Você está na página 1de 16

O ATO DE LER NUMA PERSPECTIVA INTERATIVA: OS NÍVEIS DE CONSTRUÇÃO

DE SENTIDO DOS TEXTOS

Beatriz dos Santos Feres (UFF)

RESUMO: Relacionado à pedagogia da leitura, este trabalho pretende problematizar o ato de ler,
abordando os vários níveis de construção de sentido imbricados nesse processo (superfície formal,
contexto discursivo, contexto circunstancial e recursos fruitivos) e as estratégias voltadas para o
desenvolvimento da competência leitora. Para isso, considera-se o ato de ler, seja em sua dimensão
estrita (da palavra escrita e da Literatura), seja em sua dimensão ampla (dos textos em geral), um
processo interativo engendrado pelo sujeito-leitor em função de expectativas mais ou menos
conscientes no cálculo da relação entre forma e sentido. Para esse fim, parte-se de pressupostos da
Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, associados aos de Teorias de Leitura. Defende-se
que uma maior conscientização do processo de leitura permite ao professor (de qualquer
disciplina) um manejo profícuo do material simbólico que utiliza em sala de aula e, ao aluno-leitor,
a autonomia necessária para interpretar textos e criticar a realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Ato de ler; Interação; Níveis de construção de sentido; Semiolinguística

A propósito
A educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não
mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver
a parte poética de nossas vidas.
(Edgar Morin,2008)

O resultado da prova de redação do último Exame Nacional do Ensino


Médio1, realizado em novembro de 2014, é mais um registro do mau desempenho
da Escola Básica no Brasil. Dos 6,2 milhões de candidatos, 654.971 mil tiraram até
300 pontos (do total de 1000) e 529.374 tiraram zero. Desse total de zeros,
217.339 tiveram como motivo a fuga ao tema2. Em outras palavras, em vez de
discorrer sobre “publicidade (destinada ao público) infantil” a partir dos textos
motivadores que compunham a proposta de redação, os textos tratavam não só de
violência contra a criança, pedofilia, crianças na internet, mas também de
esgotamento sanitário, educação precária, lei seca, entre outros assuntos. É preciso
lembrar também que textos sobre exploração de atores mirins em publicidade, por
exemplo, foram bastante recorrentes e não configuraram fuga ao tema, mas
“tangenciamento” e, mesmo desviados da ideia fundamental, não foram anulados.

1 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-01/resultado-do-enem-
mostra-fragilidade-na-leitura-e-na-escrita-dizem. Acesso em 05/02/2015.
2 A anulação também foi atribuída a outros motivos, como cópia dos textos motivadores (13.039),

inserção deliberada de parte desconexa (3.362), desrespeito aos direitos humanos na proposta de
intervenção (955), não atendimento ao tipo textual (4.444), texto com menos de oito linhas (7.824),
ou outros motivos (1.508). Disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/os-erros-
mais-comuns-de-quem-teve-a-redacao-anulada-no-enem.Acesso em 06/02/2015.
Fuga do tema ou tangenciamento não são problemas de redação. São
indicativos do insucesso, por grande parte dos egressos do Ensino Médio,
sobretudo, na compreensão da proposta de redação, ou seja, na leitura. O conjunto
de textos motivadores da proposta em questão era formado por um trecho de
reportagem, um infográfico e um parágrafo de um livro que tratavam do tema já
explicitado no comando da prova. O primeiro falava sobre a aprovação da
resolução, em abril de 2014, que considera abusiva a publicidade dirigida à criança
que a induza ao consumo e utilize elementos do universo infantil (desenhos
animados, bonecos, linguagem infantil etc.) para esse fim. O infográfico revelava
como a publicidade infantil é tratada em vários lugares no mundo. O último foi
extraído de livro que trata da necessidade de preparar as crianças para receber as
informações do “mundo exterior”3. Três textos cuja linguagem objetiva e clara não
oferece risco de duplos sentidos, ou de implícitos talvez imperceptíveis para os
mais desatentos. Esse conjunto, portanto, além de ter a função de motivar o
desenvolvimento de uma argumentação com uma proposta de intervenção para o
problema apresentado, deveria servir como delimitação temática, ou como uma
orientação sobre o assunto a ser escolhido para a produção textual. Por que não
funcionou assim no caso das redações que fugiram do tema e que o tangenciaram?
As respostas plausíveis estão entre a não leitura da proposta e o mau
desempenho na leitura, pois, se algumas dessas redações trataram de assuntos
completamente desconectados do tema proposto, outras se desviaram dele, mas se
mantiveram ligadas – de forma equivocada – a algum elemento presente no
conjunto de textos motivadores. Por exemplo, muitas redações trataram de
“abusos” sofridos pelas crianças (talvez pela menção da publicidade “abusiva”), ou
da farta exposição das crianças na internet, tornando pública sua vida privada
(talvez pela menção de “publicidade”), ou ainda da exploração do trabalho infantil,
seja na área publicitária, seja em qualquer área. Entre essas possibilidades, em
comum, os problemas de compreensão da proposta induziram o candidato à
extrapolação do tema. Como em tantos vestibulares, reitera-se: foi a inaptidão para
a leitura que levou à anulação da redação, e não o mau desempenho na escrita.

