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Caderno #05

URDUME
Mulheres que Tecem Pernambuco:
cultura, trabalho e sobrevivência
Clara Nogueira

S E LO
URDUME
O CADERNO
Urdume
é um programa do Instituto Urdume,
que tem por objetivo partilhar, com
aqueles que nos acompanham, ensaios,
esboços e referências de pesquisas que
temos realizado e têm nos acompanhado
nos últimos dois anos.

Sempre com foco em um tema específico,


os Cadernos chegam para complementar
o conteúdo plural que produzimos para a
revista, porém com mais argumentação
histórica e questionamentos que esbar-
ram nas lacunas existentes na produção
teórica na área. Convidamos você, esti-
mado leitor, a adentrar os cadernos e tra-
má-los conosco.

Boa leitura!
Sobre a autora
Clara Nogueira é arquiteta e urbanista (2014); bordadeira; tecelã e crocheteira nos
desvios; Mestra em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
PPGAV — UFPE/UFPB (2019). Doutoranda no programa de pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano MDU/UFPE. Professora na Graduação de Arquitetura e
Urbanismo da Unibra. Idealizadora e coordenadora da pesquisa cultural “Mulheres
que Tecem Pernambuco” aprovada em três editais do Funcultura da Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. Desenvolve estudos e pesquisas que
tratam de questões de gênero, têxtil e território, patrimônio, intervenções urbanas e
instalações efêmeras. Tem o projeto artístico pessoal “Linhas de Fuga” plataforma de
divulgação de seus trabalhos têxteis. Mãe de José e Pilar.
O
projeto “Mulheres que Tecem Pernambuco”1 é uma pes-
quisa cultural que consiste no mapeamento afetivo das
mulheres que trabalham com materiais têxteis no estado,
com a intenção de dar visibilidade ao protagonismo des-
sas mulheres2. Esse projeto foi gestado ainda em 2014, quando as costuras
da vida me fizeram olhar com mais intimidade para a questão do papel
social da mulher e para os problemas trazidos pela invisibilidade que sofrem
as mulheres que manipulam os têxteis3 e fazem desse processo sua cultura,
seu trabalho e sobrevivência.

No começo, ao fazer investigação caseira sobre esse avesso da produção


artesanal têxtil em Pernambuco, procurei saber das histórias de vida das
mulheres artesãs. No entanto, acabei achando alguns nós. Por exemplo, a
pequena (ou por vezes inexistente) referência às mulheres em livros, catálo-
gos e sites que tratavam do assunto. Da mesma forma, sobre algumas tipo-
logias artesanais havia mais trabalhos que outras, como o Bordado e a Ren-

1 O resultado desta pesquisa está disponível no site www.mulheresquetecempe.com.br, onde há as narrativas de vida de
cada mulher, textos sobre as tipologias artesanais têxteis e as cidades, vídeos e fotografias.

2 Nas especificidades têxteis estudadas na pesquisa, a mulher exerce o protagonismo das práticas culturais. É delas que
depende a criação, manutenção e repasse desses conhecimentos manuais. Por isso o recorte temático da pesquisa. Não
queremos concluir que homens não façam, mas expressar que, nas cidades em que fomos, a maioria das pessoas que
exercem o fazer têxtil manual são mulheres.

3 Para entender mais profundamente sobre relações de gênero e têxtil indico a leitura do 2° capítulo de minha disser-
tação de mestrado: “Por um fio: a resistência e devires nos trabalhos de Cristina Carvalho”. Disponível em: https://
repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/19657?locale=pt_BR. Ou o artigo de Ana Paula Simioni
“Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e Rosana Palazyan” (2010). Disponível em:
https://repositorio.usp.br/item/002184146.

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da Renascença, mas, D. Odete, rendeira, 2017. Foto Laís Domingues

mesmo sobre estes,


observei haver pouca
atenção às fazedoras.
Muitas vezes as mu-
lheres citadas eram as
mestras devidamente
reconhecidas por seu
trabalho, como Dona
Odete4 (rendeira) —
que tivemos a honra
de conhecer na exe-
cução do projeto. Fui,
assim, percebendo
que o foco principal
nos materiais que encontrei era o artesanato em si, seu histórico, suas etapas
de produção. Mas nessa primeira investigação me intrigava a lacuna, as mui-
tas mãos sem rostos que encontrei.

Portanto, “Quem são essas mulheres?” foi a primeira pergunta que con-
duziu esta pesquisa. Levando em conta minha formação em arquitetura e
urbanismo, passei a mapear as cidades de Pernambuco reconhecidas pela
produção de artesanato têxtil, me levando a uma segunda pergunta: “Onde
estas mulheres estão”?

4 Narrativa de vida de Dona Odete disponível http://mulheresquetecempe.com.br/artesa/dona-odete/

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Desta forma, a pesquisa se formatou a partir do entrelaçamento entre ar-
tesanato e cidade, levando-se em conta o reconhecimento público de cada
região, como: Lagoa do Carro “Capital do Tapete” (Lei n° 15.727/2016);
Poção “Capital da Renda Renascença” (Lei n° 14.365/2011); Tacaratu
“Capital do Artesanato de Redes e Mantas” (Lei 14.367/ 2011); e Maca-
parana — Capital Estadual do Crochê — Lei 5. 279/2014 e Passira, co-
nhecida como a terra do bordado manual. Como afirma o sociólogo Henry
Lefebvre “a cidade tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de
pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condi-
ções históricas” (2001, p. 47).

Reprodução do site Mulheres


que Tecem Pernambuco

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A realização

A pesquisa “Mulheres que Tecem Pernambuco” foi contemplada por três


editais do Fundo de Incentivo a Cultura da Fundação do Patrimônio Histórico e Artísti-
co de Pernambuco e teve, até agora, duas edições nas quais foram mapeadas 31
Mulheres5: Ana Alice, C6., Carla, D. Elza, Dedé, Dona Lúcia, Dona Odete,
Emília, Genelícia, Germana, J., L., L., Léia, Luciene, Maria da Paz, Maria
de Odon, Mariélia, Milene, Neném, Nete, R. Renata, Risolange, Rosiane,
Rudivânia, S., T., Teresinha Lira, V., Viviane.

A primeira etapa foi realizada em 2017 e em 2018 apresentamos o resul-


tado da vivência e pesquisa com dezoito mulheres de três cidades de Per-
nambuco: Lagoa do Carro (Zona da Mata Norte), com a Tapeçaria; Poção
(Agreste Central) com a Renda Renascença, Tacaratu (Sertão Itaparica),
com a Tecelagem.

Na segunda etapa, em 2019, fomos a mais duas cidades: Passira (Agres-


te Setentrional), cidade na qual é feita o Bordado Manual e Macaparana
(Mata Norte), onde é feito o Crochê. Em 2020, fomos contempladas pela
terceira vez, estabelecendo o objetivo de pesquisar as “mulheres que te-
cem” no Núcleo Centro da Região Metropolitana do Recife, nas cidades de
Olinda, Recife e Camaragibe, porém, em razão da pandemia da Covid-19,
ainda não iniciamos a pesquisa nesta 3° edição.

5 Narrativas completas disponíveis em : www.mulheresquetecempe.com.br/mulheres

6 Para entender a restrição da identidade dessas mulheres, ler, neste mesmo texto, a seção “Nas entrelinhas, muitos nós.
Mulheres que tecem, mulheres que plantam e o anonimato sistêmico”.

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Desde a primeira edição, portanto, conversamos com mulheres que fazem
artesanato ou que já o fizeram no passado, que têm esse ofício como ativi-
dade principal ou complementar à sua renda, ou que utilizam das práticas
têxteis em seu cotidiano sem objetivo comercial. Não era obrigatório cadas-
tro ou documentos que as vinculasse à profissão de artesã. Nosso objetivo
era refletir e descrever o papel e importância dessas mulheres no reconheci-
mento econômico e cultural dessas cidades, a partir da visão delas. Por isso,
como metodologia, escolhemos a História Oral e a Cartografia Afetiva.

