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BASES DA FORMAÇÃO

TERRITORIAL DO BRASIL1

Antonio Carlos Robert de Moraes


Professor Doutor do Departamento
de Geografia da Universidade de São Paulo

Se é possível fazer uma história econômi- territorial. Ninguém fala em colonizar seu pró-
ca, uma história cultural, uma história política, prio espaço. Na verdade, a colonização diz res-
também é possível fazer uma história a que eu peito a uma adição de território ao seu patri-
daria o nome de história territorial, que é ten- mônio territorial.
tar captar a formação de uma sociedade abor- A situação colonial já é uma relação entre
dada a partir de seu território. sociedade e espaço, interessando à própria con- 1. Palestra proferida no
evento “Pensamento
Para entender o caso da formação brasilei- quista do espaço. A colônia pode ser entendida Geográfico e Formação
ra, temos necessidade de entender o que se está como a efetivação da conquista territorial. Territorial do Brasil”,
organizado pela
passando na Europa naquele momento, e, por De imediato, isso traz uma indicação meto- Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB), Seção
outro lado, fazer uma comparação com a for- dológica, do ponto de vista histórico, muito Vitória, e pelo
Departamento de
ma como se deu a instalação colonizadora na importante, que é a inadequação total para se Geografia da Universidade
América Latina. tentar trabalhar a questão colonial em termos Federal do Espírito Santo,
no dia 8 de dezembro de
A idéia central que se tem é de que essa his- de uma oposição interno-externo. A colônia é 2000, no Auditório do
Centro de Artes da
tória territorial seria altamente reveladora de a internalização do agente externo. E a colônia Universidade Federal do
alguns componentes centrais na formação de implica a consolidação desse domínio territo- Espírito Santo.
A transcrição da palestra
países de passado colonial. Ao fazer um estu- rial, a apropriação de terras, a submissão das foi realizada por Maria
Aparecida Costa,
do dos países de formação colonial, essa dimen- populações defrontadas e também a explora- licenciada em Ciências
Sociais, bacharelanda no
são espacial ganharia um peso muito maior por ção dos recursos presentes no território colo- mesmo curso na
uma razão muito simples: a colonização é em nial. A expressão que sintetiza tudo isso é a Universidade Federal do
Espírito Santo. Esta
si mesma uma relação sociedade-espaço. noção de conquista, que traz inclusive o traço transcrição contou com a
colaboração do professor
Na verdade, o que é colonização? Coloni- de violência comum em todo processo colonial. Sérgio Nunes de Almeida,
licenciado em Língua
zação é a relação entre uma sociedade que se Na formação dos territórios, temos três di- Portuguesa pela (FVE),
expande e os lugares onde ocorre essa expan- mensões: o território é uma construção bélica/ São José dos Campos-SP,
que efetuou a primeira
são. A colonização em si mesma é conquista militar, é uma construção jurídica e é uma cons- revisão ortográfica.

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trução ideológica. A formação territorial envol- Dois vetores vão ser básicos para explicar
ve essas três dimensões, não necessariamente a conquista do ponto de vista dos territórios
nessa seqüência. Há casos de territórios, nos coloniais. De um lado está o quadro demográ-
quais existia primeiramente um pleito ideoló- fico, extremamente variado na América. No
gico, depois se fez a conquista militar, depois império asteca, o europeu se defrontou com
a legalização jurídica. Há casos, como o de Is- uma densidade demográfica comparável à das
rael, em que primeiramente se fez a legaliza- áreas mais ocupadas da Europa. O centro do
ção política e depois a efetivação da conquista império asteca tinha uma densidade demográ-
militar. Há casos em que o ideológico vem an- fica de cerca de 50 hab./km², que era a densi-
tes e anima esse processo. Há casos em que dade demográfica das áreas mais povoadas da
primeiramente se conquista e depois se impõe Europa. A capital asteca tinha 300.000 habi-
um processo ideológico de afirmação daquela tantes, e a maior cidade espanhola da época,
nova identidade. que era Sevilha, tinha 100.000 habitantes. En-
No caso colonial, de certa forma tudo isso tão, aí, o colonizador se defrontou com uma
se exacerba com referência à América. A colo- economia já armada; a obra da colonização foi
nização é um grande processo, interessando aí colocar esse sistema para funcionar para o co-
sociedade-espaço, para cujo entendimento te- lonizador. Tinha-se uma rede de cidades, estra-
mos necessariamente que entender, em primei- das, estruturas produtivas, tributos. Diga-se de
ro lugar, o que se está passando na Europa, o passagem, a obra de Cortez foi mais uma obra
que levou algumas sociedades européias a se política de “costurar” essas nações que eram
expandir. Poderíamos falar de algumas carac- dominadas pelos Astecas do que uma obra mi-
terísticas gerais, comuns a vários países euro- litar em si mesma. Ele tinha 120 homens e com
peus, por exemplo, a carência de minerais, a tal efetivo não dava para conquistar uma cida-
carência de cereais, a existência de população de de 300.000 habitantes, porém ele veio com
disponível, a existência de capitais disponíveis, uma tropa indígena das tribos subjugadas pe-
a remuneração do capital mercantil, que vão dar los Astecas.
