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RESUMO: Relacionado à pedagogia da leitura, este trabalho pretende problematizar o ato de ler,
abordando os vários níveis de construção de sentido imbricados nesse processo (superfície formal,
contexto discursivo, contexto circunstancial e recursos fruitivos) e as estratégias voltadas para o
desenvolvimento da competência leitora. Para isso, considera-se o ato de ler, seja em sua dimensão
estrita (da palavra escrita e da Literatura), seja em sua dimensão ampla (dos textos em geral), um
processo interativo engendrado pelo sujeito-leitor em função de expectativas mais ou menos
conscientes no cálculo da relação entre forma e sentido. Para esse fim, parte-se de pressupostos da
Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, associados aos de Teorias de Leitura. Defende-se
que uma maior conscientização do processo de leitura permite ao professor (de qualquer
disciplina) um manejo profícuo do material simbólico que utiliza em sala de aula e, ao aluno-leitor,
a autonomia necessária para interpretar textos e criticar a realidade.
A propósito
A educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não
mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver
a parte poética de nossas vidas.
(Edgar Morin,2008)
1 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-01/resultado-do-enem-
mostra-fragilidade-na-leitura-e-na-escrita-dizem. Acesso em 05/02/2015.
2 A anulação também foi atribuída a outros motivos, como cópia dos textos motivadores (13.039),
inserção deliberada de parte desconexa (3.362), desrespeito aos direitos humanos na proposta de
intervenção (955), não atendimento ao tipo textual (4.444), texto com menos de oito linhas (7.824),
ou outros motivos (1.508). Disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/os-erros-
mais-comuns-de-quem-teve-a-redacao-anulada-no-enem.Acesso em 06/02/2015.
Fuga do tema ou tangenciamento não são problemas de redação. São
indicativos do insucesso, por grande parte dos egressos do Ensino Médio,
sobretudo, na compreensão da proposta de redação, ou seja, na leitura. O conjunto
de textos motivadores da proposta em questão era formado por um trecho de
reportagem, um infográfico e um parágrafo de um livro que tratavam do tema já
explicitado no comando da prova. O primeiro falava sobre a aprovação da
resolução, em abril de 2014, que considera abusiva a publicidade dirigida à criança
que a induza ao consumo e utilize elementos do universo infantil (desenhos
animados, bonecos, linguagem infantil etc.) para esse fim. O infográfico revelava
como a publicidade infantil é tratada em vários lugares no mundo. O último foi
extraído de livro que trata da necessidade de preparar as crianças para receber as
informações do “mundo exterior”3. Três textos cuja linguagem objetiva e clara não
oferece risco de duplos sentidos, ou de implícitos talvez imperceptíveis para os
mais desatentos. Esse conjunto, portanto, além de ter a função de motivar o
desenvolvimento de uma argumentação com uma proposta de intervenção para o
problema apresentado, deveria servir como delimitação temática, ou como uma
orientação sobre o assunto a ser escolhido para a produção textual. Por que não
funcionou assim no caso das redações que fugiram do tema e que o tangenciaram?
As respostas plausíveis estão entre a não leitura da proposta e o mau
desempenho na leitura, pois, se algumas dessas redações trataram de assuntos
completamente desconectados do tema proposto, outras se desviaram dele, mas se
mantiveram ligadas – de forma equivocada – a algum elemento presente no
conjunto de textos motivadores. Por exemplo, muitas redações trataram de
“abusos” sofridos pelas crianças (talvez pela menção da publicidade “abusiva”), ou
da farta exposição das crianças na internet, tornando pública sua vida privada
(talvez pela menção de “publicidade”), ou ainda da exploração do trabalho infantil,
seja na área publicitária, seja em qualquer área. Entre essas possibilidades, em
comum, os problemas de compreensão da proposta induziram o candidato à
extrapolação do tema. Como em tantos vestibulares, reitera-se: foi a inaptidão para
a leitura que levou à anulação da redação, e não o mau desempenho na escrita.
4 Disponível em http://bernat.blog.lemonde.fr/2015/01/14/explication-de-la-couverture-de-
charlie-hebdo-pour-les-types-qui-ny-comprennent-rien/ Acesso em 09 fev. 2015.
Para que essas estratégias sejam trabalhadas na Escola Básica, é necessário
que, na formação dos professores, elas sejam colocadas em evidência
incessantemente. O investimento em atividades ligadas às muitas estratégias de
leitura deve ser direcionado de acordo com a faixa etária e o nível de escolaridade,
a fim de se desenvolverem habilidades de forma escalonada, mas não isolada, já
que convergem para um único fim: o sentido. E isso inclui a interpretação de
imagens, infográficos, mapas, coordenadas geográficas, linguagem matemática,
expressões artísticas, bens culturais, que dependem do reconhecimento não só de
códigos específicos, como também da referência a um elemento do mundo, cujos
valores são passíveis de reconhecimento e de crítica.
