Você está na página 1de 20

O CRONOTOPO EM TIRINHAS DO ARMANDINHO: POSICIONAMENTOS

VALORATIVOS SOBRE O COMBATE À COVID-19 NO BRASIL


REVELADOS NA RELAÇÃO TEMPO-ESPAÇO

Pollyanne Bicalho Ribeiro


(Universidade Federal do Ceará - UFC)
(pollyanne.bicalho@gmail.com)

Samya Semião Freitas


(Universidade Federal do Ceará - UFC)
(samyafreitas@gmail.com)

Resumo: Neste artigo, objetiva-se discutir acerca do potencial da noção bakhtiniana de


cronotopo para a análise de enunciados. Para isso, tomamos, como base teórico-
metodológica, pressupostos da Análise Dialógica do Discurso, mais especificamente, as
noções de cronotopo, de enunciado concreto e de apreciação valorativa, considerando
que a fusão entre indicadores espaciais e temporais permite a assimilação do tempo
histórico no enunciado, em um todo coerente, a partir de uma perspectiva axiológica.
Como corpus, optamos pela análise de tirinhas publicadas no perfil do Instagram
@tirinhadearmandinho, em abril de 2020. Mais especificamente, elegemos quatro
enunciados que tematizam acerca de posicionamentos do presidente Bolsonaro sobre
medidas de combate à pandemia da Covid-19 no Brasil. Observamos que os acentos
valorativos representados revelam-se a partir de um tempo e de um lugar histórico, em
relação com o sujeito situado, os quais compõem uma tríade e constroem os enunciados.

Palavras-chave: cronotopo; enunciado concreto; posicionamento valorativo; tirinha de


Armandinho.

Introdução
Sempre que enunciamos, partimos de um tempo e de um lugar histórico, os
quais se fundem e atuam diretamente sobre o processo de produção, de circulação e de
recepção dos discursos, o que insere todo enunciado em um tempoespaço histórico
particular. Nessa direção, pressupõe-se que a relação espaçotemporal exerce uma função
modeladora sobre a constituição dos enunciados, assim como constrói e revela,
cronotopicamente, visões particulares de mundo.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
A partir do enunciado, é possível identificarmos o ponto de articulação entre
a dimensão temporal e espacial, e como essa relação constitui uma unidade. É o
cronotopo que garante a irrepetibilidade do enunciado, ou seja, em uma dimensão
espaço-temporal haverá um único evento. De acordo com a Teoria Dialógica do
Discurso, o enunciado é concreto, ele não pode se dar duas vezes, a irrepetibilidade,
garantida pela cronotopia, é um dos seus aspectos constitutivos. Nesse sentido, em uma
nova temporalidade, mudanças profusas sempre surgem e alteram, inclusive, a forma de
se expressar posicionamentos valorativos, os quais são fundamentais para a constituição
e para a compreensão dos enunciados.
Diante dessa constatação, objetiva-se, neste artigo, discutir acerca do
potencial da noção bakhtiniana de cronotopo para a análise de enunciados, inclusive os
multissemióticos. Para isso, tomamos, de forma articulada, a operacionalização de
algumas noções bakhtinianas que a de enunciado concreto abarca. Dentre elas, a de
cronotopo, a partir da consideração de que a fusão entre indicadores espaciais e
temporais permite a assimilação do tempo histórico em todo enunciado, e constroem um
todo coerente, em torno de uma visão de mundo particular.
Para compor o corpus deste artigo, optamos, por uma questão de recorte,
por quatro enunciados concretos do gênero discursivo tirinha, publicados no perfil do
Instagram @tirinhadearmandinho, em abril de 2020. A escolha do perfil justifica-se por
suas produções serem de grande circulação nas redes sociais, e, inclusive, populares em
atividades escolares. Além disso, é um perfil que sempre trata de questões
contemporâneas e se posiciona ativamente sobre a atuação do governo vigente.
Os enunciados foram selecionados a partir dos seguintes critérios: (1)
tematizar acerca da pandemia da Covid-19 no Brasil; (2) apresentar apreciações
valorativas sobre os direcionamentos propostos pelo, então, presidente Jair Messias
Bolsonaro acerca de medidas de combate ao vírus no país; e (3) seguirem uma ordem
cronológica de publicação, a partir da data de início da pandemia no Brasil, em meados
do mês de março.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
Supomos que seja possível, conforme Alves (2012), a partir do caminho
teórico-metodológico traçado, perscrutar as relações axiológicas, complexas e
tensionadas nas quais estamos imersos e que se manifestam nos enunciados
selecionados, perpassados por relações tempoespaciais.

