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GLOBALIZAÇÃO E CULTURA

CAMINHOS E DESCAMINHOS PARA O NACIONAL-


POPULAR NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
CRISTINA SIMÕES BEZERRA

GLOBALIZAÇÃO E CULTURA
Caminhos e descaminhos para o nacional-popular na era da
globalização

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de doutor em
Serviço Social.

Orientador: Professor Carlos Nelson Coutinho

Rio de Janeiro
2006
Resumo

BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos


para o nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

O presente trabalho discute os desafios colocados para a categoria de


nacional-popular, elaborada pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci, na
da sociedade capitalista contemporânea, de onde se destaca o contexto de
mundialização do capital e de reatualização do imperialismo. Tem por objetivo,
portanto, problematizar e criticar a anunciada “globalização da cultura”, tanto em
sua abordagem hegemônica, que anuncia o surgimento de uma ”cultura global”,
capaz de substituir ou, pelo menos, de reorientar culturas locais e nacionais,
quanto uma abordagem aparentemente “alternativa”, que destaca o momento
contemporâneo como aquele em que se fez possível um “encontro de diferentes
culturas”, surgidas de um cenário de desenvolvimento político e tecnológico que
nos coloca em contato com a diversidade característica desta esfera cultural.
Assim, esta tese propõe uma retomada da categoria gramsciana de nacional-
popular como uma possibilidade de crítica e de superação destas perspectivas
anteriores, entendendo que o nacional e o internacional continuam se constituindo
numa relação dialética de afirmação e negação de seus próprios princípios.
Conclui, então, que é necessária a retomada da concepção ampla de cultura em
Gramsci para entender e alimentar a necessidade contemporânea de um novo
projeto societário alternativo e contra-hegemônico ao sistema do capital em sua
conformação do início do século XXI.

Palavras-chave: globalização da cultura, mundialização do capital, nacional-


popular, pensamento social gramsciano.
Abstract

BEZERRA, Cristina Simões. Globalização e Cultura: caminhos e descaminhos


para o nacional-popular na era da globalização. Rio de Janeiro, 2006. Tese
(Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Sumário
Para a Helena, a Marina, o Thomás, o
Thiago, a Laura, o Rodrigo, o Lucas e o
Vitor, os “filhos deste doutorado”,
iluminadas crianças, “herdeiras do chão
como solo plantado, não as ruínas de um
caos...”
Agradecimentos

Aos meus pais, Elza e Antônio, que, por ocasião deste doutorado, praticamente
me adotaram novamente, garantindo-me tudo, absolutamente tudo, desde o pão,
que eu não tive tempo de comprar, até o carinho, que eu não tive tempo de pedir,
para que eu pudesse concluir esta tarefa. Amo vocês...

Ao meu orientador, Carlos Nelson Coutinho, com quem sempre aprendo tanto...
lições de Gramsci, lições de política, lições de afeto, lições de paciência
histórica...Companheiro de grandes expectativas e projetos de mudança...
Obrigada, muito obrigada.

Aos professores que compõem esta banca examinadora, meu eterno obrigada,
pela disponibilidade e pela atenção dedicadas ao meu trabalho. Ao professor José
Paulo Netto, constante interlocutor e provocador de minha consciência crítica; à
professora Myriam Lins de Barros, pelo debate tão responsável e, ao mesmo
tempo, tão carinhoso; à professora Virgínia Fontes, “companheira militante” de
uma verdadeira “vontade coletiva nacional-popular”; à professora Lúcia Neves,
encontro tardio, mas tão cheio de boas referências e expectativas.

Ao Robson, meu companheiro, em todos os sentidos que esta palavra possa ter...

À Helena, minha filha, que mesmo sendo tão pequenina, entendeu e “perdoou”
este doutorado. “Filhota, mamãe acabou o dever de casa.”

Aos meus sobrinhos e sobrinhas que, cada um a seu modo, não se cansaram de
me mostrar que minha vida era maior que este doutorado... Gostaria muito que
este meu “passo adiante” despertasse, em cada um deles, o gosto pelo estudo e a
curiosidade intelectual...
A minhas amigas do “Lar de Maria”, professoras Sandra, Nair, Ana Amoroso, Ana
Lívia, Alexandra e Cláudia Mônica, porque entre o mar carioca e as montanhas
mineiras, um pouco de nossas vidas ficou por estas estradas. Nós, que nos
julgávamos tão perdidas em meio às nossas idéias e aos nossos ideais, nos
fizemos presentes, PRESENÇA.

Às amigas Mônica Grossi e Verônica Borba, que sempre depositaram tanta


confiança em mim e em meu trabalho. Pessoas inigualáveis, com quem tenho
repartido, em toda a minha vida pessoal e profissional, tantas indignações e tantas
esperanças...

Aos AMIGOS, Cláudia Mônica e Rubinho, pelas eternas lições de um carinho que
só em vocês tenho encontrado...

À Elisangela, à Meire e à Maria, que com tanta dedicação cuidaram de mim, do


Robson, da minha casa e da minha filha para que eu pudesse me dedicar ao
doutorado.

A tantos outros amigos: Luciana, Joelcio, Fernanda, Edwiges, Claiton, Kiko,


Karina, Marilda, Marcus, Cláudia Lúcia, Gabriela, Adriana, Rui, Ana Justo,
Pizetta... foram tantos “colos” que ganhei ao longo destes cinco anos! Sem vocês,
eu certamente teria desistido... Obrigada, do fundo do meu coração!

À Faculdade de Serviço Social e à Universidade Federal de Juiz de Fora, por todo


o apoio, institucional e afetivo, para que chegássemos até este momento. Nestes
espaços temos aprendido a investir no ser humano, em todas as suas
potencialidades.

Às professoras Leila Yacoub, Marilene Sansão e Sandra Arbex, que


administraram a Faculdade de Serviço Social nestes últimos cinco anos, e que
têm, cada uma ao seu modo, incorporado nosso inegociável projeto coletivo de
emancipação humana. Obrigada pelo exemplo!

Enfim, mas não por uma importância menor, à CAPES, pela bolsa de estudos que
viabilizou materialmente a realização deste trabalho.
“Amada não me censure, se sou de pouco falar
Nem se esse pouco que falo não faz você suspirar
É tempo de vida feia, de se morrer ou matar
De sonho cortado ao meio, de voz sem poder gritar
De pão que pra nós não chega, de noite sem se acabar
Por isso não me censure, se sou de pouco falar

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Mas criança chega a homem se a bomba quiser
A mulher só tem seu homem se a bomba quiser
Homem sonha e faz seu sonho se a bomba quiser
Não é tempo de ver lua nem tirar rosa do pé.

Amada minha não chore se nunca falo de amor


Nem se meu beijo é salgado, que é beijo chorado em dor
É tempo de vida triste, de olhar o céu com pavor
De mão pro último gesto, de olhar pra última flor
De verde que era esperança trazer desgraça na cor
Por isso amada não chore se nunca falo de amor.

Amada não vá embora se eu trouxe desilusão


Se aumento sua tristeza, tão triste a minha canção
É tempo de fazer tempo, de pegar tempo na mão
De gente vindo no tempo em passeata ou procissão
No mesmo passo de sonho pra bomba dizendo: não!
Amada não vá embora, mudou a minha canção!

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A lua é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
Pois criança vai ser homem porque a gente quer
A mulher vai ter seu homem porque a gente quer
Homem vai fazer seu sonho porque a gente quer
Vai ser tempo de ver lua e de tirar rosa do pé”

(Mário Lago)
Lista de Siglas e Abreviaturas
1 Cultura e Sociedade: aproximações teórico-conceituais

1.1 – A contribuição da tradição marxista para o debate acerca da

cultura

A complexidade e as inúmeras determinações presentes no debate acerca

da cultura demarcam o primeiro desafio ao qual pretendemos responder durante o

desenvolvimento deste trabalho. É preciso, então, compreender as linhas mais

amplas de abordagem sobre o universo cultural, destacando os principais autores

e suas mais diversas concepções de análise.

No entanto, encontramos limites que nos obrigam a realizar um corte

teórico-conceitual. O termo cultura está presente em um cenário bastante amplo

de discussão, perpassando várias áreas de conhecimento e ganhando, em cada

uma delas, novas e importantes determinações que não se constroem de forma

isolada e/ ou fragmentada. Faz-se necessário justificar que nos detivemos no

debate acerca da noção de cultura no interior das Ciências Sociais e, mais

precisamente, da tradição marxista. Neste universo, cultura é um termo que tem a

potencialidade de pensar o homem enquanto unidade materializada na condição

de ser social, unidade esta que, contraditoriamente, caracteriza também a

diversidade além dos termos meramente biológicos. Ao longo deste trabalho,

estaremos preocupados justamente em criar um paralelo entre o trabalho e a

cultura enquanto esferas constitutivas do ser social. A cultura se coloca,

diretamente, na intervenção humana sobre a natureza e a sociedade. Escolhas

culturais interferem neste processo, tornando-o mais original e coerente com as


necessidades humanas em diferentes sociedade. O processo que se inicia com o

trabalho encontra na cultura um prolongamento e uma maior complexidade.

A opção pelo estudo desta temática no interior da tradição marxista não é

aleatória. Entendemos que a perspectiva marxiana de totalidade, bem como as

demais categorias centrais do materialismo histórico, constituem elementos

diferenciadores para a abordagem sobre cultura. É só no contexto desta tradição

que podemos questionar, por exemplo, alguns traços historicamente vinculados à

noção de cultura, tais como sua autonomia, seu caráter estático, as trocas e os

contatos culturais. Aqui o termo ganha uma atualidade e uma riqueza de

determinações que, em nossa concepção, não estão presentes em outras

tradições do pensamento social. Embora ganhe força a idéia de que a tradição

marxista não é, atualmente, suficiente para compreendermos todos os elementos

constitutivos de nossa realidade sócio-histórica, acreditamos, ao mesmo tempo,

que ela é indispensável para esta análise, potencializando-nos para uma reflexão

crítica e revolucionária acerca das características e das contradições

contemporâneas.

Temos clareza, por outro lado, de que ao falarmos sobre a tradição

marxista, não estamos, de forma alguma, tratando de um bloco homogêneo. Muito

pelo contrário, compartilhamos da idéia de que o que se convencionou chamar de

marxismo representa, na verdade, um conjunto de tendências e formulações

teóricas bastante diferenciadas entre si e, até mesmo, divergentes. Partimos, aqui,

da certeza de que não é possível medir qual destas tendências seja mais ou

menos marxista. A riqueza da herança marxiana, bem como os diferentes

contextos sócio-históricos nos quais ela se desenvolveu, deram origem a diversos


“marxismos” que, sobretudo a partir da segunda metade do século XX,

apresentaram-se com força suficiente para reivindicar legitimidade e

reconhecimento teórico.

Assim estão expressos, em NETTO (1989, p. 78-79), os avanços e os

limites desta pluralidade e desta “disputa” de tendências no interior da tradição

marxista.

Cabe destacar, ainda, dois pontos importantes. O primeiro remete


à gênese das diferenciações constatáveis na tradição marxista.
Elas têm origem menos nas interpretações que podem ser feitas
da obra marxiana e mais nas exigências colocadas pelos
contextos históricos em que se situam os marxistas. Às próprias
demandas práticas que se põem aos marxistas se debitam boa
parte das diferenças: a tendência usual é a de extrair de Marx
aquilo que, num momento histórico preciso, é melhor
instrumentalizável. O passo fatal consiste em, a partir desta
escolha, se estabelecer uma interpretação global de Marx. O
segundo, que nos leva a um plano de discussão bem mais
complexo, se relaciona à legitimidade das várias propostas
marxistas em face do pensamento marxiano. A existência factual
de uma pluralidade de propostas inspiradas em Marx é
indiscutível, outro problema é o de sua compatibilidade com a obra
de Marx tomada na sua inteireza. Esta questão não pode ser
resolvida recorrendo-se à letra de um ou outro texto marxiano; só
deve ser equacionada considerando-se todo o projeto teórico e
revolucionário de Marx, assentado em hipóteses que se verificam
(ou não) na prática histórico-social.

Atentos a estas questões, e compreendendo a teoria “marxista” não como

uma “concepção de mundo”, mas como uma investigação do movimento real da

sociedade burguesa, como algo em construção, sempre aberto à confrontação

com os novos projetos emergentes, é que nos aproximamos da discussão que

vem se construindo em torno do termo cultura no interior desta tradição.

Procuramos, desta forma, recuperar suas principais contribuições, elencando,


assim, categorias que julgamos essenciais para nossos debates posteriores.

Dentre estas diferentes contribuições, destacamos as formulações gramscianas,

de onde extraímos os principais elementos orientadores deste trabalho.

Entendemos que abordar a questão específica da cultura no interior da

tradição marxista não pode ser um exercício fragmentário, mas deve estar

subordinado ao que MANDEL (2001, p. 19) chamou de uma “visão de conjunto da

sociedade burguesa e da história humana em seus sucessivos modos de

produção”, ou seja, de uma perspectiva de totalidade que constitui uma das bases

inquestionáveis da herança marxiana. Desta forma, propomos, em um primeiro

momento, um retorno às formulações próprias de Marx e Engels, a fim de

compreendermos, nestas fontes, as origens da discussão marxista sobre cultura.

Após este momento, e apoiados em duas obras principais de Raymond Willians

(1979, 1992), procuramos recuperar algumas reflexões principais do que este

autor teria chamado de “materialismo cultural”, ou seja, uma teoria das

especificidades da produção cultural e literária material, dentro do materialismo

histórico.

Nesta discussão, a referência a um determinado momento histórico se faz

necessária. O marco dos anos 60 e 70 do século XX caracteriza, sem dúvida, um

momento de renovação na tradição marxista. Embalada pelas primeiras

experiências de crítica ao “socialismo real” e ao chamado “marxismo ortodoxo” da

Terceira Internacional, esta tradição experimentou um renascimento e uma maior

abertura e flexibilidade de desenvolvimento teórico. É neste momento, sem

dúvida, que estudos mais aprofundados acerca da teoria cultural puderam vir à

tona no interior de um marxismo já marcado por uma ampla diferenciação.


Tal colocação não significa que, neste momento, o debate acerca da cultura

tenha ganhado centralidade e/ ou prioridade no contexto do universo marxista.

Poderíamos até mesmo afirmar que ele permanece, mesmo nos dias atuais,

compreendido como uma extensão da discussão política e econômica no interior

do marxismo. Como nos afirma WILLIAMS (1979, p. 8), “dificilmente alguém se

torna marxista por motivos principalmente culturais ou literários, mas por

prementes razões políticas e econômicas”. No entanto, não teríamos dúvida em

afirmar que o momento de renovação desta tradição trouxe à tona, com maior

clareza, a perspectiva metodológica de Marx, e a noção de totalidade recupera

seu lugar nesta discussão. Então, outros elementos, tais como a cultura, ganham

destaque como um espaço legítimo para a compreensão da realidade sócio-

histórica da sociedade burguesa.

O acesso a trabalhos marxistas mais novos, tais como as obras de Lukács

e de Goldmann, bem como a obras marxianas e marxistas mais antigas, tais como

as de Gramsci, da Escola de Frankfurt e do próprio Marx, agora em nova

tradução, representaram um novo arsenal teórico neste caminho de renovação.

Além disso, podemos considerar também determinadas experiências históricas

concretas de superação do capitalismo1 que, abandonando o modelo tradicional

clássico do marxismo soviético e da Terceira Internacional, demonstraram para o

mundo que havia um terreno novo no marxismo a ser explorado e que o próprio

marxismo é um fato histórico, com posições altamente variáveis e até mesmo

alternativas. Era preciso, portanto, libertar-se de um modelo das posições

1
Dentre os países que vivenciaram estas experiências podemos destacar a Polônia, o Vietnã e a
China.
marxistas fixas e imutáveis e da correspondente negação de todos os outros tipos

de interpretação que fugissem do modelo de marxismo oficial.

Deste processo de renovação, vital para a história e a continuidade do

marxismo, construiu-se, a partir de uma releitura da obra marxiana, um conjunto

de categorias acerca do ser social que davam, com mais precisão, a dimensão da

complexidade e da incompletude que o caracterizam. A verdade do ser social

como um processo e a dinamicidade da realidade social são, para o marxismo do

final do século XX, elementos vitais de compreensão. Nas palavras de NETTO

(1989, p. 70), “o legado de Marx deixa de ser um território nitidamente demarcado

para se colocar como um espectro muito rico em matizes e variações”. Para o

fortalecimento desta perspectiva, foi essencial uma recuperação, acontecida neste

momento histórico, da importância do método em Marx, elemento fundamental

para a renovação das questões propostas por esta tradição.

Podemos, assim, afirmar que, no que diz respeito à discussão por nós

proposta, o marxismo consegue, a partir deste momento de renovação, contribuir

efetivamente para o debate e enriquecer, com diferentes determinações, conceitos

como “cultura”, “linguagem”, “literatura” e “ideologia”. Mais uma vez, não se

estabelece aqui uma história isolada, mas, na teoria literária, o marxismo se

combina com e contribui para outros tipos de pensamento correlato. Desta forma,

acreditamos que WILLIANS (1979) nos apresenta um caminho coerente quando

afirma que, no que se refere à produção cultural, é necessário examinar os usos


especificamente marxistas, sem perder de vista um quadro de evolução mais geral

do termo2.

DENNING (2005) afirma, inclusive, que a segunda metade do século XX foi

o período do que ele denominou de “virada cultural”, quando este elemento passa

para o primeiro plano de uma série de estudos e reflexões teóricas que se

constroem neste momento, passando a se constituir como uma parte cada vez

central da vida política e intelectual. Demarca-se, então, o que ficou conhecido

como “estudos culturais” que, originados na Inglaterra trabalhista, buscavam

abordar as diferenças e as diversidades culturais a partir de uma perspectiva de

uma “era dos três mundos”3. Em um momento de crise da proposta socialista e de

reorientação da sociedade capitalista, tais estudos se propunham a agir numa

proposta de reforma interdisciplinar e transdisciplinar das fronteiras acadêmicas. O

momento de reanimação e de renovação no pensamento radical e socialista

colocava em cena a necessidade de se pensar a relação entre a cultura e as

demais esferas da vida em sociedade. Intensificou-se, então, uma “volta às

superestruturas”, uma reconsideração da cultura, buscando-se atentar para as

particularidades regionais e nacionais geralmente ignoradas pelo

internacionalismo abstrato do marxismo oficial.

Uma das principais questões que envolvem este momento de apropriação

do termo cultura pela teoria marxista é o lugar deste termo no desenvolvimento do

2
É importante observarmos que WILLIAMS chama atenção para o risco de ecletismo nesta
aproximação e, para isso, a fidelidade às categorias centrais do pensamento marxiano nos
parecem essenciais.
3
A denominada “era dos três mundos” diz respeito ao que ficou historicamente conhecido como
Primeiro, Segundo e Terceiro Mundos, numa perspectiva claramente hegemônica do mundo
capitalista.
materialismo histórico. É necessário, assim, retomarmos as bases desta proposta

marxiana, a fim de melhor fundamentarmos nossas análises.

GORENDER (1998) destaca a obra A Ideologia Alemã, escrita por Marx e

Engels entre os anos de 1845 e 1846, como o momento de nascimento do

materialismo histórico, ou seja, como a obra que demarca, pela primeira vez com

maior clareza, a superação que tais autores fizeram com relação à filosofia

clássica alemã. Naquele momento, recuperando e questionando o materialismo

sob a forma que lhes apresentava Feuerbach, do humanismo naturista, Marx e

Engels realizam um processo de reelaboração da dialética hegeliana e buscam

integrá-la no corpo do materialismo, o qual se apresenta, a partir de então, como

materialismo histórico-dialético. Tal concepção constituía, naquele momento, uma

abordagem radicalmente nova acerca do desenvolvimento da sociedade, visando

sua transformação radical. A Ideologia Alemã foi, para seus autores, um

importante momento de redefinições e avanços, demonstrando, a partir de seus

primeiros envolvimentos com o movimento operário europeu, que uma proposta

de absoluta renovação intelectual estava para ser gerada.

O primeiro e talvez principal elemento de debate de Marx e Engels nesta

obra é a própria concepção de ideologia e esta nos parece essencial para todo o

pensamento marxista sobre a cultura. Partindo de uma compreensão de ideologia

como o “estudo da origem e da formação das idéias”, sustentada por Destutt de

Tracy, em 1804, os autores demonstram sua crítica e superação de parte do

legado hegeliano, sobretudo quando este sustenta que “a Idéia é o sujeito, cujo

predicado são suas objetivações”. Para eles, a filosofia clássica alemã cai em um

grande equívoco ao postular que a “imaginação” e a “representação” que os


homens fazem de sua práxis real constitui a força realmente determinante e ativa.

Tais filósofos se movem no domínio do “espírito puro”, onde não existem

interesses reais, nem interesses políticos, mas apenas idéias “puras”. Nesta

perspectiva, as concepções, os pensamentos, as idéias, seriam produtos da

consciência, com uma existência independente em relação à base material e com

a potencialidade de constituírem verdadeiras cadeias para os homens, cuja

libertação viria através de uma “modificação da consciência”.

Este será, num primeiro momento, o sentido negativo que Marx e Engels

vão atribuir ao termo “ideologia”, ou seja, uma falsa consciência, um conjunto de

ilusões através das quais os homens pensam conhecer sua realidade, mas que,

na verdade, os fazem conhecer de forma enviesada, distorcida. Para Marx e

Engels, este conhecimento ideológico da realidade precisa ser invertido, pois as

idéias jamais se desenvolvem por si mesmas, como entidades substantivas.

Na verdade, estes autores inovam a filosofia alemã ao compreenderem o

desenvolvimento das idéias como subordinado, como dependente; elas seriam,

então, derivadas do substrato material da história. A essência do homem é, assim,

o conjunto de suas relações sociais e seu processo de humanização. Sua

elevação de ser natural a ser social só se dá dentro da sociedade e pela

sociedade. Assim, o que funda o materialismo histórico é a certeza de que os

indivíduos são constituídos por suas condições materiais de produção. Na busca

da satisfação de suas necessidades, os homens produzem seus próprios meios

de existência. Assim o que produzem e como produzem são os elementos-chave

para a compreensão da sociabilidade humana em diferentes tempos históricos. O


modo de produção constitui, assim, o elemento fundador das sociedades e dos

próprios homens enquanto seres sociais. Nas palavras dos autores,

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas;


são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de
existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como
aquelas engendradas de sua própria ação. (MARX & ENGELS,
1998, p.10).

O materialismo histórico tem como princípio, desde seu momento originário,

esta compreensão de que o homem se constitui historicamente, primeiro em sua

relação com a natureza, depois em sua relação com os outros homens. É só com

este processo de socialização em curso que o homem se torna consciente e

capaz de refletir sobre sua vida material. Assim, é a vida que determina a

consciência; a história é a história da natureza e a história dos homens, que

estabelecem suas mais diferentes relações sociais na expectativa de atenção às

suas necessidades materiais. O intercâmbio dos homens entre si, e tudo que está

a ele relacionado, está primeiramente condicionado pelo modo de produção.

Este é o sentido da produção material. Os homens, ao contrário de outros

animais, começam a produzir seus meios de existência e, neste caminho,

produzem indiretamente toda a sua própria vida material. O que os indivíduos são,

enquanto seres “viventes e conscientes”, depende das condições materiais da sua

produção.

Esta produção, a cada momento de complexificação das sociedades,

caracteriza-se, cada vez mais, como um processo coletivo, um processo que

pressupõe o intercâmbio dos indivíduos entre si. Assim, os homens produzem em


sociedade, em condições sociais herdadas ou criadas por sua própria ação, se

constroem e se organizam em sociedade tendo na base deste processo as

condições e relações de produção.

Ao apresentarem este postulado básico para o materialismo histórico, Marx

e Engels colocam em xeque, desde então, a suposta autonomia dos produtos da

consciência, pregada pelo idealismo clássico alemão. A partir de então, a

produção de idéias, de representações, de símbolos e de referências no plano da

consciência, passa a ser compreendida como parte do processo de vida real dos

homens, como conseqüência de um determinado desenvolvimento das forças

produtivas e das mais diferentes relações (sociais, econômicas e políticas) que a

elas correspondem. Esses elementos nos parecem indispensáveis para que

possamos discutir, posteriormente, a noção de cultura no interior do marxismo.

Assim, da relação do homem com a natureza, na busca da satisfação de

suas necessidades, podemos extrair os pontos essenciais da discussão marxiana

sobre a questão do trabalho em toda a sua riqueza de determinações. Estão

colocadas, então, as premissas da relação entre trabalho e cultura enquanto

esferas constitutivas do ser social. A cultura surge como esfera determinada pelo

trabalho, constrói-se como a manifestação da consciência social, só é possível se

consideramos a imensa rede de relações produtivas que se estabelecem em um

determinado momento histórico. Assim, a cada forma diferenciada de organizar o

trabalho e a vida material corresponde um universo cultural equivalente, o qual se

constrói como algo dinâmico e historicamente referenciado.

Compreender o trabalho como elemento fundante da produção material e,

conseqüentemente, da socialização humana significa abordá-lo como o processo


que garante ao homem superar suas barreiras e limitações naturais e, atendendo

às necessidades exclusivamente humanas de sobrevivência, dar um salto de

qualidade em seu processo de socialização. Assim, a natureza é controlada,

regulada e transformada pelo trabalho humano. Neste processo, o homem, ao

desenvolver suas próprias potencialidades e submeter as forças naturais ao

domínio de sua racionalidade, se afasta da natureza, se revela superior a ela,

realiza em seus limites o projeto que antes apenas existia idealmente em sua

mente.

Construir “utilidades” ou “valores de uso”: este é o objetivo primeiro de

qualquer processo de trabalho, independente da formação sócio-histórica na qual

ele possa ser desenvolvido. Assim, uma intencionalidade comanda e dirige o

processo de trabalho: transformar elementos naturais para atender a

necessidades sociais. Nas palavras de ANTUNES (2000, p. 86), “um fim

previamente ideado transforma a realidade material, introduzindo-lhe algo

qualitativa e radicalmente novo em relação à natureza.”

Na concepção marxiana, o trabalho é a condição natural eterna da vida

humana. Portanto, seja qual for a formação sócio-histórica a ser investigada, o

trabalho se realizará como base e fundamento da vida social, como o ponto de

partida para a sobrevivência do homem e da comunidade em que vive. Ainda que

o movimento histórico introduza no trabalho enquanto categoria fundante uma

série de diferentes determinações, mudando as formas de produzir e de se

apropriar do que foi produzido, jamais se poderá prescindir deste processo para o

atendimento das necessidades sociais. Os elementos componentes do processo


de trabalho sofrem transformações e atualizações, mas jamais esgotam sua

existência.

Nesta discussão acerca do trabalho como elemento fundante do ser social,

é importante observarmos como Marx e Engels compreendem as mudanças na

divisão do trabalho e na forma de propriedade ao longo do desenvolvimento

histórico de diferentes sociedades. Analisando e comparando a evolução destas

mudanças, desde a propriedade tribal até o momento moderno, os autores

identificam este último como aquele em que ocorre a divisão entre trabalho

intelectual e trabalho material e, conseqüentemente, a separação entre campo e

cidade. Nesta contínua superação histórica, os homens, desenvolvendo sua

produção material e suas relações produtivas, transformam sua consciência social

e os produtos desta consciência. As diferentes formas de propriedade, de divisão

do trabalho e de modos de produção fazem corresponder, historicamente,

diferentes níveis ou formas de consciência social, uma vez que são produtos dos

homens reais, atuantes, histórica e socialmente determinados. Assim, nas

palavras de MARX & ENGELS (1998, p. 19), “a consciência nunca pode ser mais

que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real”. Nesta

mesma direção, a cultura corresponde ao desenvolvimento deste ser consciente.

Cada modo de produção produz a sua cultura, que se coloca como reflexo destas

relações produtivas, como um universo capaz de conter as características e as

contradições originárias destas relações.

A história da evolução humana tem demonstrado que o trabalho se

constitui, gradativamente, em um processo cada vez mais social, ou seja, que

envolve um número cada vez maior de pessoas em sua constituição e em suas


mediações com a natureza. Assim, a relação homem-natureza se realiza e traz

consigo uma relação do homem com outros homens, do homem em sociedade.

Através do trabalho, os homens se socializam, se interrelacionam, constroem

posições intersubjetivas que irão, por sua vez, intervir novamente nos diferentes

processos de trabalho em uma determinada sociedade.

O trabalho, inserido em uma divisão cada vez mais intensa, passa, assim, a

depender da cooperação entre muitas pessoas. Em outras palavras, para atuar

sobre a natureza, é preciso atuar teleologicamente também sobre outros seres

sociais, visando o convencimento e a interrelação com outras práticas. Na

concepção lukacsiana, uma práxis social interativa (ANTUNES, 2000) se constrói

a partir do trabalho enquanto momento fundante e, aos poucos, ganha uma

aparente autonomia, que será posteriormente questionada.

É necessário observarmos a afirmação marxiana de que a época do

indivíduo isolado é precisamente aquela na qual as relações sociais alcançaram o

mais alto grau de desenvolvimento. Se hoje é possível pensar que o homem é um

ser capaz de se isolar, é porque ele encontra, na sociedade, o resultado de

inúmeros processos de trabalho coletivos que lhe garantem tais condições de

isolamento. Assim, esta práxis social interativa só ganha esta autonomia aparente

porque se desenvolveu em um contexto societário em que o trabalho humano é

amplamente mediado, onde, muitas vezes, os homens não percebem, com

clareza, a importância deste elemento enquanto fundante da vida social. Nesta

articulação de uma práxis social interativa a partir do trabalho, os elementos

componentes deste próprio processo de trabalho se historicizam e se atualizam

permanentemente. É porque se produzem valores de uso em cooperação com


outros seres humanos que o objeto, os meios e o próprio trabalho podem se

renovar e se adequar às novas necessidades sociais que se apresentam na

sociedade enquanto coletividade.

Assim, é importante reforçarmos que o processo de “humanização do

homem”, em seu sentido mais amplo, tem como fundamento o trabalho. Através

deste processo, o ser humano se descobre como parte da natureza, mas também

como separado dela, uma vez que pode se apoderar de seus elementos para

satisfazer necessidades que só se colocam na vida em sociedade. Ao mesmo

tempo, o homem descobre também que este processo de apoderamento não é

individual, mas coletivo, pois, através do trabalho, a perspectiva de

intersubjetividade irá se constituir com mais força e dar origem a formas mais

complexificadas da vida humana. Assim se constrói o ser social, dotado de

autonomia, inserido em uma intersubjetividade, teleologicamente capacitado,

enfim, inteiramente diferente de formas de ser anteriores. É este ser social, que

agora possui o controle consciente sobre si mesmo e sobre a natureza, que irá

construir um universo cultural correspondente, um modo de vida próprio a estas

relações entre homem-natureza e homem-homem. Cultura se apresenta, nesta

discussão, como um conjunto de elementos simbólicos, como um modo de sentir,

pensar e viver que se constrói e se define em sociedade, a partir dos

enfrentamentos e das soluções que este próprio agrupamento consegue

desenvolver. A cultura seria, então, o outro componente de uma sociabilidade,

necessária enquanto espaço de reprodução de determinadas relações sociais.

Para que possamos aprofundar esta discussão acerca do “mundo da

cultura”, é necessário atentarmos para o fato de que, quanto mais complexas são
as sociedades, maior é a aparência de autonomia destas ações interativas, deste

universo cultural, em relação ao trabalho. Entretanto, problematizar esta

autonomia coloca questões relevantes para este debate. Evidentemente, a vida

social não se resume ao trabalho. O ser social se constitui também através de

outras esferas, tais como a política, a arte, os valores morais, a religiosidade, o

lazer, dentre outras que, na verdade, realizam também a mediação com a

natureza e com os outros homens. No entanto, estas esferas são,

inquestionavelmente secundárias, em um sentido ontológico, em relação ao

trabalho, que é o locus primeiro de realização da vida social. Para recorrermos

novamente às palavras de ANTUNES (2000, p. 141)

O trabalho, portanto, é a forma fundamental, mais simples e mais


elementar daqueles complexos cuja interação dinâmica constitui-
se na especificidade do ser social. (...) As formas mais avançadas
da práxis social encontram no ato laborativo sua base originária.
Por mais complexas, diferenciadas e distanciadas, elas se
constituem em prolongamento e avanço e não em uma esfera
inteiramente autônoma e desvinculada das posições teleológicas
primárias.

O trabalho, então, enquanto atividade de produção, se constitui como o

ponto inicial, como o fundamento ontológico do ser social em seu processo de

satisfação das necessidades a partir do controle e da transformação da natureza.

A partir do trabalho, em suas mais diferentes determinações históricas, se

constroem as relações intersubjetivas e, num plano mais amplo, as relações

sociais de uma determinada sociedade. É a partir de determinado modo de

produzir que tais sociedades constroem, também, seus modos de distribuir, de


trocar e, enfim, de consumir. O trabalho dá início, portanto, a todo este processo

de sociabilidade do homem.

Entretanto, este não é um caminho de mão única. Ao produzir objetos

capazes de satisfazer suas necessidades humanas, o homem não encontra

caminhos apenas para garantir sua existência física. O homem produz também

determinado modo de refletir e de manifestar sua vida, produz determinado modo

de vida, construído a partir da relação com a natureza, mas também, e

principalmente, da relação com outros homens, na constituição daquela práxis

social interativa.

É no âmbito deste “modo de vida específico” que reside uma relação de

reciprocidade entre o momento da produção e os demais momentos, entre o que

comumente chamamos de infra-estrutura e os elementos de caráter

superestrutural. As relações vividas pelo homem nesta “segunda natureza” irão

dialeticamente influenciar e, em muitos casos, redirecionar o trabalho e a esfera

da produção. Sobretudo nas sociedades mais complexas, onde esta esfera da

práxis interativa parece dispor de relativa autonomia, podemos afirmar que os

costumes, os valores, as relações provenientes desta esfera exercem sobre o

modo de trabalho e de produção uma influência que não é mais marginal,

direcionando-os conforme a organização deste ou daquele tipo de sociedade

enquanto universo cultural.

É neste sentido, e não de forma negativa, que podemos falar desta práxis

social interativa como uma esfera determinada: indivíduos determinados, com a

atividade produtiva orientada por um modo de produção determinado, entram em

relações sociais e políticas determinadas. É o processo vital de indivíduos em sua


existência real, em seu modo de trabalhar e de produzir materialmente que cria

toda uma estrutura social, simbólica moral e política.

Este nos parece ser o elemento principal do debate sobre a cultura no

interior desta tradição marxista. Estamos afirmando, assim, que a produção de

idéias, de representações, da consciência, do universo simbólico está, num

primeiro momento, necessariamente ligada à atividade material, está condicionada

por um determinado desenvolvimento de forças produtivas e das relações que a

elas correspondem.

Não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam,


tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na
imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar
aos homens de carne e osso; mas, partimos dos homens, em sua
atividade real, é a partir de seu processo de vida real que
representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das
repercussões ideológicas desse processo vital. (...) Não é a
consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
consciência. (MARX & ENGELS, 1998:19-20).

Na verdade, pensar determinada sociedade a partir de sua constituição

cultural significa pensá-la além de seus traços meramente naturais, significa

pensar o homem já em um estágio avançado de seu processo de humanização e

de socialização, o qual iniciado com o trabalho, nos permitirá problematizar o ser

social, que realizou a passagem de uma adaptação natural a uma adaptação

social, interativa, também cultural.

Se o processo de trabalho, como vimos anteriormente, é o processo através

do qual o homem satisfaz suas necessidades, é importante ponderarmos que as

diversas sociedades se diferenciam neste processo, criando soluções originais


para os problemas que lhes são colocados, satisfazem as mesmas necessidades

através de objetos diferentes. Em outros termos, se as sociedades não dão

exatamente as mesmas respostas às necessidades humanas, é porque tais

processos são orientados também por elementos culturais diferenciados que, em

uma relação de reciprocidade, constroem e são construídos pelo processo de

trabalho. Como nos propõe Marx, não existe “produção em geral”, toda produção

ocorre em determinadas condições e sob determinadas orientações que são

advindas também deste universo coletivo, onde o elemento cultural nos chama

particular atenção.

O “mundo da cultura” nos remete, necessariamente, à ordem simbólica,

refere-se ao sentido que o homem historicamente atribui aos diversos elementos

de sua vida social. A cultura representa, desta forma, um importante espaço de

constituição do ser social, de reflexão e de crítica de sua vida social, de suas

relações com a natureza e com os outros homens. Neste sentido, valem as

palavras de KONDER (1993, p. 159) quando afirma que

(...) atuando sobre a natureza, tanto como atuando uns sobre os


outros, os sujeitos humanos se defrontam sempre com momentos
nos quais sentem a necessidade de rever suas idéias, suas
impressões, percebem que lhes convém reavaliar suas
representações, repensar suas convicções. Dão-se conta de que
precisam fazer escolhas, tomar decisões importantes, assumir
riscos. A cultura é esse plano no qual os seres humanos exercem
plenamente seu poder de invenção, sua criatividade maior, sua
efetiva liberdade.

Tais colocações são relevantes para que possamos evitar um duplo

equívoco em relação à análise da esfera cultural. O primeiro de, sobrevalorizando


a esfera do trabalho, dar a ela um status de exclusividade, ou seja, de que apenas

através do trabalho o homem se realiza e se constitui enquanto ser social. É

evidente, sobretudo em sociedades mais complexificadas, que nem só do trabalho

vive o homem, mas de um conjunto de esferas (cultural, religiosa, política, etc.)

que compõem uma totalidade e que dão sentido à sua existência e da coletividade

da qual ele faz parte. Tais esferas, aos poucos, vão se concretizando como

espaços de lutas sociais, de construção de interesses diferenciados, de correlação

de forças nas sociedades, o que acaba por influenciar e, muitas vezes,

redirecionar a esfera da produção. Assim, o ser social é constituído no interior

deste todo complexo e onde, gradativamente, nenhuma esfera tem mais

autonomia. Elas são absolutamente interrelacionadas e mudanças significativas

em uma dada sociedade dependem de mudanças em todo este conjunto. Se todo

modo de produção constrói e necessita também de um modo de garantir sua

própria reprodução, entendemos que as duas frentes se constituem como

momentos que comportam as lutas sociais e os projetos que se enfrentam em

torno de uma proposta hegemônica. Em outras palavras, é impossível pensarmos

em transformações na esfera do trabalho sem levarmos em conta, por exemplo, a

configuração cultural e política de uma sociedade.

Um outro equívoco, este talvez mais forte e mais contemporâneo, é o de se

acreditar que a esfera cultural é autônoma na dinâmica das sociedades modernas.

Parece-nos que boa parte da discussão contemporânea sobre o multiculturalismo

está pautada nesta premissa. Assim, segundo esta orientação, estaríamos

vivendo em sociedades onde, por elementos da conjuntura histórica, o trabalho

enquanto esfera fundante do ser social estaria em crise. O desemprego, as novas


tecnologias, os contratos temporários, o subemprego, e tantos outros elementos

da chamada reestruturação produtiva teriam feito do trabalho (e aqui, muitas

vezes, existe a infeliz confusão entre trabalho e emprego) uma esfera secundária

na vida social, o que teria dado a outras instâncias da esfera cultural, tais como o

gênero, a geração, a opção sexual, a etnia, dentre outras, um peso e uma

relevância muito maiores na determinação do ser social. Com isso, a cultura seria

o espaço da identidade, que abortaria ou minimizaria, conseqüentemente, a

identidade de classe.

BIHR (1999), ao analisar o momento de crise do movimento operário

europeu desde a década de 70, nos apresenta importantes colocações acerca

desta tendência de autonomização da esfera cultural. Segundo este autor, ela é

característica de um determinado momento do desenvolvimento da sociedade

capitalista e de seu correspondente processo, cada vez mais acentuado, de

alienação política. O capital é capaz de se apropriar de suas condições gerais de

reprodução, fazendo-as tomar a forma de forças sociais desencadeadas, externas

e estranhas ao corpo social, de forças sociais autonomizadas e reificadas. Assim,

a cultura, enquanto uma das condições de reprodução do sistema do capital,

também estaria passando por este processo ao ser colocada como uma esfera

autônoma e estranha ao mundo do trabalho.

Valendo-nos destas contribuições de BIHR, poderíamos afirmar que as

condições de reprodução do capital ultrapassaram seu mero movimento

econômico para se estender à totalidade das condições sociais de existência,

onde estaria colocada a questão cultural. Assim, fica em evidência, nas

sociedades capitalistas contemporâneas, que seus processos de superação


ocorrem, também, em terrenos e disputas aparentemente sem relação imediata.

Constrói-se, desta forma, a estreita relação que anteriormente apontamos entre

trabalho e cultura. Nas palavras de BIHR (1999, p. 134), “a luta anticapitalista deve

se desenrolar simultaneamente dentro e fora do trabalho, visando a reapropriação

da totalidade das condições sociais de existência.”

Esta aproximação com as primeiras discussões sobre este universo cultural

numa perspectiva marxista nos possibilita observarmos a gênese social da palavra

e da idéia de cultura, compreendendo sua importância e significação neste

processo de constituição do ser social. WILLIANS (1979) nos chama atenção para

a necessidade de analisarmos o termo cultura através de uma consciência

histórica, ou seja, tendo clareza de que as questões e as contradições através das

quais o termo se desenvolveu são historicamente incorporadas no próprio

conceito. Nesta análise, entretanto, é necessário realizarmos cortes e opções

teórico-metodológicas.

Uma abordagem da cultura, como a que pretendemos realizar, no interior

da tradição marxista, é uma formulação histórica relativamente recente. Até o

século XVIII, cultura representava um processo meramente objetivo, como “cultura

de alguma coisa”. Tratava, assim, do cultivo, do crescimento e do cuidado de

colheitas e animais. Aos poucos, o termo foi ganhando maior complexidade e

passou a ser usado, no interior das Ciências Sociais, para tratar do crescimento e

dos cuidados com as faculdades humanas. Neste cenário, o conceito de cultura,

assim como os de sociedade e economia, constituem os conceitos modeladores

iniciais do pensamento social moderno.


CUCHE (1999) introduz elementos também relevantes ao construir esta

evolução histórica e semântica da palavra cultura. Segundo ele, o século XVIII

demarca um ponto de inflexão neste debate, sobretudo para a concepção

francesa. Em 1700, cultura já era uma palavra antiga no vocabulário francês e,

originária do latim, significava, como apresentamos, o cuidado dispensado ao

campo e ao gado. Designava, assim, uma parcela de terra cultivada ou

correspondia a uma ação: o ato de cultivar a terra.

A partir da metade do século XVIII, tal significado passa a conviver com um

sentido figurado designando a cultura de uma faculdade humana, isto é, o fato de

que era possível trabalhar intelectualmente para desenvolvê-la. É este sentido

figurado que irá se impor no século XVIII e que fará parte do vocabulário do

Iluminismo, designando a “formação”, a “educação do espírito humano”. Assim,

cultura passa a designar o estado de espírito cultivado pela instrução, passa a

constituir o termo cujo adjetivo é “culto”, e não “cultural”.

Para os pensadores do Iluminismo, cultura é, então, um dos elementos

diferenciadores do ser humano, aquilo que realiza uma oposição conceitual em

relação à idéia do homem enquanto natureza. É a soma dos saberes acumulados

e transmitidos pela humanidade ao longo de sua história. É própria do ser humano

e está além de qualquer distinção entre os povos. Por isso, é um termo usado, até

então, sempre no singular. Está associada às idéias de progresso, de evolução,

de educação, de razão. É a palavra ideal para um momento de extrema confiança

no projeto de modernidade construído pelo Iluminismo.

Tal conceito moderno de cultura, a partir do século XVIII, terá seu

desenvolvimento paralelo ao de outro termo: civilização. A partir de então, tais


termos estarão intrinsecamente relacionados, com momentos de convergência e

de contradição.

Civilizar irá designar, a princípio, um processo de absorção dos homens por

uma determinada organização social, a qual se desenha, nas palavras de

WILLIANS, como um Estado realizado, que contrasta e supera um estágio de

barbárie, e/ ou como uma condição realizada de desenvolvimento humano e

social, como um processo histórico de progresso, significando, na proposta

iluminista, refinamento e ordem. Assim, no século XVIII, realizar a civilização

representava um processo secular, evolutivo e histórico.

Neste sentido, cultura e civilização são palavras muito próximas na língua

francesa. Civilização irá evocar os progressos coletivos alcançados por

determinada sociedade através da cultura de seus membros, significando o

processo que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade. A

civilização é, assim, um processo que pode e deve ser estendido a todos os povos

que compõem a humanidade, os quais devem compartilhar do progresso oriundo

da evolução humana.

A acepção alemã do termo cultura terá, por sua vez, um elemento

diferenciador bastante relevante nos debates a partir do século XVIII. A

intelligentsia alemã se considera investida da missão de construir, desenvolver e

irradiar uma certa “cultura alemã”, baseada nos valores da ciência, da arte, da

filosofia e da religião. Para uma nação que ainda não conseguira sua unificação

política, a Alemanha procurava, então, afirmar sua existência glorificando sua

cultura.
O debate contemporâneo herdará da noção alemã de cultura os elementos

que se referem à delimitação e à consolidação das diferenças nacionais, opondo-

se, assim, à noção francesa universalista de civilização. A “nação cultural”, para os

alemães, precede a nação política. Cultura significa um “conjunto de conquistas

artísticas, intelectuais e morais que constituem o patrimônio de uma nação

considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade.” (CUCHE,

1999, p. 75). Por esta razão, Johann Gottfried Herder irá utilizar, pela primeira vez,

em 1774, a palavra “culturas”, em um plural significativo construído justamente em

nome do gênero nacional de cada povo, que aponta para uma diversidade de

culturas como a riqueza da humanidade e contra o universalismo uniformizante do

Iluminismo, onde cada cultura exprime parte da riqueza de toda a humanidade.

A partir do século XVIII, as problematizações acerca do conceito de cultura

estarão diretamente marcadas por duas concepções construídas a partir deste

embate: uma universalista, que privilegia a unidade e minimiza as diferenças, e

outra particularista, que reconhece e valoriza a diversidade entre as culturas,

procurando, entretanto, demonstrar que ela não é contraditória com a unidade

fundamental da humanidade. Podemos perceber, a partir do debate em torno

destas duas concepções que, com o constante processo de complexificação da

sociedade burguesa no período pós-iluminista, os termos civilização e cultura

começam a sofrer um certo distanciamento. Enquanto o primeiro vai se

constituindo como um termo superficial, artificial, como o cultivo de propriedades

“externas”, cultura ganha o sentido alternativo de um desenvolvimento “íntimo”,

associado a outras instâncias da sociedade, tais como a religião, as artes, a

família, a vida pessoal e comunitária, etc. Cultura passa a ser vista, então, como
uma classificação geral de instituições e práticas que, embora sociais, constituíam

significados e valores simbólicos de uma dada sociedade. Este é o sentido de

cultura como um “modo de vida”, no interior do qual se constrói a subjetividade e o

processo criativo de resposta às necessidades coletivas.

Assim CUCHE descreve esta oposição

Duas palavras vão lhes permitir definir esta oposição dos dois
sistemas de valores: tudo que é autêntico e que contribui para o
enriquecimento intelectual e espiritual será considerado como
vindo da cultura; ao contrário, o que é somente aparência
brilhante, leviandade, refinamento superficial, pertence à
civilização. A cultura se opõe então à civilização como a
profundidade se opõe à superficialidade. (1999, p. 25)

Para WILLIANS (1979), entretanto, as divergências entre os dois termos

não são mais importantes que o seu principal ponto de convergência, qual seja, a

de trazer uma nova possibilidade de interpretação acerca do homem enquanto ser

social e de sua vida em sociedade.

Cada um deles foi uma idéia moderna no sentido de que ressaltou


a capacidade humana não só de compreender, mas de construir
uma ordem social humana. Foi essa a diferença decisiva entre tais
idéias e a derivação anterior de conceitos sociais e ordens sociais,
a partir de estados religiosos ou metafísicos pressupostos
(WILLIANS, 1979, p. 22).

O que podemos observar ao recuperarmos a gênese social e o

desenvolvimento histórico do termo cultura é que os diferentes significados que

ele apresentou não foram substitutivos, mas se tornaram complementares. Assim,

podemos hoje, no interior do debate das Ciências Sociais, destacar diferentes


compreensões do termo, mas um estudo mais aprofundado nos permite relaciona-

las e aborda-las numa perspectiva mais ampla, de totalidade.

“Cultura” denotava de início um processo completamente material,


que foi depois metaforicamente transferido para questões do
espírito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento
semântico a mudança histórica da própria humanidade da
existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do
lavrar o solo à divisão do átomo. No linguajar marxista, ela reúne
em uma única noção tanto a base como a superestrutura.
(EAGLETON, 2005, p. 10).

Primeiramente, teríamos um uso mais amplo do termo, tanto nos domínios

da Antropologia quanto da Sociologia. Cultura significa, neste sentido, um “modo

de vida global” de determinado povo ou grupo social, compreendendo um conjunto

de elementos (valores, costumes, tradições, símbolos, representações e

referências) que constroem, em torno de uma coletividade, um parâmetro

dinâmico de identidade. Neste sentido, se fala da “cultura de diferentes povos ou

grupos”, a qual possibilita, entre eles, ao mesmo tempo, um elemento de inclusão

e outro de exclusão, quando se compartilha ou não de uma mesma cultura. Assim

a cultura unifica e separa, identifica e aliena, aproxima e afasta as pessoas. Neste

âmbito de compreensão do universo cultural, faz-se necessária uma discussão

acerca deste elemento de identidade. O que se define, a partir deste “modo de

vida global” é uma norma de vinculação que permite que pessoas e grupos se

localizem em uma determinada ordem societária e que seja, ao mesmo tempo,

localizado por grupos e pessoas diferentes.

É importante observarmos, então, que identidade e alteridade se constroem

em uma relação necessariamente dialética, que está em jogo a partir de diferentes


enfrentamentos e embates sociais. Não existe, neste sentido, uma identidade que

se construa definitivamente. Se a cultura é um elemento dinâmico, que contém e

acompanha o movimento da vida real, o parâmetro de identidade que dela decorre

também se define no interior de contextos sociais que orientam as representações

e as escolhas culturais. É no interior das mais diversas trocas sociais, viabilizadas

pela dinâmica produtiva de cada sociedade, que ocorrem também as chamadas

trocas culturais, que fazem da identidade este elemento em constante

(re)construção.

CUCHE (1999) chama atenção também para o fato de que o homem

constrói, em sociedade, diversas e diferentes vinculações, compondo este todo

orgânico que irá caracteriza-lo como ser social. Desta forma, existe também uma

pluralidade de referências identificatórias, que compõem a cultura e a identidade

cultural como algo multidimensional. Assim, ela pode ser instrumentalizada nas

relações entre os grupos sociais, construindo fronteiras (HANNERZ, 1997) como

artifícios de separação e de diferenciação. Este uso reafirma, como podemos

observar em diferentes contextos, relações históricas de dominação, onde a

cultura aparece como algo superior ou inferior, estendendo esta concepção

hierárquica para os povos que compartilham desta ou daquela cultura.

Uma outra possibilidade de se abordar contemporaneamente o termo

cultura mantém referência com aquela idéia de um “processo íntimo” de

refinamento intelectual, de um “desenvolvimento do espírito” no sentido da

aquisição de conhecimentos e de capacidade de reflexão e crítica. Este uso

aponta para uma apreensão mais “individual” de cultura, no sentido de pessoas

mais ou menos “cultas”, que desenvolveram mais ou menos esta capacidade


reflexiva. No entanto, esta capacidade está, mais uma vez, diretamente

relacionada ao conjunto das relações produtivas e das condições sociais nas

quais os homens constroem os diferentes espaços de relações sociais. A cultura,

neste segundo sentido, também é uma esfera coletiva e socialmente determinada.

Virá da contribuição gramsciana, como veremos, um importante avanço nesta

compreensão de cultura, ao afirmar que a capacidade de trabalho intelectual é

inerente ao homem, que a vivencia e a desenvolve de diferentes maneiras, de

acordo com as condições históricas nas quais vive.

Enfim, é necessário registrar ainda a compreensão de cultura num sentido

mais restrito, qual seja, o da produção artística e intelectual de determinada

sociedade. Partindo da certeza de que a autonomia desta produção é algo

extremamente relativo, acreditamos que tal produção é mais bem apreendida

enquanto “manifestação ou expressão cultural”, no sentido de que apresenta a

potencialidade de “trazer à tona”, de tornar manifestas as relações sociais

constitutivas do modo de produção em torno do qual uma sociedade se organiza.

A arte e a vida intelectual explicam e explicitam a cultura, sendo, ao mesmo

tempo, determinadas por ela. Ao longo de toda a história da arte, podemos

observar como ela sempre foi um forte instrumento ideológico, respondendo a

projetos societários diferenciados e, ao mesmo tempo, expressando as relações

sociais que dão vida a estes projetos. Este uso do termo cultura, longe de uma

perspectiva menos importante, constrói-se na vida social, portanto, como espaço

de reflexo e de mediação. Assim afirma EAGLETON (2005, p. 36-37)


Entretanto, essa idéia minoritária de cultura, embora seja um
importante sintoma de crise histórica, é também uma espécie de
solução. Assim como a cultura como modo de vida, ela confere cor
e textura à abstração iluminista da cultura como civilização. (...) As
artes podem refletir a vida refinada, mas são também a medida
dela. Se elas incorporam, também avaliam. Nesse sentido, unem o
real e o desejável à maneira de uma política real.

Como percebemos, uma extrema complexidade caracteriza a compreensão

de cultura no interior das Ciências Sociais, gerando diferentes concepções e

relações. Estes três sentidos do termo cultura, como pudemos perceber, são

inseparáveis, e remetem a uma potencialidade desta esfera não só de explicar,

mas também de viabilizar alternativas àquilo que explica.

Nesse sentido, também, a cultura pode unir fato e valor, sendo


tanto uma prestação de contas do real como uma antecipação do
desejável. Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo
“cultura” está destinado a olhar em duas direções opostas.
(IBIDEM, p. 37-38).

Observamos, ao longo da produção marxiana, que as manifestações da

consciência social possuem estreita ligação com as relações de produção e com a

produção material de uma certa sociedade. Afirmam estes autores:

A produção das idéias, das representações e da consciência, está,


a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens, ela é a linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens
aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento
material. (MARX & ENGELS, 1998, p. 18).

Segundo esta orientação, podemos perceber um duplo movimento, onde o

que Marx e Engels denominam de “consciência social” exprime e também


contribui para a formação das relações sociais. Através dela, que se constrói como

a “linguagem da vida real”, os homens pensam a si mesmos e aos outros,

refletindo em seu interior relações de dependência, alienação e antagonismo,

presentes em sua vida social, assim como de convergência, identidade e

solidariedade. Através da consciência, os homens exercitam a capacidade de

pensar a sociedade onde vivem, trabalham e produzem e de questionar, ou dar

continuidade, às relações que nela se estabelecem.

As relações de produção contraídas pelos homens formam, na perspectiva

marxiana, a base material de determinada sociedade, sobre a qual se levanta uma

superestrutura jurídica e política. A esta esfera correspondem as formas de

consciência social que se manifestam através de determinada cultura. Assim, ela

é resultado da intervenção humana sobre a natureza e sobre a própria sociedade,

e produto de uma apreensão do real que continua existindo em toda sua

autonomia, fora desta esfera simbólica, embora compreendido pelo homem

através dela.

Na opinião de WILLIANS (1979), entretanto, a análise da cultura como

elemento superestrutural não consegue expressar toda a dimensão desta esfera

no interior da tradição marxista. A proposição da relação entre infra-estrutura

determinante e superestrutura determinada foi, sobretudo no início do século XX e

no quadro do marxismo ortodoxo, considerada como sendo a chave de uma

possível análise marxista acerca da cultura.

Tal concepção tem por base a seguinte afirmação de Marx, que pondera

que
A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, a base real, sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas
definidas de consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona os processos social, político e intelectual da
vida em geral. (...) com a modificação da base econômica, toda a
imensa superestrutura se transforma mais ou menos rapidamente.
(MARX, 1999, p. 52).

No entanto, o contexto real desta interpretação é limitado, afirma

WILLIANS, pois poderíamos encontrar, ao longo da produção marxiana, pelo

menos mais dois sentidos de “superestrutura”: o de formas de consciência que

expressam uma determinada ideologia, uma visão de mundo característica de

uma classe e o de um processo no qual os homens se tornam conscientes de um

conflito econômico fundamental e o tentariam solucionar (práticas políticas e

culturais). Assim, este autor nos chama a atenção para o fato de que entender os

termos infra-estrutura e superestrutura como categorias separadas e áreas de

atividade fechadas é realizar uma abstração comum e vazia de sentido, própria

das formas de pensamento que Marx tanto condenou.

É portanto uma ironia lembrar que a força da crítica original de


Marx se voltava principalmente contra a separação das áreas de
pensamento e atividade (como na separação entre a consciência e
a produção material) e contra o esvaziamento correlato do
conteúdo específico – atividades humanas reais – pela imposição
de categorias abstratas. A abstração comum da infra-estrutura e
da superestrutura é portanto uma continuação radical dos modos
de pensamento que ele atacou. (WILLIAMS, 1979, p. 82)

O conjunto da produção marxiana nos convida, desta forma, a compreender

a superestrutura como o palco da complexificação de verdadeiras relações

sociais. Para apreendê-la e estudá-la, é preciso estar atentos para os vínculos


indissolúveis entre produção material, instituições, atividades políticas e culturais e

consciência. Não se pode pensar em condições econômicas, regime político e

formas culturais como elementos organizados de forma seqüencial, pois isso seria

negar, em seus princípios fundamentais, a proposta marxiana da totalidade social.

Na verdade, estes elementos são inseparáveis. Não constituem e nem podem se

expressar de forma separada, mas como uma totalidade que se caracteriza como

atividades e produtos específicos do homem enquanto ser social.

Engels esclarece que a abstração tão comum da infra-estrutura e/ ou da

superestrutura é um fenômeno característico do processo de complexificação das

sociedades modernas, sobretudo da sociedade capitalista. Neste momento, a

interligação absolutamente orgânica entre formas de consciência e suas

condições materiais de existência se torna cada vez mais obscurecida por elos

intermediários, embora exista em toda sua completude.

Afirma ele (apud WILLIANS, 1979, p. 83),

Segundo a concepção materialista da história, o elemento


determinante final na história é a produção e a reprodução da vida
real. Mais do que isso, nem Marx nem eu jamais afirmamos.
Portanto, se alguém torce o que dissemos para afirmar que o
elemento econômico é o único elemento determinante, transforma
essa proposição numa frase sem sentido, abstrata, absurda. A
situação econômica é a base, mas os vários elementos da
superestrutura (...) também exercem sua influência sobre o curso
das lutas históricas e, em muitos casos, são preponderantes na
determinação de sua forma.

Desta forma, em uma proposta de análise da cultura que tenha por

orientação a perspectiva marxista, é necessário e relevante analisarmos os

processos reais específicos e indissolúveis que se estabelecem entre a base e a


superestrutura. Acreditamos que esta perspectiva marxiana, longe de colocar a

cultura numa posição subordinada e passiva, dá a ela uma extrema dinamicidade

e uma capacidade significativa de acompanhar o movimento histórico do real. O

conhecimento do mundo e, portanto, sua significação simbólica só são possíveis

através da ação exercida sobre ele e da transformação sofrida por ele. A

consciência social dos homens se modifica na mesma medida em que contribui

para as mudanças ocorridas na natureza e nas formas de intervir sobre ela. Nas

palavras de MARX & ENGELS (apud SAHLINS, 2003, p. 133)

(...) o mundo sensível que o rodeia não é algo diretamente dado


desde toda eternidade e sempre igual a si mesmo, mas o produto
da indústria e do estado da sociedade no sentido em que é um
produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de
gerações, cada uma das quais se apóia nos ombros da anterior,
que desenvolve sua indústria e seu intercâmbio, modificando sua
organização social de acordo com as novas necessidades.

A cultura é, portanto, o espaço dinâmico no qual a consciência

social constrói este conhecimento e esta reflexão acerca da realidade

histórica passada, presente e futura, onde o homem se percebe com

novas necessidades e desafios para além da intervenção sobre a

natureza. É um espaço de mediação, de intencionalidade, de

construção de novas demandas coletivas a serem atendidas pela

atividade produtiva. Os homens, ao desenvolverem sua produção e

seu intercâmbio material, constroem sua cultura. Ao mesmo tempo,

mudam a natureza, mudam sua constituição enquanto ser social,


mudam seu pensamento e os produtos deste pensamento. Fazem e

refazem permanentemente sua cultura e, conseqüentemente, toda sua

vida em sociedade.

SAHLINS (2003) realiza, em relação a esta concepção de Marx acerca da

cultura, a sua crítica antropológica. Segundo ele, Marx apreende apenas o caráter

secundário de simbolização da cultura, modelo de um sistema dado na

consciência. Ao lidar com o significado apenas em sua qualidade de expressão de

relações humanas, Marx deixaria escapar, através das malhas da teoria, a

constituição significativa dessas relações.

Nesta crítica, a lógica pragmática da produção material formaria um sistema

de limitações ao qual todas as relações e representações estariam funcionalmente

submetidas. Existiria, assim, uma premissa prático-natural – a de que as

necessidades devem ser satisfeitas – que eliminaria qualquer perspectiva de

autonomia da esfera simbólica da cultura. O quadro conceitual de Marx não teria

sido capaz, portanto, de responder à dimensão cultural que ordena as

“necessidades” dos valores de uso.

Tal crítica à teoria marxista é, inclusive, bastante freqüente no pensamento

social moderno. Atribuiu-se a esta teoria as características de ser reducionista e

determinista, onde as atividades referentes à esfera cultural não têm nenhuma

significação em si mesma, sendo sempre reduzida a uma expressão direta ou

indireta de um conjunto de fatores econômicos que a precedem e controlam. É a

crítica que se constrói em torno do conceito de determinação.