motivações européias para a expansão. A mesma coisa se deu com o império Inca,
Dentro das motivações gerais européias é que tinha cerca de 35 hab./km², densidade alta
possível também falar de geopolíticas metro- para a época. Então, nesses lugares o coloniza-
politanas específicas. As motivações próprias dor se defrontou com riquezas entesouradas. No
de Portugal, da Espanha, da Holanda, inclusi- caso do império Inca, segundo o historiador
ve, vão dar em diferentes tipos de colonização. Pierre Vilar, o saque do ouro acumulado foi o
Por exemplo: a colonização espanhola é mais principal ato isolado da acumulação primitiva,
estatal, a holandesa é totalmente privada, a por- tal a quantidade de riquezas que o colonizador
tuguesa é mista e a inglesa é diversificada, em encontrou. E é óbvio que essa riqueza finan-
função dos espaços onde ocorre. ciou a própria colonização. Nesses lugares onde
Um primeiro aspecto da conquista é este: o o quadro demográfico é grande, na ótica do
que está motivando a expansão? De outro lado, colonizador encontram-se riquezas, produtos,
o outro elemento básico é a realidade defronta- estruturas produtivas, e encontra-se gente para
da pelo colonizador. O colonizador defronta- produzir, pois as populações locais são vistas
se com realidades muito diferenciadas, e boa como recursos naturais, tanto é que a Igreja
parte do êxito da colonização deve-se à capaci- passou algumas décadas discutindo se o índio
dade de adaptar essas intenções geopolíticas à era gente ou era bicho.
realidade defrontada. Quanto mais plástica é a Um quadro muito diferente vai ser encon-
colonização, maior o seu êxito, maior sua rapi- trado nas terras baixas da América do Sul, nas
dez na instalação. E aí os quadros defrontados áreas florestadas. Há muita polêmica, do pon-
são muito diferenciados. to de vista da etnografia histórica, mas os auto-
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res, apesar da polêmica, os mais otimistas, di- brasileiro, a única coisa que dava unidade a esse
zem que o território brasileiro como um todo espaço era a colonização portuguesa. Não ha-
no máximo teria uma densidade de 2 hab./km², via uma raiz indígena que amarrasse essa por-
mesmo assim agrupados em algumas áreas, ção de espaço. Não havia unidade natural, o
como foi o caso da área guarani e o caso do Brasil era um mosaico de ecossistemas, embo-
vale amazônico. Em outras porções, a densida- ra se saiba que as características naturais não
de demográfica ficava em 0,4 hab./km². Era fundamentam a existência de um Estado.
uma situação muito diferente da anterior, e o Há um autor mexicano, Edmundo O’Gor-
colonizador teria que se adaptar a isso. man, que não gosta da idéia da descoberta da
Nessas regiões, no caso do atual território América. Ele escreveu um livro chamado “In-
brasileiro, o colonizador teria que montar a venção da América”, no qual diz o seguinte: O
colonização. Ele não encontrou uma estrutura europeu encontrou uma terra desconhecida, o
produtiva pronta, e não encontrou nenhuma ri- Novo Mundo, e a instalação dele no Novo
queza de imediato. Dos doze donatários das Mundo é que criou a América. A América, on-
capitanias hereditárias brasileiras, seis nunca tologicamente falando, é uma construção eu-
vieram ao Brasil tomar posse das capitanias, ropéia. A mesma coisa seria válida para o Bra-
porque nelas não havia nenhuma riqueza. Ao sil. O português defrontou-se com uma terra
contrário, os donatários teriam que aplicar ca- desconhecida, e a conquista dessa terra desco-
pitais na colônia, fazer um investimento. En- nhecida criou o Brasil.
