recente, proposta em 1996, por J-A Miller, relaciona-se ao sintagma "psicose ordinária", uma categoria, mais "epistêmica do que objetiva", ou seja, que se interessa mais pelo saber do psicanalista do que pela classificação diagnóstica, sugerida como uma maneira de "driblar a rigidez de uma clínica binária: neurose ou psicose" (MILLER, 2012, p. 402). Ela foi extraída do "último ensino de Lacan", a partir do qual a ordem simbólica perde o privilégio, a exclusi vidade de limitar o gozo. Com isso, a função do Nome do-Pai (NP) se toma uma entre outras na regulação do real do gozo, e o NP deixa de ser um nome próprio, um elemento presente (na neurose) e ausente (na psicose), para se tomar um predicado, algo a ser nomeado. "Um elemento específico entre outros que, para um deter minado sujeito, funciona como um Nome-do-Pai" (MIL LER, 2010, p. 417). Essa passagem de o NP para um NP é o que viabiliza, a partir da perspectiva das conexões do nó borromeano, a hipótese de que "a droga pode ser um Nome-do-Pai na relação que o sujeito tem com o seu
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corpo" (SANTIAGO, 2017, p. 13).
Diagnóstico e segregação
Na contemporaneidade, deparamo-nos com a proli
feração de diagnósticos psiquiátricos (450 categorias diagnósticas no DSM-5), a chamada "psicopatologização do cotidiano". Termos técnicos, como "transtorno do pâ nico", "transtorno bipolar" e "TDAH" popularizaram-se. Cada vez mais, nossas vivências psíquicas - das mais triviais às mais inquietantes - trazem marcas do dis curso médico-psiquiátrico, do qual lançamos mão não só para nomear nossos sofrimentos, mas para concebê-los e entendê-los (IANNINI; TEIXEIRA, 2013). Ao reunir um conjunto heterogêneo de sujeitos sob um mesmo significante, destituindo-lhes de singula ridade, e direcionar suas vidas (sobretudo quando se trata de doenças crônicas, categoria na qual alguns pre tendem incluir a "dependência química"), diagnósticos podem implicar um tipo de identificação reducionista e estigmatizante. Além disso, influenciam na escolha dos modelos de instituição e tratamento a que cada usuário será encaminhado. Assim, "dependentes químicos" são quase sempre encaminhados para internações em hospi tais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas - enti dades, em sua maioria, filantrópicas ou religiosas, pau tadas na necessidade de abstinência, na disciplina e na oração. No Brasil. mesmo no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) - modelo de assistência pública inte gral pautado na estratégia da redução de danos e na manutenção dos laços sociais -, ainda verificam-se pos turas moralistas e práticas discriminatórias. Não são raros os casos de drogaditos cujos históricos clínicos apontam para um deambular sem-fim por diversas insti tuições e serviços de saúde, sem que eles recebam acolhi mento adequado e endereçamento preciso. Os diferentes dispositivos que compõem a Raps,
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entre eles os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) - em suas diversas modalidades -, muitas vezes não che gam a um acordo sobre a responsabilidade da atenção em determinados casos: adolescentes que abusam de drogas devem ser atendidos nos Caps-i (dedicados à infância e à adolescência) ou nos Caps-ad (dedicados ao álcool e outras drogas)? Psicóticos usuários de drogas pertencem à alçada de qual dos Caps? Desde um ponto de vista clínico, seria apropriado acolher - em um mesmo espaço - psicóticos e dependentes de drogas que não são psicóticos? Eis uma série de questões de difícil solução, mas que não podem deixar de ser objeto de investigação e inter locução por parte dos profissionais da Raps, mesmo em meio a uma demanda assistencial intensa e uma rede deficitariamente constituída em muitas cidades brasi leiras. Só assim - sem falar, é claro, na necessidade ur gente de incentivo e investimento do poder público nesse modelo - será possível fazer frente à segregação e à exclusão social perpetradas pela prática das internações em massa.