Entendemos, no entanto, que tal crítica ignora, no interior da perspectiva

marxiana, um de seus elementos vitais, que é a perspectiva de totalidade. Marx

não limita o quadro das necessidades humanas às necessidades físicas, pois é

ele próprio quem afirma que

A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa


que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja
qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da
fantasia. (MARX, 2003, p. 57)

Parece-nos claro, nas formulações marxianas, que o modo de produção de

determinada sociedade não é apenas a produção de bens materiais, mas de todo

um modo de vida, que contém também uma necessidade de reprodução do ser

humano em toda a dinâmica de sua vida social. Assim, os homens produzem e se

reproduzem sob determinadas condições e dentro de determinadas relações que

são criadas e mantidas, também, pelos elementos que compõem o universo

cultural desta sociedade. A produção dá origem também a um determinado modo

de vida, o qual, por sua vez, irá constituir o quadro geral em que esta produção

terá sua continuidade e será permanentemente revolucionada. Tais idéias serão

amplamente desenvolvidas pelo marxismo do século XX, sobretudo na

perspectiva gramsciana. A cultura constitui, assim, a resposta a necessidades e

imperativos humanos não ligados, única e necessariamente, à sua reprodução

física. Remete, portanto, ao aspecto da vida social concretizado no plano da práxis

interativa, da relação com os outros homens e das construções coletivas

processadas através desta relação.


Este conjunto de elementos que compõem a cultura não se encontra

disperso ou fragmentado. Ele constitui expressão da totalidade da vida social,

apresenta uma coerência na combinação de diferentes traços. É no interior desta

totalidade que determinada cultura deve ser analisada e questionada, inserida em

suas relações com os aspectos sociais, econômicos e políticos que constituem

determinada sociedade. Se a cultura é uma esfera capaz de mediar a dinâmica

das relações sociais de uma sociedade (FEATHERSTONE, 1997), ela deve ser

objeto de análise nesta perspectiva de totalidade, deve ser problematizada como

um todo, e não a partir do isolamento de um de seus elementos. Nossa insistência

nesta reflexão se justifica pelo fato de que ela nos parece extremamente relevante

para o debate que se coloca, nos dias de hoje, em torno da dinâmica do processo

de globalização em curso.

A idéia da cultura como um reflexo da realidade social foi, no interior do

marxismo, a explicação mais comum para os fenômenos culturais, altamente

influenciada por um viés positivista, onde a cultura e, sobretudo, a arte, deveriam

necessariamente refletir a realidade, ou seja, a “produção e reprodução da vida

real”, deveriam meramente reproduzir o movimento da vida real. Este tipo de

formulação, como vimos, implica em uma compreensão da cultura como algo

estático, objetivista, que, por sua vez, se relacionaria com uma concepção da

realidade, da infra-estrutura passível de ser conhecida separadamente, por

critérios de verdade científica.

A partir desta “teoria do reflexo”, constrói-se, na maioria das vezes, uma

abordagem mecanicista do materialismo, onde o mundo real aparece isolado

como um objeto em condição abstrata, com “leis” já definidas e conhecidas deste


processo. As diferentes manifestações culturais seriam apenas o reflexo destas

leis, teriam a função apenas de externar, no plano das idéias e do mundo

simbólico, o que já se constituía como a realidade básica do processo social

material. Neste sentido, na esfera cultural, não haveria espaço para a criatividade

e para relações mais dinâmicas, mas apenas para a reprodução ideal desta

realidade externa e estática. Na verdade, esta teoria acaba por eliminar o caráter

material e social da própria atividade artística e cultural. Tal modelo tende a reificar

o movimento da infra-estrutura, compreendendo-a como um objeto acabado. Não

consegue apreendê-la como um processo de vida material, como resultado da

atividade humana, como algo dinâmico e histórico, do qual a produção cultural é

parte constitutiva, e não mero reflexo.

No momento mais contemporâneo da evolução do marxismo, sobretudo a

partir dos anos 80 do século XX, esta concepção da cultura como mero reflexo foi

sendo questionada e, segundo WILLIANS, desafiada pela idéia de “mediação”. A

diferença principal estaria na compreensão deste processo ativo na relação entre

“base material” e “cultura”, entre “infra-estrutura” e “superestrutura”. A cultura

seria, então, uma mediação das diferentes relações sociais nas quais os homens

estão envolvidos, ou seja, um processo positivo e substancial, onde são

produzidos significados e valores compatíveis com e necessários para a produção

material mais ampla. Enquanto mediação, é possível compreender a cultura como

algo intrínseco à produção material, capaz de acompanhar e de redirecionar seu

movimento, seus altos e baixos, bem como, conforme analisaremos mais tarde,

sua correlação de forças e seu contexto de luta de classes. Assim, como propõe

WILLIANS (1979, p. 101),


Não devemos esperar encontrar (ou encontrar sempre), realidades
sociais “refletidas” diretamente na arte, já que estas (sempre, ou
com freqüência) passam através de um processo de “mediação”,
no qual seu conteúdo original é modificado.

Vale, ainda, enfatizarmos a dimensão essencialmente coletiva que dá

direção ao universo cultural. Embora uma das questões mais relevantes para a

antropologia cultural nos dias de hoje seja compreender como os indivíduos

incorporam e vivem sua cultura, ou seja, como se adquire uma certa cultura, esta

deve ser sempre problematizada em seu aspecto coletivo, enquanto uma

dimensão da práxis social interativa. Cada cultura comporta, em sua dinâmica

social, um conjunto de valores comuns àqueles que dela compartilham e que a

tornam específica em relação a outras culturas. É, assim, uma esfera que gera

identidade entre seus membros e que define, portanto, não só categorias para a

inclusão ou a exclusão, mas também a afirmação dos sujeitos sociais enquanto

produto e suporte das lutas sociais e políticas de grupos ou comunidades inteiras.

É neste sentido que se fala da cultura dos imigrantes, dos setores populares, de

classes sociais, etc., enquanto elemento da construção social destes setores no

interior de suas diversas relações sociais.

Todas estas questões exigem que reafirmemos a esfera cultural como

altamente dinâmica, estando sujeita a constantes transformações oriundas do

quadro social mais amplo no qual a cultura é gestada. Abordar esta dinamicidade

significa questionar os caminhos que podem contribuir para se modificar uma

cultura e os sujeitos destas mudanças, sejam eles indivíduos, grupos ou

sociedades inteiras. É necessário, portanto, afastar o risco de reificação da


cultura, e entendê-la também como o espaço de reflexão acerca dos problemas

que envolvem uma sociedade, das lutas sociais empreendidas em seu interior, da

reorganização da esfera da produção, etc.

As configurações culturais devem ser estudadas no interior de diferentes

quadros de relações sociais, as quais favorecem os elementos de integração, de

competição, de conflito, etc. Os contatos e, sobretudo, as trocas culturais são

realizadas a partir destas relações que são desiguais, uma vez que estabelecem,

no domínio cultural, uma mesma situação de hierarquia e de dominação. Ao

mesmo tempo, enquanto um espaço de reflexão (e não meramente como reflexo),

a cultura se constrói como alternativa, como questionamento desta dominação.

Define-se, neste sentido, como um pólo tenso em que convivem elementos de

resistência e de integração, de questionamento e de assimilação.

Percebemos, então, a partir destas formulações, a importância e a

significação da compreensão da cultura no interior da tradição marxista. O homem

se constitui enquanto ser participante de uma sociedade através de suas relações

com outros homens, processos que o potencializam a criar e a se identificar com

uma cultura, a qual, por sua vez, dá nova dinamicidade a estas mesmas relações

produtivas e sociais. A partir destas considerações, acreditamos que o debate

acerca da cultura no contexto contemporâneo da globalização fica enriquecido e,

ao mesmo tempo, pode ser realizado numa perspectiva mais ampla de crítica e de

superação. Inserindo a cultura na dinâmica das relações produtivas de uma dada

sociedade, encontramos o espaço privilegiado tanto para a compreensão quanto

para o questionamento da estrutura desta sociedade, sobretudo quando estas se

referem ao modo capitalista de produção. Antes, porém, de estarmos realizando


esta abordagem mais específica sobre a cultura na sociedade capitalista

contemporânea, consideramos necessário observarmos, ainda dentro desta

tradição, as contribuições especificamente gramscianas para este debate,

sobretudo no que se referem à concepção nacional-popular, categoria chave para

os estudos que pretendemos realizar ao longo deste trabalho.

1.2 - Cultura e nacional-popular em Gramsci

Denominado por FORGACS & NOWELL-SMITH (1999, p. 41) como “o

maior escritor marxista sobre cultura”, Antonio Gramsci realmente representa,

como veremos, um divisor de águas para a compreensão da esfera cultural no

interior desta tradição. Em sua obra, esta esfera “encontra seu lugar privilegiado”

enquanto elemento constitutivo de relações sociais e de projetos societários mais

amplos.

Em toda a produção gramsciana, desde seus primeiros escritos políticos até

os Cadernos do Cárcere, a temática da cultura está presente e vai,

gradativamente, ganhando maior complexidade, tornando-se mais rica e mais

completa, relacionando-se intrinsecamente com a discussão de outras esferas do

ser social, sobretudo aquela que se refere à vida política. Em um primeiro

momento, podemos perceber em Gramsci uma perspectiva tradicional de cultura,

onde esta se refere à educação como atividade do espírito, como unidade de

consciência e auto-conhecimento humano. No decorrer de sua produção,

entretanto, percebemos em Gramsci, não um abandono, mas uma ampliação

desta concepção, a qual passa a ser relacionada com todo o processo histórico,

em seus elementos políticos, sociais e econômicos que, para ele, constituem-se


inseparavelmente. Esta nos parece ser a compreensão hegemônica de cultura na

orientação gramsciana, e nos parece claramente exposta na expressão “criar uma

nova cultura”, tão freqüente nos Cadernos do Cárcere.

Toda a militância política de Gramsci, sobretudo no período pré-carcerário,

pode ser considerada como o fio condutor desta renovação da noção de cultura.

Desde os embates com os anti-culturalistas, no interior do Partido Socialista

Italiano (PSI), no período de 1913 a 1921, passando por toda a experiência dos

Conselhos de Fábrica e chegando até sua atuação no Partido Comunista da Itália

(PCI), Gramsci vai encontrando oportunidades de reelaborar sua compreensão de

cultura, ampliando e diversificando suas colocações acerca do tema. Entendemos

que é necessário aprofundarmos estudos sobre este momento da produção

gramsciana.

Desde sua passagem pela Universidade de Turim, nos anos de 1911 a

1913, Gramsci demonstrava interesse por temas que, mais tarde, lhe foram

centrais em sua discussão sobre cultura. Na Faculdade de Letras, interessou-se

particularmente por estudos de lingüística histórica e de literatura italiana,

temáticas que voltariam a chamar sua atenção em seus escritos do cárcere,

conforme carta a Tatiana Schucht de 19 de março de 1927. Destes seus primeiros

interesses, teria ficado, para Gramsci, uma compreensão, ainda restrita, de que a

palavra escrita é o centro da formação cultural em indivíduos e em sociedades

inteiras.

Devido às suas precárias condições de saúde e à sua situação econômica,

Gramsci não conseguiu avançar qualitativamente nestes estudos. No mesmo

período, mais especificamente em 1913, estabeleceu seus primeiros contatos com


o movimento socialista de Turim, ingressando então no PSI. A preocupação com

sua própria formação cultural era evidente. Lia muito, periódicos, livros, informes

em geral. Preocupava-se claramente com a situação política de sua região, a

Sardenha, não se mostrava indiferente a toda a agitação da classe trabalhadora

em Turim. Juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto Terracini,

todos bastante influenciados pelo idealismo historicista de Benedetto Croce,

Gramsci tem clara para si a necessidade de uma formação cultural ampla na

sociedade, cujo objetivo deve ser o de divulgar amplamente as idéias socialistas.

Desde 1912, a cultura se apresentava como uma questão importante no

interior do PSI, quando a seção juvenil, à qual Gramsci pertencia, havia iniciado

estes debates nos congressos do partido. FORGACS & NOWELL-SMITH assim

registram este momento

Um debate tomou lugar em seu Congresso então entre “culturalistas” tais como Angelo
Tasca (bastante próximo de Gramsci até 1919) que queriam dar total prioridade à atividade
cultural e à propaganda teórica em seu jornal, e “anti-culturalistas” (incluindo o jovem
Bordiga) que chamava estas propostas de burguesas e lembrava seus opositores que a crise
histórica tem causas econômicas. (1999, p. 45, tradução nossa)

No interior desde debate, e fazendo parte da chamada “fração da esquerda

revolucionária”, Gramsci se preocupa desde cedo com o que mais tarde

denominaria de “organização da cultura”, ou seja, com os organismos construídos

no interior das relações sociais de uma sociedade com a função ideológica de

difundir uma determinada cultura. Assim, projeta fundar uma revista socialista e, a

partir de 1915, passa a ser um intenso colaborador de Il Grido del Popolo,


semanário socialista, e da redação turinense do Avanti!, periódico diretamente

ligado ao PSI, onde publica artigos de crítica teatral, literária e de debates sobre

temas do cotidiano da vida política italiana.

Este momento da vida de Gramsci pode ser analisado como o início de uma

produção política mais madura, a qual iria caracterizá-lo como o grande

revolucionário do qual a história teria conhecimento mais tarde.

Agora o jovem, completados os 25 anos, lentamente retomava o


gosto pela vida, pelo debate político, pela atividade de jornalista.
(...) Com esta retomada do trabalho político, a transformação na
vida de Gramsci se acentuava. Não havia ainda tomado a decisão
de abandonar definitivamente os estudos universitários. Todavia,
outros interesses já prevaleciam sobre a escola. O socialismo era
a resposta a todos os problemas, inclusive os pessoais, que o
angustiavam; era a solução da crise. De fato, nascia neste
período, entre o final de 1915 e o início de 1916, o “revolucionário
profissional”. (FIORI, G. 1979, p. 125).

Deste primeiro período de elaboração teórica, quando Gramsci ainda era,

como ele próprio afirma, “sobretudo tendencialmente crociano”, podemos destacar

alguns textos nos quais as primeiras formulações de sua compreensão acerca da

cultura ficam mais evidentes. Neste momento, e até 1917, existia para Gramsci

uma intrínseca relação entre a educação formal e a questão da cultura, onde a

primeira era um dos caminhos privilegiados para se alcançar a segunda. Já

existia, no entanto, a certeza de que esta educação não poderia ser

desinteressada, ou seja, alheia e desvinculada da perspectiva de um projeto

societário mais amplo. Neste sentido, já existia, segundo Gramsci, uma luta

ideológica que envolvia, em projetos diferenciados, tanto a educação quanto a

cultura.
Em “Socialismo e Cultura”, de 29 de janeiro de 1916, Gramsci elabora um

paralelo e uma oposição entre duas concepções de cultura. Uma delas, que

poderíamos chamar de conservadora, aborda a cultura como um “saber

enciclopédico”, como uma capacidade de acumular dados que faz com que certas

pessoas acreditem ser superiores ao resto da humanidade, estando elas

sustentadas pelo que o autor chama de “intelectualismo deletério”. Evidentemente,

Gramsci se opõe a esta concepção, e defende a compreensão do termo cultura

como “algo a mais”, como um processo de auto-domínio e de autoconhecimento

que seria a base de uma consciência crítica unitária, uma “nova cultura”. Em suas

próprias palavras,

A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio


eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de
consciência superior: é graças a isso que alguém consegue
compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na
vida, seus próprios direitos e seus próprios deveres. (GRAMSCI,
2004, p. 58).

A esta concepção de cultura, que alguns autores consideram como

extremamente marcada por um viés idealista, Gramsci já acrescenta um

importante elemento, que será mantido em toda sua compreensão acerca deste

universo: a cultura não se forma no homem, enquanto indivíduo ou coletividade,

por uma evolução espontânea, por ações e reações independentes da própria

vontade. O homem é uma criação histórica e só como tal pode adquirir a

mencionada consciência crítica, que é a base de sua cultura. Através deste

conhecimento crítico de si mesmo e dos outros, o homem historicamente se eleva,

se transforma em um “elemento de ordem”, se diferencia daqueles que o


precederam e pode, portanto, propor teleologicamente as ações revolucionárias

que tenha necessidade de fazer. Neste sentido, se compreende a afirmação

gramsciana de que toda revolução precisa ser precedida por um intenso e

continuado trabalho de crítica, de penetração cultural.

No desenvolvimento desta noção, Gramsci já deixa transparecer também

aquela estreita ligação, que ao longo de sua obra, ele diversas vezes reafirmou,

entre cultura e educação. Já demonstrando uma acentuada preocupação com o

elemento classista na dimensão de absorção cultural, Gramsci, em Homens ou

Máquinas?, de 24 de dezembro de 1916, critica os socialistas na Itália por

defenderem um princípio genérico da necessidade da cultura, mas não se

comprometerem com um programa escolar específico, que se diferencie dos

outros.

Para ele, o modo como o sistema educacional é organizado favorece “os

filhos da burguesia” e faz com que a escola e, conseqüentemente, a cultura se

transformem em privilégios, relegando o proletariado a perpetuar sua condição de

classe, freqüentando as escolas técnicas e profissionais. Para que um projeto

societário alternativo possa se construir e desenvolver na sociedade italiana,

proposta e expectativa dos socialistas, Gramsci afirma que o proletariado precisa

de uma “escola desinteressada”, humanista, uma escola de liberdade e de livre

iniciativa, onde se possa adquirir critérios gerais que sirvam para o

desenvolvimento daquela consciência crítica unitária por ele defendida. Gramsci,

inclusive, se envolve pessoalmente com esta proposta de uma nova orientação

educacional direcionada para o proletariado, participando de experiências como a


educação de adultos no movimento socialista e fazendo conferências para círculos

culturais de trabalhadores.

Podemos assim afirmar que, neste primeiro momento de sua produção,

Gramsci já levanta importantes elementos a serem considerados em sua

discussão sobre cultura. É função do projeto socialista arrancar o privilégio de

acesso de uma classe à cultura, é preciso capacitar criticamente o proletariado,

com vistas a prepará-lo culturalmente para realizar as grandes transformações

necessárias em uma sociedade. É preciso que ele possa, através de sua

formação cultural, superar e abandonar uma compreensão fragmentada e

imediata da realidade social em que está inserido e alcançar uma dimensão

coletiva, unitária e revolucionária. Acreditamos que aqui está o embrião do que

Gramsci, mais tarde, chamará da passagem do momento econômico-corporativo

da classe trabalhadora para o momento ético-político. Uma transformação cultural,

portanto, estaria na base desta passagem.

Estas primeiras formulações gramscianas ganharam contornos bem mais

definidos a partir de 1917, quando Gramsci intensifica suas atividades como

jornalista e sua militância no PSI. Ao mesmo tempo, uma maior aproximação com

as discussões da tradição marxista, sobretudo a partir de Lênin, e com a

experiência da Revolução Russa fazem com que Gramsci acrescente à sua

produção, inclusive acerca da esfera cultural, novas e decisivas determinações

sócio-históricas.

Assim, o biênio 1917-1918 representa um momento de importantes

definições em toda a produção gramsciana. Diretamente envolvido com órgãos de

divulgação e propaganda socialista (La Città Futura, em fevereiro de 1917, Il Grido


del Popolo, em setembro de 1917 e Avanti!, em outubro de 1918), Gramsci

aponta, com uma clareza cada vez maior, para o caráter de classe da cultura, ou

seja, para os elementos de composição de uma autêntica cultura proletária e para

as relações que deveria estabelecer com a cultura burguesa, buscando

compreendê-la e, conseqüentemente, ter condições de superá-la através da ação

política da classe trabalhadora.

Na expectativa de levar adiante esta proposta de construção de uma cultura

proletária, Gramsci assume um grande debate no interior do PSI. Em oposição

aos reformistas e aos maximalistas, este autor, juntamente com outros membros

da juventude socialista, aposta na necessidade de que o Partido assuma a defesa

desta “cultura para o proletariado”, ou seja, na necessidade de se eliminar, no

interior do partido, aquela concepção cultural como um saber enciclopédico e de

se construir outra, capaz de preparar e de capacitar o proletariado para um real

processo revolucionário. Para Gramsci, o PSI em Turim era formado por uma

militância forte, mas essencialmente desorganizada e teoricamente despreparada

para uma direção política concreta. Além disso, esta militância estaria submetida a

uma liderança formada por intelectuais que, na relação com a base, monopolizava

a teoria enquanto conhecimento crítico. Para Bordiga, por exemplo, o que

impulsionaria o proletariado a optar pela luta rumo ao socialismo seriam suas reais

condições e necessidades de classe, vivenciadas em seu cotidiano, e não a maior

ou menor consciência crítica que tivesse sobre estas condições.

A seleção de alguns textos escritos no período de 1917 e 1918 demonstra

esta preocupação de Gramsci em orientar o debate em torno do universo cultural

no interior do PSI, buscando consolidar a idéia de que uma renovação ideológica e


cultural se fazia urgente no movimento socialista italiano, e de que a ação no

âmbito do domínio político e econômico deveria ser acompanhada pelo trabalho

do organismo de atividade cultural. Observe-se que, desde já, Gramsci associa à

cultura a capacidade historicamente construída de reflexão, de crítica, de

superação, por uma atividade consciente, das perspectivas de alienação e de

despolitização. A cultura já se apresenta como uma condição essencial para a

emancipação humana, proposta pela perspectiva socialista.

No único número de “La città futura”, em 11 de fevereiro de 1917, Gramsci,

ao se voltar para o problema do grande número de analfabetos na Itália, coloca a

questão da cultura e do acesso a ela, como o elemento capaz de elevar o

indivíduo, preso a um pequeno círculo de interesses imediatos, à condição de

cidadão, aberto a um mundo mais amplo de novas expectativas e de novos

projetos societários alternativos ao capitalismo. Para ele, esta é uma tarefa

socialista: acabar com o analfabetismo e transformar os italianos, através do

acesso à cultura, em cidadãos ativos. A “cidade futura”, enquanto projeto socialista

de Gramsci, só irá se concretizar a partir da “obra inteligente” destes cidadãos, ou

seja, das pessoas que, através do acesso à cultura, conseguem superar a

indiferença e a passividade. É neste sentido que Gramsci propõe a “disciplina

socialista”, autônoma e espontânea, construída a partir de uma rigorosa coerência,

alcançada a partir de todo o trabalho cultural proposto pelos socialistas no sentido

de “apressar o futuro”.

Em “Notas sobre a Revolução Russa”, de 29 de abril de 1917, Gramsci

deixa clara esta potencialidade revolucionária do trabalho cultural a ser

desenvolvido pelos socialistas. Ao questionar o caráter proletário da Revolução


Russa4, nosso autor propõe que é necessário que o fato revolucionário se revele,

além de um fenômeno de poder, também como um fenômeno de costumes.

Assim, para que uma revolução, nestes termos, se efetive, para que desemboque

realmente na possibilidade de construção de um projeto socialista, é necessário

que novos costumes sejam criados, instaurando assim uma nova consciência

moral. Neste mesmo sentido, em “O Relojoeiro”, de 18 de agosto de 1917,

Gramsci nos fala da necessidade de uma série de “substituições revolucionárias”,

onde, acredita ele, a primeira seria aquela em que a inércia mental dá lugar a uma

“vida de pensamento”, a um exercício de reflexão e crítica que, paralelamente a

ações no âmbito sócio-econômico e político, possibilitariam a criação de uma nova

ordem.

Este momento nos permite observar uma primeira ampliação na perspectiva

de Gramsci sobre a cultura. Já existe aqui uma relação clara entre uma

capacidade crítica e reflexiva, alcançada pela educação e pela militância política, e

um “modo de vida” mais amplo, um conjunto de valores, de costumes, de práticas

que compõem um ponto de convergência para pessoas e grupos diferenciados.

Observe-se que aqui, para Gramsci, o elemento de identidade é a situação de

classe e, mais precisamente, as condições em que esta classe vive, trabalha, se

organiza e, ao mesmo tempo, pensa e problematiza sua vida em sociedade. A

“base material”, a “vida social” determina a cultura desta classe (enquanto

capacidade de crítica e de reflexão) e a faz projetar outro projeto societário, outro

“modo de vida”, outra cultura em seu sentido mais amplo.

4
Gramsci se refere aqui ao primeiro momento da Revolução Russa, em fevereiro de 1917.
Nestas reflexões, Gramsci já questiona a atuação das lideranças do PSI,

que vinham se mostrando incapazes de superar “pregações abstratas” à base do

partido. Para ele, a vida política e econômica na Itália estaria conduzindo o PSI

para um campo reformista e favorecendo um distanciamento entre o proletariado e

suas lideranças socialistas, enfraquecendo as bases daquela cultura socialista a

ser ainda construída. Na perspectiva de Gramsci (2004, p. 111):

Os socialistas não são os oficiais do exército proletário; são uma


parte do próprio proletariado, talvez sejam sua consciência. Mas,
assim como a consciência não pode ser separada do indivíduo,
tampouco os socialistas podem ser separados do proletariado.
Formam com ele uma unidade, sempre uma unidade, e não
comandam, mas vivem com o proletariado (...). Vivem no
proletariado, e sua força está na força do proletariado, o seu poder
reside nesta perfeita aderência.

Desta forma, podemos afirmar que, após 1917, Gramsci intensifica seu

debate em torno da questão cultural, passando a denunciar uma liderança

partidária que monopolizava o conhecimento crítico e a cultura, comprometendo,

assim, a luta social do conjunto da classe trabalhadora. Na concepção de

Gramsci, então, era preciso favorecer, no interior do partido, um processo de

educação em massa, para que se formasse uma base militante culturalmente

preparada e capaz de, coletivamente, elaborar estratégias e encaminhar

deliberações por si mesma.

Esta discussão já aponta para as questões que Gramsci irá aprofundar nos

Cadernos acerca do “novo tipo de intelectual” e do partido político como o grande

“intelectual coletivo” da classe trabalhadora. Está minimamente colocada, desde

então, a necessidade de se eliminar a perspectiva de exclusividade, de uma


camada burocrática teórica e culturalmente preparada, propondo uma formação

ampla a todo o conjunto da classe trabalhadora, preparando-a para a atividade

deliberativa e revolucionária. Como se pode perceber, a defesa gramsciana de um

intelectual que “educa e organiza”, impulsionando a base para uma ação política

consciente e unitária já se apresenta nestes primeiros elementos de crítica ao PSI.

Gramsci demonstra constante preocupação com o caráter coletivo desta

formação crítica. Em “Intransigência, tolerância, intolerância, transigência”, de 8 de

dezembro de 1917, o autor pondera que as deliberações tomadas coletivamente

devem ter como base a razão, devem ser resultado de um amplo, e tolerante,

processo de debate, de discussões, onde a síntese seja uma verdade global e

integral porque resultado de um processo coletivo de avanço cultural. Decisões e

deliberações assim tomadas, coletivamente, justificam, para Gramsci, ações

intransigentes.

Outro elemento que podemos particularizar da concepção gramsciana

sobre cultura neste período pós-1917 é que a ênfase em um caráter de classe se

torna cada vez mais marcante, bem como a idéia de uma “cultura proletária”, que,

em alguns momentos, Gramsci também chama de “cultura popular”. Em “Para

uma associação de cultura”, de 18 de dezembro de 1917, Gramsci defende que tal

associação, promovida pelos socialistas, deve ter finalidade e limites de classe.

Em Turim, o proletariado vivenciaria um elevado grau de organização e

desenvolvimento, entretanto, nem todos os que participam do movimento em prol

do socialismo assimilam o conjunto de questões que os envolvem da mesma

forma. Por isso, uma associação de cultura teria esta finalidade, de ampliar, ao

proletariado enquanto classe, esta preparação cultural, de discutir os problemas


da construção do socialismo, esclarecendo-o, propagando-o e fazendo dele a

cultura a ser defendida pela classe trabalhadora. Só assim os socialistas poderiam

questionar, em igualdade de condições, a mentalidade dogmática e intolerante dos

setores populares na Itália, bastante influenciados por uma formação católica,

jesuítica e burguesa. Tal associação, ao construir as bases de uma cultura

proletária e socialista, instituiria, no interior da classe trabalhadora, novos

costumes e valores, mais livres, despreconceituosos e, portanto, revolucionários.

Ter vivenciado todo o desenvolvimento do processo revolucionário na

Rússia certamente favoreceu esta abordagem classista na concepção gramsciana

de cultura e impulsionou uma virada na abordagem “tendencialmente crociana”

dos primeiros escritos de Gramsci. Se, em 1916, existia uma vaga e questionável

noção de como a mudança histórica necessária seria culturalmente preparada

(FORGACS & NOWELL-SMITH, 1999), a partir do final de 1917, o contato mais

próximo com o marxismo e com o trabalho político-prático traz para Gramsci uma

maior fundamentação para se incluir a luta ideo-cultural como uma frente

necessária e imprescindível para a conquista do poder em torno de um novo

projeto societário. Em “A revolução contra O Capital”, de 24 de dezembro de 1917,

o autor exalta o fato de que, na Rússia, o proletariado tenha sido capaz de

“apressar o futuro” e de desenvolver uma vontade social, crítica e coletiva,

instaurando assim as bases de um socialismo que tenha condições sócio-

históricas de se desenvolver plenamente.

Acreditando que, neste país, “os fatos superaram as ideologias”, Gramsci

defende que os bolcheviques absorveram a proposta marxiana como um elemento

cultural vivo e dinâmico, e não como uma “doutrina de afirmações dogmáticas e


indiscutíveis”. Ao reconhecer esta dimensão cultural na Revolução Russa,

Gramsci reconhece o marxismo como uma forma de pensamento que

(...) põe sempre como o máximo fator da história não os fatos


econômicos, brutos, mas o homem, a sociedade dos homens, dos
homens que se aproximam uns dos outros, entendem-se entre si,
desenvolvem através destes contatos (civilização) uma vontade
social, coletiva, e compreendem os fatos econômicos, e os julgam,
e os adequam à sua vontade, até que essa vontade se torne o
motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual
vive, e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em
ebulição, que pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do
modo como a vontade quiser. (GRAMSCI, 2004, p. 127)

Assim, em “Filosofia, boa vontade e organização”, de 24 de dezembro de

1917, o próprio Gramsci descreve sua concepção de cultura neste momento:

Dou à cultura este significado: exercício de pensamento, aquisição


de idéias gerais, hábito de conectar causas e efeitos. Para mim,
todos já são cultos porque todos pensam, todos relacionam causas
e efeitos. Mas o são empiricamente, primordialmente cultos, não
organicamente. Conseqüentemente, hesitam, desorganizam-se
tornam-se violentos, intolerantes, briguentos, de acordo com a
ocasião e as circunstâncias. Vou me fazer mais claro: tenho uma
idéia socrática de cultura, acredito que ela significa pensar bem,
em qualquer coisa que se pense, e conseqüentemente, agir bem,
em qualquer coisa que se faça. (apud FORGACS & NOWELL-
SMITH, 1999, p. 57, tradução nossa)

Por isso, Gramsci afirma que a cultura é um conceito básico para o

socialismo, que deve ser organizada, como qualquer outro elemento, a partir da

perspectiva socialista. Deve possuir sua própria institucionalidade, através de

associações de cultura que, ligadas ao movimento socialista enquanto um projeto

de totalidade, constituam em si uma necessidade mais ampla para um projeto

alternativo. Cultura se faz, assim, através do processo em que se discutem e se


investigam os problemas, onde se permite a participação e a contribuição de

todos, onde uma alternativa societária é gestada e assumida como projeto de uma

coletividade. Em torno desta idéia mais ampla de cultura, Gramsci particulariza

algumas questões, que nos interessarão particularmente no trato do objeto deste

trabalho.

Em alguns textos do início de 1918 (“A crítica crítica”, “A Liga das Nações” e

“Individualismo e coletivismo”), percebemos uma primeira preocupação de

Gramsci com a questão nacional e o nacionalismo. Gramsci faz, nesta

oportunidade, uma crítica às primeiras formulações do movimento socialista

italiano, as quais negligenciaram o estudo, o debate e a solução dos grandes

problemas nacionais que, segundo ele, interessavam a todo o proletariado italiano.

Posteriormente, Gramsci se preocupa em discutir e compreender o capitalismo

como um sistema de bases e leis internacionais e supranacionais, como o

mercado externo e a livre concorrência, mas que só conseguiu se construir como

tal porque se desenvolveu, de forma mais ou menos intensa, conforme as

particularidades naturais e históricas oferecidas por cada país. Na verdade,

teríamos aqui o embrião de algo que posteriormente será central na obra mais

madura de Gramsci: a concepção de nacional-popular, ou, em outras palavras, a

necessidade de compreensão, por parte do proletariado, das questões específicas

do desenvolvimento capitalista em cada nação e da orientação que este fato

acaba dando às diferentes experiências do movimento socialista.

Neste debate em torno de uma “questão nacional” se coloca para Gramsci,

por exemplo, a questão de uma língua nacional que, enquanto construção

histórica, está diretamente vinculada à complexidade das atividades sociais das


pessoas que a falam. Por isso, pondera Gramsci, não é possível criar uma língua

universal, como era a proposta do Esperanto, no início do século XX, nem mesmo

uma língua nacional que seja fixa no tempo e no espaço. Novas correntes e novos

usos da língua são introduzidos pela dinâmica da luta social de diferentes classes,

que surgem na história de forma politicamente organizada e fazem com que

(...) novas curiosidades morais e intelectuais provocam o espírito e


o obrigam a se renovar, a se aperfeiçoar, a mudar as formas
lingüísticas de expressão, tirando-as de línguas estrangeiras,
revivendo formas mortas e mudando significados e funções
gramaticais. (GRAMSCI apud FORGACS & NOWELL-SMITH,
1999, p. 66, tradução nossa)

A partir destas idéias, Gramsci estará preocupado em desenvolver, com

maior clareza, os elementos que, segundo ele, deveriam caracterizar uma “cultura

socialista”. Para ele, o princípio orientador da ação do proletariado deveria ser a

organização que, substituindo diretamente o individualismo, deveria garantir à

cultura proletária o “sentido de responsabilidade, o espírito de iniciativa e o

respeito pelos outros”. Assim, uma associação da cultura vinculada ao movimento

socialista deveria “educar para o desinteresse, para a iniciativa do ‘indivíduo

coletivo’, sem objetivos imediatos de lucro pessoal” (2004, p. 125).

Em “Cultura e luta de classes”, de 25 de maio de 1918, Gramsci enfatiza

que esta preocupação com uma “nova cultura”, de bases socialistas, não é uma

mera questão retórica, mas uma necessidade urgente. Segundo ele, Turim

constituiu-se como uma cidade moderna, que conta com um movimento socialista

complexo, mas com sérias carências culturais e intelectuais. A classe operária,

crescente, absorvia gradativamente novos indivíduos que, no entanto, não


compreendiam plenamente a luta de classes e a conseqüente exploração à qual

estavam submetidos. Neste sentido, Gramsci reafirmava a urgência do trabalho e

da organização cultural e propunha que, nos espaços onde a atividade intelectual

(de escritores e propagandistas) fosse de difícil acesso, o proletariado promovesse

uma educação mútua acerca dos princípios da crítica socialista.

É com esta orientação, de uma educação e de uma cultura que se

constroem na coletividade, que Gramsci afirma, em “Livre pensamento e

pensamento livre”, de 15 de junho de 1918, que os socialistas querem o

“pensamento livre”, ou seja, condicionado pelas condições históricas, mas, ao

mesmo tempo, livre de convenções, estreitezas e preconceitos. Este pensamento

seria, portanto, resultado de uma cultura mais sólida, ampla e crítica, onde a

verdade não deveria ser apresentada de forma dogmática e absoluta, mas seria

oriunda de um processo marcado por uma ampla tolerância nas discussões e nas

polêmicas e enriquecido pela possibilidade de divergências e, até mesmo, de

contradições.

O socialismo se apresenta, então, neste momento da produção gramsciana,

como um projeto societário a ser construído não só pela organização política e

econômica, mas também por uma intensa atividade cultural, capaz de revolucionar

também o saber e a vontade, aprofundando uma consciência de liberdade e de

ação. Nesta ampla atividade cultural, Gramsci inclui elementos como a escola e o

programa educacional, que devem ter a tarefa de educar e de construir novas

gerações para a vida social no socialismo e em sua perspectiva democrática.

Inclui também a arte, principalmente a literatura e o teatro, que devem apresentar-

se como instâncias de reflexão e de debate, de reconhecimento e de propostas,


onde as classes trabalhadoras possam exercitar sua função de classe

fundamental na sociedade. Mais uma vez, como podemos perceber, Gramsci

amplia sua concepção em torno deste termo, incluindo agora elementos de

manifestação e de expressão cultural, tais como as artes e a produção intelectual.

Além do contato e da exaltação da experiência soviética, que, segundo

Gramsci, criou condições de uma nova cultura e de uma nova organização, uma

aproximação mais radical com o marxismo, sobretudo com a produção de Lênin,

está na base desta ampliação da noção gramsciana de cultura. Em “O nosso

Marx”, de 5 de maio de 1818, nosso autor identifica que

Com Marx, a história continua a ser domínio das idéias, do


espírito, da atividade consciente dos indivíduos isolados ou
associados. Mas as idéias, o espírito, ganham substância, perdem
sua arbitrariedade, não são mais fictícias abstrações religiosas ou
sociológicas. A substância está na economia, na atividade prática,
nos sistemas e nas relações de produção e troca. (GRAMSCI,
2004, p. 162).

O denominado “Biênio Vermelho” (1919-1920), na Itália, trouxe novas e

significantes inquietações para a produção gramsciana, a qual inova não só no

que se refere à ação política do proletariado, mas também com relação às suas

formulações sobre cultura. Um período de grande efervescência militante estava

se apresentando para Gramsci naquele momento e o desafia a novas formulações

teóricas e posições práticas.

Já no início de 1919, juntamente com Ângelo Tasca, Palmiro Togliatti e

Umberto Terracini, Gramsci dá continuidade ao seu projeto de fortalecer os

organismos de difusão da cultura socialista. O grupo resolve criar uma “resenha


semanal de cultura socialista”, intitulada L’Ordine Nuovo, que será a partir de maio

deste ano, o principal órgão de elaboração teórica das idéias de Gramsci e do seu

grupo, principalmente no que se refere à atuação dos Conselhos de Fábrica, à

crise interna do PSI e, posteriormente, já em 1921, às formulações do recém

criado Partido Comunista da Itália (PCI).

Ainda bastante envolvido pelos acontecimentos na URSS, e procurando

acompanhar a passagem de um momento revolucionário para a construção de

uma sociedade socialista, Gramsci se volta, em suas formulações, para

especificar os mecanismos de construção da revolução proletária e para buscar,

na realidade italiana, os caminhos para que ela efetivamente se colocasse como

desafio para a classe trabalhadora.

Para Gramsci, a especificidade da revolução proletária, o que faz dela “a

maior das revoluções”, é sua proposta de instaurar uma nova ordem e uma nova

disciplina, e não apenas de corrigir a forma da propriedade privada ou da figura do

Estado. Em sua opinião, os bolcheviques souberam dar uma nova organicidade ao

povo russo, desagregado e desorganizado, em torno de uma outra vontade

coletiva, capaz de romper com a cultura atrasada e dominante, vigentes até a

Revolução, e de desenvolver e enriquecer uma outra cultura, construída em

relação direta com a inserção diferenciada da classe trabalhadora no mundo da

produção.

Esta “outra cultura”, revolucionária, deveria se expressar a partir da

instauração de um novo Estado, proletário, capaz de garantir a permanência e o

êxito de toda atividade social levada adiante pelos bolcheviques. Neste sentido,

Gramsci exalta a figura dos “soviets”, entendidos por ele como uma forma
constitutiva da nova sociedade organizada, como o espaço capaz de substituir a

burguesia em todas as suas funções essenciais de administração e de controle da

produção. Os soviets teriam, também, uma dimensão cultural, viabilizada pela

realização de uma obra de propaganda, de esclarecimento e de educação entre o

proletariado, acerca dos princípios revolucionários a serem fortalecidos.

Em “Questões de Cultura”, de 14 de junho de 1920, Gramsci procura

resumir estas idéias. Afirma que a revolução proletária pressupõe um novo

conjunto de normas, novas maneiras de sentir, pensar e viver que, construídas a

partir do modo de vida das classes trabalhadoras, deverão se tornar dominantes

em uma sociedade pós-revolucionária. Assim, paralelamente à questão de

conquistar o poder econômico e político, o proletariado deve se colocar também o

problema de conquistar o poder intelectual, organizando-se culturalmente para a

produção de novos valores, de uma nova “concepção de mundo”. Neste sentido,

Gramsci invoca o Proletkult, organizações culturais da URSS, como exemplo de

organização cultural autônoma da classe trabalhadora.

Para Gramsci, a noção de “cultura proletária” está relacionada a


sua defesa de uma moral proletária historicamente superior,
baseada no trabalho produtivo, na colaboração e nas relações
pessoais responsáveis, assim como em sua crença em um novo
tipo de sistema educacional na qual a divisão entre trabalho
manual e intelectual esteja superada (FORGACS & NOWELL-
SMITH, 1999, p. 47, tradução nossa).

Bastante influenciado por esta experiência na URSS, Gramsci procurou

identificar, na sociedade italiana, as organizações que pudessem ter esta mesma

função dos soviets, ou seja, conter potencialmente o Estado socialista, organizar


culturalmente e dar poder ao proletariado na construção das bases de uma nova

sociedade. Assim, ele atribui às comissões internas o papel de um “embrião dos

soviets”5.

A idéia central de Gramsci era que todos os operários, todos os


empregados, todos os técnicos e mais tarde todos os camponeses
e logo todos os elementos ativos da sociedade deveriam tornar-se,
fossem ou não inscritos no sindicato e independente do partido a
que pertencessem, e mesmo que não militassem em um partido,
mas apenas, pelo fato de serem operários, camponeses, etc., de
simples executores a dirigentes do processo produtivo, de peças a
um mecanismo regulado pelo capitalista a sujeitos; em essência,
que os órgãos democraticamente eleitos pelos trabalhadores (os
Conselhos de fábrica, de fazenda, de bairro) fossem investidos
debaixo do poder tradicionalmente exercido na fábrica e no campo
pela classe proprietária e nas administrações públicas pelo
delegado do capitalista. (FIORI, G. 1979, p. 150).

Em “Democracia operária”, de 21 de junho de 1919, artigo que o próprio

autor definiu posteriormente como “um golpe de Estado redacional”, estão

colocadas as bases desta assimilação gramsciana entre os soviets e os conselhos

de fábrica, que, em sua opinião, já contém potencialmente o Estado socialista.

Tais instituições estariam, entretanto, dispersas e desordenadas, e existiria a

necessidade de dar-lhes organicidade e coerência, potencializando-as como os

órgãos do poder proletário que substituiria o capitalista na direção e na

administração das fábricas. Por isso, ele propõe uma organização de toda a

classe trabalhadora nos conselhos (de fábrica, de bairro), numa perspectiva de

experimentação política e administrativa e de preparação para o exercício do

poder. Para Gramsci, a ação dos Conselhos é mais ampla e mais efetiva do que a

5
GOODE (In BOTTOMORE, 2001: 78) afirma que esta concepção gramsciana beirava o
“utopismo”.
dos sindicatos, pois estes últimos trabalhariam nos limites do período histórico

dominado pelo capital, enquanto os primeiros teriam como orientação justamente

a superação desta sociedade. A natureza do sindicato é, segundo Gramsci,

concorrencial, e não comunista, e a razão de ser dos Conselhos está no trabalho e

na produção, e não mais no salário.

Gramsci acredita que os conselhos constituíam o momento de instauração

de um novo Estado, tipicamente proletário. Tem-se notícia de que, em setembro

de 1919, os operários da Fiat-Brevetti elegeram os comissários de seção e

nasceu, então, o primeiro Conselho de Fábrica. O movimento se torna crescente

na Itália, somando-se a experiências de conselhos em outros países, e Gramsci

ficará, durante o biênio 1919-1920, bastante envolvido com a função de garantir

uma fundamentação teórica e cultural aos Conselhos e de convencer os membros

do PSI de que o partido deveria assumir definitivamente esta lógica conselhista.

Para este autor, o PSI deveria ter como meta a unidade da classe operária

em um único comitê, capaz de agregar instituições urbanas, com trabalhadores de

todas as atividades da vida moderna, chegando a unidades cada vez mais

amplas, que incluíssem também os camponeses. Gramsci pensa, assim, em uma

grande frente de organização política e econômica da classe trabalhadora, que

deveria basear suas ações na realidade do trabalho, da produção, conciliando

exigências do momento atual com as expectativas e perspectivas do futuro.

A aproximação de Gramsci com esta discussão acerca dos conselhos o

teria afastado da temática específica da cultura? Poderíamos certamente afirmar

que não. Muito pelo contrário, Gramsci parece ter somado a esta discussão outras

importantes determinações. Se antes poderíamos afirmar que o binômio


educação/ formação política resume bem a primeira concepção gramsciana de

cultura, agora o autor parece somar outros elementos, quais sejam, a organização

e a militância. Para ele, os Conselhos de Fábrica teriam também uma importante

função cultural, entendida como a de materializar, de tornar real, num primeiro

momento, aquela que ele mesmo denominou de uma “cultura socialista”. Nos

Conselhos, o proletariado teria a oportunidade de exercitar esta cultura, através da

resistência à herança do capitalismo e da afirmação de princípios e valores

orientadores de uma prática socialista: o autogoverno, a lealdade e a disciplina, a

participação ativa e permanente, o sentimento rigoroso de responsabilidade, o

coletivismo e a experiência associativa, a solidariedade operária como algo

positivo e permanente. Os Conselhos seriam, assim, um órgão de educação

recíproca e de desenvolvimento de um novo espírito social, de uma nova cultura,

enfim, capaz de garantir uma unificação orgânica de toda a classe trabalhadora.

Gramsci reconhece, então, que, numa perspectiva radicalmente marxista,

as mudanças operadas pelos Conselhos na esfera da produção são

determinantes na configuração desta nova cultura.

E estas condições objetivas [de produção] se modificam, modifica-


se também a soma das relações que regulam e informam a
sociedade humana, altera-se o grau de consciência dos homens, a
configuração social se transforma, as instituições tradicionais se
debilitam, deixam de cumprir suas funções, tornando-se gravosas
e destrutivas. (GRAMSCI, 2004, p. 260).

Neste sentido, a conquista do Estado proletário constitui, segundo Gramsci,

um processo de desenvolvimento que pressupõe um trabalho preparatório de

organização e de propaganda que, neste caso, é desenvolvido e construído


também culturalmente, através da participação do proletariado na lógica dos

conselhos.

Como já ponderamos, Gramsci estava, desde 1917, bastante preocupado

com o caráter reformista que vinha ganhando força no interior do socialismo

italiano. Segundo suas análises, elaboradas ao longo de todo o ano de 1920, o

crescimento repentino vivenciado pelo Partido havia-no desvitalizado, ao invés de

fortalecê-lo, e isso em decorrência da perda de contato da direção com as massas

em movimento, levando o partido a uma crise de marasmo e de letargia.

Existia, no interior do PSI, uma forte resistência à proposta dos Conselhos.

Para Bordiga, por exemplo, era um equívoco acreditar que o proletariado poderia

ganhar terreno e emancipar-se no plano das relações econômicas enquanto o

capitalismo ainda detinha a figura do Estado e o poder político. Para Serrati, por

outro lado, havia na elaboração de Gramsci, uma confusão entre os soviets, que já

atuavam no contexto de uma revolução vitoriosa, e os conselhos, que trabalhavam

no âmbito da ordenação industrial na sociedade capitalista. Apesar da proposta de

Gramsci obter minimamente um consenso, esta resistência do PSI ficou evidente

por ocasião da Greve de Abril6, em 1920, quando os industriais reagiram ao

movimento dos conselhos, crescente na Itália, e a classe trabalhadora não

recebeu o apoio esperado de seus dirigentes partidários e sindicais. Assim avalia

Gramsci esta derrota

6
A “Greve de abril” foi um movimento de greve geral, em abril de 1920, que chegou a reunir mais
de 200 mil trabalhadores em Turim, Esgotou-se num prazo de dez dias, com a vitória substancial
dos patrões.
(...) é certo que a classe operária de Turim foi derrotada porque
não existem, porque ainda não amadureceram na Itália as
condições necessárias e suficientes para um movimento orgânico
e disciplinado do conjunto da classe operária e camponesa. Um
indício desta imaturidade, dessa insuficiência do povo trabalhador
italiano é, sem dúvida, a “superstição” e a mentalidade estreita dos
responsáveis do movimento organizado do povo trabalhador
italiano (GRAMSCI, 2004, p. 346).

Gramsci conclui então que, embora o partido político e os sindicatos sejam

co-responsáveis pelos atos de libertação da classe trabalhadora no processo

revolucionário, na Itália estes instrumentos não encarnaram este processo e,

conseqüentemente, não superaram o Estado burguês. A classe operária na Itália

teria, então, adquirido consciência da necessidade de uma unidade orgânica e da

volta do poder industrial à fábrica sob a forma do Estado operário no sistema dos

conselhos. No entanto, faltava-lhe organização e direção. Faltava, e isso ficou

evidente após a Greve de abril, a capacidade organizativa de fazer da revolução

um ato contínuo, de reconstrução a partir de um sentido comunista, de introduzir

uma nova ordem e construir um novo Estado.

O PSI teria falhado, então, exatamente em sua função cultural de educar,

formar politicamente e capacitar as massas a se organizarem em classe dirigente

e dominante. A classe operária deveria estar preparada para uma gestão social

diferente, com “a cultura e a psicologia de uma classe dominante” capaz de

debater e de se educar reciprocamente. Neste sentido, então, o PSI não tinha

contribuído na construção de uma verdadeira “cultura socialista”, estando tomado

por uma retórica vazia e impotente no aspecto político, com uma atuação

meramente parlamentar.
Por isso, torna-se urgente para Gramsci, a partir deste momento, uma

renovação do Partido Socialista. Era preciso abandonar a atuação meramente

parlamentar e os estreitos limites da democracia burguesa, atuando diretamente

no cotidiano das lutas empreendidas, no caso, pelo sistema dos conselhos. Era

preciso desenvolver um trabalho intensivo de educação política das massas no

sentido de uma orientação comunista, afastando o risco do reformismo que

pairava sobre todo o movimento socialista naquele momento.

É neste sentido de um reencontro do movimento socialista italiano com as

questões concretas da vida da classe trabalhadora, com vistas à criação de uma

nova cultura que Gramsci propõe a renovação do PSI na direção de um partido

revolucionário, homogêneo e coeso, com doutrina, tática e disciplina rígidas e com

um importante trabalho de educação de “consciências revolucionárias”. No

entanto, esta posição de Gramsci começava a perder força dentro do PSI. Havia

uma crise interna no partido e se configurava com mais clareza uma

irreconciabilidade entre suas várias tendências. Começavam a se formar, com

mais organicidade, grupos comunistas no interior do partido, que, funcionando

com mais vitalidade, assumiam, em algumas fábricas, o governo de classes.

Gramsci acreditava que a tendência era que estes grupos iriam se expandir no

interior do partido até conquistarem sua direção, transformando sua figura

histórica e eliminando, de vez, seus restos reformistas.

Este debate no interior no PSI tornou-se mais intenso após o movimento

que, em agosto e setembro de 1920, ficou conhecido como a “ocupação das

fábricas”, com todos os poderes sendo assumidos pelos Conselhos nas fábricas

de Turim. Os trabalhadores assumem a produção nos locais de trabalho, sendo


disciplinados pelos Conselhos. Tal movimento, que durou apenas 30 dias,

aproximadamente, foi reconhecido, inclusive internacionalmente, como uma

“verdadeira revolução”, como uma primeira experiência de poder da classe

trabalhadora na Itália.

Gramsci, que participou ativamente do movimento de ocupação das

fábricas, estava também bastante envolvido com a preocupação de fazer avançar,

no interior do partido, a cultura e os grupos comunistas, fazendo-os conquistar a

direção do PSI e de todo o movimento da classe trabalhadora italiana naquele

momento. No entanto, a ocupação das fábricas não se expande como um grande

movimento nacional e, ao fracassar em Turim, recoloca o problema da ação

reformista e parlamentar do Partido Socialista, trazendo, com mais clareza, a

intenção de ruptura dos grupos comunistas e de fundação de um novo partido.

Além disso, o fracasso do movimento turinense coloca em pauta outra

questão, que será central no debate gramsciano pré-cárcere: a restauração do

Estado na Itália pela reação neoconservadora do fascismo. O primeiro artigo de

Gramsci que aponta mais diretamente para esta questão data do final de 1920.

Em “O que é a reação?”, ao fazer uma crítica à atuação de Giolitti durante o

movimento de ocupação das fábricas, Gramsci reconhece que o capitalismo se

torna reacionário quando não consegue mais dominar as forças produtivas. Neste

momento, Gramsci dá maior destaque à intervenção direta e violenta do Estado

burguês reacionário sobre a luta de classes, reprimindo as tentativas e iniciativas

da classe trabalhadora. No momento seguinte, sobretudo nos anos de 1921 e

1922, este autor estará reconhecendo, no avanço e no fortalecimento do fascismo

enquanto um movimento internacional, o surgimento de um elemento de


consenso, de apoio de massas, que demarcará todo o Estado italiano entre as

décadas de 20 e 40.

Compõe-se, assim o novo quadro de questões demarcadas por Gramsci

neste período. Em primeiro lugar, a ruptura com o PSI e a formação do PCI. Em

segundo lugar, a reação capitalista e o fascismo na Itália. Vejamos, portanto, os

principais elementos deste debate e sua contribuição específica para a noção

gramsciana de cultura.

A partir da crise interna do PSI e da fundação do PCI, Gramsci reconhecia,

neste último, a necessidade de assumir uma postura de defesa do Estado

operário, devendo retomar o trabalho de orientação e de educação política

abandonado pelos socialistas, refundando, em bases inclusive culturais, a

perspectiva revolucionária mais ampla, capaz de ultrapassar a orientação

parlamentar.

Ao pensar e questionar o papel que o recém-criado PCI deveria ter junto à

classe trabalhadora, Gramsci não hesita em atribuir a esta classe a função de

“classe nacional”, ou seja, daquela que deveria arrancar o poder econômico e

político e resolver, com base em seus princípios e em sua cultura, o problema

central da vida nacional italiana, unificando econômica e espiritualmente o povo

italiano. Dialeticamente, Gramsci será enfático em ponderar que tal recuperação

da vida nacional italiana pelo projeto da classe trabalhadora só será possível “nos

quadros da revolução mundial” e, por isso, ele defende como imprescindíveis a

disciplina e a fidelidade à experiência soviética. Era necessário, assim, um poder

internacional fortemente centralizado, capaz de, atento às particularidades da vida

nacional, orientar as forças revolucionárias mundiais para o mesmo objetivo.


Observamos que, desde então, nacional e internacional se constituem, no

pensamento gramsciano, a partir de um movimento dialético, onde o primeiro

aponta para os problemas e questões específicos vivenciados pelas classes

trabalhadoras em seu cotidiano e o segundo aponta para o espaço de intervenção,

para a perspectiva revolucionária mais ampla, sem a qual não se resolvem os

problemas em âmbito nacional. Como teremos a oportunidade de discutir, esta

conclusão gramsciana nos parece absolutamente contemporânea para as

discussões que pretendemos realizar.

Entre as expectativas gramscianas para a atuação do PCI, está a tentativa

de se recuperar a importância dos conselhos de fábrica como o organismo de

poder operário sobre os meios de produção. Segundo Gramsci, é no terreno deste

controle que burguesia e proletariado lutam para conquistar a posição de classe

dirigente das grandes massas populares. Ao assumir esta posição, a classe

operária encontra bases concretas para iniciar o trabalho positivo de organização

do novo sistema econômico e social. Esta luta, portanto, é revolucionária e só será

levada adiante quando a classe operária conseguir elevar sua consciência em

torno de sua autonomia e de sua personalidade histórica. Desta forma, Gramsci

expõe, claramente, a relação intrínseca entre cultura e política que, de forma tão

intensa, caracteriza sua produção teórica, sobretudo no período do cárcere.

Neste sentido, o Partido Comunista incorpora, para Gramsci, o instrumento

capaz de congregar as inúmeras lutas particulares da classe operária em uma

luta, mais ampla, iluminada por um grande objetivo final. Assim, através da ação

do PCI, Gramsci visualiza uma maturidade material e moral do proletariado,


capacitando-o a assumir concretamente um novo poder, que não será conquistado

e exercido através dos organismos do Estado burguês.

É preciso que os operários, os camponeses, os trabalhadores de


todas as categorias tornem-se dominadores de toda a sociedade,
que tenham o poder e o exerçam através de novas instituições,
capazes de dar à sociedade uma nova forma e uma férrea
disciplina de ordem e de trabalho para todos. É preciso que todas
as demais lutas se subordinem àquela que visa à conquista do
poder, à criação do novo Estado, do Estado dos operários e dos
camponeses. (GRAMSCI, 2004, p. 62).

Ao mesmo tempo em que se preocupa com a necessidade de desenvolver

e consolidar as primeiras teses do PCI junto à classe trabalhadora italiana,

Gramsci estará neste momento voltado, também, para elaborar uma crítica aos

elementos fascistas que começam a ganhar força na sociedade italiana. Ele

reforça o caráter de classe do fascismo italiano, reconhecendo nele um elemento

de “imaturidade humana na Itália”, onde a luta de classes assume um caráter

extremamente violento e anti-social. O fascismo seria, então, a prova de que não

se teve a experiência de um Estado bem organizado e administrado e de que

apenas nas mãos do proletariado este Estado poderia viver uma fase mais

“amadurecida” com uma reorganização da produção e de todas as relações

sociais a ela vinculadas. Em oposição aos socialistas, Gramsci reconhece o risco

de um golpe de Estado pelos fascistas e propõe que os comunistas respondam a

ele com a insurreição, com a condução do povo em armas até a criação do Estado

operário.

Fortalecido pelo uso “caótico” da violência privada, por fazer da ilegalidade

a “única coisa legal”, o fascismo se torna gradativamente mais agressivo contra as


classes trabalhadoras e as ações de governos locais socialistas. Gramsci

reconhece, desde então, o fascismo como um movimento em escala internacional

que, diante da guerra imperialista que arruinou as forças produtivas, buscava,

através da coerção, solucionar a unidade de crises nacionais que se construíam.

Gramsci reconhece, também no fascismo, um marcante elemento cultural.

Para ele, esta experiência política revela a decomposição da sociedade italiana,

expressa costumes e tradições que se identificam com a psicologia bárbara e anti-

social de alguns estratos do povo italiano, que sempre deram à luta de classes um

caráter extremamente violento. Assim, para o autor, a luta contra o fascismo é

uma luta também cultural, a ser levada adiante pelo comunismo, garantindo a

estes estratos populares a convivência com uma nova tradição, com uma nova

educação, com um Estado, bem organizado e bem administrado, sustentado por

outras relações, princípios e valores.

Assim afirma Gramsci,

(...) o fascismo enquanto fenômeno geral, enquanto flagelo que


supera a vontade e os meios disciplinares de seus líderes, com
sua violência, com seus monstruosos arbítrios, com suas
destruições tão sistemáticas quanto irracionais, só pode ser
extirpado por um novo poder de Estado, por um Estado
“restaurado” tal como o entendem os comunistas, ou seja, por um
Estado cujo poder esteja nas mãos do proletariado, a única classe
capaz de reorganizar a produção e, em conseqüência, todas as
relações sociais que dependem das relações de produção. (2004,
p. 58)

Desta forma, a produção de Gramsci neste momento estará construída em

torno deste grande enfrentamento, qual seja, entre diferentes projetos que se

pretendem dominantes e dirigentes da classe trabalhadora italiana. Por um lado, o


debate com o PSI, do qual os comunistas haviam se desligado e que aderia, cada

vez mais, a uma perspectiva reformista, enxergando o inimigo não mais na

burguesia, mas nos comunistas e na possível concorrência em torno da conquista

da classe trabalhadora. O principal elemento de polarização será a organização do

proletariado em sindicatos ou em conselhos, sendo que Gramsci reafirmará que

os últimos são os grandes parlamentos operários, com a função de transformar as

velhas relações organizativas rompendo com o seu burocratismo. Para ele, nos

conselhos, triunfam as teses e os homens da revolução, organicamente formados

no Partido Comunista, enquanto no velho organismo sindical sustentam-se as

teses do reformismo, uma vez que não questionam o controle sobre a produção.

Em “Os partidos e a massa”, de 25 de setembro de 1921, Gramsci

reconhece que, orgânica e culturalmente, o PSI, desde sua formação, era um

partido politicamente frágil. Constituído principalmente por pequeno burgueses e

camponeses, não podia deixar de ser hesitante, carente de um programa claro e

preciso, destituído de orientação e de consciência revolucionária internacionalista.

Assim se justificava, portanto, o nascimento do PCI, reconhecido pelos seus

fundadores como a primeira organização autônoma e consciente do proletariado

industrial revolucionário, que não se deixou iludir pela aparência forte e

conciliadora do Estado burguês. Gramsci apostava na necessidade de o PCI

realizar um amplo e efetivo trabalho cultural e político junto ao proletariado para

efetivamente fazer dele um partido das mais amplas massas, o que ainda não

havia acontecido devido à grande desmoralização e abatimento, após o fracasso

da ocupação das fábricas.


