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CLUBE DE REVISTAS

anais operísticos

Como uma teia de egos, intrigas, denúncias e falta de visão pública estrangula o Theatro Municipal de São Paulo

ANGÉLICA SANTA CRUZ

s músicos do Quarteto de Cor- pal. E lamentou: “Quando ela saiu do longeva trajetória de desavenças e falta de de cinco anos. E mais. A maioria delas
das da Cidade de São Paulo cargo, a administração posterior come- continuidade administrativa do Theatro foi tragada para dentro de uma opereta
certamente têm um dos locais çou um clima de negação de tudo o que Municipal de São Paulo. De olhos fecha- feita de intrigas, cartas anônimas, gra-
de trabalho mais bonitos do havia sido feito, um desmonte com hos- dos, é possível colocar o dedo indicador vações clandestinas, bate-bocas colos-
país. Todos os dias, a partir tilidade e acusações infundadas. Ela, no em qualquer ponto da linha do tempo da sais, ameaças, trapaças, contestações
das 17 horas e até que as costas come- começo, ficou quieta diante dos ataques principal casa de ópera da cidade – do de contas, lutas judiciais. Junte-se a
cem a doer, eles ensaiam juntos no palco do maestro atrabiliário, de triste memó- momento em que abriu suas portas, às tudo isso o ambiente já naturalmente
da Sala do Conservatório da Praça das ria. Mas uma hora resolveu responder.” dez da noite do dia 12 de setembro de dramático de uma casa lírica, com per-
Artes, o anexo do prédio centenário do O maestro “atrabiliário” e “de triste 1911, até este exato instante – e será bata- sonagens de temperamento forte – e o
Theatro Municipal. O lugar tem pare- memória” é John Neschling. Diretor ar- ta: aparecerá uma crise de gestão. que acontece no lindo prédio de estilo
des brancas, cortinas vermelhas, um lus- tístico e regente titular do Theatro Muni- Nos últimos onze anos, porém, a coi- eclético no Centro da cidade é uma
tre modernoso iluminado por 1,8 mil cipal de 2013 a 2016, Neschling acabou sa ficou especialmente feia. Desde 2012, tempestade perfeita. Os enroscos que
lâmpadas de – e uma acústica con- varrido depois de um escândalo retum- o teatro passou a ser administrado por têm surgido no Theatro Municipal na
siderada perfeita para a música de câma- bante de corrupção. Depois de sair, decla- uma fundação de direito público, a Fun- última década são tão estrondosos que
ra. Na tarde de 7 de junho, quarta-feira, rou em entrevistas que havia encontrado dação Theatro Municipal de São Paulo, respingam para cima. Já ajudaram na
o quarteto dividiu esse cenário meio ce- o teatro em péssimas condições e que a ou . Em tese, ela deveria fiscalizar queda de secretários de Cultura, pro-
lestial com o maestro Abel Rocha e a reforma nas áreas públicas da institui- a atuação de uma Organização Social vocaram uma Comissão Parlamentar
mezzosoprano Luciana Bueno para um ção, feita durante a gestão de Calil e (OS) de cultura, uma entidade privada, de Inquérito ( ) na Câmara Munici-
sarau musical em memória de Beatriz Amaral, havia sido “uma maquiagem escolhida por meio de chamamento, pal e até obrigaram Fernando Haddad,
Franco do Amaral. De cabelos verme- em um cadáver”. Amaral, então, escre- cuja função seria contratar funcioná- ex-prefeito da cidade, a dar explicações
lhos, temperamento firme e expansivo, veu uma carta aberta, em que respondeu rios, pagar os salários, administrar os em plena campanha eleitoral para a
Amaral dirigiu o teatro entre 2008 e aos ataques e, de quebra, chamou Nes- prédios, captar recursos privados e gerir Presidência da República.
2013 e morreu há dois anos, de câncer. chling de “contumaz mentiroso”. a programação cultural do teatro. A Se- Observadas por quem está de fora,
Foi uma homenagem simples, boni- Quando o sarau acabou, todos os cretaria Municipal de Cultura deveria essas desventuras em série, de tão nove-
ta, rápida. Mas teve uma nota especial- participantes seguiram para o térreo do pairar sobre essa dobradinha, entrando lescas, às vezes soam engraçadíssimas.
mente pesarosa. Entre a execução do prédio, que já foi sede do antigo Con- em cena apenas para lembrar das dire- Mas três detalhes transformam a ópera
Quarteto n° 1 para Cordas, de Osvaldo servatório Dramático e Musical de São trizes gerais da política cultural pública. bufa em drama vergonhoso. Primeiro: é
Lacerda, e a ária Seguidilla, da ópera Paulo, a fim de descerrar uma placa em Na prática, esse sistema virou uma um parrudo dinheiro público que está
Carmen, de Bizet, o ex-secretário muni- homenagem a Amaral. Depois que o barafunda em que ninguém se enten- em cena. O Theatro Municipal de São
cipal de Cultura e professor de cinema pano foi retirado, perguntaram ao neti- de, atravessada por interesses políticos Paulo tem um orçamentão. Só para
Carlos Augusto Calil fez uma breve fala. nho da ex-diretora se ele sabia por que e confusões burocráticas, que sobrevi- 2023 conta com uma previsão de re-
Diante de familiares de Amaral, senta- a placa era vermelha. “É por causa da veu à passagem de quatro prefeitos. passe de cerca de 114 milhões de reais.
dos na primeira fila, ele detalhou a dedi- cor dos cabelos dela!”, disse a criança. Até agora, nenhuma das quatro OS É um dote que equivale a 16,5% do or-
cação da ex-diretora durante a reforma Em toda a sua singeleza, o evento foi que venceram concorrências para ad- çamento da Secretaria Municipal de
mais ambiciosa da história do Munici- também poderosamente ilustrativo da ministrar o teatro terminou o contrato Cultura. E é o único equipamento que

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KLEBER SALES_2023

Sururu no Municipal: a diferença crucial entre as disputas no teatro paulista e nos da Europa é que nestes o novo comando não chega demolindo tudo o que estava em curso antes

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consome, por exemplo, mais do que a belecidos na cidade em relação a trazer Serra, ele assumiu a Secretaria Munici- estudou música e depois se tornou pro-
verba de investimentos prevista para al- companhias europeias. Era uma indús- pal de Cultura, cargo que só deixaria fessor – e foi também ali que ele conhe-
gumas secretarias municipais inteiras, co- tria. O Sábato combateu esse negócio e em 2012, já no final do governo de Gil- ceu Oswald de Andrade. A edificação
mo a de Segurança Urbana (83,7 milhões teve muita oposição”, conta ele. berto Kassab. Nesses sete anos, acabou estava em ruínas, assim como os casa-
de reais) e a do Trabalho (75 milhões de Calil testemunhou de perto a maior capitaneando as mudanças mais radi- rões no entorno. A ideia era restaurar o
reais). Segundo: o teatro não é apenas crise dessa fase: o entrevero entre Magal- cais da história do Theatro Municipal antigo conservatório e construir ao lado
um prédio histórico com um palco que di e um nome célebre da música erudita, de São Paulo, tanto do ponto de vista dele outros prédios, modernos, onde
recebe apresentações. É uma casa líri- o maestro Eleazar de Carvalho. Na épo- físico como administrativo. Na estrutu- seriam reunidos os corpos artísticos e as
ca complexa, habitada por seis corpos ca, Carvalho acumulava a regência da ra física, aproveitou a boa vontade po- escolas do Theatro Municipal. Esses
artísticos e duas escolas que se dedi- Orquestra Sinfônica do Estado de São lítica com o centenário do teatro que núcleos estavam espalhados por vários
cam à produção e formação de músi- Paulo (Osesp) – que ajudara a tirar do se avizinhava e promoveu o restauro lugares da cidade, alguns deles comendo
cos, cantores e bailarinos. São, ao todo, fundo do poço de um recesso de mais de do palco, do salão nobre, da fachada e o pão que o diabo amassou em ambien-
486 profissionais, em sua maioria pes- cinco anos – com a Orquestra Sinfônica de outras áreas públicas – uma obra de tes muito precários, como a Orquestra
soas que realmente trabalham pesado Municipal ( ). “Acumulando essas 28,3 milhões de reais, financiada na Experimental de Repertório, que en-
para que o barco navegue, apesar dos funções, ele tinha o monopólio das con- maior parte pelo Banco Interamericano saiava em uma sala com goteira sobre o
furos no casco – mas que convivem tratações e dos convites de todo o univer- de Desenvolvimento ( ). Foi dessa piano, embaixo do Viaduto Jacareí, no
com as consequências, às vezes deses- so musical da cidade. Fazia, então, o que reforma que Neschling falou mal, para bairro Bela Vista. De lambuja, a Praça
peradoras, das alucinadas mudanças de quase todos os colegas dele fazem: tráfi- irritação de Amaral e Calil. das Artes daria à região central, sempre
comando. E terceiro detalhe: a impor- co de influência. O Sábato, que era um É também dessa época a construção combalida, um polo de cultura novo
tância do Theatro Municipal na paisa- homem muito correto, chamou o maes- da Central Técnica de Produções Artís- em folha.
gem de São Paulo é retumbante. É uma tro e disse: ‘Olha, o senhor não pode fa- ticas Chico Giacchieri, um conjunto de O projeto foi aprovado e seguiu em
joia cultural que mereceria um trata- zer isso, não vou tolerar.’ Mas o maestro, grandes galpões no bairro do Canindé, frente na gestão Kassab. As obras deve-
mento melhor. que se sentia superior a todos os mortais, a 6 km do teatro, para onde foram trans- riam ser concluídas em 2012, mas o ter-
continuou”, afirma. Calil estava na sala feridas as estruturas de construção de reno arenoso da região do Vale do

