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/ 5 I
O JUDEU
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
62, Cancella Velha, 62

1866
O JUDEU
ROMANCE HISTÓRICO

POR

CAMILLO CASTELLO-BRANCO

2." VOLUME

EM CASA DE VIUVA MORE — EDITORA


PRAÇA DE D. PEDRO

1866
HARVARD COLLEGE LIBRARY
FROM THE LIBRARY OF
FERNANDO PALHA
DECEMBER 3, 1928

/
O JUDEU

PARTE TERCEIRA

CAPITULO I

Concluiu formatura em canones Antonio José da


Silva por 1726. Seu pae, o eminente jurisconsulto
João Mendes da Silva, contava setenta annos feitos,
e vergara ao peso da idade e da muita e principal
clientela <qae grangeara com o seu talento juridico e
sua estremada honradez. Chamou, por isso, o filho
a coadjuvak) para, mais tarde, o ficar substituindo.
Forçando o engulho e repugnancia que os autos
b O JUDEU

lhe faziam, o recente bacharel abancou no escripto-


rio de seu pae, coagindo o espirito inquieto a pres
tar attenção ás enfadosas exposições consultivas, e
às aridas respostas do velho, que era um poço nas
Instituías de Justiniano e Decretaes.
As tres horas, que Antonio José sacrificava de
cada dia á pratica forense, eram-lhe remuneradas
com a plena liberdade das outras. O uso, que elle
fazia do seu tempo, com quanto desagradasse ao pae,
não lhe era contrariado. Escrevia comedias, vestia de
melhor linguagem umas que tinha urdido no mais
verde dos annos, e architectava outras para refazer
mais tarde. Propensão aprazivel para estudos tinha
uma só : era o theatro, não já modelado pela esco
la franceza, que então dava ao mundo policiado as
regras dramaticas ; mas acostado algum tanto á fei
ção comica de Gil Vicente, com as inverosimeis pe
ripecias de Lopo de Vega e dos filiados á grande e
ainda vividoura escola castelhana. Ponderar e des
criminar a indole litteraria de Antonio José, cogno
minado «o judem seria impertinencia n'esta narra
tiva, onde raro leitor antepõe o lucro da instrucção
ao deleite da curiosidade.
A seu tempo, farei conhecidos, de relance, al
guns passos da breve carreira litteraria do filho de
Lourença Coutinho. Então julgará o leitor do mere
cimento d'elle, sem que o ensinem a destrinçar sys-
temas, escolas, methodos, e centenares de subtilezas
ROMANCE HISTORICO 7

improprias d'este escripto, e aliás importantes a quem


estuda e de mui lustroso tracto para quem as pro
fessa competentemente.
É já sabido que o mais familiar amigo de Anto
nio José da Silva era, desde os alvores da mocidade,
Francisco Xavier de Oliveira, o filho da dilecta ami
ga de Lourença Coutinho.
Silva tinha vinte e um annos quando se formou,
e Oliveira corria então nos dezenove.
O bacharel ficou maravilhado, quando de volta
de Coimbra, encontrou o seu amigo, não mais des-
moralisado que os mancebos da sua geração, mas
muitissimo mais desempoado que todos, em materias
de crença religiosa. Era muito n'este espanto o caso
de ter sido Francisco Xavier educado pelo devotissi
mo fr. Francisco do Menino Jesus, tio d'elle, e mui
to a miudo confessado com o oratoriano Ignacio Fer
reira, e com o conego de Santo Agostinho padre Lou
renço Justiniano, como Lourença Coutinho referia
n'uma das cartas a Sara, escriptas treze annos antes.
Desde os dezeseis annos, o filho do contador-
mór José de Oliveira revelou imperiosa vocação para
a vida dissoluta ; sem embargo, a piedade, os acces-
sos de fervor christão, entremettiam-se nas extrava
gancias do rapaz. Ainda então Francisco Xavier se
confessava todos os mezes, aproveitava quantos jubi
leus a magnanima Santa Sé proporcionava á salvação
das almas, e não consentia a Antonio José a mini
8 O JUDEU

ma galhofa das cousas venerabimdas da igreja catho-


lica-apostolica-romana.
N'esse tempo ainda, época do seu primeiro na
moro, deu elle um irrefragavel testemunho de «ren
deira piedade. Contava elle, cincoenta annos depois,
que tinha, n'aquelle tempo juvenil, um oratorio com
umas vinte imagens de Santos de sua particular es-
•tinia. Entre todos, os mais rogados e importunados
eram Santo Antonio e S. C-onçalo d'Amarante. Uma
ivez, lhes pediu que tocassem o coração tfuma belle-
za rebelde. «Os dous Santos, diz elle, provavelmea-
4e occupados em negocio de mais importância, não
fizeram caso dos meus requerimentos. Despeitado
com o menospreço, atei-os um ao outro, e pul-os
fora do santuario, desterrando-os para debaixo da
minha cama. Como, porém, os não sensibilisasse
com o mau tractamento, visto que a minha deidade
continuava em seus rigores, condemnei-os a desce
rem ao poço ; e logo os fui baixando, com «meaças
de afogal-os, se me não fizessem o favor. Aconteceu
então que a moça me respondeu a muitas cartas,
que lhe eu tinha escripto, e assim salvou as duas
imagens do naufragio ; e eu acreditei que devia aos
dous Santos a minha fortuna. » 1
1 0 extracto é da obra de Francisco Xavier de Oliveira já mui
tas vezes citada: Amusement périodique. O mais que se for dizendo
respeito á vida particular de Oliveira e seus contemporaneos, ainda que
se não demarque o lugar em que a noticia foi colhida, tenha o leitor a
certeza que é quasi sempre exacta cópia do que refere aquella obra.
ROMANCE HISTORICO 9

Outro signal de sua razoavel piedade : Francisco


Xavier embarcou n'um bote para ir á Povoa, cinco
leguas distante de Lisboa, á margem do Tejo. Sur-
prehendeu-o uma borrasca, defronte de Sacavem. O
barco estava já em apuros de mostrar a quilha. Fran
cisco ajoelha e invoca a milagrosa Senhora da Penha.
Quebra o Tento, e consegue o barco abicar a terra.
Assim que chegou a Lisboa, o moço foi á Penha de
França com toda a parentela agradecer á Senhora o
milagre. Fez dizer muitas missas em acção de gra
ças. Deu dinheiro aos frades da casa, e pendurou um
painel que representava o successo. « Este painel, —
diz elle, e nós trasladamos as palavras do devoto pa
ra que algum curioso possa ainda vêr na capella da
Senhora da Penha o ex-voto do cavalheiro d'Olivei-
ra — este painel foi pendurado no muro da igreja, e
creio que ainda lá estará. » i
Estes e outros casos abonavam o espanto de An
tonio José da Silva, quando, na volta de Coimbra,
lhe perguntava :
— Que é feito da tua fé, meu Francisco ?
— Pergunta-me antes o que fez a minha razão,
alumiada pelo estudo — respondia Francisco Xavier.
— Pois que te disse a tua razão a respeito d'a-
quelle painel que exi te vi levar á igreja da Penha?
Lembras-te que me chamaste impio parque eu me
ri do caso?. . . Como foi que a tua razão te fallou?
1 Escrevia em 1751.
10 O JUDEU

— Disse-me que os christãos imitavam os idola


tras n'estes votos de paineis e quejandas offerendas. É
a mesma historia do templo d'Apollo na ilha de Nan-
fio, eregido por Jason, depois que os argonautas se
salvaram d'uma tempestade, ao recolherem-se de Col-
chos. É a mesma usança dos ex-votos no templo
de Hierapolis, o mais milagroso dos deuses syriacos.
É a mesma necedade dos enfermos curados que pen
duravam paineis no templo de Esculapio. Já Hora
cio fallou d'esta costumeira, como sabes da ode 5.* :

. . . Me tabula sacer
Votiva partes indicat húmida
Suspendisse potenti
Vestimenta maris Deo. i

Tibullo tambem costumava, como eu, recorrer


á Deusa em cujo templo se penduravam paineis. 2
— Sabes tu — continuou o moço Oliveira — o
que respondeu o philosopho Diágoras a um sujeito ?
— Nada, não sei.
— O sujeito, apontando-lhe para muitos paineis
de naufragios, á imitação do meu, disse-lhe : « Pre

1 A sagrada parede de que pende o meu votado painel, teste


munha que eu alli pendurei as minhas vestes humidas, em honra
da possante Deus do mar.
2 Nune Dea, nunc suecurre mihi, nam posse mederi
Pinta docet Templis multa tabeliã tuis.
Eleg. mi, liv. i.
ROMANCE HISTORICO 1 f

sumes que os deuses não fazem caso dos negocios da


humanidade. Ora não vês tu este grande numero de
paineis, provando que tanta gente se salvou de nau
fragar, em virtude dos votos feitos aos deuses? » —
Sim, respondeu Diágoras, vejo isso; mas tambem
vejo que os afogados não se fizeram pintar.
— Mas. . . — redarguiu o bacharel Silva — a
que se deve a transformação moral em que te encon
tro ? Quando começaram as tuas duvidas sobre a fé
cega de teu tio fr. Francisco do Menino Jesus?
— Eu te conto. Um dia fui de peregrinação a
Nossa Senhora do Cabo com o padre Antonio Go
mes, e com o doutor José Antunes Cardoso. O pa
dre gostava igualmente do bom e do mau vinho ;
porém, um vinho, que lá lhe deram para dizer a
missa, era tão mau, que o padre, quando estava a
desparamentar-se na sacristia, soltou estas colericas
palavras : « O vinho do calix tinha um sabor de to
dos os diabos ! Meus amigos, recommendo-vos que
não bebaes vinho ao jantar, a não vos darem algum
que não seja d'aquelle que eu consagrei. » Aqui tens
tu como e quando principiaram as minhas duvidas
sobre o dogma da transubstanciação. Parece incrivel
que tão pouco ar levantasse tamanha tempestade no
meu espirito! Entrei a pensar como aquelle vinho,
que era vinagre, se transformara em sangue de Chris-
to! Confessei-me d'isto, porque me atormentavam
os escrupulos. Os confessores, todos á uma, medis
IS * JUDEU

seram que o demonio entrara em tentação commigo.


Quando commungava, assal ta va-me a -suspeita de que
■eu engolia um bocado èe obreia ! Depois, quando
fechava as cartas, punha-me a olhar para as obreias,
e a dizer : « Quanto vos lamento, minhas pobres
obreias ! Um padre transformar-vos-toia em Deus, e
vos tornaria objectos de adoração universal ; ao pas
so que eu vos molho de saliva, e v<m obrigo a 'fechar
cartas ! Sois todas da mesma especie e da mesma fa
rinha ; porém, o vosso destino varia até ao infini
to !.. . etc. » D'estes desalentos, d'este horrivel des
crer, ainda eu pude algum tempo arrancar a minha
alma, e submettêl-a ás consolações reanimadoras dos
padres que me ouviam e combatiam as duvidas. Lia
Mallebranche, que terminantemente me dizia : É
preciso crer no dogma da transubstanciação, sem
tentar entendel-o. E eu lia muito Mallebranche pa
ra cada vez entender menos o dogma e o author.
Emfim, meu caro Antonio José, para te não enfadar
■mais, basta dizer-te que, perdida a fé n'um dogma,
perdi-a em lodos. Depois, vieram aquelles terriveis
combates com a hypocrisia, em que sahi mortalmen
te ferido no coração. A morte de Catharina.. . bem
te lembras. . . ha annos. . .
O leitor precisa saber que morte foi esta de Ca-
tharina. Será propriamente Francisco Xavier de Oli
veira quem lh'a refira : « O conde de Povolide e
mais dous familiares do santo officio quasi me arran
ROMANCE HISTORICO 13

caram dos braços uma amante que eu amava em ex


tremo. Era uma rapariga de vinte annos, mais sym-
pathica do que bella, e tão espirituosa quanto bem
feita. Era uma christã papista, exagerada em suas
devoções como eu o tinha sido. Ia á missa, ao con
fessionario e á communhão ; orava á Virgem e aos
Santos; e as almas do purgatorio eram as suas advo
gadas predilectas. Comia de tudo, gostava de pre
sunto, e muito de chouriças de porco. N'uma pala
vra, a moça guardava o domingo, nunca abrira a Bi
blia ; e bem longe de saber o que era sabbath e ju
deus, ignorava que tivesse existido n'este mundo um
Moisés. Como havia de saber Catharina que Moisés
legislara ? Ora, tudo isto, junto ao amor que eu lhe
tinha, fez que eu despropositasse em brados contra
semelhante prisão. Impozeram-me silencio, e os meus
amigos tractaram de me vexar por me verem apai
xonado por uma judia encarcerada no santo officio.
Dezoito mezes depois, fez-se auto da fé em que a
rapariga devia apparecer, e ouvir lôr sua sentença
publicamente. Claro é que não faltei ao concurso.
Qual foi, porém, meu espanto, quando ouvi a presa
confessar que tinha guardado inviolavelmente o sab
bath, que não havia comido carne de porco, e que
se abstinha do certas comidas, que eu lhe vira co
mer um milhão de vezes com furioso appetitef A
minha surpreza redobrou ao ouvir lêr a sentença,
qoe a mandava queimar, porque tinha sido diminu
14 O JUDEU

ta na confissão, quer dizer, que não tinha podido


achar ou adivinhar os nomes das falsas testemunhas
que depozeram contra ella ! . . . Ás dez horas da
noite, como a condemnada fosse entregue ao braço
secular, conduziram-na á Relação, cujos ministros
até hoje usaram sempre a covardia de confirmar ce
gamente as sentenças todas da inquisição, sem que
peçam ou revejam os processos dos condemnados.
Como aqui me era permittido fallar á desgraçada,
perguntei-lhe como podéra ella mentir tanto para
provavelmente salvar a vida, e se deixava morrer
por não querer denunciar os cumplices, ou antes os
accusadores. Respondeu-me : « Sendo os meus accu-
sadores falsas testemunhas, que eu nunca vi talvez,
era-me impossivel nomeal-os. Deus me é testemu
nha de que morro innocente ; tu melhor que nin
guem sabes que eu sou christã, e todo o mundo o
ficará sabendo pelo formal desmentido que dou ago
ra a tudo que confessei na inquisição, a respeito do
meu judaismo, protestando diante d'este juiz que já
mais professei fé que não fosse a de Jesus Christo,
na sua santa religião quero morrer.
« Pouco depois, entraram os ministros a interro-
gal-a. Publicamente sustentou que morria na lei de
Jesus Christo, nem soubera nunca da existencia dou
tra. Esta confissão não a salvava de morrer, e assas
o sabia ella. Não obstante, insistiu n'este sentimento
até ao derradeiro momento de sua vida, que lhe foi
ROMANCE HISTORICO IS

tirada da meia noite para uma hora, sendo estran


gulada por mão do carrasco, e logo lhe levaram o
cadaver para ser queimado no local em Lisboa des
tinado a semelhantes execuções. »
Continua o cavalheiro de Oliveira, com a sere
nidade dolorosa em que a desgraça de longos annos
lhe tinha congelado o coração:
« Bem que eu n'aquelle tempo respeitasse o tri
bunal da inquisição, nem por isso deixei de me ex
por a toda a ferocidade de seus ministros, bradando
altamente contra a barbaridade do seu proceder. Se-
jam-me testemunhas dous inquisidores ainda vivos,
os snrs. Silva e Gomes, a quem eu fiz severas cen
suras, e os quaes, como bons amigos, me aconse
lharam silencio, figurando-me o perigo a que a mi
nha imprudencia me expunha. Segui o conselho
acompanhado das ameaças d'aquelles senhores. Ca
lei meus queixumes ; todavia, os meus amigos sabem
que, desde aquelle dia, formei pessima opinião do
processar d'este maldito santo officio. »
CAPITULO II

— Outra cousa ! — perguntou Antonio José —


Tu eras sebastianista, ha um anno. Esperas ainda o rei ?
— Não me falles n'isso, que é a minha grande
vergonha ! Imaginas tu que amizades perdi de pa
rentes, e graves amigos que endeusavam o meu ta
lento, e lhe queimavam incensos no altar do Bandar
ra? Minha mãe ainda hoje chora, quando se lembra
que eu já não sou sebastianista ! E eu choro, quan
do me lembro que me deixei seduzir por aquelle
soez franciscano Vicente Duarte, cujas historias tua
mãe ouvia com uma fingida dor de dentes para que
lhe não vissem o impio riso !
— Então agora em que crês? — perguntou o
hebreu.
2
18 O JUDEU

— Na vinda do Messias, de certo não— respon


deu com chocarreiro riso Francisco Xavier — E tu
esperas ?
— Espero que não venha confundir-se com os
patifes d'este globo; mas que elle não veio é cer
to.
— D'accordo comtigo. Não veio, com o nome que
lhe deram. Já tinha vindo, e chamava-se Socrates;
tornou a vir, e chamou-se Luthero.
— Estás protestante ?
— Sim ! protesto contra todos os embusteiros e
hypocritas ; protesto, em nome de Deus, contra to
dos os que lhe infamam o nome.
— Isso é justo. E d'amores, como te corre a
vida? quem amas? Dura ainda o reinado da Joanna
Victorina ? A cigana de certo deslumbrou a memoria
da pobre estrangulada da inquisição, e d'aquella An
tonia Clara. . . '

' Os amores d' Antonia Clara devera ser contados por elle :
« D. Antonio Manoel, irmão do conde de Villa-Flôr possuiu, tres
aunos completos, a encantadora Antonia. Um transporte de ciume in-
dispôl-os a ponto de ser despedida a formosa manceba por D. Antonio-
Gahiu-me em sorte; e, posto que D. Antonio se arrependesse de ater
assim tractado, o mal já não tinha remedio. Antoninha não quiz mais ou
vir fallar d'elle, e elle não ousava nem podia reclamar um bem, cujo legi
timo possuidor eu era, porque lh'a não tirei por força ou velhacaria.
« Antonia, como fosse um dia confessar-se ao cura da sua freguezia,
o confessor propoz-llie que me abandonasse, e consentisse em fazer as
pazes com D. Antonio. A moça extremamente magoada com tal conselho
no confessionario, negou-se a aceital-o, e de volta revelou-me tudo. Cus-
tou-me a crèl-a, porque o confessor era pessoa muito de meu conheci-
ROMANCE HISTORICO 19

— A Joanna é fatal ! — disse Oliveira — Fatal


como todas as da sua tribu. Traz-me o coração de
baixo dos pés. É a mais vergonhosa e mais doce es
cravidão da minha vida. Minha mãe chora muito por
mim ; porém as lagrimas que eu tenho chorado pela

mento '. Além de que suspeitei que Antonia me estava encarecendo os


favores, querendo mostrar-me que por amor de mim desprezava um pie
gas suspiroso da estofa e meritos de D. Antonio. Sem embargo, como
eu sabia que este homem era particular amigo do cura dos Anjos, quiz
convencer-me da verdade da solicitação que a moça com juramento me
certificava. N'este proposito, mandei-a, passados dias, procurar o padre,
e dizer-lhe, que estando de mal commigo, e reflectindo no que lhe convi
nha, resolvera aceitar o seu conselho, e voltar para D. Antonio ; e por
isso pedia ao cura que fosse a casa d'ella ao outro dia entre dez e onze
horas da manhã, asseverando-lhe que eu, a tal hora, estava no tribunal '..
0 pobre cura cahiu na esparrela, chegou á hora combinada, e decla
rou a Antoninha qual era a força da paixão que D. Antonio por ella con
servava, acrescentando que ninguem melhor do que elle a merecia, ed'alli
se ia logo a levar-lhe a boa e inesperada nova.
N'islo, sahi eu d'nm escondrijo, e disse-lhe que para ir mais depres
sa, saltasse pela janella, o infame recoveiro ! Um raio, se cahisse sobre
o padre, de certo o mataria; mas aiarantal-o tanto como elle ficou de certo
não. Ajoelhou-se-me aos pis, pedindo-me em nome de Jesus Christo e de
sua Santissima Mãe que lhe perdoasse o ultrage e desgosto que me elle
queria dar. Eu estava iradissimo, e resolvera castigal-o deveras, porque
estava em minha mão perdêl-o. Não obstante, deixei-o ; e d'isso me não
arrependo. Quatro armos depois fez-me uma grosseria na sua igreja, of-
fendeu-me, e deu aso a que eu contasse o caso a dous amigos d'elle:
logo que o soube, tractou de reconciliar-se commigo. Desprezei-o então, e
ainda o desprezo se está vivo, muito mais por sua ingratidão que por os
seus outros desregramentos.»
Amusement périodique— 2." vol. pag. 389 e seguintes.
' Era o cura da parochia de Nossa Senhora dos Anjos de
Llsloa, situada na estrada de Arroyos.
Eu servia então o rei no tribunal de contas, do qual meu
pae era contador ou conselheiro.
SO 0 JUDEU

cigana ... são incomparavelmente mais. Enche-me o


peito de brazas a maldita com os ciumes que me faz !
— Olha lá . . . — atalhou Antonio José — Como
foi aquella passagem de expulsares o diabo do corpo
da mãe d'ella?... Fallaram-me n'isso em Coimbra...
Crês, ao menos, que o diabo entra nos corpos?
— Entra, e sabe facilmente pelo processo que eu
empreguei na mãe de Joanna. Ahi vai a receita.
Corria como cousa averiguada que a velha estava in
cubada de demonio. Os tregeitos e destempêras,
que ella fazia em casa, eram pavorosos. Não me
deixava parar meia bora socegado com a filha. De
repente, começava a escumar, a rolar os olhos, a
ranger com os dentes, e a caretear visagens de ta
manho horror, que se me arrepiavam os cabellos.
Os criados andavam de dia e de noite a chamar con
fessores e exorcistas. Entrei a suspeitar que a ener
gumena era uma perversissima impostora. Entendi-
me com a filha, communiquei-lhe as mesmas descon
fianças, e ella concordou. « Havemos de cural-a »
disse eu a Joanna. Vespera de natal, entra o tal de
monio com ella por volta de onze horas da noite.
Escabujava nos braços da filha, dava pontapés de
derrear um elepbante , colleava-se como serpente e
pinchava como uma cegonha no sobrado. Depois ca-
biu em Iethargia apparentemente mortal. Eu já me
tinba preparado para a cura. Levava commigo dous ti
jolos que mandei aquecer até os abrazear , e depois
ROMANCE HISTORICO 21

ordenei a Joanna que os achegasse ás solas dos pés


da mãe, os quaes estavam nas e fora do leito, onde
eu a mandara por. Parece que o demonio d'ella es
tava alerta ; porque assim que eu fallei em tijolos
quentes, recobrou os sentidos de golpe, sentou-se na
cama, chamou-me barbaro algoz, e disse contra a fi
lha insolencias diabolicas. O certo é, amigo Antonio*
que a velha nunca mais foi vexada de diabo nenhum,
e passa regularmente. Aqui tens como foi.
— E com a Joanna, como te vaes dando?
— Já te disse : sempre traspassado das agulhas
do ciume. Agora, está ahi em Lisboa um castelhano
que me dá que fazer. Já lhe segui de noite o vulto
para o atravessar com a espada; mas as mortificações,
que' eu tenho causado a meus pães, são já tantas, que
me oão posso resol ver a matar o homem. Joanna já teve
o desaforo de me dizer que o não acha feio nem despre
zível* Eu quiz sevar n'ella a minha raiva; mas de
ves saber que a cigana é mulher de faca, e não se
ensaiaria em mim se me esfaqueasse, porque o exem
plo já elto o deu com um dos meus predecessores
na posse <faquelte formoso seio, cofre d'um pessimo
coração» » i
— E amas assim uma mulher?! — atâfhoti An
tónio José da Silva.
— Amo, amo miseravelmente ! Pergunta ào du
que de Cadaval porque ama elle a Paulina que o
atraiçoa todos 06 dias ; pergunta ao conde de Arouca
22 O JUDEU

porque ama aquella impudentissima Rocha, que o


cobre de irrisoria ignominia ; pergunta ao rei porque
amou com tão cega paixão a dissoluta Margarida do
Monte que morreu freira no convento da Rosa, o
anno passado I l
— Tens um sestro fatal ! — observou Antonio
José — E quando tu, ha tres annos, fallavas em mor
rer ethico d'amores pela actriz hespanhola Zabel Ga-
marra !
— E' verdade ... Já sabes que ella professou
nas Agostinhas no convento de Santa Monica?
, — Já sei. E o marido professou tambem ?
— Não: foi-se embora, depois de receber seis

i O amante de Paulina era D. Jaime Pereira, cunhado de el-rei


D. João v. Tirante a miseria d'aquelles escandalosos amores, o duque
foi um dos mais respeitaveis e respeitados fidalgos do seu tempo. A man
ceba do conde de Tarouca, mulher da infima plebe, chamava-se a Pelles
de alcunha ; mas como casasse com um fulano Rocha, criado do conde de
Tarouca, tomou-lhe o appellido. Como boh homem, que era este mari
do, diz o cavalheiro de Oliveira, conseguiu ser criado supranumerario
da imperatriz Amelia. O cavalheiro referia-se á imperatriz d'Áustria,
onde o conde de Tarouca pae do conde em questão foi ministro portu-
guez. A tal Rocha ou Pelles fugiu ao conde para os braços do padre Do
mingos d'Araujo Soares, capellão particular, que tinha sido, do conde.
Este padre, diz Oliveira, nunca disse missa : única virtude que elle
praticou. Era um scelerado de profissão. Cumpre saber que o conde
tinha tirado a Rocha ao pae, insulto de que o padre vingou o velho. O
chronista, a respeito d'esta balburdia de perfidias, exclama com um
poeta francez :

Amour, amour, quand tu nous tiens,


Onpeut bien dire, adieu, Prudence!
ROMANCE HISTORICO 23

mil cruzados, que lbe deu em troca da esposa, o


marquez de Gouvêa. . .
— Nãoé cara :— disse Antonio José — Quanto
achas tu que levou de Portugal aquella Petronilla do
D. João v?
— É incalculavel. O sabido e notorio é que ella
levou de Lisboa trinta bestas carregadas, e que as
damas de primeira plana de Hespanha, quando a vi
ram carregada de joias no tbeatro de Madrid, assom
braram-se do tamanho dos brilhantes. Vê tu onde
foram cahir as joias das rainhas de Portugal, e as
mais preciosas, que vieram do Oriente no reinado
de D. Pedro u!. . . Voltando á Gamarra, deixa-me
contar-te episodios galantes, que iam descambando
em tragedia, e póde ser que afinal disparem em ter
rivel catastrophe. O marquez de Gouvêa bebe os
ventos pela mulher, principalmente depois que a
metteu no convento e lhe vestiu o habito. Soror Isa
bel folga de ter acorrentado ás grades do mosteiro o
grande senhor. Aconteceu, ha mezes, mandal-o cha
mar a Gamarra, ao mesmo tempo que o rei. O mar
quez vacillava afflictamente, sem saber decidir-se.
Sahe o marquez, entra no coche, e diz ao cocheiro que
o leve á corte ; mas, a meio caminho, manda desan
dar para o convento de Santa Monica. Para encarecer
o seu amor, diz á freira que el-rei o estava esperan
do ; porém, antes desagradar ao rei que á sua ama
da. « Se não procedesses assim, não me verias mais »
24 o judsu
disse-lhe soror Isabel. — Mas, tornou o marques,
calculas quanto arrisco por amor 4e ti? — «Deves
arriscar — redarguiu ella — Antes que todo ss mi
dama, ajuntou ella, em hespanhol, com o titulo da
comedia de Calderon — Quem se não sacrificar por
mim não me ama, nem me agrada. » Seguiu-se dar-
lhe o marquez o seu retrato engastado em circulo
de brilhantes, e jurar obediencia eterna. Depois,
com o consentimento d'ella , foi ao rei. Este dialogo
ouvi-o eu da grade próxima, porque eu estava com
ella quando se annunciou o marquez . . .
— Então é certo que a amas e és, . . amado,
como os outros. . . — interrompeu Antonio José.
— Não. Sou confidente do unico homem que
ella sinceramente ama. Conheces o meu amigo Va
lentim da Costa de Noronha?
— Tambem esse ! casado I pae de quatro lindos
filhos I esposo d'uma virtuosissima senhora ! —
— Tudo lhe sacrificou á funesta mulher ! Está
sem amigos, sem consideração, sem filhos, sem mu
lher, e receio muito que breve esteja sem vida. Já
duas vezes os sicarios do marquez lh'a quizeram
roubar. Duma vez o ajudei eu a defender-se, contra
quatro assassinos. Se o não matarem, mais boje mais
amanhã, alguma ordem do Tei o manda fechar n'al*
grana torre. . . A despejada mulher, depois que o mar
quez sahiu da grade, fez-me portador do Tetrato e
ROMANCE HISTORICO 25
dos brilhantes do amante, como presente a Valentim
de Noronba ! . . . l
— Agora, fallemos de ti. A judiasinha tem-te
flscripto? Conta-me alguma cousa da exquisita Leo
nor dos teus sonhos. . . Que sabes d'ella ? Vem para
Portugal? ■
— Vem brevemente. A ultima carta de Sara
para minha mãe diz que por estes seis mezes, dei

1 Estas noticias, extrahidas dos citados livros de Francisco Xavier


de Oliveira, devem ser aqui competentemente encerradas com o remate
da biographia da freira agostinha. Com referencia ao merito d'ella como
actriz, escreve o cavalheiro: « Gamarra étoit certaiiiement laplus bel-
le aetrice que noas ayons vú sur le théatre de Lisbonne ; elle etoit
jeune, enjoueé, engageante : elle avoit beaucoup d'esprit, de viva-
cité, et de granas charmes dam toutes ses manières. Acerca dos
seus costumes, diz : Elle avoit un mari et un galant declare. Elle
n'avoit donc qu'un seul défaut, c'étoit celul d'être ou afíectée, ou
infidèle : elle trahissolt également et son mari et son galant : elle
avoit de l'aversion pour l'un, et seulement de 1'estime pour l'au-
tre...
O amigo de Antonio José da Silva previra o destino de Valentim de
Noronha em uma das duas hypotheses. Por ordem regia, Noronha foi
encarcerado no Limoeiro, a pedido do marquez de Gouvéa. Ao fim de
nove mezes de prisão rigorosa, teve o preso a boa sorte de morrer o
marquez no vigor da idade. Não obstante, D. Gaspar de Moscoso e Sil
va, tio do marquez defunto, e sumilher da cortina de el-rei D. João v,
embargou por muito tempo o livramento do preso, para assim vingar o
aflrontado sobrinho.
A freira, assim que o marquez expirou, quiz voltar para o marido,
que representava nos theatros de Hespanba. Obstaram-lhe as leis á re
nunciarão dos votos com que professara. Gamarra tomou o mais summa-
rio dos expedientes. Fugiu do convento, ligou-se ao marido que tinha
ido furtivamente a Lisboa, passou a Hespanha, e voltou á vida antiga
do theatro. Eis aqui uma creatura â espera d'um romance em tres volu
mes, graças ás informações de Francisco Xavier d'0liveira.
26 O JUDEU

xam a nevada Hollanda em que o coração da pobre


menina morre de frio ! Olha que ainda me não es
creveu palavra que não venha entanguida do frio lá
da terra ! Aos versos responde na mais chan e so-
yina prosa que inventaram mulheres desamoraveis.
— Tu és um tolo sincero ! — exclamou de gol
pe Francisco Xavier — Pois tu podes amar seria
mente a moça, que nunca viste, só por que te dis
se tua mãe que ella, muitos annos antes de nascer,
já era destinada tua mulher?
— Posso e amo — disse Antonio José — Phanta-
siei-a. Não sabes tu o que é phantasiar, meu sebastia
nista ? Pois tu não imaginavas, ha pouco tempo, um
rei D. Sebastião que tinha morrido seculo e meio
antes? Então que tem que eu espere a felicidade
d'uma mulher, que vive, e se veste das cores celes
tes que a minha phanlasia lhe dá ? Sei que ella é
formosa: que tem que eu a imagine formosissima ?
Sei que é instruida: que faz que eu a phantasie uma
das irmãs Sigeas? Se os meus sonhos hãode aca
bar, quando me ella apparecer, pouco perdi : os
adornos, que a minha imaginativa lhe deu, são pro
priedade minha ; posso dál-os a quem eu quizer de
pois. Isto que tem de extraordinario ?
— Pois — tornou Oliveira — se não queres ser
tolo extraordinario, serás um tolo vulgar.
CAPITULO 111

Antonio José da Silva grangeara fama de abali


zado engenho. As suas jocosidades metricas andavam
manuscriptas por mãos dos entendidos, que as en
careciam, por mais ou menos aquinhoarem das gra
ças litterarias da época, em nossos dias consideradas
aleijões contagiosos das escolas italiana e hespanhola.
D. Francisco Xavier de Menezes, quarto conde da
Ericeira, o mais fecundo e menos contaminado es-
criptor portuguez d'aquelle tempo, recebia Antonio
José em sua casa, folgava d'ouvil-o recitar as suas
comedias entremeadas de chistosas arias, recitava-lhe
cantos da sua insulsissima Henriqueida, e aconselha-
va-o a transviar-se da imitação servil dos hespanhoes
em composições theatraes, e dos trocadilhos de Gon-
gora nos poemas graves, em que apenas o bacharel
por acaso se entretinha.
28 O JUDEU
Francisco Xavier de Oliveira, reputado manceho
de rara inventiva e copiosa leitura nas intercadencias
das notorias travessuras, era tambem das palestras
e saráos litterarios do conde da Ericeira.
Um dia, Antonio José e Francisco Xavier en
contraram na livraria do conde, folheando nos livros,
em quanto o fidalgo não entrava, um Bartholomeu
Lobo Corrêa, sujeito dado ás letras, com o infortu
nio deploravel de se nâo darem as letras com elle.
O conde, como amigo de gente ledora, ou porque
não estremasse os incapazes, ou por se compadecer
dos inintelligentes, acolhia Bartholomeu, dizendo aos
mais intimos que o pobre sujeito não tinha culpa de
sahir milagrosamente mais sandeu que o pae.
O pae d'este Bartholomeu tinha sido um Pedro
Lobo Corrêa, escrivão da contadoria geral, fallecido
em 1708. Este sujeito entrara no templo das letras
com o offertorio d'um livro de sua lavra, intitulado
Vida de Adão e orações contra as tempestades. O
titulo somente, sem ajuda das parvoiçadas interiores
do livro, tinha sido o epitaphio do litterato, tolhido
no nascedouro.
Passados annos, como a paiião das letras o 6»»
picaçasse, deu-se a traductor do hespanhol, e sahiu
a mais modesto lume com o Nascimento, vida e
morte admiraveis do grande servo de Deus Gregorio
Lopes, natural da villa de Linhares : composto pelo
licenceado Francisco Losa, traduzido na lingua por*
ROMANCE HISTORICO 2$

tugueza, e acrescentado (vejam a tentação do demo-*


nio da originalidade !) o fim e primeiro capitulo. Ora,
o fim e primeiro capitulo do livro era sobre modo
tolo.
Além d'outras traducções, Pedro Lobo, queren
do dar testemunho publico de sua piedade, das ex-
cellencias do seu christianismo, e assanhado rancor
á raça hebraica, traduziu do castelhano um livro re
vulsivo, intitulado : Sentinella contra judeus, posta
em a torre da igreja de Deus, áfc. Feito isto, e mais
alguns serviços á religião da caridade e ás letras por-
tuguezas, morreu Pedro Lobo, deixando ainda um
volume, o peor e mais brutal de todos, que era o
filho Bartholomeu.
Estava, pois, Bartholomeu Lobo folheando os
preciosos livros do conde da Ericeira, quando entra
ram Antonio José da Silva e Francisco Xavier. De
pós estes, entrou o padre Luiz Alvares d'Aguiar,
prior de S. Jorge, homem de sessenta annos e ale
gre sombra de velho em cujos olhos lampejavam
ainda os clarões da juventude.
Antonio José, que sinceramente odiava Bartho
lomeu, já pela estupidez herdada já pela propria,
não perdia lanço de o metter a riso com salgadas
galhofas na presença da fina e algum tanto livre so
ciedade do conde. Casualmente, relançando os olhos
à livraria, o hebreu enxergou o livro em 8.*, intitu
30 O JUDEU

lado : Sentinella contra judeus SÇc. Tirou o livro, e


disse :
— Ó Francisco Xavier, já lêste um diamantino
livrinho traduzido pelo pae aqui do snr. Bartholo-
meu? A sentinella contra judeus !
— Oh ! . . . oh ! . . . — cacarejou gargalhando o
padre Luiz Alvares — Isso é uma obra que faz co
cegas nos pés á gente.
— Então porquê? — perguntou o abespinhado
filho do defunto traductor.
— Porque?! — tornou o padre — porque é obra
recheada de sandices, eimmoralmente porca e torpe.
— Que outro dissesse isso. . . — retorquiu Bar-
tholomeu — mas vm.ce, que é padre, e homem bem
nascido 1 . . .
— Quer vm.ce — tornou o presbytero — que os
padres e homens bem nascidos sejam tão alarves co
mo o senhor seu pae, que Deus haja na bemaventu-
rança dos pobres de espirito?
Antonio José e Francisco Xavier riram. Bartho-
lomeu, em harmonia com a sua costumada parvoice,
riu tambem ; todavia, o onagro, que fareja a femea
nas brizas de Maio, ri com mais espirito.
O filho de João Mendes abriu ao acaso o livro,
leu mentalmente algumas linhas, e disse:
— Ó snr. Bartholomeu, vm.ce estará na persua
são em que morreu seu engenhoso pae a respeito
das doutrinas d'este livro?
ROMANCE HISTORICO 34

— Eu creio tudo em que meu pae creu. Tudo


que elle escreveu ou traduziu são verdades — res
pondeu o sujeito.
— Bem. Então defende o que se diz aqui, res
peito á raça hebraica?
— Defendo, sim, senhor. São as doutrinas da
igreja ; e por assim o entender, mandei reimprimir
esse livro ha quinze annos.
— Fez vm.ce muito bem, snr. Bartholomeu —
obtemperou Francisco Xavier d'Oliveira — Estamos
n'um paiz em que o livrinho de seu pae hade ser
ainda terceira vez impresso 1,
— Merece-o ! — ajuntou Antonio José da Silva
—Ora digam-me, se a immortalidade não é pequeno
galardão para um livro, onde se leem estas cousas.
Attendam : . . . Se os homens pozeram cuidado em
sinalar os judeus, para que fossem conhecidos por
suas traições, não menos cuidou Deus de os sinalar
para confusão sua, e castigo do que mereceram seus
antepassados. Não são em alguns mui patentes os
signaes que por sua mão lhes põe a natureza ; mas
em outros se descobrem claros e evidentes, sem que
á gente os possa seu cuidado esconder ou encobrir...
Digo pois que ha muitos sinalados pela mão [de Deus,
depois que crucificaram a sua divina magestade;
uns. . .

