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ISSN 2318-2962 Caderno de Geografia, v.32, n.

68, 2022

Usos do relevo, das águas e da pesca na trajetória histórica de comunidades


tradicionais caiçaras em territórios normatizados como unidade de conservação
(Ilha do Cardoso, SP)

Uses of relief, waters and fishing by traditional caiçaras communities in territories


regulated as a conservation unit (Ilha do Cardoso, SP, Brazil)

Pedro Michelutti Cheliz


Geógrafo e geólogo, vinculado ao Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da
UNICAMP, e ao Instituto de Pesquisas Cananéia (IPEC)
Pedro.michelutti@gmail.com

Juliana Greco Yamaoka


Turismóloga, Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR
julianagreco82@gmail.com

Willian Gomes Cubas


Engenheiro de pesca
wiliangcubas@gmail.com

Juliana Lourenço Gonçalves


Oceanógrafa, Universidad de lá República (Uruguai)
Ju.logoncalves@gmail.com

Resumo
Buscando contribuir para discussões sobre interações entre comunidades tradicionais e quadros
naturais da paisagem, caracterizou-se alterações ao longo do tempo do uso das unidades de relevo,
das terras e das águas nos territórios e nas territorialidades de comunidades caiçaras da Ilha do
Cardoso. Elencou-se três diferentes padrões de mediação com as terras emersas e águas nas
territorialidades das comunidades caiçaras locais, cada qual deles associados a diferentes conjuntos
de técnicas de pesca artesanais predominantes. Apontou-se oscilação dos quadros naturais tomados
como preferenciais para instalação das comunidades e aumento da centralidade da pesca nos modos
de vida caiçaras após a normatização de seus territórios tradicionais e da própria Ilha como uma
unidade de conservação de proteção integral em meados do século XX. Caracterizou-se posteriores
flutuações ao longo do tempo da centralidade e práticas da pesca em cada um dos conjuntos de
territórios tradicionais locais, ligadas em parte ora ao endurecimento, ora ao abrandamento das
restrições legais de uso do território vindas das modificações dos planos de manejo da unidade de
conservação.

Palavras–chave: pesca artesanal, história ambiental, etnogeomorfologia, Cananéia, turismo

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Abstract
Seeking to contribute to discussions on interfaces between traditional communities and natural
landscapes, were characterized changes over time in the use of relief units, land and water in the
territories and territorialities of caiçara communities on Ilha do Cardoso. Three different mediation
patterns with the emerged lands and waters in the territorialities of the local communities were
described. There was characterized an oscillation of the natural landscapes taken as preferential for
the installation of local communities and an increase in the centrality of fishing in the caiçaras ways
of life after the standardization of their traditional territories and the island itself as a conservation
unit in the mid-20th century. Subsequent fluctuations were identified over time in the centrality of
fishing in each of the traditional local territories, partly linked at times to hardening, sometimes to
the easing of legal restrictions on the use of the territory due to changes in the management plans of
the conservation unit.

Keywords: traditional fishing, environmental history, geomorphology, Cananéia, tourism

1. INTRODUÇÃO

As interações tardias entre comunidades tradicionais (ZEDEÑO, 1997 e 2008) que


permaneceram longamente relativamente isoladas e autocentradas com um conjunto externo que se
modificou profundamente e se incorporou mais cedo ao sistema técnico atualmente predominante
vem longamente sendo tema de discussão (BASTIDE, 1964; CANDIDO, 1965; SANTOS, 2003).
No litoral sul do Estado de São Paulo, tem-se exemplo de uma área em que tais interfaces se fazem
presentes, e que permite a realização de um estudo de detalhe sobre o tema. Trata-se da Ilha do
Cardoso (figuras 1 e 2), de cuja moldura colossal de altos picos serranos desmembra-se um sem fim
de cumeadas e vales florestados, seccionados ou sucedidos por inúmeras discretas reentrâncias,
baias, planícies e estuários tomadas como refúgios por núcleos familiares de agricultores e
pescadores que ali vivem desde, ao menos, o tempo do Império. Integrando, assim, os territórios das
populações tradicionais caiçaras, apontadas por Diegues (2005) como dispersas entre o litoral do
Rio de Janeiro e Paraná.
A dinâmica dada por certo isolamento local no histórico de ocupação que longamente
pautou a Ilha, inicialmente ligada ao esgotamento dos ciclos econômicos regionais (perda de vias de
ligação marítima por assoreamento do principal porto do litoral sul de São Paulo – Iguape) e
posteriormente reforçada pela transformação em Unidade de Conservação, bem ilustra a questão do
chamado “desenvolvimento desigual” da Região Lagunar de Cananéia-Iguape e do próprio Vale do
Ribeira (BRAGA, 1999). Para pouco além das cabeceiras mais distanciadas do Rio Ribeira, nos
grandes centros urbanos do sul-sudeste brasileiro que se erguem nos planaltos que circundam o
Vale, promoveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século XX intensas transmutações do
espaço habitado. Concentrou-se ali os esforços desenfreados de urbanização e industrialização
tardia no contexto brasileiro. Vias de ligação entre os centros urbanos em profusão (tais como as
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áreas metropolitanas de São Paulo e Curitiba) cortavam a região histórica do Vale, e deram origem a
intenso fluxo motorizado de pessoas, mercadorias e materiais de suporte ao complexo urbano-
industrial entre as metrópoles paulistana e curitibana (SANTOS, 2003).

Figura 1 – localização da Ilha do Cardoso (realçada por pontilhado laranja).

Fonte: adaptado de Cheliz (2015)

A despeito destas intensas transformações dos entornos, a fachada litorânea do Vale e a


própria Ilha permaneceram, por longo tempo, relativamente à margem de tais processos,
conservando padrões de mediação entre modos de vida tradicionais com os quadros naturais que
eram intensamente alterados em locais não tão distantes dali. Nos grandes centros urbanos em
frenética expansão além das cabeceiras do Rio Ribeira, legiões de homens e mulheres chegados às
pressas de diversos recantos do país erguiam novos mundos de aço, maquinas, concreto e
eletricidade. Na Ilha por sua vez, grupos de pescadores remanescentes (figura 2B) permaneciam
nascendo e crescendo rentes as sombras das mesmas escarpas florestadas (figura 2A) que seus avós
conheceram. Seguiam singrando lentamente os rios e mares em seus discretos barcos e canoas, e
regulando seus dias e noites pela passagem das estações, das marés, das luas e dos dias tidos como
sagrados (GADELHA, 2008; CHELIZ, 2015). A vida e seus caminhos tinham seus limites dados
pelos bordos das clareiras em que erguiam suas vilas e sítios, e pelas águas que batiam suas praias e
costões, onde o que ocorria além delas chegava ali apenas como mais um murmúrio marginal em
meio à arrebentação das ondas noturnas.

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Figura 2 – A: representação dos principais quadros naturais com os quais interagem as comunidades que vivem na Ilha
do Cardoso - em primeiro plano transição entre terras emersas e águas circundantes, com planícies diversificadas em
segundo plano, e serranias em terceiro. B: moradores da Ilha do Cardoso, da comunidade Enseada da Baleia (segmento
sul da Ilha), circulando em canoas próximos aos limites entre terras emersas e águas circundantes, por ocasião da prova
de corrida de canoas na festa de padroeiro. Fonte: adaptado a partir de fotografias de Cheliz (2015) e Yamaoka (2016).

Mundo em parte longamente fechado em si abre-se lentamente. Possibilidades como as


advindas de flexibilizações na regulação da política de conservação do Parque Estadual da Ilha do
Cardoso (SILVA, 2014) no início do século XXI passam a modificar o quadro local, bem como
construção de pontes, estradas e posterior duplicação das mesmas, facilitando acesso da porção
insular do município de Cananéia (SP) ao continente, ampliando contato e circulação de atores
originados dos grandes centros urbanos do sul-sudeste em meios aos territórios locais (CHELIZ,
2015). Territórios estes que - face apresentarem simultaneamente elevada preservação ambiental
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(em contraste com os intensamente poluídos grandes centros metropolitanos que circundam o Vale
do Ribeira), correlata beleza cênica de suas paisagens litorâneas e proximidade relativa de
populosas cidades (e.g – Curitiba e São Paulo) - passam a serem visados de diferentes maneiras por
tais atores externos.
Diante desse contexto, o presente trabalho busca realizar uma discussão comparativa sobre
como as territorialidades – tal como definidas por Zedeño (1997 e 2008) - das comunidades
tradicionais da Ilha do Cardoso se deram nos tempos: 1- intervalo prévio a conversão do território
da Ilha em unidade de conservação e parque estadual (anterior a 1962); 2- ao tempo de maior
isolamento e restrições de práticas de ocupação ligados a nova normatização territorial (entre 1962 e
1998) com a decretação da Ilha como uma unidade de conservação; 3- ao tempo de abrandamento
de algumas destas restrições por ocasião de mudanças e flexibilizações do plano de manejo do
Parque (posterior a 1998), e ampliação da circulação local de pessoas externas à ilha (notadamente
via atividades de turismo). Buscou-se realizar tal abordagem com ênfase em discutir como o relevo
e as águas da Ilha do Cardoso foram incorporadas nas territorialidades e modos de vida das
comunidades caiçaras locais (ZEDEÑO, 1997 e 2008) em cada um destes diferentes cenários
temporais. Procura-se discutir sobre como as restrições advindas da conversão em unidade de
conservação (e posterior abrandamento das mesmas, com intensificação das atividades de turismo)
teriam contribuído para adaptações, modificações e permanências das unidades de relevo
favorecidas para uso pelas comunidades locais, bem como a adequações nas maneiras como
estabelecem mediações com as terras e águas da Ilha e entornos.

2. MÉTODOS

O artigo buscou realizar uma compilação e comparação entre dois conjuntos distintos de
informações sobre a Ilha do Cardoso: 1- caracterização dos quadros físico-naturais da Ilha, 2-
caracterização da ocupação humana caiçara. Simultaneamente, o trabalho buscou realizar novas
entrevistas semi-estruturadas para aprofundar o segundo conjunto de informações mencionadas. Na
discussão da interface desses dois conjuntos de informações, buscou-se estabelecer um diálogo com
a concepção de território como objeto agregado (terra + recursos naturais + modificações humanas)
e de territorialidade (soma de ações e emoções numa área específica, com ênfase na influência,
controle e acesso) de Zedeño (1997 e 2008).
A compilação de informações ligadas aos quadros naturais da ilha procurou elencar as
principais características das terras emersas da Ilha e das águas adjacentes, com ênfase para
atributos de relevo da caracterização geomorfológica da Ilha realizada por Cheliz (2015). Buscando,
assim, estabelecer um diálogo com um dos componentes do território que Zedeño (2008) define
como “terra” (terrenos, sobre os quais apresentam-se “recursos naturais”). Usa-se no presente artigo
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a definição de quadros naturais como os componentes bióticos e não bióticos não antrópicos do
meio que não foram alvos diretamente do trabalho direto e intencional de grupos humanos ao longo
da área de estudo nas últimas décadas. Buscou-se, assim, caracterizar diferentes potencialidades
(elementos tidos pelos grupos humanos como favoráveis ao desenvolvimento de seus modos de
vida) e restrições (elementos dos quadros naturais tidos como desfavoráveis aos mesmos modos de
vida) associadas às unidades de relevo locais e águas circundantes para os caminhos caiçaras
(DIEGUES, 2005) de mediações com os quadros naturais.
A compilação de informações referentes aos modos de vida caiçara da Ilha e de suas
estratégias de sobrevivência em diversas etapas de normatização legal do território da Ilha, por sua
vez, foi tomada com um misto de revisão bibliográfica de trabalhos anteriores (e.g - MENDONÇA,
1999; GADELHA, 2008; CARVALHO e SHCMITT, 2012; MARINHO, 2013; SILVA, 2014;
HAYAMA e CARDOSO, 2018), e apresentação do sumário dos resultados de novas informações
compiladas por meio dos procedimentos descritos nos novos estudos de Cubas (2018), Yamaoka
(2019) e Gonçalves (2021). Buscou-se, assim, estabelecer um diálogo com a concepção do
elemento de “modificações humanas” da definição de território de Zedeño (1997 e 2008), bem
como estabelecer um diálogo com a concepção de territorialidade da citada autora.
Dentre as informações levantadas para discutir as modificações humanas do território,
ressaltamos a realização de 25 novas entrevistas semi-estruturadas com moradores das diversas
vilas caiçaras da Ilha do Cardoso, pedindo nas supracitadas entrevistas que compartilhassem suas
impressões sobre: 1 – Quais tipos de distinções que os próprios moradores realizam em relação ao
quadro natural das terras emersas e águas dos entornos de suas comunidades, questionando se
fazem leituras de áreas com relativas homogeneidades internas quanto a elementos percebidos como
favoráveis e desfavoráveis para seus modos de vida; 2- Quais relações que desenvolvem no seus
modos de vivência com as áreas apontadas como ligadas a distintas unidades de relevo (Serranias e
diferentes tipos de planícies) no mapa geomorfológico efetuado por Cheliz (2015). Por ocasião das
entrevistas, foi apresentado aos moradores uma cópia do supracitado mapa, com localização na ilha
de cada comunidade. Procurou-se, assim, discutir junto aos moradores se os diferentes conjuntos de
unidades da Ilha distinguidos por Cheliz (2015) eram vistos por eles como ligados a conjuntos
relativamente homogêneos de atributos naturais percebidos como favoráveis ou desfavoráveis para
seus modos de vida, ou se tratavam de divisões que lhes pareciam arbitrárias e sem conexão com as
relações que estabeleciam com o meio. Nos casos de respostas afirmativas, procurou-se perguntar
quais seriam esses atributos favoráveis e desfavoráveis para suas vivências que atribuíam a cada
uma destas unidades de relevo, e comparar as respostas com o que foi caracterizado pelo estudo
geomorfológico supracitado; 3 – tipos de distinções que estabelecem nas águas dos entornos,
questionando-os se identificam segmentos dos rios ou mares adjacentes mais ou menos adequados
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para atividades importante para suas vidas, como pesca e transporte, 4 – a importância da pesca para
o sustento e manutenção de seus modos de vida, e no estabelecimento de relações com as terras
emersas e águas dos entornos em que vivem; 5 – mudanças que eventualmente tenham percebido
sobre os temas 1, 2, 3 e 4 ao longo do tempo.
As entrevistas foram feitas com respostas abertas, sem alternativas pré-estabelecidas, de
maneira que se procurou incentivar que os entrevistados discorressem livremente sobre os temas
supracitados.
Adicionalmente, buscou-se apresentar as informações advindas das entrevistas intercaladas
com outras de observações diretas da Ilha do Cardoso, reproduzidas aqui com as devidas
autorizações, derivada de estadias prolongadas dos dois primeiros autores em algumas das
comunidades (e.g – múltiplas estadias que somam mais de um ano nas comunidades do
Pereirinha, Marujá e Enseada da Baleia dispersas entre o período de 2013 e 2020 por ocasião de
realização de pesquisa de mestrado e doutorado do primeiro autor, e entre 2005 e 2018 nas
comunidades do Marujá e Enseada da Baleia por ocasião de atividades profissionais e realização de
pesquisa de mestrado por parte da segunda autora). Igualmente, intercalou-se o resultado das
entrevistas com observações do cotidiano da Ilha realizadas pelo terceiro autor, estas originadas de
sua vivência como morador tradicional de uma das comunidades locais. Após a conclusão deste
artigo, cópias do mesmo foram encaminhados para membros das comunidades da Ilha, consultando-
os sobre se teriam algum eventual tipo de veto ao conteúdo aqui apresentado.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 AS TERRAS E AS ÁGUAS DA ILHA DO CARDOSO