C
arlos Augusto Calil tinha 24 anos do chefe quando ele, em 1976, convocou cenário e o acervo de figurinos. Nesse Anhangabaú fez com que a prefeitura
quando começou a conviver de per- Eleazar de Carvalho e, escorado no apoio local de apoio estão hoje guardadas pre- tivesse que desapropriar outro prédio, o
to com os dramalhões do Theatro costurado antes com Olavo Setúbal, na ciosidades como as roupas criadas por do Cine Marrocos, e construir um imen-
Municipal de São Paulo. Em 1975, tor- época prefeito da cidade, o demitiu. “Foi Flávio de Carvalho e Burle Marx para so muro de arrimo – o que encareceu a
nou-se assessor do crítico de teatro Sábato um escândalo no meio musical. Como? o Ballet do Centenário de São Paulo, obra e atrasou o cronograma. Em outu-
Magaldi, na época secretário municipal Demitiu o Eleazar? Ninguém falava, co- em 1954, pendurados com cuidado em bro de 2012, no finalzinho do governo
de Cultura. Nesse período, o teatro apre- mo não se fala até hoje, sobre o tráfico cabides, em um espaço com temperatu- Kassab, a Praça das Artes acabou inau-
sentava temporadas líricas com produ- de influência”, opina. ra controlada, para evitar a deterioração. gurada pela metade, com a ópera Orfeu
ções majoritariamente feitas no exterior. Três décadas depois, foi a vez de Ca- A ala da construção de cenários ocupa e Eurídice, de Gluck, montada no can-
“Já era um problema administrar aqui- lil tentar pegar o bode pelo chifre. Em três galpões, um deles com as medidas teiro de obras. Até ali, o projeto custara
lo, porque havia interesses muito esta- abril de 2005, durante a gestão de José exatas do palco do teatro. Por ali circula, 136 milhões de reais. “Deixamos outros
sempre gesticulando, um dos grandes 10% necessários para a conclusão, con-
personagens da casa lírica, o chefe de tingenciados no Fundurb [Fundo de De-
cena Aníbal Marques, o Pelé, que come- senvolvimento Urbano]. A gestão Haddad
çou a frequentar as coxias aos 5 anos, le- remanejou a verba e paralisou a obra”,
vado pelo pai que já trabalhava ali, e hoje reclama Calil. Até hoje, a Praça das Ar-
despacha em um escritório inusitado: tes não foi totalmente concluída.
uma imensa mesa rodeada por paredes Aos olhos de Calil, a Praça das Artes
com gavetas cheias de porcas, parafusos, teria ainda outra função. O Theatro Mu-
roldanas e outras traquitanas cuja serven- nicipal tem uma estrutura sem paralelo
tia só mesmo ele sabe qual é e que po- no mundo: são duas orquestras, dois co-
dem salvar um cenário em apuros. ros, um quarteto e um balé, além das
O terceiro incremento físico feito escolas. Alguns desses corpos, como a
pela gestão Calil foi beneficiado por um Orquestra Sinfônica Municipal, foram
inesperado vento a favor. Em setembro criados como parte do teatro. Outros nas-
de 2004, José Serra teve a ideia de lei- ceram fora, como o Coral Paulistano e o
loar entre bancos privados o gerencia- Quarteto de Cordas, ambos lançados por
mento das contas salário dos funcionários Mário de Andrade no período em que foi
da prefeitura. O Banco Itaú ganhou a diretor do Departamento de Cultura e de
licitação e pagou 510 milhões de reais. Recreação da Prefeitura de São Paulo,
Quando esse dinheiro entrou em caixa, de 1935 a 1938, e acabaram incorporadas
Serra perguntou aos secretários: “Quem ao chamado Complexo do Municipal.
tem bons projetos para a cidade?” Todo Antes, os corpos artísticos não se encon-
mundo correu para apresentar algum. travam, os alunos das escolas não convi-
Calil mostrou o projeto da Praça das viam com músicos e bailarinos. Calil
Artes, feito em parceria com o arquiteto queria promover uma interação “entre as
Marcos Cartum, funcionário da Secre- artes e as gerações, entre estudantes e
taria Municipal de Cultura e hoje dire- profissionais” em um mesmo espaço.
tor do Museu da Cidade de São Paulo. Além de separados fisicamente, os
Depois do sarau em homenagem a funcionários do teatro trabalhavam sob
Beatriz Franco do Amaral, na tarde fria regimes diferentes de contratação, com
de 7 de junho, Calil e Cartum foram diferenças salariais às vezes gritantes.
para o meio da Avenida São João, lotada Alguns eram funcionários públicos, ou-
de moradores de rua com cobertores tros entravam na burocracia de paga-
nas costas, e mostraram à piauí a lógica mentos da prefeitura pela rubrica dos
do projeto que idealizaram. Tomaram “admitidos”, na prática um tipo de ser-
como ponto de partida o edifício do an- vidor com menos direitos. Quando a
tigo Conservatório Dramático e Musi- Constituição de 1988 proibiu essa mo-
cal, cheio de valor simbólico para a dalidade, apelou-se para outra, a da
cidade. Foi ali que Mário de Andrade rubrica “verbas de terceiros”, original-

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mente destinada à contratação de tem- O processo da aprovação da lei que co do teatro em geral e, portanto, não muito prática, que não era um formula-
porários e que obrigava que alguns criaria essa fundação pública na Câma- teria poderes sobre os outros corpos es- dor, mas traduzia bem as formulações”.
artistas e técnicos fossem recontratados ra Municipal foi demorado como uma táveis. Ou seja, iria querer ser chefe dos Já achar uma organização social para
a cada três meses. Por meio da criação travessia a pé no deserto. Dependeu de colegas — como já havia sido antes, entre fazer a tabelinha com a fundação foi
de uma fundação de direito público, cálculos complicados para conseguir 1989 e 1990, durante a gestão da ex-pre- dificílimo. A Secretaria Municipal de
Calil quis desvincular os funcionários passar uma régua nos salários dos artis- feita Luiza Erundina. “No fim do café, Cultura precisou fazer dois chamamen-
da administração direta – e todos passa- tas e de costuras infinitas com vereado- eu disse para o Juca Ferreira: ‘Não con- tos, até que o Instituto Brasileiro de Ges-
riam a ser contratados, conforme as nor- res, para garantir a aprovação, que saiu trate o Neschling, vai ser encrenca.’ Ele tão Cultural, especializado em leitura,
mas da , por uma Organização em 2011. A fundação só começou a ser respondeu: ‘Já contratei’”, lembra Calil. levou a parada. À frente dessa entidade
Social de cultura, deixando os corpos implementada em outubro de 2012, fal- estava o gestor cultural William Naked.