Ouvir, para nós, tornou-se, portanto, um privilégio, já que os acontecimentos an-


tes somente lidos na precariedade da literatura existente, na “história oficial”, ga-
nharam vida, ao mesmo tempo que formaram redes ainda mais complexas. As
mulheres abriram suas casas para nos receber e contar suas versões. A sabedoria
de vida delas é responsável pela fagulha que acende os textos desta pesquisa. Foi
através dessas narrativas, dessas memórias, que construímos os textos que falam
sobre seus lugares de vivências e sobre o artesanato que elas produzem.

Como num bordado, em que as linhas são trocadas para


que este continue sendo feito, mudando-se as cores, os pontos,
os sentidos, continuando ou desmanchando, trarei
trechos breves das narrativas de vida das 31 mulheres com quem
conversamos e mapeamos até agora em nossa pesquisa.
Considerem, então, os textos abaixo sobre as cidades como um
tecido coletivo e vivo, ainda que resumido, gerado através das
reverberações e entendimentos importantes das falas das mulheres
Lagoa do Carro — Terra do Tapete? não! Terra das Tapeceiras.

“E só existe a terra do tapete porque existe as tapeceiras, se não


existe não existia tapete. Terra do tapete porque quem faz é as
tapeceiras.” (T, tapeceira de Lagoa do Carro, 2017)

Em Lagoa do Carro, onde a principal renda dos moradores é a agricultura


(IBGE, 2015), o “reconhecimento institucional” através da lei estadual que
intitula a cidade veio através da tapeçaria, ou melhor, do empenho das tape-
ceiras que participaram da movimentação para que o distrito fosse reconhe-
cido como cidade. Disse-nos Isabel Gonçalves, sócio fundadora da Associa-
ção de Tapeceiras de Lagoa do Carro (ASTALC), que houve um plebiscito
por meio do qual as tapeceiras se engajaram ativamente na luta pela eman-
cipação de Lagoa
do Carro (que era
distrito de Carpina)
e pelo reconheci-
mento como “Terra
do Tapete” (título
que foi reconheci-
do legalmente pelo
Estado somente em
2015). Além da pró-
pria fundação e ma-

Teresinha Lira, tape-


ceira, 2017. Foto Laís
Domingues

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nutenção da Associação até os dias de hoje. Porém, também tivemos que
editar a participação de algumas dessas mulheres na pesquisa cultural por
serem também agricultoras. Conversamos com mulheres que fizeram par-
te diretamente dessa história, como Teresinha Lira, que trabalhava numa
fábrica de tapetes em Camaragibe, Região Metropolitana do Recife, e foi
a Lagoa do Carro procurando mão-de-obra para produzir os tapetes e tor-
nou este o fazer de centenas de mulheres e o sustento de muitas famílias.
Aí eu me sinto, assim, confortável. Pra mim foi muito bom, sabe? Aí quando eu tô muito
revoltada, eu falo assim: “eu fiz uma cidade e ela não me fez”, que isso aí eu
sei que eu fiz. (Teresinha Lira, tapeceira, mora em Carpina, 2017)

Em 2017, quem faz essa ponte entre a fábrica de tapetes em Camaragibe e


Lagoa do Carro é Léia, que nos disse que fazia para Teresinha Lira: Teresa vi-
nha com o carro, cheia
de material e aqui dis-
tribuía pras meninas,
eu fazia, minhas ami-
gas faziam, minhas
irmãs faziam… então
a maioria, todo esse
povo aqui, tudo fazia
com Teresa Lira, tudi-
nho. Eu só comecei a ir
pegar diretamente em

Léia, tapeceira Lagoa do


Carro, 2017. Foto Laís
Domingues

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Camaragibe depois que ela parou. Porque quando ela parou eu ainda fiquei com uma peça
dela em casa fazendo. Aí, desse que eu fiquei fazendo, já peguei, o outro já foi diretamente,
veio pra mim no meu nome, entendeu? (Léia, tapeceira de Lagoa do Carro, 2017)

A ASTALC, fundada em 1989, dois anos antes de Lagoa do Carro ser um


município, tem sua história emaranhada com essa nova condição territo-
rial da cidade. Sob os esforços de Isabel Gonçalves, sócio-fundadora, e de
outras mulheres, a
Risolange, tapeceira Lagoa do Carro, 2017. Foto Laís Domingues
Associação é um
espaço de resis-
tência e luta pelo
desenvolvimento
local e pelo direi-
to das mulheres
artesãs. Mantida
pelas próprias ta-
peceiras, funciona
de domingo a do-
mingo, exibindo os
tapetes que guar-
dam a história de
sobrevivência des-
sas mulheres. Está
localizada à margem da PE-090, com vista pra rua que deságua na lagoa.
Lagoa do Carro por causa da história de luta das mulheres, do quantitativo das mulheres,
porque sempre foram muitas mulheres produzindo e a Associação deu essa força, né? Fez
com o que a cidade tenha esse reconhecimento como terra do tapete. (Risolange, tapecei-
ra de Lagoa do Carro, 2017)

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Em Lagoa do Carro as tapeceiras sofrem com a sazonalidade das vendas
dos produtos. Além disso, o número de membros da Associação, que elas
mantêm sozinhas, vem diminuindo, movimento contrário ao esforço para
continuar produzindo.

Falamos com mulheres que fazem etapas distintas do tapete, como T., que
desenha, e nos explicou seu processo criativo para confeccionar seus tape-
tes: Você tem que parar pra estudar o colorido. Tem que ser tom sobre tom. Se você desenha
com verde você tem que botar o enchimento verde, não vai botar preto, né? Quando não
gosto da cor, eu tiro. Corto todinho e boto outra. Tem que estudar, filha, estudar colorido
é que é ela, tá pensando que todo mundo… “eu faço tapete!” vamo ver como?! Aqui todo
mundo repete um desenho, é bom, mas eu gosto de inventar coisa diferente. (T., tapeceira
de Lagoa do Carro, 2017)

T. é associada na ASTALC, mas, como queríamos conhecer as mulheres


que fazem sob vários perfis de produção diferentes, conversamos com Ne-
ném, que não é associada, embora também “encha” o tapete para algumas
artesãs. Pelo amor por sua agulha e por timidez, escolheu que sua foto de
perfil fosse a de sua agulha, companheira inseparável de muitos anos. Ne-
ném nos falou sobre a quantidade de pessoas que eram vistas no passado
fazendo tapetes nas ruas de Lagoa do Carro: Lagoa do Carro, mulher, era muita
gente fazendo tapete. A gente via era os rapaz na praça, nas calçada fazendo tapete, com
as mães, com as irmãs. (Neném, tapeceira, Lagoa do Carro, 2017)

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As mulheres com Agulha de Neném, tapeceira de Lagoa do Carro, 2017. Foto Laís Domingues
quem conversamos
mostraram, cada
uma à sua manei-
ra, sua ligação com
o fazer. Muitas
estão parando de
fazer ou fazem so-
mente por deman-
das específicas,
para participar de
feiras ou de even-
tuais encomendas.
Muitas não podem
se manter produ-
zindo, ou mesmo associadas, por não terem condições financeiras. Eu amo
fazer tapete. Foi minha vida todinha fazendo tapete, mas vou voltar a fazer, eu tava di-
zendo às meninas: vou voltar a fazer porque agora na feira mesmo não vendi quase nada,
porque eu fiquei quatro anos sem fazer, né? são peças de antigamente. O que eu fiz foi
cem pesinhos, mas mesmo assim eu não tava em condições de comprar um stand com as
meninas.(L. tapeceira de Lagoa do Carro)

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Poção — A renda da Renda Renascença

Poção também era distrito de Pesqueira e somente em 1953 foi emancipa-


da. A Renda Renascença, artesanato têxtil produzido na cidade, é a cultura
de muitas mulheres, e começou a ser feito na década de 1930 nessa região.
Também conversamos com testemunhas dessa história, como a artesã que
abriu as portas da primeira escola de Renda Renascença em Poção, Dona
Odete, que hoje tem 94 anos: Eu digo: ‘Quem quiser aprender pode vim que eu ensi-
no’. A maioria daquele povo de Poção que tem aquelas rendas tem um pedacinho meu ali,
porque os mais velhos aprendeu ensinando os mais novos, né? (...) (D. Odete, rendeira
de Poção que mora em Pesqueira, 2017)