Já em 1922, Gramsci visualiza que um acordo entre o Partido Socialista, o

Partido Popular e o fascismo, vivendo uma crise originária de sua ação coercitiva

e repressiva, estaria preparando a base de um futuro Estado social-democrata

italiano, onde seria mantido, com novos traços, o tradicional predomínio, no

Estado italiano, de uma classe dirigente que tem interesses opostos aos das

classes populares e que quer exercer sobre elas uma dominação de violência e

engano. Este acordo e, principalmente, a participação dos socialistas neste Estado

teria um forte componente ideológico e cultural, uma vez que impediria as massas

de tomar consciência da verdadeira intencionalidade capitalista e burguesa de um

Estado social-democrata. Assim se estrutura a crítica gramsciana à social-

democracia, como um caminho de reconstrução de um organismo que

historicamente priva o proletariado da liberdade e do bem-estar.

Aos comunistas caberia, então, o papel de criticamente afastar as ilusões

das massas populares, realizando um trabalho de reorganização e de

desenvolvimento que ia desde a formação política e cultural, no sentido do

questionamento e do enfrentamento de idéias até a criação de uma força armada

proletária capaz de derrotar a burguesia. Para Gramsci, os comunistas deveriam

aproveitar a fragilidade política dos socialistas e dos fascistas, bem como a crise

política vivida pelos fascistas, para divulgar, entre operários e camponeses, uma

consciência crítica da real situação da luta de classes e dos meios adequados

para se derrotar a reação capitalista.

Percebemos, então, que, neste biênio (1921-1922), é grande a

preocupação de Gramsci em demonstrar a diferença e a superioridade das

propostas comunistas em face das iniciativas políticas até então levadas adiante
pelas realizações históricas do Estado burguês na Itália. Gramsci está atento

também neste período para a relação dialética que virá se estabelecer entre as

particularidades nacionais do desenvolvimento capitalista na Itália e o

compromisso com uma proposta internacionalista do comunismo. Reconhece,

assim, que a “democracia” italiana carece de uma sólida estrutura de classes, uma

vez que não há predominância de nenhuma das duas classes proprietárias, os

capitalistas e os latifundiários. Na Itália, segundo Gramsci, este fato se agrava por

uma séria questão territorial, qual seja, a subordinação das regiões centrais e

meridionais do país, habitadas pelas classes rurais, às regiões setentrionais, onde

prevalece o capital industrial e financeiro. Assim, esta “questão meridional” vai

gerar, entre as classes trabalhadoras de ambas as regiões (camponeses no norte

e operários no sul) uma grande dificuldade de atuação conjunta, resultante, muitas

vezes, de diferentes padrões culturais e organizativos. Desta dificuldade se

aproveita a burguesia, que faz triunfar o capitalismo e que tenta criar um sistema

de alianças com o proletariado urbano, para que possa se desenvolver uma

democracia parlamentar. Diante deste quadro, os comunistas devem assumir uma

posição precisa, não só atentando e buscando intervir nesta questão meridional,

mas também demonstrando a insuficiência desta democracia parlamentar para a

solução da crise econômica e política italiana.

Esta atenção dos comunistas às particularidades da realidade italiana não

pode acontecer, na perspectiva gramsciana, sem um fiel compromisso com a

proposta da revolução mundial. Gramsci enxerga esta carência na compreensão

do operariado italiano acerca da experiência soviética: ela não se transformou em

uma concepção universal, não determinou a germinação de uma nova cultura


operária, baseada nas experiências concretas de luta e de mobilização. Afirma-se

aqui uma das maiores preocupações gramscianas ao longo de toda a sua

militância: a fidelidade dos comunistas à perspectiva internacionalista de

revolução. Nas suas palavras,

(...) a esperança deste proletariado (e de todos os outros


proletariados) de que os conflitos e as crises que hoje dilaceram a
sociedade sejam resolvidos, a esperança de que poderão se
salvar da ruína extrema, residem tão somente na revolução
mundial e na solidariedade da Internacional operária elevada à
condição de árbitro das forças produtivas. (2004, p. 52).

Nos anos de 1923 e 1924, na liderança do PCI, Gramsci vive um período de

experiência internacional, como representante italiano junto a Terceira

Internacional, que irá demarcar questões relevantes em sua posição política e

cultural. A primeira preocupação será de fortalecer o Partido Comunista, recém

criado, em torno de uma proposta revolucionária que, ao mesmo tempo,

enfrentasse a consolidação do fascismo na Itália e congregasse forças para a

revolução mundial. Pensando neste duplo desafio, Gramsci propõe várias

iniciativas ao PCI, insistindo na necessidade de uma preparação ideológica e

cultural do proletariado em torno destas causas, principalmente na situação de

ilegalidade em que o movimento operário revolucionário italiano havia sido

colocado pelo fascismo. Em suas palavras,

Para que o Partido viva e esteja em contato com as massas, é


preciso que todo membro do Partido seja um elemento político
ativo, um dirigente. Precisamente porque o Partido é fortemente
centralizado, deve haver uma ampla obra de propaganda e de
agitação em suas fileiras; é preciso que o Partido, de modo
organizado, eduque seus membros e eleve seu nível ideológico.
Centralização significa, sobretudo, que – em qualquer situação,
mesmo sob um duro estado de sítio, mesmo quando os comitês
dirigentes não puderem funcionar por um determinado período ou
não tiverem condições de se ligar à periferia – todos os membros
do Partido, cada qual em seu ambiente, sejam capazes de se
orientar, de saber extrair da realidade os elementos para
estabelecer uma diretriz, a fim de que a classe operária não se
abata, mas sinta que continua sendo dirigida e ainda pode lutar.
Portanto, a preparação ideológica de massa é uma necessidade
da luta revolucionária, uma das condições indispensáveis para a
vitória. (GRAMSCI, 2004, p. 297).

Mais uma vez está presente a percepção gramsciana de que o partido

político é o grande intelectual orgânico, responsável pela condução de uma luta

econômica e política que não pode estar desvinculada da luta ideológica e cultural.

Esta perspectiva será desenvolvida ao longo de todos os Cadernos do Cárcere e,

com base nela, Gramsci já começa, pouco antes de ser preso, seu exercício de

crítica aos rumos que o Partido Comunista Russo vinha dando para o movimento

revolucionário internacional, ao assumir uma visão autoritária e vanguardista do

partido, confundindo centralização com obediência e submissão.

Em outras palavras, seus últimos anos de liberdade constituem um

momento em que Gramsci, precocemente, percebe a degeneração da experiência

russa. Além da crítica à condução política do “Estado dos soviets” e às

contradições nas novas medidas econômicas implementadas na URSS, Gramsci

manifesta seu descontentamento com o que poderíamos chamar de “orientação

cultural da Revolução Russa”: a unidade e a disciplina tornaram-se mecânicas,

diante de um cenário onde a adesão das massas tornou-se um processo imediato,

não confirmado a cada nova ação política. A unidade do Partido Comunista, na

Rússia e em todo o mundo, estaria ameaçada. Afirma GRAMSCI (2004, p. 400),

em carta a Palmiro Togliatti,


A linha leninista consiste em lutar pela unidade do Partido, e não
apenas por uma unidade de fachada, mas por uma íntima unidade,
que consiste em não existir no Partido duas linhas políticas
completamente divergentes em todas as questões. A unidade do
partido é condição existencial não só em nossos países, no que se
refere à direção ideológica e política da Internacional, mas também
na Rússia, no que diz respeito à hegemonia do proletariado, ou
seja, ao conteúdo social do Estado.

Sendo assim, parece-nos claro que Gramsci encerra seu momento de

militância política mais direta com questões essenciais para sua produção mais

madura, as quais envolvem uma compreensão da cultura como elemento de

crítica e de organização. Este será o grande legado gramsciano neste período pré-

carcerário, para o debate acerca da cultura no interior da tradição marxista: a

certeza de que este elemento é fundamental para o processo de organização

revolucionária, para a instauração de um novo modo de viver, de pensar e de agir,

vinculado ao projeto societário de emancipação da classe trabalhadora.

Todo o universo militante e reflexivo vivenciado por Gramsci neste período

anteriormente traçado será objeto de uma abordagem mais sistematizada a partir

do ano de 1929, quando este pensador recebe autorização para escrever no

cárcere de Turi7. A partir de então, terá início uma produção mais complexa e “fur

ewig” do pensamento gramsciano, o qual será responsável por uma das mais ricas

abordagens acerca da política no interior das Ciências Sociais contemporâneas.

Desde já, vale observarmos que Gramsci vai para a prisão com uma clara lição de

toda sua militância no período anterior: a necessidade de construir uma proposta

7
Os primeiros elementos de reflexão no Cárcere estão organizados nas Cartas do Cárcere, única
produção permitida a Gramsci nos seus primeiros anos de prisão.
contra hegemônica. Sua grande preocupação não é apenas compreender o

fracasso do movimento comunista na Itália, mas contribuir para a retomada deste

movimento, para a capacitação e o fortalecimento das classes trabalhadoras em

seu processo de conquista da hegemonia.

Que significação e que importância terá a cultura neste momento da

elaboração gramsciana? Em primeiro lugar, podemos ponderar que não existe,

nesta abordagem, uma ruptura com os elementos anteriormente trabalhados. No

cárcere, Gramsci reafirmou e aprofundou análises e conclusões acerca da esfera

cultural, resituando a batalha de idéias e a construção de uma nova cultura como

passos decisivos para a luta hegemônica e para os projetos de conquista de

poder. Nos Cadernos do Cárcere, Gramsci será responsável, por exemplo, por

uma retomada positiva da noção de “ideologia” no interior da perspectiva marxista,

onde este termo compreende agora um conjunto de idéias, valores e propostas de

ação comuns a uma determinada classe ou grupo em seu processo de

constituição enquanto sujeito político. Ser dirigente, nos termos de Gramsci, inclui,

portanto, um definitivo momento de conquista ideológica no contexto de definição

e redefinição da hegemonia.

Desde 1927, quando Gramsci, em carta a Tatiana Schucht, expressa a

vontade de elaborar um trabalho intelectual mais consistente, o interesse pela

continuidade de estudos e elaborações acerca da cultura permanece presente:

Gramsci menciona estudos sobre o espírito público na Itália (abordando a

constituição dos intelectuais italianos, suas origens, correntes intelectuais e modos

de pensar), a lingüística comparativa, o gosto teatral italiano e o gosto popular em

literatura. Posteriormente, quando, em 1929, começa a escrever seu primeiro


caderno, elabora uma lista onde, dos dezesseis tópicos apresentados, oito estão

relacionados diretamente com a cultura e sua difusão. São eles:

 Formação dos grupos intelectuais italianos;

 A literatura popular dos romances de folhetim e as razões de sua

permanente influência;

 Cavalcante Cavalcanti: a sua posição na estrutura e na arte da

Divina Comédia;

 O conceito de folclore;

 A questão da língua na Itália (Manzoni e G. I. Ascoli);

 Tipos de revista: teórica, crítico-histórica, de cultura geral;

 Neogramáticos e neolinguistas.

 Os filhotes do Padre Bresciani.

Se, num primeiro momento, Gramsci pensa em abordar estes temas

separadamente, talvez numa expectativa de retomar os estudos humanistas

abandonados pela sua dedicação ao jornalismo político e à militância, com o

desenvolvimento de sua produção, percebemos que a complexidade de suas

elaborações sobre cultura advém, justamente, de sua recusa em separar estas

questões das abordagens relativas aos aspectos econômico, político e social.

FORGACS & NOWELL-SMITH (1999) afirmam que, ao contrário de seus escritos

pré-cárcere, os Cadernos do Cárcere não apresentam um conceito de cultura

teoricamente definido por Gramsci8, o que lhe dá certa flexibilidade para abordá-lo

8
FORGACS & NOWELL-SMITH acreditam que cultura, para Gramsci, tem a palavra escrita como
o centro da formação cultural em indivíduos e na sociedade. Discordamos, a princípio, desta
formulação, pois Gramsci chama a atenção, repetidas vezes, para o fato de que todo homem,
no interior da análise de toda a dinâmica societária, tornando-o mais rico e

completo.

Quais são as estruturas societárias nas quais a cultura é construída? De

que forma a cultura pode influenciar a consciência e o engajamento políticos? Que

tipo de atitudes e de compromissos intelectuais impedem ou favorecem a

formação de uma “nova cultura”? Como esta nova cultura se relaciona com as

mudanças econômicas e políticas e como ela pode ser racionalmente organizada

e acelerada? Questões como estas parecem orientar a produção gramsciana a

partir deste momento e demonstram a preocupação deste autor em problematizar

esta esfera cultural no contexto das “superestruturas complexas”, nas mais

diversas formações societárias. Gramsci realiza, então, com relação à

compreensão da cultura, no interior da tradição marxista, um duplo movimento,

profundamente dialético: em primeiro lugar, reconhece-a como uma esfera

determinada, superestrutural, com uma limitada autonomia com relação a outras

esferas menos “flexíveis” e mais sistematicamente relatadas. Em outras palavras,

não cabe a leitura da produção de Gramsci sobre cultura alheia à abordagem de

outras categorias de seu pensamento político, entre as quais destacamos as de

intelectuais, de hegemonia, do Estado ampliado e da sociedade civil. Por outro

lado, para Gramsci, a cultura não é meramente um reflexo desta estrutura mais

ampla, mas também um elemento constitutivo de suas relações e de seus

embates mais profundos, demarcando, ela própria, instâncias de luta política e de

independente de seu acesso à educação formal, é culto, pelo fato de que pensa e reflete sobre a
constituição de sua vida social.
hegemonia. “Criar uma nova cultura” faz parte, portanto, da proposta de uma

“sociedade regulada” na orientação gramsciana.

Esta observação nos parece relevante para evitarmos a falsa impressão de

que, a partir de um determinado momento na produção carcerária gramsciana, a

discussão sobre as questões relativas à cultura tenha se tornado escassa ou

mesmo desaparecido, dando lugar a abordagens mais diretamente ligadas à

dimensão da política. Nosso autor recorre constantemente à complexidade desta

esfera para orientar e fundamentar seu pensamento político, enriquecendo-o e

renovando-o substantivamente.

No momento de sua produção carcerária, Gramsci está se defrontando com

grandes embates nacionais e internacionais, os quais redimensionam este

universo cultural e sua importância na dinâmica societária: a experiência da

revolução socialista ficou isolada em poucos e diferenciados países, o nazi-

fascismo se instalou com força em importantes países da Europa, imprimindo uma

orientação conservadora no enfrentamento político daquele momento, o

capitalismo internacional passou a se estruturar com novas características e novos

suportes ideológicos. Era preciso que as forças comunistas em todo o mundo

reconstruíssem suas estratégias políticas e, neste movimento, redefinissem a

cultura como um momento privilegiado da crítica e da organização da classe

trabalhadora.

Gramsci indica claramente sua concepção de cultura como uma

“concepção da vida e do homem”, unitária e coletivamente defendida, capaz de

gerar uma ética, um modo de viver, uma nova atitude face às contradições e aos

enfrentamentos vivenciados pelas classes sociais enquanto fundamentais ao


modo de produção capitalista. É neste sentido que, para ele, se constroem os

elementos próprios do marxismo neste âmbito: lutar por uma nova cultura,

enquanto este “novo humanismo”, capaz de criticar e superar criticamente

costumes, sentimentos e concepções de mundo.

Os diferentes “modos de vida”, segundo a perspectiva gramsciana,

aparecem, para quem os vive, como algo absoluto, “natural”, imutável. Para uma

perspectiva contra-hegemônica, revolucionária, é preciso introduzir um “modo de

pensar historicista” (GRAMSCI, 1999, p. 257), capaz de demonstrar que uma

estrutura cultural só se justifica na medida em que existem certas condições e que

se modifica na medida em que estas condições também se revolucionam. A

cultura é, portanto, este elemento histórico, que compõe e que transforma uma

dada estrutura.

Com efeito, a verdade é esta: toda coisa que existe é “racional”,


isto é, teve ou tem uma função útil. O fato de que aquilo que existe
tenha existido, isto é, tenha tido sua razão de ser enquanto
“conforme” ao modo de vida, de pensar, de operar da classe
dirigente, não significa que se tenha tornado “irracional” porque a
classe dominante foi privada do poder e de sua força de dar
impulso a toda a sociedade. Uma verdade que se esquece é esta:
aquilo que existe teve sua razão de existir, serviu, foi racional,
“facilitou” o desenvolvimento histórico e a vida. (IBIDEM, 1999, p.
257).

As questões referentes à língua e à lingüística, por exemplo, têm um lugar

central na construção teórica de Gramsci no cárcere. Para ele, as relações

lingüísticas se inserem diretamente neste “modo de pensar e viver”, pois não

constituem apenas representações e traços históricos das relações entre as forças

do passado e do presente, mas são também referências, nas trocas de influência


e prestígio cultural9. Assim, tais relações se inserem diretamente na luta pela

hegemonia em um determinado contexto histórico, neste complexo processo de

“reforma intelectual e moral”.

A história das línguas é história das inovações lingüísticas, mas


estas inovações não são individuais (como ocorre na arte): são de
toda uma comunidade social que inovou sua cultura, que
“progrediu” historicamente. Naturalmente, também elas se tornam
individuais, mas não do indivíduo-artista, e sim do indivíduo
elemento histórico-cultural completo, determinado. (GRAMSCI,
2002, p. 197).

Desde a apropriação gramsciana do debate sobre Oriente e Ocidente,

podemos observar a relação intrinsecamente estabelecida, por este autor, entre

cultura e política, ou, em outras palavras, da dimensão cultural que o

enfrentamento político apresenta nas sociedades ocidentais. A “justa relação”

entre sociedade civil e Estado, que se constrói no Ocidente, não se estabelece

somente, ou mesmo principalmente, em termos materiais. O conjunto de

“fortalezas e casamatas” que dá sustentação e legitimação ao Estado, nestas

sociedades, está completamente demarcado por um forte traço cultural, ou seja,

por uma concepção de mundo, por um leque de valores e significados simbólicos

que orientam o equilíbrio de forças e o consenso. Assim, ser dirigente em uma

sociedade, condição elementar para que uma classe se torne dominante, é uma

tarefa que está ligada à capacidade de uma classe em difundir e solidificar uma

9
Neste debate, Gramsci se dedica ao estudo sobre a língua na Itália, vendo o italiano e os dialetos
como diferentes concepções do mundo”, que apontavam para uma diferença entre ambiente
cultural e político-moral.
posição e uma proposta cultural, composta de filosofias, valores, gostos e opções

organizativas.

A ação política não se faz, neste sentido, de uma forma imediata. As

classes sociais, formadas e coletivamente construídas na esfera que Gramsci

chamaria de “sociedade econômica”, organizam seus aparelhos “privados” de

hegemonia na sociedade civil a partir de um processo de conscientização e de

auto-conhecimento possibilitado e garantido, também, pela dimensão cultural.

Através dela, os homens se reconhecem no processo produtivo, conscientizam-se

de suas possibilidades e de seus limites, ampliam sua dimensão reflexiva

enquanto ser social e, conseqüentemente, potencializam-se coletivamente para a

luta política. É neste sentido que WILLIAMS (1979) afirma que a cultura extrapola

a dimensão superestrutural, uma vez que seus elementos constitutivos estão

também na base de formação e de consolidação de relações sociais particulares.

Encontramo-nos, assim, diante de uma consideração definitiva para a

compreensão da hegemonia no pensamento gramsciano. A hegemonia tem sua

base na estrutura econômica, nasce “no chão da fábrica”, define-se a partir da

“função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo essencial da atividade

econômica” (PORTELLI, 1977, p. 64). No entanto, esta posição não é suficiente

para a conquista da hegemonia, embora seja necessária. Gramsci é enfático ao

afirmar que a “direção ideológica e cultural” concretiza e consolida a posição

hegemônica de uma determinada classe. Na perspectiva de se formar um “bloco

hegemônico”, ou seja, na medida em que a classe fundamental precisa se apoiar

em grupos aliados para consolidar sua hegemonia, a “batalha de idéias”, o

confronto cultural constrói uma frente indispensável, ao lado daquelas meramente


econômica e política. Em direção à conquista da hegemonia, a luta política é

sempre um processo de convencimento, de busca de consenso, de alianças que

se constroem em torno de um projeto societário que tem uma de suas bases

fundamentais no elemento cultural.

LIGUORI (2003) afirma, nesta direção, que o conceito fundamental dos

Cadernos do Cárcere não é o de sociedade civil, mas o de Estado ampliado.

Sociedade política e sociedade civil compõem um todo orgânico, e a distinção é

“puramente metodológica”. A hegemonia, que se constrói no interior da sociedade

civil, se estende até a sociedade política, revitalizando-a com enfrentamentos

políticos e ideo-culturais entre os grupos e as classes que a definem. Assim, o

consenso, base estrutural da hegemonia, se materializa na sociedade política e se

estende, através dela, por toda a sociedade nacional. As classes sociais

demonstram sua real capacidade hegemônica na medida em que podem “tornar-

se Estado”, atravessado sempre por embates cotidianos, cuja solução, imediata

ou em longo prazo, confirma ou redefine esta posição hegemônica.

A compreensão deste Estado ampliado está contida no que COUTINHO

(2003) chama de uma acepção mais ampla de política presente nos Cadernos do

Cárcere. Para que ela se realize, é necessário um movimento catártico, ou seja,

uma passagem, por parte da classe que se pretende hegemônica, do momento de

determinismo econômico (ou econômico-corporativo), para o momento de

liberdade política (ou ético-político). Neste último, esta classe não mais se

reconhece apenas como um fenômeno econômico, mas se coloca agora como um

“sujeito consciente da história”, capaz de elaborar uma “vontade coletiva”, de se

tornar uma “classe nacional”, de representar interesses que tendem a ser


universais. Este momento, no qual se toma consciência da dimensão de

totalidade, da possibilidade de transformação ativa do mundo social é, sem

dúvida, o contexto de maior materialidade cultural de uma determinada classe. A

cultura é, assim, um dos elementos que possibilita este salto qualitativo para uma

proposta hegemônica (ou contra-hegemônica), em direção a um bloco histórico

organicamente estabelecido.

O bloco histórico, neste sentido da perspectiva gramsciana, é a noção que

supera, dialeticamente, qualquer orientação determinista no interior da proposta

marxista. Ao contrário da idéia de “reflexo” que, como já observamos, é

insuficiente, Gramsci propõe que estrutura e superestrutura formam um bloco

histórico que, na verdade, é o momento fundante de uma sociedade. Nesta

unidade orgânica, Gramsci aponta para relações e propostas que, mais uma vez,

recolocam o debate ideo-cultural em posição de destaque ao longo do seu

pensamento político. A primeira colocação é de que a estrutura necessita deste

elemento ideológico, cultural, que nunca é, portanto, totalmente autônomo. É ele o

responsável por organizar e orientar os grupos sociais, sobretudo os “grupos

aliados”, unificando-os em torno de determinadas condições sócio-econômicas. A

base material precisa se reproduzir e, para isso, não pode dispensar caminhos e

orientações que só os espaços da superestrutura são capazes de criar. Isto nos

leva a ponderar, portanto, que discutir a primazia, no bloco histórico, de uma ou de

outra esfera é colocar um problema sem solução. Na verdade, dada a

complexificação cada vez maior das sociedades, a relação entre estrutura e

superestrutura tornou-se orgânica, indissolúvel, pois é no plano superestrutural

que não só se toma consciência e se critica as relações produtivas estruturais,


mas também, muitas vezes, se constroem respostas para as contradições

surgidas em seu interior.

A análise gramsciana sobre o jornalismo na Itália demonstra esta

preocupação do autor em pensar, nesta lógica, a composição de um bloco

histórico. Nas notas em que trata deste assunto, ele está preocupado em ver

como é organizada, na Itália do início do século, a estrutura ideológica da classe

dominante, no interior da qual destaca a imprensa como a parte mais dinâmica e

proeminente. Nas palavras de Gramsci, esta rede de instituições compõe, para o

capitalismo, um “formidável complexo de trincheiras e fortificações”, com a função

crucial de articulação política e de organização do consenso em torno de

interesses particulares que, no entanto, se pretendem como universais. No

contexto específico do início do século XX na Itália, a imprensa estava

completamente controlada pelo fascismo e pelos interesses do grande capital que

o sustentavam e se constituía, portanto, em um outro campo de luta e de

enfrentamentos políticos, no sentido da conquista ideológica como etapa

imprescindível para se chegar à direção hegemônica.

Com este objetivo, Gramsci pretende dar orientações, a partir do Cárcere,

para que o Partido Comunista possa planejar a organização de sua imprensa, que

deve funcionar como um elemento de articulação dos interesses do movimento

democrático de massas e chegar ao mais amplo número de leitores. Sua

preocupação, neste debate, vai desde o formato preciso e o nível lingüístico até o

conteúdo, as necessidades do grupo de compradores e os elementos

“econômicos”, que permitam a aquisição e a divulgação do aparato cultural

defendido pelo grupo que dirige esta imprensa.


Em suas palavras,

(...) um organismo unitário de cultura (...) satisfaria as exigências


de uma certa massa de público, que e mais ativa intelectualmente,
mas apenas em estado potencial, e que é a que mais importa
elaborar, fazer pensar concretamente, transformar, homogeneizar,
de acordo com um processo de desenvolvimento orgânico que
conduza do simples senso comum ao pensamento coerente e
sistemático. (GRAMSCI, 2000, p. 201).

Estas notas gramscianas acerca do jornalismo demonstram, mais uma vez,

a relação intrínseca que este autor estabelece entre o partido político e as classes,

trabalhadoras e aliadas, na dinâmica revolucionária que ele sempre defendeu. A

imprensa é, assim, um meio crucial pelo qual a informação é transmitida à base do

partido e a partir da qual novos membros são conquistados. É, portanto, uma das

estruturas da organização da cultura, capaz de materializar a “reforma intelectual e

moral” construída pelo materialismo histórico. Uma “concepção de mundo” integral

e uma “norma de conduta” constituem, portanto, os dois aspectos desta reforma.

Em Gramsci, portanto, a esfera cultural, na mais ampla de suas

conceituações, ganha visibilidade e, muitas vezes, centralidade. A política se

constrói a partir de uma dimensão cultural e a cultura, por sua vez, não se constrói

alheia às relações políticas e econômicas de uma dada realidade social. Forças

materiais e ideológicas, neste contexto, são diferenciadas e complementares,

representando espaços igualmente importantes de poder. Lutar por uma nova

cultura é, em Gramsci, mais um dos desafios das diferentes classes sociais na

busca da hegemonia. Este debate nos será de absoluta importância para

compreendermos o momento contemporâneo ao longo deste trabalho.


Neste sentido, Gramsci se preocupa constantemente em distinguir e

relacionar, ao mesmo tempo, cultura e arte. Para ele, cultura é algo muito mais

amplo e complexo do que simplesmente o conjunto de manifestações artísticas e

intelectuais, mas estas últimas não estão isoladas na dinâmica societária.

Dentre as manifestações artísticas e intelectuais mais dinâmicas no início

do século XX, Gramsci dá importância destacada à literatura, mas suas

conclusões podem orientar reflexões mais generalizadas. Uma nova literatura ou

arte não pode, portanto, ser criada “por decreto”, mas só pode ser compreendida

como efeito de uma nova cultura, através de um processo que implica, como

veremos, a criação de uma nova camada de intelectuais, capaz de construir uma

nova relação educativa com os setores populares, nesta oportunidade, na

condição de leitores. Assim, Gramsci está menos preocupado com o sentido

artístico restrito, e mais com o motivo pelo qual determinada manifestação artística

é absorvida, os sentimentos que ela desperta e sua capacidade de agir como

instrumento de consenso. A premissa de toda arte deve ser, portanto, histórico-

política, popular, em seu sentido mais complexo.

Assim Gramsci pensa a relação orgânica entre arte e cultura:

A literatura não gera literatura, etc. as ideologias não criam


ideologias, as superestruturas não geram superestruturas a não
ser como herança de inércia e passividade: elas são geradas não
por “partenogênese”, mas pela intervenção do elemento
“masculino” – a história – a atividade revolucionária que cria o
“novo homem”, isto é, novas relações sociais. (GRAMSCI, 2002, p.
195).
A cultura, por sua vez, é o ordenamento de uma concepção de mundo, é

um elemento de organização de idéias e de propostas de ação, é o fio que

costura, ao longo de todo o bloco histórico, movimentos, valores, sentimentos,

expectativas, etc. em torno de um mesmo projeto societário. Retomando idéias

presentes já em seus textos da juventude, a cultura é um elemento unitário,

identitário, que dá coesão e organiza a capacidade crítica e propositiva de uma

sociedade.

A cultura, no entanto, não opera no vazio. Sua constituição está sustentada,

como já mencionamos, por toda a sociabilidade engendrada em uma dada

realidade. Portanto, a cultura também é um processo no sentido de que está em

construção a partir da dinâmica na qual está inserida. Por isso, Gramsci é claro ao

propor “criar uma cultura”, e não uma nova arte. Significa potencializá-la com

elementos constitutivos da realidade das “classes subalternas”, fazer dela um

instrumento de conhecimento, de reconhecimento e de impulso para novas ações

desta classe. Em uma das notas em que propõe um “retorno a De Sanctis”,

Gramsci deixa clara não só sua concepção de cultura no período mais maduro de

sua produção, mas também rechaça a perspectiva de uma cultura “neutra”,

“descompromissada”, alheia e isolada das definitivas identidades de classe. Afirma

ele que, neste caso, cultura significa

(...) uma coerente, unitária e nacionalmente difundida “concepção


da vida e do homem”, uma “religião laica”, uma filosofia que tenha
se transformado precisamente em “cultura”, isto é, que tenha
gerado uma ética, um modo de viver, um comportamento cívico e
individual. (...) Isto exigia, antes de mais nada, a unificação da
“classe culta” (...) mas exigia, sobretudo, uma nova atitude em face
das classes populares, um novo conceito do que é “nacional”,
diverso daquele da direita histórica, mais amplo, menos
exclusivista, menos “policial”, por assim dizer. (GRAMSCI, 2002, p.
63-64).

Não se pode dizer, portanto, que se luta por um novo “conteúdo da arte”,

pois este não se manifesta abstratamente. Um novo “mundo cultural” gera, neste

sentido, um novo modo de sentir e de ver a realidade, o qual suscita a formação

de um novo grupo de artistas, enquanto nova intelectualidade, capaz de

“historicizar suas fantasias”. Por isso, “também o artista e toda sua atividade não

podem ser pensados fora da sociedade, de uma determinada sociedade”

(GRAMSCI, 2002, p. 240).

Mais uma vez, percebemos a preocupação gramsciana em enfatizar a

dimensão cultural das lutas em torno de sua posição hegemônica, em torno da

“capacidade de ser uma época”. Por isso, toda classe que se torna dirigente e

conquista, assim, este bloco hegemônico, produz, necessariamente, a sua

intelectualidade, inclusive artística.

Um novo grupo social que ingressa na vida histórica com postura


hegemônica, com uma segurança de si que antes não possuía,
não pode deixar de gerar, a partir de seu interior, personalidades
que, antes, não teriam encontrado força suficiente para se
expressar completamente num certo sentido. (IDEM, 2002, p. 70).

Percebemos, então que um duplo movimento de delimitação deste debate

em torno da cultura está presente ao longo dos Cadernos. Gramsci não deixa de

afirmar a cultura como um amplo “modo de vida”, um conjunto de elementos que

dão identidade e que orientam uma prática e uma forma de intervenção na

realidade. No entanto, ele também afirma que este “modo de viver, pensar e
sentir” não pode ser construído apenas por uma dinâmica involuntária e

espontânea, mas deve ser orientado, motivado, definido a partir de projetos

societários e classistas mais amplos. Existe, neste sentido, uma formação cultural,

que deve ser responsabilidade de um conjunto de espaços e pessoas na dinâmica

desta sociedade.

Vale observarmos que

Os dois significados do termo em Gramsci não constituem


inovações do ponto de vista semiológico, pois, já entre os gregos e
os latinos, as palavras Paidéia e humanitas assumiam essas
significações. A meu ver, o que podemos destacar inicialmente, no
uso gramsciano do termo, é a compreensão unitária dos dois
significados, ou seja, cultura significa um modo de viver que se
produz e se reproduz por meio de um projeto de formação.
(VIEIRA, 1999)

Não existe uma formação cultural neutra, abstrata, alheia à luta de classes

que se realiza em determinada sociedade. Isso nos parece claro, por exemplo,

quando analisamos a sociedade capitalista e toda a estrutura cultural construída

em torno desta relação social que é o capital. Esta reflexão nos orienta, também,

para projetarmos a materialidade contra-hegemônica que se define em seu

interior. Formar uma cultura, como fato vivo e necessário, é um ato educativo a ser

levado adiante por aqueles que Gramsci chamará de intelectuais orgânicos, sejam

eles individuais ou coletivos, como os partidos políticos.

Quem seriam, portanto, estes intelectuais que têm, entre outras funções, a

de garantir organicidade à cultura? Para Gramsci, “todo homem é intelectual”, no

sentido de que toda atividade humana prevê uma elaboração intelectual, todo

homem participa de uma concepção do mundo, de uma determinada maneira de


pensar. Criar novos intelectuais, portanto, é uma iniciativa que consiste em

elaborar criticamente esta capacidade intelectual que já existe em cada um,

embora em graus de desenvolvimento determinados. Por isso, as escolas, afirma

Gramsci, tem fundamental importância na formação de intelectuais em diversos

níveis.

Desta forma, se todos os homens são intelectuais, a diferença entre eles

não deve ser buscada em atividades específicas.

O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é ter


buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades
intelectuais, em vez de busca-lo no conjunto do sistema de
relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as
personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais.
(GRAMSCI, 2000, p. 18).

Por este motivo, uma das principais preocupações de Gramsci está

justamente em diferenciar os intelectuais orgânicos dos tradicionais, ou seja,

aqueles que “criados” por um determinado grupo social, lhe dão “homogeneidade

e consciência da própria função” essencial no mundo da produção econômica, e

aqueles que este mesmo grupo social já encontra formados a partir da estrutura

econômica anterior, os quais “se põem a si mesmos como autônomos e

independentes” de quaisquer grupos sociais. No que se refere aos embates no

universo cultural, Gramsci realiza importantes reflexões sobre a participação e o

envolvimento destes dois tipos.

Aos intelectuais tradicionais, nosso autor atribui um sério problema

histórico. Ao se posicionarem como alheios e autônomos em relação aos projetos

incorporados pelas classes fundamentais no modo de produção contemporâneo,


estes intelectuais acabam por reforçar uma perspectiva elitista e restrita da cultura.

Em suas mãos, a cultura se torna privilégio de alguns grupos na sociedade,

detentores de um “saber enciclopédico” e de um “modo de vida global” distanciado

das reais necessidades e dos embates mais significativos de uma sociedade. Tais

intelectuais não surgem organicamente ligados à estrutura desta sociedade e se

mantêm distantes do “povo-nação”, desconhecendo seus problemas e suas

potencialidades, ligando-se a embates e confrontos alheios à realidade em que

vivem. Assumem, muitas vezes, uma posição cosmopolita e reacionária,

fortalecendo uma cultura conformista, alienada e politicamente inepta.

É esta, aliás, a crítica que Gramsci desenvolve, ao longo de todos os

Cadernos, à intelectualidade e à cultura italianas. O Humanismo italiano, ao

contrário de outros países, teria sido um movimento culturalmente reacionário,

dando origem a um grupo ativo de intelectuais, mas que não foi responsável por

uma renovação política e ideológica na Itália. Este projeto, apesar de seus

aspectos inovadores no cenário europeu, foi incapaz, na Itália, de dirigir e de

capacitar as massas populares em direção a uma verdadeira renovação política e

moral, uma vez que não foi resultado de um movimento popular e nacional pela

emancipação da sociedade italiana. Assim, esta vinculação tradicional e

conservadora dos intelectuais italianos contribui para esta cultura contemplativa e

politicamente “desinteressada”, sem “nenhum contato com o universo dos

conhecimentos que perpassam o mundo imediato da produção e do trabalho

produtivo” (VIEIRA, 1999).

É importante observarmos que, para Gramsci, esta posição supostamente

neutra e contemplativa dos intelectuais tradicionais não é imutável. Pelo contrário,


a dinâmica da correlação de forças em uma sociedade impõe a necessidade de

que estes intelectuais se redefinam e se reposicionem, aderindo organicamente a

um dos projetos societários que se defrontam em determinado contexto histórico.

Conquistar intelectuais tradicionais constitui, desta forma, mais uma tarefa desta

batalha cultural.

Uma das características mais marcantes de todo grupo que se


desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e
pela conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais,
assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes
quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar
simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos. (GRAMSCI,
2000, p. 19).

Gramsci se dedica principalmente em destacar a importância dos

intelectuais orgânicos neste cenário de batalha cultural ideológica, aos quais

cabem o enriquecimento e o amadurecimento deste embate. Estando

intrinsecamente ligados às classes fundamentais do modo de produção

contemporâneo, estes intelectuais têm a função de direcionar culturalmente estas

classes, de lhes impulsionar a um movimento de (auto) conhecimento, de

organização e de preparação para o enfrentamento político na luta pela posição

hegemônica na sociedade. Estes intelectuais, individuais ou coletivos, seriam

então os responsáveis por fazer da cultura, como o próprio Gramsci afirma, a

“base de ações vitais”, reafirmando o projeto societário mais amplo que esta

classe difunde e procura viabilizar.

As funções destes intelectuais orgânicos se referem, sobretudo, à

explicitação e à elaboração, cultural e filosoficamente, da concepção de mundo


que está na base das práticas econômicas e sociais da classe fundamental que os

originou. Um duplo movimento se constitui nesta relação entre os intelectuais e as

massas: os primeiros dão esta organização cultural às segundas, enquanto estas,

por sua vez, alimentam a capacidade reflexiva daqueles com a dinamicidade de

suas lutas cotidianas. Assim se unifica, em Gramsci, a dialética teoria-prática, com

um processo complexo de determinação.

O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética


intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve
quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova
“amplitude” e complexidade do estrato dos intelectuais está ligado
a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva a
níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu
círculo de influência, com a passagem de indivíduos, ou mesmo de
grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos intelectuais
especializados. (GRAMSCI, 2000, p. 143)

Os intelectuais orgânicos se constituem, enquanto bloco altamente

heterogêneo, na dinamicidade dos projetos das mais diferentes classes sociais.

No entanto, a ênfase gramsciana recai, obviamente, na necessidade de se

garantir a organicidade dos intelectuais com os problemas e os projetos daquelas

que ele denomina de “classes subalternas”, de “simples”, de “povo-nação”10. Nesta

orientação contra hegemônica frente às sociedades capitalistas, Gramsci se

preocupa com a elaboração cultural destas classes, com seu processo educativo e

formativo, com sua superação do momento econômico-corporativo em direção ao

ético-político.

10
Defendemos que esta múltipla denominação de Gramsci se dá em razão do processo de
censura que sua produção sofria no Cárcere, e não por uma diferença teórico-metodológica na
compreensão destes termos. Ao falar de “classes subalternas”, “povo-nação”, “simples” Gramsci
está se referindo, indubitavelmente, ao conjunto das classes trabalhadoras em seu processo de
constituição na sociedade capitalista, sobretudo a italiana.
Em boa parte das notas mais propositivas de Gramsci nos Cadernos, ele

está voltado a denunciar aquele histórico distanciamento, na realidade italiana,

entre os intelectuais e o povo. No entanto, ele também reconhece que estas

classes subalternas, possuem sua filosofia, sua própria cultura, enquanto modo de

viver, pensar, sentir e principalmente, agir. A esta cultura, Gramsci dá o nome de

“senso comum” e reconhece nela componentes culturais acríticos, não

questionados, carentes de um movimento maior de reflexão e de ação. No âmbito

deste senso comum, onde as classes subalternas guardam traços desorganizados

de conformismo e de resistência, encontra-se a fonte dos problemas que devem

ser estudados e resolvidos para que uma filosofia possa se tornar histórica,

depurando-se “dos elementos intelectualistas de natureza individual” e se

transformando em “vida”.

O senso comum, então, para Gramsci, não é uma “mentira” ou um

“equívoco” dos setores populares, mas uma concepção desagregada, incoerente,

inconseqüente. Através dele, pertencemos a uma “multiplicidade de homens-

massa”, onde reunimos elementos de diferentes momentos históricos, onde

empregamos o princípio da causalidade, do experimentalismo e da observação

direta da realidade, mas de forma empírica e limitada. Assim como toda

concepção de mundo, o senso comum conduz necessariamente a uma ação, a

uma intervenção direta sobre a realidade, mas que também se apresenta de forma

fragmentada e, muitas vezes, inoperante.

Em sua perspectiva histórica e dialética, Gramsci defende, portanto, a

necessidade de um verdadeiro “trabalho intelectual”, que é função não de um

grupo seleto de pessoas “intelectualmente mais desenvolvidas”, mas de todo


aquele que, organicamente vinculado ao contexto histórico de desenvolvimento

destas classes subalternas e ao compromisso de emancipá-las, possa contribuir

em seu processo de educação e de organização. A cultura, conforme

descrevemos anteriormente, é o mecanismo que permite esta superação, este

salto qualitativo em direção à crítica e a reflexão emancipatórias.

Para Gramsci, a relação entre uma “filosofia superior”, que coincide com o

“bom senso” e o senso comum só pode ser assegurada pela política, ou seja, a

escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, necessariamente, fatos

políticos, no sentido de que se observa uma “luta de hegemonias” em torno da

elaboração superior da própria concepção do real.

A consciência de fazer parte de uma determinada força


hegemônica é a primeira fase de uma ulterior e progressiva
autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam.
Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de
fato mecânico, mas um devir histórico. (GRAMSCI, 1999, p. 103-
104).

Recuperando aquilo que Engels chama de um “trabalho técnico do

pensamento”, Gramsci propõe a dialética como um novo modo de pensar, uma

nova filosofia, capaz de afirmar a possibilidade e a necessidade de uma nova

cultura que vá de encontro ao senso comum, vulgar e dogmático. A “filosofia da

práxis” entra, portanto, nesta “luta de hegemonias”, e se propõe a “difundir

criticamente verdades já descobertas” para responder a determinados problemas

colocados historicamente pela realidade.

Gramsci apresenta, assim, uma visão altamente dinâmica e histórica do

elemento cultural. Ele denuncia, em sua produção carcerária, tanto a cultura


elitista que demarca a história dos intelectuais italianos, quanto o senso comum

que, abandonado a uma condição de “segunda natureza” dos setores populares,

os conduz a uma prática política historicamente não fundamentada. Por isso,

Gramsci enfatiza a necessidade deste trabalho intelectual que, superando a

desagregação histórica deste universo cultural popular, possa se apropriar de

seus elementos de crítica, de reflexão e de enfrentamento que, dispersos e

fragmentados, devem ganhar um perfil unitário e coerente.

Toda elaboração política de um grupo social homogêneo elabora, também,

uma filosofia homogênea, coerente e sistemática. Assim se forma o “homem

coletivo”, que pressupõe uma unidade conquistada também numa dimensão

sócio-cultural. O momento da crítica e da consciência é capaz de “soldar” uma

multiplicidade de vontades desagregadas, heterogêneas, em torno de um mesmo

fim, de uma concepção de mundo “idêntica e comum”. O desenvolvimento desta

“renovação cultural e moral”, na perspectiva gramsciana, não é simultâneo e

homogêneo em todos os estratos sociais, o que pressupõe um longo trabalho de

construção desta crítica em torno de uma concepção de mundo primária e

superficialmente construída. Assim, não se substitui o senso comum pelo bom

senso, negando, a priori, o universo cultural destes setores, mas se organizam os

elementos fragmentados do primeiro em direção ao segundo.

Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la


unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo
pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto,
criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela
deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da
elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é,
um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico
até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços
acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa
análise. (GRAMSCI, 1999, p. 94).

Revolucionar as relações entre os intelectuais e o povo-nação na

perspectiva de reorganizar o senso comum, constitui, no pensamento gramsciano,

a frente cultural a ser assumida por aqueles que se propõem a construir o que ele

denomina por uma vontade coletiva nacional-popular no interior da sociedade civil.

Lembrando, mais uma vez, a proposta contra-hegemônica de Antonio Gramsci ao

longo de toda sua produção, torna-se necessário um retorno a suas principais

formulações acerca desta expressão, que guarda, em nossa opinião, idéias

centrais para a compreensão do momento contemporâneo.

A dimensão coletiva representa, para Gramsci, um valor superior em toda e

qualquer realidade social. Ele insiste em denunciar, em inúmeros momentos de

seus Cadernos, tanto o individualismo quanto a pulverização de movimentos que,

em última instância, são igualmente fragmentários. Tal dimensão é apresentada,

por ele, como um produto, social e histórico, da vontade (consciência da

necessidade histórica) e do pensamento coletivos que se realizam através do

esforço individual concreto, e não como “resultado de um processo fatal estranho

aos indivíduos singulares” (2000, p. 232). Assim, o que ele observa como

vontades coletivas (e, neste caso, o plural é significativo) não constituem um fato

natural, capaz de se desenvolver espontaneamente, por razões inerentes às

pessoas e às coisas. Tais vontades são construídas historicamente, em processos

de longo prazo, que dependem de elementos como a disciplina interior e que

enfrentam polêmicas e cisões, inevitáveis para o seu próprio desenvolvimento.


Elas podem, inclusive, deixar de existir, pulverizando-se em infinitas vontades

singulares, com direções diversas e contrastantes. Assim, afirma-se a ampla

dinamicidade de qualquer vontade coletiva (que é diferente da “vontade de todos”

e da “vontade de cada um”), que não se constrói de uma vez para sempre, mas

que é profundamente marcada pela luta ideológica e pelo enfretamento político

mais amplo de uma sociedade.

Para Gramsci, no contexto das sociedades capitalistas, o ponto de

referência para o “homem coletivo” é o mundo da produção, do trabalho, é a

posição ocupada por esta coletividade neste mundo. Neste sentido, só pode haver

uma reforma cultural, entendida como a “elevação civil das camadas mais baixas

da sociedade” (GRAMSCI, 2000, p. 19), se acontecer, simultânea e

paralelamente, mudanças também na posição social que estas classes ocupam na

sociedade econômica. Em suas palavras, o “programa de reforma econômica é

exatamente o modo concreto através da qual se apresenta toda reforma

intelectual e moral” (IBIDEM, p. 19). A vontade coletiva tem origem, portanto, na

base material, no universo econômico, mas deve, justamente, ser o elemento

capaz de superar este âmbito meramente econômico-corporativo, estando sempre

vinculada a determinado fim ético-político.

Na lógica gramsciana, são os espaços coletivos e plurais da sociedade civil,

orientados, em especial, pelos grandes aparelhos “privados” de hegemonia que

são os partidos políticos, que incorporam uma ideologia política e, atuando sobre

um “povo disperso e pulverizado”, restrito ao espaço da vida econômica, procuram

despertar e organizar sua vontade coletiva. Neste processo, marcado


hegemonicamente por um princípio educativo11, se fortalece e se expande o nível

cultural histórico-político que atuará coletivamente sobre a realidade concreta. A

vontade coletiva pressupõe, portanto, um certo grau de homogeneidade e

organicidade, a ser permanentemente conquistado, renovado e fortalecido.

A preocupação gramsciana não se limita a determinar o alcance ético-

político da(s) vontade(s) coletiva(s), mas se dispõe a propor qual delas poderá

capacitar os setores populares para o enfrentamento político que poderá conduzi-

las em direção à posição de classe hegemônica. Aqui se apresenta, mais

diretamente, o debate acerca do “nacional-popular”, a qual julgamos central para

as discussões que pretendemos empreender ao longo deste trabalho.

Dentre as categorias gramscianas dos Cadernos, nacional-popular nos

parece ser uma das mais dinâmicas, sendo amplamente utilizada. O autor a

relaciona com diversificados elementos, tais como a cultura, a literatura, a vontade

coletiva, a orientação política, etc., estando preocupado, portanto, em estruturar,

ao redor desta expressão, toda uma proposta contra-hegemônica, capaz de

reorientar e redimensionar a luta política na realidade italiana. FORGACS &

NOWELL-SMITH (1999, p. 333) se preocupam, desde o início de suas reflexões

sobre os escritos culturais de Gramsci, em afirmar que

A aparência puramente “cultural” de muitas notas de Gramsci


sobre o nacional-popular não deve obscurecer o fato de que as
mesmas preocupações políticas e históricas estão trabalhadas
nelas. Os aspectos culturais da questão nacional-popular não são
simples “reflexos”, cópias culturais de seus aspectos políticos, mas
indicam que a questão está organicamente enraizada na história
italiana com ramificações em vários níveis. (...) Eles também

11
Para Gramsci, toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica.
indicam que o terreno ideológico da sociedade civil é precisamente
onde um amplo movimento nacional-popular deve ser construído.

Como já mencionamos, o interesse de Gramsci pela questão nacional

surgiu ainda em seu período de militância no Partido Comunista, mais

especificamente no momento em que as tentativas revolucionárias deste partido

haviam recuado e o fascismo, enquanto reação conservadora, havia chegado ao

poder (1924-1926). Buscando identificar as características italianas que teriam

permitido este quadro de crise, e a partir de sua experiência internacional,

Gramsci afirma, repetidamente, que a Itália era, historicamente, carente de uma

orientação econômico-política que lhe garantisse um perfil nacional e popular.

Esta parecia ser, portanto, a tarefa do proletariado italiano, através de uma aliança

hegemônica com o campesinato, em direção ao objetivo internacionalista do

comunismo. Já nos Cadernos, esta aliança recebe o nome de nacional-popular e

contribui significativamente para a ampliação da noção de hegemonia, passando a

abarcar um consenso ativo, na forma de uma “vontade coletiva”, que as classes

tradicionalmente dominantes sempre tentaram evitar que se formasse.

Uma série de determinações históricas dava à Itália, naquele momento,

uma configuração ideo-cultural conservadora, elitista e cosmopolita. Para Gramsci,

o Império Romano e a força política do papado na Itália teriam criado, desde muito

cedo, a ilusão da existência de uma “nação italiana”, quando, na verdade, o que

se tinha era uma dominação cultural de intelectuais tradicionais orientados por

uma perspectiva clássica de dominação. Neste processo, as classes dominantes

buscaram prevenir a formação de uma orientação ideológica e de uma vontade

coletiva que, de alguma forma, pudesse potencializar os setores populares


(proletariado e campesinato) para uma luta política de emancipação e de

reorientação de suas propostas societárias. Temia-se que tal formação pudesse

trazer “perigos vitais para a vida nacional unitária” (GRAMSCI, 2002, p. 33) da

forma como estava tradicionalmente organizada, ou seja, em torno do modo de

produção capitalista.

O que se observa, na realidade italiana do início do século XX, é a ausência

permanente de um movimento popular organizado em torno de uma proposta

verdadeiramente “nacional”, capaz de superar um interesse meramente

“econômico-corporativo” em direção a uma perspectiva “ético-política”. Constantes

experiências de “revolução passiva” na história italiana, dentre as quais Gramsci

destaca o Risorgimento, fortaleceram a aliança defensiva entre os industriais do

norte e os latifundiários do sul, constituindo um consenso burguês que garantiu,

entre outras coisas, a reação conservadora que instituiu, anos mais tarde, o poder

fascista. A formação da “nação italiana” e a luta pela unidade política e territorial

jamais foram problematizadas, no sentido de que as questões vitais que as

envolveram foram tratadas por interesse polêmicos imediatos e, portanto, sem

vontade de aprofunda-las. Daí resultou que, para o elemento popular, tais

questões receberam um tratamento “abstratamente cultural, intelectualista, sem

perspectiva histórica exata e, portanto, sem que se formulasse para eles uma

solução político-social concreta e coerente” (GRAMSCI, 2002, p. 33). Dentre este

conjunto de problemas, Gramsci menciona, por exemplo, a indiferença popular no

período das lutas pela independência e pela unidade nacional e o apolitiscismo do

povo italiano, elementos que nos auxiliam sobremaneira na análise da realidade

contemporânea.
Desta forma, a unificação italiana não se constituiu a partir de uma

perspectiva popular, onde este elemento pudesse apresentar suas demandas e

expectativas, suas potencialidades e seus limites. Por outro lado, a burguesia,

enquanto classe dominante, também não se estabeleceu como “classe nacional”

ou seja, não foi capaz de agregar em torno de si e de seu projeto as principais

questões de constituição econômica, política e social da realidade italiana.

Portanto, afirma Gramsci, a Itália era órfã de um projeto nacional e popular que a

fizesse conhecer e criticar sua própria existência e, portanto se afirmar em torno

de seus principais dilemas. Nas palavras do próprio autor, para manter intacta

uma orientação dominante conservadora, a Itália “apaixona-se por um passado

que não é seu”, ou seja, nutriu-se política e culturalmente de um cosmopolitismo

inepto e alienante.

É importante destacarmos, desde já, que Gramsci jamais perdeu de vista o

“internacionalismo comunista”. No entanto, para ele, este caráter internacional das

lutas das classes trabalhadoras não pode ser construído sem uma mediação viva

e dinâmica do elemento nacional. Em sua crítica, o fato de que o povo italiano

tenha sofrido a hegemonia cultural e política de intelectuais estrangeiros serviu

para consolidar, nesta realidade, uma posição de subalternidade e de dominação.

A Itália viveria o paradoxo de, ao mesmo tempo, construir grandiosos planos de

hegemonia internamente e não se perceber como objeto de hegemonias

estrangeiras, sustentadas, inclusive, por elementos “intelectuais e morais”

(GRAMSCI, 2002, p. 127). Neste sentido, Gramsci reforça ainda mais sua

preocupação com a histórica separação entre “intelectuais e povo-nação”.


(...) não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem
hierárquico nem (muito menos) igualitário. Os intelectuais não
saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja de
origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte a retórica),
não o conhecem e não sentem suas necessidades, suas
aspirações e seus sentimentos difusos; mas são, em face do povo,
algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta e não uma
articulação (com funções orgânicas) do próprio povo. (IDEM, 2002,
p. 42-43).

Neste processo, acredita Gramsci, a esfera cultural, em sua dimensão mais

ampla, teve um papel fundamental. A ausência deste alinhamento cultural e

político entre os intelectuais e o elemento popular fez com que as contradições

inerentes à formação italiana não fossem conhecidas ou problematizadas pelos

setores populares e que, portanto, a orientação dominante se apresentasse

sustentada por um aparente consenso. Teríamos, portanto, no âmbito cultural,

ramificações de uma questão organicamente enraizada na história política italiana:

a falta de uma língua comum no passado, a ausência de um verdadeiro

movimento romântico no século XIX, a falta de popularidade da literatura italiana,

o desprezo por temas e questões da dinâmica italiana nas suas mais diversas

manifestações artísticas e intelectuais, os diferentes preconceitos que

caracterizam o tratamento dispensado ao elemento popular nestas manifestações,

etc. Em poucas palavras, a Itália é carente desta orientação nacional-popular e

somente uma aliança orgânica dos setores populares pode suprir esta lacuna

histórica.

Nesta tarefa histórica, as diferentes classes sociais falharam ao longo da

vida política italiana, não sendo capazes de satisfazer as exigências intelectuais

do povo ou de elaborar um “humanismo” moderno, que pudesse ser difundido


junto às camadas populares. Nem mesmo os católicos tiveram esta capacidade,

pois garantiram uma razoável difusão de suas orientações culturais e morais não

por uma expansividade e coerência interna, mas pela poderosa organização da

Igreja. Assim, não existe uma “identidade de concepção do mundo” entre

intelectuais e povo, sendo que os primeiros não se propõem a elaborar os

sentimentos e as expectativas do segundo após tê-los revivido e deles se

apropriado.

É necessário ponderarmos, neste ponto, duas questões essenciais, que

qualificam nossos debates para compreendermos com mais clareza a importância

e a contemporaneidade desta categoria.

Em primeiro lugar, Gramsci não restringe esta perspectiva nacional-popular

meramente à dinâmica da esfera cultural. Apesar de a maioria das referências a

este termo nos Cadernos dizer respeito a uma “literatura nacional-popular”, esta

constitui, sem dúvidas, uma abordagem bem mais ampla, que envolve uma

extensa frente de luta econômica, social e política. Como já observamos, a cultura

em Gramsci não constitui uma esfera autônoma, estando, sim, diretamente

vinculada a estes elementos estruturais e superestruturais que compõem a

totalidade dinâmica da vida social.

Portanto, o nacional-popular se afirma como o ponto de partida e de

chegada de uma grande estratégia de construção contra-hegemônica. Em

diferentes aspectos desta totalidade, ficava demarcada, para Gramsci, a

necessidade de um movimento de recuperação, de retomada, pelos setores

populares, de sua história e de seu destino. Esta “reapropriação”, se tinha uma

evidente face cultural, não se limitava a ela. Construir uma “cultura nacional-
popular” significa, então, para as classes subalternas, apoderar-se de uma cultura

historicamente determinada e orientada pelos interesses e pela ideologia

burgueses e reestruturá-la segundo objetivos e expectativas dos setores

dominados, capacitando-os, conscientizando-os e reorientando suas ações vitais a

partir de novas bases. Neste caminho, um duplo movimento se constrói, onde a

cultura, naquela acepção mais ampla de Gramsci, se apresenta como um

elemento de mediação, de interface com outros momentos estruturais da

constituição do ser social. Em outras palavras, o nacional-popular se constrói, na

cultura, como impulsionador e como resultado de uma perspectiva revolucionária

mais ampla, jamais abandonada por Gramsci, mesmo em seus períodos de maior

desalento no cárcere.

Assim como a cultura é capaz de manifestar as contradições e os

enfrentamentos presentes em uma sociedade, ela também constitui um espaço

privilegiado para gestar propostas diferenciadas e organizar outros elementos de

consenso. O mundo cultural, enquanto universo de luta, “é um fato vivo e

necessário” (GRAMSCI, 2002, p. 260), que aponta e faz a intermediação com as

demais esferas da vida social, reorganizando a hegemonia em torno de consensos

diferenciados, neste caso, ligados à questão nacional e popular. Existe, portanto,

uma intrínseca relação entre arte, cultura e formação humana, uma vez que o

“homem inteiro é modificado na medida em que são modificados seus

sentimentos, suas concepções e as relações das quais o homem é a expressão

necessária” (GRAMSCI, 2002, p. 35).

O nacional-popular se afirma, então, como a orientação que, construída

profundamente no interior das lutas políticas das classes subalternas, poderia


prepará-las para influenciar e obter um “consenso espontâneo e vivo”, através de

um processo de autoconhecimento, autocontrole e emancipação política. Gramsci

observa, inclusive, que estas transformações culturais são produto de uma

complexa elaboração, que ocorre de maneira lenta e gradual, já que é resultado

de mudanças em toda a vida social. Uma série de “combinações sucessivas”, nas

mais diferentes instâncias de enfrentamento político e econômico numa

sociedade, se faz necessária para a construção desta “perspectiva nacional-

popular”.

Uma segunda questão a ser destacada no estudo desta categoria diz

respeito à concepção de nação por ela sustentada e, neste sentido, a sua validade

histórica. Embora construída a partir dos estudos gramscianos sobre a realidade

italiana do início do século XX, não teríamos dúvida em afirmar que a importância

de tal categoria não se restringe a este cenário. Uma primeira leitura das notas

que definem a categoria de nacional-popular nos Cadernos do Cárcere pode nos

dar a impressão de que ela se desenha com determinantes geográficos e

históricos bem delineados: ao falar de nacional, Gramsci estaria se limitando a

pensar a especificidade da nação italiana e, ao falar de popular, Gramsci faria

menção à configuração social, política e cultural do conjunto das classes

trabalhadoras, sobretudo o operariado fabril italiano, com as quais havia

trabalhado em seu período de militância partidária. No entanto, alguns elementos

nos fazem questionar esta aparente verdade.

No conjunto destas notas, está claro que a perspectiva gramsciana sobre

nação não é a-histórica, a-política ou, sobretudo, a-classista. Não existe a

concepção de uma nação abstratamente construída, capaz de se colocar acima


das contradições e dos enfrentamentos entre as diferentes classes sociais. A

nação é, assim, atravessada pelos elementos de hegemonia que se configuram no

interior da dinâmica societária. É por isso que Gramsci se preocupa justamente

em contrapor, à idéia de nacional até então hegemônica na Itália, a perspectiva de

um outro nacional, ligado à proposta, às necessidades e às potencialidades das

classes trabalhadoras em seu processo de luta e de constituição enquanto classe

social.

Preocupa-o, sobretudo, problematizar o fato de que a Itália se tornou uma

nação, na concepção mais imediata do termo, através de um processo “pelo alto”,

na expectativa de que esta constituição nacional pudesse reorganizar as forças

políticas dominantes até então existentes. Estas classes, organicamente frágeis,

encontravam-se restritas a interesses econômico-corporativos, e com base nestes

interesses, unificaram-se e buscaram construir um fictício “passado italiano”, onde

já se encontrassem elementos de uma unidade nacional constitutiva. Em sua

análise, entretanto, tudo isso se fez pelo receio de que pudesse ocorrer uma

intervenção, ainda que restrita, das “massas populares” na vida política italiana e

na estrutura do Estado.

