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João Pessoa/PB
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
João Pessoa/PB
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
NÚCLEO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS
Editoração:
Arte/Capa: Júnior Pinheiro
Catalogação na Fonte
Biblioteca Enzo Melegari do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.20
CORPOS QUE TRANSGRIDEM: UMA ANÁLISE SOBRE AS ALAS LGBT E A GARANTIA DOS
DIREITOS HUMANOS..757
Alice Lopes Dornellas
Regiane da Silva Perazzo
Renata Monteiro Garcia
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PARTE I
AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES/FENÔMENOS DO
ENCARCERAMENTO E DIREITOS HUMANOS
21
O ENCARCERAMENTO FEMININO: UMA ANÁLISE DOS SERVIÇOS E AÇÕES DE
SAÚDE VOLTADOS ÀS MULHERES ENCARCERADAS NUM CENTRO DE
REEDUCAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
1
Esses dados foram fornecidos pelo próprio Centro de Reeducação Feminina Maria Júlia Maranhão, em 2018,
durante coleta de dados para o projeto de pesquisa "Um Estudo Sobre as Mulheres em Situação de Cárcere no
Estado da Paraíba".
2
A sala é compartilhada entre a assistente social e a psicóloga, tendo em vista a falta de infraestrutura no
presídio.
23
transporte, educação, emprego, lazer, acesso aos serviços de saúde, dentre outros
elementos. Desta forma, a saúde passou a ser muito mais que a ausência de doenças.
Levando-se em consideração os princípios da equidade e integralidade que
norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS), o atendimento aos indivíduos deve ser feito por
meio do respeito às suas necessidades e estes devem ser vistos de maneira integral. Em
vista disso, mesmo que tais indivíduos estejam inseridos na prisão, possuem o direito à
saúde, educação, trabalho, entre outros; pois tiveram suspensa a liberdade e não o
exercício da cidadania.
O aumento do encarceramento e o fenômeno da superlotação dos presídios
trouxeram consequências diretas à saúde da população carcerária. Isto porque, as
condições precárias nas unidades prisionais potencializaram os agravos em saúde. O
Estado, que deveria proteger as pessoas privadas de liberdade acaba punindo-as com
ações repressivas. Evidenciamos, com isso, que há um distanciamento entre política social
e política prisional (CARVALHO, 2017).
Em vista disso, quando os efeitos do encarceramento e, por conseguinte da
desigualdade social se intensificaram, o Estado foi pressionado e requisitado a elaborar e
desenvolver políticas sociais, dentre elas na área da saúde prisional.
Embora a necessidade de organização de ações e serviços de saúde na prisão tenha
se consagrado em 2003 com o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP),
o atendimento em saúde para pessoas privadas de liberdade já se dava por meio da Lei de
Execução Penal (LEP- Lei n° 7.210 de 11 de julho de 1984). Em seu art. 14 a LEP prevê a
responsabilidade do Estado na defesa do acesso à saúde das pessoas privadas de
liberdade através do atendimento médico, farmacêutico e odontológico (CARVALHO,
2017).
A assistência à saúde na LEP foi apresentada de forma limitada, desta forma
verificou-se a necessidade de criação de normas específicas. Com isso, foi estabelecido o
PNSSP, por meio da Portaria Interministerial n° 1.777. De acordo com o Plano, a
população carcerária deveria ter o direito à cidadania garantido na perspectiva dos
direitos humanos. Porém, apesar do mesmo ter defendido ações em prol de melhoria da
saúde da população carcerária, apresentou algumas limitações, dentre elas a insuficiência
de ações educativas e a precária assistência médica (FREITAS et al, 2016).
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade
(PNAISP) foi instituída por meio da Portaria Interministerial n°1, de 2 de janeiro de 2014,
como fruto da avaliação dos 12 anos do PNSSP. Ela trouxe avanços na perspectiva do
acesso das pessoas privadas de liberdade aos princípios do SUS.
De acordo com a PNAISP, as pessoas privadas de liberdade e beneficiárias da
política são aquelas maiores de 18 anos que estão sob custódia do Estado para cumprir
penas privativas de liberdade em caráter provisório ou sentenciado (BRASIL, 2014a).
Com relação aos princípios que norteiam a política, é importante destacarmos o
respeito aos direitos humanos e a justiça social; a integralidade da atenção à saúde no
conjunto de ações de promoção, proteção, prevenção, assistência, recuperação e
vigilância em saúde da população privada de liberdade; e valorização da participação
popular e controle social na formulação e gestão de políticas para atenção à saúde das
pessoas privadas de liberdade (BRASIL, 2014a).
Nas diretrizes, a PNAISP contempla ações que visam a promoção da cidadania por
meio da inclusão e articulação das pessoas privadas de liberdade com os diversos setores
de educação, trabalho, segurança; atenção integral, contínua e de qualidade à saúde da
pessoa privada de liberdade, com ênfase nas ações preventivas sem prejuízo das
assistenciais; controle dos agravos que atinge constantemente a população carcerária;
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respeito à diversidade religiosa, étnico-racial, orientação sexual, identidade de gênero;
intersetorialidade para a gestão e garantia do direito à saúde (BRASIL, 2014a).
Dentre os avanços que a política trouxe destacam-se a inclusão dos trabalhadores
em serviços penais e dos familiares das pessoas privadas de liberdade nas ações de
prevenção e promoção à saúde no cárcere. Assim como, a remição de pena para as pessoas
custodiadas que desenvolvam trabalho nos programas de educação e promoção da saúde
no SUS (BRASIL, 2014a).
A estrutura dos serviços de saúde nas unidades prisionais tem como ponto de
referência a Rede de Atenção à Saúde e são cadastrados no Sistema Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (SCNES) (BRASIL, 2014a). A Unidade de Saúde Prisional se
caracteriza enquanto rede de atenção básica dentro da prisão e se articula com outros
dispositivos na Rede do território. Além disso, caso a Unidade de Saúde Prisional não
ofereça determinados serviços, a Unidade Básica de Saúde do território deve se
responsabilizar pelas ações de saúde.
A equipe básica de saúde no sistema prisional segue a mesma lógica da Estratégia
Saúde da Família (ESF), englobando enfermeiro, médico, cirurgião-dentista, técnico de
enfermagem e técnico em saúde bucal. Os profissionais das áreas de psicologia, serviço
social, farmácia, fisioterapia, nutrição e outras, são inseridos por meio da saúde mental.
Portanto, a definição dos profissionais da equipe depende do modelo pactuado.
Os serviços e a equipe de atenção básica no sistema prisional são definidos por
meio de três critérios. Primeiro, a quantidade de pessoas privadas de liberdade por
unidade prisional; segundo, vinculação dos serviços de saúde a uma unidade básica de
saúde no território; e terceiro, a demanda por profissionais de saúde mental. As equipes
são definidas em três tipos. O tipo I é para até 100 custodiados, a II para até 500 e a III
para até 1.200 custodiados. Todas podem contar com a equipe de saúde mental. Com
relação às unidades com atendimentos acima de 1.200 pessoas, há o acréscimo de
profissionais de acordo com o número de custodiados (BRASIL, 2014c).
A promoção à saúde e/ou efetivação de ações educativas que visem o controle e/ou
a redução de agravos para a população carcerária é realizada pela Unidade de Programa
de Saúde Penitenciária (PSP), que assume as mesmas funções das unidades de saúde
extramuros, o Programa Saúde da Família (PSF).
A adesão à PNAISP ocorre por meio da pactuação entre Estados e Distrito Federal
com a União e deve observar alguns critérios, como a assinatura do Termo de Adesão, a
elaboração de Plano de Ação Estadual para Atenção à Saúde da Pessoa Privada de
Liberdade e o encaminhamento de documentação ao Ministério da Saúde para aprovação.
Ao Estado e ao Distrito Federal que aderir à Política é garantida a aplicação de um índice
para a complementação do valor repassado pela União como forma de incentivo, ato
específico do Ministro de Estado da Saúde. A adesão do município é facultativa. No que diz
respeito ao monitoramento e avaliação da política, dos serviços, das ações de saúde e da
equipe são realizados pelo Ministério da Saúde e Ministério da Justiça por meio de
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informações, inserção de dados e documentos no sistema de informação da atenção à
saúde (BRASIL, 2014a).
De acordo com Ferraz (2015), apesar de a PNAISP ter avançado no ponto de vista
da assistência à saúde no sistema prisional, poucas unidades prisionais no Brasil possuem
o módulo de saúde, talvez pelo fato de sua adesão ser facultativa. Desta forma,
percebemos que só a criação da política não é suficiente para que o direito à saúde no
cárcere se efetive.
A superlotação, o sucateamento e a precarização do espaço prisional, bem como a
falta de informação e o receio de ser vítima de preconceito dificultam a busca pelos
serviços de saúde. Por conseguinte, é essencial a avaliação e o monitoramento da política,
assim como o desenvolvimento de ações intersetoriais e estratégias que possibilitem a
promoção à saúde (FREITAS et al 2016).
Embora a PNAISP aborde a saúde da população carcerária no geral, houve a
necessidade de criação de uma legislação específica para efetivação dos direitos das
mulheres reclusas. Tendo em vista que, a figura feminina no cárcere apresenta
particularidades. Desta forma, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral às
Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas no Sistema Prisional
(PNAMPE), que versa sobre a questão de gênero, sexualidade, maternidade, saúde mental,
dentre outros fatores relevantes a esse público.
A PNAMPE surgiu com o objetivo de resguardar os direitos das mulheres
encarceradas por meio da reformulação de práticas no sistema prisional feminino
brasileiro. Dentre as diretrizes que norteiam a política, vale ressaltar a prevenção de todos
os tipos de violência contra as mulheres; o fortalecimento da atuação conjunta de todas
as esferas de governo na implementação da política; a humanização do cumprimento da
pena; fomento a adoção de normas e procedimentos adequados às especificidades das
mulheres no que tange a gênero, idade, etnia, etc; incentivo à construção e adaptação de
unidades prisionais para o público feminino (BRASIL, 2014b).
Entre os anos de 2000 e 2016, houve um crescimento de mais de 567% do
encarceramento feminino. Desta forma, percebemos que a população carcerária feminina
cresceu muito nos últimos anos, exigindo com isso a intervenção estatal (FGV DAPP,
2018).
Em 2006, houve a promulgação da Lei 11.343 que endureceu as penas contra o
tráfico de drogas no país, isto fez com que aumentasse a quantidade de mulheres nas
prisões. A figura 1, a seguir, aponta os tipos de crimes que levaram a condenação de
homens e mulheres entre janeiro e dezembro de 2014 no Brasil (FGV DAPP, 2018).
Verificamos por meio da figura abaixo apresentada, que o tráfico de drogas é o
crime mais frequente nas prisões de homens e mulheres. Se compararmos, mais da
metade das mulheres são presas por tráfico de drogas, enquanto o percentual masculino
está abaixo dos 50%. Isto porque, no tráfico de drogas elas ocupam as posições mais
subalternas como “mula”, “avião”, “vendedora”, etc, o que as tornam mais sujeitas às
prisões.
26
Figura 1 - Tipos de crimes que levaram à condenação de homens e de mulheres no
Brasil (janeiro/2014 a dezembro/2014)
Desta forma, percebemos que a adesão da Paraíba à PNAISP foi um avanço, porém
de nada adianta se as condições para a sua efetivação não forem criadas e se os
profissionais das unidades de saúde não estiverem capacitados o suficiente para atender
as demandas específicas de seu público alvo.
No que concerne à cidade de origem, embora uma boa quantidade seja proveniente
do interior da Paraíba, muitas moram em João Pessoa. Para as que são do interior, um dos
fatores que pesam ainda mais a pena é a falta de visitas, tendo em vista fatores econômicos
e de distância, tendo como consequência o enfraquecimento dos vínculos afetivos.
4
Utilizamos as cinco categorias propostas pelo IBGE quanto à cor ou raça: branca, parda, preta, amarela e
indígena. A categoria negra é construída pela soma da preta e parda. Vale ressaltar que os dados da pesquisa
quanto à raça/cor se deu por meio de autodeclaração, diferentemente dos dados disponibilizados pelo
INFOPEN Mulheres (2017) que foram cadastrados pelos gestores responsáveis pelo preenchimento dos
formulários.
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Diante das condições de vida das mulheres encarceradas, não é de se espantar que
o grau de escolaridade seja baixo. Nossa pesquisa revelou que apenas 5% das
entrevistadas concluíram o ensino superior, enquanto 38% possuem apenas o ensino
fundamental I incompleto.
A Paraíba, seguida dos estados de Alagoas, Piauí e Rio Grande do Norte destacam-
se pelos mais altos índices de analfabetas privadas de liberdade no país. Isto porque,
muitas vezes, as mulheres ingressam no mercado de trabalho cedo para assim
sobreviverem. (INFOPEN Mulheres, 2017)
No que se refere ao estado civil, mais da metade das mulheres entrevistadas são
solteiras. Vale destacar que durante as entrevistas muitas afirmaram que foram
abandonadas pelos companheiros/as quando entraram na prisão. Além disso, uma boa
parte das casadas, em convivência pública e/ou em união estável informaram que os seus
companheiros também se encontram presos.
De acordo com o INFOPEN Mulheres (2017), outro fator que pode corroborar com
a grande quantidade de mulheres solteiras na prisão é a concentração de pessoas jovens.
Com relação ao número de filhos/as, 90% das mulheres entrevistadas declararam
ter entre 1 e 7 filhos/as5, ou seja, o perfil da amostra é de mulheres mães. Desse modo, o
impacto sobre as famílias é maior, uma vez que geralmente essas mulheres são as chefes.
Ao cometerem um delito, rompem não apenas com a norma social, mas também
com a norma moral de que o mundo do crime é um espaço exclusivamente masculino e
que naturalmente as mulheres são dóceis, maternais e do lar, com isso são duramente
responsabilizadas e marginalizadas socialmente.
No que tange ao vínculo empregatício das mulheres antes da prisão, percebemos
que uma considerável parcela estava inserida no mercado informal de trabalho, ou seja,
não possuíam estabilidade financeira e ocupavam postos de trabalho precarizados.
Consequentemente são poucas as famílias que recebem auxílio-reclusão. Com isso,
algumas mulheres buscam se engajar nos trabalhos oferecidos dentro do próprio
estabelecimento prisional como forma de mesmo que minimamente prestar assistência à
família.
De acordo com a Lei de Execução Penal (LEP) a população prisional tem direito ao
trabalho. Este deve possuir caráter educativo e pode ser desenvolvido dentro da prisão
(para condenados e provisórios) ou fora (para condenados que já tenham cumprido pelo
menos 1/6 da pena total). Além disso, o trabalho deve ser remunerado e o valor não pode
ser inferior a ¾ do salário mínimo. (INFOPEN Mulheres, 2017)
A renda familiar das mulheres privadas de liberdade é predominantemente baixa,
pois mais da metade sobreviviam com um valor abaixo de um salário mínimo ou com ele
completo. Isto se dá em função da própria inserção dessas mulheres no mercado informal
de trabalho. As que recebiam entre 2 e 4 salários eram funcionárias públicas ou estavam
envolvidas com o tráfico de drogas.
Com relação à deficiência, identificamos que dentre as mulheres
entrevistadas nenhuma possui. De acordo com o INFOPEN Mulheres (2017) apenas 1%
da população prisional feminina no Brasil é composta por mulheres com deficiência. Desta
porcentagem, a maior parcela se refere à deficiência intelectual, seguida da física.
5
O intervalo no número de filhos/as se justifica pelo fato do nosso objetivo ser apenas constatar se a mulher
entrevistada possui ou não filhos/as, não importando a quantidade.
31
3.2 Visibilidade da assistência à saúde segundo as apenadas
6
Realizamos três visitas ao CRFMJM para coleta de dados, durante as duas primeiras o Programa de Saúde
Penitenciária estava sem médica (o). Apenas na última (06/02/2019) foi que tinha uma médica recém-chegada
(há duas semanas).
7
Tanto a cela de saúde quanto as apenadas que desenvolvem algum trabalho no presídio encontram mais
facilidade de acesso aos serviços.
32
Geralmente as crianças ficam com as mães os seis primeiros meses de vida e
demandam atenção especial dos profissionais que ali se encontram. As mulheres
vivenciam um misto de sensações, pois de certa forma convivem com a incerteza do
destino do/a filho/a. Muitas vezes, não tem contato com a família, o que acaba
aumentando a tensão. Todo esse cenário foi identificado por Mello (2010) em estudo
correlato.
Com relação à saúde das mulheres antes de ingressarem na prisão, ou seja, a
atenção à saúde extramuros, constatamos conforme os depoimentos que muitas já
entraram na prisão com algum problema de saúde. E isso é um reflexo de vários fatores,
a exemplo da qualidade de vida dessas mulheres, visto que a maioria é pobre da periferia
e que por vários motivos não conseguem acessar os serviços.
Do total da amostra (21) 10 mulheres revelaram não possuir nenhuma doença
antes e após a prisão. No entanto, 11 alegaram que sim, dentre elas:
33
Conforme dados coletados verificamos que embora o CRFMJM possua uma
unidade de atenção básica, as demandas não são atendidas de forma efetiva, tendo em
vista que os profissionais são insuficientes em comparação ao número de apenadas. Os
serviços oferecidos visam mais controlar os agravos do que os prevenir.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Os profissionais de saúde precisam conhecer as particularidades do público ao
qual atende nesse caso as apenadas do CRFMJM. Quais as doenças que mais incidem
nessas mulheres. Se a mulher está grávida ou com o bebê, de que forma eles devem atuar,
haja vista que demandam uma atenção especial. Se algum problema precisa ser
encaminhado para outro nível de atenção, de que maneira podem se articular. Assim, a
partir da vivência na instituição foco do estudo, constatamos que, a singularidade da
saúde da mulher não é considerada em relação aos atendimentos prestados.
Por fim, consideramos que a questão do financiamento desse tipo de assistência
não condiz com as demandas que emergem no espaço prisional. Há necessidade de uma
provisão de recursos mais alargada, bem como, uma segurança legal de que os repasses
entre a União e os estados serão contínuos.
REFERÊNCIAS
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das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional: Uma análise sobre a evolução
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FREIRE, Alexandre. Paraíba tem déficit de 2,3 mil agentes penitenciários. 2018.
Disponível em: <https://portalcorreio.com.br/paraiba-tem-deficit-de-23-mil-agentes-e-
estrutura-precaria-em-presidios/> Acesso em: 19 fev. 2019.
FREITAS, Rosane Souza. et. al. POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE
DAS PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE NO SISTEMA PRISIONAL: uma análise do seu
processo de formulação e implementação. R. Pol. Públ., São Luís, v. 20, n.1, p.171-184,
jan./jun. 2016. Disponível em:
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Alcoforado.pdf> Acesso em: 10 ago. 2018.
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TECENDO UMA CRIMINOLOGIA FEMINISTA: UMA ANÁLISE SOBRE O DIREITO À
VISITA ÍNTIMA NOS ESTABELECIMENTOS PENAIS FEMININOS
1 INTRODUÇÃO
Até mesmo a criminologia crítica, que adota um ponto de vista das classes
subalternas como garantia de uma práxis teórica e política alternativa, fixa a
sua atenção em situações definidas pelo o que é o espaço público, limitando seu
conceito de atores sociais aos que são visíveis na esfera pública, tal como ocorre
com as classes sociais. Tomando a perspectiva de gênero, no máximo como
aditivos (MENDES, 2017, p. 226).
E, por outro lado não somente a palavra pública da mulher era alvo de atenção,
também as formas que suas manifestações verbais poderiam assumir no privado foram
objeto de custódia. Havia um perigo de que, excluídas da vida pública, elas subvertessem
os espaços em que estavam reclusas, então esses espaços também deveriam ser
controlados. Desse modo, a mulher não deveria ler nem escrever, senão para tornar-se
freira, deveria ser modesta em seus gestões, o limitado acesso ao mundo da cultura e do
trabalho, entre outros. A mulher foi afastada da vida pública e segregada.
Sabidamente, a submissão e a reclusão das mulheres, com o seu afastamento da
esfera pública, não foram inovações medievais, porém foi na baixa Idade Média
43
especificamente que se constrói um organizado e perfeito discurso, não apenas de
exclusão e limitação da participação feminina na esfera pública, mas de uma verdadeira
perseguição e encarceramento. A caça às bruxas faz uma aliança entre os discursos
jurídico, médico, teleológico em favor do encarceramento da mulher e hoje ainda se tem
variadas influências até hoje sobre os papéis que são construídos sobre estas.
A punição, assim, sempre esteve presente na vida das mulheres, o que nem sempre
esteve ligado ao Direito Penal, mas isso influenciou diretamente na aplicação da punição
da Justiça Criminal sobre estas. Após isso, opondo o pensamento jurídico-penal
medieval, surge um período comumente conhecido como “período humanitário” ou a
Escola Clássica do Direito Penal. Com esse momento histórico, ao contrário do período
anterior, não há pensamento criminológico sobre a condição de repressão e perseguição
das mulheres, de toda forma que toda essa liberdade e o garantismo que foi dado a partir
desse período em nada se refletiu nessa parcela da sociedade. A adesão da mulher a esse
estatuto igualitário que surge no período iluminista se dá apenas como filha, esposa e
mãe. Figura secundária definida em relação ao homem, o único verdadeiro sujeito de
direito (ARNAUD-DUC, 1990).
Com a Revolução Francesa, as mulheres tomaram as ruas como insurgentes,
entretanto, após esse momento, as mulheres continuaram dependentes dos homens e
consideradas inadequadas para a vida pública em razão do déficit de racionalidade. A
partir dos lemas de igualdade, liberdade e fraternidade e a secularização, isto é, a
separação de Direito e Religião, tem-se que pode ser uma das razões da Criminologia e
consequente Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminalística terem abandonado
os discursos sobre as mulheres, entretanto apesar do discurso ter se mitigado e até
mesmo desaparecido por um tempo, as mulheres continuaram com as amarras
produzidas no período medieval.
Como consequência, as mulheres não são mais sujeitas da Justiça Criminal
organizada, pois, a punição agora era determinada e executada exclusivamente por seus
maridos, caso estes identificassem qualquer elemento que os incomodasse8. Os corpos
femininos eram destinados à esfera privada, sendo até hoje uma das dimensões que é
remetida a violência doméstica tão fortemente.
Ao passo que os homens começaram a ser penalizados em prisões foram, na
verdade, os hospitais psiquiátricos, conventos e instituições religiosas e mentais
utilizados contra as mulheres. Como afirma Borges:
45
Art. 29. (...) § 2° As mulheres cumprem pena em estabelecimento
especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão
comum, ficando sujeitas a trabalho interno. (Redação original do
Decreto-Lei nº 2.8486).
Este foi um grande avanço na condição das mulheres naqueles espaços, mas,
apesar da determinação, apenas a partir dos anos 80 passaram a ser asseguradas
condições mínimas de salubridade e ambientes próprios para mulheres em situação de
cárcere (BORGES, 2018, p. 95). Mesmo com o estabelecimento dessas condições
mínimas, não há propriamente uma isonomia de condições entre os sujeitos inseridos
nas prisões, pois mulheres possuem necessidades específicas de suas vivências, como o
uso de absorventes ou o maior uso do papel higiênico, sendo essas necessidades
ignoradas pelo Estado, que apenas importa o modelo masculino para construir os
ambientes prisionais das mulheres. A igualdade de tratamento que o Estado determina
significa um agravamento da punição dessas mulheres, intensificando seu contexto de
violência e ignorando suas vivências e as opressões que são colocadas sob elas. Dessa
forma, o próximo tópico irá evidenciar as circunstâncias em que as mulheres são inseridas
no Sistema Prisional.
O contato íntimo entre homens e mulheres no cárcere se inicia no século XIX, uma
vez que ambos os gêneros ainda tinham que cumprir pena em um mesmo
46
estabelecimento penal. As encarceradas mantinham relações com os outros detentos,
assim como também com os responsáveis pelos estabelecimentos penais. O resultado
desses envolvimentos foi um esquema de prostituição 11 e o nascimento de várias
crianças na Cadeia Velha – principal instituição penal da época (BASSANI, 2013, p. 63),
essa realidade se manteve até a regulamentação das penitenciárias femininas.
A década de 40, período marcado pelo Estado Novo e pelos discursos de Getúlio
Vargas a favor da família, foi de principal importância para os presos, visto que o Código
Penal de 1940 permitiu que os presos fossem liberados para visitarem as suas famílias
em datas ou ocasiões especiais12. Como os encontros não ocorriam dentro dos
estabelecimentos penais, não havia uma necessidade de um instrumento que
regulamentasse o contato íntimo. O cenário mudou apenas durante os anos 80, a partir
de legislações que estimularam a introdução da família do preso no território carcerário
(BASSANI, 2013, p. 109), consequentemente, foi despertado a necessidade de um
dispositivo que regulamentasse o contato íntimo do preso com seu cônjuge.