1 Foi eflectivamente reimpresso em 1748.


32 O JUDEU

— Reparem n'isto! — exclamou Antonio José


interrompendo a leitura — Reparem, por honra da
historia natural e do defunto Lobo morto, e do Lobo
vivo!
E proseguiu na leitura : Uns tem uns rabinhos
que lhes sahem do seu corpo do remate do espinha
ço; outros lançam e derramam sangue. . .
— Alto lá! — atalhou o padre Luiz Alvares —
Estão senhoras na sala proxima : quem quizer, vá
lêr á rua o restante da immundicia l.
— Eu já li — disse Francisco Xavier apertando
as cartilagens do nariz — Isto vapora miasmas de
latrina.
— E com que então — repetiu o hebreu — está
vm.ce persuadido, snr. Lobo, que alguns judeus tem
uns rabinhos que lhes sahem do seu corpo do re
mate do espinhaço?
— Estou, sim, senhor.
— Já viu d'essas cousas com os seus olhos pe
netrantes? Agora vejo eu tambem que não échime-
rico o anexim respectivo aos entendidos que mettem
o nariz em tudo ! Que grande alcance e que profun
das investigações por lugares tão desfrequentados
tem feito o seu nariz de sabio, snr. Barlholomeu!
O padre Luiz Alvares de Aguiar, desabafados

• O leitor, se não prescinde de vPr o restante da immundicia, como


judiciosamente dizia o prior de S. Jorge, veja a pag. 171, da ediç. de
1684.
ROMANCE HISTORICO 33

os impulsos de riso, çompoz o semblante, e disse :


— É grandissimo desdouro para Portugal que
este e quejandos monstros da loucura humana cor
ram impressos. Lastimo, snr. Lobo, que vm.gc ande
a fazer ganancia com estes excrementos das pobres
e servis vigilias de seu pae, cuja capacidade intelle-
ctual está medida por esta producção, que elle foi
buscar, para traduzir, aos escoadouros de Castella.
Veja, por honra sua, amigo e snr. Bartholomeu, se
póde chamar a si todos os exemplares d'esta vergo
nhosa obra, e queime-os; queime este opprobrio de
seu pae e seu. Queime-os. . .
— Ou dê-os — acrescentou Antonio José — para
alimentar as fogueiras d'algum judeu. . .
— Póde ser... — murmurou Bartholomeu, a
ponto que vinha entrando o jovial conde da Ericeira,
pedindo desculpa da demora.
— Que livro lê o nosso moderno Gil Vicente?
— perguntou o conde — Ah!. . . Sentinella contra
judeus. . . Isso é galante livro, que prova o adianta
mento da historia natural nas Hespanhas. Falla ahi
d'uns rabinhos. . .
— Com elles nos entrelinhamos — acudiu o prior
de S. Jorge.
— E viram, tornou o conde, o porquê de terem
rabinhos alguns israelitas? A explicação está duas
paginas adiante.
— Cá está — disse Antonio José, e leu : Os que
3
34 O JUDEU

tem os rabinhos no remate do espinhaço, são por li


nha direita descendentes oVaquelles que entre elles
eram mestres, a quem chamavam rabis, e nós no
meamos rabinos ; estes se tentavam a julgar, e hoje
ensinam sua lei como mestres e juizes, e para pena
sua, e sentados não possam estar sem molestia e tra
balho, lhes sahem aquelles rabinhos no proprio lugar
que lhe pôde causar penalidade.
— Parece que o snr. Bartholomeu Lobo está
com azeda sombra! — atalhou o conde — Ó nosso
amigo, seu pae não tem que vêr com a nossa criti
ca. A um traduclor tão somente se pede contas da
lealdade da versão; e, a meu vêr, esta versão do
hespanhol é fidelissima. Da má substancia do livro
está seu pae inculpado, amigo Lobo.
— Meu pae, snr. conde — disse Bartholomeu —
não pede desculpa de ter feito um bom serviço à
religião. Aos judeus é que elle não fez grande favor,
traduzindo este religioso livro, de que estes senho
res estão zombando.
Bartholomeu feriu com os olhos as costas de
Antonio José da Silva, quando proferiu as palavras:
aos judeus. . .
O filho de Lourença Coutinho apanhou-lhe no
ar o tiro, volveu-se rapido para elle, e disse :
— Os judeus que tiveram a desventura de nas
cerem em territorio portuguez tem quinhão na igno
minia d'este livro, por estar em linguagem que se
ROMANCE HISTORICO 35

parece tanto ou quanto com a portugueza ; em quan


to ao mais, Deus nos livre que o santo officio acre
ditasse na existencia dos rabinhos ! . . . A perversi
dade, em geral, costuma ser menos estupida. Hoje
não haveria ninguem que quizesse inspeccionar as
taes excrecencias a não ser vm.c°, snr. Bartholo-
meu ! . . .
O conde fez a Antonio José um expressivo gesto
de silencio.
Bartholomeu deteve-se alguns instantes, e pediu
licença para retirar-se, comprimentando profunda
mente o padre, o judeu e o filho do contador-mór.
— Faz mal, snr. Silva — disse o conde grave
mente depois que Bartholomeu sahiu — faz mal em
disparar tão certeiras flechas contra a cabeça dura
d'este homem ! Vm.ce esquece-se de que ha no Bo
cio um palacio, que se chamou dos Estáos, e hoje
se chama vulcão de fogueiras. Tenha prudencia.
Diante de mim, diga o que quizer a favor de Moisés
e contra S. Paulo ; mas do maior numero de sujei
tos, que entram n'estas salas, guarde-se.
CAPITULO IV

Quinze dias volvidos, aos 6 d'Agosto de 1726,


entrava Antonio José da Silva, segundo o seu costu
mo quotidiano, no escriptorio de seu pae, quando
tres familiares dn santo officio lhe ordenaram que os
seguisse ao tribunal. O hebreu hesitou alguns instan
tes, meditando no mais facil meio de escapar-se. Um
dos familiares, entrando-lhe no animo, descerrou um
riso de escarneo, e disse :
— Não pense em fugir, que as avenidas da sua
casa estão vigiadas. Em toda a parte ha sentinellas
contra judeus.
Antonio José da Silva entendeu a allusão. Pediu
que o deixassem despedir de seu velho pae e de sua
mãe, obrigando-se a subir acompanhado. Negaram-
lbe a licença, solicitada com lagrimas.
38 O JUDEU

Antonio José sahiu na frente dos tres familiares,


e pediu ao raercieiro visinho que avisasse seus pacs
de que elle ia preso.
No mesmo dia e á mesma hora, foi tambem pre
so o prior de S. Jorge, Luiz Alvares d'Aguiar, e con
duzido aos carceres da inquisição.
A captura do filho de Lourença Coutinho não
fez estranheza. A inquisição e os devotos lembravam-
se ainda da judia, que sahira absolta d'onde a pieda
de requeria que sahisse de carocha e sambenito.
Grande parte do publico estava escandalisado d'aquelle
singular caso de indulgencia, que, até certo ponto,
ameaçava quebranto na inteireza dos inquisidores.
Por isso, com a noticia da prisão de Antonio José
da Silva, os pios escandalisados sentiram a satisfação
desaggravante.
Em quanto ao prior de S. Jorge, muita e boa
gente se espantou. O padre Alvares d'Aguiar, oriun
do de mui illustre familia, em limpeza de sangue po
dia pleitear antiguidade com a mais primorosa raça
de christãos. Corria fama de que elle, desde os quin
ze até aos sessenta e tantos annos que tinha então,
se distinguira em femeaes mundanidades, amando as
mais formosas e fidalgas com requintado e versátil
amor nem sempre ideal. Á volta d'elle, no dizer do
seu amigo Francisco Xavier d'Oliveira, florecia uma
especie de harem espiritual, composto de tenras e
juvenis bellezas, das quaes elle se denominava pae,
ROMANCE HISTORieO 39

sendo, ao mesmo tempo, dono e galar). Este bom pa


dre — diz o contemporaneo — que outra quebra não
tinha senão a paixão do amor, não deixava ressumar
a sua tendencia nem por obras nem por palavras.
Apenas sustentava que o amor é o complemento e epi-
tome de toda a lá; e que a chamada caridade nas
santas escripturas não é senão o amor, segundo S.
Jeronymo. Bem que amasse idolatricamente as mu
lheres formosas e as de mais lustrosa raça, nunca
faltara senão do amor de Deus ; e d'este amor pare
cia desbordar-lhe o coração, se attentarmos nas ma
gnas obras de caridade que elle constantemente exer
citava. Diz mais o cavalheiro d'Oliveira : « Eu vivi
muito na sui intimidade. Tão excellentes no amago
eram as qualidades d'elle, que toda gente o estimava,
sem distincção das mais gradas pessoas de Portugal,
quer pela qualidade de sua fidalguia, quer por seu
eopioso saber » .
Todos, pois, se maravilharam e condoeram. Nin
guem sabia conjecturar o motivo de semelhante pri
são. Quem, com effeito, mais cabalmente podia in
formar a curiosidade do publico, seria o filho do tra-
ductor da Sentinella contra judeus.
Esperemos-lhe a sentença.
João Mendes da Silva, tão depressa pode trans
portar ao leito sua mulher desmaiada e como morta
pelo golpe da noticia, correu a casa do conde da
40 O JUDEU
Ericeira a pedir a redempção de seu filho. O conde
ouviu aterrado a nova, e disse :
— Eu previ isto. . . Sei d'onde partiu a denun
cia .. . Vá com Deus, que eu começo desde já a tra
balhar na salvação do pobre moço.
D'aqui, foi João Mendes em cata do contador,
pae de Francisco Xavier d'Oliveira. Encontrou-o af-
flicto.
— Tambem meu filho, disse José d'0liveira e
Sousa, esteve em risco de ser hoje preso. Salvou-o
hontem sua mãe, ajoelhada aos pés do inquisidor,
porque um conselheiro do santo officio se apiedou
das minhas cans, e me avisou. Não sei que heide
fazer em seu auxilio, snr. João Mendes ! . . . Eu já
sou tambem suspeito. Quando a inquisição prendeu
o prior de S. Jorge, não sei que haja ninguem defe
so !.. .
João Mendes sahiu desanimado. Foi ainda soc-
correr-se d'aquelle Diogo de Barros, santo valedor de
infelizes. O ancião algumas esperanças verteu no co
ração do septagenario, dizendo-lhe que ainda era fa
miliar.
— E então agora — ajuntou Diogo de Barros
— agora que vinha ahi a filha do meu Jorge para se
effectuar o casamento ! É preciso salvarmol-o antes
que ella chegue. Eu não Ih'o faço saber a ella nem
a Sara. Becommende á snr.a Lourença Coutinho que
ROMANCE HISTORICO 4t

não diga nada para Amsterdam ; ou, a dizer-lh o, que


as dissuada de virem a Portugal.
Antonio José da Silva foi conduzido ao chamado
corredor meio-novo, carcere numero seis.
Ao oitavo dia foi levado a perguntas á chamada
mesa do santo officio. Estava adiantada a instauração
do processo. Leram-lhe o depoimento das testemu
nhas que o capitulavam de judaisante. Antonio José
disse francamente que não tinha vivido como chris-
tão nem como israelita ; mas, se lhe concedessem
vida para o arrependimento, faria inteira abjuração
de seus erros.
Aceitaram-lhe o abjurar ; todavia, como elle não
confessasse que em casa de seus paes se judaisava,
pozeram-no a tractos, chamados do torniquete. A
tortura exercera m-lh'a nas mãos, até lhes esbrugar
a carne dos ossos. O padecente, consoante consta da
consignação dos autos, no mais cruel remoer do tor
no sobre os dedos, invocava Deus, e não a Virgem,
nem algum Santo do reino do céo.
Ao tempo d'este supplicio lento, com intercaden-
cia de trevas na masmorra, que fazia Francisco Xa
vier d'Oliveira ?
Padecia tractos d'outra natureza.
Aquella Joanna Victorina, tão da sua alma, a ci
gana requestada pelo fatidico hespanhol, desappare-
ceu-Ihe um dia, deixando a mãe com a condição de
a mandar buscar. Francisco Xavier, com dous mem
48 O JUDEU

brudos criados, agarrou da velha, e ameaçou-a de a


por a tormentos até lhe arrancar o segredo do des
tino da filha. A demoniaca d'outr'ora, ao lembrar-se
dos tijolos ardentes, revelou que a sua Joanna fugi
ra para Valhadolid com um hespanhol, que lhe pro-
mettera palacios na sua terra e a mão de esposo.
O allucinado moço esqueceu o pobre amigo pre
so, a mãe angustiada, o pae que de puro medo da
inquisição cahira enfermo, tudo esqueceu, porque a
serpente do ciume se lhe enroscou no peito, e ver
teu peçonha aos seios da alma até lhe queimar as
febras todas da amizade e filial amor.
Pediu o dinheiro que não pôde furtar dos conta
dores paternos, e foi caminho de Hespanha. Entrou
em Valhadolid, onde não conhecia ninguem ; mas a
seu pae ouvira dizer que D. Raphael Hernandes de
Bobadilha, alcaide de Valhadolid, era seu amigo, e
parente do marido de uma sua irmã, casada em Bar
celona.
Apresentou-se ao alcaide : disse-lhe quem era e
ao que ia. D. Raphael acolheu-o com benignas risa
das, exclamando :
— Eu sei onde pára a cigana, meu ditoso ra
paz I
— E o covarde que m'a roubou? — acudiu
Xavier.
— Esse foi hontem preso : está no castello, e
de lá veremos para onde as leis mandam os cau
ROMANCE HISTORICO 43
dilhos de salteadores. Fica vm.QC sabendo que a
sua Joanna teve a honra de hospedar no largo peito
o coração do mais temeroso bandido das Astúrias.
Agora veja lá se lhe serve a creatura enfarruscada
com tão abjectos amores.
— Onde a encontro ? — disse com vehemencia
o portuguez.
— Na estalagem onde o salteador foi preso. Que
quer vm.ce fazer á mulher?
— Matal-a !
— É muito bem feito ! — accedeu gravemente o
alcaide — Vá matal-a, que é uma devassa a mulher!
Faz um serviço á humanidade, D. Francisco ! Eu,
se não tivesse que fazer, ia tambem dar-lhe uma cu-
chilada no pescoço. . .
— D. Raphael está a zombar com a minha des
ventura ? — interrompeu o moço.
— Não senhor. Estou a recrear-me com vm.ce,
em quanto não chega o chocolate que mandei pre
parar. . . Ahi vem o chocolate. Sente-se para aqui,
rapaz. Merende, e depois irá perpetrar o ciganicidio,
a uma hora propria d'essas atrocidades. Deixe nas
cer a lua, para os poetas de Hespanha terem azo de
fallarem na lua, ao cantarem em funerea chacara a
morte da cigana ás mãos do trahido paladim D. Fran
cisco — o portuguez ! Ai ! que grilharia não vão fazer
as musas ! que poemas a pingar sangue não vão sa-
hir do peito esfaqueado de Joanna ! Que leve a bre
44 O JUDEU

ca tal nome I Nunca vi Joanna em verso ! É pena


que ella se não possa chrismar antes de morrer, ca
valheiro ! Se me dá licença, D. Francisco, ainda vou,
por amor da poesia castelhana, entender-me com o
bispo, a vêr se a podemos chrismar. Faça-me o fa
vor de não matar a rapariga até amanhã por estas
horas !
Francisco Xavier tomava o chocolate, e ria-se,
quando não cravejava os dentes no beiço inferior.
Terminada a refeição, D. Raphael Hernandes de
Bobadilha ageitou o aspeito gravemente, e disse :
— Fui, sou e serei amigo de seu pae. Estivemos
em Flandres ha trinta annos : eramos ambos secretarios
dos ministros de nossas patrias. Seu pae era honra
do, e fidalgo da velha estofa. Vm.ce ainda então se
gerava nas entranhas do nada, snr. D. Francisco. O
resultado é estar vm.ce ahi quasi imberbe, e eu co
berto de neve. Estas cans devem-lhe incutir a idéa
de que eu já tive cabellos pretos, e experimentei
tantas paixões quantos cabellos tenho. Está vm.ce
diante d'um velho que lê nos refolhos do coração.
A cigana, que o trouxe a Valhadolid, é mais amada
hoje do que era antes de lhe fugir. . .
— Oh 1 — atalhou Francisco Xavier.
— Nada de rhetoricas nem de theatro, D. Fran
cisco. Pergunto : quer levar a cigana ? Vamos : res
ponda I
— Preciso vingar-me ! quero matal-a, amando-a !
ROMANCE HISTORICO 45

— N'esse caso, mate-a ! — tornou o alcaide, no


tom da primeira galhofa — Eu vou mandar comsigo
á estalagem quem lh'a ensine. Morra embora a Joan-
na, e fiquem os poetas tolhidos por causa do mais
villão nome que ainda se ouviu em tragedias ! Vá,
vá, dom assassino !
Ergneu-se o alcaide, chamou da janella um qua
drilheiro, e ordenou-lhe que conduzisse o seu hos
pede á estalagem que indicou.
CAPITULO V

É minha opinião que ha umas lagrimas, que tem


a mirifica virtude de lavarem as manchas da perfídia
no rosto da mulher amada.
Estas lagrimas são magicas, são os filtros do sor
tilegio com que a sciencia de nossos antepassados
andou ás voltas e com que a piedade alimentou a vo
racidade das fogueiras. São lagrimas que tem e en
cerram virtudes luciferinas : sahiram de laboratorio
infernal; não são o sangue d'alma, como o padre
Bernardes as definia.
Joanna Victorina, quando Francisco Xavier en
trou ao quarto em que ella estava escrevendo, tinha
o rosto aljofrado d'aquellas lagrimas. A ira do moço
afogou-se n'ellas. Cruzados os braços, crispantes os
beiços, accendidos os olhos, Francisco Xavier d'Oli
48 O JUDEU
veira parou no limiar do quarto. Joanna ergueu-se,
lançou mão do punhal que estava sobre um bofete,
despiu-o da bainha, tomou-o pela ponta, caminhou
solemne para o cavalheiro com os olhos no pavimen
to, offereceu-lh'o, e disse-lhe :
— Mata-me, que é um beneficio matar uma mu
lher que os remorsos hãode matar vagarosamente.
Francisco Xavier passou por diante d'ella, apro-
ximou-se da mesa em que ella estava escrevendo,
curvou-se sobre o papel, e leu.
Era carta que a cigana escrevia á mãe, pedindo-
lhe que a mandasse buscar, porque se via desampa
rada em Valhadolid. Do homem, com quem fugira,
apenas dizia que fora atrozmente illudida por um
infame. Está vingado, escrevia ella, o Som moço que
eu sacrifiquei; se o vir, diga-lhe que me não deseje
maior desventura.
Francisco Xavier, lido aquillo, voltou o rosto á
cigana, que ainda permanecia queda com o punhal.
Depois, sentou-se, a chorar, arquejante, afflicto, com
o rosto abafado entre as mãos. Joanna abeirou-se
d'elle, e ajoelhou, com o rosto pendido para o seio,
braços pendentes, e o punhal na mão direita. Fran
cisco Xavier viu-a assim ; ergueu-se de golpe ; quiz '
fugir impetuosamente. Ninguem lhe estorvou o pas
so ; podia fugir á sua vontade ; mas. . . o fatal enli-
ço, a cadeia magnetica parecia arrancar-lhe o coração
pelas costas, quando elle ia fugindo. Era a cigana!...
ROMANCE HISTORICO 49

o amor infernal d'aquella raça maldita de Deus, que


tem por si a omnipotencia de Lucifer.
O moço girou sobre os calcanhares como mane
quim. Parecia uma cousa phantastica : de real ape
nas se sentia, n'aquelle quadro, a ridiculez dos olha
res, das posturas e do silencio. Estava isto assim
n'este curioso lance de se deverem rir um do outro,
quando Joanna se lhe atirou ao peito, espedindo um
ai estridulo, um como grito do coração que morre.
Se a não amparassem, cahiria ; mas não cahiu. Os
braços d'elle apertavam-na muito, muito ; e, se os
braços não bastassem a sustel-a, creio que elles se
segurariam um n'outro pela identificação dos labios.
Como se amavam !
E, depois, não ha mais que dizer no tocante á
reconciliação. O alcaide chegou a lançar o jantar com
o riso, quando o portuguez lhe contava a passagem
com os tregeitos e transportes que deram em resul
tado o jurarem-se reciprocamente um eterno amor
de mais algumas semanas.
No dia seguinte, quando Francisco Xavier anda
da curando dos aprestos para a jornada, ó que elle
se encontrou com as duas perseguidas hebreas no
adro da igreja. O leitor pode recordar-se.
Deteve-se ainda tres dias em Valhadolid Fran
cisco Xavier de Oliveira á espera d'alguma boa nova,
com referencia ás presas. Com as boas esperanças
50 (MUDíui
de D. Raphael, sahiu o moço, acompanhado da ciga
na, para Lisboa.
Socegado de coração, cuidou em trabalhar no
salvamento de Antonio José da Silva. Desvaliosa pro
tecção seria a d'elle, já tão mal visto do santo offi-
cio, que os paes incessantemente lhe pediam que fu
gisse de Portugal. Diogo de Barros despersuadiu-o
de solicitar a misericordia de S. Domingos a favor
do seu amigo, como patronato inconveniente ao pre
so, a menos que o não quizesse sobrecarregar.
Os valedores do filho de João Mendes, com quan
to poderosos, ignoravam e temiam a sentença no fa
tal dia 13 de Outubro, designado para o auto da fé.
Contavam Diogo de Barros e o conde da Ericeira com
as favoraveis allegações dos qualificadores do santo
officio ; desconfiavam, porém, do inquisidor geral.
Soaram os sinos á chamada dos fieis para assis
tirem ás sentenças na igreja de S. Domingos. Entre
os réos da vanguarda ia Antonio José com o sambe-
nito, descalço, cabeça rapada, ao lado do padrinho
que lhe fora nomeado. Ir elle entre os primeiros
réos, era já signal de grande jubilo para os seus. Os
que marchavam depós o Crucificado, erguido em
meio da procissão, esses já podiam de antemão con
tar com as agonias da fogueira, porque já não viam
a face do Christo. Antonio José da Silva ouviu o ser
mão dos labios piedosos d'um frade dominicano, que
se esteve sempre em extasis diante da misericordia
ROMANCE HISTORICO 51

com que a santa inquisição andava em cata das al


mas Iresmalhadas do caminho da gloria para as res
tituir ao seu creador.
Concluido o sermão, dous frades subiram ao
pulpito para lerem a summa dos processos, e decla
rar as penas em que haviam sido condemnados.
A primeira sentença lida foi a do padre Luiz
Alvares d'Aguiar, accusado de prostituir as suas de
votas no confessionario, crime que na tortura confes
sara. Privado do exercicio das funcções ecclesiasti-
cas, foi condemnado a desterro perpetuo.
Antonio José da Silva, n'esta occasião somente,
soube que o prior de S. Jorge fora tambem victima
da denuncia de Bartholomeu Lobo Corrêa.
Seguiram-se outros réos.
Depois, um familiar conduziu pela mão Antonio
José ao meio das galerias, occupadas por frades, bis
pos, qualificadores e familiares. Ouviu lêr o proces
so, que o accusava de ter bebraisado. A sentença
era absolutoria, visto que o réo confésso abjurava as
doutrinas dos dogmas judaicos. Em seguida leva-
ram-no ao tope do altar, onde o fizeram ajoelhar, e
por a mão sobre um missal. N'esta postura, recitou
um protesto de fé, e esperou que o inquisidor o
absolvesse da excommunhão e lhe impozesse a pe
nitencia. 1
1 Estes pormenores das ceremonias dos autos da fá, e outros
que vierem ao intento n'este livro, encontrei-os authorisadamente escri
52 O JUDEU

Ultimada a leitura das sentenças, Antonio José,


ao sahir do templo para entrar na casa-santa, i cir-
cumvagou os olhos pela multidão, e viu Francisco
Xavier de Oliveira, ao par de sua mãe, que cobria
o rosto e as lagrimas com a mantilha. Entrou no
tribunal, despiu o sambenito, os calções e a jaque
ta parda listrada de raios brancos : entregou ao al
caide da inquisição a vestimenta, e esperou que o
inquisidor, duas horas depois, lhe designasse em
lista manuscripta os artigos da penitencia, e lhe cru
zasse a ultima benção misericordiosa.
Ao anoitecer, o filho de João Mendes entrou na
liteira do contador-mór, e foi conduzido a casa de
seus paes. Lourença Coutinho, quando lhe viu os
dedos macerados, e as articulações das phalanges
ainda chagadas da tortura, perdeu os sentidos nos
braços do filho. O ancião, com as mãos erguidas,
abafava de soluços, desviando os olhos das mal fe
chadas cicatrizes, que o moço mostrava. Francisco
Xavier, a praguejar, blasphemava da Providencia,

ptos n'um raro livrinho da excellente livraria do meu douto amigo José
Gomes Monteiro. Intitula-se o livro, escripto em francez, e impresso em
1688, Relation de 1'InquisiUon de Goa. O narrador foi um medico
francez que lá padeceu dous annos de carcere como herege, e veio para
Portugal condemnado a cinco annos de galés, d'onde o salvou um medico
francez, que o era da rainha D. Maria Francisca de Saboya, mulher de
D. Pedro 11. Opportunamente darei mais ampla noticia do contexto do
livro,
'. Era assim denominado o tribunal da inquisição.
ROMANCE HISTORICO 53

duvidando que ella existisse, e impassivelmente se


revisse nas atrocidades d'este mundo.
Antonio José da Silva, nos primeiros dias de li
berdade, fez suspeitar desconcerto de juizo, á conta
d'uns ares sombrios e semblante empedernido em
que se deixava estar, longas horas, n'um terrivel
quietismo. Á primeira vez que sahiu de casa, foi ao
convento de S. Domingos tratar cousas espirituaes
com frades de boa nomeada em virtude e saber. Fu
gia os seus antigos conhecidos, e nomeadamente Fran
cisco Xavier d'0liveira, que mais que todos se com
padecia da estragada cabeça do pobre Antonio. Quan
do o amante de Joanna Victorina lhe queria contar os
successos de Valhadolid, Antonio José cortava a nar
rativa, pedindo que lhe não desnorteasse o espirito.
Oliveira ria-se á sucapa dos tregeitos pios do amigo,
o qual, por vezes, era na verdade irrisorio, referindo
seraphicamente as suas visões e sonhos beatificos.
Esta enfermidade cerebral, effeito das trevas, da
insulação e tormentos da santa casa, guareceu-a len
tamente o correr do tempo. Este melhoramento, po
rém, não impedia que Antonio José, um dia por ou
tro, fosse ao convento de S. Domingos conversar,
instruir-se e roborar a sua piedade com os frades.
Entretanto, Lourença Coutinho e João Mendes,
grandemente auxiliados pelo tio de Jorge de Barros,
curavam incansaveis do livramento de Sara e Leonor.
Ao principio, Antonio José ouvia fallar d'ellas com
54 O JUDEU
uma quasi estranheza, e depois com piedade. Dizia
elle que a desgraça era necessaria, quando nos sahia
ao encontro fora da estrada direita, porque, semella,
nunca nos resgatariamos de atalhos perigosos e con-
ductores á perdição. Oxalá — ajuntava elle — que
Sara e Leonor aprendam a verdadeira religião, como
a mim me aconteceu !
Lourença chorava quando isto ouvia. Francisco
Xavier olhava-o em rosto com sincera amargura, e
de si para si dizia : « endoudeceram-no I »
D. Raphael Hernandes avisou o seu velho ami
go José de Oliveira que as duas presas sahiriam in-
fallivelmente no primeiro auto da fé ; pelo que, es
tavam sendo superfluos os empenhos que iam de
Portugal para o inquisidor e qualificadores do santo
officio. Asseverava-lhes que o santo ofRcio em Hes-
panha era muito menos rigoroso que o tribunal por-
tuguez ; e, no caso das duas mulheres, não havia na
da que recear, senão a prisão de mais dous mezes,
em um quarto bem alumiado e provido de tudo que
eflas á sua custa mandavam procurar.
Ao aproximar-se o dia 26 de Janeiro, Diogo de
Barros, carregado de annos e virtudes, quiz prestar
ainda os bons officios de parente á filha de seu so
brinho Jorge, indo a Valhadolid buscar as duas se
nhoras, para d'alli as conduzir para o seio de sua
familia. Francisco Xavier d'Oliveira, o moço roma
nesco, afigurando-se-lhe cavalheirosa bizarria appa
ROMANCE HISTORICO 55

recer n'uma hora feliz ás damas, que o viram em


afflictissimos momentos, acompanhou o ancião, mui
to a beneplacito do pae, que se atormentava com
medo das iras do filho contra os inquisidores.
E chegados estamos, pois, ao ponto em que Sara
e Leonor sahiram absoltas e penitenciadas da inqui
sição de Valhadolid, no auto da fé, de 26 de Janei
ro de 1727.
CAPITULO VI

Aposentou-se Sara em casa do tio de seu ma


rido.
Lourença Coutinho e a sua amiga encararam-se
e duvidaram uma da outra. Na desfiguração d'estas
atormentadas mulheres só a continuada reminiscen
cia poderia entrever umas sombras da antiga formo
sura.
Sara quiz vêr Antonio José, o homem formado
d'aquella creancinha que andava na Covilhã com sua
filha ao collo, e tanto chorara por ella na despedida.
O moço encarou estupefacto em Leonor. A visagem
não era bem de espanto : estava alli o quer que fosse
do idiota, que se procura no seu passado a um raio
de luz, da apagada luz da sua razão, do seu amor,
de suas esperanças.
58 O JUDEU
Leonor contemplava-o triste da commum tristeza
das piedosas almas. Não o tinha amado ; mas affize-
ra-se a pensar n'elle. Imaginava-o moço de muitos
espiritos, de airosa presença, sympathicamente melan
colico ; e via alli um homem como entanguido de
friod'alma, em spasmos de santa introversão, olhan
do para ella com assombro, e para os outros com
certo ar de quem pede que lhes alumiem as escuri-
dades da memoria do seu coração.
Leonor, avisada por Lourença, do estado lasti
moso em que a tortura lhe transformara o filho, cha-
mava-o ás recordações do passado, recitava-lhe os
versos d'elle que recebera em Amsterdam, pedia-lhe
que lhe dissesse poesias novas ; e convidou-o, uma
vez, a glossar-lhe uma quadra. Antonio José da Sil
va accedeu com um sorriso, e disse :
— Uma quadra espiritual. . . Seja ! Diga que eu
vou escrevêl-a. . .
Mas, ao curvar os dedos para segurar a penna,
soltou um leve gemido, e murmurou :
— Esquecia-me que não posso escrever.. . Te
nho os dedos quebrados ! 1
— Infames frades ! — exclamou Leonor.
— Por quem é ! . . . — acudiu Antonio José —-
por quem é ! . . . não falle assim, Leonor ! não fal
' «... torturado tão cruelmente que os dedos lhe ficaram «m tal
estado que por muito tempo não pôde nem assignar o seu nome.» Costa e
Silva — Ensaio biograph. T. 10, pag. 331.
ROMANCE HISTORICO 59

le. . . que eu posso ser seu accusador na tortura ! . . .


Eu tinha desejo de morrer, quando me deram os tra
ctos ; por isso não accusei meu pae e minha mãe,
mas aquelles que não podem com a dor nem com o
terror da morte. . . esses accusam pae, mãe, esposa
e filhos. . . denunciam-se a si, calumniam-se, des-
honram-se, condemnam-se a inferno sem fim, para
não sentirem o repuxar e estalar de cada fibra do
seu corpo, e o gotejar de cada gota do seu sangue,
e o apagar-se compassado, lento, horrendissimo de
cada faisca luminosa do seu espirito. . .
— E como eram as torturas. . . como foi que lhe
pozeram as mãos n'este estado ? — perguntou Leonor.
Antonio José da Silva fitou-a como espantado da
pergunta, e disse:
— Nunca revele o que viu na inquisição de Va-
lhadolid, Leonor: olhe que não ha perdão para a
bocca imprudente que deixou passar uma palavra re
veladora do que lá vai n'aquelles infernos I.. .
E, dito isto, com torva e mysteriosa solemnida-
de, o filho de Lourença Coutinho sahiu impetuosa
mente d'entre as familias hebraicas e christãs que o
viam e ouviam com os olhos marejados de lagrimas.
— E aquelles nossos planos, Lourença — disse
Sara — Vê tu como a desgraça n'ol-os desfez !. . . Teu
filho, se assim vai. . . podemos perder a esperança de
o trazer a uma regular vida em que possa realisar-
se o casamento. . . Elle nada te diz ?
60 0 JUDEU

— Se eu lhe falto n'isso, diz-me que está morto


para a felicidade, e que lhe não resta esperança de
restaurar nada do que perdeu. D'antes era triste ;
agora está continuamente chorando. Não pode escre
ver. . . é o maior infortunio. . . Nâo sei como heide
distrahil-o. Anda de convento em convento. Por ahi,
chamam-lhe hypocrita ao meu pobre filho. . . O que
elle está é quasi demente, se a Divina Providencia o
não soccorre. . . A minha esperança és tu, Leonor !
— exclamou Loufença, beijando a filha de Jorge de
Barros — Tu é que hasde salvar o meu Antonio, o
teu esposo ! . . . Dá-lhe tu calor ao coração que se
congelou no frio dos calabouços. Acorda-o, filha ; cha-
ma-o ás alegrias d'este mundo. . .
— Eu não as tenho. . . — balbuciou Leonor —
Não tenho mais calor no coração que elle. . .
— Então não o amas?! — replicou Lourença,
como admirada da frieza de Leonor.
— Como podem amar-se pessoas que apenas se
viram na infancia f — tornou a filha de Sára — mas
com isto, snr.* Lourença, não quero eu dizer que
me esquivo a ser esposa de seu filho, se tal é a von
tade de minha mãe, e se já esse destino me havia
dado meu querido pae. Sem idéa de casamento, mi
nha amiga, heide fazer quanto podér por distrahir
o Antoninho das suas amarguras ; creia-me. . .
Lourença levou a mão de Leonor aos labios, e
reparando, disse:
HOMANCE HISTORICO 61

— Cá está o annel de teu pae, menina ! . . . Não


o percas. . . Deixaram-t'o os da inquisição ? Cá em
Portugal não é costume restituir aos absolvidos as
cousas, que lhe encontram, quando os prendem. A
mim nunca me restituiram dous anneis de pedras e
uma manilha que eu trouxe do Brazil. . . l Não vos
cortaram os cabellos na inquisição de Valhadolid?
— Não, nem nos mudaram os vestidos — disse
Sara. •
— Então, filhas, não digaes que soffrestes. . . A
vossa prisão foi suave; o Deus compadecido dos in
felizes sem culpa não vos desamparou. . . E o the-
souro? — proseguiu Lourença — quando havereis á
mão a vossa riqueza, filhas?
— Nem já pensamos em riquezas — disse Sára
— O tio do meu Jorge presume que o cofre já não
existe.
1 Quaesquer preciosidades encontradas aos réos, no acto de os
raparem, e entrajarem com a libre" da inquisição, nunca se devolviam ao
preso, propriamente livre como innocente ou reconciliado. O author e
martyr da «Inquisição de Goa» livro que, pouco ha, citei, inventariando
as ganancias dos inquisidores, diz : « Além da honra, authoridade, e lu
cros annexos ao cargo de inquisidores, de duas differentes maneiras lhes
cresce a pitança ; a primeira é, quando se faz leilão do espolio dos pre
sos, em tudo que é bom mandam os inquisidores licitar por algum de
seus criados, lanço com que ninguem concorre, desde que o criado se
faz conhecer; e os objectos são adjudicados pelo mais baixo preço ; a se
gunda maneira é que o producto dos bens confiscados, posto que seja le
vado ao erario, devolve-se logo às mãos dos inquisidores, porque elles o
requisitam, para costeamento das despezas secretas do santo officio, e
ninguem lhes ousa pedir contas : de modo que o producto das confisca
ções reverte n'elles. »
82 O JUDEU

— Ha um anno — tornou Lourença — que meu


marido soube do capellão da Bemposta que tal cousa
nunca apparecera.
— Isso me disseste para Amsterdam.
— É verdade: bem me lembro.. . E o filho do
capellão, que é o almoxarife dos infantes, se souber
que vós viestes de Hollanda, é capaz de vos procu
rar a vêr se descobre o segredo. Tende cautela
comelle, que eu não lhe tenho muita fé, apesar de
se mostrar muito compadecido do meu Antonio, e
me dizer que pedira por elle aos infantes. Chama-se
Duarte Cottinel Franco, andou com os meus filhos e'
com o Francisquinho Xavier na escola, e Deus sabe
que elle foi causa de muitos desgostos da minha ami
ga D. Isabel, levando-lhe o filho para as noitadas da
Bemposta, onde vão todos os perdularios e mulheres
perdidas de Lisboa. Eu não gosto d'elle. . . NSo sei
o que me diz o coração d'aquelle homem, que me
não fez mal nenhum! São scismas de quem anda
sempre a tremer de falsos amigos. . . De mais a mais
consta-me que elle é familiar do santo officio, e o
pae é qualificador. Tudo isto vos conto, filhas, para
que vos não confieis do tal Duarte Cottinel : basta-
lhe ser filho de cigana, segundo dizem. O padre,
que hoje goza boa fama, foi um dos mais libertinos
clerigos de Lisboa. Agora, escolheram-no para qua
lificar e avaliar as culpas dos christãos novos, here
ges e feiticeiros.
CAPITULO VII

Francisco Xavier de Oliveira, desde a hora em


que foram presos Antonio José e o prior de S. Jor
ge, fez ao demonio da vingança um tão fervoroso voto
como, annos antes, em perigo de naufragar, fizera á
Senhora da Penha de França. A victima, que elle
prometteu sacrificar na hecatomba do diabo, era aquel-
le Bartholomeu, filho do traductor da Sentinella con
tra judeus, e propugnador dos rabinhos dos mesmos.
Era incapaz de matar traiçoeiramente um homem
Francisco Xavier. A sua robustez, muitas vezes pro
vada com grandissimo dissabor dos seus adversarios
deslombados, instigava-o a encarar de frente os ini
migos, e esmagal-os, se a victima ficava entre elle e
uma parede. Um só homem, em Lisboa, lhe dispu
tava primazias em força : era um D. Henrique Hen
64 O JUDEU
riques d'Arroyos que sustentava durante quatro mi
nutos na palma da mão a mó d'um moinho, e, arre-
messando-a depois, a fazia rolar a distancia de dez a
quinze passos.
Em corridas de touros, um outro homem lhe
competia em destreza e força : era o marquez d'Ale
grete, Manoel Telles da Silva, que, n'uma festa da
Senhora da Piedade, no pateo do duque de Cadaval,
estando presente o rei, cortára cerce a cabeça a um
touro d'uma só cutilada.
De si diz o cavalheiro de Oliveira que, aos vinte
annos, agarrava um boi e o subjugava em singu
lar combate. Ajunta que ninguem o venceu no ati
rar ao alto uma bala de ferro, que recebia na que
da, e tres vezes successivas arrojava á mesma altu
ra. Ora, um homem que assim brincava com uma
bala de ferro devia de conjecturar que a cabeça de
Bartholomeu em suas mãos não pesaria mais que
uma avellã.
O seu maximo cuidado era sahir-se limpamente
da empreza para não desgostar sua familia nem in-
commodar amigos no livramento.
Bartholomeu tinha uma quinta em Oeiras, sobre
o mar, onde costumava passar o estio, em saborosa
companhia dos seus livres, relendo e commentando
as obras ineditas do pae, no intento de as estam
par, quando a illustração publica merecesse tamanho
brinde.
ROMANCE HISTORICO 65

Francisco Xavier farejava-lhe a pista, sem reve


lar a ninguem o proposito com que miudamente ga
lopava na estrada de Pedroiços.
Uma tarde, quando se recolhia, já lusco-fusco,
enxergou na praia do Dá-fundo o pensativo Bar-
tholomeu que se passeava philosophando á beira-
mar. Francisco Xavier descavalgou, depois de ter
relançado os olhos por sobre a praia deserta. Avisi-
nhou-se de Bartholomeu, e perguntou-lhe se achara
nas suas meditações a causa efficiente d'uns rabi-
nbos que surdiam do fim do espinhaço de certos
judeus.
Bartholomeu tremia e balbuciava. Francisco Xa
vier, sofrego da opportunidade, perguntou-lhe se o
não abrasavam remorsos de fazer desterrar inqui-
sitorialmente um velho de sessenta e cinco annos, e
de fazer esmagar na tortura os dedos de Antonio
José da Silva. Bartholomeu preparava-se para arran
car alguns gritos do peito anciado, quando Francisco
Xavier lhe disse, segurando-o pelo pescoço :
— Vm.ce precisamente arde de remorsos, e ca
rece de refrigerio.
Dito isto, filou-o pelas roupas do costado, sacu-
diu-o para ganhar impulso com o balanço, e remes-
sou-o ao Tejo. O homem escabujou alguns segundos
á tona d'agua, sumiu-se, mostrou as pernas mais
longe onde a resaca o levou, e não deu mais conta
de si aos olhos attentos de Francisco Xavier, que
VOL. II í>
66 O JUDEU

invocava as estrellas e a lua como testemunhas d'a-


quella boa acção de sua vida. O moço cavalgou pla-
cidamente, e, como quem depois d'um feito brioso
tira a limpo os corollarios excellentissimos do acto,
ia dizendo comsigo: «Se os christãos depuram os
hereges no fogo, porque não hãode os homens ra-
cionaes depurar os fanaticos na agua ? Façamos tam
bem aquaticamente nossos autos da fé.
Na madrugada do dia seguinte, a maré revessou
o cadaver de Bartholomeu ao sopé da torre de S.
Gião. A noticia chegou logo a Antonio José da Sil
va, que não sabia se devia folgar, se temer-se da pos
sivel imputação do homicidio. Francisco Xavier en-
controu-o n'esta vacillação, e disse-lhe :
— Não temas, parvo, que o infame denunciante
morreu sem a mais leve contusão. Peguei-lhe geito-
samente pelo estofo dos vestidos, e apertei-lhe o pes
coço com tal cuidado, que o homem apenas passou
pelo incommodo de beber agua á proporção das la
grimas que fez chorar. Estás vingado, é o grande
caso. Se não te pude livrar da inquisição, livrei a
humanidade d'uma fera'.
— E estarei eu livre das outras ? — perguntou
Antonio José, com temeroso aspeito.
— Estás, se continuares n'essa tua hypocrisia sa
lutar de te gastares por conventos de frades. Faz
isso que é bom ; mas a mim não me enganes.
ROMANCE HISTORICO 67

— Cala-te! — acudiu o judeu — Cala-te que eu


creio em Jesus Christo e na Virgem.
— Fazes muito bem, meu amigo; diz isso a toda
a gente; diz-m'o tambem a mim.. .
— Se tu ouvisses o fr. Antonio Esteves de S.
Domingos. . . Queria que o ouvisses ! . . . Convenceu-
me, reduziu-me ao puro christianismo com razões
inexpugnaveis. Meu amigo, torna-te á tua fé antiga.
Eu pedirei á Senhora da Penha que te illumine e
converta áquelle fervor com que lhe pediste reme
dio quando as ondas te sossobravam. . .
— Pois sim, — atalhou Francisco Xavier — pede
lá o que quizeres ; mas conta-me alguma cousa d'a-
quella peregrina Leonor, formosa a mais não poder.
Casas ou não casas? Olha que eu, se lhe não acodes
depressa, vou galanteal-a ! Á fé ! não me leves isto
em graça !
— Faz a tua vontade — disse triste e serenamen
te o Silva — Eu perdi o gosto da vida. O sangue, que
me tiraram, era o do coração. Quebraram-me corpo
e alma. A luz de esperança em cousas d'esta vida,
apagaram-m'a. Não vês a minha tristeza sem inter-
mittenciade satisfação? Tudo me enfastia, cobrei te
dio de tudo ! Como heide eu ir associar á minha
desgraça aquella menina, tão de lucto já no coração
de quinze annos ! . . . Para mim e para ella ha vul
cões que nos refervem debaixo dos pés. D'um mo
mento para outro, cahiriamos abraçados no abysmo
68 O JUDEU

de fogo. Um inimigo basta para nos perder; um


inimigo que disponha d'algumas consciencias vendi
das! Que se não casem homem e mulher em cuja
fronte a sociedade abriu a ferro o estigma da maldi
ção ! Dous malditos que se reproduzem em filhinhos
amaldiçoados do mundo ! A mãe hade arrancar o
peito da bocca da creança para seguir o enviado do
santo officio ; a creança, agonisando de fome, não
terá seio de christã que se lhe abra ! Tu não vês
uns meninos esfarrapados, que se aconchegam uns
dos outros no coberto de S. Domingos ? São os fi
lhos dos hebreus, que já morreram queimados, e dou
tros, cujos gemidos elles poderiam ouvir, se eollas-
sem os ouvidos ás paredes negras da casa santa, e
se os guardas dos calabouços não cortassem com um
tagante as carnes dos que gemem. Aquelles meninos
não deviam ter nascido ! Foram gerados na maldi
ção. Foi perversidade dos paes darem a este mundo
aquelles padecentes, que vão alli estender as mãosi-
nhas descarnadas . . .
— Aos verdugos de seus paes — atalhou Fran
cisco Xavier.
Antonio José da Silva fitou com penetrantes olhos
o amigo, deixou depois cahir o rosto sobre o seio,
e murmurou:
— É assim. . . é assim. Os paes e mães d'aquel-
las creanças mataram-nos elles ; esmagaram-nos de
baixo do madeiro do Crucificado.. .
ROMANCE HISTORICO 69

E, ergaendo-se de vertiginoso salto, exclamou :


— Scelerados ! scelerados ! que mal fiz eu para
martyrio tão loDgo ! Se tu visses como estes ossos
das mãos me rangiam entre duas laminas de ferro
que se queriam ajuntar atra vez das fibras.. . E o
sangue a espirrar debaixo da pressão do torniquete . . .
Olha!...
E mostrava-lhe as fendas da carne esphacelada,
e por entre ellas o roixo dos ossos, com laivos de
sangue e o amarellido dos tendões que pareciam
cancerados.
— E podes ainda levantar essas mãos ao Deus
de Domingos de Gusmão ! ? — perguntou ironica
mente Francisco Xavier, voltando o rosto do espe
ctaculo nauseento das feridas ressumando pus san
guineo.
Antonio José pensou por momentos, e disse:
— Não me tentes I. . . deixa-me crêr para ter
vontade d'outra vida. . . Este mundo, sem fé, sem
esperança, é um horror inconcebivel.
— Pois crê! — voltou Xavier — mas crê como
homem que rejeita Moisés e o divino Christo. Crê
em Moisés como n'um legislador barbaro, e em Chris
to como n'um reformador dulcificado pelas doutrinas
de Socrates e de Philon. Crê no destino do homem
para além d'esta vida. Crê na virtude sã dos secta
rios de todas as religiões : crê que o verdadeiro Deus
está no coração do mahometano virtuoso, do hebreu
70 O JUDEU

honrado, do christão caritativo, do brahmane inoffen-


sivo. Sê hypocrita, se te é precisa á vida essa vil
qualidade ; mas não pervertas a tua intelligencia, não
aniquiles os teus dons de altíssimo engenho, não
bestifiques as tuas luminosas faculdades.
CAPITULO VIII

Francisco Xavier discorreu longo tempo.