1 Notas sobre enunciado concreto

Para a análise das tirinhas, utilizaremos as noções de cronotopo, de


apreciação valorativa e de enunciado concreto, elaboradas pelo Círculo de Bakhtin.
Isso porque, numa perspectiva bakhtiniana, o uso da língua se efetiva a partir de
enunciados, unidades reais e concretas da comunicação discursiva, que devem ser
considerados na sua historicidade, para além da dimensão apenas linguística. É
necessário reiterar que não se trata de descartar a análise da materialidade linguística,
reconhecidamente necessária, mas de ultrapassá-la.
Nessa direção, tudo o que enunciamos é um enunciado, o qual está
articulado a uma forma relativamente estável de enunciar, e se materializa por meio da
língua/linguagem, de forma a expressar uma apreciação valorativa, um posicionamento
diante do mundo.
Em um viés dialógico, adota-se uma concepção de linguagem em que a
construção e a produção de sentidos são empreendidas por sujeitos historicamente
situados, e cujos enunciados são acontecimentos definidos por suas condições
contextuais de produção e de recepção, uma vez que
O enunciado vivo, que surgiu de modo consciente num determinado
momento histórico em um meio social determinado, não pode deixar
de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência
socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não
pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. É disto que ele
surge, desse diálogo, como sua continuidade, como uma réplica e não
como ele se relacionasse à parte (BAKHTIN, 2015, p. 49).

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
A palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, também é sempre a
palavra do outro. Para que o enunciador constitua um discurso, ele sempre leva em
conta o discurso de outrem, que está presente no seu, não havendo, portanto, palavra
neutra, pois nossas vozes são sempre perpassadas por outras vozes.
Além desse dialogismo que não se mostra no fio do discurso, há aquele que
se manifesta como uma forma composicional, quando as diferentes vozes são
incorporadas ao seu interior, o discurso bivocal. A respeito dessa constituição interna
bivocal dos enunciados dialógicos, a bivocalidade se manifesta no texto a partir das
múltiplas relações dialógicas promovidas pelo enunciado, o qual é sempre uma reação
ao enunciado alheio (VOLÓCHINOV, 2017).
Nesse sentido, assim como a bivocalidade, a noção de responsividade
também representa um conceito importante nos estudos da linguagem do Círculo de
Bakhtin, uma vez que denota que o acontecimento da vida do texto só é possível na
fronteira entre dois sujeitos, duas consciências. Nas palavras do próprio Bakhtin, “ Cada
enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um
determinado campo [...]: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta” (BAKHTIN, 2011, p. 297).
Para Bakhtin, a compreensão responsiva tem o papel de promover o
movimento dialógico entre os enunciados, e no interior destes, de forma que há um
contínuo entrecruzamento de vozes entre passado e presente, o qual está também aberto
a enunciados futuros. Dessa forma, o enunciado seria definido nas fronteiras das
atitudes responsivas dos interlocutores, sendo produzido apenas após uma espécie de
acabamento – mesmo que mínimo –, que ocorre quando o enunciador encerra seu
discurso, o que possibilita a alternância e suscita a responsividade. Nessa perspectiva, o
movimento de aproximação e de afastamento entre os enunciados no tempo e no espaço
é possibilitado pelas relações dialógicas existentes entre eles, sendo que uma dessas
relações é permitida justamente pela compreensão responsiva.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
Fortemente atrelada à responsividade, está a noção de endereçamento. Isso
porque todo enunciado é dirigido a um interlocutor, ou seja, a um destinatário
específico, responsável direto pela construção de sentidos, haja vista que preenche os
espaços deixados pelo texto para a interação, ou seja, para as respostas ao texto e suas
relações dialógicas. Em Volóchinov (2017, p. 205), destaca-se a importância da
orientação da palavra ao interlocutor, haja vista que “em sua essência, a palavra é um
ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele
para quem se dirige.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205).
Percebe-se que tanto a bivocalidade quanto a responsividade e o
endereçamento remetem ao inacabamento das trocas verbais. Esse processo dialógico
contínuo revela a dialogicidade dos próprios pressupostos bakhtinianos, assim como a
questão de que diversos aspectos da teoria continuam em aberto.
Todo enunciado também pressupõe a autoria de um sujeito situado,
temporalmente e espacialmente, o qual assume uma posição que dá forma ao enunciado,
ou seja, materializa uma relação axiológica. Esse posicionamento valorativo – que
nunca é homogêneo e uniforme, mas agrega coordenadas múltiplas e heterogêneas – é
que mobiliza o autor-criador a constituir o objeto. O cronotopo, como veremos na seção
seguinte, é imprescindível para que haja diálogo, no sentido bakhtiniano, o vir a ser no
ato, sem qualquer demarcação prévia, repercussão de trocas em um continuum de elos
na cadeia comunicativa.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que todo enunciado é, antes de tudo,
uma posição axiológica. A orientação valorativa determina, inclusive, a escolha e a
ordem de todos os elementos que possibilitam a formação do sentido (VOLOCHINOV,
2017). Assim, a apreciação valorativa é o elemento preponderante na configuração de
uma prática de linguagem, pois corresponde à posição de mundo representada no texto,
a partir de discursos sociais que o configuram como arena discursiva. Dessa forma, não
existe enunciado sem valoração, sem entonação, e “ela determinará a escolha e a ordem
de todos os principais elementos significantes do enunciado” (VOLOCHINOV, 2017, p.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
236). Mesmo em enunciados com sentido mais amplo, é possível identificar a formação
do horizonte valorativo de um grupo social. Tal valoração sempre estará ancorada em
uma dimensão espaçotemporal específica (contexto imediato), embora também sofra
interferência dos conhecimentos cunhados nas trocas verbais de um modo geral
(contexto mediato). Vale ressaltar que, para Bakhtin, os contrastes entre “‘dado’ e
‘postulado’ (dan com zadan) e entre ‘dado’ e ‘criado’ (dan e sozdan) são
essencialmente temporais. O que é dado já está ‘pronto’ (uzhe gotov), ou seja,
determinado inteiramente por eventos prévios e leis globais. A criatividade começa
onde cessam as leis” (MORSON, 2015, p. 120). A autoria, por conseguinte, advém da
criatividade, ela pode ser traduzida como o ato de se tornar irrepetível diante do
repetível.
Reiteramos que, sob a perspectiva dialógica, os elementos acima dispostos
estão em interação e não podem ser tomados de forma independente, mas estão
imbricados, embora não se confundam; como também entram em ação para configurar o
enunciado, compondo uma rede de relações.
Sobre a contemplação da dimensão multissemiótica, Bakhtin propunha o
entendimento da composição dos enunciados, do texto, em sentido amplo, a partir dos
processos de combinação de uma diversidade de formas verbais e não verbais, pois, “se
entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a
ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) opera com
textos (obras de arte)” (BAKHTIN, 2011, p. 307), o que, reiteramos, leva-nos a
compreender que as relações dialógicas não estão restritas à dimensão da linguagem
verbal.