3 Referências, respectivamente, como mencionadas no caderno da prova: 1) IDOETA, P.A.; BARBA,


M.D. A publicidade infantil deve ser proibida? Disponível em www.bbc.co.uk. Acesso em 23 maio
2014. (Adaptado). 2) Disponível em www1.folha.uol.com.br. Acesso em 24 jun. 2014 (Adaptado). 3)
SILVA, A.M.D.; VANCONCELOS, L.R. A criança e o marketing: informações essenciais para proteger
as crianças dos apelos do marketing infantil. São Paulo: Summus, 2012. (Adaptado).
Esse fato é mais uma comprovação da premência do fomento de maior
qualidade da Educação no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao
desenvolvimento da autonomia linguageira (constituída também pela competência
leitora) do aluno no Ensino Básico, que poderá levá-lo a uma aprendizagem
autossuficiente e, consequentemente, a uma real inserção cidadã, com voz ativa e
leitura crítica do mundo que o cerca. Nessa direção, defende-se, aqui,
especificamente, que o trabalho consciente com o desenvolvimento da
competência leitora do jovem aprendiz, em todos os anos do Ensino Básico e em
todas as aulas (de todas as disciplinas), é uma proposta de intervenção pedagógica
que pode ajudar a alterar o quadro atual de baixo desempenho dos egressos do
Ensino Médio e que deve ser discutida nos diversos ambientes de formação de
professores. Todas as disciplinas trabalham formas e conteúdos específicos que,
imbricados, capacitam o aprendiz a decodificar e compreender textos e, com um
pouco de empenho, interpretar e questionar a própria realidade. É da soma dos
conhecimentos adquiridos, sobretudo, na Escola Básica, que se cria o estofo
interpretativo necessário para a autonomia leitora.
Pretende-se, neste trabalho, problematizar o ato de ler, destacando
estratégias de leitura que ultrapassam a simples decodificação, utilizadas na
prática pedagógica de qualquer disciplina da Escola Básica. Pressupõe-se, para
isso, uma perspectiva interativa, que considera a participação do sujeito-leitor na
construção do sentido textual a partir de suas experiências e seus conhecimentos,
do reconhecimento do outro e das circunstâncias em que se dão as trocas
comunicativas engendradas pela leitura, em conformidade com o material formal
que se apresenta. Toma-se a noção de leitura em seu sentido mais amplo, dirigida a
textos pertencentes a gêneros variados, inclusive os de semiose mista.

