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A GUERRA DO PACÍFICO (1879/1883).

E O PENSAMENTO
ANTI-RACISTA DE MANUEL GONZALEZ PRADA

Ricardo Sequeira Bechelli*

A Guerra do Pacifico (1879/1883) foi um dos conflitos armados mais importantes da


América do Sul na segunda metade do século XIX e provocou grandes mudanças em todos
os países envolvidos (Chile, Peru e Bolívia). As origens do conflito remontam ao comércio
e à exploração do guano na região do Deserto do Atacama. Esse produto era composto de
excrementos de aves marinhas que se acumularam por milhares de anos na região. O guano
era usado como um excelente adubo natural e sua exploração gerou interesse na Europa
(e, em particular, na Inglaterra), onde, em razão da crescente urbanização, acentuou-se a
necessidade de produtos agrícolas em escalas cada vez maiores e diversificadas, associa-
das ao capital internacional.
Para o Peru, a exploração do guano foi fundamental na recuperação econômica. O país,
desde a independência, passava por crises econômicas e políticas, uma vez que se desvin-
culara de um sistema colonial sem mudar suas estruturas sociais; a própria independência
foi imposta por líderes estrangeiros, como San Martin e Simon Bolivar, uma vez que a elite
local não apoiou o movimento.
Se o aparecimento do guano e do salitre, por um lado, representou um novo alento na
economia, por outro, não se traduziu na melhoria das condições sociais. Os índios e os
mestiços continuaram sendo marginalizados do progresso econômico pela elite. Nessa
situação também se encontravam os imigrantes chineses, os coolies, que viviam em regime
de semi-escravidão. Não foi modificada a situação de exploração, que remontava ao siste-
ma colonial. O crescimento econômico pouco representou em ganho para a maioria da
população peruana e, de fato, conseguiu ampliar o fosso que separava a aristocracia das
camadas mais pobres da população, contribuindo para o agravamento das tensões sociais.
Uma das poucas conquistas da população pobre foi o fim do tributo indígena, em 1854.

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Além disso, a economia peruana começava a se reinserir no comércio europeu em
razão da exportação daqueles produtos. A elite passou a consumir produtos europeus,
procurando imitar o modo de vida do Velho Mundo. Mariategui lembra que o guano e o
salitre se tornaram a principal força econômica do país, o qual passou a sentir-se rico e com
o direito de usar créditos internacionais sem limites, em benefício das finanças inglesas.1
Esse crescimento, porém, começou a mostrar os seus limites na década de 1860, em particu-
lar pela crise econômica européia, em 1873, e pelo acordo com a companhia francesa Dreyfuss.
A riqueza derivada do guano proporcionou, não só o crescimento econômico do país,
mas também uma maior urbanização. Em conjunto com esse crescimento, uma burguesia
florescia, sem, no entanto, estar dissociada da aristocracia rural ou mesmo do passado
colonial, perpetuando-se as desigualdades sociais.
Essa burguesia desejava modificar o panorama político do país, exigindo um papel
político maior, e assim criou o partido civilista, que tinha como propósito eleger um presi-
dente civil, o que aconteceu em 1872, com Manuel Pardo. Este representou a figura do
estadista, do homem com um projeto para o país e que procurava conduzir o Peru por uma
“modernização conservadora”, isto é, modernizar o país, mas garantindo os privilégios da
elite. As resistências enfrentadas pelas mudanças, e em particular a Guerra do Pacífico –
que estourou em seguida –, acabaram com suas tentativas de reformas.
As riquezas trazidas pelo guano e pelo salitre, significavam prosperidade e desenvol-
vimento, também acirravam as disputas fronteiriças entre os países envolvidos em sua
produção: Chile, Bolívia e Peru. Essa região, desde o final do período colonial, sofria pro-
blemas com as fronteiras, uma vez que estas não haviam sido claramente definidas. O
controle das jazidas acirrou tal problema, servindo de pretexto para a guerra.
A Guerra do Pacífico – seu palco foi o Deserto do Atacama, próximo da costa do
Pacífico – foi desencadeada quando o governo da Bolívia decidiu aumentar o controle
sobre o salitre explorado em seu território. A produção boliviana era controlada por empre-
sas chilenas, que mantinham acordos com as européias, em especial as inglesas. O Chile,
para manter seu controle sobre o salitre, decidiu fazer uma invasão do território boliviano e
tomou o porto de Antofagasta, cortando o acesso da Bolívia ao mar.
Nesse sentido, como lembra Halperin Donghi, a guerra do Pacífico foi a primeira na
qual capitalistas estrangeiros tomaram partido, ao apoiar o Chile contra uma aliança com o
Peru e a Bolívia.2 Além de servir aos interesses das companhias inglesas, a conquista das
regiões representou um grande ganho para a elite chilena.
O Peru se envolveu no conflito quando tentou, em vão, mediar uma saída diplomática
para a crise. O país tinha um tratado de cooperação militar com a Bolívia e, por essa razão,

