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Resumo
O texto visa apresentar como os números transcendentes podem se rela-
cionar ao cálculo e como são relevantes no desenvolvimento dessa área. Os
números a serem estudados serão o π , o número de Euler e e os números de
Liouville.
Introdução
O conjunto dos números transcen- blema muito complexo no âmbito da
dentes é aquele cujos valores que o matemática, pois conrmar a trans-
compõe são não enumeráveis1 e tam- cendência de um número é muito com-
bém não algébricos, ou seja, são nú- plexa. Um exemplo que vem de forma
meros que não são soluções de qual- automática são os números e + π e
quer equação polinomial de coecien- e · π , pois ambos são compostos por
tes pertencentes à Z. Segundo Euler, números transcendentes, mas mesmo
os números são chamados transcen- assim ainda são problemas em aberto
dentais pois transcendem o poder das sobre suas possíveis transcendências,
operações matemáticas. Exemplos no entanto um deles (ou ambos) é
desses números que serão mostrados transcendente, pois e e π são raízes
são: O número π , o número de Eu- da equação:
ler e e os números de Liouville.2 Este
que exibiu os primeiros números dessa x2 − (e + π)x + e · π = 0 (1)
classe que é tida como innita, visto
que a maioria dos números reais são Veremos que os números de Liouville
transcendentes. É interessante no- terão uma demonstração de que são
tar que o conceito de transcendência sim transcendentes, pois eles foram
foi proposto antes da formulação dos imaginados e construídos para terem
números que são denominados dessa essa característica que foi imaginada e
forma, pois o conceito de enumerabili-apresentada por Joseph Liouville em
dade foi proposto por George Ludwig maio de 1844. Ele desenvolveu uma
Cantor que nasceu em 1845 e os pri- propriedade que era satisfeita por to-
meiros números propostos por Liou- dos os números algébricos, portanto,
ville foram apresentados em 1844. se algum número não satiszesse essa
condição, ele adquiriria um caráter
No fato de que quase todo número real transcendental, desenvolvendo assim
é transcendente, caímos em um pro- os chamados números de Liouville.
1 Um conjunto é denominado enumerável quando a medida do números de elementos do conjunto
é igual à do conjunto N (conjunto dos números naturais).
2 Apesar de ser apresentado nesse trabalho apenas estes números, existem muito mais a serem
estudados.
1
1 O número π
Antes de estudarmos o π como da constante π . Ele propôs que o π
um número transcendente, analise- fosse o comprimento da circunferên-
mos inicialmente como surge esse nú- cia dividido pelo seu raio, portanto,
mero tão importante. Suponhamos quanto mais lados tivesse um polí-
uma circunferência qualquer de raio gono circunscrito nele, mais próximo
R, agora tentemos calcular o compri- do valor da constante chegaríamos,
mento dessa circunferência de maneira portanto, teríamos que π poderia ser
precisa. Para isso inscreva um polí- modelado como:
gono regular de n lados e lado ` tan-
genciando totalmente a circunferência
" s #
1 360
como na Figura 1: π= nR 2 − 2 cos
2R n
n s
n 360
π= 2 − 2 cos
2 n
2
portanto temos que: algorítimos para calculadoras. Exem-
plo de série que converge rapidamente
a · er + b · es + c · et + ... = 0 (2) ao valor de π é a desenvolvida por
Srinivasa Ramanujan (4):
Não pode ser satisfeita se as potências √ ∞
r, s, t, ... forem números pertencentes 1 2 2 X (4k)!(1103 + 26390k)
=
à N e os coecientes a, b, c, ... perten- π 9801 k=0 (k!)4 (3964k )
cerem à Q e serem diferentes de zero. (4)
Em 1882 Ferdinand Lindemann exten- Outra aplicabilidade do π é seu uso
deu o resultado obtido por Hermite para o cálculo de volumes, um exem-
concluindo que: se r, s, t, ... são nú- plo simples é o volume de um cilindro
mero algébricos3 e a, b, c, ... também cuja base possui raio R e possui altura
forem algébricos, em que pelo menos h, desse modo dizemos que o volume
um deles não é zero, então a relação do cilindro é:
(2) nunca é igual à zero.
Pela identidade de Euler V = πR2 h (5)
No entanto, não é só em volumes sim-
eiπ + 1 = 0 (3)
ples que π aparece. Um bom exemplo
temos uma expressão da forma (2) em seria o cálculo do volume de um só-
que as constantes a = b = 1 (algébri- lido de revolução de uma função. Con-
cos) e todos os outros coecientes são forme o capítulo 13 da 6° edição do li-
zero. Portanto podemos escrever: vro "Um curso de cálculo - H. Guido-
rizzi", podemos escrever que o volume
iπ
e +1=1·e +1·e r s de um sólido de revolução de uma fun-
ção y = f (x) qualquer é:
∴ r = iπ
Z b
∴s=0 V =π [f (x)]2 dx (6)
a
Como zero é algébrico e o número i
De maneira análoga, o volume de um
também é, e o valor iπ tem de ser
sólido qualquer cuja área é denida
transcendente para valer a relação,
por A(x) = π[f (x)]2 é dado por
concluímos portanto que π é trans-
cendente.