N
artísticos em pé de igualdade. tando dois meses para o fim do governo eschling aterrissou justamente no No início, a nova administração con-
O modelo de administração de equi- Kassab – e a escolha da primeira OS lugar que dá urticárias em Carlos tava com a pororoca de egos relativamen-
pamentos públicos de cultura por meio que administraria o teatro, assim como Augusto Calil: acumulando as fun- te comum nas casas líricas. Neschling
de organizações sociais é usado pelo a integração dela com a fundação, ficou ções de regente titular e de diretor artís- tentou implantar a disciplina que adotou
governo estadual de São Paulo e, nesse para a gestão seguinte. tico do Theatro Municipal. “O Neschling na Osesp, onde são inadmissíveis coisas
caso, considerado bem-sucedido. É por Quando Fernando Haddad tomou é um cara por quem tenho muito respei- que até hoje podem acontecer no Thea-
meio desse expediente que instituições posse na prefeitura e acabou de esco- to, pelo talento e pela grandeza do traba- tro Municipal, como os músicos da sin-
eficientes como a Osesp e a Pinacoteca lher sua equipe, Calil tomou um café lho dele na área da música sinfônica. fônica entrarem no palco depois da
de São Paulo são administrados. No es- com o secretário de Cultura que o su- Nessa área é comum ter o temperamento afinação feita pelo spalla. Midiático, o
quema adotado pelo estado, as organiza- cedeu, Juca Ferreira – que havia sido forte e ele é um clássico dessa caracterís- maestro conferiu às récitas certo senso
ções sociais são fiscalizadas e geridas ministro da Cultura no governo Lula e tica”, diz o ex-ministro Juca Ferreira à de ocasião e os ingressos esgotavam.
por fundações que também são privadas voltaria a ser no segundo governo Dil- piauí. “Ele foi demitido da Osesp e teve Ele, no entanto, também entrou rapida-
– e ambas se reportam diretamente à ma. O encontro, em uma livraria da que viver exilado na Europa porque o mente em brigas, algumas provocadas
Secretaria Estadual de Cultura. É uma Avenida Paulista, durou quinze mi- ambiente ficou absolutamente inóspito por seu temperamento, outras pelas rea-
parceria direta entre o governo e entida- nutos. Calil desconfiava que a nova para ele por aqui. Conseguimos trazê-lo ções de funcionários do teatro às mu-
des privadas. O que Calil quis propor à gestão poderia querer levar para o Thea- de volta, ele assumiu o teatro e fez um danças implantadas, muitas pelos dois
prefeitura foi a criação de uma funda- tro Municipal o maestro John Nes- trabalho excepcional, não tem como ne- motivos. Em um dos quebra-paus, du-
ção de direito público para intermediar chling, que em janeiro de 2009 havia gar a qualidade que trouxe.” rante um ensaio, por exemplo, o maes-
a relação entre a Secretaria Municipal sido dispensado da Osesp. Achava que Para diretor administrativo da recém- tro Mário Zaccaro foi demitido diante
de Cultura e a organização social esco- Neschling boicotaria a ainda não im- criada fundação foi escolhido o produ- de todo o Coro Lírico (voltou depois e
lhida para tocar o Municipal. Com isso, plementada Fundação Theatro Muni- tor José Luiz Herência, ex-secretário de está lá até hoje).
esperava criar um tipo de parceria iné- cipal porque ela previa também uma Políticas Culturais do Ministério da O estranhamento rendeu episódios,
dita, uma complementaridade entre o governança compartilhada, de modo Cultura na gestão de Juca Ferreira. Se- olhando hoje, hilariantes. Em 2013, seis
público e o privado que se justificaria que o regente da orquestra sinfônica gundo o ex-ministro, Herência até ali se meses após a chegada de Neschling, o
por causa da complexidade do teatro. não poderia ser nomeado diretor artísti- revelara “um cara de uma inteligência teatro passou a conviver com suspeitas

LANÇAMENTO SELO SESC

Cataventos
H mínio Be o de C valh

A trajetória ímpar de Hermínio Bello de Carvalho gera este


Cataventos, álbum que reúne novos e velhos companheiros para
entoar 15 canções, sendo 13 delas inéditas, celebrando a longevidade
e inquietude do poeta, figura incontornável da música brasileira.
Com participações de Maria Bethânia, Joyce, Alaíde Costa,
Ayrton Montarroyos, Gabi Buarque e estelar elenco.

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piauí_julho sescsp.org.br/selosesc
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de sabotagem na coxia das óperas. Em hoje prefeito de São Paulo pelo , trar com uma ação contra a lei que per-
agosto, o cabo de um elevador do palco que engrossava o coro dos que especu- mite ao Executivo municipal emitir
rompeu, entre duas récitas de Aida, de lavam que Neschling era “amigo pró- títulos em nome do Corinthians.
Verdi. Em setembro, duas apresentações ximo de Fernando Haddad”. Houve Deixado de fora das investigações,
de Don Giovanni, de Mozart, tiveram eletrizantes acareações – uma delas, porque os promotores e vereadores con-
que ser interrompidas, por causa de súbi- entre Neschling e Herência, foi transmi- cluíram que ele dera total autonomia à
tas quedas de energia. Foi um pandemô- tida ao vivo na internet e durou cinco e não acompanhara os contra-
nio, com o público perplexo, solistas horas, com o regente dizendo que se re- tos de perto, Juca Ferreira virou teste-
irritados e um Neschling atônito. Um servava o direito de ficar calado enquanto munha espontânea. “Não cheguei a ser
14 policial passou a vigiar o quadro de luz vereadores tacavam o pau em perguntas arrolado, mas em uma das audiências
no quinto andar da casa – e a prefeitura à queima-roupa. na Justiça, resolvi depor mesmo assim,
abriu uma sindicância, que não deu em Neschling foi demitido do Theatro como testemunha. Na saída, encontrei
MISERY Municipal, declarou-se traído por todos, o Neschling, que estava furioso com o
nada. Neschling ficava irritadíssimo,
Vermelho porque perfis anônimos nas redes sociais processou o Instituto Brasileiro de Ges- Herência e dizia: ‘Esse filho da puta
De Stephen King cobriam a novela da sabotagem com tex- tão Cultural exigindo seus direitos traba- está tentando me incriminar!’ Eu disse:
Direção de Eric Lenate
Com Mel Lisboa, Marcello Airoldi tos jocosos, enquanto reclamavam da lhistas e foi embora para a Suíça. Como ‘Calma, calma...’ Nunca acreditei que o
e Alexandre Galindo contratação de atores estrangeiros. costuma acontecer em 100% dos casos, Neschling estivesse envolvido nos des-
Até aí, eram histórias que pareciam o material produzido pela pulveri- vios. A encrenca não veio dele”, diz.
Sex às 20h30, Sáb às 20h00
e Dom às 17h00 | TUCA destinadas ao anedotário operístico. Até zou-se no ar. As ações que foram adiante Em junho do ano passado, Neschling
que estourou a grande bomba. Juca Fer- na Justiça, no caso de Neschling, se en- se apresentou no Brasil pela primeira vez
reira resume da seguinte forma o que rolaram em entraves processuais defini- depois do escândalo, regendo a Orquestra
aconteceu: “O José Luiz Herência re- dos pelo juridiquês como “falta de Juvenil da Bahia, em uma comemora-
solveu meter a mão numa parte do di- citação de corréus” ou “inércia de auto- ção aos seus 75 anos de idade. O concerto
nheiro que passava por ali. Foi uma res em promover o andamento do feito”. lotou o Teatro Castro Alves, em Salvador.
12 traição de confiança. Eu caí do cavalo. Traduzindo para o português da padaria, Em abril deste ano, perdeu um pedido
Minha emoção, quando soube, foi de significa que a coisa não andou. de tutela antecipada em um processo
ANJO DE PEDRA querer pular no pescoço do cidadão. O regente dizia que prova de sua ino- contra a Wikipédia, em que exige a remo-
Ele depois me mandou vários recados cência é o fato de ele mesmo ter denun- ção de conteúdo, na versão em inglês,
De Tennessee Williams pedindo perdão, eu respondi: ‘Jamais.’” ciado o esquema. Flávio Luiz Yarshell, que menciona sua demissão do Theatro
Direção de Nelson Baskerville Em novembro de 2015, Herência pe- seu advogado, afirmou em nota enviada Municipal por envolvimento com práti-
Com Sara Antunes, Ricardo Gelli, Chris diu exoneração da direção da Fundação à piauí: “Foi ele quem levou ao então cas ilegais na gestão financeira.
Couto, Kiko Marques, Carolina Borelli, Theatro Municipal, alegando divergên- prefeito, Fernando Haddad, a informa- A , por sua vez, foi minada já
Luiza Porto e Thomas Huszar
Atriz Convidada: Selma Luchesi
cias incontornáveis com Neschling. Um ção de que os então dirigentes do Thea- em seu arranque. “Sequer foi inteira-
mês depois, soube-se que Herência fir- tro Municipal e do Instituto Brasileiro mente implantada, porque o governo
Sex e Sáb às 21h00
mara contratos superfaturados para a de Gestão Cultural não estavam se con- do introduziu a corrupção na funda-
e Dom às 18h00 | TUCARENA
Dias 04, 05 e 06 de agosto produção de espetáculos, recebera pro- duzindo de forma correta, e foi a partir ção!”, esbraveja Calil. Os salários dos
pina por meio de contas bancárias da disso que Haddad determinou providên- corpos artísticos não foram completa-
mãe e da mulher e criara empresas para cias em relação aos fatos. Curiosamen- mente equiparados. Os cargos-chave da
lavar o dinheiro. Depois investira todo o te, os dois responsáveis pelos malfeitos fundação viraram, em sua maioria, in-
butim acumulado – em cerca de três fizeram um acordo com o Ministério dicações políticas do secretário de Cul-
anos no Municipal – em apartamentos, Público de São Paulo, por meio do qual tura da vez, e passaram a viver às turras
L terrenos na praia e carros. O próprio He- passaram a acusar John Neschling, sem, com as organizações sociais escolhidas
rência confessou os desvios, fechou um contudo, apresentarem nenhuma prova para administrar o teatro.
acordo de delação premiada e devolveu de suas alegações.” O próprio maestro,
MILTON - Mônica Salmaso