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temia um controle maior das jazidas de salitre e do guano pelo Chile. Diante da impossibili-
dade de chegarem a um acordo, o Chile declarou guerra ao Peru. A invasão chilena mostrou
as fraquezas existentes, tanto na sociedade peruana quanto na boliviana. O Chile ocupou
todo o litoral da Bolívia, tomando as jazidas de guano e salitre do país. A perda dessas
jazidas e principalmente de sua única saída para o mar contribuiu para transformar a Bolívia
em um dos países mais pobres e instáveis, politicamente, da América do Sul.
As conseqüências da guerra, para o Peru, foram igualmente desastrosas. O exército
peruano mostrou uma grande fragilidade na condução do conflito e sofreu reveses, tanto
na guerra terrestre quanto na guerra no mar. Em 1880, o exército chileno invadiu a costa
peruana e ocupou Lima, sendo que o presidente Mariano Ignacio Prado, temendo essa
invasão, abandonou o país e fugiu para a Europa. A guerra terminou com o Tratado de Paz
de Ancón, no qual o Peru cedeu o território de Tarapacá e a administração das províncias de
Tacna e Arica por dez anos, sendo a última posteriormente anexada pelo Chile.
Com a fuga do presidente, o país foi governado pelo caudilho Miguel Iglesias, que fez
o acordo de paz com o Chile. Seu governo se mostrou instável e, como resultado do
conflito, estourou uma guerra civil, que levou Cácares ao poder em 1885.
A derrota na guerra foi extremamente marcante para o Peru. A perda dos territórios, a
humilhação da ocupação de Lima pelo exército chileno e, mais ainda, a perda de sua princi-
pal fonte econômica – o salitre e o guano – contribuíram para maior instabilidade política,
econômica e social.
Somente o Chile saiu fortalecido da guerra. O país ganhou um acréscimo substancial
de território e se apoderou das jazidas de guano e salitre, o que impulsionaria sua economia
por 40 anos.
A guerra do Pacífico expôs as dificuldades do Peru em superar seu legado colonial. A
elite do país não tinha interesse em promover mudanças estruturais que possibilitassem
modificar o país. Essa classe dominante peruana, passando por um período de frustração e
pessimismo, e para não assumir sua responsabilidade pela derrota, acusava a população,
particularmente os índios e mestiços, de serem responsável pela derrota, qualificando-os
de “ingovernáveis” e de “povo enfermo”. Como lembra Julio Cortier, a mistura de medo e
temor e o desprezo que os grandes proprietários sentiam pelos índios e mestiços era idên-
tica aos dos conquistadores espanhóis.3
O foco da discussão era que o índio não fazia parte e nem se identificava com o Estado
peruano. A natureza segregacionista com que se formou esse Estado voltava-se contra si
mesma: o Estado deveria incorporar tal população.
Segundo Cortier, essa discussão levava à idéia de que o litoral (a costa) representava
a civilização ocidental e moderna, ao passo que a serra significava o atraso, a civilização

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primitiva. Era importante, então, fundir as duas regiões, dentro da ótica da elite. Assim,
começou a surgir a necessidade de se “peruanizar” a população peruana, a fim de evitar o
surgimento de levantes populares, e ao mesmo tempo, legitimar a dominação exercida pela
classe proprietária, ao construir uma “nação peruana” que correspondesse aos seus inte-
resses e ao do Estado.
Surgiram assim grandes discussões sobre o Estado peruano e sobre como se configu-
raria aquela nação. Tal discussão acabou sendo o foco de debate da maioria dos intelectuais
peruanos, e em particular, de Manuel Gonzalez Prada.
Esse autor nasceu em Lima, em 1844, e era originário de uma família rica, aristocrática e
de descendência européia. Ele teve uma educação esmerada, na qual, além de estudar a
língua alemã, entrou em contato com as idéias de intelectuais como Nietzche, Schopenhau-
er, Spencer e Hegel. Gonzalez Prada nutriu um sentimento anti-religioso e ateísta, resultado
de seu tempo como estudante em um seminário religioso.
O escritor peruano Chang-Rodriguez comenta que Gonzalez Prada vivia numa tensão
permanente e insuportável, por conviver com uma família religiosa e conservadora ao
extremo, gerando um conflito em sua personalidade, que era contestadora e rebelde, o que
redundou na sua necessidade de escrever criticamente sobre as questões sociais.4
Gonzalez Prada viveu em sua fazenda, Tutumo, no Vale de Mala, até 1879, quando do
início da guerra contra o Chile. Nesse ano, ele voltou a Lima, onde chegou a se alistar como
oficial no Exército peruano. Nesse momento, ele não se dedicava em especial aos estudos
sobre a situação política social do Peru; dava uma atenção maior à poesia (Como visto em
seu livro Baladas Peruanas) e mesmo à ciência, chegando até a querer estudar química.
Mas foi a derrota e a ocupação de Lima pelo exército invasor – que durou até 1883 – um
choque que lhe provocou uma mudança de pensamento. Gonzalez Prada viveu em Lima
durante toda a ocupação chilena, sem sair de casa, para não ver a “figura do inimigo”.
Assim esta “tomada de consciência” é de fundamental importância em sua vida e na
consciência peruana. Não é à toa que Mariátegui diz que Gonzalez Prada representava o
primeiro instante de lucidez na consciência do Peru.5
Mas o que foi essa tomada de consciência? Gonzalez Prada, sendo testemunha de um
país vencido e humilhado pela guerra com o Chile, via nas causas da derrota o próprio país:
a sociedade, a mentalidade, a formação do Peru e, principalmente, a exclusão de elementos
da população, tais como os índios, da realidade da nação.
A partir daí, ele se dedicou a escrever obras políticas e de contestação às relações de
poder na sociedade peruana. Assim, em conjunto com outros intelectuais, participou do
Circulo Literário, que fazia uma franca oposição ao grupo Club literário, liderado por Ricar-
do Palma, com quem Gonzalez Prada tinha muitas desavenças, principalmente em decorrên-