2 O cronotopo bakhtiniano

No ensaio intitulado “Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios


de poética histórica” (1937-1938), Bakhtin desenvolve as primeiras ideias sobre a

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
relação tempoespacial e utiliza o termo cronotopo (do grego, crónos – tempo – e tópos
– espaço) para se referir à construção de um mundo ficcional particular.
Esse conceito, oriundo da matemática e da teoria da relatividade, é
empregado por Bakhtin no âmbito estrito do texto literário, tendo o romance como o
campo de investigação das análises cronotópicas, com o intuito de referir-se “à
interligação essencial das relações de espaço e tempo como foram artisticamente
assimiladas na literatura” (BAKHTIN, 2018, p. 11), mas sendo possível estender o
conceito também para outras manifestações de linguagem.
O pensador russo destacou a relevância dos aspectos cronotópicos para uma
análise das obras literárias, a partir da percepção das diversas representações
tempoespaciais nos textos artísticos. Para o autor, o tempo e o espaço se condensam e se
materializam, confluem, “[...] ocorre a fusão dos indícios do espaço e do tempo num
todo apreendido e concreto.” (BAKHTIN, 2018, p. 211, grifo nosso).
Tomando o tempo como fio condutor, Bakhtin (2011, p. 245) entende que é
possível ler o curso do tempo em tudo, desde a natureza até ideias, regras e conceitos
abstratos (BAKHTIN, 2011). Assim, em uma relação tempoespacial, evidenciam-se
relações axiológicas, complexas e tensionadas, nas quais o sujeito está imerso (ALVES,
2012).
Numa visão cronotópica, o tempo é tido como a quarta dimensão do espaço 1
e é valorizado como uma manifestação aberta. Assim como na teoria da relatividade, o
tempo é tido por Bakhtin como simultaneidades, o que permite a coexistência de uma
pluralidade de culturas e de visões do mundo (MACHADO, 1998; 2010).
Em Bakhtin (2011), na natureza, temos a revelação do tempo cíclico, com as
estações do ano e, em períodos mais longos, o envelhecimento das pessoas e o
crescimento das árvores como sinais visíveis desse tempo. Já no tempo histórico, os
indícios visíveis são mais complexos, são vestígios da criação humana, fruto de suas