Situada no município de Cananéia (litoral sul de São Paulo), a Ilha do Cardoso mostra-se
afastada alguns poucos quilômetros do continente, próxima a outras três ilhas (Ilha de Cananéia a
norte, Ilha Comprida a nordeste, e Ilha de Superagui a noroeste). Distribui-se em planta de maneira
assemelhada a uma grande elipse de cerca de 150 quilômetros quadrados, com seus limites
circundados pelas águas que a cercam (Figura 3). Mostrava-se acrescida a sudoeste de um cordão
sedimentar estirado de cerca de quinze quilômetros de extensão e área de aproximados 10
quilômetros quadrados, que recentemente (e.g – Agosto de 2018) rompeu-se em dois cordões
menores (SOUZA, 2018; CHELIZ et al., 2019; SOUZA et al. 2019.), mesclando-se a longa
trajetória conhecida de intensas modificações da linha de costa local ao longo do tempo (Figura 4).
A sul encontra-se defronte as linhas de arrebentação do Oceano Atlântico – denominado de
“Mar de Fora” ou “Mar Revolto”, conforme os moradores locais. As águas do “Mar de Fora” são
caracterizadas pela ocorrência de ondas que por vezes excedem 2 metros de altura, sendo
frequentemente atingidas por intensos vendavais vindos da passagem dos sistemas frontais frios –
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chamados de “Vento sul” pelos pescadores da ilha (CHELIZ, 2015). A norte, a Ilha encontra-se
voltada para as águas lagunares da Baia de Trapandé - “Mar de Dentro” (associada a águas doces e
salobras mais calmas e relativamente poupadas da influência direta das intensas arrebentações de
ondas do Oceano Atlântico).

Figura 3 - Composição onde se encontram sobrepostos o mapa geomorfológico da Ilha do Cardoso do ano de 2013, e a
localização das áreas ocupadas pelas comunidades caiçaras locais (destacadas por setas amarelas).
Fonte: adaptado de Cheliz (2015)

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Figura 4 – Modificações do mar nas imediações de distintas comunidades da Ilha: A – mudanças no posicionamento do
mar próximos a comunidade da Ilha voltada para Mar de Dentro (Pereirinha-Itacuruça), ilustrada por comparação entre
fotografia aérea de 1962 e imagem da composição World View de 2015, onde se vê que porção significativa das
estruturas da comunidade instalam-se em terrenos que pouco mais de cinco décadas antes eram mar, B: mapa ilustrando
modificações da linha de costa próximas a comunidades voltadas simultaneamente para Mar Aberto e Mar de Dentro
(antigas Enseada da Baleia e Vila Rápida) após o rompimento do Cordão do Ararapira, onde se situam. C: membros da
comunidade da Enseada da Baleia e seus convidados observam abertura formada no Cordão do Ararapira, uma semana
após o rompimento da Ilha do Cardoso em duas ilhas menores.

Fonte: adaptado de Cheliz (2015), Cheliz et al (2019), e foto de acervo pessoal do primeiro autor.

As bases físico-naturais da Ilha incluem dois distintos conjuntos (figuras 3 e 4) de quadros


de relevo, tal como caracterizados por Cheliz (2015): Serranias e Planícies. As Serranias
caracterizam-se por altitudes predominantemente contidas entre 20 e 720 metros acima do nível do
mar, com terrenos pautados por declives elevados (inclinações predominantes contidas entre 10 e
40 graus de inclinação), marcadas por vales fluviais de inclinações e desníveis verticais locais tão
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maiores quanto mais elevada a altitude. Mostram-se recobertas por densas florestas sempre-verdes
(matas atlânticas), e são associadas a unidades rochosas graníticas e metamórficas diversificadas, e
a solos originados de sua alteração. Seus segmentos de menores altimetrias (baixas vertentes) são
caracterizados também por menores declives, e vales menos profundos (dificilmente apresentando
desníveis verticais locais maiores do que 120 metros), e os segmentos mais elevados (altas
vertentes) são ligadas a maiores declives do terreno (CHELIZ e OLIVEIRA, 2021).
As Planícies vinculam-se a segmentos de menores altitudes (entre 0 e 20 metros acima do
nível do mar), declives mais brandos (inclinações são majoritariamente inferiores a 5 graus) e
associam-se a depósitos sedimentares arenosos e argilosos. Mostram-se segmentada em três
subconjuntos: planícies costeiras, planícies litorâneas e planícies alagáveis. As planícies costeiras
mostram-se mais expostas à ação direta dos fortes ventos vindos do mar e laguna circundante, e dos
pontuais extravasamentos das águas ligados às tempestades mais intensas. As planícies litorâneas
são ligeiramente mais elevadas que as planícies costeiras e usualmente mais distantes da linha de
costa, estando assim resguardadas da ação atual mais intensa das águas circundantes e dos ventos
vindos delas. As planícies alagáveis mostram-se rentes ao nível do mar, e associam-se a
manguezais, sendo diariamente tomadas por extravasamentos das águas circundantes (figura 3).

3.2 A INCORPORAÇÃO DAS TERRAS E DAS ÁGUAS NOS TERRITÓRIOS CAIÇARAS


ANTES DA CONVERSÃO DA ILHA EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO

Os atributos dos principais conjuntos de quadros naturais (figuras 5 e 6) da Ilha apresentam


múltiplos elementos que podem ser tomados como componentes dos “recursos naturais” (ZEDEÑO,
2008) na construção dos territórios caiçaras ao longo do tempo. A presença das amplas Serranias
(figura 5), de suas múltiplas nascentes e rios, e dos mais férteis solos derivados de seu embasamento
rochoso (face maior diversificação e disponibilidade de elementos químicos essenciais para nutrição
vegetal dados pela decomposição das fundações rochosas serranas – Cheliz, 2015), em contraponto
aos solos de mais difícil cultivo das planícies, facultavam aos grupos caiçaras estabelecerem ali
acesso favorecido a agricultura e a pesca. Particularmente, os sopés (Baixas Vertentes) e segmentos
dos morros dispersos das Serranias apresentam também outros atributos valorizados pelos modos de
vida caiçaras locais (CARVALHO e SCHMITT, 2012): 1 – declividade relativamente reduzida dos
terrenos (quando comparado a segmentos mais elevados das serranias), que facilitam a instalação
de casas; 2- Caráter navegável dos rios de fundo de vale, ligado aos declives reduzidos de suas
calhas, o que possibilitava escoar excedentes da produção familiar para escambo ou venda junto a
outros grupos sitiantes, ou com navios comerciantes vindos de Santos. De maneira similar, ressalta-
se a própria abundância de peixes atribuídas aos rios serranos em seus segmentos com calhas de

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menores declives, incluindo espécies não presentes nos segmentos de água salgada ou salobra nos
entornos da ilha, conforme relatado por entrevistas semi-estruturadas.

Figura 5 –composição ilustrando Serranias da Ilha do Cardoso, unidade da paisagem usada com maior intensidade
pelas comunidades caiçaras locais antes da conversão da área em unidades de conservação. A: fotografia destacando
esporões que se desmembram do corpo principal das Serranias e seccionam planícies, formando praias embaiadas
tomadas como local de instalação das comunidades voltadas para Mar Aberto tais como Cambríu e Foles, B: Serranias
voltadas para o Mar de Dentro, próximas da comunidade do Pereirinha-Itacuruçá. Pontilhados destacam, esporões que
se desmembram do corpo principal das Serranias e se prolongam rumo as águas do “Mar de Dentro”, e setas
interflúvios mais elevados. Observar armadilhas para peixes (“cerco-fixos”) espalhadas ao longo das águas lagunares.
Fonte: adaptado de Cheliz (2015) e fotografia de Noeli Neves (2013)

Grupos caiçaras instalavam as casas de madeira e pedras de seus núcleos familiares


próximos aos sopés das Serras e usavam de clarões na vegetação para prática de agricultura nas
encostas suavizadas das Baixas Vertentes desde, ao menos, o século XVIII (ALMEIDA, 2005;
CARVALHO e SCHMITT, 2012; CHELIZ, 2015). As planícies ocuparam, no longo período
anterior ao estabelecimento de restrições normativas mais rígidas de uso da terra local, um lugar
então tido como menos visado para atividades dos núcleos familiares sitiantes, como também elenca
Almeida (2005). Tal distinção teve, de acordo com entrevistas realizadas, contribuições das
percepções pelos caiçaras dos solos das áreas designadas como Planícies por Cheliz (2015) serem
menos favoráveis e férteis para o cultivo agrícola do que os solos das Serranias, de maneira
semelhante ao caracterizado pelo autor supracitado em sua análise do meio físico local. Esta
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coincidência entre a leitura dos elementos aqui considerados como “quadros naturais” por estudos
acadêmicos e pelos caiçaras tradicionais locais é semelhante ao documentada por Ramires et al.
(2020) em outras comunidades caiçaras do litoral sul de São Paulo, ao comparar conhecimentos
advindos dos grupos de pescadores artesanais caiçaras e os de estudos de ecólogos.

Figura 6 – composição ilustrando Planícies Diversificadas: A: - planícies litorâneas e suas associações vegetais de
restingas fechadas, B - planícies costeiras adjacente a limite com linha de praia, com presença de estrutura para
alocação de barcos, C- perfil esquemático apontando subdivisões das planícies no segmento voltado para laguna (“Mar
de Dentro”) com seta vermelho indicado local de instalação da comunidade do Pereirinha-Itacuruça, D- perfil das
planícies voltadas simultaneamente para águas do Canal do Ararapira (também designado como “Mar de Dentro”) e ao
Oceano Atlântico (“Mar de Fora”), com setas vermelhas indicando áreas (transição entre Planícies Litorâneas e
Planícies Costeiras) favorecidos para fixação das comunidades do Marujá, Vila Rápida, Enseada da Baleia e Pontal do
Leste.

Fonte: adaptado de Cheliz (2015).

Relatos advindos dos testemunhos dos moradores locais apontam que eles reservavam os
segmentos da Ilha caracterizados como Médias e Altas Vertentes das Serranias por Cheliz (2015)
para incursões esporádicas, em busca de itens vegetais e de fauna tido como mais frequentes nas
altitudes mais elevadas. Profusão e diversidade das coberturas vegetais possibilitavam um amplo
leque de apoios para a vida diária das comunidades – incluindo plantas tomadas como medicinais.