A localização da vila já fazia de Poção rota para as cidades vizinhas e o Esta-


do da Paraíba. Isto também fez com o que a Renda Renascença se alastras-
se pela região. A Feira Livre que acontece desde 1872 era bastante visitada
e se tornou o centro da comercialização dessas peças. A Renda Renascença
também era vendida para mulheres abastadas, que se tornaram grandes
compradoras/ atravessadoras. Artesãs com quem conversamos, e que vive-
ram essa época, nos falaram do reconhecimento econômico e autonomia
que sua Renda Renascença gerava e que foi através dessa cultura que o dis-
trito foi reconhecido economicamente para se tornar cidade. (...) eu levantei
essa casa e essa de cima, tudo com dinheiro de meio-ponto, de verdade, trabalhava dia e
noite, construí minha casa e essa de cima. (Ana Alice, rendeira de Poção, 2017)

Mas, em 2017, quando estivemos com as artesãs, o cenário era muito di-
ferente. Falamos com J., que faz algumas peças, sem vínculo empregatício
para as fábricas que têm na cidade. J. nos contou sobre essa relação e a pre-

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cariedade do trabalho: Ah, minha filha, se fosse só da renda já tinha batido as bota.
Você vê o que sobra. Dentro de uma semana, se você não fazer força, não trabalhar mais,
só vai ganhar aquilo mesmo que você fez a conta. E, aí, dá pra fazer o quê? (J., rendeira
de Poção, 2017)
D. Genelícia, rendeira de Poção, 2017. Foto Laís-Domingues
Há em Poção, as-
sim como em todas
as cidades visitadas
nas edições do pro-
jeto, a ligação en-
tre o fazer têxtil e a
agricultura. D. Ge-
nelícia planta e faz
renda, essa a cultu-
ra dela e de mui-
tas. Fazem renda,
plantam e colhem.
Essas falas quase
que se repetem em
mulheres comple-
tamente diferentes uma da outra. Milho, feijão, mamona, nessa vida, e de
noite era na renascença, candeeiro em cima de um frando assim, que era
pavio nesse tempo tava ali pra trabalhar, pra sobreviver. (D. Genelícia, ren-
deira de Poção, 2017)

Aí pronto a gente só viveu da roça, mesmo depois que eu cresci, com seis anos eu comecei
fazer renda e eu tô com sessenta e sete e ainda tô fazendo hoje, e se Deus quiser vou tra-

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balhar até… se Deus me der oitenta/ noventa anos eu ainda tô na renda se Deus quiser.
(Maria de Odon, rendeira de Poção, 2017)

As mulheres aprendiam Renda Renascença com a mãe, tia, vizinha, muitas


ainda criança pequena. Os pontos? Dois amarrado, pipoca, traça, rechilieu, e quando
o de bandeja eu todo de paraná, hoje o povo usa como amor seguro, é o ponto paraná.
Depois que eu tinha uma vaguinha, eu ia brincar com as minhas bonecas de osso. (V.,
rendeira de Poção, 2017)

Eu aprendi (renascença) assim que eu cheguei aqui. Tinha nove anos. Com mãe. Ela que
me ensinou. É “dois amarrado”. A primeira coisa que eu aprendi. E “sianinha de laço”.
(Carla, rendeira de Poção, 2017)

Hoje, está em andamento o processo (iniciado em 2021) de Registro da


Renda Renascença de Poção, única técnica têxtil que está em processo de
ser considerada como Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco.

Tacaratu — “A pessoa vê uma rede assim ó, pensa que não dá


trabalho”7

Caraibeiras é ainda distrito de Tacaratu, a cidade, “Capital do Artesanato


de Redes e Mantas”, tem essa produção concentrada em Caraibeiras. A te-
celagem é a técnica têxtil utilizada na confecção das redes de dormir e man-

7 Fala de C. Narrativa completa disponível em: http://mulheresquetecempe.com.br/artesa/c/

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tas, e essa produção é o meio de vida de 85% da população de Caraibeiras,
como confirmado no Projeto de Lei Ordinária n° 193/2011 de autoria do
Deputado Aluísio Lessa, que justifica o título estadual.

Nesse texto do projeto de lei, que justifica o título, identificamos, entretan-


to, vários indícios da invisibilidade da mulher tecelã. O fazer feminino das
práticas não é explicitado em nenhum ponto do texto, que ressalta mais a
produção em quantidade da rede e seu reconhecimento econômico. Além
de descrever “a primeira rede tecida” da região, afirma ter sido feita por
um homem8. Outro ponto que toca o texto é a questão da artesania dessa
grande produção, mas, é importante que se diga, a rede de dormir é feita
em partes. Somente o pano da rede pode ser feito por teares elétricos, e o
restante das partes que a conforma são feitas de forma totalmente manual
(punho, prifilo, mamucaba ou cadil, como é chamado na região, e a varan-
da). Esses processos podem ser chamados de artesanais porque dependem
de instrumentos que não substituem a manualidade. E são, ainda hoje, mu-
lheres a maioria das detentoras desses processos artesanais. Os teares de
pau, teares de madeira, ou teares de canela (só existentes nos Sítios), ainda
são utilizados para tecer as redes, porém a quantidade de redes, como tra-
tado no texto de lei, contabiliza a produção dos panos de redes feitas nos
teares elétricos. É válido salientar também que as mulheres que trabalham
nas fábricas em Caraibeiras exercem a função de costureira e os homens
ficam a cabo para trabalhar nos teares elétricos.

8 Um exemplo de história oficial que tenta dar unidade e totalidade indicando a primeira rede tecida. Durante a
pesquisa ficou explícita na fala das mulheres que o exercício na região era majoritariamente feminino, e não houve
consenso quem teria feito a primeira rede.

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Em Tacaratu, a maioria das mulheres com quem conversamos não quis
mostrar o rosto nem serem identificadas. Foi a cidade onde mais percebe-
mos o medo das mulheres de se dizerem tecelãs, fazedoras de redes, artesãs,
porque eram também agricultoras. Assim, porque a gente tece, mulher, e trabalha
na roça, mas é um serviço muito pesado. A gente fica assim abaixada apanhando feijão até
dez, onze horas no máximo que nóis sai da roça. Aí, é do mesmo jeito de tecer uma rede,
fica o dia todinho pra lá e pra cá, aí tem o cadil tem o prefilo e fazer o cordão, que a gente
faz de acolá até a casa da minha tia aqui embaixo. Aí é subindo e descendo, subindo e
descendo um fica lá em cima acochando o cordão, meu marido fica lá e eu fico cá, aí ela
ele cocha, cocha, cocha, quando tá acochadinho tem que juntar três pernas. A gente vai
e junta quando ajunta é que forma o cordão, pra empunhar a rede. Aí, se eu arrumasse
outro emprego melhor bem que era bom, nera? (L., tecelã do Sítio Olho D’água do
Bruno, Tacaratu)
Rudivânia, tecelã, Tacaratu, 2017. Foto Laís Domingues
Nessa cidade foi onde vimos
também a questão da pro-
dução manual estar sendo
substituída por máquinas
(no caso do pano da rede). O
processo era todo manual,
até mesmo o tingimento do
algodão. Era só o fio branco
que comprava, aí comprava
uns quilo de tinta e a gente
ia fazer aquelas meada, pra
poder tingir os fio. Aí a gen-
te batia primeiro, molhava,

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deixava de um dia pra outro pra poder pegar aquela água, molhar bem o
fio, que é difícil de molhar o algodão. Aí a gente ficava batendo numa pe-
dra, carregava água, depois batia numa pedra, pra poder botar fogo no ar-
guidá bem grandão, aí botava fogo, lenha, pra poder, quando tava fervendo,
a gente jogava tinta e jogava meada dentro pra poder a tinta pegar bem. É,
era difícil que só. Hoje em dia, não. Hoje em dia é mais fácil porque já vem
a cor que você quer, você vai no armazém e compra. (Rudivânia, tecelã do
Sítio Olho D’água do Bruno, Tacaratu)