1 As outras dimensões seriam altura, profundidade e largura.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
mãos e de sua inteligência. Não é possível desconsiderar os sujeitos que vivem nesses
tempos, que atuam sobre o mundo e revelam valorações sobre ele.
Nesse sentido, só é possível considerar o homem no tempo. Vale destacar
que, para Bakhtin, o cronotopo é antropocêntrico, ou seja, o homem e as relações
humanas ocupam o centro da relação espaço-tenporal. O sujeito é histórico, situado
temporal e espacialmente, e é responsável pela assimilação e pela unificação dos
elementos de tempo e de espaço, os quais constituem e são constituídos pelos sujeitos.
Além disso, conforme o próprio autor, “o homem concreto [é tido] como centro
irradiador dos valores do universo.” (BAKHTIN, 2018, p.251).
O cronotopo é tomado, para Bakhtin, como o ponto de partida para a análise
de todo enunciado concreto, pois “A linguagem é essencialmente cronotópica”
(BAKHTIN, 2018, p. 227) e “(…) qualquer entrada no campo dos sentidos só se
concretiza pela porta dos cronotopos.” (BAKHTIN, 2018, p.236). Essa constatação
refere-se ao fato de que os aspectos extralinguísticos são também constitutivos dos
enunciados, haja vista que as relações dialógicas se estabelecem também com o seu
cronotopo. Ou seja, os enunciados não estão alheios às dimensões de tempo e de espaço,
mas a interação verbal ocorre entre sujeitos sócio-historicamente definidos.
Embora essa discussão revele a presença do cronotopo para além do mundo
ficcional, uma análise cronotópica foi apenas recentemente proposta como ferramenta
conceitual que abarca diversos campos das Ciências Humanas. No Brasil, a teoria do
cronotopo tem tido ainda pouca repercussão, permanecendo secundária nos estudos
literários e escassa nos estudos da linguagem, mas já incipiente em pesquisas em
Linguística Aplicada.
Consideramos, entretanto, que esse menosprezo à teoria nos estudos da
linguagem é equivocado, pois, conforme Holquist (2015, p.50), “os cronotopos têm seu
habitat natural – e único – na linguagem”, embora, por uma exigência cotidiana, essa
abstração tempoespacial seja domesticada quando se dispõe no discurso. Assim, é
possível afirmar que a linguagem reforça a imprescindibilidade do cronotopo para a sua

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
constituição, pois o tempo e o espaço estão na linguagem, assim como a linguagem se
inscreve num tempo e num lugar específico, possibilitando o nosso diálogo com o
mundo a partir do nosso lugar único nele (HOLQUIST, 2015).
Essa constatação nos remete que, para Bakhtin, a linguagem é permeada de
energia cronotópica. Sobre essa questão, há duas forças que atuam sobre as línguas, as
forças centrífugas – que aspiram à abertura, à diversidade e à heterogeneidade – e as
forças centrípetas – que buscam o monologismo, a unidade e o fechamento (FIORIN,
2019), mas que são igualmente essenciais para a vida da linguagem, pois subordinam as
forças centrífugas às regras da língua.
Nesse viés, Landin (2015) defende, inicialmente, que, em contextos de
produção não literários, há uma tendência mais acentuada ao apagamento das
implicações cronotópicas pelas forças centrípetas, pois a linguagem cotidiana exige uma
maior adequação; enquanto a linguagem literária tende a uma maior centrifugacidade,
que é capaz de nutri-la. Contudo, a autora chega à conclusão de que os cronotopos
“surgem a partir do papel da linguagem na mediação da relação entre subjetividade e
intersubjetividade, na transformação recíproca da percepção individual, idiossincrática
em relatos comunicáveis do mundo, e de termos partilhados, mas abstratosa” (LANDIN,
2015, p. 173).
Esse posicionamento nos leva a argumentar que a mudança cronotópica
partiria, portanto, de variações no aspecto axiológico, modelado pelas relações
dialógicas, já que “[...] toda a linguagem é um ponto de vista, uma perspectiva sócio-
ideológica dos grupos sociais reais e dos seus representantes
personificados”(BAKHTIN, 2014, p.201). Assim, o tempo-espaço está inexoravelmente
relacionado à percepção, pois o sujeito constrói o mundo e é construído pelo mundo
cronotopicamente. “O ´Eu´ marca o ponto entre o ´agora´e o ´depois´, bem como entre
´aqui´e ´lá`” (HOLQUIST, 2015, p.51), o sujeito, portanto, constitui-se pela unicidade
da experiência ancorada pelas coordenadas de um dado tempo e espaço específicos. A
irrepetibilidade na prática discursiva advém justamente da impossibilidade de termos o

