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Jesus – Terapeuta e Cabalista – Parte 2

Kether - Coroa

Quando o discípulo surge, quando sua cabeça assoma ao mundo, a primeira


coisa que deve fazer é procurar para si este orvalho da ressurreição que
contém o segredo do retorno paradisíaco.
Gotas de água divina que, ao contato com sua cabeça, despertarão sua
memória.
Esse orvalho está contido, para quem sabe vê-lo, na palavra hebraica
„lahat‟, que corresponde simultaneamente a "fio", "folha", "abrasamento",
"entusiasmo" e que é o termo que figura no Gênesis 3,24 junto à espada
flamejante dos querubins.
Para extraí-lo, por aliteração, devemos lê-lo como hatal, e então obteremos
"o orvalho" sobre o qual, com extraordinária eloqüência, escreve o Zohar:
"No momento da ressurreição o Criador fará cair um orvalho sobre a terra;
então os mortos nela enterrados levantar-se-ão. Esse orvalho vem da
Árvore da Vida e é um orvalho de luz".

Essa passagem, por sua vez, se apóia no versículo de Isaías 26,19, que diz:
"Despertai, cantai, habitantes do pó, porque vosso orvalho é um orvalho de
luz".
Desse modo, toda passagem da morte ou ignorância à vida ou sabedoria se
faz por intermédio desse orvalho de luz quando entra em contato com a
primeira sefirá ou Kether, a Coroa, sobre a qual oscila a Luz-Sem-Fim, o Ain
Sof da Cabala.
Como em quase todas as tradições o orvalho está associado à graça e à
imortalidade — Lie Tsé conta que os Imortais da ilha Ho-che se alimentam
de ar e de orvalho, e Lao Tsé, por seu turno, vê no orvalho o sinal da
amorosa união do céu e da terra — e como aparece ligado por sutis laços
aquáticos ao que Plínio chamava "saliva dos astros", brota dele um
relâmpago que desde a abóbada celeste passa à abóbada craniana para
vibrar na fontanela maior ou bregmática e, mediante a experiência que os
místicos denominam "dom das lágrimas", acabar convertendo o salgado em
doce, a dor em alegria, o sono em despertar.

Calixto II Xanthopoulos, um dos grandes mestres da filocalia ou oração do


coração, escreveu: "A água que sai do coração preenche totalmente o
homem interior com o orvalho divino".
O orvalho-da-luz, o tal „orot‟ da Bíblia, joga com o duplo sentido da palavra
orot, que indica "ervas" e "luzes" ao mesmo tempo.
Além disso, orot procede da combinação de outros dois nomes: "luz", „or‟, e
„ot‟, "letra", pelo que o caminho para a obtenção do elixir celestial, o
orvalho, passa pela extração da luz contida nas palavras do versículo citado.
Assim, a primeira senda desbravada pelo Adão natural é percorrida pelo
Adão sobrenatural, e da Árvore do Conhecimento aquele avançará até a
Árvore da Vida quando for capaz de transformar-se no querubim da espada
de fogo.
Quem podia, no passado, nos dias anteriores à manifestação terrena de
Jesus, explorar esse caminho e como se chamavam?
Temos freqüentemente citado o mais vasto e profundo documento da
Cabala espanhola, o Zohar ou Livro do Esplendor, e agora cabe lembrar
seus primitivos discípulos, os nazarenos ou nazirim, que na tradição
hebraica se consagravam à busca interior, à redescoberta do homem-luz
que mora em todos nós; porque entre o Zohar e eles — os nazarenos ou
nazareus — existe a raiz comum „raz‟, que significa "secreto" e tem valor
numérico 207, a mesma cifra que or, "luz".
Se evocarmos agora a famosa frase de Jesus tal como figura em João 8,12:
"Eu sou a luz do mundo; o que me segue não andará nas trevas, mas terá a
luz da vida", e recordarmos que em Efésios 5,8 se diz: "Outrora éreis
trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da Luz", aludindo a
seus discípulos, saberemos por que os primeiros cristãos foram chamados,
com Paulo, seu líder, de nazarenos.
Não obstante, há com relação a isso uma confusão etimológica não
devidamente esclarecida que procede de Mateus 2,23: "... e veio e habitou
na cidade que se chama Nazaré, cumprindo-se desse modo o que fora
predito pelos profetas: será chamado nazareno".
A rigorosa verdade é que os nazarenos não indicavam um topônimo, mas
uma função: encarnavam um voto ao Criador.
"Falou Deus a Moisés dizendo: fala aos filhos de Israel e dize-lhes: o
homem ou a mulher que se separar fazendo voto de nazareno para dedicar-
se ao Criador (nazir lehizaher leyehová) abster-se-á de vinho e de bebida
inebriante; não beberá vinagre de vinho, nem vinagre de outra bebida
inebriante, nem beberá suco de uva, nem tampouco comerá uvas frescas
nem secas".
E também: "Durante todo o tempo de seu nazarenato, não passará navalha
sobre sua cabeça, até que se completem os dias de sua consagração; será
santo, e deixará crescer o cabelo. Durante todo o tempo em que viver
separado para Deus, não se aproximará de pessoa morta. Nem mesmo por
seu pai, sua mãe, seu irmão ou sua irmã poderá contaminar-se quando
morrerem; porque leva sobre sua cabeça o sinal de sua consagração",
podemos ler em Números, 6.