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cia de diferentes perfis intelectuais: enquanto este último adotou uma postura radical e via
a Literatura como instrumento político, o outro assumiu uma posição conservadora e tinha
uma visão da Literatura desinteressada da política e dos problemas sociais.
Essa mudança é perceptível nos artigos que Gonzalez Prada escreveu no período
posterior à Guerra do Pacífico, e que mais tarde foram publicados em sua coletânea Páginas
libres. Nesses artigos, pode-se perceber o rancor em relação ao Chile – em razão da derrota
na Guerra – e sua crítica à elite peruana, que Gonzalez Prada via como responsável pela
crise.
Gonzalez Prada se dedicou primeiramente a criticar as instituições peruanas, vistas
como arcaicas e responsáveis pela guerra e pela derrota ante o Chile, tal como pode ser
observado em seu discurso no Teatro Olimpo, em 1888, quando atacou o conservadorismo
da intelectualidade de seu país, ainda presa ao passado colonial. Ele inicia, neste ponto, o
seu radicalismo contra a sociedade peruana; os efeitos da sua indignação contra o Chile
vêem à tona. Um exemplo disso é o seu ataque à intelectualidade peruana, no qual é notória
a denúncia de um traço característico da mentalidade do país: a prática da imitação, pura e
simples, do que se via e se lia na Europa. De fato, afirmava que o conservadorismo se
manifestava a ponto de impedir um desenvolvimento intelectual do país, caracterizado por
um abuso de textos e palavras, que não produziam, no entanto, idéias novas.
Em “Propaganda y ataque” (escrito em 1888), Gonzalez Prada chama os intelectuais
peruanos de “lacaios do mundo ocidental”, e os acusa de serem submissos e de estarem
mais interessados em um reconhecimento externo (da Espanha) do que articulados aos
problemas do país, denunciando, assim, um “servilismo internacional”. Esse servilismo era
caracterizado através da aceitação pura e simples de certas idéias, vindas do estrangeiro,
pelos intelectuais do país. Todavia, não aceitavam todas as idéias: somente as que interes-
savam à elite e não pudessem desestabilizar o status quo da sociedade peruana.
Assim, os intelectuais peruanos não produziam uma consciência nem davam consis-
tência ao pensamento peruano. Dessa forma, o Peru se tornava uma nação sem força ou
vigor, dependente da importação de idéias para a compreensão de sua própria realidade.
Mas o escritor lembra bem um ponto fundamental: mesmo após a derrota ante o Chile,
quase nada se percebia de mudanças significativas. O país estava tão agarrado a uma
mentalidade conservadora que era como se estivesse vivendo um eterno “continuísmo”,
isto é, nada mudava de fato e o Peru continuava a ser, sob novas formas, o que sempre fora.
O Peru era um país onde as instituições eram tão frágeis, tão mal definidas – assim como o
Estado Nacional – e tão envolvidas em corrupção, que Gonzalez Prada afirmou: “hoy el
Peru es organismo enfermo: donde se aplica el dedo brota pus”.6

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Na sua crítica contra o civilismo, ele mostrava o caráter conservador do movimento: de
nada adiantaria um governo civil se ele não representasse os direitos de toda a população
do país.
Uma das maiores críticas feitas por ele é justamente contra a Igreja católica, que era um
dos pilares do conservadorismo que reinava no Peru, totalmente vinculada ao poder. Para
Gonzalez Prada, a educação católica era uma negação da razão e, ao mesmo tempo, um
ponto do conservadorismo, que mantinha a população peruana alienada em relação a sua
própria realidade, analisando-a como um instrumento de dominação.7
O Estado peruano, assim, não garantia nem se propunha a garantir direitos a toda a
população peruana. Os direitos da maioria da população eram facilmente violados; eram a
parte menos favorecida de uma sociedade extremamente conservadora, chamada por ele de
“regime feudal”. Assim, não existiam cidadãos plenos; a sociedade era segregacionista,
não permitindo que toda a população – por questões econômicas, sociais e raciais – parti-
cipasse do processo político.
O Peru era, portanto, um país segregado, dividido, visto por seus habitantes como uma
realidade à qual só pertenciam alguns. Gonzalez Prada, ao pensar nessa idéia, diz que, no
momento do conflito (com o Chile), o país não representou uma pátria unida e forte e sim
uma série de indivíduos atraídos por interesses particulares.8
Essa passagem é muito importante: ele concebia o Chile como um país “formado”, com
uma nacionalidade desenvolvida. Na realidade, isso tinha uma grande dose de exagero,
mas com uma finalidade prática: fazer um esquema comparativo entre o Peru e o Chile, com
a finalidade de ilustrar que se o “outro” venceu, ele o conseguiu porque possuía um
sentimento “nacional” mais desenvolvido, que fazia com que toda a nação se agregasse em
prol da guerra.
O nacionalismo de Gonzalez Prada surgiu, portanto, agressivo e revanchista, vendo na
derrota para o Chile uma amostra das fragilidades do Peru: “el amor a la pátria y el odio a
Chile!”.9 O ensaísta fez uma comparação entre Chile e Peru, por um lado, e França e
Alemanha, por outro: esse é um dos paradigmas usados para ilustrar o seu nacionalismo.
Sobre a guerra, Gonzalez Prada declarou que “no solo derramamos lo sangre, exibi-
mos la lepra”.10 O que o pensador peruano declarava é que a guerra mostrou as fragilida-
des e os problemas do Peru, que diziam respeito à nação e à forma como foi concebido seu
Estado.
O impacto da guerra nesse pensador foi imenso e sua reação ao Chile e à elite peruana –
da qual fazia parte – corresponderam a esse sentimento. É nesse contexto que suas críticas