Escutava-o silencioso Antonio José da Silva. Quan
do o filho do contador-mór se retirou, a razão aba
fada do moço conflagrou-se, como o rapido alar-se da
chamma, que rompeu subita por entre as vigas da
casa incendiada.
Resaltou-lhe a alma do quietismo lethargico em
que passava os dias, no mais recondito e escuro de
sua casa. Agitavam-no furias blasphemas que intimi
davam a familia. Extenuado dos sacões que fazia com
os braços ainda quebrados dos jejuns e dores do car
cere, cabia prostrado e febril.
Esta agitação d'alguns dias acabou em socegado
repouso e lucido entendimento. Era, já conversavel
e judicioso em suas praticas. Ia com seupae aoescri
72 O JUDEU
ptorio, e applicava-se ao estudo da jurisprudencia com
tenacidade. Descontinuou as visitas aos mosteiros;
mas, tal qual vez, escrevia a dous frades, que se lhe
tinham figurado mais doutos que o commum, e es
tranhos aos processos inquisitoriaes, e talvez avessos
e censores do procedimento do santo officio em gran
de parte dos seus actos. Ao diante, os dous frades
hãode dar de si tão boa conta que a posteridade haja
de os louvar como honrados amigos e defensores do
talentoso hebreu.
A longos termos, Antonio José da Silva visitava
Sara, nos primeiros mezes. Depois, amiudaram-se
as visitas. Por fim, ao cabo de um anno, o coração
do moço não estava socegado na presença nem na
ausencia de Leonor. Esperança inquieta ou inquieta
saudade divertiam-lhe a idéa do estudo, mormente
do arido estudo do direito, posto que elle, vasta ca
pacidade para tudo, despachava os feitos que seu
pae considerava dignos de mais habil e engenhoso
articulado.
Já o bacharel, quando Oliveira lhe pedia venia
para galantear a judia adoravel, sorria ao requeri
mento jocoso do amigo, e aconselhava-o que dissesse
de sua justiça no tribunal d'ella, por ser o competente.
Com as alvoradas do amor, dilucidou-se a escu-
reza de suas cogitações, desnoitou-se-lhe o coração,
repontaram idéas claras e alegres, e, a poucas voltas,
ROMANCE HISTORICO 73

fez-se dia esplendidissimo, vida nova no intimo e no


exterior do moço.
Renasceu o gosto e vocação da comedia. Rebuscou
os seus papeis esquecidos ; uns poucos existiam ain
da, que o maior numero d'elles rasgara-os João Men
des, receiando que o santo officio fizesse busca e lhes
espremesse a heretica peçonha que elles, apertados
entre mãos de inquisidores, gottejariam certamente.
A opera, ou comedia, que Antonio José predile-
ctamente polira e repolira em Coimbra, como peça
com que tencionava estrear-se, era a Vida do gran
de D. Quichote de la Mancha e do Gordo Sancho
Pança. Esta, e mais outras com que, mais tarde, o
hebreu levantou a meio a quebrada columna de sua
gloria, lia elle á numerosa assembléa de fidalgos que
Diogo de Barros convidava em honra do engenhoso
moço. Estas leituras, por onde o seu nome se divul
gara até ás camadas inferiores da cidade, ser-lhe-hiam
de muito desprazer, se Leonor as não agradecesse,
como favor e brinde feito especialmente a ella. De
certo era ; que a Índole melancolica de Antonio José
da Silva desdizia das gargalhadas com que o audito
rio victoriava as scenas ridentissimas do D. Quichote,
da Esopaida e do Amphitrião. E todavia, Leonor,
ceremoniosamente, e não do coração lhe agradecia.
Do D. Quichote, especialmente, uma scena das mais
comicas, sem ser das menos urbanas em linguagem
— esmero pouco usado dos dramaturgos francos e
74 O JUDEB

populares d'aquelle tempo — repetiam-na de memo


ria os admiradores de Antonio José da Silva. É a
scena viu. D. Quichote declama em soliloquio n'uma
floresta, e diz :
« Ha dias que trago no pensamento uma cousa
que me tem causado grande cuidado ! Dar-se-ha caso
que os meus inimigos encantadores tragam transfor
mada a belleza da senhora Dulcinéa em a figura de
Sancho Pança ! E os motivos que tenho para isso é
vêr a paciencia com que este escudeiro me atura as
minhas impertinencias sem salario nenhum ; e vêr
que jamais foi possivel vêr eu Dulcinéa no seu ori
ginal e nativo esplendor. Tudo póde ser que seja ;
pois se leem, nos antigos livros de cavallaria andante,
outras transformações de nymphas, ainda em mais
ruins figuras, qual a de Sancho Pança, e porque este
pensamento não é fora de conta, bom será averi-
gual-o, que a diligencia é mãe da boa vontade. En
tra Sancho.
Sancho

« Senhor, o rocinante está esperando que vm.ce


o cavalgue, e tem dado taes relinchos, pulos e.. . i
que supponho nos prognostica alguma boa ventura.

* N'aquelle tempo, usavam-se pouquissimo as reticencias. Hoje,


devo presumir que alguns termos populares das comedias do judeu, se
os eu trasladasse, fariam que o livro cahisse da mão enluvada e melin
drosa que o abriu.
ROMANCE HISTORICO 75

D. Quichote
« E, se bem reparo agora nas feições d'este San
cho, lá tem alguns laivos de Dulcinéa ; porque, sem
duvida, Sancho, ás vezes, o vejo com o rosto mais
afeminado, que quasi me persuado está Dulcinéa trans
formada n'elle.
Sancho
« Meu amo está no espaço imaginario ! á parte.
Ah ! senhor, toca a cavalgar, que o rocinante está sel-
lado e o burro albardado. Senhor, vm.ce ouve ?
* *
D. Quichote
« Sim, ouço. Que seja possivel — prodigioso eni
gma do amor ! — galharda Dulcinéa del Toboso, que
os magicos antagonistas de meu valor te transformas
sem em Sancho Pança !
Sancho
« Ainda esta me faltava para ouvir e que atu
rar! aparte. Que diz, senhor? está louco? com
quem falla vm.ce?
D. Quichote

« Fallo comtigo, Sancho fingido, e com Dulcinéa


transformada.
Sancho
i Se vm.ce algum dia tivesse juizo, dissera que
76 O JUDEU

o tinha perdido. Que Sancho fingido ou que Dulci-


néa transformada é esta ?
D. Quichote
« Não sei como agora falle, se como a Sancho,
se como a Dulcinéa ! Vá como quer que for : Sabe
rás que os encantadores tem transformado em tua
vil e sordida pessoa a sem igual Dulcinéa ! Vê tu,
Sancho amigo, se ha maior desaforo, se ha maior
insolencia d'estes feiticeiros, que em mascarar o sem
blante puro e rubicundo de Dulcinéa com a mascara
horrenda da tua torpe cara !
Sancho
« Diga-me, senhor, por onde sabe vm.ce que a
snr.1 Dulcinéa está transformada em mim?
D. Quichote
« Isso é o que tu não alcanças, simples Sancho;
pois sabe que nós, os cavalleiros andantes, temos cá
um tal instincto que nos é permittido conhecer onde
está o engano e transformação pelos effluvios, que
exhala o corpo, e pela physionomia do rosto.
Sancho
«... Que parentesco carnal tem a minha cara
com a da snr." Dulcinéa? Ora eu até aqui não cui
ROMANCE HISTORICO 77

dei que vm." era tão louco ! Cuido que nem na vida
de vm.ce se conta semelhante desaventura !

D. Quichote
« Quanto mais te desconjuras mais te inculcas
que és Dulcinéa ; deixa-me beijar-teos átomos anima
dos d'esses pés, já que me não permittes tocar com
os meus labios o jasmin d'essa mão, dulcissima Dul
cinéa ! Chega-se D. Quichote para abraçar Sancho.
Sancho
«. Aqui d'el-rei que não sou Dulcinéa ! Tire-se
lá ! olhe que lhe dou uma canellada !
D. Quichote
« Ora, meu Sancho, diz-me aqui em segredo se
és Dulcinéa, que eu te prometto um premio.
Sancho
<t Como, senhor, lh'o heide dizer ? Sou tão ma
cho como vm.ce

D. Quichote
« Sancho, nesse mesmo dengue agora confirmo
mais que és Dulcinéa.
Sancho
« Ora leve o diabo o dengue I Que queira vm.ce
78 O JUDEU

que á força seja eu Dulcinéa ensanchada, ou Sancho


endulcinadol Ora pois, já que quer que eu seja Dul
cinéa, chegue-se para cá que lhe quero dar dous
couces.
D. Quichote
« Tu me queres dar couces ? Agora vejo que
não és Dulcinéa ; pois Dulcinéa tão formosa e tão dis
creta, nunca podia ser besta, nem ainda transforma
da para dar o que me offereces com a tua grosseria.

1 José Maria da Costa e Silva, na parte do seu diccionario biblio-


graphico que diz respeito a Antonio José, escreve o seguinte : « Bocage
fazia grande apreço das comedias de Antonio José, e a respeito de D.
Quichote referirei uma anedocta sua, que mostra que elle lia estes dra
mas com reflexão, e sabia investigar suas bellezas. Indo eu uma vez vi-
sital-o, durante a sua ultima enfermidade, achei-o deitado de bruços so
bre a cama, com um livro na mão, e rindo como um doudo. « Que livro é
esse, lhe perguntei, que te provoca tanta hilaridade? — São, respondeu,
as operas do judeu, e achei aqui no D. Quichote uma idéa tão bufona,
tão extravagante que admira haver escapado a Cervantes.» E depois d'al-
gumas gargalhadas leu o seguinte. . . (É a scena vm que trasladei.)
«Acabada esta leitura— prosegue Costa e Silva — algumas vezes
interrompida pelo riso, Bocage proseguiu: «Então? que te parece? não
é isto uma lembrança bem original, bem graciosa e bem propria? e o ju
deu não soube tirar d'ella um grande partido produzindo uma scena bem
comica? Oh ! esta idéa devia ter occorrido a Miguel de Cervantes ! »
Até aqui o amigo de Bocage.
Que outra ordem de considerações mais litterarias e philosopuicas
não faria Elmano, ponderando o ingente infortunio do engenhoso hebreu,
mormente nos dias que passou no carcere da inquisição ! Manoel Maria
Barbosa do Bocage, se lá tivesse entrado cincoenta annos antes, não sahL
ria para mais longa vida que Antonio José da Silva. As feras de Domin
gos de Gusmão, na época de Bocage, rugiam apenas, acorrentadas á
jurisprudencia civil. O marquez de Pombal arrancara-lhes os dentes, e
emprestara-lh'os uma vez para despedaçarem o padre Malagrida.
CAPITULO IX

Lourença Coutinho, como visse restaurar-se o


amor ao estudo, o gosto das comedias, e o contente
viver do filho, entendeu activamente no consorcio
almejado e promettido de tão longe. Contava ella
com a vontade do seu Antonio, e tinha como segu
ra a condescendencia de Leonor.
Enganou-se na mais importante parte dos seus
calculos.
Leonor, assim que sua mãe formalmente lhe lem
brou os antigos compromissos, respondeu que sem
pre considerara brincadeira de sua mãe com a mãe
de Antonio o contracto de união eterna entre duas
pessoas, uma das quaes nasceu alguns annos depois.
Ajuntou que aceitára a correspondencia de Antonio
José, para não desagradar a sua mãe, e na esperan
ça de, alguma hora, se aproximar e sentir por elle
80 O JUDEU
o interesse que a distancia não podia inspirar-lhe.
Acrescentou e concluiu dizendo que o facto de se
aproximarem não era bastante a resolvel-a a casar-
se, nem a sua idade era ainda propria de tão grave
decisão. Pedia, pois, cinco annos de espera ; e, aos
vinte, se decidiria.
Estas razões, litteralmente traduzidas, queriam
dizer que o não amava. Isto não é censuravel nem
extraordinario. O que a mim me quer parecer lou
vavel pouco menos de nada é que Leonor, farta de
ouvir contar as travessuras, os escandalos e a liber
tinagem do amante de Joanna Victorina e d'outras do
mesmo jaez, não obstante, sentisse e escondesse de
todos profunda e devoradora paixão por Francisco
Xavier d'Oliveira, desde que, á sahida do tribunal
de Valhadolid, viu de novo o gentil moço que a ti
nha querido salvar, e a sua mãe, pela porta da sa
cristia ! O caso não se recommenda aos louvores de
quem lê, repito; mas não é estupendo nem culpá
vel. Leonor vira a anciedade inutil d'aquelle portu-
guez, soubera depois que a rogos d'elle sahira pelas
desamparadas presas o alcaide ; via-se livre ; e, ape
nas livre, dava d'olhos e de curação reconhecido nos
olhos e talvez no coração do bello rapaz, que sahira
de sua terra para, ao lado do velho Barros, lhe ser
guia e companheiro. Raros amores e até poucas pai
xões nascem e flammejam tão desculpaveis e boni
tas!
ROMANCE HISTORICO 81

Francisco Xavier, posto que não por amor, an


tes por cavalheirismo e obsequio ao seu amigo en
carcerado, fosse a Valhadolid, durante a jornada te
ve uns vislumbres do sentimento que fizera nascer.
Fechou os olhos da alma para não vêl-os ; todavia,
o coração não se retrahia de todo em todo aos ho
nestos commettimentos da lindissima judia. Francis
co Xavier dizia entre si: «Se elle a não amasse ! . . . »
e ella provavelmente iria dizendo: «Se elles se não
estimassem. . . »
Ambos comprehenderam e como em silencio se
communicaram o melindre de suas posições.
Ora é certo que Francisco Xavier estava mania
tado áquelle baixo amor da cigana ; estava, e com
pejo de si pesava entre mãos o gravame de tão ver
gonhosos ferros; póde ser, porém, que os quebras
se de impetuoso empuxão, se Leonor lhe dissesse :
« Tenho liberdade para ser tua ; podes amar-me sem
deshonra. »
Viam-se frequentes vezes na sala de Diogo de
Barros. O rosto de Leonor alumiava-se, quando o jo
vial rapaz entrava, contando bruscamente" aventuras
da devassa camarilha do Salomão portuguez, ou ras
gadamente verberava a hypocrita devassidão do cle
ro, sem que os brados da mãe o cohibissem. Leonor
antes queria este arrojo que o assusladisso acanha
mento de Antonio José; antes as risadas estridu
las do amante das ciganas que as deplorativas lamen-
vol. n 6
82 O JUDEU
tacões, e concentrada amargura do flagellado dos car
ceres; antes a descripção energica e fogosa de uma
péga de touro que a leitura d'uma comedia.
Uma vez, bem se lembram, perguntava Francis
co Xavier ao seu amigo se amava Leonor. A respos
ta foi de feitio que o mancebo poderia, sem desdou
ro, aceitar a alma que se lhe offerecia sem grandes
rodeios. Não o fez assim. Viram que elle curou de
afastar as nuvens de sobre o coração do amigo, para
que o amor da israelita podesse lá chegar com o ca
lor da esperança e das alegrias. Depois, ao passo que
Antonio José cobrava alento e se reanimava debai
xo do olhar menos amoravel que piedoso de Leonor,
Francisco Xavier afastava-se, pretextava jornadas, oc-
cupações, divertimentos, e, — Deus e elle sabiam a
dor do sacrificio ! — contava na sala de Diogo de Bar
ros, em presença da pallida menina, as suas paixões
passadas, os seus amores presentes, e as suas espe
ranças em designadas mulheres da melhor fidalguia,
umas para amantes, e outras para d'entre d'ellas ele
ger a esposa, a companheira da vidú.
E, no entanto, Lourença Coutinho admirava-se e
oílendia-se das hesitações de Sara, toda vez que ella
a interrogava não já sobre a vontade da filha, senão
sobre o tempo de se casarem os prometlidos noivos.
— Pois tu não sabes?. . . — perguntava Louren
ça — Não sabes quando será?!
— Não sei. . . — respondeu Sara emfim muito
ROMANCE HISTORICO 83

apertada pelas importunações da amiga. — Não sei,


porque Leonor não declara quando, e eu, obedecen
do á vontade do meu Jorge, não a obrigo a declarar-
se; o mais que posso é aconselhal-a ; e muitas vezes
lhe tenho inculcado as vantagens d'este enlace ; mas,
se ella me diz que só dos vinte annos em diante se
hade resolver, que queres que eu lhe faça? Espere
mos, Lourença. Teu filho está novo; ella está uma
creança; os haveres de parte a parte são por em
quanto poucos. . . Esperemos, minha amiga, e goze
mos com a felicidade de vêr que elles se amam tran-
quillamente, e não desconfiam da lealdade um do
outro. . .
— Mas o meu Antonio não cessa de pergun
tar. . . — atalhou Lourença.
— Responde-lhe isto mesmo. Diz-lhe que se go
ze da sua liberdade n'estes cinco ou seis anhos, que
lhe não hade faltar tempo de viver captivo dos en
cargos de marido e pae. Quanto mais cedo se casa
rem, maior numero de filhos hãode deixar para ahi
provavelmente pobres.
Esta resposta espinhou vivamente o amor pro
prio e o coração tambem de Antonio José. Delibe-
rou-se a interrogar Leonor, suspeitoso de que, por
acanhada modestia, e melindre talvez inconveniente,
desmerecesse no conceito da energica filha de Jorge
de Barros. Mais dolorosa suspeita o feria, e era te-
mer-se de que a bisneta do contador-mór, e a des
84 O JUDEU

cendente dos Telles por sua avó materna, se quizes-


se esquivar ao desdouro de alliar-se a um homem da
classe mean, neto de fazendeiros e bisneto de po
bres colonos judeus, que tinham ido de Portugal
para a capitania do Rio de Janeiro.
Resolvido a desenganar-se por si, procurou o
lanço de estar a sós com Leonor. Foi mais lastima
vel que eloquente. Almas aquecidas ao fogo mystico
do ideal, são as menos idoneas para expressarem af-
fectos grandes sem se apoucarem n'alguma baixeza,
de que raras mulheres levantam o homem. Convi-
nha-lhe um airoso orgulho; o amor abateu-o á hu
mildade. A mulher que ama não conhece isto; a que
é tão somente amada chama-lhe impertinencia e sem-
saboria.
Não obstante, Leonor dava-lhe a compensação da
delicadeza ; e á poesia da paixão respondia-lhe com
a poesia da esperança. Era cedo, dizia ella, cedo para
si e cedo para elle.
— Eu tenho sido desgraçada — ajuntava Leonor
— Fiquei triste, muito mais trisledoque era, desde
a prisão de Valhadolid. Estou a convalescer das tor
turas da alma, que principiaram com o fallecimento
de meu bom pae. As lagrimas ainda hoje me afogam,
quando me lembra, que é para sempre, a irreme
diavel perda que soffri. É preciso muito coração
para a gente passar d'estas tristezas ao contentamen
to de esposa; e aquelles que se casam, na esperan
ROMANCE HISTORICO 85

ça de despirem depois os luctos da alma, váo enga


nados : é o que eu penso, e nem meu tio Diogo nem
minha mãe sustentam o contrario.
— Sustento-o eu — disse Antonio José da Silva.
— Com aquella decima jocosa que sua mãe man
dou para Amsterdam?
— Não, Leonor. Não fallemos gracejando. O ho
mem, que escrevia aquellas trovas, acabou. D'ellas
me recordo escassamente. . . . Vejo-as como folhas
seccas da minha primavera. O que eu hoje lhe de
veria dizer em verso, não sei eu dizel-o. Lagrimas
não se escrevem: ou as decifra a mulher que ama,
ou, senão, Deus. Porque me não ama, Leonor?
— Quando lhe disse eu que o não amava, snr.
Silva?...
— Snr. Silva. . . Que urbano tratamento ! —
acudiu o hebreu, com dilacerante sorriso — Que
desengano ! que calumnia eu lhe assacava quando á
minha consciencia dizia que a snr.* D. Leonor de
Barros me amava. . .
— Eu não sou D. Leonor de Barros — atalhou
a filha de Sara — Sou Leonor Maria de Carvalho.
Meus avós maternos appellidavam-se Carvalhos. O no
me de meu pae tenho-o no coração ; mas não careço
d'elle nem para venerar sua memoria, nem para me
fazer respeitar do mundo. Meu pae tem illustres
parentes em Lisboa. Não quero que elles o maldi
gam porque deu os seus fidalgos appellidos á filha de
86 O JUDEU

Sara, á neta d'uns judeus, que as chammas queima


ram ha cincoenta annos em Lisboa. Chame-me, pois,
Leonor Maria de Carvalho, que eu heide provavel
mente assim morrer.
Antonio José da Silva tomou delicadamente a
mão de Leonor, e disse-lhe com mavioso enterneci-
mento:
— Abra-me com esta mão a porta do paraiso.
— Quando fôr tempo, se Deus assim o tiver
destinado.
— Diga-me, ao menos. . . que não chore. . .
— Não chore, que os homens a chorar não pa
recem bem.
— Que fria alma ! — murmurou Antonio José.
Entraram pessoas á casa onde correu este dialo
go. Vinha entre ellas Francisco Xavier d'Oliveira,
que relanceou olhos suspeitos ao semblante do seu
amigo, e viu lagrimas. Ao mesmo tempo, encarou
em Leonor, e traduziu a vehemente satisfação que a
alvoroçara, no instante em que o vira.
Tomou o braço de Antonio José da Silva, e pas
sou com elle ao jardim do palacete. Pediu-lhe expli
cação das lagrimas. Silva carecia de respirar no seio
do seu melhor amigo. Abriu-se, expandiu-se, des
atou novos prantos dos olhos injectados, e referiu
summariamente a pratica dolorosa que tivera com
Leonor.
ROMANCE HISTORICO 87

Francisco Xavier escutou-o silencioso ; fez com


elle alguns giros no jardim, e voltou á sala.
— Que novidades conta, snr. Xavier d'Oliveira?
— perguntou uma das damas da casa.
— Não sei quasi nada, minha senhora.
— Teremos brevemente touros? — perguntou
um neto de Diogo de Barros.
— Provavelmente teremos, porque chegou a no
ticia de se ter celebrado o casamento do principe D.
José com a infanta de Hespanha. Logo ouvirão o re
picar dos sinos que pedem luminarias. No dia 13
vai o nosso amigo conde da Ericeira ao paço recitar
um discurso panegyrico sobre os desposorios da prin-
ceza das Asturias, e o marquez de Valença recita o
panegyrico do principe. Estes dous sujeitos, de quem
aliás somos amicissimos, se lhes fecharem a valvula
dos panegyricos morrem entouridos. Andam ha vinte
annos a esmoucar as paredes do templo da memoria
a vêr se lá se enfiam por uma fenda. Parece-me que
os vindouros não lhes hãode dar mais importancia
do que a mim ! »
— Cala-te, má lingua! — disse o ancião Diogo
de Barros — Deixa lá os nossos sabios trabalhar na
redempção das letras patrias. Nem todos hãode fa
zer versos. . . e travessuras, como tu.
—'Versos e travessuras, meu presado amigo,
está tudo por um fio. As rapaziadas cedem o passo á
circumspecçao, que vai abrir-me o seu placido abrigo.
88 O HJDEU

— Ahi vem uma mentira das tuas, Francisco!


— disse Diogo — Temos o Roberto do Diabo casa
do! é o que nos queres encampar?
— É o que vai succeder, snr. Diogo de Barros
— redarguiu com gravidade Francisco Xavier — Se
eu citar o respeitavel nome da senhora que vai ser
minha esposa, espero que me façam a justiça de crêr
que eu não viria aqui zombar, associando ás minhas
brincadeiras o nome de uma menina que v. s.a, e
todos que a conhecem consideram.
— Se assim é — disse Diogo — podes dizer,
que todos te acreditaremos; mas reflexiona, Fran
cisco!. . . Não te responsabilises a dar explicações,
se o casamento se não realisar ; nem queiras que a
sociedade as dê, se as tu não deres.
— Reflecti — disse Xavier d'Oliveira — A se
nhora com quem vou casar-me é D. Anna Ignez de
Almeida.
— Nome respeitabilissimo, na verdade — acudiu
Diogo de Barros — tanto por nascimento como por
virtudes herdadas e proprias. Conheci muito de per
to o pae d'essa menina, quando ambos eramos ouvi
dores na índia. Elle dirá qual de nós volveu de lá
mais abastado; mas o certo, a que elle não pode fal
tar, é que pobres fomos e pobres voltamos. Cada
um de nós casou com sua prima, e então tivemos
casa. Eu desisti da carreira para cuidar dos bens ;
elle seguiu os lugares, e pela escala da probidade
ROMANCE HISTORICO 89

subia a desembargador do paço. Parabens te damos,


Francisco, e a teus paes. Ligas a virtude de teus
avós ás virtudes de uma estrema da familia, tão antiga
como a tua. Sê digno do favor da Providencia Divina !
Durante o dizer de Diogo de Barros, Leonor sa-
hiu da sala, pretextando qualquer cousa. Francisco
Xavier viu sem reparar ; Antonio José da Silva viu
e reparou. As restantes pessoas olharam-se recipro
camente. Uma das senhoras disse:
— Eu dou-lhe os emboras, snr. Xavier; mas...
— Mas que, minha senhora? — perguntou Oli
veira.
— Consta que D. Anna d'Almeida é muito doen
te do peito, e promette pouca vida.
— Assim dizem — tornou o moço — ; mas quem
tem tanta vida no coração dará d'ella a remanescente
para alimentar o corpo, que é o mais facil de susten
tar. E, se a vida do coração não bastar, dar-lhe-hei
da minha, que é muita e fará o milagre de resusci-
tal-a.
Annunciou-se na sala que Leonor estava em an
cias afflictivas. Sara sahiu logo accelerada, e as da
mas seguiram-n'a.
Antonio José da Silva acercou-se de Francisco
Xavier, e disse-lhe á puridade :
— Leonor amava-te.
— E eu estimava-a muito a ella, e por igual a
ti. Faz de conta que não comprehendemos este in
90 O JUDEU

cidepte. É necessario que ella me odeie, se por ven


tara as tuas suspeitas são fundadas.
Os cavalheiros conversaram sobre cousas do es
tado. Volvidos vinte minutos, Leonor entrou na sala
com risonho e composto semblante. Os homens ro-
dearam-n'a com perguntas sobre o seu estado.
— Não foi nada — respondeu ella — Foi um»
pequena dor que a amizade de minhas primas exa
gerou. Sinto-me boa.
A conversação continuou.
Leonor nunca estivera tão animada. Fallou dos
portuguezes poetas com quem travara conhecimento
em casa de seu pae. Recitou algumas poesias d'um
judeu de Leiria chamado Manoel do Leão, que lá vi
veu, cantando as festas de Portugal, e lá morreu
para que a patria o não levasse ao capitolio d'algum
auto da fé. Citou muitas poesias do judeu; disse,
porém, que para si a mais dilecta era uma que prin
cipiava :

Recolheram-se os soes, fechou-se o dia,


mas não se abriu a noite, pois se via
outra manhã *

Muitos comprehenderam a allusão.


Pobre menina ! cuidou que eram todos tolos, ex
ceptuado Francisco Xavier d'OIiveira;
1 Vem a poesia no Tríumpho lusitano — impresso em Bruxellas
em 1688. Manoel do Leão morreu em Amsterdam de provecta idade.
CAPITULO X

Annunciou-se no portão dos Barros o almoxarife


do palacio da Bemposta, para haver de fallar á viuva
do snr. Jorge, neto do contador-mór Luiz Pereira de
Barros.
Sara, assim que recebeu o aviso, lembrou-se
logo do Duarte Cottinel Franco, e da mysteriosa
aversão de Lourença Coutinho ao amigo de seu fi
lho.
Duarte, entrado á presença de Sara, expoz dif-
fusamente o proposito da sua visita, fundada nos boa
tos correntes a respeito d'um thesouro enterrado na
quinta da Bemposta, d'um annel transmittido com o
segredo do thesouro a Jorge de Barros, e da clausula
da escriptura de venda da dita propriedade, mostran
do o traslado que elle Duarte fizera tirar da nota do
92 O JUDEU

tabellião. Dito isto, declarou ser desde menino parti


cular amigo de Antonio José da Silva, o qual, segun
do a voz publica, brevemente esposaria afilha dosnr.
Jorge de Barros. Ajuntou, com muitos recamos de
palavriado, que elle desde muito pensava em ser o
restaurador d'aquella riqueza soterrada ; e lamentava
que a viuva e filha de Jorge de Barros vivessem po
bremente podendo gozar-se de rica independencia.
E, por tanto, concluindo ao fim de estirada parlen-
da, ia elle solicitar de Sara que consentisse em ser
rica, dignando-se confiar da probidade inteira e da
amizade extremosa do amigo de seu futuro genro,
ou o annel, ou a declaração do local onde Luiz Pe
reira de Barros enterrara o thesouro.
Sara, sem tergiversar, como quem já trazia de
muito urdida a resposta, disse que poderia ser que o
thesouro existisse na Bemposta, ao tempo do falleci-
mento do avo de seu marido; sabia, porém, que o
revolvimento dos alicerces e jardins da casa, feito por
ordem de sua sogra, provavelmente descobriu o cofre,
se elle existia. Em quanto ao annel, disse que nun
ca vira a seu marido annel com tal significação, nem
lhe constava que elle o tivesse.
Redarguiu Duarte Cottinel, lastimando-se de não
merecer a confiança da senhora, e fazendo votos por
que ella se não fiasse d'outrem, e arriscasse o com
pleto perdimento da riqueza ; dando assim a entender
ROMANCE HISTORICO 93

que julgava mentirosa a negativa de Sára, e verdadei


ro o boato do annel.
A viuva de Jorge, ao outro dia, perguntou a
Antonio José se tinha em boa conta a probidade do
almoxarife da Bemposta. Respondeu Antonio que,
desde menino, o tractava, e sempre o encontrára leal
amigo, homem de bem, e dotado das excellentes quali
dades que em tão verde mocidade o fizeram digno do
almoxarifado da Bemposta. Sára referiu o que passara
com elle. Antonio José disse que a não aconselhava
em cousa de tanto melindre, bem que, se elle fosse
o senhor d'aquelle thesouro, insuspeitosamente com-
municaria o segredo a Duarte Cottinel Franco.
A viuva ouviu o parecer de Diogo de Barros,
que foi contrario ao de Antonio José. A razão com
que o velho desabonava o almoxarife não era judi
ciosa. « De tal arvore, dizia elle, não pode sahir bom
fructo. Eu conheci o tal capellão da Bemposta, cujo
filho é Duarte ; conheci-o espião de Castella em Por
tugal e espião de Portugal em Castella. Foi frade, e
secularisou-se depois. Vivia em mancebia escandalo
sa, e pregava sermões ás rainhas mulheres de D.
Pedro ii. Fez-se confessor dos infantes, capellão-mór,
e qualificador do santo officio, tendo começado sua
vida na forja do pae, que trabalhava de ferreiro á
porta do marquez de Ferreira, á cusla do qual fez
frades dous rapazes e freiras tres raparigas, que em
pequenitas vendiam arféloa na praça do Terreiro do
94 O JUDEU

Paço e na feira do Rocio '. No entanto — proseguiu


Diogo de Barros — póde ser que elle seja boa pes
soa. Será; mas a occasião, diz o proverbio, faz o la
drão. Esperemos, minha sobrinha. Por em quanto,
não se vos faz mister aquelle thesouro.
Duarte Cottinel, descoroçoado dos bons effeitos
da tentativa, procurou Antonio José, para instigal-o
a mover Sára. O hebreu desculpou-se dizendo, como
sempre dissera, que não tinha certeza de existir the
souro nem o annel em poder de Sara.
— Mas, se casares com a filha — observou o al

i O mercado das substancias alimenticias fazia-se diariamente no


Terreiro do Paço, convisinho do palacio dos reis. No Rocio havia tam
bem feira todo o anno. O author da Inquisição de Goa que esteve em
Lisboa, porlG77, mencionando a magnifica praça do Rocio, acrescenta:
II y a toute 1'année une espèee de foire dans eetie place, et l'on y
voit en tout temps des marcharias ètale% dans ces boutiques porta-
tives, úpeuprés comme sont' celles qu'on dresse sur le Ponte-neuf
á Parfa.
Eu ainda vi reliquias d'esta feira ha trinta annos, em tempo que a
feira da Ladra principiava na extrema do Rocio, e abraçava o passeio
publico pelas duas ruaslateraes. Que saudades eu tenho d' uma nora que
alli gemia no pateo do duque, e d'aquelles pucarinhos dos alcatruzes !
Lastimo o leitor menor de quarenta annos, que não ouviu gemer a nora,
nem viu aquelles alcatruzes do pateo do duque, e nem se quer apalpou, co
mo eu, as paredes da santa-casa que pareciam exsudar sangue de he
breus. Hoje, no lugar dos alcatruzes, está um barbeiro, que é nora de par
voices politicas ; no melhor da feira da Ladra param as seges de pra
ça para darem idía de que alli foi feira de farrapagem e correias revelhas;
o restante da feira foi invadido por aquelle pragal do passeio, onde a
gente goza sombra ... de noite.
No local onde gemiam judeus, hereges e feiticeiros, uma vez por
outra, geme a arte ; e eu, desgraçadamente, d'este o/ficio tão santo como
o outro, tambem tenho sido inquisidor.
ROMANCE HISTORICO 95

moxarife — e o annel te fôr Da mão da esposa, já


sabes que aqui estou para te desenterrar o. cofre, e
entregar-t'o sem um ceitil de menos.
— Sei que o farás, Duarte, e de ti só confiarei o
segredo, se algum segredo existe. Mas o mais cer
to é eu nunca possuir a mão nem o annel de Leo
nor. . .
CAPITULO XI

Dias depois d'aquelle inesperado annuncio de ca


samento, Francisco Xavier de Oliveira, desquitado
da influencia magica da cigana, dava a mão de esposo
a D. Anna Ignez d'Almeida, e logo na proxima se
mana era agraciado com a mercê de cavalleiro fidal
go da casa real, e cingia a espada de cavalleiro pro
fesso da Ordem de Christo.
Leonor, até então, para sustentar o fingimento,
digamol-o assim, segurou a mascara na fronte com
penetrantes agulhas. Custava-lhe tormentos indiziveis
aquella affectação de indifferença. Devia de estar-lhe
muito enraizado n'alma aquelle amor, tanto mais vio
lento no desengano, quanto abafado estivera no re
condito do peito.
Sara adivinhou-a ; abriu-lhe com a chave da ter-
VOL. II 7
98 O JUDEU

nura o mysterio ; achou uma fonte de lagrimas re-


prezadas. Ajudou-a a chorar, e diligenciava sempre
alliviar-lhe o coração, chamandO'lh'as á face. Leonor
pediu encarecidamente á mãe que sahissem de Por
tugal para Amsterdam. Lembrava-lhe as prophecias
que fizera, ao separar-se dos ossos de seu pae e do
affecto extremoso da sua querida gente, dos Sás que
tantos infortunios, com suas lagrimas, lhe agoura
ram.
Não ousava Sara contradizer a filha; senão an
tes lhe pedia que, por piedade, a não accusasse, que
o seu arrependimento lhe bastava para castigo e fla-
gello. Instava, porém, Leonor na volta para Hollan-
da, como meio de esconjurarem maiores infortunios,
que maiores lh'os presagiava o coração.
Queria Sara condescender ; mas não tinha força
para romper os laços com que a boa parentela de
seu marido a soubera prender, não tendo em vista
mais que honrar a memoria de Jorge, nas pessoas
mais queridas, por quem elle tanto soffrêra, e, ao
fim de breve e desgostosa existencia, deixara pobres.
Depois, não saberia Sara dizer que delicias lhe era
aquelle ar e viver em Lisboa, querida de fidalgos,
ameigada de damas, que se não dedignavam de a
chamarem sua prima. De mais d'isto, a amizade de
Lourença Coutinho, que não cessava de a querer
disputar aposse dos parentes. Sobrevinha ainda a com
paixão de Antonio José da Silva, o qual, a juizo
ROMANCE HISTORICO 99

d'ella, era dotado de excellencias raras, e proprias


da felicidade d'uma esposa. Gomo se tudo isto não
fosse empêço aos rogos de Leonor, acrescia ainda a
esperança ambiciosa, mas razoavel, de possuir as ri
quezas da Bemposta, com as quaes sua filha poderia
aspirar a moços de nascimento e bens de fortuna
iguaes aos tão encarecidos e invejados dotes de Fran
cisco Xavier d'O1iveira.
Assim foi protrahindo Sára a decisão, até que o
tempo deliu a pouco e pouco o maior da dor, de
modo que Leonor, condoida de sua mãe, e grave
mente reprehendida pelo tio Diogo, deixou de fallar
na ida para Amsterdam, e apparentemente vivia con
formada, sahindo raras vezes ás salas, e quasi nun
ca, se lhe diziam que lá estava Antonio José da Silva.
Entrou tambem o desesperar e o desenganar-se
na clara razão do hebreu, depois que elle, com os
pés sobre a dignidade propria, lhe escreveu lamen
tosas cartas ás quaes Leonor respondia com o silen
cio ou com uma sequidão ainda peor.
N'aquelle tempo, o poeta apaixonado não desde
nhava o soccorro da musa para expressar a sua an
gustia. Nos tempos d'agora, seria ridiculo o malfa
dado amante que, em vez de prosa a rever lagrimas,
enviasse á ingrata quadrinhas de syllabas accentuadas
segundo a arte.
Nas operas de Antonio José da Silva, represen
tadas annos depois, appareceram algumas trovas das
100 o ,UDEU
que elle enviara a Leonor n'aquelle periodo de ex-
cruciante desesperação. Nenhum poeta de tomo que
reria hoje assignar, em carta escripta á sua visinha
rebelde, as seguintes quadrinhas que o hebreu man
dava supplicar misericordia aos pés da desamoravel
menina :
Toda a minha alma
Se abraza amante,
E a cada instante
Morrendo está.
Mais que os minutos
São meus ardores;
Nos teus rigores
Conta não ha.
Mas, ai! tyranna,
Se a quem te adora
Fosse esta hora
Hora d'amar! i

Se ao leitor se figura que este versejar em re-


dondilha menor era improprio de alma apaixonada
e queixosa ; se entende que o verso hendecasyllabo,
o soneto, o magestoso soneto foi sempre o respira
douro dos grandes poetas, crucificados no amor, co
mo o amante de Laura, e como o suspiroso cantor
de Natercia, aqui tem um dos sonetos que a impas
sivel Leonor recebeu e leu enfastiada :
i As variedades de Proteo— Parte 2.a Scena n.
ROMANCE HISTORICO 101

Não intento favores merecer-te,


Leonor, quando chego a idolatrar-te ;
Que excedendo os limites só de amar-te
Nunca os principios toco de querer-te.

Com razão poderias offender-te,


Se ambicioso chegara a desejar-te,
Que, para ser mais fino no adorar-te,
Sem premio, o sacrifício heide incender-te.

Amar não é querer ; que impura ardera


A chamma de Cupido, se esperara
Fructos, aonde tudo é primavera;

E, se acaso, ó Leonor, imaginara


Que na tua belleza premio houvera,
Pelo premio a belleza desprezara. 1

Parece mais engenhoso que apaixonado o poema.


Compre, porém, saber, por honra do amante desdi
toso, que n'aquelles dias de decadencia litteraria e
seculo de chumbo da nossa poesia, os poetas, não
só amorosos, mas ainda pendurados no triangulo, ex
piravam proferindo trocadilhos, gongorices, marinis-
mos, uma cousa triste de lêr-se, na qual Antonio
José ainda foi o menos peccador.
\ Na mesma opera— Scena i da parte 2.a Leonor, na comedia, &
substituída por Cyrenne.
102 O JUDEU
Hãode dizer os bardos modernos que esta poe
sia do hebreu é secca, desflorkla, sem auras, sem
borboletas. Não, senhores. Antonio José da Silva tam
bem fez á sua esquiva poesias com borboletas. Por
exemplo :
Borboleta namorada
Que nas luzes abrazada,
Quando expira nos incêndios
Solicita o mesmo ardor. . .
Tal, ó Chlori, me imagino,
Pois parece que o destino
Quer, por mais que tu me mates,
Que appeteça o teu rigor!