A divisão do trabalho é notoriamente sexista. Muitas das artesãs que te-


cem em teares manuais não trabalham nos teares elétricos. Eu mesma não
tenho coragem de trabalhar no tear
elétrico. É muita energia, eu tenho Mãos de S. fazendo varanda, Tacaratu,
medo da energia. Aqui em casa eu 2017. Foto Laís Domingues

nem tenho tear elétrico. E o ma-


nual são mais as mulher mesmo
que tece. Alguns que passa cadil,
e todos os homens sabem fazer as
coisas aqui, mas a maioria quem
faz é as mulher. (S., tecelã de
Caraibeiras, Tacaratu)

O fazer das redes é parte


do dia-a-dia da população
de Caraibeiras. As mulhe-
res com quem conversamos
passam o dia entre os afaze-

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res da casa, a agricultura (alguns só vão nos Sítios nos fins de semana) e a
tecelagem: Eu acordo cinco horas, primeiro faço um café, depois vou escovar os dente e
tudo, depois venho trabalhar. Depois quando der umas nove horas eu largo, vou cuidar da
comida, vou lavar os pratos e volto pra cá. Aí, daqui eu só paro umas cinco hora, é o dia
todinho trabalhando. É uma luta pra trabalhar. A pessoa vê uma rede assim ó, pensa que
não dá trabalho. Uma rede por trinta reais… inté de vinte e oito eu vendo. (C., tecelã
de Caraibeiras, Tacaratu)

O processo de produção das redes em teares manuais acontece timidamen-


te em Caraibeiras e nos Sítios. Conversamos com M. que tem um processo
criativo profundamente elaborado na escolha das combinações de cores das
tramas. Ah, quando eu quero inventar eu derramo aí os sacos de fio aí no chão e vou…
pega uma listra amarela, uma laranja, outra de outra cor e assim vai… A gente vai
usando os fios e vai fazendo o modelo… Eu pego a trena, né? A gente mede o tamanho dos
quadros aí vai fazendo. (M., tecelã de Caraibeiras, Tacaratu)

Macaparana — as tranças e tramas do crochê

Em 2019, fomos a Macaparana, cidade que detém o título “Capital Esta-


dual do Crochê’’. Através da narrativa de algumas artesãs e de alguns mora-
dores, identificamos que o título estadual foi dado pelo político da oposição.
A cidade tem uma lógica muito típica do interior de Pernambuco, onde
duas famílias importantes são oponentes e se revezam no poder.

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O título que a cidade tem, segundo alguns moradores, foi pleiteado pelo
candidato da oposição, que não estava na gestão durante a nossa estadia na
cidade. Algumas artesãs relataram que a placa que recepcionava os visitan-
tes da cidade com o nome “Capital Estadual do Crochê” havia sido retirada
nessa transição. Percebemos também que, ao visitar o Museu Municipal
Moura Cavalcanti, onde detalham a história da cidade, não havia nenhuma
menção ao artesanato feito pelas crocheteiras. É válido ressaltar, inclusive,
que alguns moradores não sabiam desse título que a cidade possui. “A terra
dos engenhos”, como é conhecida Macaparana, se entrelaça nas falas das
mulheres: Bom, quando eu morava na Usina, por conta do açúcar,
dos sacos de açúcar, minha mãe já dizia que eu já pegava, puxava
o fio do saco de açúcar e com os dedos eu já começava entrelaçar.
E quando a gente veio morar aqui, a gente tinha uma vizinha que fazia crochê, aí eu me
interessei. Aí minha mãe pegou e comprou uma agulha de crochê, e eu com sete anos de
idade já comecei a fazer umas peças. (D. Elza, crocheteira, Macaparana, 2019)

Na “rua”, como é chamado o centro de Macaparana, há vários lugares que


fazem dela uma cidade atrativa. Todos os sábados acontece a Feira Livre
de Macaparana, onde pode ser encontrado um pouco de tudo: de temperos
a artigos de cozinha. O crochê, o artesanato que interessa a esta pesquisa,
estava também sendo bravamente vendido na banquinha da família de Re-
nata. De uma, vai falando pra outra, aí daí vem as encomendas. Assim, eu tenho
um banco na feira, aí todo sábado eu coloco meus artesanatos
lá. Aí eu vendo minhas coisinhas lá. (Renata, crocheteria de Macaparana, 2019)

Quando se trata dos relatos sobre o surgimento do crochê no contexto de


Macaparana, porém, não há uma unidade. Conversamos, por exemplo,

21
Macaparana — Dedé e Germana Foto Laura Melo_edited
com D. Dedé e Germana,
sua filha, duas mulheres
que desde cedo aprende-
ram a fazer crochê. Em
Macaparana, aí eu ficava brin-
cando de noite e as meninas
sempre fazendo croché, né? E
eu apanhava capim novo, desde
moça, pro gado, mas à noite eu
ficava brincando. Aí à noite eu
comecei a fazer croché. Fiz um
xale, meu primeiro trabalho foi
um xale. Nem tinha energia,
fazia no candeeiro, não tinha
energia minha casa. (D. Dedé,
crocheteira de Macapara-
na, 2019)

Sabe-se que o crochê é fei-


to na cidade desde sempre.
E é presente na rotina de
muitas mulheres9. Tenho
uma filha de dezoito anos, Jaqueline. Ensinei à minha filha, acho que ela tinha uns dez.
Só que, assim, eu não tenho muita paciência não, que ela é muito devagarzinho, sabe? Eu

9 Ver texto de Clarissa Machado sobre o crochê de Macaparana. Disponível em: http://mulheresquetecempe.
com.br/arte/croche/

22
prefiro que ela vá cuidar da casa, arrumar uma coisa. E ela também estuda, aí eu tenho
medo, pra ela não prejudicar o estudo dela. (Germana, crocheteira de Macapara-
na, 2019)

O crochê não só é feito por mulheres do Centro de Macaparana. A agricul-


tura se entrelaça com o crochê, na vida das mulheres dos sítios. Minha mãe
tinha muita coisa de crochê. Aí eu gostava de brincar por aí pelo sítio, levava. Aí quando
eu comecei a ficar grande, minha mãe queria me instruir, pra aprender, né? e eu nem
aí. Mainha: “é assim, é assado,
e tal”… e quando eu olhava pra Milene e Emília (filha e mãe), crocheteiras
de Macaparana, 2019. Foto Laura Melo
televisão, ela: “olhe pra cá, que
é pra você olhar pra cá, pra você
aprender”. (Milene, crochetei-
ra de Macaparana, 2019)

Milene aprendeu com Emí-


lia, sua mãe, que crocheta
e planta: E planta no inverno,
planta feijão, planta milho, ma-
caxeira, planta fava. Não, planta
para alimentação. Cuida de sítio
de banana, mas também só pra
alimentação, para ter em casa né?
Dar aos amigos; que, quando tem,
a gente dá. A gente come, mas vender a gente não vende não, tudo é pouco, né? Só dá mesmo
pro consumo da casa. (Emília, crocheteira de Macaparana, 2019)

23
O crochê ajuda na renda das mulheres que se desdobram para criar seus
filhos, seus afazeres e o seu crochê: Encomenda pra entregar e menino pra cuidar.
Não é brincadeira, não. A gente fica sem saber o que faz primeiro. E, assim… penso em
trabalhar fora e penso em deixar, porque mãe, né? Dá vontade de “vou embora trabalhar
em Recife”, mas penso “quem vai cuidar dessas minhas bênçãos? (Rosiane, crochetei-
ra, Macaparana, 2019)

Passira — resistência e autonomia, o ponto cheio do bordado

Em Passira, por sua vez, percebemos, através das narrativas das artesãs,
que há mais ações do município no sentido de sustentar a manutenção das
práticas e das vendas, mas mesmo assim, de modo insuficiente. Desde 1986,
acontece a Feira de Bordado Manual de Passira, que hoje não é só o borda-
do manual que é vendido, e sim bordados de máquina e outros produtos. As
ações são instáveis e dependem da gestão municipal. O bordado de máqui-
na é vendido em quase todas as lojinhas de artesanato na cidade. Porque ele
é feito à mão, e tem outros bordados que o povo faz por aí que é feito à máquina e é muito
diferente. A máquina é muito diferente da mão, né? Na mão você vê uma rosa perfeita, e na
máquina fica bem diferente, não fica do tamanho certo, faltando medida, faltando alguma
coisa. (Viviane, trabalha na AMAP-Passira, 2020)

Passira detém o título significativo de Terra do Bordado Manual. Logo na


entrada da cidade vemos placas que indicam essa relação, indicações tam-
bém sobre o caminho para chegar ao Centro Comercial e Cultural do Bor-
dado de Passira, além de algumas intervenções nas fachadas e esculturas

24
da cidade em que se manifesta sua ligação com o bordado. Há, no centro,
inúmeras lojas de bordados, e de artigos para bordar.