Em suas palavras,

Realmente, a unidade nacional é sentida como precária, porque


forças “selvagens”, não conhecidas com precisão, elementarmente
destrutivas, se agitam continuamente em sua base. A ditadura
férrea dos intelectuais e de alguns grupos urbanos, mais a
propriedade fundiária, só mantém sua solidez superexcitando seus
elementos militantes com este mito de fatalidade histórica, mais
forte do que qualquer deficiência e incapacidade política e militar.
É neste terreno que a adesão orgânica das massas nacional-
populares ao Estado é substituída por uma seleção de
“voluntários” da “nação” concebida abstratamente (GRAMSCI,
2002, p. 33)

Desta forma, buscando conter uma construção popular de nação, não

deixando que forças políticas efetivas pudessem emergir deste processo, o

conjunto das classes dominantes conseguiu, incluindo, em sua linha de frente,

uma luta também intelectual, transformar a unidade nacional em uma “dádiva”, e

não em uma “conquista merecida dos italianos”. Fica ausente, portanto, qualquer

possibilidade de desenvolvimento permanente e contínuo desta “unidade

nacional”, a qual é dada de forma absoluta e acabada, sem possíveis

reorientações em torno de um movimento de caráter popular. Assim, segundo a

crítica gramsciana, o termo nação, na Itália, sempre esteve ligado a uma tradição

intelectual e livresca, não tendo se construído a partir de uma luta hegemônica em

torno de diferentes projetos classistas. A cultura italiana apresenta um sentimento

nacional (e não popular-nacional), no sentido de que é algo puramente subjetivo,

não ligado a fatores e instituições objetivos. Este sentimento e reconhecimento

nacional são algo que fica restrito aos intelectuais enquanto camadas estreitas e

pequenas. O resultado seria, então, a marca constante do fatalismo e da

expectativa passiva por um futuro que chegará para o elemento popular, visto

paternalisticamente, ausente da dinâmica societária mais ampla.

Dois elementos são apontados por Gramsci como resíduos medievais e

feudais na Itália, e que contribuem na efetivação deste “nacional” despolitizado e

amorfo: um particularismo municipal, que demarca uma concepção de mundo

restrita e vazia e, por outro lado, um cosmopolitismo católico que “inventava”,

desde muito cedo, uma nação italiana com vocação internacional. Ambos devem
ser superados, pondera Gramsci, por relações de hegemonia que envolvem uma

transformação cultural global.

Diante destas constatações, o conjunto das classes trabalhadoras deve ser

o herdeiro histórico de um novo projeto de nação, onde os caminhos para sua

construção estejam orientados não por uma perspectiva burguesa e conservadora,

mas popular e revolucionária. Nasce então, na construção gramsciana, uma

unidade indissociável: o nacional-popular.

(...) O que importa é o fato de que se busque uma ligação com o


povo, com a nação, que se considere necessária não uma unidade
servil, devida a uma obediência passiva, mas uma unidade ativa,
viva, qualquer que seja o conteúdo desta vida. Esta unidade viva,
independentemente de qualquer conteúdo, não ocorreu na Itália
ou, pelo menos, não ocorreu em medida suficiente para convertê-
la num fato histórico (...). (GRAMSCI, 2002, p. 254).

No caminho de construção desta perspectiva, Gramsci insiste na

necessidade de se “recuperar a história”, agora nas mãos do elemento popular, de

suas demandas e de suas potencialidades de luta. A “história duradoura”, diz

Gramsci, se constrói a partir de um duplo movimento, de continuidade e de

superação. Para isso, são necessárias “energias nacional-populares amplas e

numerosas”, onde os momentos potencialmente coletivos são de extrema

importância para um novo sentimento nacional que ainda está em processo de

formação. Recuperar a história pode significar, nesta orientação, tornar-se

consciente da importância histórica da classe trabalhadora enquanto tal, fazer do

passado, agora questionado e renovado, um “elemento de vida” para ações

presentes e futuras.
Podemos ponderar que a perspectiva gramsciana reinterpreta o conceito de

nação no interior do marxismo, uma vez que o “preenche” com uma série de

determinações históricas e classistas, reorientando o debate em torno das lutas e

das perspectivas revolucionárias. É impossível, para a emancipação da classe

trabalhadora, saltar um estágio nacional, que se manifesta em combinações e

composições diversas e heterogêneas, mas que se coloca, necessariamente,

como um ponto de partida. Para ele, no cenário nacional, o que temos é uma

“combinação original e única” de forças e relações sociais. Neste cenário,

assumem particularidades tanto as esferas da sociedade política e da sociedade

civil quanto os processos de luta hegemônica e de conformação de forças entre as

diferentes classes sociais. Portanto, para qualquer classe que se pretenda

dirigente, estas originalidade e unicidade devem ser compreendidas e

consideradas no que se refere ao seu processo de constituição enquanto classe

política.

Nesta nova construção do nacional, a esfera cultural constitui um elemento

determinante. Neste caminho, Gramsci pondera a importância dos intelectuais, os

quais desafia a superar o “espírito de casta”, a desconfiança e o medo em relação

ao povo, buscando tornar-se aderente às suas necessidades mais profundas e

elementares. A cultura precisa, assim, compor uma “vida nacional efetiva”,

construindo com os setores historicamente afastados da “nação” um amplo

exercício de hegemonia.

Assim ele expõe, por exemplo, a questão de que, no que se refere à

literatura,
(...) uma obra de arte é tão mais “artisticamente popular” quanto
mais seu conteúdo moral, cultural e sentimental for aderente à
moralidade, à cultura, aos sentimentos nacionais, e não
entendidos como algo estático, mas como uma atividade em
contínuo desenvolvimento. A imediata tomada de contato entre
leitor e escritor ocorre quando a unidade de conteúdo e forma no
leitor tem como premissa a unidade do mundo poético e
sentimental; se não for assim, o leitor deve começar por traduzir a
“língua” do conteúdo em sua própria língua. (GRAMSCI, 2002, p.
194).

Para nosso autor, fica evidente que é necessário superar o que ele

denomina de um conceito “puramente livresco” de cultura, onde se está alheio às

profundas correntes de orientação da vida nacional-popular. Na análise dos

elementos de organização da cultura italiana, Gramsci exemplifica:

(...) os jornais literários se ocupam de livros e de quem escreve


livros. Eles jamais publicam artigos de impressões sobre a vida
coletiva, sobre os modos de pensar, sobre os “sinais dos tempos”,
sobre as modificações que ocorrem nos costumes, etc. (...)
Inexiste o interesse pelo homem vivo, pela vida vivida. (GRAMSCI,
2002, p. 184).

No lugar de uma descrição satírica e caricatural do elemento popular, como

muitas vezes se apresenta no teatro e na literatura italianos, Gramsci propõe que

o movimento intelectual se torne ou volte a ser nacional a partir de uma “ida ao

povo”, de um encontro com as questões mais significativas do seu modo de

pensar e de agir, no sentido de preencher um “vazio histórico e moral” com um

debate que expresse as expectativas e orientações políticas do povo-nação, que o

organize em torno de um projeto societário hegemônico, que faça dele a nova

classe dirigente.
Quando colocamos esta necessidade de “ida ao povo”, apresentada por

Gramsci, fazemos referência também ao fato de que, para ele, o “povo” não

constitui uma coletividade homogênea, mas se apresenta através de numerosas

estratificações, muitas vezes contraditória, em que uma concepção de mundo não

elaborada, assistemática e múltipla pode vir à tona e desafiar esta nova

perspectiva nacional-popular. Em seus estudos sobre o folclore, por exemplo,

Gramsci insiste em dizer que ele deve ser compreendido como um reflexo das

condições de vida cultural deste elemento popular, como um “modo de conceber o

mundo e a vida, em contraste com a sociedade oficial” (GRAMSCI, 2002, p. 181).

Este universo cultural, todavia, deve ser observado e valorizado na dinâmica de

um novo projeto societário.

Portanto, conhecer o folclore significa, para o professor, conhecer


quais são as outras concepções do mundo e da vida que atuam de
fato na formação intelectual e moral das gerações mais jovens, a
fim de extirpa-las e substituí-las por concepções consideradas
superiores. (...) O folclore não deve ser concebido como uma
bizarria, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério.
Somente assim o ensino será mais eficiente e determinará
realmente o nascimento de uma nova cultura entre as grandes
massas populares, isto é, desaparecerá a separação entre cultura
moderna e cultura popular ou folclore. (GRAMSCI, 2002, p. 136).

A militância política de Gramsci junto aos Conselhos de Fábrica e ao PCI o

levou a ponderar, já nos Cadernos, que as condições para se superar este estado

de coisas já existem na Itália. Sobretudo antes da Primeira Guerra Mundial, muitos

movimentos intelectuais, ligados principalmente aos grupos comunistas, estavam

empenhados no sentido de “rejuvenescer a cultura” e aproximá-la das

necessidades e expectativas populares, “nacionalizando-a”, no sentido


gramsciano. No entanto, afirma ele, tais movimentos constituíram o que, em outro

momento, ele denominou de “subversivismo esporádico”, ou seja, foram frágeis e

não exploraram devidamente estas condições, fazendo com que voltasse a

predominar a “nação retórica”.

Gramsci se preocupa também em exemplificar que esta perspectiva

nacional-popular é não só possível, mas também historicamente já realizada. Para

isso, recorre constantemente à realidade francesa para afirmar que, neste país, o

povo-nação se constituiu como o protagonista da história, como o “elemento

permanente das variações políticas” (GRAMSCI, 2002, p. 161). Esta constituição

não se deu de forma voluntária e espontânea, mas foi resultado de uma ligação

estreita entre este protagonista e seus intelectuais, em um exercício de se formar

organicamente para dirigir, para influenciar politicamente e obter um consenso

ativo e consciente em torno de seu projeto societário.

Esta referência constante de Gramsci à realidade e à experiência

francesas, bem como à dinâmica cultural de outros países12, demonstra que, em

seu pensamento, a noção de nacional-popular não está restrita, ou menos ainda,

submetida unicamente aos espaços e às fronteiras nacionais. Esta, aliás, nos

parece uma distinção central a ser feita neste debate gramsciano, a fim de que

possamos tê-lo como referência para a análise do momento contemporâneo. Para

Gramsci, o nacionalismo é um grande equívoco, uma vez que prega o

particularismo, reafirmando elementos de segregação e de superioridade que são

extremamente prejudiciais a uma perspectiva verdadeiramente nacional-popular.

12
Cf. Cadernos do Cárcere, 6, 124; 2, 159; 6, 161; 4, 301.
Baseada no nacionalismo, a guerra, por exemplo ganha “características de

profundidade passional e de ferocidade”, eliminando, desde seus princípios,

qualquer possibilidade de que uma classe ou grupo possa se tornar universal.

Da mesma forma, não se deve confundir popular, em Gramsci, com

populismo, ou com uma exaltação acrítica e naturalista do elemento popular, como

se o simples pertencimento a uma classe fosse suficiente para uma orientação

superadora ou não da realidade societária em que se vive. Assim BARATTA (?)

descreve a dinamicidade e a historicidade que determinam, em Gramsci, o

binômio nacional-popular.

Por “povo”, Gramsci entende o conjunto das classes ou grupos


sociais subalternos. Mas a noção apresenta uma dialética interna,
ligada à sua própria explicitação numa rede de relações que chega
até o vínculo, ainda que problemático, com a totalidade social. É
evidente que “povo”, associado a “nação”, não remete a uma parte
separada da sociedade, mas a uma parte que põe em questão a
sua relação (positiva ou negativa, orgânica ou desagregada) com a
totalidade social-nacional. Não se trata de uma relação estática,
mas dinâmica. E a parte popular de uma nação supera a própria
dimensão nacional e se põe como membro da “classe
internacional”.

É neste sentido que COUTINHO (2000) vai chamar o nacionalismo e/ ou o

populismo de as “doenças infantis” do nacional-popular. Segundo este autor, o

nacionalismo representa não só um empobrecimento da expressão estética e

cultural, mas também a “limitação das potencialidades críticas da consciência

ideológica das forças populares” (2000, p. 61), encontrando afinidades com forças

conservadoras em uma dada realidade social. O populismo, por sua vez, reforça

uma atitude paternalista da intelectualidade, que passa a estabelecer uma relação


“apenas retórica” com o elemento popular e com seu universo societário,

atribuindo-lhe valores idealizados e românticos.

No intelectual italiano, a expressão “humildes” indica uma relação


de proteção paterna e divina, o sentimento “auto-suficiente” de
uma indiscutível superioridade, a relação como entre duas raças,
uma considerada superior e outra inferior, a relação que se dá
entre adulto e criança na velha pedagogia (...). (GRAMSCI, 2002,
p. 38).

Ao contrário, o nacional-popular em Gramsci se manifesta a partir de um

conteúdo intelectual e moral13, como “expressão elaborada e completa das

aspirações mais profundas de um determinado público, isto é, da nação-povo

numa certa fase de seu desenvolvimento histórico” (IBIDEM, p. 39). Esta

expressão inclusive justifica para Gramsci o interesse popular por esta ou aquela

manifestação artística. Para ele, a beleza de uma obra é sempre subordinada à

sua capacidade de expressar uma unidade na vida cultural nacional. Mais uma

vez se referindo à Itália, nosso autor acredita que é este o motivo pelo qual a

literatura francesa, por exemplo, é sucesso popular na realidade italiana. A

literatura italiana não é “nacional” porque não é “popular”, o que permite,

culturalmente, que o povo italiano sofra uma “hegemonia estrangeira”.

Como podemos perceber, a relação entre o que Gramsci determinava como

“situação internacional” e as “referências nacionais” se apresenta de forma

extremamente dinâmica. Para ele, a nação é um resultado, condicionado, em

larga medida, pelo equilíbrio de forças internas e externas, onde o contexto

13
É importante observarmos que, para Gramsci, conteúdo é diferente de tema. Não existe um
tema nacional-popular.
internacional é elemento determinante das configurações econômicas, sociais,

políticas e culturais que se combinam como nacionais.

Por isso, acredita Gramsci, o nacional-popular não dispensa uma dimensão

internacional, uma vez que é nas relações externas que encontramos muitas das

questões-chave para problematizarmos a realidade nacional a partir de uma

perspectiva das classes trabalhadoras. Da mesma forma, inserido como esteve na

dimensão internacionalista do movimento comunista do início do século XX,

Gramsci defende a necessidade de uma articulação mais ampla das demandas e

das lutas sociais dos setores populares, onde o nacional seja o ponto de partida, o

primeiro impulso, a primeira determinação para uma luta que tem por objetivo

alcançar a dimensão transnacional.

O nacional não limita ou restringe o conjunto de lutas e de enfrentamentos

sociais vivenciados pelo elemento popular. O desenvolvimento deve ser no

sentido do internacionalismo, e não pode deixar de sê-lo. Em outras palavras,

poderíamos afirmar que o nacional não tem capacidade de absorver e de

encaminhar, em sua plenitude, um projeto hegemônico mais amplo. Mas, por outro

lado, sem levar em conta a particularidade que esta realidade impõe, não se

alcança ou se materializa este projeto, não se faz dele algo potencialmente capaz

de se impor em um cenário internacional. A hegemonia reúne, em si, as

exigências de caráter nacional, embora não se limite a elas. Portanto, uma

perspectiva internacional não se constrói sem se levar em consideração a

combinação de forças nacionais que a classe que pretende se tornar

internacionalmente dirigente deverá dirigir e desenvolver. A defesa do projeto

societário desta classe deve ter como meta o cenário internacional, mas não pode
deixar de levar em conta os diferentes contextos nacionais, os quais absorvem e

encaminham este projeto a partir de orientações diferenciadas.

Não é possível, portanto, interpretar, numa perspectiva gramsciana,

nacional e internacional como esferas separadas, ou mesmo pensar que o

segundo tem a possibilidade de superar ou de substituir o primeiro. Uma relação

dinâmica demarca a construção destas duas esferas e uma determinada classe só

pode se tornar hegemônica se interpretar exatamente esta combinação, o que

significa dar ao movimento de conquista da hegemonia, com uma amplitude

internacional, uma orientação política realista, de acordo com determinadas

perspectivas e particularidades nacionais.

Sem estar atento a estas questões e a esta relação dinâmica, qualquer

movimento que se pretenda internacional acaba se tornando vago e puramente

ideológico, não se instrumentalizando com um conteúdo de política realista e

efetiva. Uma classe que se pretenda internacionalmente hegemônica deve, desta

forma, se “nacionalizar”, num certo sentido, atravessando fases múltiplas em que

as combinações regionais e nacionais, estabelecidas em estruturas variadas,

impõem um curso e um direcionamento específicos para as diferentes lutas

internacionais.

Neste sentido, Gramsci nos capacita para problematizar várias questões

que, colocadas hoje no cenário da globalização como “supranacionais”, se

constroem de forma equivocada e pejorativamente ideológica. Quando não se

referem a nenhum país determinado, a nenhuma realidade concreta de correlação

de forças e de disputas políticas, estes conceitos e debates não passam de

“previsões genéricas”, que não se manifestam efetivamente.


Um globalismo inepto e alienado parece tomar conta de diferentes

discursos, inclusive de grupos historicamente vinculados a um projeto alternativo

de sociedade. Na expectativa de uma “identidade global”, que espera que todos se

mobilizem simultaneamente, mas que não se materializa a partir de nenhuma

questão específica, vivenciamos uma imobilidade generalizada, onde ninguém se

impulsiona verdadeiramente para organizar movimentos mais significativos de

questionamento e de superação da ordem estabelecida. Por outro lado, o

renascimento de um “nacionalismo radical” tende a realizar um corte na realidade

societária que não mais se sustenta. Enquanto espaço de resistência, o nacional

só se justifica se conduzir a perspectivas mais amplas, mais dinâmicas, onde o

momento supra-nacional contém, verdadeiramente, a potencialidade de

significativas transformações societárias.

A retomada de uma perspectiva nacional-popular no contexto da

globalização nos parece, portanto, necessária e, ao mesmo tempo, contrária a

estes dois posicionamentos específicos. É o que pretendemos comprovar a partir

do segundo capítulo deste trabalho.


2 A dinâmica societária na era da
mundialização do capital: desafios e
imposições

Compreender o debate que se apresenta em torno da expressão

“globalização da cultura” requer, primeiramente, que possamos abordá-la a partir

da compreensão das relações societárias que, desde meados da década de 70,

vêm se conformando no cenário internacional. Quaisquer modificações que

possam estar caracterizando a esfera cultural desde então só se justificam e se

tornam criticamente manifestas se, à luz do que discutimos anteriormente, forem

problematizadas como reflexo, mas, ao mesmo tempo, como momento constitutivo

da sociedade capitalista em seu perfil contemporâneo.

Entendemos que o termo “globalização”, que hoje se tornou uma constante

no discurso político e econômico, representa o fio condutor para estas reflexões.

Vale observarmos que ele apresenta, desde sua introdução no debate específico

das Ciências Sociais, uma ampla ambivalência ou imprecisão, ao se relacionar

com uma grande variedade de fenômenos nas mais diversas esferas constitutivas

da vida social. O início dos anos 80 demarca este uso mais freqüente do termo,

passando de uma assimilação primária das escolas americanas de administração

de empresas, popularizando-se através dos consultores de estratégia e marketing

internacional, expandindo-se pela imprensa econômica e financeira e chegando,


final e rapidamente, ao discurso hegemônico neoliberal14. É importante

demarcarmos, portanto, que, desde seu primeiro movimento de expansão, o termo

“globalização” sempre esteve vinculado às instituições voltadas para o movimento

do capital, buscando formas de gestão e de atuação estratégicas para a sua

supervalorização em escala planetária.

O debate que iremos minimamente abordar a partir de agora busca

apresentar os elementos principais que se constroem em torno deste termo, mas

parte da certeza de que “globalização” é uma noção intrinsecamente ligada a,

(...) uma linguagem e um projeto dominante de globalização


econômica que termina por se identificar com uma receita de
alcance universal – ou melhor, uma política econômica das
relações internacionais ou um “novo constitucionalismo” –
correspondente a um capitalismo globalizado, que tem por espaço
natural o próprio mundo e que pretende auto-regular-se sem
interferências políticas nacionais, regionais ou internacionais, com
o fim de gerar benefícios para todas as nações que nele se
inserem competitivamente (GOMEZ, 2000, p. 130).

Se o termo ganhou popularidade, sobretudo a partir da década de 80, como

um processo de crescente integração das economias e das sociedades, através

da circulação de mercadorias, serviços, pessoas e informações15, enquanto termo

cientificamente referenciado, “globalização” ainda é vago e impreciso, marcado

pela dificuldade de formulação e de reconhecimento. Importantes autores

14
Sobre esta evolução do termo “globalização”, remetemos a GOMEZ (2000, p. 18-19). Neste
momento, o autor afirma que “o alvo da argumentação desliza de imediato do domínio micro da
gestão interna das firmas para o interesse da macroeconomia (redefinição das políticas
econômicas e das instituições econômicas nacionais) e da arquitetura do sistema internacional.”
15
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, globalização representa o “processo típico da segunda
metade do séc. XX que conduz a crescente integração das economias e das sociedades dos
vários países, especialmente no que toca à produção de mercadorias e serviços, aos mercados
financeiros e à difusão de informações.”
contemporâneos se preocupam em delimitá-lo, demarcando as diferentes esferas

da vida social nas quais este fenômeno se manifesta.

CHOMSKY (1999, apud SIQUEIRA et al., 2003) se preocupa em afirmar

que o termo “globalização” é ainda marcado por uma grande indefinição, uma vez

que pode ser “sinônimo de qualquer coisa”. De forma neutra, o termo não tem

qualquer compreensão que ultrapasse a de “integração internacional”, mas o que

a particulariza é que esta integração se faz a partir de uma configuração

específica, vinculada diretamente aos princípios e às propostas societárias do

modelo neoliberal. Na mesma direção parece apontar HERMAN (1999, apud

SIQUEIRA et al., 2003), que se soma a outros autores para afirmar que a

globalização é, na verdade, uma ideologia, no sentido de que tende a ocultar sua

vinculação político-ideológica por trás da lógica formal de facilidade em se superar

fronteiras e relações econômicas. Na verdade, afirma este autor, a função desta

“onda globalizante”, que marcou o discurso científico no final dos anos 80 e início

dos anos 90, é a de reduzir qualquer resistência ao processo de expansão da

acumulação capitalista, fazendo com que ele pareça positivo e insuperável. A

lógica de que “there is no alternative” para além da globalização capitalista parece

ter conquistado os quatro cantos do mundo no final do século XX.

LIMOEIRO-CARDOSO (apud GENTILI, 2000, p. 97) concorda com esta

ponderação, afirmando que esta concepção não pertence ao campo teórico-

científico, pois se estrutura alheia a quaisquer possibilidades mais fundamentadas

de questionamento e refutação. Seus principais argumentos, afirma esta autora,

não resistem ao enfrentamento com outras formulações ou com informações

históricas mais concretas. Esta perspectiva “globalizante” das sociedades


contemporâneas encontra-se, na verdade, no “campo próprio das ideologias”,

buscando produzir convencimento e adesão às idéias que difunde, garantindo

“consistência ideológica à dominação”.

A acepção dominante de “globalização” é, pois, uma ideologia.


Expressa posições e interesses de forças econômicas
extremamente poderosas e vem comandando intensa luta
ideológica – luta essa que passa pela mídia e pela universidade –
para tornar-se dominante mundo afora. (LIMOEIRO-CARDOSO,
apud GENTILI, 2000, p. 98).

Nesta orientação, afirma MARCUSE (2000, apud SIQUEIRA et al., 2003), a

globalização parece ter ganhado “vida própria”, cuja existência transcende e

dispensa a vontade dos seres humanos, tornando-a inevitável e irresistível. A

partir dela, o capitalismo conseguiu reatualizar sua perspectiva de se expandir e

de se aprofundar, atingindo cada vez mais aspectos da vida humana. Neste

sentido, afirma J. L. FIORI (1997, p. 26)

A globalização, apesar de ser um neologismo muito pouco preciso,


aponta para um processo de transformações cujas origens e
conseqüências são muito mais complexas, por envolver inúmeras
dimensões não-econômicas num intrincado processo de decisões
privadas e públicas tomadas na forma de sucessivos e inacabados
desafios e ajustes. Neste sentido, a globalização é sem dúvida
uma realidade política, cultural e econômica que vai nascendo às
costas dos produtores e dos governos, mas é também o resultado
de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez
mais concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns
poucos governos nacionais.

Neste sentido, a globalização nos parece representar, em poucas palavras,

o modelo hegemônico do capitalismo do final do século XX para atualizar e dar

continuidade à sociabilidade burguesa, agora a partir de outras determinações,


com novas formas de articulação entre centro e periferia e a penetração, pelo

capital financeiro transnacional, dos países em desenvolvimento. Neste padrão

societário, CASTELLS (1997, apud SIQUEIRA et al., 2003) destaca o que ele

denominou de “sociedade informacional”, onde a geração, o processamento e a

transmissão de informações se convertem nas fontes fundamentais da

produtividade e, conseqüentemente, do poder.

Como podemos perceber a partir destas primeiras considerações, um

amplo leque de abordagens se ocupou, desde finais da década de 80, do debate

acerca da globalização. Apesar de se encontrar hegemonicamente direcionado

pelo discurso da irrecusabilidade e da inevitabilidade, este debate tem recebido,

no entanto, no início do século XXI, um forte aparato crítico. A idéia de que fora da

globalização não existe qualquer possibilidade de realização e desenvolvimento

societários se fortaleceu no cenário político internacional dos anos 80 e 90,

reafirmando valores, conceitos e preconceitos. Na base desta versão,

encontramos, sem dúvidas, a perspectiva de um “mercado globalizado”,

demarcando toda a liberdade e a flexibilidade alcançadas pelo grande capital após

a diminuição marcante das restrições impostas pelo Estado nacional. A

perspectiva hegemônica da globalização se ocupa em promover a idéia de que

somente a adoção das regras do neoliberalismo e do mercado pode garantir a

uma sociedade sobreviver em um cenário de concorrência com dimensões

planetárias. Tal globalização, sinônimo quase perfeito de “modernidade”, dita os

padrões de democracia e de cidadania das mais diversas sociedades, e o

cidadão, agora identificado com o consumidor, é aquele que está finalmente livre
para participar do mercado enquanto espaço democrático e autônomo, capaz de

atender às suas mais diversas necessidades.

Este caráter ideológico das formulações acerca da globalização vem

continuamente desafiando a produção científica, a qual questiona a possível

referência desta ideologia a algum processo significativo na realidade e apresenta

novas teorizações e interpretações. O que podemos observar, ao longo das

últimas décadas, é um rico processo de debate teórico e de crítica acerca desta

problemática, envolvendo autores inseridos em diferentes vertentes e levantando

questões mais ou menos abrangentes sobre o processo societário

contemporâneo.

A compreensão do capital como uma relação social necessariamente

“internacionalizada” está presente desde o próprio pensamento marxiano. Já no

Manifesto do Partido Comunista, seus autores reconhecem que é vocação da

burguesia e do modo de produção capitalista ultrapassar qualquer limite nacional

que porventura se imponha e conferir uma forma cosmopolita à produção e ao

consumo de todos os países. Neste sentido, o capitalismo é “internacional”, o

“capital não tem pátria”, superar nacionalidades e regionalismos é uma

necessidade e uma imposição para este modo de produção se expandir e se

fortalecer, atualizando-se constantemente. Este traço, que MARX & ENGELS já

reconhecem na sociedade capitalista de meados do século XIX, se renova a partir

de bases contemporâneas, e se recoloca como um desafio extremamente atual.

A mundialização das relações capitalistas, a mercantilização


universal das relações sociais, o assalariamento generalizado, a
insegurança social institucionalizada, a constituição de um
mercado global, a gravitação urbana, o significado das
comunicações velozes, o desenvolvimento científico e tecnológico
– todo este complexo aparece sintetizado na apreciação do mundo
burguês, caracterizado pela “contínua subversão da produção, o
ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a permanente
incerteza e a constante agitação”. Não é preciso nenhum grau de
simpatia para com o Manifesto para reconhecer aí o nosso mundo
de 1998 (NETTO, 1998, p. LXIX-LXX).

Parece-nos consensual, entretanto, que o momento contemporâneo deste

desenvolvimento trouxe novas características e particularidades, que levaram

diversos autores a acreditarem no “alvorecer de uma nova era”, no surgimento de

uma “aldeia global”, uma “fábrica global”, uma “modernidade-mundo”, apenas para

citar algumas das metáforas16 de que nos fala IANNI (1998).

Passada esta “euforia globalizante”, ganhou força, sobretudo a partir do

início do século XXI, a perspectiva de crítica a este discurso. As promessas de

uma sociedade mais harmoniosa porque interligada por uma extensa rede de

relações e de tecnologias mostravam-se irrealizadas e irrealizáveis, nos limites do

sistema do capital. Discursos e práticas alternativos foram se construindo e

demonstrando a face negativa e contraditória do processo de inserção de

economias periféricas neste cenário globalizado, as quais agravaram, cada vez

mais, as contradições já existentes. Em diferentes e diversos aspectos da vida

social, a globalização foi sendo colocada em xeque. É sobre eles, portanto, que

pretendemos nos debruçar ao longo deste capítulo.

16
IANNI (1998) afirma que as metáforas surgem e ganham força em um determinado discurso
porque tentam dar conta de realidades que ainda não foram totalmente codificadas. Esta é a
situação, afirma ele, das “metáforas da globalização”. Neste caso, elas suscitam ângulos diversos
de análise para este fenômeno, desvendando traços fundamentais das configurações e
movimentos da sociedade global, combinando reflexão e imaginação. Tais metáforas entram em
diálogo umas com as outras, desafiando-se e enriquecendo-se mutuamente.
2.1 – “Não há alternativas”: hegemonia, imperialismo e a ideologia de

uma economia integrada e irrecusável

Um dos movimentos mais relevantes do aparato crítico que se formou a

partir do final da década de 90 é o de questionar e problematizar a identidade

construída entre “globalização” e “internacionalização de mercados”. Tal

questionamento, característico de um “globalismo crítico”, teoriza a globalização

considerando “não somente as forças de mercado, mas também as relações entre

os estados, as agências internacionais e a sociedade civil, tanto em suas

manifestações internas quanto internacionais”.(PIETERSE In LIMOEIRO-

CARDOSO, 2000, p. 99). Uma variedade de fenômenos e uma diferenciação de

impactos parecem caracterizar o que se convencionou denominar, simplesmente,

como “globalização”, envolvendo aspectos referentes a diferentes esferas da vida

social como a financeira, comercial, produtiva, tecnológica, cultural, etc. Se

partirmos desta certeza, é possível observarmos as quatro últimas décadas como

um novo momento de decomposição, de incerteza e de crise universal ou global,

que atinge e redireciona o sistema de organização do capital. Em outras palavras,

neste período, o capitalismo, agora sob a égide dos “mercados globalizados”, mais

uma vez não cumpriu suas promessas de desenvolvimento e de emancipação

humana, agravando ainda mais o quadro social que sempre o caracterizou e

demarcando o aprofundamento da crise econômica, política, social e moral que,

em seu interior, já se tornou estrutural. Vale analisarmos cada um dos aspectos

desta crise, norteados, é importante destacar, pela certeza de que a

“globalização”, apesar de suas evidentes referências a um processo efetivo na


realidade, guarda determinações e conseqüências que são aparentes, e que,

portanto, devem ser objeto de um desvelamento crítico rigoroso e responsável.

Não é possível ponderarmos acerca da globalização enquanto momento de

reorganização do sistema do capital sem discursarmos acerca de um conjunto de

determinações históricas que envolvem, em sua origem, os elementos referentes

à regulação fordista e, principalmente, à sua crise. A estrutura de organização

internacional do capital vivia, então, uma fase relativamente estável, com a

paridade fixa entre as moedas e com a base produtiva estabelecida em torno do

modelo fordista de inovações tecnológicas e organizacionais e do consumo de

massas17. Neste cenário, acomoda-se uma acumulação de capital essencialmente

ligada à economia regulada pelo Estado nacional, embora o fluxo de investimento

externo direto18 já se apresentasse como um elemento significativo para o

desenvolvimento econômico.

Uma série de legislações e mecanismos políticos passou a

demarcar, no período pós Segunda Guerra Mundial, um grau

de efetiva autonomia para os Estados nacionais limitarem, de

certa forma, a ação de multinacionais cujo investimento

estava subordinado a certas convenções e a uma relação

17
HARVEY (1999, p. 121) deixa claro que é esta relação entre produção de massa e consumo de
massa o elemento chave para a compreensão do fordismo e de sua especificidade no processo de
acumulação capitalista e de constituição societária mais ampla. “A separação entre gerência,
concepção, controle e execução também já estava bem avançada em muitas indústrias. O que
havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua
visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um
novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do
trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade
democrática, racionalizada, modernista e populista.”
18
CHESNAIS esclarece que um investimento estrangeiro é considerado direto quando o investidor
detém 10% ou mais das ações ordinárias ou do direito de voto de uma empresa.
salarial fordista. Esta regulação era caracterizada, assim, por

uma certa rigidez no processo de acumulação de capital,

rigidez esta que, resultante de uma configuração específica

na correlação de forças e na luta de classes naquele

momento, pode instaurar

Uma série de compromissos e reposicionamentos por parte dos


principais atores dos processos de desenvolvimento capitalista. O
Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir
novos poderes institucionais, o capital corporativo teve de ajustar
as velas de certos aspectos para seguir com mais suavidade a
trilha da lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de
assumir novos papéis e funções relativos ao desempenho nos
mercados de trabalho e nos processos de produção. O equilíbrio
de poder, tenso, mas mesmo assim firme, que prevalecia entre o
trabalho organizado, o grande capital corporativo e a nação-
Estado, e que formou a base de poder da expansão de pós-guerra,
não foi alcançado por acaso – resultou de anos de luta. (HARVEY,
1999, p. 125).

CHESNAIS (1999, p. 300) apresenta o debate acerca da

existência de três formas institucionais que deram

sustentação a esta regulação fordista, capacitando-a para

assegurar a estabilidade e expansão da acumulação

capitalista naquele determinado momento:

a) Trabalho assalariado como forma absolutamente predominante de

inserção social e de acesso à renda;

b) Ambiente monetário internacional estável, com instituições e

mecanismos que instituíam as finanças como elementos

subordinados às necessidades da esfera produtiva;


c) Existência de Estados com instituições fortes para regular e

disciplinar o funcionamento do capital privado.

Não é verdade, entretanto, que este modo fordista de uma

acumulação regulada e rígida constituiu um processo de

bases puramente nacionais, pois muito de uma “questão

internacional” já se observava neste momento. A expansão

do pós-guerra, cenário em que esta regulação fordista se

instaurou e se desenvolveu, dependia, desde então, de uma

ampliação dos fluxos de comércio mundial e de investimento

internacional que já demarcava um desenvolvimento desigual

da economia mundial. Desde então, já se observava o

quadro hegemônico do poder econômico e financeiro dos

Estados Unidos, que agiam “como banqueiro do mundo em

troca de uma abertura dos mercados de capital e de

mercadorias ao poder das grandes corporações.” (HARVEY,

1999, p.131)

Este quadro parece vivenciar, já a partir de metade dos anos

60, uma crise do próprio sistema de regulação, que se

insere, como já afirmamos, em mais uma crise estrutural do

capital. Este, para mais uma vez garantir seu processo de

superacumulação, precisava quebrar os elementos daquele

padrão de regulação fordista, derrubando as formas

tradicionais da economia do Estado nacional, agora em um


contexto de internacionalização. Nas palavras de CHESNAIS

(1999, p. 306)

(...) as grandes companhias buscavam uma saída para a queda de


rentabilidade do capital, para a saturação da demanda de bens de
consumo duráveis e para a contestação dos trabalhadores, na
deslocalização acelerada de suas operações.

Em outras palavras, o que podemos ponderar é que, a partir deste período,

um conjunto de fatores deixa claro que o modelo fordista é incapaz de conter e

administrar as contradições inerentes ao capitalismo. Dentre estes fatores,

poderíamos destacar:

a) A recuperação financeira e produtiva do capitalismo na Europa

Ocidental e no Japão, que vivencia, ao mesmo tempo, a saturação

de seus mercados internos e o impulso para garantir mercados de

exportação para seus excedentes;

b) A falta de flexibilidade para os investimentos de capital fixo de larga

escala e de longo prazo em sistemas de produção de massa;

c) O “poder excessivo” conquistado pela classe trabalhadora durante o

momento de regulação fordista, que direcionava, de forma negativa

para o capital, os mercados, a alocação e os contratos de trabalho;

d) A intensificação dos compromissos do Estado que, diante de

demandas cada vez mais amplas e da restrição da base fiscal para

os gastos públicos, cria uma profunda crise de legitimidade;

e) A profunda recessão de 1973, acelerada pela alta dos preços do

petróleo em todo o mundo.


Assim, o modo de produção capitalista, a partir do último terço do século

XX, passou a criar formas alternativas a esta institucionalização fordista, dando

início a um período de reestruturação econômica e de reajuste social e político. A

relação salarial foi diretamente afetada, passando a formas mais flexíveis e

instáveis de pagamento pela força de trabalho, quando não pelo desemprego

estrutural, mesmo em países capitalistas centrais. Ao mesmo tempo, a capacidade

de regulamentação dos Estados nacionais ficou bastante reduzida, deixando que

o capital-dinheiro se configurasse como uma força quase incontrolável. Nas

palavras de HARVEY (1999, p. 140)

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um


confronto direito com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho,
dos produtos e dos padrões de consumo. Caracteriza-se pelo
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos
mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível
envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento
desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas,
criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no
chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais
completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (...).
Ela também envolve um novo movimento que chamarei de
“compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os
horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se
estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos
custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e
variegado.

Diante de todo este quadro de reestruturação capitalista é que podemos

analisar, com mais rigor, este conjunto de novas determinações que se

convencionou chamar de globalização. Valendo-nos das observações de


CHESNAIS, que prefere a expressão “mundialização do capital”, veremos que ela

se refere, enquanto constituição da base material, a uma nova configuração do

capitalismo em escala mundial e a novos mecanismos que comandam seu

desempenho e sua regulação, remodelando a vida social em todas as suas

dimensões19. Apesar de constituir-se como um avanço e um prolongamento do

processo de internacionalização do capital de que nos falavam Marx e Engels já

no Manifesto do Partido Comunista, a atual fase guarda particularidades que a

tornam diferente de etapas anteriores do desenvolvimento capitalista.

IANNI (1998) observa que BRAUDEL e WALLERSTEIN constroem,

respectivamente, as discussões acerca da “economia-mundo” e do “sistema-

mundo”, onde cada um, com suas devidas particularidades, tende a dar primazia,

neste processo de globalização, ao aspecto econômico em seu sentido mais

amplo20. Esta capacidade de se expandir geograficamente, conquistando espaços

os mais variados, é um dos elementos que garantem, segundo estes autores, a

sobrevivência do capitalismo e a superação de suas sucessivas crises. A

construção de uma rede de processos produtivos interligados permite que este

sistema, em seus repetitivos quadros críticos, “se recupere” em alguma parte do

mundo e possa, através de economias-mundo regionais, situadas em diferentes

19
Chesnais nos chama atenção para o fato de que a internacionalização do capital, em todas as
suas fases, sempre incluiu o comércio exterior, o investimento exterior direto e os fluxos
internacionais do capital que mantém a forma monetária. É necessário abordar estas três
estratégias como um todo hierárquico, que assume diferentes configurações ao longo da história
do modo de produção capitalista.
20
Para IANNI, Braudel está marcadamente influenciado pelo funcionalismo de Durkheim e
Wallerstein, por outro lado, demonstra clara aproximação com o estruturalismo marxista na análise
do capitalismo moderno.
estágios de organização e dinamização, manter sua lógica de acumulação e de

reprodução societária.

Para estes autores, o Estado-nação ainda permanece como agente “real ou

ilusório”, a nação é um fato histórico e geográfico, um processo que se cria e

recria continuamente, mas, no que se refere à economia, tais realidades vivenciam

um declínio através da emergência de novos e poderosos centros mundiais de

poder, soberania e hegemonia. A “economia-mundo” transcende o local, o

nacional e mesmo o regional, e se apresenta como um “todo em movimento”

atravessado por movimentos de integração e fragmentação.

Para Wallerstein, a “economia-mundo” é agora universal, no


sentido de que todos os Estados nacionais estão, em diferentes
graus, integrados em sua estrutura central. (...) Uma característica
importante do sistema unificado de Wallerstein é o padrão de
estratificação global, que divide a economia mundial em áreas
centrais (beneficiárias da acumulação de capital) e áreas
periféricas (em constante desvantagem pelo processo de
intercâmbio desigual). O sistema de Estados nacionais, que
institucionaliza e legitima a divisão centro-periferia, também
concretiza, por meio de uma intrincada rede de relações legais,
diplomáticas e militares, a distribuição do poder no centro.
(CAMILLERI & FALK, In IANNI, 1998, p. 36-37).

Parece unânime, entre os autores preocupados em desvendar as

particularidades deste momento da acumulação de capital, a certeza de que a

financeirização constitui o grande elemento diferenciador da contemporaneidade

de desenvolvimento capitalista. Se a riqueza continua sendo criada na produção,

como bem nos ensinara Marx, a esfera financeira se tornou, no momento atual, o

pólo de repartição e de destinação desta riqueza, com uma dinâmica e um


crescimento aparente e praticamente incontroláveis. Como nos propõe CHESNAIS

(1999, p. 14-15)

O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de


centralização de gigantescos capitais financeiros (ou fundos
mútuos e fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente
no interior da esfera financeira. (...) Não é mais uma Henry Ford ou
um Carnegie, e sim o administrador praticamente anônimo (e que
faz questão de permanecer anônimo) de um fundo de pensão com
ativos financeiros de várias dezenas de bilhões de dólares, quem
personifica o “novo capitalismo” de fins do século XX.

Desde fases anteriores da história capitalista, o setor financeiro já se

constituía como um elemento de fundamental importância para a reprodução

deste sistema. No momento atual, entretanto, ele não só cresce em proporções

significativas, dando origem a uma explosão de novos instrumentos e mercados

financeiros, como também passa a concentrar muito mais poder, dinamizando e

flexibilizando a produção, os mercados de trabalho e o consumo. “O sistema

financeiro alcançou um grau de autonomia diante da produção real sem

precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos

financeiros igualmente inéditos” (HARVEY, 1999, p. 181). Chesnais nos aponta

dois mecanismos característicos para o desenvolvimento e o fortalecimento desta

esfera: a “inflação do valor dos ativos”, com a formação de um “capital fictício” e,

principalmente, as transferências efetivas de riqueza para a esfera financeira,

através prioritariamente, do serviço de dívida pública e das políticas monetárias a

ele vinculadas.

Este capital financeiro tornou-se, então, o grande impulsionador da

economia mundial, e os Estados nacionais periféricos, “seus grandes reféns”,


contribuem para este novo quadro através de um endividamento cada vez maior.

Não são questionadas, de forma sistemática, as propostas e as exigências deste

novo perfil do liberalismo e, pelo contrário, as maiores potências do globo se

voltam para a defesa intransigente deste capital monetário, independente dos

custos políticos e sociais que esta opção possa acarretar. Além dos Estados, esta

esfera financeira também consegue subordinar o investimento dos grandes grupos

industriais com prioridades que tendem a reduzir o tempo necessário para a

valorização do capital industrial, atingindo, de forma direta, as classes

trabalhadoras, suas relações de trabalho e seu processo de organização na esfera

produtiva.

Como nos propõe SAMPAIO JÚNIOR (1999, p. 18)

A extrema mobilidade do capital internacional comprometeu o


controle das sociedades nacionais sobre as empresas
transnacionais. Os aumentos nas escalas mínimas de produção
fizeram com que os novos processos produtivos exigissem um
espaço econômico de referência mais amplo, que tendia a
ultrapassar os limites das fronteiras dos Estados nacionais. A
integração do sistema financeiro internacional levou ao paroxismo
a liberdade de movimento de capitais, generalizando, para as
economias centrais, um problema que até então se restringia aos
países subdesenvolvidos: a incapacidade de circunscrever o
circuito de valorização do capital ao espaço econômico nacional.

O debate contemporâneo acerca deste cenário afirma que o capital perde,

neste sentido, as determinações de suas formas particulares e singulares de

desenvolvimento, subordinando-se às formas do capital em geral. Não bastam,

neste momento, as formas tradicionais de reprodução em âmbito nacional, que

ainda existem, mas que não são mais determinantes. As transnacionais precisam

redesenhar o mapa geoeconômico e geopolítico, libertando-se das amarras que


antes eram colocadas pelos Estados nacionais e por suas demandas mais

específicas. As exigências de instituições, organizações e corporações

transnacionais, ou propriamente mundiais, parecem dar o novo tom deste

momento contemporâneo.

Segundo uma parte dos autores contemporâneos que trabalham esta

temática, dentre os quais destacamos IANNI (1998), uma das provas mais

concretas desta internacionalização está colocada justamente pelo fato de que o

principal opositor do sistema do capital, que historicamente ficamos conhecendo

pela expressão “socialismo real”, vai, aos poucos demandando a presença do

capital como elemento essencial para a sua organização e dinâmica. Aos poucos,

as economias centralmente planificadas demonstram-se estimuladas e desafiadas

pelas oportunidades de participar das oportunidades de mercado oferecidas. Nas

palavras deste autor,

Quando termina a Guerra Fria, inclusive como decorrência do


modo pelo qual o capitalismo estava bloqueando e penetrando o
mundo socialista, o “Segundo Mundo”, são outros espaços que se
abrem. Sob vários aspectos, é como se o mundo todo se tornasse
o cenário das forças produtivas acionadas e generalizadas pelas
corporações transnacionais, conjugadas com ou apoiadas pelos
governos dos países capitalistas dominantes. (1998, p. 50)

Está decretado, para autores que defendem esta perspectiva, o “fim da

geografia”, no sentido de que a localização geográfica não importa mais em

matéria de finanças e de desenvolvimento capitalista. O “mundo”, enquanto uma

concretude e uma determinação antes não manifestadas, aparece como o


caminho privilegiado para a definição, a gestão e a realização dos interesses do

capital, ou seja, para o processo de acumulação global de riqueza.

Entretanto, quando discutimos os caminhos da “mundialização do capital”,

estamos tratando de um fenômeno resultante não só da liberalização e da

desregulamentação que garantiram a abertura dos mercados nacionais. Também

podemos afirmar que operações altamente seletivas direcionam a finalidade

lucrativa, dando aos grandes grupos do capital internacional total liberdade para

decidir quanto, como, onde e até quando investir. O livre acesso às economias

periféricas e, mais ainda, a crescente dependência destas últimas garantem ao

capital internacional a possibilidade de optar pela exploração dos diferentes

mercados através dos produtos importados, da produção local, ou meramente da

especulação financeira. Assim, consegue aproveitar as potencialidades lucrativas

de cada região, procurando aquelas que possam oferecer, em cada realidade

específica, melhores oportunidades de acumulação e reprodução21. Assim,

podemos compreender que os vínculos deste capital internacional com as

diversas realidades nacionais dependem da importância destas últimas na

concorrência intercapitalista em escala mundial.

Esta constatação, de que o mercado globalizado busca se expandir através

dos mais diferentes caminhos, de acordo com a “vocação” de cada região para o

desenvolvimento capitalista, traz elementos que fortalecem a perspectiva de uma

possível “interdependência entre as nações”. Na verdade, para esta teoria, que se

estrutura, segundo IANNI (1998), enquanto uma análise sistêmica, a sociedade

21
IANNI (1998) chama a atenção para o fato de que as facilidades geradas pelo processo de
desterritorialização do capital acabam por facilitar também a confusão entre o dinheiro com origem
legal e aquele que se formou por atividades ilícitas, tais como o narcotráfico e a corrupção.
mundial já compõe um sistema econômico e unitário, onde as potências mundiais

estabelecem as condições de ordem neste sistema global. Assim, neste cenário,

deve ser valorizada e privilegiada a funcionalidade sincrônica, a articulação eficaz

e produtiva. Neste sistema global, já estabelecido e do qual as nações são

interdependentes, prevalecem a estabilidade, a normalidade, a harmonia, o

equilíbrio, a eficácia, a produtividade, a ordem e a evolução. O mundo é uma

totalidade harmônica, contendo partes e atores que estabelecem uma

interdependência negociada, administrada, pacífica.

A teoria da interdependência das nações se apresenta relacionada com a

perspectiva de “ocidentalização”, de modernização e de “racionalização” do

mundo. Observa-se uma sedimentação dos padrões e valores sócio-culturais

predominantes na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, traduzindo a idéia de

que o capitalismo é um processo civilizatório superior e inexorável, que tende a se

desenvolver pelos quatro cantos do mundo, sobrepondo-se a quaisquer outras

formas de organização da vida e do trabalho. Nesta direção, é vital que as

diferentes sociedades compartilhem de uma mesma orientação macro-econômica,

através da vigência e da generalização das forças do mercado capitalista, em

âmbito global, com pólos dominantes e centros decisórios em alguns poucos

Estados nacionais mais fortes.

A globalização aparece, desta forma, como um padrão de modernização

que dissolve e ultrapassa fronteiras de todo tipo. Neste padrão, moderno é

sinônimo de prático, técnico e instrumental, permeando as mais diversas esferas

da vida social. Generaliza-se um pensamento pragmático e tecnocrático, que

apresenta tarefas fundamentais para as elites intelectuais: é preciso que este


grupo assuma a tarefa de viabilizar a execução e a dinamização dos objetivos e

meios desta mundialização do capital, possibilitando que as coisas, as gentes e as

idéias passem a ser atravessados pela desterritorialização. Teremos a

oportunidade de problematizar melhor esta função das elites intelectuais22 neste

processo de “modernização capitalista” quando estivermos problematizando o que

denominaremos de “cultura da globalização”. A ela cabe construir e divulgar

ideologicamente a proposta de que chegou ao fim a era conturbada do capitalismo

e a mundialização é, agora, um processo possível, necessário, equânime e

inevitável. Ainda que esta modernização não se dê de modo abrupto e monolítico,

convivendo, portanto, com diferentes padrões, valores e instituições, ela tende a

predominar, inaugurando tendências no sentido da individuação e do

individualismo, da mercantilização e da acumulação capitalista em todas as

instâncias da vida social. O parâmetro de modernização contemporânea é dado

pelas sociedades mais desenvolvidas, ou simplesmente dominantes, e deve ser

seguido e almejado pelas que se encontram em uma posição secundária e

dominada.

Assim, se inaugura um padrão de racionalidade capitalista, onde são

criados parâmetros de organização das diversas ações sociais. Numa dimensão

expansionista, o mundo foi sendo permeado por valores, instituições e

organizações característicos do capitalismo enquanto modo de produção, que,

como vimos, desde o seu início, já tinha uma orientação internacionalizada. O

22
IANNI (1998) nos fala, inclusive, em tecno-estruturas, que reúnem profissionais diversificados, de
todas as qualificações, com o objetivo de diagnosticar, planejar e implementar diretrizes gerais em
conformidade com os interesses predominantes nas estruturas de dominação política e
apropriação econômica.
direito, por exemplo, aparece como uma parte fundamental desta racionalização

da sociedade, traduzindo estes padrões e valores para o formato de um aparato

jurídico-administrativo que se une àquele universo de modernização capitalista.

Entretanto, o pensamento social crítico tem nos possibilitado compreender

que uma forte dose de idealização demarca esta tese da interdependência das

nações, da modernização e da racionalização das sociedades contemporâneas. A

mundialização do capital não se desenha como um momento de integração ou de

igualdade nas condições de participação no grande mercado mundial. Muito pelo

contrário, apesar de todo o discurso da “crise do Estado-nação”, vivemos em um

cenário extremamente marcado por relações econômicas e políticas de

competição, de dominação e de dependência, acentuando elementos de

hierarquização e de hegemonia entre os países. A distância entre “países ricos e

pobres” é cada vez maior, sendo que os últimos permanecem em uma posição

acentuadamente subordinada.

É diante de toda esta configuração crítica da base material do capitalismo

contemporâneo que J. L. FIORI (1999) recupera e dá nova significação ao tema

da “riqueza de algumas nações”. O que podemos perceber, neste início de século,

é que o cenário de internacionalização acima descrito aponta para um horizonte

de incertezas e de incontrolabilidade do livre movimento do capital, perpetuando,

para os países de capitalismo periférico, uma situação de “verdadeira tirania

financeira”. Assim, em um contexto de internacionalização, de flexibilização das

fronteiras econômicas nacionais e da anunciada “crise do Estado-nação”, a

simples competição intercapitalista em mercados desregulados e globalizados não

assegura o desenvolvimento nem muito menos a convergência entre as


economias nacionais do centro e da periferia do sistema capitalista mundial. A

“questão nacional” permanece em voga, nesta perspectiva crítica, ganhando

visibilidade e significação, sob novos parâmetros de discussão. A lógica perversa

dos mercados auto-regulados, estabelecida agora em um quadro de hegemonia

imperialista recomposta, demonstra ser a responsável por uma gigantesca

concentração empresarial e territorial da riqueza, com uma subordinação cada vez

maior dos países periféricos que

Quando optam pela alternativa de atrelar suas moedas à da


potência dominante mundial ou regional, condenam-se a ciclos
curtos de modesto crescimento (na média do ciclo), altas taxas de
desemprego e ingovernabilidade, sustentável só durante os
períodos de disponibilidade de capitais e créditos internacionais
abundantes e baratos. (FIORI, J. L., 1999, p. 39).

Podemos perceber, neste contexto, a continuidade de uma ordem

hierárquica internacional, com claras perspectivas hegemônicas, onde parece

impensável o desenvolvimento e a mobilidade ascendente de todas as economias

nacionais. O mundo do “capital globalizado” é, cada vez mais, um mundo de

amplas desigualdades econômicas, cujos custos sociais, como poderemos

observar, nos parecem cada vez mais graves e reivindicam intervenções cada vez

mais urgentes.

Neste debate acerca da hegemonia e da hierarquia entre nações, há que se

problematizar a presença dos Estados Unidos, que, embora frágeis

industrialmente, destacam-se no cenário de expansão e de nova significação do

capital financeiro, o qual aumenta, consideravelmente, seu poderio nos planos

político e militar. Durante as décadas de 80 e 90, a imensa diferenciação entre


países credores e devedores e o sobreendividamento externo dos países de

capitalismo periférico, confirmaram a presença dos Estados Unidos como o pólo

propulsor do crescimento econômico destes países, através de uma série de

“concessões” unilaterais antecipadas e da adoção do receituário neoliberal

proposto pelo Consenso de Washington. A hegemonia norte-americana se

construiu, entretanto, no interior de um “mundo triádico”23, composto ainda pelo

poder econômico e político do Japão e da União Européia.

O que se percebe é que, se a afirmação destes outros dois grandes grupos

econômicos pode ameaçar a hegemonia norte-americana, isto não abala e, pelo

contrário, fortalece imensamente as estruturas da mundialização do capital. Estes

três “pólos” concentram, então, o grande volume do capital financeiro investido em

todo o mundo e demarcam sua existência e seu poderio através desta base de

financeirização. Dados apresentados por CHESNAIS (1999, p. 63) demonstram

que, ao longo da década de 80, tais grupos econômicos movimentavam entre si

mais de 80% do investimento externo direto (num movimento de investimento

internacional cruzado), o que ocorria através principalmente, de aquisições e

fusões de empresas já existentes, com vistas a uma maior capitalização das

mesmas. Assim, o desenvolvimento e a acumulação capitalistas sustentam e

mantêm a si mesmos, configurando e fortalecendo a estrutura de hegemonia que

se forma no contexto internacional. Nesta lógica, a Tríade atua com plena

liberdade no interior de suas fronteiras e busca estabelecer com rigor os caminhos

23
CHESNAIS afirma que o poderio econômico, político e social no contexto da mundialização do
capital esta construído em torno de uma tríade, que também é denominada de “imperialismo
coletivo”. Compõem esta tríade os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, sendo que o
primeiro apresenta posição hegemônica.
e os passos que demarcarão a “integração” dos países em desenvolvimento neste

cenário.

Na lógica da ordem internacional hoje emergente, o


desenvolvimento nacional fica excluído do horizonte de
possibilidades dos países periféricos. Cabem-lhes, agora,
basicamente, três funções na economia mundial: franquear o
espaço econômico à penetração do capital internacional; coibir o
êxodo de correntes migratórias que possam gerar instabilidade nos
países centrais; e aliviar o estresse produzido pelas regiões
altamente industrializadas no ecossistema mundial, aceitando o
triste e paradoxal papel de pulmão e lixo da civilização ocidental.
(SAMPAIO JÚNIOR, 1999, p. 24).

O que vai demarcar esta “inevitável” globalização e ditar as normas da

“adaptação” necessária é o investimento internacional, muito mais do que o

comércio exterior. Este investimento, do qual a maioria dos países periféricos se

tornou absolutamente dependente, passa a determinar a produção de bens e

serviços, numa inversão significativa no processo de acumulação capitalista

contemporâneo.

As estratégias internacionais do passado, baseadas nas


exportações, ou as estratégias multidomésticas, assentadas na
produção e venda no exterior, dão lugar a novas estratégias, que
combinam uma série de atividades transfronteiras: exportações e
suprimentos externos, investimentos estrangeiros e alianças
internacionais. As empresas que adotam essas estratégias podem
tirar proveito de um alto grau de coordenação, da diversificação de
operações e de sua implantação local. (OCDE apud CHESNAIS,
1999, p. 27)

A globalização, assim desenvolvida a partir desta supremacia do capital

financeiro, pode garantir, também ao capital produtivo, uma intensa mobilidade,

caracterizada pela maior flexibilidade dos processos de produção, pela


deslocalização de tarefas, pela fragmentação dos processos de trabalho e pela

busca de melhores preços da força de trabalho. No entanto, este quadro se torna

ainda mais acentuado quando ponderamos que este capital produtivo encontra, na

aliança com o capital financeiro, oportunidades ainda mais amplas de

sobrevalorização, aliando flexibilidade e diversidade de operações através dos

mecanismos de investimento externo direto. Aprofunda-se, em decorrência disso,

uma concorrência ainda mais acirrada entre os paises dependentes, em torno da

atração de maiores e melhores investimentos externos, independentemente de

quaisquer políticas que antes faziam sentido através da lógica de “soberania

nacional”.

A globalização não atua sobre estes países, portanto, meramente como um

processo externo e coercitivo. Ela conta com a preciosa e definitiva “colaboração”

dos Estados que, responsáveis pela condução deste processo em âmbito

nacional, impulsionaram o avanço aparentemente incontrolável das estruturas do

capital financeiro. Em outras palavras, para nos apropriarmos, mais uma vez, das

discussões anteriores acerca da perspectiva gramsciana, a globalização possui

uma clara dimensão hegemônica, no sentido da obtenção do consenso e da

legitimidade, e os Estados nacionais recolocam agora sua importância, a partir do

momento em que moldam suas realidades internas para garantir maior

adaptabilidade a este capital “mundializado”.

Sem a intervenção política ativa dos governos Tatcher e Reagan, e


também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a
eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação,
de privatização e de liberalização do comércio, o capital financeiro
internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam
podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves e
freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de
explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde
lhes for conveniente. (CHESNAIS, 1999, p. 34).

As estratégias de investimentos externos configuram-se como globais para

os interesses dos grandes oligopólios mundiais, concentrados nos poucos países

que compõem a Tríade. Para os demais atores, elas são sinônimo de um quadro

cada vez mais acentuado de dependência e de inclusão periférica no cenário

capitalista contemporâneo, extremamente polarizado, com um recuo dos

investimentos e das transferências de tecnologia para o interior dos próprios

países em desenvolvimento. Neste cenário, observamos, inclusive, uma

marginalização de áreas inteiras dos continentes. Dados apresentados por

HOBSBAWN (1997, p. 412) afirmam que, no início da década de 90, 26 das 42

“economias de baixa renda” não representavam qualquer interesse para os

investimentos do grande capital mundializado.

Elaborar uma análise do processo de globalização em curso nestes termos

significa reafirmar importantes elementos de continuidade e de aprofundamento de

relações próprias da fase imperialista, compreendida como uma ampla teoria

acerca do funcionamento da economia mundial no estágio do capitalismo

monopolista. Tem origem, desta forma, um “sistema global do capital”, enquanto

uma poderosa realidade independente e o imperialismo, enquanto teoria

explicativa da realidade, se recoloca, já não se limitando mais à esfera do

intercâmbio comercial, mas também ao movimento do capital produtivo de valor e

de mais-valia e do capital financeiro.


LÊNIN (2002), no início do século XX, já demarcava um conjunto de

características que nos parecem orientadoras para analisarmos o momento

contemporâneo da “globalização”. Seriam elas:

a) Concentração e centralização do capital industrial e formação de

grandes grupos industriais, designados como monopólios;

b) Movimento de concentração e centralização do capital monetário,

verificado no setor bancário e originário do capitalismo financeiro;

c) Importância adquirida pela exportação de capitais, em contraposição

às exportações de mercadorias, desencadeando mecanismos de

centralização do valor e da riqueza (capital rentista, com acentuado

caráter parasitário).

Estes elementos nos levam a considerar que é necessário recuperar e

atualizar esta teoria do imperialismo, com vistas a buscar a compreensão da base

material que explica outras dimensões da vida social. Consideramos que este

exercício é de fundamental importância para que possamos problematizar,

posteriormente, a tão anunciada “globalização da cultura”.

Valendo-nos, assim, das contribuições de ALMEIDA (2003), podemos

retomar cinco pontos a serem considerados neste movimento de recuperação e

atualização do paradigma do imperialismo para a compreensão da realidade atual,

a saber:

a) Podemos observar uma expansão da centralidade das relações entre

capital e trabalho, onde a industrialização crescente e específica de

um grande número de países de capitalismo periférico fortalece


ainda mais a compreensão do capital como uma relação social, em

sua fase expansionista.

b) Constrói-se, nesta “periferia do capitalismo”, um sistema que não só

repete as bases desta relação social, mas também as diferencia,

aprofunda e particulariza. Desta forma, a partir de meados da década

de 80, não se pode mais analisar as transformações ocorridas no

centro do capitalismo desenvolvido sem analisar suas conexões com

o que se constitui como relações sociais nas formações

dependentes.

c) No momento clássico do imperialismo, somente as formações sociais

hegemônicas eram estatais-nacionais. Hoje este tipo de formação

atinge praticamente todo o mundo, com a proliferação de Estados

burgueses nacionais, o que muitas vezes cria a necessidade de

(...) encenar a representação do povo-nação como uma


coletividade soberana e, neste mesmo processo, reproduzir ou
redefinir as relações de dependência desta formação social em
relação aos centros do capitalismo hegemônico. (ALMEIDA, 2003,
p. 65).

d) Como já mencionamos, a configuração contemporânea do sistema

do capital estabelece mudanças até mesmo no centro dos países

hegemônicos com a formação e o fortalecimento da Tríade, onde se

destaca o poderio norte-americano.

e) Também perde força a hegemonia do capital produtivo, o qual, a

partir de agora, fica subordinado, econômica e politicamente, ao

capital financeiro, dando um caráter de instabilidade crescente ao

sistema internacional e seus “mercados financeiros emergentes”.