O ato de ler, entre dados e expectativas


O ato de ler pode ser definido como um processo interativo de construção de
sentido, baseado na criação de expectativas concernentes aos saberes partilhados
pelos interagentes de uma troca comunicativa estabelecida por meio de um texto. O
sentido é construído nas relações entre texto e contexto, entre produtor e leitor e,
enfim, entre o que está explícito no texto e o que é evocado. Em suma, o ato de ler
exige do leitor capacidade de criar expectativas e de estabelecer relações.
Como processo interativo que é, organiza-se a partir da simples existência
do outro com quem se entra em ação mútua – ainda que este outro ganhe
existência apenas no e pelo texto. O sujeito a que se destina o texto, de certa
maneira, “comanda” as escolhas feitas pelo produtor, que devem combinar com a
imagem que se faz dele (do leitor) e daquilo que se imagina ser capaz de
reconhecer, com o intuito de se construir um texto provavelmente inteligível.
Quanto mais o leitor estiver aderido a esse projeto de destinatário inscrito no
texto, mais terá condições de interpretá-lo. Na perspectiva oposta, aquele a quem
se destina o texto também leva em consideração o enunciador, seu papel social e o
modo como ele se mostra na comunicação. Nesse nível de construção de sentido –
o nível situacional, ou circunstancial – ocorre o processo de transação
(CHARAUDEAU, 2005, 2008), que ajusta o contrato às possibilidades
comunicativas dos interagentes, ou do que um imagina a respeito do outro. É o
processo de transação que limita escolhas e expectativas nas duas extremidades da
comunicação.
Ainda relacionado às escolhas e expectativas, outro dado bastante relevante
a ser considerado é o gênero discursivo ao qual se filia o material a ser lido, que, de
acordo com as circunstâncias, vai determinar o estilo do texto, sua estrutura básica
e seu provável universo temático. Junto com outros saberes partilhados pelos
interagentes, sejam de conhecimento ou de crença, o gênero discursivo pertence a
outro nível de construção de sentido – o nível discursivo – e participa do processo
de transformação (CHARAUDEAU, 2005, 2008), que se dá na semiotização do
mundo, isto é, na passagem do mundo a ser significado ao mundo significado, ao
mundo semiotizado, atingindo o nível mais superficial da construção de sentido - o
nível semiolinguístico. Na transformação, que só funciona atrelado à transação, os
seres do mundo a que o produtor se refere são identificados e qualificados, são
dadas suas ações e as relações de causalidade entre elas. O resultado desses dois
processos imbricados – de transação (entre os interagentes, ainda que virtual) e de
transformação (das ideias sem forma em signos organizados com um propósito e
uma intenção) – se materializa na forma de um texto, como um recorte simbólico
da realidade, passível de interpretação. O sucesso desse processo dependerá, pois,
de vários fatores e do acionamento de múltiplos saberes.
A charge reproduzida a seguir servirá para a demonstração do
funcionamento indissociável desses níveis de construção de sentido – situacional,
discursivo e semiolinguístico. Ela foi publicada em 14 de janeiro de 2015, na capa
do jornal satírico francês Charlie Hebdo, após o ataque terrorista ocorrido uma
semana antes, promovido por extremistas muçulmanos, que resultou na morte de
doze pessoas.

Fig.1 – Capa da edição pós-ataque terrorista.


Disponível em http://charliehebdo.fr. Acesso em 06 fev. 2015.