tão esse é o primeiro vetor da conquista: o qua- Num primeiro momento, o Brasil não tinha
dro demográfico. atrativos. Diz um historiador português, Luís
O segundo vetor são os recursos naturais. Felipe Barreto, que o Brasil foi descoberto para
Onde se encontram recursos naturais valiosos, ser esquecido, e é verdade, em relação às três
principalmente minerais (o ouro e a prata), to- ou quatro primeiras décadas após a descober-
das as dificuldades são ultrapassadas, porque ta. Isso, aceitando-se que a descoberta tenha
o rendimento do empreendimento justifica isso. sido feita por Cabral. Hoje em dia, a maior par-
Onde há recursos naturais valiosos e não há te dos historiadores creditam a descoberta do
população, a própria conquista envolve um Brasil a Duarte Pacheco Pereira, que foi inclu-
empreendimento povoador; na maior parte dos sive o geógrafo português na assinatura do Tra-
casos, um povoamento forçado, seja por trans- tado de Tordesilhas, o cosmógrafo, como se
ferência de populações indígenas, seja por aqui- dizia na época; e, na verdade, Cabral veio fa-
sição de escravos africanos. zer a posse oficial. Os portugueses fazem uma
No caso brasileiro, não se encontrou nem distinção entre descoberta e achamento para di-
uma coisa nem outra. Não havia uma popula- ferenciar as coisas. Inclusive toda a estrutura
ção adensada; além disso, a população nativa da expedição do Cabral era de fato uma estru-
estava dividida em grupos políticos muito pe- tura militar para tomar posse, não era essa a
quenos, com mais de 1.400 tribos diferentes, estrutura típica de exploração. Vários navios,
cada uma sendo uma unidade política, nômade. tropas nos navios... Enfim, deixando de lado
Não havia cidades, e constatava-se um baixo essa polêmica, o Brasil foi descoberto e não
nível de intervenção sobre o espaço. Então, do havia nada que interessasse de imediato. Pau-
ponto de vista populacional, o Brasil não ofere- brasil era quase que lastro de navio. Então a
cia um quadro interessante para a colonização. função do Brasil, durante esse período inicial,
Cabe lembrar que não existia Brasil antes cerca de 40 anos, foi de ser uma aguada na car-
do colonizador. Não existia Brasil pré- reira da Índia. Quer dizer, na rota do Cabo, o
cabralino, ao contrário do México, que pôde Brasil era uma parada ideal para a provisão de
chamar uma história pré-colombiana, pré-co- água, alimento etc., e foi essa a função da colô-
lonial, assim como o Peru, a Colômbia. No caso nia entre os anos de 1500 a 1540.
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A presença francesa na costa brasileira foi sos associados a casas bancárias. O primeiro
muito grande, tão comum quanto a presença engenho de São Vicente quem levantou foi um
portuguesa, o que significa que até o ano de banco alemão. Hans Staden foi um mercenário
1540 a consolidação do domínio português foi pago servindo em Bertioga.
extremamente tênue. O que vai animar a Coroa Um fator foi muito importante para a velo-
a mudar de posição? Exatamente a descoberta cidade da instalação dos engenhos no Brasil.
das minas de Potosi no Peru, até porque nin- Um fator também de ordem geográfica, que foi
guém sabia bem àquela época a que distância o esgotamento dos solos nos arquipélagos da
estavam os Andes da costa brasileira. Havia Madeira e dos Açores. Os arquipélagos portu-
uma briga cartográfica muito grande entre os gueses atlânticos eram, desde o século XV, os
cartógrafos portugueses e os espanhóis. Os grandes centros produtores do açúcar europeu,
portugueses alargavam e os espanhóis estreita- havendo um esgotamento ecológico dos solos
vam a América do Sul, e ninguém sabia bem a pelas formas de plantio, no início do século
real extensão do continente. E a coroa portu- XVI. Diga-se de passagem que o sistema de
guesa avaliava que aquelas terras podiam ter produção desenvolvido nas ilhas foi o mesmo
uma riqueza como a que os espanhóis acaba- que o trazido para cá. Ele foi trazido “pronto”,
vam de encontrar. Então, manter o domínio era quer dizer, a primeira experiência das planta-
importante, porque podia haver riqueza lá. tions deu-se nas ilhas atlânticas.
