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Aula teórica 3

Os números naturais. O método de indução matemática.

Material de estudo:

[AB] A. Bastos e A. Bravo, Cálculo Diferencial e Integral I. Texto de apoio às aulas, 2010., Cálculo Diferencial e Integral I. Texto de apoio às aulas,.
[CF] J. Campos Ferreira. Introdução à Análise Matemática, Fundação Gulbenkian, 8a ed., 2005.

Os números naturais.

Começemos por introduzir um subconjunto especial de R: o conjunto dos números naturais, N. Se vos perguntarem o que são os números naturais vocês vão dizer que são os números
1, 2 = 1 + 1, 3 = 2 + 1, 4 = 3 + 1, 5 = 4 + 1, … Como o conjunto dos naturais é infinito, por mais naturais que escrevamos nunca vai ser possível enumerá-los todos. Por isso,
recorremos aos pontinhos "…". Do ponto de vista intuitivo é claro o que é que os pontinhos querem dizer, mas matematicamente não tem significado, a menos que escrevamos uma
expressão (ou uma proposição) que, de uma forma precisa sem ambiguidades, nos caracterize todos os elementos de N, não só apenas um subconjunto finito, como fizemos atrás (em rigor,
só dissemos que os números 1, 2, 3, 4, 5 são naturais).

Para definirmos o conjunto dos números naturais N começemos por introduzir o seguinte conceito:

Definição: Um conjunto A ⊂ R diz-se indutivo se,

1 ∈ A ,
x ∈ A ⇒ x + 1 ∈ A.

A segunda propriedade é conhecida também como propriedade hereditária.

Exemplos de conjuntos indutivos são:


+
R, R , {1} ∪ [2, +∞[, {1, 2} ∪ [3, +∞[, {1, 2, 3} ∪ [4, +∞[.

Exemplos de conjuntos não indutivos são, qualquer conjunto com um número finito de elementos, R , o conjunto dos inteiros pares e o dos inteiros ímpares, qualquer intervalo [a, b] com b −

finito.

Vejamos agora, por exemplo, o número 3. Se A é um conjunto indutivo, então 3 ∈ A, porque 1 ∈ A ⇒ 2 = 1 + 1 ∈ A ⇒ 3 = 2 + 1 ∈ A. Este raciocínio é válido para 2, 4, 5, 6 ou
qualquer outro número que queremos incorporar no conjunto dos números naturais. Ou seja, vamos querer que N esteja contido em todos os conjuntos indutivos. Por outro lado, não
queremos, em N, mais números do que os que são obtidos desta forma. Isto motiva a seguinte

Definição: Define-se o conjunto dos números naturais como,


N = intersec ção de todos os conjuntos indutivos.

Reparem então que se A é indutivo, então N ⊂ A, fazendo de N o menor conjunto indutivo possível.

Como 1 > 0, então p ∈ N ⇒ p > 0 , ou seja,


+
N ⊂ R ⊂ R.

O método de indução matemática.

Este método resulta da definição de N dada atrás. Seja A um conjunto de naturais (A ⊂ N). Suponhamos que provamos que este conjunto é indutivo. Então, pela definição atrás, N ⊂ A.
Concluimos então que A = N. Seja agora, P (n) uma proposição, para cada valor da variável natural n (uma fórmula, uma desigualdade, etc.) Queremos certificamo-nos de que o conjunto
A dos naturais n que fazem com que esta proposição é verdadeira é mesmo todo o N. Então, para isso, basta provar que A é indutivo, ou seja, P (1) é verdadeira (ou seja, 1 ∈ A) e

P (n) ⇒ P (n + 1) (ou seja, n ∈ A ⇒ n + 1 ∈ A).

Podemos enunciar então:

Teorema (método de indução matemática): Seja P (n) uma proposição, para cada n ∈ N. Se,

P (1) é verdadeira,
P (n) ⇒ P (n + 1), para cada n ∈ N,

então P (n) é verdadeira, para qualquer n ∈ N.

A afirmação "P (1) é verdadeira" designa-se por base de indução.

Para provar a segunda parte, assumimos que, para um valor de n, P (n) é verdadeira - Hipótese de indução. Provamos, em seguida, que essa hipótese implica que P (n + 1) é também
verdadeira - Tese de indução.

Exemplo 1: Já conhecem o conceito de sucessão do Ensino Secundário. Seja x uma sucessão dada por recorrência da seguinte forma: n

x 1 = 20,
{
x n+1 = 2x n , n ∈ N.