Estaríamos diante, sobretudo a partir do final do século XX, de uma nova

etapa desta internacionalização do capital que se complexificou e passou a formar

um todo articulado, envolvendo o movimento do capital financeiro, o investimento

do capital produtivo e o intercâmbio comercial. Estas seriam três estratégias de

desenvolvimento e acumulação do capital, agora em uma dimensão global, que

compõem ciclos diferenciados de internacionalização do capital em cada época

histórica. É importante realizarmos considerações mais aprofundadas sobre cada

um destes elementos.

O salto e a importância adquirida pelo investimento externo direto nos anos

80 demonstram as particularidades do movimento do capital financeiro, o qual

parece adquirir uma significativa autonomia diante do capital industrial. Este

último, embora ainda comande a criação de valor e de riqueza, fica subordinado

ao primeiro, a cujas exigências deve se submeter. Em outras palavras, a produção

não está mais prioritariamente orientada pela produção de mercadorias que

satisfazem necessidades humanas, mas para mecanismos que acelerem o

crescimento, a reprodução e a acumulação do capital financeiro.

A configuração contemporânea das empresas multinacionais exemplifica

com bastante clareza estas afirmações, pois estas empresas vêm passando por

um processo de diversificação que intensifica e facilita sua internacionalização.

Elas permanecem com uma base nacional, que não apenas garante seu

crescimento como também define sua estratégia e sua competitividade, através da

ação e da “ajuda” do “seu” Estado. Além disso, apresentam-se atualmente como

um grupo altamente diversificado, envolvido em múltiplas atividades, buscando

uma valorização do capital diferenciada e multiforme. Dentre estas atividades,


destacam-se estratégias predominantemente financeiras, operando e intervindo

em mercados financeiros mundializados. São, assim, denominadas

“multinacionais de novo tipo” (DUNNING In CHESNAIS, 1999, p. 77) e ganham

extrema representatividade no momento atual porque

O grupo multinacional, então, precisa ser eminentemente rentável,


mas atualmente essa rentabilidade não pode mais ser baseada
unicamente na produção e comercialização próprias do grupo e de
suas filiais. Precisa basear-se também no que Dunning chama, de
forma vaga e um tanto eufemística, de suas “relações com outras
empresas”. (IBIDEM, p. 77-78).

Estas “relações com outras empresas” acontecem tendo como centro, mais

uma vez, a lógica da financeirização ou da especulação, através de novas formas

de investimento, onde a multinacional disponibiliza uma fração de capital e,

portanto, conquista o direito de conhecer a conduta de outra empresa não através

de um aporte de capital, mas de um investimento sob a forma de ativos imateriais.

Tais investimentos apresentam, conseqüentemente, um caráter altamente flexível

e rentista, desligando-se da maioria dos riscos, e/ ou dos custos vivenciados por

estas empresas.

Assim se formam os chamados “oligopólios mundiais”, grupos que

demarcam a absoluta interdependência entre companhias, como espaços não só

de concorrência e rivalidade, mas também de colaboração, criando barreiras à

entrada de outros grupos ou empresas. Tais oligopólios se definem pela

capacidade de se sustentar num cenário de concorrência global, uma vez que

atuam simultaneamente em mercados variados e redesenham, inclusive, a

questão da localização produtiva industrial. Identificar as “vantagens de cada país”


significa algo além de buscar mão-de-obra mais barata. Na verdade, tal

localização envolve demandas maiores, mercados mais promissores e, sobretudo,

benefícios fiscais que tornem determinados países “mais atraentes” para o grande

capital mundial.

Torna-se muito mais ampla e definida, então, a noção de “concorrência

mundializada”. Em um primeiro plano, temos uma perspectiva mais direta desta

concorrência, onde empresas, em todo o mundo, que antes estavam limitadas,

mas também “protegidas”, pelos freios e entraves colocados pelos Estados-nação

ao livre jogo do mercado, agora se enfrentam de uma forma mais direta e radical,

oriunda das políticas de liberalização e de desregulamentação das economias

nacionais. No entanto, em um contexto oligopolista mundial, esta concorrência não

é mais anônima. Estes grandes grupos não só conhecem seus rivais, como

também controlam suas estratégias de acumulação e seus graus de

interdependência.

Entretanto, não podemos desprezar um outro nível de concorrência neste

cenário mundializado. Trata-se da disputa pelos próprios investimentos dos

“oligopólios mundiais”, o que atinge sobretudo a estrutura econômica, política e

social dos chamados países em desenvolvimento. Nesta questão, os Estados

nacionais têm um papel fundamental, de aumentar as “vantagens de seu país de

origem”, tornando-o mais atrativo. Teremos a oportunidade de analisar as

conseqüências desta disputa para a configuração das classes trabalhadoras

nestes países, bem como para sua organização política.

Assim, esta “globalização”, longe de garantir uma maior integração ou

equidade entre economias nacionais de diferente porte, institui uma concorrência


e uma rivalidade ainda mais acirradas nesta arena, agora global, exigindo dos

grupos oligopolistas novas estratégias e novos modos de coordenação e controle,

que sempre significa, em última instância, uma maior exploração das

desigualdades e das “vantagens” nacionais, mesmo dentro dos países que

compõem a Tríade. Como já tivemos a oportunidade de mencionar, com relação a

estas estratégias, as multinacionais norte-americanas gozam de melhores e

maiores condições de afirmação no cenário oligopolista mundial. São fatores de

diferenciação para estas multinacionais: a posição dos EUA no sistema financeiro

mundial, com mercados inigualáveis em suas dimensões e em sua diversidade, o

poderio político e militar, que estabelece uma total dependência de outros países

com relação às decisões tomadas pelos EUA e, finalmente, sua penetração

cultural, com uma produção planetária de imagens e mitos mercantilizados, tais

como o inglês como “língua mundialmente dominante”, a influência norte-

americana nas indústrias de comunicação de massas e “o ‘sonho’ projetado pela

indústria cultural do capitalismo e da mercantilização total das atividades e das

dimensões da vida social” (CHESNAIS, 1999, p. 24).

GUIMARÃES (1999) enumera, ainda sobre este debate, os principais

objetivos a serem alcançados pela estratégia norte-americana de afirmação e de

sustentação de sua posição hegemônica:

a) Implantar um sistema econômico internacional cujas normas

garantam a mais livre circulação de bens, serviços e capital;

b) Manter a capacidade de proteção de setores da economia americana

ameaçados pela competição estrangeira;


c) Induzir terceiros Estados a adotar instituições, normas de atividade e

políticas econômicas semelhantes às americanas;

d) Garantir o acesso americano direto às fontes de matéria-prima

essenciais à economia americana, em especial à energia;

e) Garantir a mais ampla liberdade de ação às empresas americanas

que atuam em terceiros países;

f) Impedir a transferência de tecnologia que permita o surgimento de

competidores efetivos nos mercados de ponta mais lucrativos.

Os grupos originários de países que, mesmo com uma posição econômica

dominante, não dispõem dos fatores hegemônicos norte-americanos, constituem e

determinam o que CHESNAIS (1999, p. 121) denominou de “competitividade

estrutural”, ou seja, deriva da “expressão dos atributos do contexto produtivo,

social e institucional do país”. Entre estes atributos, podemos chamar atenção

para:

a) A competitividade intrínseca do setor de bens de capital ou de bens

de investimento;

b) As relações dos bancos e do sistema financeiro com a indústria, pois

a capacidade de proteger e de salvaguardar o investimento está nas

mãos do sistema financeiro;

c) As “externalidades”, dentre as quais podemos incluir as infra-

estruturas e os serviços públicos, o nível de qualificação da mão-de-

obra, a qualidade do sistema de pesquisa e das infra-estruturas

científicas.
No que se refere à deslocalização da produção e à afirmação mundial

destas multinacionais, destaca-se ainda como fator importante a proximidade dos

centros produtivos com as principais bases das empresas. É até possível, para os

grandes grupos multinacionais, suportar um custo maior com a força de trabalho

de média ou baixa qualificação, desde que possam voltar a centralizar o conjunto

de suas operações perto de suas bases principais. Além do mais, o contexto de

mundialização do capital se torna tão acentuado que a ameaça do desemprego,

as políticas e teorias governamentais sobre salário e emprego e os acordos com

dirigentes sindicais garantem aos monopólios mundializados a possibilidade de

encontrar mão-de-obra qualificada barata em praticamente todo o mundo.

Sobre a deslocalização da produção, percebemos que

A mobilidade intrínseca do capital, combinada com a variedade de


soluções técnicas oferecidas e a atratividade do suprimento das
proximidades (o “just-in-time”), vai levar necessariamente a uma
variedade de esquemas de localização bem maior do que no
passado. (CHESNAIS, 1999, p. 133).

Este contexto de economia globalizada apresenta ao capital, então,

múltiplas e amplas formas de reprodução e de acumulação, demonstrando uma

flexibilidade e uma dinamicidade de difícil controle para os Estados nacionais e

suas populações. Este quadro é assim caracterizado por POCHMANN (2001, p.

15)

Nos dias de hoje, a versão mais sofisticada dessa visão teórica


renovada pode ser encontrada nas publicações de importantes
agências multilaterais que definem as possibilidades de expansão
nacional como diretamente associadas à maior integração do
mercado mundial. A desregulamentação dos mercados
financeiros, de produtos e do trabalho constitui peça fundamental
no roteiro de medidas necessárias para o melhor acesso ao
desenvolvimento econômico e à ampliação dos postos de trabalho.

Os avanços, o desenvolvimento e as opções de investimento na área de

tecnologia se afirmam como um outro fator ativo de competitividade, muitas vezes

decisivo. Neste cenário mundializado, ela se caracteriza por uma alta difusão

intersetorial, ou seja, pela capacidade de renovar a concepção de muitos produtos

e de inventar novos. Tal avanço tecnológico se constrói através de múltiplos

acordos entre diversas empresas, inclusive em âmbito intertriádico, as quais

contam com a figura imprescindível do Estado para manter sua competitividade

através da elaboração e do financiamento de amplos programas. A tecnologia e os

investimentos em pesquisa e desenvolvimento transformam-se, então, em

elementos-chave no processo de internacionalização, deixando claro o poderio

econômico destas economias. O desenvolvimento de novas tecnologias e o seu

posterior reconhecimento são elementos capazes de definir importantes espaços

no cenário globalizado, onde, mais uma vez, a hegemonia norte-americana ganha

destaque. Aos países em desenvolvimento, no que se refere a esta questão, cabe

o papel de meramente absorver uma tecnologia internacionalizada, produzida em

outra realidade societária, perpetuando, também por este caminho, uma posição

de subalternidade e de dependência.

[A internacionalização da tecnologia] inclui as medidas tomadas


pelos grupos para proteger suas tecnologias privadas e impedir
que sejam imitadas ou utilizadas sem a concordância dos
proprietários, conforme as leis de patentes e instrumentos jurídicos
internacionais, recentemente reforçados. E abrange ainda a
formação de “alianças estratégicas” internacionais entre os
grandes grupos, bem como a elaboração de normas industriais,
através de cooperação que, às vezes, começa desde a fase de
desenvolvimento tecnológico. (CHESNAIS, 1999, p. 163).

Posteriormente, teremos a oportunidade de verificar como este elemento de

internacionalização da tecnologia apresenta elementos orientadores para o grande

enigma da “globalização da cultura”.

É importante apresentarmos, ainda nesta caracterização do processo de

internacionalização do capital, reflexões acerca do crescimento e da diversificação

do setor de serviços, considerado como uma “nova fronteira” para a expansão

capitalista. Algumas atividades deste setor vivem uma internacionalização mais

antiga, como o transporte marítimo e a atividade mercantil. No entanto, as

multinacionais industriais no período contemporâneo criaram as condições e as

exigências de novos serviços internacionalizados, como a auditoria, a publicidade,

a consultoria, o marketing, etc., tendo em vista, sobretudo, o atendimento a uma

demanda aparentemente homogeneizada em torno das expectativas de consumo

do capitalismo avançado.

Esta expansão do setor de serviços num quadro globalizado encontrou

incentivo também na contenção dos serviços públicos que, em uma fase anterior,

eram os garantidores da infra-estrutura necessária para o desenvolvimento do

capitalismo. Assim, o movimento de liberalização e de desregulamentação, levado

adiante pelos mais diversos Estados nacionais comprometidos com a proposta

neoliberal, permitiu o avanço destes serviços privados, chegando a muitas áreas

antes orientadas pelos monopólios estatais, tais como as telecomunicações, os

grandes meios de comunicação de massas e os serviços sociais. Abre-se,


portanto, um novo campo para o investimento externo direto, oferecendo

oportunidades de expansão para indústrias que buscam diversificar suas ações

em direção àquela superacumulação de que falávamos anteriormente.

CHESNAIS aponta dois elementos orientadores desta diversificação:

1) o domínio que esses grupos querem manter sobre aspectos


complementares dos quais depende parte da rentabilidade de suas
operações; 2) o lugar que certos serviços continuam ocupando, em
relação ao movimento total de valorização do capital. (1999, p.
188)

Este crescimento do setor de serviços no âmbito globalizado se identifica, então,

com a necessidade de responder às novas exigências de mercado das indústrias

multinacionais. Um bom exemplo é o grande crescimento dos gastos com

publicidade, tentando atender à concorrência oligopolista e à diferenciação de

produtos, selecionando melhor a demanda e buscando condições de oferecer

serviços aparentemente personalizados.

O debate relativo ao investimento externo direto representa, portanto, na

contemporaneidade da internacionalização do capital, o principal elemento de um

quadro hierárquico que envolve, também, o comércio exterior e o fluxo

internacional do capital em seu padrão monetário. Estes dois elementos

completam, portanto, o cenário de desenvolvimento capitalista, que determinará

nossos estudos sobre a cultura.

Quando ao comércio exterior, percebemos que este constitui uma esfera

com acentuada polarização, criando um quadro de total marginalização de muito

países. O sistema mundial do comércio exterior continua altamente hierarquizado,


o que decorre de fatores econômicos, de mudanças científicas e tecnológicas e de

configurações políticas, onde pesa, sobretudo, a intensidade da intervenção

estatal nos quadros da economia nos países centrais e periféricos, através de

incentivos fiscais e do controle de taxas de importação e exportação.

O sistema mundial de intercâmbio parece reforçar alguns elementos dos

quais já tratamos anteriormente. Em primeiro lugar, as zonas mais intensas de

comércio exterior se formam em torno dos países que compõem a Tríade,

caracterizando um fenômeno de regionalização que se combina com uma

crescente marginalização dos demais países. Compõe-se então um paradigma de

concorrência ou competição, onde a competitividade de cada país designa, de

antemão, “ganhadores” e “perdedores”. Neste cenário, o sucesso de uma empresa

significa, muitas vezes, a falência ou a absorção de outras que não se

sustentaram neste quadro de competitividade e cujos países de origem, tornados

devedores externos, são diretamente afetados na relação importação/ exportação.

As multinacionais dominam, sem maiores riscos, o comércio exterior

mundial, sendo responsáveis, segundo dados da OCDE, por 40% do total de

produtos manufaturados. Entre estas multinacionais, cresce um importante

comércio “intracorporativo” ou “intragrupo”, resultante de modalidades de

integração industrial transnacional. Chesnais nos apresenta dados que afirmam

que 99% do comércio exterior dos EUA envolviam a participação de uma

multinacional americana ou estrangeira, como parte da transação.

O crescimento do comércio mundial, mas também sua subordinação à

intensidade do investimento externo direto, fizeram com que se acelerasse a

formação de intercâmbios intra-regionais e de blocos econômicos, com a


crescente criação das áreas de livre comércio. Alguns comentaristas afirmam que

esta regionalização do mundo é contraditória com uma “verdadeira” globalização,

chegando a ameaçar as propostas dominantes. Na verdade, esta ameaça não nos

parece real, uma vez que a regionalização, para os países em desenvolvimento,

tem, no máximo, um objetivo defensivo, no sentido de se configurar como um

acúmulo de forças na tentativa de se inserir, em melhores condições, no cenário

globalizado hegemônico, que anteriormente descrevemos. Ainda que,

politicamente, a formação destas regiões traga algumas particularidades

relevantes no enfrentamento aos modelos dominantes de globalização, isso não

se desenha no cenário econômico. Acreditamos que a Tabela 1, abaixo

apresentada, demonstra com clareza esta desigualdade nos processos de

regionalização em todo o mundo, onde se percebe a prevalência da América do

Norte, da Europa e da Ásia em termos de exportações intra-regionais no cenário

mundial.
Tabela 1
Intercâmbios inter-regionais
(em % do intercâmbio total da zona e em % do comércio mundial)

Zonas Exportações intra-regionais no Exportações intra-regionais no


total da zona total mundial
1986 1991 1979 1989
América do 39,1 33,0 4,6 5,3
Norte
América Latina 14,0 16,0 1,1 0,5
Europa 68,4 72,4 28,8 31,1
Ocidental
Europa Central 53,3 22,4 4,3 3,5
e ex-URSS
Ásia 37,0 46,7 6,3 10,0
África 5,9 6,6 0,3 0,2
Oriente Médio 7,7 5,1 0,4 0,3
Fonte: GATT apud CHESNAIS, 1999, p. 231.

Como mais um elemento a ser analisado no desenvolvimento deste

processo de mundialização do capital, temos o movimento específico da esfera

financeira restrita, do capital em sua forma monetária que, na verdade, representa

o encaminhamento mais imediato para o montante acumulado através do

investimento externo direto e do comércio mundial. Tal esfera conta, no mundo

contemporâneo, com uma mobilidade e uma flexibilidade surpreendentes,

construindo-se como o campo mais avançado da mundialização.

As instituições financeiras, bem como os “mercados financeiros”


(cujos operadores são mais fáceis de identificar do que faz supor
essa expressão tão vaga), erguem-se hoje como força
independente todo-poderosa perante os Estados (que os deixaram
adquirir essa posição, quando não os ajudaram), perante as
empresas de menores dimensões e perante as classes e grupos
sociais despossuídos, que arcam com o peso das “exigências dos
mercados” (financeiros) (CHESNAIS, 1999, p. 239).
Desta forma, o processo contemporâneo de acumulação do capital vivencia

uma estreita imbricação entre as dimensões produtivas e financeiras, o que se

manifesta através de diversas estratégias, onde cresce a importância das

operações exclusivamente financeiras dos grupos industriais. Nestas operações, o

capital acumulado atua livremente, com poucos controles ou freios, numa

reprodução permanente e ilimitada.

A força econômica e mesmo política alcançada por este setor fica assim

expressa, nas palavras de SANTOS (2000, p. 101).

Antes, o território continha o dinheiro, em uma dupla acepção: o


dinheiro sendo representativo do território que o abrigava e sendo,
em parte, regulado pelo território, considerado como território
usado. Hoje, sob influência do dinheiro global, o conteúdo do
território escapa a toda regulação interna, objeto que ele é de uma
permanente instabilidade, da qual os diversos agentes constituem
testemunhas passivas. A ação territorial do dinheiro global em
estado puro acaba por ser uma ação cega, gerando
ingovernabilidades, em virtude dos seus efeitos sobre a vida
econômica, mas também, sobre a vida administrativa. No território,
a finança global instala-se como a regra das regras, um conjunto
de normas que escorre, imperioso, sobre a totalidade do edifício
social, ignorando as estruturas vigentes, para melhor poder
contrariá-las, impondo outras estruturas.

É importante ponderarmos que o capital valorizado no setor financeiro,

embora encarado como atividade transnacional competitiva, tem uma origem pré-

determinada: ele é resultado de transferências, oriundas da esfera produtiva, onde

são criados os salários e os lucros como valor e rendimentos fundamentais. Este

setor se estabelece sempre com uma autonomia aparente e relativa, uma vez que

os capitais que nela se valorizam nasceram e continuam nascendo no setor

produtivo. “A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada pelo investimento e


pela mobilização de uma força de trabalho de múltiplos níveis de qualificação. Ela

mesma não cria nada” (CHESNAIS, 1999, p. 241).

Este elemento absolutamente parasitário da esfera financeira se torna ainda

mais acentuado com inovações no mercado que lhes foram garantidas pela

eliminação das regulamentações e dos controles nacionais. Assim, registram-se

altos índices de um crescimento, a princípio, incontrolável, subjugando, mais uma

vez, os números relativos à esfera produtiva, da qual capta uma parte cada vez

mais elevada da riqueza. Nas palavras de MARX (2003), como podemos

confirmar, este capital monetário representa “a forma mais alienada, mais

fetichizada da relação capitalista”. É um capital que se reproduz sem passar por

um investimento no cenário produtivo, embora tenha nele suas raízes. É um valor

que tem o único objetivo de valorizar a si mesmo.

Não é possível deixarmos de observar que este capital financeiro tem como

um de seus principais dependentes e retroalimentadores os serviços de dívida

pública, sobretudo dos países em desenvolvimento. O próprio FMI afirma que

estes títulos públicos representam o centro deste processo de financeirização.

“Seu volume de transações supera, de longe, o de qualquer outro segmento dos

mercados financeiros, com exceção dos mercados de câmbio” (FMI apud

CHESNAIS, 1999, p. 248). Tem início, a partir daí, uma “economia de

endividamento”, que tem seus sustentáculos tanto na economia norte-americana

quanto européia e que colocou todo o sistema mundial à mercê do capital rentista

e de seu poder opressivo.

Os vários elementos que envolvem o aspecto econômico da globalização

revelam uma reorganização que atinge o conjunto da sociedade em seus mais


diferentes encaminhamentos. Neste sentido, é importante ponderarmos os

aspectos ou “custos sociais” deste processo de globalização, tendo em vista

alcançar, no próximo capítulo, o debate em torno do aparato cultural.

2.2 – Os custos sociais da globalização e as novas formas de

organização da sociedade civil

Quando se considera o processo contemporâneo de internacionalização do

capital, parece-nos evidente a necessidade de situarmos, primeiramente, o quadro

da luta de classes que então se concretiza, com suas particularidades e novas

determinações, uma vez que é este quadro que define e determina a configuração

da questão social. Para tanto, é necessário compreendermos as características e

a contemporaneidade do contexto que envolve a classe trabalhadora,

apreendendo sua processualidade e sua concretude, dado o seu papel central no

modo de produção capitalista. Desde então, partimos da certeza de que, apesar

da relativa autonomização da esfera financeira, como anteriormente descrevemos,

e de todos os discursos sobre “a crise da sociedade do trabalho”24, o capital

continua absolutamente dependente do trabalho humano para que se realize seu

processo de valorização. Se quantitativamente menor e qualitativamente

diferenciada, a classe trabalhadora não perdeu, nesta sociedade, a sua

centralidade.

24
Sobre a anunciada “crise da sociedade do trabalho”, vale acompanharmos o debate apresentado
por ANTUNES, 1997, p. 75-97.
Segundo POCHMANN (2001), estamos diante de uma nova fase da

“divisão internacional do trabalho”25, onde podemos perceber, como

características mais amplas, a expansão mundial do desemprego estrutural, a

participação decrescente do emprego assalariado no total da ocupação e a

expansão de postos de trabalho precários e mal-remunerados. Na verdade, a

financeirização da economia global e o avanço, no setor produtivo, dos grandes

oligopólios mundiais realizaram uma redefinição da produção e do padrão de uso

e remuneração da força de trabalho, rebaixando-os consideravelmente. Nesta

nova fase, as atividades de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico estariam

concentradas nos países de origem das grandes corporações transnacionais, as

quais assumiriam, principalmente, as funções de comando e planejamento.

Conseqüentemente, as atividades de execução e produção, com operações mais

simples e rotineiras, e também com remunerações mais baixas, seriam

deslocadas para os países mais pobres, reforçando uma posição subordinada e

passiva à política de atração de investimentos externos.

O cenário contemporâneo reforça, portanto, a afirmação deste autor de que

a capacidade de absorção de um número maior de trabalhadores não depende

apenas do grau de expansão de cada país, mas do padrão de desenvolvimento

alcançado nacionalmente e de sua forma de inserção na economia mundial. É

assim que a economia mundial encontra-se estruturada nas relações entre centro,

semiperiferia e periferia capitalista.

25
POCHMANN (2001) nos fala de três fases da divisão internacional do trabalho, onde a primeira
se caracteriza pela introdução da grande indústria, que possibilitou a divisão do trabalho, atribuindo
a cada parte do globo papel determinado. A segunda fase, por sua vez, já no início do século XX, é
marcada pela posição de nação hegemônica sendo assumida pelos Estados Unidos e pela
reformulação do próprio centro capitalista mundial.
Entretanto, nas duas últimas décadas, o centro capitalista passou
a concentrar maior participação relativa no total do emprego
qualificado devido à difusão de uma nova Divisão Internacional do
Trabalho. Em 1997, quase 72% do total dos postos de trabalho
qualificados eram de responsabilidade dos países de maior renda,
ao mesmo tempo em que continuavam a perder participação
relativa nas ocupações não-qualificadas. Na periferia e na
semiperiferia, a nova Divisão Internacional do Trabalho tem
representado uma oportunidade adicional para maior concentração
dos postos de trabalho não-qualificados, com diminuição relativa
dos empregos de qualidade. Em 1997, por exemplo, de cada 10
ocupações não-qualificadas do mundo, 8 eram de
responsabilidade dos países de menor renda, enquanto de cada
10 postos de trabalho qualificados, apenas 3 pertenciam aos
países periféricos. Em 1980, os países periféricos e
semiperiféricos eram responsáveis por 32% dos postos de trabalho
qualificados e 84% das vagas não qualificadas. (POCHMANN,
2001, p. 35)

A partir da década de 80, podemos então considerar que esta terceira fase

da divisão internacional do trabalho ganha seus contornos mais definidos. Não só

se reafirma o poder econômico das corporações transnacionais, em números que

demonstram cada vez mais a concentração de capital26, como também se

intensifica a racionalização do trabalho, através daquela divisão de que tratamos.

Neste contexto, reafirma-se a hegemonia dos países de capitalismo central, que

encaminham a formação de redes de subcontratação, através do transplante de

partes da cadeia produtiva para os países periféricos e semiperiféricos. Estes, ao

aceitarem o programa destas agências multilaterais, acabam acarretando o

rebaixamento ainda maior do custo do trabalho e aceitando a quase completa

desregulamentação dos mercados de trabalho. Para estes países, diante de um

26
Segundo dados apresentados por POCHMANN (2001), no setor de produção de computadores,
10 empresas concentram 70% da produção mundial. Quanto ao ramo de material de saúde, 7
empresas concentram 92% da produção.
cenário marcado por uma força de trabalho de menor custo, por condições de

trabalho mais flexíveis e precárias e por uma diminuição relativa dos empregos

mais qualificados, os custos sociais da mundialização do capital se tornam ainda

maiores, elevando cada vez mais o grau de desigualdade na distribuição de renda

entre as populações dos distintos grupos de países.

A estas características da nova divisão internacional do trabalho se somam

outros elementos próprios do momento contemporâneo de reorientação do

sistema do capital, tais como a reformulação das políticas sociais e trabalhistas, a

descentralização e a focalização dos gastos sociais, a flexibilização dos contratos

de trabalho, a redução do poder sindical e o esvaziamento do quadro de direitos

sociais. Isso tudo faz com que os países de economia periférica ou semiperiférica

sofram, cada vez com maior rigor, os efeitos deletérios desta globalização.

Parece-nos desnecessário ponderar que o principal destes efeitos é o acentuado

desemprego estrutural daí resultante. Com esta configuração da divisão

internacional do trabalho, os países de centro se tornam menos vulneráveis a este

desemprego, com apenas 30% de suas ocupações mais expostas à concorrência

internacional. Por outro lado, países semiperiféricos e periféricos, ao concentrarem

suas atividades produtivas em operações de montagem mais simples e rotineiras,

ficam mais expostos à transferência destas operações e, segundo dados de

POCHMANN (2001), 70% de suas atividades são objeto de competição mundial.

Assim, temos um quadro em que, em 1999, apenas no Brasil, já tivéssemos

5,61% do total do desemprego mundial.

Diante de dados como estes, é inegável afirmar que o “mundo do trabalho”

vem passando, neste contexto de capital mundializado, por profundas mutações,


que atingem sua configuração, sua correlação de forças e suas formas de lutas

sociais27. A financeirização da economia mundial e a conseqüente subordinação

do setor produtivo aos seus interesses rentistas têm gerado uma redução do

“proletariado tradicional”, aquele caracterizado pela estabilidade e pela

especialização. Em contrapartida, aumenta o número de pessoas submetidas a

um trabalho precarizado (subproletariado moderno, part time, economia informal,

etc.) ou mesmo desempregadas.

(...) de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho


industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado. Em outras
palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial
tradicional. Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa
subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de
trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à
economia informal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se,
portanto, uma significativa heterogeneização, complexificação e
fragmentação do trabalho. (ANTUNES, 2000, p. 209, grifos do
autor).

A estrutura ocupacional no contexto da economia mundializada se alterou

significativamente. Acentuou-se uma perda de participação relativa das ocupações

industriais, que tem ocorrido mesmo em países do centro capitalista, dando

espaço ao crescimento do setor terciário. Analisando-se com mais rigor,

27
ANTUNES (2000) é enfático ao afirmar que, neste cenário, alterou-se profundamente o sentido
atual da compreensão da classe trabalhadora. Marcada por dimensões de diversidade,
heterogeneidade e complexidade, esta compreensão deve incluir, agora, a totalidade daqueles que
vendem sua força de trabalho, ou seja, desde os trabalhadores produtivos (diretamente ligados à
produção de mais-valia e à valorização do capital), que encontram no proletariado industrial o seu
núcleo, até os trabalhadores improdutivos, que através de formas de trabalho utilizadas como
serviço, pelo setor público ou pelo próprio capitalista, garantem a dinamicidade e a sobrevivência
do sistema, como um segmento em plena expansão. O autor se preocupa, ainda, em incluir nesta
“noção ampliada de classe trabalhadora”, o proletariado rural, que vende sua força de trabalho
para o capital nas mais diversas atividades.
percebemos, a partir das análises de ANTUNES (2000), que estas mudanças

operadas na estrutura ocupacional vieram agravar, ou mesmo recolocar em cena,

antigas questões no que se refere à configuração e às condições de trabalho: o

trabalho feminino vivencia uma exploração ainda mais intensificada, com a

precarização, a informalidade e os desníveis salariais; jovens e “velhos” (diante do

intenso desenvolvimento das forças produtivas, sobretudo no aspecto tecnológico,

pessoas com 45 anos, e sem a “devida qualificação”, já estão sendo consideradas

“velhas” para o desempenho exigido nos diferentes postos de trabalho) são

excluídos do mercado de trabalho, ampliando cada vez mais os contingentes do

mercado informal, do exército industrial de reserva e do desemprego estrutural;

crianças e adolescentes ainda são submetidos a uma inclusão precoce e

criminosa, sobretudo nos países asiáticos e latino-americanos. Este autor destaca

ainda a expansão do trabalho em domicílio, facilitada pela fragmentação do

processo produtivo que vem expandir pequenas e médias unidades produtivas,

em uma situação de completa subordinação ao capital, em condições

absolutamente precárias e ultrapassadas. O desenvolvimento capitalista

contemporâneo, no cenário globalizado, não só não resolveu seus antigos

dilemas, como também os atualizou, tornando-os mais perversos e excludentes.

No entanto, este desenvolvimento trouxe novas determinações,

complexificando o contexto sócio-político que podemos delinear. Uma destas

alterações é o crescimento e a diversificação do setor de serviços, aproximando

seus assalariados, cada vez mais, da lógica da racionalidade do mundo produtivo.

O setor terciário vem, assim, compensando a queda dos setores industriais e

agropecuário, nos âmbitos público e privado, mas não se desenvolve sem


contradições, pois o Estado tem reduzido seus serviços à população, sobretudo no

que tange ao aspecto social. O que se percebe, então, é o fortalecimento desta

esfera enquanto essencial para a sobrevivência do sistema capitalista em escala

mundial, e a sua privatização acelerada, ou seja, o seu crescimento enquanto

espaço de reprodução e acumulação do capital.

Como resposta a esta redução da intervenção do Estado no âmbito social é

que podemos compreender a expansão do trabalho no denominado “terceiro

setor”28. Abrangendo uma gama bastante diferenciada de organizações, este

setor, com um perfil mais comunitário, apresenta-se voltado, majoritariamente,

para atividades assistenciais, em um sentido “público, porém não estatal”, sem fins

diretamente lucrativos e funcionando à margem do mercado. Estas organizações

têm absorvido parcela significativa de trabalhadores desempregados pelo capital e

apresentam uma clara funcionalidade em relação ao sistema, desobrigando-o de

uma preocupação pública e social. Estes trabalhadores, no entanto, vivenciam

uma inserção precária e instável, muitas vezes não lhes garantindo a atenção de

suas necessidades sociais.

Esta caracterização contemporânea acerca da constituição da classe

trabalhadora, embora bastante complexificada, parece apontar para alguns traços

em comum entre os diferentes segmentos. O capital, em escala mundial, deu

continuidade e até mesmo ampliou as formas de exploração e de precarização,

além da intensificação do tempo e do ritmo de trabalho. Se a ideologia de um

aparente “fim do trabalho” ganha forças até mesmo no meio intelectualizado, não

28
Uma ampla bibliografia se ocupa, hoje, de descrever e de analisar o desenvolvimento deste
“terceiro setor”. Apenas na intenção de exemplifica-la, citamos MONTANO (2002).
nos parece restar dúvidas acerca da intensidade do processo de valorização do

capital, que só pode ser resultado de um “trabalho social concentrado”, cada vez

mais central na sociedade.

ANTUNES (2000, p. 205) retrata, assim, esta condição da classe

trabalhadora no mundo globalizado

A classe trabalhadora, os “trabalhadores do mundo na virada do


século”, é mais explorada, mais fragmentada, mais heterogênea,
mais complexificada, também no que se refere a sua atividade
produtiva: é um operário, ou uma operária trabalhando em média
com quatro, com cinco, ou mais máquinas. São desprovidos de
direito, o seu trabalho é desprovido de sentido, em conformidade
com o caráter destrutivo do capital, pelo qual relações metabólicas
sob controle do capital não só degradam a natureza, levando o
mundo à beira da catástrofe ambiental, como também precarizam
a força humana que trabalha, desempregando ou subempregando-
a, além de intensificar os níveis de exploração.

O caráter transnacionalizado do capital e de seu sistema produtivo,

principalmente com as estratégias de deslocalização e de financeirização, tem

colocado as formas particulares do trabalho numa condição de subsunção e de

estranhamento ainda mais acentuada. Com a crescente desterritorialização, a luta

de classes, num patamar mais internacionalizado, fica mais “velada” e desafia o

“mundo do trabalho” a gerar respostas, estratégias de luta e consensos “globais”,

o que, até agora, parece-nos constituir um grande desafio para o conjunto da

classe trabalhadora.

E nesse terreno, como sabemos, a solidariedade e a ação de


classe do capital está bem à frente da ação dos trabalhadores.
Muitas vezes a vitória ou derrota de uma greve em um ou mais
países depende do apoio, da solidariedade e ação de
trabalhadores em outras unidades produtivas da mesma empresa.
(ANTUNES, 2000, p. 115)

Em outras palavras, poderíamos afirmar que, em um cenário de

mundialização do capital, questões como a identidade de classe, o seu

pertencimento e a sua ação coletiva ficam mediados e enfraquecidos por uma

série de elementos, que acabam tendo um caráter desmobilizador. Se vivemos em

um “mundo do trabalho” cada vez mais “proletarizado” e “assalariado”, vivemos,

contraditoriamente, em um estágio mais avançado de alienação e de

estranhamento em relação ao capital, com “patrões invisíveis”,

transnacionalizados, com os quais temos os mínimos contatos e, portanto, os

mínimos embates. Parece-nos cada vez mais verdadeira a afirmação de que os

espaços de organização da classe trabalhadora e de construção (ou

reconstrução?) de seus projetos societários ainda apresentam uma estruturação

enfraquecida para oferecer uma alternativa global à lógica do capital.

Valendo-nos nas análises que fizemos, no primeiro capítulo, poderíamos

afirmar que as condições materiais em que as classes trabalhadoras vêm hoje se

constituindo, enquanto classe, desafiam e, ao mesmo tempo, dificultam a

construção de uma vontade coletiva, capaz de impulsionar propostas e ações

alternativas. Apesar de o internacionalismo sempre ter sido uma bandeira do

movimento operário, na prática, sobretudo sob a perspectiva social-democrata,

este movimento se limitou, em termos organizativos e mesmo reivindicativos, ao

espaço nacional e nele, na maioria das vezes, realizou sua ação. Embora

tenhamos conhecimento, historicamente, de importantes iniciativas internacionais,

elas não constituíram a orientação hegemônica da organização dos trabalhadores.


Com o quadro que anteriormente traçamos de transnacionalização do capital e, ao

mesmo tempo, de “heterogeneização, complexificação e fragmentação” da classe

trabalhadora, chega-se a afirmar que qualquer ação política e reivindicativa que

esteja reduzida aos limites nacionais parecem, neste momento, insuficientes,

fazendo com que muitos teóricos recuperem a idéia de que “uma autêntica ruptura

revolucionária com o capitalismo é impossível no quadro do Estado-nação” (BIHR,

1998, p. 118). É justamente neste contexto que acreditamos na extrema

necessidade de recuperação da perspectiva “nacional-popular” elaborada por

Gramsci, a qual, de forma alguma, se limita ao nacional ou se confunde com o

nacionalismo.

Esta falta de elementos coesionadores mais amplos no interior da classe

trabalhadora parece ficar evidente quando surgem, no contexto atual, as principais

críticas ao movimento operário, no que se refere aos seus modelos

organizacionais e ações reivindicativas. Estas críticas, oriundas dos mais

diferentes setores da sociedade, levantam como um dos primeiros elementos o

estatismo característico do modelo social-democrata. Afirma-se que, no momento

em que o Estado nacional parece ter perdido sua capacidade regulatória sobre o

capital e sobre a formação social nacional, não faria mais sentido a proposta de

exercício do poder de Estado pela classe trabalhadora, a qual deveria se voltar

para ações mais imediatas e efetivas de conquista no interior da sociedade

capitalista.

Também em termos ideológicos, o movimento operário é criticado. Com o

avanço e o fortalecimento do sistema do capital em âmbito global e,

principalmente, com o “fim do socialismo real”, o que poderia ser conhecido como
uma possível “cultura operária”, enquanto finalidade de um projeto societário

alternativo, é duramente combatida, ficando o conjunto das ações políticas das

classes trabalhadoras reduzidas a uma orientação meramente reformista e

compensatória.

(...) as organizações internacionais que subsistem (...) na maioria


das vezes de internacional só têm o nome. Seus congressos
geralmente não têm poder algum de decisão relativamente às
ações conduzidas pelas diferentes seções nacionais, que
conservam então uma total liberdade estratégica. E, por isso, elas
se apresentam como estruturas burocráticas da luta de classes
ainda mais divididas do que suas seções nacionais. (...) O
proletariado está, então, atualmente, quase desarmado para
enfrentar as novas condições materiais e institucionais de sua luta
de classe, em relação à transnacionalização do capital. (BIHR,
1998, p. 120).

Sem uma orientação política e ideológica alternativa e propositiva para

enfrentar os novos desafios da mundialização do capital, o movimento operário

encontra, portanto, limites efetivos quanto às suas práticas reivindicativas. Diante

do crescimento acentuado do desemprego, sobretudo estrutural, do subemprego,

da terceirização, do mercado informal, os sindicatos, enquanto instâncias

organizativas da força de trabalho empregada, vêem-se enfraquecidos em suas

capacidades de negociação, seja em torno de questões salariais ou mesmo de

melhores condições de trabalho. Pode-se afirmar que o movimento operário entra,

então, numa fase de ações defensivas, no sentido de tentar manter e garantir

mínimas condições e direitos trabalhistas, e não de reivindicar algo além do que já

foi estabelecido no contexto da social-democracia. Neste sentido, os sindicatos se

modificam, tentando “se adaptar” à nova reestruturação do capital.


Analisando o caso específico do sindicalismo inglês, ANTUNES (2000)

contribui com importantes elementos para esta discussão. Passando de um

momento em que sempre esteve associado à idéia de força e de estabilidade para

outro em que ficou conhecido como “inimigo central” do neoliberalismo, o

movimento operário inglês, sob as investidas do governo Thatcher, viu-se

profundamente atacado e reformulado. Primeiramente, verificou-se um declínio

dos índices de sindicalização, sobretudo no setor fabril, chegando-se a perceber

que “a fusão dos sindicatos tem sido uma das mais freqüentes respostas do

sindicalismo inglês, em face da desmontagem e da diminuição de seu número de

associados” (ANTUNES, 2000, p. 74). Foi drasticamente retraído, também, o

número de greves na Inglaterra, passando de uma média de 2412 greves em 1970

para 205 em 1994, as quais envolviam um número cada vez menor de

trabalhadores. Em termos de representatividade, percebemos também uma

diminuição dos espaços de reconhecimento dos sindicatos nos locais de trabalho.

“Somente 30% das novas empresas reconheciam os sindicatos, sendo 23% no

âmbito das empresas privadas” (IBIDEM, p. 75). Além disso, decresce

significativamente a amplitude das negociações coletivas e percebemos, ainda,

um processo de isolamento do movimento sindical, ou de uma maior aproximação

com o projeto neoliberal, quando se verifica um crescente distanciamento destas

organizações em relação à estrutura partidária.

ANTUNES menciona ainda algumas deliberações do Trades Union

Congress (TUC), em 1997, que demonstram a reorientação ocorrida nas

propostas práticas do sindicalismo inglês:

a) qualificar a força de trabalho;


b) dar-lhe maior empregabilidade;

c) manter parceria com a Confederação das Indústrias Britânicas e com

empresas no âmbito local;

d) colaborar com o “novo” ideário patronal, marcado pelas novas técnicas

de gerenciamento, pela aceitação das privatizações e pelo

reconhecimento da necessidade de flexibilizar o mercado de trabalho.

Tais deliberações seriam necessárias, neste encaminhamento, para

garantir uma “modernização do sindicalismo inglês”, de forma a “somar-se” à

proposta de hegemonia do capital.

Desta forma, num contexto de mundialização do capital, a necessidade de

uma unificação das classes trabalhadoras em âmbito global parece não ter

encontrado um direcionamento capaz de orientar, de uma forma geral, o

movimento operário contemporâneo, que ainda enfrenta especificidades culturais

e políticas que dificultam esta unificação. BIHR (1998, p. 121) nos indica, inclusive,

a importância destes limites para a própria dominação capitalista que

(...) lucra (em todos os sentidos do termo) com isso, e então


esforça-se para manter e até reforçar essas divisões nacionais e
regionais. Enfim, a DIT [divisão internacional do trabalho]
hierarquiza severamente os diferentes espaços econômicos
mundiais, coloca-os em concorrência e pode, em certos casos,
tornar contraditórios os interesses imediatos de diferentes partes
do proletariado mundial.

Como podemos perceber, a mundialização do capital trouxe consigo uma

estrutura de crise no mundo do trabalho e, conseqüentemente, no movimento de

organização das classes trabalhadoras, as quais se encontram afetadas não só


em sua formação e materialidade, mas também em “sua esfera mais propriamente

subjetiva, política, ideológica, dos valores e do ideário que pautam suas ações e

práticas concretas” (ANTUNES, 2000, p. 188). Enquanto crise de uma classe

central na produção e na reprodução da sociedade, esta acaba por se expandir

por toda a diversidade de esferas desta constituição, chegando a caracterizar uma

“crise de sociabilidade”.

Dialeticamente, portanto, esta mesma crise, que afeta o conjunto da classe

trabalhadora, faz surgir um amplo e diversificado ativismo societário,

principalmente em âmbito nacional, mas também internacional. Multiplicam-se,

como resposta às mais diversas manifestações da questão social, as experiências

de associativismo, complexificando e diversificando os aparelhos “privados” de

hegemonia da sociedade civil.

Neste momento, vale um parêntese para questionarmos alguns elementos

referentes a esta esfera da sociedade civil. Para isso, as observações de

COUTINHO (1992) nos parecem essenciais. Teríamos, segundo este autor, dois

projetos societários, para esta esfera, no conjunto das sociedades “ocidentais”, ou

seja, daquelas que, para Gramsci, apresentam uma “relação equilibrada” entre

sociedade política e sociedade civil, tendo o elemento do consenso como base de

obtenção da legitimidade. Um primeiro projeto, que o autor denomina de

“democracia de massas”, se constrói a partir de uma proliferação de movimentos

sociais de base, de um “sindicalismo combativo e politizado” e de uma “mediação

política de partidos programaticamente estruturados e socialmente hegemônicos”.

Neste projeto, ter-se-ia como objetivo a participação política organizada,

reconhecendo-se o pluralismo de interesses, mas buscando construir, a partir


dele, uma vontade coletiva majoritária, um efetivo interesse público. Em oposição

a um Estado baseado na privatização, buscar-se-ia a base em uma

democratização radical de sua estrutura, necessitando, assim, de reformas

substantivas na direção do predomínio do interesse público.

Em pólo oposto, teríamos o projeto “liberal-corporativo” (ou, simplesmente

neoliberal), onde o estímulo para a auto-organização da sociedade civil estaria

orientado para a defesa de interesses puramente corporativos, privatistas, que, em

última instância, favoreceriam a reprodução da ordem capitalista vigente. Em uma

sociedade civil deste tipo, poderíamos verificar partidos políticos ideologicamente

frágeis, com uma base social heterogênea, e sindicatos que se anunciam como

apolíticos, voltados para alcançar resultados imediatos para as corporações

profissionais que representam. Este projeto prima pela atuação do mercado na

solução dos conflitos de interesse e na atenção às demandas sociais, reduzindo o

papel do Estado como interventor econômico e “benfeitor” social. Este projeto

pressupõe uma participação social e política baixa, voltada para a atenção de

interesses personalistas e corporativos.

Esta explicação nos parece necessária para que possamos compreender

aquele impulso no ativismo social a partir dos anos 70, mas, sobretudo nos anos

90, em todo o mundo. Uma grande quantidade de diferentes associações se faz

presente nas mais diversas composições da sociedade civil, propondo práticas

alternativas que possibilitem uma intervenção sobre a ordem existente, o que não

significa, necessária e imediatamente, uma proposta de ruptura. É importante

demarcarmos, desde já, a imensa heterogeneidade que caracteriza este

movimento associativista, não apenas com relação a sua organização, mas


também quanto aos projetos societários que o constituem. Poderíamos afirmar

que o momento contemporâneo se caracteriza, em diversos países, por um

avanço de sociedades civis de tipo “liberal-corporativo”, em detrimento do projeto

de democracia de massas. Isso acontece, principalmente, pela crise de

sociabilidade que anteriormente demarcamos, onde pesa, sobretudo, o

enfraquecimento político e ideológico do projeto societário antes incorporado pelo

conjunto das classes trabalhadoras.

BIHR (1998) atribui, a estes que ele chama de “novos movimentos sociais”,

duas características mais gerais:

Por um lado, seu terreno de mobilização e as questões em jogo de


suas lutas situam-se geralmente fora da esfera imediata do
trabalho e da produção, para concernir a aspectos da vida social
que não parecem diretamente determinados pelas relações
capitalistas de produção. Por outro, seus protagonistas mantém,
em geral, uma relação de indiferença, ou mesmo de hostilidade em
relação às formas organizacionais e às referências políticas e
ideológicas do movimento operário sob hegemonia social-
democrata (BIHR, 1998, p. 143).

O principal impulso para o surgimento destes “movimentos sociais” seria o

aprofundamento de uma série de “crises sociais”, a partir das transformações

processadas no sistema do capital enquanto relação social, conforme

descrevemos anteriormente. Manifestando-se em diferentes aspectos da questão

social (realidade urbana, identidades locais, relações familiares e comunitárias,

relações de gênero, conflitos geracionais, modelos educativos, questão ambiental,

e tantas outras), uma mesma orientação fundamental estaria, portanto,

conduzindo este processo: “a maneira como essa relação social central que é o
capital informa, organiza, orienta, produz o vínculo social” na contemporaneidade

(IBIDEM, p. 147).

Estas crises, já presentes na ordem capitalista desde a fase fordista, vêm

se agravando e se complexificando com a reestruturação do capitalismo em sua

fase globalizada. Se, num primeiro momento, a intervenção estatal nestas

manifestações e, portanto, seu controle, eram mais diretos e imediatos (fase

keynesiana), com o avanço da mundialização e a crise do Estado de Bem Estar

Social, a anunciada “sobrecarga prejudicial do Estado” fez com que se

modificassem os caminhos para a solução destes problemas e para o

restabelecimento de um consenso mínimo. Assim, “o desenvolvimento e o

aprofundamento dessas crises sociais crônicas, de um lado, o fracasso de sua

tentativa de solução por intermédio de gestão estatal, de outro”, favoreceram um

maior desenvolvimento e uma ampliação destes novos organismos da sociedade

civil, os quais passaram, também, por uma refuncionalização, muitas vezes

orientada para a própria perspectiva neoliberal.

Estes movimentos e instituições, aparentemente situados fora da esfera do

trabalho e da produção29, apresentam, em geral, uma desconfiança (ou uma

descrença) para com o Estado enquanto gestor de ações públicas para o

enfrentamento dos problemas oriundos destas crises. Assim, passaram de uma

fase de ação reivindicativa em relação ao Estado, para uma fase quase

“substitutiva”, buscando garantir a reapropriação, para grupos e segmentos

29
Para BIHR (1998), existe um amplo processo de apropriação capitalista da práxis social. Por
isso, estes movimentos estão apenas aparentemente fora do trabalho e da produção.
particularmente atingidos por estas crises, de melhores condições gerais de

sobrevivência.

Independentemente daquela heterogeneidade que demarcamos, estes

movimentos passaram a ser considerados, em uma ampla bibliografia, como

representantes de uma nova “força progressista, se não revolucionária, do futuro”.

No entanto, verifica-se o surgimento e a ascensão de um grande número de

movimentos que acabam por assumir e reproduzir uma orientação conservadora

(liberal) ou, no máximo, reformista (neo-social-democrata), com ações que visam,

no máximo, uma simples adequação social e cultural da sociedade ao movimento

do sistema do capital. Estes movimentos buscam se particularizar por propostas

de “parcerias responsáveis” com o poder público, fornecendo “elementos originais”

não para a solução, mas para o contorno temporário das diferentes crises sociais

crônicas. Percebemos, também, que justamente estes movimentos mais

“funcionais” ao sistema do capital se caracterizam por um alto grau de

particularismo, ou seja, de isolamento dos interesses e das ações de um grupo

com problemas específicos, aparentemente sem conexão de uns com os outros,

favorecendo o desenvolvimento de práticas estreitamente localizadas e, na

maioria das vezes, paliativas e imediatistas.

Entretanto, é impossível negar que o surgimento destes movimentos,

mesmo quando voltados para terrenos de intervenção considerados “periféricos”

quanto à relação social restrita do capital, apresentam, também, elementos

positivos que desafiam a compreensão e a luta política contextuais. Em primeiro

lugar, é importante demarcarmos que a existência destes movimentos tende a

ampliar as noções de luta de classes e de embate político, uma vez que revela
que as condições de reprodução do capital não se restringem ao econômico, mas

se estendem à totalidade das condições sociais de existência. Assim, movimentos

e instituições voltados para questões étnicas, culturais, de gênero, ambientais,

dentre outras, quando devidamente abordadas no interior de uma perspectiva de

totalidade social, demonstram que a luta contra a exploração e a dominação

capitalistas atinge terrenos e disputas que aparentemente não tem uma relação

imediata com elas.

Esta problematização também desafia e deixa claro o conjunto de limites do

movimento operário diante desta crise de sociabilidade contemporaneamente

engendrada. O capital, enquanto relação social, tem demonstrado que seu poder

se encontra difundido em várias esferas da sociedade e que a perspectiva

estratégica para superá-lo não pode estar reduzida à tomada do poder de Estado

nem à conquista restrita de melhores condições salariais ou de trabalho. Para

tanto, é preciso uma articulação dos objetivos, dos interesses e das estratégias de

atuação de diferentes “aparelhos privados” de hegemonia da sociedade civil em

torno daquele projeto de “democracia de massas” de que COUTINHO (1992) nos

falava anteriormente. Tais ponderações são necessárias porque, como já

observamos, a sociedade civil não constitui um bloco homogêneo orientado por

um mesmo projeto societário, nem do ponto de vista classista nem ideológico. Ela

é, na verdade, a esfera do pluralismo, do confronto político e ideológico, do

enfrentamento político mais amadurecido. Assim, não basta pensarmos nos

espaços de organização desta sociedade civil para compreendermos sua

complexidade, mas nos projetos que, em seu interior, se confrontam, pois são eles

que, efetivamente, definem o perfil e a configuração hegemônica desta esfera.


A partir destas considerações, vale observarmos que importantes autores,

dos quais destacamos GÓMEZ (2001), chamam a atenção, neste momento de

avanço e reconfiguração da sociedade civil, para um inédito ativismo

transnacional, que tentaria se organizar em torno de uma complexa proposta de

globalização contra-hegemônica. Assim, desde o final dos anos 90, estamos

presenciando a mobilizações organizadas por uma diversidade de forças sociais e

políticas que buscaria repensar alternativas para a globalização do capital e seus

perversos efeitos sociais30. Estas forças estariam propondo uma redefinição das

fronteiras e do sentido da política, através de um debate mais amplo do conteúdo

e das conseqüências do processo de mundialização do capital.

Este ativismo transnacional, apesar de sua evidente heterogeneidade, tem

como alvo principal de suas críticas a extensão e a profundidade das

conseqüências negativas das políticas econômicas neoliberais sobre o conjunto

da população, não só no terreno econômico, mas também político, cultural, etc.

Procura questionar e propor a reorientação, sobretudo, do poder conquistado

pelas instituições internacionais ligadas ao grande capital, tais como o FMI, o

Banco Mundial e a OMC, enquanto setores amplos de regulação, pressão e

controle dos Estados e das economias nacionais. Esta mobilização social de

âmbito transnacional, pelo menos em suas propostas originárias, coloca-se contra

estas agências, seja para combatê-las frontalmente, seja para influir nas suas

estruturas organizacionais e/ou em suas políticas concretas.

Assim coloca GÓMEZ (2001, p.18)

30
No estudo sobre este ativismo, é referência o Fórum Social Mundial, já em sua quarta
experiência, e cuja dinâmica, estrutura e conformações políticas podem ser analisadas a partir das
informações presentes em www.fsm.com.br.
O movimento transnacional emerge, então, durante a segunda
metade dos anos 90, num contexto marcado pelas transformações
estruturais do capitalismo e da política mundial e pelas múltiplas
manifestações de descontentamento e resistência social que
geram as políticas econômicas dominantes. No entanto, ele é o
resultado de um processo de convergências progressivas e
precárias, alimentado tanto por experiências setoriais de lutas
passadas quanto pelas novas iniciativas de questionamento
político aberto à governança global neoliberal e seu núcleo
institucional mais visível.

Este autor ainda nos chama a atenção para algumas condições sócio-

históricas que teriam contribuído para o surgimento e para o desenvolvimento

deste ativismo:

a) Evolução da tecnologia de informação e comunicação, permitindo o

uso destes meios na mobilização política e na dinâmica

democratizante de contrapoder,

b) Configuração de novos centros de autoridade e de regulação para

além dos Estados nacionais, estimulando as populações de

diferentes países a influenciar em suas decisões;

c) Transformação do clima ideológico entre as elites internacionais e

transnacionais do centro, que passam a propor, diante dos custos

sociais e da fragilidade política do processo de mundialização do

capital, fórmulas mais atenuadas de liberalismo, políticas públicas

mais interventivas e maior receptividade às questões sociais

reivindicadas.

É importante observarmos que as diversas mobilizações que compõem este

ativismo transnacional não são um movimento “antiglobalização em geral”, mas


surgem e fazem parte do que se convencionou chamar de um fenômeno “mais

amplo da globalização”, compartilhando de seus problemas e demonstrando as

contradições estruturais deste fenômeno. Portanto, estas mobilizações

apresentam um potencial e, ao mesmo tempo, uma limitação que se inscrevem

“na dialética de antagonismos e conflitos inerente à configuração de um espaço

social global de poder e contrapoder em formação” (GOMEZ, 2001, p 20) e

marcado por imensas incompletudes. Assim, embora apresente um caráter

abertamente contra-hegemônico, está encoberto por grandes contradições.

(...) não são fáceis de superar os problemas analíticos, nem muito


menos os políticos, na abordagem da diversidade e do pluralismo
irredutível de identidades, formas organizacionais, níveis de
recursos, interesses, táticas e objetivos de movimentos sociais,
ONGs e grupos de ação cívica que, fazendo parte do ativismo
transnacional, não são originários de uma mesma sociedade ou
região. (IBIDEM, p. 22).

Assim, a pretensa “sociedade civil global”, além de não ter, para equilibrar

suas forças, algo equivalente a um Estado global ou uma comunidade política

global, também se constrói como uma arena muito mais ampla de conflitos, como

um espaço social marcado pela dialética histórica de combinações e relações de

forças hegemônicas e contra-hegemônicas. Portanto, antes de qualquer

perspectiva otimista acerca deste ativismo transnacional, é importante analisar

precisamente quais são as forças sociais que conduzem ou pretendem conduzir o

rumo desta proposta alternativa de globalização. Valem, pois, os questionamentos

de GOMEZ (2001, p. 13).


[Este ativismo] é uma manifestação inequívoca de crescimento da
consciência democrática e cidadã para além das fronteiras
territoriais, com implicações diretas na ascensão de uma
arquitetura alternativa de governância na política mundial? Ou se
está diante de processos de afirmação de identidades e interesses
políticos particulares que, com não poucos componentes
antiglobalizadores em geral (e não apenas antineoliberais)
orientam-se com freqüência para os próprios âmbitos domésticos e
produzem resultados que podem até reforçar práticas não
democráticas e estruturas de desigualdade da economia política
global que dizem combater?

Estas abordagens, embora tratadas de forma preliminar, nos parecem

fundamentais para compreendermos o quanto este reordenamento capitalista, em

direção a uma economia transnacional tem significado uma maior desigualdade

social para parcela significativa dos países nele inseridos. O que podemos

certamente afirmar é que, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico,

produtivo e financeiro garantido pelo modelo contemporâneo de acumulação do

capital, “a globalização do mercado não revela nenhuma tendência de igualização

econômica para a humanidade como um todo” (THERBORN, 2000, p. 79).

Em se tratando deste aspecto social em seu sentido mais restrito, o debate

mais rigoroso sobre o momento contemporâneo de desenvolvimento capitalista

num cenário globalizado insiste em chamar atenção para a contradição essencial

deste processo: um movimento que deveria minimamente remeter à noção de

integridade, de totalidade, tem significado, no conjunto da sociedade, exatamente

o seu oposto, ou seja, a divisão, a marginalização e a exclusão, com realidades de

extrema fragmentação e desintegração. Nas palavras de CHESNAIS, o que está

em desenvolvimento, no contexto global, é cada vez mais uma polarização, que

ocorre através de um duplo movimento:


A polarização é, em primeiro lugar, interna a cada país. Os efeitos
do desemprego são indissociáveis daqueles resultantes do
distanciamento entre os mais altos e os mais baixos rendimentos,
em função da ascensão do capital monetário e da destruição das
relações salariais estabelecidas entre 1950 e 1970. Em segundo
lugar, há uma polarização internacional, aprofundando brutalmente
a distância entre os países situados no âmago do oligopólio
mundial e os países da periferia (CHESNAIS, 1999, p. 37).

Esta polarização revela, dentre outras coisas, que existe hoje uma

integração altamente seletiva, ou seja, o investimento direto dos países que

compõem a Tríade não ocorre na mesma proporção quando o alvo é o conjunto

dos países periféricos ou semiperiféricos. O capitalismo mundializado continua,

desta forma, a ampliar, numa escala cada vez maior, a desigualdade e a

heterogeneidade social entre países ricos e pobres, que, durante décadas,

sustentou a teoria de uma “era dos três mundos” (DENNING, 2005). O que antes

representava, no cenário capitalista, uma marginalização temporária e definida,

transforma-se agora em uma regra, uma condição, uma desigualdade social tão

drasticamente acentuada que se apresenta, muitas vezes, como inquestionável,

impossível de ser resolvida.

LIMOEIRO-CARDOSO (2000, p. 111) destaca outro elemento importante

deste cenário:

A desigualdade social acentuou-se drasticamente nas últimas


décadas. Milhares de pessoas lutam para sobreviver sob
condições extremamente precárias, não só nos confins do mundo
e entre as legiões de perseguidos e de refugiados, mas também
onde o capitalismo se apresenta como mais próspero.

Estes efeitos negativos da nova reestruturação capitalista se prolongam

mesmo sobre os países de economia avançada, trazendo-lhes um quadro de


conflitos e de problemas sociais que anteriormente eram julgados como

“controlados” no contexto social destes países. Esta exclusão, produzida pelo

grande impacto do capital rentista no cenário internacional, não apenas cria

“zonas de pobreza”, mas, de uma forma geral, acelera uma “disseminação” e,

muitas vezes, recoloca populações inteiras num cenário de pobreza, que agora,

evidentemente, encontra-se desvinculada da questão do desenvolvimento que

demarcou o cenário econômico dos países de capitalismo periférico na segunda

metade do século XX.