A motivação é essa, porém mesmo essa ins- Essa associação de monocultura, trabalho
talação envolve investimentos, e o que fez a escravo, grande propriedade já era utilizada nas
Coroa Portuguesa? Terceirizou, privatizou a ilhas e, com o esgotamento de solo, esses inte-
colonização. Na verdade, a capitania hereditá- resses, esses capitais ilhéus foram transferidos
ria foi uma tentativa de passar para particula- para o Brasil. E o açúcar se deu muito bem,
res o custo da instalação no Brasil, uma insta- principalmente no Nordeste; é conhecida a his-
lação que envolvia a aplicação de capitais vul- tória. Então, na verdade, a primeira ocupação
tosos. no Brasil envolveu dispêndio de capital, daí a
Então essa leitura geográfica da história tentativa da Coroa de atrair particulares. Por
brasileira já deixa evidente como erradíssima exemplo: não existe definitivamente um sécu-
aquela idéia de que o colonizador chegou aqui lo XVI brasileiro exclusivamente colonial. No
para se apropriar de alguma coisa que estava século XVI, quem quisesse aplicar dinheiro no
disponível. Não, houve um investimento de Brasil era bem-vindo do ponto de vista da Co-
capitais; inclusive as capitanias que deram certo roa Portuguesa.
foram aquelas que tiveram disponibilidade de Foi nesse momento, por volta de 1570, que
capital para tocar o empreendimento colonial. começou o período definido pelos historiado-
O colono teve que montar o engenho, plan- res como o grande século do açúcar no Brasil,
tar o canavial, conseguir mão-de-obra. O enge- que vai gerar essa primeira ocupação.
nho foi talvez a primeira fábrica, uma instala- Em alguns pontos específicos da costa,
ção cara; existiam inclusive certas funções no como o açúcar era plantado numa estrutura de
engenho altamente especializadas, como a do monocultura, geraram-se algumas atividades
mestre do açúcar, e eram assalariados que re- subsidiárias à produção, as quais foram respon-
cebiam bem, não eram escravos; além disso, o sáveis pelas primeiras atividades econômicas
donatário ainda tinha que proteger o investi- da colônia. A agricultura de abastecimento nos
mento. Significa que ele tinha que ter tropas solos que não eram os mais adequados para a
pagas por ele. Nesse quadro, quem conseguiu cana, a pecuária, inicialmente, no chamado ser-
tocar a colonização de fato? Quem teve essa tão de fora, primeira área do agreste, e, princi-
disponibilidade? Basicamente Duarte Coelho palmente, a madeira. A madeira foi essencial.
e Martim Afonso de Souza, que tinham recur- Ela foi usada nas construções, nos meios de
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transporte, ou seja, nos carros de boi, nos bar- nhol. Houve uma grande expansão ao norte, a
cos. A madeira era o combustível das forna- partir de Belém.
lhas dos engenhos e servia para fazer as caixas Fundamentalmente, os avanços ao sul e ao
nas quais eram exportados os pães de açúcar. oeste devem-se à busca de escravos indígenas.