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
mesmo cenário instaurado pela tríade sujeito, tempo e espaço. A essa dinamicidade,
deve-se o fato de instaurarmos o diálogo com o mundo a partir do “meu” único lugar,
valorando-o, tingindo-o com o material simbólico do qual disponho no meu acervo
representacional.
Trazendo essa discussão para os textos em seus diversos gêneros e, mais
especificamente, para a configuração dos textos na contemporaneidade, nota-se, por
exemplo, como os aspectos tempoespaciais têm gerado mudanças profusas nas práticas
sociais, fruto de transformações humanas, que nos possibilitam ver, na (re)criação e na
modificação do espaço público e do espaço privado, novas formas de enunciar, a partir
do caráter modelador do cronotopo, o qual permite, cada vez mais, diversificar e
engendrar múltiplos elementos semióticos nas construções discursivas, em prol de
necessidades específicas, ou seja, a partir de uma visão de humanidade contemporânea.
Isso porque o enunciado resulta de uma perspectiva axiológica, que materializa escolhas
composicionais e de linguagem.
Conforme Machado (2010), o cronotopo “se firmou como categoria que
define não apenas o continuum espaço-tempo, mas a semiose de diferentes sistemas de
signos que enfrentam a difícil tarefa de representar a continuidade da experiência por
meio de signos discretos da cultura” (MACHADO, 2010, p. 06).
É preciso acentuar, ainda, que a atualidade, se tomada fora da sua relação
com o passado e com o futuro, perde a sua unidade (BAKHTIN, 2018). Nesse sentido,
os textos não se alimentam apenas do momento presente, embora os sujeitos estejam
ancorados no aqui-agora, mas também do grande tempo das culturas e das civilizações.
Tanto o antes quanto o depois são reivindicados no acontecimento discursivo,
compondo a concretude e a unicidade do enunciado.
O teórico russo faz menção também a dois tipos de cronotopo, os
cronotopos grandes, “fundamentais, que englobam tudo” e os pequenos cronotopos, os
quais podem surgir ilimitadamente dentro dos cronotopos maiores (BAKHTIN, 2014,
p.357). Os cronotopos maiores, ou genéricos, definem a visão de mundo de um texto; e

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
os cronotopos menores, específicos ou motívicos, representam visões particulares de
mundo, e facilitam a assimilação da realidade atual, a qual se incorpora à produção
enunciativa (BEMONG; BORGHART, 2015). Os cronotopos específicos permitem um
congelamento do evento.
O cronotopo de um texto/enunciado muda toda vez que é (re)colocado em
uma determinada prática comunicativa. Na interação, sempre haverá a reconstituição
dos sujeitos (eventicidade do sujeito) a partir dos horizontes interpostos pela relação
cronotópica. Cada sujeito terá uma orientação espaçotemporal consubstanciada no
enunciado concreto, ainda que, é claro, mobilize o feixe de parâmetros simbólicos
engendrados socialmente, visto que “todas as palavras exalam uma profissão, um
gênero, uma corrente, um partido, uma determinada obra, uma determinada pessoa, uma
geração, uma idade, um dia e uma hora” (BAKHTIN, 2015, p. 69).
A partir da perspectiva de que o tempo e o lugar históricos correspondem a
uma dimensão da constituição do enunciado/texto, pode-se afirmar que os textos são
cronotopicamente situados, e que todo texto/enunciado seria uma representação
cronotópica (MACHADO, 1996). Isto posto, não há como prescindir da temporalidade
humana quando promovemos a análise de um determinado enunciado concreto. Para
empreender a Análise Dialógica do Discurso (ADD), é preciso partir da premissa de que
a presenticidade evoca o antes e o depois no acontecimento discursivo, essas dimensões
são reivindicadas e (re)constituídas pelo curso da interação, e compõem, pois, a
concretude e a singularidade do ato verbal.
Partindo desses pressupostos, analisaremos, a seguir, o corpus selecionado,
à luz das discussões teóricas promovidas até aqui.

3 O cronotopo nas tirinhas de Armandinho

Neste artigo, elegemos, como material de análise, enunciados concretos do


gênero discursivo tirinha, tradicional gênero multiletrado impresso (ROJO, 2019), que,

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
como todo tipo relativamente estável de enunciado, exige uma reflexão acerca do papel
do tempo e do lugar históricos sobre a sua produção e sobre a sua circulação.
Optamos por quatro tirinhas do cartunista e ilustrador Alexandre Beck, o
qual promove, através do seu trabalho com o perspicaz personagem do menino
Armandinho – sempre curioso, inquieto e questionador –, reflexões e questionamentos
acerca de assuntos cotidianos, existenciais e políticos, como educação, família,
preconceito racial, preservação do meio ambiente, democracia e liberdade de expressão.
Apesar de ser um personagem infantil, o conteúdo das produções não costuma seguir a
linha da ingenuidade, mas a da lucidez pueril, capaz de propor, por meio da seleção
pontual de elementos verbo-visuais, direcionamentos lógicos para problemas
contemporâneos complexos.
O trabalho de Beck é veiculado através de uma fanpage no Facebook,
intitulada Armandinho, e, mais recentemente, no Instagram, através do perfil
@tirinhadearmandinho, administrado por fãs, o qual possui, até a data de submissão
deste artigo, cerca de mais de 275 mil seguidores.
O corpus escolhido tem como referência temporal o cenário de pandemia da
Covid-19 no Brasil, que se intensificou a partir de meados do mês de março de 2020,
data em que se iniciou, por uma orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS), a
aplicação de uma série de medidas de combate e de prevenção à doença pelo mundo,
como o isolamento social.
A relação tempoespacial dos enunciados selecionados parte, mais
especificamente, do campo político-social, sobretudo, a partir de declarações do, então,
presidente Jair Messias Bolsonaro sobre a Covid-19, as quais revelam aspectos
axiológicos, no mínimo, questionáveis para um chefe de estado que enfrenta uma
situação de emergência sanitária mundial.
Como as esferas de circulação são historicamente situadas, Armandinho, ao
tematizar, em uma conversa com o pai, sobre o discurso do presidente acerca das
questões da pandemia, traz à tona que a esfera política, antes estritamente relacionada