Vicent Jouve, em seu livro A leitura (2002), cita Pour une sémiotique de la
lecture (Por uma semiótica da leitura), de Gilles Therién, para explicar o ato de ler
como um processo de cinco dimensões: neurofisiológica, cognitiva, afetiva,
argumentativa e simbólica. Na dimensão neurofisiológica, exige-se o bom
funcionamento do aparelho perceptivo e das diferentes funções do cérebro que
permitem ao leitor a identificação e a memorização dos signos. Na dimensão
cognitiva, exige-se do leitor um esforço de abstração para que se realize a
conversão das palavras (e, pode-se acrescentar, de outros tipos sígnicos) em
elementos da significação. Na dimensão afetiva, são suscitadas emoções a partir
das reflexões feitas pelo leitor. A identificação do leitor com uma história, por
exemplo, depende fundamentalmente do acionamento de sua afetividade. Além
disso, como todo texto depende do engajamento do autor perante o mundo e os
seres, não se pode desprezar a dimensão argumentativa da leitura, já que o texto
tem como uma de suas funções levar o leitor/interpretador a uma certa conclusão,
ou desviá-lo dela. E, para finalizar, a dimensão simbólica, que age nos modelos do
imaginário coletivo, em função da interação entre a leitura e os esquemas
dominantes de um meio e de uma época. Dessa descrição do processo de leitura,
salientam-se dimensões que, se não representam as únicas preocupações no
desenvolvimento da competência leitora, são as que parecem necessitar de maior
conscientização no trabalho com a leitura na Escola Básica. Essas dimensões são
mais ou menos enfatizadas em cada fase do ensino-aprendizagem, embora estejam
presentes em todas.
Considerando-se as faixas de leitores conforme discriminadas por Coelho
(2000) - pré-leitor, leitor iniciante, leitor-em-processo, leitor fluente e leitor crítico
–, pode-se afirmar que, se, para o pré-leitor, o trabalho com a leitura deve incidir
primordialmente na dimensão neurofisiológica, com ênfase na percepção e
memorização de elementos, para o leitor iniciante, a ênfase deve ser comumente
dada na conversão dos significantes em elementos de significação, ou seja, deve
haver um investimento maior na dimensão cognitiva. Essa fase corresponde, em
geral, ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental. No segundo ciclo, começa-se a
investir na dimensão argumentativa, pois, na passagem da compreensão à
interpretação, necessita-se de um ajuste à proposta de significação oferecida pelo
texto por parte do leitor-em-processo. Esse investimento se alastra até o terceiro
ciclo, quando, em geral, o leitor atinge mais fluência e é capaz de maior reflexão,
havendo um maior engajamento do leitor na experiência lida e, consequentemente,
sua percepção do mundo aumenta. Nessa fase, a dimensão simbólica começa a ser
mais evidenciada na interpretação, que deverá alcançar total autonomia no quarto
ciclo, quando o leitor deverá atingir a criticidade. No Ensino Médio, espera-se que o
leitor atinja maturidade e independência na leitura. Já a dimensão afetiva será
trabalhada em todas as fases, de diferentes maneiras, com mais ou menos
consciência e, sobretudo, a partir da leitura literária, cuja especificidade estética
garante uma resposta emocional quase sempre mais contundente do que é
possível observar em outros tipos de leitura (sem que seja exclusiva da literária). A
afetiva é uma dimensão profundamente ligada à simbólica e deve ser observada
em sua característica reativa, pois é ela que leva o leitor ao maior envolvimento
com o material cultural.
De acordo com Charaudeau (2008), a interpretação depende da criação de
expectativas, não só em função da apreensão dos componentes do material a ser
interpretado, mas também da consideração do espaço/momento de inserção desse
material em um contexto que lhe garante coerções para que o sentido não se perca,
ou se desvie da intenção do produtor. No processo ensino-aprendizagem, o
educador assume o papel de mediador de leitura e, ao apresentar um material para
ser interpretado pelos alunos, pode suscitar expectativas que apontem o sentido
do texto, ou mesmo oferecer dados que justifiquem, por exemplo, uma
extrapolação. A criação de expectativas é um exercício que aciona o
reconhecimento de símbolos, esquemas mentais, conhecimento objetivo, memória
pessoal que, para além do texto, sustentam os sentidos que não estão explícitos,
mas são evocados por ele. A leitura conjunta pode ser uma atividade profícua para
o desenvolvimento da habilidade interpretativa por ser propícia à troca de ideias e
de perspectivas. Caso um professor trabalhasse no Brasil com a charge a seguir,
outra capa do jornal Charlie Hebdo, tendo ultrapassado a barreira da língua com
uma versão traduzida, o sentido seria mais prontamente alcançado do que com a
charge apresentada anteriormente – não só por causa do domínio de saberes que
permitem as inferências, mas, sobretudo, pelas representações utilizadas e sua
repercussão na cultura brasileira.
Texto 2
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso
Texto 3
Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.
Kafka
5 Disponível em http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/30-contos-de-ate-100-
caracteres. Acesso em 09 fev. 2015.
categorização, por serem reconhecidos por seu estilo literário. Embora insólitos, os
elementos também se revestem de caráter patêmico, por estarem atrelados a uma
“racionalidade emocional”: o dinossauro, mesmo “virtual”, é considerado um
monstro perigoso que causa medo; a gaiola, um “ser” aprisionador. Dada sua
natureza insólita, a interpretação, nesses casos, é mais fluida e ampla, pois
ultrapassa o limite da realidade palpável. Mesmo assim, são as expectativas
acionadas pelos componentes textuais que a direcionam.
É preciso partir da percepção e apreensão daquilo que o texto apresenta
explicitamente e do modo como se apresenta, para que sejam feitas as relações
com outros textos, com o gênero a que se filia, com suas circunstâncias de
produção e, enfim, chegar à interpretação, criando expectativas, testando-as,
comprovando-as, ou excluindo-as. É possível observar os elementos
composicionais da tirinha a seguir como estopim, no nível semiolinguístico, para as
relações com outros textos, com dados culturais, com engajamento social, no nível
discursivo. O sentido será finalizado de acordo com as circunstâncias da troca
fomentada pela tirinha, no nível situacional.