Nete, bordadeira de Passira, 2020. Foto Laura Melo


Sentadas em calçadas, as
mulheres de Passira (hoje
em bem menor quantida-
de) bordaram esse título que
a cidade possui dentro de
casa, sós ou em conjunto. Eu
bordo em casa, eu gosto de bordar
na minha calçada, muito! Um
dia desses minha menina mandou
uma amiga dela: “não sei onde
é tua casa!” Minha filha disse:
“Não tem a rua do posto? pronto,
minha mãe tá bordando na calça-
da”. Pronto, ponto de referência.
(Nete, bordadeira de Passira, 2020)

Muitas mulheres sobrevivem do trabalho manual que fazem. No centro ou


na zona rural, há centenas delas que fazem parte do processo do bordado
ou mesmo o trabalho todo, mas a etapa da venda é feita pela minoria.
Bordam por paixão, ou como único meio de sobrevivência, mas bordam. O
bordado ele me dá independência desde os 11 anos. Pai só dava uma roupa a nós, aí pai
dava roupa de festa e de São João, aí eu comprava mais uma roupa com meu dinheiro do
bordado. Aí eu sempre assim fiz as duas coisas, ia pro roçado, mas, quando chegava em
casa, nas horas vagas fazia o bordado. Sábados e domingos que a gente não ia pro roçado

25
a gente bordava. Aí eu conquistei minha independência a partir disso. (Maria da Paz,
bordadeira de Passira, 2020)

Outro espaço de venda do borda- Maria da Paz, bordadeira,


Passira, 2019. Foto Laura Melo
do na cidade é o Centro Comer-
cial e Cultural do Bordado de
Passira. O Centro, por sua vez, é
permanente, embora sofra com a
sazonalidade das vendas. Quan-
do estivemos lá, grande parte dos
stands estavam fechados, e os que
se mantinham abertos perten-
ciam a artesãs que moravam rela-
tivamente próximas a eles.

“A Associação de Mulheres Arte-


sãs de Passira foi constituída em
2007 por sete mulheres. Elas já
bordavam e vendiam sua mão de
obra para lojistas, mas estavam insatisfeitas com os valores pagos e com o
tratamento que recebiam10”. [Começou com] Vani, Marilene, eu, Marcília, Gi-
selia, Cristina, Leô. Em 2007. Já era AMAP, foi o primeiro nome que a gente escolheu.
Aí a gente ficou, umas saíram e Vani ainda está. Ela não vem muito aqui, mas ainda vem.
Aí a gente ficou até hoje. Aí ficou entrando gente, saindo gente, sabe como é esse negócio de
grupo?… muda, fica. Hoje a gente tem inscrita 40 [pessoas]. Teve uma cooperativa que

10 Ler o texto de Lucyana Azevedo sobre o Bordado Manual de Passira. Disponível em http://mulheresquete-
cempe.com.br/arte/bordado/

26
foi feita em numa gestão de Edelson [prefeito de Passira à época], mas foi, assim, coisa
de prefeitura, aí, enquanto o prefeito estava, o negócio ia fluindo, depois que o prefeito
saiu as pessoas não ligaram, aí destruíram material, acabaram com tudo… (D. Lúcia,
bordadeira, Passira, 2020)

Como nas outras cidades, as mulheres bordadeiras de Passira aprenderam a


bordar com suas mães, tias e vizinhas. Como eu aprendi a bordar? Eu pegava um
risco, riscava e ficava fazendo. Pegava a linha e ficava fazendo. Às vezes ficava errado e eu
ia e fazia de novo. Até hoje minha mãe ensina a todo mundo. Ela tá ensinando ali, ó. Es-
sas duas meninas [mostrando duas moças que estavam na Associação] vieram
de Limoeiro aprender a fazer. (Marielia, bordadeira de Passira, 2020)

Naturalmente, o bordado, que no começo foi ensinado para se tornar uma


possível ocupação doméstica, quando em contato com outra realidade so-
cial, se tornou uma fonte de renda alternativa ― especialmente porque,
na mesma época, a praga do “Bicudo” devastou as plantações de algodão,
principal fonte de renda das famílias da região. De forma que, para sair do
status de prenda e se tornar um meio de sobrevivência, o bordado tradi-
cional em Passira adquiriu e adaptou-se a essas mudanças. Assim, a rela-
ção econômica de dependência quanto ao bordado tradicional modificou a
vida e a cultura de milhares de mulheres. No entanto, é bom que se diga que
uma parte delas também continua se dedicando à agricultura. Pode-se dizer
que, em Passira, o bordado foi utilizado como uma tática de sobrevivência.
(CARVALHO, 2020)

Ser mulher tem que ser forte e ser guerreira. Pra chegar onde a gente quer, tem que ser forte!
Me sinto forte. E as mulheres guerreiras que eu conheço também, muitas. (Luciene,
engomadeira de bordado, Passira)

27
Nas entrelinhas, muitos nós Mulheres que tecem, mulheres que
plantam e o anonimato sistêmico

Durante a etapa da pesquisa de campo, as mulheres eram convidadas a


participar da pesquisa. Neste contato inicial algumas apresentaram receio
quando apresentamos o objetivo da pesquisa cultural: a divulgação de suas
narrativas de vida. Isto porque algumas delas apresentaram questões que
poderiam explicar, em parte, o “anonimato” ao qual estão submetidas nas
publicações sobre o artesanato. As artesãs que são também agricultoras não
poderiam ser vinculadas a outra profissão, por ser um tipo de “Segurado
Especial” como agricultora familiar, para a Previdência Social de acordo
com a Constituição Federal de 1988, e posteriormente regulamentada pela
Lei nº 11.326/2006. Ou seja, elas poderiam perder a aposentadoria como
agricultoras, caso fossem vinculadas a outro tipo de atividade. Há estudos
que tratam justamente destas condições e critérios para a aposentadoria da
agricultura familiar (DELLAI, 2014), mas neste texto citaremos que exis-
tiam, de fato, algumas condições na legislação brasileira que à época respal-
davam o receio das artesãs. Porém, é importante salientar que a Lei Fede-
ral n°11.718/2008 garante que a atividade artesanal não contribui para a
perda do direito de Segurado Especial, desde que essas atividades sigam os
critérios desta Lei.

Em todo caso, por este receio, e em respeito às artesãs, não divulgamos


suas identidades também na pesquisa cultural, editamos suas
narrativas/ imagens para que estas não pudessem ser identifi-
cadas. Trocamos também o nome do produto da pesquisa, o site se tornou

28
“Mulheres que Tecem Pernambuco” para não ter em seu chamado o vín-
culo com o trabalho artesanal das mulheres.

Através dos objetivos e intuitos já citados e dos compromissos da pesquisa,


observamos como prioridade a manutenção da integridade dessas pessoas,
como uma forma de salvaguardar e proteger cada uma delas, tamanha a
importância da manutenção e resistência cultural que elas sustentam.

Há nos materiais do site algumas restrições na divulgação dos conteúdos re-


ferentes às narrativas de algumas mulheres e da não divulgação de imagens
(fotografia e vídeo) e nomes destas que cederam a este projeto a responsa-
bilidade de uso, através de dois termos — Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido e Termo de Autorização da Imagem (Foto e Vídeo) Áudio e
Nome. O resguardo/restrição do uso desses materiais, portanto, se deu em
função de uma demanda trazida pelas próprias mulheres. Utilizamos ape-
nas suas narrativas em forma de texto transcrito, editando partes em que
possam ser “identificadas” (nomes reais, nomes dos filhos, local de moradia,
entre outros). Nos vídeos, a fotógrafa da 1° Edição do projeto, Laís Domin-
gues, fez bordados nas fotografias para que seus perfis estivessem presentes
nos vídeos da pesquisa, para que elas não ficassem “identificáveis”.