A leitura dessa charge pode ser considerada bastante difícil devido à


complexidade de saberes exigidos para sua interpretação. O gênero charge é usado
com a intenção de se criticar um tema da atualidade. Sua forma é geralmente
constituída por uma imagem e poucas palavras que, conjugadas, sintetizam
sentidos ligados a um evento específico e/ou uma ideologia bastante difundida,
que se deseja questionar. As imagens que constituem as charges são, portanto,
símbolos, ou representações que habitam o imaginário sócio-discursivo de um
determinado grupo social e, por isso, devem ser facilmente reconhecidas. Esses
dados do nível discursivo possibilitam a criação de várias expectativas antes
mesmo de se iniciar o “escaneamento” dos elementos constitutivos do texto em si.
Partindo da extremidade da interpretação e do texto apresentado, o que se
observa é a imagem de um homem com um turbante que carrega um cartaz com os
dizeres “Je suis Charlie” (“Eu sou Charlie”). Acima dessa imagem, está escrita a
frase “Tout est pardonné” (“Está tudo perdoado”). Além de ser necessário conhecer
o idioma francês, no qual se apresentam os dizeres, é preciso reconhecer a figura
humana como uma representação do Profeta Muhammad, ou Maomé, como
também o nome Charlie como o do jornal satírico francês no qual a charge está
sendo veiculada. Também é fundamental saber que, para os muçulmanos, é um
desrespeito representar imageticamente o Profeta e que o jornal, ao fazer isso, não
considerou esse fato. Esses saberes precisam pertencer ao repertório do leitor a
fim de que ele compreenda a charge. Os elementos do nível superficial que evocam
esses saberes, tanto os verbais quanto os imagéticos, fazem parte de códigos
específicos e, para além dos códigos, apontam para saberes de crença, que também
pertencem ao nível discursivo e estão atrelados a um imaginário específico.
Para interpretar a charge integralmente, porém, ainda será preciso
conhecer a história de sua origem, anterior ao próprio texto, ligada ao ataque
terrorista em si, mas também ao estilo do Charlie Hebdo, assumindo, no nível
situacional, a perspectiva da leitura crítica exigida pelas circunstâncias
comunicativas que envolvem esse jornal. O elemento que aponta para essa história
é o cartaz com os dizeres “Je suis Charlie”, repetido pelo mundo afora por aqueles
que se solidarizaram com os jornalistas, vítimas (fatais e sobreviventes) do ataque,
numa demonstração de repúdio à atitude extremamente violenta. Na charge, é o
próprio Profeta Muhammad, mais uma vez representado imageticamente na capa
do jornal, quem empunha o cartaz e verte uma lágrima, numa nova crítica à atitude
extrema dos terroristas.
Um leitor que não tenha conhecimento desse contexto histórico
simplesmente ignorará o sentido da charge, principalmente por se tratar de um
texto vinculado a um evento que diz respeito à história da colonização francesa e
dos muçulmanos e às crenças de cada um desses grupos. Se, para os franceses (e
para quem se solidarizou com eles), a imagem do Profeta é apenas um elemento
satírico e o ataque vitimou a “liberdade de expressão”, para os muçulmanos (e para
quem se solidarizou com eles), a utilização da imagem é, na verdade, uma grande
falta de respeito – ainda que a maioria não concorde com o terrorismo.
Para esse entendimento, deve haver um investimento pesado no nível
discursivo de construção de sentido, pois saberes ligados à História e à Geografia,
por exemplo, são essenciais. Identificar um homem com turbante não é suficiente:
é preciso identificar o Profeta e o evento histórico que subjaz ao texto. Para
corroborar essa afirmação, basta a brincadeira feita por franceses em um blog4,
que “explica” a capa em questão “para aqueles que não entenderam nada”:
segundo os blogueiros, o homem representado imageticamente seria o próprio
jornalista Charlie Buca (o cartaz com o nome indicaria isso), com barba de duas
semanas, que, desejando mudar de vida, faz uma torta de cebolas para participar
do Master Chefe (programa de culinária em que competidores preparam pratos
com objetivo de ganhar um prêmio). A roupa branca e o chapéu de cozinheiro – e
não um turbante – indicariam isso. O cartaz com o nome do concorrente era
obrigatório. A frase “Tudo está perdoado” foi adicionada pela produção do
programa em referência às situações críticas em que os candidatos muitas vezes se
colocam. Em outras palavras, é tudo uma questão de (má) interpretação, caso os
elementos contextuais evocados pelo texto não sejam considerados na leitura. O
sentido extrapola a direção dada pela organização textual e por sua inserção
discursiva.
O que se pretende evidenciar com essa explicação é o grau de complexidade
exigido na leitura “madura” de um texto como o dessa charge, esperado para o
egresso do Ensino Médio. A única dificuldade que um leitor deveria apresentar
nesse nível de escolaridade diria respeito apenas à aquisição de conhecimento
necessário para a compreensão de textos que, como esse, não pertencem a seu
universo cultural e, portanto, deixam lacunas a serem preenchidas. Para isso, mais
leitura e mais conhecimento. Tanto as estratégias de compreensão, relativas à
observação da superfície textual e sua organização, quanto as de interpretação,
relativas à realização de links, ou vínculos, entre essa superfície e os contextos
imediatos e mediatos, devem estar internalizadas e compor o aparato
interpretativo que dá autonomia ao leitor. Além disso, o costume de perguntar “por
quê?” pode garantir uma atitude crítica e uma real inserção social.