O
cerca de 5 milhões de reais. Na delação, ocupado com um tour internacional, utras óperas vieram. Em 2017, o
e André Mehmari entregou o diretor do Instituto Brasileiro não quis dar entrevista. então tucano João Doria assumiu a
de Gestão Cultural, William Naked, que O ex-ministro Juca Ferreira tem ou- Prefeitura de São Paulo e nomeou
Com Mônica Salmaso e André Mehmari também fechou um acordo de delação, tra lembrança. Diz que o esquema foi o diretor de cinema André Sturm como
Sex às 21h00, Sáb às 20h00
devolvendo outros 3 milhões de reais. pego pelos mecanismos da prefeitura, a secretário de Cultura. Sturm encontrou
e Dom às 19h00 | TUCA E ambos, Herência e Naked, disseram Controladoria Geral do Município à o teatro pegando fogo, com o sentimento
Dias 04, 05 e 06 de agosto que Neschling também participava de frente. Em todas as entrevistas que deu antiorganizações sociais, que já existia
desvios e usava o teatro para fazer tráfico sobre o caso e em texto publicado na entre os servidores – por temerem a pri-
de influência com um empresário es- piauí em junho de 2017, Fernando Had- vatização –, ainda mais inflamado depois
trangeiro, na base do “eu te contrato aqui dad também afirma que foi dessa ma- de comprovado o esquema de corrupção
pagando muito bem e você me contrata neira que o esquema foi desbaratado – e da gestão anterior. Durante um período,
lá fora, nos mesmos termos”. Teria, inclu- reforça que, assim que soube, decretou o próprio Sturm dirigiu a fundação e fez
L sive, pago para um deles um espetáculo intervenção no teatro. O nome do ex- uma espécie de administração comparti-
que nunca foi montado. prefeito ficou de fora do relatório final lhada com o Instituto Brasileiro de Ges-
MÔNICA SALMASO - Tributo Deu-se um bololô de denúncias, com da . Mas os pipocos no Municipal tão Cultural, que estava sob investigação
Improvável
a Wilson Batista um emaranhado de contratos, nomes ainda lhe deram outra dor de cabeça. e, àquela altura, em frangalhos. “Estava
de produtores culturais que entravam e Em dezembro de 2016, o Ministério Pú- uma confusão. O teatro tinha uma dí-
saíam de investigações, quebra de sigilo blico do Estado de São Paulo ajuizou vida de uns 20 milhões de reais, o orça-
Com Mõnica Salmaso, Paulo Aragão, Teco dos e-mails do maestro e de sua mulher, uma ação civil pública contra Haddad mento previsto para 2017 não dava sequer
Cardoso e Luca Raele a escritora Patrícia Melo, com quem ele por improbidade administrativa, pedin- para as despesas previstas, todos os pro-
Sex às 21h00, Sáb às 20h00 tem sociedade em uma empresa de pro- do a devolução aos cofres públicos de cessos eram um inferno”, lembra ele.
e Dom às 19h00 | TUCA dução cultural. Em 2016, os vereado- cerca de 130 milhões de reais que te- Sturm resolveu interromper o con-
Dias 11, 12 e 13 de agosto
res da Câmara Municipal de São Paulo riam sido desviados do teatro e a suspen- trato com o Instituto e fazer um novo
abriram uma para investigar o caso. são de seus direitos políticos. No texto chamamento para contratar outra OS.
ingresso online Aconteceu o de sempre: uma roda alu- publicado na piauí, Haddad escreve que A Secretaria Municipal de Cultura pre-
cinada de novas pistas, cifras, contratos sofreu perseguição política do promotor parou o edital que, a pedido do Tribu-
suspeitos, promessas de apuração, au- do caso, Marcelo Milani – que o teria nal de Contas do Município de São
diências, políticos dando entrevistas – retaliado depois de ser investigado pela Paulo ( ), teve que ser reajustado.
Mais informações
entre eles, Ricardo Nunes, na época Controladoria Geral do Município por A concorrência saiu quase nove meses
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes
(11) 3670-8456 | 3670-8455 integrante da comissão parlamentar e suspeita de pedir propina para não en- depois de Sturm assumir a secretaria.
www.teatrotuca.com.br
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“Eu tinha chamado umas dez organiza- justo no período em que Sturm estava
ções sociais, para ver se as pessoas se procurando uma OS para substituir o

Nos
animavam a entrar. Ninguém queria, Instituto Brasileiro de Gestão Cultural.
depois de toda aquela confusão. Acha- Conforme o libreto de Gradim, o Ins-
vam arriscado, porque podiam pegar,
inclusive, passivos trabalhistas.”
tituto Odeon chegou ao Theatro Muni-
cipal confiante das vantagens de sua encontramos
Só duas OS toparam se inscrever. Em
julho de 2017, o Instituto Casa da Ópera
fórmula administrativa, que incluía a
instituição de processos, planejamento
na música
venceu o edital público. A segunda colo- estratégico e uma visão de mundo inclu-
cada, o Instituto Odeon, contestou o re- siva. Mas ele conta que, desde o início, a
sultado, alegando que a ganhadora havia fundação passou a despachar quase que
sido criada e administrada até um ano um ofício por dia para o Odeon, sobre
antes pelo cenógrafo e dramaturgo Cle- qualquer assunto, o que o obrigou a pra-
ber Papa, então diretor artístico do Thea- ticamente criar uma equipe só para res-
tro Municipal – e, por isso, teria sido ponder às mensagens. “Era ingerência
favorecida. A Casa da Ópera acabou ina- sobre tudo, até sobre um quadro de avi-
bilitada, mas por outro motivo: não entre- sos em cortiça substituído por um painel
gou um balanço patrimonial nos moldes randômico, que precisou ser retirado”, 22.07
exigidos pelo edital. O Instituto Odeon diz ele. “A gente pegava autorizações
ganhou o contrato de 577 milhões de
reais, previsto para encerrar em 2021.
com eles por escrito, depois eles contes-
tavam e saía nos jornais que estávamos
Tulipa Ruiz
Em pouquíssimo tempo, Sturm en- fazendo errado”, continua. “Depois do
trou em pé de guerra com a nova OS. que aconteceu fiquei muito tempo pen-
“Se tem uma coisa que eu lamento em sando sobre isso, porque a gente come-
meus dois anos de secretaria foi ter feito çou a entrar em algo tão tóxico que não
contrato com esse Odeon. Foi um erro. compreendia mais o que estava aconte-
Eu tinha duas possibilidades: enfrentar cendo. Mas acho que houve um jogo de
a situação, dar vazio e fazer outro edital interesse em que talvez a gente não se
ou desconsiderar que a proposta artísti- encaixasse. O Odeon não queria ser
ca do Odeon era ruim, mas os docu- uma operadora de recursos, queria dar
mentos deles estavam em ordem. Eu novo significado ao teatro.” Gradim afir- 04 e 05.08
estava sob pressão, precisei resolver a ma que, no período em que o instituto
situação desesperadora com o Instituto
Brasileiro de Gestão Cultural, pus o
esteve à frente do teatro, o palco teve
100% de ocupação, a carteira de assinan-
Liniker
Odeon. Com um ano, já quis tirá-lo.” tes foi retomada e shows simbólicos fo-
Começou uma batalha de versões. Se- ram feitos, como a gravação do AmarElo,
gundo Sturm, a equipe do Odeon “não de Emicida. “Ali o Emicida fala o quan-
tinha nenhuma noção do que é uma or- to é importante para ele ocupar aquele
questra, um corpo de baile, um teatro palco. Era nisso que a gente acreditava.”
musical”, “pegou um contrato milionário, O abraço de afogados entre Sturm e
mas cometia erros básicos”, “comprou o Odeon foi ficando apertado. Sturm
partituras erradas, não sabia a diferença começou a pressionar o instituto para
entre uma suíte e uma música original”, deixar o Municipal, acusando falta de
“era arrogante”, “tudo o que fazia a gente transparência nas prestações de contas
tinha que entrar consertando”, “era uma à Secretaria de Cultura, em reuniões 08.07 15.07
loucura completa” e, enfim: “A gente entulhadas de berros e das quais os par-
descobriu que eles jogavam os artistas ticipantes costumavam sair chorando. Urias Fat Family
contra a Secretaria de Cultura.” “A gente ficou atordoado, com o emo-
cional bloqueando o racional, adoeceu