Então é aí que começa, de fato, a colonização. Aí, há também uma discussão interessante: a
Houve assim um primeiro período de qua- Igreja ficou bastante tempo discutindo se o ín-
se esquecimento e um período seguinte, que dio era gente ou se era bicho, até o Concílio de
poderemos chamar estritamente de instalação Trento chegar à conclusão de que o índio era
dos portugueses. Esse processo estava come- gente, tinha alma. Então se levantou uma outra
çando a se consolidar quando ocorreu um fato questão: podiam ser escravizados ou não? Por-
geopolítico minimizado pela historiografia bra- que a escravidão era vista como uma espécie
sileira, mas que, do ponto de vista territorial, de castigo ao infiel. Havia escravidão de
foi essencial: a unificação das coroas ibéricas, mouros, havia vários tipos de escravidão na
no ano de 1580. Europa mesmo, e a justificativa teológica para
Em 1580, o rei espanhol reivindicou a co- a escravidão era de que o indivíduo assim sub-
roa portuguesa e o Brasil passou a ser uma co- metido era um infiel, ou de que era submetido
lônia hispânica. Isso é minimizado na história à escravidão como um castigo por não ser te-
brasileira. Qual é o primeiro efeito disso? O mente a Deus. Entretanto os padres, principal-
primeiro efeito é que Tordesilhas deixou de ter mente os dominicanos da América hispânica,
sentido. Uma linha que tem, de um lado, súdi- levantaram a idéia de que o índio era um ser
tos do rei da Espanha e, do outro, súditos do pré-pecado, tanto assim que criaram uma ex-
rei da Espanha é uma linha que não separa nada, pressão nova, não era o infiel, era o gentio.
não tem sentido. Dificilmente o mapa brasilei- Houve uma intensa discussão teológica em
ro seria o atual se não tivesse havido a unifica- decorrência da qual se chegou à conclusão de
ção das coroas ibéricas, e por 60 anos! Houve que na América hispânica não se podia escra-
gente que nasceu, viveu e morreu num Brasil vizar índio. Conseqüentemente, na América
hispânico. Foi um período, por um lado, de hispânica vamos encontrar formas de servidão
grande expansão territorial e, por outro, de fra- indígena e não de escravidão.
cionamento da soberania portuguesa sobre o Porém, no Brasil já existia a prática da es-
território brasileiro. cravidão indígena desde os primórdios da co-
As duas coisas ocorreram juntas. De um lonização. A montagem dos engenhos era feita
lado, a expansão ao norte para expulsar os fran- com escravos indígenas, e houve toda uma ex-
ceses do Maranhão: foram tropas que saíram pansão para oeste e para o sul, em busca de ín-
de Pernambuco e foram devassando o litoral dios para escravizar, uma expansão basicamente
cearense, até chegar a São Luís, para expulsar com essa motivação: índios para alimentar a
os franceses. Essas mesmas tropas fundaram nascente dinâmica indústria do açúcar. Foi uma
Belém, em 1616, gerando uma situação que é expansão para os vários lados. No caso da
típica da geopolítica, segundo a qual quem do- América portuguesa, isso se manteve mesmo
mina a foz de um rio tem todas as condições de no período hispânico; criou-se um jeitinho para
dominar a bacia inteira, e foi o que ocorreu na se justificar a escravidão indígena: a teologia
história da Amazônia. Porém, com a fundação portuguesa dizia que não se podia escravizar
de Belém, foram feitas loas ao rei da Espanha. índio amigo, mas era lícito escravizar índio bra-
A província do Maranhão e do Grão-Pará foi, vo, isto é, índio que fosse dominado na guerra
inclusive, uma província separada do Brasil, justa. A questão era: como definir quem era o
que se relacionava diretamente com o Conse- índio bravo? Qualquer índio que não quisesse
lho das Índias, sem passar por Portugal. Neste voluntariamente trabalhar para o português
momento, foi uma província do império espa- podia ser classificado de índio bravo. Então, a
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escravidão indígena campeou. Há, hoje em dia, que era mais ou menos a população da área mais
vários trabalhos que destacam bem a escravi- povoada da colônia, na época, o Recôncavo
dão indígena que enseja grande expansão do Baiano. Então não foi uma coisa secundária.
ponto de vista territorial. Palmares foi uma clara situação de extraterri-
Ao mesmo tempo que houve expansão ter- torialidade no domínio português, era um Es-
ritorial, houve também fracionamento da so- tado autônomo, que inclusive negociava com
berania. O primeiro fracionamento deveu-se à portugueses e holandeses. Foi uma segunda fra-
invasão holandesa. Os holandeses foram tura: Palmares, durante o século XVII.
