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A droga e as vozes

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- desafios diagnósticos

Em 2010, o assassinato do cartunista Glauco e seu


filho, cometido por um jovem em surto psicótico -
usuário de maconha e frequentador dos rituais do Santo
Daime -, reacendeu o debate público sobre a relação
entre o abuso de substâncias psicoativas e o desenca­
deamento de psicoses.
O discurso médico se vale dos termos "comorbidade"
e "duplo diagnóstico" para se referir à ocorrência simul­
tânea - em um mesmo paciente - de duas categorias
diagnósticas: a esquizofrenia e a dependência química,
por exemplo (ABEAD, 2004). Trata-se, evidentemente, de
questão complexa e desafiadora:� "Isto é, as doenças
mentais levam à dependência de substância, a depen­
dência de substância leva à doença mental ou tanto a do­
ença mental quanto a dependência são manifestações
sintomáticas das mesmas neuropatologias subjacentes?"
(OMS, 2006, p. 16!-162).
Essa noção - de "duplo diagnóstico" - não se apli­
ca na psicanálise, uma vez que esta não considera a to­
xicomania como uma estrutura clínica em si, mas como
uma nova forma de sintoma ou um modo de enlaça­
mento psíquico. Os drogaditos, nessa perspectiva, não
constituem grupo homogêneo: "[... ] um psicótico que se
drogue não vai ser de forma alguma igual a um neuró­
tico, ainda que consumam a mesma substância e as mes­
mas quantidades" (ZAFFORE, 2008, p.94). Aqui, é o
lugar e a função da droga na economia libidinal de cada
sujeito - ou seja, seu modo de gozo -, bem como seus
efeitos na relação com o Outro, que nos possibilitam
identificar a estrutura clínica em questão.
Sem descartar a possibilidade de o uso regular da
droga ter um "papel desencadeador da atividade aluci­
natória e delirante do sujeito" (SANTIAGO, 2001, p.
179).�a perspectiva psicanalítica considera que seu con­
sumo por psicóticos não produz necessariamente desor­
dem psíquica. Ele pode se constituir, no nível

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imaginário, em uma "saída identificatória", que algu ns
sujeitos psicóticos encontram ao se inserir "em algum
grupo de toxicômanos ou alcoolistas" (SANTIAGO, 2001,
p. 185). A droga pode também servir para amarrar o gozo
em torno de um delírio, no caso da paranoia, ou aplacar a
invasão do gozo, na esquizofrenia (LAURENT, 2014; GA­
LANTE et al., 2008).
Para um adolescente psicótico - usuário de maco­
nha - atendido em 2orr no Centro Mineiro de Toxico­
mania (CMT), a droga funcionava como um remédio
para "acalmar a cabeça", moderar o excesso de gozo que
invadia seu corpo: "Sem ela, meus pensamentos me ator­
mentam, fico louco", ele dizia. Nesse sentido, cabe obser­
var que é preciso prudência ao propor a abstinência em
determinados tratamentos, pois há casos em que, como
resultado desse "sucesso terapêutico", temos o desenca­
deamento de uma psicose.
Contribuição mais recente, proposta em 1996, por
J-A Miller, relaciona-se ao sintagma "psicose ordinária",
uma categoria, mais "epistêmica do que objetiva", ou
seja, que se interessa mais pelo saber do psicanalista do
que pela classificação diagnóstica, sugerida como uma
maneira de "driblar a rigidez de uma clínica binária:
neurose ou psicose" (MILLER, 2012, p. 402).
Ela foi extraída do "último ensino de Lacan", a partir
do qual a ordem simbólica perde o privilégio, a exclusi­
vidade de limitar o gozo. Com isso, a função do Nome­
do-Pai (NP) se toma uma entre outras na regulação do
real do gozo, e o NP deixa de ser um nome próprio, um
elemento presente (na neurose) e ausente (na psicose),
para se tomar um predicado, algo a ser nomeado. "Um
elemento específico entre outros que, para um deter­
minado sujeito, funciona como um Nome-do-Pai" (MIL­
LER, 2010, p. 417). Essa passagem de o NP para um NP é
o que viabiliza, a partir da perspectiva das conexões do
nó borromeano, a hipótese de que "a droga pode ser um
Nome-do-Pai na relação que o sujeito tem com o seu

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corpo" (SANTIAGO, 2017, p. 13).

Diagnóstico e segregação

Na contemporaneidade, deparamo-nos com a proli­


feração de diagnósticos psiquiátricos (450 categorias
diagnósticas no DSM-5), a chamada "psicopatologização
do cotidiano". Termos técnicos, como "transtorno do pâ­
nico", "transtorno bipolar" e "TDAH" popularizaram-se.
Cada vez mais, nossas vivências psíquicas - das mais
triviais às mais inquietantes - trazem marcas do dis­
curso médico-psiquiátrico, do qual lançamos mão não só
para nomear nossos sofrimentos, mas para concebê-los e
entendê-los (IANNINI; TEIXEIRA, 2013).
Ao reunir um conjunto heterogêneo de sujeitos sob
um mesmo significante, destituindo-lhes de singula­
ridade, e direcionar suas vidas (sobretudo quando se
trata de doenças crônicas, categoria na qual alguns pre­
tendem incluir a "dependência química"), diagnósticos
podem implicar um tipo de identificação reducionista e
estigmatizante. Além disso, influenciam na escolha dos
modelos de instituição e tratamento a que cada usuário
será encaminhado. Assim, "dependentes químicos" são
quase sempre encaminhados para internações em hospi­
tais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas - enti­
dades, em sua maioria, filantrópicas ou religiosas, pau­
tadas na necessidade de abstinência, na disciplina e na
oração.
No Brasil. mesmo no âmbito da Rede de Atenção
Psicossocial (Raps) - modelo de assistência pública inte­
gral pautado na estratégia da redução de danos e na
manutenção dos laços sociais -, ainda verificam-se pos­
turas moralistas e práticas discriminatórias. Não são
raros os casos de drogaditos cujos históricos clínicos
apontam para um deambular sem-fim por diversas insti­
tuições e serviços de saúde, sem que eles recebam acolhi­
mento adequado e endereçamento preciso.
Os diferentes dispositivos que compõem a Raps,