Depois de experimentarmos alguns valores, n = 2, 3, 4, …, conjecturamos que é verdadeira a expressão x n = 10 ⋅ 2


n
, para todo n ∈ N. Queremos provar que assim é. A afirmação P (n) é
"x = 10 ⋅ 2 ". Então:
n
n

P (1) é verdadeira: x 1 = 20 = 10 ⋅ 2
1

P (n) ⇒ P (n + 1) :
Hipótese de indução P (n): x n = 10 ⋅ 2
n
.
Tese de indução P (n + 1): x n+1 = 10 ⋅ 2
n+1
.

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então,


n n n+1
x n+1 = 2x n = 2(10 ⋅ 2 ) = 10 ⋅ 2 ⋅ 2 = 10 ⋅ 2 .

Logo, a tese resulta verdadeira.

O método de indução matemática é útil também para definir termos por recorrência como, por exemplo, o factorial de n:

0! = 1,
{
(n + 1)! = n!(n + 1) .

Exemplo 2: Seja y uma sucessão dada por recorrência da seguinte forma:


n

y 1 = 2,
{ yn
y n+1 = − , n ∈ N.
n

n−1
2 ⋅ (−1)
Provemos por indução que y n = , para todo n ∈ N. Seja esta propriedade a proposição P (n)
(n − 1)!

0
2 ⋅ (−1)
P (1) é verdadeira: y 1 = 2 = (não esquecer: 0! = 1.)
0!

P (n) ⇒ P (n + 1) :
n−1
2 ⋅ (−1)
Hipótese de indução P (n) : yn = .
(n − 1)!

n
2 ⋅ (−1)
Tese de indução P (n + 1) : y n+1 = .
n!

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então,


n−1
2 ⋅ (−1)

n−1 n
yn (n − 1)! 2 ⋅ (−1) 2 ⋅ (−1)
y n+1 = − = − = − = .
n n (n − 1)!n n!

Logo, a tese resulta verdadeira.

Exemplo 3: Mostrar que,


2
1 + 3 + 5 + ⋯ + (2n − 1) = n

Seja esta propriedade a proposição P (n). Provemos que é válida para todo n ∈ N.

P (1) é verdadeira: 1 = 1 2
.

P (n) ⇒ P (n + 1) :
Hipótese de indução P (n): 1 + 3 + 5 + ⋯ + (2n − 1) = n
2
.
Tese de indução P (n + 1): 1 + 3 + 5 + ⋯ + (2(n + 1) − 1) = (n + 1)
2
.

Observe que a soma correspondente à tese obtem-se da soma correspondente à hipótese somando a esta o termo (2(n + 1) − 1). Por exemplo, P (3) é a igualdade 2
1 + 3 + 5 = 3 ,

enquanto que P (4) é a igualdade 1 + 3 + 5 + 7 = 4 . 2

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então,


2
1 + 3 + 5 + ⋯ + (2n − 1) = n

Somemos o termo 2(n + 1) − 1 a ambos os membros desta igualdade:


2 2 2
1 + 3 + 5 + ⋯ + (2n − 1) + (2(n + 1) − 1) = n + (2(n + 1) − 1) = n + 2n + 1 = (n + 1) .

Logo, a tese resulta verdadeira.

No Exemplo 3, seria mais conveniente usar o símbolo de somatório que se define por recorrência:

Definição: Seja a uma sucessão. Então, define-se por recorrência o somatório:


n

1 n+1 n

∑ ak = a1 , ∑ a k = ∑ a k + a n+1 .

k=1 k=1 k=1

A expressão a provar no Exemplo 3 ficaria:


n

2
∑ (2k − 1) = n .

k=1

Como Exercício faça a resolução deste Exemplo com esta notação.

Exemplo 4: Provar
n
n(n + 1)
1 + 2 + 3 + ⋯ + n = ∑k = .
2
k=1

Seja esta propriedade a proposição P (n). Provemos que é válida para todo n ∈ N.

1(1 + 1)
Para n = 1 é verdadeira: 1 = .
2

P (n) ⇒ P (n + 1) :
n
n(n + 1)
Hipótese de indução P (n) : ∑k = .
2
k=1

n+1
(n + 1)(n + 2)
Tese de indução P (n + 1) : ∑k = .
2
k=1

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então, de acordo com a definição de somatório dada atrás e a hipótese,
n+1 n
n(n + 1) n(n + 1) + 2(n + 1) (n + 1)(n + 2)
∑ k = ∑ k + (n + 1) = + (n + 1) = = .
2 2 2
k=1 k=1

Logo, a tese resulta verdadeira.