A Lei de Execução Penal - Lei Nº 7.210 de 11 de Julho de 1984 - é o principal
instrumento de garantia dos direitos dos presos, devendo ser estendida a homens,
mulheres, idosos e menores infratores. Seu artigo 41 estabelece as seguintes garantias
das pessoas privadas de liberdade: o direito à assistência material, à saúde, jurídica,
educacional, social e religiosa; a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos
em dias determinados; a igualdade de tratamento; o descanso e recreação, entre outros.
Ao abordar o direito à visita, o legislador não especifica qual está sendo
mencionada - se a simples ou a íntima, deixando aos gestores dos estabelecimentos
penais a responsabilidade de interpretar o texto da lei como bem entenderem.
Entretanto, vale destacar que tal fato não impediu ou dificultou as visitas íntimas nas
penitenciárias masculinas, uma vez que era comum na década de 80 os encontros íntimos
entre os presos e suas companheiras acontecerem de forma clandestina, através de
negociações informais com alguns agentes penitenciários (BASSANI, 2013, p. 110).
Reconhecendo a importância de um dispositivo que regule os direitos sexuais no
cárcere, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) emitiu a
Resolução nº 01 de 30/04/99, a qual determinava atribuições para a efetivação da visita
íntima nos estabelecimentos penais, entre elas o cadastramento dos visitantes e a
preparação de um espaço adequado para a finalidade. A resolução foi fundamental por
incluir a mulher encarcerada, de maneira que ela - legalmente - passaria a ter os mesmos
direitos que o homem de exercer sua sexualidade no cárcere.
Nesse sentido, Padovani (2010) discorre sobre o processo de visita íntima nas
penitenciárias femininas:
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
50
Brasil. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2013.
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges
(orgs.). História das mulheres no ocidente. v. 2. Idade Média. Porto: Afrontamento,
1990, p. 99-141.
COLARES, Leni Beatriz Correia; CHIES, Luiz Antônio Bogo. Mulheres nas
so(m)bras: invisibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios 46
masculinamente mistos. Revista Estudos Feministas vol.18 nº.2. Florianópolis.
Maio/Agosto 2010.
HELPES, Sintia Soares. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com
o tráfico de drogas. IBCCRIM. São Paulo, 2014.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. 5 ed. Rev. Atual. E
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Visita Íntima nas Prisões: Direitos Humanos, Gênero e Violência Institucional.
IV Seminário Latino-Americano de Direitos Humanos, Fortaleza/CE, 2013.
THUIN, Hanna Iwamoto de. Visita íntima como instrumento de normalização dos
corpos. 2016. 56 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito)—
Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
52
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL À LUZ DA
LEI Nº 13.769/2018 E DAS REGRAS DE BANGKOK
1 INTRODUÇÃO
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http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/formulario-sobre-informacoes-prisionais.pdf
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Quadro 1 - Informações prisionais dos doze países com maior população prisional feminina do
mundo
O que todavia chamou mais a atenção foi o crescimento exponencial (Gráfico 1),
considerando o intervalo de 2000 a 2016, da taxa de encarceramento feminino no Brasil,
em comparação com o grupo dos cinco países que mais aprisionam mulheres no mundo,
tendo o Brasil apresentado um aumento de 455% de sua taxa de encarceramento,
enquanto, em contrapartida, a Rússia teve uma queda de 2%.
O Gráfico 1, per si, já é suficiente para atestar o fracasso das estratégias de política
criminal que vinham sendo desenvolvidas - se é que havia- com o fim de contingenciar o
encarceramento feminino entre os anos de 2000 a 2016, o que denota, pois, a par desses
dados, a necessidade imperiosa de se rever os métodos até então empregados e elaborar
novas táticas para redução dos índices do enclausuramento desse grupo.
O Gráfico 1, per si, já é suficiente para atestar o fracasso das estratégias de política
criminal que vinham sendo desenvolvidas - se é que havia- com o fim de contingenciar o
encarceramento feminino entre os anos de 2000 a 2016, o que denota, pois, a par desses
dados, a necessidade imperiosa de se rever os métodos até então empregados e elaborar
novas táticas para redução dos índices do enclausuramento desse grupo.
Em relação a esse exagerado crescimento desproporcional da população
carcerária feminina, sapiente é a observação de Senedese (2019, p. 7):
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para se caracterizar ainda como jovem,9 teríamos uma porcentagem de 50% de
enclausuramento no público jovem feminino no Brasil. Ademais, dentro do critério de
raça/cor, identificou-se que 62% das mulheres presas eram negras10 (BRASIL, 2018b).
Gráfico 1 - Variação da taxa de aprisionamento entre 2000 e 2016 nos 5 países com maior
população prisional feminina do mundo
Não menos importante foi a identificação dos tipos penais mais recorrentemente
cometidos pelas mulheres, seja em sua forma tentada ou consumada, cuja análise concluiu
que o crime mais frequentemente praticado por esse público está relacionado ao tráfico
de drogas11, com porcentagem totalizada em 62% do universo dos delitos considerados.
A par ainda desse critério estatístico, pode-se concluir que a criminalidade feminina é
caracterizada pela prática de crimes não violentos, ou seja, tipos penais que em regra não
são cometidos com o emprego de violência ou grave ameaça. Infere-se isto a partir da
análise percentual do Gráfico 2, ou seja, considerando os delitos de tráfico de drogas, furto
e receptação, cujas porcentagens são, respectivamente, 62 %, 9% e 1%, constata-se que,
somados, atingem a cifra de 72% dos tipos penais cometidos pelas mulheres. (BRASIL,
2018b)
9 Classificação descrita na Lei 12.852/2013 (Estatuto da Juventude).
10 Neste critério, o Infopen considerou cinco categorias quanto à cor e raça, sendo elas: branca, preta, parda,
amarela e indígena. Dentro da categoria negra foram inseridas as mulheres de cor preta e parda.
11 Nesta porcentagem estão compreendidos os crimes de associação para o tráfico (16%), tráfico
12
Mantivemos a estrutura do gráfico originário da fonte citada.
57
3. O CAMINHO DA VISIBILIDADE DA MULHER ENCARCERADA A PARTIR DAS REGRAS
DE BANGKOK
A luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres é uma batalha histórica,
que pretende alterar a discriminação que há em detrimento do ser feminino frente ao
masculino, dessemelhança esta que remonta desde a compreensão da diferenciação dos
sexos.
Seja mito ou verdade revelada, desde a Gênese, imputa-se à mulher o Pecado
Original, sendo apontada, em razão disto, como a responsável pela perdição humana,
argumento este que permite aos misóginos fazer silogismos para a defesa da submissão
daquela ao homem.
Com elevada percuciência escreve Ribeiro (2000, p.10):
Teologia a parte, o fato é que se na idade das cavernas valia a lei do mais forte, e
por conta disso, a submissão da mulher era notadamente física, essa prerrogativa
masculina cai por terra, já que o elemento de pujança, hodiernamente, é a razão, e quanto
a esta, em nada as mulheres se diferenciam dos homens. Ora, a força física do leão embora
lhe garanta o reino da selva, sucumbe ao império do homem, justamente por aquele ser
movido por instintos e este guiado pela razão.
Essa persistente e intragável discrepância de isonomia de direitos entre homens e
mulheres se manifesta nos múltiplos contextos, até mesmo nas questões que envolvem a
criminalidade sob uma perspectiva de gênero, como bem aponta Barcinski (2012, p. 54
apud DALY e CHESNEY-LIND, 1988):
Embora o perfil criminológico da mulher seja diferente do homem, o que se pretende demonstrar é que a
13
mulher perdeu o papel exclusivo de vítima e passou a também ser vista como agente que delinque.
58
também da humanização dos espaços penitenciários, o que foi denunciado pelo ex-
presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ricardo Lewandowski:
Vale salientar que as Regras de Bangkok não revogam, tampouco conflituam com
as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso e as Regras Mínimas para a Elaboração de
Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio), mas sim, conforme destaca
59
Cerneka (2018), considerando as necessidades específicas das mulheres, procuram
complementar estes dois últimos instrumentos internacionais14.
No Brasil, esclarece Souza, Zaganelli e Gonçalves (2018), que a primeira iniciativa
a nível nacional para implementação das Regras de Bangkok deu-se no âmbito do
Encontro Nacional sobre o Encarceramento Feminino, promovido pelo CNJ, através de seu
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, realizado em
Brasília, na data de 29 de junho de 2011, onde após exposições e discussões levadas a
efeito por representantes da sociedade civil e órgãos de governo, elaborou-se a Carta de
Brasília, documento que “demonstra e exige da União e dos Estados brasileiros, bem como
do Judiciário, a efetivação das Regras de Bangkok” (SOUZA; ZAGANELLI; GONÇALVES,
2018, p. 132) .
Outro passo importante nessa caminhada em prol da visibilidade da situação
peculiar da mulher encarcerada, deu-se em 8 de março de 2016, com a publicação da Lei
13.257, denominada popularmente de Estatuto da Primeira Infância. Nada obstante ser
um diploma que “estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação
de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância
dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser
humano” (BRASIL, 2016b), sucede-se que, em razão das alterações promovidas nos
artigos 6º, 185, 304 e 318 do Código de Processo Penal, houve uma sensibilidade
legislativa, que determina, em síntese, e no que tange aos três primeiros artigos citados,
que as autoridades policiais e judiciárias busquem saber se a pessoa presa possui filhos e
de quem é a responsabilidade pelos cuidados destes.
Especificamente, em relação à situação da mulher presa, a citada lei, alterando o
artigo 318 do Código de Processo Penal, prescreveu a possibilidade de substituição da
prisão preventiva por domiciliar nas hipóteses de estar a mulher gestante ou se tiver filho
com até 12 anos incompletos, tudo isso, sob forte influência da onda humanitária advinda
com as Regras de Bangkok.
As Regras de Bangkok também foram observadas e serviram de base para o
julgamento do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641, proferido pelo Supremo Tribunal
Federal, que na oportunidade, além de inovar na ordem jurídica, já que tal remédio
constitucional, conforme apontou Alves (2019), na modalidade coletiva, até então não era
conhecido e utilizado nos tribunais nacionais, determinou “que fosse substituída a prisão
preventiva pela domiciliar de presas gestantes e mães de crianças de até doze anos de
idade ou de pessoas com deficiência, em todo o território nacional”(ALVES, 2019, p. 292).
Vale aqui transcrever parte da ementa do citado Habeas Corpus Coletivo:
14 Consta das orientações gerais das Regras de Bangkok: 3. As presentes regras não substituem de modo
algum as Regras mínimas para o tratamento de reclusos e as Regras de Tóquio e, portanto, todas as
provisões pertinentes contidas nesses dois instrumentos continuam a ser aplicadas a todos as pessoas e
infratores sem discriminação. Enquanto algumas das presentes regras aclaram as provisões existentes nas
Regras mínimas para o tratamento de reclusos e nas Regras de Tóquio em sua aplicação a mulheres presas
e infratoras, outras compreendem novas áreas (BRASIL, 2016a, p.17)
60
ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO. (BRASIL, 2018a, p. 4) (Grifo
nosso)
Essa decisão proferida pelo STF transpassa a mera judicialidade do caso, sendo
mais que uma questão de direito, é um reconhecimento da história de invisibilidade da
mulher dentro do contexto penitenciário, tornando-se um marco jurídico que pretendeu
corrigir a ineficiência do Poder Executivo em promover a igualdade material entre
homens e mulheres encarceradas, bem como a inação deste em reverter o estado de coisa
inconstitucional que caracteriza o sistema prisional brasileiro, a teor do que foi declarado
no âmbito da ADPF 3415.
Alves (2019, p.288) elucida que entre os vários motivos a favor da concessão do
Habeas Corpus coletivo, destacou-se o fato de que essas mulheres “estão grávidas e
muitas delas têm responsabilidades com os filhos, por serem mães solteiras, ou por não
possuírem um aparato familiar, assistencial ou estatal que lhe auxiliem nessa
responsabilidade”.
Dito isto, vê-se claramente que a decisão em comento, proferida pelo STF, é uma
tentativa do Poder Judiciário em dar efetividade às prescrições entabuladas nas Regras
de Bangkok, que entre tantos outros efeitos, reverberou, inclusive, no Poder Legislativo,
que por sua vez, dada a repercussão da matéria, teve que sair de sua inércia e promulgar
a Lei 13.769/2018, cuja análise é assunto do tópico a seguir.
Tal exceção levantada pelo STF virou regra de julgamento dos magistrados, sendo
mais comum a denegação da prisão domiciliar que efetivamente a sua concessão, como
evidenciam Ramos e Baqueiro (2019, p.17):
15“O ministro Ricardo Lewandowski seguiu totalmente o voto do relator. Assim como outros ministros, ele
reconheceu, no caso, o ‘estado de coisas inconstitucional’, ao explicar que essa foi uma medida desenvolvida
pela Corte Nacional da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de
direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário de caráter estrutural e orçamentário. ‘Essa é
uma interferência legítima do Poder Judiciário nessa aparente discricionariedade nas verbas do fundo
penitenciário brasileiro’, afirmou”. (BRASIL, 2015)
61
Após percuciente análise dos fundamentos de várias decisões judiciais que
denegaram a concessão da prisão domiciliar à mulher que preenchia os requisitos do HC
143.641, Vital (2018) traz alguns exemplos de situações consideradas excepcionais pelos
magistrados que vão desde o fato de estar a mulher sendo defendida por aguerrida e
eficiente banca de advogados; a criança, por apresentar 11 anos e 1 mês de idade não se
encontrar na fase da primeira infância, e por isso não ser a intenção da Suprema Corte
garantir os direitos da convivência com a mãe após essa fase, que termina aos 6 anos; em
razão da gravidade abstrata do crime de tráfico de drogas, que por sua hediondez,
justificaria, por si só, o afastamento da mãe do convívio de seus filhos, entre tanto outros
motivos.
Em razão desse cenário discricionário e de incertezas jurídicas, face à exceção
criada pelo próprio STF, urgiu a necessidade de se dar mais objetividade às situações em
que o magistrado deveria conceder a prisão domiciliar às mulheres encarceradas.
Nesse contexto é que nasce a Lei 13.769/2018, a partir do Projeto de Lei
10.269/2018 de autoria da Senadora Simone Tebet, integrante da sigla PMDB/MS (atual
MDB), apresentado em 17 de maio de 2018 e publicado em 19 de dezembro de 2018,
entrando em vigor nesta mesma data, Lei esta que, conforme ressalta D’Ávilla (2018),
pretendia garantir a aplicação das Regras de Bangkok num contexto de encarceramento
em massa de mulheres e uso excessivo de prisões provisórias.
Já no seu preâmbulo (art. 1º), a Lei 13.769/2018 revela seu “espírito”, guardando
conexão com a Regra 5716 constante do cabedal de diretrizes das Regras de Bangkok, ao
dispor:
O citado artigo pretendeu dar efetividade à decisão proferida pelo STF no bojo do
Habeas Corpus Coletivo, traçando elementos objetivos, que se encontram elencados em
seus dois incisos, delimitando, desta maneira, a discricionariedade exagerada do julgador.
Diferentemente do artigo 318, que faz uso do verbo “poderá”, o artigo 318-A se
utiliza do verbo “será”, o que, pela hermenêutica gramatical, pressupõe que, não tendo
sido o crime praticado em qualquer das situações articuladas nos incisos I e II, não caberia
16Regra 57, As provisões das Regras de Tóquio deverão orientar o desenvolvimento e a implementação de
respostas adequadas às mulheres infratoras. Deverão ser desenvolvidas, dentro do sistema jurídico do
Estado membro, opções específicas para mulheres de medidas despenalizadoras e alternativas à prisão e à
prisão cautelar, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres infratoras e suas
responsabilidades de cuidado. (BRASIL, 2016a, p. 32).
62
ao julgador, discricionariamente, sob qualquer pretexto, denegar a substituição da prisão
preventiva pela domiciliar. Todavia, esta não tem sido a interpretação que se tem dado,
conforme leciona Senedese (2019, p. 25):
O que não é razoável, todavia, é subverter a exceção em regra, ou seja, julgar todo
caso concreto excepcional para fins de negar o direito à prisão domiciliar da presa
cautelar. Esse não é o espírito da lei, nem o entendimento de nossa Corte Suprema.
Ademais, o farol que deve guiar o julgador é o melhor interesse da criança, que deve ter
63
seus direitos garantidos, notadamente pelo fato de ser intransferível a pena imposta ao
infrator, a teor do que garante o inciso XLV17 do artigo 5º da CF.
A Regra 64 traça os contornos das hipóteses em que se justificaria a
excepcionalidade:
O artigo suso transcrito guarda conexão com a Regra 61, que recomenda:
O §3º inserto no artigo 112 da Lei das Execuções Penais prevê uma progressão
especial para a mulher encarcerada, desde que preencha esta todos os requisitos
elencados nos seus incisos, já que a própria lei, categoricamente, determina que são
cumulativos. O beneplácito penal estampado no §3º permite à mulher, nos casos em que
preenche os requisitos legais, que seja deferida a progressão prisional após cumprido o
período referente a um oitavo da pena em regime anterior mais severo. Vale salientar que
antes dessa reforma, a progressão para crimes comuns era de um sexto e de dois quintos
para crimes hediondos, independente do gênero. Com a Lei 13.769/2018, em razão da
17XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a
decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles
executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (BRASIL, 1988).
64
alteração do §2º da Lei 8.072 (Lei dos Crimes Hediondos), permitiu-se à mulher, desde
que preenchidos os requisitos catalogados no artigo 112 já citado, mesmo se tratando de
crime hediondo, a progressão com fração de um oitavo de cumprimento de pena em
regime anterior.
A primeira vista, deferir a progressão prisional especial à mulher, mesmo para
crimes hediondos, pode parecer uma regalia desarrazoada. Mas, através da estatística do
INFOPEN, percebe-se que 62% dos crimes praticados pelas mulheres tratam-se de delitos
relacionados ao tráfico de drogas, que, muito embora seja equiparado a hediondo, não são
praticados com violência ou grave ameaça, o que revela que, em regra, a mulher não
apresenta uma personalidade perversa. Certamente, a Lei 13.769/2018 foi elaborada com
embasamento em estudos criminológicos, e não em razão do famigerado populismo
midiático ou do Direito Penal Simbólico, já que, atenta à condição e as peculiaridades do
encarceramento feminino, traçou estratégias que visam garantir a igualdade material
entre a mulher e o homem encarcerados.
A Lei 13.769/2018, é, pois, o resultado de um processo paulatino de visibilidade
da situação da mulher encarcerada, que materializou e positivou parte dos anseios das
Regras de Bangkok. Sem desmerecer às louváveis alterações advindas com a citada Lei, o
que reputamos mais meritório é o fato de o legislador nacional atender às demandas
internacionais em Direitos Humanos, revelando sua preocupação com postulados que
perpassam as barreiras de Estados nacionais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6. REFERÊNCIAS
ALVES, Andréa Karla da Silva. Habeas corpus coletivo nº 143.641 e a tutela dos direitos
humanos fundamentais no caso das gestantes e mães presas preventivamente. Revista
de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade, Rio Grande do Norte, v. 10, n. 1,
p.284-298, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2l0sbUa. Acesso em: 17 set. 2019.
66
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. São Paulo: Hedra, 2009. Disponível em:
https://bit.ly/2mrjl21. Acesso em: 17 set. 2019.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas
para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para
Mulheres Infratoras. Brasília, 2016a. Disponível em: https://bit.ly/2kRXFvs. Acesso em:
14 set. 2019.
CERNEKA, Heidi Ann. Regras de Bangkok: está na hora de fazê-las valer. Boletim
IBCCRIM, p. 18-19, 2018. Disponível em: https://bit.ly/2lyuJcn Acesso em: 17 set. 2019.
D’ÁVILA, Maria Clara. Aprovado projeto de lei que garante prisão domiciliar para
mães e gestantes. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2mzhrMI>. Acesso em: 23 set.
2019
PERES, Raphael Urbanetto. Mulheres no cárcere: direitos e garantias à luz das regras de
bangkok. 2018. 94 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Autônoma
de Lisboa, Lisboa, 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2lltqNY>. Acesso em: 16 set. 2019.
RIBEIRO, Silvana Mota. Ser Eva e dever ser Maria: paradigmas do feminino no
Cristianismo. In: IV Congresso Português de Sociologia, 2000. Coimbra: Cecs, 2000. p. 1 -
26. Disponível em: <https://bit.ly/2mApQPX>. Acesso em: 16 set. 2019..
R7. Detenta grávida dá à luz dentro de cela solitária no Rio de Janeiro. 2015.
Disponível em: https://bit.ly/2lDTxQ4. Acesso em: 25 set. 2019.
SOUZA, Kézia Miez; ZAGANELLI, Margareth Vetis; GONÇALVES, Maria Célia da Silva. O
superencarceramento feminino e a lei de drogas: reflexões sobre o tratamento de
mulheres presas à luz das regras de Bangkok. Revista Multidisciplinar, Minas Gerais, v.
13, n. 12, p.121-136, jan/dez. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2lyIt6X>. Acesso em:
17 set. 2019
68
A GEOMETRIA ATRAVÉS DAS ARTES NAS UNIDADES PRISIONAIS DA PARAÍBA
1 INTRODUÇÃO
Assim como em outros estados, a Paraíba também faz parte das políticas públicas
educacionais voltadas à educação de jovens. Em João Pessoa, o Estado implantou uma
modalidade do EJA através do Programa Projovem Urbano Prisional. Assim como outros
programas com suas especificidades e dificuldades, procuramos adequar da melhor forma
possível.
Por esse motivo, nós educadores sempre buscamos nos aperfeiçoarmos. Diante do
exposto, como profissionais envolvidos nessa questão de formar cidadãos, procuramos
cursos que nos oriente a aplicar nossa didática cada vez melhor, para o melhor
atendimento de nossa clientela em questão.
A matemática faz parte do currículo do Projovem Urbano nas unidades prisionais.
Pensando neste contexto, entendemos que nosso local de trabalho é desprovido de
ferramentas, mesmo assim não deixamos de aplicar o conteúdo necessário ao curso, e
temos que adaptá-los ao momento e espaço, sendo flexível, para que o jovem entenda e
possa participar da melhor maneira possível.
Nesse sentido, as unidades formativas 1 e 2 que trazem como eixo central
“Juventude e Cultura” e “Juventude e Cidade” propõem ao educador de matemática que
ele elabore aulas com foco nos aspectos da convivência social que compõem a identidade
cultural do jovem na cidade, interagindo o tema do assunto com a realidade vigente,
desde que os conteúdos possam fazer parte por meio do ensino, formação e cidadania
desses jovens reeducandos.
Tivemos como objetivo geral desse projeto abranger as formas geométricas
adaptando-as na vivência do aluno privado de liberdade, para que ele pudesse entender
o conteúdo lecionado na prática, analisando e comparando no entorno de seu convívio, ou
seja, uma intervenção, favorecendo a idealização do tema em questão.
Como objetivos específicos, mostramos aos jovens encarcerados oportunidades
para que eles pudessem entender como a geometria faz parte do nosso cotidiano, como
69
também das nossas vidas, mostrando novas maneiras de estabelecer os conteúdos através
da política penitenciária. Além disso, mostramos também como eles podem identificar o
direito dos jovens e adultos no contexto de privação de liberdade, enquanto direitos
humanos.
Não é possível transformar o país, humanizá-lo, democratizá-lo e torná-lo sério
com jovens brincando de matar pessoas, ceifando vidas, acabando sonhos, tornando
inviável o amor e ficando parte de suas vidas em um cárcere privado de liberdade.
Educação é um direito e um dever que o Estado tem de proporcionar aos cidadãos.
Diante desse fato, entendemos que “se a educação sozinha não transformar a sociedade,
sem ela tampouco a sociedade muda” (FREIRE, 2000, p. 31).
É pertinente lembrar que para alcançarmos uma educação de efetivo exercício
como um todo, pode-se observar e entender que segundo Demo (2001, p. 21),
70
É só através dos estudos que os jovens poderão transformar a sociedade,
assegurando um futuro promissor. É pertinente lembrar que se encontra no Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH), onde está escrito que toda pessoa tem direitos
peculiares à sua natureza humana, e que deve ser respeitada a sua dignidade para garantir
e propiciar a evolução de sua potência de forma livre, autônoma e plena.
A educação é um direito social garantido pela Constiuição (BRASIL, 1988, art. 6º e
205º). Sendo assim, a educação prisional não se exclui desse direito em acordo com o art.
1º, inciso III, art. 5º, § 2º.
