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Introdução
O presente trabalho tem o objetivo de discutir a existência de repositórios
femininos em instituições arquivísticas. A partir desse propósito, foi realizado um
mapeamento analítico de quatro arquivos brasileiros em busca de verificar
quantitativamente a presença de mulheres entre os titulares dos acervos e analisar
qualitativamente as apresentações biográficas das proprietárias desses documentos
históricos e arquivísticos.
Dessa forma, será levantado reflexões a respeito do espaço destinado as mulheres
no arquivo, o qual apresenta, em sua maior parte, documentos masculinos, fazendo com
que seja possível debater a influência que a instituição arquivística possui na construção
de uma “memória feminina silenciada”. Partindo dessa perspectiva, a busca por
representações sobre mulheres nos arquivos selecionados tomou como modelo o debate
acadêmico sobre memória, arquivo e gênero.
Os arquivos selecionados para a delimitação do campo empírico da pesquisa
foram: o Programa de Arquivos Pessoais do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC), o Arquivo de História e Ciência do Museu
de Astronomia e Ciências Afins (MAST), o Departamento de Arquivo e Documentação
da Casa de Oswaldo Cruz (COC) e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).
A opção pelos quatro arquivos se deu pela pluralidade entre as linhas de acervo
seguidas por eles. Acredito que a diversidade entre as linhas de acervos seja um indicador
1
Graduada em História pela Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC). Graduanda em Ciências Sociais
na Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC) e Mestranda no Programa de Pós-graduação em História,
Política e Bens Culturais (FGV CPDOC).
que nos permita verificar aproximações e distanciamentos entre arquivos de mulheres que
seguiram diferentes trajetórias pessoais e profissionais.
Com essa perspectiva, vale notar que o CPDOC abriga arquivos pessoais de
homens e mulheres com atuação na vida pública brasileira contemporânea, o MAST tem
arquivos de cientistas, técnicos, professores e gestores de ciência e tecnologia, o COC
capta a documentação de cientistas, sanitaristas, profissionais da saúde e técnicos e o IEB
guarda documentos de personalidades da cultura brasileira.
Além disso, o CPDOC, o MAST, o COC e o IEB possuem acervos pessoais,
questão importante para a discussão sobre memória feminina, posto que, segundo a
historiadora francesa Michelle Perrot (1989), a documentação e a memória de mulheres
se expressam mais intensamente em arquivos pessoais, uma vez que os arquivos públicos
em geral calariam as mulheres por privilegiarem a cena pública, espaço por muito tempo
restrito a homens. Nesse sentido, a historiadora afirma que os arquivos pessoais seriam
um espaço mais livre de expressão feminina.
Em vista do exposto, o trabalho a seguir foi dividido em três partes: a primeira
busca debater a relação entre arquivo, memória e mulheres, com o objetivo de questionar
a (in)visibilidade de fundos femininos em instituições arquivísticas. Na sequência, será
apresentado os dados qualitativos e quantitativos extraídos dos fundos e coleções
arquivísticas dos quatro acervos analisados, estes disponíveis nos sites das bases de dados
e guias de cada arquivo. Por último, foi realizado uma síntese dos dados em conjunto com
uma breve discussão sobre a importância do debate sobre gênero e arquivo para o campo
das Ciências Humanas, sobretudo no cenário brasileiro, uma vez que esforços voltados a
essa questão ainda estão incipientes.
No mais, por querer, de certo modo, recuperar a importância da memória das
mulheres, esse trabalho também se propõe a dar visibilidade aos repositórios femininos
presente nos arquivos, identificando e reconhecendo o nome dessas personagens.
2
Acesso em <http://www.revistas.usp.br/rieb/issue/view/10898/1516>
3
Acesso em <http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/issue/view/81/32>
demonstrando, portanto, um jogo complexo entre memória, saber e poder. Portanto, é
válido reforçar o caráter empoderador dos arquivos na sociedade, uma vez que a
instituição apresenta um importante papel social assim como os documentos sob sua
tutela.