Se com tudo isto, o poeta não lograva commo-


ver Leonor, o defeito não era da poesia, digamol-o
em pró das camenas de nossos avós: defeituoso era
o coração da filha de Sára, se é que podemos arguir
maculas em objectos que sahiram das mãos de Deus,
tão primorosos quanto nos cumpre presumir que
elle se esmerasse na compostura interna do peito da
mulher. Argumentamos fundamentados na perfei
ção exterior, feitas as excepções, que as ha deplora
veis, por dentro e por fora.
CAPITULO XII

Francisco Xavier forcejou por avassallar o espi


rito do hebreu a outra mulher. Nem Antonio José
da Silva se deixava alcançar d'olhos que poderiam
atar-lhe as azas da phantasia, nem as senhoras, pa
rentas e conhecidas de D. Anna d'Almeida, se pres
tavam a ser amadas d'um judeu, que, dous annos
antes, figurara no auto da fé. Francisco Xavier en-
comiava a levantada intelligencia do seu amigo; reci
tava com enthusiasmo os versos d'elle; abanca va-o,
nos seus jantares, á direita de sua senhora. Não era
tudo bastante para que uma dama da sociedade alta
se deixasse olhar duas vezes equivocamente pelo fi
lho da judia Lourença.
Antonio José olhou em si e comprehendeu a sua
104 O JUDEU

posição aviltada nos salões de Lisboa. Refugiou-se


na soledade do seu quarto, restabeleceu a intimida
de que tivera com alguns frades, e comsigo e com
elles passava as horas, umas de cogitar doloroso, ou
tras de recreada palestra litteraria.
De longe em longe, visitava Leonor. Perante ella
não proferia expressão amoravel nem queixosa. Es
cutava as conversações enfadonhas de sua mãe com
a viuva ; e, se Lourença, alguma vez, de industria
ou eventualmente, fallava nos antigos projectos de ca
samento, em presença de Leonor, Antonio José des
afiava a menina a sorrir dos designios exquisitos das
duas mães.
Leonor invejava a sorte das monjas christãs.
Aquelle quieto viver á beira da sepultura parecia-lhe
o balsamo divino que a humanidade inventara para
remedio dos seus desgraçados. Disse-o á mãe, que
lhe respondeu soluçante. Communicou as suas espe
ranças e desejos ao tio de seu pae. Diogo de Barros
achou louvavel o intento, menos a profissão, conje
cturando de si comsigo que a raça materna lhe seria
impedimento, que só os reis e os seus parentes cos
tumavam vencer para darem habito a comicas e ciga
nas, umas que não podiam ser enterradas em sagra
do, e outras que nem baptisadas eram. Margarida
do Monte e a Gamarro eram exemplos recentes, e
mais recente ainda o da freira de Santa Joanna,
ROMANCE HISTORICO 105
amante que havia sido de um dos infantes, mulher
de mais encantos que vira Lisboa '.
Aceitou Leonor qualquer convento, e de qual
quer modo. Pediu licença á mãe, coadjuvando-se
dos rogos do tio. Depois de muito chorarem, mãe e
filha, venceu Leonor, com promessa de passar al
guns mezes de cada anno com a sua familia. Diogo
de Barros preparou a entrada da sobrinha no con
vento da Encarnação, de religiosas commendadeiras
(fAviz. Não lhe foi difficil provar que D. Leonor
Maria tinha sangue da primeira nobreza, prova con
dicional para poder entrar eomo pensionaria. Entrou
alegremente para lá se engolfar nas suas tristezas.
Má casa lhe escolheram para quem queria viver tris
te. As commendadeiras da Encarnação eram senho
ras joviaes, festeiras e dadas ao amor. As suas gra
des eram fontes de Vaucluse, onde mais felizes Pe-
trarchas iam poetar. A liberdade, que estas profes
sas benedictinas gozavam de sahir, sob a responsa
bilidade da visita amiga ou parenta que as ia buscar
de manhã e levar á noite, era uma liberdade gera
dora d'outras muitas, que de si e por si geravam
variados phenomenos de geração, com os quaes an
dam grandemente povoadas as genealogias dos gran
des senhores e grandes senhoras d'estes reinos. Ain

' Esta religiosa de appellido Silva morreu esmagada entre as qua


tro paredes da sua eella no terramoto de 1755. A belleza já devia ter
morrido.
406 O JUDEU

da assim, o vicio naquella casa tinha fidalga libré.


S. Bento não se honrava de taes filhas, é isso verda
de; mas a organisação da sociedade de D. João v
não as contava somenos elemento de seu luxo e po
liciamento.
Leonor competia com as mais bellas, e primava
entre as mais discretas. Mostrou-se, deixou-se ouvir,
deixou-se admirar, deixou-se amar ; e, depois, su-
miu-se no seu cubiculo. Chamaram-lhe exquisita,
louca, ingrata ás dadivas da opulenta mão da natu
reza. Não importou. Leonor não voltou aos palrato
rios, nem faltou aos seus deveres de pensionaria.
Costurava muito, lia pouco, e não rezava nada. A fi
lha de Jorge, em cousas de religião, cria em Deus,
creador, todavia imperfeito, porque ella, á imitação
de abalizados philosophos, errava como elles, não
querendo vêr o perfeito no regirar evolusivo das har
moniosas imperfeições. Qual foi o author que disse:
« homem solitario, das duas uma : ou santo ou de
monio»? Da mulher sosinha, e de Leonor especial
mente, direi que se ha santidade, sem beneplacito
de Roma, sem camaldulas e sem agua-benta, santa
era a filha da judia Sara.
Magonvam-na ainda as mordeduras da serpente
do primeiro amor ; soavam-lhe no seio uns rebates
de saudades, que, por instantes, lhe ennoitavam a mais
clara luz do sol da sua cella : assim era ; mas nin
guem lhe ouvia queixumes, a ninguem consultara so
ROMANCE HISTORICO 107

bre os linimentos de suas feridas. Soffria calada e


risonha.
Alegremente recebia as visitas de sua mãe e pa
rentes. Lourença Coutinho ia á Encarnação com o
filho, e alguma vez o filho sem a mãe. Leonor re-
cordava-se das brincadeiras de ambos, na Covilhã,
porque a mãe lh'as entalhara na memoria, contando-
lh'as frequentemente. N'isto passavam alguns minu
tos, e chamavam-se irmãos.
A visita de Lourença e do filho eram-lhe causa
de dissabor, porque as fidalgas benedictinas conhe
ciam de nome Lourença, mulher do letrado judeu
João Mendes, e mãe do poeta Silva já penitenciado
pela inquisição.
Leonor soffria calada os remoques ; não se quei
xava ao tio Diogo, por temer que a tirasse de lá. Aquel-
le soffrimento parecia-lhe menor que o viver e tra
ctor com muita gente, e o não ter um cubiculo seu
e defeso ás importunações.
E assim passou um anno, e cinco depós o pri
meiro, triste sempre, sempre inflexivel ás maviosas
supplicas que lhe fazia a mãe no sentido de aceitar
o nobre e leal coração de Antonio José.
Corria o anno de 1733. Leonor tinha vinte e
um annos. Consoante ella tinha promettido, era che
gado o tempo de decidir-se sobre o seu futuro. Per-
guntou-lhe a mãe qual era.
— Acabar aqui — disse ella — Quando a mãe
108 O HJMtU

não poder dar-me a pensão, irei ser serva d'alguma


senhora noutro mosteiro. E Deus sabe que sacrifí
cios a mãe terá feito para me sustentar aqui ! . . .
— Nenhuns, filha. Ainda tenho algum do dinhei
ro que Simão de Sá nos deu, como liquidado da he
rança de teu pae. Decides não casar com Antonio?
— Nenhum de nós seria feliz. Não devo enga-
nal-o. Falta-me o amor que elle merece. Desperdi-
cei-o. . . mas que remedio tem ? Eu expio a minha
cegueira, e elle abrirá os olhos quando Deus lhe mos
trar mulher mais digna.
— E por quem te apaixonaste, filha ! . . . — tor
nou Sára — Digno moço era Francisco Xavier ; não
t'o posso negar, nem sei desfazer n'aquelle brioso ca
racter ; mas, logo que te elle deu como certa a sua
indifferença, devias esquecel-o, filha. . .
— Não pude ; fiz tudo que podia, minha mãe.
Tive o pensamento de me matar!. . .
— Deus de Israel! — exclamou Sára.
— Pensava em matar-me, quando todos me viam
rir, e fallar como toda a gente falia das cousas interes
santes da vida. Eu sabia que, se o visse, depois, não po
dia aviltar-me ; mas podia acabar commigo. Fugi-lhe
para aqui. Poderia agora vêl-o sem alterar-me. . . Po
deria. . . mas não quero experimentar. Ouvi dizer
que Francisco Xavier enviuvou ha dias, e que tem
o pae a morrer. . .
— É certo, filha.
ROMANCE HISTORICO ' 109

— Pois tenho pena immensa d'elle, se amava a


esposa, quanto eu creio que ella o amasse. . . Co
meça a ser infeliz; desanda-lhe a roda. Em quanto
foi mau, tudo lhe sahia á medida do desejo ; agora,
que vivia honradamente, morre-lhe a mulher e o
pae. . .
— E já me disse que sahirá de Portugal assim
que lhe faltar o pae, porque não pode viver entre
estes desaforados hypocritas.
— Faz bem. Quem podéra tambem fugir d'a-
qui ! . . . Se a mãe soubesse que sonhos. . . que pre-
sentimentos ! . . . Porque hei-de eu presagiar para mim
um desastrado morrer ! . . .
— Como, filha?
— Lembro-me da inquisição! Tenho dias que
me não sahe do pensamento o espectaculo horren
do!...
— Oh filha ! . . . por misericordia, não me as
sustes!. . . — exclamava Sara.
E, poucas mais palavras ditas, a viuva sahiu da
grade, e entrou em casa quebrantada, queixosa, e
doente.
Poucos dias depois, Diogo de Barros foi buscar
Leonor ao convento da Encarnação para assistir á
perigosa enfermidade de sua mãe. Ao principio, quan
do Sara se queixava de dores da alma e ligeiros acha
ques do corpo, não se inquietaram extraordinaria
mente as pessoas, que se esmeravam em dar-lhe al
110 O JUDEU

livio n'outras iguaes doenças de espirito ; mas, assim


que a febre a prostrou, já a medicina a viu com des
confiança. A viuva de Jorge de Barros tinha cincoen-
ta e quatro annos; alvejavam-lhe, porém, os cabel-
los como aos setenta. Desde a morte do marido, o
envelhecer foi tão rapido que, ainda sem as angus
tias e terrores do carcere de Valhadolid, faria es
panto em acabar-se e desfigurar-se assim a mulher,
que aos quarenta annos dava invejas ás formosuras
em flor de juventude.
Leonor, abeirando-se do leito de sua mãe, com-
penetrou-se da certeza de a perder. Ajoelhou-se a
pedir-lhe perdão dos terrores que lhe incutira com
as suas visões.
— Não foi isso, filha — disse Sara — A minha
morte explicam-na os annos e as desgraças do passa
do. Vou d'este mundo afflicta. . . porque Deus te
não levou diante de mim.
— Oxalá. . . — murmurou Leonor.
— Do mais, que é morrer? que sou eu n'este
mundo?. . . que faço eu aqui se nem já me é con
cedido vêr-te feliz, pobre mulher?
A presença de Leonor parecia angustial-a mais.
A menina retrahiu-se a um canto sombrio da alcova
para chorar escondida de sua mãe.
O progresso rapido da doença ao seu termo fa
tal não dava intermittentes á esperança.
Ao quinto dia já a febre maligna se manifestara
ROMANCE HISTORICO 111

com os peores symptomas. Os intervallos de razão


lucida eram curtos.
Em um d'estes, Sara declarou que queria mor
rer na religião christã, porque sabia que seu padri
nho Luiz Pereira de Barros morrera como um justo,
e seu marido se confiara á Divina Providencia, em
vida, e pedira no dia final os recursos de um padre
catholico. Recebeu Sara os sacramentos com fervor
de catecumena. Lourença Coutinho, israelita de cons
ciencia, assistiu com desgosto á fraqueza intellectual
da sua velha amiga, como ella dizia ao marido. João
Mendes da Silva, que então contava setenta e nove
annos, quando sua mulher escondia o rosto amargu
rado para não vêr as ceremonias da extrema-uncção,
disse-lhe :
— Deus sabe onde está a verdade, Lourença ! . . .
N'esta religião de Jesus de Nazareth vejo" que ha
exemplos de vidas e mortes exemplares. Os christãos
morrem com uma certeza de castigo e recompen
se. . . e nós. . .
— Tambem — concluiu Lourença.
Um aceno de Sara, que parecia tranquilla depois
de sacramentada, fez aproximar Lourença e Antonio
José.
A moribunda pegou da mão de Leonor, e dis
se-lhe:
— Filha, attende á supplica de tua mãe. Pelas
412 O JUDEU

agonias d'esta hora te peço que sejas esposa d'este in


feliz moço.
Leonor beijou-lhe a mão, e murmurou :
— Sim, minha mãe. . . serei. . .
— Bem hajas do divino recompensador, filha do
meu coração. . . Eu vos abençoo ; sede bons ; amai-
vos. . . Antonio, deixo-te a filha de Jorge de Barros. . .
Antonio José da Silva ajoelhou ao lado de Leo
nor. Começou o arrancar da vida. Poucas mais pala
vras proferiu ; foram curtos e quasi serenos os pa
roxismos. Quando cuidavam que Sára abria olhos e
labios para vêr e consolar quem a chorava, então
foi ella que inclinou a cabeça para o hombro da fi
lha, e expirou.
CAPITULO XIII

Leonor manteve a promessa feita á mãe expi


rante. Pediu que a deixassem despir o luto de or-
phã para vestir depois as galas de noiva. Era um
anno de impaciente esperar ; mas deliciosa impacien
cia para o hebreu. Já elle se não temia da quebra
do juramento. E, para cumulo de felicidade, Leonor
dissera-lhe que seria sua, tanto porque promettera,
quanto, ou mais ainda, porque o desejava ser.
Morrêra, como se esperava, José de Oliveira, pae
de Francisco Xavier. O conde de Tarouca, minis
tro plenipotenciario ém Vienna d'Austria, elegeu
Francisco Xavier d'Oliveira para seu secretario. Era
esta a mais inquieta ambição do inimigo dos frades :
sahir de Portugal, ir para onde podesse desabafar
contra os hypocritas, escolher uma religião, ou me-
nosprezal-as todas, sem receio de ser incommodado.
VOL. II &
114 O JUDEU

Despediu-se de Antonio José da Silva vaticinando-


lhe que nunca mais se veriam, salvo se o judeu pro
curasse terra, onde sua phantasia podesse florir ao
sol de Deus, aquecer-se ao calor das idéas novas, e
não estar sempre a recear-se do calor das fogueiras
da fé christã.
Antonio José da Silva, cego d'amor, não teve
olhos que vissem lagrimosos a ida do seu primeiro
amigo. Sem temor de offendw-lhe a memoria, aba-
lanço-me a conjecturar que o judeu folgou de vêr
sahir de Lisboa o homem, cujo nome ainda alvoro
çava o peito de Leonor.
Sahiu de Portugal Francisco Xavier d'Oliveira
em 19 d'Abril de 1734. Mais tarde, iremos no en
calço d'este homem que vai indo sob o influxo de
funesta estrella.
O contentamento espertou as glorias adormecidas
de Antonio José da Silva, as glorias do theatro. A
opera, que elle tinha concluida para ser posta em
scena, era a Vida do grande D. Quichote de la Man
cha e do gordo Sancho Pança. A companhia, que
então representava no theatro do Bairro Alto, era
boa e amestrada pelas lições e exemplo do famoso
comico hespanhol Antonio Rodrigues, que em Lis
boa vivia lauta vida em galardão de sua eminente
habilidade 1.
1 No Amusement périodique, pag. 41 do 1.° vol., Francisco Xa
vier cTOliveira, respeito d'aquelle actor, escreve: « Antonio Rodrigues,
ROMANCE HISTORICO H5

Foi D. Quichote para ensaios, que o author di


rigiu, por espaço de dous mezes com incalculaveis
afilicções! O leitor entendido mais ou menos em
arte dramatica, digne-se imaginar que mortificações
alancearam o pobre author, para metter em ordem
os seguintes personagens da peça :

Dom Quichote. Apollo e as musas.


Sancho Pança. Dous homens que são do moinho.
A sobrinha de D. Quichote. Dous homens do barco.
A ama do mesmo. Um fidalgo.
Thereza Pança, mulher de Sancho. Uma fidalga.
Uma filha do mesmo. Um meirinho.
Um tabellião vestido d'almocreve. Um escrivão.
Uma saloia em um burro. Dous homens que tocam rabecas.
Sansão Carrasco. Um homem que toca rabecão.
Sea criado. Um medico.
Um diabo que vem no carro. Um cirurgião.
Outro diabo com muitos cascaveis. Um taverneiro.
Um homem que vem com o leão. Uma mulher moça com manto.
Belerma. Uma mulher velha em corpo .
Montesinos. Um escudeiro.
Um que está na cova. A condessa das barbas.
Caliope que vem na nuvem. Dous rebuçados.
Dous homens para a audiencia.

Ora, todos estes personagens deviam obedecer


toais ou menos ao ensino do poeta, incluindo o burro

hespanhol, sustentou-se com felicidade muitos annos no theatro de Lisboa.


Era bonissimo poeta, philosopho, historiador, e palaciano. Era tão homem
de bem quanto actor de merecimento. Do seu proceder honrado resultou-
lhe uma pensão annual de cento e vinte moedas d'ouro que lhe dava o rei.
Querido das mulheres, estimado da nobreza, e relacionado com muitos
prelados do reino, até do povo se fez idolatrar. . . »
116 O JUDEU

da saloia, e o leão do homem; porém, as zangas e


desalentos de Antonio José da Silva eram incompa
ravelmente maiores no modo de fazer funccionar a
tempo o chamado « apparato do theatro » peças de
magnifico espectaculo, de que acintemente do'i no
ticia para encovar o orgulho dos maquinistas moder
nos. Vejam :

Um carro com varias figuras dentro.


Uma capoeira sobre um carro, em que irá um leão, que sahe fora a
seu tempo.
Um carro em que vem Dulcinéa e varias figuras.
Dous cavallos, um de D. Quichote, e outro de Sansão Carrasco.
Dous burros, um para Sancho Pança, e outro para uma saloia.
0 monte Parnaso com as musas, Apollo, e o cavallo Pegaso.
Um barco.
Um cavallo que vem pelo ar, e se lhe põe fogo.
Uma nuvem.
Um porco.

Este ultimo personagem não voltou á scena —


digamol-o de passagem — desde Antonio José da
Silva. Suppunha-se que o snr. Mendes Leal rehabi-
litasse o porco, aqui ha annos, quando povoou de
camêlos o theatro normal. A occasião era aquella.
Como passou, é de presumir que o porco se não
logre de pisar outra vez o palco.
Vontade de ferro e coadjuvação dos primeiros
talentos de Lisboa em tramoias theatraes, vingaram
que a opera se mostrasse ao publico ancioso na
noite de 44 de Outubro de 1733.
ROMANCE HISTOMCO 117

A ordem dos camarotes nobres estava adornada


com as senhoras de primeira plana, que mal se viam
por causa das gelosias. O camarote dos frades, assim
denominado por excellencia, estava recheado de bons
e devotissimos theologos, cujos narizes rubidos a
custo podiam entrever-se atra vez das rotulas 1. Na
platéa, a pressão era suffocante. Pagavam-se as en
tradas a moeda d'ouro ; e, quando se annunciou que
entrava em scena um porco e um cavallo que voava,
os bilhetes subiriam a peça, se apparecessem vende
dores.
As gargalhadas atroavam compactas desde a pri
meira scena. Riam os frades em contorsões de ju
bilo, espirravam as damas sympathicos frouxos de
riso, ria toda a gente, menos os poetas de Lisboa,
que se tinham enfileirado, de antemão comprometti-
dos a não acharem graça á comedia do hebreu. Pa
rece que presagiavam a trovoada eminente, e o raio
fulminante da irrisão geral !
Chegou a scena vm do 1.° acto. Ouvem-se mu
sicas melodiosas.
«Não ouves, Sancho, uma suave harmonia? —
pergunta D. Quichote.
• ... Cette loge s'appelle en portugais Xe camarote dos frades.
Elle est placée au-dessous de celles qui ne sont jamais occupèes que
par les dames de la prémière qualité. Celle-là de même que les au.
tres est ferméepar desjaiousies, c'est à dire, par une espèce de grèl-
les de bois, qu'on appelle Rotas, Rotulas, ou Zelosias en portugais.
Amusement périodique, pag. 31. 2." vol.

/
H8 O JUDEU

Sancho
«É verdade! espere vm.ce, que lá vem voando
o quer que é ! Desce a musa Caliope em uma nuvem,
e D. Quichote e Sancho ajoelham.
O cavalleiro da iriste figura e o gordo pagem
reverenceiam a musa, que se abre n'estes rogos ao
donoso soccorredor de afflictos :
« Valente D. Quichote de la Mancha, cavalleiro
dos leões, eu sou a musa Caliope, a primeira e prin
cipal das nove, que assistem no monte Parnaso.
Aqui venho a teus pés enviada por meu amo, o snr.
Apollo, o qual, como sabe que tens professado a
estreita religião da cavallaria andante, e tens de obri
gação o desfazer aggravos, soccorrer afflictos e res
taurar honras perdidas, por essa causa te manda pe
dir encarecidamente queiras ir ao Parnaso, aonde se
elle acha, cercado de uns poetas maledicos, que o
querem despojar do throno ; e juntamente para re
formares a poesia, que se acha quasi arruinada ;
para o que eu, da minha parte, como tão interessada
n'este desempenho, te supplico com o suave de mi
nhas vozes, pois é certo que a musica tem virtude
para attrahir os corações mais duros.

Sancho (a parte)
a Aqui nos encaixa uma aria á queima roopaJ
Caliope, de feito, cantou, em quanto o bravo
ROMANCE HISTORICO 149

cogita do modo de galgar ao Parnaso. Põe suas


duvidas á deusa, que «Vas corta, arrebatando-o e
mais o escudeiro n'uma nuvem.
Aqui estamos já no Parnaso. Principiam a con
torcesse os poetas da platéa. Já muita gente os tem
d'olho, e engatilha a risada para lh'a desfechar na cara.

Apollo (aos poetas)

« Esperai, bastardos filhos, que cedo virá quem


me vingue de vossas injurias !
Poetas
«Já não te reconhecemos, ó Apollo, por deus
da poesia ; pois qualquer de nós é Apollo, e cada
idéa nossa uma musa. •

Apollo
« Assim vos atreveis a profanar o decoro que
se deve aos meus apollineos raios ? ! Apparecem D.
Quichote, Sancho, e Caliope.
Poetas
« Toca a investir ao Parnaso !

Apollo

« Em boa hora venhas, valente D. Quichote, que


só a tua espada me pode segurar o throno e o lau
rel I Vem, vem a vingar-me d'estes poetasinhos, que
420 O JUDEU

sem mais armas que a sua presumpção, querem não


só competir com o meu plectro, mas ainda intentam
despojar-me do Parnaso ; e, como as armas e as le
tras são tão fieis companheiras, quero-me valer das
tuas armas para a restauração de minha sciencia ; e,
como esta violencia, que se me faz, não desmerece os
empregos da tua cavallaria, peço-te que me soccorras.

D. Quichote

« Snr. Apollo, eu tomo sobre mim o seu desag-


gravo; ejá, desde agora, se pode assentar bem n'es-
se throno que d'elle ninguem o hade arrancar.

Sancho
« Senhor meu amo, eu cuido que estou sonhan
do ! Que vm.ce entre no Parnaso, não é muito, porque
é louco ; porém, eu, que, sendo um ignorante, tam
bem cá esteja, é o que mais me admira ! E d'aqui
venho agora a concluir que não ha tolo que não en
tre hoje no Parnaso !
D. Quichote

« Diga-me, snr. Apollo, e como se chamam os


poetas que tanto o perseguem?

Apollo

« Essa é a desgraça, D. Quichote ; que os poetas


ROMANCE HISTORICO 121

que me perseguem não são de nome ; e, com tudo,


cada um cuida que é mais do que eu mesmo.
D. Quichote
« Dizei-me, poetas d'agua doce ! . . . i Dizei-me,
rãs que grasnaes no charco da caballina t Dizei-me
cysnes contrafeitos, que vos banhaes no lodo da Hy-
pocrene : com que motivo quereis competir com o
deus da poesia?
Poetas

« Porque esse Apollo, como não inspira, não


merece o nome d'Apollo ; e assim queremos tomar-
lhe o Parnaso e repartil-o entre nós.
Sancho
« Senhor ! não se metia a brigar com os poetas
que são peores que gigantes. Veja vm.ce que elles
trazem um exercito de dez mil romances, quatro
mil sonetos, duzentas decimas, oitenta madrigaes, e
um esquadrão de satyras volantes em silva que ar
ranha. Veja bem no que se mette !

D. Quichote
Nada me assombra ; porque eu só com esta es-

í O actor, que proferia a apostrophe, fitou os olhos na turba dos


vates. A hilaridade mal deixava ouvir os brados retumbantes do esgrou-
viado cavalleiro.
422 O JUDEU

pada heide vencer quantos poetas ha no mundo. Serra


Hespanha ! Viva Apollo ! e morram os traidores !
Grande algazarra.
Apollo
« A elles, meu D. Quixote, que a victoria é nos
sa!
Sancho
« Aqui d'el-rei, que estou passado de parte a
parte com um soneto em agudos !
D. Quichote

« Já fugiram como mosquitos !


Sancho
« Avança! que com esta gente sou eu gente! . . .

Felizmente para os poetas, com pouco mais, bai


xou a cortina do primeiro acto. Alguns sahiram e
não voltaram a expor-se ás brutaes risadas d'aquelle
selvagem publico, de todo desapparelhado dos meno
res rudimentos de educação. Os mais briosos propu-
nham-se chibatar o actor, e os mais covardes amea
çavam o judeu, em tom comedido que não podia
chegar aos ouvidos de Antonio José da Silva.
Correu a comedia sempre victoriada, tirante os
lances em que appareciam diabos em scena, porque
ROMANCE HISTORICO 123

então os frades do camarote resmuneavam entre si,


dizendo-se :
— Como è que a censura deixou passar estas
galhofas, que insultam a religião catholica?
— Bem se deixa vêr a cauda do judeu por en
tre as farçadas da sua tramoia ! . . . Queira Deus que
o author não tenha de ir ainda purgar-se d'estas fe
zes que lhe sujam o talento!... — observava um
leitor de theologia do convento de S. Domingos.
Sem embargo, a reputação de Antonio José da
Silva estava confirmada pelo delirio da multidão.
CAPITULO XIV

Os bens de fortuna do advogado João Mendes da


Silva permittiam largas ao prazer com que o velho
preparava casa com excellentes commodos para re
ceber a esposa de seu filho.
Alugou um espaçoso predio no largo do Soccor-
ro, trastejou-o com a mobilia dourada, que ainda
hoje relembra a época de D. João v, alcatifou os pa
vimentos, pendurou lustres, vestiu de azulejos o pa-
teo e paredes das escadas, limpou e areou os pas
seios do jardim, murou de vasos os alegretes, plan
tou trepadeiras para afestoar abobadas de folhagem ;
em tudo, com menineira alegria, cuidou afanosamen
te o ancião, pedindo conselhos a Lourença, no tocan
te aos objectos dos aposentos de Leonor.
A noiva visitou a sua futura casa, com suas pri
126 O JUDEU

mas, alguns dias antes do casamento; e, como visse


o jubilo do veneravel João Mendes, de Lourença e
do filho, mais feliz e menos expansivo que elles, dis
se entre si : « Razão tinha minha mãe ! . . . Esta fa
milia sente e goza as alegrias das virtudes antigas do
povo escolhido. »
O dia da suprema felicidade da familia Silva foi
o vinte de Abril de 1734. As festas do noivado foram
muito gozar na casa de João Mendes, onde apenas
se viam os Barros, unicos parentes de Jorge, que
cruzavam o limiar d'um hebreu. Muitos outros ti
nham ido supplicantes ao escriptorio de João Men
des pedir-lhe a sua sciencia ; e esses mesmos encos-
tavam-se despejadamente ao telonio de qualquer ju
deu, quando a bolsa lhes pesava menos que a fidal
ga soberba e os christianissimos escrupulos. É ver
dade que estes, depois, lançavam lenha á fogueira
dos credores, e assim saldavam contas, convictos de
que Jesus Christo, no juizo final, sahiria em defeza
d'elles, contra as objurgatorias do diabo, e depoi
mento dos judeus roubados. Santa gente, que não
tem menos razão de ser canonisada que Pedro Ar-
bues, do qual dizem que vai rezar o calendario.
Leonor estimava profundamente seu marido : a
consciencia não a deixava doer-se da falta d'aquelle
sentimento. A profunda estima d'ella valia mais que
a superficial paixão de muitas. Antonio José da Sil
va não sentia necessidade de ser mais amado. Se
ROMANCE HISTORICO 127

elle tivesse conhecido caricias d'outras, denguices


usuaes e convencionaes, delirios de poesia, que des
fecham em um insulso prosaismo ao terceiro mez de
vida marital, pode ser que Leonor lhe parecesse fria,
fleumatica e desamoravel; porém, como ella tinha
sido a mulher unica da sua esperança, e perdida de
sua alma a considerara, tudo que a outrem parecera
tibieza de affecto, se lhe afigurava a elle amor, juizo,
reflexão, e póde ser que um quebranto das amargu
ras da vida passada.
O hebreu, aporfiando em contribuir com meta
de das despezas necessarias á decencia de sua casa,
trabalhava muito e de fervorosa vontade nos nego
cios forenses, sem, com tudo, levar mão das suas
composições theatraes.
Poucos dias depois de casado, assistiu elle com
Leonor á primeira representação da sua segunda co
media, intitulada: Esopaida ou vida de Esopo. Nos
dias d'este nosso seculo bem creado qualquer mari
do que escrevesse a Esopaida não levaria sua mu
lher a vêl-a em scena, e menos lh'a recitaria em fa
milia. E, n'aquelle tempo, de tantos frades e virtu
des, as cousas e phrases que se figuravam e diziam
no palco eram taes que hoje a policia prende a gen
te desbocada que as diz na rua. Aquellas senhoras
não tinham nem deviam ter mais melindroso ouvido
que a virtuosa e pia corte de D. João m, á qual me
dianamente incommodavam as facecias obscenas de
128 O JUDEU
Gil Vicente, e o recitativo lubrico e sordido do Pran
to de Maria Parda.
A segunda comedia corroborou o triumpho que
o judeu alcançara na primeira. Andava-lhe o empre-
zario de mãos postas rogando que lhe não desampa
rasse o theatro e o publico para quem já nenhum
outro author portuguez ousaria escrever, sem plau
sivel susto de ser assobiado.
Em Maio de 1735, novo drama de Antonio José
acudiu á anciedade das turbas, que haviam desam
parado o theatro. Chamava-se a opera : Os encantos
de Medêa. Esqueceram as victorias das anteriores
comedias, deslumbradas pela ultima. O author sahiu
nos braços da melhor gente, que frequentava o thea
tro da Mouraria. O conde da Ericeira dignou-se vi-
sital-o no camarote, e chamar-lhe o Aristophanes por
tuguez.
Em Junho d'este anno, morreu João Mendes da
Silva com oitenta e um annos de idade, abençoando
esposa e filho, e a carinhosa Leonor que lhe colheu
a ultima luz dos olhos embaciados, e se viu espelha
da n'elles atravez das lagrimas do trespasse. Lou-
rença Coutinho exorou muito a Deus que a levasse
então ; o juiz incomprensivel indeferiu o requeri
mento.
Em Maio do anno seguinte, apesar do augmen-
to do trabalho de escriptorio, que a clientela levava
ao filho, tão famigerado como o pae, representou-se
ROMANCE HISTORICO 129

a quarta opera de Antonio José, denominada : O Am-


phitrião.
O hebreu tinha inimigos, não poderosos para o
affrontarem barba por barba, mas de sobra infames
para o indisporem no conceito dos piedosos. Azou-
se-lhes ensejo na recita do Amphitrião: aqui se falla
em carceres, em barbaros juizes, em patibulos, em
polés. Antonio José nSo estudara a philosophia do
anexim : « não fallar de corda em casa do carrasco. »
A palavra polé ia vibrada ao camarote dos frades,
que — digamol-o em honra da arte — estava sempre
empilhado d'elles. No drama, um personagem entre
ferros recitava os seguintes versos :

Sorte tyranna, estrelta rigorosa,


Que maligna influes, com luz opaca,
Rigor tão fero contra um innocente í
Que delicto fiz eu para que sinta
O peso d'esta asperrima cadeia,
Nos horrores d'um carcere penoso,
Em cuja triste lobrega morada
Habita a confusão e o susto mora!

Mas ó deuses, se sois deuses


Como assim tyrannamente
A este misero innocente
Chegaes hoje a castigar? 1
1 Amphitrião — Part. 2.» Sc. vi.
VOL. II

'
130 O JUDEU

Os poetrastos, açoutados no D. Quichote, fareja


ram impiedade no quarteto ; os frades viram clara
allusão á injustiça do encarceramento no santo officio.
Estas interpretações chegaram ao conhecimento
de Silva. Indignaram-no, e logo protestou não mais
escrever para interpretes estupidos e malvados.
Protestos de dramaturgo ! A paixão era despoti
ca, e tanto que venceu luctando com os rogos de
Leonor no sentido de manter inquebrantavel o pro
testo de mais se não expor ás insidias de inimigos
invejosos.
Tanto assim, que já no mez de Novembro de
1736, appareceu no theatro com o Labyrintho de
Creta. Estava cheio o theatro e os inimigos a postos
para notarem a lapis as phrases suspeitas. O author
esmerára-se em não dar brecha á maledicencia. Não
se vos depára phrase ambigua nem expressão bifron
te no longo drama: os scelerados, porém, escava
ram, escavaram até poderem mostrar intenção offen-
siva e attentatoria da religião christã. Sem embargo,
porém, da parcialidade odienta, os applausos excede
ram as ovações passadas.
Já se não irritou António José contra os biltres
diffamadores. Prometteu vingar-se com a fecundida
de do seu talento, e preparou duas operas para o
anno seguinte. Apresentou a primeira no carnaval
de 1737, conhecida pelo titulo de Guerras do ale
ROMANCE HISTORICO 131

crim e mangerona; e, depós esta, deu para ensaios


as Variedades de Proteu.
— Não quero outra vingança! — dizia elle á es
posa — heide afastar estes cães dos calcanhares com
a nobilissima arma que elles não merecem. Provar-
lhes-hei que fundo o theatro nacional, em quanto
elles escavam com as garras a sepultura da sua inu
tilidade. O conde da Ericeira encarregou-se de dis
suadir algum inimigo dos temiveis que tenho. Os ou
tros, os invejosos, heide esmagal-os debaixo do peso
da sua ignominiosa paixão.
CAPITULO XV

Deviamos ter feito uma solemne e festiva para


gem no anno de 1735. N'este anno, aos cinco de
Outubro, Leonor foi mãe. Era uma menina, que na
pia baptismal recebeu nome de Lourença, por chamar-
se assim sua avó e madrinha. Diogo de Barros, que
já o tinha sido do casamento, foi padrinho da neta do
sefl sempre chorado Jorge de Barros.
Então se consummou a felicidade de Leonor.
Sentiu ella, ao estreitar ao seio a filha, que lá do in
timo se desentranhavam affectos novos, alegrias dou
das, consolações inenarraveis. Parece que d'aquella
superabundancia de amor, grande parte vertia ella no
coração do marido. Agora, sim : amava-o, ternamen
te o amava, descobria o sacratissimo mysterio do
amor de esposa nas delicias da maternidade.
1 34 O JUDEU

O primeiro anniversario de LoureDcinha foi fes


tejado com pompa. Antonio José da Silva abriu as
suas salas aos amigos que a sua reputação lhe crea-
ra. A sociedade dos dignos homens de letras, que
frequentavam o palacio dos Ericeiras, gratamente se
curvou a beijar no berço a filhinha do mais festejado
e popular talento do paiz.
Agora, atemos o fio no ponto em que deixamos
este ditoso pae planejando instrumentos para affronta
e completa vingança dos baixos detrahidores.
N'este tempo, recebeu Antonio José da Silva,
como em todos os paquetes, carta do seu amigo Fran
cisco Xavier de Oliveira, respondendo na maxima
parte ás queixas enviadas pelo hebreu das interpre
tações calumniosas que a gentalha litteraria dava ás
suas operas, no intento de irritarem contra elle o
santo officio.
Francisco Xavier dizia-lhe que sahisse de Portu
gal quanto antes ; porque se o rastilho da polvora
chegava á santa casa, não havia forças de contramina,
e a conflagração seria inevitavel. Lembrava-lhe Hol-
landa, Italia, Inglaterra como paizes liberrimos, e
alentadores d'al tos corações e espiritos. Promettia-lhe,
se elle a quizesse, posição honrosa na embaixada do
ministro conde de Tarouca, homem de boa alma que
o havia de estimar grandemente.
Depois, conta va-lhe a realisação do seu casamento
em Vienna com mademoiselle Eufrosina de Puecb
ROMANCE HISTORICO 135

berg e Enzing, menina de virtudes condignas de seu


distincto nascimento, bem que desprovida de dote.
Relatava mui de espaço e desenfadadamente um epi
sodio que lhe succedêra, quando foi ao consistorio
prestar juramento de que sua primeira mulher tinha
morrido. Trasladal-o-hei como elle o reconta no seu
Amusement périodique do mez de Julho de 1751.
Antes, porém, do extracto, releve-me o author que
por pouco tempo o detenha para me ajudar n'uma
averiguação importante, quando se trata da biogra-
phia, mas rapida que seja, de tão celebrado sujeito.
Dizem unanimemente os biographos de Francisco
Xavier de Oliveira que elle sahira de Lisboa, na qua
lidade de secretario do conde de Tarouca, para Aus
tria, em 1734. Uniformes asseveram que elle ia já
viuvo de sua primeira mulher D. Anna Ignez d'Al-
meida. O snr. Innocencio Francisco da Silva, emi
nente esquadrinhador dos traços principaes da vida
dos escriptores que biographa no seu valioso e pres-
tantissimo diccionario, diz com referencia a Francis
co Xavier de Oliveira, firmado no parecer unanime
de seus antecessores, o seguinte : . . . « achava-se no
estado de viuvo, quando por obito de seu pae foi no
meado para o substituir na qualidade de secretario
do conde de Tarouca, então ministro plenipotencia
rio em Vienna dWustria. Aos 19 d'Abril de 1734
sahiu a barra de Lisboa, deixando a patria, para mais
não tornal-a a vêr. »
136 O JUDEU

Ora, se Francisco Xavier sahiu viuvo de Lisboa


em 1734, e passou a segundas nupcias em Austria,
seria absurdeza irrisoria dizer-se que elle casou se
gunda vez em 1733, isto é, que passou a segundas
nupcias antes de viuvo da primeira mulher. E, entre
tanto, o leitor tem de julgar entre o cavalheiro de
Oliveira e os seus biographos, depois de lêr as tex-
tuaes palavras que vou copiar da narrativa propria
mente d'elle: L'an 1733, aiant résolu de contracter
de secondes nóces à Vienne ', je fus obligé de préter
en personne serment devant le consistoire de cette vtt-
le, que ma prémière femme etaite morte etc. » E' elle
pois quem assevera que deliberou matrimoniar-se se
gunda vez em 1733, um anno antes da sua sahida
de Portugal, consoante a data assignada pelos biogra
phos melhormente informados. Poderá conjecturar-
se que a realisação do casamento foi posterior alguns
annos á deliberação de casar ? Não : a hypothese é
prejudicada pela affirmativa de que elle sahiu de Por
tugal para Vienna em 1734: fora preciso que elle
fixasse, ao menos, este anno, para poder vingar a
hypothese da distancia temporaria entre o intento e
a realisação. N'este caso, por qual das datas se deci
de o leitor? Inclina-se a crêr que todos os biogra
phos se enganaram, por ser Francisco Xavier de
Oliveira a authoridade mais verdadeira em cousas

1 Avec Mademoiselle Eufrosine de Puecbberg et Eniing.


ROMANCE HISTORICO 137

que lhe principalmente a elle tocam? Não concorda


mos. Eu abundo no que está dito e confirmado por
biographos que deviam examinar competentemente o
anno em que Francisco Xavier enviuvou, e o anno
em que sahiu de Portugal. A meu juizo, a incon
gruencia d'estas datas procede d'um erro typographi-
co na ultima letra numerica do anno designado no
periodico do cavalheiro de Oliveira. A publicação era
feita em Londres, e eu suspeito que o escriptor, n'a-
quelle anno de 1751, tivesse a vista muito debilita
da pelo chorar, senão pela fome. Viu mal as provas,
falta que muitas vezes nos offerecem estes dous vo
lumes. Se tal suspeita se figura argumento pouquis
simo ou nada solido, a favor dos errados biographos
do cavalheiro de Oliveira, então vejamos se o cava
lheiro de Oliveira se desmente.
A pag. 349 do 2.° vol., no periodico d'Agosto
de 1751, elogia Francisco Xavier de Oliveira enco-
raiasticamente a felicidade da vida matrimonial, e diz
o seguinte, que vai traduzido para esclarecimento
d'alguns poucos : « No 2.° volume das minhas Car
tas familiares, historicas, etc. impresso na Haya em
1742, dei ao publico parte do que vou aqui referir-
lhe. Mas, acerca d'isto, convem que eu faça duas
observações: l.a que eu era solidamente ligado á
igreja romana.no tempo em que discutia com o con
de de Claravino em 1735, e ainda em 1736. . .»
438 o judeu
Que discussões eram estas do cavalheiro com o
conde? Declaram-se adiante pag. 354.
Escreve Francisco Xavier : — «A suprema lou
cura, me dizia o conde de Claravino, é o casamen
to, e eu não sei qual seja a estação da vida apro
priada a semelhante tolice ! O casamento é o peor
dos males : é uma escravidão, um inferno ! — Estaes
em erro, senhor — lhe repliquei — O casamento,
no meu modo de vêr, é o mais bello, mais commo-
do, feliz e util estado da vida. Errado andaria eu
tambem se dissesse que em todo casamento se asso
ciavam aquellas excellencias ; mas que ha ahi casa
mentos em que ellas se conjunctam, isso acreditei-o
sempre e acredito ainda. Devo pugnar por tal esta
do. Aquelle em que eu me vejo l é tão desgraçado
que só a selvagens convem. ...»
Esta pratica ou discussão com o conde de Cla
ravino deu-se em 1735 e ainda em 1736. Não ha
ahi, pois, mais evidente cousa que a impossibilidade
de ter o cavalheiro casado segunda vez em 1733.
Ahi está, por tanto, justificada a affirmativa dos bio-
graphos em quanto ao anno da ida do cavalheiro
para a Austria. Parece-me agora de todo aceitavel a
hyppthese do erro typographico, porque é inadmis
sivel a leveza da contradicção em escriptor tão re
flectido.
1 Eu estava então viuvo por fallecimento de minha primeira mulher
D. Anna lgnez d'Almeida. Nota do cavalheiro de Oliveira.
ROMANCE HISTORICO 439

Está o leitor enfastiado já «festas academicas es-


garavatações. Indulte-as áquelle rancido achaque dos
muitos annos que inclinam os velhos a esta cousa
de peneirar a poeira dos seculos ; d'onde resulta
sahir-se a gente com os olhos cegos de pó, sem achar
pedra que valha na joeira. De mais d'isso, a mim
custava-me que, se alguem visse a errada data des
tes livros do cavalheiro, me arguisse de inventor de
anachronismos inculcadamente historicos.
Vamos agora todos melhorar de sorte, assistindo
a um lance, com o qual se hãode ensoberbar os
actuaes cavalleiros da ordem de Christo, pelo que
já d'aqui dou os parabens ao meu barbeiro.
Narrava, pois, Francisco Xavier então a sua ida
ao consistorio allemão para dar juramento de sua
viuvez, e continua agora :
« Á entrada do tribunal o porteiro pediu-me a
espada. Recusei-me. Deu-se parte ao bispo-presiden-
te da minha recusação. O prelado, que me conhecia,
mandou-me dizer por um dos conselheiros, que eu
devia submissão ás leis do paiz, e antigos usos do
consistório que não permittiam entrar alguem de
espada. Redargui que o principal adorno da minha
ordem consistia no uso da espada ; e que um dos
seus maiores privilegios era poder, e até dever tra-
zel-a em todo tempo, sem excepção do acto religioso
da communhão, a qual me era permittido receber
de espada á cinta. Fez-me o bispo saber que o conde
140 O JUDEU
de Sinzendorf, poucos dias antes, indo ao consisto
rio, não duvidara deixar a espada em poder do por
teiro ; que eu bem sabia que elle era cavalleiro do
Tosão, e podia contentar-me com tal exemplo, e se-
guil-o. Retorqui ao conselheiro que a ordem do To
são, com quanto illustre, não fruia os privilegios
que os papas e outros principes haviam conferido ás
ordens militares. E, que tendo eu a honra de pro
fessar uma d'estas, não cabia em meu arbitrio des-
pojar-me d'ella, entregando a espada, da qual nem
o rei propriamente podia privar-me, salvo sendo eu
culpado de crime de lesa magestade. Em fim, disse
eu gracejando, mais facilmente prescindo passar sem
a mulher que sem a espada : uma posso renuncial-a,
a outra não.
« O conselheiro irritado pelo gracejo, ou cançado
de mensagens me disse de má sombra : Espanta-me
que o senhor pretenda ser preferido ao conde de
Sinzendorf, e não distinga entre pessoas! Respon
di: «As distincções não está o senhor conselheiro
no caso de as fazer: não é o cavalheiro de Oliveira
que contende com o conde: é a ordem de Christo
com a do Tosão. Faz-me muito favor se se dignar
participar isto ao snr. bispo.
« O bispo, depois, mandou-me entrar n'um quar
to, onde estive sosinho uma boa hora. Em seguida,
mandou-me ir ao consistorio, e prestar juramento,
com a espada á cinta. Desculpou-se do acontecido
ROMANCE HISTORICO 141

dizendo que ignorava ou se tinha esquecido de que


a ordem de Christo era militar. . . »
Desta infatuada narrativa, passava Francisco Xa
vier a contar os escandalosos amores de D. Luiz da
Cunha, ancião de oitenta annos, ministro de Portu
gal em Paris, o qual se apaixonara na Haya por uma
snr.* Salvador, judia, pertencente a uma familia he
braica estabelecida em Hollanda, e a trazia comsigo
pelo mundo. Conta que estivera ceando com elle e
ella, e pasmara do temperamento amoroso do decre
pito ministro, quando lhe elle disse : « Sem amor
não ha vida feliz ; a paixão do amor é o mais agra
davel negocio da vida, e todos os prazeres são en
joativos, se o amor os não aduba. » E, dito isto, to
mara a mão da bella, e exclamara:

Est-il rim de plus beau que Vinnocente flame,


Qu'un mérite éclatant allume dans tine ame ?
Et serait-ce un bonheur de respirer le jour,
Si d'entre les mortels on bannissait Vamourf
Noti, non, tous les plaisirs se gôutent à le suivre,
Et vivre sans aimér riest pas proprement vivre.