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Forneciam, ainda, respaldo para obras de trabalho coletivo amplo, como a esculturação de
embarcações a partir dos troncos de árvores mais espessas trazidos das escarpas da Ilha para
próximo dos rios e das planícies através de grandes mutirões de auxílio mútuo nas comunidades
caiçaras, conforme caracterizado por entrevistas semi-estruturadas realizadas.
Igualmente, as entrevistas ressaltam a abundância de nascentes (e.g - pequenas fraturas em
meio às rochas) nas vertentes deste segmento das Serranias, que jorram de acordo com os relatos
“águas de beber”, classificação que não se estendia a água dos rios das planícies, tidas estas como
“águas para pescar” e “águas para navegar”, mas impróprias para saciar a sede. De fato, mesmo nos
dias atuais, comunidades situadas adjacentes a rios das planícies (e.g – Pereirinha-Itacuruça) não
usam de suas águas para beber, preferindo manter estruturas de dutos simples que trazem águas das
cachoeiras serranas (distantes mais de 1 km) da Ilha do Cardoso para as planícies. No caso de parte
das comunidades do Cordão do Ararapira mais distantes do corpo principal das Serranias do
Cardoso (e.g – Pontal e Enseada da Baleia), dutos similares foram feitos para trazer água de fora da
Ilha, a partir de captações em porções serranas de cachoeiras de ilhas adjacentes ou do continente
próximo. Exigindo, assim, uma quantidade maior de trabalho para sua criação e manutenção, uma
vez que neste caso é necessário os dutos fazerem a travessia do Canal do Ararapira, tal como
também descrito por Nabhan (2021). Ainda de acordo com as entrevistas, as pronunciadas
declividades das áreas mais elevadas das Serranias, bem como maior instabilidade e propensão a
movimentos de massa (CHELIZ, 2015; CHELIZ e OLIVEIRA, 2021) por ocasião de grandes
tempestades (“trovoadas”, como designadas pelos caiçaras nas entrevistas realizadas), fez com que
fossem relegadas como opção preferencial de instalação duradoura, a despeito dos supracitados
conjuntos de características tidas como favoráveis.
Afora os núcleos familiares sitiantes, a instalação na Ilha de unidades produtivas dispersas
(incluindo um estaleiro) de controle externo ao das famílias sitiantes locais, deslocou parte da
população que trabalhava com a produção agrícola. A partir de 1910, barcos vindos da cidade de
Santos também passaram a circular na fachada litorânea da Ilha, e se propõe a compra de pescado
de Cananéia, o que teria contribuído para a pesca ser vista com um novo viés. Relatos advindos de
entrevistas realizadas com moradores mais antigos (>70 anos) apontam que o navio circulava ao
longo da maior parte da orla costeira da Ilha, abordando as múltiplas comunidades e núcleos
sitiantes individualmente para adquirir pescados. Dentro do contexto trabalhado, a economia do
caiçara local era tanto distinta da do indígena quanto da economia urbano-industrial. Ela buscava
atender necessidades domésticas, e simultaneamente precisava de materiais que os próprios caiçaras
não eram capazes de produzir – como ferramentas de aço, sal, e pólvora, tal como aponta Adams
(2000). Até meados do século XX, em períodos tidos como de prosperidade, o caiçara deixava em
segundo plano às suas atividades tradicionais, podendo adensar os núcleos urbanos. Voltava a
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colocar as atividades tradicionais em seus territórios em uma maior centralidade nos períodos de
estagnação, buscando garantir a sua sobrevivência (ADAMS, 2000; MOURÃO, 2003), tal como no
grande colapso econômico regional que se deu do Vale do Ribeira ligado ao assoreamento do porto
de Iguape no fim do século XIX (BRAGA, 1998).
A Ilha chegou, assim, ao fecho da primeira metade do século XX com polaridade entre
pontuais unidades produtivas remanescentes – de fábrica de telha a serralheria – e os previamente
citados predominantes territórios dos núcleos sitiantes familiares voltados para pesca e agricultura
diversificada de subsistência e colheita, escambo ou venda de eventuais excedentes. Até meados da
primeira metade do século XX setores expressivos da população do próprio município de Cananéia
fixavam-se na Ilha do Cardoso. Para a adjacente Ilha de Cananéia coube longamente no período
histórico pós-cabralino o papel de abrigo e mesmo refúgio das incursões marítimas de corsários e
piratas, e/ou de centro religioso.

3.3 RELAÇÕES ENTRE AS COMUNIDADES COM AS TERRAS E AS ÁGUAS APÓS A


NORMATIZAÇÃO DA ILHA COMO UMA UNIDADE DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL
A configuração judicial da Ilha do Cardoso como Unidade de Conservação e Parque
Estadual (Decreto nº 40.319, de 3 de julho de 1962) na segunda metade do século XX contribuiu
para modificações significativas na mediação entre a ação humana e quadros naturais na construção
dos territórios locais (GADELHA, 2008; CARVALHO e SCHMITT, 2012; CHELIZ, 2015;
YAMAOKA, 2019). Com as restrições da nova normatização territorial para a prática de agricultura
e para a manutenção das unidades produtivas residuais, iniciou-se massivo processo de êxodo
populacional da Ilha do Cardoso rumo ao centro urbano da vizinha Ilha de Cananéia. Estima-se que
ao menos 20 núcleos de povoação foram esvaziados (GADELHA, 2008; NUPAUB, 2016) – figura
7. As comunidades que praticavam de maneira mais intensa a agricultura antes da normatização do
parque (e.g – tais como Marujá e Pereirinha, situadas adjacentes a morros e outras áreas onde se
faziam roças) se viram mais impactadas, enquanto as que já eram mais ligadas à pesca afirmam
terem percebido mudanças menores no seu dia-a-dia – como apontado pelas entrevistas realizadas
na comunidade da Enseada da Baleia por Yamaoka (2019). Permaneceram, assim, na Ilha os grupos
melhor adaptados à prática da pesca ou que conseguiram se adequar a ela (MARINHO, 2014), com
atividades caiçaras em parte deslocando-se dos sopés das escarpas serranas e morros dispersos
(onde antes se praticava prioritariamente a agricultura) para as planícies da orla litorânea, de acordo
com relatos das entrevistas. Mesmo grupos instalados nos segmentos litorâneos passam a ter
dificuldades diversas para permanência, em parte apontadas como ligadas a restrições de ocupação

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por se situarem numa área de conservação1. Passando a haver modificação em alguns dos
componentes que Zedeño (2008) elenca como parte da construção da territorialidade. Na medida,
sobretudo, em que o controle sobre as áreas dos territórios dos múltiplos núcleos caiçaras da Ilha
passam a sofrer influência também da nova normatização legal de uso das terras alocada pelo
Estado.
Concomitantemente, de acordo com relatos de entrevistas e Gadelha (2008), antigos clarões
antes destinados às roças em meio às serras e mesmo planícies foram sendo substituídos
gradativamente por associações vegetais secundárias de restinga. Matas retomam extensões
perdidas das plantações e vilas caiçaras esvaziadas, enquanto os grupos caiçaras que se dispunham a
permanecer buscam caminhos e estratégias para se adequarem ao novo cenário.
Pontualmente singularizam-se dispersas em meio as matas de restinga restos de muros e
fundações de rocha. Pequenas e abandonadas casas de madeira surgem quase imperceptíveis, com
janelas vazias e portas entregues as areias do tempo. Em muitos segmentos as antigas construções
encontram-se parcialmente recobertas pela vegetação, que clamam a si mesmo estes pequenos
nichos que desafiam sua dominância. O que para muitos são apenas escombros na véspera de serem
tomadas pelas matas, para outros - como registrado nas entrevistas dos antigos moradores das
comunidades que se esvaziaram, seja as do presente trabalho seja as de contribuições anteriores,
como as de Gadelha (2008) - são símbolos que fazem vir a tona paragens antigas quase esquecidas.
Emergem vozes em meio às árvores. Em relances, rostos dos que há muito não caminham pela Ilha
mostram-se em meio aos lampejos das águas dos córregos. Através da memória dos mais velhos, ou
pelas histórias e canções dos fandangos herdados pelos mais novos, o tempo desnuda-se. Vastas
extensões das matas de restingas em volta das antigas ruínas passam a dar lugar a clareiras com
laranjais em esplendor, roças antigas e moradas passadas erguidas por fortes braços. Opulência das
capoeiras gradam para o perfume de campos floridos e figueiras espaçadas em meio aos quintais
das casas dispersas, dando alcance à visão ao imenso mar que parece tomar o tamanho do mundo
(CHELIZ, 2015).

1
Os efeitos da conversão da área da Ilha em unidade de conservação para as comunidades locais são complexos e
múltiplos, e sua discussão de maneira mais abrangente não é objetivo do presente trabalho, que se foca em analisar as
relações dos caiçaras com os elementos dos quadros naturais dos seus entornos. Ressaltamos, porém, que ao mesmo
tempo que existem consequências tidas como em parte negativas, como as discutidas no texto por se ligarem aos
objetivos do presente trabalho, existem outras também vistas como positivas, que foram mencionadas de maneira
espontânea nas entrevistas realizadas. Dentre outros relatos, por exemplo, moradores do Marujá e Enseada da Baleia
comentaram que percebiam que a conversão da Ilha em unidade de conservação afastou dali agentes da especulação
imobiliária, que planejavam fazer grandes loteamentos próximos a área do Marujá, o que era visto por eles como
prejudicial – tal como também previamente caracterizado por Gadelha (2008). Outros moradores afirmaram considerar
que se a Ilha não fosse uma unidade de conservação, poderiam ter tido um destino semelhante ao de outros territórios
caiçaras do litoral paulista dos quais ouvem notícias, em que os antigos habitantes perderam suas terras, ou foram
cercados por condomínios horizontais fechados, que restringem seu acesso ao mar.
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Figura 7 - esboço com localização de parte das comunidades da Ilha anteriores a normatização do parque como unidade
de conservação.
Fonte: adaptado de Gadelha (2008).