Sublinhei propositalmente a última frase porque está em relação com


Kether, a Coroa.
Na genealogia nazarena, Samuel, o profeta, e Sansão, o juiz, que precedem
a Jesus, são as figuras consagradas pelo nazarenato mais importantes da
Bíblia.
O horror à contaminação pelos mortos e pela morte explica, de certo modo,
a atitude adotada na frase evangélica: "Deixa que os mortos enterrem seus
mortos", Mateus, 8,22.
Em contrapartida, a proibição que pesa sobre o vinho tem de ser
considerada mais simbólica do que real, visto que se a analisarmos do
ponto de vista da Cabala descobriremos que o valor numérico de „iain‟,
"vinho", é 70, cifra idêntica à de sod, "secreto", e os nazarenos estavam a
par dessa gematria.
Há um segredo extraordinário e ambíguo no vinho.
Os descendentes da casa de Aarão, isto é, os homens de linhagem
sacerdotal, proibiam o vinho quando ingressavam no tabernáculo, já que
aproximar-se ébrio do sagrado podia desmerecer a transcendência do rito.
No Levítico, 10,9, é recomendada abstenção de vinho "para que não
morrais".
E, todavia, em outra passagem vemos que o vinho é objeto de consagração,
e que com ele são feitas oferendas a Deus.

No Gênesis, 49, 11, fala-se do "sangue das uvas", „dam anabim‟, e este é o
primeiro antecedente metafórico à associação vinho/sangue.
Quase todas as religiões antigas consideravam o sangue como sede da vida,
e como na tradição hebraica a vida pertence a Deus, derramar sangue é
mostrar parte de seu poder.
Por outro lado, Adam, o "homem", é também adom, a cor "vermelha", e a
partícula „dam‟ alude ao "sangue".
Se ocorre — tal como vemos na celebração da Eucaristia — que o Filho do
Homem se parte, se divide para dar-se, é pela revelação do que contém seu
"sangue", „dam‟, que se tem acesso ao resplendor do álef [], letra que
simboliza a infinitude do Criador.

Violou Jesus propositalmente a proibição nazarena, ou antes esclareceu a


chave desse tabu?
Por que explica, em Mateus 26, 29: "Digo-vos: doravante não beberei mais
deste fruto da vinha até o dia em que o beberei de novo convosco no reino
de meu Pai"?
Estava, por acaso, consciente — e se o supomos cabalista não podia deixar
de estar — de que na palavra "vinho", iain, se inclui o duplo yod do Criador?
É tradicional ler, nas escrituras rabínicas, o Nome de Deus em forma de
duplo iota, duplicação de certo modo impronunciável que, por sua vez,
alude às pupilas do Senhor!
Porém podemos ampliar ainda mais esse contato seguindo uma pista
fornecida pelo Bahir ou Livro da Claridade ao citar o Salmo 72,17: "Se
perpetuará seu nome enquanto dure o sol", pois se "perpetuará" é tradução
aproximada de „inon‟, e essa palavra contém as três letras de „iain‟, "vinho".
Se Jesus conhecia este salmo também sabia que para a tradição oral ou
Cabala registrada pelo Bahir ao mencionar o significado de inon, "ali os dois
num [] estão presentes: o curvo [] e o alongado [], já que tal profecia
deve cumprir-se pelo masculino e pelo feminino".