4 Disponível em http://bernat.blog.lemonde.fr/2015/01/14/explication-de-la-couverture-de-
charlie-hebdo-pour-les-types-qui-ny-comprennent-rien/ Acesso em 09 fev. 2015.
Para que essas estratégias sejam trabalhadas na Escola Básica, é necessário
que, na formação dos professores, elas sejam colocadas em evidência
incessantemente. O investimento em atividades ligadas às muitas estratégias de
leitura deve ser direcionado de acordo com a faixa etária e o nível de escolaridade,
a fim de se desenvolverem habilidades de forma escalonada, mas não isolada, já
que convergem para um único fim: o sentido. E isso inclui a interpretação de
imagens, infográficos, mapas, coordenadas geográficas, linguagem matemática,
expressões artísticas, bens culturais, que dependem do reconhecimento não só de
códigos específicos, como também da referência a um elemento do mundo, cujos
valores são passíveis de reconhecimento e de crítica.
Vicent Jouve, em seu livro A leitura (2002), cita Pour une sémiotique de la
lecture (Por uma semiótica da leitura), de Gilles Therién, para explicar o ato de ler
como um processo de cinco dimensões: neurofisiológica, cognitiva, afetiva,
argumentativa e simbólica. Na dimensão neurofisiológica, exige-se o bom
funcionamento do aparelho perceptivo e das diferentes funções do cérebro que
permitem ao leitor a identificação e a memorização dos signos. Na dimensão
cognitiva, exige-se do leitor um esforço de abstração para que se realize a
conversão das palavras (e, pode-se acrescentar, de outros tipos sígnicos) em
elementos da significação. Na dimensão afetiva, são suscitadas emoções a partir
das reflexões feitas pelo leitor. A identificação do leitor com uma história, por
exemplo, depende fundamentalmente do acionamento de sua afetividade. Além
disso, como todo texto depende do engajamento do autor perante o mundo e os
seres, não se pode desprezar a dimensão argumentativa da leitura, já que o texto
tem como uma de suas funções levar o leitor/interpretador a uma certa conclusão,
ou desviá-lo dela. E, para finalizar, a dimensão simbólica, que age nos modelos do
imaginário coletivo, em função da interação entre a leitura e os esquemas
dominantes de um meio e de uma época. Dessa descrição do processo de leitura,
salientam-se dimensões que, se não representam as únicas preocupações no
desenvolvimento da competência leitora, são as que parecem necessitar de maior
conscientização no trabalho com a leitura na Escola Básica. Essas dimensões são
mais ou menos enfatizadas em cada fase do ensino-aprendizagem, embora estejam
presentes em todas.
Considerando-se as faixas de leitores conforme discriminadas por Coelho
(2000) - pré-leitor, leitor iniciante, leitor-em-processo, leitor fluente e leitor crítico
–, pode-se afirmar que, se, para o pré-leitor, o trabalho com a leitura deve incidir
primordialmente na dimensão neurofisiológica, com ênfase na percepção e
memorização de elementos, para o leitor iniciante, a ênfase deve ser comumente
dada na conversão dos significantes em elementos de significação, ou seja, deve
haver um investimento maior na dimensão cognitiva. Essa fase corresponde, em
geral, ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental. No segundo ciclo, começa-se a
investir na dimensão argumentativa, pois, na passagem da compreensão à
interpretação, necessita-se de um ajuste à proposta de significação oferecida pelo
texto por parte do leitor-em-processo. Esse investimento se alastra até o terceiro
ciclo, quando, em geral, o leitor atinge mais fluência e é capaz de maior reflexão,
havendo um maior engajamento do leitor na experiência lida e, consequentemente,
sua percepção do mundo aumenta. Nessa fase, a dimensão simbólica começa a ser
mais evidenciada na interpretação, que deverá alcançar total autonomia no quarto
ciclo, quando o leitor deverá atingir a criticidade. No Ensino Médio, espera-se que o
leitor atinja maturidade e independência na leitura. Já a dimensão afetiva será
trabalhada em todas as fases, de diferentes maneiras, com mais ou menos
consciência e, sobretudo, a partir da leitura literária, cuja especificidade estética
garante uma resposta emocional quase sempre mais contundente do que é
possível observar em outros tipos de leitura (sem que seja exclusiva da literária). A
afetiva é uma dimensão profundamente ligada à simbólica e deve ser observada
em sua característica reativa, pois é ela que leva o leitor ao maior envolvimento
com o material cultural.
De acordo com Charaudeau (2008), a interpretação depende da criação de
expectativas, não só em função da apreensão dos componentes do material a ser
interpretado, mas também da consideração do espaço/momento de inserção desse
material em um contexto que lhe garante coerções para que o sentido não se perca,
ou se desvie da intenção do produtor. No processo ensino-aprendizagem, o
educador assume o papel de mediador de leitura e, ao apresentar um material para
ser interpretado pelos alunos, pode suscitar expectativas que apontem o sentido
do texto, ou mesmo oferecer dados que justifiquem, por exemplo, uma
extrapolação. A criação de expectativas é um exercício que aciona o
reconhecimento de símbolos, esquemas mentais, conhecimento objetivo, memória
pessoal que, para além do texto, sustentam os sentidos que não estão explícitos,
mas são evocados por ele. A leitura conjunta pode ser uma atividade profícua para
o desenvolvimento da habilidade interpretativa por ser propícia à troca de ideias e
de perspectivas. Caso um professor trabalhasse no Brasil com a charge a seguir,
outra capa do jornal Charlie Hebdo, tendo ultrapassado a barreira da língua com
uma versão traduzida, o sentido seria mais prontamente alcançado do que com a
charge apresentada anteriormente – não só por causa do domínio de saberes que
permitem as inferências, mas, sobretudo, pelas representações utilizadas e sua
repercussão na cultura brasileira.