O silêncio das matas é cortado pelo som fluído das conversas e canções que embalaram os
laços de comadres e compadres. Pelo eco do destino incerto das pequenas rabecas que um dia ali
ressoaram. Do toque das mãos que acariciavam, e pelo estalar de distantes fogueiras noturnas.
Lembranças de cabelos esvoaçantes ao vento daqueles que se lançavam ao mar. Do arroz nascente
dos que fincavam-se a terra firme. Fragmentos que se esvaíram como o vento nas praias. Dividindo
o mesmo domínio onde reinam o silêncio e a contemplação dos anos de mudanças do mar que ora
criam, ora destroem parte das terras locais. Memórias de laços rompidos com a terra e águas na qual
cresceram, e cujos vínculos profundos a ela mantinham-nos unidos mesmo depois da partida, como
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a uma mãe. Vivências, tristezas e alegrias de vidas inteiras. Chamados daqueles que já partiram.
Saudades profundas. Caracterizando, assim, em parte, a passagens de algumas das áreas da Ilha
como de antigos territórios para paisagens culturais, tidos como lugares ricos em significados
vindos das experiências de um tempo de ocupação pretérita por um certo grupo em dada área,
conforme definição de Zedeño (2008). Elencando, ainda, modificações nos elementos que definem
a territorialidade de acordo com a mesma autora – permanecem as emoções, memórias e
sentimentos agregadas a uma área específica, mas enfraquece-se o controle e o acesso a ela.
As lembranças e ruínas nas margens dos rios, lagunas e sopés serranos não passam a serem,
porém, os únicos elementos que rompem a onipresença das densas matas e capoeiras das Planícies
da Ilha. Espaçados entre as quase que insondáveis matas de restingas mostram-se pequenos clarões
onde as pessoas ali permanecem e mantém-se em seus territórios a despeito das dificuldades, num
total de cerca de 500 habitantes que chegam aos dias atuais, distribuídos em sete comunidades
caiçaras (figuras 3 e 8)2. Sua persistência, porém, envolveu o enfrentamento de obstáculos e
dificuldades diárias (como relatado pelas entrevistas semi-estruturadas realizadas), entre eles a
adequação a nova normatização do território e a própria dinâmica físico-natural da área costeira da
Ilha. Grupos de caiçaras que permanecem veem-se inseridos numa zona de encontro entre céu,
terras e águas que por vezes podem se combinar de maneira intensa e destrutiva (CHELIZ, 2015).
Neste contexto, pode-se inicialmente segmenta-las em três grupos quanto a sua mediação com os
quadros naturais da Ilha: 1- as comunidades que instalam-se em terras voltadas para o segmento
lagunar - “Mar de Dentro” , 2- as que encontram-se em terras voltadas simultaneamente para as
águas lagunares e para as águas oceânicas, 3 - as que instalam-se em terras voltadas para as águas
oceânicas - “Mar de fora” (figura 3).
No segmento meridional da Ilha, a comunidade do Pereirinha-Itacuruçá constitui a
comunidade voltada para o segmento lagunar ou “Mar de Dentro”. Ergueu-se no limite entre
2
Existe também, na parte norte da Ilha, uma comunidade indígena. Ela não foi caracterizada diretamente pelo presente
trabalho, por não termos as autorizações necessárias da FUNAI para realizar entrevistas com seus membros. Moradores
caiçaras do Pereirinha-Itacuruça, por sua vez, relatam que tal comunidade indígena seria mais recente, tendo se
instalado na Ilha em meados do fim do século XX. Eles afirmam terem contato ocasional e amistoso com seus membros
– que por vezes nos fins de tarde se dirigem a comunidade Pereirinha-Itacuruça para jogar futebol junto aos caiçaras,
como testemunhamos várias vezes. Relatos da comunidade Pereirinha-Itacuruça apontam uma curiosa história para o
motivo dos indígenas terem se instalado ali: de acordo com eles, um líder indígena da comunidade (que antes se
instalava numa área distante do litoral) teria tido, numa cerimônia espiritual, um sonho, no qual viu um conjunto de
montanhas erguendo-se no meio do mar, junto a uma voz que dizia que este seria seu novo local de morada. Após este
sonho, teria convencido seus pares da importância de deixarem seu local de moradia de então, e iniciado uma migração,
rumo a lugar incerto. A comunidade indígena teria vivida como nômade, peregrinando de cidade em cidade por algum
tempo. Em certo momento, o líder indígena teria visto uma foto da Ilha do Cardoso numa revista em uma banca de
jornal, e reconhecendo tal paisagem como a do local de seu sonho, se dirigindo para lá. Ao chegarem na Ilha, teriam
conseguido contato com um antigo morador caiçara solitário de um sítio próximo a comunidade do Pereirinha-
Itacuruça, que estaria (devido a idade avançada, que dificultava trabalhar na terra e nas águas) prestes a deixar a área, e
ir viver com seu filho, que há muito já residia na área urbana de Cananéia. Este antigo morador caiçara teria se
solidarizado com a causa dos indígenas e também estaria desgostoso de ser a última pessoa a viver no sítio que
habitava, e assim teria tanto permitido como mesmo incentivado que os indígenas se instalassem no local de seu sítio,
pouco antes de ele mesmo deixar a Ilha.
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restingas abertas e fechadas defronte a Baia de Trapandé, adjacentes a um morro residual (“Morro
do Pereirinha”) batido pelas águas marinhas, e perto da foz de um grande rio local – Rio Perequê. O
rio, inclusive, separava o que originalmente eram duas comunidades diferentes – a de Itacuruçá, a
leste do rio, e a do Pereirinha, a oeste. A comunidade Pereirinha-Itacuruçá originou-se, assim, a
partir do agrupamento de várias famílias – sobretudo os Neves e Cordeiros – que em parte se
tornaram dispersas pelas Planícies do Nordeste da Ilha, conforme êxodo e migrações partindo da
Ilha se acentuava (conforme entrevistas semi-estruturadas realizadas com moradores locais). Parte
de seus núcleos familiares se instalarem ali antes da criação do parque, pois tiveram suas
localidades anteriores (no sopé da Serra, e, num segundo momento, na foz do rio Perequê, e no sopé
do Morro do Pereirinha) ameaçadas pelas forças das enchentes ou movimentos de massa alguns
anos antes mesmo da conversão da ilha em unidade de conservação, conforme relatos de entrevistas
realizadas.
As comunidades de Pontal do Leste, Enseada da Baleia, Vila Rápida e Marujá envolvem
aquelas que se encontram voltadas simultaneamente para as águas lagunares e para águas do mar
aberto. O núcleo do Pontal do Leste ergueu-se no extremo sudoeste da Ilha, próxima a Barra do
Ararapira. Formou-se a partir das alianças de casamento entre nascidos na Ilha e outros de
localidades múltiplas do continente próximo ou de ilhas adjacentes, como Superagui – sendo os
sobrenomes Pires, Cunha e Ramos como mais comuns que chegam aos dias atuais. Longamente
dividiram-se entre a pesca no Pontal e a agricultura no continente próximo, com famílias tendo
comumente no passado duas moradias. A comunidade da Enseada, por sua vez, levantou-se em
clarões em meio ao Cordão de Ararapira, de frente a laguna e de costas para o mar. Seu alicerce
envolve os descendentes do casamento de filhos adotivos de casal isolado que ali habitava - família
Malaquias, conforme informações fornecidas pelas entrevistas e pelos levantamentos do padre João
Trinta3 compilados e aprofundados por Carvalho e Schmitt (2012).

3
“Padre João Trinta” é o nome “abrasileirado” dado pelos moradores da Ilha do Cardoso e de Cananéia ao padre
alemão Jan Van Der Heijden, que por muitos anos atuou na igreja católica local entre a segunda metade do século XX e
início do século XXI. Seu nome foi lembrado múltiplas vezes nas entrevistas realizadas por membros de diversas
comunidades, sempre associado a uma relação de grande admiração e gratidão. Os relatos apontam que o padre João
Trinta seria muito próximo das comunidades, as quais visitava regularmente tanto para realização de cerimônias
religiosas tais como as das festas dos padroeiros, como também para buscar auxilia-las em certas dificuldades que
enfrentaram. Dentre elas, os relatos apontam que durante os anos 70 e 80 do século XX, em pleno Governo Militar, os
moradores da Ilha receberam cartas de despejo de entidades das Forças Armadas (alguns dos relatos mencionavam que
tratava-se especificamente da Marinha), que teriam interesse em usar da Ilha do Cardoso para um projeto estratégico.
Parte dos relatos apontam que acreditam que este projeto seria a construção ali de uma usina nuclear. Um dos
moradores afirmou ter até hoje guardado tal carta de intimação em sua casa. Neste momento, o padre João Trinta
realizou um intenso trabalho de levantamento das árvores genealógicas e da história de cada uma das comunidades –
inclusive organizando arquivos com cópias das certidões de nascimento, casamento e outros documentos pertencentes
desde à moradores já falecidos até aos que então ali viviam. O padre João Trinta, assim, articulou vasta documentação
que demonstrava que as famílias locais encontravam-se vivendo nestes territórios já há muitas gerações, para, assim,
buscar impedir a expulsão delas de seus territórios. Igualmente, usou de sua influência dentro da Igreja Católica em
favor das comunidades. Os moradores, nas entrevistas, afirmam acreditar que se não fosse a intervenção do padre João
Trinta eles não teriam conseguido permanecer na Ilha, e provavelmente teriam sido obrigados a deixar seus territórios
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A Vila Rápida, em seu turno, se instala em meio às dunas do mesmo Cordão. Longamente
foi considerada como extensão da própria Enseada, herdando seu nome atual do fato de turistas
terem erguido ali casas de veraneio com grande velocidade, visando escapar das restrições impostas
pela Unidade de Conservação – conforme entrevistas semi-estruturadas realizadas e Carvalho e
Schmitt (2012). A comunidade do Marujá, por sua vez, fixou-se também no Cordão, mas mais
próxima das bases das Serranias. O Núcleo herda o nome de antigo barco que ao cruzar o Canal de
Ararapira teve seu trajeto interrompido por ser associado a geração de grandes ondas que
atrapalhavam embarcações menores, tendo que ali aportar. A comunidade que nas proximidades do
antigo barco se instalou teria tomado emprestado o nome da embarcação citada, em substituição a
antiga toponímia de “Praia do Meio” usada anteriormente para designar o segmento em questão
(CARVALHO e SCHMITT, 2012; CHELIZ, 2015).

Figura 8 - composição com ilustrações das comunidades remanescentes: A – fachada de comunidade voltada
exclusivamente para o mar aberto (Cambriú); B: fachada de comunidade voltada para o Mar de Dentro (Pereirinha-
Itacuruçá), onde se vê também o traçado meandrante do rio Perequê; C: fachada de comunidade voltada
simultaneamente para Mar de Dentro e Mar de Fora (antiga Enseada da Baleia), D: detalhe de casa de comunidade
(antiga Vila Rápida) voltada simultaneamente para Mar de Fora e Mar de Dentro; E: casas de comunidade voltada para
mar aberto (Cambriú).

Fonte: adaptado de Cheliz (2015), Silva (2014) e Diana Garça (2016). Imagem “B” de autores desconhecidos, e
disponibilizada do arquivo do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, e imagem “C” do arquivo comunitário da Enseada
da Baleia.

tradicionais. Esta farta e rica documentação levantada pelo padre João Trinta foi, mais tarde, usada por Carvalho e
Schmitt (2012) como uma das bases para seu levantamento das comunidades tradicionais caiçaras da Ilha do Cardoso.
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A instalação voltada exclusivamente para o mar aberto envolve as comunidades de Foles e


Cambriú. Ambas, porém, contando com respaldos específicos. A comunidade de Foles ainda que
esteja a poucas dezenas de metros da linha de arrebentação de ondas tomou a praia embaiada
homônima para se fixar. Encontram-se, assim, resguardados da ação mais agressiva do mar por dois
salientes esporões rochosos.
Já o núcleo do Cambriú ergueu suas pequenas casas de madeira em meio a clareiras na
restinga fechada adjacente aos trechos finais de praias arenosas da costa sudeste da Ilha. A
comunidade instala-se numa pequena faixa de Planícies situadas entre Serranias a oeste, um esporão
rochoso a sul e os abruptos paredões sob arrebentação do mar do Costão do Cambriú que domina o
horizonte a norte (figura 2a e 8a). A discreta enseada margeia ainda a foz do rio Cambriú, que em
seus segmentos finais contorna os paredões abruptos da Serra e marca os limites das praias brancas
arenosas locais. Águas doces e salgadas se encontram sob a guarda dos imensos paredões rochosos
e visão distal dos mais serrilhados picos rochosos da Ilha. O som contínuo dos intensos choques das
ondas ante os costões se mescla à suavidade pontual da anulação da arrebentação imediatamente
defronte às várias pequenas casas de madeira da comunidade, em meio à profusão de cores das
flores e árvores das restingas. Sensações múltiplas de difícil apreensão se mesclam, num dos talvez
mais singulares quadros de interações entre caiçaras e quadros naturais de toda a Ilha.
Nos vários núcleos dispersos ao longo das planícies da Ilha e em meio a estreitos clarões
arenosos das matas de restinga, as comunidades mantiveram suas moradas, com salões comunais,
capelas e pequenas casas. Discretas trilhas em meio a cordões arenosos e matas de restingas
abriram-se, ligando a entrada de seus lares as de seus vizinhos e aos portais para um aparente
infinito oceano, conforme percepções relatadas de entrevistas. Suas crianças ali dão os primeiros
passos, e a vida começa a seguir seus caminhos. Nas primeiras brincadeiras, se inicia o apreender
dos ritmos dos mares, peixes e ventos. Dos trajetos das estrelas e céus. O árduo, mas compartilhado
trabalho na pesca e a delicadeza sutil na confecção de suas comidas, instrumentos e ferramentas. A
alegria sincera e ingênua das noites de festejos anuais dos padroeiros de cada uma das
comunidades4. Descobertas e o nascimento dos laços, como mais uma semente brotando nos solos
das matas de restingas. O amparo dos seus e a segurança da terra firme dividida com o permanente

4
As festas dos padroeiros parecem, em parte, incorporar o papel social – tal qual o fortalecimento de laços sociais entre
moradores locais, ou mesmo início ou consolidação de relacionamentos que iriam culminar em alianças de casamento -
dos antigos fandangos, festas agrícolas tradicionais feitas após mutirões de auxílio mútuo para plantio ou colheita entre
membros das comunidades e sítios (CARVALHO e SCHMITT, 2012). Com as restrições à agricultura, que antes
tomavam mais tempo e energia dos habitantes locais, os mutirões para preparar roças passaram a rarear, e
consequentemente as festas de fandangos que se faziam depois deles também. Hoje, inclusive, o fandango é associado
pelos mais jovens não a um evento social, mas sim, em parte, como o tipo de música que se praticava em tais
festividades. Mutirões de auxílio mútuo entre as comunidades, porém, por vezes ocorrem por outros motivos que não o
plantio ou colheita – tal como nos esforços de construção da vila da nova Enseada da Baleia, que precisou realocar-se
devido a sua localidade antiga ser ameaçada pela erosão costeira. Nessas ocasiões, festejos ainda são oferecidos pelos
beneficiados do mutirão ao fecho dos trabalhos.
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murmúrio marginal da arrebentação dos mares, como um chamado para um incerto e desconhecido
futuro (CHELIZ, 2015).
A aparente fragilidade e leveza das edificações e a distribuição horizontal das referidas
comunidades em meio a compartimentação de relevo da Ilha podem ser tomadas como uma
estratégia localizacional, que leva em consideração não somente os atributos dos quadros
ambientais das águas dos entornos, mas também dos distintos atributos das terras emersas. Uma vez
que ao sobrepormos a localização das comunidades com os levantamentos geomorfológicos da Ilha
(figuras 3 e 8), verificamos que existe uma coincidência da localização das atuais comunidades com
o limite entre duas das subunidades de relevo (Planícies Litorâneas e Planícies Costeiras) que
caracterizam as terras baixas locais. A opção de erguerem suas comunidades nas planícies
litorâneas, mas próximas das planícies costeiras, permitem com que consigam instalar as suas
famílias e resguardar suas moradias e locais de trabalho em terra firme não alcançada pelas
ingressões periódicas mais intensas das águas. Contam, assim, com o anteparo das restingas abertas,
cordões e dunas das Planícies Costeiras para protegê-los dos efeitos nocivos dos intensos ventos e
inundações das águas lagunares e marinhas dos entornos, por ocasião das passagens de frente frias e
tempestades mais intensas. Simultaneamente, encontram-se próximos o suficiente das praias
(caminhadas de não mais do que cinco minutos) para terem acesso aos distintos conjuntos de águas
circundantes. Adicionalmente, a possibilidade de acesso rápido ao transporte pela laguna e pelo mar
para outros núcleos e comunidades é outra vantagem oferecida pela instalação próxima ao limite
entre as Planícies Litorâneas e Costeiras, haja vista a dificuldade imposta pelas Serras que dominam
o centro da Ilha para realizar estes trajetos por terra, conforme relatos das entrevistas realizadas.
Igualmente, nota-se que a maioria das comunidades situa-se próximas (<1km) de Planícies
Alagáveis, cujos manguezais associados são vinculados a múltiplos animais e plantas incorporados
no dia-a-dia das comunidades, sobretudo antes da conversão da Ilha em unidade de conservação.