Elas são agricultoras, nascidas e criadas na roça, e por sofrerem com a seca,
com o clima, buscam, naturalmente, outros meios de sobreviver. Elas não
são artesãs de carteira, como falam, são fazedoras de cultura, plantam, te-
cem e bordam com o mesmo afinco. Param de plantar no sol a pino e vão
tecer, como parte da vida; elas reinventam maneiras de sobreviver e en-
chem de sentidos o fazer das práticas têxteis. Mas, caso estejam de algum

29
modo ligadas a outra profissão ou fonte de renda, perdem automaticamente
o direito ao benefício como agricultoras, pois a sensibilidade do Governo
não é do mesmo material maleável que a dessas mulheres. É preferível,
para o Governo, negar a elas um direito adquirido com trabalho duro do
que admitir sua condição de fragilidade, que as força a buscar alternativas
de sobrevivência em tempos de seca ou de entressafras. Além de sofrer as
pressões de um sistema capitalista que as mantém na base de uma cadeia
produtiva, as mulheres teriam que contribuir para a Previdência, pois as ar-
tesãs não têm a profissão reconhecida ainda em carteira – contribuem para
a aposentadoria enquanto autônomas.

“Eu dei entrada e eles negaro, aí eles falaram que eu só me aposentava se eu tirasse a
do meu marido, a pensão que eu recebo. Ele trabalhava de guarda, mulher, no banco, de
vigilante. Aí pronto, mas pra tirar a dele eu disse mermo ao adevogado: ‘quero não, dexe,
se eu não tenho direito a minha pa mexer na dele, pa ficar a mesma coisa dexe eu sem me
aposentar mesmo. Nasci e me criei na roça... é assim mesmo’”. (M., que não conse-
guiu se aposentar porque fazia também o trabalho artesanal)

No que se refere ao momento político de nosso país: na Reforma da Pre-


vidência alterou dois pontos que põem em risco suas aposentadorias como
agricultoras, já que: aumenta a idade mínima da aposentadoria para 65
anos para homens e mulheres (antes, homens podiam se aposentar com 60
anos e as mulheres, com 55) e exige contribuição individual e obrigatória
por 25 anos. O que já põe em risco a situação atual das agricultoras.

30
Mulheres que tecem cidades e a ausência políticas públicas

Em cada uma dessas cidades o trabalho das mulheres conduziram para


um reconhecimento de suas práticas culturais, ativamente como no caso de
Lagoa do Carro, ou “silenciosamente”, como no caso das outras cidades.
Sobre essas atuações nos fala Nestor Garcia Canclini:

“As práticas culturais são, mais que ações, atuações. Represen-


tam simulam as ações sociais, mas só às vezes operam como
uma ação. Isso acontece não apenas nas atividades culturais
expressamente organizadas e reconhecidas como tais; também
os comportamentos ordinários, agrupados ou não em institui-
ções, empregam a ação simulada, a atuação simbólica.” (2015,
p. 350).

Nessas atuações simbólicas, o cenário das mulheres bordando nas ruas era
uma realidade frequente nas cidades de Lagoa do Carro, Passira e Poção.
Em Macaparana, algumas ruas ainda são conhecidas por existirem mulhe-
res crochetando na calçada. Em Caraibeiras, o distrito tem o som dos teares
elétricos, que só cessam durante a noite. Mas podemos ver em todas as ruas
e casas as redes de dormir sendo feitas. Essa ligação entre as práticas têxteis
e a cidade não se limita aos títulos, obviamente. Há uma relação entre os
lugares e a confecção das peças. Durante essa pesquisa cultural, através dos
depoimentos das artesãs percebemos que haveria necessidade de uma pes-
quisa que retratasse justamente essas tramas, em que pudéssemos entender
mais especificamente relações entre o saber e o território, entre as artesãs
e os seus lugares. Mesmo que essas cidades detenham estes títulos, não há
políticas públicas que salvaguardem nem seus saberes nem seus lugares de

31
maneira efetiva. Vale dizer que, hoje, em todas elas, há um desinteresse
alarmante por parte das mais jovens em manter essas práticas manuais, ou
essas práticas estão sendo substituídas pelas fábricas, e o “reconhecimento”
através dos títulos parece não ajudar na mudança deste estado das coisas.

Acreditamos que o poder público insere essas cidades numa lógica capi-
talista, quando as “tematizam”11, pois há muitos tipos de “ativações patri-
moniais” (ZANIRATO, 2018), e o que parece que vem sendo feito, sem
nenhuma abordagem metodológica pelo poder público, é a valoração “pro-
dutivista ou mercantilista” (ZANIRATO, 2018 apud CANCLINI, 1997;
PEREIRO, 2003) das práticas, por transformarem o possível patrimônio
cultural em mercadoria. O produto tem mais valor do que o processo de
produção, as relações sociais que o conformam.

Além dessas relações tratadas acima, a própria natureza histórico social da


manualidade dos trabalhos têxteis é conectada ao fazer feminino. Algumas
técnicas como o bordado, por exemplo, eram utilizadas como uma forma
de dominação, adestramento, prenda e habilidade. Acreditamos que, na
contemporaneidade, através das reverberações das pautas feministas em vá-
rios campos, podemos ler o uso das técnicas por essas mulheres como uma
forma de subversão, gerando autonomia, sobrevivência, resistência, dotan-
do de valor cultural cidades e, mesmo assim, sendo ainda colocadas pelo
sistema patriarcal como menores, marginalizadas, anônimas, excluídas.

11 Sobre a Tematização de Cidades ler “O turismo e a tematização das cidades” em “Arquitetura e Política de Josep
Maria Montaner e Zaida Muxí.

32
A confecção de tipologias artesanais feitas pelas mulheres está em oposição
à dinâmica do capitalismo e por isso são vítimas deste. Seus trabalhos são
feitos, no geral, por autônomos, sem vínculo empregatício nas fábricas (que
pagam informalmente às rendeiras para bordar algumas peças), no caso de
Poção12, ou seus trabalhos manuais competem com as fábricas locais, como
no caso de Caraibeiras13. “O recente interesse dos governos, ONGs e insti-
tuições internacionais no fomento do artesanato ocorre junto com a emer-
gência de uma nova estética do artesanal, onde são admitidas (e premiadas)
a criatividade e a inovação, e já não mais (exclusivamente) o respeito a pa-
drões estéticos e a reprodução de técnicas tradicionais14”.

Assim, somente entrando numa lógica de mercado, inovando produtos, o


artesanato segue “valorizado”. Não obstante, as mulheres que realizam tais
práticas culturais não são reconhecidas. Sancionada a Lei do Artesão, em
2015, a esses cumprimentos seguem-se esforços. Mas, com a prática cultu-
ral das mulheres no estado em que as encontramos, a luta para que elas se
reconheçam como artesãs e se conformem e protejam como tais está muito
longe de acontecer. Pois, quando se extrai somente o produto e a ele se paga
o valor considerado “justo”, os valores não são repassados de forma que
cheguem a elas. No fim das contas, mesmo que atravessadores e as fábricas
monopolizem o mercado, a existência desses produtos continua dependen-
do necessariamente delas e de suas práticas.

12 Ler texto Renda Renascença em Poção. Disponível em: http://mulheresquetecempe.com.br/arte/ren-


da-renascenca/

13 Ler texto Tecelagem em Caraibeiras. Disponível em: http://mulheresquetecempe.com.br/arte/tecela-


gem/

14 Clara Lourido em O Artesanato No Capitalismo Avançado: Da tradição ao desemprego estrutural, do turismo à decoração.

33
Nossa intenção enquanto pesquisa é subsidiar, com seu conteúdo, o plane-
jamento de políticas culturais, que contribuam para alterar a realidade de
opressão econômica em que vivem as mulheres, pois, “sem o conhecimento
sobre as condições de produção, circulação, difusão, fruição e acesso aos
bens culturais no território nacional, não há como propor políticas públicas
ou ações governamentais que dialoguem com a diversidade cultural e terri-
torial de cada região do país15.