Fig. 2 – Capa por ocasião da visita do Papa ao Rio de Janeiro.


Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo. Acesso em 09 fev. 2015.

Nessa capa, o Papa Francisco é caricaturado como se estivesse fantasiado


para o carnaval, vestido com uma tanguinha e sutiã e de salto alto. Dançando, diz:
“Tudo para conseguir clientes”. O reconhecimento desses dados explícitos
provavelmente seria realizado sem muito esforço, pois a figura do Papa é bastante
conhecida no Brasil, tanto quanto os elementos que evocam o carnaval. Como há
uma maioria católica entre os brasileiros, a “sátira” com o Papa pode provocar uma
reação mais forte do que provocaria uma das charges que figurativiza o Profeta
Muhammad, pouco conhecido pela maioria. O sentimento reativo que essa charge
pode provocar nos brasileiros envolve os saberes de crença e os valores atribuídos
ao carnaval, aos “destaques” das Escolas de Samba nos quais se basearam para
figurativizar o Pontífice, o emprego da expressão “clientes” no lugar de “fiéis”, em
referência aos católicos, e tudo o que esses elementos representam para os
brasileiros. A reação afetiva obtida com essa provocação no grupo social brasileiro
católico, principalmente, não será a graça, o humor, mas, provavelmente, a
indignação e a revolta. Outras charges do Charlie Hebdo apresentam imagens
consideradas ainda mais desrespeitosas em relação às religiões em geral, como
cenas pornográficas envolvendo símbolos religiosos. Segundo Charaudeau (2010),
há representações com forte caráter patêmico, cuja reação emocional pode ser
prevista pelo produtor por causa dos saberes de crença partilhados por uma dada
sociedade. Esse objetivo parece se evidenciar no “estilo” do jornal satírico.
A reação emotiva é também ingrediente da interpretação. Agregada aos
valores socialmente atribuídos às representações, pode ser prevista na
textualização e utilizada como fator de adesão do leitor ao projeto significativo
instaurado pelo texto. Isso pode explicar – ainda que jamais possa justificar – a
reação extremada dos terroristas que atacaram o Charlie Hebdo, tomados de
indignação por tantas charges que desrespeitaram profundamente (na perspectiva
dos muçulmanos) o Islã. Em graus diferentes nos diversos gêneros discursivos,
esse ingrediente, “automático” e programável, engaja o leitor sem que, na maioria
das vezes, ele tenha consciência disso. Seu papel social, seu sentido de pertença a
um grupo e o grau de criticidade que conseguiu desenvolver poderão dar-lhe
consciência das estratégias de sedução impregnadas no texto. Da mesma maneira,
são esses os fatores que determinam o posicionamento do leitor diante das ideias
defendidas nos textos, na maior parte das vezes, de modo subjacente. A persuasão,
como a sedução, envolve o sujeito que interpreta, induzindo seu raciocínio e
fazendo-o acreditar numa ideia que parece ser sua, mas que, na verdade, estava
programada para emergir como conclusão durante a leitura, caso o leitor não
mantenha, por meio da criticidade, um distanciamento seguro em relação às
amarras do texto.
Gêneros sintéticos como a charge, a publicidade, o poema, a crônica, o conto
curto, entre outros, justamente por serem concisos, deixam pistas para um cálculo
interpretativo exigente de saberes extratextuais e, portanto, tornam-se excelente
material de trabalho. Os minicontos5 a seguir permitem a comprovação dessa ideia.
A partir de um mínimo de informações, é possível, graças à criação de expectativas,
ampliar a significação na direção dos saberes implícitos acionados por seus poucos
elementos e ter o sentido do texto completo.
Texto 1
À venda: sapatos de bebê, sem uso.
Hemingway