3.4 FLUTUAÇÕES DOS USOS DAS TERRAS E ÁGUAS E DO PAPEL DA PESCA NOS
DIFERENTES CONJUNTOS DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS AO LONGO DO
TEMPO

3.4.1 AS COMUNIDADES E AS MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS DO USO DA TERRA,


DAS ÁGUAS E DA PESCA
Cada um dos três conjuntos de comunidades pesqueiras (aquelas com acesso direto a águas
lagunares, as com acesso simultâneo as águas lagunares e oceânicas, e as com acesso direto a águas
oceânicas) experimentaram diferentes variações de seus modos de vida e de uso da terra e das
águas após a conversão da Ilha do Cardoso em unidade de conservação, conforme entrevistas
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realizadas. Tais mudanças, porém, se dão incluindo também diferentes permanências e


modificações nos modos de pesca – a principal prática que articula a vida em terra e em mar dos
moradores locais - em si, quanto a oscilações da centralidade da pesca para a subsistência dos
membros das comunidades. De maneira similar, de acordo com entrevistas semi-estruturadas, os
pescadores locais associam potenciais e riscos diferenciados das práticas pesqueiras a cada um
desses conjuntos de águas aos quais as terras das comunidades tem acesso direto. Mostrando-se
nisso semelhantes às toponímias de pescadores artesanais voltadas para segmentação de peixes
previamente elencadas por Mourão e Nivaldo (2018) no litoral da Paraíba, no nordeste brasileiro, e
aos conhecimentos tradicionais de pescadores documentados por Ramires et al. (2007).
Envolvendo, ainda, distintos tipos de mediações e trabalhos a partir dos produtos das pesca (figuras
9 e 10), conforme detalhados nos tópicos seguintes.

3.4.2 ATIVIDADES PESQUEIRAS E INTERFACES TERRA-MAR VOLTADAS PARA O


MAR DE DENTRO
O “Mar de Dentro” é apontado nas entrevistas semi-estruturadas pelos pescadores de
distintas comunidades como dotados de águas menos agitadas e mais brandas do que as do “Mar de
Fora”. A prática pesqueira no “Mar de Dentro” é vista, assim, como uma modalidade de pesca de
menor risco aos seus praticantes. Entre as principais modalidades de pesca nas águas estuarinas
pode-se elencar os cercos-fixos, rede de espera, caceio, cerco, currico, picaré e gerival, conforme
entrevistas semi-estruturadas e coerente com o também caracterizado por NUPAUB (2016).
A primeira das citadas modalidades é descrita pelas entrevistas como a mais efetiva, e a que
apresenta relação mais forte com as áreas que as comunidades tomam como seus territórios. Liga-se
a uma conjunção de saberes legados do conhecimento tradicional herdado que convergem no uso de
uma forma também tradicional de pesca local (figura 9), a montagem de armadilhas de cerco-fixo.
Tal modalidade de pesca tem uma importância que extrapola a das comunidades da Ilha, uma vez
que nos meses de inverno chegam a responder por mais de 40% de toda a produção pesqueira do
município de Cananéia como um todo, conforme os dados advindos da colônia de pesca municipal
sistematizados por Cubas (2018). No passado as referidas armadilhas eram feitas com segmentos de
madeiras (denominados de mourões) unidos entre si por cipós derivados do extrativismo da flora da
própria ilha. Sua preparação envolvia trabalhos demorados, que exigiam mutirões de duração de
várias semanas entre os membros de uma mesma comunidade. Uma parte do processo era
constituída de várias semanas de trabalho em terra, e outra (mais breve, em geral se dando em
poucos dias) na montagem dos mourões nas águas nos entornos, conforme detalhado no material
suplementar 1.

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Atualmente, devido às restrições ao extrativismo ligados a normatização da Ilha como


unidade de conservação, a prática da pesca com armadilhas de cerco-fixo se mantém, mas com
modificações, conforme entrevistas semi-estruturadas realizadas e acompanhamento direto de
algumas destas práticas pesqueiras. No lugar de, como no passado, usar itens vegetais extraídos da
flora da própria Ilha (prática que passou a ter restrições após conversão da Ilha em unidade de
conservação), são usados varas de madeira compradas em armazéns das cidades próximas, e usado
arame para unir os festes de madeira entre si e formar os mourões. Permanecem, entretanto, o
trabalho coletivo e o rodízio de mutirões entre membros das comunidades para preparar os
mourões, transportá-los e montá-los em meio às águas circundantes. Incluindo uma sucessão de
tarefas em que a posição dos núcleos de povoação em segmentos pouco distantes da linha de costa
facilita a efetivação. Havendo, ainda, a necessidade dos cercos-fixos serem refeitos em média três
vezes por ano por cada grupo de parceiros de pescaria, pois apresentam durabilidade média de 4
meses antes de serem desgastados pela ação das águas circundantes (CUBAS, 2018).
De maneira similar, permanecem também a preparação manual de apetrechos de pesca como
as redes (preparadas muitas vezes nas noites de inverno, e ao mesmo tempo que as famílias
encontram-se reunidos sentados nas salas de suas casas a noite conversando) para coleta dos peixes
capturados, mas agora não usando de produtos de extrativismo nos processos de confecção, e sim
matérias-primas obtidas de fora da Ilha, usualmente nos armazéns das cidades próximas. Passam a
empregar, ainda, barcos motorizados, em combinação com as tradicionais canoas a remo. Os barcos
são usados para acesso mais rápido ao local de montagem do cerco, com as canoas sendo levadas
“rebocadas”, presas por cordas. Ao chegar ao local de montagem, porém, os parceiros de pescaria
passam para a canoa não motorizada, tida como de movimentos mais precisos, que auxiliam a se
posicionarem adequadamente para fixação dos mourões.
Esse conjunto de práticas seculares com adequações recentes têm enfrentado desafios para
sua manutenção. Dentre eles, a percepção por parte dos pescadores da Ilha de diminuição da
abundância de peixes no “Mar de Dentro” ao longo do tempo, atribuído por eles, em parte, a
ampliação da circulação de barcos motorizados (sobretudo de turistas) e maior urbanização do
litoral sul como um conjunto. Recentemente, soma-se aos citados desafios o anteriormente
mencionado rompimento (figura 4) da porção sul das planícies da Ilha do Cardoso (SOUZA, 2018;
CHELIZ et al., 2019; SOUZA et al. 2019). A decorrente formação de uma nova barra do Canal do
Ararapira que seccionou a continuidade das planícies da ilha, expos uma porção significativa das
águas lagunares – até então resguardadas em grande medida da ação direta das águas marítimas – a
influência direta do Oceano Atlântico. Passaram a serem registrados, de acordo com entrevistas
realizadas, modificações nos graus de salubridade das águas e oscilações bruscas dos padrões de
circulações internas das águas. Tais mudanças súbitas são apontadas como muito significativas
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pelos grupos de pescadores locais. Sobretudo por suas estratégias de pesca no “Mar de Dentro”
serem em grande medida alicerçados nos conhecimentos tradicionais herdados sobre os padrões
das águas lagunares, e dos locais de abundâncias de peixes vistos como correlatos, que apontam
como terem permanecido caracterizados por relativa constância ao longo de muitas gerações.

Figura 9 – ilustrações de montagem de cerco fixo, prática pesqueira usada no Mar de Dentro: A – fixação dos mourões
por membros das comunidades do Pereirinha-Itacuruçá (foto de Eduardo Pereira), B – fachada de cercos fixos já
concluídos, próximos a comunidade do Pereirinha-Itacuruçá; C – membros de comunidade local fazendo a coleta de
peixes capturados na armadilha, D - esquema ilustrando planta de um cerco típico dos usados do “Mar de Dentro” a
norte da Ilha do Cardoso.

Fonte: adaptado de Cubas (2018), fotos de Eduardo Pereira (2015), Alicia Neves (2015) e de Cheliz (2015).

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O deslocamento de barcos ao longo do local passou também a ser modificado, usando de


adequações de seus técnicas locais de orientação e navegação (e.g – COELHO, 2019), dado as
mudanças na circulação das águas, e mesmo comunidades como a Enseada da Baleia e Vila Rápida
tiveram que realocar-se devido a localidade na área de restinga que fora engolida pela nova barra
(HAYAMA e CARDOSO, 2018; YAMAOKA, 2019).
Mesmo em segmentos mais afastados da nova barra, as águas mais calmas do “Mar de
Dentro” por vezes também experimentam formação de ondas que podem ter mais de um metro de
altura, por ocasião da passagem de ventos e frentes frias mais fortes, e que dificultam a navegação,
conforme entrevistas e observação direta. A perícia caiçara e sua relação com as águas, nessas
ocasiões, se manifesta por meio de estratégias especiais usadas para navegar em tais condições. Nos
trabalhos de campo, notamos que ao fazer trajetos no “Mar de Dentro” entre a Ilha do Cardoso e a
adjacente cidade de Cananéia nos dias de águas agitadas em pequenos barcos guiados por não-
moradores da Ilha, eles conduziam a embarcação de maneira similar que no tempo em que as águas
locais mostravam-se planas e calmas. O barco usualmente é conduzido por tais pessoas fazendo
percursos em linha reta, formando ângulos obtusos em relação a propagação das ondas, e em
velocidade constante e elevada, levando a contínuos e fortes impactos contra as ondas que a
embarcação rompia sucessivamente, bem como a intensos solavancos. Viam, assim, essa
adversidade das águas agitadas dada pelo meio natural local como algo a ser vencido com o
máximo da potência fornecida pelos motores a combustão, de maneira a superar a energia das
ondas.
Ao fazermos estes mesmos trajetos em similares embarcações guiadas por moradores
caiçaras locais, por outro lado, percebíamos que eles mudavam sua forma de conduzir o barco para
se adequar ao novo cenário das águas locais. A cada crista de onda que surgia, a avaliavam com um
olhar, e suavemente mudavam o ângulo em que a embarcação se deslocava, para buscar aquele que
mais se adequasse a forma da onda, de maneira a minimizar o impacto, que praticamente não
sentíamos. No lugar de atravessar e romper com grande velocidade cada onda que tínhamos em
nosso caminho, o barco passava, assim, a se deslocar suavemente sobre elas, adaptando-se e
acompanhando a suas curvaturas naturais oscilantes, em sucessivos suaves sobes e desces. Para tal,
os “piloteiros” caiçaras diminuíam e modulavam a velocidade da embarcação no momento em que
o barco estava “cavalgando” suavemente a onda, a aceleravam um pouco discretamente após
transpô-la, e diminuíam novamente face a aproximação da onda seguinte. Mostravam, assim, uma
opção de adequação para o próprio deslocamento de seus barcos se tornar mais próximo desses
novos e agitados ritmos e formas das águas, de maneira síncrona, tal como os melhores cavaleiros
compreendem e se adequam às oscilações dos humores mesmo dos cavalos mais bravios.