Entendemos que a educação em ambientes privados de liberdade também faz
parte do EJA, podendo essa educação promover perspectiva de futuro melhor aos
detentos, minimizar a ociosidade, com melhoramento na qualidade das vidas dos jovens
nas prisões, capacitar o cidadão para sua reinserção na comunidade por intermédio do
conhecimento, valores e atitudes que auxiliem seu desenvolvimento.
Destacamos o Decreto de nº 7.626 em seu art. 4º. São objetivos do Plano
Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional (PEESP):
Em sua fala, Onofre (2007) comenta que a escola no presídio se evidencia das
outras, e os indivíduos privados de liberdade percebem e entendem que o conhecimento
o prepara para a volta na convivência em sociedade, promovendo oportunidades aos
providos de liberdade.
Diante do exposto, percebemos que o educador pode ir além, procurando uma
melhor opção de colaborar para o desenvolvimento dos jovens privados de liberdade,
adaptando seu conteúdo para se adequar à realidade de vivência no cárcere.
Dessa forma, a presente intervenção vem demonstrar um ensino e aprendizagem
que conduz esse educando ao raciocínio crítico, ao pensar sobre os problemas humanos
71
e, por si só, induzi-los a pensar sobre a sua própria condição sócioeducativa, e poder
interagir na sociedade como ser pensante.
Fica notório quando foi realizada, em Jomtien, na Tailândia, na década de 1990, a
Conferência Mundial sobre Educação, que apresentou os seguintes temas como parte da
educação: as habilidades, os conhecimentos, as atitudes e os valores.
É bastante pertinente essa resolução, ao enfatizar que todos os reclusos não podem
ser privados de educação. O governo deve promover esse acesso, e nós, educadores,
devemos ofertar ao reeducando essa possibilidade de ressocialização através de nossos
conteúdos de forma a facilitar o entendimento.
Nesse sentido, procuramos através da intervenção a melhor forma para essa
compreensão, possibilitando o conhecimento mais dinâmico a esses jovens, para que
possam sentir-se inseridos no contexto escolar de fato.
De acordo com Luna apud Mirabete (2007, p. 25), a “finalidade das penas
privativas de liberdade, quando aplicadas, é ressocializar, recuperar, reeducar ou educar
o condenado, tendo uma finalidade educativa que é de natureza jurídica”.
Promover o conhecimento a esses apenados é obrigação do Estado. Essa
intervenção veio oportunizar essa demanda como forma de melhoramento e aplicação
dessa lei, com intuito de recolocar esses jovens privados de liberdade na comunidade.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
72
no Presídio de Segurança Silvio Porto em João Pessoa-PB, de modo que obtivéssemos
melhoramentos socioeducativos.
Os alunos dessa turma possuem idade entre 18 e 29 anos, são todos do sexo
masculino. Alguns são casados, a maioria é solteiro, e 40% dos jovens têm filho. Os alunos,
em sua maioria, vêm do interior do Paraíba, mas alguns são de cidades de outros estados.
Viviam sem trabalho e vulneráveis na sociedade. Apenas 4% tinham contrato de
trabalho. Os jovens apresentaram dificuldades em ir à escola, alegando não ter vontade
devido ao envolvimento com drogas, roubos e mortes.
Alguns alegam que suas voltas aos estudos é para remição da pena, outros falam
que é para concluir o ensino fundamental e prosseguir nos estudos, e quem sabe até
cursar uma faculdade. Em sua maioria não apresentaram religião, e apenas 10% se
apresentaram como católicos. Alguns apresentaram arrependimento, e disseram ter a
pretensão de serem inseridos novamente na sociedade.
A escolha do tema foi muito pertinente, pois envolveu conteúdo considerado
bastante complexo para os jovens encarcerados.
O tema em questão – a geometria através das artes – utilizado para a realização
desse processo de intervenção levou em consideração a interdisciplinaridade como apoio
e interligação com outras disciplinas.
Envolvemos a arte, utilizando desenhos para confeccionar os mesmos, se utilizou
da história quando colocamos figuras que fazem parte das cidades, e sua localização que
está dentro da geografia. Além disso, a língua portuguesa, através da escrita e leitura
quando ministradas as aulas, a contextualização para apresentação do tema, a diversidade
para aproveitar o entorno do ambiente e incluir lugares que não se percebiam. Desse
modo, tornamos a aula mais agradável e interessante na aprendizagem dos mesmos,
fazendo parte da formação e cidadania no contexto dos direitos humanos.
Nós, educadores, precisamos ter consciência que trabalhar com jovens e adultos
73
Acreditamos que quando procuramos melhorar nossa prática pedagógica, o ensino
e a aprendizagem tornam-se mais atraentes, no sentido de aprendizagem, pois nossos
educandos percebem essa diferença e fazem acontecer realmente o que se espera dessa
clientela.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Diante do exposto fica notório que, para uma melhor evolução e sistematização de
ensino e aprendizagem, o professor busque alternativas de apoio no sentido de
melhoramento da sua prática pedagógica, adaptando o ensino aos espaços escolares, e
currículos em atendimento às diversidades e necessidades dos jovens. Além disso,
inovando e procurando apoio e cursos de aperfeiçoamento que sejam adequados para o
seu apoio e direcionados a inovação pedagógica no ensino.
Nesse contexto procuramos implantar a intervenção na modalidade do EJA,
pensando em atender os educandos de maneiras diferentes e que cumprisse as suas
expectativas, enquanto indivíduos e seres humanos.
Para tanto, decidimos aplicar um novo método que despertasse na Educação de
Jovens e Adultos o empolgamento e oferecesse um novo sentido nas aulas de matemática,
para que facilitasse a aprendizagem desses alunos.
As atividades que foram realizadas no período da intervenção foram bastante
satisfatórias. Onde ficou notório o recebimento das estratégias adotadas. Pude observar
o envolvimento dos alunos com mais entusiasmo e participação. O interesse aumentou
em relação às aulas de matemática, através da participação ativa nos conteúdos
apresentados, que antes, até então, não era percebido.
Postas as novas práticas para a execução das atividades, tivemos alguns desafios
em relação ao espaço em que os jovens se encontravam no momento, em uma privação de
74
liberdade. Os agentes prisionais se opuseram a ajudar devido aos alunos ficarem
aleatórios dentro do cárcere, pois havia pouco efetivo em dar apoio.
No começo esses desafios foram pertinentes, em que os agentes, podemos dizer,
tinham certa resistência em nos apoiar.
Mas conversamos com o diretor do Presídio Silvio Porto, o senhor Idenilson, que
nos deu apoio e reforçou o efetivo para nos acompanhar nessa missão de educar no
cárcere.
O educador ao trabalhar em sistema prisional deve atentar para a inovação de suas
práticas, e que elas necessitam ser disciplinadas em valores solidários, humanos e éticos,
pesquisando assim excelentes condições de melhoria no sentido de crescimento para o
detento.
Segundo Costa,
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
75
não é discutir se a educação pode ou não pode, mas é discutir onde pode,
como pode, com quem pode, quando pode; é reconhecer os limites que
sua prática impõe. É perceber que o seu trabalho não é individual, é social
e se dá na prática social de que ele faz parte. É reconhecer que a educação,
não sendo a chave, a alavanca da transformação social, como tanto se vem
afirmando, é, porém, indispensável à transformação social.
76
Nesse contexto, ficou notório, e podemos pontuar o entusiasmo, o esforço e
interesse desses educandos em relação às nossas aulas, onde percebemos uma nítida
elevação da frequência em sala de aula.
Enfatizamos essa oportunidade para o enriquecimento em nossa metodologia,
assim como em nossas práticas e dinamismo no quesito participação dos nossos jovens
privados de liberdade, por tudo que relatamos em função dessa intervenção no
discernimento de melhoramento para o ensino como previsto em lei, e como forma de
enriquecer nosso trabalho como educador pensante, transformador e cultivador da
cultura.
REFERÊNCIAS
CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença.
Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas, Campinas: Autores Associados, n.116,
jul., 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000200010.
Acesso em: 25 de abril de 2019.
DAYRELL, Juarez Tarcísio. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, Juarez
Tarcísio (org.). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo Freire (org.). São
Paulo: Editora UNESP, 2001.
77
JULIÃO, Elionaldo Fernandes. As políticas de educação para o sistema penitenciário:
análise de uma experiência brasileira. In: ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano (Org.). A
Educação Escolar entre as Grades. São Carlos: EdUFSCar, 2007.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação de Aprendizagem Escolar. 18. ed. São Paulo:
Cortez 2006.
MIRABETE, Julio Fabrini; FABRINI, Renato. Execução Penal: comentários à Lei n° 7.210,
de 11 de julho de 1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano (Org.). A educação escolar entre as grades. São
Carlos: EdUFSCar, 2007.
78
RESISTÊNCIA E SENTIMENTOS SOBRE LENÇÓIS: UMA ETNOGRAFIA DO DOMINGO
NO PRESÍDIO MARIA JÚLIA MARANHÃO. (JOÃO PESSOA-PB)
1 INTRODUÇÃO
Nesse sentido, Jaciara faz alusão aos dias de domingo, o termo usado como
caxanga foi- me explicado como sendo um lençol que serve como uma espécie de cortina
para dar mais privacidade aos presos que fazem sexo nas camas de concreto nos dias de
visita da família. Assim, diferindo totalmente dos dias de domingo das mulheres do Maria
80
Júlia Maranhão. Na quarta-feira, tanto no presídio masculino quanto no feminino é o dia
destinado para visita íntima, mas, no caso dos homens há a possibilidade de ter
encontros íntimos nos domingos e para isso é usado a “caxanga”.
Assim, concebo a “caxanga” a partir de uma ressignificação espacial, uma forma
de transformação de uma privacidade de um casal em relação à família e às crianças em
visita no interior da cela. Sobre esse aspecto relativo à privacidade, trago o pensamento
de Elias (1994):
“quando você passa por aquele portão, você é presa; você não é mais um
ser humano!” (Renata, 20 anos)
Koury (2004) aponta que a Antropologia das emoções parte do princípio de que
as experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por um ator social específico
são produtos relacionais entre os indivíduos e a cultura e a sociedade; acrescenta, ainda,
que a emoção como objeto analítico nas Ciências Sociais pode ser definida, então, como
uma teia de sentimentos dirigidos diretamente a outros e causado pela interação com
outros em um contexto e situação social e cultural determinados.
A alegria e tensão percebidas naquele espaço de sociabilidade de pessoas pobres
vieram em muitos relatos, inclusive, observadas em crianças pequenas, de colo, nesse
sentido. As crianças ao chegarem no portão central, no ‘lado de fora’ do presídio, passam
a sentir algumas emoções, pois foram relatados alguns sentimentos nesse espaço-tempo,
discorridos em variados termos, a exemplos: o “coração bate forte”, “o bebê faz um
show”, “eu sinto uma coisa muito forte no meu coração”, “sinto um frio na minha barriga”.
No término da visita, na hora de sair daquela unidade carcerária, também, ao
fechar o portão, são relatadas emoções, a exemplo de Bruna, sete anos de idade, 2º
ano da escola, que sabe ler “mais ou menos”. Na fala, “eu só sinto uma coisa no meu
coração porque minha mãe não tá perto de mim”, “(...) quando saio, sinto uma dor no
meu coração”- fala com olhos cheios de lágrimas – “ (...) meu sonho é minha mãe estar
ao meu lado, minha mãe, meu pai, porque meu pai, também, está preso”. Nesse sentido,
as emoções são pensamentos de algum modo “sentidos” em rubores, pulsações,
movimentos do fígado, mente, coração, estômago, pele”. (ROSALDO, 1984, p. 24).
Sobre algumas emoções ou comportamentos das crianças no ritual de entrada na
prisão, assim, ‘do lado de fora’, trago a narrativa de Cláudia que diz que Bianca, sua neta,
um bebê de um ano e nove meses, “passa a semana chorando, chamando por mainha.
Quando vem faz um show, quer entrar logo e acha ruim ir embora”.
Para Spinosa (2005, p. 23) “...entre o ato de desejar e o objeto desejado, deixa
de haver distância para haver união”. Assim, concebo os encontros, as emoções de
alegria das crianças nos dias de domingo no Maria Júlia Maranhão, narrados por
muitas delas. Alegrias expressas por ‘um show’, pelo corpo e pelos próprios relatos,
como apontei. “Estar alegre” não apenas pelo encontro com as mães, também, pelo
que pode ser realizado naquele ambiente, a exemplo de brincar com seus pares,
também, nesse sentido expresso: “eu gosto daqui porque tem pessoas”. (Rodrigo, 4
anos).
Nos lençóis, lugares em que repousam as dádivas da comida, também, em que
se realiza a comunhão da visita, pois neles se dão a maior parte da dinâmica social do
domingo, como apontado. Sem dúvidas, a partilha de sentimentos foi facilmente
observada, a maternidade suprimida é vivenciada neste dia. Percebi a alegria daquelas
85
mães nos seus rostos, as crianças colocam a cabeça no colo de suas mães, mas também,
aquelas mulheres colocam a cabeça no colo daquelas jovens senhoras que já são avós
e exercem a maternidade substituta dos filhos de suas filhas, criando aquelas crianças,
algumas após o evento prisão; outras, já criavam seus netos. Neste lugar, há choros
que se alternam em tristeza e alegria, há, portanto, emoções diversas.
As crianças do Maria Júlia Maranhão comumente chamam suas avós maternas
de “mãe”, “mamãe” e “mainha”, ao chamarem as genitoras de mãe, fazem
diferenciações com o primeiro nome das mesmas, como no caso de Everaldo, criança
de dois anos, que chama “mamãe Ana”. Ao chegar no portão do presídio, bate e diz:
“Abre, mamãe Ana!”.
Badinther (1985) aponta que não existe comportamento materno unificado para
que se possa falar de instinto materno “em si”, nascendo, segundo a autora, a convicção
de que o instinto materno é uma construção social, é um mito, dessa forma, não constitui
elemento inerente à natureza; entende ainda que o discurso de valorização da criança,
proporcionou mudança na imagem da mulher, sobretudo, na função social mãe.
As emoções são sentimentos coletivos compartilhados, assim, realizados de
forma inconscientes, aponta Koury (1999). Sobre esse aspecto, os sentimentos daquelas
mães se alternam em alegria pelo encontro com seus filhos e tristeza pela dor da
ausência.
Mauss (1979) aponta que o caráter coletivo das expressões dos sentimentos e
emoções não prejudica em nada a intensidade desses sentimentos, muito pelo contrário.
Mas todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral, de força obrigatória dos
sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que expressões entendidas, quer dizer
são linguagem. É mais que uma manifestação dos próprios sentimentos, é um modo de
manifestá-los aos outros, pois assim é preciso fazer. É essencialmente uma ação
simbólica.
Retornando aos momentos iniciais da pesquisa, mesmo ainda não tendo
ingressado no interior do presídio motivada pela falta de documentação de autorização
em virtude da burocracia e exigências solicitadas, passei a explorar ‘o lado de fora’, nesse
lugar obtive as primeiras informações espontâneas dadas pelas avós maternas das
crianças em relação aos estados emocionais das mesmas. Aspectos ligados ao
comportamento inerente a sentimentos das crianças, fazendo alusão à categoria
“psicológico” foram trazidos de forma intensa principalmente pelas avós maternas.
No “lado de fora”, vi uma jovem avó que veio visitar a filha que estava presa por
tráfico de drogas. Naquele momento, carregava nos braços uma criança de menos de dois
anos de idade. Assim, ao indagar sobre seus netos, informou-me que tinha dois, passei,
então, a perguntar sobre a presença do outro neto, respondendo-me em seguida:
(...) o grande quer ver, mas não tenho coragem de trazer. O pequeno eu
trouxe porque não tem entendimento. O grande tem, vai entender, mexe
com o ‘psicológico’ e o aprendizado, ele pode ficar frustrado, quando ele
fala em ver a mãe, ele fica triste, mas como é criança, passa logo, ele volta
a brincar de novo.
86
fazem uma ideia usando o fardamento das mulheres - blusa de cor branca com a sigla
SEAP e bermudão lilás – SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária).
Sobre o fardamento, imbricado com o dia de domingo, faz parte do ritual de
recebimento, como aponta Mirtz, “a mulher tem que tá pronta quando a chamadora
grita pelo nome” – chamadora é o nome da presidiária que chama uma mulher na cela
ao chegar visita ou intimações, sendo uma função de privilégio naquele
estabelecimento, pois trabalhar, exercer uma atividade é ser diferenciada – Segundo
a informante, a mulher tem que se encontrar de farda no momento da visita. O uso da
farda apenas no dia de domingo, tendo em vista que nos demais dias elas ficam de
sutiã, top ou cuequinhas como apontei.
Não usar roupa pessoal no dia em que para aquelas mulheres é mais
significativo, remeteu-me ao pensamento de Goffman (2004) em relação à
mortificação do eu, apontando a prisão como um instrumento de transformar pessoas,
cujos efeitos oriundos da segregação proporcionada pelo cárcere recaem diretamente
sobre os elementos identitários dos sujeitos, demarcando novas identidades como as
de criminosas, estabelecendo, assim, a estigmatização dessas pessoas. Esclareço,
então, que a blusa branca usada por aquelas mulheres tem uma sigla marcante
SEAP – Secretaria de Administração Penitenciária. Sendo, portanto, parte de um
conjunto de rituais do dia de visita da família, o domingo.
No que concerne ao “psicológico”, percebi que é uma categoria utilizada para
indicar algum transtorno mental, algum problema de ordem comportamental geral.
Na maioria dos casos, não há fornecimento de detalhes por essas mães ou família das
crianças, não observei no sentido de omissão, mas de uma ignorância sobre o tipo de
‘transtorno mental”, apenas escuto o seguinte: “olha, ela tem problema psicológico”.
Ao tentar extrair daqueles interlocutores a respeito do que se tratava problema
“psicológico”, obtinha sempre respostas nesse sentido: “psicológico!; psicológico, a
professora disse”. Foi assim com Cauã, menino de 10 anos de idade, que segundo sua
mãe, o filho gostava de brincar com pipas e carrinhos imaginários. Já, em relação à
Mayara, menina de 7 anos que nunca foi a escola, o pai me diz é “o psicológico” ou “ela
tem problema na cabeça”. E, sobre João, hoje, com 9 anos de idade, a mãe Renata, 26
anos, presa por tráfico de drogas e homicídio, diz:
Ele tem problema psicológico, mas também eu não criei ele porque eu fui
presa, aí, ele via a mulher que criou ele como mãe. Então, eu gritava ele,
sacolejava ele, gritando: sua mãe, sou eu! Eu coloquei muito medo nele,
eu sacolejava muito gritando ele. Ele tem problema na cabeça!
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa realizada com crianças envolveu todos os atores sociais que compõem
o contexto de sociabilidade neste espaço-tempo específico. As mães e as avós maternas
são os atores com quem mais interagem, também, há interação entre pares.
O imaginário comum de uma unidade prisional foi impactado pela ressignificação
espacial realizada por todas aquelas famílias pobres, somado aos signos que trazem
eufemização às agruras daquele cárcere, estando todos imbricados ao dia de domingo,
dia de visita da família.
Os lençóis discorridos estão eivados de significados simbólicos, lugar em que as
famílias interagem no dia de domingo, lugar em que repousam as dádivas das comidas e
89
que acomoda aquelas pessoas, expressões de sentimentos maternais. Neles, observamos
choros de tristeza e de alegria, corpos que se manifestam alegres motivados pelos
encontros. A territorialidade e atomização familiar facilitam a visibilização de alguns
aspectos sobre aquelas famílias, a saber: o nível de pobreza demarcado pela comida, a
ausência da figura masculina, sentimentos de partilha, comunhão, dentre outros.
Acrescento, ir ao Maria Júlia Maranhão no domingo é observar o almoço que se realiza
entre famílias unidas.
A alegria foi um sentimento que não acreditava ser comum naquele ambiente, não
obstante as observações de choros intensos de tristeza, de relatos eivados de dor. No
entanto, enfatizo que a alegria era mais presente, a comunhão não se dava apenas entre
os núcleos familiares, mas em toda a vizinhança, aquele conjunto de lençóis era uma
comunidade solidária, sei que há problemas entre aquelas mulheres, como aponta
Jaciara, 31 anos, “na minha cela, só tem cão!”, mas, nesse dia, o imaginário delineado é de
uma relação harmoniosa entre pares.
REFERÊNCIAS
COELHO, Maria Cláudia & REZENDE, Cláudia Barcellos. Cultura e sentimentos. Ensaios
em antropologia das emoções, Rio de Janeiro Contra Capa, 2011.
FASSIN, Didier. Les économies morales revisitées. Annales HSS, v64, n6, p. 1237-
1266, 2009.
91
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO CÁRCERE: PAPEL E PERSPECTIVAS FUTURAS PARA
OS EGRESSOS DO SISTEMA PRISIONAL
1 INTRODUÇÃO
O conjunto dos dados carcerários ao longo dos anos, das mais diversas
instituições que se propõem a realizar estes levantamentos, reiteradamente mostram
um perfil comum para a pessoa privada de liberdade: homem, jovem, negro, com baixa
escolaridade, frequentemente provisório e preso em decorrência de crimes contra o
patrimônio (sobretudo roubo e furto) ou tráfico de drogas.
Assim, tratando dos números e considerando-se as informações do último
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN com dados referentes
a junho de 2017 (BRASIL, 2019), verifica-se que existiam 726.354 pessoas encarceradas
neste ano no Brasil, sendo que 685.929 eram homens (94,4%) e 37.828 eram mulheres
(5,6%), e, de todas estas pessoas presas, 33,2% não haviam ainda sido condenadas,
sendo então presos provisórios.
No que diz respeito ao perfil sociodemográfico, o relatório revela que 54% da
população prisional em 2017 era formada por jovens até 29 anos. Além disso, 63,5% era
composta por pessoas pretas ou pardas. Já no quesito escolaridade, obteve-se que 51,3%
dos presos não tinham sequer concluído o ensino fundamental (BRASIL, 2019).
Esses números revelam uma faceta interessante do problema. Se os jovens eram
54% nas prisões no Brasil naquele ano, é importante destacar que a população jovem fora
do cárcere, entre 18 e 29 anos, representava 18% de nossa população total. Quer dizer,
esta faixa etária está sobrerrepresentada no sistema prisional (BRASIL, 2017). Isso
ocorre também no que se refere a cor da pele e escolaridade: enquanto pessoas negras
eram 63,5% da população das prisões, a parcela negra na população brasileira adulta
geral representava, em 2017, 55,4% do todo, também indicando a sobrerrepresentação
deste grupo no sistema. Em tempo, conforme o dado apresentado, mais da metade das
pessoas custodiadas possuía baixíssima escolaridade, ao passo que na população
brasileira geral percebe-se maior dispersão entre os níveis educacionais (BRASIL, 2019).
Dentre as pessoas privadas de liberdade que foram condenadas ou aguardavam
julgamento em junho de 2017, de modo geral, tem-se que os crimes de roubo e furto
corresponderam a 38% das incidências penais. Os crimes de tráfico somaram 30% das
incidências e os homicídios representaram 10%. Ao comparar-se a distribuição entre
homens e mulheres, no entanto, evidenciou-se uma maior frequência de crimes ligados
ao tráfico de drogas entre as mulheres: enquanto entre os homens tais crimes
representam 30% dos registros, para as mulheres esse percentual é o dobro: 60%
(BRASIL, 2019).
Essas pessoas privadas de liberdade se encontram, como já é de conhecimento
geral, em estabelecimentos físicos degradantes e superlotados. A taxa de ocupação no
sistema prisional brasileiro em junho de 2017 era de 171,62% (BRASIL, 2019), isso sem
levar em conta as condições físicas e sanitárias precárias desses espaços.
A privação a essas condições dignas de sobrevivência dentro do cárcere não é a
única exclusão ou violação de direitos a que estas pessoas são ou foram submetidas.
Esses sujeitos encarcerados, que em maioria possuem o perfil antes mencionado, têm,
92
em geral, toda a sua vida perpassada pela temática da exclusão, como afirmam Barbalho
e Barros (2010), seja a exclusão de condições dignas de moradia, do acesso ao emprego
digno, do acesso ao consumo, aos direitos de cidadania, etc.
No que diz respeito ao nível educacional, que é muito baixo, ocorre de muitos
jamais terem conhecido a escola ou, quando conheceram, a experiência frequentemente
ter terminado em fracasso escolar. Diante deste cenário, a primeira resposta (cidadã e
política) que vem à tona para os sujeitos encarcerados é fornecer-lhes cursos, ensino,
formação profissional ou alfabetização, como uma forma de acreditar que a delinquência
não se repetirá se estes sujeitos, por estarem mais qualificados, se inserirem no mercado
de trabalho (DE MAEYER, 2013).
