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Jesus – Terapeuta e Cabalista – Parte 1

Êxtase

Uma antiga lenda sustenta que o primeiro Adão é a causa de nossa vida
natural, e o segundo — Jesus.
Porém, a rigor, todo discípulo que transmute o vermelho em branco, o
humano em angélico, o inerte em significativo, o opaco em translúcido, — é
o símbolo de nossa vida sobrenatural.
Se fizéssemos uma leitura circular do texto bíblico, descobriríamos que o
ponto em que os dois Adões se tocam, para fecundar-se mutuamente, o
nexo entre o Gênesis e o Apocalipse, é também o hiato fantástico que
desfaz e dissipa as diferenças, o núcleo de ouro do Livro dos Livros.
Esse hiato, para os que sabem ler e ouvir, não é um som desagradável mas
antes o milagroso parentesco entre as duas faces da lenda: a do ser que
nos trouxe à vida, e a do ser que a elevou a cumes de ética beleza.

O primeiro Adão se separa de Eva e nos gera — antropológica e


miticamente falando — fazendo-se, depois, uma só carne com ela.
Jesus, o segundo Adão, nem se separa nem nos gera: para que
compartilhemos de suas parábolas, requer que sejamos um com ele através
do mistério do verbo.
Somos nós que o geramos.
Pelo primeiro Adão, a filiação é descendente, a mensagem, genealógica.
Pelo segundo, é ascendente, e a mensagem, gnoseológica, secreta.
O primeiro é nosso antepassado simbólico, o segundo, símbolo da vida
futura.
Entre ambos, antigamente como hoje, está a resplandecente cadeia de
fonemas da Bíblia esperando que acrescentemos o elo de nossa
compreensão, chamando-nos a contemplar um terrível e ao mesmo tempo
majestoso álbum de família onde aparecem, junto aos defeitos, os excessos
e os limites do clima histórico que, com o da Grécia, fecundou nossas
origens.
Todavia, para que ambos os Adões se reconciliem em nós e nos seja dado o
êxtase, devemos sair da pele de nossa comodidade.
Saiamos a descobrir o campo de nosso próprio corpo com a finalidade de
receber a semente de suas palavras, seu alfa e ômega, seu álef e tau.
Os sábios sufis dizem que "quem sai de seu corpo como um punhal de sua
bainha, tem sua morada permanente no coração", e o fragmento XLII do
Bahir sustenta que o "campo externo não é senão um reflexo do coração".
O Apocalipse — que em grego significa "revelação", e portanto tornar-a-
velar — por intermédio da primeira e última letras do alfabeto grego alude a
um mistério que é, sem dúvida alguma, hebraico: álef e tau, unidas,
constituem a terceira palavra do Gênesis, et, que os cabalistas decifram
como Or Tora, a "luz do ensinamento"; palavra que é — além do princípio e
fim do alfabeto hebraico — a forma do acusativo verbal, a ponte para
qualquer nome, comum ou próprio.
Apelando a uma muito leve variação diacrítica, isto é, vocálica, pode-se lê-
la como at, que significa "chegado", "vindo"; e recorrendo a outra variação,
como at, "tu".
De modo que o que veio a ser pelo genérico e se revelou pelo apocalíptico,
se atualiza no viver cotidiano, na morte e ressurreição diárias de toda
criação viva, começando pela de nossas células.

