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agulha 

língua 
duro 
lençol 
breu 
picante

Uma das amigas do José ia jantar com a gente. Ele ligou durante a reunião.
Teria problema se ela fosse junto pro Nissei? Se podia buscá-la, se eu
ficaria sozinho com ela no carro sem problemas, já que o endereço dela era
mais próximo do meu serviço, se estava tudo bem por mim. Problema,
problema. Para o José, problema era um visitante que se escondia detrás
das cortinas e que, enquanto ele saísse pra pegar água, mudava os objetos
de lugar e voltava a se esconder em algum lugar do quarto. Quando o José
voltasse, o copo d´água já meio bebido, daria falta de um bloco de notas,
esqueceria que jogou a caneta fora e me ligaria: eu podia procurar na minha
casa por um caderno azul com estampa de limão? 

Desliguei o celular e corri a porta de vidro da sala de reunião. Lancei umas


desculpas pro chefe, um truque com os olhos que aperfeiçoei depois que
comecei a namorar o João, e sentei na cadeira. As rodinhas giraram e tive
que ancorar as mãos no tampo da mesa. O suor nos dedos escorregou o
aperto que assegurei no vidro, o barulho resultante foi um guincho
estridente de derrapagem vergonhosa.

Puxei um pigarro e consertei a gravata. Era uma ligação urgente, disse pro


tampo da mesa. O chefe não emitiu sinal de reconhecimento. 

Às 19h depois de bater o ponto, passei a colônia que levo na mochila pro
trabalho e desci pra garagem. No elevador a senhora de bolsa tricô
comentou sobre um cheiro de pimenta e fiquei orgulhoso. Cheguei no
estacionamento exalando pimenta preta dos meus pontos vitais e, seguindo
as baias amarelas, procurei pela minha vaga de sempre.

A fênix chiou quando girei a ignição. Só mais hoje, vai. Fiz um afago no
console e cantei a musiquinha que eu e João inventamos na subida de uma
ladeira maligna de Salvador. Desde então sempre funcionou. “A fênix tem
que ser acalmada”, João dissera, me passando o saco de Cheetos depois que
achamos uma vaga perto do pelourinho. Canto a música mais uma vez, de
sussurro, e me pergunto se não é gastar a sorte com um jantar que nem
quero ir.
A fênix ronrona antes que eu a convença dos meus motivos. 

Francisca estava ficando num dos apartamentos sem pilotis que perfilam a
L2, os que eu sempre dizia pra minha mãe que eram fáceis de roubar. Ela
sempre me respondia que eu estava sabendo muito sobre roubar e o que se
seguia era um interrogatório acompanhado de uma defesa da minha opinião
e de minha inocência. O José tinha passado o contato da amiga depois que
o chefe me pediu o parecer que estava em atraso. Esqueci que não
conseguiria pegá-la da L2, a não ser que eu engatasse uma terceira, abrisse
a porta e ela pulasse dentro do carona. Fui segurando de me xingar
enquanto dei a volta na quadra comercial e virei na entrada das 400. De
frente pro prédio dela, dei falta do porteiro. Já tinha descido do carro e
procurado a guarita quando lembrei que tinha o contato salvo. Mandei uma
mensagem.

Ela desceu depois de vinte minutos. Bateu no vidro enquanto eu revisava o


parecer com uma caneta vermelha, circulando os erros de digitação do
Eduardo, que infelizmente estava na minha equipe e nada que eu fizesse,
ou falasse pro chefe, mudaria isso. A luz interna da fênix estava ligada.
Não tinha visto direito quem era. Dei um pulo no assento e meu cotovelo
foi na buzina. Desliguei a luz do teto, apertei os olhos. A amiga do José
estava com a mão no pingente do colar, os olhos arregalados e um sorriso
de trégua. 

Estendi o braço e abri a porta. 

“Desculpa”. Ela entrou no carro. Colocou a bolsa nos pés, diante do


assento. “Sou Francisca”.

“Imagina”. Pus os papéis no banco de trás, jogando a caneta também,


depois que percebi o guarda-copos já ocupado com meu celular.

“Você é Mateus. O José me enviou uma foto pelo celular”. Ela falou com
um sotaque carregado que não identifiquei e mergulhou o braço na bolsa
entre os pés. Resgatou um celular batido, de fazer a fênix corar de
vergonha, e me mostrou uma foto de mim mesmo na tela trincada. Óculos
transparente, cabelo na régua e a mesma cara de susto que faço em toda
foto. 