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entre eles os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) -
em suas diversas modalidades -, muitas vezes não che­
gam a um acordo sobre a responsabilidade da atenção
em determinados casos: adolescentes que abusam de
drogas devem ser atendidos nos Caps-i (dedicados à
infância e à adolescência) ou nos Caps-ad (dedicados ao
álcool e outras drogas)? Psicóticos usuários de drogas
pertencem à alçada de qual dos Caps? Desde um ponto
de vista clínico, seria apropriado acolher - em um
mesmo espaço - psicóticos e dependentes de drogas
que não são psicóticos?
Eis uma série de questões de difícil solução, mas que
não podem deixar de ser objeto de investigação e inter­
locução por parte dos profissionais da Raps, mesmo em
meio a uma demanda assistencial intensa e uma rede
deficitariamente constituída em muitas cidades brasi­
leiras. Só assim - sem falar, é claro, na necessidade ur­
gente de incentivo e investimento do poder público nesse
modelo - será possível fazer frente à segregação e à
exclusão social perpetradas pela prática das internações
em massa.

Um caso exemplar

Em 2orr, Joana.� 36 anos, dependente de cocaína,


chegou ao CMT com encaminhamento de uma psiqui­
atra que a acompanhava havia alguns anos em uma Uni­
dade Básica de Saúde (UBS) de Belo Horizonte. Havia
um mês que Joana deixara a casa de sua mãe para viver
com uma amiga e fazer uso de cocaína todas as noites,
além de vender pequenas quantidades da droga (se­
gu ndo ela, "só para os chegados", descortinando que se
tratava mais do estabelecimento de algu m laço social do
que por fins lucrativos). Disse que já ouvia vozes, mas
que elas "aumentaram dez vezes" depois que começou a
"cheirar" compulsivamente. A voz que mais a perturbava
era a de um falecido cunhado, que lhe ordenava que ma­
tasse sua pequena sobrinha - ato que, segundo ela, já

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tentara executar. Em suas palavras, queria se tratar em
um "serviço especializado", pois tinha medo de seus
pensamentos e atitudes.
No mesmo dia, a equipe do CMT estabeleceu contato
com a psiquiatra da UBS, que forneceu mais detalhes
sobre o histórico da paciente. Disse que Joana não só
tinha conhecimento de seu diagnóstico de esquizofrenia,
como se interessava pela doença e pelos psicofármacos
que ingeria, bem como por sua "outra doença", a
dependência química.
Joana voltou para a casa de sua mãe e, por dois
meses e meio, frequentou a permanência-dia do CMT.�
Durante esse tempo, preferiu isolar-se a participar de ofi­
cinas ou interagir com outros usuários: ela ouvia música,
utilizando fones de ouvido, ou rabiscava figuras -
curiosamente parecidas com conexões sinápticas -,
com as quais, dizia ela, em seus atendimentos indivi­
duais, querer representar "uma mente perturbada".
Com a interrupção do consumo da droga, considerou
que já podia retornar a seu tratamento de antes, na UBS.
A equipe do CMT agendou consulta com sua psiquiatra e
lhe transmitiu informações sobre a breve - mas signifi­
cativa - passagem de Joana pelo serviço.
Esse relato clínico exemplifica, entre outros aspectos:
a possibilidade de um caso de psicose ser bem acompa­
nhado em uma Unidade Básica de Saúde; a construção
de um projeto terapêutico singular, contando com a
participação da usuária; a articulação de dois serviços do
SUS (UBS e Caps-ad); a identificação da função da droga
em um caso de esquizofrenia (aqui, sobretudo, deses­
tabilizadora, ainda que viabilizasse algum laço social); a
responsabilidade conjunta assumida pelos profissionais
envolvidos e sua disponibilidade para interlocução.

Versão modificada do artigo "Diag­


nóstico e segregação", publicado na re­
vista Diálogos - Psicologia, Ciência e
Profissão, do Conselho Federal de

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Psicologia, Brasília, ano 6, n. 6, p. 32-35,
nov. 2009.

Referências

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I. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.v. 2, p. 253-295.
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alcoholisrno. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2008. p.91-


107.
� Na tradição psiquiátrica, a questão diagnóstica entre
psicose e toxicomania foi marcada por dificuldades que
levaram à distinção entre "psicoses tóxicas, psicoses
induzidas por alguma substância e as psicoses funci­
onais desencadeadas pelo uso da droga ou álcool" (AN­
DRADE, 2020, p.280).
� Ver, por exemplo, Intoxicações no contexto do desenca­
deamento da psicose (MARTINS, 2017).
� Nome e outros dados de identificação modificados.
� Em 20n, o CMT era habilitado como Caps-ad II.

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