Texto 2
Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso

Texto 3
Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.
Kafka

No texto 1, a abertura com a expressão “à venda” e a objetividade do texto


podem encaixá-lo no gênero anúncio (de venda, ou classificado). O objeto à venda –
“sapatos de bebê” – e sua caracterização – “sem uso” – não remeteriam a uma
fábrica ou a uma loja de utensílios para crianças, pois, em ambos os casos, está
implícito que as peças não teriam sido usadas. A caracterização provoca a
imaginação do leitor para o fato que teria levado à não utilização dos sapatos:
morte prematura do bebê? Impossibilidade de convivência com ele? Rapto?
Excesso de presentes que a criança poderia ter recebido? Tratando-se de um
miniconto, provavelmente a possibilidade mais dramática teria sido preferível. Se
entrar em consideração o nome do autor – Hemingway – e a imagem criada a seu
respeito (repórter de guerra, engajado politicamente; emocionalmente instável,
suicida-se em 1961), a dramaticidade seria corroborada. Em outras palavras, o
conjunto de elementos assim dispostos induz o leitor à abertura de um esquema
mental ajustado às crenças e valores partilhados na interação por meio do texto.
Já os textos 2 e 3 trazem elementos insólitos que os colocam no rol de uma
literatura fantástica: a presença de um dinossauro (que permanece “lá” mesmo
após a personagem acordar) e a atitude humanizada de uma gaiola (que sai à
procura de um pássaro). Seus autores (Monterroso e Kafka) reforçam essa

5 Disponível em http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/30-contos-de-ate-100-
caracteres. Acesso em 09 fev. 2015.
categorização, por serem reconhecidos por seu estilo literário. Embora insólitos, os
elementos também se revestem de caráter patêmico, por estarem atrelados a uma
“racionalidade emocional”: o dinossauro, mesmo “virtual”, é considerado um
monstro perigoso que causa medo; a gaiola, um “ser” aprisionador. Dada sua
natureza insólita, a interpretação, nesses casos, é mais fluida e ampla, pois
ultrapassa o limite da realidade palpável. Mesmo assim, são as expectativas
acionadas pelos componentes textuais que a direcionam.
É preciso partir da percepção e apreensão daquilo que o texto apresenta
explicitamente e do modo como se apresenta, para que sejam feitas as relações
com outros textos, com o gênero a que se filia, com suas circunstâncias de
produção e, enfim, chegar à interpretação, criando expectativas, testando-as,
comprovando-as, ou excluindo-as. É possível observar os elementos
composicionais da tirinha a seguir como estopim, no nível semiolinguístico, para as
relações com outros textos, com dados culturais, com engajamento social, no nível
discursivo. O sentido será finalizado de acordo com as circunstâncias da troca
fomentada pela tirinha, no nível situacional.

Fig. 3 – Tirinha (LAERTE, 2005)


Na sequência, uma ovelha – negra – pasta sozinha até que chegam outras –
brancas – de um evento bastante empolgante, segundo seu relato. Enquanto
descrevem o evento, a ovelha solitária se aborrece com o fato de as outras
enfatizarem sua segregação por causa de um castigo. Essa seria apenas uma
história de zombaria entre amigos, caso as relações com os dados extratextuais
não fossem feitas. A figura de uma ovelha negra é convencional e simboliza o
indivíduo que age em dissonância com seu grupo e é, portanto, passível de punição.
O grupo de elementos citados na descrição do evento (“estrelona enorme”, “o
burro e a vaca ficaram de camarote”, “camelo – três!!!”) evocam a cena do Natal.
É pertinente citar que essa tirinha é apresentada em um livro didático de 6º
ano, largamente adotado. Explorada por nós em uma turma de escola pública, teve
como entrave interpretativo não só o dado simbólico atribuído à figura da ovelha
negra, mas também os elementos descritores do evento, relacionados, de acordo
com os alunos, a um show musical. Como comprovação, os alunos usaram os
elementos composicionais como próprios do universo dos shows: a estrelona se
associava à iluminação, ou, metaforicamente, a um cantor/músico; o camarote é
próprio do espaço que envolve um show e, além disso, a expressão “cara, foi
demais” revela que foi um evento altamente prazeroso, como todo show deve ser.
O título do livro de onde a tirinha foi extraída – “Deus segundo Laerte” – vincularia
a interpretação a um universo simbólico ligado à religião e, portanto, seriam
descartadas outras expectativas. Após nova provocação por parte da mediadora,
apelando para a intertextualidade com “outra história”, alguns alunos atentaram
para os elementos da cena de Natal. Aliás, a interpretação da tirinha de acordo com
o universo do cristianismo e com a própria natureza do gênero é uma forte crítica a
respeito da total falta de piedade, ou até de bullying, por parte dos “não pecadores”
(ovelhas brancas) diante daquele que é segregado (ovelha negra), configurando
uma incoerência com a doutrina religiosa.
Esse movimento interpretativo baseado em expectativas é natural e
interativo. O problema da extrapolação surge, tantas vezes, ou porque o leitor não
consegue fazer relações, ou porque o espaço mental acionado não condiz com
aquele programado pela textualização. Isso geralmente ocorre por algum elemento
composicional não ter sido observado como parte integrante do sentido, mas como
elemento periférico. A inferência correta só será feita pelo leitor que conhece os
dados pressupostos pelo produtor, analisa a organização do conjunto e a submete
à relação com o contexto. Os dados, os saberes, as relações com outros textos, não
são de responsabilidade única do professor de língua portuguesa (geralmente
“culpado” pelos resultados pífios dos alunos quanto à leitura), mas de todo
professor que, em cada aula, faz mediação leitora e pode (e deve) ensinar ao aluno
a importância das relações entre as partes dos textos e dos textos com outros
textos e com outras informações – inclusive de outras matérias e da experiência
pessoal do aluno.
Por uma pedagogia da leitura, para uma compatência leitora
Ler é mais importante do que estudar
Ziraldo