E, depois, a Salvador, por sua vez, tomou a


mão do velhinho, e declamou :

Avoir un amant d'un merite achevé,


Et s'en voir chérement aimée;
142 O JUDEU

Cest un bonheur si haut, si relevé,


Que sa grandeur ne peut étre exprimée.

Francisco Xavier mostrava-se vivamente compa


decido da senil miseria de D. Luiz da Cunha, aliás
habilissimo ministro ; porém, o que elle não podia
perdoar-lhe era o escandalo de conferir a ordem de
Christo á Salvador, lançando-lhe ao pescoço o cordão
e a cruz que ella usava publicamente, denominando-
se cavalleira da ordem real de Portugal!
« Como quer que seja, terminava Francisco Xa
vier escrevendo a Antonio José da Silva — sahe
d'ahi, vem para este grande mundo, onde ha ridicu-
lesas d'este tamanho ; vem gozar a vida, repartindo-a
entre a seriedade do estudo, e as brilhantes futilida
des, de que a gente se pode rir impunemente. En
fardela a trouxa, e parte o mais breve que possas... »
— Que te parece? — perguntou Antonio José a
Leonor.
— Vamos! — exclamou ella — mas o thesouro
da Bemposta ? ! . . .
PARTE QUARTA

CAPITULO I

O expediente de vingança, que mais nobre se


offerecera ao honrado animo de Antonio José da Sil
va, não dava os esperados effeitos. A guerra, pri
meiro surda, já rumorejava nas praças, nos concla
ves pios, e peor que tudo nas cavernas do santo of-
ficio.
Duarte Cottinel Franco procurou, com magoado
aspeito, o seu amigo de infancia para lhe recommen-
dar precauções vigilantissimas, assegurando-lhe que
de seu pae, qualificador do santo officio, soubera
que uma pavorosa tempestade se estava formando so
bre a cabeça do innocente author das operas ; e, com
immenso desgosto, era elle inefficaz a conjural-a com
o raciocinio.
Disse Antonio José a Duarte Cottinel que se dis
144 D jubeu

punha a sahir de Portugal, tão depressa liquidasse o


valor dos poucos bens que herdara.
— Eo thesouro da Bemposta fica? — pergun
tou Duarte.
— Se fica ! . . . Sei eu, por ventura, se tal the
souro existe?!
— E o annel não chegaste a vêl-o ?
— Não ha annel nenhum, homem ! . . . — tornou
Antonio — Em horrivel annel de ferro me querem
cingir e afogar o pescoço estes cafres tonsurados a
quem eu não fiz mal nenhum !
E, com palavras desviadas do assumpto do an
nel, o hebreu foi declinando a conversação para es-
quivar-se a perguntas, e respostas falsas com que se
lhe mortificava a consciencia.
Duarte deixou-o a scismar no thesouro.
— Seria uma doudice, dizia Antonio José a Leo
nor, sahirmos de Portugal, sem ao menos levarmos
a certeza de que já foi roubado o cofre de teu pae.
A riqueza, se é tanta como diz o rol, dar-nos-hia
em toda parte do mundo uma folgada vida. Porque
não tinha tua mãe confiança n'este Duarte ?
— Porque eu lhe disse que a não tivesse — res
pondeu Lourença Coutinho — E a ti, filho, conjuro-
te que a não tenhas. Vai perguntar a Diogo de Bar
ros que casta de gente é esta dos Cottineis.
— Mas — tornou Antonio — se eu fizesse as cou
sas de modo que não podesse ser logrado por Duar
ROMANCE HISTORICO 145

te? Se eu fosse pessoalmente desenterrar o thesou-


ro, e o trouxesse commigo ?
— Acho que el!e seria capaz de te matar lá
mesmo !
— Elle quem? Duarte?!
— Sim, Duarte.
— Ora, minha mãe! está formando um injusto
e ultrajante conceito do homem ! Que é dos crimes
d'elle que a authorisam a conceituar assim um ra
paz que nunca nos fez mal, e de toda a gente rece
be provas de estima, e foi elevado por sua honra ao
grande emprego que tem no paço dos infantes !
— Antonio, não te fies n'elle ! Que interesse
pode elle ter — replicou Lourença Coutinho — em
que tu aches e possuas o thesouro ! Se tantas vezes
lhe temos dito que o thesouro é uma fabula, ou, se
não é fabula, é cousa perdida, para que anda elle
sempre a fallar-te no annel do contador-mór ?
— É porque se mortifica, pensando que descon
fiamos de sua lealdade. . . E então, Leonor, como
entendes tu que procuremos desenganar-nos ?
— Eu sei! ... A dizer verdade, o tal Duarte não
me merece confiança; mas pode ser que todos des
acertem, menos tu, Antonio. Dizes que irias tu mes
mo buscar o cofre, e trazel-o para tua casa. Se as
sim for, não sei realmente como Duarte possa rou-
bar-t'o. Póde ser que a idéa d'elle seja receber uma
porção dos objectos. Se for isso, dá-se-lhe alguma
VOL. II 10
146 O JUDEU

cousa, que nos hade ainda ficar muito. Pois que ou


tro intento hade ser o d'elle? Fugir com o thesou-
ro ? Isso não o fazia elle, porque era perder a hon
ra e o bom officio que tem com esperanças de outro
melhor. O que elle quer é que o remuneres, e tu
lhe darás o que for da tua vontade, meu amigo. Com
tudo, não te animo nem desanimo. Faz o que enten
deres, sem desfazer nas apprehensões de nossa mãe.
Antonio José da Silva andou cogitativo muitos
dias. A tormenta va-o o thesouro ! aquelle foco de pe
çonha que distillara lagrimas, desgraças e odios, no
espaço de quasi cincoenta annos, desde o dia em que
Luiz Pereira de Barros preferira Jorge entre seus
irmãos com afagos promettedores da herança do se
gredo, até áquella hora, para além da qual Lonrença
agourava novos desastres.
E, ao mesmo tempo, o conde da Ericeira e ou
tros amigos de igual tomo diziam-lhe que sahisse de
Portugal por alguns annos e voltasse em melhor épo
ca. O conde lembrava-lhe que fosse a Paris estudar
os grandes mestres da arte scenica, aquecer-se aos
atomos luminosos d'aquelle ar todo sciencia, todo
inspirações, e voltasse depois a continuar a sua pri
mazia no theatro, de teor que podesse lustrosamen
te reformar, senão crear, a arte dramatica em Por
tugal.
Abraçava o hebreu alegremente estes conselhos,
e retocava a sua opera chamada o Precipicio de Phae
ROMANCE HISTORICO 147

tonte para a fazer representar como triumphal adeus


que elle dava a ingratos, a estupidos e a scelerados
malsinadores de sua consciencia !
Precipicio de Phaetonte! que titulo tão presa-
go ! . . . que funestos agouros Leonor aventava d'a-
quelle titulo significativo de desastre !
Duarte Cottinel, depois da representação victo-
riada das Variedades de Proteu, em Maio d'aquelle
anno de 1737, procurou-o para lhe mostrar os re-
lanços e phrases da comedia, que, por ordem da
censura, a requerimento do inquisidor geral, tinham
sido riscadas.
Algumas phrases eram estas:
Amor nos homens é o mesmo que querer bem;
nas bestas muares ê o mormo, e nos outros animaes
appetite.
— Então isto em que offende a religião ou os
bons costumes ? — perguntou o hebreu.
— Não sei.
— Provavelmente os censores não querem que
o seu amor seja mormo !
— Hade ser isso. . . — obtemperou o risonho
Duarte.
— Que mais riscaram?
— Isto: isso é gloria do cêo da bocca: dizem
que mettes a riso a gloria do céo.
— Menos a d'elles, que é a bemaventurança dos
parvos. Que mais?
HS O JUDEU

— Dizem que fazes galhofa do inferno, quando


escreves isto : na gloria do amor ha sombras do in
ferno.
— Ora ! não os mando para lá por não injuriar
o diabo com taes hospedes. Tu dirás onde os heide
mandar.
— Dizem mais que ultrajas as leis divinas do
casamento.
— Aonde? em minha casa, ou na d'elles?
— Na comedia. Aqui está o escandalo: E quem
seria o magano que tal lei inventou ? (a lei do ma
trimonio) Foi Apollo em despique do rigor de Daphne.
— Basta! — exclamou Antonio José — Plenissi-
ma liberdade a esses burros de escoucearem a mi
nha comedia ! Sujem e risquem á vontade os sevan-
dijas. Não quero vêr mais nada. Cafraria hedionda,
terra empapada em sangue e lagrimas, não comerás
meus ossos !
— Olha mais, Antonio.
— Não quero : faz-me nojo tudo isso, nojo e ver
gonha de ser portuguez ! Vou mandar buscar ao
theatro o Pmcipicio de Phaetonte. . . Vou queimal-o. . .
— Mas não digas nada, meu amigo. . . Lembra-
te que em Portugal não se queimam só operas. Pru
dência, prudencia, Antonio! Qualquer denuncia peide
hoje perder-te.
Antonio José reflectiu, abraçou Duarte, e mur
ROMANCE HISTORICO 149

murou circumvagando os olhos, como se receasse


ter sido escutado :
— Tens razão. Não direi nada. . . Cuidarei em
fugir, já que me não querem. . . Meu amigo, áma
nhã vou procurar-te, preciso fallar comtigo a sós.
Ao meio dia.
Lourença Coutinho ouvira as ultimas palavras do
filho, porque o espiava sempre que Duarte Cottinel
estivesse com elle. Assim que o almoxarife sahiu,
entrou ella, perguntando:
— Que vaes fazer amanhã a casa de Duarte?
— Vou lá. . . preciso lá ir — respondeu de má
catadura Antonio.
— Vaes descobrir-lhe o segredo ?
— Não sei. Que assedio! que importunação ! . . .
Minha mãe quer voltar ás masmorras do santo offi-
cio? Quer vêr como os meus ossos estalam no Cam
po da Lã ?
— Oh filho ! que desatinos está dizendo ! — ex
clamou a atribulada mãe.
— Preciso sahir de Portugal, entendeu, minha
mãe? Quero salval-a, salvar-me, e minha mulher, e
a minha querida filhinha. . . comprehende bem esta
resolução feita, depois de cabalmente informado da
sorte que me preparam os algozes, cujos apparelhos
de tormento já eu experimentei n'estas mãos e nes
tes braços ?
— Pois, sim, meu filho, fujamos.
ISO O JUDEU
— Fujamos sim; mas sabe vm.ce a quem eu
devo o aviso da minha futura sorte, se me aqui de
morar? É a este excellente rapaz que minha mãe
detesta ! É a Duarte Cottinel que me falla com as
lagrimas nos olhos e o coração nos labios ! Sou-lhe
grato, estimo-o, preso-o como a meu irmão. Os ou
tros lisongeam-me, e perdem-me; elle, notando as
minhas imprudencias, manda-me fugir.
— Pois sim. . . mas vaes dizer-lhe onde está o
thesouro ?
— E que vá ? isso que monta ?
— Nada. . . — balbuciou Lourença Coutinho, co
mo assustada da exasperação do Alho.
Leonor aproximou-se da sogra, e disse-lhe affa-
velmente :
— Deixe-o lá, m5e, deixe-o que elle já tem ex
periencia da vida, e deve conhecer Duarte melhor do
que nós. . .
CAPITULO II

Duarte Cottinel esperava em alegre sobresalto o


hebreu. Fallava em soliloquio, como quem precisa
expandir-se, communicar o seu rejubilo aos seres
inanimados. « A final — dizia elle á sua sombra, ao
demonio exultante de sua consciencia — a final o meu
presentimento não era um sonho. Posso ser rico ! »
As onze horas entrou Antonio José da Silva na
casa do almoxarifado da Bemposta. Sahiu Duarte a
recebel-o, e disse-lhe com melancolicos esgares :
— Virás tu despedir-te, meu querido amigo?
— Ainda não. Porque m'o perguntas? Queres
dizer-me que devo sahirjá? Sabes alguma cousa?
— Nada mais sei, Antonio — respondeu com in
decisão Duarte — E tu soubeste mais do que eu te
disse?
152 O JUDEU

— Não. O santo officio anda em cata de provas,


que até hoje lhe não deste satisfactorias. Bem sabes
que esta gente, quando se resolve a victimar algum
assignalado pelo odio d'elles, sepulta-o nas masmor
ras, e depois inquire das provas. E estas também tu
sabes que saltam da bocca dos torturados, quando
ha mingua de testemunhas para levar o processo á
Relação. Por isso, meu amigo, não descancemos so
bre a tua innocencia. Fugir em quanto é tempo ; to
davia, persuado-me que não é apertada a urgencia
de fugir já. Arranja os teus negocios, vende clandes
tinamente, se poder ser, os teus bens, que poucos e
faceis de vender, creio que são. Pobre sahes de Por
tugal; mas em Amsterdam acharás hebreus que te
soccorram ; e, se te valeres de teus irmãos do Rio
de Janeiro, que estão ricos, poderás obter casco e
fundos para negociar e auferir o que as letras não
podem dar a ninguem. Vaes pobre, meu caro An
tonio ! Teu pae, no trastejar a casa em que moras,
gastou alguns punhados de ouro, segundo corre ; e
tu consomes mais do que lucras para manter tua se
nhora em fidalgas regalias. Não te culpo d'isso, que
ella, além da nobreza de seu pae, tem a nobreza
propria que a torna digna de estar em cadeiras d'ou-
ro, e servir-se. com princezas. A Providencia, dando-
te aquella menina, indemnisou-te das amarguras que
os homens te causam com tanta crueza, que é ver
gonhoso fallar a lingua d'estes barbaros, que dizem
ROMANCE HISTORICO 153

fallar a linguagem dos apostolos. . . Meu amigo, sa


bes que eu espreito a borrasca inevitavel que te
ameaça; por ora os ventos sopram de bom lado; as
sim que eu vir escurecer-se o céo com as sombras
do inferno, aviso-te. Isto já frequentes vezes t'o dis
se, Antonio. Agora, se tens algumas ordens a dar-
me, aqui estou. Queres talvez que eu me encarre
gue disfarçadamente da venda das tuas cousas? É
isso ?
— Não é. . . Vou abrir-te a minha alma! —
disse expansivamente Antonio José.
— Ainda agora? Ó ingrato! pois ainda agora me
abres a tua alma ?
— Foi forçoso; violentei-me. . . era necessario.
Não queiras que eu te explique a razão d'uma reser
va indigna de ti e de mim.
— Vaes fallar-me. . .
— No thesouro escondido n'esta quinta.
Duarte compoz a custo o semblante que parecia
abrazar-se e intumecer-se de alegria. Passados ins
tantes, disse:
— Eu sabia que o thesouro não era fabula. Res
peitei a tua reserva, confessando-te que me doia,
porque era mais que alfrontosa para mim. . . e tam
bem para ti, que me conhecias desde os onze an-
nos.
— Não m'o recordes, Duarte. Perdoa-me, e es
cuta. Presumo que existe o cofre do antigo contador
154 O JUDEU
mór, bisavô de minha mulher. Esta casa e quinta
foram revolvidas desde alicerces e raizes ; mas o lo
cal do thesouro não foi bulido. . .
— Então era certo existir o annel? — atalhou
Duarte.
— É certo existir o annel; Leonor é d'elle de
positaria, porque eu nunca mostrei leve desejo de
vêr as letras reveladoras do segredo, em quanto se
não facilitasse o ensejo de exhumar o cofre. Dizem
as letras. . .
— Eu não te fiz a pergunta — interrompeu Duar
te com vehemencia — para que me traduzas o que
dizem as letras. Não quero saber. Basta que o saiba
no momento em que me tu disseres: «é aquis.
— E porque não hasde sabel-o já ? !
— Porque não quero: são melindres que tu me
hasde respeitar.
— Queres que eu assim me corra de não ter
sido franco e sincero, quando me interrogavas sobre
o thesouro?
— Não é isso, nem te sei ao certo explicar o
que é. Vamos ao importante : queres tomar conta
do thesouro, não é assim ?
-É.
— Quando?. . . não pode deixar de ser de noi
te.
— Seja de noite á hora que determinares.
— Convem-te hoje ?
ROMANCE HISTORICO 155

— Ea ti?
— A mim convinha-me mais amanha, porque
hoje até noite alta não posso deixar de fechar as
contas do trimestre que heide ámanhã apresentar aos
infantes. Póde ser amanhã ás onze horas da noite?
— Sim, meu amigo, quando menos incommodo
te seja.
— Ora diz-me lá, calculas que os valores escon
didos te abastem para viveres independente em Pa
ris ou Londres ?
— Presumo que sim.
— A quanto monta segundo o teu calculo?
— Cento e cincoenta mil cruzados, a julgar apro
ximadamente das verbas designadas numa pagina es-
cripta pelo punho de Luiz Pereira de Barros.
— É muito dinheiro ! — exclamou Duarte — Po
des viver vida de principe onde quer que te sin
tas bem. Vai para Roma, que eu aposto que oscar-
deaes vão cear comtigo todas as noites, sem te per
guntarem por Moisés nem por Christo !
— Não ambiciono apparatos ostentosos, — disse
Antonio José — O que eu queria era socego e ale
gria. Tenho aquella filhinha que me está sendo um
anjo recompensador, esmola e riqueza do céo. Desejo
ser rico para ella. Leonor e eu, ea minha pobre mãe,
com pouco viveriamos, e talvez felizes, se o terror
da perseguição religiosa nos não tivesse sempre so-
bresaltados.
456 o judeu
— Fazes bem, fazes bem — tornou Duarte —
Foge, assim que te eu disser que fujas. Debaixo de
juramento te digo, e juramento te peço para que
nunca reveles o que vou dizer-te. . .
E abaixando muito a voz, e espreitando o cor
redor contiguo á sala, disse:
— Tens um optimo espião por ti no santo offr-
cio. . . É meu pae ! Vê tu a que extremos chegou a
amizade que te tenho. Meu pae, quinze dias antes
de se decretar a tua prisão, hade ser avisado, sem
que ninguem o avise. Elle entende e lê nos recon
ditos designios d'aquella gente, que lhe é detestavel,
porque meu pae, se finge tanta orthodoxia religiosa
como elles, é porque os temeu e ainda teme. Com-
prehendes, Antonio, o sagrado d'esta revelação?
— Comprehendo, meu querido Duarte ! — ex
clamou Antonio José da Silva abraçando-o com en-
thusiastico reconhecimento.
— E então já vês — insistiu o almoxarife — que
escusas de fugir antes do meu aviso. Pode até ser
que a tempestade se desfaça. . . Tem tu juizo, An
tonio. Manda as comedias ao diabo. Não escrevas
senão nos autos ; e, se te parecer, manda os autos
tambem de presente á alma do Papianno e do Bar-
tholo e do João das Regras que devem de estar no
inferno. Amanhã és rico, riquissimo. Não careces
de trabalhar. . . Sabes lá tu o que é ser rico f O que
é ter um coche e mulas lustrosas ! lacaios e mordo
ROMANCE HISTORICO 157

mos ! poetas a cantarem-te os espirros como agou


ros d'algum grande successo que vai felicitar a pa
tria ! Nunca pensaste nas delicias de ser rico ! Os
homens, os frades, os grandes, a natureza, tudo ás
tuas ordens! E as mulheres? Não quero fallar-te
das mulheres, porque tens uma que vale por todas
as que abrilhantam este mundo com a sua formosu
ra; mas se tu precisares d'um serralho de anjos, cui
das que não ias buscal-o ao empyreo ? Ó Antonio !
quando estiveres senhor dos teus cento e cincoenta
mil cruzados, verás o que é têl-os, vêl-os, contal-os,
palpal-os, vigial-os, convertêl-os em primaveras infi
nitas, em deleites interminaveis ! . . . Oh ! . . .
Duarte, no febril afogo do seu enthusiasmo, ora
torpe, ora lyrico, poderia denunciar a voraz cobiça
que lhe accendia entranhas e olhos, se ao lado de An
tonio José estivesse um terceiro, observador de animo
frio. O infame temeu-se da incontinencia da apologia
da riqueza, e desandou n'uma risada, exclamando :
— Maganão ! estavas a estudar em mim algum
Cresso avarento de gozos que tencionas por no ta
blado para alegrar o povo com as suas exclamações!
— Não, meu amigo, estava a imaginar que tu se
fosses rico, em vez de cobrires de ouro os caminhos
da tua vida, farias com o leu ouro melhorada a sor
te de muitos pobres, que se haviam de alegrar mais
com a esmola, que tu com a posse das riquezas da
casa de Bragança.
158 O JUDEU

— Podo ser que te não enganasses — volveu gra


vemente Duarte — O gozo de ser rico deixa de o ser,
quando o ouro não compra as alegrias puras da alma.
Tu hasde saber repartir o que até aqui te foi desne
cessario. Felizes aquelles que se aproximarem de til
Abraçaram-se. Antonio José da Silva despediu-
se com os olhos vidrados de lagrimas, murmurando :
— Eu queria não mais separar-me da terra onde
tu vivesses, Duarte ! Igual a ti só tenho um amigo
n'este mundo: é Francisco Xavier d'Oliveira. Quan
do eu lá fóra o vir, dir-lhe-hei que Duarte Cottinel
Franco tem uma alma irmã da sua. . . São duas al
mas que Deus formou no mesmo molde.
Dito isto, sahiu commovido.
Duarte Cottinel sentou-se, como se a carga da
infamia lhe dobrasse os joelhos ; poz as mãos na ca
beça, e ouviu este grito da consciencia :
— Que atrocidade!. . .
Instantes depois, ergueu-se, estirou os braços,
estalejou os dedos das mãos inclavinhadas, e resmu-
neou surdamente :
— Cento e cincoenta mil cruzados ! . . .
CAPITULO III

— Sempre resolveste procurar o cofre, Antonio?


— perguntou Leonor.
— Sim, minha querida, resolvi; mas não o di
gas á mãe. Cusla-me a crer que ella seja capaz de
julgar tão aviltantemente o nosso amigo Duarte!. . .
Os elogios respeitosos, que elle te faz, Leonor, pro
vam a escellente indole d'aquelle homem. . .
— Mas — objectou Leonor — não te ouvi eu
dizer que elle era bastante estragado de costumes?...
Então sonhei. . .
— Disse-t'o ; mas a desordem dos seus costumes
não faz repugnancia ao que se chama probidade. Era
a libertinagem propria dos vinte annos a que me eu
referia. Desde, porém, que se occupou em mordo-
misar os rendimentos dos infantes, r.ão sei que nin
160 O JUDEU

guem o exceda em morigerada regularidade de vida.


Que nos faz a nós, para o nosso intento, que elle
extravaganceasse lá na sua mocidade? Não goza cre
ditos de honrado Francisco Xavier de Oliveira? E
quem foi mais libertino que elle?! Ora queres tu
saber? É tão escrupuloso Duarte em pontos de hon
ra que não quiz saber onde está o thesouro, e disse
que bastava sabêl-o no acto em que eu lhe mostrasse
o sitio, e dissesse: «éaqui». Ha, porventura, som
bra de suspeita que nos absolva de desconfiarmos
d'elle?
— Creio que não — respondeu Leonor com in
deciso ar meditativo — Mas. . .
— Mas quê ? !
— Olha, Antonio... As suspeitas de tua mãe
pode ser que procedam de antipathia particular que
tem com o homem. . . Será isso, será. . . Entretanto,
o meu coração tem presentimentos fataes. . . Eu,
quando sahi de Amsterdam, adivinhava quantas des
graças sobrevieram ; ainda antes de as esperar, a
meio caminho de Portugal, estava na inquisição. Mi
nha mãe, olhava para mim, e exclamava : « porque
não escutei os teus presagios, minha filha ! » Isto
vem ao caso de eu, com bem pesar meu, te asseve
rar que a minha alma está inquieta, e vaticina algum
passo horrivel por causa d'aquelle thesouro. Tem
desgraça aquelle dinheiro ! Dizia-o meu pae, quando
eu era menina, olhando para o annel ; dizia-o minha

N
ROMANCE HISTORICO 161

mãe, e Simão de Sá. Meu tio Diogo, sempre que se


falla no cofre da Bemposta, recorda-me as afflicções
dos ultimos dias de meu bisavo ; a crueldade ferina
de minha avó ; a perseguição que duas vezes minha
mãe soffreu ; o risco em que esteve a vida de meu
pae. Mil infortunios !. . .
— E mil superstições, Leonor. Essa cadêa de
desgraças tem a sua logica e natural explicação. Não
é fado nem influição diabolica ligada ao thesouro.
Foram odios motivados pela ambição; mas não se
segue d'ahi que tu, legitima senhora d'elle, hajas de
soffrer a continuação dos dissabores que soffreram
teus paes.
— Será assim!. . . — tornou ella — vai. . . faz o
que quizeres. . . Praza a Deus que a nossa filhinha
não participe de alguma calamidade, se nós a temos
sobre as nossas cabeças. Deus preserve a innocenti-
nha! — continuou ella, soluçando com a filha estrei
tada ao coração.
Antonio José da Silva, bem que forte de espirito
e isento de preconceitos, estremeceu quando viu
as lagrimas da esposa a derivarem á face de Louren-
cinha.
— Pelo amor de Deus! —clamou elle — não me
aterres! Tu que tens, Leonor? que te diz o coração?
tu fazes-me fraco e crendeiro em agouros ! . . . Diz. . .
não queres que falle mais no dinheiro? não falla-
rei ! . . . não. . .
VOL. II H
i62 O JUDEU

Leonor atalhou-o:
— Isto não importa nada. . . Sou mãe. Não faças
caso de lagrimas nem de agouros, Antonio. Faz o
que quizeres; mas não me consultes.
Depois, fugiu com a filha para o seu quarto, e
fechou-se para que o marido a não ouvisse desabafar
em altos soluços.
Á meia noite d'este dia, 15 d'Agosto de 1737,
Antonio José da Silva sahiu com Duarte Cottinel da
casa do almoxarifado, por uma porta de armazem
que abria para a quinta. Chegados á cancella d'um
pomar, disse Duarte com mui recatado som de voz:
— Agora dirás para onde vamos. Dá-me alguma
indicação.
— Leva-me a um tanque onde está uma estatua
de Neptuno.
— É lá em baixo, no interior do bosque. O si
tio é bom, que ninguem nos ouvirá cavar; mas sa
bes tu se já fariam obras no local?
— Creio. . . quasi tenho a certeza que o local do
cofre está intacto.
Caminharam de manso desviando-se das áleas
onde o tapete da folhagem accusava os passos.
— É aqui — disse Duarte — alli tens o tanque
e o Neptuno.
— Está secco? — perguntou Antonio José.
— Está, ha muitissimos annos. Ouvi dizer que a
ROMANCE HISTORICO 163

rainha de Inglaterra, quando fez estas obras, mandou


levar d'aqui a agua para fontes publicas.
— Bem. Entremos ao tanque.
— Espera. . . vou accender a lanterna de furta-
fogo, que as copas das arvores não deixam entrar
raio de lua.
— Não accendas.
— Temos que levantar alguma pedra? Então
vou ao jardim buscar um ferro de monte que lá puz
ao anoitecer.
— Não é necessario — disse Antonio José — aju-
da-me a descer o Neptuno do pedestal.
— Pois é aqui?!
-É.
— Então foi milagre o conservar-se ! Quantas
vezes os senhores infantes me tem dito que é me
lhor tirar esta cousa inutil d'aqui para fora ! . . . Ain
da no anno passado!. . .
Duarte dizia isto com profunda magoa. O the-
souro podia tel-o encontrado elle, e possuil-o, sem
inquietação de consciencia.
Deram um sacão á estatua, que estremeceu; de-
ram-lhe outro, e deslocaram-n'a. Desceram-n'a vaga
rosamente, e pousaram-n'a sobre o rebordo do tan
que.
Ambos a um tempo introduziram as mãos no
recipiente da agua, e tactearam um corpo liso cingi
do de braçadeiras de metal.
164 o judeu
Ambos unisonamente exclamaram:
— Está!
Da vehemencia da exclamação dos dous, não po
deria inferir-se qual fosse o dono do thesouro.
Havia espaço entre as paredes da caixa de pedra
e as argolas do cofre. Introduziram as mãos, e tira
ram fora o pesado caixote.
Antonio José sentou-se. Carecia de ar. Duarte
Cottinel não estava menos abafado e arquejante. Não
era o cançaço; era n'um alegria legitima, n'outro
uma infernal exullação.
— Vamos, Duarte? — disse Antonio e ajuntou:
— estou a tremer, como se fizesse um roubo.
— Tambem eu ; mas é de contentamento de te
vêr rico. Vamos. Podes com o cofre?
— Posso.
— Então carrega com elle, que é obrigação tua
— disse o almoxarife gracejando.
Sahiram do bosque; esperaram que se fechassem
as janellas da recamara de um dos infantes, e aco-
lheram-se a casa estugando o passo.
Era uma hora.
— Vou acompanhar-te a casa — disse Duarte.
— Estava para te pedir esse favor.
— Não era preciso. Deixa-me ir armar, que ha
ladrões nas ruas de Lisboa como no pinhal da Azam
buja.
ROMANCE HISTORICO f 63
Duarte voltou logo, entregou a Antonio José uma
pistola de dous canos, e disse-lhe:
— Leva isto.
— Não preciso — disse o hebreu — vira armado.
Foram da Bemposta, sem encontro suspeito, até
ao largo do Soccorro.
O almoxarife, á porta de Antonio José, quiz des-
pedir-se.
— Não: hasde entrar: quero que assistas á aber
tura do cofre; quero que vejas se me enganei.
— Amanhã m'o dirás, adeuí.
— Não consinto: hasde sabel-o agora.
Lourença Coutinho e Leonor estavam ainda a pé.
Lourença orava ao Deus de Jacob; Leonor orava ao
Deus dos afflictos. Oravam ao mesmo Deus, segun
do minha fé em divindades.
Quando ouviram bater, desceram ambas ao pa-
teo. Viram Antonio com o caixão sobraçado. Lou
rença exclamou:
— São e salvo o meu filho !
— E porque não? — disse Duarte, que ella não
tinha visto.
Antonio José corou até ás orelhas, e quasi odiou
soa mãe.
Voltou-se a Duarte, e disse:
— Minha mãe receava que os ladrões me sahis-
sem n*alguma esquina, por isso fui armado.
Leonor aproximou-se do caixão, que o marido
166 O JUDEU

pousara sobre um escabello do pateo, para limpar o


suor. Dobrou-se ella sobre o cofre, beijou-o, e disse:
— N'este caixão poz as mãos o meu virtuoso
bisavo!. . .
— Vamos — disse Antonio, retomando o cofre.
E subiram á primeira sala.
Duarte quiz ainda despedir-se, allegando quen'a-
quelles prazeres de familia um estranho era cousa
impertinente.
— Não consinto ! — repetiu Antonio com dissabor.
— Porque não hade tomar um quinhão do nos
so contentamento, snr. Duarte? — perguntou Leo
nor, impedindo a sahida — Os amigos são sempre
familia. . .
Pousaram o cofre sobre um bofete. Eram duas
as fechaduras de espelhos dourados.
— É preciso arrombar — disse Antonio José
— Dá-me um ferro qualquer, minha mãe?
Lourença Coutinho trouxe o ferro de frisar com
que seu marido costumava encalamistrar a cabellei-
ra nos dias de anniversario natalicio das pessoas reaes.
Quebraram a presilha das fechaduras que prendiam
na lingueta, e. . . levantaram a tampa !
Havia alli coração que se regorgitava como em
caso de mortal congestão. A circulação parara no
peito de Duarte, ao rangerem as perras e oxydadas
dobradiças da tampa.
O primeiro objecto era uma caixa de prata de
ROMANCE HISTORICO 167

lavores primorosos, baixa d'altura d'uma pollegada,


e larga á medida do ambito do cofre. Abriram a cai
xa : eram os pentes douro, cravejados de brilhantes,
e quinze anneis, enfiados n'um agulheiro de ouro.
D'estas joias dizia o apontamento de Luiz Pereira de
Barros : que foram de minha avó D. Leonor de Bar
reiros.
— Que admiravel peça ! — exclamou Duarte —
e que digna possuidora aqui está ! — continuou olhan
do delicadamente em D. Leonor.
— Agradecida, snr. Duarte. Os meus adornos
mais queridos da cabeça são flores.
A um canto d'aquella caixa estava inclusa outra
de velludo carmezim, oblonga e convexa. Abriram-n'a :
continha os vinte e quatro brilhantes dos quaes dizia
a nota : que foram de meu avô Pedro de Barros e
Almeida.
Levantaram a caixa, e descobriram a segunda
camada. D'uma sacca de pellica tirou Antonio José os
copos d'uma espada, recamados de pedras de diver
sas cores. D'esta riquissima preciosidade dizia o con-
tador-mór: copos da espada que meu avô materno
D. Jorge de Barreiros trouxe do governo da Bahia.
N'outra caixa de ouro encontraram uma minia
tura, retrato formosissimo em marfim, com cerca
dura de diamantes. Era o retrato de D. Ignacia Tel
les de Menezes, mãe de Luiz Pereira de Barros.
4 68 o judeu
Leonor lançou mão d'elle, e não se cançava de o
contemplar.
A outra camada e ultima era dinheiro em rolos:
vinte e quatro contos de reis em variadas moedas de
ouro, conforme o dizer do apontamento.
— Que te parece Duarte? — perguntou Antonio
José — erraria eu muito o calculo ? Isto valerá os
cento e cincoenta mil cruzados ?
— Vejamos — disse o almoxarife — vinte e qua
tro contos, sessenta mil cruzados, ou mais, porque
as moedas antigas são pagas como de mais valor. Os
brilhantes, se não valem mais, valerão outro tanto,
porque estão ahi duas duzias d'elles, como eu ainda
não vi muitos; e, se quizeres vendel-os, acharás em
Londres ou Amsterdam quem te dê vinte e quatro
mil cruzados. Os pentes podem valer. . . que sei
eu! ... e os copos da espada ! . . . e a cercadura do
retrato!. . . Finalmente, não te enganarias muito no
calculo ! O que se segue é que estás riquissimo, e
eu tambem participo da tua riqueza por poder dar
a estas duas damas os mais cordiaes e jubilosos em
boras, que podem alegrar o coração d'um amigo.
Agora, deixo-os que está a romper o dia, e já hoje
não me deito, porque amanhã tenho jornada ao Ri-
ba-Tejo por causa de aforamentos. Minhas senhoras,
adeus.
— Espera ! — disse Antonio José, tomando seis
ROMANCE HISTORICO 169

dos brilhantes de maior quilate e lume — Aceita esta


memoria da noite de 15 d'Agosto de 1737.
— Memoria ! . . . — disse Duarte Cotlinel rejei
tando delicadamente — a melhor memoria é a lem
brança de que contribui um pouquinho para a felici
dade d'uma familia. Não instes commigo, que perdes
o tempo, e me desgostas.
Sahiu.
— E então? — perguntou Antonio José á mãe
com gesto de censura — que lhe parece o homem?
Arrepende-se dos seus preconceitos, minha mãe?
— Arrependo, filho: Duarte parece-me homem
de bem.
— E os teus agouros, Leonor? — tornou Anto
nio.
— Ainda nSo se calaram. . . — respondeu ella.
CAPITULO IV

Antonio e sua mãe passaram o dia em analyse


contemplativa das pedras e das moedas antigas; Leo
nor, no entanto, como estranha ao contentamento
dos seus, não se despegava d'uma joia formosissima,
santa, e de divinos quilates, que era a filhinha, aquel-
les vinte e dous mezes lindos de celestial meiguice.
Chamada a dar seu parecer sobre o destino que
deviam tomar, respondia que estava por tudo que
seu marido e sogra quizessem. O hebreu, a fallar
verdade, já mal acertava com os seus projectos da
vespera: aquelle resplandecer das pedras offuscava-
lhe a memoria dos planos : era um embebecimento
de creança, para não dizer a absorpção voracissima
d'olhos de avarento cravejados no iman do ouro.
Ao outro dia, I)uarte Cottinel, de volta da sua
472 O JDDEU

jornada, procurou o hebreu, para lhe dizer que não


havia nada no santo officio, para que elle devesse te
mer e apressar a sahida. Lamentou que o seu An
tonio não podesse gozar em Portugal as riquezas, e
viver perto do seu mais dedicado amigo, que vinha
a ser elle. Aconselhou-o a que não vendesse pedra al
guma em Portugal, nem revelasse os seus haveres,
porque a inquisição não perdoava aos judeus opu
lentos ; e, se alguma vez tinha sido piedosa, era com
os indigentes, cuja alimentação corria por conta da
santa casa.
Voltou no dia seguinte, muito rogado por Antó
nio José, e chegou em occasião de estar o judeu cas
tigando uma escrava de sua mãe, por que fora sur-
prehendida a roubar das gavetas d'um contador al
gum dinheiro. O castigo era com disciplinas, segundo
o direito dos senhores sobre os escravos, que so
mente vinte annos depois foram libertos por lei do
marquez de Pombal.
Duarte pediu o perdão da negra, e conseguiu-o ;
a escrava, porém, assim que uma entre-aberta se lhe
ageitou, fugiu, receosa de que uma busca á sua arca
lhe redobrasse o castigo.
Lourença Coutinho teve pena da preta, que com
prara creança no Brazil, e trouxera comsigo, quan
do veio presa. Diligenciou encontral-a; mas não hou
ve novas d'ella.
Duarte Cottinel sahiu a averiguar, e descobriu
ROMANCE HISTORICO 173
que a preta passara o Tejo, e se assoldadara em Al
mada. Galou-se com o descobrimento, dando a sup-
por que a negra se lançaria ao Tejo, desesperada
como outras muitas, que preferiam a morte á servi
dão '.
— Mas a minha escrava não eratractada com ri
gor, para se matar ! — dizia Lourença — Tenho im-
mensa pena d'ella ! . . . Alli está ainda a arca fechada
como ella a deixou.
— Era bom vêr-se ! . . . — disse o almoxarife
com ares familiares de muito amigo.
— Dizes bem 1 — approvou Antonio José da Sil
va — Vejamos o que ella tem na caixa.
— Farrapos... que nade ella ter? — observou
Leonor.
— Sempre é bom vêr, snr.aD. Leonor — insis
tiu Duarte.
— Pois vejam.. . — condescendeu a contrariada
senhora.

