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Êxtase
Uma antiga lenda sustenta que o primeiro Adão é a causa de nossa vida
natural, e o segundo — Jesus.
Porém, a rigor, todo discípulo que transmute o vermelho em branco, o
humano em angélico, o inerte em significativo, o opaco em translúcido, — é
o símbolo de nossa vida sobrenatural.
Se fizéssemos uma leitura circular do texto bíblico, descobriríamos que o
ponto em que os dois Adões se tocam, para fecundar-se mutuamente, o
nexo entre o Gênesis e o Apocalipse, é também o hiato fantástico que
desfaz e dissipa as diferenças, o núcleo de ouro do Livro dos Livros.
Esse hiato, para os que sabem ler e ouvir, não é um som desagradável mas
antes o milagroso parentesco entre as duas faces da lenda: a do ser que
nos trouxe à vida, e a do ser que a elevou a cumes de ética beleza.
Unidade estrutural, jóia básica dos seres vivos, a célula tem em hebraico o
nome de ta, que como se pode ler é inversão especular de at, "chegando",
"vindo" e possui suas mesmas letras.
O Mestre de Nazaré, conhecendo o mistério, de modo semelhante aos
profetas que o precederam, e aos iniciados de todas as latitudes, culturas,
épocas e idades, chegou para vivificar e curar nossos tecidos a partir de
uma primeira célula germinal: a da compreensão.
E é nesse sentido que se pode considerá-lo terapeuta, quer dizer,
"servidor", "cuidador", tributário da palavra grega therapeuein, pois um
therapeutós, na linguagem dos ascetas e místicos judeus descritos por Filou
e Plínio, o Velho, era um ser "suscetível de cultivo".
Alguém dedicado ao desenvolvimento de si mesmo nas margens desérticas
do social — a Tebaida ou o Sinai —; nos grandes espaços vazios onde ainda
ressoa o eco luminoso do silêncio do espírito, quando se aquieta a tagarelice
inútil da discussão e da crítica, da rubrica e da diferença.
Curar, nos termos que serviam de código aos terapeutas do século I de
nossa era, implicava algo muito maior que curar uma doença física.
Tratava-se, antes de mais nada, de uma reintegração no plano do
metafísico.
Quanto mais distante do princípio estava a alma dos homens, mais próxima
do seu fim se achava.
Curá-la era solarizá-la.
Porém, qual é esse princípio e para que buscá-lo?
"Para que todos sejam um, como Tu, ó pai, o és em mim, e eu em ti, que
também eles sejam um em nós", diz João 17,21.
Ser um-com-o-Um pressupõe que toda separação é irreal, inexistente,
vazia, e que dualidade e multiplicidade só têm sentido — e isso reforça o
sacrifício eucarístico — se acabam por descobrir o fio condutor que retorna
da saída à entrada, do êxtase ao "ênstase". [Propõe-se o vocábulo ênstase
para o espanhol "énstasis" indicando o movimento interno de êxtase.]
Visto que nascer biologicamente é adquirir primeiro uma célula fecundada e
encarnar em seguida num zigoto (palavra derivada do grego zugotos, que
significa "unido" e que liga o gameta paterno com o materno, sol e lua
numa espécie de belo eclipse intrauterino), nossa história embriológica
aspira à forma, ao incremento, ao desenvolvimento de uma segmentação
de blastômeros que forçosamente sairá à múltipla luz do dia e deverá, se
quer compreender e recobrar o subjacente mistério da unidade, ingressar
na indivisível noite da alma com o fim de encontrar a porta de entrada,
estreita porém bela.
Uma vez recebida a semente luminosa de sua palavra — porque já o afirma
Marcos 4,14: "O semeador semeia a palavra" —, gerar em nós o segundo
Adão supõe que somos um campo fértil para esse reino, o dos céus.
Implica que estamos dispostos a deixar morrer nossas ilusões de separação,
de diferença, de pluricelularidade, e que almejamos seguir nossa unitária
chave viva para isso atravessando a dura superfície dos membros, nervos e
músculos, tecidos e aparelhos.
Pois chegar a ser um-com-o-Um é perceber o que no pensamento do
Advaita hindu se chama monismo, não-dualidade, aquele estado de não-
discriminação búdica que o mestre Huang Po define como: "Só há a Mente
Única e nenhuma partícula de qualquer outra coisa a agarrar, pois essa é a
Mente, esse o Buda".
Para isso, porém, é necessário que redescubramos nossa primeira célula,
que abramos seu frágil tesouro.
Todavia, para encontrar a Árvore da Vida temos que sair, temos que nos
abandonar.
Ir além de nós mesmos.
O herói de cavalaria e o místico, o peregrino e o buscador, deixam o fácil e
suave espaço de sua morada e passam a viajar em meio a perigos e
aventuras.
Este é o amplo e apaixonante tempo das perdas, dos despojamentos, da
desnudação.
O combate contra a vergonha e o pudor que nascem com o primeiro Adão
pode durar tanto toda a vida quanto anos, meses, dias, horas e até
segundos.
Os mais afortunados vencem esse combate num instante e os menos
afortunados, em décadas de esforço.
No plano do manifestado, uma vez saídos do útero de nossa mãe — como
bem o viu Buda — o mundo, é conflito: rodeiam-nos a velhice, a
enfermidade e a morte.
E, contudo há que esperá-las, aceitá-las e vivê-las, porque são as três
chaves que abrem a única porta da casa de todos, o universo.
Desde as estrelas até as sementes, tudo nasce, cresce, degenera e morre.