Destaca-se, como já ponderamos, o desemprego estrutural como o mais

grave elemento desencadeador deste quadro. Não se fala mais de um

desemprego conjuntural e temporário, mas de algo que se prolonga por longos

intervalos de tempo e que atinge a uma parcela cada vez mais determinada das

diferentes populações. Este fenômeno, resultado evidente das novas tecnologias e

das novas formas de organização do trabalho, ocorre paralelo à precarização das

condições de trabalho e de vida daqueles que, mesmo permanecendo inseridos

no mercado, são atingidos pelo processo de flexibilização da legislação trabalhista

e social.

Para aqueles que logram permanecer empregados, a situação


também se complica. O crescimento tão significativo da mão-de-
obra excedente atua clara e eficazmente no sentido do
rebaixamento dos salários duma maneira geral. E todo esse
processo se faz presente também no nível da formulação política,
dando forma às propostas de precarização das relações de
trabalho, por meio das quais se pretende reduzir ao limite mínimo
e, se possível, abolir direitos e garantias que o trabalho havia
conquistado no momento anterior do desenvolvimento capitalista,
em que as relações de forças eram outras. (LIMOEIRO-
CARDOSO, 2000, p. 115).
Neste contexto, a dicotomia norte/ sul ameaça ambos os pólos com a

“condição de pobreza” para os que não conseguem, pelos mais diferentes

caminhos, se integrar à economia mundial”. Ações emergenciais são esperadas e

propostas por parte do poder público, com vistas a criar estratégias de

enfrentamento da pobreza que sejam capazes de reordenar a estrutura societária

mais ampla e amenizar conflitos ainda compostos no âmbito nacional. O Estado,

em seu modelo neoliberal, acaba por se defrontar com uma parcela da população

que, a cada dia, depende mais das políticas sociais por ele oferecidas, ainda que

precárias e insuficientes. A necessidade de manter uma “clientela política” que lhe

garanta um consenso mínimo será um dos principais motivos para a permanência

destas intervenções públicas (LAURELL, 1995).

O redimensionamento dos negócios internacionais e mesmo a

intensificação do fluxo de capitais desde meados dos anos 80 não têm gerado,

para os países de capitalismo periférico e semiperiférico, profundas e significativas

mudanças na diversidade de seus desenvolvimentos. O que podemos observar é

que a desigualdade global entre países, e mesmo dentro de cada país, tem

aumentado consideravelmente31, neste cenário de capital globalizado.

Nos países periféricos ou semi-periféricos, observa-se, portanto, uma

preocupante contradição entre a homogeneidade na produção e a

heterogeneidade nas condições sociais. Graças às inovações tecnológicas,

organizacionais e gerenciais, estes países podem produzir bens e serviços

absolutamente compatíveis com as exigências e orientações do capital

31
Autores afirmam que o caso do desenvolvimento econômico do Leste Asiático é um fenômeno
totalmente marginal por determinações econômicas e políticas que não teremos, infelizmente, a
oportunidade de tratar aqui.
globalizado, garantindo, portanto, o pleno desenvolvimento do comércio exterior e

do investimento externo direito. No entanto, a força de trabalho, formal ou

informalmente empregada32, vivencia um quadro social cada vez mais

comprometedor, onde a condição de pobreza se desenvolve e se aprofunda.

Esta situação é assim descrita por GÓMEZ (2000, p. 154):

As conseqüências negativas que daí decorrem são hoje


amplamente reconhecidas, indo desde o aumento do fenômeno da
exclusão social e espacial (grupos e categorias sociais, zonas,
países e até continentes que, rapidamente, tornam-se irrelevantes
porque não conseguem integrar-se à dinâmica da economia
mundial), passando pela brutal concentração de renda, o
achatamento salarial, o desemprego estrutural, a flexibilização dos
direitos sociais e o sentimento generalizado de insegurança no
trabalho, o debilitamento das antigas identidades e formas de
solidariedade de classe, e chegando até o crescimento das
correntes migratórias internacionais, a intensificação da
degradação ambiental, o consumismo desenfreado e o
fundamentalismo reativo de afirmação de identidade dos não-
incluídos.

Diante deste quadro, as recomendações dominantes, feitas pelas

instituições internacionais, insistem, ainda hoje, nos elementos básicos do ideário

neoliberal: a necessidade de se apostar no papel (auto) regulador do mercado e

nos aspectos nocivos da intervenção do Estado. Este último deve, portanto, ter

uma intervenção limitada à produção de externalidades para o pleno

desenvolvimento capitalista do mercado e a uma atuação puramente emergencial

no que tange ao enfrentamento da pobreza. SALAMA (2000) insiste em apontar

para o equívoco inerente a estas recomendações, uma vez que um crescimento

durável, capaz de modificar profundamente o desenvolvimento de uma sociedade

32
Salama (2000) nos chama a atenção para o crescimento do número de pessoas nos empregos
informais de estrita sobrevivência.
não é “naturalmente” o produto de uma liberalização forte e repentina da

economia.

Muito pelo contrário, o que podemos perceber com mais clareza é que a

profunda deterioração de toda uma série de serviços públicos, sobretudo nos

países periféricos e semiperiféricos, contribuiu para o agravamento do quadro de

degradação social e de pobreza. Por outro lado, verificamos que, nos países com

uma maior capacidade estatal para assegurar um padrão de igualdade, de

segurança e de estabilidade social, os índices de desigualdade tendem a ser

menores.

Entre as economias desenvolvidas ou em desenvolvimento há


uma correlação positiva entre intervencionismo do Estado e a
igualdade de renda (...). E a capacidade dos Estados em fazer o
que seus cidadãos ou seus dirigentes desejam, diante da
crescente interdependência global, é talvez a questão mais
acalorada de todos os debates acerca da globalização.
(THERBORN, 2000, p. 83).

Discutir esta controvérsia acerca da “crise do Estado-nação” e a

“globalização da política” é o desafio ao qual nos propomos no próximo item deste

capítulo.

2.3 – Soberania nacional e mundialização do capital: afinal, onde está

o poder?

Uma das idéias mais difundidas no debate político contemporâneo é aquela

que apresenta os mercados financeiros internacionais e as corporações

transnacionais como as instâncias mais capacitadas para a regulação social,

construindo-se como mais fortes e mais eficazes do que os mais poderosos


Estados. Em outras palavras, parece ganhar força um movimento prático e

intelectual que torna sinônimos a “globalização da política” e a “crise do Estado-

nação”. Este último passa a ser apresentado como uma organização territorial

ultrapassada e ineficaz para a regulação das atividades econômicas nacionais e

deve assumir um papel cada vez mais periférico, tornando-se “simples autoridades

locais do sistema global, encarregadas da proteção, da infra-estrutura e dos bens

públicos considerados essenciais pelo capital internacional” (GOMEZ, 2000, p.

130).

Este debate parece apontar para uma crescente perda de importância de

unidades políticas territorializadas e “soberanas”, onde a configuração do poder

decisório mundial teria se autonomizado e perdido as referências a um território

específico. O cenário internacional estaria politicamente demarcado por diferentes

sujeitos sociais coletivos, não se podendo mais dar exclusividade ou prioridade

aos Estados nacionais, uma vez que estaríamos diante de uma realidade de

“soberania transnacional” que teria a capacidade de dissociar nacionalidade de

cidadania33.

ALMEIDA (2003, p. 67) reconhece um certo eurocentrismo nestas

afirmações, demarcadas, ademais, por um forte caráter ideológico. Em suas

palavras,

Talvez estes reparos ao paradigma “realista” no estudo das


relações internacionais se centrem – e de modo exageradamente
otimista – no processo europeu ocidental. É também provável que

33
LADISLAU DOWBOR (2003), ao questionar se “os EUA preocupam?”, chega a afirmar que,
neste momento, todo o mundo nos preocupa, pois, “na era global, somos todos cidadãos do
planeta”.
esta unilateralidade tenha contribuído para que os teóricos do “fim
da soberania” e do “declínio do Estado-nação” não levem em conta
a extraordinária performance do Estado nacional norte-americano
no cenário internacional.

Assim, compartilhamos com este autor as afirmações de que, para

realizarmos uma análise deste momento histórico capaz de superar a perspectiva

de um “mundo do imediato”, é preciso um retorno, a partir de novas

determinações, ao paradigma do imperialismo. O mesmo movimento que fizemos,

na análise do campo econômico, nos parece necessário agora, na abordagem da

esfera política.

Este paradigma nos parece vital para que possamos evitar tanto

concepções estatocêntricas quanto globalistas acerca das sociedades

contemporâneas. As primeiras tendem a fecundar nacionalismos que se

sustentam em uma concepção acrítica e fortemente ideológica de soberania,

relacionando-a com o “Estado soberano”, representante de uma “nação” de onde

se pode abstrair a diferença e a luta de classes. As últimas, por outro lado, se

dirigem a pensar, como já afirmamos, a reconfiguração do Estado sob a

hegemonia do grande capital mundializado e das propostas neoliberais, tendendo

a visualizar a soberania e o Estado nacionais em uma fase terminal, que dará

lugar a um plano mais amplo de “política”, agora em bases transnacionais. Evitar

estas duas concepções significa, portanto, evitar o erro primário e simplório de,

para se opor à idéia da “globalização da política”, propor o retorno a um

nacionalismo sem ponderações ou críticas, como se este guardasse as

perspectivas mais desenvolvidas de conformação societária. Uma experiência

muito mais ampla de desvelamento crítico precisa ser, então, encaminhada.


O principal alvo de crítica do capital globalizado para a intervenção estatal é

o modelo construído sob a égide do Estado de Bem Estar Social, em sua versão

socialdemocrata, entendido como o mandatário da regulação econômica nacional,

do pleno emprego, do crescimento sustentado, da produção e do consumo de

massas e do compromisso de classes através de acordos tripartites (empresários,

sindicatos e Estado), compondo o que OFFE (1989) chamou de “capitalismo

organizado”. Para fazer frente a esta estrutura de regulação e intervencionismo

estatal, o conjunto de reformas econômicas e políticas neoliberais é estruturado

para reorganizar e reproduzir o sistema do capital, de forma que este possa se

afirmar, agora, no contexto globalizado, sem interferências ou controles políticos

nacionais mais diretos.

Se esta refuncionalização do Estado é hoje apresentada, ideologicamente,

como um processo irreversível, não se pode, de forma alguma, como já

afirmamos, acreditar num movimento unívoco, cujos resultados sejam

necessariamente positivos. O mesmo movimento que garante um fluxo crescente

de capitais, mercadorias, tecnologias, pessoas, idéias e valores garante também,

orientado pela lógica do sistema do capital, uma fragmentação que dá origem a

nacionalismos étnicos, fundamentalismos religiosos, guerras, desigualdades

crescentes entre países, xenofobia, racismo e pobreza. Para esta contradição

entre globalização e fragmentação, os Estados não podem continuar

apresentando uma mera atuação residual, sob pena de contribuírem ainda mais

para a “fenomenal desordem” mundial, da qual os recentes conflitos internacionais

são apenas a ponta do iceberg.


Desta forma, ambas as concepções são limitadas para a compreensão do

cenário político contemporâneo e acreditamos que, para superá-las, é preciso

recuperar uma abordagem do Estado, na sociedade capitalista, como

“organizador, inclusive no plano ideológico, da dominação burguesa de classe”.

Com este objetivo, o Estado, seja em sua versão nacional ou em sua perspectiva

“globalizada”, se construiu a partir de uma estrutura hegemônica onde sempre

tiveram papel fundamental as frações ligadas ao denominado “capital

internacional”.

É preciso, então, questionar esta configuração neoliberal do Estado a partir

de elementos históricos e conjunturais que problematizam a questão do Estado-

nação e de seu compromisso ou vinculação com bases territoriais e nacionais. A

primeira constatação a fazer é que o próprio sistema de Estados nacionais veio

“de fora”, a partir de acordos mútuos que “consagraram o princípio da não

interferência externa entre os Estados” (GOMEZ, 2000, p. 142). Assim, a própria

“doutrina da soberania” dependeu de acordos que criaram, desde cedo, uma

dimensão internacional para o poder político e para o desenvolvimento econômico

que ele buscava sustentar. Tendo em vista o caráter de classe do Estado

capitalista, ele sempre se valeu desta dimensão para fazer prevalecer os

interesses do capital, este sim, conforme estudamos, sempre internacionalizado.

A sociedade anárquica de inter-relações externas entre os estados


(esse mundo de entidades auto-suficientes, em que cada uma age
sob sua própria vontade, mas ficam todas limitadas pelo mútuo
reconhecimento e pela obrigação de não interferir nos assuntos
internos das outras) foi, assim, a pré-condição para um efetivo
monopólio de poder interno (IBIDEM, p. 143).
Da mesma forma como este “estatismo” é profundamente marcado por

traços ideológicos, também o é a própria idéia conservadora de nação, que

sempre foi uma idéia construída, com a pretensão de atender a objetivos de

classe bastante específicos. O que demarca esta idéia, sob uma perspectiva

conservadora, é uma pretensa homogeneidade cultural, uma nação apolítica,

anterior à formação do próprio Estado, e que delimitaria os que compartilham de

um mesmo “conjunto comum de significados e entendimentos políticos

historicamente específicos” (GOMEZ, 2000, p. 144). Daí constrói, portanto, uma

comunidade imaginária que, na maioria das vezes, se estabelece de forma

conservadora, buscando desqualificar ou mesmo ocultar a diferença e a luta de

classes em seu interior. Assim, considerar a “nação” como o sujeito exclusivo da

soberania é ignorar a dimensão ideológica que demarca esta própria idéia.

O moderno Estado nacional, instituído a partir de um pacto internacional

claramente orientado pelos interesses capitalistas em expansão, seria constituído

a partir de princípios normativos centrais, a saber: territorialidade, onde o poder do

Estado atuaria sobre um espaço territorial fixo e exclusivo; soberania, onde ficaria

estabelecido o direito incontestado e exclusivo de supremacia para governar;

autonomia, que tornava os Estados modernos livres de qualquer intervenção ou

controle externos para conduzirem e decidirem seus assuntos internos e externos

e legalidade, que estabelecia um direito internacional para orientar a relação entre

os diferentes Estados. É interessante observarmos que tais princípios foram

estabelecidos por um pacto internacional, que pressupunha, desde o início, uma

relação entre diferentes nações que determinasse o grau de poder e de soberania

de cada Estado em particular. É preciso observar também como estes princípios


normativos são construídos a partir de uma perspectiva linear da esfera política,

como se ela não se estruturasse em razão de uma base material especifica e

heterogênea. Em outras palavras, a territorialidade, a soberania, a autonomia e a

legalidade nunca foram as mesmas para os mais diversos Estados nacionais,

relacionados, desde então, com um conjunto de relações econômicas

historicamente desiguais.

No entanto, a instituição de um Estado territorial, administrado por um poder

central, foi apenas o primeiro passo para a constituição do aparato administrativo

que hoje conhecemos e que vem sendo tão questionado pelos processos políticos

hoje em curso. Para garantir a legitimidade das ações deste Estado, era

necessária a construção de uma idéia homogeneizadora, uma base de integração

social capaz de acelerar os processos de destruição das relações pré-capitalistas

e de consolidação da burguesia como classe politicamente dominante. Assim é

que, no final do século XVIII, o Estado moderno e a nação moderna se fundem

para formar o Estado-nação. Inaugura-se aí toda a força política, social e

ideológica que o nacionalismo terá nos séculos XIX e XX. Neste sentido, é

importante recuperarmos o que afirma HABERMAS (1997, p. 281):

A consciência política da pertença nacional surge de uma dinâmica


que só atingiu a população a partir do momento em que esta foi
mobilizada e individualizada através de processos de
modernização econômica e social que a libertaram dos laços
sociais corporativos.

Para uma melhor compreensão da importância desta perspectiva nacional a

partir do século XIX, vale observarmos que ela representa, inclusive, um ponto de
inflexão no próprio sentido do termo nação. No vocabulário romano, “nação”

significava apenas um grupo de descendência comum e era um termo com

sentido negativo, usado para se referir aos pagãos, aos estrangeiros e a grupos

de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político, “sem rei e sem lei”.

Sua oposição era o termo “povo”, o qual se referia a grupos de indivíduos

organizados institucionalmente e que, sob esta condição, obedeciam a normas,

regras e leis comuns (CHAUÍ, 2000). Assim, enfatiza-se neste momento uma

concepção pré-política de nação, referindo-se a comunidades organizadas apenas

por relações de parentesco. Atribui-se ao termo uma naturalidade imaginária e, de

certa forma, inevitável e inquestionável. O indivíduo possui uma nacionalidade

herdada através da pertença a uma comunidade pré-política, integrada através da

descendência, da linguagem comum e das tradições comuns.

É esta a concepção de nação recuperada pelo Estado moderno e

convenientemente modificada pelo contexto de desenvolvimento das sociedades

modernas nos séculos XIX e XX. A partir de então, nação passou a significar a

fonte de soberania do Estado, a comunidade democrática intencional, a fonte de

identidade política dos sujeitos, o espaço onde ocorre a “passagem do status de

súdito para o de cidadão”, o palco da participação política efetiva. O Estado recém

formado precisava do consentimento prático da população e foi, aos poucos,

incorporando o termo nação ao vocabulário político com este outro significado: a

nação construída através da responsabilidade, do trabalho, do envolvimento de


todos com a sua prosperidade. Do “princípio da nacionalidade” aos dilemas da

“questão nacional” 34 , fica claro que

Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um


lado, incluir todos os habitantes do território na esfera da
administração estatal; de outro, obter a lealdade dos habitantes ao
sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior
de cada classe social, as tendências políticas antagônicas e as
crenças religiosas disputavam essa lealdade. (CHAUÍ, 2000, p.
17).

É no contexto desta redefinição da questão nacional que a perspectiva da

cidadania é definitivamente incorporada como condição daqueles que

compartilham de um sentido de nacionalidade e de pertença a um Estado.

Posteriormente, a este sentido somou-se o status de pessoas dotadas de direitos

e de deveres ou de responsabilidades cívicas para com sua comunidade.

Um “nacionalismo adquirido”, nos termos de HABERMAS (1997) passa a

ser o principal elemento de uma identidade coletiva propícia ao papel de cidadão.

Tal nacionalismo vai encaminhar a prática das pessoas no processo de

participação na vida pública e de luta pela conquista de seus direitos civis,

políticos e sociais. É no interior das nações, no desenvolvimento destes dois

séculos, que os diferentes grupos, classes e movimentos sociais procurarão

alcançar melhores condições sociais de vida, maior participação política,

liberdades individuais, garantias democráticas de autonomia e controle sobre suas

34
Valendo-se das observações de HOBSBAWN, CHAUÍ (2000, p. 16) mostra que a incorporação
do debate sobre nação no vocabulário político foi sendo feita gradativamente a partir de 1830.
Assim, ela estabelece três períodos deste processo: 1) 1830 a 1880, quando se fala em “princípio
de nacionalidade”; 2) de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional” e 3) de 1918 a 1950, quando a
ênfase é na “questão nacional”.
próprias vidas e das coletividades nas quais estão inseridos. Nas palavras de

GOMÉZ (2000, p. 53)

(...) a democracia como forma de governo e a cidadania


democrática como meio privilegiado de integração social na
comunidade política estão inexoravelmente, “territorializadas” em
virtude de sua vinculação histórica e teórica com a figura do
Estado-nação, e conseqüentemente, com a ordem internacional
baseada nos princípios e normas de Vestfália.

Questões como a ampliação ou a redução de direitos

sociais, a extensão do sufrágio, as virtudes cívicas

necessárias ao cidadão, a construção de uma esfera pública,

a noção de bem público, a existência de grupos oprimidos a

demandarem um tratamento diferenciado, tudo isso e outros

tantos dilemas das diferentes concepções de cidadania

surgem e se constituem como problematizações no interior

do Estado-nação e, até as últimas décadas do século XX,

serão por ele enfrentadas.

A possibilidade e a necessidade de retomarmos os

elementos-chave do debate sobre o imperialismo se colocam

neste momento e apresentam, desde então, uma contradição

substancial. Por um lado, a idéia construída de um

nacionalismo ocidental, que fortalece laços pré-políticos, mas

que, ao mesmo tempo, estabelece elementos de pertença e

de exclusão em limites territoriais e políticos absolutamente

rígidos. Por outro, a rigorosa proposta do imperialismo


enquanto processo de acumulação capitalista em escala

mundial, dividindo o mundo em esferas de influência e de

dominação das grandes potências da Europa em uma

característica luta intercapitalista. O capitalismo, mesmo no

momento de hegemonia da perspectiva do Estado-nação, se

sustentou por relações internacionais de dominação

econômica e a atenção aos seus interesses sempre foi

prioridade no cenário marcado pela orientação e pela prática

imperialistas.

A própria perspectiva do Estado-nação, somada aos elementos do

nacionalismo e da democracia participativa, que a lógica do capital globalizado

insiste em desqualificar é, em si, uma perspectiva absolutamente questionável.

Em primeiro lugar, porque tal comunidade política é um ideal que nunca se

realizou completamente, pois o trinômio soberania/ nacionalismo/ democracia foi

repleto de momentos ambíguos, em que se combinaram elementos de coerção,

persuasão ideológica, limites à participação e prevalência de interesses

imperialistas. Em segundo lugar, porque, de fato, construiu-se historicamente um

sistema internacional que definiu, ainda que de maneira velada, as orientações

políticas, econômicas e sociais nos mais diversos territórios, fazendo com que a

soberania e a autonomia dos Estados nacionais fossem constantemente

relativizadas. Este sistema internacional, como podemos ponderar, foi construído

e se encontra sustentado pela lógica do capital e a partir dela é que se

desenvolveram os consensos, os dissensos e as correlações de forças que

orientaram até mesmo todo o período do “capitalismo organizado”.


Portanto, falar da “crise do Estado-nação” é um risco, uma vez que oculta

estas assimetrias e estes embates hegemônicos que acompanharam as relações

capitalistas internacionais. É preciso, assim, recuperar a idéia de que uma série de

determinações externas às formações sociais nacionais sempre orientou os

Estados nacionais e que isto persiste até os dias atuais. É uma ilusão pensar que,

diante deste novo momento de um velho imperialismo, todos os Estados perderam

soberania e todos os territórios se desmancharam na onda da globalização. Valem

os questionamentos de ALMEIDA (2003, p. 72)

Um mundo sem soberania na época da hegemonia do “império”


americano? (...) Fim dos territórios quando existe um muro nada
virtual para controlar o ingresso de proletários, ou, na expressão
de Michael Löwy, “pobretários”, no território da maior potência
planetária? Fim da soberania do Estado nacional, quando os
próprios dirigentes da política externa norte-americana explicitam
que lhes cabe decidir quando ou não atuar segundo deliberações
tomadas no interior da ONU?

O momento do Estado nacional foi, portanto, o momento em que a

dominação burguesa necessitou se apoiar na ideologia da “soberania do povo-

nação”. Da mesma forma, quando esta ideologia não mais responde aos

interesses do grande capital, cabe apresentá-la como algo anacrônico e

ultrapassado, onde soberania deve estar, portanto, subordinada a proposta de

“modernização” e “atratividade para o mercado”. Assim, estatismo e globalismo

são duas faces de uma mesma moeda, disposta a dar sustentação política ao

pleno desenvolvimento do sistema do capital. A partir destas idéias, ALMEIDA

(2003) nos chama a atenção para o risco de “surtos acríticos de estatismo” que

pode atingir, inclusive, os setores mais progressistas de uma sociedade.


Diante destas considerações, quais seriam, então, as verdadeiras

particularidades contemporâneas da tão divulgada “globalização da política”? Até

que ponto ela demarca, realmente, uma nova fase nas relações políticas em todo

o mundo ou até que ponto ela é apenas mais um momento de reorientação

ideológica da política sob a hegemonia do sistema do grande capital?

Neste que preferimos chamar de “novo cenário imperialista”,

pensar a configuração do Estado e da política, sem cair

naquele risco de “estatismo”, significa, acreditamos,

problematizar estas diferentes relações hegemônicas, intra e

entre nações, configurando-as no contexto de

desenvolvimento capitalista que anteriormente demarcamos:

Estado, sociedade civil e política estão, agora, mais vivos do

que nunca, embora reconfigurados, e constroem novos e

constantes enfrentamentos.

Um elemento relevante que podemos observar neste cenário é a expansão

de padrões de internacionalização dos processos decisórios e de mundialização

das atividades políticas. Da mesma forma como orientam as economias nacionais,

as organizações e instituições internacionais têm assumido, com muito mais

freqüência e intensidade do que no período anterior, o poder de decisão sobre as

regras e os princípios políticos de cada país. Constituem verdadeiros “diretórios

globais” que, tendo em vista o acirramento da interdependência econômica,

impõem suas condições, principalmente aos países de capitalismo periférico e

semiperiférico.

Assim explica GOMEZ (2000, p. 160)


(...) emergiram novas formas de política multilateral e
transnacional, com diferentes estruturas decisórias envolvendo
governos, organizações intergovernamentais e uma vasta gama de
grupos de pressão transnacional e organizações não-
governamentais. (...) Nesse universo heterogêneo de formas
associativas destacam-se aquelas organizações e agências que,
pela centralidade das questões estratégico-militares e econômicas
abordadas, revelam uma clara estrutura e exercício assimétrico de
poder sobre o controle das regras, recursos e políticas de alcance
global.

Como um dos fatores fundamentais neste processo de internacionalização

dos padrões políticos decisórios, destaca-se o fortalecimento do chamado “direito

internacional”. Este se caracteriza por um sistema de regulação que reconhece

poderes, direitos e deveres que se colocam acima da configuração nacional de

cada Estado, tendo conseqüências diretas sobre a ação dos indivíduos e da

própria sociedade civil. GOMEZ (2000) destaca três áreas que teriam hoje este

alcance global: direitos humanos, democracia política e meio ambiente.

Se o reconhecimento destes “direitos internacionais” pode indicar um ponto

positivo no processo de globalização em curso, apontando para a possibilidade de

uma emergente “sociedade civil internacional” e uma “política global a partir de

baixo”, isto não ocorre sem contradições. Parece-nos ainda extremamente frágil

falar de uma internacionalização de direitos quando estes ainda estão submetidos

e limitados pela lógica do capital. Assim, ainda vivemos um momento em que não

se alcançaram, em nenhuma das três áreas, mas sobretudo no que tange aos

direitos humanos, condições mínimas para uma efetiva tutela internacional,

faltando não só uma institucionalização destes direitos, como também uma

orientação unívoca do que realmente possa compô-los. Assim, também acontece


com a noção de uma “verdadeira democracia política” internacionalizada, onde

percebemos não só governos abertamente antidemocráticos, mas também

defesas não consensuais em torno do que seria uma “nação democrática” e

relações marcadamente ditatoriais nas relações entre os Estados. No caso do

respeito ao meio ambiente, isto se torna ainda mais evidente, uma vez que,

apesar de toda a movimentação planetária em torno de sua defesa, vivemos uma

verdadeira “crise ecológica” (BIHR, 1999), com a exploração cada vez mais

acelerada dos recursos naturais, os constantes riscos de desastres ambientais,

ameaças de utilização de armas nucleares e relações, também neste sentido,

orientadas pelo padrão imperialista.

Desta forma, se muito vale a mobilização internacional em torno destas

questões, ela ainda está longe de produzir efeitos significativos no cotidiano da

vida social nos mais diferentes países, sobretudo quando não se unifica em torno

de um projeto societário alternativo ao sistema do capital. Poderíamos inclusive

afirmar que esta mobilização ainda se localiza no âmbito do que Gramsci

chamaria de um “subversivismo esporádico”, carecendo de significativos

elementos para alcançar uma necessária organicidade.

Este debate conduz a questionamentos relativos à configuração e à defesa

da democracia política no quadro deste capitalismo globalizado. Em outras

palavras, quais seriam hoje os centros de poder e que classes ou segmentos

teriam, democraticamente, participação e força política em sua dinâmica? Este

processo de mundialização do capital, como tivemos a oportunidade de observar,

se estabelece sobre um suposto distanciamento entre o poder econômico e o

espaço político. O primeiro se expande e se fortalece com um alcance planetário


cada vez mais intenso, onde as grandes corporações financeiras conquistam

poderes cada vez maiores e mais amplos. Por outro lado, os principais jogos e

recursos de poder político ainda continuam restritos às fronteiras territoriais, e a

democracia só se sustenta como forma de governo legítima nos limites do Estado-

nação.

O que se questiona, portanto, é que alcance efetivo tem a democracia

quando está condicionada à posição que os Estados ocupam na hierarquia política

e econômica global, quando a maioria dos Estados se encontra reduzida em sua

capacidade de ação em torno de políticas autônomas. Assim questiona BORON

(1999, p. 34)

Como compreender, à luz das normas democráticas, que há


alguns [mercados] que votam todos os dias, ao passo que a
esmagadora maioria da sociedade o faz uma vez a cada dois
anos? Até que ponto pode ser considerado democrático um
Estado que consente com tamanha desigualdade no exercício dos
direitos políticos. No melhor dos casos, se trataria de uma
democracia sumamente defeituosa, apenas uma tanga para
dissimular a vigência de um regime fortemente oligárquico em sua
estrutura e funcionamento.

Desta forma, apesar da grande multiplicidade de sujeitos coletivos que se

organizam contemporaneamente “para além do Estado” e apesar de uma

reestruturação da agenda política internacional, caracterizada por novas tensões,

contradições e articulações, percebemos o risco de um esvaziamento efetivo do

debate e da ação política, mesmo num contexto de aparente tendência à

universalização da democracia. Constrói-se, neste cenário político,


(...) um poder sem sociedade, que tende a engendrar sociedades
sem poder e Estados em crise, e que desacredita a política
submetendo-a às exigências de mobilidade, flexibilidade,
privatização, desregulação, redução dos gastos públicos, sociais e
salários, vale dizer, tudo aquilo que é considerado indispensável
para o livre jogo da lei do mercado. (GORZ, apud GOMEZ, 2000,
p. 122-123)

Esta reorientação estrutural da política, em âmbito internacional, questiona

as bases tradicionais sobre as quais estávamos acostumados a pensar o Estado,

a sociedade civil e a estrutura societária mais complexa. Se for verdade que o

capitalismo, mesmo quando alcança sua configuração mundializada, não dispensa

a figura do Estado, ele o rearticula com fronteiras cada vez mais porosas. Estes

Estados, que guardam, mesmo assim, imensos poderes, encontram-se

submetidos a uma multiplicidade de demandas, questionamentos e

condicionamentos, com normas e compromissos internacionais, com novas

competências, recursos de poder e modos de coordenação. Além disso, ao se

constituírem como o locus onde se revelam os efeitos sociais perversos da

globalização, são desafiados, por diferentes sujeitos coletivos, a apresentarem

respostas que estejam além das práticas meramente emergenciais e apontem

para a construção de efetivos projetos societários alternativos.

A política se recoloca, então, como a esfera da representação de interesses

e, na análise de diversos autores, o desafio é reconstruí-la na perspectiva de uma

“outra globalização”.

Ora, rejeitar a globalização, pretender resistir a ela nacionalmente,


conduz infalivelmente a capitular frente a esta globalização. Não é
contra a globalização que tem que se lutar para procurar sair dela,
é no contexto da globalização em curso que é preciso lutar por
uma globalização diferente. A resistência ao capital transnacional
só pode ser ela mesma transnacional; a resistência aos atores
desta globalização exige, ante tudo, atores de outra globalização,
guiados por uma visão, uma solidariedade, um projeto de
civilização planetária. (GORZ apud GOMEZ, 2000, p. 125-126)

É nesta orientação que se insere, organizada em torno do que se

denominou de uma perspectiva “republicana cosmopolita”, parcela significativa

daquela “sociedade civil global” de que falávamos anteriormente, que defende a

necessidade de “civilizar e democratizar a globalização”, criando-se estratégias de

autoridade, legitimidade e participação política capazes de se sobrepor e, até

mesmo, regular a estrutura do capital mundializado.

Esta perspectiva, na análise de GOMEZ (2000), recupera a idéia de uma

comunidade política coletivamente autodeterminada, porém não mais a identifica

como localizada exclusivamente nas fronteiras nacionais. A emergência de vários

“lugares de poder” e a politização crescente de uma série de “questões-chave

supranacionais” apresentaria, assim, a necessidade de um duplo processo de

democratização, que atingisse, ao mesmo tempo, o âmbito nacional e os âmbitos

regional e global. Trata-se, portanto, de potencializar estes diversificados “espaços

de poder”, garantindo representação, participação e poder de deliberação para

assegurar a expansão de uma “nova esfera pública”, que possa envolver as

questões relevantes em âmbitos ampliados. No entanto, a potencialização de

amplos setores desta “sociedade civil global” não pode estar restrita ao que

Gramsci denominou de “pequena política”, ou seja, a questões “parciais e

cotidianas” que pouco ou nada interferem no direcionamento mais amplo, na

“grande política”, que, exercida exclusivamente pelos grupos e classes


dominantes, possibilitam as macro orientações de uma sociedade. Nas palavras

de CAMPIONE (2003, p. 61)

A dispersão, a falta de articulação com outros espaços que não os


do próprio setor ou “tema”, o isolamento e a inorganicidade –
coisas que muitos saúdam em nome da diferença ou da
“tolerância” – só podem levar à conservação da sociedade
existente. (...) As organizações populares precisam reagir em face
das fortes pressões em favor de sua “domesticação”, de seu
enquadramento nos limites de uma “governabilidade” entendida
basicamente como um sistema em que as classes subalternas
podem exercer sua liberdade de organização e mobilização, mas
desde que se abstenham de tudo aquilo que possa perturbar as
relações de poder existentes.

A formação e o fortalecimento desta “sociedade civil global” teriam como

orientação, em primeiro lugar, uma crítica à ordem hegemônica global e a defesa

da ampliação das fronteiras políticas, superando as “percepções de

estranhamento com outros povos”. Assim, estariam colocadas as bases para a

constituição de cidadãos e de instâncias de autoridade política capazes de

transcender as fronteiras e desencadear processos de democratização e de

controle dos centros mundializados de poder econômico, financeiro e político.

Seria colocada, aqui, a necessidade de se compreender, com Gramsci, que “a

história é sempre a história mundial”, ou seja, de que existe, entre e acima das

diferentes nações, um marco comum, um terreno político, econômico e cultural

compartilhado que deve ser recuperado, no momento atual, a partir de um

empenho histórico-crítico que, acreditamos, permanece ausente.

Após a “euforia globalizante dos anos 80” e suas primeiras críticas mais

estruturadas na década de 90, podemos afirmar que esta “democracia

cosmopolita” ainda permanece como um projeto, carente de espaços mais efetivos


de controle e de propostas concretas para a realização de uma “globalização

alternativa”. Entendemos também que recolocar o debate acerca do nacional-

popular, nos termos da análise gramsciana, pode representar um importante

movimento de reencontro com esta “história mundial”, que, partindo do nacional

enquanto particularidade, não se limita a ele, mas pensa em supera-lo

dialeticamente. Entendemos que, para o fortalecimento desta proposta, as

questões e os desafios próprios da esfera cultural são de extrema relevância.

Sobre eles é que iremos tratar no próximo capítulo deste trabalho.


3 Globalização da cultura? Ou cultura da

globalização? Os desafios

contemporâneos para a categoria

nacional-popular
Os elementos anteriormente analisados acerca do

movimento contemporâneo de acumulação do capital nos

aproximam do debate relativo à esfera cultural e nos fazem

recuperar, da perspectiva gramsciana, a concepção de bloco

histórico, ou seja, a idéia de que uma estrutura sócio-

econômica determinada desenvolve, em seu interior, a

necessidade de uma superestrutura político-ideológica,

capaz de garantir à classe hegemônica os elementos de

domínio e direção que lhe dão sustentação. Afirmamos que

este desenvolvimento se dá em seu interior porque este

aparato ideológico já se constitui como inseparável da base

sócio-econômica. A partir da constituição da sociedade como

uma totalidade, estrutura e superestrutura se mostram como

elementos indissociáveis.

Em Gramsci, portanto, percebemos uma superação concreta

da visão dicotômica entre estrutura e superestrutura, onde


esta última seria apenas um reflexo e/ ou um efeito da

primeira. Para este autor, um todo orgânico se configura a

partir da articulação destas duas esferas, definindo,

sobremaneira, a prática política das sociedades que ele

denomina como ocidentais.

Por isso, Gramsci é, muitas vezes, reconhecido como

um “teórico das superestruturas”, pois se preocupa

continuamente em chamar a atenção para o fato de que é

preciso analisar, no contexto de desenvolvimento de uma

sociedade, a “maneira como um sistema de valores culturais

impregna, penetra, socializa e integra um sistema social”

(PIZZORNO, apud PORTELLI, 1977, p. 16). Este momento

tem relação direta com as estratégias de luta hegemônica,

pois nele se pode compreender como se desagrega a

hegemonia de uma determinada classe e como se edifica um

novo sistema, capaz de dar origem e sustentação a outro

bloco histórico.

A concepção gramsciana de bloco histórico nos parece

relevante, portanto, para compreendermos que o cenário

sócio-econômico da “globalização” dispõe e necessita de um

momento superestrutural, ou seja, de um universo ideológico

que, pelos mais diferentes caminhos, garanta a continuidade

do quadro hegemônico que então se desenha. Este conjunto

de ideologias está, portanto, diretamente vinculado às


classes sociais em luta no cenário contemporâneo,

organizando os diferentes grupos sociais e dirigindo-os de

acordo com as condições sócio-econômicas que tomam

lugar nos dias de hoje. É através deste aparato ideológico,

como podemos observar, que os homens podem adquirir

consciência das relações sociais que os envolvem e, ao

mesmo tempo, se posicionar com relação a elas,

conformando-se ou desenvolvendo alternativas ao que está

colocado. É neste sentido que afirmamos, desde já, a

existência de uma “cultura da globalização”, mais que uma

“globalização da cultura”.

Estabelecido seu vínculo com a estrutura, as ideologias e


atividades políticas tornam-se assim o verdadeiro terreno onde os
homens tomam consciência dos conflitos que se desenvolvem no
nível da estrutura, o que lhes confere um valor “estrutural” e
confirma a noção de bloco histórico em que justamente as forças
materiais são o conteúdo e as ideologias, a forma. (PORTELLI,
1977, p. 32)

É no interior deste debate que podemos compreender

os elementos constitutivos do que se convencionou chamar

de “globalização da cultura”. A expressão, e suas principais

variantes, como “cultura global” e “cultura mundo”, guardam

inúmeras problematizações que são determinantes para que

possamos analisar, com elementos mais precisos, o contexto

societário no qual estamos contemporaneamente inseridos.


A cultura, como já observamos anteriormente, em seus mais

diferentes níveis de compreensão, constitui um elemento

ideológico de extrema importância para as lutas sociais que

se desenrolam contemporaneamente.

O debate sobre este tema está, portanto, longe de se

construir em uma direção unívoca. Muito pelo contrário, ele

envolve amplas e contraditórias ponderações, que lhe dão

um caráter mais dinâmico e nos permitem compreender com

mais precisão as determinações históricas que o compõem.

O que pretendemos neste capítulo é, desta forma, apresentar

os principais elementos deste debate, conduzindo-os para

problematizar nosso objeto mais específico, qual seja, a

contemporaneidade da categoria nacional-popular envolvida

pelo cenário da globalização.

Antes, porém, de entrarmos mais diretamente nestas

discussões, vale realizarmos algumas observações

preliminares sobre a temática que nos desafia. Não restam

dúvidas de que a cultura representa, no cenário

contemporâneo, um elemento de extrema significação para

as lutas e os embates que hoje se desenvolvem.

CANCLINI (2003) observa que a cultura constitui a

esfera que, na constituição do ser social, lhe permite um

duplo e essencial movimento. Em primeiro lugar, como

esfera do conhecimento, a cultura se apresenta como um


espaço privilegiado para se “entender o real” com alguma

objetividade, traçando uma contextualização mais ampla da

realidade e dos elementos que a compõem. Em outras

palavras, é através da cultura que podemos conhecer e

problematizar o processo de globalização em curso. No

entanto, a importância da cultura não se limita a esta

capacidade. Ela é, também, esfera de transformação, ou

seja, de uma insatisfação, gerada pelo conhecimento, com o

quadro que se constrói, despertando o interesse pela

inovação e pela mudança. Num contexto de “mundo

globalizado”, a cultura permanece com uma capacidade de

estranhamento e, portanto, de reflexão crítica, que expressa

e traz à tona o que este cenário tem de fratura e de

segregação.

Daí advêm as dificuldades e os embates que envolvem

esta esfera da cultura no cenário da globalização. Por

inúmeras razões, que iremos abordar ao longo deste

capítulo, é difícil hoje tanto conhecer quanto transformar:

Para saber o que se pode conhecer e administrar, ou o que tem


sentido modificar e criar, cientistas e artistas têm de negociar não
só com mecenas, políticos ou instituições, mas também com um
poder disseminado que se oculta sob o nome de globalização.
Costuma-se dizer que a globalização atua por meio de estruturas
institucionais, organismos de toda escala e mercados de bens
materiais e simbólicos mais difíceis de identificar e controlar que
no tempo em que as economias, as comunicações e as artes
operavam sempre dentro de um horizonte nacional. Hoje, Davi não
sabe onde está Golias. (CANCLINI, 2003, p. 9).

Criar uma “cultura da globalização” ou, por outro lado,

uma “cultura global” se apresentou, desde o princípio,

portanto, como uma necessidade para o capital

mundializado. Esta esfera representava a possibilidade de

imprimir, ideologicamente, uma orientação dominante ao que

os diversos grupos e classes sociais poderiam imaginar,

defender e esperar da “globalização” em curso. Assim,

“muitos globalizadores vão pelo mundo simulando a

globalização” (IBIDEM, p. 11) e buscando redirecionar, sob

uma ótica dominante, os conflitos culturais advindos da

desigualdade de acesso à “economia global”. Daí se

compreende elementos como o avanço e a aceleração dos

intercâmbios midiáticos, o incremento e o desenvolvimento

incontrolável da indústria cultural, agora com padrões

transnacionais de competência, o vazio político e informativo

dos meios de comunicação de massas e o acirramento da

dependência cultural, como demonstram os dados abaixo:

A concentração nos Estados Unidos, Europa e Japão da pesquisa


científica e das inovações em informação e entretenimento
aumenta a distância entre o Primeiro Mundo e a produção
raquítica e desatualizada das nações periféricas. Mesmo em
relação à Europa, tem-se agravado a desvantagem da América
Latina, como se verifica em relação ao desenvolvimento
demográfico: nosso continente é responsável por 0,8% das
exportações mundiais de bens culturais, tendo 9% da população
do planeta, ao passo que a União Européia, com 7% da população
mundial, exporta 37,5% e importa 43,6% de todos os bens
culturais comercializados. (CANCLINI, 2003, p. 22).

Este processo não se constrói, no entanto, em uma

única direção. Sendo a globalização um processo

diversificado e desigual, como já tivemos a oportunidade de

demonstrar, a existência de uma possível “cultura global”

também encontra fortes e importantes resistências. Esta

esfera, sobretudo no que se refere a valores simbólicos e

significações, traz à tona o que a globalização tem de utopia

e o que ela, sendo desenvolvida sob o jugo do capital, não

tem capacidade de integrar.

O exemplo concreto da União Européia ilustra com clareza

estas afirmações. Apesar do grande número de programas

educativos e culturais que abrangem os países membros e

que buscam criar uma identidade simbólica “européia”, os

diferentes governos ainda não conseguiram trabalhar de

forma satisfatória com a heterogeneidade, as diferenças e os

conflitos que parecem irredutíveis a esta identidade

homogênea.

A cultura deixa claro, portanto, que persiste uma fração

de dimensões significativas entre a globalização que os

mercados e os governos entendem e divulgam e aquela que

os cidadãos vivenciam em seu cotidiano. As diferenças


culturais não se dissolvem com meros acordos econômicos

de integração, sobretudo quando estes reafirmam e

aprofundam um quadro de tantas disparidades sociais e

econômicas. Muito pelo contrário, estas diferenças culturais

não só se afirmam, como também colocam em cena críticas

e interesses que se unem àqueles de ordem política,

econômica ou social no momento de construção de esferas

públicas supranacionais.

Assim, por caminhos e motivos bastante diferenciados,

a cultura não se manteve alheia ao processo de globalização

em curso, servindo, muitas vezes, como elemento de

reorientação e de reordenamento das forças hegemônicas

neste processo.

Um dos principais obstáculos para que os cidadãos acreditem nos


projetos de integração supranacional são os efeitos negativos
dessas transformações nas sociedades nacionais e locais. É difícil
obter consenso popular para mudanças nas relações de produção,
comércio e consumo que tendem a depreciar os vínculos das
pessoas com seu território nativo, a suprimir postos de trabalho e a
achatar os preços dos produtos locais. O imaginário de um futuro
econômico próspero eventualmente suscitado pelos processos de
globalização e integração regional é muito frágil se não se leva em
conta a unidade ou diversidade de línguas, comportamentos e
bens culturais que dão sentido à continuidade das relações
sociais. (CANCLINI, 2003, p. 24)

Partindo desta compreensão mais dinâmica acerca da

dimensão cultural dos processos de globalização hoje em

curso, podemos identificar diferentes posições acerca deste


debate. Tentamos organizá-las em dois grandes blocos, a

partir da compreensão mais ampla ou mais restrita do que

podemos chamar de “globalização da cultura”. Vale

observarmos cada uma destas abordagens.

3.1 – A abordagem hegemônica da cultura na globalização: a

homogeneização de padrões e referências culturais

Uma primeira perspectiva acerca dos determinantes culturais

do processo de globalização em curso trabalha com a idéia

de que o contexto contemporâneo e os “avanços” percebidos

nos mais diferentes campos do universo cultural têm

construído a possibilidade de a uma crescente

homogeneização dos elementos culturais dos diversos

grupos e classes sociais, nas mais diversificadas realidades

nacionais. A orientação-chave desta perspectiva é aquela

emergência de uma “sociedade global”, da qual tratamos

anteriormente, resultante de processos globais que

ultrapassam as vivências nacionais e locais de grupos e

classes sociais e que as superam em termos qualitativos.

Independentemente de suas vontades, os homens se

tornaram “cidadãos do mundo”, a perspectiva global penetrou

o cotidiano de todos e reorientou a organização cultural das

sociedades atuais, as quais se encontram, agora,


perpassadas por uma “vivência mundializada”. Afirma ORTIZ

(1994, p. 8)

Marlboro, Euro Disney, fast-food, Hollywood, chocolates, aviões,


computadores, são os traços evidentes de sua presença
envolvente. Eles invadem nossas vidas, nos constrangem, ou nos
libertam, e fazem parte da mobília de nosso dia-a-dia. O planeta,
que no início se anunciava tão longínquo, se encarna assim em
nossa existência, modificando nossos hábitos, nossos
comportamentos, nossos valores.

Segundo esta perspectiva, o “mundo” se apresenta

agora como uma nova categoria analítica, com uma nova

dimensão. Ele não representa mais apenas a “soma de

realidades nacionais”, onde cada uma delas tinha sua

autonomia e independência, embora estivessem interligadas

por um amplo leque de relações. Ele se apresenta como um

“sistema mundo”, um elemento constitutivo de vivência e de

reflexão que impõe novos desafios teóricos e práticos.

No que tange ao universo cultural, esta nova categoria

traria elementos significativos de reorientação. As novas

relações econômicas e sociais nas quais estamos inseridos,

agora em uma escala global, materializariam a possibilidade

de emergência de uma “cultura global” ou de uma

“globalização da cultura”. Em outras palavras, o homem,

enquanto “cidadão do mundo” teria, pela primeira vez na

história da humanidade, a oportunidade de construir valores,


hábitos, representações, costumes, reflexões, críticas e

questionamentos que seriam oriundos de sua inserção não

em um espaço local ou nacional, mas de uma suposta

integração cada vez maior da “sociedade global”. No

interior desta discussão, esta perspectiva aponta para um

conjunto de transformações societárias que estariam criando,

para a humanidade em geral, o que poderíamos chamar de

“referências culturais globais”. É importante observarmos

minimamente o debate acerca destas transformações no

universo cultural.

A própria idéia de globalização já aponta para

reorientações e novas determinações no que se refere às

noções de espaço e de tempo, agora materialmente

menores. Por diferentes caminhos, ouvimos as posições que

reconhecem um processo de “compressão-aceleração do

mundo”, onde o conjunto das novas tecnologias disponíveis

incide diretamente sobre estas noções, criando a expectativa

da integração e da sincronia. As pessoas estariam, então,

mais próximas, convivendo em um mundo que, em termo

simbólicos, estaria cada vez menor e mais parecido, o que

facilitaria os contatos, a mobilidade das fronteiras e a diluição

da oposição entre o autóctone e o estrangeiro.

A desterritorialização da produção, bem como o maior

fluxo de mercadorias e de pessoas, estabelece uma aparente


dinâmica onde o espaço se esvazia de seus conteúdos

particulares, os lugares se globalizam e constroem um

universo habitado por referências compartilhadas:

corporações transnacionais, produtos mundializados, marcas

facilmente identificáveis. Neste processo em que cada local é

capaz de revelar o mundo, o mercado parece ser o elemento

homogeneizador, capitalizando determinados signos e

padrões de consumo mundialmente reconhecidos e aceitos.

Esta experiência de coabitar um mundo mais parecido

traria para os homens, pela primeira vez, a possibilidade de

compartilhar também de uma mesma cultura, desta vez,

mundializada. ORTIZ é um dos autores que acredita nesta

possibilidade e afirma, inclusive, que o mais importante, para

esta cultura, é a sua especificidade, é a sua capacidade de

fundar uma nova maneira de “estar no mundo”, a partir de

novos valores e de novas legitimações. Não só os objetos,

mas também as referências culturais devem se desenraizar,

tornando-se mundialmente inteligíveis.

O processo de mundialização é um fenômeno social total que


permeia o conjunto das manifestações culturais. Para existir, ele
deve se localizar, enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens,
sem o que seria uma expressão abstrata das relações sociais.
Com a emergência de uma sociedade globalizada, a totalidade
cultural remodela, portanto, sem a necessidade de raciocinarmos
em termos sistêmicos, a “situação” na qual se encontravam as
múltiplas particularidades. (ORTIZ, 1994, p. 30-31).
No conjunto destas transformações contemporâneas, vale

destacar o redimensionamento conquistado pelos meios de

comunicação de massa. Surgidos já em um período de

desenvolvimento capitalista avançado, estes meios

ganharam, a partir do final do século XX, um perfil muito mais

dinâmico, realizando um exercício de articulação das

informações e dos bens culturais a serem transmitidos ao

público em um ritmo verdadeiramente “globalizado”. Assim,

estes meios conseguem fortalecer sua capacidade de

processar as mais diferentes dimensões da vida humana,

desde a informação até o lazer, e se transformam em um

veículo privilegiado para difundir, no mundo todo,

“referências globais” com as quais as pessoas passaram a

se relacionar em seu cotidiano. Este poder dos meios de

comunicação de massas será utilizado ao extremo pelos

grandes grupos econômicos em todo o mundo, seja através

da publicidade, divulgando e criando as “necessidades” dos

produtos do mercado global, seja através da manipulação

das informações que preparam o cenário político-ideológico

para o avanço desta mundialização do capital.

A expansão e o fortalecimento dos meios de comunicação de massas no

cenário globalizado apresentam importantes questões desafiadoras para esta

perspectiva de compreensão do processo de globalização em curso.

Paralelamente ao reconhecimento de que o mundo se tornou “mais próximo” pelo


incremento destes meios de comunicação e pela ampla difusão da informação,

constrói-se a crítica de que a mídia, ainda que aparentemente se coloque como o

espaço democrático onde todos são, ao mesmo tempo, produtores e receptores

de informação35, está cada vez mais convertida em agente de difusão de

discursos específicos, legitimadores da falsa consciência de um “mundo sem

fronteiras”.

Graças ao dinamismo deste campo da informação, os meios tecnológicos

permitem divulgar e legitimar signos sociais que se colocam como “mundialmente

reconhecidos”, sem uma procedência territorial nitidamente identificada. Assim,

fortalecem-se como propagadores de um modo de existência e de pensamento

que acaba por deslegitimar qualquer formulação que possa contestar suas

premissas, sobretudo no que se refere a alternativas de esquerda. Seriam,

portanto, os elementos que verdadeiramente favoreceriam uma vida

desterritorializada, tendo a capacidade de congregar simbolicamente partes de

uma totalidade que está em expansão e em redefinição. O que antes seria papel,

por exemplo, dos projetos societários de diferentes classes sociais, ou de

organizações que tivessem por desafio internacionalizar lutas e expectativas,

estaria agora sendo facilmente desenvolvido por estes meios de comunicação e

de produção de informações materializados pelo novo modo de acumulação

capitalista. O mercado surge, nestes meios, como o grande regulador das

demandas coletivas, inserindo mudanças cada vez mais rígidas no cotidiano da

36
A Internet, por exemplo, é apontada contemporaneamente como espaço constante de
democratização e de livre acesso a informações, propostas e descobertas científicas.
vida social, as quais se manifestam também nos processos de sociabilidade e de

trabalho.

O debate que então se coloca visa a questionar até que ponto esta

comunicação tecnológica estaria se convertendo em agente privilegiado na

formação e na fixação de identidades culturais que desprezam ou dispensam os

horizontes historicamente reconhecidos do local e do nacional. Em outras

palavras, até que ponto as informações de abrangência ilimitada como as que são

hoje produzidas poderiam redimensionar culturalmente os povos de diferentes

espaços territoriais, a partir do momento em que tornam próximos e presentes

diferentes acontecimentos.

Algumas características destes meios de comunicação e das informações

por eles produzidas se colocam como elementos norteadores para uma avaliação

das questões anteriormente colocadas. Em primeiro lugar, pesa a sua

temporalidade. O mercado precisa constantemente de inovações tecnológicas que

renovem e garantam a chegada de novas informações e de novos padrões de

divulgação desta. A fugacidade e a efemeridade que as particularizam tornaram-

se constantes desafiadores e, ao mesmo tempo, impulsionadores da expansão

capitalista nesta área. Dados apresentados por MORAES (1997) sobre a década

de 90 demonstram, comparados aos atuais, a magnífica capacidade de expansão

desta fatia do mercado e, principalmente, sua vinculação ideológica cada vez mais

bem definida.

Esta inovação constante traz, para o universo da informação e da

comunicação, o traço também da diferenciação. Com vistas a negar quaisquer

estratégias que recuperem o consumidor indiferenciado e perdido na massa,


característico do mmomento fordista de produção, o modelo atual prima pela

atenção cada vez mais específica, buscando chegar a padrões extremos de

comportamento e de preferências. Uma rede mundializada de informações sobre

vendas permite analisar os diferentes comportamentos dos mercados, permitindo

inclusive concluir quais produtos devem ser retirados de circulação ou

modificados, definindo, portanto, o desenvolvimento de novos produtos. Para cada

segmento do mercado consumidor, um produto, uma mídia e uma informação

adequados, reconstruindo, em outros parâmetros, a fragmentação e a diversidade

culturais. É preciso, desde já, criticar esta perspectiva de diferenciação, partindo

da certeza de que o fato de estar materialmente diversificado não significa,

necessariamente, que esta parcela do mercado garanta a diversidade e o

pluralismo em torno das questões culturais, uma vez que estas se encontram

igualmente concebidas e desenvolvidas nos limites do sistema do capital. O

mercado se diversifica para, em última instância, continuar homogêneo na

dimensão da mercadoria e da indústria cultural.

Em consonância com esta diferenciação, surge com força, no momento

contemporâneo, o timbre da interatividade. Esta vem também ideologicamente

carregada da possibilidade de atenção a públicos segmentados, que podem,

através destes amplos e diferenciados “espaços de participação”, opinar

livremente e impulsionar trocas com base em interesses compartilhados. Assim

sendo, a interatividade cria a expectativa e a possibilidade de formação de novos

hábitos de consumo cultural e de novos processos de significação, onde participar,

agora, se tornou um ato tecnologicamente facilitado e acessível a qualquer

cidadão, desde que compartilhe das inovações disponibilizadas pelo mercado


capitalista. A tecnologia com a qual convivemos hoje teria, portanto, a

potencialidade de, através principalmente das redes de computadores, viabilizar

uma “presença cidadã autônoma”, desvinculada de uma institucionalidade pública

que, na crítica de vários sujeitos coletivos, estaria comprometida pelos elementos

da corrupção, do comprometimento ideológico e da inépcia política. As TVs pagas,

onde cada um escolhe a programação que quer assistir, as comunidades virtuais

na Internet, as múltiplas pesquisas de opinião das quais podemos participar ao

mesmo tempo, tudo isso estrutura, portanto, importantes conjuntos de afinidades e

de aspirações, dos quais participam múltiplos “sujeitos” receptores, advindos de

coletividades desterritorializadas.

Esta interatividade, em casos extremos, tende a subtrair verdadeiras fontes

de informação que favoreçam a opinião pública e a participação nos processos

decisórios. O risco de uma aparente e absoluta uniformidade na produção do

consentimento cresce e se coloca em confronto com a intransparência das

contradições sociais existentes e a própria importância da democratização do

poder político institucional.

A diferenciação e a interatividade do momento atual convivem,

contraditoriamente, com a necessidade de generalização e de uniformização de

produtos, instrumentos, informações e meios à disposição das parcelas da

população mundial que se inter-relacionam e “se desvendam”. O acelerado fluxo

de pessoas no contexto mundial36 cria a necessidade de que o mercado

36
DREIFUSS (1997) menciona que, em 1996, apenas o tráfego aéreo respondia pelo
deslocamento de 1,3 bilhão de passageiros por ano, sem contar os “viajantes virtuais”, 2 bilhões
de pessoas que, através das redes informáticas de consumo, buscavam este duplo movimento de
uniformização e de diversidade de produtos.
desenvolva o sentido de “pertencimento”, disponibilizando “produtos mundiais”,

que atendam, em lugares indiscriminadamente distantes, a diferentes estilos de

vida e padrões de consumo. Num mundo em que a indústria de turismo e de

viagens responde por 10,9% do PIB global e emprega 10% da população

economicamente ativa mundial (dados apresentados por MORAES, 1997, tendo

como referência o ano de 1996), o elemento de uma “identidade planetária”

também precisa ser garantido pelo mercado.

Diferentes debates se travam em torno destas características. MUNIZ

SODRÉ (1997), juntamente com outros tantos autores, se preocupa em destacar

que estas tecnologias da informação criam, portanto, a ideologia de uma

comunicação universal, a ser medida e avaliada pelos elementos da velocidade,

da probabilidade e da instabilidade. Os meios de comunicação, nesta

compreensão, desempenham papéis estratégicos ao possibilitarem uma

naturalização ideológica da economia neoliberal de mercado, da qual a sociedade

humana aparece apenas como um acessório. As diferentes configurações

societárias, compartilhando do mesmo tempo e do mesmo espaço, devem agora

trabalhar para se desenvolver e para evoluir rumo a uma perfeita integração ao

desenvolvimento mundial, modelo único e inquestionável da sociedade de

mercado.

Tais meios de comunicação e de produção de informações contribuem para

a forte operação ideológica que busca reforçar o sentido universalista da

globalização. Tal sentido se constrói, na verdade, como abstrato e superficial, uma

vez que o que assistimos é a “universalização do particular”. Como já tivemos a

oportunidade de observar, o controle do processo de globalização se restringe a


poucos países e tende a excluir, das instâncias de deliberação e de decisão, a

maior parte da população mundial. A força com que se desenvolve a multimídia37

contribui, então, para a produção retórica de um real compatível com a lógica do

mercado e com a ideologia da globalização.

Diante deste cenário e das discussões que o interpenetram, um duplo

desafio se coloca para os diferentes padrões de cidadania e de políticas públicas

de gestão das comunicações. Em primeiro lugar, a técnica, ou o universo material

destes meios de comunicação, uma vez que o desenvolvimento tecnológico

continua restrito a poucas corporações econômicas, que ditam padrões de

consumo destas tecnologias e monopolizam sua produção, dando início ao que

poderíamos caracterizar como um novo processo de colonialismo, agora garantido

pelos meios de comunicação e de produção de informações. Além disso, desafia-

nos também a questão dos conteúdos veiculados, os quais, num momento em que

se põe em xeque a relação cultura/ nacionalidade, encontram-se ligados a uma

nova “armadilha teórica”, qual seja a de uma globalização informativo-cultural que

não se mostra desvinculada de fortes interesses de classe. Acreditamos que, nos

dias atuais, o debate sobre a democratização da cultura não pode se furtar a

responder a este duplo desafio, que BRASIL (1997) define como “saber quem

decide e realiza a enunciação de valor univocal”.

Nas palavras de GALEANO (apud BRASIL, 1997, p. 248-249)

37
RAMOS (1997) afirma que a multimídia representa a convergência de três elementos principais,
a saber: as telecomunicações (infra-estrutura e serviços básicos), os meios de comunicação de
massa e a informática. Neste sentido, podemos afirmar que estes veículos se caracterizam, no
cenário neoliberal, pelos processos de privatização, de concentração de capital e de centralização
ideológica, agora em um cenário mundial.
Nunca tantos foram tão comunicados por
tão poucos. Cada vez são mais os que
têm o direito de escutar e de olhar, mas
cada vez são menos os que têm o
privilégio de informar, opinar e criar. A
ditadura da palavra única e da imagem
única está impondo um modo de vida que
tem por cidadão exemplar o consumidor
dócil e o espectador passivo, que se
fabricam em série, escala planetária,
segundo o modelo norte-americano da
televisão comercial.