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3.4.3 ATIVIDADES PESQUEIRAS NO “MAR DE FORA”


Referente ao “Mar de Fora”, relatos de pescadores dos diferentes conjuntos de comunidades
convergem no sentido de atribuírem a ele um maior potencial para pesca mais abundante.
Sobretudo, quando levam em conta a percepção de diminuição dos pescados no “Mar de Dentro”, e
as recentes alterações nos padrões das águas lagunares pela ruptura dos cordões arenosos da Ilha.
Elencando-se como práticas pesqueiras predominantes ali o arrasto simples e de praia. Apontam que
a chegada à Ilha de barcos com motores a combustão potencializou a pesca embarcada no Mar de
Fora, tida como de maior rentabilidade, tal como também realçado por Mourão (2003), e diferente
do retratado previamente por Mendonça e Katsuragawa (2008) para os anos de 1995 e 1996, tempo
em que a pesca artesanal na área foi caracterizada como pouco motorizada.
Simultaneamente, as entrevistas semi-estruturadas caracterizam a pesca no “Mar de Fora”
como ligada a maiores riscos, face a maior agitação das águas, a maior profundidade e dificuldade
de navegação, e as influências mais bruscas e diretas das tempestades associadas ao “Vento Sul”.
Englobando, ainda, práticas pesqueiras de pesca artesanal a partir de pequenos barcos tripulados
motorizados de madeira, equipados para possibilitar o pernoite ou passagens por ilhas rochosas
menores no entorno do Cardoso, cujas imediações são ditas pelos moradores da ilha como
caracterizadas pela abundância de pescados.
O apontado como elevado grau de preservação ambiental e baixa contaminação das águas
locais do complexo lagunar de Cananéia-Iguapé, quando comparadas, por exemplo, com as áreas
dos grandes complexos portuários da Baixada Santista ao norte e Paranaguá ao sul, é
frequentemente mencionado pelos pescadores locais como tido como responsável pela elevada
abundância de algumas importantes e valorizadas espécies de pescados no “Mar de Fora”, tal como
camarões. De maneira similar, esse tido como elevado grau de preservação – mesclado a raridade de
áreas com águas preservadas no densamente urbanizado e industrializado Centro-Sul brasileiro –
levam este trecho do mar local a ser visado por outros tipos de pesca que não o artesanal,
controlados por agentes externos a Ilha, de forma semelhante ao documentado anteriormente por
Chaves e Robert (2003) no litoral sul do Paraná.
Em trabalhos de campo na Ilha, por várias vezes pudemos observar nas primeiras horas da
manhã as pequenas embarcações dos pescadores artesanais se dirigindo ao mar aberto, e retornando
poucas horas depois, quando o habitual seria que permaneçam por vezes vários dias seguidos na
prática da pesca de camarão. Relatos de pescadores ao serem questionados sobre o tema, apontam
que o retorno se dá quando constatam que houve uma diminuição brusca da abundância de
camarões disponíveis no “Mar de Fora”, voltando para suas moradas para tentar novamente a pesca
após alguns dias. Atribuem tais diminuições bruscas a passagens de navios-pesqueiros industriais
vindos de pontos distantes de grandes centros urbano-industriais do sul e do norte, que praticariam
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durante a noite (visando dificultar a fiscalização) pesca industrial de arrasto de camarões (prática
ilegal) no fundo do “Mar de Fora”, levando numa única noite grande parte dos camarões passíveis
de serem apreendidos por várias dezenas de pescadores artesanais ao longo de quase uma semana
embarcados.

3.4.4 OSCILAÇÕES ENTRE OS DIVERSOS TIPOS DE PESCA, E O TRABALHO DOS


PRODUTOS DO MAR
Ainda que a localização de cada conjunto de comunidades favoreça a pesca nos conjuntos
das águas que se encontram situadas adjacentes, tal fato não restringe, necessariamente, as práticas
de pesca de seus integrantes a um único conjunto de águas. Membros da comunidade voltada
exclusivamente para o “Mar de Dentro” (Pereirinha-Itacuruçá), por exemplo, relatam tanto a prática
da pesca nas águas lagunares (incluindo o uso de armadilhas de cerco), como no Mar de Fora
(através da pesca de praia). Sobretudo no inverno se revezam para, usualmente no final do dia,
deslocarem-se cerca de seis quilômetros rumo ao final da praia que se situa a comunidade (Praia de
Itacuruçá), para terem acesso a costão rochoso alcançado pelas águas oceânicas do “Mar de Fora”,
visando a pesca de Tainha (apontada como mais abundante nesses segmentos de ligação do “Mar de
Fora” com o “Mar de Dentro”). De forma semelhante, pescadores situados em comunidades sulinas
voltadas para o mar aberto e laguna, relatam deslocarem-se no Outono para passarem alguns dias na
comunidade nortista onde possuem laços de parentesco, para auxiliarem na preparação dos cercos-
fixos, tidos como mais favoráveis em tal conjunto de águas. O estabelecimento de relações de
“parceiros de pescaria” não se restringe, assim, necessariamente aos membros de uma mesma
comunidade. Sobretudo, de acordo com relatos das entrevistas realizadas, pelas existência de
relações de casamentos entre membros de diferentes comunidades da Ilha (com tais casais muitas
vezes relatando terem se conhecido e iniciado seus laços nas festas dos padroeiros, que por vezes
reúnem membros dos diferentes territórios tradicionais da Ilha).
As permanências e modificações das práticas da pesca em si ao longo do tempo se mesclam
às transformações e constâncias das maneiras de trabalhar os produtos da pesca e do mar. Exemplos
desses processos podem ser observados numa das comunidades com acesso direto simultâneo às
águas lagunares e oceânicas no Cordão do Ararapira ao sul da Ilha, a Enseada da Baleia. Ali, o
interesse pelo pescado levou a instalação de uma fábrica de peixe seco que estava organizado para o
beneficiamento da sardinha e do iriko. Antes da normatização do parque, a fábrica era - de acordo
com relatos das entrevistas - controlada por pessoa externa à comunidade e à Ilha, com o trabalho
dos membros das comunidades sendo feito em troca de mercadorias. Esta fábrica faliu na década de
1940 e deu origem a uma nova forma de beneficiamento do pescado, através da salga e secagem ao
sol, que dependia de alternativas para a ausência de sistemas de refrigeração no período
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(YAMAOKA, 2019). Num segundo momento, um grupo de mulheres da comunidade se organiza


para fazer liderar a realização das supracitadas atividades, com características específicas
semelhantes a de economia solidária (figura 10). Situando ali as mulheres em posições sociais
diferenciadas das apontadas como tradicionais nas organizações dos núcleos caiçaras por Adams
(2000).
A habilidade necessária para tal trabalho e secagem sistemática dos pescados estava
desenvolvida há muitos anos, muitas delas trabalham com isso desde a infância (YAMAOKA,
2019), ligado a profundo conhecimento do recurso, do ambiente onde está inserido e de seu
comportamento. De fato, tais técnicas de secagem ao sol não parecem serem exclusivas da
comunidade da Enseada da Baleia – por mais de uma vez pudermos ver procedimentos similares
sendo executados também na comunidade do Pereirinha-Itacuruçá. Fora da Enseada da Baleia,
porém, a técnica de secagem parece ser usada apenas para preparar peixes para consumo próprio, e
os pescados destinados ao comercio são vendidos na maior parte tal como retirados do mar,
enquanto a Enseada da Baleia usa tal técnica para agregar valor aos produtos da pesca antes de
vende-los.
Afora o trabalho dos peixes, existe também ao menos em parte das comunidades (e.g –
Pereirinha-Itacuruçá e Enseada da Baleia) o aproveitamento e confecção de artesanato com temas
ligados a pesca e/ou usando de materiais trazidos pelo mar até as praias – tais como redes, petrechos
de pesca e mesmo fragmentos de madeira, sobre o qual se realizam belas pinturas retratando o
cotidiano caiçara (figuras 10, 11 e 12). Evitando assim que estes materiais, muitas vezes provindos
da pesca industrial, sigam presentes entre praias e mar, prejudicando animais e plantas marinhas.

3.4.5 OSCILAÇÕES NA CENTRALIDADE DA PESCA AO LONGO DO TEMPO, E OS


CONFLITOS SOBRE OS RECURSOS DA TERRA E DAS ÁGUAS
Afora as oscilações e continuidades dos tipos práticas pesqueiras, registram-se significativas
modificações da centralidade exercidas pela pesca e dos seus produtos nos modos de vida e
territorialidades locais. Tais mudanças, de acordo com as entrevistas, teriam contribuição tanto da
percepção de diminuição de abundância de peixes no “Mar de Dentro” com o passar do tempo e ao
surgimento de novas opções de sustento em complemento a pesca. Realçando-se as possibilidades
advindas de parcela dos membros das comunidades constituírem-se funcionários do parque, e de
auxiliares nos processos de pesquisas científicas que passaram a ser feitas com regularidade no local
após a conversão em unidade de conservação. Destacando-se, ainda, a flexibilização da visitação a
determinados segmentos da ilha a partir de 1998, ligada a atividades de turismo de base

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comunitária, que podem ser desempenhadas somente por moradores reconhecidos como
tradicionais da Ilha do Cardoso5.

Figura 10 – Trabalho da artesã e caiçara moradora da Enseada da Baleia Tatiana Cardoso: pintura em madeira
deixada pelo mar em praia próxima retratando atividade de pesca típica das comunidades locais

Fonte: fotografias do primeiro autor, tiradas em 2019

5Segundo o Programa de Interação Sócio-Ambiental, do Plano de Manejo - fase 2 do Parque Estadual da Ilha do
Cardoso o morador tradicional deve apresentar as “seguintes características:
O chefe da família, deve estar há, no mínimo, 3 gerações na Ilha do Cardoso;

Desenvolvem atividades de baixa interferência no meio ambiente: pequena escala e baseada no

uso dos recursos renováveis;
Tem conhecimento e domínio das técnicas tradicionais (pesca, agricultura e construção)”

(GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2001, p. 111).

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Figura 11 - Trabalhos em tecido da artesã Tatiana Cardoso, caiçara da Enseda da Baleia: A - retratando práticas
tradicionais de secagem dos peixes, remetendo-as ao tempo de fundação da comunidade (1845); B – representação
sobre os processos recentes de reorganização da comunidade.

Fonte: fotografias do primeiro autor, tiradas em 2019

Figura 12 – fotografia de painel preparado em conjunto pela comunidade do Pereirinha-Itacuruçá e por equipe de
estagiários do voluntariado de verão de 2019 do PEIC, ilustrando os dois padrões dominantes de paisagens da Ilha
(Planícies e Serranias), com a árvore em primeiro plano sendo também uma representação da árvore genealógica da
comunidade da comunidade, com casal de fundadores associados a base do tronco, e seus descendentes retratados nos
galhos que se desmembram a partir dele.

Fonte: fotografia do primeiro autor, tirada em 2019.

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Deste conjunto de opções, o turismo é visto como envolvendo um maior número de


membros das comunidades, e também agentes externos que estabelecem mediações diversas com as
comunidades pesqueiras, para assim terem acesso facilitado a seus territórios, de acordo com as
entrevistas realizadas e de contribuições anteriores, tal como as de Marinho (2013) e Silva (2014).
O turismo comunitário na Ilha se dá a partir de serviços de receptivo, sejam eles quiosques,
restaurantes, campings, pousadas, quartos em casa de família, transporte de embarcações e
monitoria ambiental. Mostrando-se complementados por serviços de prestadores de serviços
externos, como agências, operadoras e monitores ambientais não residentes na própria Ilha, mas
com domicílio na cidade de Cananéia. De maneira similar, pequenos grupos (de quatro a oito
pessoas) de apoio sazonal ao turismo nos meses de maior movimentação atuam nesta atividade,
através de estagiários voluntários selecionados pela equipe gestora do Parque, que por vezes
participam do dia-a-dia e atividades das comunidades nestes momentos (figura 12). Podendo ser
distinguido, inicialmente, de acordo com as entrevistas realizadas, o turismo recreativo, concentrado
nos meses de verão, e os de educação ambiental, composto majoritariamente por escolas privadas
de nível fundamental e médio vindas de grandes cidades no entorno do Vale do Ribeira, como São
Paulo e Curitiba. Incluindo, ainda, escolas públicas da própria cidade de Cananéia e do Vale do
Ribeira, por meio do programa denominado “Cananéia Tem Parque”.
As entrevistas realizadas apontam uma percepção de uma incorporação heterogênea do
turismo ao longo do tempo e dos distintos conjuntos de comunidades, e mesmo heterogeneidades
internas ao longo dos territórios de cada uma delas, conforme detalhado no material suplementar 2.
Em parte das comunidades, o turismo é percebido como passando a ter uma centralidade maior que
a pesca para o sustento das famílias; em outras é visto como ocupando posição intermediária, ou
mesmo, ainda, visto como incipiente ou pouco presente. Tais distintos padrões de modificações da
centralidade da pesca artesanal nos modos de vida dos diferentes grupos das comunidades da Ilha
ao longo do tempo após a conversão da Ilha em unidade de conservação lembram, em parte, os
apontamentos de Candido (1965) ao abordar populações tradicionais caipiras do interior de São
Paulo. Na medida em que o referido autor aponta que os membros de populações tradicionais que
preservaram seus modos de vida e são tardiamente expostas as possibilidades vindas de um
conjunto externo urbano-industrial do qual permaneceram longamente relativamente isoladas,
desenvolvem três tipos de reações: 1 - os que negam quase que por completo os novos elementos
vindos do complexo urbano-industrial e buscam vincular-se exclusivamente as práticas tradicionais;
2 - os que o buscam com intensidade as novas perspectivas e deixam em segundo plano suas
práticas tradicionais; 3 - os que buscam incorporar criteriosamente os novos elementos, de maneira
a não prejudicar a essência de suas estratégias de sobrevivência e vivência anteriores.