D
iretor-presidente do Instituto Odeon, todo mundo. E começamos a ficar preo-
o mineiro Carlos Gradim fala de cupados com a narrativa que estavam
sua passagem pelo Theatro Muni- criando sobre a nossa gestão, com his-
cipal de São Paulo como quem se refere tórias sobre desvios de receita de bi-
a uma inesperada queda em um buraco lheteria, por exemplo”, conta Gradim.
durante um prazeroso passeio na gra- “Ouvimos uma pessoa acostumada a
ma. O Odeon, fundado por ele em 1998, passar por várias crises que nos aconse-
vinha de experiências que considerava lhou a gravar o secretário. Isso não é
exitosas, como a da gestão do Museu de confortável para nós, parece louco, mas 21.07 10.08
Arte do Rio ( ), que pegou ainda no foi o que deu uma pausa nessas versões.”
canteiro de obras. Por ali, o máximo de Em novembro de 2018, o diretor de ope- Chico Chico Hermeto Pascoal
desgosto que enfrentou foi o veto à expo- rações e finanças do Odeon, Jimmy Kel-
sição Queermuseu pelo então prefeito ler, gravou uma reunião que teve com
Marcelo Crivella – que não viu a mostra, Sturm. Na conversa, foi sugerido que a
mas ainda assim gravou um vídeo apate-
tado dizendo que ela tratava de pedofilia
aprovação de prestações de contas do
instituto estaria condicionada a um en-
e muito +
e zoofilia e, portanto, seria exibida “só cerramento amigável do contrato.
se for embaixo do mar”. Apesar de suas No áudio, Sturm diz: “É evidente
diferenças com Crivella, o Odeon che- que não vou dar quitação antes de vocês
gou até o fim de seu contrato com o . assinarem que querem sair. Bem, se
O instituto planejava no futuro participar dou a quitação para vocês e o presiden-
da concorrência para gerir o Museu da te do conselho diz que pensou melhor Ingressos:
Língua Portuguesa e, por isso, resolveu e não quer sair? Como eu vou notificar casanaturamusical.com.br
se qualificar como Organização Social vocês depois, se dou quitação para vo-
de cultura também em São Paulo. Foi cês? Agora, é evidente a disposição para
Cia Aérea Oficial: Apoio:

piauí_julho 25
CLUBE DE REVISTAS
do Conservatório de Tatuí) foi escolhi- públicos desde o comecinho. A própria
VITOR MASSAO_2023

da. Levou um contrato de gestão de construção do prédio exigiu investimen-


560 milhões de reais, pelos próximos to no entorno, como o asfaltamento,
cinco anos. A já tradicional corrida ma- uma novidade para a época, um esta-
luca, em que as organizações sociais cionamento para 22 carros e, luxo dos
que perdem não largam o osso e entram luxos, a primeira estrutura de energia
contestando o resultado, no entanto, se elétrica da cidade planejada para abas-
manteve. Segundo colocado na con- tecer uma edificação inteira – o que fez
corrência, o Instituto Baccarelli (gestor com que populares acorressem às ime-
da Orquestra Sinfônica Heliópolis) en- diações no dia da estreia, provocando
trou com três recursos pedindo a revi- também o primeiro congestionamento
são das notas e a anulação do resultado de São Paulo.
– o primeiro na Secretaria de Cultura Ao longo dos anos, os espetáculos pas-
e os outros dois no . O terceiro saram a ser financiados com verbas li-
emplacou – e o tribunal de contas de- beradas pela Câmara Municipal para
terminou, em fevereiro deste ano, que projetos particulares de suposto interesse
outra concorrência seja feita. público. Entraram em cena companhias
Um pouco antes desse novo velho como a sociedade anônima Empreza
imbróglio, o teatro entrou em transe Theatral Ítalo-Brasileira, fundada pelo
quando a Sustenidos anunciou que faria empresário Walter Mocchi em 1926, um
uma avaliação interna, obrigatória, de italiano cujos olhos brilharam ao perce-
todos os integrantes do Coro Lírico Mu- ber as oportunidades que se abriam na
nicipal. Os artistas protestaram, as redes América Latina com a inauguração de
sociais ficaram em chamas. A Susteni- três teatros públicos: o Colón de Buenos
dos voltou atrás. Em seguida, anunciou Aires, em 1908, o Theatro Municipal do
que centraria forças nas negociações Rio de Janeiro, em 1909, e o de São Pau-
para pedir a correção da inflação no or- lo, em 1911. Essas companhias – tam-
çamento previsto para 2023. Sem esse rea- bém objeto de outra batelada de estudos
juste, afirmou, o teatro chegaria ao fim – passaram a trazer da Europa, de navio,
do período fiscal com déficit de 13,3 mi- espetáculos inteiros, com artistas, técni-
um entendimento amigável. Se eu não Quando chegamos nas pessoas, demos lhões de reais – seja qual for a organiza- cos, cenários e figurinos. Os contratos
quisesse amigável, já teria feito litigio- queixa na polícia.” ção social da hora. Desde então, as três com particulares também costumavam
so.” A gravação foi divulgada pela rádio Uma das informações das cartas amea- partes – Sustenidos, e Secretaria terminar em desavenças.
e o Odeon passou a acusar Sturm çadoras – sobre o posicionamento de de Cultura – entraram em reuniões com A primeira vez que se tentou ter uma
publicamente de chantagem. Sturm foi câmeras em corredores e banheiros –, planilhas sacadas de parte a parte e che- visão de longo prazo, como política pú-
chamado para prestar esclarecimentos levou a direção do teatro a suspeitar de cagem de contas. Enquanto isso, no tea- blica mesmo, para o Theatro Municipal,
na Comissão de Educação, Cultura e uma funcionária da Central Técnica. As tro, pelo menos uma carta anônima foi foi quando Mário de Andrade assumiu
Esportes da Câmara dos Vereadores de câmeras de monitoramento também fo- enviada ao maestro Mário Zaccaro, do a direção do Departamento de Cultura
São Paulo. Ainda assim, quebrou o con- ram vasculhadas, e descobriram-se ima- Coro Lírico, tocando o terror. Dizia: “Cui- e de Recreação da Prefeitura de São
trato com o Odeon, em dezembro de gens de um homem de roupas pretas dado, vai ter demissão.” Paulo. Foi um período luminoso. Entre
2018. No mês seguinte, foi exonerado entregando uma das cartas endereçadas outras medidas, o modernista abriu lu-