O Mestre, ao oferecer a taça, o cálice de seu coração, sabia que o sangue é


duplo: fogo e água, como o céu, fogo e água, e que o segundo Adão seria
simbolicamente andrógino.
No Tratado Sanhedrim 988 do Talmud é dito que “inon” é um dos nomes do
Messias.
É possível que Jesus conhecesse essa tradição?
Imaginamos que sim, por via da antiga tradição oral farisaica, de que — tal
como o reflete a Ordem Terceira da Mischná que fala dos nazarenos —
"aplica-se maior rigor à impureza e ao corte do cabelo que ao fruto da
vida".
De fato, "se um nazareno bebe vinho durante todo o dia, não é culpado
mais do que uma vez".

A relação do Sol com o vinho, de modo semelhante que com o sangue, é


muito freqüente em todo o Mediterrâneo oriental.
O sangue simboliza todos os valores solidários do fogo, da vida.
Segundo diversos mitos do Oriente Médio, sua substância dá nascimento às
plantas e também aos metais.
Veremos imediatamente como isto é certo — pelo menos em parte — para o
caso do ferro.
É pensando no vinho, bebida dos deuses, que Jesus, fiel à sentença
expressa pelo profeta Isaías de que era a vinha do Senhor, se atreve a
proclamar-se a "vida verdadeira" e diz a seus discípulos que não podem ser
rebentos da planta sagrada do Senhor senão n'Ele permanecendo.
A seiva que sobe pela videira é a luz do Espírito; daí que, realmente, o
vinho "incendeia", "ilumina o rosto".

No mandeismo, beber vinho é incorporar claridade, sabedoria e pureza.


Para esta mesma tradição, nos diz Mircea Eliade, a videira arquetípica tem
água em seu interior (lembremos que para os hebreus shamain, o "céu",
está composto de "água" e "fogo"); suas folhas são formadas pelos espíritos
da luz e seus nós são grãos de luz (estrelas).
Em seu livro sobre Las Estructuras Antropológicas de lo Imaginario (Paris,
1979), Gilbert Durand esclarece: "O vinho floresce como a vinha, é um ser
vivo pelo qual é responsável e guardião o vinheiro. Não obstante, o que
aqui nos interessa sobretudo é que a poção sagrada é secreta, oculta, ao
mesmo tempo que água da juventude. O vinho se vincula a esta
constelação na tradição semítica de Gilgamesh ou de Noé. A Deusa-mãe era
chamada "mãe-tronco da videira"... O vinho é o símbolo da vida oculta, da
juventude triunfante e secreta. Por isso, e por sua cor vermelha, é uma
reabilitação tecnológica do sangue. O sangue recriado pelo lagar é o signo
de uma imensa vitória sobre a fuga anêmica do tempo".

A palavra "anêmica" é reveladora: rico em ferro, o vinho fortifica as


hemácias de nosso sangue, que já possui esse elemento.
Sabe-se que na simbologia da Alquimia, o "ferro contém em si o segredo
dos segredos", porém costuma-se ignorar que, para a Cabala, a palavra
"ferro", „barzel‟, pode também ser lida como a conjunção de „raz‟ — que, já
vimos, indica "secreto" e tem o mesmo valor numérico de „or‟, "luz" — e
„leb‟ [lev], com o "coração".
Do que se depreende que o sangue deve sua consistência, seu poder
hemoglobínico, ao oxigênio transportado aos líquidos tissulares graças à
ação da ferroprotoporfirina.
A passagem da hemoglobina à oxihemoglobina, realizada através de nossa
respiração, é realizada mediante a união de quatro moléculas de oxigênio
para cada molécula de hemoglobina.
E tal é o fator que ilumina, circulando por todo o corpo, a cabeça!
Com efeito, o sangue arterial é mais claro que o venoso.
Para a Cabala, o ar — e portanto o oxigênio que este transporta — já possui
luz.
Uma importante passagem dos Atos 18,18 nos esclarece que São Paulo fez
certa ocasião voto de nazareno: "Mas Paulo, demorando-se ainda muitos
dias, despediu-se depois dos irmãos e navegou para a Síria, e com ele
Priscila e Áquila, depois de ter cortado o cabelo em Cencris, porque tinha
feito voto".
A palavra "voto" é, na versão hebraica, „neder‟, vocábulo que em aramaico
assemelha-se a „nazir‟.
A superposição dos dois fonemas „d/z‟ era freqüente em todas as línguas
semíticas.
De modo que bem podemos imaginar no Apóstolo, como também no
Batista, — e com o propósito de alcançar um certo estado de consciência —
pois assim o enuncia Lucas 1, 15: "Não beberá vinho nem bebida
inebriante; e será cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe", a
promessa de um voto de nazarenato provisório, temporário, iniciático.
Aqueles para quem seu próprio sangue é vinho vivem entusiasmados pelo
que o espiritual fermenta, embriagando-os, em sua alma.
A fim de entender mais claramente este mistério devemos recorrer ao
Sufismo, que vê no vinho o mais alto segredo da busca do sagrado e no
entanto recomenda a seus adeptos a abstenção, regra em geral observada
em todo o Islã em relação a bebidas alcoólicas.
"Vê quando em teu sangue fluir vinho, tudo é Ele, meu Amigo, tudo é Ele!",
diz uma canção urdu salmodiada pelos continuadores do santo Chishti do
século XIX, Sayed Mir Abdullah, cujo santuário está em Delhi.