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Muitos dos entrevistados relatam, ainda, que a renda provinda do turismo é hoje tida como
superior à vinda das práticas pesqueiras, em especial pela percepção de aumento do fluxo turístico
ao longo dos anos, e de diminuição da abundância de pescados no “Mar de Dentro”. Mostrando-se
nisso semelhante ao registrado por Capellesso e Cazella (2011) em comunidades de pescadores
artesanais no litoral de Santa Catarina, e por Ramires et al. (2007) em Ilha Bela. A percepção da
desigual incorporação nas diferentes comunidades das práticas de turismo comunitário é um fator
realçado como importante em diferenciar suas estratégias de sobrevivência. Reforçam, ainda, que o
dinheiro tem hoje um papel mais importante no modo de vida dos caiçaras atuais (e.g – maior
aquisição de alimentação fora os pescados, de equipamentos domésticos, e barcos motorizados) do
que no passado, na medida em que a manutenção integral da prática de obter do próprio meio
natural uma parte dos itens necessários para suas necessidades é dificultada por restrições
decorrentes da conversão de seus territórios em unidade de conservação.
Vários entrevistados ressaltam a importância da pesca não só como uma prática econômica,
mas também enxergam nela um elemento importante para manutenção da própria identidade e dos
laços sociais das comunidades, reforçando seu pertencimento a elas e sua ligação com seus
respectivos territórios. De maneira que também enxergam a pesca como a atividade responsável por
perfazer uma mediação entre suas vidas, e as terras emersas e águas circundantes de seus territórios.
Coerentes, assim, com apontamentos como os de Maldonado (1988 e 1993), Diegues (2000 e 2004)
e Da Silva (2015) sobre as práticas pesqueiras artesanais e o conjunto de aspectos identitários nelas
envolvidos, inclusive o papel importante na pesca na consolidação do território, e da territorialidade
das comunidades pesqueiras. Mostrando, ainda, a pesca não apenas ligada a uma importância como
uma questão produtiva, mas como construtora de sociedade (Da Silva, 2015), e com a integração de
seus territórios com as terras e das águas em que inserem-se. De maneira que os citados
entrevistados mostram, assim, preocupações pela percepção da diminuição da centralidade da pesca
em uma parcela dos territórios da Ilha, pois interpretam que isto poderia levar a um
enfraquecimento deste conjunto de elementos de coesão social e territorial que relacionam as
práticas pesqueiras artesanais.
Existem, ainda, preocupações dos moradores de diversas comunidades sobre o controle
futuro das atividades de turismo na Ilha. Eles ressaltam que atualmente a atividade de turismo é, na
prática, conduzida por eles próprios, ainda que regulada pelas normas do Parque Estadual da Ilha do
Cardoso. Ou seja, são atualmente eles, os moradores, que criaram, detém o controle e administram
os quiosques, restaurantes e pousadas frequentados pelos turistas, de maneira que a renda destas
atividades fica em grande parte com eles próprios, auxiliando, assim, em sua permanência nos seus
territórios. Eles percebem que tem havido um crescimento expressivo da atividade de turismo no
local, e relacionam tal fato a elevada preservação ambiental da Ilha. Afirmam que tal preservação se
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deu em paralelo a muitas restrições e prejuízos aos seus e a seus caminhos de lidarem com as terras
e águas locais, e desta maneira consideram as atividades de turismo que hoje eles tem um centro
controle como um tipo de compensação parcial. Em paralelo, alguns deles pensam que este
crescimento do turismo e da valorização das paisagens naturais da Ilha levam por vezes a grupos
externos a tentarem ter um papel ou controle maior das atividades turísticas, visando se apropriar de
uma fatia maior da renda provinda dele. Mencionam como exemplo de tais preocupações as por
vezes difíceis negociações com grupos de certas agências de viagens em torno de divisão de
recursos, ou as maneiras como vão ser aplicados projetos governamentais que se propõe a permitir
organizações privadas externas a Ilha a assumirem a concessão de parte da infraestrutura do parque
para desenvolvimento de atividades de hotelaria.
Na mesma direção, outros entrevistados citam dificuldades de obter uma maior renda com o
produto da pesca nas águas locais, na medida que os intermediários (os agentes locais da cidade de
Cananéia que tem a infraestrutura, autorizações e contatos para transportar e vender a produção
local para grandes cidades, como São Paulo) pagariam a eles pelos pescados um valor muito mais
baixo do que o que praticam na venda estes mesmos produtos para centrais de abastecimento de
grandes cidades, ou mesmo para a própria população da cidade Cananeia. Um dos entrevistados
chegou a descrever uma ocasião em que na cidade estaria numa fila num centro de distribuição de
pescados locais, aguardando para vender cinco quilos de camarões que acabara de pescar no Mar de
Fora. Quando chegou sua vez, entregou os pescados e recebeu o dinheiro combinado. Enquanto
permanecia no local, e conferia o valor recebido, se aproximou uma moradora da cidade de
Cananéia ao mesmo balcão, se posicionou a seu lado e perguntou ao dono do estabelecimento se
haviam camarões disponíveis, dizendo que gostaria de levar cerca de meio quilo deles. De pronto o
dono do estabelecimento afirmou que a freguesa estava com muita sorte, pois acabara de receber
camarões frescos, e nisso mostrou os pescados recém-entregues pelo pescador. Igualmente,
informou que meio quilo deles custaria certa soma de dinheiro – que se tratava de um valor superior
ao que o pescador havia acabado de receber por entregar cinco quilos desses mesmos camarões. O
pescador relatou que não conseguiu conter a indignação e que a manifestou com um olhar de
estranhamento dirigido ao dono do estabelecimento, que sorriu constrangido, mas seguiu com a
operação de venda.
Tais conflitos de uso dos recursos oferecidos pela elevada conservação ambiental destes
territórios tradicionais, cada vez mais visados pela crescente raridade de áreas pouco impactadas e
poluídas no densamente urbanizado e industrializado Centro-Sul brasileiro, remetem, em parte, ao
que Santos (2003) descreve como polaridades entre horizontalidades e verticalidades. Isto é, aos
conflitos decorrentes das maneiras de buscar organizar os territórios de maneira a servirem aos
interesses dos que vivem neles e ali tem laços profundos, e os entendem como local de moradia e
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vivência em sentido amplo (horizontalidades), e os interesses de atores de origem externa ao local


que não tem esta mesma ligação profunda com os territórios, e procuram influenciar no seu uso e
organização tendo como prioridade a maior obtenção de riquezas (verticalidades).
De fato, a difusão seletiva dos fixos e usos dos solos (e.g – vastas áreas urbanas, fábricas,
grandes plantações em que se usa intensivamente defensivos agrícolas, grandes refinarias e tanques
de estocagem de combustíveis fósseis, e usinas de energia) do meio técnico atual ao longo do
Centro-Sul do Brasil contribuiu para uma intensa degradação ambiental das áreas em que se
instalaram. De maneira que os locais – tal como a Ilha do Cardoso e litoral sul de São Paulo - que
por motivos diversos num primeiro momento foram vistos como pouco adequados para a difusão do
meio técnico atual, num segundo momento (com a poluição generalizada das áreas mais cedo
incorporadas) passam a ser vistos como possuidores de um importante e raro ativo (a elevada
preservação ambiental), que se constituiu em parte paradoxalmente justamente por tais áreas de
exceção terem sido antes pouco visadas por este mesmo meio técnico. Levando a uma perspectiva
de aumento de conflitos em torno das relações que se faz com o relevo, as terras e as águas na área
da Ilha do Cardoso, face esta crescente tendências de atores externos visarem seu uso e controle, e o
paralelo desejo dos moradores locais de manter suas práticas tradicionais. Impondo, assim, desafios
importantes para as entidades que regulam e normatizam tal área (e.g – equipe gestora do Parque
Estadual da Ilha do Cardoso), e para os próprios esforços e vivências dos moradores locais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As interações entre o relevo, as águas e modos de vida vinculados aos territórios e
territorialidades das comunidades caiçaras da Ilha do Cardoso caracterizam-se por uma mescla de
oscilações e de permanências ao longo do tempo. Tais mudanças refletem em parte as diferentes
normatizações do território local dadas pelo governo estadual de São Paulo, e também os distintos
graus de interações da área com atores externos. Partindo da caracterização dos distintos potenciais
e restrições elencados pelo modo de vida caiçara vinculados aos principais quadros naturais da Ilha,
nota-se que restrições legais vinculadas a normatização da Ilha como unidade de conservação a
partir dos anos 60 do século XX contribuíram para uma mudança das áreas preferenciais para
atividades das comunidades locais. Houve a supressão do uso das bases das Serranias, mais
propícias à agricultura (que passou a ser restringida após a normatização como unidade de
conservação), e uma permanência restrita nas orlas litorâneas das Planícies Diversificadas, mais
propícias a pesca.
Registrou-se que foram escolhidos segmentos específicos das Planícies para a instalação das
comunidades, em áreas de transição entre diferentes subunidades de relevo, de maneira que situem-
se em áreas fora dos segmentos mais intensamente visados por forças destrutivas da natureza (e.g –
enchentes) associadas a ação das águas e ventos circundantes por ocasião de grandes tempestades.
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Simultaneamente, os locais escolhidos possibilitavam acesso rápido a essas mesmas águas


circundantes, fundamentais para a prática da pesca e circulação pelos territórios locais. Igualmente,
as águas dos entornos mostram-se segmentadas em diferentes conjuntos pelos membros das
comunidades – cada qual deles vistos como ligados a riscos e potenciais distintos para seus modos
de vida. Tal segmentação feita pelas comunidades locais contribuiu para reservarem o uso em cada
um dos conjuntos de águas (“Mar de Dentro”, e “Mar de Fora”) de específicas práticas e técnicas de
navegação e pesca. Apontou-se, ainda, o aumento das centralidades da prática pesqueira no uso dos
territórios por parte das comunidades após a normatização da Ilha e de seus territórios tradicionais
em unidade de conservação neste tempo de maior isolamento das comunidades, bem como
modificações de uma parte das técnicas pesqueiras para adapta-las as restrições do novo contexto.
Elencou-se também, num segundo momento - após a flexibilização de algumas das
restrições ligadas a previamente citada normatização como unidade de conservação, e maior
atuação na Ilha de atores externos a ela – de alterações da centralidade das práticas pesqueiras em
meio as territorialidades locais. Igualmente, houve um aumento da importância do turismo para o
sustento das famílias caiçaras. Registrou-se, também, que o turismo que se desenvolve no local tem
forte relação com o elevado grau de preservação ambiental da área, que por sua vez está ligado em
parte as relações que as comunidades locais estabelecem com o relevo, solos e águas de seus
territórios. Discutiu-se, ainda, que tal elevado grau de preservação ambiental se tornou algo raro no
contexto do Centro-Sul do Brasil, de maneira que existe a perspectiva de aumento de pressões pelo
controle dos usos dos recursos naturais e da renda provinda do turismo que se faz ali. Caracteriza-
se, assim, que as complexas interações entre usos das terras e águas dos territórios locais refletem –
em parte – os conflitos das interações tardias de comunidades tradicionais antes relativamente
isoladas com um conjunto externo densamente urbanizado e industrializado que foi incorporado
mais cedo ao meio técnico atual.

AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos moradores das comunidades da Ilha do Cardoso pela boa vontade, confiança e
apoio com relação aos trabalhos de pesquisa dos autores deste artigo. Agradecemos às equipes do
Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PEIC) e do Instituto de Pesquisas Cananéia (IPEC) pelo apoio
dado para a realização de parte das atividades das pesquisas sintetizadas neste artigo. Igualmente,
agradece-se ao apoio e autorização do Instituto Florestal e da Fundação Florestal para a realização
de uma parte das atividades das pesquisas aqui apresentadas. O primeiro autor é grato por ter
recebido uma bolsa de mestrado da CAPES e de doutorado do CNPQ (308772/2018-0), e a segunda
autora é grata por ter recebido bolsas da CAPES e Fundação Araucária. O primeiro autor agradece
aos professores Vicente Eudes Alves (UNICAMP), Regina Celia de Oliveira (UNICAMP),
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Francisco Ladeira (UNICAMP) e Paulo Giannini (USP) pelas leituras prévias do material, e pelas
sugestões feitas. Registra-se, ainda, um agradecimento à professora Regina Celia de Oliveira
(UNICAMP) pela orientação em trabalho de pós-graduação na área da Ilha do Cardoso.