Um caso exemplar
Em 2orr, Joana.� 36 anos, dependente de cocaína,
chegou ao CMT com encaminhamento de uma psiqui atra que a acompanhava havia alguns anos em uma Uni dade Básica de Saúde (UBS) de Belo Horizonte. Havia um mês que Joana deixara a casa de sua mãe para viver com uma amiga e fazer uso de cocaína todas as noites, além de vender pequenas quantidades da droga (se gu ndo ela, "só para os chegados", descortinando que se tratava mais do estabelecimento de algu m laço social do que por fins lucrativos). Disse que já ouvia vozes, mas que elas "aumentaram dez vezes" depois que começou a "cheirar" compulsivamente. A voz que mais a perturbava era a de um falecido cunhado, que lhe ordenava que ma tasse sua pequena sobrinha - ato que, segundo ela, já
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tentara executar. Em suas palavras, queria se tratar em um "serviço especializado", pois tinha medo de seus pensamentos e atitudes. No mesmo dia, a equipe do CMT estabeleceu contato com a psiquiatra da UBS, que forneceu mais detalhes sobre o histórico da paciente. Disse que Joana não só tinha conhecimento de seu diagnóstico de esquizofrenia, como se interessava pela doença e pelos psicofármacos que ingeria, bem como por sua "outra doença", a dependência química. Joana voltou para a casa de sua mãe e, por dois meses e meio, frequentou a permanência-dia do CMT.� Durante esse tempo, preferiu isolar-se a participar de ofi cinas ou interagir com outros usuários: ela ouvia música, utilizando fones de ouvido, ou rabiscava figuras - curiosamente parecidas com conexões sinápticas -, com as quais, dizia ela, em seus atendimentos indivi duais, querer representar "uma mente perturbada". Com a interrupção do consumo da droga, considerou que já podia retornar a seu tratamento de antes, na UBS. A equipe do CMT agendou consulta com sua psiquiatra e lhe transmitiu informações sobre a breve - mas signifi cativa - passagem de Joana pelo serviço. Esse relato clínico exemplifica, entre outros aspectos: a possibilidade de um caso de psicose ser bem acompa nhado em uma Unidade Básica de Saúde; a construção de um projeto terapêutico singular, contando com a participação da usuária; a articulação de dois serviços do SUS (UBS e Caps-ad); a identificação da função da droga em um caso de esquizofrenia (aqui, sobretudo, deses tabilizadora, ainda que viabilizasse algum laço social); a responsabilidade conjunta assumida pelos profissionais envolvidos e sua disponibilidade para interlocução.
Versão modificada do artigo "Diag
nóstico e segregação", publicado na re vista Diálogos - Psicologia, Ciência e Profissão, do Conselho Federal de
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Psicologia, Brasília, ano 6, n. 6, p. 32-35, nov. 2009.
Referências
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do Álcool e outras Drogas. Comorbidades. Transtornos mentais x transtornos por uso de substâncias de abuso, São Paulo, 2004. Disponível em:http:// www.abpbrasil.org.br/departamentos/coordenadores/co ordenador/noti-cias/arqui-vos/vro_-morbidades_intra net.pdf.net.pdf. Acesso em: 03 abr.2020. ANDRADE, C. Toxicomania e alcoolismo. ln: TEIXEIRA, A.; ROSA, M. (org.). Psicopatologia lacaniana: nosologia. I. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.v. 2, p. 253-295. GAIANTE, o. et al. Monotoxicomanías y politoxicomanías:
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alcoholisrno. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2008. p.91-
107. � Na tradição psiquiátrica, a questão diagnóstica entre psicose e toxicomania foi marcada por dificuldades que levaram à distinção entre "psicoses tóxicas, psicoses induzidas por alguma substância e as psicoses funci onais desencadeadas pelo uso da droga ou álcool" (AN DRADE, 2020, p.280). � Ver, por exemplo, Intoxicações no contexto do desenca deamento da psicose (MARTINS, 2017). � Nome e outros dados de identificação modificados. � Em 20n, o CMT era habilitado como Caps-ad II.