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AGENDA ANTI-RACISTA E PEDAGOGIAS DECOLONIAIS: ALTERNATIVAS PARA DES-

APRENDER E RE-APRENDER NO AMBIENTE ESCOLAR

CLAUDIA MIRANDA (UNIRIO; UFRJ)

Para dar início ao proposto, como conversa entre pares, gostaria de assumir duas dimensões
chaves para entendermos algumas alternativas possíveis de ampliação do escopo exigido
para propostas pedagógicas significativas em contextos multiculturais. A primeira dimensão
relaciona-se com as/os profissionais gestoras/es e professoras/es em exercício, por valorizar
o campo de atuação, além da situar a vocação que tem a escola como ambiência de
pluralidade, de diversidade de sujeitos, ideias e projetos. A oportunidade de coordenar um
subprojeto (Pedagogia Ensino Médio) do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência
(CAPES) nos últimos sete anos, ampliou as lentes por onde observo os contornos do
cotidiano vivenciado com estudante e diferentes profissionais que animam as práticas
curriculares. Agrego a essa experiência, o vínculo com os sistemas de ensino no Rio de
Janeiro (Secretaria Estadual e Secretaria Municipal de Educação) por 16 anos, ensinando
língua estrangeira (Espanhol).

Em outros termos, destacaria a urgência de recomposição das trajetórias docentes e


a condição de aprendermos desse acúmulo. Ganha relevo, portanto, um segmento
responsável pela sustentação de uma esfera fundamental para a promoção de ideias e de
construção de conhecimentos. Nessa abordagem, o caminho trilhado ganha novo status pela
multiplicidade acima mencionada.

A VIII Edição do Congresso de Educação Básica - COEB 2019, nos convoca a pensar as
tramas que envolvem a composição identitária de profissionais de destaque no contexto
social. As formas de identificação com o fazer docente, as alternativas pedagógicas e,
ainda, pensar sobre as outras vias de atuação com as populações escolarizadas. Podemos
localizar as pistas lançadas desde o ano de 2011 e que indicam as bases dessa proposta de
formação e intercâmbio de ideias e iniciativas. Uma proposta que toma como trilha um
arco-íris de possibilidades e nele, os modos de conceber práxis emancipatórias se
refletem. Um dos objetivos apresentados é “ampliar as discussões sobre as relações que
envolvem as singularidades e pluralidades das aprendizagens nos contextos educacionais, e
considerando a constante reflexão sobre os processos de formação”.

Sob essa perspectiva, podemos afirmar que o fórum vislumbra avançar com o debate
que inclui “discussões que (re)definam diretrizes educacionais”, para o “reconhecimento do
direito à educação para todos, como condição primordial no processo de formação e
exercício da cidadania”. Ao mesmo tempo, quando observamos o esforço coletivo de
reservar espaços de proposição, de análise e de sugestões, para o incremento do trabalho na
educação básica, é possível conceber outras questões mobilizadoras, como é o caso da
valorização dos saberes que os diferentes percursos promovem na vida dos atores sociais.
Incluímos nesse mosaico as travessias discentes e docentes.

Interessa-nos discorrer sobre os saberes adquiridos no ir e vir da comunidade escolar.


Somado a isso, preocupamo-nos com outras percepções sobre as memórias desses
acontecimentos. E com o acúmulo alcançado, no processo de profissionalização e formação
em serviço, faz sentido revermos interseções desconsideradas. Além da certificação que se
recebe como estudantes, nosso “tempo de escola” – seja como secundaristas,
universitários/as ou como profissionais -, se constitui como uma chave analítica revigorante.
Isso porque assumo uma perspectiva onde a jornada de trabalho tende a redimensionar o
olhar para compreendermos os principais desafios a serem enfrentados.

Assumir o leque de possibilidades desse mosaico, é reconhecer “a abrangência das


práticas”. Sendo assim, o esforço é por problematizar os saberes advindos da escola e, em
linhas mais gerais, dar ênfase para as representações sobre o desenho que desenvolvemos
no contrato didático estabelecido. Algumas perguntas que orientam essa análise são:

1.Como a formação recebida nos convoca a assumir a complexidade educacional por


conta das múltiplas expressões culturas do país?
2.No percurso que fazemos deixamos alguém pra traz?
3.Se deixamos alguém é possível reinventarmos as nossas práticas?
4.Quais sujeitos estão afetados com essas lacunas?
5.Quais pistas os nossos memoriais nos dão sobre a ausência de reflexão sobre os
segmentos invisibilizados no percurso?