Unidade estrutural, jóia básica dos seres vivos, a célula tem em hebraico o
nome de ta, que como se pode ler é inversão especular de at, "chegando",
"vindo" e possui suas mesmas letras.
O Mestre de Nazaré, conhecendo o mistério, de modo semelhante aos
profetas que o precederam, e aos iniciados de todas as latitudes, culturas,
épocas e idades, chegou para vivificar e curar nossos tecidos a partir de
uma primeira célula germinal: a da compreensão.
E é nesse sentido que se pode considerá-lo terapeuta, quer dizer,
"servidor", "cuidador", tributário da palavra grega therapeuein, pois um
therapeutós, na linguagem dos ascetas e místicos judeus descritos por Filou
e Plínio, o Velho, era um ser "suscetível de cultivo".
Alguém dedicado ao desenvolvimento de si mesmo nas margens desérticas
do social — a Tebaida ou o Sinai —; nos grandes espaços vazios onde ainda
ressoa o eco luminoso do silêncio do espírito, quando se aquieta a tagarelice
inútil da discussão e da crítica, da rubrica e da diferença.
Curar, nos termos que serviam de código aos terapeutas do século I de
nossa era, implicava algo muito maior que curar uma doença física.
Tratava-se, antes de mais nada, de uma reintegração no plano do
metafísico.
Quanto mais distante do princípio estava a alma dos homens, mais próxima
do seu fim se achava.
Curá-la era solarizá-la.
Porém, qual é esse princípio e para que buscá-lo?
"Para que todos sejam um, como Tu, ó pai, o és em mim, e eu em ti, que
também eles sejam um em nós", diz João 17,21.
Ser um-com-o-Um pressupõe que toda separação é irreal, inexistente,
vazia, e que dualidade e multiplicidade só têm sentido — e isso reforça o
sacrifício eucarístico — se acabam por descobrir o fio condutor que retorna
da saída à entrada, do êxtase ao "ênstase". [Propõe-se o vocábulo ênstase
para o espanhol "énstasis" indicando o movimento interno de êxtase.]
Visto que nascer biologicamente é adquirir primeiro uma célula fecundada e
encarnar em seguida num zigoto (palavra derivada do grego zugotos, que
significa "unido" e que liga o gameta paterno com o materno, sol e lua
numa espécie de belo eclipse intrauterino), nossa história embriológica
aspira à forma, ao incremento, ao desenvolvimento de uma segmentação
de blastômeros que forçosamente sairá à múltipla luz do dia e deverá, se
quer compreender e recobrar o subjacente mistério da unidade, ingressar
na indivisível noite da alma com o fim de encontrar a porta de entrada,
estreita porém bela.
Uma vez recebida a semente luminosa de sua palavra — porque já o afirma
Marcos 4,14: "O semeador semeia a palavra" —, gerar em nós o segundo
Adão supõe que somos um campo fértil para esse reino, o dos céus.
Implica que estamos dispostos a deixar morrer nossas ilusões de separação,
de diferença, de pluricelularidade, e que almejamos seguir nossa unitária
chave viva para isso atravessando a dura superfície dos membros, nervos e
músculos, tecidos e aparelhos.
Pois chegar a ser um-com-o-Um é perceber o que no pensamento do
Advaita hindu se chama monismo, não-dualidade, aquele estado de não-
discriminação búdica que o mestre Huang Po define como: "Só há a Mente
Única e nenhuma partícula de qualquer outra coisa a agarrar, pois essa é a
Mente, esse o Buda".
Para isso, porém, é necessário que redescubramos nossa primeira célula,
que abramos seu frágil tesouro.

Que fascinante beleza a dessa ta em que se agitam o áster, os cloroplastos


e os vacúolos!
Universo diminuto e milagroso, foi o cientista Robert Hooke o primeiro que,
em sua Micrographia (Londres, 1665), deu o nome de célula à célula.
Porém, célula também quer dizer cela, de modo que no momento mesmo
em que nos damos conta do que encerra nosso corpo, do que o limita,
porosamente, nesse mesmo momento seremos liberados pela respiração,
quer dizer, por obra do Espírito Santo.
A primeira célula que nos gerou continua viva em nós, oculta como um veio
de ouro nesse "ponto aceso do coração do espírito" que São João da Cruz
vislumbrou, e é sabido que o coração — segundo nos diz a Cabala — é a
sede dos "trinta e dois misteriosos caminhos de sabedoria", que se
desdobram, relampeiam, brilham um instante e se apagam a seguir para
criar-nos e recriar-nos entre as letras do alfabeto e os dez primeiros
números.