E
do cargo. Sturm deixou a secretaria em a Gradim a uma recepcionista da Pra- mbora chame atenção essa quanti- gar no teatro para apresentações de ópe-
meio a duas investigações do Ministério ça das Artes. A funcionária da Central dade extraordinária de rolos dos ra para trabalhadores, durante as quais
Público Estadual – e um dos inquéritos Técnica foi chamada pela polícia para últimos onze anos, o fantasma ad- as instalações saíam ilesas, ao passo que
investigava improbidade no rompimen- depor, e resolveu levar um amigo. Na ministrativo que acaba com os nervos de nas récitas reservadas às elites eram fre-
to contratual com o Odeon. delegacia, o investigador reconheceu o quem trabalha no teatro é antigo. Na quentemente danificadas com canive-
Chegou outro secretário, o gestor amigo: era o homem que aparecia nas tese de doutorado O Estandarte Glorio- tes. Quando veio a ditadura do Estado
cultural Alê Youssef, que suspendeu a imagens do circuito interno, entregando so da Cidade: O Teatro Municipal de Novo, Mário de Andrade foi demitido
dispensa do Odeon e criou um grupo a carta. “Veja o grau de loucura de tudo. São Paulo (1911-1938), defendida em – e o diretor que ele nomeara para o tea-
de trabalho para avaliar suas contas. Esse homem disse para a polícia que era 2004 na Unicamp, a historiadora Maria tro, Paulo Magalhães, foi colocado na
Nem por isso Gradim teve vida fácil. professor de história operística, mas a Elena Bernardes vasculhou – “em horas geladeira. E o tinhoso espectro da falta
Viveu um episódio bizarro, também gente nem quis entrar muito na história a fio de pesquisas em microfilmes não de continuidade começou a assombrar
ilustrativo do que viraram as relações dele. Nosso intuito era nos proteger. En- digitalizados e no calo de dedo”, como os corredores do Municipal.
entre a Fundação Theatro Municipal e tão a gente demitiu a funcionária. Sema- descreveu à piauí – os arquivos dos jor- A versão atual dessa assombração
as organizações sociais. Entre fevereiro e nas depois, ela foi contratada de novo, nais O Estado de S. Paulo e Correio Pau- conta com um detalhe crítico. As orga-
outubro de 2019, ele recebeu cinco car- pela fundação. Se isso não mostra uma listano para entender as funções sociais nizações sociais de cultura que até hoje
tas ameaçadoras, assinadas com um relação assediosa, não sei mais o que é...” e culturais do lugar. Lá pelas tantas, a ganharam as concorrências não são ori-
pseudônimo pueril: João do Theatro. Em janeiro de 2020, a Fundação Thea- tese mostra que, em fevereiro de 1912, ginalmente do ramo e, ainda por cima,
Sempre com a hashtag #foraodeon, com tro Municipal cancelou o contrato com apenas cinco meses após a inauguração quando começam a trabalhar se depa-
erros de português e pródigas em excla- o Odeon, dois anos antes do seu encer- do teatro, um grupo de intelectuais já ram com uma instituição tão complexa
mações, as mensagens chamavam os ramento, atendendo ao pedido do grupo apontava que ele estava “paralisado pela que demoram meses, às vezes anos,
funcionários do Odeon de “víboras pe- de trabalho que recomendou a reprova- burocracia, discutia-se indefinidamente para entender tudo. A cada virada, os
çonhentas”, diziam que a administração ção de suas contas. O instituto diz que a como seria administrado e por quem”. artistas entram em um processo cansa-
era um “festival de planilhas estranhas” e própria dificultava a prestação de A partir de 1912, como se vê em vá- tivo de apresentar seu trabalho e defen-
recomendavam que eles tivessem cuida- contas, queimando prazos e descum- rias outras teses acadêmicas, determi- der seu peixe. Quando as diretrizes,
do ao percorrer os corredores do Theatro prindo caminhos burocráticos. nou-se que os gastos do teatro passariam qualquer uma, mesmo as erradas que
Municipal e a Praça das Artes. “A gente A Organização Social Santa Marce- a ser definidos e votados na Câmara poderiam ser corrigidas com o tempo,
começou a ter medo de fato. Pensamos: lina Cultura, que administra o Theatro Municipal e publicados na lei orça- passam a andar – a coisa para, entra ou-
daqui a pouco vamos sair daqui e pode São Pedro, outra casa de ópera em São mentária. A tese de mestrado A Interven- tra OS e começa tudo outra vez.
vir uma bala”, lembra Gradim. “Então Paulo, foi arregimentada emergencial- ção na Economia da Música na Cidade

S
começamos a fazer um trabalho de Sher- mente para cuidar do Municipal, até de São Paulo durante a Primeira Repú- e fosse apresentado ao público à
lock Holmes, juntando os pontos do que se fizesse outra concorrência. Em blica, defendida em 2016 na n , pelo maneira daqueles filmes em plano-
conteúdo de todas as cartas para tentar maio de 2021, em plena pandemia, a músico Rafael de Abreu Ribeiro, mos- sequência, em que a câmera vai se
descobrir de onde poderiam estar vindo. Sustenidos (gestora do Projeto Guri e tra como o teatro demandou recursos infiltrando sem cortes entre ambientes

26
CLUBE DE REVISTAS
e personagens – como em Birdman ou cie de caixa de madeira onde funcio- péis. Ela é gerente da Musicoteca e A confusão também vai parar nos pe-
Arca Russa – o Theatro Municipal de nários do teatro às vezes sentam durante encarregada de alugar partituras inter- quenos detalhes que, como se sabe, é
São Paulo se revelaria um lugar meio os ensaios, de olhos fechados, porque é nacionais e, depois, editá-las. Editar onde o diabo mora. O endereço e o ser-
encantador, meio vertiginoso. Em um aonde o som chega mais puro, em per- uma partitura é, grosso modo, ler e atua- vidor de e-mail dos funcionários do tea-
dia sem grande movimento, o local po- feita unidade das vozes de solistas com lizar a original, que contempla todos os tro, por exemplo. Desde que entrou no
deria ser vasculhado a partir de suas os instrumentos da orquestra. instrumentos e às vezes é escrita em pa- Municipal, Pasqualini já teve quatro.
entranhas. A câmera passaria, então, Em um dia animadíssimo, como a drões que caíram em desuso. Essa parti- Cada vez que sai uma OS, ela perde o
por uma grandiosa coxia com dezenas quarta-feira, dia 3 de maio, em que todos tura com a construção geral da ópera é histórico de conversas com os músicos
de escadas centenárias de madeira que, os corpos artísticos estavam em ebulição, usada pelo maestro. Mas depois é preci- ou de complicadas negociações interna-
sempre rangendo ao peso dos passos, mobilizados em ensaios de espetáculos, so isolar de dentro dela as partes especí- cionais de partituras. Os processos buro-
vão subindo e subindo, até chegar às o panorama do teatro mostraria a sala da ficas de cada instrumento da orquestra cráticos, como autorização de compras
passarelas – em uma altura equivalente cúpula, com piso de madeira e teto com – são as transcrições que guiarão os mú- e data de pagamentos, também mudam.
a oito andares –, usadas por técnicos ali placas acústicas, onde o maestro Roberto sicos. Fazer esse recorte para uma peça Pasqualini é conhecida no mercado in-
empoleirados, que manejam uma selva Minczuk e músicos da Orquestra Sinfô- de vinte minutos a ser interpretada por ternacional, mas hesita em pegar o tele-
de cordas para movimentar cenários. nica Municipal, alguns usando mole- um quarteto é fácil. Para uma ópera de fone e usar seu nome para acelerar os
É um ambiente um pouco sombrio, com tom e tênis, ensaiavam acordes da ópera mais de quatro horas e uma orquestra processos, porque sabe que a qualquer
degraus traiçoeiros e curiosidades co- O Guarani, de Carlos Gomes. Em segui- com 97 músicos – às vezes 110 – pode ser momento pode sair uma OS e entrar
nhecidas por pouquíssimos, como uma da chegaria ao Salão Nobre, que tem o inferno na Terra. Em média, essa trans- outra – e a programação ser interrompi-
fonte de água que jorra por um cano em portas de jacarandá em arcos, espelhos crição dura até um ano. Sem falar na da. Esse é um fio que, se puxado, envol-
um tanque de concreto, fazendo um que refletem detalhes dourados e vitrais negociação do aluguel da partitura, que ve todas as áreas do teatro.
barulhinho com eco. Poderia ser facil- art nouveau de ferro e vidro. Ali, a maes- precede todo o trabalho, e costuma du-