De fato, quando reconquista a liberdade e não consegue ser inserido no mercado
de trabalho, o egresso do sistema prisional continua à margem da sociedade e excluído
do acesso ao emprego digno, do consumo, dos direitos de cidadania, etc. Sem
perspectivas futuras, podem-se aumentar as chances de se enxergar na criminalidade
um caminho possível para a subsistência. É neste contexto que a viabilização da
educação básica e profissionalizante na prisão surge como forma de dirimir tal
prognóstico ao oferecer possíveis novas perspectivas às pessoas presas.
Salienta-se que as propostas metodológicas e curriculares dos cursos de formação
profissional, em geral, tendem a manter a dualidade estrutural da sociedade capitalista,
reproduzindo as relações de desigualdade entre as classes sociais e a serem apenas
escolas produtoras de mão-de-obra (SANTOS; MORILA, 2018). Não se trata de uma
formação integral, voltada a promover o acesso às várias instâncias culturais da
sociedade, mas uma formação utilitarista para estes fins.
Neste contexto, o objetivo principal deste estudo consiste em realizar um
levantamento de quantas pessoas fizeram cursos profissionalizantes e quais foram esses
cursos em uma amostra de documentos referentes aos egressos do sistema prisional.
Secundariamente, busca-se fazer um levantamento do perfil sociodemográfico da
amostra; verificar se existiram diferenças para homens e mulheres na realização desses
cursos e tecer uma reflexão crítica sobre qual é o papel que representa a implantação
dos cursos profissionalizantes no âmbito prisional, bem como quais perspectivas futuras
eles podem realmente oferecer.
O estudo tratou-se de uma análise essencialmente documental feita a partir de
uma consulta aos autos processuais de pessoas em livramento condicional, portanto
egressas, que passaram por atendimento psicossocial na Vara de Execução Penal do
Fórum Criminal de João Pessoa-PB, entre junho de 2013 e junho de 2014. Este foi o
critério escolhido porque, nos documentos que este atendimento produzia, encontram-
se dados sobre a formação educacional dos sujeitos. Assim, dentro do intervalo de tempo
referido, coletou-se os dados sociodemográficos e a respeito dos cursos técnicos ou
profissionalizantes de 103 documentos.
O banco de dados resultante que foi elaborado contou com informações
referentes à idade, sexo, nível de escolaridade e cursos realizados pelos sujeitos. A
análise descritiva dos sujeitos da amostra (frequência, porcentagem, média e desvio
padrão) foi feita através do software estatístico SPSS (Statistical Package for Social
Sciences for Windows) na versão 23.
94
principalmente de emprego formal.
Na cidade de Fortaleza, por exemplo, Santos, Maciel e Matos (2013) verificaram
que o trabalho de catação de lixo pelos ex-detentos era uma das poucas opções que lhes
restavam para sobreviver, uma ocupação que não requeria a burocracia do emprego
formal, ao qual o egresso não conseguia acesso por conta do preconceito. A realidade
ocorre, naturalmente, também em outros países. Na Colômbia, Ruiz (2010) constatou
que as atitudes frente à inserção dos egressos do sistema no mercado eram mais
favoráveis somente para aqueles que haviam cometido delitos tidos como mais leves.
A situação se complica ainda mais para as mulheres ex-detentas porque envolverá
o fator sexismo. O estigma por elas enfrentado é maior que o dos homens, pois às
mulheres é esperado que sigam os padrões impostos socialmente, como servir ao
homem e aos filhos e atender ao papel de “do lar”. Espera-se que apresentem uma
docilidade que não combina com a infração de normas e participação no mundo do
crime, algo mais esperado e tolerado dos homens (ROSENDO et al., 2018).
Neste contexto, se as oportunidades de emprego a elas destinadas já poderiam ser
poucas e precárias antes do encarceramento por conta da exclusão social própria ao perfil,
após a prisão são ainda mais escassas. São poucas as que conseguem o “perdão social” e
direito de voltar a participar da sociedade civil (ROSENDO et al., 2018).
Por conta de tal situação, dura para homens e mulheres que foram privados de
liberdade, surgem as iniciativas de viabilizar e oferecer capacitação profissional para os
sujeitos ainda dentro dos muros da cadeia.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos dados da amostra documental levantada mostrou que, dos 103
liberados da amostra, 90 eram homens (87,3%), com idades variando de 21 a 70 anos
(M=35,6; DP=10), e 13 eram mulheres (12,6%), com idades variando de 27 a 69 anos
(M= 42,6; DP=11,8). Os homens da amostra foram condenados à prisão, em primeiro
lugar, por roubo ou furto (63,2%), homicídio (20,7%), tráfico (9,2%), sendo outros
crimes responsáveis pelos demais 6,9%.
O cenário não é o mesmo para as mulheres da amostra de documentos levantada,
para as quais tráfico e roubo trocam de lugar: 46,2% delas foi condenada por tráfico de
drogas, 30,8% por homicídio, 15,4% por roubo ou furto e 7,7% por perigo de contágio
de moléstia grave. Assim, vê-se que os homens foram presos, em maioria, por roubo,
enquanto as mulheres o foram por tráfico, sendo este, na verdade, um cenário comum
que tem se apresentado em todo o país.
No que concerne à escolaridade, foi visto que a população carcerária possui, em
sua maioria, baixos níveis escolares. Em relação a presente amostra, a Tabela 1 a seguir
descreve os dados educacionais obtidos.
97
Tabela 1 – Nível educacional de homens e mulheres da amostra
Não Até Fund. Até Médio Até Sup. Total
alfabetizados Completo completo completo
Curso profissionalizante N
Produção de vassouras 1
Direção defensiva 1
Artesanato 2
Técnico em prótese dentária 2
98
Empreendedorismo 1
Técnico em contabilidade 1
Ajustador mecânico 1
Eletricista 1
Gessista 1
Pintor 1
Pizzaiolo 1
Confecção de bolas de couro 2
Vendas 1
Total 16
O que a observação das duas tabelas mostra, em conjunto, é que é nítido que os
cursos realizados evidenciam e reforçam o sexismo e influência dos estereótipos de
gênero por meio dessa predominância de cursos da área de culinária e costura para as
mulheres. Embora não seja possível afirmar que não tenham sido oferecidos também
para elas, questiona-se se alguns cursos, como direção defensiva e técnico em
contabilidade, possam ter sido oferecidos apenas para os homens, já que só apareceram
dentre os dados deste grupo, o que incide no reforço dos papeis sociais e estereótipos.
Como assevera Baratta (1999), o ensino para a população feminina nas prisões
visa reproduzir e assegurar, no caso das mulheres proletárias, a sua dupla subordinação
tanto nas relações de gênero como nas relações de produção, e a manutenção de sua
classe socioeconômica. Assim, além de serem oferecidos cursos sob a lógica da dualidade
estrutural do sistema, também são cursos que reforçam os papeis de gênero.
No geral, verificou-se que, de fato, para homens e mulheres, muitos dos cursos
oferecidos são voltados para profissões informais ou pré-determinadas às pessoas de
classes socioeconômicas mais baixas, já designando os lugares a serem ocupados pelos
sujeitos e tendendo a manter e perpetuar a dualidade estrutural e desigualdade entre as
classes sociais, como cursos de pedreiro, ajustador mecânico e pintor.
Evidentemente, sabe-se que os cursos técnicos já surgem com esta proposta e
guiam-se por uma visão utilitarista. No entanto, defende-se a necessidade e importância
de lutar pela superação da dualidade estrutural na educação, bem como de oferecer uma
educação que se proponha mais integral a estes sujeitos. Destaque-se, nesse sentido, que
uma formação universitária também deve ser viabilizada à pessoa privada de liberdade.
Mesmo voltando-se para o utilitarismo econômico, o que se observa, analisando a
oferta dos cursos, é que alguns não parecem oferecer perspectivas tão promissoras de
inserção no mercado de trabalho, como o de “Confecção de bolas de couro” e “Produção
de vassouras”, apontando para uma possível oferta destes cursos mais como forma de
dirimir o tempo de execução das penas ou cumprir os ditames da Lei de Execução Penal
do que efetivamente proporcionar perspectivas futuras. Tanto a confecção de bolas de
couro como a produção de vassouras são atividades que, hoje em dia, são realizadas
industrialmente, dificultando a produção e comercialização de forma individual e quase
artesanal, tornando até impossível competir.
Em face do exposto, é possível considerar que alguns destes cursos podem ser
oferecidos principalmente como forma de remir a pena ou ainda ser um modo
99
encontrado pela administração da prisão para evitar o ócio e manter a calma no interior
da instituição, quase que um passatempo. Sem retirar a importância destes cursos,
clama-se também por uma educação que promova tanto a inserção no mercado de
trabalho como a superação da condição de exclusão social e o acesso às instâncias
culturais da sociedade.
5 CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
100
Dezembro de 2014. Brasília: [s.n.]. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/dl/infopen-dez14.pdf>.
CLEMMER, D. Prision Community. 2. ed. New York: Holt, Rinehart And Winston, 1958.
CORTINA, M. O. C. Mulheres e tráfico de drogas: Aprisionamento e criminologia
feminista. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 6, p. 761–778, 2015.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
102
REINTEGRAÇÃO SOCIAL DA PESSOA PRESA ATRAVÉS DO TRABALHO:
POSSIBILIDADES E LIMITES À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA
1 INTRODUÇÃO
Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras
cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas
particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio
não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência
da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator” (p. 21-22).
106
Historicamente, ao próprio surgimento da prisão, o sistema penal sempre
desfavoreceu os mais pobres, haja vista que os desvios dignos de punição eram mormente
cometidos por eles, dado que tais delitos se mantiveram relacionados à propriedade
privada, ponto crucial do capitalismo e cuja posse é exatamente das pessoas mais
abastadas, já que aqueles não tinham estrutura para subsistência como tinham os
membros das classes ricas, ao passo em que os crimes característicos destas eram
ignorados pelo sistema de justiça (FOUCAULT, 1987).
Diante dessas considerações relativas à criminologia crítica, surge a necessidade
de se pensar maneiras de aliar a defesa e ampliação de direitos em benefício das pessoas
presas, mesmo na atual situação do sistema prisional, com a perspectiva de extinção do
próprio sistema de punição com prisões apontada como necessária pela criminologia
crítica.
Nessa abordagem, Baratta (2002) considera que a luta por uma sociedade sem a
instituição prisão pressupõe vislumbrar uma sociedade que não necessite do direito penal
das classes dominantes, sendo necessário, todavia, que a sociedade de transição, nesse
processo, se proponha a buscar a conquista de seus direitos. Aponta, ainda, estratégias de
medidas não privativas de liberdade:
18
“Tortura e maus tratos, por vezes, assassinatos, pela polícia e funcionários da prisão, continuam a ser ocorrências
assustadoramente regulares, afetando principalmente pessoas pertencentes a grupos raciais, sexuais, de gênero e
outras minorias” (tradução nossa).
108
4 POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL: O PROBLEMA DA OMISSÃO DO
ESTADO
19
Políticas sociais aqui entendidas, conforme Santos (1987), como sendo aquelas capazes de ordenar escolhas
trágicas (o ato de o governo escolher, diante das limitações de recursos públicos, entre uma política mais urgente
em detrimento de outra considerada menos urgente) segundo um princípio de justiça consistente e coerente. As
políticas sociais podem ser consideradas, ainda, segundo Abranches (1987), ações utilizadas pelo governo para
alcançar certo patamar de equidade social, através da (re)distribuição de meios de subsistência aos mais carentes.
109
A reintegração na sociedade do sentenciado significa, portanto, antes de
tudo, corrigir as condições de exclusão social desses setores, para que
conduzi-los a uma vida pós-penitenciária não signifique, simplesmente,
como quase sempre acontece, o regresso à reincidência criminal, ou à
marginalização secundária e, a partir daí, uma vez mais, volta à prisão
(BARATTA, 1990, p. 03).
Dessa forma, conforme Seron (2009), é preciso que haja uma desconstrução dessas
informações inadequadas que só conduzem ao preconceito e ao estigma de exclusão na
sociedade. A atuação do Poder Público no âmbito prisional se apresenta eivada de
melindres no que concerne à comunicação junto à sociedade das ações positivas
realizadas nessa área. As políticas públicas desempenhadas no sistema penitenciário não
costumam se classificar como pauta a ser apresentada ao debate público, não atraem a
atenção da população por se tratar de pessoas que são relegadas ao isolamento que o
cárcere propicia, sendo necessário que seja estabelecida uma interlocução eficaz com a
sociedade à medida que o Estado avance na implementação de políticas no sistema
prisional.
A comunidade local se constitui, decididamente, como parte interessada e deve ser
também parceira ativa nesse processo de reintegração, o que pode contribuir para a
desconstrução do preconceito e das informações inadequadas que estão arraigadas no
seio social contra a pessoa egressa do sistema prisional e para que seja possível um
despertar de confiança na sociedade em relação às ações desenvolvidas pelo Poder
Público no ambiente prisional, de modo que essa confiança possa permitir uma abertura
da comunidade à recepção positiva do egresso.
Daí a necessidade de que essa via de mão dupla em direção à reinserção social
envolvendo as pessoas presas e a comunidade seja melhor trabalhada, devendo haver um
envolvimento que abranja o desenvolvimento de habilidades com uma postura ativa do
trabalhador privado de liberdade e da sociedade, que, conforme Baratta (1990), precisa
ser modificada e assumir responsabilidades nesse processo.
Com esse viés de promover a reinserção social por meio do trabalho, a Política
Nacional de Trabalho no Sistema Prisional (PNAT), instituída pelo Decreto nº 9.450, de
24 de julho de 2018, apresenta-se como um apontamento para a ampliação e qualificação
de oferta de vagas de trabalho, estímulo ao empreendedorismo e promoção de formação
profissional das pessoas presas e egressas do sistema prisional, sem perder de vista, no
entanto, a necessidade de “promover a sensibilização e conscientização da sociedade e
dos órgãos públicos para a importância do trabalho como ferramenta para a reintegração
social das pessoas em privação de liberdade e egressas do sistema prisional” (BRASIL,
2018), caracterizando-se como objetivo importante previsto na PNAT, que deve englobar,
nessa concepção de sensibilização e conscientização da sociedade, as empresas privadas,
atores relevantes nessa conjuntura.
Ademais, a PNAT se baseia na previsão (incluída pela Lei nº 13.500, de 2017)
contida na Lei nº 8.666/93, a qual institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública, para estabelecer que a contratação de serviços, inclusive de
engenharia, com valor anual superior a R$ 330.000,00 (trezentos e trinta mil reais), pelos
órgãos federais deverá contemplar um percentual de emprego de pessoas presas ou
egressas do sistema prisional pela contratada, variando entre 3% e 6%, de acordo com a
necessidade de funcionários para a realização do contrato. Prevê, ainda, que os estados
serão estimulados a elaborar planos estaduais de trabalho no sistema prisional, em
articulação que deverá envolver a secretaria responsável pela administração
111
penitenciária com as secretarias responsáveis pelas políticas de trabalho e de educação
(BRASIL, 2018).
Nesse contexto, deve-se ressaltar que, à semelhança do que fora estabelecido pela
PNAT, foi sancionada pelo Governo do Estado da Paraíba a Lei nº 9.430, de 14 de julho de
2011, que obriga empresas vencedoras de licitações públicas no Estado da Paraíba a
reservarem até 5% do total de vagas para contratação de obras e serviços aos presos
condenados, de modo a estimular a sua participação produtiva na comunidade e a fazer
com que empresas também assumam a responsabilidade social junto à comunidade onde
atuam. O Decreto estadual nº 32.383, de 29 de agosto de 2011, regulamenta a referida lei
e acrescenta que, não somente nos casos das empresas vencedoras de licitações haverá
essa obrigatoriedade, mas também nos casos em que a contratação ocorra por dispensa e
inexigibilidade.
Ao se analisar as informações atinentes ao trabalho no sistema prisional brasileiro,
detecta-se a urgência com que deve ser colocada em prática uma política de atuação do
Poder Público nessa área, tendo em vista que, de acordo com o último Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias, com dados relativos ao mês de junho de 2017, o
percentual de pessoas presas exercendo atividade laboral representa apenas 17,5% do
total da população prisional brasileira (BRASIL, 2019). Isso significa um aumento em
relação ao levantamento anterior, referente à realidade prisional de junho de 2016,
quando esse percentual era de 15% (BRASIL, 2017).
No que se refere à realidade demonstrada pelo sistema prisional paraibano, este
se encontra abaixo da situação nacional quanto ao percentual de pessoas presas
exercendo trabalho, estando esse número em apenas 6% do total de presos no estado,
segundo informações constantes do mais recente Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias, que apontava a Paraíba com uma população prisional de 12.121 pessoas
presas em junho de 2017. O sistema penitenciário da Paraíba possui atualmente,
conforme dados de agosto de 2019 da Secretaria de Estado da Administração
Penitenciária da Paraíba – SEAP/PB, a quantidade de 13.110 pessoas presas, distribuídas
em 79 unidades prisionais, entre cadeias públicas e penitenciárias. Desse total, o
percentual de 10% se encontra com alguma ocupação laboral, representando um
aumento em relação ao período do primeiro semestre de 2017. Em números absolutos, a
quantidade de pessoas presas exercendo atividade de trabalho é de 1.300 pessoas, sendo
459 presos trabalhando externamente através de convênios e 841 presos laborando no
interior das unidades prisionais.
Os números apontam uma necessidade de expandir as políticas públicas voltadas
ao trabalho no sistema prisional nacional e localmente. Porém, a implementação de uma
política como a PNAT não deve incidir em uma busca irrefletida por empregos para os
indivíduos privados de liberdade como mera ocupação de tempo durante a sua
permanência no sistema prisional, pois, conforme Tinoco (2019), em artigo estratégico
publicado pelo Instituto Igarapé, organização social sem fins lucrativos dedicada às
agendas da segurança, da justiça e do desenvolvimento:
114
Não obstante, compreende-se como de suma importância destacar que a
perspectiva do trabalho não significa a resolução dos problemas para o alcance da
reintegração social das pessoas privadas de liberdade, a qual, para se realizar, necessita
da articulação de diversas ações do Estado – como as relacionadas à educação prisional –
para além dessa frente de atuação, devendo ser respeitadas as previsões constantes em
lei e esses indivíduos ter garantidos os seus direitos durante todo o cumprimento de sua
pena (CARVALHO; PINHEIRO; SILVA, 2013).
A promoção do trabalho para a pessoa presa se refere a uma previsão legal que
deve ser cumprida pelo Poder Público. Não se busca, portanto, nenhuma condição
privilegiada, senão o exercício regular de seus direitos como pessoa humana, sendo esta
uma previsão garantista da pena, que se baseia nas prerrogativas das leis para se exigir
do Estado o cumprimento delas, em que se enquadra a obrigação estatal de ofertar
trabalho para as pessoas presas. Nesse sentido, conforme Ippolito (2011):
20
Luigi Ferrajoli é professor universitário na Itália e ex-magistrado, jurista e filósofo conhecido internacionalmente
pela defesa do garantismo no processo, especialmente no processo penal.
115
confirma ser de interesse de toda a sociedade, em virtude de que qualquer cidadão pode
um dia necessitar de acessar o sistema de justiça e se deparar com práticas ilegítimas, as
quais cotidianamente afetam as pessoas que respondem a processos criminais.
Por fim, a sociedade brasileira, que legitima a prática estatal punitivista, com a
percepção de que o direito penal deve atuar com a sua força máxima, sem a preocupação
com a preservação de direitos das pessoas presas provisoriamente e das pessoas
condenadas, sem a implementação de políticas de cidadania voltadas à atividade do
trabalho no sistema prisional, deveria se atentar ao fato de que essa percepção
desconsidera que não existe prisão perpétua no Brasil, tampouco pena de morte, de modo
que é do próprio interesse da comunidade um trabalho de cunho reintegrador previsto
na própria legislação brasileira e em tratados internacionais e que, por isso mesmo,
precisa ser garantido, visando ao retorno com uma perspectiva positiva ao convívio social
por ocasião da reinserção à sociedade que o término da punibilidade enseja.
6 CONCLUSÕES
116
aproveitaria dessa condição de atuação compartilhada para abdicar de suas prerrogativas
de gestão.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil, 11 jul. 1984, seção 1, p. 10.227.
117
CARVALHO, G. B. V.; PINHEIRO, C. C.; SILVA, C. B. Execução penal garantista: desafios e
perspectivas. Revista Interfaces Científicas – Direito. Aracaju, v. 1, n. 3, p. 41-51, jun.
2013.
CARVALHO, V. A.; SILVA, M. R. F. Política de Segurança Pública no Brasil: avanços, limites
e desafios. Revista Katálysis. Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 59-67, jan./jun. 2011.
FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.
ONU. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de
Mandela). Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-
reform/Nelson_Mandela_Rules-P-ebook.pdf>. Acesso em 20 set. 2019.
118
SANTOS, W. G. A trágica Condição da Política Social. In: ABRANCHES, S.; SANTOS, W.G.;
COIMBRA, M. Política Social e a Questão da Pobreza. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
SECCHI, L. Políticas Públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo:
Cengage Learning, 2010.
SERON, P.C. Nos difíceis caminhos da liberdade: estudo sobre o papel do trabalho na
vida de egressos do sistema prisional. 2009. 203 p. Tese (Doutorado em Psicologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo.
UNITED NATIONS. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel,
inhuman or degrading treatment or punishment on his mission to Brazil.
Disponível em: <https://undocs.org/A/HRC/31/57/Add.4>. Acesso em: 15 set. 2019.
119
REFLEXÕES E RELAÇÕES: PUNIÇÃO, ENCARCERAMENTO E AS OPINIÕES DOS
ESTUDANTES DE DIREITO DA UFERSA
Vítor Carlos Nunes
Maria Thereza Carlos Rodrigues
1 INTRODUÇÃO
121
conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação
e prevenção do crime. (grifos nossos)
Já na Lei de Execução Penal, em seu décimo artigo, apresenta-se outro excerto que
assevera a função ressocializadora da pena, preceituando que “a assistência ao preso e
ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à
convivência em sociedade.” Portanto, formalmente, a legislação penal brasileira engloba
todas as três características da sanção, no entanto, na prática, a justiça criminal retributiva
continua sendo a mais predominante e utilizada dentre as elencadas, enquanto as outras
são relegadas à negligência, não sendo cumpridas. Essa concepção pode ser percebida
pelo baixo índice de presos que estudam e/ou trabalham no Brasil - medidas essenciais
para a ressocialização e prevenção -, somando-se apenas 31,5% (trinta e um vírgula
cinco por cento) do total, segundo levantamento do G1 (2019).
A partir da justiça criminal retributiva, o principal objetivo torna-se culpabilizar o
infrator, fazê-lo sofrer, a punição é sinônimo de infligir dor ao condenado, como bem
afirma Howard Zehr (2008). Nessa perspectiva, a duração das penas cresce e se tornam,
progressivamente, mais rígidas, de forma que o sofrimento imposto também seja maior
e mais duradouro. As características do retributivismo vão de encontro a qualquer noção
de ressocialização, já que a primeira trata de impor dor, sofrimento e está diretamente
ligada a uma ideia de pagamento pelo crime cometido, enquanto a segunda busca ir além
da punição, procurando uma solução para a problemática e meios para reinserção do
sujeito socialmente. Conforme Hulsman e Celis (1993, p. 72):
Desse modo, a justiça criminal não incentiva nenhum tipo de avanço na resolução
dos conflitos, na realidade, acaba por desestimular o arrependimento por parte do
infrator e o perdão por parte da vítima, os quais têm suas relações ignoradas. Devido aos
entraves impostos pelo caráter retributivo e pelas condições aviltantes do sistema
prisional, a função de ressocialização da pena encontra-se à milhas de distância de ser
cumprida. Enquanto as noções retributivas forem mais significativas que as
ressocializadoras, os autores dos crimes e as vítimas continuarão à margem do sistema,
apenas sendo estimulado a produção de mais delitos e a estigmatização do transgressor.
A função social da pena deve ser posta em prática a partir do caráter
ressocializador, possuindo como alicerce medidas que eduquem e que consigam ir além
da punição com um fim em si mesma, de forma que a sanção se afaste de uma noção
repressiva e não se restrinja à retribuição do delito cometido. Além disso, a busca pela
reabilitação do indivíduo que infringiu a legislação torna-se muito mais vantajosa para
ele, assim como para o resto da sociedade, fazendo- o refletir sobre o dano causado e
estabelecendo novas perspectivas para o futuro fora do cárcere.