apeados do comércio do açúcar porque estavam A terceira fratura foram os territórios mis-
em guerra com a Espanha (o que já era uma sioneiros. O Vaticano tinha uma geopolítica
decorrência direta da unificação das coroas) e muito inteligente, que era a de criar um esta-
resolveram tomar posse das áreas produtoras, do-tampão na América do Sul, entre a coloni-
na medida em que eram responsáveis por 80% zação portuguesa e a colonização espanhola,
do transporte do açúcar e foram impedidos des- um estado-tampão objetivado pelas missões,
sa atividade. Esse impedimento significou um que avançavam pelo Amazonas e pelo Orinoco
baque muito grande na economia holandesa e e pela bacia do Prata. A leitura do Vaticano
eles resolveram tomar logo a área produtora, era a seguinte: os portugueses estavam ocu-
inclusive como um elemento dentro da guerra pando a América de leste para oeste; os espa-
que travavam com a Espanha, na Europa. É in- nhóis, de oeste para leste. Uma hora iam en-
teressante assinalar que Portugal, quando reto- contrar-se e o conflito seria inevitável, e a Igre-
mou sua autonomia, na Europa tornou-se alia- ja seria o árbitro. Então criaram um estado se-
do dos holandeses, porém eles estavam aqui no cular do Vaticano, como uma forma de manter
Brasil, como estavam em Angola. Isso também os índios nessa área, ou seja, fora do contato
se resolveu de uma forma exemplar: assinando tanto de portugueses quanto de espanhóis. Esse
um tratado que só valia para o hemisfério nor- plano “foi por terra” também por causa da uni-
te. Atribui-se a esse tratado o comentário feito ficação das coroas, porém o Vaticano não o
por um pastor holandês: “Não existe pecado do abandonou. Inclusive, no início do século
lado de baixo do Equador!!” XVII, criou a Sagrada Congregação para Pro-
O momento da restauração portuguesa foi paganda da Fé, um órgão para coordenar o tra-
um momento de auge do domínio holandês no balho das missões. As missões então respon-
Brasil. Os holandeses controlavam desde o diam ao Vaticano, e não à Espanha nem a Por-
Maranhão até a barranca do São Francisco, ba- tugal. Foi um terceiro fracionamento do ponto
sicamente toda a Zona da Mata. Essa área não de vista da soberania.
era mais domínio português, uma primeira fra- O quarto fracionamento, se a gente pensar
tura do período. do ponto de vista do atual território brasileiro,
A guerra entre holandeses e portugueses no foi exatamente o Maranhão e o Grão-Pará que
Brasil acabou levando à grande fuga dos escra- eram outra colônia. Não era o Brasil, era outra
vos. A tática portuguesa de desarticular os en- colônia, a colônia do Maranhão.
genhos e botar fogo nos canaviais propiciou Assim, se tomarmos a metade do século
grande fuga de escravos, que foram se concen- XVII, quando Portugal retomou sua soberania
trando em Alagoas, na serra da Barriga, geran- na Europa (isto é, quando voltou a existir como
do a segunda fratura do ponto de vista da sobe- reino autônomo), era esse o quadro do Brasil.
rania: o Quilombo de Palmares. O episódio de Nada dizia naquele momento que essas partes
Palmares foi minimizado na história brasilei- fracionadas deviam se rejuntar. A segunda me-
ra. Primeiro, vale lembrar que Palmares durou tade do século XVII foi marcada por esse pro-
quase cem anos, um século. No seu auge, por cesso de recuperação da soberania portuguesa
volta de 1650, chegou a ter 70.000 habitantes, sobre essas terras.
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A primeira ação, do ponto de vista crono- reu a destruição de Palmares e se retomou a


lógico, foi a exercida sobre as missões com soberania lusitana sobre esse espaço.