Podemos observar que o Apocalipse não menciona a Árvore do Bem e do


Mal mas sim a Árvore da Vida.
"No meio da praça da cidade e às duas margens do rio, estava a árvore, da
vida, que produz doze frutos, dando cada mês um fruto, servindo as folhas
da árvore para curar as nações", Apocalipse 22,2.
Árvore cujos doze frutos significam várias coisas ao mesmo tempo: as
tribos, os apóstolos, as horas e também a palavra hebraica bí, "em mim",
que tem no doze seu valor numérico.
Em termos cabalísticos, a Arvore da Vida é tanto a Tora, o Ensinamento,
como a Árvore Sefirótica com suas dez sephiroth e vinte e duas letras.
Trata-se, então, de um alimento que há "em mim", fora do tempo, em sua
periferia de "cada mês", porém, ao mesmo tempo, no centro de toda
cronologia, circulando pelas veias e artérias, visto que, como diz o Livro da
Claridade ou Bahir, "Os justos e piedosos em Israel se alimentam de seu
coração e o coração os alimenta".
Analogamente, como não ver, na Eucaristia, uma alusão cabalística ao Adão
que se divide, se segmenta no que os cristãos orientais denominam a
Anáfora, para que seus discípulos compreendam o que circula em seu
próprio sangue?

Na palavra hebraica que corresponde a Adão, Adam, o "sangue", dam, se


tinge do poder da letra álef.
Pelo primeiro nome, o natural, nascemos à metáfora.
Pelo segundo, o sobrenatural, à anáfora.
A metáfora sai, a anáfora entra.
Submergimo-nos em seu espelho; ao receber sua palavra, somos seu eco.
Sendo seu eco, podemos cruzar o abismo, adentrar no mesmíssimo mistério
da vida, o sangue, cuja cor em hebraico é adom, "vermelho", palavra que
se escreve do mesmo modo que "homem".
Ao recordar as cores heráldicas das vestes do Mestre de Nazaré, vermelho e
branco, o humano e o divino, percebemos também os dois glóbulos que
circulam por nossas redes capilares, os vermelhos ou hemácias —
transportando oxigênio dos órgãos respiratórios a todas as células do
organismo — e os brancos ou leucócitos, formando parte do sistema
imunológico que cauteriza nossas feridas.
Pelo vermelho, o Mestre de Nazaré nos oferece sua dimensão temporal,
passional; pelo branco nos assiste como bom terapeuta para que
descubramos a eterna energia aléfica que anima cada um de nossos gestos,
mesmo os mais insignificantes.

Todavia, para encontrar a Árvore da Vida temos que sair, temos que nos
abandonar.
Ir além de nós mesmos.
O herói de cavalaria e o místico, o peregrino e o buscador, deixam o fácil e
suave espaço de sua morada e passam a viajar em meio a perigos e
aventuras.
Este é o amplo e apaixonante tempo das perdas, dos despojamentos, da
desnudação.
O combate contra a vergonha e o pudor que nascem com o primeiro Adão
pode durar tanto toda a vida quanto anos, meses, dias, horas e até
segundos.
Os mais afortunados vencem esse combate num instante e os menos
afortunados, em décadas de esforço.
No plano do manifestado, uma vez saídos do útero de nossa mãe — como
bem o viu Buda — o mundo, é conflito: rodeiam-nos a velhice, a
enfermidade e a morte.
E, contudo há que esperá-las, aceitá-las e vivê-las, porque são as três
chaves que abrem a única porta da casa de todos, o universo.
Desde as estrelas até as sementes, tudo nasce, cresce, degenera e morre.
E também nada morre, nem degenera, nem nasce.

Jesus de Nazaré foi um terapeuta no sentido amplo da palavra.


Como a dos essênios, sua vida foi frugal.
Ensinou que a origem da corrupção, da enfermidade, não está tanto no que
entra em nossa boca, mas no que dela sai.
Pouco importa que não possamos provar, historicamente falando, se Jesus
teve tal ou qual mestre da Seita de Qumram; se visitou ou não os desertos
que rodeiam Alexandria.
Basta-nos saber que os Evangelhos dão conta de suas muitas curas pela
palavra, pela imposição das mãos ou pela simples invocação mental, e que,
de modo semelhante, agiam os terapeutas.
Visto que disse que é preferível entrar no reino dos céus com um membro
amputado do que nele ingressar com as mãos putrefeitas pelas más
intenções, melhor é abandonar a erudição para desfrutar o espontâneo.
Na tradição hebraica, os taumaturgos, curadores e médicos ambulantes são
chamados, mesmo hoje, de Baalei Shem, Possuidores do Nome; do Nome
Divino, entenda-se.
Os antigos sabiam que toda terapia procede do alto e que o médico não é
mais que um veículo, uma ponte entre a saúde e a enfermidade.
Em Mateus 15,30, lemos: "e os puseram aos pés de Jesus e ele os curou,
de sorte que o povo se admirava vendo os mudos falar, os coxos andar, e
os cegos verem; e davam glória ao Deus de Israel".
Notemos que o Evangelho em nenhum momento nos diz que glorificavam a
ele.
Baseando-nos nestes e em outros dados, investigaremos a missão clássica
do terapeuta como a de um ser que reinforma o organismo, nele
restaurando sua capacidade criativa, devolvendo-lhe fluidez, transparência,
flexibilidade, tal e como a teve — salvo exceção — nos primeiros dias de
sua vida.