122
2.2 A construção histórica da punição e o fenômeno do encarceramento em massa
Assim sendo, de acordo com Batista (2011), há uma relação direta entre a
ascensão do neoliberalismo e da hegemonia do capital com estratégias de controle social,
acarretando níveis de encarceramento jamais vistos na história da humanidade. Ademais,
levando em conta que o Brasil é um país da periferia do capitalismo, tudo isso se agrega
“ao genocídio colonizador, às marcas da escravidão, à república nunca consolidada, ao
estado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania”
(BATISTA, 2011, p. 29). Dessa forma, a questão colonial e racial, que foram de extrema
importância para a formação social brasileira, também se relacionam ao fenômeno do
encarceramento em massa.
Borges (2019), ao discutir sobre ideologia racista e sistema de justiça criminal,
aponta a instituição da escravidão como um dos pilares mais importantes do país. Nesse
sentido, a autora faz uma análise sobre como se deu o processo de colonização, marcado
pela extração de recursos naturais e pela exploração da mão de obra escravizada,
mostrando que o Brasil é estruturado pelo racismo. De acordo com Borges (2019), o
racismo é uma ideologia que atravessa o tempo e se acompanha as transformações da
sociedade brasileira, desse modo, se antes o racismo se colocava pela instituição da
escravidão, com o passar do tempo ele se refaz e permanece tanto na sociedade como nas
estruturas e instituições do Estado.
Desse modo, ao falar sobre justiça criminal na realidade brasileira, é inconcebível
não levar em conta a questão racial, pois o racismo faz com que o sistema penal atue no
“reordenamento sistêmico pela manutenção do sistema racial de castas” (BORGES, 2019,
p. 89). Nesse sentido:
A prisão não perdeu seu sentido, embora o trabalho vivo, de modo geral,
tenha mudado seu espaço no admirável mundo novo. O singular do
neoliberalismo foi conjugar o sistema penal com novas tecnologias de
controle, de vigilância, de constituição dos bairros pobres do mundo em
campos de concentração. (BATISTA, 2011, p. 99)
125
rígidas são mais eficientes”, que são bastante comuns, contribuem para um sistema penal
mais encarcerador. Nesse sentido, nas próximas seções busca-se conhecer quais são os
pensamentos dos estudantes do curso de Direito da UFERSA em relação a questões
envolvendo a temática de encarceramento e função social da pena, pois é essencial saber
como futuros aplicadores do direito pensam sobre problemas práticos da aplicação do
Direito Penal.
Neste tópico será feita uma análise dos dados obtidos, tendo como base as
reflexões realizadas anteriormente acerca de temáticas envolvendo a função da pena e o
encarceramento. Desse modo, busca-se relacionar as opiniões dos discentes com as
questões supracitadas, com a finalidade de compreender as respostas dos estudantes de
Direito da UFERSA e o que elas representam.
A afirmação “penas privativas de liberdade maiores e mais rígidas são mais
eficientes” está relacionada com uma noção de punição retributiva, pois parte da premissa
de que a pena deve fazer o condenado sofrer de forma rigorosa, acarretando punições
maiores e mais duradouras. Dessa forma, o fato de 59,7% (cinquenta e nove vírgula sete
por cento) do público alvo afirmar que não concorda com essa afirmação demonstra que
os estudantes do curso de Direito da UFERSA, em sua maioria, têm uma perspectiva mais
crítica em relação à função social da pena. Contudo, não se pode ignorar que 36,1%
(trinta e seis vírgula um por cento) responderam que concordam parcialmente e 4,2%
(quatro vírgula dois por cento) concordam totalmente, evidenciando que uma parcela
considerável dos discentes estão alinhados com uma lógica retributiva da pena,
possivelmente influenciados pela lógica do senso comum que reproduz diariamente tais
concepções.
No Brasil, essas questões tornam-se extremamente relevantes por alguns fatores
que influenciam diretamente no processo de encarceramento e endurecimento de penas,
como a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072), em 1990, que passou
a limitar a progressão de regime, aumentando, consequentemente, o tempo de pena em
regime fechado. Nesses casos, a liberdade condicional é permitida somente após o
cumprimento de ⅔ da pena. Além disso, a inclusão do tráfico de drogas no rol de crimes
hediondos é uma causa significativa que pode ter impactado diretamente no crescimento
da população prisional.
Quanto à afirmação “mais encarceramento significa maior eficiência da justiça
penal”, foi decidido questionar o grau de concordância dos discentes com a frase pois,
segundo o INFOPEN, 726.354 pessoas estavam privadas de liberdade no Brasil em junho
de 2017. Nesse cenário, em que o número de pessoas encarceradas aumenta a cada ano,
é de extrema importância conhecer a opinião de futuros aplicadores do direito. Quanto
aos resultados desse item do questionário, avalia- se de forma positiva que 88,9%
127
(oitenta e oito vírgula nove) do público alvo respondeu que não concorda com a
afirmação, evidenciando que a grande maioria dos juristas em formação da
UFERSA avaliam que os altos índices de encarceramento não se relacionam a uma
justiça penal mais eficiente.
Em relação ao terceiro item do questionário, que afirma que “mais encarceramento
acarreta maior segurança”, é importante destacar que, de acordo com o Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM)6, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil,
correspondendo a uma taxa de cerca de 31,6 mortes a cada 100.000 habitantes, sendo,
portanto, o maior nível histórico de homicídios até então. Desse modo, o contexto de
aumento de pessoas encarceradas não teve como consequência uma redução da
criminalidade, evidenciando falhas de um modelo de segurança pautado em prender
cada vez mais pessoas. Nesse sentido, o fato de que 71,5% (setenta e um vírgula cinco)
dos discentes de direito da UFERSA afirmarem não concordar com a frase em questão
evidencia, positivamente, a criticidade dos estudantes diante do fenômeno do
encarceramento em massa, pois não relacionam o aumento do número de pessoas presas
com maiores níveis de segurança.
O quarto item da pesquisa questionou o grau de concordância dos discentes com a
frase “A finalidade mais importante da pena é a retribuição do delito cometido”, tendo
essa pergunta uma abordagem parecida com a primeira. Optou-se por utilizar essa
pergunta no questionário para averiguar se os discentes, quando questionados de forma
mais clara acerca da teoria retributivista, continuariam ou não com as mesmas respostas
do primeiro item. Aqui, 66% (sessenta e seis por cento) afirmaram discordar da frase,
quando no primeiro item esse dado foi de 59,7% (cinquenta e nove vírgula sete),
demonstrando que há uma certa aproximação entre os resultados, mas que quando
questionados de forma mais clara acerca da retribuição da pena os estudantes tendem a
discordar mais.
Quanto ao último item da pesquisa, em que foi questionado o grau de
concordância dos discentes com a frase “A criminalização de condutas é um meio
relevante e eficaz de combate aos problemas sociais”, notou-se um acirramento entre as
respostas. Conforme mencionado anteriormente, 51,4% (cinquenta e um vírgula quatro
por cento) discordou da afirmação, sendo, portanto, coerente com as outras perguntas
em que mais da metade dos estudantes discordaram de frases que concordavam com
teorias retributivas da pena ou que se aproximavam ao discursos defensores do
encarceramento como solução aos problemas da segurança pública. Entretanto, 44,4%
(quarenta e quatro vírgula quatro por cento) afirmaram concordar parcialmente com
essa afirmação e 4,2% (quatro vírgula dois por cento) concordam totalmente.
Atribui-se os altos índices de “concordo parcialmente” e “concordo totalmente”
ao fato de ser bastante difundido de forma geral que a criminalização de condutas
contribui para que problemas sociais sejam combatidos. Contudo, conforme discutido
anteriormente, tem-se um contexto de encarceramento em massa, em que a cada ano o
número de pessoas privadas de liberdade aumenta no Brasil, nesse sentido, a
criminalização de condutas relaciona-se com o aumento dos índices de encarcerados,
mas não traz benefícios maiores que transcendam apenas o aprisionamento, de forma
que pudesse ser considerado um meio definitivamente eficaz. Desse modo, avalia-se que
a criminalização tem relações com o fenômeno do encarceramento em massa.
Assim sendo, percebe-se que a grande maioria dos discentes da UFERSA discorda
de frases que estão alinhadas a uma perspectiva que enxerga o encarceramento como a
melhor forma de punição, bem como não concordam com as teorias retributivistas da
pena.
128
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em
questão. 1ª ed. Niterói: Luam, 1993.
MENOS de ⅕ dos presos trabalha no Brasil; 1 em cada 8 estuda. G1, 26 de abril de 2019.
Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019 . Acesso em:
10 out. 2019.
130
A INEFICÁRIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS
1 INTRODUÇÃO
131
Dessa forma as penas deixaram de ser demasiadamente cruéis e tornaram-se mais
humanas, adquirindo assim um ideal maior de justiça em busca pela defesa do que
conhecemos hoje como Direitos Humanos.
No terceiro capítulo é abordada a definição geral de Direitos Humanos, sendo essa
tida como direitos básicos, inalienáveis e universais que devem alcançar a todos os seres
humanos sem que haja nenhum tipo de distinção entre eles.
Ademais, no último parágrafo fala-se sobre as maneiras de adesão ao tratado, as
quais são variantes, pois, os Direitos Humanos buscam respeitar a individualidade e
liberdades de cada grupo ou indivíduo.
No quarto capítulo inicia-se a abordagem da principal questão discutida nesse
trabalho. Fala-se primeiramente da Lei de Execução Penal e suas finalidades que são a
busca pelo cumprimento integro da lei afim de,evitar abusos que firam os direitos do
preso na execução penal e atitudes que deturpem o caráter humanitário do Direito Penal.
Posteriormente fala-se sobre as políticas penitenciárias atuais, as quais apesar de
serem regidas pelos Direitos Humanos e pela Lei de Execução Penal, não possuem sua
efetividade plena, graças a problemas existentes fora e dentro das prisões, o que torna o
ambiente prisional um ambiente de violação a direitos fundamentais.
O quinto capítulo aborda os fenômenos do encarceramento, dando ênfase à
superlotação e as razões para a sua existência tais como a falta de investimento em
educação de qualidade e oportunidade de trabalho para todos, como também as más
condições de alojamento que acarretam no declínio do preso desde a sua personalidade
até a sua integridade física.
Além disso, trabalha-se a questão do preconceito social que desemboca na
reprovação do preso, pois, a sociedade não o vê como alguém reabilitado ao seu convívio,
o que gera como consequência a impossibilidade de sua reinserção na sociedade e
consequentemente uma possível reincidência.
Por fim, no sexto e último capítulo, aborda-se a Associação de Proteção e
Assistência aos Condenados (APAC) a qual possui sua razão de existência fundada na
preocupação com o atual sistema penitenciário do país que carece de atenção, surgindo
assim como uma alternativa para solucionar a crise do atual sistema carcerário brasileiro.
Buscando a humanização das prisões sem que se perca o seu caráter punitivo, a
APAC utiliza-se de um método moldado na Lei de Execução Penal que busca a
ressocialização do preso através da religião, educação, trabalho, participação familiar e
comunitária, assistência e mérito.
O método APAC vem mostrando frutos demasiadamente positivos e como se não
bastasse, ainda representam uma enorme redução de custos no sistema prisional, visto
que, um preso na APAC custa 1/3 de um preso no sistema comum, ademais, a construção
de uma comarca da associação é bem mais rentável do que a construção de uma prisão.
Assim, além de serem uma alternativa para o atual sistema prisional também são um
exemplo a ser seguido.
132
tinha como propósito a reconciliação com Deus, a proteção sacral e suas penas não tinham
o ideal da promoção de justiça, mas sim, à saciação do desejo de vingança privada.
A relação elementar do Direito Penal com os Direitos Humanos parte da lógica de
que ambos surgiram como Direitos naturais, inerentes à sociedade, ainda que
subjetivamente, ou seja, sem a sua instituição concreta de forma positiva. Ademais, a
existência cognitiva dos Direitos Humanos na sociedade foi, sem dúvida alguma, parte
fundamental para que as políticas penitenciárias e a noção de justiça se modificassem com
o decorrer do tempo, como veremos a seguir.
Na antiguidade os conceitos de prisão-pena e pena privativa de liberdade não
existam, o cárcere tinha um caráter cautelar, ou seja, era uma espécie de prisão-custódia
que tinha como finalidade guardar os prisioneiros enquanto esperavam por julgamento,
os quais na maioria das vezes tinham como punição a pena de morte, que durante muito
tempo foi considerada por comunidades mais primitivas o método mais eficaz para punir.
Quando a pena de morte não era utilizada aplicavam-se a tortura em forma de
suplícios e até mesmo a amputação de membros, tudo isso era feito publicamente como
se fosse um espetáculo, ou seja, como já dito anteriormente, o Direito Penal na antiguidade
não buscava a justiça, mas sim, a satisfação a partir do Estado, do desejo de vingança
pessoal da sociedade, a forma de punição era uma demonstração de força e não um ato de
justiça.
Apenas a partir do Direito Canônico que a ideia de humanização das penas
começou a nascer de forma concreta. Com o surgimento de movimentos ideológicos que
valorizavam a razão, o homem, seus direitos fundamentais como a dignidade, integridade
física e moral e com o aumento da criminalidade, a pena de morte entrou em crise. As
penas deixaram de ser demasiadamente cruéis e se tornaram uma espécie de penitência
o que fez com que o Direito Penal, ainda que com raízes religiosas, adquirisse um ideal
maior de justiça e evoluísse para uma filosofia que buscava o interesse coletivo, a
preservação da paz e a proteção do que conhecemos hoje como Direitos Humanos.
Vale salientar que a evolução do Direito Penal não aconteceu de forma uniforme e
global, atualmente, mesmo com a instituição dos Direitos Humanos como Lei Universal
ainda há muitos países que adotam formas punitivas da antiguidade por questões, sociais
e culturais.
3 OS DIREITOS HUMANOS
A Lei 7.210/1984 ou a Lei de Execução Penal foi criada com iniciativa da União e
moldada, como já dito anteriormente, com base na Declaração Universal dos Direitos
Humanos. A lei possui como meta alcançar todos os problemas relacionados com a
execução penal, principalmente no que diz respeito ao tratamento punitivo em suas
diversas fases e estágios, dessa forma, ela busca impedir que o excesso e o desvio da
execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal e do preso.
Tem como objetivo a melhoria das condições no sistema penitenciário brasileiro,
buscando efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal de modo a proporcionar
condições para que a punição seja feita de forma justa, em respeito à integridade afim de,
se alcançar a reintegração social do condenado e do internado, protegendo-o de abusos,
estabelecendo critérios estruturais que devem ser considerados para que haja sua
recepção de forma adequada e segura, oferecendo-lhes oportunidade de estudo, trabalho
e assistência material, jurídica, médica, religiosa e social. É uma das espécies de defesa em
obediência aos princípios e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa e
especialmente as que surgem das regras mínimas da ONU.
Sendo uma exigência da defesa social a normalidade no processo de execução da
pena, a LEP busca fidelidade aos limites da sentença indo rigorosamente pelos caminhos
traçados pela lei, dessa forma, tenta ao máximo proteger os direitos e garantias
fundamentais do condenado o tratando antes de qualquer coisa como um ser humano,
que possui as mesmas necessidades que qualquer outro, não havendo assim, em tese,
distinção, salvo em casos bem específicos, no que diz respeito aos seus direitos, entre os
presos e os demais que habitam dentro ou fora do cárcere.
134
4.1 O Direito Penal e as políticas penitenciárias atualmente
Durante muito tempo o preso foi tratado como objeto da execução penal e
acreditou-se que a disciplina rígida que utilizava da humilhação e desrespeito para com o
preso era a maneira mais eficiente de se punir, pois, apenas dessa forma ele aprenderia a
lição. No entanto, como diria Luigi Ferrajoli: “Um Estado que mata, que tortura, que
humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, como também contradiz suas
razões de ser, pondo-se no nível dos mesmos delinquentes.” E graças a pensamentos como
esses, políticas de reconhecimento aos direitos do condenado começaram a ser aplicadas.
O reconhecimento dos direitos do condenado e do egresso é recente, apesar de
estar presente em diversos estatutos legais como a “Declaração Universal dos Direitos
Humanos”, a “Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem”, a Resolução da
ONU que prevê as “Regras Mínimas para o Tratamento do Preso”, na Lei de Execução
Penal e na nossa Carta Magna como visto no artigo 5º.
Atualmente o preso possui deveres e uma ampla quantidade de direitos que estão
postos, por exemplo, no Artigo 40 da Lei de Execução Penal, tais como: integridade moral
e física, alimentação, vestuário, trabalho remunerado, previdência social e etc. No entanto,
apesar da nítida evolução do sistema penitenciário, se comparado ao da antiguidade,
ainda há falhas que tornam o ambiente prisional um ambiente onde a efetividade plena
de LEP e dos Direitos Humanos é praticamente impossível.
Isso decorre por diversos fatores sociais, econômicos como também
administrativos, não apenas no que se refere à administração do núcleo prisional, mas,
principalmente na administração de políticas públicas de combate a criminalidade desde
a sua base, as quais apesar de, serem existentes não possuem efetividade, gerando assim,
fenômenos que refletem no encarceramento, no aumento da criminalidade, no baixo
índice de desenvolvimento humano, dentre tantos outros problemas que assolam e
prejudicam a nossa sociedade. E no tocante ao egresso o maior problema é a reincidência,
a qual nacionalmente possui taxa média de 80%, devido em sua grande maioria à falta de
assistência posterior à prisão.
5 FENÔMENOS DO ENCARCERAMENTO
135
estrutura e instalações adequadas para receber os presos e a escassez de metodologias
eficazes para o combate a reincidência.
As estruturas prisionais encontradas no Brasil em sua grande maioria são
precárias e impossibilitadas de receber os condenados para o cumprimento de suas penas
sem ter seus direitos desrespeitados, a começar pelo déficit de vagas que é superior a
288.435, gerando assim a superlotação, além da falta de investimento para o combate a
reincidência, a mudança da mentalidade do preso, falta de privacidade nas visitas íntimas,
entre outros fatores. E como o aumento da criminalidade e a falta de políticas efetivas que
a combatam, este cenário tende a piorar.
O presídio Regional de Guarabira o qual tive a oportunidade de visitar possui a
estrutura de uma cadeia, demasiadamente precária, antiga e nitidamente necessitada de
uma reforma, tanto que, o Estado vem pagando multa diária para que a mesma seja
forçada. O estabelecimento é pequeno, principalmente se levado em consideração à
existência de 109 presos no ambiente (dados de 28/08/2019), as paredes em sua grande
maioria encontram-se rachadas, as celas são desproporcionais, os muros baixos, a sala de
aula a qual possui 86 presos matriculados é na verdade, uma antiga cela que surgiu de um
improviso e apesar de haver o projeto de remissão por leitura, menos da metade dos
alunos a frequentam, ademais, o teto dos pavilhões são pretos devido às rebeliões já tidas
no local, além disso, a assistência jurídica, á saúde e social as quais, de acordo com LEP
deveriam ter salas próprias, são realizadas em uma única sala, tendo o tipo de
atendimentos divididos por dia. Tal realidade mostra a gritante carência de atenção que
o atual sistema carcerário sofre.
O Brasil saiu da posição de 5º para ocupar atualmente o 3º lugar no ranking de
maior população carcerária do mundo, dentro desse núcleo, 41,5% dos presos são
provisórios e geralmente cumprem regimes mais rigorosos do que os impostos na lei,
visto que, apesar de estar estabelecido em lei a partição de regimes e entender-se que,
cada um, possui estabelecimentos específicos para o seu cumprimento o que é
testemunhado na realidade são penitenciárias, que deveriam abarcar apenas decisões
transitadas em julgado para o cumprimento de regime fechado, ou seja, prisão definitiva,
funcionando também como presídios, ou seja, incluindo também presos provisórios e
ademais, regimes abertos e semiabertos que na realidade deveriam ser postos,
respectivamente, em albergados, colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos
similares.
Um exemplo dessa realidade é a Penitenciária João Bosco Carneiro, a qual, apesar
de em tese, dever abarcar apenas presos sentenciados possui de um total de 400 presos,
dentre esses, 103 provisórios e essa mesma realidade repete-se no Presídio Regional de
Guarabira, o qual deveria atingir apenas prisões provisórias, no entanto, o mesmo possui
de um total de 109 presos, 23 em regime fechado (dados de 20/08/2019) e apesar de
ambos serem da cidade de Guarabira a falha na divisão de regimes por estabelecimento
não se trata de um problema municipal, estadual, muito menos regional, mas sim, de um
problema nacional.
A realidade dos cárceres da cidade de Guarabira é a mesma da grande maioria do
paíso que comprova que o sistema carcerário está como um todo falido e que sem dúvida
alguma contribuiu e ainda contribui para que o maior problema do sistema penitenciário
surgisse: a superlotação dos presídios brasileiros.
A irresponsabilidade diante da divisão de regimes possui uma ramificação no
tocante a divisão dos presos dentro do estabelecimento, como já dito anteriormente, à
falta de estrutura nos cárceres acarreta o déficit de vagas, penitenciárias com capacidade
máxima para 150 condenados abarcam 400, o que faz com que os presos habitem
136
mutualmente como se não houvesse distinção de penal entre eles, as divisões dos
pavilhões não obedecem ao que está posto na Lei de Execução Penal, sendo essas feitas a
critério dos próprios presos, para que não haja rebeliões, baseando-se na rixa entre
bairros, tipos de crimes ou facções criminosas. Porém, ao expor o preso de menor grau
ofensivo a um de maior grau, cotidianamente, é possivelmente torna-lo um aprendiz do
crime.
Em 2015, foi publicado na imprensa um poema crítico escrito por um detento do
Complexo Penitenciário da Papuda, o qual relatou em versos a realidade das prisões,
mostrando-nos que o objetivo alcançado pelo atual sistema carcerário tem sido o oposto
do que é esperado em lei.
Educar é preciso
Reduto da covardia
Inimiga da solidão
Ela nunca está sozinha
É a cela da prisão
Que não recupera ninguém
Deturpa o cidadão
Mentes ociosas, vazias a pensar
Muitas maquinando o mal
Poucas delas a sonhar
Aumentar as penas, construir presídios
Não é a solução
Temos que instigar a sonhar,
Investir em educação
Ressocializar, ensinar uma profissão
Pois o homem que não sonha
É um ser sem compaixão
Sonho é o que vem à mente,
Desejo do coração
Sonhar alto é preciso,
Viver, estudar, realizar,
Tudo é possível
Ao estudante que sonhar.
(SANTOS, 2015).
137
A prisão deve abrir-se a sociedade, pois, a distância entre as duas realidades gera
a segregação tornando impossível a reintegração social do preso e já que a prisão é um
reflexo da sociedade, tendo como prova disso o fato de que a grande maioria da população
carcerária é composta de grupos já marginalizados anteriormente, separar os dois polos
é retirar a responsabilidade diante de problemas e conflitos existentes dentro dela. Ou
seja, a reintegração social significa corrigir problemas antes já existentes, como a exclusão
social em suas diversas fases. Como dito por Alessandro Baratta: “Não se pode conseguir
a reintegração social do sentenciado através do cumprimento da pena, entretanto se deve
busca-la apesar dela”.
O grande problema de um sistema carcerário que não possui as condições mínimas
impostas pela LEP de divisão, comodidade e acesso a outras alternativas para o
cumprimento da pena é a incapacidade de ressocialização, objetivo principal da Lei, dessa
forma, como diria Augusto Thompson: Os presídios passam a funcionar como um fator
criminológico pois o indivíduo que passa por ela tende a voltar para ela. Cumprindo-se
dessa forma o papel inverso ao que lhe é posto, tornando do ambiente prisional um
depósito de pessoas isoladas da sociedade, que instiga a reincidência e funciona como um
recrutamento para o crime.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto pôde-se concluir que apesar da evolução do Direito
Penal e de suas políticas penitenciárias, a existência dos Direitos Humanos ainda que
posta como lei universal e também como regente do ordenamento jurídico brasileiro tem
sua aplicação na prática caráter utópico, ou seja, não possui sua efetividade de forma
completa.
O atual sistema carcerário apesar de ser regido pela Lei de Execução Penal, a qual
protege os Direitos dos condenados, não funciona de forma plena, na realidade o atual
sistema vem falhando no básico e funcionando como auxiliador a violações de direitos
humanos e fundamentais, não alcançando dessa forma seus objetivos, ou seja, a
ressocialização e contribuindo para a maior degradação dos presos como também dos
operadores penais.
A realidade é composta por presídios abarrotados e sem estrutura para oferecer a
mínimas condições impostas na LEP, funcionando assim como escolas para o crime, onde
os presos ao invés de serem recuperados possuem sua dignidade física, psíquica e moral
destruída, contribuindo dessa forma para o contrário do que é esperado da lei, ou seja,
contribui-se para “dessocialização” do condenado.