E também nada morre, nem degenera, nem nasce.
Por outro lado, a palavra hebraica que corresponde a "pecado" é jetta, que
possui uma misteriosa semelhança fonética com jitá, "trigo".
Ambas compartilham duas letras — o jet e o tet — oitava e nona
respectivamente na seqüência alfabética.
Nos mistérios de Elêusis, a espiga de trigo era o símbolo trágico da morte e
ressurreição, e portanto de toda renovação espiritual.
No âmbito hebreu, essa raiz semântica do trigo faz referência a palavras
como "pureza", "separação", "eleição", "aliança", "bênção".
Pecar, poderíamos então dizer, é em sua origem atentar contra a semente,
desperdiçar o grão, tanto como desconhecer seu ciclo.
A condenação bíblica do onanismo provém de considerá-lo uma ruptura da
polaridade masculino-feminino e, ao mesmo tempo, um ato estéril, pois a
semente, mesmo sendo fatalmente ambígua, nem por isso é menos
sagrada.
Se lembrarmos agora que, segundo o Gênesis, viemos ao mundo pela
transgressão de Adão e Eva — que depois de ingerir o pomo de sua
fatalidade fica grávida e gera o terceiro em discórdia —, compreenderemos
melhor que reproduzir-nos, viver e pecar são inexoravelmente uma e a
mesma coisa.
Pelo simples fato de viver, morreremos.
Mais ainda, atendo-nos ao puro significado emblemático de jet, a "vida", e
tet, todo processo "germinal", "embrionário" — já vimos que essas são as
letras compartilhadas pelos vocábulos "pecado" e "trigo" —, descobrimos
que viver implica erro e causa de desconsolo na medida em que reproduz
nossos equívocos, nos replica continuamente afastando-nos da origem.
Segundo penso, esta parece ser a causa da abstinência sexual na ordem ou
seita nazarena a que pertenceu Jesus: quem se dedica ao Zohar, ao
"resplendor interno", deve, como nazir, preservar sua semente.
Numa palavra, deve autofecundar-se.
Por isso, no mito crístico o Mestre é andrógino, como Deus mesmo.
Macho e fêmea ao'mesmo tempo.
A Árvore do Bem e do Mal determina a espécie; a Árvore da Vida libera o
indivíduo.
Também no ioga chinês observamos algo semelhante: "O praticante deve
estar em guarda — aponta Lu K'uan Yu em seu Alquimia e Imortalidade —
para evitar a fuga da vitalidade, de modo que possa conservá-la no corpo e
nutrir e desenvolver a semente imortal".
Implica isso uma condenação da sexualidade, da reprodução, como
acreditaram muitos gnósticos e santos?
Outra vez nos encontramos diante do crucigrama do homem natural e do
homem sobrenatural.
Se a imortalidade está na semente, e é por causa desta que viemos ao
mundo, que devemos fazer para evitar sua degeneração?
O que fazer para evitar o sofrimento e a enfermidade?
O que fazer para entender a morte?
A epoptia ou contemplação que o iniciado experimentava em Elêusis lhe
permitia honrar Demeter, que, de certo modo, como Eva, era "mãe do que
é vivo".
A visão silenciosa do grão de trigo evocava, sob a perenidade das estações,
a alternância da morte e ressurreição em novos e múltiplos grãos.
Porém aludia também às gerações humanas que sucedem umas às outras,
tomando ilusório o eu, o ego.
O grão, a semente, é de certo modo a espécie retida em um ponto, a
eternidade em um instante.
Os hindus o denominam hindu: o "ponto", a "matriz" na mandala, isto é, a
origem de toda forma.
Fixar a atenção nesse ponto nos põe novamente em contato com o bí
hebraico, o "em mim".
"Como tu, ó pai, em mim e eu em ti", nos dizia João 17,21.
O original grego diz ‘en emoi’, e a versão hebraica nos dá bí, cujo valor
numérico, doze, era o número dos frutos da Árvore da Vida por mediação
de cujas folhas os povos da terra conheceriam a saúde.
Como comer dessa árvore, como extrair imortalidade da morte?
Nascidos, irremediavelmente morreremos; tendo aparecido,
desapareceremos.
Tem então remédio esse drama inexorável repetido há milênios?
É possível em nós mesmos um estado paradisíaco, atemporal, lembrado em
quase todas as grandes tradições da humanidade como um momento
íntegro, homogêneo, feliz?
Jesus falou disso, sequer insinuou o método para recuperá-lo?
A partir de que perspectiva devemos entender hoje sua mensagem
terapêutica, de curador?
A palavra hebraica para "dor" é keeb, e se compõe de três letras: caf, cujo
valor numérico é 20; álef, que tem por cifra o 1; e finalmente bet, que vale
2.
O valor gemátrico da dor, portanto, isto é, a adição numérica de seus
constituintes, dá 23.
Considerando que este é o número da dotação cromossômica que por pares
articula nossa existência física, vir à vida é vir à dor.
Estes 23 pares somam, por sua vez, as 46 asas nucleares que vivem em
nossas células, replicando-se e transmitindo a necessária informação
responsável por nossa aparência.
O número 23 é inversão especular de 32, que para os cabalistas tem um
significado muito profundo.
"E o que significam as consoantes lâmed-bet? — se pergunta o Livro da
Claridade ou Bahir. Aludem aos trinta e dois caminhos da sabedoria,
delicadamente ocultos, que confluem para o coração; cada um deles é
regido por uma forma especial, a respeito da qual o Gênesis 3,24 diz: "Para
guardar o caminho da Árvore da Vida".
Continua