vários ataques de bandeirantes, na primeira Restava a colônia do Maranhão. No Mara-
metade do século XVII (por exemplo, em um nhão, por uma questão de correntes e marés,
ataque sobre as missões do Guaíra, Raposo por uma determinação geográfica, era muito
Tavares aprisionou 20.000 índios). A situação difícil navegar de São Luís e Belém para o lito-
chegou a um ponto tal que, num certo momen- ral oriental do Brasil. Era muito mais fácil ir
to, os jesuítas armaram os índios, criando in- de São Luís e Belém para a Europa, ou ir para
clusive um exército guarani, que impingiu uma as Antilhas, que vir para o Rio de Janeiro, Bahia
derrota aos paulistas. Porém, logo após essa ou para Pernambuco. Então, na verdade, a ane-
vitória, eles tiveram como estratégia ir para o xação do Maranhão e do Grão-Pará ao Brasil
oeste do rio Uruguai e saíram do território bra- também teve a ver com a história de uma outra
sileiro. Diga-se de passagem que essa tropa in- estrada: o chamado “Roteiro do Brasil”, estra-
dígena desalojou os portugueses, já no início da que ligava Salvador a São Luís, basicamen-
do século XVIII, da colônia do Sacramento, te construída com o avanço das boiadas da casa
num ataque com 3.000 índios guaranis, arma- da Torre que pagava essas tropas paulistas para
dos pelos espanhóis, atuando como tropa ofi- aniquilar os índios da caatinga, abrindo essas
cial. De todo modo, as missões foram para o terras para a pecuária. Foi a primeira vez na
lado oeste do Rio Uruguai, saindo do território história brasileira que se organizaram expedi-
atual brasileiro, e essas terras voltaram à sobe- ções que não eram de pacificação nem de
rania portuguesa na segunda metade do século aldeamento de índio, eram de extermínio, sob
XVII. a grande alegação de que os índios eram pró-
A expulsão dos holandeses foi um proces- holandeses, e de que os holandeses teriam ar-
so de guerrilha. Os portugueses queimaram os mado e adestrado certas tribos indígenas em
engenhos, queimaram os canaviais; praticamen- práticas militares européias. Esse foi o grande
te não se embarcava açúcar por Recife e os argumento.
holandeses, para quem a ocupação do Nordes- Essa prática foi confirmada por uma carta
te já não dava lucro, abandonaram o Brasil em de um padre, no Recife, pedindo ao rei verbas
certo momento. Enfim a segunda fratura aca- para pagar a essa tropa de paulistas. Ele termi-
bou, saíram os holandeses e retornou a sobera- nou a carta com uma frase “brilhante”: “Vossa
nia portuguesa no Nordeste. Majestade há de convir que toda pólvora quei-
Saíram os holandeses, saíram as missões. mada contra esses infiéis será incenso aos olhos
Todo o interesse da Coroa se voltou para a des- do Senhor”. Essa investida contra os índios re-
truição de Palmares, inclusive levando tropas cebeu várias denominações: alguns a chama-
paulistas para a luta. Há vários autores que vam de guerra dos bárbaros, outros, de revolta
mostram um fenômeno que acabou atuando dos Cariris. O extermínio dos índios da caatin-
muito na fragilização de Palmares: a fixação ga abriu uma estrada para a pecuária, estrada
territorial. Eles eram grupos nômades, e todo que, de Salvador, ia demandar o Norte do Bra-
grupo nômade, quando se sedentariza, passa a sil. Foi utilizando esse “caminho terrestre” que
ter uma estrutura como a de algumas cidades, o mesmo bandeirante paulista que destruiu
com uma capital. Aí eles ficam fixos, depen- Palmares, Domingos Jorge Velho, fez a funda-
dendo de agricultura, e perdem muito da sua ção de Teresina. E foi essa estrada, Roteiro do
agilidade militar. A destruição do Quilombo Brasil, que garantiu a relação do Maranhão e
está relacionada à história de uma estrada que, de Belém com o resto do Brasil.
quando chegou a Macacos, que era a capital Pode-se dizer então que, ao final do século
palmarina, possibilitou a locomoção de uma XVII, a soberania sobre o território brasileiro
artilharia pesada. No final do século XVII ocor- estava definida. A soberania portuguesa se re-
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compôs, se consolidou e, mais do que isso, se esse ponto de vista. Só para encerrar, vale ana-
expandiu. lisar a própria questão da independência. Difi-
Na última década do século XVII, ocorreu cilmente se entenderia a independência brasi-
um fenômeno que foi fundamental para o pro- leira, a forma monárquica da independência,
cesso da formação territorial, porque levou a sem levar em conta um aspecto central do pon-
uma interiorização maior da colonização: a to de vista da formação territorial, que é a exis-
descoberta do ouro. A mineração foi também tência, no momento da independência, de gran-
uma atividade essencialmente urbanizadora; em des fundos territoriais em território brasileiro.