Essa é uma das brechas para promovermos des-aprendizagens e re-aprendizagens


incluindo os sujeitos, as instituições e projetos menos unívocos e mais interpenetráveis de
transposição/mediação didática.

Entende-se com Miranda e Riascos (2016. p.570) que as alternativas terão que partir
da escuta sensível no sentido de rever os processos instituídos e o que não conseguimos
instituir como prioridade. E a partir dessa conformação, o próximo passo seria promovermos
o debate sobre descolonização de nossos corpos e de nossas práticas discursivas. Fazer
novas perguntas sobre o percurso favorecerá essa novas posturas. Afinal, o que é urgente
des-aprender para re-aprender dos currículos que movimentamos como partícipes da
transposição didática?

Com isso, já poderíamos incluir a seleção do conhecimento transformado em


currículo como a segunda dimensão para localizarmos outras pistas para a ressignificação de
agendas objetivando concepções curriculares antirracistas. Em um universo privilegiado,
como é o universo escolar, é possível identificarmos propostas que refletem interseções com
o pensamento decolonial latino-americano, e é preciso considerar as iniciativas que foram
pautadas na solidariedade e na cooperação.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), divulgados no final da década de 1990,


apontaram alguns objetivos de destaque ao assumir, como um dos seus temas transversais,
a “pluralidade cultural”. Essa proposição fez parte de um período sócio histórico marcado
pelos debates sobre diversidade e currículo, e refletiu uma possibilidade de revisão das
abordagens adotadas em contextos multiculturais, como é o caso do Brasil e de toda a
região. Nessa etapa, comprometemo-nos com diretrizes mais coerentes, algo a ser avaliado
como consequência do exame das “insuficiências curriculares”. Ao mesmo tempo, esbarra,
nessa lacuna histórica, a formação recebida via um conjunto de conteúdos selecionados para
a transposição/mediação didática, em diferentes níveis. De certo, somos parte de um Sul,
mas frutos de arranjos para forjar identidades voltadas para o Norte.

Na perspectiva de Catherine Walsh (2013,p.19) pedagogias decoloniais são


entendidas como “metodologias produzidas em contextos de luta, marginalização,
resistência [...]; pedagogias como práticas insurgentes que fissuram a
modernidade/colonialidade e tornam possível outras maneiras de ser, estar, pensar, saber,
sentir, existir e viver com” (WALSH, 2013, p. 19). Na visão de Miranda e Riascos (2016,
p.570), “é preciso explorar os vínculos entre o “pedagógico” e o “decolonial” percebendo a
inclusão de experiências que se definem no caminho percorrido [...]. Assim, será possível
reunirmos proposições metodológicas que tendem a promover outras percepções.

Sigo alinhada com as teses acima sobre as saídas possíveis para nossa intervenção
com agendas de “emancipação curricular” e, ao considerarmos o caso brasileiro, nosso
ponto frágil envolve análises acerca das supremacias ideológicas. O tema da branquitude é
uma das pontas soltas que explica alguns entraves perceptíveis nas relações denominadas
como “relações raciais”. Para Miranda e Passos (2011, p.17) importa examinar os processos
históricos em que a branquitude1 é formada. As autoras a definem como “um constructo
ideológico de poder, em que os brancos tomam sua identidade racial como norma e
padrão”. Não obstante, destacam o fortalecimento dos movimentos sociais e dos estudos
críticos da branquitude à brasileira, nas duas últimas décadas. Avaliam que é necessário,
partindo de uma crítica a esse lugar hegemônico - da branquitude -, problematizar essas
relações construídas como bloco de pensamentos homogêneos. De certo, a defesa a ser
feita, diante de dados da realidade, é de outros eixos passam a recompor nossa
compreensão do mundo vivido. Outras epistemes entram em disputa e entender os atritos
de um processo já em curso que se dá de modo interrelacional e nas gretas, é inevitável.