Incorporada à noção de cultura, entendemos que “as relações culturais


supõem relações de poder, desigualdades, contradições, e de que todas as
modalidades de transmissão de cultura implicam, portanto, algum poder de
dominação16. Contra esse estado de coisas se destina este projeto.

As mulheres com quem conversamos, que sobrevivem parcial ou totalmente


do artesanato, sofrem com a sazonalidade das vendas, com a impossibili-
dade de custear suas produções, com a competição com as fábricas locais,
com a inexistência de organização, com a diminuição das vendas, com a
inexistência de lugares onde possam comercializar suas peças, com o des-
conhecimento de seus processos de trabalho, com a desvalorização de seus
trabalhos, entre outros vários problemas17. Tudo isso junto causa um de-
sinteresse alarmante das mais jovens em relação ao fazer, pondo em risco a
continuidade e manutenção dessas práticas culturais.

15 Plano Nacional de Cultura.

16 Ivone Ritcher em Interculturalidade e Estética do Cotidiano no Ensino das Artes Visuais

17 Ver os textos sobre cada especificidade têxtil estudada.

34
Reverberações e desdobramentos, próximos passos

Além da 3° Edição da pesquisa, que está para ser iniciada, mapeando mu-
lheres que tecem que vivem no Núcleo Centro da Região Metropolitana
do Recife (Olinda, Recife e Camaragibe), aprovamos a I Feira Mulheres
que Tecem Pernambuco, que se trata de uma feira de artesanato têxtil pro-
tagonizada por mulheres com o objetivo de fazer emergir o encontro dos
saberes e fazeres entre elas que trabalham com linhas, fios e tramas em
Pernambuco.

O evento terá a participação de mulheres de diversas regiões18 e trará a


diversidade de tipologias artesanais têxteis produzidas no interior do Es-
tado e da Região Metropolitana do Recife. A Feira será o encontro entre
essas ações criativas, na qual o produto possa ser exposto e vendido (feira),
compartilhado (oficinas), e discutido (palestras/ mesas redondas). Em to-
das essas ações, haverá o protagonismo das mulheres artesãs, à frente da
organização, da articulação, das vendas, das oficinas, das palestras e mesas
redondas.

A Feira é um desdobramento dessa pesquisa e pretende ser uma resposta


concreta ao problema que analisamos, constituindo, para isso, um local de
venda e fruição da cultura local. Cidades são reconhecidas pelos seus títu-
los, mas há um grande desconhecimento da situação de vulnerabilidade de
produção, manutenção e sobrevivência dessas práticas culturais. Essa Feira,

18 Os stands serão disponibilizados pela Feira, as artesãs não pagarão para participar. Todas que participarem das
ações (organização, oficinas, palestras, serão contratadas e remuneradas).

35
além de ser um local de venda desses trabalhos artesanais têxteis riquíssimos
de valor simbólico e de beleza, será um espaço de discussão de proposições
de políticas públicas e demais temas agregados.

O uso das plataformas nesse projeto se apresenta enquanto potência para o


compartilhamento de vivências e processos cotidianos compartilhados por
mulheres enquanto trabalhadoras informais, criadoras e cidadãs. Diante da
configuração de trabalho a qual a cadeia produtiva das artesãs está inserida,
ainda é um desafio pensar na questão da autonomia financeira e das políticas
públicas voltadas para o setor. Esse projeto se apresenta enquanto brecha para
reflexão a respeito dessas dinâmicas, e enquanto espaço de discussão, reflexão
e criação de novas rotas para esse debate. E nesse caminho a I Feira Mulheres
que Tecem Pernambuco será apresentada com o intuito de descentralizar as
práticas econômicas sob uma perspectiva criativa enquanto maneira de orga-
nização e resistência. Esse é um desafio caro e necessário: pensar esse projeto
para além das plataformas, e dessa racionalização empreendedora, entenden-
do que é na vida em comunidade que se dão as construções de laços afetivos,
de socialização e partilha de conhecimento, por via da oralidade e da presen-
ça, propriamente dita, esse certamente é um dos maiores desafios para essa
pesquisa, contribuir para localizar espacial e socialmente a contribuição dessas
mulheres à sociedade pernambucana. (Rose Lima, produtora executiva, 2021)

Também, como reverberação e desdobramento da pesquisa, pretendemos


pleitear um livro com o conteúdo da pesquisa e os estudos que ela suscitou.

36
Além disso, estamos buscando formas de fazer circular nossa produção au-
diovisual, disponível no site em Mostras e Debates. Como desdobramen-
to das questões de gênero, raça e classe, pretendemos trazer nos livros e
demais reverberações do projeto estudos que baseiam teoricamente nossa
produção com esse enlace e perspectiva.

É nossa pretensão, ainda, ampliar a participação das mulheres que não fo-
ram contempladas com a pesquisa e abrir o site para que as mulheres que
tecem possam se colocar no mapa do nosso site e fazer parte dessa rede.

O nome da pesquisa tem como foco contemplar as mulheres como cerne da


produção dessa cultura. Para deixar explícito que antes de se ter um artesa-
nato como produto, existem mulheres, pessoas, que os fazem e que os posi-
cionam, através da sua cultura, em um lugar de destaque. Com respeito a
esse enlace, parte da equipe que compõe esse projeto também tem suas ex-
periências profissionais ligadas a produção têxtil. Como eu, Lucyana Azeve-
do, Laura Melo, Clarissa Machado e Laís Domingues. Trazemos também
como método a equipe ser formada em grande maioria por mulheres.

Algumas estão conosco desde a primeira edição, como a produtora exe-


cutiva Rose Lima, a assessora de imprensa Kalor Pacheco, a montadora e
editora dos vídeos Isabela Stampanoni e Célia Menezes e Gustavo Oliveira,
os web designers que fazem a Jeporu, Luíza Maretto foi a pesquisadora
da 1° Edição.. Nessa segunda edição, o site contou com o design de Laura
Morgado. As intérpretes de Libras também são mulheres, Tafnes Oliveira e
Poliana Alves (da 1° e outra da 2° edição). Gilberto Clementino Neto faz as
revisões finais dos textos da pesquisa.
Não caberá ao projeto ser apenas um site. Pois isto não seria contribuição
real para uma mudança na vida das mulheres artesãs. Como pesquisa cultu-
ral, ele se torna instrumento inicial para sustentar a luta contra a realidade
distópica em que vivem essas mulheres. Pretendemos, afinal, transformar
esses desdobramentos e reverberações em contribuição efetiva para a mu-
dança desse estado de coisas.

Iniciei meu processo na equipe dos mulheres que tecem, do lado de


cá, do lado de quem buscava e estava disposta a encontrar conheci-
mentos, narrativas e histórias. A equipe era formada por mulheres, to-
das mães; em campo, todas traziam a manualidade com o têxtil como
prática em suas rotinas. Estávamos ali como teia firme, conectadas
em vários pontos e arremates, e esse contato já tinha sua força em si,
nesse encontro das nossas próprias narrativas. Mas seguimos viagem e
fomos somar um novo entrelaçar de histórias, fomos ouvir atentas as
mulheres que tecem nosso estado. Com uma câmera na mão, tentei
guardar tudo que nos foi permitido vivenciar com essas artesãs. Suas
histórias que tanto se cruzavam com as nossas e, que muitas vezes,
fizeram a equipe marejar o olhar, esse olhar curioso e carinhoso àque-
las mãos que teciam com tanta maestria e rapidez. Capturei pontos e
nomenclaturas que marcam técnicas, mas, mais do que isso, guardei
em mim e nas imagens registradas a força das mulheres que conheci
nas cidades visitadas, além da potência desse encontro de todas nós.
(Laura Melo, fotógrafa e videoasta do projeto, 2021)
Sobre a metodologia utilizada na pesquisa:
Alinhavando História Oral e Cartografia Afetiva

A História Oral é uma metodologia alternativa à história dita “oficial”.


