Você está na página 1de 1

Aula teórica 6

Consequências do axioma do supremo (conclusão):


Propriedades dos racionais e irracionais.

Material de estudo:

[AB] A. Bastos e A. Bravo, Cálculo Diferencial e Integral I. Texto de apoio às aulas, 2010., Cálculo Diferencial e Integral I. Texto de apoio às aulas,.
[CF] J. Campos Ferreira. Introdução à Análise Matemática, Fundação Gulbenkian, 8a ed., 2005.

Consequências do axioma do supremo (conclusão)

Na aula anterior, provámos que, como consequência do axioma do supremo, existe um real positivo, designado por que satisfaz a equação, x = 2, e que não é racional. Ou seja,
√ 2, 2

√ 2 ∈ R ∖ Q. Em particular, isto significa que o conjunto dos irracionais, R ∖ Q, é não vazio. Pelas propriedades seguintes, é imediato que, tal como o conjunto dos racionais Q, também o

conjunto dos irracionais R ∖ Q é infinito:

Proposição: Sejam p, q dois números reais quaisquer.

1. Se p ∈ Q e então p + q ∈ Q e pq ∈ Q.
q ∈ Q,

2. Se p ∈ Q e
q ∈ R ∖ Q, então p + q ∈ R ∖ Q e, se p ≠ 0, pq ∈ R ∖ Q.

3. Se p ∈ R ∖ Q e q ∈ R ∖ Q, então, p + q tal como pq, pode ser racional ou irracional.

Demonstração

1. Seja p ∈ Q e q ∈ Q, ou seja, p = m/n e q = r/s para alguns inteiros m, n, r, s. Então,


m r ms + nr m r mr
p + q = + = e pq = ⋅ = .
n s ns n s ns

Como a soma e produto de inteiros são inteiros, concluímos que, tanto p + q como pq são dados por quocientes de inteiros. Logo, p + q e pq são racionais.

2. Sejam p ∈ Q e q ∈ R ∖ Q. Raciocinemos por absurdo: se r = p + q fosse racional, então, q = r + (−p) seria a soma de dois racionais e portanto, como vimos em 1., seria
racional. Mas, nesse caso, estaríamos a contradizer as condições assumidas. Logo, r tem que ser irracional. Para pq o argumento é semelhante (faça como exercício).
3. Sejam p ∈ R ∖ Q e q ∈ R ∖ Q. Mostremos, com exemplos, que todas as possibilidades podem ocorrer:
Se p = √2 e q = −√2, então, p + q = 0 ∈ Q.
Se p = 2√2 e q = −√2, então, p + q = √2 ∈ R ∖ Q.
Se p = √2 e q = √2, então, pq = 2 ∈ Q.
Se p = 1 + √2 e q = √2, então, pq = √2 + 2 ∈ R ∖ Q.

Destas propriedades, podemos concluir que, para cada racional p existe, pelo menos, um irracional que pode ser dado por p + √2. Ou seja, existem tantos ou mais irracionais que
racionais. Na realidade, prova-se que existem mais irracionais que racionais. Para o fazer, teríamos que considerar aspectos da teoria dos conjuntos relacionados com o conceito de cardinal
de um conjunto, que corresponde à noção de "contagem de elementos" tanto de conjuntos finitos como de conjuntos infinitos. Não o faremos nesta disciplina.

Surge a questão natural de como é que os racionais e irracionais se "distribuem" ao longo da recta real. Para responder a essa questão precisamos de mais uma consequência fundamental do
axioma do supremo que enunciaremos de seguida. Aliás ela é tão intuitiva que o que é surpreendente é que ela não saia directamente da definição dos números naturais e precisemos do
axioma do supremo para a obter:

Teorema: O conjunto dos naturais N não é majorado.

Demonstração

Suponhamos, por absurdo, que N era majorado. Então, pelo axioma do supremo, existiria
s = sup N.

Como s é o menor dos majorantes (relembre a definição de supremo), então s − 1 não seria majorante de N. Isso quereria dizer que havia p ∈ N tal que p > s − 1. Como N é um
conjunto indutivo, sabemos então que p + 1 ∈ N. Mas, por outro lado,
p > s − 1 ⇒ p + 1 > s.

Ou seja, estamos a dizer que o natural p + 1 seria maior que sup N, o que evidentemente contradiz a definição de supremo. Como esta contradicção é consequência de termos assumido a
hipótese de que N era majorado, concluímos que esta hipótese é falsa.

Escolhamos agora arbitrariamente um real ε > 0. Como N não é majorado, sabemos que existem naturais n, m tais que, n > 1/ε e m > √ 2/ε. Mas, nesse caso,

1 √2
0 < < ε e 0 < < ε.
n m

Provámos assim,

Proposição: Qualquer que seja ε > 0 (por mais pequeno que ele seja), tem-se sempre,

Q ∩ ]0, ε[ ≠ ∅ e (R ∖ Q) ∩ ]0, ε[ ≠ ∅

Ou seja, há racionais e irracionais tão próximos de zero quanto se queira.

Tomemos agora dois reais positivos arbitrários a e b. Fazendo ε = b/a, pelo argumento anterior, sabemos que existe n ∈ N tal que 1/n < b/a. Isto tem como consequência evidente
o seguinte importante resultado:

Teorema (propriedade arquimedeana): Dados dois positivos arbitrários a e b existe sempre n ∈ N tal que
na > b.