Antes, porém, precisamos enfatizar um ponto: os cegos, coxos e surdos não


são necessariamente enfermos literais.
Podem muito bem ser aqueles que têm pés e não sabem caminhar, têm
olhos e não sabem ver e têm ouvidos e não ouvem.
Nesse caso o terapeuta tem como missão tornar fértil, cultivável —
lembremos que seu nome tinha essa mesma implicação — um corpo ou
membro inculto, seco, entorpecido pelo mau uso, preguiça ou negligência.
Sabemos que o nome Yehoshua, Jesus, significa — entre outras coisas —
"salvador", "curador".
Também sabemos que há salvação quando há perigo, cura quando há algo
a curar.
Porém, salvar também significa "percorrer a distância entre dois pontos",
"saltar", "isentar" e, por certo, "restituir a saúde".
Devolver algo que se havia perdido.
Se nos ativermos a todos esses sentidos, descobriremos que percorrer a
distância entre dois pontos é suprimir sua separação; sair implica um ato
volitivo de nossa parte, se de fato queremos curar-nos; e que isentar alude
sempre, em todos os casos, a prevenir.
Não é outro o objeto da sabedoria: prevenir o erro, ou, vendo pelo lado
negativo, mitigar as conseqüências do erro.
Ajustar constantemente a lente da vida.
"Os cristãos ortodoxos seguiam o tradicional ensinamento judeu” — escreve
Elaine Pegels em seu livro Los Evangelios Gnósticos — “de que o que separa
a humanidade de Deus, além da dessemelhança essencial, é o pecado
humano. A palavra que no Novo Testamento significa "pecado", hamartia,
tem sua origem no esporte do arco e flexa e significa literalmente "errar o
alvo". As fontes do Novo Testamento nos ensinam que se padecemos
aflições, mentais e físicas, é porque não alcançamos o objetivo moral que
temos em mira".