Z b
V = A(x)dx (7)
a
Agora para responder à segunda per-
Essas relações ajudam no desenvolvi-
gunta, devemos nos sustentar em al-
mento de objetos cujo formato não é
guns conceitos que à luz do cálculo são
simples, mas cujo volume necessita de
essenciais: Séries innitas, integrais e
ser calculado com certa precisão.
limites.
Outro caso que o π se relaciona com
O número π vem sendo estudado
o cálculo é saber se esse número é um
desde a antiguidade pelos egípcios e
número normal, ou seja, um número
babilônios, e até hoje é motivo de es-
real cujos algarismos que o formam
tudos para os matemáticos, pois com
aparecem com a mesma frequência na
esse número, há o desenvolvimento de
sua expansão innta, dessa forma um
séries que convergem cada vez mais
número é normal se e somente se:
rápido ao valor esperado com o maior
número de casas decimais possível que N (s, n) 1
lim = ks (8)
promove um desenvolvimento de mo- n→∞ n b
delos matemáticos cada vez melhores onde b é uma base de numeração do
para realizar cálculos numéricos ex- número (por exemplo a base deci-
tensos. Um exemplo de aplicabilidade mal), s é a sequência de algarismos
dessas séries são o desenvolvimento de do número estudado moldada na base
3 Qualquer número que pertença aos conjuntos R ou C que é solução de uma equação polinomial
de coecientes inteiros.
3
b, N (n, s) a frequência com que a o número π aparece. De maneira mais
sequência s aparece nos primeiros n simplicada ainda, a área abaixo do
algarismos e k o comprimento des- gráco de f (x) = e−x
2
4
2 O número e
De forma totalmente diferente do ideia formal do que aconteceria com a
número π , o número e, ou mais co- expressão (14) quando n "tendesse"a
nhecido como "número de Euler", não innito, ou seja, não havia uma cone-
tem uma origem simples e antiga. xão concisa entre o que seria um lim
x→∞
Os primeiros relatos do aparecimento (limite de x tendendo a innito) e um
desse número segundo Maor (1994, ln(x) (logaritmo natural).
p.16) foi no ano de 1618, na segunda
edição da tradução da obra Mirici Portanto, após o desenvolvimento do
logarithmorum canonis descriptio de cálculo e o seu maior uso durante a
John Napier5 . Segundo Maor, o nú- época, o número e passou a ser cha-
mero e aparece ligado à fórmula do mado de número de Euler e escrito
juros composto: também como e, pois em um de seus
textos, Euler utilizou a letra e para
Ct = C0 (1 + r)t (12)
representar a base de um logaritmo
Em matemática nanceira, é possível natural e por ser um dos matemáti-
encontrar todos os tipos de composi- cos mais importantes da história, a
ção de juros, ou seja, anual, semes- simbologia se manteve. O número foi
tral, trimestral e assim por diante, nalmente denido formalmente atra-
dessa forma podemos realizar o se- vés de Euler quando deniu a função
guinte: suponha que uma composição exponencial e a função logarítmica em
dessas mencionadas seja feita n ve- uma mesma base dada por:
zes durante o ano. Dessa forma, para x n
cada período de conversão, usa-se a e x
= lim 1 + (15)
1n
n→∞
taxa de juros anuais r dividida pelo ln(x) = lim n x n − 1 (16)
número de composições, ou seja, divi- n→∞
dida por n. Consequentemente, como Dessa forma, podemos tirar uma pri-
em t anos existem n · t períodos de meira relação do número e com o cál-
conversão, obtemos: culo: sua denição formal foi apenas
r n·t
desenvolvida através do conceito de
Ct = C0 1 + (13) limites, conceito básico de cálculo.
n
No entanto esse número possui muito
Para estudar a equação (13), foi uti- mais relações com esse conteúdo do
lizado valores am de simplicar a si- que apenas sua denição. Portanto
tuação, tal que r = 1, C0 = R$ 1 e vamos de maneira análoga ao feito
t = 1 ano, ou seja: com o número π responder as seguin-
1
n tes perguntas:
C1 = 1 + (14)
n
a Porque e é considerado um nú-
A partir da equação (14), foi estudado mero transcendente?
o que aconteceria conforme n aumen- b Como esse número se relaciona
tasse arbitrariamente e foi descoberto com o cálculo?