A frase da epígrafe é lema para Ziraldo: “Ler é mais importante do que


estudar”. Impactante, deixa implícita a crítica a respeito de um estudo que, pode-se
dizer, conteudista, não prepara efetivamente o indivíduo para a vida em sociedade,
nem ensina o aluno a aprender autonomamente, pois, para isso, em primeiro lugar,
ele precisa saber ler, interpretar. Estudar, repetindo fórmulas e conceitos,
decorando classificações, pode preparar o aluno para exames de concurso, mas não
o preparará para a reflexão, para o posicionamento crítico, nem para uma
intervenção consciente na realidade. O trabalho de interpretação, exigido nas aulas
de todas as disciplinas, não deixa de prescindir do domínio dos códigos específicos
de cada matéria, mas exige mais atenção ao fornecimento dos saberes implícitos
evocados pelos textos, à oferta de conhecimento de mundo ao estudante, às
atividades que proponham sua intervenção, que o afetem subjetivamente e, com
isso, provoquem seu engajamento.
Charaudeau (2001) explica que a competência linguageira é formada por
três “subcompetências”: a semiolinguageira, a discursiva e a situacional. Para a
autonomia expressiva, o indivíduo deve dominá-las, a fim de interpretar o mundo à
sua volta e agir sobre ele. Por isso, é importante que ele, como leitor, seja capaz de
reconhecer os signos e sua organização formal a partir da competência
semiolinguageira. É preciso, igualmente, que ele seja capaz de relacionar o material
significativo ao seu entorno cultural, a partir dos saberes de conhecimento e de
crença do grupo do qual participa, por meio da competência discursiva. E, com a
competência situacional, aprenda a ajustar os dados relacionados às circunstâncias
da troca comunicativa em que se envolve em cada processo interpretativo. Soma-
se a esse complexo uma competência fruitiva (FERES, 2011), que, desenvolvida,
torne o leitor sensível à percepção e aos afetos, à apreciação estética e ao
reconhecimento das reações emocionais a que está exposto por causa de sua
adesão, ou não, à maneira de pensar de um grupo social. Considerados esses
aspectos, pode-se problematizar o ato de ler e seu desenvolvimento na Escola
como um meio de formar um indivíduo autônomo e crítico.
Referências
CHARAUDEAU, Patrick. De la competencia social de comunicación a las competencias discursivas.
In: Revista interamericana de estudios del discurso – ALED, Venezuela: Editorial Latina, volume I,
número 1, pp. 7-22, agosto de 2001.
____________. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
___________. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. IN: MENDES, E; MACHADO,
I. L. (orgs.). As emoções no discurso, volume II. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010. p. 23-56.
FERES, Beatriz dos S. Leitura, fruição e ensino: com os meninos de Ziraldo. Niterói-RJ: EdUFF, 2011.
JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
LAERTE. Deus segundo Laerte. São Paulo: Olho D’Água, 2005. p.19.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 15.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

Você também pode gostar