Por outro lado, a palavra hebraica que corresponde a "pecado" é jetta, que
possui uma misteriosa semelhança fonética com jitá, "trigo".
Ambas compartilham duas letras — o jet e o tet — oitava e nona
respectivamente na seqüência alfabética.
Nos mistérios de Elêusis, a espiga de trigo era o símbolo trágico da morte e
ressurreição, e portanto de toda renovação espiritual.
No âmbito hebreu, essa raiz semântica do trigo faz referência a palavras
como "pureza", "separação", "eleição", "aliança", "bênção".
Pecar, poderíamos então dizer, é em sua origem atentar contra a semente,
desperdiçar o grão, tanto como desconhecer seu ciclo.
A condenação bíblica do onanismo provém de considerá-lo uma ruptura da
polaridade masculino-feminino e, ao mesmo tempo, um ato estéril, pois a
semente, mesmo sendo fatalmente ambígua, nem por isso é menos
sagrada.
Se lembrarmos agora que, segundo o Gênesis, viemos ao mundo pela
transgressão de Adão e Eva — que depois de ingerir o pomo de sua
fatalidade fica grávida e gera o terceiro em discórdia —, compreenderemos
melhor que reproduzir-nos, viver e pecar são inexoravelmente uma e a
mesma coisa.
Pelo simples fato de viver, morreremos.
Mais ainda, atendo-nos ao puro significado emblemático de jet, a "vida", e
tet, todo processo "germinal", "embrionário" — já vimos que essas são as
letras compartilhadas pelos vocábulos "pecado" e "trigo" —, descobrimos
que viver implica erro e causa de desconsolo na medida em que reproduz
nossos equívocos, nos replica continuamente afastando-nos da origem.
Segundo penso, esta parece ser a causa da abstinência sexual na ordem ou
seita nazarena a que pertenceu Jesus: quem se dedica ao Zohar, ao
"resplendor interno", deve, como nazir, preservar sua semente.
Numa palavra, deve autofecundar-se.
Por isso, no mito crístico o Mestre é andrógino, como Deus mesmo.
Macho e fêmea ao'mesmo tempo.
A Árvore do Bem e do Mal determina a espécie; a Árvore da Vida libera o
indivíduo.
Também no ioga chinês observamos algo semelhante: "O praticante deve
estar em guarda — aponta Lu K'uan Yu em seu Alquimia e Imortalidade —
para evitar a fuga da vitalidade, de modo que possa conservá-la no corpo e
nutrir e desenvolver a semente imortal".
Implica isso uma condenação da sexualidade, da reprodução, como
acreditaram muitos gnósticos e santos?
Outra vez nos encontramos diante do crucigrama do homem natural e do
homem sobrenatural.
Se a imortalidade está na semente, e é por causa desta que viemos ao
mundo, que devemos fazer para evitar sua degeneração?
O que fazer para evitar o sofrimento e a enfermidade?
O que fazer para entender a morte?
A epoptia ou contemplação que o iniciado experimentava em Elêusis lhe
permitia honrar Demeter, que, de certo modo, como Eva, era "mãe do que
é vivo".
A visão silenciosa do grão de trigo evocava, sob a perenidade das estações,
a alternância da morte e ressurreição em novos e múltiplos grãos.
Porém aludia também às gerações humanas que sucedem umas às outras,
tomando ilusório o eu, o ego.
O grão, a semente, é de certo modo a espécie retida em um ponto, a
eternidade em um instante.
Os hindus o denominam hindu: o "ponto", a "matriz" na mandala, isto é, a
origem de toda forma.
Fixar a atenção nesse ponto nos põe novamente em contato com o bí
hebraico, o "em mim".
"Como tu, ó pai, em mim e eu em ti", nos dizia João 17,21.
O original grego diz ‘en emoi’, e a versão hebraica nos dá bí, cujo valor
numérico, doze, era o número dos frutos da Árvore da Vida por mediação
de cujas folhas os povos da terra conheceriam a saúde.
Como comer dessa árvore, como extrair imortalidade da morte?
Nascidos, irremediavelmente morreremos; tendo aparecido,
desapareceremos.
Tem então remédio esse drama inexorável repetido há milênios?
É possível em nós mesmos um estado paradisíaco, atemporal, lembrado em
quase todas as grandes tradições da humanidade como um momento
íntegro, homogêneo, feliz?
Jesus falou disso, sequer insinuou o método para recuperá-lo?
A partir de que perspectiva devemos entender hoje sua mensagem
terapêutica, de curador?

Parece-nos que ao chamá-lo de terapeuta e cabalista — quer dizer, um Bal


Shem a mais na cadeia dos muitos que foram e dos muitos que ainda serão
— o aproximamos de nossa época para que dirija sua palavra a nossas
dores, compreenda nossas feridas, não como um Deus a quem solicitamos
favores, mas sim como um irmão com quem compartilhamos o pão de
nosso sofrimento e o vinho de nossa alegria.

"Amo os que me amam", explicita Provérbios 8,17.


Se o homem, buscador sincero, se põe a caminho; se bate à porta e
inquire, acha, sobrepõe-se ao destino e finalmente se vê transportado de
dimensão em dimensão até perceber a fonte de toda vida, o um-no-Um.

Falando dos terapeutas, dos "cultivadores" que viviam junto ao lago


Mareotis ou nas imediações do Mar Morto em sua versão essênia, Fílon de
Alexandria nos diz: "O tipo de vida escolhido por esses filósofos
imediatamente se manifesta na palavra que os designa, pois chamam-Se
terapeutas e terapêutridas. Tal escolha corresponde exatamente ao sentido
do termo, porque praticam uma arte superior: a arte de curar. Mais elevada
do que a praticada nas cidades, já que esta só cuida dos corpos, ao passo
que aquela se aplica também às almas oprimidas pelas enfermidades
penosas e de difícil cura que sobre elas lançam os prazeres, os temores, as
ambições, a insensatez, as injustiças e a imensa multidão das outras
paixões e vícios. A natureza e as leis sagradas lhes permitiram servir Àquele
que É".

A passagem citada é extraída de seu livro Vida Contemplativa.