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
com a esfera pública, agora faz parte também do âmbito privado. Essa atitude
responsiva torna possível que a personagem, representante do cidadão brasileiro,
discuta, cotidianamente, sobre questões políticas, revelando um posicionamento diante
da polarização política que se enfrenta no país. Isto é, depreende-se da tirinha em
questão que as fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada não se apresentam
mais de forma tão clara e passam a confundir-se, o que facilita a popularização de
questões políticas em âmbito privado.
Os textos aqui analisados partem de uma rede de relações dialógicas,
valorativas entre autor, leitores e referente. O locutor organiza o seu discurso a partir de
um tempo e de um espaço específicos, e se dirige a um interlocutor também situado
cronotopicamente, haja vista que todo enunciado é dirigido a um destinatário específico,
responsável direto pela construção de sentidos, haja vista que preenche os espaços
deixados pelo enunciado/texto para a interação, para as respostas ao enunciado/texto e
suas relações dialógicas.
Nos enunciados aqui selecionados, o autor parte de uma posição enunciativa
– e discursiva – que se revela e se concretiza no texto, numa arena discursiva com
outras vozes/outros discursos. Observe a figura 1.

Figura 1. Publicada no dia 07 de abril de 2020.

Fonte: Instagram (2020)

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
Na tirinha publicada no dia 07 de abril de 2020, retoma-se enunciados do
presidente em que ele demonstra uma preocupação maior com a economia do que com a
saúde da população. Esses enunciados interligam-se como elos na cadeia discursiva.
Nesse enunciado concreto, há uma entonação de indignação com a posição assumida
pelo presente. Ressalta-se, ainda, a presença de vozes de grupos marginalizados, como o
dos negros e o dos índios, que também já foram alvos de comentários consternadores
por parte do presidente. O discurso de Armandinho se constitui a partir de uma rede
dialógica com outros enunciados, de grupos sociais diversos. Na tirinha, a dimensão
extraverbal é primordial para a construção dos efeitos de sentido, sendo preciso
estabelecer uma relação de diálogo com o enunciado, com os destinatários, com outros
discursos e com o cronotopo de produção, que retoma também cronotopos anteriores.
Após essa publicação, com o avanço da doença no país, as referências
diretas ao discurso do presidente tornaram-se comuns nas produções de Beck. Nas
tirinhas, passa-se a expressar de forma bem incisiva um horizonte valorativo de
oposição ao revelado pelo presidente, o qual não vinha cumprindo medidas de proteção
básicas, como o uso de máscaras e o distanciamento social. Essa posição de autoria
revela-se cronotopicamente e manifesta-se sempre a partir de novas configurações de
elementos verbo-visuais, uma vez que escolhas implicam apreciações valorativas.
Os indícios da construção espaçotemporal da pandemia de Covid-19 no
Brasil colaboram para refletirmos sobre tomadas de posicionamento frente a cadeia de
enunciados formulados acerca da mesma temática. Podemos observar como o mundo,
sob o olhar de Armandinho, adquire um novo sentido, uma nova realidade, reconfigura-
se. Através de elementos verbo-visuais, identificamos o diálogo instaurado pela cadeia
de enunciados, aqui, particularmente, a resposta dada em oposição ao enunciado do
Bolsonaro. Responsivamente, como leitores, a partir de um novo enquadre cronotópico
(responsividade), também reagimos à tirinha, texto/enunciado, e elaboramos um novo
elo na cadeia estabelecida.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
Observe que, nas tirinhas 2, 3 e 4, expostas a seguir, os efeitos de sentido
decorrem, claramente, de uma tensão de vozes, a partir da relação com o discurso de
outrem (heterodiscurso), constitutivo do próprio discurso, o qual é retomado por
elementos linguísticos, como o pronome ele, pelo uso do verbo na terceira pessoa e pelo
uso de aspas em citações diretas do discurso alheio, como também por elementos
visuais, como o desenho da máscara de proteção, que passa a ser adotada pela
personagem.
Figura 2. Publicada no dia 10 de abril de 2020.