No entanto, o que se pretende mostrar no presente artigo não são apenas os
fenômenos e as diversas dimensões do sistema carcerário, mas também mostrar que,
ainda que falido, o atual sistema carcerário não é impossibilitado de solução, faltando-lhe
apenas, investimento nos locais e nas medidas certas, a começar pelo macrocosmo social
onde se encontra a raiz do problema que deve ser prevenida buscando, por exemplo, o
oferecimento de oportunidades de trabalho, educação de qualidade para todos.
As medidas que alcançam o microcosmo prisional devem buscar combater a
reincidência, como visto no método APAC, o qual vem obtendo resultados positivos
justamente por buscar a recuperação do condenado através principalmente da educação
e da laborterapia, mostrando-lhes e oferecendo-lhes outras oportunidades para que se
alcance a mudança de vida.
Portanto, o problema maior da ineficácia do sistema penitenciário e da defesa dos
Direitos Humanos não se encontra na falta de políticas, leis, estatutos ou declarações que
as protejam, mas sim, na escassez de efetivação das mesmas.
REFERÊNCIAS
ENGBRUCH, Werner; SANTIS, Bruno Morais di. A evolução histórica do sistema prisional
e a Penitenciária de Estado de São Paulo. Revista Liberdades. Páginas 1-10, 11 de
setembro de 2012.
140
GAMA, Jéssica. A lei de execução penal a luz do Método APAC. Jus Brasil. Juíz de Fora.
Páginas 1-18, setembro de 2015.
CAULYT, Fernando. Brasil, terceira maior população carcerária, aprisiona cada vez mais.
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BARBIÉRI, Luiz Felipe. CNJ registra pelo menos 812 mil presos no país; 41,5% não
têm condenação. Pesquisa. Disponível
em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-
mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml. Acesso em: 17 de setembro
de 2019.
VELASCO, Clara; REIS, Thiago. Com 335 pessoas encarceradas a cada 100 mil, Brasil
tem taxa de aprisionamento superior à maioria dos países do mundo. Notícia de
Jornal. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-
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tem-taxa-de-aprisionamento-superior-a-maioria-dos-paises-do-mundo.ghtml. Acesso
em: 20 de agosto de 2019.
TOSI, Giuseppe. O QUE OS DIREITOS HUMANOS TÊM A VER COM VOCÊ. Artigo.
Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ncdh/?p=2554. Acesso em: 02 de setembro
de 2019.
141
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deturpa-o-cidadao.html. Acesso em: 03 de setembro de 2019.
JUSTIÇA, Conselho Nacional de. Sistema Carcerário Nacional. Pesquisa. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/02/603cc57a97583783cafaed156
1f0ab25.pdf. Acesso em: 20 de agosto de 2019.
142
A PRISIONIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO E SEUS EFEITOS: UM DIÁLOGO
COM A OBRA CRIME E CASTIGO
1 INTRODUÇÃO
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Foucault (1987) expõe que no final do século XVIII e começo do século XIX a festa
da punição se extingue, isto é, o ato de punir passa a não mais ser visto como um
espetáculo. Ele segue discorrendo acerca de como a eficácia de punição passa a não ser
mais atribuída à sua intensidade visível, e sim à sua fatalidade. Ou seja, não é mais o
teatro que que deve desviar o homem do crime, e sim a certeza de que será punido. Nesse
pensamento, prossegue: “O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos
constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma
economia dos direitos suspensos” (p. 15).
Ainda assim, o principal problema reside na prática desses princípios da
humanização e da dignidade da pessoa humana, tão consagrados em todo o
ordenamento jurídico, e tão menosprezados pelo Estado. Foucault segue esse raciocínio
ao dizer que: “Embora se tenha alcançado o essencial da transmutação por volta de
1840, embora os mecanismos punitivos tenham adotado novo tipo de funcionamento, o
processo assim mesmo está longe de ter chegado ao fim” (p.19). Nessa perspectiva, Capez
(2017) afirma que a função do direito penal é proteger os valores fundamentais para a
subsistência do corpo social, os quais são denominados bem jurídicos. Sendo assim, o
corpo social somente subsistirá se todos que o integrarem forem protegidos e tutelados
pelo direito. Os direitos fundamentais de quem está dentro das casas de detenção devem
ser tão consagrados quanto aos das pessoas que estão fora. Isso devido ao simples fato
de que o objetivo primário das prisões é preparar o indivíduo para retornar à sociedade
e não reingressar na vida do crime.
Como garantir direitos e dignidade em um espaço que não tem visibilidade
alguma perante o Estado? As penitenciárias representam um real ponto cego do Poder
Público e a lacuna de sua atuação é perceptível. A Lei de Execução Penal (LEP, Lei 7.210
de Julho de 1984) redige em seu artigo 10° que “a assistência ao preso e ao internado é
dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade”. Tal aspecto se torna ainda mais evidente nos artigos que se seguem, nos
quais são elencadas as formas de assistência a ser prestada pelo Estado, como meios de
garantir a eficácia do processo punitivo (Alcantara, 2018). Sendo assim, o objetivo
explícito é a ressocialização. Contudo, isso não é encorajado em um ambiente que nem
mesmo enxerga o preso como ser humano, detentor de necessidades básicas e de
atenção. Como afirma Alcantara (2018), essas formas de assistência não figuram como
145
“regalias” do apenado, mas sim como maneiras de garantir que o processo de execução
penal funcione adequadamente.
No entanto, essa situação de invisibilidade e de negligência de fornecimento das
condições mais básicas à vida do homem pode ser verificada no cotidiano da prisão de
Raskólnikov, no qual ele se encontrava em estado desumano e submetido a tratamento
inimagináveis, o qual incluía o trabalho físico forçado e exaustivo, o pouco período de
descanso, a comida repleta de insetos (capazes de provocar doenças) e as correntes,
responsáveis por certa animalização do homem:
Desse modo, entende-se que houve um avanço no tocante às penas que infligiam
diretamente sobre o corpo do homem quando se trata de um posicionamento oficial do
Estado.
No entanto, ainda existem condições desumanas, como aquela ilustrada pela
literatura de Dostoiévski e muito vivenciada nas casas de detenção atuais. Em adição,
situação tão grave quanto diz respeito à desumanização do ser humano enquanto um
homem que possui uma alma, um caráter, um intelecto, uma personalidade que é cada
vez mais influenciada negativamente pelo ambiente animalizado ao qual ele se situa. A
realidade da justiça é oficialmente incorpórea, mas o quanto que isso realmente
representa um avanço sobre a forma de punir e o quanto isso, de fato, cumpre o objetivo
primário das prisões de ressocializar?
Trata-se de uma real contradição do Estado. Se a alma, a vontade, a intenção, a
personalidade, a capacidade de uma pessoa são tão consideradas pelo ordenamento
jurídico, inclusive como elemento constitutivo da culpabilidade por tantos autores, por
que que ela não o é tão abordada no tocante à punição? Expõe Foucault (1987) essa ideia:
O homem não pode ser dissociado no momento de ser punido. A punição corpórea
já foi em muito melhorada, mas esse ser complexo também possui elementos subjetivos
que precisam ser levados em consideração. O homem é fazer, mas também é pensar e
sentir e tudo isso integra a pessoa que um dia retornará a sociedade e deverá não mais
reincidir no crime.
2.2 Os muros da prisão - uma separação física e simbólica entre mundos e culturas
distintas
147
para reduzi-lo a um delito,
uma punição e, por isso, a uma única “programação”. No “mundo doméstico”, o
sujeito constrói as bases de sua autoidentificação, mas ao ingressar nas instituições é
imediatamente despido dessas bases, isto é, da concepção de si (GOFFMAN, 1974).
No “mundo doméstico”, o sujeito constrói as bases de sua identidade – aparência
física, modo de apresentar-se aos demais, o seu papel sociocultural etc. e, ao ingressar nas
instituições prisionais, é imediatamente despido dessas bases. Os processos de
admissão, que talvez devessem ser denominados de processos de “programação”,
distanciam o interno das bases anteriores de autoidentificação e o enquadra nos moldes
da instituição, distanciando-os assim da concepção que tinham de si (GOFFMAN, 1974).
Ao ingressar na prisão, os apenados são separados de muitos de seus pertences,
tais como roupas e acessórios, seus cabelos, em geral, são cortados do modo que é
determinado pela instituição, tira-se foto, dá-se um número (uma matrícula), separa-se
por crime. O fluxo de admissão indicado, em 2016, pela Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária, do Governo Maranhão, por exemplo, passa por processos
de identificação do apenado (registro da admissão no sistema, atualização de foto,
colheita de biometria), verificação dos pertences que traz consigo (quanto à licitude e à
permissão nas instituições), entrega de itens básicos, corte de cabelo, encaminhamento à
triagem e definição da cela (MARANHÃO, 2016). Esses são procedimentos que
massificam os detentos. No livro “Crime e Castigo” (DOSTOIÉVSKI, 2019), pode-se
percebê-los por exemplo, na obrigatoriedade de raspar o cabelo. Nesse sentido, escreve
Dostoiévski:
148
Na prisão, havia também poloneses deportados, criminosos políticos.
Eles consideravam todas aquelas pessoas meras ignorantes e broncos, e
as desprezavam com arrogância. Também não gostavam de Raskólnikov
e o evitavam o tempo todo. No final, passaram até a sentir ódio dele –
por quê? Raskólnikov não sabia. Desprezavam-no, riam dele, riam do
seu crime, logo eles, que eram criminosos muito piores (p. 594).
Ele entendia com clareza sua situação, não esperava nada de melhor nos
próximos tempos, não tinha nenhuma esperança leviana (o que era
muito próprio à situação) e não se admirava com quase nada nas novas
circunstâncias que o rodeavam, tão diferentes de tudo que tinha vivido
antes. (p. 590).
149
Sônia informou que, na prisão, ele estava instalado num alojamento
coletivo; ela não via o interior das casernas, mas deduzia que era um
lugar apertado, feio e insalubre: ele dormia em camas de tábua,
amontoava trapos de feltro embaixo do corpo e não queria mais nada
para se acomodar. (p. 590)
A sociedade não liga não. Todo preso é lixo. Tipo assim, são um bando
de ratos, são lixo. Eu sinto um pouco de revolta de ser discriminado
como ex- presidiário, por causa desse preconceito. Eu tenho esperança
de melhorar isso, com fé em Deus, acabar com o preconceito (...). Minha
revolta não é porque eu fui preso, é a discriminação que tem hoje com ex-
presidiário. Minha revolta não é porque eu fui preso não, porque ali eu
paguei pelo o que eu cometi. Minha esperança é melhorar essa
discriminação. (Andrade et al. 2015, p. 39)
150
Como visto, desde o ingresso na instituição penitenciária, o detento é exposto a
várias situações que levam a sua objetificação, ao mesmo tempo em que promovem uma
forte ruptura com todas as suas vivências no mundo exterior. A lógica prisional se baseia
precisamente na segregação social, e, no entendimento de Baratta (2007), não é viável
segregar pessoas e, simultaneamente, objetivar a sua reintegração. Para o mesmo autor,
não há que se falar em reintegração enquanto o indivíduo é tratado como objeto de
domínio do Estado, sofrendo passivamente todas as suas interferências. Apesar de a
reintegração social do aprisionado ser muito difícil de ser obtida com a prisão, como diz
Baratta (2007), é importante que se almeje a reintegração apesar dela. É neste contexto
que defendemos que a prisionização surge como um fenômeno que pode tornar o
processo de reintegração social ainda mais difícil para o egresso e que, por isso, deve ser
combatida. É um obstáculo que só pode ser enfrentado por uma participação efetiva da
própria sociedade (SÁ, 1998).
3 CONCLUSÕES
A LEP (BRASIL, 1984) dispõe em seu artigo 1° que “A execução penal tem por
objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Sendo
assim, é salutar perceber o princípio consagrado na atualidade e reafirmado por lei que:
o objetivo da prisão é fornecer meios para que o indivíduo retorne ao convívio social e
se torne apto para dela participar, sem reincidir no crime, mas sim, contribuindo para o
desenvolvimento social, político e econômico do seu ambiente.
Para que tal meta se concretize, é mister que os direitos dos apenados sejam
tutelados pelo Estado e fornecidos em sua integridade. É importante frisar que os
direitos daqueles que estão dentro das casas de detenção são tão relevantes quanto
daqueles que estão fora. Seres humanos não perdem seu direito de ser pelo simples fato
de estarem atrás de grades. A dignidade independe de circunstâncias, independe de
crimes e independe de pessoa, ela deve ser garantida.
Tal descaso estatal é reiterado pela visão com a qual a sociedade tem vivido no
tocante às instituições penitenciárias. O distanciamento ocorre tanto de modo físico,
como presente no livro apresentado, quanto de forma social. A ideia que se permeia na
sociedade é que “bandido bom é bandido morto”, e, logo, os indivíduos rejeitam a
possibilidade de o preso reintegrar em seu meio. Este desprezo presente na mente de
muitos reafirma uma postura do Estado e revela que o problema tem acontecido não
apenas de modo vertical, mas também horizontal.
O que não se percebe é que existe um tripé relevante não visualizado pela
sociedade: cidadania, sistema penitenciário e segurança pública, de forma que estes três
conceitos são indissociáveis. A segurança pública é um direito de todo e qualquer
cidadão, no entanto, com o acontecimento de crimes, ela se torna comprometido. É
necessária, então, a punição por parte do Estado que visará a reintegração do preso, para
que quando ele retorne à sociedade, não venha mais a comprometer a segurança de todos.
No entanto, o descaso resulta em um abandono a essas pessoas dentro das prisões,
impossibilitando seu retorno pacífico. Assim, a própria cidadania dos brasileiros é
comprometida devido ao repúdio ao sistema penitenciário, que tanto precisa da ajuda de
todos.
De outro lado, o processo de prisionização é uma situação recorrente nas prisões.
Os indivíduos passam a assimilar um novo modo de vida e um novo padrão de
comportamento, uma vez estão inseridos em um outro contexto social. Essa
151
prisionização é resultado da relação tanto entre os apenados quanto entre os apenados e
o Estado (enquanto administrador das regras que devem reger a vida na prisão). Acerca
da despersonalização, verifica-se que ela começa desde o momento no qual os indivíduos
são admitidos na casa de detenção e são destituídos de
toda sua individualidade, e ela perdura durante sua estadia, visto que o modo de
convivência entre os presos reitera a necessidade até forçada da mortificação do eu.
Desse modo, é possível ver no processo histórico abordado que a pena “evoluiu”,
mas os apenados perderam suas intimidades, suas identidades, seus passados e suas
histórias. A pena “evoluiu”, mas o trabalho e a educação que preparam o preso para o seu
retorno ao convívio social ainda é um direito distante. A pena “evoluiu”, mas a higiene e
as condições de presídios continuam similares a masmorras da antiguidade e ainda
originam doenças inimagináveis. A pena “evoluiu”, mas a dignidade do homem e sua
integridade física e moral continuam sendo questões recorrentes.
As penas não mais representam espetáculos que recaem sobre o corpo físico dos
indivíduos, uma vez que este é um dos bem jurídicos protegidos em diversas esferas do
Direito, não apenas o penal. Entretanto, apenar dessa “evolução” proteger o corpo físico
do indivíduo não significa proteger o indivíduo em si, visto que este transcende esse
simples aspecto, tendo ainda toda uma dimensão psíquica, que também precisa ser
assegurada, estimulada e detentora de direitos que se concretizem no sistema
penitenciário.
Durante o decorrer da história do Direito Penal e do Sistema Penal diz-se que as
penas foram “humanizadas”, o Direito brasileiro proíbe constitucionalmente penas
cruéis e tratamentos desumanos ou degradantes (Constituição Federal, art. 6°, III e XLVII,
1988). Contudo, manter um sistema penitenciário que cria uma cultura que distancia o
apenado da sociedade exterior e, em especial, da população exterior, os tratando como
verdadeiras escórias socioculturais significa manter um sistema que fomenta a
marginalização e vai de encontro ao ideal constitucional de construção de uma sociedade
livre, justa e solidária e que promove o bem de todos sem preconceito de qualquer tipo
(Constituição Federal, art. 3º, 1988).
Ademais, para que haja uma reintegração social eficaz daqueles que foram presos
é necessário que ocorra mudanças não apenas no sistema penitenciário em si, mas
também na sociedade exterior. Faz-se mister mudar o modo como a sociedade exterior,
sua cultura e seus integrantes, enxergam os apenados, bem como aqueles que já
cumpriram suas penas. Deve-se desconstruir o comportamento que marginaliza e
segrega aqueles que passam ou passaram pelo sistema penitenciário, fomentando os
princípios de dignidade e respeito que todos indivíduos, sem qualquer exceção, são
merecedores.
REFERÊNCIAS
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pesquisa em estabelecimentos prisionais. Brasília, DF: IPEA,n 2015. Disponível em:
152
<//repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/4375/1/td_2095.pdf>. Acesso em: 13 out
2019.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v. 1 – Parte geral (arts. 1º a 120). São Paulo:
Saraiva, 2017
DOSTOIÉVSKI, F. Crime e Castigo. Iª edição, 2019. São Paulo: Todavia, 2019. FOUCALT,
M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de Dante Moreira
Leite. São Paulo: Editora Perspectiva: 1974.
GRECO, R. Curso de Direito Penal. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2017.
KARAM, Maria Lucia. Psicologia e sistema prisional. Rev. Epos, Rio de Janeiro , v. 2, n. 2,
dez. 2011 . Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-
700X2011000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 out 2019.
153
THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
154
RESSOCIALIZAÇÃO E TRATAMENTO PENITENCIÁRIO NO BRASIL: REFLEXÕES A
PARTIR DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA
1 INTRODUÇÃO
155
pessoas “honestas” e “normais”, pois ele corresponde a uma espécie à parte do gênero
humano (RAUTER, 2003).
Segundo Vera Malaguti Batista (2011), no positivismo o delito é um ente natural e
nesse sentido, o determinismo biológico contradiz a ideia de responsabilidade individual
apontada pela Escola Clássica21. O médico Cesare Lombroso (1835-1909) é o principal
expositor da corrente positivista; dedicava-se ao estudo da figura do homem criminoso e
suas características e antepassados. Em sua “Teoria do Delinquente Nato”, fundamentada
nas ciências biológicas, Lombroso (2007) compreende o crime como resultante de traços
genéticos menos evoluídos. O autor pretendeu identificar tendências criminosas
conforme a aparência física do humano analisado. A anormalidade do criminoso, para ele,
expressava-se em características como tatuagens, sexualidade, vaidade, inteligência,
dentre outros (SILVA JUNIOR, 2017).
Com as novas noções trazidas pela escola criminológica positivista a prisão assume
um cunho terapêutico sustentado em um ideal correcional, ou seja, apresenta-se como
uma benesse ao apenado. O controle punitivo, agora possuindo caráter corretivo,
preocupa-se não com o crime em si, mas com a prevenção do que pode vir a ocorrer. Deste
modo, passa a abranger da prevenção às reabilitações, utilizando-se do trabalho como
medida ressocializadora. Os tratamentos buscam recuperar os seres humanos
recuperáveis e neutralizar os irrecuperáveis através de terapêuticas sociais, de forma que
medidas disciplinares foram utilizadas como estratégia de controle social das populações
(BATISTA, V., 2011).
Os ideais de recuperação do ser humano e a crença na correção como necessária e
natural vinculados à Criminologia Positivista originaram e disseminaram as idealizações
de ressocialização, reintegração e reeducação. Estas concepções estão presentes nos
objetivos declarados da política criminal e do sistema prisional. A política criminal tem
relação direta com a demanda por ordem de determinada classe social, de modo que o
poder punitivo, que é associado ao processo de acumulação do capital, constrói
dispositivos formais e informais de controle social. Esse controle é exercido sobre os
pobres, as ditas “classes perigosas”, sob o pretexto da defesa social, pela justificativa de
“proteger” a sociedade do crime. Partindo dessa compreensão, aponta-se que dentro do
sistema capitalista os processos vinculados à noção de ressocialização indicam, na
verdade, a ortopedia social22 dos modos de vida hegemônicos (BATISTA, V., 2011;
KILDUFF, 2010; SILVA JUNIOR, 2017).
21 Baratta (2002, p. 31) afirma que “a escola liberal clássica não considerava o delinquente como um ser
diferente dos outros, não partia da hipótese de um rígido determinismo, sobre a base do qual a ciência
tivesse por tarefa uma pesquisa etiológica sobre a criminalidade, e se detinha principalmente sobre o delito,
entendido como um conceito jurídico, isto é, como violação do direito e, também, daquele pacto social que
estava, segundo a filosofia política do liberalismo clássico, na base do Estado e do direito.”
22
Foucault (1987) apresenta o conceito de ortopedia social. Para o autor, diz respeito a uma forma de poder
da sociedade disciplinar. Desenvolvem-se, no século XIX, instituições como a escola, o hospital, o asilo, a
156
Enquanto a Criminologia Positivista limitou-se a salientar causas individuais
determinantes da criminalidade, a Criminologia Crítica tem seu enfoque nas condições
estruturais, funcionais e objetivas que originam o fenômeno do desvio e nos mecanismos
que criam e aplicam as concepções dele e da criminalidade, produzindo os processos de
criminalização. A criminalidade é entendida como um “‘bem negativo’, distribuído
desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e
conforme a desigualdade social entre os indivíduos” (BARATTA, 2002, p. 161), ou seja,
não é caráter ontológico dos criminosos, mas apresenta-se como um status atribuído a
eles. Assim sendo, o crime não diz respeito a um determinismo biológico, algo inerente a
certos indivíduos, de modo que não é possível relacioná-lo com características físicas ou
psicológicas. Por isso, é necessário compreender a estrutura dos processos de
criminalização, pois estes sim definem quem é o criminoso (BARATTA, 2002).
Segundo Kilduff (2010), o cárcere se apresenta como depósito de indivíduos
considerados perigosos e de risco que precisam ser controlados através de técnicas
totalizadoras. O poder punitivo do Estado não atinge a todas as camadas da sociedade: a
violência é direcionada aos setores da classe trabalhadora que ameaçam o sistema
capitalista. Deste modo, desmistifica-se a ideia de igualdade perante a lei. Vera Malaguti
Batista (2011) aponta que a função simbólica da pena serve de cobertura ideológica para
os dispositivos de controle social sobre os pobres, vistos como classes perigosas. A prisão
reflete a realidade social aprofundando a desigualdade e por essa razão a autora
recomenda dar adeus ao que ela chama de “ilusões re”, referindo-se às ditas
“ressocialização”, “reintegração” e “reeducação”.
Para a Criminologia Crítica, como aponta Baratta (2004a, p. 3), a prisão é incapaz
de efetivar a ressocialização do apenado, de modo oposto, traz implicações negativas a
esse objetivo. O autor aponta como grande elemento negativo o “isolamento do
microcosmo prisional do macrocosmo social, simbolizado pelos muros e grades”,
considerando que não se pode buscar integrar pessoas que se encontram segregadas.
Baratta (2002, p. 167) afirma também que diversos estudos têm comprovado pelo alto
índice de reincidência a impossibilidade da ressocialização do apenado através da prisão,
já que, segundo ele, “a prisão condiciona o indivíduo a viver no ambiente prisional, sendo
ela “instrumento essencial para criação de uma população criminosa”.
Carvalho (2008, p. 28) apresenta três premissas que deslegitimam o modelo
ressocializador e demonstram a incapacidade garantidora da execução penal:
política, etc. destinadas a controlar os indivíduos ao longo de suas vidas, de modo que a instituição judiciária
possa se responsabilizar pelo controle de suas periculosidades. Ou seja, trata-se de controle social.
157
ordenamento jurídico e, finalmente, sanciona (administrativa ou
penalmente) qualquer manifestação contrária a este estado de coisas.
Silva Junior (2017) define as “ilusões re” como pretexto retórico com objetivo de
ajustamento, ortopedia social e manutenção do sistema comprometido com as classes
dominantes, estando distantes de objetivar a produção de um ser autônomo, emancipado,
gozando de uma vida digna. Elas fazem parte dos objetivos formais da política criminal,
mas como aponta Vera Malaguti Batista (2011, p. 91), “a pena não deve ser pensada no
“deve ser”, mas sim na realidade letal dos nossos sistemas penais concretos”. A concepção
de ressocialização parte da inferência de que o delito advém de uma questão individual e
desconsidera as condições estruturais que abarcam o fenômeno. Além disso, o ideal
ressocializador mascara os interesses de classes que buscam neutralizar ou até eliminar
os indivíduos considerados perigosos, que são na verdade, aqueles que não são
interessantes ao modo de produção capitalista. Nesse sentido, entende-se que a
ressocialização nada mais é se não uma falácia, um pretexto para dar continuidade à
histórica segregação, patologização, discriminação e criminalização dos pobres.