4
Texto extraído da Política do Acervo (2015). Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/acervo/arquivospessoais/politicaacervo. Acesso em 04. Mai. 2020.
5
Texto extraído da Política de Aquisição e Descarte de Acervos (2011). Disponível em
http://www.mast.br/images/pdf/politica_de_aquisicao_e_descarte.pdf. Acesso em 23. Mar. 2020.
de “cientistas, sanitaristas, profissionais da saúde e técnicos, cujas trajetórias
contribuíram para a história das ciências e da saúde, que cobrem registros documentais
do final do século XVIII até os dias atuais”6. O Arquivo do IEB, por outro lado, se
aproxima da categoria da literatura, mas não se limita a essa, combinando “personalidades
ligadas a diversas áreas do conhecimento, refletindo a multiplicidade da cultura
brasileira”7.
Partindo dessa perspectiva, é possível perceber que o encantamento por esses
documentos pessoais reflete um contexto marcado por significativas mudanças nas
Ciências Humanas, em específico no campo da História e da Arquivologia, onde emergiu
a necessidade por novas fontes, objetos e metodologias para a pesquisa acadêmica
(GOMES,1998; GONÇALVES, 2007 e 2015).
Uma das estratégias traçadas para rastrear memórias de mulheres, proposta por
Michelle Perrot (1989), é a de perscrutar arquivos privados, uma vez que arquivos
públicos em geral silenciam as mulheres por privilegiarem a cena pública, espaço por
muito tempo restrito a homens.
Esses arquivos seriam compostos por materiais como diários íntimos, anais do lar
e correspondências familiares. Esse tipo de documentação sofreria um processo de
autodestruição e desvalorização externa, porém, já que tanto as próprias mulheres
poderiam avaliar os documentos como inúteis, quanto suas famílias, que poderiam não
ter o cuidado de conservar os materiais.
É possível inferir, a partir da argumentação de Perrot acerca dos descartes
documentais, que no caso das mulheres há uma seleção específica, relacionada à condição
feminina, que é realizada em um momento anterior à seleção de instituições arquivísticas.
Nesse sentido, os arquivos pessoais femininos passariam por um crivo triplo:
primeiro pela autocrítica, depois pelo filtro familiar, e após pelos critérios dos
profissionais responsáveis por selecionar arquivos adequados às linhas de acervos. Além
disso, não se deve perder de vista que a caracterização de quais documentos devem ser
mantidos pelas instituições arquivísticas passa pelas dinâmicas historiográficas de quais
6
Texto extraído do Manual de Organização de Arquivos Pessoais (2015). Disponível em:
http://www.coc.fiocruz.br/images/PDF/manual_organizacao_arquivos_fiocruz.pdf. Acesso em 12. Abr.
2020.
7
Texto extraído de publicação no site sobre o Guia do IEB. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/guia-
ieb-2/. Acesso em 04. Abr. 2020.
personagens e narrativas estão sendo estudados. Logo, há uma “retroalimentação” entre
as seleções arquivísticas e historiográficas.
Assim, tendo em mente a importância de visibilizar a memória feminina, a seguir,
será apresentado um mapeamento analítico de quatro acervos que abrigam arquivos
pessoais, com o objetivo de realizar comparações a partir das formas quantitativa e
qualitativa sobre a maneira como se manifesta a presença feminina nesses registros. A
análise quantitativa será construída diante da verificação do número de arquivos pessoais
femininos conservados nos acervos, ao passo que a análise qualitativa se manifestará por
meio da investigação sobre a forma como os textos que apresentam os conjuntos
documentais trazem as titulares femininas.
8
Texto extraído de publicação no site sobre o Guia do IEB. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/guia-ieb-2/.
Acesso em 04. Ago. 2019.
Menezes (2001), Lídia Besouchet (2001), Carla Milano (2002), Heloísa Pires Ferreira
(2002), Isa Aderne (2002), Martha e Erico Stickel (2002), Odette de Barros Mött (2002),
Alice Piffer Canabrava (2003), Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (2003), Tarsila do
Amaral (2003), Julita Scarano (2005), Lélia Abramo (2005), Lupe Cotrim Garaude
(2007) e Marta Rossetti Batista (2007).