Fonte: Instagram (2020)

Figura 03 - Publicada em 11 de abril de 2020.

Fonte: Instagram (2020)

Figura 04. Publicada no dia 28 de abril de 2020.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
Fonte: Instagram (2020)

Nas tirinhas dos dias 10, 11 e 28 de abril de 2020, há uma referência direta
às declarações de Bolsonaro que questionam a relevância do isolamento horizontal2 e,
inclusive, a real gravidade da doença. Essa dialogicidade interna bivocal só é recuperada
porque há uma situação extraverbal compartilhada pelos interlocutores, assim como
uma carga de valores que inserem o texto numa posição diante do mundo, atravessada
pela dimensão tempoespacial.
É possível notar a presença de vozes que revelam posições valorativas
divergentes. Ao apoiar-se no discurso do outro, através de uma atitude responsiva, na
tirinha, assume-se um horizonte social marcado por apreciações contrárias às do
referente. Ressalta-se que as axiologias são diversas, construídas na dinâmica
tempoespacial, e são compartilhadas por diferentes grupos sociais que participam da
rede discursiva, e que constroem uma posição axiológica cronotopicamente situada.
Os posicionamentos valorativos representados são constituídos a partir de
um tempo histórico e de um lugar de fala específicos, os quais se fundem, construindo o
enunciado e se revelando cronotopicamente. A dimensão cronotópica atua, então,
diretamente sobre a responsividade dos enunciados/textos, uma vez que os sujeitos,
historicamente situados, atuam responsivamente e de maneira ativa, de forma a
recuperar e a estabelecer as relações dialógicas instauradas, sendo o enunciado o elo
entre essas relações.

2 No isolamento horizontal, o isolamento é estendido a todos, sem distinção de grupos prioritários.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
É válido destacar, também, que essas tirinhas foram produzidas,
inicialmente, para circular na internet, ambiente que aciona o seu próprio cronotopo.
Embora os ambientes virtuais sejam uma arena de embates discursivos, as
programações algorítmicas cada vez mais refinadas têm possibilitado a proliferação de
bolhas virtuais, permitindo a disseminação de percepções cada vez mais específicas, o
que contribui para o fortalecimento de determinadas ideologias entre grupos específicos.
Neste artigo, o grande tempo da pandemia é ilustrado pelos posicionamentos
axiológicos expressos nas tirinhas. Nessa direção, há um cronotopo maior, englobador,
o cronotopo da Covid-19 no Brasil, mas há também cronotopos menores, que se
relacionam ao maior e entre si. Cada tirinha constitui um novo cronotopo, e retoma
outros cronotopos. Esses cronotopos menores, específicos, podem se organizar a partir
de posicionamentos valorativos bem distintos. Há, por exemplo, o cronotopo do locutor,
o de enunciados anteriores, e o dos interlocutores que, a cada contato com o enunciado,
acionam novos cronotopos.
Sobre essa relação entre diferentes cronotopos, observa-se que, nos
enunciados analisados, o cronotopo da Covid-19 coexiste juntamente ao cronotopo de
extrema polarização política no Brasil. Nele há a participação ativa dos sujeitos em
embates políticos e sociais. Os enunciados analisados são um exemplo dessa tensão,
pois constrói-se, discursivamente, um posicionamento valorativo em oposição ao
exposto pelo presidente. Reitera-se que esses enunciados se reverberam e estabelecem
também relações com novos enunciados. Os interlocutores podem, por exemplo, se
manifestar nas redes sociais em que esses enunciados circulam (através de curtidas,
compartilhamentos e comentários) de forma favorável ou não a eles, mas sempre
situados cronotopicamente.
A partir da análise empreendida, nota-se que os textos/enunciados retomam
sujeitos, os quais se constituem por meio da linguagem e também compõem o
enunciado, pois são sujeitos situados no tempo e no espaço. Em uma relação dialógica,
o outro baliza as escolhas discursivas, ou seja, influencia a operação axiológica na

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
construção do todo, a qual também se apoia diretamente sobre as dimensões
tempoespaciais.
Destaca-se, ainda, que o grande tempo da pandemia de Covid-19 evidencia-
se como espaço, o qual, paradoxalmente, é sempre acontecimento em constante
mudança, não compreende um fundo imóvel, embora tenhamos avaliado um
congelamento dos eventos aqui tomados como corpus, ou seja, a análise empreendida
também foi tomada cronotopicamente.