O fato de Fílon destacar a polaridade cidade/campo não faz outra coisa
senão enfatizar a oposição cultura/natureza.
O filósofo atribui nossos males a excessos de todo tipo e à perda de certa
harmonia natural, pois para ele e para os terapeutas a ordem interna é
reflexo da ordem cósmica e vice-versa.
Quando percebemos que entre nossos sentidos e o mundo externo há uma
sutil harmonia — que para os gregos e hebreus era um "ajuste", um
"encaixe", um "acordo", além da "lei" central da música —, e através da
contemplação meditativa começamos a intuir sua coerência, pelo único fato
de amá-la; ela, por sua vez — seguindo a idéia do citado provérbio —,
amará a nós.
Tal processo, porém, requer um retomo a si mesmo: afastar-se dos núcleos
urbanos, da multidão e voltar-se da superfície para o centro.
Romper por um tempo os laços sociais é o preâmbulo indispensável ao
crescimento das novas asas.
De que modo os tecidos se regeneram e como os órgãos enfermos se
restabelecem senão por meio de uma recodificação genética de sua função
específica?
A saúde flui, é um estado aberto, de permanente homeostase com o meio
ambiente.
A enfermidade, pelo contrário, é estancamento, reiteração.
Um enfermo começa por contrair-se, por fechar-se em alguma parte de si
mesmo, como uma água-viva que pungíssemos com uma agulha.
Somos demasiado sensíveis à dor e talvez por isso propensos a adoecermos
primeiro psíquica e em seguida somaticamente.

A palavra hebraica para "dor" é keeb, e se compõe de três letras: caf, cujo
valor numérico é 20; álef, que tem por cifra o 1; e finalmente bet, que vale
2.
O valor gemátrico da dor, portanto, isto é, a adição numérica de seus
constituintes, dá 23.
Considerando que este é o número da dotação cromossômica que por pares
articula nossa existência física, vir à vida é vir à dor.
Estes 23 pares somam, por sua vez, as 46 asas nucleares que vivem em
nossas células, replicando-se e transmitindo a necessária informação
responsável por nossa aparência.
O número 23 é inversão especular de 32, que para os cabalistas tem um
significado muito profundo.
"E o que significam as consoantes lâmed-bet? — se pergunta o Livro da
Claridade ou Bahir. Aludem aos trinta e dois caminhos da sabedoria,
delicadamente ocultos, que confluem para o coração; cada um deles é
regido por uma forma especial, a respeito da qual o Gênesis 3,24 diz: "Para
guardar o caminho da Árvore da Vida".

Em que pese a dureza de seus efeitos, a dor encerra também


conhecimentos, tem uma mensagem que procede do "Pai", ab.
Cada dor, cada sofrimento, é um ensinamento, uma lição que há de
desentranhar-se a posteriori.
O que não implica nenhum fatalismo prévio, e muito menos uma
condenação forçada.
Ninguém tem a enfermidade que merece, mas muitos têm a enfermidade
que buscam para si.
Já que a dor é inevitável porque com ela viemos à vida, e visto que o parto
de nossa mãe implica dilaceração, transe, dilatação, corte, dir-se-ia que
pelo sofrimento crescemos e pela alegria de superá-lo fazemos uso desse
crescimento.
Converter 23 em 32 é ir da codificação à decodificação, à busca de cura no
centro do próprio coração, que nada retém para si e que a todos os órgãos
e tecidos beneficia por igual.
Em muitas culturas, o sofrimento, a dor assumida, a mortificação, é a prima
materia a partir da qual se fabrica o elixir, o medicamento.
Existe uma passagem significativa dos Atos de João, um dos tantos
evangelhos apócrifos, em que lemos esta misteriosa frase atribuída a Jesus:
"Aprendei a sofrer e sereis capazes de não sofrer".
É idêntico o estado que com suas práticas buscam os fukara, ou mestres
sufis, por meio de seus leitos de pregos, jejuns, provas físicas para
temperar o templo do corpo, cujo altar é constituído por esse coração pelo
qual se chega à Árvore da Vida, conforme nos diz o Bahir.
Como são os querubins que detêm o conhecimento desse tesouro, apossar-
nos de suas espadas de fogo é o primeiro passo para recuperar a saúde.

Continua

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