158
superior e raças inferiores fazia com que estas últimas fossem vistas como com uma maior
inclinação para o crime. Era gritante a tendência de um controle social para garantia da
ordem vigente e que ganhou mais força com a onda de medicalização social do final do
século XIX. O discurso científico, visando o controle social, defendia a ideia de
embranquecimento da população como forma de diminuição da criminalidade.
As ideias da criminologia brasileira, de então, repercutiram na legislação, ao
legitimar a criminalização de determinados indivíduos no Código Penal de 1890 (BRASIL,
1890), que a título de exemplo punia em seu art. 402 a capoeira:
Fica evidenciado no discurso oficial que o ideal ressocializador ainda está muito
próximo ao do século XIX, carregado dos valores de necessidade de controle social,
estigmatização de indivíduos, notória despreocupação com o ambiente ressocializador e
se a ressocialização será possível ou não.
159
4 TRATAMENTO PENITENCIÁRIO NO BRASIL
A Lei de Execução Penal (1984) aponta que a execução penal deve, como um de
seus objetivos, dispor de condições para a harmônica integração social do apenado. No
seu Art. 10 destaca que “a assistência ao preso é dever do Estado, objetivando prevenir o
crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Segundo a LEP (BRASIL, 1984), a
assistência será material, jurídica, educacional, social, religiosa e à saúde. No entanto,
sabe-se que na prática ela não é efetivada nos presídios do Brasil, cada vez mais
superlotados e deteriorados, sendo verdadeiros depósitos de jovens pretos e pobres23.
Machado (2009) utiliza o termo “cruéis masmorras” para definir as penitenciárias
do Brasil. O autor indica como problema crônico da execução da pena privativa de
liberdade a superlotação carcerária, reconhecida como uma forma de tortura, que atinge
a maioria dos presídios do país. A superlotação nos presídios traz consequências como
falta de higiene, alimentação precária e insalubridade, também acarretando na
proliferação de doenças como a tuberculose. As condições de vida nas penitenciárias são
extremamente precárias incluindo falta de espaço, ar e luz e presença de sujeiras nas
celas. O ócio ou inatividade também é uma problemática a ser destacada, assim como a
presença de atos violentos sob a forma de torturas e assassinatos.
Santiago (2011) busca analisar a política de ressocialização no Brasil,
estabelecendo, para isso, uma comparação entre as assistências dispostas na lei e a
efetivação delas no cotidiano dos presos. Em pesquisa realizada na cidade do Recife, o
autor demonstra a discrepância entre a demanda que necessita de serviços e a oferta de
profissionais disponíveis para garantir assistência, o que torna a garantia do direito
inviável. Também se aponta a deficiência na assistência material: celas com capacidade
de 10 presos comportando 30, bem como ausência de material de higiene e limpeza,
vestuário, remédios, ficando tudo a cargo da família. A assistência à saúde também
apresenta carência por falta de recursos e profissionais e a assistência jurídica se mostra
caótica por existirem poucos defensores públicos para tamanha demanda, resultando em
inúmeros detentos não sentenciados cumprindo pena e inúmeros detentos que já
cumpriram sua pena permanecendo encarcerados.
César Segundo (2011) realizou um estudo de caso no Presídio do Serrotão,
localizado em Campina Grande, na Paraíba. Ao entrevistar os chamados “atores sociais
livres”, dirigentes da instituição, estes caracterizam a prisão como “caos” e “universidade
do crime”, por exemplo, afirmando que a prisão não cumpre sua função ressocializadora
e não passa de um depósito de gente. Sobre o maior problema do Presídio Serrotão, os
entrevistados “livres” apontaram a ociosidade e a demora do Poder Judiciário no
julgamento dos processos e nos despachos na Vara de Execuções Penais, além da
estrutura física. Também se falou na superlotação carcerária e ausência de assistência
médica, psicológica, advocatícia e social, previstas na LEP (BRASIL, 1984). Os apenados
também reclamaram da ociosidade e da precariedade da estrutura física que torna o
presídio um ambiente de humilhação.
Em Juiz de Fora, Minas Gerais, Tolêdo (2013) com o objetivo de compreender as
percepções dos egressos do sistema prisional sobre as atividades do Programa de
Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PRESP), atesta que são atribuídos
efeitos negativos à privação de liberdade. A experiência no cárcere desperta nos
participantes do estudo sentimentos negativos variados como ódio, raiva e decepção. A
23Segundo relatório da INFOPEN (BRASIL, 2017), 55% da população prisional corresponde a jovens, 64%
a negros e 75% ainda não acessou o Ensino Médio.
160
instituição foi caracterizada pelos entrevistados por aspectos como “tratamento
desumano”, “violência”, “desrespeito”, “controle”, “abandono” e “exclusão”.
Minayo e Ribeiro (2016) realizaram um estudo exploratório no estado do Rio de
Janeiro a respeito das condições de saúde dos presos, entendendo-a como consequência
das condições ambientais e de vida. A amostra do estudo foi composta por 1.110 homens
e 463 mulheres distribuídos em 33 unidades prisionais do estado. A respeito das
condições de saúde, aponta-se que um dos mais expressivos agravos é a violência. Entre
as doenças mencionadas pelos presos nos últimos 12 meses, salientam-se os problemas
osteomusculares e respiratórios. Aponta-se também problemas no sistema digestivo,
dificuldade auditiva, cegueira em um dos olhos, miopia, astigmatismo e vista cansada. A
hipertensão arterial aparece como a doença cardíaca mais frequente. Cistite e uretrite
como problemas urinários mais citados e a dengue e a tuberculose são as doenças
infecciosas mais relatadas. Úlceras, alergias, dermatites alérgicas e urticárias também
foram mencionadas.
Faz-se relevante destacar que vários homens e mulheres participantes da pesquisa
indicam que já chegaram na prisão com os problemas descritos, entretanto, afirmam que
na instituição não foram cuidados. As oportunidades de prevenção são escassas e os
agentes não se preocupam com sua situação. Nesse sentido, as colocações dos presos
apresentam uma relação direta entre as condições estruturais da prisão e seu
adoecimento. Os presos direcionam fortes críticas à falta de atenção adequada à sua saúde
pela falta de profissionais, atendimento médico, psiquiátrico e odontológico precários,
demora no atendimento em situação de emergência, falta de ambulância e à pouca ou
nenhuma distribuição de medicamentos (MINAYO; Ribeiro, 2016).
É de extrema relevância para essa discussão que se ressalte a situação do
encarceramento feminino que vem crescendo de modo exponencial no Brasil 24. As
mulheres encarceradas são duplamente estigmatizadas: por serem criminosas e por
serem mulheres. Souza (2016, p. 129) coloca que “a prisão é um espaço masculino e
masculinizante, na medida em que é o corpo masculino que rege seus mecanismos mais
sutis e profundos”. Cortina (2015) afirma que o encarceramento feminino apresenta um
plus com relação ao masculino. Para a autora, o tratamento ao qual as mulheres são
submetidas nos presídios do país envolve violações aos direitos humanos e
aprofundamento de desigualdades:
Para além das violações e privações físicas e estruturais, Karam (2011) aponta que
a prisão produz dor psicológica, além de excluir e estigmatizar o indivíduo. Fatores como
a limitação de espaço, impossibilidade de ir e vir, o isolamento, a distância da família e
24O relatório INFOPEN MULHERES (BRASIL, 2018) demonstra que a população absoluta de mulheres
encarceradas no Brasil cresceu 656% entre os anos 2000 e 2016.
161
amigos, a perda de experiências corriqueiras da vida, são elencados pela autora como
aspectos que geram dor. A autora afirma também que a prisão é a instância onde o
controle e a dominação do indivíduo com vistas à produção de corpos dóceis operam com
a maior intensidade, coagindo a uma submissão total à ordem autoritária. Outros fatores
presentes no cotidiano dos apenados são a “permanente vigilância, os regulamentos que
devem ser obedecidos sem explicações ou possibilidades de questionamento, o sistema
de regalia que transforma direitos em recompensas por comportamentos que aparecem
para a administração penitenciária” (KARAM, 2011, p. 6).
Machado (2009, p. 115) enfatiza um efeito importante produzido pelo cárcere no
apenado: a prisionalização, que se refere a uma “espécie de aculturação, de normas ou
formas de vida que o interno se adapta, pois não tem alternativa”. O preso não só absorve
comportamentos na prisão, como também uma nova forma de pensar e sentir que se
impregnam em suas subjetividades e determinam seus modos de existir (MAMELUQUE,
2006). Coelho (2001) afirma que as instituições totais estabelecem um bloqueio entre o
detento e mundo externo produzindo o que Goffman (1974) chama de “mutilação do eu”,
processo através do qual o preso perde alguns papéis que desenvolvia na vida civil e
adquire outros.
Cada indivíduo possui uma conduta, papel e função a serem assumidos e exercidos
na sociedade. Ao ser estigmatizado, o sujeito associa-se ao papel que lhe é impelido. A
ordem institucional causa um considerável impacto na identidade do apenado, de acordo
com o nível de sua vulnerabilidade.
Rauter (2003) afirma que a maior parte dos teóricos da área não acredita na
eficácia do tratamento penitenciário e que se tem demonstrado que ao invés de recuperar
o preso, o encarceramento promove a reincidência, já que o indivíduo é isolado de sua
família e estigmatizado como “ex-presidiário” após o retorno ao convívio social. Baratta
162
(2002) relata que estudos realizados por Lemert e Schur indicaram a existência de uma
correlação entre a reincidiência e os efeitos exercidos pela primeira condenação sobre a
identidade social do indivíduo, o que coloca em questão a impossibilidade de uma função
reeducativa da pena.
De acordo com Coelho (2001), o alto nível de reincidência atesta a falência do
sistema prisional. No entanto, Foucault orienta a redirecionar o olhar. Para o autor, o dito
fracasso do sistema prisional é inerente ao seu funcionamento. O fato da prisão ter
resistido ao tempo relaciona-se com as funções que exerce: a pena não reprime as
ilegalidades, mas sim as diferencia. Dessa maneira, ao supostamente fracassar a prisão
alcança seu objetivo. Deve-se substituir o atestado de fracasso da prisão em reduzir
crimes pela constatação de que a instituição total consegue produzir a delinquência.
Assim, pode-se falar em sucesso, já que depois de um século e meio continua a existir
(FOUCAULT, 1987).
25
Entre tais documentos estão: Constituição Federal; Lei de Execução Penal; Pacto dos Direitos Civis e
Políticos; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes; e a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
163
minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio
princípio majoritário.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
165
REFERÊNCIAS
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humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
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contemporaneidade: um estudo de caso no Presídio do Serrotão em Campina Grande –
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Janeiro, v. 21, n. 7, p. 2031-2040, jul. 2016. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
81232016000702031&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 24 fev. 2018.
168
REVISTA VEXATÓRIA: VIOLAÇÕES DE DIREITOS E SOFRIMENTOS
1 INTRODUÇÃO
169
Destaca-se que em toda a construção do capítulo optou-se por utilizar o gênero
feminino ao se falar em familiares de presos e visitantes por entender, assim como
demonstram as pesquisas, que a maior parte das visitas é realiza por mulheres e que o
caso específico da revista vexatória é uma forma de violência contra a mulher. Este
trabalho é produto de uma pesquisa do Programa de Iniciação Científica intitulada
“Sofrimento compartilhado e resistências: análises de modos de subjetivação e violações
de direitos humanos contra familiares de presos” e tem como objetivo geral
problematizar as violações de direitos humanos produzidas de forma sistemática no
procedimento de revista vexatória.
2 MÉTODO
170
No âmbito das fontes internacionais do direito, a regra 60 das Regras de Mandela
(BRASIL, 2016b), tratado internacional de direitos humanos do qual o Brasil é signatário,
anuncia que a revista para entrada das visitantes não deve ser degradante e que a revista
das genitálias deve ser evitada. As Regras de Bangkok (BRASIL, 2016a) em sua regra 20
declara ser necessário buscar outros meios de inspeção que substituam a revista
vexatória, para evitar os danos psicológicos e possíveis impactos físicos desses
procedimentos invasivos, os quais causam danos semelhantes aos que passam aqueles
que foram torturados. A professora e psicóloga Cristina Rauter demonstrou o que
estamos tentando afirmar quando, em seu depoimento para a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias, coloca: “Estou atendendo uma mãe de ex-preso que foi durante anos
submetida a esse procedimento e que exibe hoje efeitos psicológicos semelhantes aos dos
torturados, de pessoas torturadas na época da ditadura militar etc.” (MARIATH, 2008,
online).
Nesse sentido, no âmbito interno, o dispositivo com status de lei que chega a
abranger a questão da revista vexatória é o art. 3º da Lei nº 10.792/2003 (BRASIL, 2003),
o qual em sua redação estabelece que: “os estabelecimentos penitenciários disporão de
aparelho detector de metais, aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso
ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública”. Do
dispositivo colacionado, infere-se que para adentrar as unidades prisionais é necessário
passar por um aparelho detector de metais e, quando interpretado com os tratados
internacionais dos quais o Brasil é signatário, é inferido que basta tal revista em meio
eletrônico, já que a revista manual é excepcionalidade e a vexatória é vedada.
Diante da omissão legislativa em proibir a revista vexatória, o Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), emitiu a Resolução nº 9 de 2006 (BRASIL,
2006b) após verificar excessos no controle do ingresso de cidadãos livres nos presídios –
excesso que pode ser traduzido em tratamento desumano e degradante – na qual diz que
a revista que visa a segurança dentro e fora do estabelecimento penitenciário deve ser
realizada por equipamentos eletrônicos e a revista manual apenas em casos excepcionais
de fundada suspeita. Mesmo nesta modalidade, deve-se preservar a honra e a dignidade
do revistado. A Resolução nº 5 de 2014 (BRASIL, 2014a) do mesmo CNPCP, veda, de forma
expressa, a revista vexatória em seu art. 2º, no qual traz rol exemplificativo de algumas
das situações que caracterizam uma revista como vexatória, desumana ou degradante:
Foi visto nos tópicos supra que os familiares de apenados são sujeitos à revista
classificada enquanto vexatória, que retira a dignidade do indivíduo e pode o marcar para
sempre, para além de descumprir compromissos formais do Estado brasileiro diante da
ordem nacional e interna. Tudo justificado por um suposto compromisso com a segurança
dentro dos estabelecimentos penitenciários; segurança esta pela qual direitos e garantias
fundamentais são suspensos, ainda que, pesquisas com a da Rede de Justiça Criminal
(2014) apontem para números ínfimos de objetos transportados para as penitenciárias
por meio dos familiares.
174
A professora da Universidade Federal Fluminense e membro da equipe clínica do
Grupo Tortura Nunca Mais, Cristina Rauter, apontou, na X Conferência Nacional de
Direitos Humanos, para a falta de olhar sobre a questão da corrupção dos agentes
penitenciários que permitem a entrada de muitos dos objetos (celulares, armas e drogas)
nos presídios, tendo em vista que apesar das revistas vexatórias eles continuam entrando.
Assim, a revista íntima se mostra ineficaz e é necessário pensar meios alternativos que
proporcionem respeito aos direitos fundamentais, poupando a família dos apenados de
tratamento desumano e degradante (BRASIL, 2006a).
As resoluções do CNPCP, vistas em ponto anterior, bem como as de compromissos
internacionais firmados pelo estado brasileiro apontam para o uso de tecnologia na
revista, de forma que seja evitado contato entre agentes e visitantes e a humilhação de se
despir, agachar diante de um espelho fazendo força, etc. A sugestão do conselho ligado ao
Ministério da Justiça e os compromissos da ordem internacional apontam para um
caminho efetivo, já que as revistas em locais como aeroportos e grandes concertos são
feitas por aparelhos de scanner, capazes de detectar, com rigor, os objetos trazidos ou não
pelos familiares.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
175
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179
PRISÃO EMOCIONAL: TRANSPOSIÇÃO DA SANÇÃO PENAL PARA FAMÍLIAS DE
DETENTOS, QUANDO DA NEGLIGÊNCIA DO DIREITO À MANUTENÇÃO DO NÚCLEO
FAMILIAR, NO CASO DE FAMÍLIAS INTERIORANAS E DE BAIXA RENDA
1 INTRODUÇÃO
2 DESENVOLVIMENTO
Antes da idéia atual que temos de prisão, advinda da mudança do que se entendia
por Direito Penal e da consequente “Humanização” das penas, vivíamos em uma era
sombria, chamada “Era da Vingança”, em que os direitos humanos e a dignidade da
pessoa humana não eram respeitados.
A maneira de punição, contra aqueles que praticavam crimes, como aclara Teles
(TELES, 2006), consistia em punições que atuavam direta ou indiretamente no próprio
corpo do réu, ou até de seus familiares, sendo verdadeiras manifestações de vingança,
180
extremamente severas, desproporcionais, arbitrárias e excessivas, como a pena de
morte; linchamento; desmembramento; decapitação; tortura e diversos outros tipos de
penas cruéis, que não consideravam inúmeros princípios que hoje são essenciais para a
aplicação da pena no Brasil. Como os princípios explícitos da “Igualdade”, presente no
art. 5º, Caput, da Constituição Federal de 1988, e da “Pena necessária”, posto à luz por
Von Liszt, e positivado na parte final do art. 59, Caput, do Código Penal de 1940.
Dessa maneira, as penas possuíam um caráter puramente aflitivo, no qual o corpo
do homem (vis corporalis) pagava pelo mal que ele havia praticado.
O direito de visita que o preso tem, por exemplo, normalmente olhado somente
pelo viés autoritário da segurança pública, acaba sendo simplesmente direito de
preso. Todavia, seus familiares, suas esposas, seus maridos e filhos também têm
o direito de visitar seu parente encarcerado. A família, afinal, é a base da
sociedade e deve ter “especial proteção do Estado (art. 226 da CF/88). (VALOIS,
2019)
185
mil presos: essas famílias de encarcerados. Além da tristeza e preocupação constantes,
elas perdem a liberdade ao viver uma rotina que inclui conversas com advogados, gastos
com mantimentos para os filhos, longas jornadas para vê-los, humilhações durante a
revista e falta de assistência especializada para lidar com a nova organização familiar. É
uma punição constante, como se elas fossem, também, criminosas.
Com o ajuste da sanção penal e a efetiva privação da liberdade do indivíduo, todo
o arranjo familiar é obrigado a se adaptar à nova dinâmica e estrutura parental, que
passa a se organizar tendo como base o complexo prisional. Dentro desse aspecto, o
principal desdobramento tem relação com a condição econômica dessas famílias, uma
vez que, em uma grande parcela dos casos, o então apenado era, até o momento, o
principal responsável pela subsistência de seus consanguíneos.
Desse modo, portanto, além dos embargos enfrentados para a subsistência da
própria família em si, surgem também dificuldades quanto à manutenção do parente
apenado dentro do cárcere, devido ao vácuo de poder promovido pelo Estado, que se
mostra incapaz de prover as necessidades ínfimas dos indivíduos submetidos a esse
sistema, tendo as famílias que arcar com materiais de higiene básica, como papel
higiênico, absorvente, lâmina de barbear, sabonete, xampu e afins.
Um levantamento promovido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo
apontou que, entre os anos de 2011 e 2012, o investimento em itens de higiene, vestuário
e limpeza foi de R$ 13,00 a R$ 50,00 por preso. Ou seja, em um ano, gastou-se, por pessoa,
um valor que sequer seria suficiente para realizar o abastecimento de itens de higiene
pessoal por um mês em uma residência típica de uma grande cidade.
A situação é ainda pior em algumas localidades, como é o caso do presídio
feminino de Colinas, em São Paulo. Outro levantamento, também realizado pela
Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no ano de 2012, aponta que a Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP), gastou apenas R$ 3,84 durante o período de um ano
com cada detenta do presídio. Segundo o defensor público Bruno Shimizu, “as presas
tiveram de sobreviver com a entrega de pouco mais de quatro rolos de papel higiênico
cada uma durante todo o ano”. Nesse mesmo período, nenhum absorvente íntimo foi
entregue às detentas, fazendo com que elas utilizassem miolos de pão para conter o fluxo
menstrual.
Na Penitenciária de Ribeirão Preto, a situação era um pouco menos pior se
comparada com a descrita acima, embora ainda muito longe da ideal. Nessa localidade,
em 2011, a SAP teria gasto, durante esse ano, o valor médio de R$ 21,87 com cada um
dos 1.416 presos, o correspondente à compra de uma escova de dente, um sabonete e
meio e uma camiseta.
Para sanar as necessidades básicas, o defensor conta que os familiares dos
detentos acabam levando os produtos por conta própria, como apontado. Com base em
entrevistas realizadas com 78 dessas famílias, o defensor estima que o gasto com itens
pessoais para eles chega a R$ 410,00 por mês. Isso deixado de lado outros gastos como
alimentação, transporte e advogados.
Desse modo, é muito comum que as famílias tenham que sobreviver com o que
sobra, muitas vezes menos de um salário mínimo, já que, como supracitado, muitas
dessas eram providas pelo salário do atual apenado. Isso ocorre também no caso das
famílias que recebem o auxílio-reclusão, pois este, na melhor das hipóteses, segundo base
estabelecida pelo Governo Federal, pode chegar a R$ 1.319, 18 por mês. Sendo assim,
portanto, além de todo o desamparo emocional e assistencial, é grande o desamparo
financeiro, pois muitas famílias são obrigadas a viver com uma renda abaixo do mínimo
necessário capaz de atender às suas necessidades normais de alimentação, habitação,
186
vestuário, higiene e transporte, como preconiza a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT).
Quanto à alimentação, especificamente, os visitantes tendem a levar alimentos de
preparação caseira ou industrializados para os familiares, já que a comida oferecida nas
cadeias é de baixa qualidade e há, no provimento de alimentação pelas visitas, um
componente de afeto e zelo envolvidos.
Tendo em vista a importância e o aconchego que, para além da visita, o ato de
carinho por meio da comida, ao mesmo tempo que aproxima os laços familiares, também
gera um dos motivos de algumas ausências. Por muitas vezes passarem por situações
dificultadoras no quesito financeiro, tendo em vista a totalização das despesas para
realizar esse ato de afeição, faz com que o apenado aguarde essa visita com carinho, ao
passo que, por medo ou vergonha, algumas vezes, a família se faz ausente por receio de
não atender às expectativas do familiar residente. Sendo assim, tem-se de manter um
olhar atento, para que seja constante a presença das famílias, pois, para os detentos, o
principal será sua presença.
O trabalho de multiprofissionais para o diálogo sincero com essas famílias é de
extrema importância para que a família não se distancie do detentos. Explanar as
dificuldades para a efetivação das visitas são importantes, mas de fato a ausência na
participação de contribuir com o suporte, para com eles, geram desmotivação e
desesperanças em conseguir realizar as visitas com sucesso.
Essa tarefa, que, além de dinheiro, demanda tempo, exige desde a ida ao
supermercado até a entrega dos produtos nos Correios ou na unidade prisional. É
necessário também realizar gastos com engenharia caseira dos recipientes onde são
mandados os alimentos, para que estes cheguem perfeitos ao seu local de destino.
Nessa meada, as famílias acabam por serem ainda mais flageladas, uma vez que,
dada a grande distância em que se encontram os complexos prisionais, é preciso
despender muito mais tempo e dinheiro para promover a conservação dos alimentos a
serem levados para os parentes apenados, já que os mantimentos são preparados no dia
anterior ao da visita, durante a madrugada, sendo esse também o horário em que muitas
dessas famílias começam o processo de se dirigir ao complexo prisional, haja visto que é
um longo caminho a se percorrer, levando- se horas para chegar.
Esse é um outro problema associado ao tema, mais um promovido pela falta de
assistência estatal e olhar despreocupado da população civil. É de conhecimento geral
que o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do globo, tendo sua
paisagem marcada por grandes edificações carcerárias. Contudo, como esse complexo
imobiliário é sublinhado pelo estigma da segregação, há muita resistência por parte dos
grandes centros urbanos quanto à construção de presídios em seus entornos. Por mais
que o Estado tente negociar, nessa guerra que vence o lado com mais poder político e
econômico, há muita dificuldade para a implantação de projetos desse tipo, perdendo
sempre os municípios menores e frágeis economicamente, naturalmente já situados em
localidades mais distantes e de acesso reduzido, se comparado aos grandes centros
urbanos.
Trata-se, nada menos, de uma espécie de limpeza ou higienização social, termo
definido pela sociologia como a “eliminação” de elementos indesejáveis e perigosos, que
afetam, negativamente, a paisagem urbana e natural, como é o caso dos presos e dos
presídios. O aspecto dos presídios tende a estar relacionado à ideia de má higiene e
periculosidade, sendo responsável, inclusive, dentre outras coisas, por ocasionar a
desvalorização dos imóveis situados nas redondezas.