Parece-nos, portanto, que, a exemplo do que propõe SCHILLER (apud

MORAES, 1997), a idéia de um “imperialismo cultural” ainda é válida nos dias de

hoje, sobretudo no que diz respeito aos meios de comunicação e de produção de

informações. Inseridos na dinâmica da política internacional contemporânea,

teriam a dupla função de consolidar e garantir o sistema capitalista empresarial

das multinacionais e de intensificar a dependência cultural pela consolidação, a

nível subalterno, de sistemas de decodificação, definindo a multimídia como um

campo privilegiado para a valorização do capital mundializado. Reafirma-se, nos

dias atuais, a concentração da produção de informações nas regiões do mundo

industrializado38 e a subalternidade, por parte dos países periféricos, para os quais

a transferência destas informações é condição vital para que possam se integrar

no ciclo internacional da produção e do desenvolvimento econômico.

38
BRASIL (1997) contribui para este debate com dados sobre os índices de concentração dos
meios audiovisuais: 90% na Irlanda; 75% no Reino Unido; 65% na Itália e 50% na Bélgica,
Dinamarca e Holanda, no ano de 1996.
DANTAS (1996) chama a atenção, neste cenário acima descrito, para um

momento de privatização da informação, que reduz, ou até mesmo elimina, seu

caráter social, redefinindo as redes informacionais como instrumentos de

dominação e de exclusão no contexto internacional. A renovação constante nestes

meios técnicos de comunicações e de produção de informação aponta para novas

frentes de acumulação do capital, servindo à ampla articulação da produção social

geral.

Soma-se a esta capitalização crescente do setor a ausência, quase

absoluta, das possibilidades de intervenção democrática no processo de

desenvolvimento e de consolidação destes meios multimídia, Como nas mais

variadas frentes de desenvolvimento capitalista, também no que se refere aos

meios de comunicação, percebemos aquela clara distinção entre os que discutem

e produzem cultura e aqueles que a consomem, sendo que estes últimos pouco

ou nada sabem acerca do funcionamento das comunicações. Nas palavras de

DANTAS (1996, p. 15)

Uma vez que a grande maioria das


lideranças, quadros e militantes
comprometidos com os movimentos
sociais ignora ou não se dá conta dos
problemas sociais (políticos, econômicos,
culturais) envolvidos e articulados nas
comunicações, somos cada vez mais
moldados, mesmo sem o sentir ou saber,
pelos arranjos capitalistas dos sistemas de
informação. Estes nos parecem naturais e
espontâneos, e não o resultado de
construções sociais e históricas concretas.
Assim, nos são apresentados pelos
discursos economicistas e tecnicistas,
traduzidos para o senso comum pelo fait-
divers jornalístico.

O que demarcaria o momento contemporâneo de expansão deste setor

teria suas raízes em um movimento iniciado na passagem do século XIX para o

século XX, justamente quando, através dos recursos garantidos pelo capital

financeiro, teriam surgido indústrias tipicamente produtoras de tecnologias de

informação, a qual, a partir daí, se tornou o objeto imediato de trabalho da maioria

dos indivíduos. A informação se transforma, a cada dia, em um elemento

necessário para que o capital possa se desenvolver e a importância das diferentes

formas de trabalho humano nesta sociedade se mede a partir da quantidade e da

qualidade da informação com a qual se desenvolve. A principal atividade das

pessoas, no universo do mundo do trabalho, é tornar disponíveis diferentes dados,

e o valor da informação, neste processo, é o de poupar tempo de trabalho, o que

interfere diretamente nos processos de produção de mais-valia nas sociedades

capitalistas contemporâneas.

A partir de então, a produção cultural, neste sentido, torna-se indistinguível

da produção material, no que se refere aos processos de trabalho e à necessidade

que apresentam para o desenvolvimento da sociedade. Tal produção passa a ser

integrada à produção material capitalista geral através de dois caminhos: como

meio de acumulação direta, através da venda de equipamentos e de difusão de


tecnologia, e indireta, formando e redefinindo hábitos de consumo para a

expansão de mercados cada vez mais amplos e diversificados.

Questões objetivas, assim como decisões políticas e empresariais, acabam

criando um sistema de monopólios também nesta área, onde a indústria que

produzia equipamentos para registrar e comunicar informação torna-se, a partir do

final do século XX, produtora da própria informação a ser registrada e

comunicada. No âmbito exclusivo do capital, percebe-se a constante tendência à

cooperação, no sentido de que há um intercâmbio de soluções e de produtos que

estejam sendo desenvolvidos pelas corporações transnacionais, através de

alianças cada vez mais estreitas e economicamente fortes. Nos países de

capitalismo central, detentores destes monopólios, isto acontece sem uma maior

intervenção política de cunho público por parte de outros atores, e, por outro lado,

nos países periféricos, não houve qualquer incentivo para o desenvolvimento de

sistemas próprios e autônomos de produção de informação ou de tecnologias para

este setor, sendo que esta ficou, desde o século passado, sob o controle de

empresas estrangeiras, especializadas nas comunicações internacionais. Os

grandes blocos tendem a segmentar e fragmentar a geração e a comunicação das

informações estratégicas para o conjunto da sociedade, as quais podemos chamar

de “informação-valor”. Tais blocos se especializam no atendimento a esta ou

aquela região, disponibilizando a tecnologia específica. Um mundo redividido em

novos grupos de poder econômico significa também um novo mundo

informacional, o qual redefine relações políticas, sociais e, principalmente,

culturais.
Verifica-se uma enorme disparidade na distribuição mundial destes

recursos informacionais, o que torna os países periféricos despreparados para as

mudanças neste campo e transforma a articulação da informação no mundo todo

em um movimento de mão única, dos países centrais para os países periféricos,

onde estes últimos importam não só os conjuntos técnicos, mas também os

conteúdos culturais neles embutidos. Podemos inclusive configurar este processo

como uma “expropriação simbólica de outras culturas”, que acabam substituídas

por padrões de racionalidade, representação, identidade, premiações e punições

próprios dos países de capitalismo central. Cópias perfeitas de programas e de

padrões de produção cultural são trazidos de forma avassaladora para a realidade

dos países periféricos, sendo apresentados como “modas culturais” que devem

ser mundialmente reconhecidas. Mais uma vez está colocada a perspectiva de

uma homogeneização da cultura, com todo o mundo compartilhando, pela

intervenção da “mão nada invisível do mercado” de um mesmo padrão cultural

Portanto, o que se forma a partir daí é o que poderíamos chamar de um

sistema de informações globalizado, nas mãos de grupos cada vez mais

concentrados e centralizados, consolidando, através de suas ações em escala

mundial os laços de dependência política e cultural já amplamente desenvolvidos.

Emerge, neste momento, o problema da “subinformação” de regiões inteiras do

globo terrestre, assim descritas:

Sociedades que não desenvolvem


tecnologias de informação tendem não só
a ser subinformadas em relação aos
países capitalistas centrais, como também
a erigir, dentro de suas fronteiras, divisões
ainda mais fundas entre suas minorias
ricas-informadas e suas maiorias pobres-
desinformadas. Aquelas minorias
buscarão um modo de ingressar na
“sociedade da informação” global, ainda
que vestindo grotescas fantasias de
“primeiro mundo”. Quanto às maiorias, não
lhes restará muito mais do que uma
violenta exclusão social. Subinformação:
eis o novo nome para o
subdesenvolvimento nesta nova etapa
histórica da evolução capitalista.
(DANTAS, 1996, p. 95)

Segundo este autor, as “agências de notícias”, principalmente no padrão de

desregulamentação norte-americano, que se expandiram por todo o mundo a

partir do final do século XX, internacionalizaram um tipo específico de jornalismo e

veiculação de informações que “dá importância ao imediato, ao extraordinário, ao

sensacional, ao superficial, ao bizarro, ignorando as articulações dos fatos, os

processos sociais, as diferenças culturais e históricas entre os povos” (1996, p.

42). Em outras palavras, construíram uma única imagem do mundo, a qual os

diferentes países deveriam aspirar no sentido de parecerem “desenvolvidos”.

O final do século XX foi palco de uma terceira revolução tecnológica nas

comunicações, que ofereceu ao capital novos meios para processar e transmitir

informação, tornando cada vez mais rápido, eficiente e barato o transporte dos
dados necessários e interessantes ao desenvolvimento do capital. Tanto nos

países de capitalismo central quanto nos países periféricos, o que se percebeu foi

que, neste ramo, o Estado continuou com sua antiga função de “gerente dos

interesses do capital”, uma vez que incentivou a expansão privada do setor,

fomentou o processo a partir da destinação de recursos públicos e utilizou destas

informações para o encaminhamento dos interesses políticos, militares e

econômicos do cenário internacional. Reproduziram-se, neste setor, as relações

de dominação e de segregação social já características do desenvolvimento

histórico capitalista, pois este desenvolvimento tecnológico e esta oferta de

sistemas cada vez mais inovadores concentraram-se no atendimento às

corporações e usuários de alta renda, em detrimento do conjunto da população e

dos interesses públicos sobre elas. Como elemento adicional, este setor se

fortalece cada vez mais como uma fatia do setor produtivo que não pode conviver

com legislações e práticas regulatórias mais rígidas, dada sua dinamicidade e,

muitas vezes, sua necessidade de intervenções sigilosas.

Mais uma vez, no que se refere ao universo da cultura, vemos prevalecer o

movimento que incorpora o indivíduo à imagem alienada e reducionista do

“consumidor”. No que se refere ao acesso, à configuração, à produção e à

utilização da mega-informação produzida em nossa sociedade, não tem lugar, ou

ocupam um lugar profundamente reduzido, o indivíduo-cidadão, seus espaços

societários de organização e mobilização, bem como a multidão massificada pelos

diferentes processos de constituição social. Tem continuidade, no momento atual

de evolução do sistema capitalista, um padrão de comunicação e de cultura que

prossegue determinado pelas exigências exclusivas (ou quase) da acumulação de


capital, e não do atendimento das carências ou direitos maiores do conjunto da

sociedade.

Com este conjunto de alterações tecnológicas empreendidas nos meios de

comunicação de massa e de produção de informações, vivemos, portanto, uma

verdadeira "violência da informação" (SANTOS, 2000). Temos acesso, a cada

instante, a um grande volume de informações, que nos chega cada vez mais

rapidamente e que nos traz dados de pessoas, grupos e sociedades que

julgávamos absolutamente distantes de nós. É neste sentido que se afirma que os

espaços que antes separavam as pessoas se comprimiram, pois o "mundo" se faz

cada vez mais presente em nosso cotidiano através das informações às quais

temos ou não acesso. Em um número cada vez maior, com dados cada vez mais

recentes e inéditos para a maioria da população, com conteúdos anteriormente

inimagináveis sobre os avanços da humanidade e com um forte elemento político-

ideológico, estas informações acabam sendo realmente violentas, principalmente

porque, conforme observamos, estão marcadas por um crescente elemento de

desigualdade em seu processo de apreensão: não há tempo hábil ou

oportunidades coletivas para refletir sobre todas elas, e elas acabam por,

indiscriminadamente e acriticamente, questionar as relações e as referências que,

durante tanto tempo, fizeram parte de nosso cotidiano “nacional”.

Outra discussão bastante relevante nesta compreensão da cultura no

contexto de “globalização do capital” diz respeito ao processo já devidamente

analisado como o crescimento e o redimensionamento da chamada “cultura de

consumo”. Esta se refere, primeiramente, ao avanço da acumulação, na

sociedade capitalista, de uma cultura material na forma de bens e locais que se


destinam, prioritariamente, ao lazer e às atividades de consumo nas sociedades

contemporâneas. Tais mercadorias, inseridas desta vez em um movimento

mundializado de crescimento e de afirmação, são utilizadas e fortalecidas como

elementos capazes de criar vínculos e de estabelecer distinções sociais

marcantes, criando bases materiais para um imaginário cultural cada vez mais

consumista. A lógica de que “somos aquilo que podemos consumir” se fortalece e

ganha dimensões significativas em nossas sociedades, pois o fluxo

constantemente renovado de mercadorias traria novas determinações para

compreendermos o problema da leitura do status ou da posição do portador das

mercadorias.

ADORNO & HORKHEIMER (1985) já apontavam, no início do século XX,

para este redimensionamento das atividades de lazer, arte e cultura neste

contexto de capitalismo avançado, onde a indústria cultural tem a potencialidade

de filtrar aquilo que poderia compor o elemento ideológico nesta sociedade. Uma

orientação baseada no valor de troca seria a tônica, com valores e propósitos que

sucumbem à lógica do processo de produção e de mercantilização. Para estes

autores, numa perspectiva eminentemente negativa, o capitalismo estaria dando

início a um momento em que as diferenças essenciais, as tradições culturais e a

qualidade das manifestações culturais estariam sendo transformadas em

elementos que estariam se diferenciando apenas no aspecto quantitativo. Os

estudiosos da Escola de Frankfurt foram enfáticos ao afirmar que a indústria

cultural produz uma homogeneidade que acaba colocando em risco elementos de

subjetividade e de criatividade nesta esfera. Para Adorno, a perspectiva de uma

“mercadoria livre” significa, no contexto da sociedade capitalista, dizer que ela


pode adquirir uma ampla variedade de associações e ilusões culturais, as quais,

entretanto, poderíamos complementar, não estão alheias aos processos de

dominação e hegemonia presentes em uma sociedade. O que se configura, então,

é uma aparente liberdade, que significa, na verdade, um forte aprisionamento

ideológico para a produção cultural a partir de então.

Se tomarmos estas considerações como ponto de partida para

compreendermos a contemporaneidade do debate sobre a “cultura de consumo”,

poderemos observar que a infinidade de signos, imagens e simulações que nos

chegam por meio da mídia não aponta, necessariamente, para ricos e essenciais

elementos de pluralismo e de diversidade, mas sim para uma diferenciação

superficial com vistas a atender às especificidades de consumo. Na verdade,

estaríamos vivendo em uma sociedade sob forte ênfase cultural, mas de uma

“cultura sem profundidade”, condizente com uma vida social desregulada e

relações sociais extremamente variáveis, próprias do que ficou conhecido como a

“lógica cultural do capitalismo tardio” (JAMESON, 2002)

A indústria cultural se configura, no momento da globalização, como uma

importante elemento de transmissão dos possíveis vínculos existentes entre as

diferentes sociedades hoje contemporâneas. Portanto, na análise desta primeira

perspectiva, ela poderia ser considerada como o que mais contribui para sua

homogeneização, a partir do momento em que possibilita a formação de “públicos-

mundo” (CANCLINI, 2003), com gostos e identidades culturais cada vez mais

semelhantes. Postula-se, assim, uma tendência dominante nas empresas deste

setor: globalizar a cultura na perspectiva de criação de uma “cultura global”

através da partilha dos mesmos produtos e bens culturais.


Argumenta-se que este movimento é facilitado pela possibilidade de

desenraizamento dos produtos culturais com relação ao patrimônio das nações.

Em sua maioria, os bens e mensagens editoriais, audiovisuais e informáticos são

produzidos em formatos industrializados, fabricados por empresas que, de âmbito

transnacional, fazem circular seus produtos por canais controlados pelo grande

capital. Aqui também se afirma o “imperialismo coletivo”, uma vez que estas

empresas estão concentradas nos Estados Unidos, na União Européia e no

Japão, com produções marcadamente transnacionalizadas. Esta ação oligopolista

reconfigura a comunicação social, a informação e o entretenimento, os quais se

encontram cada vez mais distribuídos de maneira desigual.

Assim afirma CANCLINI (2003, p. 135)

As grandes massas esbarram em limitações na sua incorporação à


cultura globalizada, pois somente têm acesso à informação e ao
entretenimento veiculados no rádio e na televisão aberta.
Enquanto as classes alta e média, e pequenos setores populares,
têm acesso à televisão a cabo e certos circuitos informáticos,
restringindo-se às elites empresariais, universitárias e políticas, o
uso de computadores, fax, antenas parabólicas, em suma, os
circuitos de inovação e interatividade nas redes eletrônicas.

Estas questões recolocam, em outro patamar, as abordagens

acerca das políticas culturais, as quais hoje devem problematizar uma

orientação de alcance mais nacional ou mais globalizado. Infelizmente,

não teremos a oportunidade de discutir, nos limites deste trabalho,

esta dimensão das políticas culturais e de sua importância no cenário

apresentado como de “globalização da cultura”. No entanto,


gostaríamos de reforçar aqui a importância deste debate, sobretudo no

que se refere a países de capitalismo periférico como os da América

Latina.

Nos dias de hoje, dois processos parecem orientar, portanto, a

produção e o consumo cultural de uma forma mais geral. Em primeiro

lugar, vemos uma reordenação dos mercados sob uma lógica

globalizadora, o que atinge, inclusive, os imaginários nacionais. Se

antes, o que tínhamos eram tendências artísticas com “sobrenome

nacional” (como, por exemplo, nas artes plásticas, o “barroco francês”

ou o “pop americano”), delimitando uma “arte estrangeira” que era

usada como referência para se pensar o patrimônio cultural próprio,

hoje a escala de criação, difusão e recepção da arte se faz em um

universo muito mais amplo, que ultrapassa, sobremaneira, os limites

da sociedade em que as obras são produzidas. Por conta disso, o

nacional ganhou um outro elemento de determinação, ou seja, a sua

capacidade de ultrapassar suas fronteiras naturais e de se tornar

referência em outro universo cultural.

Além deste processo, percebemos também um avanço cada vez

mais agressivo de instituições e empresários globalizados que, no que

se refere às produções artísticas em geral, se apresentam como


lideranças no cenário internacional, substituindo, muitas vezes, as

vanguardas artísticas que davam o tom de determinadas

manifestações artísticas e intelectuais. Hoje se instaura um sistema de

concorrência transnacional, que controla o mercado mundial de forma

concentrada e que define padrões e estilos artísticos, voltados para

atender diferentes gostos e contornos culturais. No que diz respeito às

artes plásticas, por exemplo, fortalecem-se galerias com uma estrutura

e uma organização multinacionais, com escritórios em vários países, e

que não expõem trabalhos de artistas com uma “baixa cotação” neste

mercado. Isto atinge, inclusive, países como a França e a Inglaterra,

que antes apresentavam uma liderança estética reconhecida e que

hoje, segundo dados de CANCLINI (2003), não superam 15% das

operações públicas no mercado mundial.

Entretanto, este estreitamento não se torna evidente, uma vez

que dispomos nos dias contemporâneos de oportunidades antes

nunca imaginadas no que se refere à circulação de exposições, feiras,

bienais que reduzem o caráter nacional das produções estéticas, mas,

por outro lado, abrem a possibilidade de conhecimento de obras do

patrimônio artístico universal que estavam anteriormente restritas a um

público bastante reduzido. O que temos, então, é uma aparente


democratização do acesso à arte, uma vez que viabiliza-se através do

mercado, o contato com este patrimônio, ainda que de maneira

imediata e sem que isso problematize as relações de poder que o

mercado consegue impor neste cenário. Neste contexto, as relações

transfronteiras tornam-se mais decisivas do que a representatividade

nacional, e o lugar do artista passa a ser definido não a partir de uma

visão interna a cada cultura em particular, mas no trânsito desta com

outras culturas.

CANCLINI (2003) avalia, ainda, que as dificuldades de acesso a

este mercado global são mais evidentes quando se trata de produtos

visuais que, por questões de várias ordens, não conseguem

transcender as culturas regionais. Em sua avaliação, existem

excelentes artistas e produtores culturais que, entretanto, não

conseguem se envolver em exposições metropolitanas, dada a

rigorosa especificidade de sua produção, ligada, por exemplo, a

questões regionais mais específicas. Estas últimas são vistas como

questões menores, menos envolventes, que atingem um público mais

restrito e que, portanto, não interessam o mercado de uma forma mais

ampla. Não está ausente, neste momento, um importante elemento de

dominação: as estéticas originárias das metrópoles, quando se


interessam pela periferia, quase sempre esperam uma marginalidade

folclórica, um exótico sem possibilidade de maiores abrangências.

O que se verifica, desde os anos 90, é que, também no que se

refere ao campo artístico mais especificamente, constrói-se um

cenário de tensão entre estas tendências homogeneizadoras e

comerciais da globalização e, por outro lado, a valoração deste campo

como uma instância em que se conservam e mesmo se renovam

importantes diferenças simbólicas. Deste desencontro, temos assistido

importantes movimentos de experimentação e de inovação, mas que

ainda não se constituíram como um movimento mais amplo de

questionamento dos processos de mercantilização e padronização que

atingem os bens e as mensagens culturais.

Neste sentido, poderíamos afirmar que nesta abordagem sobre a

“globalização da cultura”, o nacional, enquanto especificidade, parece

ter perdido a capacidade de explicar os fenômenos sociais. Assim, os

elementos de uma possível “identidade nacional”, construída e

manifestada através da cultura, teriam perdido sua validade, uma vez

que as nações e as nacionalidades estão hoje atravessadas por

questões e relações de poder produzidas em escala mundial, cuja

relação com um único e determinado território não seria mais possível.


Desta forma, as referências para a construção de uma identidade

entre as pessoas e as sociedades estariam localizadas não em um ou

em outro território nacional específico, mas em elementos globais,

desterritorializados.

Destas afirmações, poderíamos avaliar que o que estaríamos

assistindo seria, então, uma aceleração dos fluxos de pessoas,

mercadorias, capital e informações por todo o mundo, permitindo, a

priori, um maior intercâmbio e uma maior integração mundiais. No

entanto, a aproximação crítica com esta perspectiva nos conduz a

pensar que estes elementos não significam uma maior

democratização da cultura, uma vez que as relações de dominação e

de dependência econômicas, acentuadas com o contexto de

mundialização do capital, dariam a estes fluxos, no que se refere ao

universo cultural, um caráter unidirecional, ou seja, as influências e

referências culturais viriam dos países de capitalismo central e seriam

absorvidas pelos países periféricos através de mecanismos como os

da indústria cultural em direção, prioritariamente, à cultura de

consumo.

Em outros termos, trabalha-se com a idéia de que é possível a

extensão de uma determinada cultura até o limite global. Assim,


culturas heterogêneas tornar-se-iam incorporadas e integradas a uma

cultura dominante, através de um processo de conquista e unificação

do espaço global, onde diferentes povos e nações poderiam ser

assimilados a uma cultura comum. Esta desterritorialização

representaria o desenraizamento territorial de elementos que

permitiam, em outro contexto histórico, pensar a possibilidade de uma

cultura nacional, única e coesa. Os grupos e as comunidades

nacionais se encontrariam envolvidos pelas “referências culturais

globais”, ou seja, elementos que, nas artes, no pensamento científico,

nos espaços públicos, nos mais diferentes aspectos da vida social,

permitiriam a construção de valores ou de visões de mundo, mas que

não estão mais vinculados, necessariamente, a um ou outro território

nacional. Evidentemente, estas referências globais não são as únicas

que existem nos dias atuais, mas, na análise sobre a

desterritorialização, elas ganham força e se divulgam com tamanha

rapidez, que poderiam conquistar uma perspectiva realmente

hegemônica no cotidiano das mais diferentes realidades nacionais.

A citação abaixo exemplifica esta perspectiva:

O conhecimento acumulado sobre a sociedade nacional não é


suficiente para esclarecer as configurações e os movimentos de
uma realidade que já é sempre internacional, multinacional,
transnacional, mundial ou propriamente global. É óbvio que a
sociedade nacional continua a ter vigência (...). Mas a sociedade
nacional não dá conta, nem empírica nem metodologicamente,
nem histórica ou teoricamente, de toda a realidade na qual se
inserem indivíduos e classes, nações e nacionalidades, culturas e
civilizações. (IANNI, 1999, p. 239)

Entendemos que esta perspectiva não pode ser

absorvida sem contestações. No que se refere

especificamente ao estudo das relações e das identidades

culturais, constata-se que não existe uma completa oposição

entre local, nacional e global, uma vez que os dois primeiros,

se aparentemente perderam o status de espaço para a

construção da cultura (argumento que posteriormente,

pretendemos desconstruir), ganharam a condição de locus

onde o global se realiza, ou seja, onde se manifestam as

relações de identidade dos grupos com estas referências

globais. Neste encaminhamento, a idéia de globalização

como homogeneização poderia ser relativizada, uma vez

que, ao se reterritorializar, ao ser absorvida em diferentes

locais e nações, esta globalização é também alterada pelas

particularidades dos grupos. Desta forma, longe de ser uma

fatalidade, a globalização também está atravessada pelas

lutas sociais presentes na história e, portanto, marcada pelas

contradições inerentes ao próprio sistema que a criou. Assim,

esta relação entre local, nacional e global na esfera cultural

não é um processo livre de hierarquias e distinções.


Entender estes vetores de dominação e, ao mesmo tempo, as

possibilidades e as formas de conflito que atravessam as sociedades neste

contexto de sociedade global nos parece um desafio marcante para as Ciências

Sociais hoje. Parece-nos que este conhecimento é a única possibilidade de afastar

o risco de imaginarmos a globalização como algo harmônico e incontrolável,

ignorando, assim, o movimento de crítica e de questionamento, principalmente dos

setores populares. Este nos parece ser o ponto fraco desta perspectiva de análise

acerca da globalização, ou seja, a idéia de que os processos de integração,

homogeneização e unificação pretendidos pelo capital em seu momento

mundializado não seriam elementos de contestação e de resistência.

3.2 – Uma perspectiva alternativa da globalização da cultura – o

“encontro com o diferente”

Uma segunda abordagem sobre o processo de globalização

contemporâneo parece apontar, no que se refere à cultura, para uma

conseqüência paradoxal: ao mesmo tempo em que aponta para uma

“possibilidade de homogeneidade”, também encaminharia um maior

contato com a diversidade que demarca esta esfera. Segundo esta

perspectiva, a intensificação dos fluxos de informação, conhecimento,

capital, mercadorias, pessoas e imagens parece ter reorientado o

senso que, anteriormente, separava e “isolava” as pessoas.

SAID (1995) nos chama a atenção para o fato de que existiu

sempre uma relação intrínseca entre o imperialismo (europeu e, agora,


norte-americano) e a cultura dos “povos dominados”. Tal relação,

sustentada pelo Ocidente metropolitano, resumia-se, a princípio, na

dicotomia “nós/ eles”, onde o “objetivo” ocidental seria de “levar a

civilização a povos bárbaros ou primitivos”, que tinham a necessidade

de dominação, pois “o que ‘eles’ melhor entendiam era a força e a

violência”.

O imperialismo europeu sustentava, assim, uma relação que era,

sem dúvida, de subordinação, expulsando as identidades “primitivas”

da cultura e da própria idéia da Europa. A modernidade ocidental

postulava que as regiões colonizadas, em decorrência de seu histórico

atraso, sobretudo econômico e tecnológico, não possuíam vida,

história ou cultura dignas de menção ou de representação sem a

referência ao Ocidente. Sob esta relação clara de dominação

imperialista, foram construídas e sustentadas, até a metade do século

XX, imagens unitárias, coerentes e ordenadas do que seria a

modernidade, projetadas a partir dos centros ocidentais.

Nas palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 105)

Partia-se do pressuposto de que as estruturas do mundo natural e


social podiam ser desvendadas por meio da razão e da ciência.
Estas últimas detinham um conhecimento tecnologicamente útil
que lhes permitira domar a natureza, mas também levaria a uma
tecnologia social paralela, destinada a aperfeiçoar a vida social e a
introduzir “a boa sociedade”. Juntamente com o desenvolvimento
da ciência e da tecnologia, a expansão do capitalismo industrial, a
administração pública e o desenvolvimento dos direitos da
cidadania eram vistos como uma prova convincente da
superioridade fundamental e da aplicabilidade universal do projeto
da modernidade. Presumia-se que as nações ocidentais, as
primeiras a desenvolver e aplicar tal conhecimento, estavam muito
adiante no processo de desenvolvimento social e poderiam manter
confiantemente sua liderança, na medida em que povos de outras
partes do mundo procuravam, com muito empenho, seguir e colher
os benefícios da modernização.

Na orientação imperialista clássica, entendia-se que a

separação das sociedades no espaço representava, também,

uma separação fundamental no tempo. As sociedades

tradicionais passariam ao status de sociedades modernas

através de um conjunto de processos específicos de

expansão do modo de produção capitalista que tomariam

lugar nestas sociedades: industrialização, urbanização,

mercantilização, racionalização, diferenciação,

burocratização, expansão da divisão do trabalho,

crescimento do individualismo e processos de formação do

Estado-nação.

O contexto do imperialismo sustentava, portanto, uma

noção exclusiva e vigorosa de identidade nacional enquanto

elemento de interação, como parte de um processo de

formação dos Estados-nação, que se entregavam cada vez

mais a uma configuração competitiva acirrada. A emergência

e a consolidação da consciência nacional constituiu, a partir

deste momento, o principal elemento de integração cultural


incentivado pelo Estado moderno para a sua constituição

enquanto agente do desenvolvimento do sistema econômico

capitalista.

O processo de pós-colonialismo e antiimperialismo teve,

como uma das bases de sua orientação, a constituição

específica da esfera cultural, entendida como a possibilidade

de se expor e refletir sobre as lutas econômicas, políticas e

ideológicas de uma sociedade. O contato cada vez mais

intenso entre europeus, norte americanos e os antigos povos

colonizados trouxe à tona uma série de questões culturais

que gradativamente parecem alterar, segundo alguns

autores, o jogo de poder construído no cenário mundial. O

pós-colonialismo teria sido, assim, o período de emergência

de novas narrativas, de vozes recém-assumidas que, pela

primeira vez, tinham a oportunidade de questionar e

reinterpretar a história e a cultura do imperialismo, buscando

uma argumentação elaborada sem o peso da dominação.

Nas palavras de SAID (1995, p. 250)

Os ocidentais vieram a perceber que o que eles têm a dizer sobre


a história e as culturas dos povos “subordinados” é questionável
para esses mesmos povos, os quais, até poucos anos atrás,
estavam simplesmente incorporados, com cultura, terras, história e
tudo, nos grandes impérios ocidentais e seus discursos
disciplinares.
Em outras palavras, o império ocidental, que sempre

sustentou uma reflexão sobre o contato cultural baseada na

dominação e na apropriação pela força, passou por um

processo em que se criavam condições para que ele fosse

minimamente enfrentado e questionado.

Pela primeira vez, os ocidentais foram compelidos a se encarar


não simplesmente como o governo colonial, mas como
representantes de uma cultura e mesmo de raças acusadas de
crimes – crimes de violência, crimes de eliminação, crimes de
consciência. (IBIDEM: 250)

Para o mundo ocidental, sobretudo a Europa, a

sensação de mudança de perspectiva na relação Ocidente e

não–Ocidente era inteiramente nova. A idéia de que o

domínio europeu havia proporcionado modernidade às

colônias foi substituída pela ponderação oposta de que, na

verdade, o progresso e o bem estar da Europa foram

construídos através de um violento processo de dominação.

Desta crítica à dominação ocidental, teve início o que

poderíamos denominar como uma emergente “cultura de

resistência”, onde uma complexa relação de integração e

separação da cultura ocidental colocava para os povos,

agora independentes, a possibilidade de redescobrir e

reafirmar o que fora culturalmente suprimido pelos processos

de dominação.
Segundo SAID (1995), a cultura pode favorecer, nestes

casos, tanto a resistência quanto o conformismo com a

condição de dominado. Em sua opinião, construir uma

cultura de resistência requer compreendê-la como apenas

um dos aspectos da vida social em toda a sua complexidade.

Em outras palavras, uma cultura de resistência só pode

ocorrer quando, dentre outros fatores, instala-se, também,

internamente uma exaustão política e econômica que

questione o custo do domínio colonial e, em decorrência

disso, as representações do imperialismo comecem a perder

justificação e legitimidade.

É neste sentido que se afirma que o esforço pela

restauração da comunidade pré-colonial e pela retomada da

cultura não é um processo imediato. Ele permanece por

muito tempo após o estabelecimento político dos Estados-

nação independentes, fazendo da resistência e da

descolonização um processo contínuo e permanente.

As narrativas de emancipação e esclarecimento em sua forma


mais vigorosa também foram narrativas de integração, não de
separação, história de povos que tinham sido excluídos do grupo
principal, mas que agora estavam lutando por um lugar dentro
dele. (SAID, 1995, p. 29)

Nesta cultura de resistência, existiria a preocupação de se

realizar um remapeamento do território cultural, buscando


reconstituir o passado da comunidade, resguardando-a

contra as pressões do sistema colonial. Uma “redescoberta

cultural” apresentaria a necessidade de encontrar uma base

ideológica capaz de dar a sustentação e a unidade que

aquelas comunidades, em seu período de vivência colonial,

jamais haviam experimentado.

É esta a investida de estudiosos e artistas não

europeus, que, revendo e repensando o terreno comum a

europeus e colonizados, reconhecem a necessidade de uma

autoconsciência dos antigos povos colonizados, que tenham

por princípio superar a consciência de um Outro designado

historicamente como inferior. As experiências do pós-

colonialismo se mostram, assim, reinterpretáveis e revivíveis,

pois o “nativo” agora poderia falar e agir em seu próprio

território, reconstruindo as interpretações nativas sobre si

mesmos, que não poderiam agora ser apenas descartadas

ou silenciadas. Tais povos buscam ver a vida de suas

comunidades como passíveis de desenvolvimento, como

parte de um processo de trabalho, crescimento e maturidade

a que anteriormente apenas os europeus pareciam ter

direito.

As perspectivas de análise desta “cultura de resistência”

reconhecem que sua construção não se faz, entretanto, sem

profundas contradições. O imperialismo foi função tanto da


expansão dominante européia quanto de uma relativa

“colaboração” por parte dos povos colonizados que, em certa

medida, viam nesta experiência a possibilidade de acesso a

um “mundo desenvolvido” que lhes parecia inalcançável por

seus próprios esforços. Assim, no momento de

independência, não faltou, junto a estes povos, uma

tendência a se “imitar” o estilo europeu moderno, procurando

se modernizar segundo aqueles padrões de progresso. SAID

(1995) nos fala, inclusive, de missões nativas enviadas a

países do Ocidente com o objetivo de “aprender” os usos e

os hábitos do “homem desenvolvido”.

Uma das questões que exemplificam estas contradições

no processo de resistência cultural é a própria idéia de

nacionalismo. Neste sentido, cresce junto a estas populações

o que poderíamos chamar de um “nacionalismo

antiimperialista”. Este é um ponto altamente polêmico no

debate acerca do pós-colonialismo, pois, em muitos casos,

este nacionalismo significou apenas uma substituição de

autoridades e de burocratas imperialistas por equivalentes

nativos, aumentando, assim, os perigos de chauvinismo e da

xenofobia. Para parte dos autores que analisam este


fenômeno39, este nacionalismo, herdado da cultura ocidental,

não levou estes povos à consciência da própria história como

um aspecto da história de todos os homens e mulheres

subjugados.

Constrói-se como uma necessidade para estes povos

reencontrar e construir uma “nação”, em seu sentido mais

específico, onde elementos como a língua e a cultura

nacionais eram formas de se organizar e sustentar uma nova

memória, com narrativas locais, autobiografias, memórias

que procuravam fazer um contraponto às histórias

monumentais e aos discursos oficiais reproduzidos pelo

imperialismo em sua fase expansiva. Assim, uma das

primeiras tarefas da cultura de resistência foi a busca de uma

origem nacional mais adequada, tentando reivindicar a

retomada da terra e da cultura colocadas sob dominação

imperialista. Neste processo, a contradição de um nativismo

nascente vem à tona, a partir do momento em que é

reforçada a distinção hierárquica estabelecida pelo

imperialismo, mesmo quando se valoriza o lado mais fraco

ou servil. Por outro lado, em meio a uma expectativa de

reencontro com as origens pré-coloniais como as bases

autênticas dos povos recém descolonizados, a

39
SAID avalia estas posições através das formulações de Elie Kedourie, Eric Hobsbawn,
Ernest Gellner e Partha Chatterjee.
nacionalidade, o nacionalismo e o nativismo são conduzidos

como uma força mobilizadora de resistência contra o império.

SAID (1995) resume bem esta contradição ao afirmar

que, em um primeiro momento, o nacionalismo é o caminho

encontrado pelos povos colonizados no sentido de fazer

avançar a luta contra o domínio ocidental, na medida em que

possibilita uma restauração da comunidade e o surgimento

de novas práticas culturais, buscando construir uma nova

identidade. No entanto, recuperando categorias gramscianas

de análise, este autor pondera que este nacionalismo é

necessário, mas não é suficiente, pois a proposta de

libertação destes povos deve ser muito mais ampla,

necessitando da articulação de suas lutas e demandas com

as de outros povos dominados. O limite à realidade

nacionalmente restrita pode conduzir a velhas ortodoxias,

injustiças e pensamentos autoritários incapazes, no final das

contas, de questionar e de superar as bases do poder

imperialista. Neste caso, libertação não se limita à

independência nacionalista, pois envolve a transformação da

consciência social para além da consciência nacional.

É em meio a este contraditório processo de

independência e de emancipação dos antigos povos

colonizados que podemos ver surgir as bases de uma

diferente concepção de “globalização da cultura”. Assim, o


século XX, sobretudo o período pós-anos 40, foi palco de

uma enorme difusão de culturas não européias no centro

metropolitano, culturas estas que, embora situadas em fases

diferenciadas de desenvolvimento, comungavam de uma

inquestionável experiência antiimperialista. Autores que

abordam este processo de “viagem para dentro” arriscam

afirmar que tais culturas periféricas, trazidas para o interior

dos países ocidentais, conseguiram transformar as

disciplinas e dar voz a novas idéias que modificaram a

estrutura de atitudes e referências da cultura européia.

Esta lógica sustentaria a idéia de que, nas palavras de

SAID (1995, p. 28), “todas as culturas estão mutuamente

imbricadas, nenhuma é pura, todas são híbridas,

heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer

monolitismo”. Teria acontecido, assim, uma troca cultural que

permitiria hoje, às culturas periféricas, dialogar e mesmo se

contrapor à cultura metropolitana utilizando as técnicas, os

discursos e armas do saber e da crítica antes reservados

somente aos europeus. Por outro lado, WILLIAMS (1992)

argumenta que ainda não é certo se tais contatos geram

rupturas agudas e até violentas com práticas tradicionais ou

se eles acabam sendo absorvidos e se tornam parte da

cultura dominante de um período metropolitano subseqüente.

Segundo ele, o que existe agora é uma sobreposição e


interdependência que não pode ser imediatamente resumida

à reação de uma identidade nativa ocidental separada.

Este movimento antiimperialista daria início a uma

variedade da obra cultural híbrida. Estaria, assim, se

constituindo uma internacionalização adversária capaz de

questionar a manutenção das estruturas imperialistas e de

comprovar que a história não corre unilateralmente. Tendo

por base toda esta estrutura histórica do pós-colonialismo, a

abordagem diferenciada de globalização vai reconhecer, no

mundo todo, uma multipolaridade e uma emergência de

novos centros competitivos que vêm, nos dias de hoje,

colocando em xeque o pressuposto de que os países

economicamente dominantes são o centro a partir de onde

tudo flui em direção a uma periferia absolutamente

dependente.

Um elemento marcante para a construção deste

questionamento relaciona-se com a movimentação cada vez

mais intensa de pessoas no mundo, entre culturas e

fronteiras, que deslocam a perspectiva de uma exclusiva e

vigorosa identidade nacional para o reconhecimento, cada

vez maior, de que estamos lidando com sociedades

multiculturais. Isto acaba por redimensionar, quando não

desconsiderar, as antigas imagens unitárias coerentes e

ordenadas de uma modernidade que, advinda dos grandes


centros ocidentais, permitiu a europeus e norte-americanos

projetarem a sua civilização, sua história e seus

conhecimentos como se eles fossem universais.

O que se sugere, neste sentido, é que vivemos em um

mundo culturalmente globalizado não porque estamos

submetidos a uma homogeneização cada vez mais evidente.

No universo das questões culturais, o que estaríamos

vivenciando, desde meados do século XX, seria justamente o

contrário, ou seja, uma relativização espacial do Ocidente.

Nas palavras de FEATHERSTONE (1997, p. 29)

A auto-imagem ocidental e a do outro passivo sofrem uma


contestação cada vez mais intensa. (...) já não é mais possível
conceber os processos globais em termos da dominação de um
centro único sobre periferias. Ao contrário, existem inúmeros
centros competitivos que estão causando modificações no
equilíbrio global do poder entre os Estados-nação e os blocos e
forjando novos conjuntos de interdependências. Com isso, não se
pretende sugerir uma condição de igualdade entre os
participantes, mas um processo que está vendo mais parceiros
admitidos ao jogo, os quais exigem acesso aos meios de
comunicação e ao direito de serem ouvidos.

O processo de globalização em curso teria, portanto,

permitido um tamanho fluxo global de informações,

tecnologias, debates e questionamentos que teria propiciado,

na verdade, um novo estágio para as diferenças globais, uma

“vitrine mundial das culturas”, um entrechoque cada vez mais

discordante das culturas. A diferença agora é que não

existiria mais um único centro civilizatório em relação ao


resto do mundo. A globalização teria nos tornado conscientes

de novos e indissolúveis níveis de diversidade cultural.

O resultado das lutas e questões econômicas, sociais

e políticas nos séculos XIX e XX foi a prioridade para se criar

uma “cultura nacional”. Esta expressão supunha a formação

de concepções unitárias de culturas, muitas vezes

concepções altamente reificadas, onde a integração e a

inclusão, como objetivos expressos, conduziam,

necessariamente, ao seu oposto, à rigidez e à exclusão. A

partir do final do século XX, a conceituação de uma “des-

ordem cultural” e de sincretismos cada vez mais complexos

deixa de ser algo excepcional, passando a considerar como

objetivo a inclusão de perspectivas culturais desintegradas.

Um “outro” cada vez mais próximo no tempo e no espaço

procura dialogar e desafiar qualquer descrição particular de

seu mundo, apresentando-se como um interlocutor

impossível de ser ignorado.

Nesta perspectiva do processo de globalização, o

sentimento de que “somos o mundo” parece estar cada vez

mais evidente. No entanto, isto não significa

homogeneização, como propõe a primeira perspectiva, mas

sim um maior intercâmbio e colisão de diferentes narrativas

históricas. Ocorre o reconhecimento de que povos do mundo

não-Ocidental têm histórias próprias e de que uma


percepção histórica linear interminável de unificação do

mundo se torna difícil de sustentar. A história só pode ser

compreendida em relação com outras temporalidades

coexistentes e espacialmente distintas. Em outras palavras,

quaisquer termos e expressões que possam traduzir um

inquestionável senso de unidade e universalidade tornam-se

agora problemáticos e limitados.

O senso de que para o mundo existem histórias plurais, de que


existem culturas e particularidades diversas que foram excluídas
do projeto universalista da modernidade ocidental, mas que agora
afloram, a ponto de lançarem dúvidas sobre a viabilidade do
projeto, é um desfecho particular da atual fase do processo de
globalização. Ele assinala uma avaliação mais positiva do
Ocidente em relação à alteridade e às diferenças resultantes da
mudança no equilíbrio do poder entre nações que,
progressivamente, se vêem unidas em uma configuração global,
em que se torna cada vez mais difícil optar por sair.
(FEATHERSTONE, 1997, p. 127)

Neste processo, redefine-se o que vemos ser

denominado por cultura global. Ao contrário da idéia de que

uma única nação predominante poderia desenvolver uma

cultura global comum, como anteriormente especificamos,

nesta abordagem tal cultura seria caracterizada por uma

maior diversidade de intercâmbios, onde encontros

transculturais e transnacionais se tornam freqüentes,

principalmente a partir de imagens e informações

socializadas a partir da mídia. Estes contatos e trocas

culturais não ocorrem, entretanto, sem conflitos e sem


enfrentamentos. Falar de uma cultura global, neste sentido,

significa incluir diferentes formas de conformação cultural,

onde a idéia da “tolerância” ainda é a determinante e uma

perspectiva cosmopolita ainda esta por se construir e afirmar.

A atual fase de globalização teria, então, apresentado

para os países dominantes, a necessidade de “aprender a

tolerar” uma maior diversidade cultural no interior de suas

fronteiras, manifestada pelo multiculturalismo e pela

polietnicidade. Isso aumentaria a demanda por uma igual

participação, pela expansão de direitos de cidadania e por

maior autonomia para minorias regionais e étnicas.

É neste sentido, de uma maior interação e de um maior

envolvimento de diferentes processos culturais em todo o

mundo que um outro conceito de “cultura global” estaria

ganhando força e se tornando tão significativo quanto o

anterior conceito de uma cultura nacional ou local. Esta

perspectiva tenta relativizar a idéia de que existe uma

ameaça à cultura local a partir do momento em que ela se

integra a redes regionais, nacionais e transnacionais mais

amplas, por meio do desenvolvimento de uma alta tecnologia

em termos dos meios de comunicação. Longe de perder sua

particularidade e sua força referencial, as culturas locais se

tornariam mais imediatas e enfrentariam a necessidade

urgente de se fazerem inteligíveis, uma vez que suas


fronteiras tornaram-se algo mais permeável e difícil de

manter. Neste caminho, uma série de reações nacionalistas,

étnicas e fundamentalistas à globalização em curso foi se

construindo no mundo todo, mas, segundo FEATHERSTONE

(1997), este não seria o caminho mais apropriado para se

pensar as relações culturais no mundo contemporâneo, às

quais deveriam ser pensadas a partir da lógica da interação e

do intercâmbio capazes de compor esta cultura global

marcada, principalmente, pela diversidade. Reage-se, assim,

a uma forma de globalização, propondo-se outra, onde se

reconstituam identidades coletivas locais dentro de uma linha

pluralística e multicultural, onde as diferenças étnicas e

regionais sejam levadas em conta. O mundo agora seria um

“espaço dialógico”, embora com discordâncias, colisão de

perspectivas e conflito.

Para os autores que defendem esta concepção, encarar

o global e o nacional (ou local) como dicotomias separadas

no espaço e no tempo não seria, contemporaneamente, o

caminho para se pensar o universo cultural. Na verdade, os

processos de globalização e de localização estariam

inevitavelmente ligados na atual fase.

Experimentamos aqui, a sensação de que o mundo


contemporâneo não presenciou um empobrecimento cultural, uma
atenuação dos recursos culturais. Tem havido, na verdade, uma
ampliação dos repertórios culturais e uma intensificação da
engenhosidade de vários grupos no sentido de criar novos modos
simbólicos de afiliação e de pertença (...). (IBIDEM: 154)

Assim, o processo de globalização levaria à colisão de

diferentes interpretações sobre o significado do mundo,

construídas por diferentes tradições nacionais e civilizatórias,

e não poderia ser visto como o produtor de uma cultura

comum, integrada e unificada. A diversidade cultural, bem

como diferentes elementos de identidade (étnicos ou

nacionais, mas também de geração, gênero, sexo e classe,

entre outros) estariam não só presentes, mas absolutamente

fortalecidos no mundo globalizado em que vivemos.

Diferentes universos culturais não se ignoram. São até

mesmo capazes de manter certo grau de impermeabilidade,

mas também procuram realizar importantes trocas culturais

sempre que isso se mostre possível. Tais trocas não foram

necessariamente para melhor, nem vêm sendo capazes,

como podemos perceber nos conflitos internacionais que

estamos vivenciando, de criar um ponto de convergência

entre eles, mas criam, inevitavelmente, oportunidades de

mistura entre seus elementos.

O estudo destas trocas e desta perspectiva multicultural

no mundo contemporâneo vem sendo realizado por diversos


autores e o debate construído entre eles nos parece

importante para as discussões que estamos realizando.

SAHLINS (1997), em seu artigo O “pessimismo

sentimental” e a experiência etnográfica, inicia suas

formulações afirmando que, apesar dos processos de

globalização em curso, “a cultura não é um objeto em

extinção”. Em sua abordagem, “a cultura nomeia e distingue

a organização da experiência e da ação humanas por meios

simbólicos” e isso jamais será abandonado.

Este autor reconhece que, em razão do processo de

desenvolvimento da nova ordem capitalista mundial, as então

chamadas “culturas exóticas” estão certamente passando por

um momento de reformulação ou mesmo de redefinição. O

que antes, no interior da Antropologia, serviria como

instrumento de demarcação da diferença como tal, chegando

até mesmo a servir à subordinação e à exploração, estaria

agora se transformando radicalmente, através de um

intercâmbio cada vez maior e mais amplo com outras

culturas e civilizações.

No entanto, esta mesma cultura estaria reaparecendo

como um elemento de reafirmação desta diferença, mas

agora numa posição de contraponto às forças do

imperialismo ocidental. SAHLINS pondera que a cultura é,

assim, a antítese de um projeto colonialista de estabilização,


e os mais diferentes povos, nas mais diferentes partes do

mundo, se utilizariam de suas culturas não apenas para

remarcar e reconstruir sua identidade, mas também para,

como diz o autor, “retomar o controle do próprio destino”.

O autor continua suas reflexões afirmando que o

“pessimismo sentimental” que ronda os estudos culturais, ou

seja, a convicção de que “a vida dos outros povos do planeta

estaria desmoronando em visões globais da hegemonia

ocidental”, não daria conta dos vários tipos de “resistência

cultural” que estariam se construindo em todo o mundo.

Estas diferenças culturais, silenciadas e dominadas durante

os anos do colonialismo, estariam retornando, “pela porta

dos fundos”, e construindo novos projetos de identidade

coletiva. A cultura destes povos permanece porque sua

consciência e sua capacidade de construir significados

também estão intactas.

Desenvolvem-se, assim, simultaneamente, uma

integração global e uma diferenciação local.

As semelhanças culturais da globalização se relacionam


dialeticamente com as exigências de indigenização. (...)
Justamente por participarem de um processo global de
aculturação, os povos “locais” continuam a se distinguir entre si
pelos modos específicos como o fazem. (SAHLINS, 1997, p. 57)
Este autor nos propõe a análise do momento

contemporâneo, então, como uma “cultura mundial da(s)

cultura(s)”, o que, em sua essência, seria radicalmente

distinto de uma “cultura global”. O que estaria em jogo neste

novo esquema seria uma organização e uma compreensão

racional da diversidade, e não uma replicação da

uniformidade. As formas de adaptação dos povos locais ao

sistema mundial não devem ser compreendidas como

“inautênticas”, mas como parte integrante desta diversidade

cultural, que se constrói em um intercâmbio dialético do

global e do local. Para citar novamente o autor, “o

imperialismo não está lidando com amadores nesse negócio

de construção de alteridades ou de produção de identidades”

(1997, p. 133).

Outro autor que também se preocupa em determinar com

maior precisão as formas contemporâneas de contatos e

trocas culturais originados do processo de globalização é Ulf

Hannerz. Ele reconhece que, durante muito tempo, o tema

das interconexões culturais no espaço não constituía uma

área de grande interesse para a Antropologia, que, ao

contrário, dava mais valor àquilo que caracterizava a

“pureza” e a “originalidade” das culturas nativas. Para ele,

somente nos anos 90, a globalização e a transnacionalização

tornaram-se um novo objeto de pesquisas para esta área.


Frente a isso, HANNERZ (1997) se propõe a dimensionar

termos e expressões que, no contexto contemporâneo,

aparecem associados à problemática da globalização e dos

contatos e trocas culturais. Detendo-se, sobretudo, em três

termos, quais sejam, fluxos, limites e híbridos, o autor não

deixa de afirmar que tais termos constituem, na verdade,

metáforas que se encontram sujeitas a oscilações e

contestações. Vale observarmos o que ele compreende por

cada um destes termos.

O termo fluxos se relaciona, em sua acepção mais imediata,

a “coisas que não permanecem no seu lugar, a mobilidades e

expansões variadas”. No estudo da globalização, este termo

parece essencial, pois o que vivenciamos nos dias atuais é a

intensificação dos fluxos do capital, de trabalho, de pessoas,

de mercadorias, de informações e de imagens. A noção de

fluxo nos capacita, no que se refere à cultura, a pensá-la em

termos processuais, evitando o risco da reificação. Assim,

esta noção sustenta dimensões espacial e temporal. Esta

última implica em pensar nos elementos culturais em

constante movimento, capazes de serem sempre recriados, o

que os torna, na verdade, passíveis de permanecerem

duradouros. É o fluxo cultural, numa dimensão temporal, que

faz com que as pessoas possam refletir e transmitir uma

cultura, mantendo-a viva. No entanto, para as discussões


referentes à questão da globalização, é a dimensão espacial

que dá à noção dos fluxos um papel relevante. Segundo

HANNERZ, os fluxos têm direções e o que acontece é uma

reorganização da cultura no espaço mundial. Este processo,

no entanto, não acontece sem conflitos ou contradições, pois

se deve sempre observar, no cenário global de fluxos, um

centro no qual eles se originam e uma “periferia” para a qual

se destinam. O autor duvida que tenhamos chegado a um

ponto onde seja impossível distinguir os centros das

periferias. Este é, aliás, o ponto crítico para o debate atual,

pois o que se observa é uma tendência a que se dê maior

atenção à multicentralidade, aos fluxos entrecruzados, à

descentralização. Para estas formulações, a dicotomia

centro/ periferia coloca a questão dos fluxos como uma

questão de simples transposição, simples transmissão

unilateral de significados, o que parece ser um equívoco

diante das mudanças contemporâneas em nossa sociedade.

Em oposição à idéia de fluxo, fronteira (ou limite) vai indicar

descontinuidades e obstáculos, ou seja, a linha em relação à

qual se está dentro ou fora de determinados limites. A partir

dos nos 50, afirma HANNERZ, a cultura passou a ser

considerada como um “marcador de grupos”, implicando, ao

mesmo tempo, pertencimentos e exclusões, o que está

diretamente associado tanto a questões econômicas quanto


políticas. No que se refere à globalização a partir do final do

século XX, entretanto, estes limites estão cada vez mais

tênues e difíceis de serem demarcados. As experiências

vivenciadas pelas pessoas através das diversas formas de

fluxos fazem com que elas sejam envolvidas nas

diversificadas correntes de cultura que se fazem presentes

em seu cotidiano, construindo diferentes oportunidades de

identidade que não, especificamente, a grupal. Em outras

palavras, outras maneiras e outros pontos de referência se

afirmam no momento de fixar limites, os quais, por sua vez,

são transcendidos com maior rapidez, facilidade e, ao

mesmo tempo, racionalidade. Assim, segundo o autor, uma

compreensão suficientemente pluralista é necessária para se

dar conta das variações na forma cultural em questão. Isso

não significa, entretanto, que estes limites e estas fronteiras

não existam, muitas vezes como claros elementos de

“resistência cultural”, sobretudo para povos antes

colonizados.

Seu terceiro termo, hibridez, sugere, no interior dos estudos

culturais, a idéia de mistura, de miscelânea, de algo novo

que ingressa em determinada cultura como “um pouco disto

e um pouco daquilo”, em uma clara possibilidade de

renovação e de adaptação cultural. É como se surgisse,

através de um processo de fusão, um terceiro sistema


sociocultural novo. Assim como outros termos que também

vão expressar, como afirma HANNERZ, possibilidades de

mistura, tais como sinergia, transculturação, criolização e

sincretismo, a idéia de hibridez se transforma em um dos

elementos-chave para compreendermos os contatos e as

trocas culturais próprios do momento contemporâneo, onde

os elementos de dominação estariam sendo, ao mesmo

tempo, questionados e assimilados por povos anteriormente

subordinados.

Aliás, é sobre esta questão da hibridação que se debruça um

outro autor bastante presente nos debates contemporâneos

acerca da globalização e da cultura. Néstor Garcia Canclini,

pensando sobretudo o contexto latino-americano, vai afirmar

que a hibridação foi o elemento-chave para compreendermos

a latinidade, para a qual contribuíram, em sua origem, os

elementos dos países da Europa, do indígena americano e

das migrações africanas. Este processo de mistura

continuaria nos dias atuais em relação aos Estados Unidos, à

Europa e à Ásia. Ao final do século XX, afirma o autor,

fatores como os processos interétnicos e de descolonização,

globalizadores, viagens e fronteiras, cruzamentos artísticos,

literários e comunicacionais tornam a idéia da hibridação

indispensável para a análise das culturas.


O autor define hibridação como as oportunidades de

processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas que

existiam em forma separada, combinam-se para gerar novas

estruturas, objetos e práticas. Assim, pensar em hibridação

significa colocar em evidência a produtividade e o poder

inovador de experiências interculturais, quando se busca

reconverter determinado patrimônio para reinseri-lo em

novas condições de produção e de mercado.

Segundo CANCLINI (2000, p. 69), o objeto de estudos e de

discussão nos dias de hoje deve ser os processos de

hibridação, os quais acabam por relativizar a noção de

identidade, antes compreendida como algo “puro” ou

“autêntico”, o que acabava por limitar a possibilidade de se

modificar a cultura e a política. Os processos de hibridação

demonstram que não é possível falar de identidade como se

fosse um conjunto de traços fixos, ou como a essência de

uma etnia ou nação. No contexto da globalização em curso,

a hibridação demonstra sua força, uma vez que, para os

mais diferentes autores situados nesta linha de análise, as

identidades se reestruturam em meio a conjuntos

interétnicos, transclassistas e transnacionais e procuram se

situar e se afirmar em meio a uma heterogeneidade cada vez

mais marcante.
Ao defender a noção de hibridação como capaz de explicar a

constituição cultural latino-americana, CANCLINI (2000) não

deixa de afirmar, no entanto, que a hibridação se constrói em

meio a contradições e resistência, ou seja, existe aquilo “que

não se deixa hibridar”. A proposta é de se entender a

hibridação como um processo ao qual se pode ascender e

que se pode abandonar, do qual se pode ser excluído ou ao

qual se pode subordinar, e não como uma “harmonização de

mundos desgarrados e beligerantes”. Esta noção é

importante para que possamos compreender o espaço do

sujeito nestas relações interculturais, capaz de estabelecer o

que é possível harmonizar e o que se constitui como

inconciliável. Apesar de o momento contemporâneo da

globalização nos desafiar cada vez mais com oportunidades

de mestiçagem e de hibridação, persistem os confrontos, os

conflitos e as demandas de diálogo.

Este autor acredita na hibridação, portanto, como o recurso

através do qual se torna possível que a multiculturalidade

supere os elementos de segregação e de discriminação e

possa converter-se em reais experiências de

interculturalidade. Através dos momentos de hibridação, é

possível trabalhar democraticamente com as divergências

culturais, evitando que elas se reduzam a guerras e

contradições. Os movimentos contemporâneos de


globalização, ao criarem mercados mundiais de bens

materiais e simbólicos, multiplicam as oportunidades de

hibridação. As fronteiras e os limites antes rígidos dos

Estados-nacionais e de suas culturas se tornaram mais

flexíveis e parece praticamente impossível pensar em

unidades estáveis, com limites precisos.

No entanto, este mesmo contexto condiciona os formatos,

estilos e contradições da hibridação, que ocorrem em

condições históricas e sociais específicas, orientadas por

sistemas de produção e de consumo que, muitas vezes,

demarcam de forma coercitiva estes momentos. Neste

sentido, tal mecanismo nem sempre é um momento de

adaptação e de acomodação aos novos contextos

globalizados, mas muitas vezes funciona como recurso para

resistir ou modificar a globalização através de alianças entre

atores sociais marginalizados ou excluídos deste contexto.

CANCLINI (2000) nos adverte para o que ele considera “uma

visão simplificada da hibridação”, ou seja, a sedução de um

mercado globalizante que tende a reduzir a arte a um

discurso de reconciliação planetária, que, na maioria das

vezes, oculta estes movimentos como campos conflitivos,

instáveis e de tradução.

Em Culturas Híbridas, CANCLINI (1998) chama a atenção,

ainda, para a necessidade de um “olhar transdisciplinar”


sobre estes circuitos culturais híbridos, pois os mesmos não

podem mais ser estudados com ferramentas das disciplinas

que anteriormente os estudavam separadamente.

Problematizando a questão da diferença entre culto, popular

e massivo, o autor observa que as Ciências Sociais

estabeleciam diferentes escalas de observação, fazendo com

que cada uma construísse uma visão diferente e, portanto,

parcial. Assim, a história da arte, a literatura e o

conhecimento científico dominariam conteúdos cultos; a

antropologia e o folclore teriam como objeto de estudos o

universo do popular e as indústrias culturais gerariam o

sistema de mensagens massivas. Assim, nesta busca de se

construir objetos puros, também estariam organizados de

forma diferenciada os bens e as instituições responsáveis por

cada um deles, tais como as feiras populares, os museus e

os meios de comunicação de massa.

Hoje, postula CANCLINI (1998), assistimos a processos de

hibridação que fazem com que esta divisão maniqueísta dê

lugar a uma visão mais complexa sobre as relações entre

tradição e modernidade. Ao contrário do que se imaginava, o

culto tradicional não foi apagado pela industrialização de

bens simbólicos, mas sim, muitas vezes, incorporado por ela.

O que parece estar se desvanecendo não são os bens

conhecidos como cultos ou populares, mas a pretensão de


uns e de outros de constituir um universo auto-suficiente e de

que as obras produzidas em cada campo sejam unicamente

“expressão” de seus criadores.

O que é a arte não é apenas uma questão estética: é necessário


levar em conta como essa questão vai sendo respondida na
intersecção do que fazem os jornalistas, e os críticos, os
historiadores e os museógrafos, os marchands, os colecionadores
e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se define por
uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas,
com que os próprios setores subalternos constroem suas
posições, e também pelo modo como o folclorista e o antropólogo
levam à cena a cultura popular para o museu ou para a academia,
os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicólogos,
para a mídia. (CANCLINI, 1997, p. 23)

Neste novo momento de reorganização do universo

cultural, a crença de que a cultura segue um processo

ascendente, ou que certos modos de pintar, simbolizar ou

refletir sejam superiores parece perder força. Embora ainda

seja necessário para o mercado sustentar certas hierarquias

para renovar a distinção entre os grupos e as classes

próprias da sociedade capitalista, a hibridação faz com que,

em geral, todos reformulem suas formas e seus capitais

simbólicos em meio a cruzamentos e intercâmbios, levando-

nos a participar de forma intermitente de grupos cultos e

populares, tradicionais e modernos.