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ao Chile se dirigem também à elite peruana e as suas reformas políticas e econômicas:“la
historia nacional se resume en pocas líenas: muchas reformas políticas en cierne, ade-
lantos sociales casi ninguno, es decir, estancamiento”.11
O discurso de Gonzalez Prada ganhava um sentido de defesa da população excluída
pelo Estado peruano. Ele via nesse contingente o verdadeiro país, que devia ser “resgata-
do”, uma vez que essa era a nação: “no forman el verdadero Perú las agrupaciones de
criollos y extranjeros que habitan la faja de tierra situada entre el Pacífico y los Andes;
la nación está formada por las muchedumbres de indios diseminadas en la banda orien-
tal de la cordillera”.12
Nessa passagem, o escritor chamou a atenção para a população indígena do Peru, que
via como a base do povo peruano. Seu discurso nacionalista ganhou, nesse ponto, um tom
anti-racista, vendo os índios não apenas como parte da nação, mas como sua própria
essência, que traduzia o que de fato era o Peru.
Mas, ao mesmo tempo em que eram considerados como a base social do país, por
outro lado, os índios foram vistos como ignorantes, quase primitivos, que tinham recebido
como elementos da cultura ocidental apenas o álcool e o fanatismo. Assim, o Peru estava
corrompido e possuía uma elite conservadora – a par de um “povo” vigoroso e saudável,
como afirmava. A resposta a essa contradição estava na compreensão que Gonzalez Prada
fazia da situação indígena. O índio não se encontrava “corrompido”; ele estava “brutaliza-
do” em razão da miséria e do descaso em que se encontrava. Portanto, o “mal maior”, estava
na elite “corrompida”, vista por Prada como uma extensão da colonização espanhola.
Em 1891, ele foi para a Europa, estudando na França (onde teve aulas com Renan) e
voltando ao Peru somente em 1898. Essa passagem pela Europa é de fundamental importân-
cia na ampliação do seu pensamento, uma vez que, ao voltar, havia aprofundado o conhe-
cimento sobre a natureza da realidade peruana e tinha estudado outras tradições políticas,
principalmente, o anarquismo.
A partir desse ponto, o nacionalismo desse autor ganhou um novo aspecto, atenuan-
do o sentimento revanchista em relação ao Chile – que marcou os seus discursos nos anos
1880 – e aprofundando a questão interna do país, enfatizando, nesse caso, o problema
indígena, principalmente em Nuestros Índios, publicado em 1904.
No discurso que fez em 1898, quando de sua volta da Europa, denominado Los Parti-
dos y a Union Nacional e que gerou muita polêmica dentro da Unión Nacional, dadas as
suas críticas a essa organização quando estava naquele país, Gonzalez Prada enfatizou a
questão do índio, que viu brutalizado pela ação do europeu enquanto colonizador e, pos-

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teriormente, através de seus descendentes, enquanto elite do país: “aqui tenemos por
base nacional una masa de índios ignorantes, de casi primitivos que hasta hoy recibie-
ron por únicos elementos de cultura las revoluciones, el alcohol y el fanatismo”.13
É importante frisar um ponto: quando falava em “revolução”, ele se referia a uma
revolução causada por uma instabilidade da população quanto a sua situação; se o povo
se revoltava, ele o fazia em decorrência da exploração extrema à qual estava submetido. A
sua luta não possuía um sentido de buscar uma resposta para a crise do país (um elemento
estranho ao índio) e sim por respostas imediatas a situações extremas, caso das reivindica-
ções camponesas.
Gonzalez Prada denunciou um ponto importante, que via atrelado à questão de o índio
estar condenado a ser um “ignorante”: a questão de que o ameríndio sofria uma decadência
biológica, que fazia com que ele se situasse numa posição de inferioridade “perpétua”; e se
a sua decadência era de origem biológica, o índio seria sempre um decadente. Ele refutou
essa idéia ao indagar: “Decadência! Si estamos hoy de caídos cuándo brilló nuestra via
de ascensión y llegarda a la cumbre? Puede rodar a lo bajo quien no subió a lo alto?”.14
O ensaísta explorou aqui a contradição entre a ideologia dominante nos meios intelec-
tuais peruanos e a realidade do país: a ideologia acusava os índios de serem algo que, na
realidade, não eram. Ele afirmava, inclusive, que a elite – ou como ele muitas a vezes a
designava, a Oligarquia – visava apenas a seu bem-estar, como um parasita sugando o
sangue de toda a nação.15
Nessa perspectiva, o Estado peruano era dominado por uma elite que procurava man-
ter a maior parte da população à margem do progresso e de sua “nação”. Um dos recursos
mais usados para segregar a população foi o racismo. A questão racial ajudava a fortalecer
essa idéia: como uma “nação” poderia se basear em indivíduos que possuíam, não só
características físicas distintas do imaginário da elite – o branco –, mas que, na concepção
dessa elite, impediam que tivessem o mesmo grau de desenvolvimento?
Esse é o ponto-chave da crítica de Gonzalez Prada: não existia uma diferença racial
marcante o suficiente para determinar que o índio fosse inferior ao branco. O escritor
sustentou que essa teoria nada mais era que uma forma de “mascarar” a realidade.
Nuestros índios, ensaio escrito por Gonzalez Prada em 1904, foi a obra fundamental
desse pensador, onde ele explorou com muita clareza a questão racial e a questão indígena;
o ensaísta expôs a necessidade de se revisar a questão do índio como elemento necessário
às mudanças estruturais no país. Nuestros índios pode ser definido também como uma
obra de maturidade, uma vez que, em suas páginas, o pensamento de Gonzalez Prada
atingiu um nível mais elevado de elaboração sobre as necessidades de mudança social no
país.