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Material complementar 1 – detalhamento do processo tradicional de montagens de


armadilhas de cerco-fixo

Inicialmente, os cerqueiros escolhem o local para a instalação do cerco-fixo dentre as águas


lagunares usualmente próximos a outros cercos já instalados. Realizam uma investigação
minuciosa, via navegação com botes, do substrato dos fundos lagunares no entorno, em geral com o
auxílio de um remo para medidas feitas na unidade de “braças” (equivalente a cerca de 1,8 metro –
Cubas, 2018). Levam em consideração em tais momentos tanto a disposição do relevo submarino –
áreas com menores irregularidades são vistas como preferências – quanto da granulometria e
compactação dos sedimentos do fundo da laguna. De acordo com as medidas e demandas elencadas
de material, passavam em seguida em terra a enfileirar de maneira paralela mourões de taquaras
pouco espessas e alongadas para em seguida acrescentar outros de dimensões similares mas
dispostos perpendicularmente, e unir as sobreposições dos dois conjuntos de festes com amarrações
feitas com cipós e raízes retirados dos mangues. Sendo os mourões dispostos sobre armações de
madeira denominadas de “tendais” (Cubas, 2018). Tal procedimento em terra hoje se faz com
adequações, usando de materiais comprados em armazéns de fora da Ilha para substituir os que

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antes eram obtidos da própria flora local.


Após a preparação de um certo número destes mourões, estes são levados em barcos de
madeira a remo para segmentos específicos do “Mar de Dentro” - usualmente a retaguarda de
Morros Residuais (como o Morro do Pereirinha), capazes de quebrar a intensidade e atenuar a
circulação hidrológica das correntes lagunares nos seus entornos. Em seguida, através de sucessivos
mergulhos a partir dos barcos e botes, as grades de madeira preparadas em terra são fincadas no
leito da laguna, e articuladas de forma a se disporem em formato próximo do retangular.
Mostrando-se posicionados em um de seus cantos um prolongamento de até 10 metros de mourões,
contíguo a uma pequena abertura no traçado do retângulo original. Estes prolongamentos são
dispostos voltados para as direções que o conhecimento tradicional herdado dos pescadores
apontavam como áreas de caça dos botos locais (Cheliz, 2015; Cubas, 2018). Na medida que os
botos investiam contra os peixes que predam, estes últimos em sua fuga se chocam com o
prolongamento lateral formado pelo alinhamento de grades da madeira, e assim são forçados a
interromper e reorientar seu deslocamento. Uma parcela dos peixes após a desorientação advinda do
choque brusco com a grade acaba sendo predada pelos botos. Outra parte consegue reorientar sua
fuga, tendendo a seguir a própria orientação do prolongamento das grades. Sendo, assim,
conduzidos a entrarem na armadilha retangular do cerco, e permanecendo aprisionados ali dentro
até virem a ser retirados de lá pelos pescadores caiçaras, que usualmente mantém a rotina de checar
o cerca uma vez por semana.
Tais retiradas dos peixes capturados são usualmente realizadas por duas pessoas, e em
condições em que a dinâmica da maré esteja mais propícia, com os picos de maré baixa tomados
como os momentos adequados para este procedimento, chamado de despesca. Para tanto, é usada
uma rede com abertura de malha de 10 mm entre nós opostos, segurada nas extremidades pelos
pescadores, com auxílio de varas de bambu de aproximadamente 3,0 m de comprimento (Cubas,
2018). Formando, assim, uma associação cooperativa entre grupos humanos e cetáceos, que
beneficia tanto os homens quanto os botos, com distinções em relação as associações entre
pescadores e golfinhos previamente documentadas por Acevedo‐Gutiérrez et al. (2004) e Daura-
Jorge et al. (2012) no litoral sul do Brasil.
Em algumas das etapas da preparação do cerco-fixo, certas perícias e capacidades
específicas possuídas por apenas uma parcela dos membros das comunidades são especialmente
valorizadas. Para a fixação dos mourões via mergulhos, por exemplo, usualmente é necessário a
atuação dos caiçaras locais que se mostram como melhores nadadores e também mais jovens, uma
vez que eles tendem a ter maior fôlego, força e resistência a fadiga. Tais atributos se mostram
necessários, uma vez que a fixação dos mourões via mergulhos é descrita como muito exigente
fisicamente. Já a preparação de certas partes do cerco tidas como mais complexas exigem grande
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habilidade manual e experiência, que poucos membros da comunidade – usualmente os mais velhos
– possuem. Em especial, foi descrita como necessário um conhecimento muito especializado para a
preparação do fecho da pequena porta que se abre mediante a pressão dos peixes do lado externo do
cerco, mas que não faz o mesmo quando pressionada pelo lado de dentro. Esta etapa da montagem é
tida como essencial, na medida que se for cometido um erro neste ponto a estrutura não cumprira
seu papel de armadilha, pois os peixes poderão sair tão facilmente quanto entraram no cerco-fixo.
De fato, essa prática se mostra tão complexa que na comunidade do Pereirinha-Itacuruça diversos
relatos apontam que atualmente apenas um de seus moradores é capaz de executar esta parte da
montagem de cerco. Nota-se, assim, que a montagem de cerco-fixo exige e favorece uma
cooperação entre diferentes gerações de caiçaras, pois requer certas capacidades específicas tidas
como em parte mais frequentes nos mais novos, e em parte nos mais velhos.

Material complementar 2 – sumário de dados de entrevistas sobre intercalações entre


dedicação a atividades de pesca e turismo nas distintas comunidades da Ilha do Cardoso

Na comunidade voltada exclusivamente para segmento lagunar, aponta-se a percepção de


que seus membros dividem atualmente seu tempo ao longo do ano tanto entre as novas atividades
ligadas ao turismo comunitário, quanto as tradicionais práticas de pesca. No verão haveria uma
dedicação mais centralizada ao turismo, no Outono e Inverno a pesca tomaria o foco das energias
da comunidade, com a Primavera sendo uma fase de transição.
De Dezembro a Fevereiro, haveria uma dedicação mais intensa ao turismo comunitário.
Com parte dos membros da comunidade atuando em quiosques ou restaurantes familiares, e outra
parte se dedicando ao transporte de turistas em pequenos barcos do tipo voadeira (com capacidade
de transporte entre 6 e 12 pessoas, em média) entre a cidade de Cananéia e a praia do Pereirinha-
Itacuruça. Usando-se da particularidade que a referida localidade encontra-se a uma distância
reduzida da fachada litorânea da citada cidade histórica (distância de poucos quilômetros em planta,
pouco mais de 15 minutos nos ágeis barcos motorizados usados pelos moradores locais – CHELIZ,
2015), a comunidade desenvolve um tipo de turismo específico dentro da Ilha, em que os turistas se
dirigem a praia durante a manhã, e retornam usualmente ao final do dia para a cidade. A visitação
passou a atingir número crescentes de público ao longo dos verões, de maneira que a partir de 2015
foi instituída uma regulamentação pela direção do Parque Estadual da Ilha do Cardoso restringindo
o número de visitantes para um máximo de 1000 turistas por dia.
Ao término do Verão, com diminuição do fluxo de turistas recreativos, os membros da
comunidade passam a ter como prioridade em seu tempo de trabalho a preparação de redes e cercos
de pesca para serem usados durante o Inverno, tido como mais favorável para a pesca, bem como
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para as práticas de turismo comunitário voltado para grupos escolares em atividades de estudos do
meio. Caracterizando-se este segundo tipo de turismo por um número menor de visitantes em cada
dia (usualmente dificilmente pautados por turmas maiores do que 80 pessoas por vez), e incluindo
um planejamento com maior antecedência – uma vez que no Outono e Inverno usualmente os
quiosques e restaurantes só encontram-se abertos pontualmente, quando um grupo solicita antes de
efetuar a ida a Ilha.
No inverno, haveria uma dedicação mais intensa a pesca – associado a maior disponibilidade
de pescados (sobretudo a Tainha), usando-se dos apetrechos de pesca preparados ao longo do
Outono. Na Primavera, volta-se a dividir com mais frequência o tempo de trabalho entre a pesca e
apoio de grupos turísticos de estudos do meio, bem como passa-se a fazer o planejamento e
preparação para a temporada (Verão) seguinte de maior fluxo do turismo. Mostrando-se, assim,
práticas coerentes com a definição dos caiçaras feita por Adams (2000) e Mourão (2003) que
alternariam-se entre a pesca e uma diversidade de outras atividades, a depender da conjuntura
econômica do momento. Tal segmentação das atividades de turismo e pesca ao longo das estações
do ano remete, também e em parte, a divisão do tempo entre agricultura e pesca, no período anterior
a normatização da Ilha como unidade de conservação. Uma vez que em tal período as entrevistas
dizem que a dedicação para a agricultura era tido como mais exigente em termos de tempo e
trabalho, e se dedicavam mais a ela nos verões e nas primaveras. Havendo então também no Outono
e, sobretudo, no Inverno uma maior dedicação a pesca, haja visto as condições mais favoráveis para
tal atividade (e.g – maior abundância de pescados) nestas épocas do ano.
Permanecem as antigas festas do padroeiro Santa André entre o fim de Novembro e início de
Dezembro como no passado, que passa a ser frequentada também por pessoas externas à
comunidade e à Ilha, mesclando o antigo papel simbólico que constitui para as comunidades da ilha
(o caráter religioso, de agradecimento e pedido de proteção ao padroeiro, e social, de formação e
fortalecimentos dos laços entre os membros de distintas comunidades da Ilha e seus territórios,
como elencado pelas entrevistas), e o papel turístico. Alternando-se, nas festividades, tanto as
tradicionais músicas e canções de fandangos locais, quanto forrós e canções de MPB originados de
fora da Ilha. A festa marca, também, o início efetivo da temporada turística de verão, tido como de
trabalhos mais intensos que os dos meses de outono, inverno e primavera, e a passagem do tempo
de trabalho predominantemente voltado para a pesca para o focado no turismo.
Nas comunidades voltadas exclusivamente para mar aberto, aponta-se uma menor
incorporação das novas práticas de turismo, e maior centralidade na pesca como meio de
subsistência. Sua localização distante das águas lagunares, cujas mais calmas águas são usadas
como via de transporte preferencial pelos turistas para se chegar a Ilha, é apontada nas entrevistas
semi-estruturadas como tendo contribuição para tal situação.
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No grupo das comunidades voltadas simultaneamente para o Mar Aberto e Laguna do


Cordão do Ararapira, as entrevistas semi-estruturadas mostram uma significativa heterogeneidade
na incorporação do turismo em seus modos de vida. Uma parcela delas incorporou
significativamente as práticas de turismo comunitário em seus territórios. A comunidade do Marujá,
situada mais próxima da cidade de Cananéia do que as demais comunidades do Cordão do
Ararapira, apresenta o maior número de pousadas e restaurantes dentre as comunidades da Ilha. A
mais elevada distância da cidade de Cananéia, e maior tempo de barco necessário para se chegar a
ela, contribuiu para que desenvolvesse um tipo de turismo baseado na estádia dos visitantes por
alguns dias, em oposição ao turismo predominante na comunidade do Pereirinha-Itacuruça, onde a
maior parte dos visitantes permanece usualmente apenas durante a manhã e tarde de um único dia.
Sendo, assim, bastante procurados em feriados como no carnaval ou no ano novo. Outra
comunidade do Cordão do Ararapira que também incorporou o turismo a suas estratégias de
sobrevivência e território foi a Enseada da Baleia, de acordo com as entrevistas semi-estruturadas
realizadas. Nela, a pesca artesanal é apontada como principal fonte geradora de renda, para ao
menos cinco das 36 pessoas ali residentes, sendo o turismo tendo um papel complementar
significativo e crescente no local. Além destas frentes, existem outras atividades que são
desempenhadas pelos integrantes dos onze núcleos familiares existentes da Enseada, como a pesca
artesanal e funcionalismo público entre outras, que repercute na permanência das famílias - como
registrado nas entrevistas semi-estruturadas.
Simultaneamente, as entrevistas semi-estruturadas apontam que outras comunidades
voltadas simultaneamente para águas lagunares e para o mar aberto – Vila Rápida e Pontal – não
desenvolveram incorporação tida como tão significativa ao fluxo de turismo. Sendo, no caso do
Pontal, situado no extremo sudoeste do Cordão e próximo a foz do rio Ararapira que bordeja a ilha
em seu segmento oeste, tal atributo é relacionado por muitos membros das comunidades a maior
distância que situa-se da cidade de Cananéia. Enquanto outras entrevistas apontam que acreditam
que a localização das comunidades é importante para o desenvolvimento do turismo, mas que
também teria relevância uma maior ou menor articulação com agentes externos a ilha – como
monitores e agências de turismo.

DOI 10.5752/p.2318-2962.2022v32n.68p.73

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