Esta propriedade assegura a possibilidade de medir qualquer comprimento b, por maior que ele seja, por uma régua graduada em unidades de comprimento a, por menor que seja esta
unidade de comprimento.

Combinando os dois resultados anteriores podemos obter por fim o resultado que procurávamos e que nos esclarece de que forma os racionais e os irracionais se distribuem ao longo da
recta real:

Teorema (densidade dos racionais e dos irracionais na recta real): Dados dois reais arbitrários a, b tais que a < b , tem-se sempre

Q ∩ ]a, b[ ≠ ∅ e (R ∖ Q) ∩ ]a, b[ ≠ ∅.

Ou seja, em qualquer intervalo aberto não vazio, por mais pequeno que ele seja, existem sempre racionais e irracionais. É claro que isto implica que, em cada intervalo aberto não vazio
existam, na realidade, infinitos racionais e infinitos irracionais.

Demonstração

Vamos demonstrar só para o caso 0 < a < b. É fácil ver que os outros casos se podem obter a partir deste.

A ideia da demonstração é simples e geométrica: começamos por considerar a "translação" do intervalo ]a, b[ para a origem: sendo ε = b − a o comprimento do intervalo, consideremos
então o intervalo ]0, ε[. Pela proposição enunciada atrás, sabemos que existem

p ∈ Q ∩ ]0, ε[ e q ∈ (R ∖ Q) ∩ ]0, ε[.

Em seguida, provamos que multiplicando estes números por naturais adequados conseguimos "transportá-los" para o intervalo ]a, b[. Para isso, sabemos pela propriedade arquimedeana
que existem naturais n, m tais que
np > a e mq > a.

Como qualquer subconjunto não vazio de naturais tem mínimo, podemos considerar que n, m são os menores naturais que satisfazem aquelas desigualdades, ou seja,

(n − 1)p ⩽ a e (m − 1)q ⩽ a.

Mas então,
np = (n − 1)p + p ⩽ a + p < a + ε = a + (b − a) = b.

Ou seja,
np ∈ ]a, b[,

o que nos permite concluir que Q ∩ ]a, b[ ≠ ∅. De igual modo, obtemos mq ∈ ]a, b[ (faça como exercício). Concluímos então também que (R ∖ Q) ∩ ]a, b[ ≠ ∅.

Consequências da densidade de Q e de R ∖ Q em R. Exemplos.

Identificar inf , sup, min, max dos conjuntos dados abaixo.


Usar, para além dos resultados vistos atrás, as definições e as relações vistas noutra aula entre inf e min, por um lado, e sup e max, por outro. Por exemplo, relembre que

p = max A ⇔ (p ∈ A ∧ p  é majorante de A )

p = max A ⇒ p = sup A

( p = sup A ∧ p ∈ A) ⇔ p = max A.

1. A = [0, 1[ ∩ Q. Como 0 é minorante de A, e 0 ∈ A, por definição, temos min A = 0 e, portanto, inf A = 0.


Obviamente 1 é majorante de A e é o menor deles. De facto, se 0 < p < 1, então existe um racional em ]p, 1[, o qual é, portanto, um elemento de A maior que p, e logo, p não
seria majorante de A. Logo, sup A = 1. Como 1 ∉ A concluímos que A não tem máximo.

2. B = [0, 1[ ∖ Q (obviamente equivalente a B = [0, 1[ ∩ (R ∖ Q)). 0 é obviamente um minorante de B e é o maior deles. De facto, se considerarmos 0 < p < 1, existe um irracional
em ]0, p[, o qual será portanto um elemento de B menor que p, e logo, p não seria um minorante de B. Logo, por definição, inf B = 0. Como 0 ∉ B (por não ser irracional),
concluímos que B não tem mínimo.
Como 1 é obviamente um majorante de B e é o menor deles (justifique!) concluímos que sup B = 1. Como 1 ∉ B, o conjunto B não tem máximo.

3. C = [0, 1] ∪ {√ 2} ∪ {−1}. Como, −1 e √2 são, respectivamente, um minorante e um majorante de C, e, além disso, são também elementos de C , concluímos que min C = −1 e
max C = √ 2. Logo, como consequência, inf C = −1 e sup C = √2.

4. D = C ∩ Q. Justifique, em primeiro lugar, que max D = 1 , e que, portanto, sup D = 1. Justifique, de igual modo, que min D = −1 e que, portanto, inf D = −1.

5. E = C ∖ Q. Justifique, em primeiro lugar que, max E = √ 2, e, portanto, sup E = √ 2. Justifique que inf E = 0, e que E não tem mínimo.

1
6. F = { : n ∈ N}. Este problema é diferente dos anteriores uma vez que o conjunto dado não envolve intervalos (!). Obviamente que sup F = max F = 1.
n

Para vermos o ínfimo, notemos que qualquer que seja n ∈ N, > 0, e portanto, 0 é um minorante de F . Por outro lado, já vimos que, para qualquer p > 0, existe n ∈ N tal que
1

< p. Logo, 0 é o maior dos minorantes de F e, portanto, inf F = 0. Como, 0 ∉ F , concluímos que F não tem mínimo.
1

Você também pode gostar