Dos 21 fundos ou coleções de titulares femininas, 8 estão processados, 11 estão
parcialmente processados e 2 não estão processados.
Vale notar ainda a postura que o IEB tem adotado em relação aos arquivos de
mulheres. Por exemplo, recentemente, em 2017, ocorreu o I Seminário Internacional
Arquivos, Mulheres e Memórias, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)
em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do SESC. O evento buscou estimular
reflexões epistemológicas e metodológicas, de caráter interdisciplinar, acerca dos
desafios e potencialidades dos arquivos de mulheres.
9
Sabe-se que recentemente (dezembro de 2019), o acervo da deputada federal Luiza Erundina foi doado
ao CPDOC, porém essa informação ainda não computada na base online da instituição. Por isso, não foi
contabilizado na totalidade de fundos apresentados nesse trabalho.
10
Acesso disponível em https://cpdoc.fgv.br/acervo/arquivospessoais/politicaacervo
11
Acesso disponível em https://cpdoc.fgv.br/acervo/arquivospessoais/programa
Fundado em 1985 e sendo subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação, o Museu de Astronomia e Ciências Afins, conhecido também como MAST, é
uma instituição pública federal que tem como um dos seus objetivos o investimento na
preservação da memória dos estudos científicos e tecnológicos realizados no Brasil
através dos acervos arquivístico, bibliográfico e museológico - sendo o primeiro deles o
foco principal desta pesquisa.
Sendo oriundo do Observatório Nacional, criado em 1827 para a realização de
pesquisas astronômicas e meteorológicas, o acervo inicial do Museu era composto desses
documentos que vieram das pesquisas produzidas no ON. É importante destacar que o
Observatório Nacional foi fundado por Dom Pedro I com o intuito de estimular os estudos
científicos no país, e o MAST surge para preservar essa memória nacional científica.
O acervo bibliográfico e museológico do Museu com mais de “2300 objetos
precedentes do Observatório Nacional”12 e “diversos livros, dissertações, teses, folhetos,
obras de referência, periódicos, CDs e DVDs”13.
Já acervo arquivístico do MAST conta com 42 arquivos pessoais, sendo o Arquivo
de História das Ciências (AHC) o órgão responsável por preservar e tornar disponível ao
público esse material. No ano de 2014, foi lançada a base de dados online do Museu, a
Zenith, a fim de facilitar o acesso e a visualização do acervo arquivístico da instituição -
já que parte da documentação já encontra-se digitalizada e disponível na plataforma14. O
restante pode ser consultado pessoalmente. Segundo o site do Zenith,
O Arquivo de História da Ciência do MAST é guardião de importantes
arquivos pessoais de cientistas na área de astronomia e ciências afins,
como matemática, física, química, dentre outras, além de acervos
institucionais. Ao longo dos anos, o AHC especializou-se na guarda,
organização e disponibilização de arquivos pessoais de cientistas com
relevantes contribuições para a história da ciência no Brasil. 15
12
http://site.mast.br/hotsite_museologia/index.html
13
http://site.mast.br/hotsite_biblioteca/acervo_bibliografico.html
14
São 18 arquivos digitalizados no total.
15
http://zenith.mast.br/c_home.php
não disponíveis para consulta por ainda estarem em fase de levantamento documental
e/ou elaboração de inventário.
Três deles se encontram digitalizados na base de dados do Zenith e com seus
respectivos inventários também publicado no site oficial do Mast, e os outros dois
restantes apenas com consulta presencial. Todos os arquivos dizem respeito às trajetórias
profissionais de cada uma, e a maior parte não apresenta vinculação com cônjuge, pai ou
qualquer outro representante do gênero masculino como podemos perceber em arquivos
de outras instituições - com exceção do arquivo da Suzana Barros, que cita o marido e o
filho.
A respeito do ano de doação dos arquivos, diferente das outras instituições
arquivísticas, não é possível encontrar essa informação através do site do MAST, apenas
o período contemplado pelos acervos.
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