qualquer lugar onde ela ocorria criava cidades. Se refletirmos sobre o que estava ocupado
Em conseqüência, gerou a primeira rede de ci- no território brasileiro pela economia colonial
dades do Brasil. A produção aurífera gerou um no momento da independência, constataremos
setor dominante para a economia colonial bra- que era apenas 1/5 do território, o resto eram
sileira. A partir daí, a colônia, como um todo, fundos territoriais. Por isso, se por um lado o
trabalhou para a região mineradora. elemento que levou à adoção da monarquia e a
A demanda mineira foi responsável pelo não-fragmentação do Brasil foi a manutenção
avanço da pecuária que, no início do século do escravismo, por outro, foi a manutenção da
XVIII, chegou à barranca do Araguaia e do soberania sobre esses fundos territoriais
Tocantins. Também o avanço da pecuária no Aí veio a forma monárquica. Essa época,
sul do Brasil, nos campos de São Pedro, vol- 1822, foi um momento de reação aristocrática
tou-se todo para o abastecimento da zona mi- na Europa, pós-napoleônica, e certas institui-
neira. O que marca esse período de 1700 a ções do antigo regime estavam com força de
1750? De um lado, o ouro; de outro, os trata- novo. Entre elas, a forma da legitimização ju-
dos internacionais que legitimaram as frontei- rídica da soberania territorial, no Antigo Regi-
ras: o Tratado de Madri e o Tratado de Santo me, que era a forma dinástica. A forma que te-
Idelfonso, que praticamente definiram as atu- mos hoje, proposta pela Revolução Francesa, é
ais fronteiras do Brasil. a soberania nacional popular, isto é, o territó-
A partir de 1750 viveu-se o último período, rio pertence a um povo, a uma nação. Antes da
que seria de apogeu e crise do sistema colo- Revolução Francesa, os territórios pertenciam
nial. Foi o período mais estudado, e é até inte- às casas reinantes, às dinastias. Daí a forma
ressante ressaltar que duas das obras que são dinástica de legitimização. Por exemplo: Felipe
colocadas como referência para todo o período II era holandês, falava holandês, a língua da
colonial na verdade se referem a esse período: Corte era o holandês, e ele era rei da Espanha.
uma é a “Formação do Brasil Contemporâneo” Era um problema de dinastia, não era um pro-
de Caio Prado Jr., que na verdade fala dessa blema nacional, o rei não tinha que ser nascido
época, e a outra, mais claramente ainda, é “Por- no país.
tugal e Brasil na crise do antigo sistema colo- A adoção da monarquia no Brasil de certa
nial”, de Fernando Novaes, que também fala forma amenizou o fato emancipatório diante da
desse período. Eles não estão falando do sécu- Europa e fez com que as casas reinantes da
lo XVI, mas muita gente considera o que eles Europa, todas elas possuidoras de grandes ter-
escreveram como válido para todo o período ritórios coloniais – caso da Inglaterra, da Fran-
colonial. O período colonial são 320 anos. Em ça –, aceitassem com uma relativa tranqüilida-
320 anos muda muita coisa. Por exemplo: sé- de a independência brasileira. A independên-
culo XVI não tem exclusivismo colonial. cia foi proclamada em 1822 e, em 1825, até
Enfim, a história territorial do Brasil-Colô- Portugal reconheceu a autonomia brasileira.
nia revelou-nos certos momentos, certas con- Grande parte disso está exatamente nessa ques-
junturas que são essenciais e que animam a tão da legitimidade dinástica, porque, do pon-
continuar estudando a história brasileira sob to de vista dinástico, com a manutenção do prín-
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BASES DA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL

cipe português, estas terras, que pertenciam à fia. E daí, volto a dizer: num contexto colonial,
casa de Bragança, permaneceram pertencendo essa leitura geográfica da História é muito
à casa de Bragança, e a independência brasilei- reveladora.
ra passou a ser tratada pela diplomacia interna- Há, nesse sentido, um campo muito grande
cional como uma questão de família. de trabalho para detalhar certas conjunturas,
É um outro elemento que o ponto-de-vista certos lugares, abrindo a perspectiva de uma
geográfico traz para a análise da história. Na Geografia histórica renovada, não nos moldes
verdade, todo esse exercício é uma tentativa de tradicionais, mas sob uma nova visão da pró-
ler a História sob o ponto de vista da Geogra- pria relação Geografia-História.

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