E
mente cenário de uma luta de morte trina Maíra Ferreira ensaiava o Coral rar no mínimo seis meses, entre trocas nredos barulhentos de atritos admi-
entre Batman e Coringa. Paulistano para a ópera-jazz Blue Mon- de e-mails, acertos e burocracias admi- nistrativos que contaminam o es-
O passeio seguiria por uma rede de tú- day em um cenário que simulava um nistrativas dos países envolvidos. paço inteiro – até explodir – não
neis, antes usados como sistema de ven- bar. São ambientes em que se ouvem É por causa de tarefas muito especí- são exclusividade do Theatro Municipal
tilação, que passa embaixo da plateia e trechos de músicas, vozes aquecendo e ficas como essa que as casas de ópera de São Paulo. Costumam ser exibidos
desemboca em um portãozinho de ferro instrumentos sendo afinados o tempo bem organizadas de outras partes do nas melhores casas do ramo, no mundo
do lado de fora do prédio, já na Praça inteiro. Em todos, há sinais evidentes de mundo definem sua programação com inteiro. Em 2005, o cultuado e mercu-
Ramos de Azevedo. Ou então a câmera como a falta de continuidade administra- anos de antecedência. “Em novembro rial maestro Riccardo Muti se demitiu
sairia do palco, sobrevoaria as poltronas tiva deixa as coisas todas truncadas. de 2022, conversei com a moça da Me- do Teatro alla Scala, de Milão, deixando
de veludo vermelho, subiria por frisas, Em sua sala com uma pequena ja- tropolitan Opera ( ), de Nova York, para trás uma confusão das grossas. De-
foyeur e galpão simples até chegar à ga- nela que se abre para o Vale do Anhan- que faz a mesma coisa que eu aqui. Ela pois de meses de brigas envolvendo a
leria. É o lugar mais alto, com pior vi- gabaú e, mais ao fundo, para o prédio já sabia todo o repertório dela para 2026. gestão do teatro, ele se recusou a traba-
são e ingresso mais barato para óperas da Prefeitura de São Paulo, Maria Elisa Eu pensei: ‘Meu Deus! Eu não sei o lhar com a Filarmonica della Scala. Os
(12 reais), mas tem no fundo uma espé- “Milly” Pasqualini vive rodeada de pa- meu nem para 2023’”, diz Pasqualini. músicos devolveram o desaforo votando

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ruim para a qualidade entrar em um inteira à música. Também podem ser
VITOR MASSAO_2023

trabalho desse tamanho, em que as vaidosos e briguentos. No Coral Paulis-


pessoas ficam inseguras, pensando se tano e no Coro Lírico, alguns colegas
vai cancelar. Isso abala a atividade-fim não se falam há anos. Já houve até troca
do teatro: a relevância artística.” de tapas entre um petista e um bolsona-
rista antes das eleições, com os colegas

“I
mponência!”, “Importante!”, torcendo majoritariamente pelo petista.
“Privilégio!”. Na tarde de 3 de Do ponto de vista artístico, no entanto,
maio, um grupo de visitantes no estão todos acostumados a pensar em
Theatro Municipal, instado por um guia voz alta sobre o papel de um teatro como
durante um tour educativo, revelava as o Municipal, em um prédio simbólico,
primeiras palavras que lhe ocorriam em bem no meio de uma região acossada
seguida a um passeio pelas principais pela fome e pela violência – e tão lon-
áreas do teatro. Um século depois da ge das periferias.
construção da casa de espetáculos, os tu- Em suas conversas, músicos, bailari-
ristas captaram a mensagem que os fi- nos, coralistas e regentes elucubram so-
nanciadores do prédio, os barões do café, bre como a definição de música erudita
queriam passar ao erguê-lo naquele pon- como coisa de elite pode ser injusta. Ar-
to em que a cidade acabava, em meio a gumentam que as classes médias já não
uma plantação de chá. São Paulo enri- mandam seus filhos para conservatórios
quecia e precisava de um teatro de gala e que a maior parte dos jovens que estu-
grandioso, capaz de virar ponto de encon- da hoje no Municipal é da periferia, ini-
tro dos ricos que até então viviam enfur- ciada nos instrumentos musicais pelas
nados em suas fazendas. igrejas evangélicas ou por projetos so-
Durante alguns anos, o teatro se ciais. Todos os corpos artísticos têm me-
manteve de fato como símbolo de opu- tas de uso de palco e de apresentações
lência. O clima geral durante as récitas fora do teatro para cumprir, o que é im-
foi descrito pelo intelectual Nino Gallo portante para mostrar à população a
de maneira deliciosa e viperina: “Noi- qualidade do que podem fazer, mas mui-
te de gala, teatro cheio. Um teatro cheio, tos reclamam que, por desconhecimento
em massa por sua renúncia. No último A diferença crucial é que nesses numa noite de gala, é sempre a mesma e falta de interesse das organizações so-
ato, Muti pediu as contas do cargo que grandes palcos do mundo a missão ar- coisa, seja em São Paulo, Roma, Paris ciais, acabam sem espaço na própria casa.
ocupara por dezenove anos, dizendo tística não é afetada tão a fundo pela ou Nova York. Enquanto as senhoras, Se não fosse a eterna crise administra-
que não aguentava mais “a hostilidade brigaiada como acontece no Theatro nos intervalos, ficam firmes nos seus tiva, esses artistas já teriam um desafio
vulgar dos colegas”.  Municipal de São Paulo. Lá, na Europa lugares, expondo à inveja das amigas os grande o suficiente: manter a relevância
Em 2014, a , de Nova York, me- e nos Estados Unidos, os substitutos lucros extraordinários dos maridos, de uma casa de ópera e música clássica.
teu-se em uma confusão tão profunda não chegam demolindo totalmente o transformados em brilhantes e esmeral-

“F
que por pouco não cancelou uma tem- que estava em curso antes. Coisas como das – em todo o mundo há maridos e izemos história!”, exultou o
porada. Às voltas com um rombo finan- a definição da programação com anos lucros extraordinários –, os homens vão maestro Roberto Minczuk,
ceiro causado pela queda da arrecadação de antecedência, os dias fixos na sema- encher os corredores de fumaça e imbe- logo depois de descer pelo ta-
das bilheterias, redução das doações na de récitas para o público ou a quan- cilidades”, escreveu ele, em um artigo pete vermelho das escadarias do Thea-
milionárias, produções muito caras e tidade média de espetáculos por ano reproduzido no livro Mário de Andrade tro Municipal. Era uma noite fria de
altos custos trabalhistas, o diretor da não costumam mudar. Fora a dianteira por Ele Mesmo. domingo, dia 21 de maio, e ele saía da
casa, Peter Gelb, anunciou cortes em necessária para idealizar e, depois, co- Justamente por causa dessa grã-fina- última apresentação de O Guarani,
salários e benefícios de mais de 2 mil locar em prática um conjunto de espe- gem empoada, os modernistas escolhe- uma seção extra, aberta às pressas de-
funcionários. Arrumou uma briga in- táculos que façam a diferença. ram o Municipal para fazer a Semana de pois que os ingressos das outras oito ré-
cendiária. Os quinze sindicatos de tra- “Você precisa ter tempo para cons- Arte Moderna, em fevereiro de 1922. Nas citas evaporaram. O maestro vestia terno
balhadores de vários departamentos truir as coisas, sem isso o teatro inteiro escadarias do saguão, Mário de Andrade e camisa pretos, estava sorridente e apon-
reagiram prontamente, acusando Gelb fica vulnerável à fragilidade de um sis- leu A Escrava que Não É Isaura – e foi tava com gestos largos, bem à maneira
de má gestão e elegeram como símbolo tema que não engata”, diz a mineira vaiado. A partir daí, o teatro virou o gran- dos regentes, para os colegas de espe-
da sua administração perdulária o cená- Andrea Caruso Saturnino. Doutora em de centro dos debates culturais importan- táculo que também deslizavam pelos
rio de uma das óperas, um campo de artes cênicas pela , diretora, pro- tes da cidade, inclusive quando não se degraus de mármore, sob aplausos de
papoulas que custou 169 mil dólares dutora artística e curadora, ela aceitou podia entrar nele. Foi em suas escadarias espectadores que aguardavam de pé no
(cerca de 850 mil reais). Gelb retrucou o convite da Sustenidos para dirigir o externas que se fundou, em 1978, o Mo- saguão. Minczuk era a cara do alívio.
com uma carta aberta em que ameaça- Complexo do Theatro Municipal pelo vimento Negro Unificado, marco na O maestro comanda há seis anos a Or-
va afastar os funcionários que não con- que define como “um encantamento luta contra a discriminação no Brasil. questra Sinfônica Municipal. Desde que
cordassem com os cortes nos benefícios. por uma das raras casas de produção do Na mesma tarde em que Beatriz Franco virou o regente titular, sonhava encenar
A crise só foi controlada depois de uma país onde se produz, artesanalmente do Amaral foi homenageada com um por ali a obra do paulista Antônio Carlos
noite inteira de negociações. mesmo, o que vai para o público”. concerto de música de câmara na Praça Gomes, baseada no livro homônimo de
Em 2020, a Ópera Nacional de Paris Desde o dia em que assumiu, no das Artes, o movimento indígena fazia José de Alencar. Em tese, a montagem
teve 83 espetáculos cancelados. O mo- entanto, caiu no suspense: estará por uma manifestação no Municipal, con- seria quase que obrigatória no maior tea-
tivo: os artistas e funcionários entraram ali até o fim do contrato? “O que acho tra a tese do marco temporal, em um ato tro público de São Paulo. O Guarani é a
em greve durante quase três meses, em mais gritante é que trabalhamos com do qual participaram artistas como Da- mais famosa ópera brasileira: estreou em
reação à reforma previdenciária propos- um planejamento estratégico de cinco niela Mercury e Zélia Duncan. “Aqui é 1870 no Teatro alla Scala, de Milão –
ta pelo governo. A paralisação deixou anos, não é algo que se faz no imedia- o lugar da pancadaria”, definiu o violi- uma apresentação tão radiante e talhada
um rombo de 14,5 milhões de euros tismo. Para a gente conseguir chegar nista Marcelo Jaffé, do Quarteto de para atender aos interesses pelo exotismo
(cerca de 87 milhões de reais) no caixa em trabalhos de fato consistentes é pre- Cordas da Cidade de São Paulo, com dos trópicos, então em voga na Europa,
da instituição, mas também produziu ciso maturar – depois tem a agenda certo orgulho. que imediatamente transformou o com-
momentos antológicos, como aquele de dos maestros convidados, dos solis- Os seis corpos artísticos do Munici- positor em pop star, considerando que
um grupo de bailarinas, diáfanas em tas...”, diz ela, na sua sala no terceiro pal são feitos de seres muito ciosos de óperas eram os espetáculos populares da
seus tutus brancos, que dançou O Lago andar da ala nobre do teatro. “Uma seu papel nas artes performáticas. No época. Não à toa, Carlos Gomes – até
dos Cisnes diante de cartazes de protes- coprodução internacional, por exem- geral, são feitos de artistas de ponta, hoje o maior nome da música lírica na-
to, na calçada da Ópera Garnier, quan- plo, monta partes da ópera em lugares gente que mergulha diariamente em cional –, é um patrono onipresente na
do fazia -10ºC em Paris. diferentes e depois junta tudo. É muito horas de ensaios e que se dedica a vida arquitetura do próprio Municipal. É ho-