Exemplo 5: Dado um real r ≠ 1, provar, para todo n ∈ N 0,

n n+1
1 − r
2 n k
1 + r + r + ⋯ + r = ∑r = .
1 − r
k=0

.
1 − r
Para n = 0 é verdadeira: 1 = .
1 − r

P (n) ⇒ P (n + 1) :
n n+1
1 − r
Hipótese de indução P (n) : ∑r
k
= .
1 − r
k=0

n+1 n+2
1 − r
Tese de indução P (n + 1) : ∑r
k
= .
1 − r
k=0

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então, de acordo com a definição de somatório dada atrás e a hipótese,
n+1 n n+1 n+1 n+1 n+2
1 − r 1 − r + r (1 − r) 1 − r
k k n+1 n+1
∑r = ∑r + r = + r = = .
1 − r 1 − r 1 − r
k=0 k=0

Logo, a tese resulta verdadeira.

Duas observações importantes:

1. Povar que P (n) ⇒ P (n + 1) para todo n ∈ N não é suficiente! Por exemplo, seja P (n) a afirmação n = n + 1 a qual é obviamente falsa, qualquer que seja n. No entanto, somando
1 a ambos os membros da igualdade obtemos n = n + 1 ⇒ n + 1 = n + 2, ou seja, P (n) ⇒ P (n + 1).

2. Para provarmos que P (n) é verdadeira para todo n ⩾ n , fixado n ∈ N , começamos por verificar P (n ) e provamos P (n) ⇒ P (n + 1) como antes, mas considerando n a partir
0 0 0 0

de n .
0

Exemplo 6: Desta vez a afirmação P (n) é uma desigualdade:


n
2 ⩾ n + 1,

Para n = 1 é verdadeira: 2 1
⩾ 2.

P (n) ⇒ P (n + 1) :
Hipótese de indução P (n): 2
n
⩾ n + 1 .
Tese de indução P (n + 1): 2
n+1
⩾ n + 2 .

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n. Então,


n n+1
2 ⩾ n + 1 ⇒ 2 ⩾ 2(n + 1) = 2n + 2.

Observem que o último membro não corresponde ao segundo membro da expressão da tese onde queremos chegar. No entanto, podemos usar a propriedade transitiva, para obtermos
a tese. Para isso comparamos os segundos membros da tese e da expressão anterior e vemos que precisamos da desigualdade
2n + 2 ⩾ n + 2.

Mas, pela lei do corte, esta expressão é equivalente a n ⩾ 0 que é obviamente verdadeira. Então,
n+1 n+1
2 ⩾ 2n + 2 ∧ 2n + 2 ⩾ n + 2 ⇒ 2 ⩾ n + 2,

e a tese resulta verdadeira.

Este último exemplo é um caso particular da seguinte importante desigualdade conhecida como desigualdade de Bernoulli, para a > 0 fixo:
n
(1 + a) ⩾ 1 + na,

para qualquer n ∈ N. Exercício: mostre o caso a = 2, ou seja, 3 n


⩾ 2n + 1.

Exemplo 7: Outra desigualdade:


n
n! ⩾ 2 , para n ⩾ 4.

Para n = 4 é verdadeira: 4! ⩾ 2 4
⇔ 24 ⩾ 16.

P (n) ⇒ P (n + 1) para n ⩾ 4:
Hipótese de indução P (n): n! ⩾ 2
n
.
Tese de indução P (n + 1): (n + 1)! ⩾ 2
n+1
.

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n ⩾ 4. Então,


n n n
n! ⩾ 2 ⇒ n!(n + 1) ⩾ 2 (n + 1) ⇒ (n + 1)! ⩾ 2 (n + 1).

Observem que novamente o último membro não corresponde ao segundo membro da expressão da tese onde queremos chegar. Tentemos usar novamente a propriedade transitiva.
Provemos para isso que é verdadeira a desigualdade
n n+1
2 (n + 1) ⩾ 2 .

Mas esta resulta rapidamente da lei do corte: aquela expressão é equivalente a n + 1 ⩾ 2 o que é universal. Concluimos então pela propriedade transitva que
n n n+1 n+1
(n + 1)! ⩾ 2 (n + 1) ∧ 2 (n + 1) ⩾ 2 ⇒ (n + 1)! ⩾ 2

Logo, a tese resulta verdadeira.

Exemplo 8: Provar que 4 n


− 1 é múltiplo de 3, para qualquer n ∈ N.

Para n = 1 é verdadeira: 4 − 1 é múltiplo de 3.

P (n) ⇒ P (n + 1) :
Hipótese de indução P (n): 4
n
− 1 é múltiplo de 3.
Tese de indução P (n + 1): 4
n+1
− 1 é múltiplo de 3.

Suponhamos então que a hipótese de indução é verdadeira para certo n ⩾ 1. Então,


n+1 n n n
4 − 1 = (1 + 3)4 − 1 = (4 − 1) + 3 ⋅ 4

é múltiplo de 3. Logo, a tese resulta verdadeira.

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