1 N'aquelle tempo, o viver dos escravos em Lisboa era alflictivo, e


os castigos crueis. A limpeza diaria das sentinas domesticas era feita por
escravas, que levavam os grandes vasos ao Tejo, desembocando de cada
rua em longas caravanas. Que deliciosa e perfumada Lisboa era aquella,
á qual Jacome Ratton, com desenfeitado estylo, denomina por excellen-
cia a fedorenta cidade de Lisboa! Como D. José declarou livres todos
os escravos que entrassem no reino, as pretas eximiram-se do seu es
cravo saister de escoadouros. Depois é que Lisboa se tornou limpa. . .
«Então, diz o citado coevo d'aquelles olorosos dias, então os moradores de
Lisloa se viram obrigados a fazer os despejos das imraundices nas ruas.»
Recordações, pag. 29T, , ',,
174 O JUDEU

Arrombada a caixa da escrava, encontraram-se


algumas miudezas, por cuja falta as senhoras não ti
nham dado, cousas de insignificante valor. Concluiu o
hebreu que a negra furtava para as vender cousas
de que ella não podia usar.
— Tal escrava não lhe convinha, snr.a D. Louren-
ça — disse Duarte — Deixe-a ir, que não se foi boa
peça. O valor que ella tinha perdeu-se, é isso verda
de ; mas esta casa não fica hoje prejudicada com a
fuga de uma preta. Antonio José da Silva pode com
prar hoje toda a Africa e os sertões do Brazil.
Festejaram o dito, e divertiram a conversação
para outro assumpto. Leonor lembrou que a sua
Lourencinha fazia annos em 5 de Outubro.
— Faltam cincoenta dias — ajuntou ella — onde
estaremos nós então ?
— Talvez em Paris — disse Antonio.
— Se não poderem estar socegados em Lisboa
— observou Duarte.
— Pois de certo. Se eu podesse aqui viver soce-
gado, não trocava paiz nenhum por este, onde tu vi
ves, meu bom Duarte.
— Eu, não sei porque, — tornou Leonor — de
sejava festejar o segundo anniversario da minha filha
fora de Portugal.
— Ó Duarte — exclamou de golpe o hebreu —
queres tu vir passar comnosco um anno a Paris?
És homem para nos dar esse grande prazer?
ROMANCE HISTORICO 175

— Era homem para o senlir com mil vontades,


se fosse livre. Sabes que nâo posso renunciar á po
sição que occupo, nem incumbir ninguem do traba
lhoso encargo que promette a minha futura e des-
cançada estabilidade. Depois, meu pae está velho,
está rico, segundo penso, e tem mais filhos. Se eu
arredar um passo contra vontade d'elle, vinga-se ex-
cluindo-me da herança. Que mais razões queres ?
— Mas — tornou o generoso coração do hebreu
— faz de conta que és meu irmão ; gastas irmã
mente commigo, e nunca sentirás precisão da heran
ça de teu pae.
— És ainda muito creança, homem ! — redar
guiu o almoxarife — Estes poetas, minhas senhoras,
tem absurdos que seriam lamentaveis, se não fossem
engraçados ! Como este louco imagina que um ho
mem, applicado a ganhar a sua independencia com
a fadiga e sacrificio dos melhores annos da mocida
de, possa aceitar uma offerta que o inutilisaria aos
seus proprios olhos ! . . . Antoninho, não sejas sem
pre rapaz ; não vás tu lá por fora arranjar alguns ir
mãos que fraternalmente te devorem as peças, os
brilhantes, e os copos da espada do tresavo de tua
senhora e minha ama. Cuidado com os parasitas,
ouviste ? Olha que os portuguezes, lá por essas na
ções, gozam fama de valentes ; mas tambem a go
zam de estupidos que se deixam gosar. Sê caritativo ;
mas não sejas prodigo. . .

r
176 O JUDEU

— Pareces um velho a aconselhar ! — inter


rompeu Antonio — Nem que tu não tivesses trinta e
dous annos como eu !
— E' verdade; mas, ha muito, que vivo cá em
baixo terra a terra ; e tu, desde que te conheço, en-
contro-te sempre nas regiões mythologicas com os
Amphitriões e Alcmenas, e Proteus, e Apollos. As
tuas comedias fazem crêr que tu tens muita imagina
ção ; mas jaizo não no inculcam ; aliás, em vez de
comedias, escreverias versos laudatorios aos reis, aos
bispos, aos frades, a quantos magnatas por ahi ha
incapazes de t'os perceberem. Já fizeste versos a al
gum d'estes estafermos?
— Não. Versos a reis, ou a filhos de reis, ape
nas tenho aquelle epicedio que flz o anno passado á
infanta D. Francisca.
— Depois de morta. Isso de que presta?...
Bem me recordo : glosavas os versos do soneto de
Camões :

Alma minha gentil que te partiste


Tão cedo d'esta vida. . . 1

— E' verdade, — acudiu Antonio José com des-

< E' a mais regular e maviosa composição metrica de Antonio José


da Silva. Merece o conceito em que a tem o author do Ensaio Biographi-
co: «E' uma das melhores composições n'este genero.» Por extensa a
não traslado. Está no 10.'» vol. do citado Ensaio.
ROMANCE HISTORICO 177
vanecimento — Glorio-me de ter levado a primazia
entre todos os poemas que sahiram a chorar a prin-
ceza.
— A chorar! chorava lá ninguem, homem.
Quem é que chora pela snr.a D. Francisca, que Deus
haja muitos annos lá sem mim ? Os meus patrões,
e muito sentimentaes infantes, ao outro dia da mor
te d'ella, andaram na tapada da Bemposta a matar
melros. Choraste-a apenas tu! Elle chorou, snr.a D.
Leonor ?
— Não me recordo bem.. . mas parece-me que
sim, quando m'a recitou.
— Poetas ! . . . Ficaram no lugar das carpideiras
que meu avo ainda na morte de meu bisavo mandou
alugar para chorarem vinte e quatro horas. . .
— Olha que a mim não me deram nada ! — in
terrompeu Antonio.
— Por isso estou eu. São capazes de te dar tan
to, como áquelle Manoel Fernandes Villa Real 1 que
defendeu com a penna e com a espada, estando em
Paris, os direitos de D. João iv á coroa contra Fi-
lippe e contra os portuguezes acastelhanados ; e, de
pois, como viesse a Portugal, os frades agarraram-
no, deram-lhe garrote, e D. João iv não lhe acu-

< Manoel Fernandes Villa Real escreveu um importante livro dos


direitos da casa de Bragança, chamado Anti-Caramuel, respondendo a
Caramuel, que escrevia em pró de Castella. Foi enforcado e queimado co
mo judaisante no auto da fé de 10 de Outubro de 1652.
VOL. II 12

r
178 O JUDEU

diu. O Antonio Henriques Gomes 1 e o Manoel do


Leão 2 que tambem escreveram mirificas cousas em
favor de D. João iv e de D. Pedro 11, se cahissem
nas aboises que a inquisição Ibes tinha cá armado,
eram irremediavelmente assados. Não faças versos
a principes mortos nem vivos, Antonio. Gasta o teu
dinheiro como quem não tem espirito de que dispor
em divertimento dos outros. Queima os livros. Auto
da fé aos livros, e eu faço de barbeiro do novo D.
Quichote de tramoias. Esquece-te de que tens lá nos
escaninhos da cabeça um formigueiro de versos. Dei
xa ser o mundo bestial á sua vontade, e adeus até
depois d'amanhã.

1 Antonio Henriques Gomes escreveu sobre a felh aeclamação de


D. João tv. Foi particular amigo do desgraçado Villa Real, e conselhei
ro e mordomo ordinario de Lui? xra.
2 De Manoel do Leão já se disse n'outra parte d'este livro.
CAPITULO V

Ao outro dia, Duarte Cottinel passou a Almada,


e procurou em casa d'um fazendeiro a negra fugitiva.
Foi-lhe apresentada a escrava, que tremia em quanto
não reconheceu o homem caridoso a quem devia o
escapar-se ás mãos de Antonio José.
Chamou-a Duarte a um lado, onde os não ou
vissem, e deteve-se largo tempo. Começou por lhe
incutir medo á perseguição que seus senhores iam
fazer-lhe, persuadidos de que ella os tinha roubado,
e vendido os furtos. Fez-lhe sentir que a compaixão
o movera a vir alli avisal-a para que mudasse de
terra e nome. E, quando a negra, tremente de sus
to, se debulhava em lagrimas, por não saber para
onde fugisse, Duarte, resalvando habilmente qualquer
intenção dupla, disse-lhe em tom de piedade quepas
4 80 0 JUDEU

sasse a Lisboa ao fim da tarde, e fosse ter a casa


d'elle á Bemposta, onde ficaria até se lhe arranjar
amos e segurança longe de Lisboa.
Assim o fez alegremente a escrava. O almoxari
fe recebeu-a com boa sombra, mandou-lhe dar opti
ma cêa e excellente cama. Ao outro dia, como a ne
gra carecesse de mudar a roupa com que fugira,
Duarte proveu-a do necessario, comprando-lhe umas
roupinhas e mantéo escarlates, encantadores objectos
que tinham sido o sonho d'ella, nunca realisado. Fe-
liciana, com quanto orçasse por quarenta annos, co
meçava a imaginar, á vista de tantas venturas, que o
almoxarife não desgostava d'ella, e nutria intentos a
seu respeito. Admirava-se, porém, a preta, ao fim
de tres dias, das delongas não usadas, entre o desejo
e a execução, com pessoas da sua laia.
Ao quinto dia de hospedagem, a escrava parecia
a filha primogenita d'um sova ! A carapinha brunida
e oleosa encaracolava-se-lhe phantasticamente. O rubi
dos beiços incendidos parecia a porta do amoroso in
ferno que lhe ia nas entranhas do peito. As formas,
aliás redondas e anchas, como que, debaixo dos tra
jos escarlates, entremostravam graças que a nature
za, desacompanhada da cor e feitio do jaqué, nunca
tivera n'ella.
Quando Duarte a chamou, em occasião de estar
sosinho, Feliciana entendeu que era chegada a hora
de ouvir uma revelação d'amor, feita com a delica
ROMANCE HISTORICO 181

deza de que o seu novo amo e senhor a considerava


dignissima.
Principiou o almoxarife perguntando-lhe se esta
va contente, se era bem tractada, se queria viver
em companhia d'elle, ou sahir de Lisboa. A preta
não tinha expressões com que bosquejar uns longes
da sua felicidade, e confessava, no auge da sua mo
destia, que não merecia o bem que estava gozando.
— Visto que estás satisfeita, disse Duarte, fica
rás commigo mais algum tempo ; e depois, se eu
desconfiar que te perseguem, passarás para uma
quinta de meu pae em Torres-Novas ; mas é neces
sario que te escondas, se alguma vez aqui vier o snr.
Silva, ou criado de casa d'elle, porque eu não quero
indispor-me com esta familia. Ora — continuou elle
— diz-mecá, Feliciana.. . Promettes debaixo de ju
ramento responder ás perguntas que eu te fizer?
— Prometto, senhor, assim Deus me salve.
— Teus amos Silvas fazem lá algumas rezas que
não sejam á moda e costume dos christãos?
— Algumas rezas ? ! . . .
— Sim: eu vou perguntar-te de modo que tu
possas responder a verdade a uma pessoa que te es
tima e promette fazer-te mais feliz ainda do que
és. Ora diz-me : lá em casa era costume accender*se
oa sexta feira á tarde, uma hora antes de por do
sol, uma lampada com quatro torcidas?
— A snr.* Lourença fazia isso todas as sextas feiras.
182 O JUDEU
— E a lampada ficava accesa todo o sabbado,
nao é verdade?
— E' sim, meu senhor.
— E que fazia a snr." Lourença no sabbado ?
— Estava lá dentro do seu quarto a lêr, nem se
penteava nem lavava, nem pegava em agulha, nem
cortava ou raspava as unhas, nem bebia vinho, nem
comia cousa gordurenta, nem escrevia *.
— E sabes se a snr." Lourença rezava de manhã
assim que se levantava ?
— Não, meu senhor; sem se lavar muito lavada,
e mais cousas, não pegava no livro 2.
— Lembras-te d'algumas palavras que ella dis
sesse ?
— Uma cousa que ella dizia todos os dias era
isto : Bemdito sejas tu que dêste ao gallo instincto
para distinguir entre o dia e noite 3.

1 Estas, e outras condições religiosas da observancia do sabbado


judaico, vem referidas no 5.» vol. da Histoire des juífs, depuis J. Christ
jusqu'à present — paginas 270 e seguintes.
2 Explicam-se assim as mais cousas de que a escrava urbanamen
te não dava um preciso entendimento : « Un des premiers soins est de
satisfaire aux besoins de la nature, parce que David a dit : Tout et
qui est au dedans de moi, loue% le seigneur. (Ps. 103). Ce serait un
crime que de prier Dieu, ou de parler de lui avant que l'intérieur
eút été nettoié. . .» Hisf. des juifs. Tom. v pag. 306.
3 Orden de las ovaciones. Orden de Cotidiano para uso dos
judeus da synagoga de Amsterdam, pag. 11. Os hebreus portuguezes se
guiam principalmente o ritual de Amsterdam d'onde lhes eram fornecidos
os devocionarios para em suas casas poderem exercitar-se espiritual
mente, pois que não tinham synagogas.
ROMANCE HISTORICO 183
— Havia algum mez no anno em que tua ama
Dão jejuava ?
— Era no mez de Março i.
— Mudava de cama ou de roupa na vespera dos
dias em que jejuava ?
— Sim, meu senhor; deita va-se n'um colchão
duro com lençoes de estopa, e só comia ao outro dia
á noite ; e desde dezesete de Junho até dez de Ju
lho não comia senão hortaliças, e punha cinza na
cabeça 2.
— Outra cousa: teu amo doutor tambem fazia
essas cousas?
— O snr. Antoninho?
— Sim.
— Nada; esse não rezava cousa nenhuma, nem
jejuava.
—E a snr.' D. Leonor ?
— Tambem não.
— Então ella e o marido não praticavam acto
nenhum de christãos?
— Que eu visse, não, meu senhor.
Depois de mais algumas perguntas, Duarte Cot-
tinel tirou d'uma gaveta um fio de contas de vidro
amarellas, e deu-o a Feliciana, dizendo :

* Decidiram os rabbinos que se não jejuasse no mez de Março, por


que este tempo, como anniversario da sabida do povo hebreu do Egypto,
deve ser consagrado ao reconhecimento e ao Jubilo.
2 Buxtorf. Synagoga judaica.

-
.

184 O JUDEU

— Ahi tens para enfeitares o pescoço. Gosto de


ti, e quero que estejas contente.
— Ora, se estou, snr. Duarte!. . . — balbuciou
ella sinceramente commovida — Muito feliz sou na
sua casa !
— E serás uma ingrata, se me deixares I . . .
— Isso só por morte ! — clamou ella com enthu-
siasmo.
E, como visse que o senhor não tinha mais que
lhe dizer, retirou-se.
CAPITULO VI

Volvidos poucos dias, Duarte, apenas entrado em


sua casa, vestiu de colera o semblante, e disse á ne
gra:
— Teu amo doutor lá te mandou procurar a Al
mada por dous esbirros. Se lá estivesses, a esta hora
estavas em lençoes de vinagre ! São crueis os taes
judeus ! Venho agora de lá, disse-lhes que eram du
ros comtigo, que te deixassem, porque sahiras quasi
nua e sem real de casa d'elles. Provavelmente não
torno lá. Gente com tão ruins entranhas não a quero
para amiga. Ora vê tu, pobre mulher, que vontade
elles tem de te esfolar ! . . . Queira Deus que elles
se não lembrem de suspeitar que estás aqui ! . . .
— O meu senhor não me deixa prender. . . —
exclamou ella, pondo as mãos.
186 O JUDEU

— Não deixo, ainda que tenha de defender a


casa com todos os criados dos senhores infantes. 0
judeu não se atreve a cá vir; podes estar socegada,
Feliciana. Tens em mim um verdadeiro amigo e de
fensor.
— Nossa Senhora lh'o pague ! Muito meu amigo
é, snr. Duarte ! Eu não sei porque é tão meu ami
go !.. .
— E' porque tive muita pena de ti, e estou con
vencido de que tu eras incapaz de ser a ladra que
elles dizem. Olha ; eu confio tanto da tua limpeza de
mãos, que te deixo abertas as gavetas, como se te
conhecesse ha muitos annos. Quando quizeres com
prar alguma cousa, compra, que eu gosto muito de
te vôr asseada e satisfeita. Aquelles malvados ! . . .
E' assim que te pagam trinta annos de serviços ; e
não se lembram que tu, se fosses vingativa, os po
dias perder e desgraçar. Pois não podias, Feliciana?
— Como era ? ! — perguntou a escrava, como
admirada da sua desconhecida generosidade.
— Pois se tu fosses denunciar ao santo officio
que teus amos judaisavam, cuidas que elles não eram
logo sepultados nas masmorras do Rocio ?
— Ah! sim?. . . Pois então que me deixem.. -
senão. . .
— Quem sabe ? tornou Duarte — pode ser que
a final, se te quizeres vêr livre da perseguição, não
tenhas remedio senão. . . Nada. . . denuncial-os, não.
ROMANCE HISTORICO 487

Hade naver muito quem os accuse. Veremos como


elles se portam d'aqui em diante. . . Eu queria que
tu sahisses, Feliciana. Custa-me vêr-te aqui fechada ;
mas tenho medo que te prendam lá por fóra, e que
te castiguem ou entreguem á tua senhora, antes de
eu poder valer-te ! Já me lembrou de te resgatar,
comprando-te ; porém, o odio que elles mostram ter-
te é tamanho, que, a meu vêr, antes querem matar-
te que vender-te. Esperemos alguns dias mais; e, se
elles não estiverem quietos, pensaremos no que se
hade fazer. Estas barbaridades irritam-me. Os es
cravos são nossos irmãos e filhos do mesmo Deus.
Tomei á minha conta defender-te, e heide salvar-te
das furias d'aquella maldita casta de gente, que está
sempre a vêr como hade abrir as veias do proxi
mo ! Que admira se elles mataram Nosso Senhor Je
sus Christo !
— E' verdade ! — murmurou compungidamente
a negra — Eu já tenho ouvido dizer isso; e, lá no
Brazil, quando prenderam a minha senhora, uns ho
mens que a viram passar, ficaram dizendo : « esta é
das que mataram Nosso Senhor ! » Eu, depois, con
tei isto á snr.a Lourença, e ella. . .
— Que respondeu ella ? — acudiu pressurosa
mente Duarte.
— Disse que os taes homens eram umas bestas.
— E mais nada ?
— Mais nada que me lembre.
188 O JUDEU

— Pois olha : vai recordando todas essas cousas


que viste e ouviste, porque pode ser que ainda pre
cises de as dizer, para te livrares de cahir nas unhas
dos taes matadores de Jesus Christo.
A sessão terminou, para se continuar no dia se
guinte, e nos outros. O almoxarife trazia sempre de
fora alguma historia urdida para aterrar e enfurecer
a negra. A tanto lhe apurou a raiva que já a final era
ella quem pedia licença para ir denunciar os amos
ao santo officio.
N'um d'aquelles dias, Antonio José da Silva ba
teu ao portão da casa de Duarte Cottinel. A negra
precavida, assim que o viu por uma gelosia, correu
alvoroçada a prevenir o novo amo. Duarte foi escon-
dêl-a muito longe da sala em que devia receber a
visita do amigo.
Antonio José vinha triste, a dar-lhe parte da sua
definitiva resolução de retirar-se, porque o conde da
Ericeira muito á puridade o avisara da necessidade
de sahir de Portugal, porque no santo officio se lhe
estavam forjando desgraças.
— O conde da Ericeira — atalhou Duarte — não
pode saber mais do que meu pae. Os rumores, que
lá se passam, muito ha te disse eu que se passavam ;
todavia, por em quanto, não tem symptomas assus
tadores. Não obstante, se queres ir, vai ; se tens lá
fora mais tranquillidade, não te demores, que o meu
ROMANCE HISTORICO • 189

maior prazer é vêr-te em segurança. Quando tencio


nas ir?
— Não é já, porque o conde tambem me disse
que eu poderia sem receio estar uns dias em Lisboa.
No dia cinco de Outubro, faz minha filha dous an-
nos, e eu tinha muita vontade de os festejar em com
panhia de ti e dos Barros.
— Estamos hoje a vinte e quatro de Setembro...
Faltam onze dias.. . Posso asseverar-te que não cor
re o minimo sobresalto a tua liberdade n'estes onze
dias. E a mobilia da tua casa que lhe fazes ?
— Vinha offerecer-t'a.
— Não aceito, Antonio, porque não sei que lhe
faça. Como vês, esta casa está decentemente mobila
da por conta dos infantes, e eu não tenho outra resi
dencia. Vende a mobilia a quem ella seja necessaria;
e, se não queres figurar n'isso, eu me encarrego.
— Não posso dar trabalho a quem me não rece
be o mais leve favor — disse Antonio José — Encar
regarei a venda a algum parente de minha mulher.
Diz-me cá : nunca podeste descobrir que fim levou a
desgraçada escrava?
—Não.
— Tenho feito diligencias incançaveis ! Ninguem
me dá noticia alguma. Minha pobre mãe chora por
ella, e queixa-se de mim, como causa da sua Feli-
ciana fugir. Se se matou, fica-me este remorso a
trespassar-me o coração !

r
190 0 JUDEU

— Ora adeus f . . . remorsos de castigar escra


vos!... Fizeste menos do que fazem os outros senho
res d'elles que lhes despem o couro. Deixa lá a negra,
que está por ahi a servir, e não pensa em se matar»
Assim que sahires de Lisboa, apparece ella.
— Oxalá que assim seja. Heide deixar-te uma
boa esmola para lhe entregares, se a vires.
Sahiu Antonio José da Silva.
Duarte foi buscar a negra ao escondrijo, e dis-
se-lhe :
— Teu amo asseverou-me que tinha a certeza
de te haver ás mãos antes de oito dias.
— Então fujo de Lisboa? — perguntou ella an
dada.
— Não. Socega. Eu vou sahir, e volto d'aqui a
duas horas.
— Não me deixe prender, snr. Duarte! — ex
clamou a escrava de mãos postas.
— Estás prompta a fazer tudo que seja necessa
rio para te salvar?
— Estou, meu senhor!
— Bem. Logo fallaremos.
Duarte Cottinel sahiu ; entrou em casa do pro
motor da inquisição, e deteve-se meia hora. D'alli
foi em direitura ao convento de S. Domingos, e de-
morou-se com dous conselheiros do santo officio. Era
de prompto recebido como familiar. A' sahida do
convento, viu Antonio José da Silva que desembo
HOMANCE HISTORICO 191

cava das portas de Santo Antão. Escondeu-se. Não


lhe sobejou infamia para se defrontar com o homem
que elle andava apunhalando. Era um remorso inutil,
um remorso dos scelerados aquelle. Lampejava-lhe
uma luz nas trevas d'alma ; porém, luz do inferno,
chamma da consciencia infernada.
Antonio José da Silva não o vira. Ia abstrahido,
pensando no modo de brindar o amigo Duarte com
um gracioso e ao mesmo tempo rico presente no dia
d'annos de Lourencinha.
Chegou o almoxarife a casa, esteve-se momentos
em recolhimento acerbo, e chegou a pedir sacrilega-
mente ao diabo que lhe afastasse o calix da tentação.
O diabo conduziu-lhe a negra, que lhe vinha pergun
tar o que ella devia fazer. ,
— Eu te chamarei... — disse elle mal encarado.
Feliciana fez pé atraz, espanlada da mudança. E
o diabo, assim que a preta voltou costas, foi buscar
o cofre de Antonio José, e mostrou-lhe peça por peça
a caixa dos pentes de ouro cravejados de brilhantes,
eo retrato cercado de diamantes, e as vinte e quatro
pedras de extraordinario lume e quilate, e os copos
da espada recamados de joias, e os vinte e quatro
contos em moedas de ouro. Repoz tudo no cofre o
expositor infernal, e disse, batendo-lhe com a mão
de ferro calcinado no coração :
— Cento e cincoenta mil cruzados !
Levantou-se de salto Duarte, e foi dentro cha-
192 O JUDEU
mar a negra. Compoz o gesto, abemolou o tom da
voz afogada da rapida respiração, e disse :
— E' necessario, se te queres salvar, que vás á
inquisição denunciar teus amos; se não, estás perdi
da, que eu não posso combater a perseguição que te
fazem.
— Pois eu vou. . . e que heide dizer ? . . . —
perguntou ella, tremendo.
— Tudo que sabes, tudo que viste. Não queres?
— Vou onde vossa mercê me mandar. Pois não
heide ir?
— Porque se não vaesés presa, e além d'isso es
tás excommungada.
— Excommungada !
— Sim. És obrigada a denunciar dentro de trin
ta dias teus amos, sob pena de excommunhão *. Ama
nhã, ás dez horas, irás á mesa do santo officio á
casa santa. Diz ao alcaide 2 que queres fallar ao
snr. inquisidor; lá te farão as perguntas, e tu res
ponderás; mas olha, Feliciana, se te perguntarem o

1 Era doutrina escripta nos cathecismos christãos, e corrente nas


christandades portuguezas d'aquem e d'além mar. Veja Inquisição de
Goa.
2 O snr. A. Herculano, traduzindo do latim da Memoria dos chris-
tãps-novos as palavras indicativas d'um official de inquisição profectum
cattyris, diz alcaide, e observa: traduzimos por conjectura. De feito,
o director dos carcereiros, segundo inferimos da relação de um preso, no
citado livro A inquisição de Goa, frequentemente é empregado o termo
alcaide, no sentido que o eminente historiador do estabelecimento da in
quisição lhe deu a pag. 132 do 3.» vol.
ROMANCE HISTORICO 193
que fazia teu amo doutor, responde que fazia o mes
mo que sua mãe ; senão, fazes prender a mãe, e el-
le fica livre para te acabar a vida nos ferros do li
moeiro ou nas galés.
A negra foi fazer exame de consciencia como
quem se prepara para salvar-se das galés.
A furto, lhe cahia ás vezes n'alma uma gota do
lorosa como de chumbo candente. A negra dava upas
no catre, onde não provou cinco minutos de repou
so. Um raio de penetrantissima angustia lhe atra
vessava, a espaços, a cabeça, e ao fogo, que lhe
accendia, mostrava-lhe os benefícios, afagos e cuida
dos com que Lourença Coutinho a tractava nas suas
molestias. Quando as lagrimas, ferventes d'aquelle
queimar, lhe ressumavam aos olhos cravados nas tre
vas, chamava ella em seu auxilio a lembrança das
vergastadas que soffrêra, d'outras que a esperavam,
e, depois, as grama lheiras da galé.
Luctou assim até ao dia.
E, ao mesmo tempo, a noite de Duarte não foi
mais repousada. Calculava elle as consequencias
d'aquelle acto, que elle já, ainda que quizesse, não po
dia aniquilar. Se a negra, golpeada de remorsos, re
velaria nos interrogatorios futuros que fora elle o mo
tor da denuncia ? Que pensaria o mundo da riqueza
inesperada ? que julgaria da perfídia do homem que
perdera uma familia ? Occorreu-lhe a idéa valedora
de todos os que não receberam ainda nome condigno
VOL. II 13
494 o judeu
e significante na perversão moral, que entesta com
as raias do inverosimil. Lembrou-se de matar a vene
no a escrava á hora em que fosse necessario sepul-
tal-a com o segredo.
A negra não podia ser pallida diante do inquisi
dor que a interrogava, e do secretario que escrevia
o depoimento ; mas o tremor da voz dizia o que a
escuridão da pelle, oleosa de afflicto suor, não podia
delatar. A desgraçada estava já sentindo em corpo e
alma as labaredas que se iam accendendo, a cada pa
lavra d'ella, em volta da familia com quem se crea-
ra desde creancinha.
Juramentada, confessada, e intimada para appa-
recer quando novamente a chamassem, sahiu. Aper
tou o pé caminho da Bemposta, e limpou muitas ve
zes as lagrimas para vêr o caminho.
Anciosamente a esperava Duarte.
Feliciana lançou-se-lhe de joelhos, exclamando :
— Eu flz que vão matar a minha senhora, e
a snr." D. Leonor que nunca me fez mal nenhum !
Não os deixe morrer, se não eu vou atirar-me á
cisterna !
— Não morre nenhum, tola ! — disse Duarte —
No primeiro auto da fé sahem todos livres ; e entre
tanto eu tractarei de te arranjar fora de Lisboa um
modo de vida em que tu enriqueças. Heide dar-te
um bom dote para casares com um official de offi-
cio. Ergue-te, Feliciana. Então respondeste?
ROMANCE HISTORICO 195

— Sim, meu senhor; mas elles, ás vezes, fa-


ziam-me dizer o mesmo de muitas maneiras, e eu
estava a tremer de medo d'aquelle senhor da capa
e barrete de borla, que tinha cara de metter medo...
— Está bom. Vai jantar, e come bem, que os
tens amos não soffrem senão a prisão d'algum tem
po. Já te não lembram aquellas vergastadas ? . • .
CAPrrtJLO vii

Às pessoas não lidas nas mais repulsivas paginas


que temos da historia da humanidade ; as que não
viram ainda nem coraram de vêr os irrefutaveis e
immorredouros livros de Alexandre Herculano acer
ca da inquisição em Portugal, desculpavel mente mal
sinam de inverosimil o caracter de Duarte Cottinel.
Faz-lhes honrosa repugnancia tão extremada infamia,
quando o intento e fito d'ella é aferrar d'um cofre
recheado de riquezas por cima da torrente de lagri
mas e sangue d'uma familia, por cima d'uma foguei
ra que derrete as carnes e pulverisa os ossos do pos
suidor do thesouro. Espantam-se, e refutam de boa
fé, como desnaturaes e insondáveis os abysmos de in
fâmia d'onde lhes sahe o homem que não pôde alle-
gar como causa da morte horrendíssima d'uma fa
198 O JUDEU
milia, senão a necessidade de a roubar, e a desco-
ragem para matal-a a ferro quando ella o recebe em
seu gremio confiadamente.
Espantam-se ; mas não era mais para assombros
Duarte da Paz aquelle hebreu, que recebia dos da
sua raça, ouro a torrentes para os salvar em Roma,
e os vendia aos algozes sagrados de D. João m? Não
era mais incrivel a denuncia do parente, que espe
rava sonegar ao confisco do santo officio os thesou-
ros do irmão, e ás vezes do pae, que expirava amal
diçoando a cega Providencia, por não saber quem o
chumbara ás lages que o sol não aqueceu nunca ?
O melhor e mais alto louvor que pode entoar-se
a este seculo é não haver ahi quem já aceite como
praticaveis os atrozes lances d'um passado, que dista
de nós apenas seculo e meio. Que dias aquelles e
que dias os nossos! Como a vida e alma humana
eram então desgraçadas ! Que deploraveis gerações
de infelizes e de scelerados rolaram á voragem em
correntes de lama ensanguentada ! Como o sol de
Deus passaria triste no céo, e o que iria no grande
Espirito Creador, lá em cima, cortinas a dentro des
tes milhões de estrellasl
É preciso levar o pensamento ao amago, ao tur
bilhão d'aquelles dous seculos nefastos que marcam
o nosso opprobrio desde D. João m até ao marquez
de Pombal, aurora do melhor dia, aurora manchada
ainda de laivos de sangue, mas em fim o alvorecer,
ROMANCE HISTORICO 199

o redemir-se o homem, esquecido de Christo, prin


cipiou então, n'este recanto de heroes piratas, e de
apostolos sanguinarios I E a Providencia não contava
como seus, como obra sua, como filhos da sua eter
nidade aquelles dous seculos?
A Providencia deixava escabujar o hebreu nas
correntes da sua masmorra, e deixava aquecer-se o
frade ás chammas crepitantes dos seus cruentos ho
locaustos a Jesus.
Mas um dia, a ultima fogueira devia apagar-se
devorando o mais fanatico dos tonsurados, o padre
que em si compendiava o ascetismo fraudulento, as
illustrações ficticias do alto, os dons fallazes de ins
pirado, as raivas theocraticas, quantos herpes tinham
roido e empeçonhado os liames que suavemente en
laçavam a humanidade com a cruz do seu mais di
vino redemptor.
Um dia accendeu-se uma fogueira; e essa fo
gueira, que foi a ultima em Portugal, ao apagar-se
deixara um sedimento lodoso em que a Providencia
mandou procurar as carnes, os ossos, e me quer
parecer que a alma do padre Gabriel Malagrida.
Aqui está a Providencia.
Mas quem deu conta dos milhares de familias,
cujas cinzas levaram os quatro ventos do céo?
A Providencia não as pediu — acrescenta uma
blasphema philosophia.
Pediu. D'estes atascadeiros do mundo não pode
200 O JUDEU
mos desferir o vôo lá para onde essas contas se pe
dem; crêmos, porém, com a mais pia racionalidade
que os filhos de S. Domingos e filhos dos santos
pontifices foram chamados a contas, e as deram co
mo criminosos d'um período do mundo em que a
legislação civil não era mais misericordiosa que a ec-
clesiastica.
Eu creio que ninguem tirou uma vida que não
respondesse por ella quando o nome do assassinado
fosse lido na lista do seu Creador.
E por isso pergunto aos oraculos dos nossos dias
se os caprichos dos reis não tem que dizer de sua
justiça, quando lhes perguntarem porque alvejam
ainda as ossadas nos descampados em que passaram
os reis, á frente das suas rezes.
Não sei qual razão haja ahi que legitime o mor
rer dos que pelejam; contra uma bandeira; e se de
plore sobre a pagina tarjada dos que cahiram nas lu
tas religiosas, mais ou menos covardemente assassi
nados.
De cadaver a cadaver não ha distincção.
É tudo o mesmo açougue.
CAPITULO VIII

Chegou o dia 5 de Outubro, segundo anniversa-


rio de Lourencinha.
Diogo de Barros, com todos seus filhos e netos,
e alguns poucos mais parentes de Jorge, á hora do
meio dia estavam em casa do advogado Antonio José
da Silva, depois de previamente remetterem os seus
presentes em bandejas de prata cobertas com alvis
simas toalhas á cabeça d'escravas, as quaes iam acom
panhadas por lacaios das casas respectivas.
Á uma hora estava o jantar na mesa. Abanca
ram todos alegremente, exceptuado o pae da festejada
creancinha, porque meia hora antes recebera um bi
lhete de Duarte Cottinet Franco, lastimando-se por
não poder comparecer na festa, e mais ainda por mo
tivo de não poder desamparar um posto, d'onde es
202 O JUDEU

tava observando a tecedura d'uma intriga inquisitorial


contra o seu amigo, intriga que requeria urgentissimo
remedio.
Antonio José da Silva, terrivelmente surprehen-
dido, escondeu de todos, e até da esposa, o conteú
do do bilhete, para não perturbar a satisfação dos
convidados. Julgou elle que a intriga ou seria logo
desfiada por esforços do amigo, ou viria a vingar
mais tarde : como quer que fosse, absteve-se de so-
bresaltar a familia e os hospedes, simplesmente an-
nunciando que Duarte Cottinel faltava ao jantar por
desculpaveis motivos.
Lourencinha, durante o jantar, andou pelos bra
ços de todos, e o mais do tempo esteve nos do pa
drinho, Diogo de Barros. O ancião, já sabedor da
breve sahida de Leonor, fitava olhos humidos na afi
lhada, e dizia-lhe :
— Não chegas a conhecer o teu decrepito ami
go. Quando tiveres sete annos, tua mãe te fallará de
mim, e te dirá quanto quiz a teus avós, a teus paes
e a ti, anjinho do céo.
— Essas lagrimas, meu tio, vem amargurar a
festa da nossa Lourença — disse Leonor — quem sa
be ainda se nós iremos para fora? Parece-me que
vamos já esquecendo. . .
— Não esquecemos, não. . . — acudiu Antonio
José, reconcentrado e triste.
ROMANCE HISTORICO 203

— Pois que ha, Antonio?— perguntou Lourença.


— Nada, minha mãe ! . . .
E, tomando da mesa uma alva caneca indiana,
exclamou :
— Bebamos á saude de Duarte Cottinel Franco,
amigo honrado, amigo dos que a divina Providencia
dá aos infelizes que a não denegam nem offendem !
Bebamos á saude do generoso defensor que faltou n'es-
ta festa de familia, porque não podia ao mesmo tem
po estar aqui « defendel-a das armadilhas dos nossos
inimigos ! Bebamos á saude de Duarte !
Bradaram todos, tirante Leonor e Lourença :
— Á saude de Duarte!
— Tu não bebes? — perguntou Antonio á es
posa.
— Estava distrahida. . . — respondeu ella; e,
pegando da sua taça, disse ella:
— Á saude dos sinceros amigos !
Lourença Coutinho bebeu tambem.
Antonio José olhou-as com severidade, e mur
murou :
— Sois ingratas!. . .
— Então, snr. Silva? — exclamou Diogo de Bar
ros — são isso palavras que se digam?
— Pois que quer v. s.a? — redarguiu o hebreu
— ainda não pude provar a estas creaturas que Duar
te é um homem de bem ! . . .
— Nem a mim — atalhou Diogo.
304 o judeu
— Pois que?!... — volveu Antonio José com
muito espanto — nem a v. s.* !
— Não; mas não debatamos hoje essa questão,
snr. doutor. Fallemos linguagem amorosa, que a
nossa creancinha entenda. Ghegai-me cá essa bandeja
de confeitos para a beira da minha afilhada. . .
Fez-se um forte estrondo na porta da escada e
calaram-se todos. Antes que entrasse criado a dar
aviso, appareceu Duarte Cottinel, com a vista esga
zeada e descomposto semblante.
— Que é? — perguntaram muitas vozes.
—Vem cá, Antonio 1 . . . depressa. . . depressa. . .
Todos se levantaram, e só o judeu passou com
elle á proxima sala.
— Vaes ser preso — disse offegante o almoxa
rife.
— Preso? já?...
— Já os familiares e meirinhos estavam á bocca
da rua. Sei que a ordem tambem se entende com
tua mãe e mulher. Meu pae já não pôde salvar-te;
mas arrancar-te-ha brevemente da prisão. . . Não per
cas agora a cabeça, Antonio ! Vem cá 1 . . .
O judeu corria d'um lado a outro apertando ver
tiginosamente as fontes.
—Vem cá. . . escuta-me.. .
— Que é? — disse Antonio com spasmo de
idiota.
— É preciso salvar o teu thesouro das garras da
ROMANCE HISTORICO 205

inquisição. Bem sabes que os hebreus ricos, se po


dem salvar-se do fogo, sahem mendigando do carcere.
— Sei.. . e então!
— De quem confias as tuas riquezas ?
— De quem?. . . de ti, de ti. . . Duarte ! . . .
— E já ! então deve ser já, antes que os fami
liares arrestem o que estiver de portas a dentro. Le-
va-me onde está o thesouro, que eu desço com elle
para os baixos do pateo, e fujo depois que os fami
liares entrarem.
Antonio correu á sua camara: abriu o gavetão
d'um contador, e entregou-lhe o cofre, e mal arti
culou estas vozes:
— Não nos desampares, não nos desampares. . .
Duarte desceu pressurosamente ao pateo, e es-
condeu-se no quarto dos criados.
Instantes depois, entraram dous familiares do
santo officio e dous meirinhos.
Quando chegaram ao topo da escada, ouviram
grande alarido de gritos. Bateram.
Sahiu-lhes Diogo de Barros, que devia conhecer
os familiares : eram duas pessoas nobilissimas, nas
cidas em duas das mais distinctas casas da monar-
chia *.
Diogo de Barros, com as faces cobertas de lagri

i Os primeiros fidalgos de Portugal honravam-se grandemente com


apresilharem no hombro a insignia de quadrilheiros da inquisição. Era
uma medalha de ouro com as armas do santo officio gravadas.
306 0 JUDEU

mas, proferiu palavras supplicantes, compungehtes,


e todavia inuteis.
Um dos familiares disse :
— V. s." sabe quaes são as minhas obrigações,
porque, na qualidade de familiar do santo officio, sa
be cabalmente quaes são as suas.
— Uma .das presas tem uma filhinha de dous
annos. . . — disse Diogo — como hade ser isto ?
— Como é costume — respondeu o enviado da
inquisição — as creanças ficam no poder de quem as
quer aceitar.
Os brados redobravam interiormente, porque Leo
nor tinha ouvido dizer ao familiar: As creanças ficam.
Foi dentro Diogo, e os quadrilheiros seguiram-
n'o.
Leonor girava em volta dos hospedes, como para
fugir-lhes, temerosa de que lhe arrancassem a filha.
Antonio José, a um canto da sala, encarava, n'um
lethargo de brutificação dolorosa, os movimentos fre
neticos da mulher. Ninguem sabia nem podia alli
consolar: choravam todos.
Os familiares, com os braços cruzados, espera
vam o quebrar d'aquella tormenta, e mediam d'alto
abaixo dous filhos de Diogo de Barros que, n'um
instante de indiscreta ira, tinham posto as mãos nas
guardas dos fains.
Antonio José da Silva sahiu do seu estupor, e ca-
ROMANCE HISTORICO 207

minhou com presença d'alma a encontrar a mulher


n'uma das suas irrequietas arremettidas.
— Leonor ! — disse elle — isto é irremediavel.
Entrega a nossa filha ao snr. Diogo de Barros.
As damas rodearam Leonor, e ampararam-n'a.
A creança expedia altos gritos. A mãe largou-a, ou
por cuidar que a estava estrangulando no apertar
dos braços, ou porque os sentidos lhe faltaram. Uma
das senhoras passou a outra sala com a menina.
Diogo de Barros pediu aos seus collegas do santo
officio a graça de concederem que Leonor e sua mãe
fossem transportadas de liteira á santa casa.
Responderam:
— Não temos alçada.
Pediu-lhes que o esperassem em quanto elle ia
fallar ao cardeal inquisidor. Responderam que não
podiam esperar mais tempo.
Leonor e Lourença cobriram as mantilhas, e
desceram encostadas ás espaduas de Antonio José.
Um dos meirinhos fechou as portas, depois de
ordenar da parte do santo officio que sahissem todos
os escravos e criados.
Assim terminou o dia 5 de Outubro de 1737,
segundo anniversario natalicio da filhinha de Antonio
José da Silva.
CAPITULO IX

A inquisição tinha diariamente dous conselhos,


chamados ordinarios. Um das oito ás onze horas ;
outro do meio dia ás quatro.
Quando os presos chegaram á santa casa, já os
inquisidores e secretario tinham sahido da mesa do
santo officio.
O alcaide conduziu-os a um vasto salão, já alu
miado com lampadarios pendentes do tecto esfuma
do, e mandou-os esperar, recommendando a Leonor,
que soluçava, completo silencio.
Um guarda, ou chaveiro ficou encostado ao ba
tente da alterosa porta.
Antonio José sentou-se n'um tamborete de pau
entre sua esposa e mãe. Apertou nas suas as mãos
de ambas, e murmurou :
VOL. II 14
310 O JUDEU