Para Ibn Arabi de Murcia, o vinho simboliza o conhecimento dos estados


espirituais, a ciência infusa reservada aos poucos.
Precisamente devido à impossibilidade de beber vinho real ditada pelas
várias proibições religiosas que existiam em torno dessa bebida, os
nazarenos e os sufis o dotaram de um poder semelhante ao do sangue.
Bayazid de Bishtâm, o grande místico persa do século IX, anotou: "Eu sou o
bebedor, o vinho e o ato de escançar. No mundo da unificação tudo é um".
Também os iniciados gregos, ao beber vinho — agora real — sentiam que
Dioniso estava vivo neles, que o sangue do deus se transformava em seu
sangue, por assimilação misteriosa.
Quando o místico Ibn al Farid escreveu no século XIII (época que coincide
com a busca cristã do Graal) em seu poema Al-Khamriya ou Elogio do
Vinho, a conhecida frase: "Bebemos à memória do Bem-amado um vinho
que nos embriagou antes da criação da vida", estava reatualizando a chave
do sacerdócio de Melquisedec, Rei de Paz, que segundo o Gênesis 14,17
repartiu "pão e vinho" com Abraão e que, de acordo com Hebreus 7,3, é
esse soberano de justiça (tzedek) que é "sem pai, sem mãe, sem
genealogia; que não tem princípio de dias, nem fim de vida, senão que é
semelhante ao Filho de Deus, e permanece sacerdote para sempre".

Nada menos que sabedoria, a dissipação do tempo é o que se oferece a


quem participa na vida anterior à videira e a quem submerge sua
genealogia, quer dizer, sua cronologia, no espírito vivo que navega por
nosso sangue!
El Nablusi, outro sufi, comenta que o vinho significa a bebida do Amor
Divino, e que esse amor é causa de embriaguez que produz o esquecimento
completo de tudo o que existe no mundo.
Porém trata-se de um esquecimento realizado pelo ego, não pelo Ser.
"Há que ceder um para obter Um", reza um provérbio zen.
À "douta ignorância" de Nicolau de Cusa se chega por uma espécie de dupla
negação: a de não conferir ao intelecto lógico mais do que lhe pertence, e
logo, não considerar o tempo como meio idôneo para obter o que se vê,
está fora de toda cogitação.
Rumi, o grande poeta persa, disse: "Antes de que nesse mundo houvesse
um Paraíso, uma vinha, uvas, nossa alma se embriagou de um vinho
imortal".
Ele antes alude ao não-manifesto, ao invisível, ao interior.
Para Omar Khayaam, "o néctar da uva não tem preço".

De tudo isso se depreende que o verdadeiro valor do vinho está em outra


parte, no segredo que encerra mais do que no sabor que oferece.
Assim, pois, os nazarenos, grupo a que por um indefinido espaço de tempo
pertenceram Jesus, João Batista e Paulo, se abstinham do vinho, porém
conheciam tudo o que este encerra.
Ou então — segundo as circunstâncias e as pessoas — não se abstinham e
revelavam suas virtudes ocultas.