Consequentemente, esbarramos nas ideologias e estruturas vigentes por ser essa


uma condição humana. Ou seja: coabitamos os espaços sociais e precisaremos do confronto
de ideias como oxigênio. Agendas anti-racistas podem ser retomadas, brechas nas quais
ampliarmos o leque de opções metodológicas e de interpretação de nossa realidade como um
contexto multicultural e por onde facilitamos outras insurgências corpóreas.

Um passo a ser dado, no diálogo sobre des-aprendizagens e re-aprendizagens, é


justamente reconduzir nossa compreensão sobre as ações que adotamos pela via de uma
práxis dialógica com as/os estudantes interlocutoras/es e com os pares que atuam nesse
acontecimento. Podemos recuperar episódios de uma suposta “linha do tempo” para
entender como, individualmente e coletivamente, optamos pela comunidade escolar
quando não abandonamos as agendas mais desafiadoras.

A professora Silvia Cusicanqui (2015) insiste com a proposta de ações anticoloniais


quando estuda as memórias das populações que compõem o mundo andino. A “sociologia
das imagens” é vista como uma metodologia original por ser um deslocamento vital além de
ser experimentação pedagógica de insubordinação. A partir dela, rememora os caminhos
percorridos sem censura e por isso inclui episódios de fracasso, de desajustes, dissonâncias

1 Alguns estudos se tornaram referência para reorientar os fóruns sobre desigualdades raciais tais
como Pizza, 2002; Bento & Carone, 2003; Wore, 2004; Cardoso, 2008; Sovik, 2009.
por serem estas parte das travessias realizadas. São alegorias e marcas refletidas nos
materiais recuperados por Cusicanqui. Fazem parte das estratégias de combate “contra os
limites da escritura alfabética para reconectar com os rios profundos da vitalidade
anticolonial” (2015, p.8).

A meu ver, os memoriais escritos por educadoras/es - e já conhecidos via as


pesquisas sobre narrativas e memórias das/os profissionais da área - são pontos de apoio
para as realocações que defendo quando proponho, juntamente com Catherine Walsh, des-
aprendizagens e re-aprendizagens de si e do coletivo. É importante fazermos esse debate e
desmontarmos impressões e estigmas que promovem degenerescência identitária e afetam
as formas pelas quais animamos o cotidiano. Tais estigmas destroem possibilidades de
valorizarmos a caminho já trilhado na contracorrente, na maioria dos casos. Essa é uma
consequência que afeta a micro sociedade “escola”. Desprezamos a experiencia acumulada
e invisilibizamos alternativas de intervenção.

Numa proposta pedagógica anticolonial os resquícios de memória precisam insurgir,


como propõe Cusicanqui. Em outros termos, a escola é locus de formação e não o “outro”
da universidade; é universo de possibilidades coletivas e emancipatórias. Portanto, é nesse
acontecimento comunitário que nos constituímos e desenvolvemos metodologias potentes
para o trabalho de confrontar-nos com nossas insuficiências e apoiar práticas
descolonizadoras incidindo com amplas estratégias de recomposição identitária da
comunidade. Isso porque existem outros destinos para além do Norte e, os arranjos que
moldam identidades colonizadas, já podem ser vistos a olho nu.

Defender agendas anti-racistas, portanto, implica em olharmos as zonas periféricas e


os seus sujeitos. Implica em reavaliações diárias das percepções das relações sociais nas
quais somos partícipes. Não avançaremos nesse processo, se não recomeçarmos
individualmente, micro revoluções. É imperativo descolonizar o corpo e a consciência para
enxergar as outras epistemologias. São saberes advindos de outras brechas e essa é, sem
dúvida, a questão mais desafiadora para quem é do Sul e ainda tem o Norte como destino.

BIBLIOGRAFIA

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CUSICANQUI, Silvia Rivera. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
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raciais. Sociedade Brasileira de Sociologia. GT 16, Curitiba, 2011. Disponível em: 29/01/2019.
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interculturalidade: desafios para uma agenda educacional antirracista. Educ. Foco, Juiz de
Fora, v.21, n.3, 545 set. / dez. 2016 p. 545-572.
PIZZA, Edith. Porta de vidro entrada para a branquitude. In.: BENTO, Maria Aparecida Silva &
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Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002
SILVA, Daniele Nunes Henrique; SIRGADO, Angel Pino, TAVIRA, Larissa Vasques. Memória,
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