— Não desanimem, que Duarte asseverou-me a


nossa proxima sahida.
Lourença soltou um gemido, e apenas balbuciou :
— Duarte I . . . Creio que estamos perdidas ! . . .
— Não estão. . . não estão. . . Tens coragem, Leo
nor?
— Tenho. . . que sou mãe. . . — exclamou ella,
levantando a voz.
O guarda pronunciou um longo sio.
Ás cinco horas voltou o alcaide, e disse ás pre
sas que o seguissem.
— Adeus ! — disse Leonor ao marido, inclinan-
do-lhe ao peito a face.
Lourença Coutinho beijou o rosto do filho, e dis-
se-lhe ao ouvido :
— Até Deus, meu amado filho f
Antonio José abraçou-as a um tempo, e eahiu
sobre os joelhos com ellas.
— Venham, mulheres ! — disse o alcaide carre
gando o aspeito.
Levantaram-se: Deus viu-os levantar-se, e separa-
rem-se. Viu-os, porque Deus está em tudo e vê tudo.
Em quanto o alcaide não voltou, o hebreu es
teve de joelhos, com o rosto sobre o tamborete. Ou
viu os sonoros passos do chefe dos carcereiros ; le-
vaotou-se, e perguntou-lhe :
— Pode por piedade dizer-me se minta mulher
e minha mãe ficarão juntas?
ROMANCE HISTORICO 2H
— Ficarão junlas até ámanhã. Siga-me.
Antonio foi levado ao cubiculo quadrado de dez
palmos em que estivera onze annos antes : era o car
cere numero seis do corredor meia novo. O alcaide
deteve-se alguns segundos para lhe mostrar a enxer
ga e a manta, o pote da agua e o pucaro ; depois sa-
hiu com a lampada, rodou a chave, e fez as trevas
profundas d'aquelle ergastulo, por ordem dos levitas
d'um Senhor, que tinha feito a luz universa, n'um
dia de boa feição, antes de fazer os levitas n'um dia
de rancor ás suas creaturas. Não sei se o hebreu fi
cou scismando n'isto : o blasphemar, n'aquella situa
ção, seria não vulgar virtude.
Domingos de Gusmão, se está em alguma parte,
e conserva a memoria dos favores que fez ao genero
humano, deve saber contar como foi aquella noite
de Antonio José da Silva, de Leonor e de Lourença
Coutinho, e d'aquella creancinha sem vêr sorriso ou
lagrimas de pessoa conhecida.
Ás seis horas e meia abriu-se a porta do carce-
- re numero seis : o guarda depoz ao lado da enxerga
do hebreu um prato de arroz com uma posta de
peixe, e sahiu 1.

i A alimentação dos encarcerados, com alguma differenca, nas ho


ras de lh'a ministrarem, era a mesma em todas as prisões inquisitoriaes
do territorio portuguez. O author da Inquisição de Goa, o qual, como se
disse, foi longo tempo ludibrio d'ella, no tocante aos alimentos, diz o se
guinte: «Os presos são bem tractados; comem tres vezes ao dia; almoço
fts seis horas da manhã, jantar ás dez, e ceia is quatro horas da tarde.
212 O JUDEU

Antonio José deteve-se a olhar na chamma da


lanterna, que o chaveiro pozera ao lado do prato.
Voltou o guarda, e disse-lhe que comesse.
— Não posso — respondeu o preso.
O guarda sahiu com a luz, e correu os ferrolhos
da porta.
Ao romper da manha, Antonio José tinha os
olhos cravados na alta fresta, por onde entrava o dia
atravez de grades. Assim que o cubiculo se aclarou,
olhou em redor de si: reconheceu aquellas paredes.
Viu um objecto novo: era uma cruz, feita com san
gue, á cabeceira da enxerga. Algum desgraçado alli
deixara aquelle testemunho de sua religião, traçado
com o sangue furtado ao constrictor das torturas.
As seis horas, levaram-lhe o almoço. Antonio José,
como tivesse orado, cobrou alento. Orar a quem?
Não se sabe; mas as testemunhas juradas contra elle
disseram que, atravez das escutas da prisão, o viram
algumas vezes orar de joelhos. Orava a Deus.
Aos pretos dáo-lhes canja de arroz : chama-lhe o francez cange, ao almoço;
ao jantar e ceia dão-lhe pene e arroz. Os brancos passam melhor: de
manhã dão-lhe um pão fresco de tres onças, e peixe frito, fructa, e uma
linguiça, se é domingo ou quinta feira; e n'estes dias, ao jantar, dão-lhes
came, um pão como o do almoço, e um prato d'arroz e algum guizado
com farto molho, para adubar o arroz, que é cozido simplesmente com
sal ; nos de mais dias o jantar é sempre de peixe ; e á noite dão peke
frito, pão, arroz, e guizado; carne é que nunca lá se come á noite. » Pre
sume o desconhecido author que a abstinencia da carne leva em vista evi
tar indigestões. Aquelles hygienicos sujeitos poupavam os corpos salutar-
mente, no intento de lhes purificar as almas no fogo. Em Lisboa prevale
cia a mesma piedade. Veja o liv. cit. pag. 81 e 82.
ROMANCE HISTORICO 213

O certo é que se lhe fez luz de esperança. Acei


tou o almoço, e comeu porque esperava resgatar-se,
depois d'alguma flagellação. Deram-lhe uma vassou
ra para a limpeza do calabouço, um pote para deter
minado fim, e uma celha, que servia de cobertura
ao pote, e de receptaculo de lixo. Depois, cortaram-
Ihe o cabello, vestiram-n'o com o traje da casa, e
despojaram-n'o de tudo que levava vestido.
O hebreu, onze annos antes, tinha deixado alli
um alcaide que o tractava com menos crueza, bem
que nunca lhe concedesse um livro '. O novo official,
que substituira o outro, denotava a ferocidade ordi
naria d'aquelles funccionarios da santa casa, e pode
ser que extraordinaria ferocidade com elle.
Leonor e Lourença tinham passado a noite jun
tas. Não nos arrojamos a bosquejar muito em som
bra as presumiveis angustias das duas mulheres. A
penna mais affeita a escrevel-as, ainda entre os de
dos de Llorente e de Alexandre Herculano, cahe
desanimada. Esta inefficacia e incapacidade para des-
cripções de agonias inenarraveis, faz honra ao co
ração do homem.
Ao outro dia, por volta de onze horas, um guar
da separou as presas. Abraçaram-se. Lourença disse
á esposa do filho :
— Se vivermos.. . até ao auto da fé.
* Nos carceres da inquisição nem aos sacerdotes presos era conce
dido o seu breviario.
214 O JUDEU

Leonor, quando se viu sosinha, ajoelhou, e disse :


— Meu Deus, graças te dou, porque me levaste
minha mSe e meu pae 1 Deus de misericordia, leva-
me a minha filhinha, se eu não heide mais vêl-a. . .
leva-m'a, ó Senhor, para eu poder acabar resignada t
Ao mesmo tempo, um official do santo officio
entrava á prisão do hebreu exhortando-o a que de
clarasse exactamente os seus haveres, acrescentando:
— Da parte de Jesus Christo vos digo que, se
estiverdes innocente, vos será entregado tudo que
vosso for ; e, se alguma cousa sonegardes, qualquer
que seja vossa innocencia depois reconhecida, tudo
perdereis.
Antonio José respondeu que tudo que possuira
deixára em sua casa no largo do Soccorro ; ajuntou
que pouco herdára de seu pae, e a pequena herança
a empregara em adornos de sua casa.
Á uma hora da tarde, o alcaide e um guarda
conduziram-n'o á mesa do santo officio, occupada por
tres inquisidores e um secrelario. Mandaram-n'o sen
tar em tamborete raso, unico objecto desprezivel em
meio de ricas poltronas, tapetes, e gualdamecins que
exornavam o espaçoso recinto. Os inquisidores occu-
pavam parte das poltronas lateraes á mesa. O secre
tario sentava-se rente ao topo da banca, voltando as
costas a um grande Christo que se alevantava até á
abobada. Começou o interrogatorio, depois que elle
foi ajuramentado com um missal. Perguntaranvlhe
ROMANCE HISTORICO 215

se sabia porque fora preso. Respondeu que não. Pe-


diram-lhe pelas entranhas misericordiosas de Nos
so Senhor Jesus Christo x, que confessasse para
mais depressa experimentar a bondade e misericor
dia d'aquelle tribunal com os sinceramente arrepen
didos.
Disse o hebreu que se julgava victima de odien
tos intriguistas, que tinham querido vêr em suas co
medias alguns rebuçados insultos á religião catholica.
Instaram os inquisidores pela continuação das suas
conjecturas. Antonio José respondeu que não tinha
outras.
Leram-lhe o que elle tinha dito, e mandaram-no
assignar. Ao toque de campainha, entrou o alcaide,
o secretario fez um gesto de cabeça, e q hebreu sa-
hiu.
Antonio José quiz lêr no semblante dos inquisi
dores uma boa nova. Figuraram-se-lhe afiaveis no
tracto e commovidos nos termos do interrogatorio.
Lembrava-se da aspereza dos outros que, da primei
ra vez, e logo ás primeiras perguntas, o ameaçaram
com a tortura. Sahiu animado : enviou aos corações
da esposa, da mãe e da filhinha um sorriso de espe
rança.

Eram os termos sacramentaes com que pediam tudo.


'.' v •.
CAPITULO X

N'este dia, Duarte Cottinel, a horas descostu-


madas, estava ainda fechado em sen quarto. A noite
passou-a na vigilia d'um supplicio atroz, com inter-
mittentes de infernal alegria. Tinha alli o thesouro
de Antonio José da Silva. Abrira-o, remexera-o,
contara as joias, contara os brilhantes : estava tudo,
e mais um annel, que elle nunca vira, o annel do
contador-mór, a prenda que D. João de Bragança
dera ao seu déstro caçador na tapada de Villa-Viçosa.
Mas assim que elle despregava os olhos das flamme-
jantes pedras, assim que descia a tampa do cofre,
resaltavam outras chammas de dentro d'elle, e alu
miavam-! he tres pessoas em contorcimentos horren-
tes, amarradas a tres postes, e as labaredas a subi
rem, e a serpejarem por ellas, e a fumarada negra
218 O JUDEU

a subir em columna d'entre as camadas de lenha e


as faiscas a lampejarem pela cerração do fumo, e os
gritos estridulos a retinirem por sobre o crepitar da
fogueira.
Assim que o almoxarife se afez áquella visão, e
achou que o segredo magico de a desvanecer estava
no abrir do cofre e na deleitação de tirar e repor as
preciosas camadas, conseguiu conciliar o somno. Ora,
a placidez, com que elle dormia ás onze horas da
manhâ, era tal, que ninguém poderia estremal-a da
placidez com que dorme um justo.
Ás onze horas, porém, foi espertado por estron
doso empuxar á porta. Saltou do leito, e abriu as
janellas para convencer-se de que havia sol, ar e luz
para elle, como para qualquer justo, que se ergue
do seu catre duro de penitente para louvar a luz, o
ar e o sol de Deus.
Ouviu o gritar convulso de Feliciaria ; vestiu-se á
pressa, e abriu.
A negra ia dar-lhe parte de que estava no pateo
um familiar e um meirinho do santo officio, em pro
cura d'ella.
— Olhe se me esconde, pelas cinco chagas ! —
exclamava ella.
— Se te escondo?! para que? — disse elle so*
cegadamente — pois tu cuidas que vaes presa?
— Pois então?
— Não vaes presa, bruta; vaes ser outra vez

\
ROMANCE HISTORICO Mi

perguntada a respeito do que já disseste ; entendes,


mulher ?
— Perguntada outra vez? — tomou ella —»
Diante da minha senhora?
— Não : tornam a perguntar o que já disseste,
e mandam-te embora, que é o costume. Pois tu cui
das que as testemunhas tambem são mettidas na
prisão? Está ahi o familiar, porque é sempre assim;
é elle que vai buscar as testemunhas.
A escrava, não obstante as explicações confor
tadoras de Duarte, pensou em fugir pela quinta;
mas o familiar e meirinho anteciparam-se a intimar
peremptoriamente o almoxarife, por maneira que
faltou á negra tempo e occasião de fugir.
Depós ella sahiu Duarte, caminho do tribunal.
A preta foi conduzida á audiencia ; o almoxari
fe da Bemposta entrou no aposento do alcaide, onde
se demorou meia hora em pratica muito recondita.
Ao capellão dos infantes, pae de Duarte, devia
o alcaide a sua envestidura n'aquelle exercicio bem
remunerado. O almoxarife sabia que n'aquelle ho
mem tinha um auxiliar poderoso e de confiança pa
ra qualquer intento, sem despender-se na compra
da alma bastante abjecta para vender-se cara. A pra
tica entre os dous terminou depressa porque as oc-
cupações do alcaide eram muitas e pouco intervalla-
daS de repouso, mormente n'aquelle mez de Outu
bro, em que regularmente se celebravam os autos
220 0 JUDEU
da fé — por cahir então a primeira dominga do ad
vento — e serem mais frequentes os interrogatórios
e torturas dos presos *.
Assim mesmo no breve tempo que praticaram,
os pontos essenciaes, respectivamente á negra, foram
combinados, e as consequencias más previstas e re
mediadas.
Feliciana, depois de interrogada, ouviu o seu
depoimento, e assignou de cruz. Mandaram-na sahir ;
e quando ella endireitava pelo caminho do pateo, um
guarda mudou-lhe a direcção, dizendo-lhe :
— Por aqui.
Apavorou-se a negra, e perguntou em ancias :
— Eu fico presa?
— Não: ficas alli em baixo n'um quarto até
vêr.
Fecharam-n'a. Começou logo ella a dar gritos e
a revolver-se no pavimento.
Acudiram os guardas com vergastas e ameaça-
ram-n'a. Foi chamado o alcaide, para aquietal-a. Que
ria elle ficar a sós com a negra para acalmal-a com
razões consoladoras, que assim convinha ; mas, pro-
hibindo os estatutos da inquisição que algum official
do serviço dos carceres estivesse com o preso sem

* 0 santo officio preferia a primeira dominga do advento porque


o evangelho d'este dia falia do juiio final, e os inquisidores, queimando
em tal dia os peccadores, commemoravam de antemão a sentença do
supremo julgador.
ROMANCE HISTORICO

o testemunho d'outro empregado, o alcaide valeu-se


do terror para aquietal-a.
Ao outro dia, o guarda avisou o alcaide de que
a negra estava clamando que jurára falso, e queria
ir desdizer-se á presença dos inquisidores, e contar
o que se passara com a pessoa que a fizera jurar.
O alcaide avisou Duarte Cottinel, que sem mais
demora que a necessaria para prover-se d'um frasco,
foi á santa casa, e pouco se deteve com o confi
dente.
A negra não cessava de exclamar e pedir que a
ouvissem. Pouco antes da hora do jantar, o alcaide
com o pretexto de a castigar, entrou sosinho á pri
são, e tão brandamente fallou á negra, tão breve lhe
figurou a sua sahida do santo officio, que a desgra
çada aplacou-se, e prometteu comer e socegar até
ao outro dia na esperança de sahir então.
Feliciana jantou com algum appetite ; não achou
travor sensivel no molho da caldeirada do peixe : co
meu bem, com tenção de dormir melhor para aligei
rar o tempo. Meia hora depois, quando pensava em
adormecer, saltou da enxerga em gritos e ancias,
bradando por soccorro. Acudiram os chaveiros. Fe
liciana queixava-se de ter dores infernaes no ventre ;
rolava-se no soalho, e levantava-se de salto remet-
tendo contra a porta para fugir. Numa d'estas in
vestidas que os guardas repelliam, a negra cahiu,
222 o judeu
estrebuxou, estirou as pernas em convulsões, retor
ceu bocca e olhos horrendamente, e morreu.
José Maria da Costa e Silva, o menos imperfeito
biographo de Antonio José, diz o seguinte acerca
d'esta escrava :
« Lourença Coutinho, mãe do poeta, tinha ama
escrava preta, porque n'esse tempo havia ainda es
cravos n'este reino, e aquella escrava era deshonesta
e dissoluta, como todas ellas, e como o são quasi to
das as criadas.
« Antonio José da Silva a castigou, e é natural
que com rigor aproximado ao que em taes casos
se usa no Brasil : a negra era vingativa como quasi
todos os negros, e ou por malignidade propria, ou
por suggestões de pessoa ou pessoas a qnem se quei
xou, apresentou contra elle no santo officio uma no
ticia de judaisante e relapso. . .
« Porém a justiça de Deus não quiz que esta
perversa mulher continuasse a ajudar a ruina do
seu senhor, nem gozasse de sua vingança tão trai-
doramente procurada ; pois apenas a negra entrou
no carcere possuiu-se de taes terrores que dentro
em breves dias terminou sua existencia. » *
Eu inclino-me a crêr muito mais nos effeitos do
veneno de Duarte Cottinel que nos pavores e remor
sos da negra.

1 Vol. x, pag. 332 e 333 do Diccionario bibliogrophico.


CAPITULO XI

Estavam em campo os poucos amigos e os mui


tos inimigos de Antonio José da Silva.
Inimigos eram os homens de letras, que se jul
gavam comprehendidos na allegoria d'aquelles que
D. Quichote e Sancho Pança levaram a pontapés
para fora do Parnaso ; eram os ouvintes piedosos de
suas comedias que riam muito das facecias indecen
tes e censuravam a licença desbragada do judeu ;
eram os frades, que atravez da gelosia do seu cama
rote, se tinham doido das frechadas que o judeu
nunca lhes apontara.
Amigos tinha dous dedicados e diligentes : eram
Diogo de Barros e o conde da Ericeira ; mas o ami
go que elle em maior conta e prestimo tinha era
Duarte Cottinel.
224 O JUDED

O conde, desde logo, anteviu o desastre, infe-


rindo-o do sobrecenho com que o inquisidor geral,
e parente seu, D. Nuno da Cunha o desaltendia em
rogos pertinentes ao judeu. Diogo de Barros, por
sua parte, achava de bronze o peito dos membros
do supremo conselho. Todos, á uma, professavam
odio entranhado ao judeu que podéra salvar-se do
justo castigo, para reincidir na mesma culpa ; e de
mais d'isso attentar contra os bons costumes expon
do ao povo os quadros irreligiosos e deshonestos das
suas operas, recheadas de gentilidades, heresias e
chascos á piedade.
Diogo de Barros, confiando no olhar supplican-
te da menina que tinha em sua casa, ia com ella
aos inquisidores, levava-a nos braços, e ensinava a
creancinha a dizer piedade áquelles homens severos
que lhe faziam medo.
Alguns, tocando na face da menina, diziam-lhe:
«Deus te afaste dos paes que haviam de perder a
tua alma ».
Outros, voltavam-lhe as costas, e respondiam
azedamente ao solicitador da liberdade de tres rela
psos, que tão mal pagaram á misericordia das en
tranhas de nosso Senhor Jesus Christo.
No entanto, Antonio José espantava-se de não
ser chamado a novo interrogatorio, decorridos vinte
dias de prisão. O mez de Outubro tinha passado :
para elle era já ponto decidido que ainda estaria pre
ROMANCE HISTORICO

so um anno, até ao primeiro auto da fé, a não dar-


se algum extraordinario e rarissimas vezes succedido
caso de sahir livre sem o ceremonial d'aquelle es
pectaculo de morte para uns e de perdão para outros
— espectaculo de justiça e misericordia como dizia
a tarja que circumdava o painel do fundador do san
to officio, arvorado na procissão, aquelle S. Domin
gos que em uma das mãos empunhava um ramo de
oliveira, e n'outra uma espada nua.
O processo estava, porém, instaurado, e o in
querito das testemunhas continuava. Quaes testemu
nhas ?
Aqui é o ponto de colher os pannos á imagina
ção, e encostar-se o romancista ao pouco de que
pode amparar-se para não escorregar no plano in
clinado das hypotheses improprias do assumpto.
O processo de Antonio José da Silva está no ar-
chivo nacional da Torre do Tombo : para alli foi nos
cartorios das inquisições em 1821. Alguns curiosos
possuem cópia do processo ; eu não a vi, nem estou
ao alcance de poder ainda consultar as peças prin-
cipaes, que mereciam a publicidade, usurpada por
farragens inutilissimas que pejam as livrarias.
Costa e Silva viu o processo, ou o principal
d'elle ; todavia, um sujeito que se presava de ser
futilmente prolixo em numerosas paginas a proposito
de nada, foi mais que omisso na biographia importan
tissima de tão assignalado escriptor, e desasisado
VOL. II lo
226 O JUDEU

n'algum dos esclarecimentos que levianamente dá. Ou


tro bibliographo de maior tomo o snr. Innocencio
Francisco da Silva, não obstante a breve e succinta
noticia com que antecede a relação das operas do ju
deu, cuida em corrigir de passagem os graves erros
de seus antecessores, e restaura lucidamente a verda
de de alguns essencialissimos factos. Como quer que
seja, pelo que respeita ao processo, éJjudicioso ater-
mo-nos ao que estiver escripto por pessoa que o ha
ja examinado. N'esta parte, irei trasladando o pouco
de Costa e Silva. Diz elle : « Sepultado o supposto
réo no carcere n.° 6, do chamado corredor meio-
novo, deu-se obra ao seu processo, e como faltavam
provas, e culpas articuladas, e definidas, pois todas
se reduziam ás accusações vagas, taes quaes as po
dia dar uma negra boçal de Cabo Verde, quizeram
os seus juizes, ou seus algozes sahir da difficuldade
creando-as na mesma prisão.
« Do seu processo. . . consta que os guardas fo
ram incumbidos de o espionar pelas escutas ou bu
racos, que existiam nos cantos dos tectos dos car
ceres d'aquelle terrivel tribunal, dispostos de manei
ra que se podesse ver e ouvir quanto n'elles se pas
sava, como eu notei visitando grande parte d'aquel-
las masmorras, quando se patentearam ao publico
em 1821. Que os ditos guardas quasi todos depo-
zeram que muitas vezes o viram ajoelhar, persignar-
se, e recitar devotamente as orações christãs ; acres
ROMANCE HISTORICO 227

centando somente alguns que elle alguns dias não


tocava na comida, naturalmente (diziam elles) por
satisfazer aos jejuns da lei de Moysés
« Consta igualmente do mesmo processo que o
poeta protestou sempre pela sua innocencia ; que
produziu em sua defeza muitas testemunhas, e en
tre ellas religiosos graves de differentes ordens,
até da dominicana, e que todos elles afiançaram o
seu zelo religioso, a sua exacção no cumprimento
dos preceitos da igreja. . . »
Quaes testemunhas, pois, depozeram contra An
tonio José? Os guardas dos carceres, os officiaes
subalternos e sujeitos ao alcaide, a quem incumbia a
directoria interna das prisões. Contra o testemunho
dos guardas e o depoimento da escrava assassinada
baldaram-se os esforços mais ou menos consciencio
sos dos frades das differentes ordens, com quem o
hebreu industriosamente mantivera sempre boas re
lações, cuidando que assim preparava patronos para
a crise que sempre se lhe antolhára. Duarte Cotti-
nel levara aos antros da santa casa o valor do mini
mo d'aquelles brilhantes, e corrompêra as sete cons
ciencias necessarias para fazerem prova de que o
preso, algumas vezes, não comia, nem, nos interro
gatorios subsequentes, confessava a razão que o fa
zia abster-se de alimentos.
Lourença Coutinho e Leonor, levadas á confis
são na tortura, ignoramos quaes revelações fizes
228 o judeu
sem, arrancadas pela mortificação. É natural que
Lourença, esperançada no perdão, se accusasse de
judaisante, e que Leonor, compellida por igual es
perança, mentisse aos verdugos para que em nome
do Deus misericordioso lhes perdoassem a culpa.
Correram dezesete mezes. O processo dos pre
sos fechou-se em onze de Março de 1739. A sen
tença de morte de Antonio José da Silva, a requeri
mento do promotor, foi lavrada n'aquelle dia, e logo
relaxada ao braço secular. O accordão da condemna-
ção não transpirou. Já aquella vida estava irremis-
sivelmente condemnada ao fogo, e tanto o réo como
grande numero de seus amigos esperavam a absol
vição no auto da fé do proximo Outubro.
Decorreram ainda sete mezes.
N'este periodo, o mais concorrido espectaculo
do theatro da Mouraria era a opera do judeu, o
Precipicio de Phaetonte, que entrára em scena,
quando o author já soffria o terceiro mez de carce
re, em Janeiro de 1738. O publico victoriava o in
feliz, sem ousar maldizer a justiça que matava len
tamente o seu mais festivo e popular author.
Os frades lá estavam casquinando no seu cama
rote ; as familias dos inquisidores concorriam á festa
do talento do hebreu, que, áquellas horas, ajoelhava
pedindo á Providencia um testemunho do seu po
der.
Avisinhou-se o mez de Outubro. Antonio José,
ROMANCE HISTORICO 229

como nos ultimos mezes o não chamassem a per


guntas, duas conjecturas devia de fazer : uma a da
sentença já relaxada de morte ; outra a do perdão,
mediante o abjurar no auto da fé. Não se demorou
a scismar na mais pavorosa das hypotheses : fiava
em sua innocencia, no valimento dos amigos, na
fraternal amizade do seu Duarte, e, mais que tudo,
na justiça de Deus.
Desde o primeiro dia do fatal mez de Outubro,
o coração do hebreu pulava-lhe no peito de cada
vez que se corriam os ferrolhos do seu quarto. Fi
tava o rosto do alcaide, que nunca se lhe voltou de
frente, nas raras occasiões que entrava á prisão; pe
dia aos chaveiros que lhe dissessem alguma cousa
do seu destino; pedia novas de sua m3e e de Leo
nor; rogava que ao menos lhe dissessem se ellas vi
viam. Não lhe respondiam, cumprindo rigorosamen
te as prescripções do santo officio, como conscios de
que a morte era o castigo da infracção.
Ás Ires horas da tarde do dia 16 de Outubro,
ouviu Antonio José da Silva rumor de passos ao lon
go do corredor; collou o ouvido ao taboado, e sentiu
que se visinhavam da sua prisão. Abriu-se a porta,
e logo assomou o promotor da inquisição, e um mei
rinho da justiça secular.
O promotor, sem encarar no preso, leu a sen
tença pausadamente : relaxado em carne, morto, quei
mado, como convicto, negativo e relapso.
230 O JUDEU

Lida a sentença, o meirinho lançou em volta das


mãos do preso um baraço, como signal de que to
mava posse do réo que a justiça ecclesiastica aban
donara.
Antonio José da Silva morreu n'aquella hora. Es
tava em pé, tinha os olhos alumiados, respirava, ou
via, via, e entendia ; mas estava morto.
Á beira d'elle, depois que o promotor e o mei
rinho sahiram, ficou um homem, chorando. Era um
jesuita de S. Roque, o padre Francisco Lopes, a
quem incumbiram conduzir o padecente ao oratorio.
O hebreu deixou-se levar. Entrou no santuario,
com os olhos postos na imagem de Christo, que lhe
antepunha o padre. Ajoelhou, cahiu, quando a seus
pés se fez um vacuo, um subito aluir-se o pavimen
to por abysmos em que elle se despenhava com o
peito congelado do frio das entranhas mortas.
Fechou-se a porta do oratorio.
N'um caso analogo de inexprimivel tormento,
perguntava Féréal, historiador da inquisição de Hes-
panha : « Quem póde sondar os mysterios da agonia
e da morte, d'aquella suprema luta entre a forma
terrestre e o homem immaterial?»
CAPITULO XII

Ao aclarar a manhã do dia 18 de Outubro de


1739, abriu-se a magestosa igreja de S. Domingos,
já decorada para a celebração do auto da fé. Estava
pomposa. Era o leão coberto de grinaldas e laçarias,
enfeitado e vistoso, com as fauces abertas á espera
do bodo d'aquelle seu dia de festa, do seu almejado
domingo do advento.
O altar-mór, bem que negrejasse de crepe, res
plendia com os seus doze candelabros de prata, e
doze alvissimos cirios em argentinas tocheiras. Dous
thronos se erguiam lateraes ao altar: o da direita
pertencia ao inquisidor geral e supremo conselho; o
da esquerda á casa real.
Abaixo do arco da capella-mór, entre as naves,
estava outro altar, sobre o qual se viam dez missaes
232 o judeu
abertos com suas capas de couro, relevos dourados,
e fechos de prata. D'aqui até á porta do templo, cons
truiram uma galeria abalaustrada d'ambos os lados,
com passagem pelo centro, e bancadas no interior:
eram os lugares destinados aos presos e aos padri
nhos. Pannos de sêda adamascada franjados de ouro
e prata pendiam dos tectos e frontispicios das ca-
pellas, em que sobresahiam a meio relevo figuras de
boa massenaria e todas cozidas em ouro sem se vér
outra cousa, como conta £r. Luiz de Sousa na lu
xuosa descripção d'esta igreja, a qual não é já a que
o leitor conhece.
Ás oito horas já grande espaço da vasta igreja
estava occupado por parte das mais lustrosas familias
de Lisboa e fidalgos provincianos, que iam gozar-se
d'aquelle espectaculo, superior em apparato ao das
outras inquisições do reino.
Ás nove horas e meia subiu ao seu magnifico
camarote o cardeal inquisidor-mór D. Nuno da Cu
nha, e os conselheiros. O palanquim real conservou
corridas as cortinas durante aquelle primeiro acto do
sanguinario drama ao divino.
Assim que o inquisidor-mór appareceu no adro
do templo, dobraram os sinos, e logo a procissão do
auto da fé sahiu da santa casa, e a breves passos as
somou no limiar do templo o estandarte do santo of-
fício com um longo sequito de dominicanos. O fun
dador da ordem, estampado num riquissimo panal,
ROMANCE HISTORICO 233

com a lampejante espada em punho, era a insignia


do estandarte, perante o qual o povo ajoelhava e ba
tia nos peitos. Em seguida aos frades inquisidores,
caminhavam tres mulheres sem habito ; uma, com os
olhos no chào, e braços pendidos, andava com firme
za: era Leonor; outra, que dous esbirros amparavam
desfallecida, era Lourença Coutinho. Cada presa le
vava na mão direita um cirio amarello. Seguiam-se
os condemnados a abjurarem com penitencia, ou a
prisão indefinida ou galés.
Entre estes e outros mais desgraçados hasteava-se
um grande crucifixo, com a face voltada para os que
entraram primeiro no templo. Depós a cruz, iam tres
estatuas de hebreus ausentes, condemnados ao fogo,
dous caixotes de ossos d'outros que tinham morrido
por effeito da tortura, e tres penitentes de carocha
e samarra ou sambenito pintado de demonios e fo
gueiras com fogo revolto. Um d'estes era Antonio
José da Silva: diziam que era, dizia-o a sentença es-
cripta na orla da samarra; mas depois de dous an-
nos e onze dias de lagrimas e trevas difficil seria in-
dividuar-lhe as feições antigas. O povo, o povo que
se rejubilava nas operas d'aquelle martyr, contem-
plou-o, e não chorou uma lagrima ! . . . Oh ! o povo!
a canalha de todos os tempos e costumes!
Antonio José da Silva não abrira os olhos, du
rante o transito da inquisição á igreja. Encostado ao
hombro do padre Francisco Lopes, levemente lhe
234 o judeu
acenava quando o pallido jesuita lhe perguntava al
gum artigo essencial para a sua salvação.
O banco da galeria em que Antonio José se as
sentou era dos ultimos. Lá estava entre elle e suas
mãe e esposa a imagem do Christo, voltando-lhe as
costas, como no dia do juizo final, consoante rezava
o evangelho do advento.
Fez-se profundo silencio.
Um frade arrabido subiu ao pulpito, e pregou.
N'um dos periodos mais levantados da sua oração,
exclamava elle:
« É a santa inquisição como a arca de Noé ; po
rém, amados irmãos, quão grande differença vai
d'uma á outra I Os animaes que entraram na arca,
abaixadas as aguas do diluvio, sahiram animaes da
natureza que tinham; ao passo que a santa inquisi
ção por tal maneira muda os entes que em si en
cerra, que é digno de vêr-se como sahem cordeiros
os que tinham entrado cruelissimos lobos e ferocis
simos leões. »
Terminou o sermão.
Subiram dous promotores ao pulpito para lerem
as sentenças. Cada penitente ouvia lêr o seu proces
so e condemnação em pé, no meio da galeria, com
a tocha em punho, e o alcaide á sua beira. Depois,
Ievavam-n'o á banca dos missaes, ajoelhava, punha a
mão sobre o sagrado livro, e esperava n'esta postura
que os condemnados fossem tantos como os missaes.
ROMANCE HISTORICO 235

Depois, acompanhavam o promotor recitando com


elle um acto de fé.
Findas as ceremonias com os presos que não ti
nham sentença de morte, vieram os outros, os rela
xados em carne. Eram tres homens e duas mulhe
res.
Antonio José foi transportado em braços. Já não
ouviu o processo. Tinha perdido o alento, quando
viu Leonor a debater-se soluçante nos braços de dous
meirinhos, que lhe abafavam os gritos.
Lidas as sentenças, a inquisição, ao entregal-os á
justiça secular, pedia encarecidamente ás leis e aos
juizes que se houvessem com clemencia e piedade
d'aquelles miseraveis, e se lhes impozessem pena ca
pital, fosse, ao menos, sem effusão de sangue.
A historia das ferocidades religiosas não conta
maior infamia !
Acabou este acto do drama.
Leonor e Lourença foram transferidas em braços
para a santa casa.
Antonio José da Silva ainda esperou, depois que
o levaram da Relação, sem consciencia de vida, a
aurora do dia seguinte.
Quando chegou ao campo da Lã ardiam já as
achas resinosas da fogueira.
O martyr não as viu. Devia ir quasi morto, por
que escassamente o viram estrebuxar.
Seio do Altissimo ! se te não abrisses áquella ai
336 o judeu
ma, creada ao bafejo da tua, que serias tu, Deus?
que serias tu, palavra?

N'aquelles dias publicou-se um impresso, que o


snr. Innocencio Francisco da Silva traslada na bio-
graphia do Aristophanes portuguez.
Reza assim o extracto:
Lista das pessoas que sahiram condenmadas no
auto publico da fé, que se celebrou na igreja do con
vento de S. Domingos de Lisboa no domingo 18 de
Outubro de 1739, sendo inquisidor geral o cardeal
Nuno da Cunha.
Pessoas relaxadas em carne:
N." 7. Idade 34 annos. Antonio José da Silva,
x. n. (christão novo), advogado, natural da cidade
do Rio de Janeiro, e morador ríesta de Lisboa occi-
dental, reconciliado que foi por culpas de judaismo,
no auto publico da fé, que se celebrou na igreja do
convento de S. Domingos d'esta mesma cidade em
13 de Outubro de 1726. Convicto, negativo e re
lapso.
Pessoas que não abjuram nem levam habito:
N." 5. Annos de idade 27. Leonor Maria de
Carvalho, x. n., casada com Antonio José da Silva,
advogado, que vai na lista, natural da villa da Co
vilhã, bispado da Guarda, e moradora n'esta ci
dade de Lisboa occidental, reconciliada que foi por
culpas de judaismo no auto publico da fé, que se
ROMANCE HISTORICO 237
celebrou na igreja de S. Pedro da cidade de Valha-
dolid, reino de Castella, em 26 de Janeiro de 1727:
presa segunda vez por relapsia das mesmas culpas.
Pena: carcere a arbitrio.
N." 6. Annos de idade 61. Lourença Coutinho,
x. n., viuva de João Mendes da Silva, que foi advo
gado, natural da cidade do Rio de Janeiro, e mora
dora n'esta de Lisboa occidental; reconciliada que
foi por culpas de judaismo no auto publico da fé,
que se celebrou no Rocio d'esta mesma cidade em 9
de Julho de 1713; presa terceira vez por relapsia
das mesmas culpas. Pena: carcere a arbitrio í.

1 Não posso conjecturar quando Lourença Coutinho fosse presa além


da segunda vez nos carceres de Lisboa. Os biographos não o dão leve
mente a perceber ; e a nota da lista, se ella terceira vez entrasse na in
quisição, mencionaria o segundo auto da fé em que ella houvesse sahido
reconciliada por culpas de judaismo. Quer-me parecer, se não ha descuido
no traslado, que lhe seria contada como primeira a prisão nos carceres do
Rio de Janeiro, d'onde foi remettida para Lisboa. Onde limpamente se
pôde esclarecer esta duvida é na leitura do processo, o qual faço tenção
de brevemente examinar.
CAPITULO XIII

No dia seguinte ao do supplicio de Antonio José


da Silva, um padre vestido com a roupêta da com
panhia de Jesus, bateu á porta de Duarte Cottinel
Franco. Disseram-lhe que o almoxarife estava doen
te de cama. Instou o padre fazendo saber a Duarte
que o procurava o indigno ministro do Senhor que
assistira ao finado Antonio José da Silva nos tres
dias do oratorio.
Duarte sentou-se no leito, e pediu ao pae que o
deixasse a sós com o padre. O capellão espantou-se
do resguardo do filho ; todavia, retirou-se, no inten
to de escutar a mysteriosa pratica.
Entrou o padre Francisco Lopes, e disse:
— Snr. Duarte, comprehendo a sua enfermida
de. A desgraça do nosso infeliz amigo pesou-lhe do
lorosamente.
240 o judeu
— Aniquilou-me, senhor ! . . . — disse Duarte,
reconhecendo no jesuita um dos muitos sabios edos
poucos virtuosos da companhia.
O padre proseguiu enxugando as lagrimas :
— Antonio José fez-me confidente d'um segre
do que apenas era sabido de sua familia. Achou-me
digno de confiança. Recommendou-me que lhe désse
um abraço, e um adeus até ao reino do céo, onde
eu piamente creio que entrou a alma purificada do
nosso pobre amigo. Depois, me disse que em poder
de vm.ce está um thesouro, que lhe elle entregara
pouco antes de ser preso. É isto verdade ? Não pô
de deixar de ser. . .
— É verdade... — balbuciou Duarte — Se eu
não tomasse conta do thesouro, sabe vossa reveren
cia que a inquisição. . .
— Sei, sei que ficaria a mendigar aquella pobre
familia, se Deus permittir que ainda se lhe abram
as portas do carcere. Se os grandes haveres de An
tonio José não poderem servir á esposa e á mãe, lá
está a filhinha em poder de Diogo de Barros, varão
de Deus que a Providencia escolheu como amparo
da innocente. A incumbencia, que o desgraçado me
fez, foi que viesse eu dizer a vm.ce que entregasse o
cofre a Diogo de Barros, vendo elle que o encargo
de guardar os objectos e dinheiro contidos n'elle,
hade ser causa a mortificações do snr. Duarte.
— Promptamente... — tartamudeou Duarte Cot
ROMANCE HISTORICO 241
tinel — Se o cofre estivesse em meu poder, passal-o-
hia já ás mãos do snr. padre Francisco Lopes. Ca
reço de sahir a recebel-o de terceira pessoa a quem
o confiei, não o querendo em meu poder, porque
era tido em conta de amigo do judeu, e receava
das pesquizas do santo officio. . .
— Foi prudencia!... — atalhou o sincero pa
dre.
— Amanhã tracto d'isso, e amanhã mesmo, ou
muito tardar depois, irei entregar o thesouro do meu
chorado amigo ao snr. Diogo de Barros, com todo o
segredo para que a filha não seja ainda privada do
seu grandissimo dote.
— Cumpri a minha missão, snr. Duarte. Deus
lhe fecunde os seus nobres sentimentos em alegrias
puras e duradouras. Fique-se com Jesus Christo ; e
receba o abraço de Antonio José da Silva, cujas la
grimas ainda me queimam as faces.
Sahiu o padre, e entrou o pae de Duarte.
— Que thesouro é esse que tinhas em teu po
der? — perguntou o capellão.
— Eram os haveres do Silva, que m'os confiou.
— E não me confiaste o segredo a mim?
— Porque fiz juramento de o não confiar a nin
guem.
— E se eu delatasse ao santo officio a existen
cia d'esse dinheiro que virtualmente está confiscado ?
— Fazia a desgraça d'uma familia, a troco de
VOL. II 16
242 O JUDE8
quatrocentos mil reis que tanto valerá o que me
foi confiado.
— Quatrocentos mil reis ! — replicou o delega
do do santo officio — mas tu faHaste ahi no grande
dote da filha do judeu.
— Grande lhe chamei comparativamente á indi
gencia em que ella ficou.
O capellão ficou satisfeito com a resposta expli
cativa.
N'este mesmo dia, Duarte Cottinel, como o re
ceio de perder o roubo, ganhado com tamanha per
versidade, lhe botasse o gume dos remorsos que o
anavalhavam, sahiu da cama, e remexeu todo o dia
00 interior do seu quarto, acondicionando em um
vasto cinturão de couro os objectos contidos no co
fre, que tirou d'um falso por elle aberto debaixo do
catre.
Ao anoitecer sahiu da Bemposta, e recolheu-se
n'uma estalagem contigua ao Terreiro do Paço, onde
desvelou a noite esperando o repontar da manhã.
Assim que os barqueiros sahiram ao caes a encavi-
Ihar os remos nos seus botes, Duarte saltou no mais
proximo do embarcadouro, e mandou remar para o
■Barreiro ; aqui alugou cavalgadura, e seguiu seu
destino.
O capellão, affeito ás longas ausencias do filho,
não se admirou da demora, ao fim de tres dias. No
entanto, o padre Francisco Lopes, cuidadoso da re
ROMANCE HISTORICO 243

commendação do seu pobre padecente, procurou Dio


go de Barros para saber se o thesouro estava em sua
mio. O velho abriu um triste sorriso, e disse :
— Crê vossa reverencia que tal thesouro seja
restituido ?
— Creio, sim! Pois não ouvi eu a honrada e
prompta confissão do possuidor?! Não me disse elle
que antes de hontem, o mais tardar, viria resli-
iuik)?!
— Mas não veio, sor. padre Francisco Lopes!...
— É que se lhe aggravou a enfermidade. Lavou
já d'aqui.. . Roubal-o elle? É impossivel! Um ho
mem de quem Antonio José me disse tão excellen-
tes cousas e com tantos louvores do seu desprendi
mento ! . . .
— Snr. padre Francisco!... — disse Diogo, e
susteve-se. Depois, feita uma pausa reflexiva, conti
nuou : — Não direi por em quanto o que sinto, o
que senti e previ sempre. . . Vá, vá, e volte por aqui
vossa reverencia, se lhe não custar.
O jesuita perguntou por Duarte. Sahiu a fallar-
lhe o capellão, dizendo que seu filho, no mesmo dia
em que elle o procurara, sahira e não apparecêra
mais em casa.
— Então!. . . — exclamou o padre vencendo a
suffocante surpreza — então é certo. . .
— O que? — acudiu o deputado do santo of-
ficio.
244 O JUDEU

— Que se fez um roubo. . .