Quanto à cabeleira sobre a qual não se deve "levantar navalha", certos


indícios nos permitem inferir que o profeta Elias (2 Reis, 1,8) era um desses
„baal-sear‟, "possuidor de longos cabelos" que levava uma vida entre
profética e nazarena.
A palavra hebraica para "cabelo", „sear‟, pode ser lida, com outra
acentuação vocálica, como „shaar‟, "porta" ou "entrada".
Por acaso não disse o Mestre de Nazaré, em João 10,9: "Eu sou a porta; o
que por mim entrar será salvo, e entrará e sairá"?
Também os imortais taoístas portavam os cabelos longos e revoltos para
que lhes servissem como antenas.
Dispostos em torno da cabeça, os cabelos se assemelham assim aos raios
do Sol.
Na índia, a trama, o tecido do Universo está constituído pela cabeleira de
Shiva.
Seguindo o exemplo dos antigos nazarenos, os eremitas cristãos dos
primeiros séculos deixavam crescer seus cabelos, e se a tonsura era
submissão a um grupo, devoção a uma ordem, abnegação, o deixá-los
longos era sinal de independência, de "separação" mística, de caminho
solitário.
A Coroa se assemelha assim à cabeleira nazarena, à ramagem aberta da
palmeira iniciática.
A palavra hebraica "coroa", kether, figura no Salmo 91,13, em que lemos:
"Como a palmeira, florescerá o justo" (Katamar).
Esta primeira sephira é, na verdade, a responsável por recolher a força
proveniente da Luz-Sem-Fim, quer dizer, do Ain Sof.
Trata-se da elipse ou o anel dos céus que com suas jóias luminosas
circunda e determina o pensamento humano.
Porém essa Coroa, que a Cabala às vezes denomina „Atara‟ — donde,
imaginamos, procede tiara — alude também ao crânio como recipiente ou
suporte do cérebro com seus hemisférios rugosos e labirínticos.
Em Jesus, segundo narra Marcos 15,17, colocam como escárnio uma coroa
(kether) tecida de espinhos (kotzim) com o propósito de ofender nele as
esperanças no rei messiânico que os judeus aguardavam.
Porém colocam-lhe também a púrpura (argamán) real.
Ou seja, configuram-no —sempre num sentido paradoxal para os romanos
— como o Adam Kádmon, o Vermelho Adão que sendo Filho do Homem é
também Filho de Deus.
O fato de que, em seguida, vá ser crucificado no Gólgota (a „golgoleth‟
hebraica significa "caveira"), e de que na iconografia cristã tradicional ao pé
da cruz se veja, quase sempre, um crânio atribuído ao primeiro Adão, nos
revela que os romanos atacavam e humilhavam em Jesus um "princípio"
contido em sua "cabeça".
Com efeito, a palavra „reshit‟, que indica "princípio", "começo", contém a
rosch, "cabeça".
O segundo Adão, superior aos avatares históricos, acima do conflito judeu-
romano e sob a mesma teologia, tem de atravessar a mesma parte que o
primeiro para poder superá-lo.
Assim, a cruz acima do crânio alude à ressurreição acima do fim.
Não é em absoluto casual que a palavra "fim", „ketz‟, provenha da mesma
raiz de „hotz‟, "espinho".
O vermelho, a rosa do sangue deve florescer entre os espinhos para que se
cumpram as Escrituras, porém não no sentido de um que sofre por todos,
de um que chegou antes de todos — idéia tão limitada quanto perigosa —
senão no mais amplo e revelador sentido que faz do sacrificado pela
ignorância um paradigma de sabedoria; do erro dos homens a verdade do
homem, da torpe comédia coletiva a nobre tragédia individual.