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Nesse escrito, ele começou abordando o ponto fundamental da sua crítica, a questão
racial, considerando-a tema dos mais polêmicos da Sociologia, que via como uma ciência
em formação, carregada de elementos e teses contraditórias, geradores de polêmicas e
conflitos.
No pensamento de Gonzalez Prada, a tal “inferioridade” racial, manifestada nos índios
e mestiços, nada mais era do que o resultado da situação em que viviam. Isto é, a sua
“inferioridade” era resultado da opressão em viviam, não resultado de sua constitução
biológica.
O ensaísta criticou, a partir daí, o uso da Etnologia por muitos cientistas, que admitiam
a divisão da humanidade em raças superiores e inferiores, desdobrada na “superioridade”
dos brancos e em seu “direito” de monopolizar o governo do planeta, justificando o trata-
mento dado aos negros na África, aos índios “peles vermelhas” nos EUA, ao povo autóc-
tone das Filipinas e aos índios no Peru. Essas idéias, segundo o pensador peruano, tradu-
ziam a natureza da seleção “natural”: a eliminação dos supostamente débeis e inaptos.
Assim, os europeus pretendiam, de fato, acelerá-la ao dominar e conquistar os povos do
mundo inteiro: “Donde se lee barbarie humana tradúzcase hombre sin pellejo blanco”.16
O escritor é bastante irônico sobre essa perspectiva: na visão européia, todos os
povos do mundo eram inferiores e, portanto, passíveis de serem conquistados e domina-
dos. A Europa, em sua visão, usava a Etnologia como forma de justificar a dominação e
exploração sobre os outros povos – vivia-se o auge do imperialismo. Ao tratar da manipu-
lação da Etnologia pelo imperialismo, Gonzalez Prada demonstrava ter um pensamento
moderno: a ciência não era mais vista como uma “verdade absoluta”, ela podia ser usada
conforme os interesses de grupos ou nações.
Desse ângulo, tais teorias raciais não se aplicavam somente aos negros e índios, mas
também aos brancos, uma vez que existia uma “moda” de denegrir os latinos, mostrando-os
como inferiores e degenerados em relação aos anglo-saxões.
A leitura que Gonzalez Prada fez de Gustave Le Bon (notório pelo seu pensamento
racista) mostrava que, segundo esse autor, não existiam mais raças no sentido antropológi-
co, uma vez que, desde há muito, extinguiram-se as raças puras (com exceção dos povos
selvagens), e que, dentre os povos civilizados, sobreviveram apenas “raças históricas”,
criadas pelos acontecimentos da história. De acordo com o escritor peruano, no dogmatis-
mo “leboniano”, as nações hispano-americanas constituíam uma dessas raças, tão singu-
lares que teriam passado do seu nascimento à decadência de forma vertiginosa. Assim,
mesmo localizados num dos lugares mais ricos do globo, os latino-americanos eram julga-
dos incapazes de aproveitar os seus próprios recursos.

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Gonzalez Prada criticou ferozmente Le Bon, quando esse autor afirmou que as cons-
tantes revoluções latino-americanas são como um anúncio da decadência e da morte. Res-
pondeu, em seu tom tipicamente irônico:

(...) desde cuándo las revoluciones anuncian decrepitud y muerte? Ninguna de las naciones
hispanoamericanas ofrece hoy la miseria política y social que reinaba en la Europa del
feudalismo; pero a la época feudal se la considera como una etapa de la evolución, en tanto
que a la era de los revoluciones hispano-americanas se la mira como un estado irremediable
y definitivo.17