No caso desta pesquisa, consiste em trazer as narrativas de vida e vê-las
sob uma outra perspectiva, que comporta as realidades imediatas das
próprias detentoras da história. A escuta dessas histórias de vida aliada
aos textos que falam sobre o artesanato e as cidades pesquisadas, cons-
truíram o entendimento sobre o contexto que abrange as práticas cultu-
rais destas mulheres. Essas narrativas criam outras referências históricas
e culturais “(...) que estava[m] circunscrita[s] apenas a sua própria classe,
pequenos grupos de amigos e familiares. A vida, as experiências, as lutas,
as visões do mundo, o trabalho adquirem um novo estatuto ao serem
socializados. Transformam-se em documentos apresentando um retrato
da realidade, que passa a disputar a hegemonia do imaginário social com
outras versões/ representações construídas de outros lugares e por outros
interlocutores” (MONTENEGRO, 1992, p. 27).

Uma vez que a memória dos atores sociais é o objeto fundamental dessa
trama, é importante termos em vista a distinção que esta introduz na
temporalidade histórica, ao criar uma possibilidade de trazer para o
plano do historiador o registro da própria reação vivida dos aconteci-
mentos e fatos históricos (MONTENEGRO, 1992).
Ouvir, para nós, tornou-se, portanto, um privilégio, porque os aconte-
cimentos antes somente lidos na precariedade da literatura existente,
na “história oficial”, ganharam vida, ao mesmo tempo que formaram
redes ainda mais complexas. As mulheres abriram suas casas e se dis-
puseram a contar suas próprias versões. A sabedoria de vida delas é
responsável pela fagulha que acende os textos da pesquisa. Foi através
dessas memórias, que construímos os textos que falam sobre seus luga-
res de vivências e sobre o artesanato que elas produzem.

As narrativas de vida das mulheres aparecem na pesquisa, primordial-


mente, como forma de localizar nelas o protagonismo de suas vivências
aliadas a tentativa de unir suas experiências pessoais com o contexto
geral da produção têxtil em suas repercussões culturais. Isso dá a cada
narrativa características próprias, como a marca única de cada mulher
que são contadas a seu modo, no seu tempo, por elas mesmas.

Por termos registrado muitas horas de gravação, fizemos, ancoradas na


metodologia, uma edição desse conteúdo. Nesta edição das narrativas,
foram retirados alguns trechos que as mulheres pediaram que fossem
desconsiderados. Após a transcrição, o material foi repassado a elas
para aprovação. A construção foi bordada com cuidado para que as
letras dessem a forma das palavras por elas ditas.

40
Cartografia Afetiva

por Luíza Maretto

Muitos outros encontros, trocas, olhares, ampliaram as bordas da rota


já planejada. Assim, utilizamos também de um outro guia, que cha-
mamos de Cartografia Afetiva. Traçamos pontos com a Cartografia de
autoras(es) como Suely Rolnik, Regina Benevides, Gilles Deleuze, en-
tre outros. A “afetiva” no nome foi acrescentada por nós para deixar
mais evidente o que nos conduz ao pesquisar. Dessa forma, atraves-
sando os mapas representativos, a essa cartografia interessa acompa-
nhar o movimento que acontece nos territórios, a cultura viva que se
constrói. Interessa mapear cenários que se movem, como são as vidas
das pessoas e as histórias que contam. Cultura que se faz, desfaz e
refaz através de sentimentos, encontros, desencontros, desejos, apren-
dizados, tristezas, alegrias, contextos políticos e econômicos vividos
pelas pessoas... e por aí seguimos, as movimentações... da vida e sua(s)
história(s).

Para buscarmos aprender através desse mapeamento foi necessário


ter o afeto como guia, como norte. A abertura de afetar e ser afetado;
de estar presente no que acontece quando acontece. Afeto tem a ver
com o acontecimento, não com o que planejamos a priori. É permitir o
encontro entre as histórias que escutamos e as nossas próprias his-
tórias. Aqui, anuncia-se a não-neutralidade do pesquisar: é o que
sentimentos, o que vivemos, o nosso modo de ver, o que acredita-
mos, nossa história e, ainda mais, o encontro com cada mulher que
fez com que tenhamos escolhido um caminho do que outro. Uma
pergunta, do que outra. Um determinado local de entrevista. Cada
mulher que também sente, vive, tem história e vê as coisas de uma
forma singular. Afetar é também intervir, trocar, saber que existe o
sentimento em nós e na(o) outra(o). Como disseram as autoras Gis-
lei Lazzarotto e Julia de Carvalho, no livro Pesquisar na diferença, um
abecedário (2012), “Afetar denuncia que algo está acontecendo e que
nosso saber é mínimo nesse acontecer. (...) nossas questões são feitas
de vida.” E vida tem movimento, diferença.

Assim, a cartografia como método exige de nós rever e recontar


nossa própria história. Inclusive nosso jeito de pesquisar, (re)feito
tantas vezes na caminhada. Assim, nossos encontros foram de escu-
ta: das mulheres e do que nos afetava com elas, entre nós.

Estávamos presentes com o nosso olhar ali e um princípio base da


cartografia: o da ampliação da potência da vida. De quem per-
gunta, de quem recebe. Assim, importa nosso corpo e afetos, mas
tudo isso no encontro com a outra, o outro. Nada disso é só. Afeto
é entre, em relação. Afetar com, por. Reparar em como estamos
pesquisando, intervindo, caminhando.
Equipe Projeto (1 e 2° Edição)

Idealização e Coordenação Geral Clara Nogueira

Pesquisa Clara Nogueira, Luiza Maretto, Lucyana


Azevedo, Clarissa Machado

Textos Cartografia Luiza Maretto

Textos Cidades e Especificidades Têxteis Clara Nogueira, Lucyana Azevedo,


Clarissa Machado

Transcrição Clara Nogueira, Clarissa Machado,


Gilberto Clementino Neto

Edição Narrativa das Mulheres Clara Nogueira

Produção Executiva e Captação de Recursos Rose Lima

Assessoria de imprensa Kalor Pacheco

Revisão de Textos Gilberto Clementino Neto

Imagens (foto e vídeo) Laís Domingues, Laura Melo

Arte Clarissa Machado

Design Laura Morgado

WebDesign Jeporu — Célia Menezes,


Créditos Vídeos

Roteiro e Direção Clara Nogueira

Edição e Montagem Isabela Stampanoni

Imagens Laís Domingues, Laura Melo

Fotos Bordadas Laís Domingues

Intérprete em Libras Tafnes Oliveira, Poliana Alves

Vinheta abertura

Animação Paulo Leonardo

Bordado Animação Clara Nogueira

Bordado Mapa de Pernambuco Clarissa Machado

Fotografia Rafael Amorim

Saiba mais sobre o projeto em:


@mulheresquetecempe
www.mulheresquetecempe.com.br
Bibliografia

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e


sair da modernidade. Editora Universidade de São Paulo, 2015.

CARVALHO, Clara Nogueira. “No risco, a reinvenção como tática” in: Ou-
tros Críticos. n.16. p 24-35. Disponível em:https://issuu.com/outroscriti-
cos/docs/revoc-2020-ed16 Acesso em: 11/10/2021

DELLAI, W. Agricultura Familiar e Previdência Social Rural No


Brasil: O Segurado Especial Diante De Novos Contextos E Velhas Questões.
(Trabalho de Conclusão de Curso — Instituto Latino-Americano de Econo-
mia, Sociedade e Política da Universidade Federal da Integração Latino-Ame-
ricana), Foz do Iguaçu, 2014.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: A Cultura


Popular Revisitada. Editora Contexto. São Paulo, 1992.

RUBINO, Silvana; FONTENELE, Sabrina. Mulheres e Patrimônio. In: Di-


cionário Temático de Patrimônio: Debates Contemporâneos. Aline Car-
valho e Cristina Meneguelo (Orgs). Editora Unicamp. São Paulo, 2020

ZANIRATO, Sílvia Helena. Patrimônio e Identidade: Retórica e Desafios


nos Processos de Ativação Patrimonial. Rev. CPC, v.13, n.25, p.7–33, jan./set.
2018.
Realização

INSTITUTO

URDUME
Redação
Clara Nogueira

Revisão
Paula Melech e Estefania Lima

Diagramação
Gabriela Ferreira

Capa
Nathália Abdalla

Ilustrações
Gustavo Seraphim

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