que essa sequência tenderia a um que
mais a frente seria conhecido como Para responder a primeira pergunta,
"Número de Euler". utilizaremos o Teorema de Linde-
mann : Se α1 , α2 , . . . , αn são números
Na época em que Napier, o cálculo algébricos (rever nota de rodapé 3 e
ainda estava sendo desenvolvido por início da introdução) distintos, então
Newton e Leibniz e não se tinha uma eα1 , eα2 , . . . , ααn são linearmente in-
5 John Napier (1550-1617) foi um matemático escocês que cou conhecido como o criador e
desenvolvedor do logaritmo natural (ou logaritmo neperiano), onde foi responsável pela primeira
referência notável no número e (apesar de não saber de sua existência provada).
5
dependentes sobre Q. A partir desse Além disso, quando dizemos que vale
teorema podemos concluir de imedi- (17), temos que a equação da reta tan-
ato que se tomarmos α ∈ Q, α 6= 0, gente calculada no ponto (a, f (a)) é
temos que eα não é um número algé- dada por:
brico, logo e é transcendente. g(x) − f (a) = f 0 (a)(x − a)
Embora pareça um resultado que apa- g(x) = ex (x − a) + f (a)
rece sem mais aprofundamento, a Portanto temos o seguinte caso em que
ideia da prova de que e é transcen- e aparece como muitos resultados:
dente consiste em supor por absurdo
que os valores eα1 , eα2 , . . . , ααn pos- 4
suam uma dependência linear e para
isso é necessário construir uma equa- 3 P = (1, e)
ção algébrica que relaciona uma soma e
de números inteiros que não é divisível
por nenhum número primo suciente- 2
mente grande, dessa forma não sendo Z 1
um inteiro nulo e uma integral que 1 ex dx = e
pode ser estimada e tem limite igual à −∞ g(x)
0 quando se envia um número primo
0
p para o innito. Como essa prova −4 −3 −2 −1 0 1 2 3
é complexa e exige bem mais do que
cálculo 1, ca apenas como informa- Figura 4: Em preto, temos a fun-
ção extra. ção f (x) = ex , em vermelho a área
compreendida no intervalo ] − ∞, 1]
Agora para o segundo questiona- tal que a área é igual à e e em
mento, temos diversos exemplos que
azul a reta tangente ao gráco no
provam a importância de e para o cál-
culo. Primeiramente podemos mos- ponto x = 1 cuja equação é dada
trar as suas singularidades quanto à por g(x) = e · x, em que e é a de-
integrais e derivadas, tal que: rivada de f (x) calculada no ponto
x = 1.
d x
(e ) = ex (17) Um outro caso que envolve e é um
dx
limite fundamental que é usado pra
Z
ex dx = (ex ) + k (18) provar a derivada de ex tal que:
eh − 1
O que representam duas relações cu- lim =1 (19)
riosas da função exponencial de base h→0 h
e, visto que a derivada da função é Mais uma integral essencial para o cál-
ela mesma e a integral indenida desta culo é
também é a menos de uma constante.
Z
1
dx = ln(x) + k (20)
Gracamente temos que a integral de- x
nida da função f (x) = ex nos ex- onde ln(x) é, como vimos no início
tremos de integração ] − ∞, a] a área dessa seção o logaritmo de x na base
abaixo do gráco irá corresponder à e e isso foi um grande resultado, visto
ea , pois: que quando Pierre de Fermat encon-
Z a
a trou que a área abaixo a uma função
x x 1
do tipo α encontrou que
(e )dx = e
−∞ −∞ x
1 a
a−α+1
Z
= ea − 1
∞ α
dx = (21)
|{z} 0 x −α + 1
a
→ 0
porém não encontrava solução quando
=e −α = −1.
6
O número de Euler, analogamente à π passar do tempo.
também é conveniente para ser mol- Uma aproximação para o e é:
dado como séries innitas que conver-
gem ao número e, como em série de e = 2, 718 281 828 459 045 235 360
Taylor: 287 471 352 662 497 757 247 093
∞ 699 959 574 966 967 627 724 . . .
x2 X xn
ex = 1 + x + +··· = (22)
2! n!
n=0
Ou então, para x = 1:
∞
1
(23)
X
e=
n!
n=0
(26)
R
g(t)dt
x = ke +
R Z R
+ e g(t)dt f (t)e− g(t)dt dt
7
3 Os números de Liouville
Por m, temos agora os números 10
resultado da soma é .
de Liouville, estes que são peças cu- 9
Um fato curioso do conjunto dos nú-
riosas da matemática. Joseph Liou- meros de Liouville (L) é que qualquer
ville em 1844 publicou pela primeira número real pode ser escrito como a
vez o que viria a ser um número trans- soma de dois números de Liouville.