28
CLUBE DE REVISTAS
N
menageado com uma estátua logo na zer O Guarani para os dias de hoje’”, a noite da estreia, viu-se uma mon- conseguir ficar com Ceci. Ao fundo da
entrada, um busto no corredor do quinto lembra Andrea Caruso Saturnino, a tagem com, basicamente, duas cena, mulheres do povo Guarani canta-
andar e um medalhão – com a imagem diretora-geral do Complexo do Thea- histórias paralelas. Com exceção vam ao redor de uma imagem coberta
do seu rosto cercada por uma guirlanda tro Municipal. Escalou-se, então, o es- de dois balés que foram retirados, a mú- com o manto de Nossa Senhora que, ao
de louros – bem no alto da boca de cena, critor e ativista Ailton Krenak para fazer sica permaneceu intocada. Os solistas ser descoberto por Peri, revelou Ceci.
pairando sobre a sala de espetáculos. a concepção artística do espetáculo. interpretaram Ceci e Peri, acompanha- O público aplaudiu com entusiasmo
Minczuk sempre admirou O Guarani, Krenak sugeriu nomes de artistas indíge- dos de perto por dois atores indígenas a montagem. Ailton Krenak e o elenco
que foi encenada no Theatro Municipal nas, que se juntaram a todas as fases da que também representavam os papéis indígena foram especialmente ovacio-
pela primeira vez em 1919, depois ganhou produção, da direção ao elenco, da mú- principais, em uma solução chamada nados, tanto na noite de estreia, repleta
mais dezoito montagens, mas não dava as sica às projeções. A proposta era tentar pelos encenadores de duplo cênico. de convidados ligados ao mundo das
caras por ali desde 2000. O jejum tinha espelhar também a história de resistên- A sobreposição da visão indígena na artes, quanto na última récita, com pú-
seus motivos. Nesses tempos em que o cia resumida dessa maneira por David Ve- história teve maior contundência em blico mais diverso. A crítica especializa-
pêndulo cultural se alterna entre corre- ra Popygua Ju, ator indígena chamado dois momentos. No segundo ato, enquan- da, de modo geral, elogiou o espetáculo.
ções mais do que justas e cancelamentos para viver o personagem Peri: “Nesses du- to a soprano bielorussa Nadine Kou- E ninguém fez reparos técnicos à con-
ensandecidos, como levar ao palco uma zentos anos da peça, o povo Guarani es- tcher cantava a ária Oh! Como È Bello dução da ópera. Tudo isso explica o
história em que, em linhas gerais, um in- teve lutando para continuar existindo.” el Ciel!, em que Ceci, loucamente apai- alívio de Minczuk no último dia. Ele e
dígena guarani renuncia docilmente às Ainda na fase de ensaios, a monta- xonada, repete frases talhadas para o todos os artistas do teatro correram um
suas origens para consumar seu amor pe- gem acendeu uma fagulha dentro do ideal romântico como Tutti dobbiamo risco, na tentativa de ajustar o teatro aos
la filha de um colonizador português? teatro. Parte dos artistas e funcionários amar (Todos devemos amar), via-se ao temas importantes do mundo lá fora – e
E, tudo isso, ainda por cima encenado com da casa gostou da ideia, outra achou o fundo a projeção de um filme do artista se deram bem.
solistas brancos cantando em italiano? cúmulo. Alguns diziam que a monta- plástico Denilson Baniwa, com ima- Nos bastidores, porém, nada de alívio.
Na tarde de 11 de maio, um dia antes gem queria reescrever a obra de Carlos gens de uma expedição em que brancos A direção da Sustenidos havia sido avisa-
da estreia, em um encontro com o públi- Gomes sob a perspectiva de Krenak, mediam os corpos de indígenas entre- da dias antes, em uma reunião na bonita
co na cúpula do teatro para falar sobre os quando o mais plausível seria pedir que cortadas por frases como esta: “Como é Sala do Conservatório, que a secretária
bastidores da montagem ao lado de parte o pensador indígena escrevesse a sua ser civilizado?” A segunda sobreposição municipal de Cultura decidiu dessa vez
da equipe de encenadores, Minczuk sacou própria ópera e a encenasse com a equi- mais chamativa veio na famosa cena não recorrer da decisão do . De
alguns argumentos, para além da beleza pe do Municipal. Outros afirmavam em que Peri fica de joelhos para se con- fato, vai abrir outra concorrência. “A gen-
da música. “Carlos Gomes era descenden- que o teatro lírico se curvava à arte aber- verter ao cristianismo. Nesse momento, te vai tocando a vida e fazendo as coisas.
te de índios e negros, e sempre se orgu- tamente militante, e que esse preceden- aparece uma frase dos Sermões do Pa- Não podemos parar. Mas, desde o dia em
lhou dessas origens. É o nosso compositor te poderia levar com que a extrema dre Antônio Vieira em uma tela do lado que assumimos, é essa sensação de insta-
mais famoso, por isso insisti muito.” direita começasse a reivindicar o palco direito do palco: “Outros gentios são bilidade”, resume Caruso Saturnino. Até
“A vontade do Roberto de montar também. Do ponto de vista prático, o incrédulos até crer; os brasis, ainda de- o fechamento desta edição, o novo edital
O Guarani já vem de um tempo. Eu zum-zum foi ótimo para a encenação. pois de crer, são incrédulos” – uma in- não havia sido publicado.
falei: ‘Vamos fazer, mas fazer uma A polêmica chegou às redes sociais e à terpretação que sugere que o batismo A qualquer momento, a corrida ma-
montagem que responda o que é tra- imprensa – e os ingressos esgotaram. seria apenas uma estratégia de Peri para luca vai começar outra vez. J

MINISTÉRIO DA CULTURA, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO,


POR MEIO DA SECRETARIA DA CULTURA, ECONOMIA E INDÚSTRIAS CRIATIVAS,
E FUNDAÇÃO OSESP APRESENTAM

27/JUL A 19/AGO
SALA SÃO PAULO

Invenções musicais do
território latino-americano
Ingressos a partir de R$ 39,60
www.osesp.art.br

REALIZAÇÃO

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