Considerações finais
Com o objetivo de analisar o potencial do cronotopo como ferramenta
conceitual para a análise de enunciados/textos (multissemióticos), elegemos quatro
enunciados concretos do perfil tirinhas do Armandinho. Ao tomarmos a teoria dialógica
como referencial teórico-metodológico, foi possível perscrutar possibilidades de
significação, estabelecendo relações dialógicas entre as apreciações valorativas e as
dimensões tempoespaciais dos enunciados analisados.
No corpus investigado, é nítida a influência do cronotopo sobre a
construção discursiva. Nota-se que, em um mesmo enunciado, é possível recuperar, e
até mesmo validar (ou não) a representação de diferentes posicionamentos valorativos, e
diferentes cronotopos, a partir de uma rede dialógica, ancorados em um tempo histórico
e em um lugar social, os quais se fundem e se revelam cronotopicamente no enunciado,
construindo-o.
No que concerne à análise aqui empreendida, os enunciados só puderam ser
elaborados a partir de uma posição cronotópica específica, irrepetível, que modela os
enunciados, mas que se relaciona com cronotopos anteriores e com cronotopos futuros.
É possível, inclusive, a existência de diferentes cronotopos em um mesmo enunciado,
assim como os interlocutores acionam sempre novos cronotopos.
Os enunciados analisados não se sustentam fora dos seus contextos, de suas
situações de produção e de circulação, das dimensões de tempo e de espaço, das

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
relações que estabelecem com os discursos e os com sujeitos sociais. Toma-se, pois, a
relação tempoespacial como essencial para o entendimento de aspectos relacionados à
singularidade dos enunciados/textos, dentre os quais, a construção da apreciação
valorativa, a qual é determinante da enunciação e atua diretamente sobre a circulação
dos diversos discursos.
A análise cronotópica das tirinhas de Armandinho, à luz da teoria
bakhtiniana, é reveladora do quanto a relação tempo e espaço está relacionada aos
modos de percepção eu-outro(s), aos aspectos valorativos concernentes ao tema. O
tempo e o espaço são também uma construção das percepções humanas, do imaginário
do indivíduo e da coletividade. Nas trocas simbólicas, haverá filiações (parciais ou
totais), nossos juízos de valores serão atualizados, balizados, pelo nosso engajamento
nas práticas sociais em uma dada condição espaço-temporal.
A sugestão de análise das tirinhas de Armandinho, sem qualquer pretensão
de esgotamento nesse artigo, é argumento em favor de se empreender estudos sobre o
cronotopo. Acreditamos ter sido possível evidenciar a pertinência de demonstrar, por
meio do estudo da relação tempo e espaço presente nessas tirinhas, o quanto a
cronotopia importa para a compreensão da produção de sentido e, em última instância,
para o funcionamento discursivo.

Referências

ALVES, M. da P. C. O cronotopo da sala de aula e os gêneros discursivos. 2012.


Disponível em https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/19172/13254. Acesso em 11
nov 2019.

BAKHTIN, M.M. (1950). Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do russo


Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M.M.Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e


glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim
Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. 256p.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.
BAKHTIN, M.M. Teorias do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Trad.
Paulo Bezerra. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

BEMONG, N; BORGHART, P. A teoria bakhtiniana do cronotopo literário: reflexões,


aplicações, perspectivas. In.: Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações,
perspectivas. Tradução de Oziris Borges Filho, et al. São Paulo: Parábola Editorial,
2015. p. 16-32.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2019.

HOLQUIST, M. A fuga do cronotopo. In.: Bakhtin e o cronotopo: reflexões,


aplicações, perspectivas. Tradução de Oziris Borges Filho, et al. São Paulo: Parábola
Editorial, 2015. p. 34-51.

LANDIN, J. “Não era a Morte”: a carreira poética do cronotopo. In.: Bakhtin e o


cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. Tradução de Oziris Borges Filho, et al.
São Paulo: Parábola Editorial, 2015. p. 165-194.
MACHADO, I. Texto como enunciação: A abordagem de Mikael Bakhtin. Língua e
Literatura, n. 22,1996. p. 89-105.

MACHADO, Irene A. Narrativa combinatória dos gêneros prosaicos: a textualização


dialógica. Itinerários, Araraquara, nº 12, 1998, p. 33-46.

MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In:


PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria in(classificável).
Campinas-SP: Mercado de Letras, 2010. (Série: Bakhtin: Inclassificável, v. 1).

MORSON, G. S. O cronotopo da humanicidade: Bakhtin e Dostoievski. In.: Bakhtin e


o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. Tradução de Oziris Borges Filho, et al.
São Paulo: Parábola Editorial, 2015. p. 118-139.

ROJO; BARBOSA, J. P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros


discursivos. São Paulo: Parábola, 2015.
VOLOCHÍNOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira, com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D.
Chagas Cruz. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2017.

Anais do II Colóquio Discurso e Práticas Culturais. v. 1. Fortaleza: Grupo de Pesquisa


Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais (Grupo Discuta), 2020.

Você também pode gostar