Como nos foi possível observar, o debate acerca das

relações entre o processo de globalização e o universo

cultural guarda diferentes e divergentes posições teóricas,


que nos desafiam a pensar nossa realidade sócio-cultural e a

contemporaneidade de nossos enfrentamentos nesta

realidade. Acreditamos, no entanto, que uma perspectiva de

totalidade tem se mostrado ausente neste debate, tornando

insuficiente cada uma das abordagens aqui dimensionadas.

Por isso, faz-se necessário, neste momento, recuperar o

debate sobre nacional-popular em Gramsci, a qual,

defendemos, nos potencializa para um debate responsável e

verdadeiramente alternativo à insuficiência das duas

abordagens anteriores. É o que pretendemos detalhar na

última seção deste trabalho.

3.3 – Nacional-popular como alternativa de crítica e de superação às

perspectivas de globalização da cultura

Um importante embate teórico se faz perfeitamente visível na discussão

acerca da globalização e do universo cultural. Este parece estar presente, na

verdade, na compreensão de toda a nova ordem mundial, pois aqui os

movimentos das esferas econômica, política e cultural se sobrepõem e se

complementam reciprocamente. A partir daí se constroem as duas perspectivas de

análise que anteriormente tentamos apresentar. De um lado, uma formulação que

acredita que um “mundo globalizado” significa, nos dias atuais, uma realidade

cultural homogeneizada, numa lógica de dominação paralela e integrada às

questões econômicas e políticas. Nesta direção, a cultura seria o caminho para se

construir uma visão universal da realidade social que, sob orientação dos países
que vivenciam o cenário do capitalismo central, garantiria, em parte significativa da

“sociedade global”, a internalização de um conjunto de normas e valores

“globalizados” que passam, a partir de então, a constituir um novo senso comum

inquestionado e inquestionável pelos povos historicamente subordinados à lógica

do capital. Por outro lado, e, em certa medida, como resposta a uma possível

visão determinista desta primeira perspectiva, vemos surgir e ganhar força a idéia

de que globalização, na verdade, significa diversidade, heterogeneidade, contatos

diferenciados, forças periféricas que, anteriormente dominadas e silenciadas,

teriam encontrado agora, no contexto globalizado, a oportunidade de se auto-

recuperarem e de se afirmarem, fazendo frente ao processo de dominação

imperialista e colonialista que anteriormente vivenciaram.

Nossa perspectiva de análise busca compreender estas duas abordagens

sob uma orientação crítica que não se limita a justificá-las ou a simplesmente

negá-las. Entendendo que a cultura, conforme caracterizamos no primeiro

capítulo, é uma esfera de dimensões determinadas, ou seja, sujeitas às

oscilações, crises e correlações de forças da estrutura econômica e política de

uma sociedade, afirmamos que ela não pode se manter suspensa a todos os

aspectos contemporâneos do desenvolvimento capitalista. Assim,

compreendemos o crescimento e a monopolização da indústria cultural em âmbito

mundial, a despolitização e a fragmentação constantes das manifestações

culturais, a intensificação de uma cultura de consumo cada vez mais especializada

e localizada e outros tantos elementos culturais que hoje nos desafiam porque

compreendemos também que o resultado econômico e político dos embates

ocorridos no final do século XX foi a afirmação de uma nova hegemonia burguesa,


base para um novo bloco histórico que, até os dias de hoje, não nos parece

superado ou suficientemente enfrentado por grupos organizados que proponham

uma contra-hegemonia.

Como bem ilustra SIMIONATTO (2003, p. 283), as formulações

gramscianas apresentam-se como essenciais para discutirmos este processo.

As superestruturas ganham materialidade e a classe dominante


reatualiza a sua “estrutura ideológica”, a fim de defender e manter
um certo tipo de consenso dos aparelhos de hegemonia em
relação a seus projetos, legitimados por via democrática. A
transformação da objetividade burguesa em subjetividade e sua
naturalização na sociedade expressam-se através de um
“movimento molecular” que, conforme indica Badaloni, “envolve
indivíduos e grupos, modificando-os insensivelmente, no curso do
tempo, de modo tal que o quadro de conjunto se modifica sem a
aparente participação dos atores sociais”.

Entretanto, entender que esta relação de dominação, que produz

uma cultura de passividade e de conformismo atingindo, sobretudo, as

classes subalternas é a única via em que se processam os contatos e

as trocas culturais também nos parece um posicionamento limitado.

Compartilhamos da idéia de que tal dominação burguesa não

acontece sem conflitos e resistências.

Assim, as discussões e afirmações realizadas no âmbito da segunda

perspectiva contribuem para o debate contemporâneo ao alertarem para as

formas como os grupos, as classes e, até mesmo, os povos historicamente

subalternos tentam encontrar espaço para fazer da cultura uma esfera de auto-

conhecimento e de auto-afirmação, possibilitando refletir sobre as contradições e


os enfrentamentos presentes em seu cotidiano. A partir de diferentes estratégias,

os contatos e as trocas culturais, nesta direção, passam a se apresentar como

oportunidades de reflexão e de enfrentamento diante dos contextos de exploração

e de dominação vivenciadas por estes grupos.

Tais colocações são importantes quando se pensa, particularmente, na

idéia de que, contrariamente aos seus objetivos fundamentais, o desenvolvimento

globalizado do capitalismo teria criado as oportunidades para “uma nova

globalização”, a partir “de baixo”, onde povos e setores excluídos dos avanços da

nova ordem mundial poderiam “se encontrar” e se articular para buscar novas

conquistas e novos enfrentamentos econômicos, políticos e sociais. Neste

caminho, a cultura teria uma importância fundamental enquanto elemento que,

segundo Gramsci, permite ao homem, no interior da sociedade e das relações em

que vive, uma concepção unitária de suas condições de vida social, garantindo,

portanto, a reflexão e a ação humanas conscientes.

Esta potencialidade contida no processo de globalização em curso é assim

expressa por SANTOS (2000, p. 172-173)

Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica


mais perto de cada um, não importa onde esteja. O outro, isto é, o
resto da humanidade, parece estar próximo. Criam-se, para todos,
a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e de estar no
mundo, mesmo se ainda não o alcançamos em plenitude material
ou intelectual. (...) Assim, o cotidiano de cada um se enriquece,
pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida nos
lugares, ainda mais enriquecidas, são paralelamente, o caldo de
cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova
política.
A cultura tem a possibilidade de se construir, neste caminho, como uma

esfera de auto-conhecimento para os “de baixo”. Ao encontrarem condições

propícias para recuperarem, através de suas mais diversas manifestações

culturais (arte, folclore, hábitos, costumes, princípios religiosos, etc.), uma parte de

suas histórias, numa perspectiva “nacional e popular”, estes grupos, classes e

povos podem refletir, criticamente, sobre as relações sociais nas quais estão

inseridos, compreendendo os contextos de dominação e de exploração que

vivenciaram. Nos dias atuais, tal compreensão significa, principalmente, abarcar

as implicações de uma inserção marginalizada no processo de desenvolvimento

global do capitalismo em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.

No atual contexto de globalização, onde as possibilidades de contatos e

trocas culturais são cada vez mais intensos, este auto-conhecimento

proporcionado pela esfera cultural nos parece um caminho privilegiado para

pensarmos, em meio à fragmentada realidade na qual vivemos, as possibilidades

de construção de uma “contra-hegemonia”, ou seja, de um movimento que possa

levar “à formação de uma ordem sociopolítica nova e mais universal”. Se é

possível pensarmos em “uma outra globalização”, onde os “de baixo” possam se

conhecer e se “reconhecer” tendo como ponto em comum os processos de

dominação e de exploração por eles vivenciados e as tentativas de superação

desta realidade, então a cultura se constitui, efetivamente, como um domínio

essencial para estas “guerras de posição”, para estas lutas em torno de uma nova

hegemonia.

É importante reforçarmos esta perspectiva de que estamos refletindo sobre

uma possibilidade de reação contra-hegemônica. Tal colocação é essencial para,


a princípio, afastarmos um entendimento excessivamente otimista que vemos se

afirmar no interior desta discussão acerca do culturalismo. Se a cultura pode se

constituir, para estes setores, como uma esfera de auto-afirmação, é importante

que não a isolemos de outras esferas, que, no contexto contemporâneo, definem e

redefinem as atuais forças hegemônicas. Não hesitaríamos em afirmar que,

apesar de todos os movimentos e tentativas de reação dos povos dominados,

permanece, no interior das estruturas internacionais, um bloco global de poder que

envolve, além de instituições políticas e estruturas socioeconômicas, uma série de

mecanismos morais, ideológicos e culturais que visam garantir o consentimento e

o apoio de grupos subalternos. Tal bloco, podemos afirmar, tem garantido sua

hegemonia, no cenário internacional, a partir do momento em que demonstra a

capacidade de fazer com que seus interesses particulares, sobretudo na esfera

econômica, tomem a aparência de interesses gerais ou universais. Nos dias

atuais, fica cada vez mais evidente que o exercício da hegemonia vai tornando

possível minimizar o uso da coerção e da dominação explícita e disseminar outros

sistemas de legitimação, capazes de mobilizar o apoio e de garantir a direção.

Neste sentido, acreditamos que a segunda perspectiva de análise da

globalização e da cultura, que apresentamos ao longo deste trabalho, ainda

carece de importantes elementos de crítica: estaríamos, realmente, diante de um

mundo mais “democrático” no que se refere à esfera cultural? Estaríamos,

concretamente, vivendo em uma “sociedade globalizada”, no sentido de pluralista

e com condições mais igualitárias de manifestação das diferentes expressões

culturais? Seriam os contatos e as trocas culturais, hoje intensificados,

possibilidades reais de conhecimento de alternativas para “ambos os lados”? Os


conflitos étnicos, nacionais ou mesmo culturais ocorridos neste início de século

não parecem apontar para respostas muito positivas a este tipo de questão.

Assim, reforçamos a idéia que anteriormente buscamos sustentar: a

globalização em curso coloca a necessidade e abre a possibilidade para a busca

de uma contra-hegemonia, potencializa grupos, classes, ou mesmo povos inteiros,

para, numa perspectiva transnacional, construir um novo bloco de forças capaz de

superar as contradições e fragilidades de nossa realidade social. Todavia, este

processo ainda nos parece algo absolutamente embrionário. Não nos parece

constituída, ou mesmo em vias concretas de constituição, a tão anunciada

“sociedade civil global”, enquanto um espaço real de construção de consensos e

de projetos para a humanidade, numa perspectiva transnacional. Neste contexto,

a cultura ainda guarda fortes elementos de subordinação, de dominação e de

conformismo, os quais precisam ser questionados e superados para que

possamos realmente compreender uma outra perspectiva, de uma situação

globalizada das manifestações culturais, enquanto elementos de emancipação e

de conhecimento de todos os povos.

É neste momento que a recuperação da categoria nacional-

popular se faz necessária e urgente. Como tivemos a

oportunidade de detalhar, no primeiro capítulo deste trabalho,

tal perspectiva se constrói, no pensamento gramsciano,

como claramente contra-hegemônica, ou seja, como capaz

de potencializar um projeto alternativo da classe

trabalhadora, como sempre imaginou Gramsci, onde o auto-

conhecimento e o conhecimento da realidade societária em


que se vive se faz com uma orientação crítica e reflexiva,

cultural, em seu sentido mais pleno. Neste momento, em

Gramsci, nacional e transnacional se constroem

mutuamente, determinando-se enquanto particularidade e

totalidade.

Para melhor fundamentarmos esta reatualização do nacional-

popular diante dos desafios contemporâneos, caberia

refletirmos sobre elementos que estão presentes na acepção

gramsciana e que precisam ser, no atual cenário,

criticamente problematizados.

3.3.1 – A questão dos intelectuais: a insustentável distância entre o silêncio

e o engajamento

Em uma de suas primeiras tentativas de demarcar a

compreensão de nacional-popular, conforme já discutimos,

Gramsci critica o histórico distanciamento, existente na

realidade italiana, entre os intelectuais e os setores

populares. Para ele, o resultado desta condição, em que os

primeiros não se sentem ligados organicamente aos

segundos, seria uma visão elitista de cultura, em que os

interesses e os problemas vivenciados pelas denominadas

“classes subalternas” não encontrariam visibilidade ou não

seriam politicamente problematizados por parte das camadas

intelectuais.
Como poderíamos compreender, nos dias atuais, esta

aproximação (ou a ausência dela) entre os intelectuais e os

setores populares? Que interesses a redimensionam e que

propostas os primeiros apresentam? Em outras palavras,

teria vida hoje, no cenário globalizado, o “intelectual

engajado”, ou ele, verdadeiramente, seria uma “figura em

extinção”?

CHAUÍ (2006) apresenta importantes colocações

acerca desta discussão. Refletindo exatamente sobre a

composição e o engajamento desta intelectualidade, a autora

afirma que o percurso histórico dos intelectuais comporta

uma difícil bidimensionalidade. Os intelectuais, sobretudo na

contemporaneidade, oscilam entre o recolhimento e o

engajamento, o silêncio e a intervenção pública, de acordo

com a forma como sua autonomia racional40 é tratada pelos

projetos societários em luta pela hegemonia. Quando tal

autonomia é respeitada, os intelectuais tendem a se recolher

e assumir uma posição de neutralidade e de silêncio. Por

outro lado, quando a mesma autonomia é ameaçada pelos

poderes instituídos, a tendência é de que os intelectuais

40
É de Boaventura de Souza Santos a discussão sobre esta “autonomia racional” na sociedade
contemporânea, quando ele reconhece o momento de crise do projeto societário da modernidade e
o avanço do que ficou denominado como “pós-modernidade”. Cf. SANTOS, Boaventura S. Pela
mão de Alice; o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
venham à cena pública para defendê-la. Esta fala e esta

ação pública dos intelectuais estariam orientadas por dois

traços principais, quais sejam, a transgressão com relação à

ordem vigente e a defesa de causas universais, distantes de

interesses particulares imediatos.

Entretanto, o que observamos é que o modo de

produção capitalista apresenta, contemporaneamente, novos

desafios e novas demandas para uma possível

“intelectualidade engajada”. Sobretudo no período pós-

Guerra Fria, quando a ideologia burguesa parece ter

encontrado sua perfeita configuração através da lógica de

que a ordem obteve vitória sobre a transformação, a

autonomia racional não pôde se manter alheia a todas estas

influências. Assim, fortaleceu-se, nos dias atuais, a idéia

clássica, já denunciada por Marx e Engels n’A ideologia

alemã, de que é possível uma separação entre o trabalho

intelectual e o trabalho manual, e de que o primeiro tem

primazia sobre o segundo. Reafirma-se, por este caminho, a

histórica separação entre os intelectuais, enquanto camada

que se imagina autônoma, e a realidade social mais

dinâmica, as classes sociais em luta, o conjunto das relações

sociais que compõem o modo de produção no qual estamos

envolvidos.
Desta forma, percebemos um cenário em que o

engajamento dos intelectuais encontra cada vez mais

desafios. Por inúmeros processos societários, está cada vez

mais mediada a necessidade de tomada de posição contra a

ordem vigente e contra as classes dominantes, e está cada

vez mais ausente a figura do intelectual como aquele que

intervém criticamente na esfera pública, procurando exprimir

e dar organicidade a uma perspectiva societária alternativa.

Assim, CHAUÍ (2006) busca enumerar possíveis causas para

este atual “silêncio dos intelectuais”.

Primeiramente, poderíamos mencionar “o amargo

abandono das utopias revolucionárias, a rejeição da política,

um ceticismo desencantado”. A derrota histórica de

experiências que se propunham alternativas ao capitalismo e

o avanço deste último pelos “quatro cantos do mundo”,

sobretudo sob o formato da mundialização do capital,

anunciam o desaparecimento do “horizonte histórico do

futuro” e decretam o “fim da história”. O presente se coloca

agora como o único universo possível e se fecha sobre si

mesmo. “Morre o sujeito revolucionário” e, com ele, a

expectativa de que o engajamento dos intelectuais poderia

garantir a consolidação de uma proposta alternativa.

Segundo SANTOS (1995), parecia haver, na lógica do projeto da

modernidade, uma profunda relação entre a capacidade e a intencionalidade. Se o


sujeito revolucionário tinha interesses em uma transformação, também tinha

capacidade para realizá-la. A história, entretanto, parece ter demonstrado que esta

relação não era tão verdadeira assim. Segundo este mesmo autor, parece existir

hoje uma dúvida sobre a capacidade ou sobre a intencionalidade revolucionária da

classe operária, considerada como o sujeito revolucionário por excelência. Se o

proletariado deseja fazer uma mudança radical de superação do capitalismo,

parece não ter capacidade para tanto. Ou, em outra situação, se o proletariado

tem capacidade para fazer tal mudança, parece não ter mais interesse. A crítica

parece ainda mais contundente: não existe nem mesmo uma única identidade que

possa criar o sujeito revolucionário. Este agora parece estar diluído em inúmeras

identidades, as quais o possibilitam fazer apenas pequenas mudanças e

transformações na organização social de seu cotidiano.

Além de vivenciarem esta ausência de um “sujeito revolucionário” ao qual

educar e organizar, os intelectuais, na expectativa do engajamento, parecem se

confrontar também com um encolhimento do espaço público e o alargamento do

espaço privado, favorecidos pelo desenvolvimento de novas formas de

acumulação do capital impulsionadas pelo neoliberalismo. Diante de um novo

conjunto de valores burgueses, onde o cidadão é transformado em consumidor,

até mesmo de serviços sociais que são agora, abraçados pela lógica de mercado,

parece desnecessária a figura do intelectual.

O recuo da cidadania e a despolitização produzem a substituição


do intelectual engajado pela figura do especialista competente,
cujo suposto saber lhe confere o poder para, em todas as esferas
da vida social, dizer aos demais o que se deve pensar, sentir, fazer
e esperar. A crítica do existente é silenciada pela proliferação
ideológica competente dos receituários para bem viver. (CHAUÍ,
2006, p. 30)

Neste sentido, mudou o modo de inserção de pensadores e técnicos na

sociedade. O saber e a tecnologia, no modo de produção capitalista

contemporâneo, não se configuram mais como meros elementos de suporte do

capital, mas se converteram em agentes diretos da acumulação capitalista.

Vivemos a “sociedade do conhecimento”, mas nela o que se observa é o uso

competitivo do conhecimento, da inovação tecnológica e da informação nos

processos produtivos. Neste cenário, onde a lógica de mercado para ter dominado

o conhecimento, que funções e que participação se espera do “intelectual”, no

sentido gramsciano?

O conhecimento contemporâneo se caracteriza pelo crescimento


acelerado e pela tendência a uma rápida obsolescência. Neste
contexto, como falar em autonomia racional? Se as artes já haviam
sido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências e as
técnicas que se encontram submetidas à lógica empresarial. Não
só a pesquisa se transformou em survey e posse de instrumentos
para intervir e controlar alguma coisa, mas também depende
diretamente dos investimentos empresariais, os quais são
determinados pelo jogo estratégico da competição no mercado, de
maneira que os pesquisadores são mantidos e se firmam se forem
capazes de propor obstáculos sempre novos, o que é feito pela
fragmentação de antigos problemas em novíssimos
microproblemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez
menor. Os produtores de conhecimento e tecnologias absorvem a
lógica da competição empresarial e dão a ela sua adesão,
negando, portanto, a autonomia racional, que dava autonomia à
intervenção pública crítica dos intelectuais. (IBIDEM, p. 32)

Como podemos observar, a noção de intelectual e a função atribuída a esta

camada por Gramsci ao longo de toda a sua produção, se fazem cada vez mais

necessárias e urgentes. O intelectual que “educa e organiza”, sobretudo a partir de


um projeto de classe, ou seja, o intelectual orgânico, reforça neste cenário a sua

importância, no sentido de potencializar o movimento das classes em luta e de

problematizar criticamente este aparato ideológico burguês. Os “tempos pós-

modernos” necessitam, cada vez mais, do intelectual enquanto impulsionador de

uma “verdadeira revolução de idéias”, capaz de alimentar os elementos de crítica

e de resistência que, embora dominados, não se encontram completamente

ausentes de nossa sociedade.

Assim, estes intelectuais, inseridos numa orientação nacional-popular,

devem manter sua função cultural em seu sentido mais amplo, ou seja, de um

movimento de conhecimento e de auto-conhecimento crítico capaz de garantir ao

conjunto das classes subalternas, ao mesmo tempo, a compreensão de sua

inserção na sociedade “globalizada” e os caminhos pelos quais ela pode ser

superada. Coloca-se, dentre outras, a questão da linguagem, como um desafio

para projetos que se pretendam alternativos ao que hoje se apresenta como

hegemônico. Ao falarmos sobre linguagem, lembramos a formulação gramsciana,

onde ela se constrói como fato histórico, através da qual intelectuais e “povo-

nação” se compreendam para lutar por uma nova cultura. Coloca-se também a

necessidade de comunicação e compreensão de experiências diversas, ligadas ao

cotidiano das classes trabalhadoras, e de novas associações de cultura, como as

que Gramsci pensara em seu período pré-cárcere.

Retomar a perspectiva nacional-popular se afirma, então, como uma tarefa

intelectual, principalmente no sentido de, numa proposta contra-hegemônica,

reatualizar a tradição marxista, retomando seus elementos de continuidade e, ao


mesmo tempo, problematizando-a diante dos novos desafios socioeconômicos e

culturais da contemporaneidade.

Ser gramsciano hoje implica, entre outras


coisas, reconhecer que os intelectuais
orgânicos do presente se defrontam com
novas realidades e, portanto, que surgem
novos conteúdos em sua união e aliança
com as forças subalternas, como parte do
necessário processo conjunto de
esclarecimento, amadurecimento da
consciência, responsabilidade
internacionalista e ação autônoma e
concertada. É por meio desse esforço que
os subalternos chegam a fazer parte do
sujeito histórico, ou seja, do sujeito
empenhado na transformação radical do
sistema. (MONAL, 2003, p. 198-9)

Na necessária presença dos intelectuais orgânicos na contemporaneidade,

se afirma a orientação gramsciana do “pessimismo da inteligência e otimismo da

vontade”41, onde a segunda não é suficiente para sustentar, sobretudo nos dias

atuais, uma nova proposta revolucionária. Exige-se uma reciprocidade dos dois

elementos, onde a renovação esteja dialeticamente combinada com o realismo,

que os intelectuais devem ser capazes de construir. Nas formulações de LESTER

(2003, p. 161)

41
Literalmente, a formulação do “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” é de Romain
Rolland, embora tenha ganhado, com Gramsci, a visibilidade que hoje conhecemos.
(...) em nenhum lugar as próprias massas
estão tão pessimistas quanto os
intelectuais. Mas aquilo de que mais
precisam, e que buscam
desesperadamente, é um ponto de
referência e um centro em torno do qual
convergirem. Trata-se de algo que os
intelectuais podem lhes dar e o fracasso
nesta tarefa seria a pior de todas as
traições. Um sentimento de otimismo tinha
de ser mantido vivo, enquanto prosseguia
a busca de um terreno mais fértil, no qual
se pudessem lançar suas sementes.

Este seria, em nossa opinião, o primeiro desafio contemporâneo de uma

perspectiva nacional-popular, a necessidade de uma verdadeira unidade entre o

conhecimento, a compreensão e o sentimento. Este desafio, evidentemente, não

se constrói isoladamente.

3.3.2 – O nacional e o global: oposição ou construção dialética?

O centro das discussões gramscianas sobre a perspectiva nacional-popular

está, indubitavelmente, no seu debate em torno da importância do elemento

nacional na construção de um projeto alternativo à sociedade capitalista. Se, num

primeiro momento, poderíamos pensar que esta preocupação de Gramsci com o

nacional se dá por sua inserção sócio-histórica da “era do Estado-nação” e nas

particularidades da realidade italiana, podemos observar que está é uma


conclusão aparente, pois ainda hoje o nacional se apresenta como questão-chave

do pensamento social contemporâneo e como desafio para a construção de

propostas alternativas.

Desde o início, é preciso lembrarmos que Gramsci é um pensador

organicamente internacionalista, mas de um internacionalismo real, que só o

comunismo poderia garantir, através de um engajamento constitutivo entre nação

e povo. Em suas formulações, nacional e internacional compõem sempre um todo

dialético, onde o primeiro é o ponto de partida, o espaço das manifestações mais

imediatas das contradições e dos embates vivenciados pelas classes sociais em

luta e que, portanto, não pode ser, de forma nenhuma desprezado. O segundo,

por outro lado, é o espaço da determinação e da intervenção revolucionárias, é o

horizonte ao qual devem almejar os diferentes projetos societários na luta

hegemônica.

Não há, portanto, qualquer possibilidade de se separar, ou mesmo de negar

qualquer um destes elementos, sob pena de perdermos a riqueza histórica da

dialética entre particularidade e universalidade, pois as “histórias particulares

vivem somente no quadro da história mundial”42. A partir das análises feitas por

BARATTA (2003, p. 15), podemos perceber que Gramsci é enfático na “afirmação

do status de nação como pressuposto para a plena participação de um povo ou de

uma cultura no ‘quadro da história mundial’”. O nacional-popular é sempre uma

combinação entre consciência nacional, internacionalismo e perspectiva de classe,

42
É interessante observarmos que Gramsci sempre menciona, como exemplos de uma literatura
nacional-popular, obras de Shakespeare, Goethe, Tolstoi, dentre outros. Em outras palavras, o que
caracterizaria esta literatura não é a nacionalidade dos autores, mas a realização orgânica e
verdadeira da relação entre intelectuais, povo e nação.
e é neste sentido que deve impulsionar as mais diversas formas de manifestação

da cultura. Diante do avanço capitalista contemporâneo, conforme discutimos

anteriormente, o avassalador desenvolvimento dos meios de comunicação e de

transporte não nos permite pensar mais em alternativas societárias que se

construam no espaço nacional de forma isolada.

Parece-nos que é este sentido e esta significação da “questão nacional”

que precisa ser recuperada pelo pensamento social crítico na contemporaneidade,

com a finalidade de deixar claro o conteúdo ideológico da anunciada “sociedade

global”. Recuperar o nacional neste “mundo globalizado” significa conhecer suas

especificidades, seus dilemas e suas potencialidades, não para se limitar a eles,

mas para, a partir deles, compreender a inserção no cenário globalizado,

entendendo a correlação de forças que se desenha neste contexto

contemporâneo. Em outras palavras, uma perspectiva nacional-popular se

sustenta hoje a partir da capacidade de se garantir, nas mais diversas realidades

nacionais, o conhecimento e a crítica do processo de mundialização do capital em

curso, bem como de seus efeitos econômicos, políticos e sociais, nas dimensões

nacional e internacional.

Pelo contrário, no discurso hegemônico, sempre que se chama atenção

para a questão nacional e popular, existe uma tendência a identificar estes dois

elementos com regionalismos, nacionalismos e independentismos, em uma visão

restrita desta dualidade. Em outras palavras, existe uma falta de identidade entre

povo e nação e são sempre valorizados os elementos que tendem a fortalecer

esta dicotomia. O resultado deste imediatismo é que se acentuam as diferenças


nacionais e se particulariza o elemento popular, cortando na raiz a dialética

relação, proposta por Gramsci, entre estes dois elementos.

É expressiva a analogia que Gramsci


estabelece, neste caso, entre linguagens
científicas e culturas nacionais. Ele
argumenta que, da mesma maneira que
dois cientistas formados no terreno de
uma mesma cultura fundamental
acreditam sustentar “verdades” distintas
somente porque empregam linguagens
diferentes ao expor suas idéias, assim
também duas culturas nacionais, que são
expressão de civilizações profundamente
parecidas, acreditam ser distintas e se
apresentam como opostas e até
antagônicas apenas porque empregam
linguagens de tradição distinta. (BUEY,
2003, p. 32-33)

Neste sentido, podemos observar que um dos grandes obstáculos para a

construção de uma concepção de mundo “alternativamente globalizada” hoje é

esta dificuldade de se trabalhar com a identidade e a diferenciação de uma forma

dialética. Na análise desta questão nacional, vale lembrar a formulação

gramsciana de que

Descobrir a identidade real sob a aparente


diferenciação e contradição, e descobrir a
substancial diversidade sob a aparente
identidade, eis o mais delicado,
incompreendido e, não obstante, essencial
dom do crítico das idéias e do historiador
do desenvolvimento histórico. (GRAMSCI,
2000, p. 206)

Neste sentido, a cultura apresenta uma potencialidade indiscutível,

naqueles três níveis de compreensão que construímos no primeiro capítulo do

trabalho. Enquanto “modo de vida global”, a cultura deixa manifesto o conjunto de

valores, tradições, conceitos e representações que, histórica e socialmente

determinados, dão a dimensão do que seja uma “cultura nacional” e, ao mesmo

tempo, situam esta cultura num plano mais amplo, enquanto parte constitutiva de

uma cultura mundial marcada por relações de dominação e de consenso.

Assim também estão caracterizadas as manifestações artísticas e

intelectuais, que expressam estas relações e, portanto, são envolvidas por

elementos desta identidade e desta diferenciação. Estas manifestações, quando

orientadas por uma lógica nacional-popular, têm a potencialidade de promover o

debate, de tornar evidente as relações de dominação capitalista nas quais

estamos envolvidos e de articular a experiência nacional e a consciência da

necessidade internacionalista, de expressar o próprio lugar e, ao mesmo tempo, o

mundo em seu conjunto.

Neste momento, é importante lembrarmos também que, para Gramsci, as

relações hegemônicas não ocorrem somente em nível nacional, mas também

internacional. É neste sentido que ele constrói sua idéia de nação hegemônica,
que tem, entre seus elementos constitutivos enquanto potência internacional, o

elemento ideológico, ou cultural em seu sentido mais pleno, que tende a minimizar

o uso do poder coercitivo, fortalecendo e dando novas determinações ao domínio,

também cultural e ideológico. Em suas próprias palavras,

O modo através do qual se exprime a


condição de grande potência é dado pela
possibilidade de imprimir à atividade
estatal uma direção autônoma, que influa
e repercuta sobre os outros Estados: a
grande potência é potência hegemônica,
líder e guia de um sistema de alianças e
de pactos com maior ou menos extensão.
(...) Um elemento “imponderável” é a
posição “ideológica” que um país ocupa no
mundo em cada momento determinado,
enquanto considerado reporesentante das
forças progressistas da história. (...) Dispor
de todos os elementos que, nos limites do
previsível, dão segurança de vitória
significa dispor de um potencial de
pressão diplomática de grande potência,
isto é, significa obter uma parte dos
resultados de uma guerra vitoriosa sem
necessidade de combater. (GRAMSCI,
2000, p. 55)

A nação hegemônica (ou, as nações hegemônicas), nos dias de hoje, tem,

portanto, a necessidade de criar uma “cultura da globalização”, ou seja, um


aparato cultural, principalmente no campo das artes e das manifestações

intelectuais, que dê “vida” e, ao mesmo tempo, justifique a lógica da globalização

em suas dimensões econômica, política e social. A produção de Gramsci nos

capacita a acentuar, assim, o papel ideológico da globalização, ou seja, a

necessidade de elementos culturais que afirmem a hegemonia do grande capital

nos dias de hoje. O capital mundializado retira suas forças, também, dos seus

poderes e mecanismos de persuasão. Neste cenário, uma perspectiva “nacional-

popular”, criticamente recolocada, tem por proposta garantir o conhecimento deste

processo como um momento de renovação da lógica imperialista, destacando a

ênfase contemporânea às estratégias de conquista de hegemonia, e buscar, nas

dimensões nacional e supranacional, o caminho para, capacitando, também

culturalmente, o conjunto das classes trabalhadoras, buscar reais alternativas de

superação desta nova ordem do capital. Este nos parece ser um importante

exercício a ser levado adiante pelas forças contra-hegemônicas em nossa

sociedade, em especial por intelectuais coletivos, tais como os partidos políticos.

3.3.3 – A análise do “elemento popular” a partir de uma dimensão classista:

o desafio de reencontro com as “classes trabalhadoras”

Um terceiro desafio na tentativa de recuperar, no cenário contemporâneo, a

perspectiva nacional-popular diz respeito, justamente, ao segundo termo que

compõe esta totalidade. Em outras palavras, o que Gramsci entende, ao longo de

toda a sua produção, por “elemento popular”? Estaríamos diante de um abandono,

por parte deste autor, de uma perspectiva de classe, onde sua adesão sempre se

referiu à classe trabalhadora?


MONAL (2003) afirma que Gramsci, ao longo dos Cadernos do Cárcere, vai

gradativamente abandonando o termo “classes trabalhadoras”, ou “classes

subalternas” e substituindo-o por “grupos subalternos”. Na opinião da autora, isso

representa mais que uma opção lingüística. Significa que Gramsci vai se dando

conta, no cárcere, de que as classes trabalhadoras estariam passando por um

complexo processo de fragmentação, dispersão e heterogeneidade que daria

origem a uma nova categoria, a de grupos, os quais não se compõem,

necessariamente, enquanto classes sociais fundamentais ao modo de produção

capitalista. Assim, segundo esta autora esta “categoria” grupos subalternos seria

de grande significação nos dias atuais para pensarmos a dinamicidade e a

multiplicidade de espaços organizativos, que dão vida às diversas sociedades civis

em todo o mundo.

Discordando, a princípio, desta formulação, acreditamos que ela representa

uma leitura muito imediatista da obra de Gramsci. A utilização de termos

“alternativos” nesta produção, tais como “grupos subalternos”, nos parece fruto da

censura e da autocensura a que Gramsci esteve submetido, e não uma

diferenciação teórico-conceitual significativa. A análise do conjunto desta produção

nos faz afirmar que Gramsci nunca abandonou, ou mesmo relativizou, a

perspectiva de classe que o orientava desde seus escritos políticos, quando a

militância nos partidos socialista e comunista da Itália o aproximou definitivamente

do cotidiano da classe operária italiana e da perspectiva marxista.

Esta análise feita por MONAL (2003) nos parece, entretanto, justificada por

uma configuração contemporânea. Durante as décadas de 80 e 90, ou seja, no

momento de auge da redefinição do processo contemporâneo de acumulação de


capital, ganharam força as análises teóricas que passaram a compreender o

“povo” e a “classe trabalhadora” como agrupamentos complexos de múltiplos

atores que se entrecruzam e se renovam continuamente. Da mesma forma,

cresceu, neste momento, a proposta de análise, nos marcos do que se

convencionou chamar de “pós-modernidade”, de que estaríamos vivenciando uma

verdadeira disputa de diferentes formas de subjetividades. Seríamos, assim,

constituídos por uma rede de sujeitos com estas diferentes subjetividades, as

quais correspondem às várias formas de poder que circulam na sociedade. Desta

forma, dependendo das múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas, uma de

nossas subjetividades poderia se destacar, tais como etnia, gênero, classe,

cultura, etc. Assim, esta subjetividade é que daria o tom, naquela circunstância

específica, das perspectivas de transformação social que se apresentam para o

sujeito. Assim, este seria, ao mesmo tempo, livre, porque não estaria orientado por

um único elemento de sua vida social, e determinado, porque estas múltiplas

subjetividades o colocariam, a cada momento, dentro de comportamentos e

valores específicos.

Parece-nos claro que a proposta pós-moderna tem, assim, uma explícita

intenção substitutiva. Ao privilegiar tópicos como a sexualidade, o corpo, o gênero,

a etnicidade, entre outros, a lógica pós-moderna coloca uma nova pauta política,

onde antes vigoravam questões como classe, Estado, ideologia, revolução, modos

de produção, etc. As questões mais imediatas para a compreensão do cotidiano

vêm à tona, são politizadas e mobilizam a população em torno de novos e

diversificados movimentos sociais. Enquanto isso, as chamadas “formas clássicas”

são desqualificadas e negadas, diante de um processo evidente de naturalização


do capitalismo. Assim, o que vigora hoje seria um “paradigma da diferença”,

quando uma grande variedade de conflitos parece substituir a luta de classes.

Diante deste cenário “pós-moderno”, percebemos a recuperação de uma

perspectiva individualista e aclassista, onde a identidade humana não se coloca

como algo dado, mas como uma “tarefa”, uma possibilidade, diante das inúmeras

subjetividades que se encontram em disputa no cenário político. A sociologia

contemporânea estaria marcada pela lógica do fim da sociedade dividida em

“burgueses e proletários” e nela não existe a possibilidade de uma vontade

coletiva que conduza e construa uma ação coletiva daqueles que vendem sua

força de trabalho.

Esta não nos parece, de forma alguma, a posição gramsciana. No que se

refere especificamente à sua orientação nacional-popular, acreditamos que

recuperá-la significa, necessariamente, repensar a sua noção acerca das classes

subalternas, retomando a centralidade histórica das classes trabalhadoras em

toda a sua complexidade. Acreditamos, sim, que a constituição desta classe hoje

coloca novos desafios que devem envolver a problematização da questão

territorial e os novos instrumentos de luta política, mas nunca a sua centralidade.

Para Gramsci, indubitavelmente, “popular” está diretamente relacionado à

constituição das “classes trabalhadoras”. A hegemonia, categoria central para o

pensamento gramsciano, nasce “no chão da fábrica”, ou seja, tem suas raízes na

esfera da produção, e só a partir da definição das classes sociais na dinâmica

desta esfera é que se pode falar de uma dimensão societária mais ampla. Em

Americanismo e Fordismo, por exemplo, Gramsci delimita com clareza o fato de

que o capital se constrói, enquanto relação social, numa perspectiva de totalidade,


ou seja, ao mesmo tempo, ele produz mercadorias, produz suas classes em luta e

produz também formas de consciência moral que são determinadas por esta

estrutura de classe. O plano ideológico-cultural é, portanto, parte constitutiva das

relações produtivas colocadas em movimento pelas formas históricas que o

capitalismo vem apresentando.

Desta forma, recuperar a noção de nacional-popular hoje significa recuperar

a potencialidade das classes trabalhadoras contemporâneas para a conquista de

uma nova hegemonia capaz de, conforme afirma SIMIONATTO (2003), recompor

um novo modo de pensar e de conhecer o mundo. Supõe a capacidade destas

classes, apesar de toda sua heterogeneidade, para mudar não só as relações de

dominação e de exploração na esfera econômica, mas também a formação de

novos padrões culturais. Significa pensar, enfim, os caminhos para que tais

classes se tornem dirigentes, sejam capazes de “tornar-se Estado”, costurando

interesses e perspectivas altamente diferenciadas da sociedade capitalista

contemporânea em torno de um novo “sujeito histórico”, coletivo, formado pelas

classes exploradas em seu diversificado conjunto.

Os “novos dirigentes”, como se pode


deduzir da visão de Gramsci, são
considerados em sua singularidade, mas
não coagulados em seu individualismo;
são livres, mas não anárquicos e
pulverizados, são organizados em torno de
um projeto de democracia popular, não
“socialmente entrosados” para auferir
interesses corporativos, são formados e
não apenas informados, transformadores e
não apenas “eficientes”, anseiam pela arte
e não por modismos, são populares e não
populistas, solidários e não
assistencialistas. (SEMERARO, 2003, p.
272).

Tal desafio recoloca, em outra dimensão, as tarefas de

natureza cultural que o movimento de organização das

classes trabalhadoras precisa recuperar nos dias de hoje.

Para isso, acreditamos que uma nova compreensão de

cultura se faz extremamente necessária.

3.3.4 – Por uma concepção ampla do termo cultura

Para que possamos levar adiante este debate acerca dos desafios

contemporâneos para a perspectiva nacional-popular, é preciso reforçar a idéia de

que, em Gramsci, existe uma compreensão mais abrangente do termo cultura, que

ultrapassa, ao mesmo tempo, uma abordagem meramente artística e intelectual

do termo e outra meramente antropológica, onde cultura seja entendida apenas

como um elemento que reforça e prega a convivência e a tolerância com as

“diferenças”.

Cultura em Gramsci está relacionada, como vimos, a uma consciência

plenamente desenvolvida, um modo de pensar e de compreender a inserção de

determinada classe, e do projeto por ela incorporado, na dinâmica da vida social.

Nosso autor reforça também que esta consciência precisa se superar, tornando-se
a “base de ações vitais”, que se materializa na sociedade através de uma “reforma

intelectual e moral”. Lembrando as formulações presentes em Socialismo e

Cultura, ainda em sua fase “tendencialmente crociana”, Gramsci já construía a

proposta de que cultura é a obtenção do autoconhecimento e da autodisciplina, é

o espaço de reflexão e de consciência superior, é a oportunidade de conhecer seu

próprio valor histórico e sua “própria função na vida” social. Devemos destacar,

nesta compreensão de cultura, a idéia de que é através dela que as classes

subalternas conhecem “os outros” e que, ao mesmo tempo, se forma enquanto

sujeito de uma alternativa a este processo.

A própria compreensão de nacional-popular se insere nesta concepção

mais ampla de cultura em Gramsci. Tal perspectiva não aponta meramente para

uma posição artística ou intelectual, mas é o horizonte de uma nova consciência, é

um objetivo político e político-cultural absolutamente amplo do conjunto das

demandas das classes trabalhadoras. Em seu desenvolvimento, ela envolve

também questões econômicas, políticas e sociais. O que teríamos de nacional-

popular na esfera das artes e da vida intelectual seria, portanto, o resultado de

uma perspectiva mais ampla, a orientar e impulsionar diferentes movimentos na

sociedade.

Por isso, cultura e educação são, em Gramsci, termos absolutamente

dependentes, pois remetem a um trabalho de crítica, de penetração cultural, de

impregnação de idéias novas que acontece como momento constitutivo de um

processo revolucionário, e não anterior ou posterior a ele. Nos Cadernos do

Cárcere, Gramsci supera definitivamente sua fase idealista na abordagem sobre a

cultura, e o faz a partir do momento em que reconhece a luta cultural como parte
de uma luta pela hegemonia, que se dá no conjunto da sociedade, a partir de um

ponto de vista classista. É a hegemonia que dá direção a uma sociedade, e ela

prevê um momento ideológico e persuasivo que Gramsci não hesitaria em chamar

de “cultural”.

A civilização burguesa moderna, na visão


de Gramsci, se perpetua através de
operações de hegemonia – isto é, através
das atividades e iniciativas de uma ampla
rede de organizações culturais,
movimentos políticos e instituições
educacionais que difundem sua
concepção do mundo e seus valores
capilarmente pela sociedade. Mas – deve-
se logo acrescentar – Gramsci não
compreende as operações hegemônicas
como unidirecionais; elas não consistem
somente na transmissão e disseminação
de idéias e opiniões dos grupos
dominantes para os estratos
subordinados. A atividade cultural, no
sentido mais amplo do termo, também
estimula novas idéias nos setores
privilegiados da sociedade, permite-lhes
enfrentar novos problemas e
permanecerem sintonizados com as
demandas e aspirações de todos os
setores da sociedade; em poucas
palavras, ela reforça a capacidade dos
grupos dominantes para olhar além do
próprio interesse corporativo e estreito e,
portanto, ampliar sua ação e influência
sobre o resto da sociedade. A hegemonia,
tal como Gramsci a concebe, é uma
relação educacional. (BUTTIGIEG, 2003,
p. 46-47, grifos nossos)

Para este nosso autor, a revolução é um processo constante e permanente,

que comporta um importante momento de renovação cultural. A cultura é este

elemento que, paralelamente aos demais, dá persistência à revolução enquanto

esfera da consciência e da existência com determinados valores, socialmente

construídos e referendados. Por isso, a revolução é um processo também longo e

incerto, pois prevê “momentos de destruição”, não só de coisas materiais, mas de

“relações invisíveis, impalpáveis”, que se constroem e se afirmam em nosso

cotidiano. Para que ela se concretize, é preciso contar com uma coesão e uma

consciência coletiva que se constituem em pressupostos de um novo poder

hegemônico.

Neste sentido, nacional-popular é uma nova “vontade coletiva”, uma nova

consciência de “necessidades objetivas históricas”. Ela só pode se vincular, nos

dias atuais, a um novo projeto de hegemonia, com raízes nacionais e articulações

internacionais, fundado naquela interação dialética de que nos fala BUTTIGIEG

(2003), entre o “saber” de uma nova intelectualidade e o “sentir” do “povo”, não

enquanto elemento abstrato e a-histórico, mas como materialidade construída a

partir das relações sociais nas quais estão envolvidas as classes trabalhadoras
contemporâneas em toda a sua complexidade e heterogeneidade, como nos

propunha ANTUNES (2000).

Desta forma, se o nacional-popular é um projeto alternativo das classes

trabalhadoras, ele pode se afirmar a partir do que SEMERARO (2003) chamou de

outras “armas” para a luta hegemônica, armas estas que devem ser “entregues” e,

ao mesmo tempo, construídas pelas classes subalternas em luta:

(...) distanciamento crítico da realidade, formação da sua


autonomia pela ação política, representação de si pela criação de
uma cultura própria, participação ativa na construção de um
projeto popular de democracia articulado com forças nacionais e
internacionais. Sem socializar o poder e criar uma nova cultura em
que os excluídos tenham lugar na construção do conhecimento, na
produção e na distribuição das riquezas planetárias, não é mais
possível falar plenamente em democracia. (2003, p. 262)

Acreditamos que é esta perspectiva mais ampla de “cultura” que

está absolutamente ausente do debate contemporâneo, e esta

ausência acaba por permitir a vitória ideológica de propostas de

“globalização da cultura” pelas mãos do grande capital mundializado.

Mais uma vez, também neste aspecto, ler Gramsci tem se mostrado

como um importante exercício para não só entender, mas também

intervir e transformar a realidade.


3.3.5 – Cultura e sociedade civil: o espaço privilegiado para a construção de

uma perspectiva nacional-popular

Enfim, teríamos a acrescentar ainda que todo este processo não se faz sem

um “local” específico de luta. É aqui que acreditamos na necessidade de se

recuperar o debate acerca da sociedade civil e, mais propriamente, da noção de

“Estado ampliado” em Gramsci.

Como já tivemos a oportunidade de observar, hegemonia é um tema

freqüente nos Cadernos, mas que não se apresenta completamente construído

desde um primeiro momento. Ele vai sendo gradualmente enriquecido e

trabalhado por Gramsci, em conexão com seu tratamento de temas e fenômenos

cada vez mais diversos. Podemos ponderar que a maturidade gramsciana acerca

da hegemonia acontece a partir do reconhecimento da esfera da sociedade civil

como o espaço da luta política, do confronto entre diferentes e plurais projetos

societários, da superação do momento econômico-corporativo pelas diferentes

classes sociais em luta na sociedade. A sociedade civil deixa evidente, em sua

constituição, a validade histórica da guerra de posição como estratégia

revolucionária, ou seja, de uma revolução prolongada no tempo, com várias

frentes simultâneas, sujeitas a avanços e retrocessos parciais. Neste caminho, a

revolução se coloca como um processo de laboriosa gestação, que inclui, dentre

outras, uma dimensão cultural.

Assim, é na sociedade civil que se constrói, segundo Gramsci, a

expectativa e a possibilidade de uma verdadeira “reforma cultural e moral” ou do

que preferimos chamar de uma revolução cultural. Na trama pluralista e dinâmica


desta esfera, diferentes projetos, inclusive o das classes trabalhadoras, podem

investir na geração de várias formas de consciência coletiva e de consenso,

viabilizando uma organização ético-cultural da vida social. Naquele sentido da

hegemonia, podemos afirmar que a sociedade viabiliza a produção, não só

material, mas também cultural de uma classe hegemônica.

Por esta análise, a sociedade civil se afirma como a esfera do conflito, do

confronto, do embate político que demonstram a dimensão cultural da luta política,

e vice- versa. A classe dominante constrói, na sociedade civil, estruturas e

instituições (escolas, associações culturais, dentre outras) que tendem a garantir

suas reservas políticas e ideológicas, fazendo do trinômio economia, política e

cultura um todo orgânico e complexo, onde estes elementos se determinam

mutuamente. É daí que o Estado, na versão ampliada de que nos fala Gramsci,

retira sua força material e moral, quando consegue assimilar a atividade e o

enfrentamento cultural e ideológico e consegue transformá-los em base de

legitimação no interior da sociedade.

Se compreendermos a sociedade civil como este espaço dinâmico para a

construção de uma perspectiva nacional-popular, percebemos que esta última

encontra novos e complexos desafios no cenário contemporâneo. Neste momento,

o que parece evidente é a tentativa das classes dominantes de promover a

neutralidade e o enfraquecimento político-ideológico da sociedade civil, retirando

permanentemente as classes subalternas da esfera pública. Neste quadro, a

sociedade civil é esvaziada de seu potencial pluralista e conflituoso, e

transformada em um todo acrítico e apolítico, que existe apenas para reproduzir o


discurso e a prática dominantes. É a primazia da “pequena política”, poderíamos

dizer, e de tudo de imediatismo que ela pode construir.

A dispersão, a falta de articulação com


outros espaços que não os do próprio
setor ou “tema”, o isolamento e a
inorganicidade – coisas que muitos
saúdam em nome da diferença ou da
“tolerância” – só podem levar à
conservação da sociedade existente. Os
atuais pensadores da dominação deixam
com prazer às organizações das classes
subalternas, o terreno da “pequena
política”, no qual apenas se disputam
questões “parciais e cotidianas”, para
disfarçar assim a renúncia à “grande
política”, que se abandona com
exclusividade às classes dominantes. As
organizações populares precisam reagir
em face das fortes pressões em favor de
sua “domesticação”, de seu
enquadramento nos limites de uma
“governabilidade” entendida basicamente
como um sistema em que as classes
subalternas podem exercer sua liberdade
de organização e mobilização, mas desde
que se abstenham de tudo aquilo que
possa perturbar as relações de poder
existentes. (CAMPIONE, 2003, p. 61)
A sociedade globalizada seria, a partir desta despolitização, o cenário de

avanço de uma proposta pós-moderna de mini-racionalidades. O capitalismo,

enquanto modo de produção “natural” busca subordinar ao seu domínio toda a

realidade, apresentando-se como um sujeito abstrato, não imediatamente

perceptível, num mundo superficial e harmonioso. Diante da fragmentação

resultante do desenvolvimento do projeto de modernidade no interior da sociedade

capitalista, a saída pós-moderna seria partir para racionalidades e necessidades

locais múltiplas, construídas e enfrentadas nos espaços micro, sem uma

necessária relação de totalidade.

Desorganizar, fragmentar, reforçar o privado, “seduzir” pela


crescente oferta de bens de consumo são caminhos de busca de
passividade das massas, em nada coincidentes com a geração do
consenso “ativo e organizado” a que faz referência Gramsci. Trata-
se muito mais de um consentimento à própria despolitização,
persuadido daquilo que Therborn chama de “sentimento de
inevitabilidade” (IBIDEM, p. 58-59)

Neste contexto, NOGUEIRA (2003) nos aponta uma série de questões que

precisam ser abordadas criticamente a fim de que possamos fortalecer o desafio

de construir uma “vontade coletiva nacional-popular”. Dentre elas poderíamos

citar:

a) A investida neoliberal, com sua proposta conservadora de redução

do Estado, sobretudo em suas antigas funções, tem fortalecido o que

este autor denominou de uma “sociedade civil liberal”, com novas

feições e novos encargos.


b) Com o enfraquecimento da dimensão e das instituições públicas,

assim como da capacidade de influenciar decisivamente nas grandes

questões da sociedade, esta esfera vem, a cada dia, substituindo o

Estado em suas funções e enfraquecendo-se em termos de projetos

societários, compondo-se cada vez mais como uma estrutura de

mera reprodução e legitimação do poder dominante.

c) Percebemos um duplo movimento de expansão e fragmentação da

sociedade civil, pois apesar de inúmeras ações e movimentos,

próprios de um rico processo de pluralização, ela se esvazia de

macro projetos societários, consistentes e capazes de propor

alternativas reais ao conjunto das classes sociais em luta pela

hegemonia.

d) Na ausência destes projetos, o que ganha força é uma fragilidade

das bases de contestação, com movimentos antes reivindicativos e

politicamente definidos partindo para “caminhos pós-modernos”, nos

quais ficam claros o bloqueio da democracia e o incentivo à

improdutividade dos governos.

Diante desta investida neoconservadora nas sociedades

contemporâneas, é preciso recuperar a perspectiva

gramsciana de que a sociedade civil, apesar de ser o espaço

de consenso e de hegemonia, não é o lugar de uma

“harmonia” ou de um apoliticismo que tende a eliminar o

enfrentamento entre as diversas classes sociais em luta.

Faz-se urgente, neste contexto, valer-se da cultura como um


elemento de redefinição de projetos societários, os quais

devem se contrapor, na trama pluralista da sociedade civil,

em torno das questões da “grande política”, tão ausentes e,

ao mesmo tempo, tão necessárias para as verdadeiras

disputas que tomam lugar em nossa sociedade.

Em um cenário como este, afirmamos, mais uma vez, que a

proposta de “recuperar o nacional sob uma perspectiva

popular”, pelos caminhos que anteriormente propusemos,

significa, claramente, uma opção contra-hegemônica, tarefa

“nacional e internacional”, de movimentos realmente

convencidos da efemeridade e da limitação histórica da

sociedade construída sobre o sistema do capital.


Considerações finais

Como tivemos a oportunidade de perceber, o processo de

globalização que estamos vivenciando é amplo e diversificado,

atingindo as mais diferentes esferas da vida social. Entretanto, apesar

desta diversidade, parece-nos inquestionável o caráter excludente e

desigual deste processo em todas as suas manifestações. Os

resultados econômicos, políticos e sociais de sua dinâmica acabaram

por reforçar e por agravar a diferença e a desigualdade entre as

nações, intensificando a parcela de excluídos não só do mercado de

trabalho e da riqueza social, mas também das decisões políticas e dos

principais espaços de manifestação e de participação coletivas da

sociedade civil. No mundo globalizado da anunciada “vitória do

capitalismo”, do “fim da história”, da soberania do sistema financeiro,

do “desaparecimento dos grandes sujeitos sociais”, da incapacidade

interpretativa das antigas metanarrativas, as eufóricas promessas de

uma humanidade mais próxima, mais solidária e mais desenvolvida

encontram-se cada vez mais esvaziadas de uma objetividade

histórica.
Por outro lado, o contexto construído por tal globalização tem sido o

movimento propulsor de um novo questionamento sobre a realidade mundial.

Sobretudo neste início de século, quando os efeitos perversos deste processo

ficaram evidentes, uma orientação contra-hegemônica desta globalização dá

sinais de que começou a ser gestada, desencadeando, como propõe GOMÉZ

(2000), processos de auto-identificação e de solidariedades coletivas subnacionais

e supranacionais. Começa a ser pensada, assim, uma “outra globalização”,

orientada no sentido de buscar interações capazes de socializar e de democratizar

o acesso aos possíveis benefícios desta “modernidade-mundo”. É no interior deste

debate que vemos se construir e ganhar força a perspectiva de uma “cidadania

planetária” ou “cidadania global”.

No entanto, a referência histórica da cidadania e da democracia

com o Estado-nação coloca alguns desafios importantes para esta

proposta transnacional. No processo vigente, fica claro que os Estados

nacionais estão cada vez mais debilitados em sua capacidade de

controlar e regular seus próprios assuntos nacionais, sendo que

muitas das identidades tradicionais encontram-se enfraquecidas. Por

outro lado, o peso destes mesmos Estados na condução dos

processos democráticos e das lutas pela cidadania ainda é bastante

significativo. Sobretudo nas sociedades onde a construção desta “idéia

nacional” ou desta “questão nacional” ainda é uma etapa inconclusa,

como o Brasil, por exemplo, a idéia de organizações supranacionais


que possam conduzir suas lutas democráticas ainda é bastante frágil.

Nestas realidades, fenômenos de localismo e renacionalização, muitas

vezes, se sobrepõem ao processo de globalização e se mostram

extremamente importantes. Como exemplo, podemos citar os

processos de descentralização e municipalização das políticas sociais

no Brasil, quando, em um cenário de economia globalizada e mercado

financeiro, onde as decisões macroeconômicas são conduzidas pelas

grandes agências internacionais de financiamento, os estados e

municípios são chamados a assumir a responsabilidade sobre as

políticas sociais, contando, para isso, com parcos recursos e com

pouca influência nos processos de destinação de recursos para estes

instrumentos de institucionalização dos direitos sociais.

Assim, sem querer aderir a um ceticismo com relação a esta

globalização “por baixo”, visualizamos que ainda persiste uma tensão

acentuada entre os espaços nacionais, locais e regionais, por um lado,

e o espaço global, por outro. SANTOS (2000, p. 113) é um dos que

recupera esta tensão ao afirmar que

Nas condições atuais, o cidadão do lugar pretende instalar-se


também como cidadão do mundo. A verdade, porém é que o
“mundo” não tem como regular os lugares. Em conseqüência, a
expressão cidadão do mundo torna-se um voto, uma promessa,
uma possibilidade distante. Como os atores globais eficazes são,
em última análise, anti-homem e anticidadão, a possibilidade de
existência de um cidadão do mundo é condicionada pelas
realidades nacionais. Na verdade, o cidadão só o é (ou não o é)
como cidadão de um país.

Eis, em nossa opinião, um desafio crescente para a construção

de uma suposta “cidadania planetária”. Como ultrapassar os limites e

as fronteiras nacionais, em todos os aspectos, desde o econômico até

o cultural, e direcionar expectativas e demandas para questões que se

colocam acima das nações? Como falar de “direitos humanos

supranacionais” em sociedades como a nossa, onde as condições de

desigualdade e de exclusão social são cada vez mais marcantes?

Como propor um ativismo internacional para uma população que

sempre foi silenciada e imobilizada, através de práticas de coerção ou

de assistencialismo, e que historicamente não ocupou seus espaços

de participação nem mesmo nos limites da sociedade civil nacional?

Desta forma, visualizamos a cidadania global como um projeto político de

longo prazo, que desafia e inova a teoria e a prática acerca desta temática.

Destacamos sua importância ao buscar responsabilizar os Estados e o sistema

internacional de Estados por suas ações e omissões, desafiando o domínio desta

“globalização pelo alto” e recolocando a necessidade de valores que redefinam a

relação entre os homens no século que se inicia.

É neste sentido que reafirmamos a perspectiva nacional-popular, elaborada

por Gramsci, como a oportunidade de recolocarmos, sobre outras bases, a


possibilidade de crítica e de superação do processo de globalização em curso.

Entendendo esta perspectiva como orientada por uma lógica cultural que não é,

no entanto, exclusiva, insistimos no fato de que ela nos capacita para pensar a

sociedade como um todo, envolta dialeticamente em relações nacionais e

internacionais, a partir de uma posição classista bem definida, e que tem, no

conjunto das mais diversas relações sociais, seu espaço de realização e de

responsabilização. Assim, a partir de nossas elaborações anteriores, não

hesitaríamos em afirmar que nacional-popular não representa um retrocesso a um

“nacionalismo” e a um “populismo” exacerbados e apolíticos, mas uma verdadeira

“tomada de posição”, uma orientação contra-hegemônica que tem por objetivo

capacitar os setores subalternos desta sociedade para novos enfrentamentos

políticos, a partir de novas bases societárias. Com isso, retomamos o projeto da

“sociedade regulada” em Gramsci, onde significativos elementos culturais, em seu

sentido mais amplo, apontam para relações e lutas políticas renovadas, a serem

verdadeiramente colocadas nas sociedades contemporâneas por aqueles que,

coletivamente, se afirmam contrários e alternativos ao sistema de controle do

capital.

Esta retomada da perspectiva nacional-popular não se faz,

entretanto, sem novos desafios. Como tivemos a oportunidade de

discutir ao longo deste trabalho, a sociedade capitalista se renova,

neste cenário globalizado, construindo também um forte aparato ideo-

cultural, sustentado, principalmente, por uma orientação pós-moderna

que, por vários caminhos, busca negar esta perspectiva de superação


de suas contradições. Neste caminho, a luta se faz em dimensões

cada vez mais bem definidas. É preciso termos clareza de que, nos

termos em que é colocada, a pós-modernidade se apresenta muito

mais como uma “anti-modernidade”, onde o que se afirma é que já que

não podemos transformar e revolucionar o quadro que está colocado,

é melhor aderirmos e nos conformarmos com ele, contentando-nos

com as pequenas reformas que se apresentam como possíveis.

O nacional-popular hoje se refere, portanto, a diversos movimentos de

crítica e de superação da ordem desta sociedade, que vão desde aqueles mais

diretamente relacionados com a base material, com as relações produtivas em sua

dimensão mais restrita, até os grandes embates culturais e ideológicos,

envolvendo artistas e Intelectuais, movimentos sociais, partidos políticos e tantas

outras esferas da sociedade civil que tem o desafio de recolocar, na agenda

política, questões subjugadas pelo sistema do capital, em sua constituição mais

extrema. Aqui se recoloca a cultura como uma dimensão vital da constituição do

ser social, como aquela que nos permite “conhecer e transformar”, como a que

nos mostra o tamanho e a força de uma proposta alternativa ao que hoje se

apresenta como hegemônico, “imutável e inquestionável”. Nas palavras de

SIMIONATTO (2003: p. 275-276), esta relação é assim apresentada,

Permeado por crises, o momento presente continua proclamando


a aparente vitória do capitalismo, assentado na supremacia do
sistema financeiro, no espectro do fim da história e das ideologias,
no desaparecimento dos grandes sujeitos sociais, na ênfase
exacerbada em comportamentos individualistas, fundamentalistas
e nacionalistas – enfim, a ausência de sonhos e o
“desencantamento utópico” são as marcas indeléveis dos
esfumaçados dias atuais.

É preciso, portanto, a construção e o fortalecimento de um projeto societário

que demonstre os limites desta ordem, que não se restrinja à produção de

riquezas em outra lógica, mas que aponte para a produção de toda uma vida

social, com novos padrões de sociabilidade e novos valores que sejam capazes

de redimensionar as expectativas de emancipação humana tão caras para outros

momentos societários. Para esta tarefa, uma proposta nacional-popular nos

parece essencial, necessária e possível.


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