Na visão desse pensador crítico, o conceito de “revolução” era muito mais amplo do
que se costumava usar na América Latina: ele entendia por revolução um processo amplo,
no qual as estruturas sociais seriam transformadas; não as que convenientemente usavam
do nome de “revolução” e se tratavam de disputas pelo poder dentro da elite dominante. É
por essa razão que ironizou, com muita propriedade, a própria avaliação da Europa sobre si
mesma e sua perspectiva sobre a América Latina: o que é considerado como parte de um
processo histórico lá, é visto na América Latina como um sinal de “degeneração” ou de
“decadência”, sugerindo de forma irônica, que existem leis sociológicas para os latinos da
América e outras para os latinos da Europa.18
Gonzalez Prada fez uma crítica à postura européia de avaliar sempre a Europa de uma
forma e a América Latina de outra forma. Além disso, ele percebeu o quanto a visão euro-
péia era parcial, procurando encontrar elementos para desqualificar a América Latina.
O escritor falava, não só como peruano, mas também como um “latino-americano”. Ele
criticou Le Bon e a postura européia em confronto, não apenas com o Peru, mas com toda
a América Latina. Aqui, sua crítica teria, depois, semelhanças nos escritos de Manoel
Bomfim: embora mantivesse o foco no seu país, conseguia perceber que os problemas eram
similares aos dos outros países latino-americanos.19
Buscando encontrar uma base teórica maior para justificar seu ponto de vista, o autor
citou Louis Gumplowicz, para quem todo grupo étnico buscava manter o domínio sobre um
outro grupo – conquistado em uma guerra ou considerado “débil” ou “inferior”. Assim,
afirmou que, na América, tanto os conquistadores quanto os seus descendentes formavam
um elemento étnico grande o suficiente para subjugar e explorar os indígenas.
É por isso que, mesmo qualificando como exageradas muitas afirmações de Las Casas,
não negava a crueldade dos exploradores, que levaram muitos povos americanos à debili-
dade e à extinção. Fazendo uma comparação com a natureza, Gonzalez Prada disse que “las
hormigas que domesticam pulgones para ordeñalas, no imitam la imprevisión del blanco,
no destruyen a su animal productivo”.20

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O autor peruano atribuiu, nessa passagem, aos males cometidos pelos próprios euro-
peus sobre os demais povos o papel de causadores da miséria dos últimos, males dotados
de uma origem externa e uma repercussão interna, que não eram produto desses povos,
vítimas de um sistema mais complexo, engendrado com a conquista e a colonização.
Esse pensador mostrava que a questão racial nada mais era do que uma conveniência
política e social. Em sua ascensão social e econômica, os índios, negros, zambos ou mula-
tos desprezavam os membros da classe ou da “raça” à qual pertenciam. A ascensão social,
portanto, passava também por uma ascensão “racial”. O índio deixava de se sentir índio, e
buscava encontrar traços ou ligações com os brancos. Sua violência para com os demais
companheiros de etnia era uma forma de o índio encontrar um modo de se identificar com o
branco conquistador.
Ele dividiu a sociedade peruana em duas parcelas: uma composta por brancos e os
encastados ou dominadores, e outra, a dos indígenas ou dominados. Gonzalez Prada fez
menção a uma aliança, ou melhor, a uma relação de troca de serviços entre os “dominadores
da capital” (aqueles instalados em Lima) e os da província: enquanto os proprietários de
terras serviam de agentes políticos aos senhores de Lima, estes os defendiam quando
abusavam do índio. As revoluções, segundo Prada, não se comparavam às atrocidades
cometidas contra os índios.
Gonzalez Prada lembra que mesmo a condenação, por vice-reis, pela Coroa ou pela
Igreja, das crueldades feitas aos índios, ao estabelecer leis humanitárias com o intuito de
defendê-los, não funcionara, uma vez que, para isso, seria necessária a eliminação dos
repartimientos e das mitas. Oficialmente, ordenava-se a exploração do vencido e pedia-se
humanidade e justiça aos executores.
A República seguira as mesmas tradições da época colonial: os presidentes se chama-
vam de “protetores de raza indígena” e outras autoridades criaram uma série de leis com
o propósito de assegurar garantias aos índios, mas isso se reduzia a palavras sem eco, a leis
sem condições de serem obedecidas, criadas justamente para isso, uma vez que a Repúbli-
ca, por assim dizer, não representava a realidade do país ao excluir a população indígena.
É central, portanto, a crítica que esse ensaísta fez dos “indófilos”, que, através de
iniciativas particulares ou coletivas procuravam lutar pela causa do índio, mas, na realida-
de, estavam usando o índio com o objetivo de manipulá-los e manter o seu poder
sobre eles.
Para Gonzalez Prada, a forma como o índio era tratado se caracterizava, não apenas pela
indiferença, mas principalmente por seu valor enquanto “objeto” de uso. O índio servia
para determinados interesses, como nas insurreições, na condição de “soldado”, mas seu

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valor enquanto ser humano era negado. E ao negar ao índio sua humanidade, a elite podia
manipulá-lo da forma mais conveniente. É por isso que Gonzalez Prada argumentou: “nada
tan fácil como hacer de un ignorante una bestia feroz”.21
Nessa visão, a República não proporcionou nenhuma mudança significativa, uma vez
que, se não existiam mais os corregimientos, nem encomiendas, funcionavam os trabalhos
forçados e o recrutamento “le conservamos en la ignorância y la servidunbre, le envile-
cemos en el cuartel, le embrutecemos com el alcohol, le lanzamos a destrozarse en las
guerras civiles y de tiempo en tiempo organizamos cacerías y matanzas como las de
Amantani, Ilave y Huanta.”22
O pensador peruano fala de um nós contra eles, do usurpador sobre o usurpado, de um
aristocrata sobre o índio, tomando a responsabilidade sobre o índio não apenas para si,
mas para toda a elite peruana: ela era a responsável pela situação do índio, por sua pobreza
e miséria, por sua ignorância. Nessa passagem, ele se assume como membro da elite, mas,
reconhecendo os erros dessa elite, critica-a e toma para ela a responsabilidade pela situa-
ção indígena.
Sem o ameríndio possuir direitos e sendo manipulado pelos interesses da elite, era fácil
compreender a denúncia que Prada fez da ocupação das terras indígenas, da autoridade
exercida pelos fazendeiros e os maus-tratos dirigidos aos indígenas. Nesse sentido, ele
procura mostrar que mesmo os filhos desses fazendeiros, instruídos na Europa, e portado-
res de um “verniz” europeu tratavam o índio com o mesmo descaso que os demais
fazendeiros.
Se ao índio era negada a humanidade, toda violência dirigida a sua pessoa se tornava
justificável; se lhe roubavam as terras, assassinavam ou violavam as mulheres, isso era
exatamente o reflexo daquela sociedade, não apenas marcada pelo descaso social dirigido
ao índio, mas também pelo descaso ao direito a sua humanidade.
É por isso que o discurso de Gonzalez Prada teve exatamente um tom de denúncia ao
negar a “desumanização” do indígena. E agindo com muita ironia, inverteu o jogo: quando
acusavam o índio de ser refratário à civilização e de não ser (ou não estar) apto a ela, o
ensaísta respondia que “El índio recibió lo que le dieron: fanatismo y aguardiente”.23
Assim, o escritor concebeu o Peru exatamente como o oposto da civilização: “Donde
no hay justicia, misericordia ni benevolencia, no hay civilización; donde se proclama ley
social la strugle for life, reina la barbarie”.24
Nessa perspectiva, o índio tinha todas as condições de se “civilizar”. A decadência de
que o acusavam era de ordem moral, e não biológica. Como ele diz: “Moralmente hablan-