cendente e deniu que para que um Isso é interessante uma vez que o
número obtenha essa característica, se conjunto L tem medida nula em R,
as seguintes relações forem satisfeitas:
ou seja, praticamente nenhum número
seja α ∈ R e algébrico de grau n > 1, real é de Liouville, portanto, podemos
então existe uma constante C > 0 tal armar que esses números estão po-
que: sicionados "estrategicamente"na reta
real. Esse resultado foi demonstrado
α − p > C , ∀ p ∈ Q, q > 1 por Paul Erdös em 1962, no artigo
q qn q
(27) Representations of real numbers as
Esse resultado cou conhecido como sums and products os Liouville num-
Teorema de Liouville que determinar bers. Resumindo foi determinado que
se um número α ∈ R, mas α ∈ / Q.
∀ α ∈ R, ∃ σ, τ | f (σ, τ ) = α (30)
No seu artigo, Liouville publicou que:
Seja ξ ∈ R. ξ é denominado como em que f (σ, τ ) = σ+τ . Esse resultado
um número de Liouville se existir uma foi ampliado por Edward B. Burger tal
sequência
innita de números racio- que, sobre certas condições
pj
nais , tal que qj > 1 e
qj j>1 ∃ σ, τ | σ τ = α (31)
pj 1 resultado este que David Caveny, es-
(28) tabelecendo certas condições, mostrou
0 < ξ − < j
qj qj
que σ τ pode também ser transcen-
Apesar de ser um resultado meio que dente.
jogado, ele signica que não existe
um número ξ que satisfaça a qualquer Uma relação que pode vir da de-
equação polinomial de coecientes in- nição (27) é que se um número real
teiros, portanto, ξ não é algébrico, α é aproximável na ordem n ppor su-
logo ξ é um número transcendente, cessões de racionais distintos q pelo
j
j
dessa forma todo número de Liouville limite:
é transcendente.
pj
lim =α (32)
Na história, o primeiro número de Li- j→∞ qj
ouville publicado já possuia uma rela- Números de Liouville não são bem
ção com o cálculo, pois ele foi deter- aproximados por números reais, no en-
minado a partir de uma série innita tanto o caso contrário é possível, como
tal que: visto acima. Um questionamento que
∞ vem a partir das observações acima é:
1
(29) o número π e o número e são números
X
L= = 0, 110001000...
10k! de Liouville? Ou então, todo número
k=1
transcendente é de Liouville?
Esse número é curioso, visto que é A resposta para ambas as perguntas
composto apenas pelos números 0 e 1, é não, pois como L tem medida nula
e o algarismo 1 ocupa posições especí- em R e a maioria dos números reais é
cas que obedecem à ordem 1!, 2!, 3!, transcendente, decorre imediatamente
4!, 5!, 6!, ... e k ∈ N. Nota-se também que nem todo número dito transcen-
que esse número é uma progressão ge- dente é de Liouville, tampouco os nú-
1
ométrica innita de razão e cujo meros e e π .
10
8
Conclusão
Fica claro que os números de Liouville não possuem uma aplicabilidade
concreta, diferentemente dos números e e π . No entanto, o conceito de trans-
cendência de um número, proposto por Liouville é de extrema importância
para a matemática e, consequentemente, para o cálculo ou seja, os números de
Liouville são mais frutos de criações do que números concretamente utilizados
no dia a dia.
Os números de Liouville acabam por se tornarem um conceito que baseia toda
a teoria dos números transcendentes e com isso se relaciona diretamente com
o número de Euler e o π , estes que sim, possuem ampla aplicabilidade e não
são apenas para ns de criação abstrata na matemática, mas sim para o uso
"comum".
Dessa forma, podemos concluir como os números transcendentes são impor-
tantes para que o cálculo se desenvolva e novos resultados que os envolvam
apareçam nas diversas áreas do conhecimento que o utilizam para modelar
seus objetos de estudo.
Referências
[1] Uma abordagem sobre os números de Liouville. Evandro menezes de souza
amarante, 2017.
[2] Jean Lelis Anna Carolina Lafetá, Elaine Silva. Teoria dos números trans-
cendentes: do teorema de liouville à conjectura de schanuel, 2017.
[3] Renata Naoko Corrêa. Cálculo de π , 2016.
[4] Wagner Wilson Pereira de Carvalho. Números transcendentes. 2018.
[5] Elaine Cristine de Souza Silva. Alguns resultados relacionados a números
de liouville. 2015.
[6] Ramon Formiga Figueira. O número de euler, 2017.
[7] H. Guidorizzi. Um curso de cálculo, volume 1. GEN, 6° edition.
[8] Hermes Antônio Pedroso Juliana Conceição Precioso. História do número
e: Gênese e aplicações, 2013.