— Um roubo ?
— De valores de cento e cincoenta mil cruzados
de que seu filho era depositario.
— Quatrocentos mil reis, me dizia elle!. . . —
redarguiu o capellão.
— Cento e cincoenta mil cruzados lhe digo eu,
senhor ! — tornou o jesuita — Seja a quantia qual
for, o ladrão fugiu. Que fuja ! . . . os olhos de Deus
hãode seguil-o. . . a justiça dos homens o alcançará !...
CAPITULO XIV

Lourença Coutinho, quando entrou no carcere,


depois de ter visto o filho ajoelhado para ouvir a
sentença, ia moribunda. Os medicos da santa casa
aconselharam os soccorros espirituaes. Um frade do-
minico foi assentar-se ao lado da enxerga de Lou
rença. A mãe do condemnado que, áquella hora,
sahia do oratorio para a fogueira, ouviu o gemer dos
sinos, que pediam orações por alma dos suppliciados.
Estrebuxou, e conseguiu encostar-se á parede do seu
antro. Fitou em rosto o frade que a chamava á me
ditação das misericordias divinas. Estirou os braços,
rangeu ferozmente os dentes, esbugalhou os olhos
que espirravam o sangue da congestão cerebral, fez
um arremesso contra o filho de S. Domingos, e n'es-
te desesperado esforço, que o frade rebatia com exor
246 o judeu
cismos, arrancou da vida, batendo com a face no pa
vimento.
Fr. João do Souto, que assim era chamado o
confessor dos presos moribundos, contou com pa
vorosos gestos em reunião capitular que vira uma
legião de demonios, quando a judia morrera, tomar-
lhe posse da alma, e que o fedor sulfureo era insup-
portavel no calabouço. Os bons e judiciosos chronis-
tas da ordem dominicana já tinham passado. Se o
facto acontecesse cem annos antes, o leitor havia de
lêl-o com as galas de linguagem do padre Cacegas ou
d'aquelle illustre e degenerado visionario, chamado
Manoel de Sousa Couttinho, que os frades tolheram.
O padre Francisco Lopes e Diogo de Barros di
vulgaram o roubo praticado por Duarte Cottinel. O
conselho supremo do santo officio gemeu, como se
a inquisição fosse a roubada. Os amigos de Antonio
José levaram á comprehensão do inquisidor geral a
intriga tramada por Duarte no intento de roubar o
homem que lhe confiara os seus haveres. Nuno da
Cunha avocou a si o processo, examinou-o, e viu a
crueza da sentença, e a probabilidade da urdidura,
O alcaide, principal testemunha contra o hebreu, con
fessou na tortura que Duarte Cottinel se empenhava
na perdição de Antonio José. O alcaide foi açoutado
pelos algozes do santo officio, e expulso por gran
de misericordia e bons serviços que havia prestado
á santa casa.
ROMANCE HISTORICO 94?
Este providencial successo abria as portas da
inquisição a Leonor, dous mezes depois do assassi
nio de seu marido. Diogo de Barros e Lourencinha
foram esperal-a no pateo da santa casa. A menina já
Bio tinha vaga lembrança de sua mãe. Chorou da
medo d'aquella cadaverica mulher que lhe chamava
filha. Leonor aqueceu as faces mortas nas da sua
formosa creança, que tinha então quatro annos e dous
mezes incompletos.
Cobradas forças em companhia dos Barros, a
viuva de Antonio José, já sabedora do roubo d'aquel*
la amaldiçoada riqueza, pediu ao tio de seu pae que
lhe désse uma esmola para se passar com sua filha
para Amsterdam. Diogo promptificou-lhe sobejos re
cursos para a viagem, e uma regular mesada para
sua sustentação. Quiz elle ainda para lhe augmentar
o peculio haver da inquisição o valor da rica mobi
lia confiscada e vendida em almoeda. O supremo
conselho indeferiu o requerimento, sem embargo da
injusta condemnação do possuidor dos haveres con
fiscados.
Embarcaram Leonor e Lourença.
Em Amsterdam era já notoria a morte de Antó
nio José. Da familia Sá ninguem esperava que a fi
lha de Jorge de Barros volvesse á luz do sol. O ap-
parecimento de uma senhora com uma menina ao
collo em casa dos filhos de Simão de Sá fez estra
nheza. Quando ella disse quem era, ergueu-se um
248 O JDDEU
grande choro em volta das duas infelizes, choro de
compaixão de verem tão avelhada a peregrina Leo
nor, e de alegria por lhe poderem outra vez abrir o
seio carinhoso. Leonor perguntou por Simão. Disse-
ram-lhe que tinha morrido; mas que todos os seus
lhe tinham herdado o coração.
Refloriram ainda algumas graças do bello rosto
da filha de Sára. Tinha vinte e sete annos. As tris
tezas, por mais devoradoras que fossem, não podiam
combater a força reanimadora dos afagos de Louren-
ça. Onde ella assentava os seus labios reviçavam as
fibras amortecidas e requeimadas de lagrimas.
Leonor aos trinta annos dava idéas da belleza
dos dezoito. Poderia ser amada e esposa, se o qui-
zesse ser, d'um rico hebreu tambem viuvo. Respon
deu ella á proposta que não podia senão ser mãe e
educadora de sua filha. Pediu que a deixassem enri-
quecel-a de virtudes e conhecimento antecipado das
desgraças d'esta vida, para ter que lhe deixar, quan
do Deus a levasse.
Correram-lhe, senão felizes, tranquillos os annos.
A maior pena, que ainda lá a salteou, causou-
lh'a um homem que passava, um dia de baixo das
suas janellas, mal entrajado, com amargurado rosto.
Perguntou Leonor :
— Quem será este homem? 1 não sei quem me
parece!...
— E' um portuguez — disse uma senhora —
ROMANCE HISTORICO 249

já lhe ouvi o nome ; mas esqueceu-me. Um dos ma


nos conhece-o de vista, e foi quem me disse o no
me d'elle.
Leonor foi ter com Levi de Sá, e perguntou-lhe
quem era um portuguez muito encorpado com bar
bas grandes, e vestido ordinariamente.
— É um homem que abjurou a religião christã,
e perdeu tudo o que tinha em Portugal.
— Como se chama?
— Francisco Xavier. . .
— D'O1iveira ! — acudiu Leonor.
— Justamente, d'Oliveira. Ha tres annos que an
da por Hollanda, e vive com alguns israelitas que o
favorecem.
— Pois elle está assim necessitado?. . . Oh meu
Deus! não poder eu soccorrer o primeiro amigo do
meu infeliz Antonio 1 . . .
E Leonor recordou-se d'aquelle jovial e gentil
mancebo que vira no adro da igreja de Valhadolid ;
recordou a paixão da sua mocidade, que lhe cresta
ra flores de coração que nunca mais enverdeceram.
Chorava, como nos dias em que o amara, como
n'aquella noite em que elle annunciara no salão de
Diogo de Barros o seu casamento com D. Anna
d'Almeida. Este chorar tinha em si o travor doce das
saudades. Era triste aquelle encontro! Vêr assim
quebrantado e pobre o homem em volta de quem
radiavam todos os prazeres d'este mundo, desde a
280 O JUDEU

riqueza até ao culto das mulheres formosas e dos ho


mens respeitaveis ! . . .
Leonor pediu instantemente a Levi de Sá que fizes
se saber a Francisco Xavier d'Oliveira o muito desejo
que tinha de o vêr a viuva de Antonio José da Silva.
Sahiu Sá em demanda do portuguez, e só no
outro dia pode saber que elle tinha sahido para
Londres.
Aqui vem de molde historiar-se o restante da
vida, muito longa ainda, do cavalheiro d'0liveira.
Em Novembro de 1739, chegou a Vienna d'Aus
tria a nova do supplicio de Antonio José.
Francisco Xavier, ferido no coração de sincero
amigo, rompeu em brados contra a infame barbari
dade dos inquisidores, sem poupar a religião divina
do Christo, que não tinha que vêr com a protervi*
dos seus sacrilegos sacerdotes. Raivou contra o pon
tifice, e não foi mais comedido nos insultos que
vociferou contra o hypocrita e boçal rei D . João v.
O ministro conde de Tarouca mandou-o calar-se, e
respeitar o successor de S. Pedro, e o ungido do
Senhor. Xavier retorquiu asperamente, aceitando sa-
tisfactoriamente a ameaça da demissão da secretaria
rias depois, sobreveio um caso que determinou
o completo rompimento das ligações do secretario
com o ministro.
Andava em Vienna um architecto milanez, cha
mado Ignacio Maure Valmagini, muito da privança do
ROMANCE HISTORICO

embaixador portuguez. Dizia Valmagini que o rei de.


Portugal recompensava os biltres e vadios dos seus
estados com o habito de Christo. O conde de Tarou
ca sabia-o, e dissimulava, não obstante ser um slre-
noo propugnador das honras d'aquella ordem. Fran
cisco Xavier, como ouvisse as costumadas insolen
cias do architecto na presença do ministro propria
mente, ameaçou-o de o atirar pela janella á rua. O
conde sahiu em defeza do seu valido e Francisco Xa
vier separou-se do indigno embaixador e do serviço
de Portugal *.
Em Hollanda, escasso de recursos, deu-se á vi
da de escriptor. O seu primeiro livro, impresso em
1741, eram as Memorias de suas viagens. No mes
mo anno, publicou um volume de Cartas familiares
em Amsterdam, e o segundo das cartas em Haya.
Sobre este livro, em que elle (na carta lvi) atacava
o celibato dos padres, cahiu a fulminante censura do
inquisidor fr. Manoel do Rosario, que taxou de he
1 Na biographia de Francisco Xavier d'01iveira, o snr. Innocencio
Francisco da Silva, diz : « Por motivos que ainda são para mim myste-
riosos, apesar do que se tem dito, largou o cargo de secretario, e passou
para Hollanda em 1740».
0 proprio biographado satisfaz plenamente o snr. Silva, contando-
lhe elle mesmo o successo descripto da desavença com o privado do em
baixador, e ajuntando estas linhas terminantes : « Cest ce milanois qui
fut cause en partie du démélé qui me brouilla avec le plénipoten-
tiaire; démêlé qui m'obligea à me séparer d'avec lui,àquiter le
service de Portugal, et à essuier une infinité de malheurs qui se sont
suivls les um leu autres jusqu'à présent ». Amusement périodique.
T. 8l«, pag. 241.
252 o judeu
retico o livro. Logo em Portugal foram queimados
os livros do cavalheiro d'Oliveira, e defeza a entrada
dos que elle de futuro publicasse. « O roubo que
elles me fizeram, in nomine Domini, e sem minimo
escrupulo, causou-me grande perda 1 » — diz Fran
cisco Xavier.
Fechadas as fronteiras de Portugal aos livros do
herege, as condições vitaes do escriptor peoraram
grandemente. Do seu paiz e até de seus parentes já
nada tinha que haver nem esperar. O santo officio
espiava as migalhas que algum temerario amigo ten
tasse enviar-lhe.
Por 1744, anno em que Leonor o vira pobre
mente vestido, apesar da publicação d'outros livros,
sahiu com sua mulher para Londres no intento de
revalidar com publico instrumento a sua já feita apos
tasia da religião catholica. De feito, abraçou o pro
testantismo; e para logo escreveu rijamente contra
os papas, com o fervor congenial de todos os prose-
lytos assim das boas que das más causas.
O affecto de infancia e de saudade que o pren
dera á vida e á memoria de António José suggeria-
lhe ainda energicos escriptos em favor da raça he-
brea. Em 1740, imprimira elle na Haya uma carta
ao israelita Isaac de Sousa Brito, com a relação dos

1 Ajunta em uma nota: seis mil cruzados pouco mais ou menos,


ou quinhentas libras sterlinas.
ROMANCE HISTORICO 253

privilegios concedidos em Napoles e Sicília á nação


hebrea, traduzidos do original italiano.
Em Londres, estreou-se o cavalheiro com um
livrinho recreativo intitulado Viagem á ilha do amor,
escripta a Philandro.
Escrevia sempre; mas publicava pouquissimos
dos seus escriptos, á mingua de subscriptores. Am-
paravam-n'o as esmolas dos seus correligionarios, en
tre os quaes o fidalgo portuguez curava de esconder
a sua origem e as insignias nobilitantes. Acerca do
habito de Ghristo, dizia elle : « Me trouvant aujour-
d'hui a Londres je n'y fais guères voir mon ordre.
Cette marque rendroit ma pauvreté plus honteuse.
Le peuple anglois aime Vargent, et préfere une riche
roture à une noblesse indigente.
A mesma pagina, vertida para portuguez, faz vêr
quão grande era a tristeza da sua resignação: «Dizem
que os grandes d'este paiz, consideram em muito as
pessoas nobres e benemeritas em pobreza. Gozam
tanto renome de ricos que de bemfeitores. Minha
natural timidez me não deixa avisinhal-os: não tenho
a honra de os conhecer bastantemente. Vivo restrin
gido ao meu quarto: apenas vou fora a visitar um
diminutissimo numero de pessoas honradas que usam
a generosidade de me estimarem e amarem. Dizem-
n'o, e provam-n'o com os favores que me fazem. As
sas sabem elles que a mim nada me faz nem lison-
gea ser fidalgo. . . »
854 o judeu
Que vida tão arrastada ! que paciencia tão ven
cedora de aviltamentos devia de ser a do soberbo, e
todavia generoso coração de Francisco Xavier de Oli
veira I Que demorados e sempre iguaes e amargura
dos annos até que os cabellos lhe branquearam !
Em 1751, já chegado aos cincoenta, creou o seu
periodico mensal, tantas vezes citado n'estes livros.
Durou apenas oito mezes. Não ha numero em que
«lle não advogue a causa, a liberdade dos hebreus.
E, todavia, os perseguidos, que Francisco Xavier
queria resgatar das presas do fanatismo estupido,
não lhe liam o periodico. Faz lastima ouvil-o assim
queixar-se: «Prova de que a ignorancia dos judeus
reina em Inglaterra como em toda a parte, é que eu ape
nas tenho quatro subscriptores d'esta nação: o doutor
Castro Sarmento, o snr. Rebello de Mendonça, o snr.
Abrahão Vianna, e mr. Ratton. Attendendo aos es
forços que eu n'estes escriptos tenho feito para aca
bar a injusta e cruel perseguição que se exercita em
Portugal contra os judeus, não é bastante claro que
elles não conhecem seus interesses, nem a candura
■e boa fé com que eu lhes advogo a causa? Ó tem
pos! ó usanças! Ha cincoenta annos que a minha
obra não precisaria de mais alentos que o favor d'esta
nação em que então abundavam homens assim illus-
trados que generosos ! »
Mais deploravel ainda é este amargurado quei
xar-se, quando a vida já lhe pesa, e ainda os annos
ROMANCE HISTORICO 258
não chegam aos cincoenta : « Minha vida pode e deve
comparar-se a um rosario, cada conta do qual é uma
desgraça. . . Idade avançada, saude achacosa, indi
gencia indigna do meu nascimento; mil dissabores
urdidos pela calumnia, e indifferença d'uns que eu
tfoutro tempo considerei amigos: tudo isto reunido
ao perdimento de patria e bens de fortuna, por isso
que abracei a religião protestante í, me desvaneceu
toda a esperança de ainda vér entreluzir-me alguma
alternativa n'este mundo. . . »
N'outro lanço, diz o escriptor com profundo des
alento :
« Naturalmente amo a vida, confesso. Deveria
desejal-a mui duradoura; mas não, que o mesmo
seria querer premeditadamente prolongar as magoas
de meu espirito e mortificações do corpo. Ainda as
sim, desejos de morte e fraqueza de suicida, tenham-
nos os loucos e os covardes desesperados: assas me
contenta saber que sem desejar a morte, me não te
mo d'ella. . .
«... Que queria eu hoje possuir ? Uma saúde
robusta? Ai! a minha vigorosa saude foi uma das
< Os biographos do cavalheiro de Oliveira opinam desencontrados
sobre o tempo em que elle apostatou da religião christã. Os que a lixam
em 1746 como o snr. Rivara, e Michaud, podem ter acertado; porém,
certo se enganaram os que lhe assignam a data de 1726, asseverada no
Repertoire de bibliographie spéciale de Peignot, citado pelo snr. ln-
nocencio. Do extracto vertido acima, e escripto em 1551, claro se eviden-
ceia que já n'este anno Francisco Xavier de Oliveira tinha abraçado a re
ligião protestante.
256 o judeu
principaes causas dos desvarios da minha vida, e de
certo modo a motora das desgraças presentes »
O desventurado conta com a bemquerença de
cinco amigos; porém tão pouco dadivosos deviam
elles ser, que Francisco Xavier inveja o carvão que
inutilmente arde na deserta sala de um lord, carvão
que lhe chegaria a elle para se aquecer um mez.
« E está sempre a fumegar aquella chaminé, diz elle,
para aquentar um cão, por louca vaidade do dono! *
Pobre cavalheiro d'Oliveira, já o destino dos cães
inglezes te arranca invejas d'aquelle tão opulento e
magnanimo peito !
Já, n'este tempo, a sua segunda esposa teria voa
do a melhor mundo, ou voltaria a pedir um quinhão
de alimento na mesa da sua illustre familia em Vienna
d'Austria? Não o diz elle nem os seus biographos.
Em 1755, escreveu Xavier d'Oliveira alguns fo
lhetos incitando os portuguezes a conjurarem contra
as doutrinas dos bonzos, contra os papas, contra as
superstições sediças do catholicismo. A inquisição
lançou a garra aos escriptos. Processou o author,
condemnou-o como herege, revel convicto e relaxado
â justiça secular. Queimaram-n'o em estatua, ao mes
mo tempo que as carnes do padre Gabriel Malagri-
da se torravam na fogueira visinha, no auto da fé de
20 de Setembro de 1761.
O original da estatua devia de rir-se, lamentan
do que ao clima glacial de Londres, n'aquelle mez,
ROMANCE HISTORICO 257

lhe não chegasse um pouquinho do calor da estatua


açamarrada e encarochada com fogo revolto e danças
macabras de demonios cornigeros e caudatos !
Então, mui de assento e com o riso nos labios,
escreveu elle: O cavalheiro d' Oliveira queimado em
estatua por herege; como e porque ? Anecdotas e re
flexões sobre este assumpto, dadas ao publico por elle
proprio.
Desde que o queimaram até ao dia em que mor
reu interpozeram-se ainda vinte e dous annos.
Escreveu n'esse largo espaço muitos livros, uns
que ficaram impressos, outros manuscriptos, e mui
tos perdidos.
Quando aquelle homem chegou aos oitenta e um
annos como olharia elle para as primaveras sobre as
quaes gearam trinta invernos asperrimos de infortu
nios?
Que reminiscencias lhe iriam ao coração conges
tionado de lagrimas da mulher que a inquisição lhe
estrangulou; da Antonia Clara que o parocho dos
Anjos lhe queria negociar; e da Joanna Victorina,
aquella fatal cigana, de quem elle escrevia como da
mulher que elle mais amára, sem excepção das duas
virtuosas esposas?
Deus lhe perdoaria tantas levezas da alma em
desconto das muitissimas dores de corpo com que o
purificou na decrepidez mais desamparada e cortada
de penurias !
vol. n 17
CONCLUSÃO

Em meado do anno de 1753 desembarcou em


Lisboa d'am navio das Antilhas hespanholas um su
jeito que dizia chamar-se D. Pablo de Burgos, com-
merciante que tinha sido em Porto-Rico.
Figurava cincoenta annos com o vigor dos trin
ta. Às longas barbas, raiadas de branco, desciam-lhe
a meio peito. O olhar ensombrado por densas e lon
gas pestanas afnsilava de sob a convexidade das pal
pebras, como o fitar obliquo e espavorido do scele-
rado que receia ser conhecido apesar dos annos cor
ridos e da boa compostura do disfarce.
O consul hespanhol em Lisboa recebeu da mão
d'este forasteiro carta do governador das Antilhas,
apresentando-lhe D. Pablo de Burgos, que elle en
contrara ricamente estabelecido em Porto-Rico, des
260 O JUDEU
de 1741, e agora, volvidos doze annos, se resolvera
a voltar á Europa, e residir em Portugal, com prefe
rencia ás provincias Vascongadas d'onde era filho.
O consul francez acolheu-o attenciosamente, hos-
pedou-o em sua casa, e fêl-o conhecido dos ricos ne
gociantes francezes que demoravam na capital, os
quaes lhe andaram mostrando as cousas notaveis de
Lisboa, incluindo n'estas o palacio da Bemposta, onde
o hespanhol empregou mais reparos que na capella
de S. Roque e no aqueducto das aguas-livres.
D. Pablo mostrou-se muito agradado da situação
e clima de Lisboa. Achou admiravel a rua do Ale
crim para alli edificar uma casa torreada com vistas
sobre o Tejo. Animaram-no á empreza os amigos, e
o mesmo foi negociar-se a compra do terreno, e ape-
nar os melhores alveneis, sob a direcção do archite-
cto João Pedro Ludovici, para, no mais breve tempo,
levantarem edificio tão magestoso e aformoseado,
quanto setenta a oitenta mil cruzados permittissem.
Divulgou-se a nova em Lisboa, e já D. Pablo de
Burgos não passava despercebido pelos coches dos
magnatas, que fitavam com certa veneração as bar
bas do hespanhol e aquella gentil compostura de ve
lho que indiciava origem illustre, por qualquer mys-
terioso motivo occultada. . ••
D. Pablo sahiu um dia de passeio na sua litei
ra, e mandou guiar para os sitios da Bemposta. Alli
apeou e pediu licença para dar umas voltas no ma
KOMANCE HISTORICO 261

gnifico arvoredo da quinta. Sahiu a recebel-o o al


moxarife, com extremada cortezia ; e, posto que o
visitante o dispensasse, quiz o serviçal individuo
acompanhal-o.
Residia então na Bemposta o infante D. Pedro
que depois foi rei. Os filhos de Pedro n tinham
morrido alguns annos antes. Disse o almoxarife que
tinha entrado na mordomia d'aquella casa em 1740;
e então lhe sahiu de feição contar que o seu ante
cessor, chamado Duarte Cottinel Franco fugira com
um enorme roubo feito á familia do celebre auctor
de comedias, Antonio José da Silva, que a santa in
quisição condemnara ao fogo em 1739.
— Vm.ce hade conhecer de nome este grande
auctor portuguez.
— Não me lembro — respondeu serenamente D.
Pablo.
O almoxarife continuou:
— Fugiu o tal ladrão assim que o padre confes
sor do condemnado se lhe apresentou a pedir-lhe
que passasse o grande caixote de riquezas ao poder
d'um fidalgo, que morreu, ha annos, em companhia
do qual estava uma filhinha do judeu. . .
— Agora me recordo — atalhou o ricaço hes-
panhol — de ter ouvido fallar n'isso. . . Esse tal ju
deu não tinha mulher, ou mãe, ou não sei quem tam
bem presas na inquisição?. . .
— Sim, senhor : tinha mulher e mãe. A mãe mor-
262 O judeu
reu na prisão pouco depois que elle foi queimado,
e a mulher conseguiu livrar-se, porque a justiça sou
be que a cobiça do tal ladrão fora a causa da morte
injustissima do grande poeta. Depois de livre, foi-se
embora, e não sei que feito é d'ella.
— E que fim teve esse Duarte ? — perguntou a
indignada curiosidade do visitante.
— Sabe-o Deus ! Nunca mais se houveram no
ticias d'elle. Eu ainda vi morrer aqui n'esta casa o
pae d'elle, que não era boa rez, e chegara a ser «a-
pellão-mór dos senhores infantes, e deputado do santo
officio. Pois, apesar d'elle ser de má casta, a ladroei
ra do filho buliu tanto com elle que o homem nun
ca mais sahiu de casa com vergonha de apparecer
ao publico. Ainda elle era vivo quando eu entrei;
mas pouco viveu. Ha bons doze annos que o come
a terra. Cousa singular, meu senhor I Aqui, ha seis
annos, andando eu a fazer obras n'um quarto, que
tinha sido do tal ladrão, fui topar com um falso,
onde achei um caixote de pau santo com laçadeiras
de bronze, e duas fechaduras de prata, cousa riquis
sima! A meu vêr aquelle caixote foi o cofre d'onde
o Cottinel levou o roubo. Se vm." o quizer vêr,
tenho muito gosto n'isso. . .
— Não, se me dispensa, que tenho algumas
voltas que dar — respondeu D. Pablo no mais corre
cto castelhano. E despediu-se muito agradecido.
A fabrica do edifício da rua do Alecrim progre
ROMANCE HISTORICO 263

dia espantosamente. A generosa paga duplicava os


braços dos obreiros.
Ludovici aprimorava-se voluptuosamente nas gra
ças da sua obra. Afestoava as columnas e pilares e
grinaldas ; florões e laçarias cabiam das cornijas for»
mando em descendentes ramagens os adornos late»
raes das janellas. A menor peça fazia consonancia á
magestade do portal e espaçoso pateo, circumdado
de arcarias assentes em columnelos de primoroso la
vor. As janellas eram frestas ogivaes que a tempo
deviam ser vestidas de vidros variegados. O telhado
queria-o D. Pablo lageado á volta, com cercadura de
vasos e estatuas do melhor mármore e alabastro.
O architecto incansavelmente expedia ordens a man
dar vir da Italia peças que os seus alveneis e escul-
ptores não sabiam dignamente emmoldurar e arran
car das pedreiras de Mafra. Era alli n'aquelle local
um continuado pasmar das turbas, posto que D.
João v as habituasse ás obras magnificas. A cada
palmo que o edifício se alevantava, Ludovici, o ar»
chitecto ou continuador dos Arcos-das-aguas-livres,
esmerava-se em exceder as maravilhas com que en
feitara a fachada do seu palacete defronte da torre de
S. Roque i.

1 Jacome Ratton presume que em raião d'esta obra se construiu


a muralha de S. Pedro d'Alcântara, com o pretexto de se fazer alli
um passeio o qual se não chegou a realisar ; mas que seria bem útil
pelo ponto de vista que offerece. Ratton escrevia em 1812, e referia-se
a 1764. Recordações, pag. 302.
264 o judeu
E em quanto a prodigiosa casa se andava cons
truindo, D. Pablo de Burgos ora viajava por Fran
ça e Italia, ora se ia a Cintra e ás quintas suburba
nas de Lisboa, onde seus donos o recebiam como a
sujeito que o conde de Oeiras se não dedignava de
convidar para grandes emprezas industriaes, visto
que elle adoptava Portugal como patria e n'ella man
dava fabricar tão grandiosa vivenda.
Em Agosto de 1755 estava concluido o palacio.
As alfaias tinham já vindo do estrangeiro. Vestiu-se o
interno do palacete com magnificencia condigna da
riqueza exterior. Franquearam-se as portas á admi
ração publica. As primeiras damas honraram as al
catifas chinezas de D. Pablo, e miraram-se nos alte
rosos espelhos de Veneza, cosidos a ouro, que pen
diam dos tectos sobre tremós cujo feitio deslumbra
va o aureo esplendor, que vestia os torneados. Va
sos etruscos, imitados nos alabastros napolitanos, dos
angulos das salas captivavam a attenção logo capti-
va de mais ricos adornos. Para que mais encomios
se todo o encarecimento vem curto ? Aquillo era um
encanto d'olhos e um quebrar corações de invejas.
D. Pablo aceitava os agradecimentos de seus hos
pedes com uns ares de modestia, ultima demão que
faltava ao esplendor de tantas maravilhas. Oh! as
damas até as apostolicas barbas lhe achavam encan
tadoras. Concertavam-se todas as probabilidades em
favor dos que presagiavam o breve matrimoniamen
ROMANCE HISTORICO 265

to do hespanhol com alguma das mui fidalgas e es


beltas meninas, cujos paes se honravam de hospedar
o maduro ricaço.
Deliberou D. Pablo offerecer um banquete de
principe aos seus amigos, que já eram numerosissi
mos, em todas as jerarchias, e marcou o dia primei
ro de Novembro nos convites antecipados quinze dias.
Contractou os mais famigerados cozinheiros, vestia
de lemiste os criados que deviam servir á mesa, ti
rou das prateleiras riquissima baixella de prata em
competencia de valor com as mais preciosas louças
do Japão, compradas aos netos empobrecidos dos an
tigos viso-reis da Italia.
Desde o romper d'alva do dia primeiro de No
vembro, uma chusma de criados, uns encarregados
do adorno da longa mesa, outros auxiliares dos in
ventivos cozinheiros, não tinham mãos a medir. Era
um redemoinhar de gente afanosa como em casa dos
immortaes glutões da Roma imperatoria, predecesso
res benemeritos da Roma cardina1icia.
Ás nove horas e meia da manhã, D. Pablo de
Burgos acabava de sahir do leito e apresilhar um
farto gibão de soda, no intento de deitar uma vista
de olhos aos preparativos confiados aos servos e es
cravos. No momento em que transpunha o limiar da
ante-camara, sentiu vibrar-lhe a casa debaixo dos
pés, e logo um soturno estrondo, o tremer convul
so dos moveis, o baquear das estatuas e jarrões de
466 O JUDEU

postos sobre os bofetes, o alto clamor dos criados,


o estridor de louças partidas, o tropel dos servos
que fugiam, e o estampido longo de um como ruir
de paredes. Era o primeiro empuxão do assolador
terramoto d'aquelle dia.
D. Pablo correu desnorteado primeiro contra a
escada para ganhar a rua ; depois, voltou sobre si,
impellido por um demonio que lhe disse : < Olha
que deixas na tua recamara riquezas que vão ser
soterradas, ou roubadas». Entrou na recamara, e
não pode ter-se em pé, resistindo ao impulso de um
alteroso guarda-roupa de pau preto que ao voltar-se
lhe roçou n'um hombro. Levantou-se. Abriu mui
tas gavetas d'um contador, e amontoou n'uma toa
lha promiscuamente saccos de ouro e mãos cheias de
brilhantes.
Ao sahir do quarto, ouviu o gritar afílicto da
visinhança. Chegou a uma janella, e viu, atravez de
cerrada nuvem de poeira, o interior das casas visi-
nhas, aluidas as fronteiras, e os moradores em de
sesperadas evoluções, com os braços estendidos ao
céo sereno e limpido, como em manhã d'Agosto.
Fez pé atraz espavorido, e foi á escada no intento
de a descer. Olha ao fundo do primeiro mainel e vê
um lanço de parede fendida, e os tijolos a despega-
rem-se. A um terceiro tremor mais rijo, foge subin
do para o terraço construido á roda do zimborio.
Apenas relancêa os olhos em volta por sobre o cen
ROMANCE HISTORICO 267

tro da sumptuosa Lisboa, a custo e escassamente lhe


deixa a densa poeira dos edifícios aluidos, descobrir
um acervo de ruinas, e aqui e além multidões de fu
gitivos, uns que serpenteam por entre o entulho bus
cando a margem do Tejo, outros que retrocedem
espavoridos, porque o mar subia levantado em fu
rioso vagalhão alagando a cidade baixa.
D. Pablo, n'aquelle conflicto, raciocinou. Era ho
mem para discutir com a morte até ao fim, se ne
cessario fosse. De si conasigo disse elle que a sua
casa, construida sobre rijos e fundos alicerces, devia
resistir aos solavancos do terramoto mais que as ou
tras meio derrubadas e enfraquecidas pela velhice.
Alentado pela hypothese judiciosa, desceu do terra
ço, e com prudente vagar espreitou o estado das pa
redes. As fendas náo eram assustadoras. Foi descen
do e chamando os criados: ninguem lhe respondeu.
Abriu uma janella do primeiro andar, olhou, e viu
alguns acervos de cadaveres meios enterrados nas
rumas, e algumas afflictas mães, que procuravam os
filhos, em quanto os maridos as empuxavam pelos
cabellos, no proposito de salval-as.
Os abalos, posto que menores, continuavam com
breves intervallos. D. Pablo attentava a orelha: já
não ouvia o estrupido do desmoronamento. A gran
de destruição fez-se em sete minutos. O que ressoa
va formidavelmente era o estridente alarido de mi
lhares de pessoas ás portas dos templos, cujas abo
268 o judeu
badas abateram sobre milhares de devotos, que os
enchiam, ouvindo missas, n'aquelle solemne dia fu
neral de Todos os Santos.
D. Pablo raciocinava ainda. Bem que o solido
edifício estivesse de pé sobre os profundos cimentos,
podia acontecer que ulteriores abalos o derribassem.
Determinou sahir com algumas preciosidades, e se
guir as turbas, que fugiam na direcção de S. Roque
para o alto chamado então as obras do conde de Ta
rouca, e, depois da Cotovia, e mais tarde a Patriar-
chal. Quiz guardar em si a pedraria e ouro amoeda
do que ensaccava ; mas o peso privava-o do movimen-
to^Não tinha criado ou escravo que o ajudasse. Re-
poz os saccos do ouro nas gavetas do toucador, e
metteu ás algibeiras as bocetas avelludadas das pe
dras preciosas, como prevenção para o caso de algum
desastre no edificio, em quanto elle ia providenciar
a mudança da baixella. 7
Fechou o portão e sahiu, caminho de Santo Ama
ro, onde morava o seu particular amigo o embaixa
dor francez. Encontrou-o passado do terror, e cui
dando em fugir com as suas bagagens para o Lumiar.
O hespanhol dispunha-se a acompanhal-o, quan
do correu brado de estar em chammas a cidade bai
xa. Outra nova igualmente aterradora sobreveio áquel-
la. Dizia-se que ferozes joldas de ladrões assaltavam
e roubavam as casas desertas, e matavam os inqui
linos que, no apuro de suas angustias, ainda tinham
ROMANCE HISTORICO 269

de defender as reliquias dos seus haveres. O hespa-


nhol, seih consultar o amigo, correu á rua do Ale
crim, e presenciou logo á entrada a luta a punhal
dos ladrões entre si ou contra os mais aferrados de
fensores das suas minas. Este quadro horrifico era
um escabujar de demonios entre labaredas e fuma-
rada negra: o inferno devia de ser, na phantasia de
seus imaginadores, uma pallida imitação d'aquella
atroz realidade. As poucas janellas dos primeiros an
dares que, para assim dizer, tinham engulido os so
brados superiores, dardejavam linguas de fogo, que
se cruzavam com as das janellas fronteiras. A estrei
ta rua, atravancada de entulho, de madeiras incen
diadas e cadaveres, difficultava o transito. O hespa-
nhol saltou por sobre brasas e entre chammas. Ao
avisinhar-se do seu palacete, viu rolos de fumo ne
gro a romperem das janellas cujos vidros tinham es
talado. Atirou-se afflicto contra o portão, e viu-o
aberto a machado.
— Estou roubado! — exclamou elle.
Galgou ao terceiro andar. Quando subiu ao pri
meiro mainel, viu de relance alguns marinheiros que
se disputavam o espolio das opulentas salas. No se
gundo andar, outra horda de marujos e homens an
drajosos sobraçavam as taças, bandejas, castiçaes, fa
queiros e mais baixella que os criados, tres horas
antes, começavam a dispor na mesa do banquete.
Subiu ao terceiro andaime, por onde lavrava inten-

■'
870 OKJDBU
90 o incêndio, e foi, cegado pelo fumo, até á reca
mara onde tinha os contadores. Arrancou dos saccos
aceleradamente, e correu para uma sala, onde as la
baredas não tinham ainda chegado. Aqui foram crue-
lissimas as ancias do homem, cruelissimo o dilera-
ma: Se sahia ás escadas, os ladrões lançariam mão
d'elle, e nem vida nem ouro lhe deixariam; se fica
va na sala, esperando que os salteadores desalojas
sem, o incendio já se fazia ouvir com o seu horrífi
co estalejar de madeiras e desabar de vigamentos.
Esta segunda ponta do dilemma traspassava-lhe mais
o peito que a outra.
Abriu uma janella e gritou por soccorro.
Quem havia de ouvil-o, se todos gritavam, e os
mais dignos de compaixão, se houvesse alli compa
decidos, seriam os que gritavam entalados nas so
leiras das portas, e esmagados pelas traves fumegan
tes?
A resolução era urgentissima, que já a sala esta
va escura de fumo. Lançou-se ás escadas, desceu até
ao segundo mainel, por entre os ladrões que se es-
ôqueavam na disputada posse d'um jarro de ouro.
A meio da escada do primeiro andar, sentisse agar
rado por tres homens que o seguiam a saltos de ti
gre.
— Deixa vêr o que levas ! — disse um, apon-.
tando-lhe a navalha á garganta — larga, ou reparte
comnosco, patife!
ROMANCE HISTORICO 27 i

— Este é o ricaço! — bradou outro — cá leva


o fardel t Larga, se não morres, castelhano! cio dam-
nado!
D. Pablo reconheceu um dos tres sicarios, pelo
semblante e pela voz ; lançou-lhe o braço livre á volta
do pescoço com brando geito, e disse-lhe ao ouvido
o quer que fosse.
— Tu ! — exclamou o ladrão, com os olhos es
bugalhados — pois és tu ! ... és tu aquelle. . .
O hespanhol sentiu cahir-lhe o coração, quando
viu tão contrario o effeito que elle esperava do se
gredo posto no ouvido d'aquelle homem.
E o salteador proseguiu :
— Ó diabo 1 tu não sabes que eu por tua causa
fui vergalhado na santa casa, que ainda tenho as cos
turas nos lombos ! Não sabes que me prometteste
mundos e fundos se eu jurasse contra o Antonio Jo
sé da Silva, que tu roubaste, alma de Satanaz, e não
repartiste nada commigo! Não sabes, cão, que eu
ando ha dezeseis annos sem ter quem me dé uma
sêde d'agua, porque ninguem me quer dar que fa
zer, e todos sabem que eu jurei falso contra o An
tonio José, e fiz jurar os guardas que todos andam
a pedir ou a roubar?
— Pois eu reparto comvosco, e deixai-me fu
gir. . . Ahi tendes tudo. . . ficai com tudo. . . e não
me mateis!
Duarte Cottinel Franco arremessou aos pés dos
272 O JUDEU

salteadores a toalha em que levava os saccos do ouro,


por saber que os brilhantes escondidos nas algibei
ras excediam o valor dos saccos. Feito o arremesso,
ia fugir; mas o antigo alcaide da inquisição da altura
de tres degraus cahiu-lhe sobre as costas com uma
faca apontada e com tanta força e impeto que mais
não pôde arrancar-lh'a d'entre as costellas retorcidas.
Duarte Cottinel gargarejou um arranco debaixo
dos punhaes que lhe cortaram o segundo na garganta.
Á volta d'aquelle cadaver travou-se uma briga de
peito a peito, um cortar de ferros e resaltar de san
gue que espirrava á face do morto: eram os tres as
sassinos a defenderem o espolio das presas d'uns que
subiam, e d'outros que desciam acossados pelas cham-
mas. Depois, seguiu-se o estampido do travejamento
dos tectos e abobadas que se despenhava por entre
os solidos e alterosos muros. Uns ladrões premiram-
se contra o portão, escoando-se pela brecha que os
machados abriram ; outros, como descobrissem o cin
turão cingindo o cadaver, curavam de arrancar-lh'o
e espedaçal-o a golpes de navalha, quando as lages
do firmamento do pateo lhes esmagaram os craneos
contra os degraus marmoreos da escada. Um d'estes
craneos era o do antigo alcaide do santo officio.

Nas excavações feitas nas ruinas do palacete de


D. Pablo de Burgos, quatro cadaveres se encontra
ram tão proximos que pareciam familia muito entre
ROMANCE HISTORICO 273

amada que n'um abraçado grupo arrancára da vida.


Esta hypothese desvaneceu-a a boa critica ; porque
os mortos, debruçados sobre o cadaver vestido de
lemiste, tresandavam o bafio dos seus andrajos. A
putrefacção permittia ainda examinar as chagas do
pescoço de D. Pablo, que debaixo d'este nome o las
timavam amigos e a boa sociedade de Lisboa. O con
de de Oeiras sentia dolorosamente não ter mandado
arvorar forcas nas ruas, como duas horas depois
mandou para pendurar ladrões onde quer que a jus
tiça os encontrasse. Já se não podia valer á perda de
um homem que tanto promettia ás emprezas indus
triosas de Portugal ! Em compensação, responsariam-
Ihe a alma com magnificos funeraes, pagos com pou
quissimo do muito e rico espolio que os cavadores
desentranharam do entulho. Para a entrega da valio
sa herança, pediram-se informações para Hespanha
e Antilhas. Ninguem sahiu aos reclames como her
deiro de D. Pablo de Burgos. Todavia, se, por um
eventual acaso, se descobrisse que o assassinado
era um Duarte Cottinel Franco, scelerado ladrão,
cujo nome era em Lisboa ainda o proverbio da su
prema perversidade humana, a mim me quer pare
cer que os herdeiros se haviam de acolovellar em
volta d'aquelle cadaver, provando a primazia no grau
do parentesco.

VOL. II 18
EPILOGO

Volvidos vinte annos, o leão de S. Domingos já


recebia resignadamente as ferroadas dos insectos. As
fogueiras do santo officio, como se disse, tinham si
do apagadas, desde 1761, com o sangue do padre
Malagrida. A estatua de Francisco Xavier de Oliveira
foi o ultimo personagem de gesso e papelão que fi
gurou irrisoriamente de par com as agonias d'um
homem queimado em vida.
Alguns hebreus voltaram á patria de seus paes,
não a pedirem os bens confiscados, mas a beijarem
a terra que era a cinza de seus avós.
Em 1775, algumas familias, refugiadas na Hol-
landa, aportavam a Portugal. Entre estas, a mais nu
merosa era a dos Sás, repartida n'outras, que se res
tabeleceram em diversos pontos do paiz.
Um neto de Simão de Sá, com uma senhora se
xagenaria, que era sua sogra, e outra senhora de
quarenta annos, que era sua esposa, e uma roda de
mancebos e meninas que eram seus filhos, foram
procurar os descendentes de Diogo de Barros á rua
da Magdalena. Encontraram uma casa de cinco an
dares no local onde a mais velha d'aquellas senho
ras, D. Leonor Maria de Carvalho, asseverava que
tinha existido um palacete de quinze janellas n'um
andar unico. Pediram informações explicativas ás pes
soas antigas do local. Breves e tristes lhe foram da-

1
276 o judeu
das. A maior parte da familia Barros tinha morrido
nas ruinas da sua casa por occasião do terramoto de
1755. Dous netos de Diogo de Barros que, no dia
da grande desgraça, andavam caçando no Alemtejo
com o duque d'Aveiro, tinham desapparecido em
1757, e era publica voz que o msrquez de Pombal
os fizera morrer nas masmorras da Junqueira.
D. Leonor, lavada em lagrimas, disse á filha :
— Vês, Lourença?... morreu tudo... tudo,
meu Deus ! . . . Porque me conserva n'este mundo a
Divina vontade?
— Para fazer a felicidade de sua filha. . .
— E dos seus netos. . . — ajuntaram duas me
ninas, que se abraçaram na viuva de Antonio José
da Silva.
A divina vontade não a quiz muitos mais annos
conceder ao amor de filha e netos.
Leonor morreu aos sessenta e seis annos, na
terra onde nascera, na Covilhã, local unico em que
o terramoto lhe deixou algumas vivas memorias da
sua infancia.
Lourença ainda vivia no principio d'este seculo.
Os netos de Antonio José da Silva abrem hoje, por
ventura os livros denominados operas do judeu, e
não sabem que são de seu avo, o mais desventurado
e talentoso homem que a religião de S. Domingos
matou em Portugal.
FIM
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