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do, el indígena de la República se muestra inferior al indígena hallado por los conquis-
tadores; mas depresión moral a causa de servidumbre política no equivale a impossibi-
lidad absoluta para civilizarse por constitución orgánica”.25
O autor sustentava que o índio poderia desenvolver as mesmas atividades de um dos
descendentes de espanhóis: “Índios vemos en Cámaras, municipios, magistraturas, uni-
versidades y ateneos, donde se manifiestan ni más venales ni más ignorantes que los de
otras razas”.26
Se a avaliação que fazia do índio era no sentido de defendê-lo das acusações de
inferioridade racial, posição semelhante teve em relação aos negros e “amarillos” (japone-
ses e chineses, principalmente). Gonzalez Prada relacionava os defeitos dos quais os índios
e negros eram acusados aos males causados por sua condição de vida e à exploração à qual
estavam submetidos:“efectivamente, no hay acción generosa que no pueda ser realizada
por algún negro ni por algún amarillo, como no hay acto infame que no pueda ser
cometido por algún blanco”.27
É importante destacar aqui a comparação que o ensaísta fez entre a ação exercida pelos
brancos na África e as deficiências atribuídas aos negros: “veremos que en medio de la
civilización blanca abundan cafres y pieles rojas por dentro”; e, ainda, que o rei inglês
Eduardo VII e o imperador alemão Guilherme II “llevan lo blanco de la piel mas esconden
lo negro en la alma”,28 em razão de suas ações imperialistas na África.
Essas afirmações traduzem uma idéia fundamental: todas as pessoas, não importa a
raça à qual pertençam, são portadoras de defeitos e virtudes – todos são capazes de
progredir e se desenvolver. A situação dos negros e dos chineses se deve mais ao sofri-
mento por que passaram na escravidão. Quem realmente estava contaminada era a socieda-
de: a tal “inferioridade” era resultado de um problema social, gerado pela situação de
miséria e segregação, à qual os discriminados estavam submetidos. O problema maior
estava no próprio âmago da sociedade.
Da mesma forma, Gonzalez Prada chegou à idéia do que poderíamos chamar de “ima-
gem projetada do outro”: ao dizer que os brancos possuíam os mesmos defeitos atribuídos
aos negros e índios, abriu uma questão – de que os defeitos identificados em negros,
índios e mestiços eram, na realidade, um reflexo daquilo que os brancos sentiam em si
mesmos.
Um ponto alto do discurso anti-racista de Prada foi fazer uma separação entre as idéias
de “raça” e “grupo social”. Se o índio que ascendia social e economicamente se tornava
como um branco, a própria definição de “raça” ganhava um novo aspecto, transformando-