A separação, a consagração dos nazarenos implicava, segundo


mencionamos, um "ter cuidado", um "prestar atenção".
Eram eles que, herdeiros de Elias, tinham o poder de "devolver o
coração dos pais aos filhos", diz Lucas 1,17.
Se repararmos na palavra grega empregada para "filhos", não veremos
„huios‟ mas „teknon‟, "criança", quer dizer, o "como crianças" necessário
para reviver a experiência paradisíaca.
A palavra teknon, por sua vez, se assemelha a teknáo: "fazer uma obra de
arte".
Pelo visto, aos nazarenos cabia restituir um estado primigênio, ucrônico, a
um mundo caído no tempo, apanhado pela rede inerte da cronologia.
Ao ligar os corações, seu trabalho era cordial, amoroso, unitivo.
Por isso eram curadores de almas, terapeutas.
Se invertêssemos a palavra hebraica "voto", „neder‟, obteríamos radán, "o
que se afasta", porém também "aquele que desce" (rad).
Afastavam-se do tumulto humano, da massa, para descer às profundezas
de si mesmos, até a cripta, a mina, o lagar de seu próprio coração em que
os sempre vivos caminhos da sabedoria preparavam o mosto do vinho de
seu sangue.
Têm sua "consagração sobre sua cabeça", explicava a citada passagem de
Números a propósito dos nazarenos.
Porém, o que há sob o osso, sob o aro esplêndido de Kether?
O "princípio" e além disso um "canto de fogo": shaar, "melodia", "cântico",
de esh, "fogo", já que na palavra rosh, "cabeça", cabem precisamente estas
duas palavras.
E não nos diz o Batista que "ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo"?
No conhecido lógio 82 do Evangelho de Tomé, ouvimos Jesus dizer: "Quem
está perto de mim está perto do fogo, e quem está longe de mim está longe
do reino".
O reino do fogo é, então, o reino do princípio cósmico.
Porém, o fogo queima, é perigoso, como o vinho.
Somente aquele que o amestra, o sublima, pode ser purificado por suas
chamas e por sua vez purificar os outros.
Nesse sentido, Jesus não faz mais do que reativar, por intermédio de sua
memória pré-natal, a Lei do Fogo que havia levado Moisés aos hebreus.
A Lei que existe em cada "homem", „ish‟, onde há "fogo", „esh‟.
Os que entram em contato com o esplendor zohárico, os nazarenos, devem
por isso cuidar do recipiente, da lâmpada de seus próprios corpos sob pena
de queimar-se antes do tempo ou queimar aos demais ao invés de iluminá-
los.
"Ninguém acende uma lâmpada e a põe em lugar oculto ou debaixo da
amassadeira, mas sobre um candelabro (ha-menorá), para que os que
entram vejam a luz", escreve Lucas 11,33.
O candelabro representa, na visão de Zacarias 4,1-6, os sete olhos de Deus,
os sete planetas que se contam junto ao sol.
"A lâmpada do corpo é o olho; se teu olho for simples — prossegue Lucas —
também todo teu corpo será luz".
A cabeça, ósseo cofre de luz, é o lugar onde o Zohar coloca, além disso, o
Sétimo Palácio.
"No Sétimo Palácio se encontra também a Arca da Aliança — diz no citado
texto Simeón Bar Yohai — porque todas as almas saem por ela, e em seu
mais íntimo retiro se encontra o ponto oculto".
Este ponto, que a Cabala denomina o "espírito supremo", é a fonte de vida.
Deveríamos acrescentar, porém, que não somente os dois olhos são as
lâmpadas do corpo: também o são os ouvidos, as fossas nasais e a boca.
Sete orifícios como os sete planetas.
Na índia são os sete chakras ou flores energéticas que, como é natural,
culminam no sahasrara-padma, o cocuruto, onde se encontram todas as
letras do alfabeto sânscrito.
Sobre o ajna, o intercílio, a mente, está o lótus das mil pétalas com o Verbo
alcançando seu máximo poder huminoso em torno do bindu Parashiva,
outra vez o ponto supremo!
Trata-se de uma alusão à hipófise ou ao corpo pituitário que regula o
funcionamento hormonal, glândula endócrina a que também afluem as
respostas dos órgãos regulados?
Entre os hormônios produzidos pela hipófise se encontram as
gonadotrópicas, que regulam a função das glândulas sexuais do homem e
da mulher.
Este é o motivo pelo qual, e para autofecundar-se durante certo tempo pelo
menos, o nazareno emprega alquimicamente sua semente,
retrodirecionando-a à cabeça.
O Bahir sustenta que o sêmen procede do cérebro do homem e desce ao
membro através da coluna vertebral.
Isso é assim, diz-nos, "porque a semente procede de cima".
O Sétimo Palácio abraça, para o Livro da Claridade, todas as palavras, e
costuma-se concebê-lo duplo, quer dizer que nele o seis (simbolicamente o
"homem") está unido ao sete (isto é, "Deus") no pensamento ou majshabá,
que não tem princípio nem fim.
"Assim que — nos lembra Lucas na citada passagem —, sendo todo teu
corpo resplandecente, sem mistura de trevas, ele será inteiramente
luminoso".
Este „somá foteinón‟ deve começar pela abordagem do olho simples, o „ain
tmimá‟, que a versão grega denomina „oftalmós aplous‟ considerando-o
singelo, honesto, preciso, enquanto que a conotação da palavra hebraica
supõe, além do que foi dito, um "estar de acordo".

Continua

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