“Sim, sou eu mesmo.” Não sabia mais o que dizer.

“Ainda bem que a luz estava ligada”, ela disse. Levou a mão ao pingente e
corou. “Espero que você me desculpe pelo...” Pensou com os olhos no teto
do carro e depois decidiu: “Bu! Como fala?”

“Susto?”
“Isso, susto”. Mergulhou a mão de novo na bolsa e voltou com um
caderninho. “Tem caneta?”

Virei o corpo para procurar a que tinha jogado no banco traseiro. Liguei a
luz do teto, e voltei com a caneta.

“Obrigada.” Ela abriu o caderninho e anotou alguma coisa. “Susto. É assim


né?”. 

“Não”. Ela tinha escrito com u no final. 

Pedi pelo caderno e anotei a palavra. Quando o devolvi pra ela, depois de
insistir que ficasse com a caneta, ela levou o caderninho e a caneta ao colo,
apertando-os próximo ao pingente, que agora via direito, uma cruz dourada,
e puxou um sorriso até as orelhas. Disse que era o primeiro presente que
ganhava no Brasil.
Depois descobriria que com a Francisca tudo era bem ou mal sua primeira
vez em alguma coisa.

Chegamos ao Nissei a tempo de pegar a mesa que o José reservou pelo


telefone. Sentamos na parte de trás do restaurante, perto da saída para a
varanda e, felizmente dessa vez, estávamos bem distantes do banheiro. Era
o primeiro sushi brasileiro da Francisca, ela anunciou pra mesa. Eu e José
nos olhamos.

Ele pegou a minha mão e a colocou em seu joelho. “Que bom, Francisca. O
sushi brasileiro é sem comparação”.
“O cream cheese brasileiro é sem comparação”, eu disse. Pelo menos a
Francisca riu. 

José soltou minha mão como se a polícia hétero estivesse de ronda entre as
mesas.
A garçonete surgiu antes que a minha boca pudesse emitir alguma resposta.
Fiquei de boca aberta até o meio da frase de apresentação dela, alguma
coisa ensaiada sobre sermos benvindos, a voz aguda, um sorriso que só
enganou a Francisca. O José abriu o cardápio e apontou alguns pratos pra
amiga. Eu percebi que sobrei pra responder a garçonete.
“Boa noite, tudo bem?”
“Sejam bem-vindos ao Nissei, meu nome é Sâmela e sou sua servente por
hoje. Querem participar do rodízio?”
“Sâmela?”
“Isso. Pâmela, só que com s”. Ela retirou um bloco de notas do bolso do
avental. “Três rodízios?” E fez um círculo no ar entre nós com a caneta.
“Sim, três rodízios”, José respondeu. Levantou uma sobrancelha para
minha direção e disse, mais baixo: “Você paga, né, amor?”.
Fiz que sim com a cabeça e mandei um sorriso para Francisca. Depois pedi
uma Coca para a Sâmela.
“Vocês bebem o quê?”, ela disse. Desenhou uma trajetória entre Francisca
e José, clicando a caneta no caminho entre os dois.
“Eu vou esperar o meu namorado me perguntar, obrigado”.
Pegando minha deixa, disse: “E você, amor, o que vai beber?”
“Uma Coca zero”, ele disse, virando o rosto para Sâmela.
Ela me arregalou os olhos em solidariedade e anotou o pedido. Depois,
descreveu uma linha com o queixo na direção de Francisca, o que depois
foi confirmado quando não captei a dica a tempo e José disse: “Você não
vai perguntar o que a Francisca quer beber?”
“Francisca, e você, o que vai beber”? eu disse.
“Ah bom, pensei que fosse esquecer da Francisca”.
Sâmela estava acompanhando com os olhos. No momento, indo e voltando
entre mim e Francisca.
“Uma Sprite, por favor, Mateus”, ela disse. “Obrigada”. Ela estava
brincando com o pingente do colar. Entre os dedos, a cruz dourada ia se
endireitando a cada revolução dos indicadores. Quando larguei os olhos,
ainda estava invertida. “Obrigada a você também, Sâmela”.
“De nada, amores, já volto com as bebidas e as fichas do rodízio.” Ela
rodopiou nos calcanhares como se estivesse de patins e deslizou pra longe.
Acho que a vi fazendo um sinal da cruz.
 

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