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se numa definição de “grupo social”. Foi com esse sentido que diz que “todo blanco es,
más o menos, un Pizarro, un Valverde o un Areche”.29 O branco não era visto como
pertencente a uma “raça”, mas adquiria um sentido simbólico de conquistador, dominador.
Podemos concluir que o discurso anti-racista de Gonzalez Prada se identificava com a
idéia de um nacionalismo e, principalmente, com a construção de um novo país, assentado
em sua realidade – ou seja, na população indígena peruana. Dentro desse contexto, o autor
defendia a idéia de que, para o índio se libertar, era necessário mais do que apenas o acesso
à educação, uma vez que esta, sendo mal conduzida, poderia levar à alienação e à servidão.
Assim, defendeu, com tom de ironia, “la escuela, respondase-le: la escuela y el pan”.30
Gonzalez Prada defendia a necessidade de uma revolução para resolver a questão
indigena “El índio se redimirá merced a su esfuerzo propio, no por la humanización de
sus opresores”.31 Ele não entendia que a vida do índio pudesse melhorar através da ação
da elite, porque nada se poderia esperar dela. Assim, afirmava que o índio deveria partir
para a ação como forma de buscar os seus direitos, fazendo um alerta ao dizer que, se o
índio aproveitasse os recursos, que dispensava com álcool e festas, em armas poderia
mudar a sua condição e respeitar a sua propriedade e a sua vida.32
Defendia a violência como uma forma de ação, mas esta estaria vinculada à forma de
luta do índigena, não como um modo de ação contínua. Como relata em Nuestros tigres,
demonstrava que tinha horror à violência gratuita.
Assim, essa violência seria uma maneira de as massas devolverem à elite aquilo que ela
lhes deu. Seria lutando contra a elite que o espoliava e maltratava que o índio conseguiria
ascender. Para entender a razão da defesa do uso da violência por Gonzalez Prada, temos
que repensar a forma como ele concebeu a situação do Peru – uma relação de dominante
versus dominado. Portanto, ao entender sua realidade dessa forma, ele abria caminho para
que a violência fosse a única alternativa ao índio, uma vez que somente através dela este
conseguiria vencer a oligarquia dominante.
A Guerra do Pacifico provocou, na sociedade peruana, uma série de mudanças. O
trauma da derrota, da perda dos territórios, da economia, tudo isso contribuiu decisivamen-
te para que o país pudesse refletir sobre si mesmo e a natureza de sua sociedade.
É nesse contexto que o pensamento de Gonzalez Prada ganha relevo e se torna impor-
tante. A Guerra do Pacífico mostrou, como ele disse, que o país estava doente, e que a causa
dessa doença residia na própria elite do país, por demais comprometida com o conservado-
rismo, a ordem colonial, a exploração da população e o racismo.
É preciso pensar na Guerra do Pacífico, não apenas em razão da perda territorial. Ela
também contribuiu para que o Peru refletisse sobre sua própria história e sobre si mesmo.

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Gonzalez Prada foi o mais importante crítico da sociedade peruana em seu tempo. Ele
soube agregar a angústia da perda e da humilhação sofrida na guerra a sua crítica social. O
Peru não fracassou porque o Chile era melhor; o fracasso deveu-se ao próprio país derro-
tado. É nesse sentido que a sua crítica se dirige à classe dominante – da qual fazia parte –, e não
à população pobre do país.
Um aspecto do pioneirismo desse autor pode ser visto na reação que o seu pensamen-
to causou no Peru. Na virada para o século XX, uma nova geração de intelectuais, como
Riva Agüero, Francisco Garcia Calderón e Andrés Belaunde, procurou rebater o pensamen-
to de Gonzalez Prada. Eles pretendiam modernizar o Peru, mas sem o radicalismo ou a crítica
do ensaísta. A eles, interessava o conservadorismo, não a mudança radical.
Mas o pensamento de Gonzalez Prada continuou vivo. Mesmo após sua morte, auto-
res como Mariátegui mantiveram o legado crítico daquele pioneiro em suas análises sociais.
Aliás, a influência da obra de Prada sobre Mariátegui é imensa, como pode ser visto no livro
Sete Ensaios da realidade peruana. Sem contar que Prada provocou o início do movimen-
to indigenista, que possui grandes repercussões ainda nos dias de hoje.
A Guerra do Pacifico pode ter-se encerrado há muito tempo, mas as mudanças na
mentalidade peruana, que resultaram do conflito, ainda fazem parte do dia-a-dia dessa
sociedade, graças a autores como Manuel Gonzalez Prada.

Recebido em dezembro/2004; aprovado em maio/2005

Notas

*
Mestre em História Social pela FFLCH-USP.
1
MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo, Alfa-Ômega,
1975, p. 9.
2
HALPERIN DONGHI, T. História da América Latina. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.
159.
3
CORTIER, J. Clases, Estado y nación en el Peru. México, Universidad Nacional Autónoma de México,
1982, p. 98.
4
CHANG RODRIGUEZ, E. El ensaio de Manuel Gonzalez Prada. Revista Iberoamericana. Pittsburg,
Instituto Internacional de Literatura Ibero Americana, 1976, p. 95.
5
MARIÁTEGUI, op. cit., p. 182.
6
GONZALEZ PRADA, M. Paginas libres/Horas de Lucha. Venezuela, Biblioteca Ayacucho, p. 106.
7
Id. “Instruccion Catolica”, in: op. cit, p. 88.

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8
Id. “Discurso en el Politeama”, in: op. cit, p. 45.
9
Ibid., p. 47.
10
Id. “Grau”, in: op. cit, p. 41.
11
Id. “Propaganda y ataque”, in: op. cit, p. 108.
12
Ibid., pp. 45-46.
13
Id. “Los partidos y la Union Nacional”, in: op. cit, p. 209.
14
Ibid., p. 209.
15
Id. “Nuestros ventrales”, in: op. cit, p. 304.
16
Id., “Nuestros índios”, in: op. cit, p. 333.
17
Ibid., p. 335.
18
Ibid..
19
BOMFIM, M. A América Latina – Males de Origem. Rio de Janeiro, Topbooks, 1998 (1 ed. 1905).
20
GONZALEZ PRADA. “Nuestros índios”, in: op. cit, p. 336.
21
Id. “Los Partidos y a Union Nacional”, in: op. cit, p 206.
22
Id. “Nuestros índios”, in: op. cit, p. 338.
23
Ibid., p. 340.
24
Ibid., p. 340.
25
Ibid., p. 341.
26
Ibid., p. 341.
27
Ibid., p. 341.
28
Ibid., p. 341.
29
Ibid., p. 343.
30
Ibid., p. 342.
31
Ibid., p. 343.
32
Ibid., p. 343.

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