Outrossim, de fato, a higienização social é um fator social importante a ser
187
discutido, por se tratar da falsa ideia de uma sociedade sem criminalidade, pois os
detentos já convivem de forma isolada do sodalício, a partir do momento em que o
Estado toma como estratégia essa
exclusão em sua totalidade, o fator punitivo vai para além do seu verdadeiro
propósito, se trata de definitivamente de um olhar opressor e excludente, construir de
fato um edifício distante, faz com que a realidade concreta não seja vista, assim como as
negligências mediante ao todo, que perde a oportunidade de ser discutida em
comunidade.
Da mesma maneira, se evidencia em como a estratégia do afastamento desses
bairros chamados periféricos, gera um maior desconforto para a sociedade de tudo o que
engloba os centros prisionais, pois de fato permite com que haja repúdio para a
aproximação desses espaços, refletindo também na contínua desvalorização do sodalício
ali vigente, dificultando para além da desvalorização imobiliária, mas também no
retorno dos detentos na comunidade social .
Portanto, dada a distribuição geográfica desses presídios, muitas vezes não há
transporte coletivo que chegue até as proximidades do espaço, não sendo muito
incomum que o acesso seja promovido, limitadamente, por pouquíssimos veículos,
havendo, inclusive, escassez de transporte para a locomoção dos próprios apenados,
para que sejam promovidas assistências de todo o tipo, como a profissional.
Isso contando as localidades em que ao menos existe essa opção, pois o que se
tem, na verdade, na absoluta maioria das situações, é a não disponibilidade de qualquer
meio gratuito oferecido pelo Poder Público ou transportes públicos que façam o trajeto
regularmente, justamente com essa finalidade, obrigando essas famílias a tomarem duas
ou mais conduções até o local de destino, ou a contratarem pessoas específicas, de forma
particular, como os popularmente conhecidos “carros de praça”, para realizar o trajeto,
demandando, desta maneira, ainda mais tempo e gastos.
O problema do negligenciamento do direito de manutenção do núcleo familiar,
como um todo, bem como a falta de disponibilidade desses transportes, recaem,
grandiosamente, sobre a sociedade contemporânea, dado o fato de que não há apoio da
população civil e de famílias de não-presidiários para o atendimento de políticas de
Direitos Humanos no geral, principalmente no que diz respeito a matéria carcerária e de
políticas prisionais. Conforme uma pesquisa publicada em 2015 pelo Anuário Brasileiro
de Segurança Pública, 50% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom é
bandido morto”.
Nesse sentido, discorre o doutor em Direito Internacional pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo; professor da Faculdade de Ciências Aplicadas
(FCA); pesquisador associado FAPESP do Observatório de Migrações em São Paulo; e
autor do livro “Deve Haver” (2017), Luís Renato Vedovato:
188
Tudo isso, conjuntamente, como já foi possível observar, complexifica o acesso de
muitas famílias a esses inúmeros presídios, haja vista que a distância dos grandes
centros urbanos e o afastamento dos olhares dos habitantes dessas regiões altamente
providas de assistência e de desenvolvimento é elemento comum tanto das
penitenciárias, quanto das localidades habitadas pela clientela do Direito Penal no Brasil.
Desse modo, o que se percebe é que a dinâmica para a implementação desses
projetos segue a mesma lógica estrutural da segregação de determinadas populações. Há
um duplo grau de marginalização das famílias periféricas e interioranas, já punidas
anteriormente pelo Estado devido a concentração espacial da pobreza e o vácuo de
poder estatal que também acomete essas localidades, sendo responsável por ocasionar
solo favorável para o surgimento do crime organizado.
De acordo com a psicóloga Marisa Feffermamn, que atende mulheres com
parentes apenados, na ONG Amparar (Associação de amigos e familiares de Presos),
geralmente são mulheres pobres que precisam deixar as crianças sozinhas para que
possam trabalhar, de modo que essas pessoas acabam por se sentirem culpadas quando
algum de seus filhos é encarcerado, sentimento que é reafirmado e inflado quando elas
precisam escutar de outras pessoas, alheias à situação, que o filho está preso pois elas
não souberam criá-lo.
Julgamentos como esses aprisionam as famílias em vários âmbitos. Elas não
podem falar para o patrão, porque têm medo de perder o emprego. Os conhecidos as
condenam como criminosas. E, por fim, os agentes penitenciários a tratam como uma
presidiária. Caladas, as famílias ficam presa nessa realidade, sem terem a quem recorrer.
A dura realidade desses parentes, refletem o quanto eles se tornam aprisionados em uma
situação de desprezo e submissão do sistema penitenciário.
Segundo relatos da jornalista Natália Eiras, que teve um irmão encarcerado,
durante a revista, ela e sua mãe eram obrigadas a agachar três vezes com as calcinhas
arriadas, para que a agente penitenciária visse se escondiam algo na vagina. Sem poder
falar nada sobre isso fora de casa, por vergonha e medo.
O fato é que as famílias desses apenados, tornam-se, assim como eles, refém do
Poder Público. É necessário que haja uma base nuclear que forneça para as famílias
condições favoráveis para que além das visitas, consigam conquistar seu sustento
próprio, de fato. No caso das mulheres dos presos, após se tornarem companheiras
desses homens, muitas vivem em uma situação de uma única fonte de renda, que é de
seu parceiro. Logo, é necessário apoio para saber lidar com a ausência do cônjuge.
Suporte estatal, familiar. Pois, além da vulnerabilidade social, existem muitos outros
fatores põem em risco a vida da mesma.
Em entrevista à Universa, coluna do site UOL, Rosana, que teve o nome alterado
por medo de represálias tanto à ela quanto à seu filho, que se encontra apenado, traduziu
um pouco o sentimento pelo qual passam essas famílias:
Também exemplificando o que foi dito, Rosana afirmou, na mesma entrevista, que,
em domingos alternados (os dias de visita ocorrem a cada 15), acorda às 4h para montar
o jumbo, que é como mães de presos chamam a sacola onde são carregados os
mantimentos que as visitas levam para o presidiário. São cerca de 20 quilos compostos
por bolachas, balas, pães, bolos e cigarros, além do almoço que mãe e filho comerão
189
juntos naquele dia.
A dificuldade de manutenção do núcleo familiar, caracterizada por todos esses
fatores anteriormente supracitados afeta, diretamente, óbvio, os presos, haja vista que a
distância das famílias pode impactar negativamente suas possibilidades de inclusão e
reintegração social, o que vai contra as premissas das políticas carcerárias do Brasil, ao
menos em tese, já que a pena, em nosso ordenamento, tem a ressocialização como
pressuposto fundamental, integrando um dos quatro fundamentos da pena no Brasil.
Busca-se, com a aplicação da pena, no nosso Direito Penal, a reeducação e a
reabilitação do criminoso ao convívio social, devendo ele receber estudo, orientação,
possibilidade de trabalho, lazer, aprendizado de novas formas laborativas,
acompanhamento da família, etc.
O que ocorre, porém, é que com esse arranjo geográfico dos complexos, torna-se
praticamente impossível fazer com que os detentos assumam postos de trabalhos fora
dos muros do cárcere, ainda que para a ressocialização, mesmo sendo esse um direito
social assegurado a todo e qualquer cidadão pela Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 6°, bem como pelo artigo 41 da Lei N° 7.210/84 (LEP), que o assegura como um
direito também das pessoas privadas de liberdade, especificamente.
Essa conjuntura coloca as famílias dos reeducandos diante de mais uma
negligência. Isto pois o salário dos apenados, também conforme disposição legal da
própria LEP, artigo 29, deve ser remunerado para, precipuamente, ressarcir o Estado das
despesas realizadas com a manutenção do condenado, além atuar como uma maneira de
promover uma assistência à sua família, fator que poderia minimizar os gastos que estes
possuem devido, justamente, ao vácuo assistencial promovido pelo Estado, na contramão
das suas atribuições.
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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192
MATERNIDADE E PRISÃO: AS DIFICULDADES DAS MÃES INSERIDAS NO CÁRCERE
BRASILEIRO
1 INTRODUÇÃO
193
2 CONTEXTUALIZAÇÃO: O ENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL
Queiroz (2015) relata sobre a brutal vida das mulheres que são tratadas como
homens nas prisões brasileira. Ela conta a história de Gardênia, presa por tráfico, que
chegou grávida à prisão e só conseguiu ter o parto no hospital depois de muitos gritos.
Porém, mesmo fraca, Gardênia ainda foi algemada na maca durante grande parte do parto
e, quando sua filha nasceu, ela não pôde pegá-la no colo. Debilitada, ainda disse que “vida
de presa é assim: não pode nem olhar se nasceu com todos os dedos das mãos e dos pés”.
Cunha (2018) relata que o pior momento das mulheres, no pós-parto, é o olhar de
tristeza ao entregar o filho para a família devido às péssimas condições de higiene do
lugar. O martírio da entregar dos filhos é tão grande, que muitas presas acabam sofrendo
tortura psicológica e entram em depressão, já que não existem políticas de atendimento
psicológico.
Outra dificuldade encontrada pelas presas concerne à relação familiar. Muitas
alegam que os parentes não têm recursos financeiros para custear uma viagem de visita;
outras vezes, os parentes deixam de visitar para evitar constrangimentos durante as
abusivas revistas corporais, pelos agentes penitenciários.
197
Ademais, grande parte das mulheres encarceradas foram presas por entrar no
tráfico com o objetivo apenas de sustentar e complementar a renda familiar, já que são
mães solo ao mesmo tempo. O problema é que, nestes casos, os filhos são levados para
casas de parentes, vizinhos ou amigos e, quando não existem familiares por perto, são
levados para instituições de acolhimento (abrigos) e, com isso, acabam virando,
novamente, vítimas de outro sistema problemático. É o que destaca BANDEIRA (2018):
[...]A maternidade das presas também passa por outro desafio: em geral,
elas já são mães de outras crianças, e, enquanto as mães pagam suas
dívidas com a sociedade, os outros filhos ficam com vizinhos, avós ou são
encaminhados para lares substitutos. Não raramente, vão parar em
abrigos. “O processo é muito doloroso e, na maioria das vezes, não é
acompanhado pela Justiça da Infância e Juventude nem pelo Conselho
Tutelar.
No entanto, mesmo com essa concessão, ainda existem entraves para a libertação
dessas mulheres. O principal entrave para a efetivação desta decisão diz respeito a sua
interpretação. O ministro Lewandowski deixa claro que nem todas as gestantes possuem
direito à prisão domiciliar, ao colocar que os juízes podem negar o benefício em situações
excepcionais, deixando ao juiz do caso concreto a faculdade de determinar ou não a
medida.
Dados do Ministério da Justiça (INFOPEN MULHERES, 2016) mostram que o Brasil
é o terceiro país do mundo com a maior taxa de aprisionamento feminino, reforçando,
então, no caso da maternidade, a dificuldade da efetivação do direito à prisão domiciliar,
visto que, em sua grande maioria apenas as mulheres de famílias “tradicionais”,
privilegiadas, brancas e com renda conseguem usar esse regime dentro das situações
excepcionais, a exemplo da ex-primeira dama (CUNHA, 2019).
Outro argumento usado como justificativa para negar a efetivação da prisão
domiciliar, nos termos da concessão do HC coletivo, é a falta de uma residência fixa e a
falta de emprego da mulher. É comum que as decisões que decretam as prisões
preventivas tenham como justificativa, a sobrevivência da própria mulher ou a de seus
entes familiares (CUNHA, 2019). Desamparadas pelo Estado e sem acesso as políticas
públicas básicas, as mulheres encontram dificuldades em lutar por seus direitos e acabam
permanecendo nas penitenciárias, mesmo possuindo os quesitos para a efetivação da
decisão.
199
Segundo o Marco Legal da 1° Infância (lei n°13.275, de 8 de março de 2016) ,
especificamente em seu art. 5°, dispõe que a criança possui direito a saúde, nutrição, lar,
acompanhamento familiar, educação e a um ambiente propício a sua sobrevivência. Com
a nova atualização do Art. 318, inciso IV, V do CPP, deixa claro que o juiz pode e deve
substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando a acusada for mãe. A convivência
mãe-filho logo nos primeiros anos de vida, é de suma importância pois estimula a
produção de hormônios como a prolactina e a ocitocina, aumentando o laço materno e
garantindo imunidade para o bebê, características estas que se distanciam em muito do
ambiente penitenciário.
A conquista dessa mulheres através do habeas corpus coletivo é de suma
importância, pois impulsiona a sociedade a olhar tal situação, bem como, traz uma
autonomia sobre seus próprios corpos e vontades que outrora foi tirado ao ingressar
nesse sistema bruto e decadente. Segundo Ana Gabriela Mendes Braga, no artigo entre a
soberania da lei e o chão da prisão: a maternidade encarcerada:
No entanto, é preciso que esse tema continue sendo discutido, para que assim
sejam evitados novas formas de punições e aprisionamentos. Como diz Cunha (2019), é
essencial que as interseccionalidades e o modo como elas afetam diferencialmente as
pessoas que são envolvidas pelo sistema penal sejam reconhecidos, para que a violência
contra essas mulheres parem de ser reproduzidas e imponha que elas sejam tratadas
como possuidoras de direitos e deveres que devem ser respeitados e cumpridos conforme
a lei.
5 CONCLUSÃO
Ao final deste artigo, podemos concluir que a questão sobre o cárcere feminino
vem sendo abordado ao longo dos séculos de vários modos diferentes. Começando pelo
lado histórico e sua abordagem de modelo prisional na forma de presídios mistos e
aplicação de castigos físicos até os dias atuais, onde os modelos não são muitos diferentes.
Embora existam presídios separados, grande parte ainda acredita que ambos os sexos
devem ser tratados de forma igual, o que é uma falácia, já que as mulheres precisam de
mais atenção e cuidados devido às suas peculiaridades.
Inicialmente, discutimos sobre a escassez de presídios femininos no Brasil. As
mulheres que cumprem pena são uma minoria em relação aos homens e por isso não há
tantos ao redor do Brasil. Geralmente existem um ou dois por Estados e quando existem,
não há lugar para todas, muito menos condições estruturais para manter as que já estão
ali. A principal questão abordada nesse trabalho, é a situação maternidade, se já não há
condições ideais de receber mulheres sem filhos, como as grávidas e as recém paridas
conseguem sobreviver e cuidar dos seus no pós parto?
200
Usamos como exemplo a detenta Gardênia, que também pode-se dizer como uma
representante de todas as mães que estão dentro deste sistema. Sua luta durante e pós
gravidez revela que mesmo depois de muitos anos de sua história (2015), o Brasil ainda
não está preparado para receber e manter mães e filhos em um ambiente carcerário que
possibilite as mínimas condições de sobrevivência, tampouco, sua ressocialização, que só
contribui para aumentar o número de casos de detentas com depressão nos primeiros
meses de vida de seu bebê.
Outro fator discutido, foi a maneira de como essas mulheres entraram para as
estatísticas. Por serem em sua grande maioria de baixa renda e mães solo, elas acabam
adentrando no mundo do tráfico por ser um escape fácil de obtenção de dinheiro para
sustentar os seus filhos. No entanto, quando são presas, seus filhos acabam tendo que ir
morar na casa de parentes ou em abrigos, o que consequentemente, gera uma sensação
de abandono no caso dos filhos mais novos e um trauma de ser separado a força de sua
mãe.
Posteriormente foi abordado a dificuldade de alguns parentes conseguirem fazer
visitas devido a falta de condições financeiras. Por possuir poucas unidades femininas no
Brasil, as mulheres são realocadas em presídios distantes do seu local de origem, o que
consequentemente, dificulta a possibilidade de visitação pelas famílias e quando há
chances, os próprios familiares se recusam a ir devido a demorada e agressiva revista feita
pelos agente penitenciários.
É fato que nos últimos anos a maternidade no cárcere vem ganhando destaque nas
mídias digitais e impressas, principalmente logo após a decisão do Ministro Ricardo
Lewandowski que possibilitou que mães em condições de gestantes, de puérperas ou de
mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças que
estavam no regime fechado, se transformasse no regime domestico. No entanto, essa é
mais uma conquista de várias que ainda precisam ser analisadas e discutidas, bem como,
que as leis de proteção as crianças, como o Marco Legal da 1° Infância sejam respeitadas
para que estas cresçam em um ambiente saudável e com todas as suas necessidades
supridas.
Diante de tudo isso, é preciso que medidas sejam tomadas. Portanto, devem ser
criadas políticas publicas que garantam o direito fundamentais a todas as mães com filhos
e como o Estado deve se portar para evitar que mais mulheres entrem no mundo do crime
para ter uma renda fácil e sustentar os seus. Bem como, assegurar a criação de mais
creches e berçários para receber as que já estão dentro do sistema, para que assim, mesmo
apenadas, elas sintam que estão em um ambiente saudável e de certa forma, “bom” para
cuidar de seus bebes. Ademais, é fundamental que o resto da população olhe para essa
lute e apoie os movimentos em defesa, sem esquecer também, que as leis existentes sejam
cumpridas e que haja mais pesquisas e políticas publicas sobre este tema.
REFERÊNCIAS
201
BANDEIRA, Regina. Presídios femininos: o descaso com saúde e alimentação de
grávidas e crianças. *Conselho Nacional de Justiça*, 2018. Disponível em:https:<
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86269-presidios-femininos-o-descaso-com-saude-
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202
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Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz. Disponível
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STF. HABEAS CORPUS 143.641 SÃO PAULO. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski.
DJ: 20/02/2018. *STF*, 2018. Disponível
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VINHAL, Gabriela. Número de mulheres presas cresce 656%; Brasil é o 4 º que mais
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<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/06/11/interna-
brasil,687581/quantas-mulheres-estao-presas-no-brasil.shtml>. Acesso em 25, ago,
2019.
203
OS CASOS DE FEMINICÍDIO NO ESTADO DA PARAÍBA: UM RETRATO DA
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Vanessa Felix de Sous
Willana Alves de Albuquerque
Marlene Helena de Oliveira França
1 INTRODUÇÃO
204
2 METODOLOGIA
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Deve ser vista, no entanto, com um ponto de partida, e não de chegada, na luta
pela igualdade de gênero e pela universalização dos direitos humanos. Uma das
continuações necessárias dessa trajetória é o combate ao feminicídio (Brasil, 2013, p.
1003).
205
Posteriormente, deu-se continuidade ao combate com o surgimento da Lei nº
13.104, em 2015, que definiu como crime o feminicídio, e alterou o artigo 121 do Código
Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) para “prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990,
para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos”. Com isso, tornou-se sabida a
existência de crimes constituídos no gênero contra a mulher por razões da condição de
sexo feminino quando envolve: (i) violência doméstica e familiar, (ii) menosprezo ou
discriminação à condição de mulher. A qualificadora supracitada foi criada a partir de
uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra
a Mulher (CPMI-VCM) que investigou a violência contra as mulheres nos Estados
brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013 (PEREIRA, 2018).
Tais marcos normativos mostram a urgência de respaldo institucional para
efetivação da justiça no crime de feminicídio. No entanto, outras medidas além da lei se
fazem necessárias para coibir a perpetuação da estrutura machista que reverbera a
continuidade desse crime, como políticas públicas. De acordo com o Plano Municipal de
Políticas Públicas para as Mulheres da cidade de João Pessoa, 2016, no Brasil, a criação
da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, no Governo Lula, tornou-se um
marco da institucionalização de políticas para as mulheres, na medida em que favorece
e estimula a criação de organismos estaduais e municipais de políticas públicas neste
âmbito. Tais medidas “têm buscado evidenciar para toda a sociedade esse fenômeno da
violência doméstica contra as mulheres, bem como imprimir uma frequência cada vez
maior e com mais eficácia na prestação de serviços a estas mulheres” para que “elas
possam compreender esse fenômeno e desenvolver estratégias para sair do ciclo da
violência, além de sensibilizar a sociedade para a responsabilidade pelo enfrentamento
a essa situação”.
Em João Pessoa, no ano de 2005, foi criada a Coordenadoria de Políticas Públicas
para as Mulheres, que se transformou em secretaria no ano de 2010. Em 2007, foi
implantado o Centro de Referência da Mulher Ednalva Bezerra, em parceria com a
Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal (Plano de Políticas Públicas,
2016).
Ademais, DEAMs, a Casa Abrigo, o Juizado da Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, os serviços de referência para violência sexual e aborto também
também desempenham papéis fundamentais no fim da violência contra a mulher.
4 CONCLUSÃO
206
Desse modo, não pode ser ignorada a necessidade de dedicação de esforços para
materialização do texto legal: inovação e concretização de medidas, instrumentos e
ferramentas públicas para amparo de mulheres expostas a agressões, acolhimento
efetivo de vítimas e, sobretudo, conscientização dos agentes sociais para a existência,
para o sentido e para as formas de combate à violência de gênero.
REFERÊNCIAS
207
INCIDÊNCIA DO ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO DOS AGENTES PENITENCIÁRIOS
1 INTRODUÇÃO
O trabalho é essencial para o indivíduo, tanto para fins de sua própria subsistência
e a de sua família, quanto para a realização pessoal, o que demonstra a necessidade de
compreensão do ambiente organizacional das empresas privadas e das instituições
públicas. O valor do trabalho ultrapassa as necessidades do capital, pois abarca as
particularidades humanas individuais. Através do labor o indivíduo busca promover o seu
desenvolvimento pessoal, familiare social. Portanto, é uma atividade indispensável para
o ser humano. Dessa maneira, pode-se afirmar que é uma ação desempenhada em um
contexto social, que passa a sofrer influências distintas, que acaba por resultar em uma
ação de troca entre o trabalhador e os meios de produção. Além do que o trabalho
necessita ser fonte de satisfação e de progresso e desenvolvimento pessoal.
O ambiente laboral sofre influência direta da dinâmica do mercado de trabalho,
sempre sujeito às alterações advindas de várias frentes, como a inovação tecnológica, que
muitas vezes diminui postos de trabalho e provoca desemprego; a concorrência, que faz
com que as empresas tenham que disputar um mercado cada vez mais saturado; as
oscilações da economia, que impõem a redução de despesas muitas vezes iniciada pela
diminuição do quadro de pessoal; a competição entre colegas para o atingimento de metas
e a manutenção do emprego, dentre outras.
A precarização dos ambientes de trabalho contribui para alterações
comportamentais significativas, possibilitando a ocorrência de assédio moral, praticado,
muitas vezes, por gestores ou até mesmo por colegas de mesmo nível hierárquico.
Observa-se o crescimento dos relatos de assédio moral nas relações de trabalho,
nas mais variadas esferas organizacionais. O estudo desta temática é bastante relevante,
pois conforme pesquisa realizada em 201526 e publicada pela BBC Brasil27, na qual foram
entrevistados 4.975 trabalhadores em todo o país, 52% relataram já ter sofrido algum
tipo de assédio no trabalho, sendo que dos que não foram vítimas 34% disseram já haver
presenciado algum episódio de abuso. Por sua importância para a compreensão do objeto
deste estudo, convém transcrever a conceituação de Hirigoyen sobre assédio moral:
Reino Unido, fundada em 1922. Em 1938 esse serviço de notícias passou a ser oferecido em português,
através da BBC Brasil. Recuperado de
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150610_assedio_trabalho_pesquisa_rb
208
contra la dignidad o la integridad psíquica o física de una persona,
poniendo en peligro su empleo o degradando el ambiente de trabajo
(HIRIGOYEN, 2006, p. 19).
2 REFERENCIAL TEÓRICO
28
Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania. Recuperado de
http://www.sejuc.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=89178&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=S
EJUC
209
condições básicas de sobrevivência, mas também se sentir produtivo e inserido em uma
sociedade capitalista, que cria a cada dia novas necessidades e o impele a buscar cada vez
mais. Essa imposição faz com que o trabalhador invista cada vez mais na sua atividade
profissional, seja através do aperfeiçoamento da sua qualificação profissional, seja
submetendo-se a situações de pressão exagerada ou metas abusivas, por exemplo, tudo
para manter seu posto de trabalho ou, até mesmo, pensando em ascender na carreira.
Assim, é importante compreendermos as formas de organização social do trabalho e seus
reflexos na qualidade de vida e na saúde dos trabalhadores.
É importante sempre relembrar que o termo trabalho pode assumir diferentes
concepções. Borges e Yamamoto (2014, p. 26), a esse respeito, esclarecem:
A própria percepção de trabalho pode ser diferente para pessoas diferentes. Neste
sentido:
Assim, o trabalho seria o local onde a maioria dos trabalhadores teria prazer,
satisfação e acima de tudo ética, porém o que vem sendo percebido na pesquisa são
relatos, dos poucos agentes que aceitaram falar, queixando-se de mal-estar no trabalho,
de pressão psicológica, de perseguições de superiores e desconforto com colegas. Ronchi
(2010) também se debruçou sobre o tema e acentuou bem a diferença entre a situação
ideal – o trabalho entendido como prazer – e a realidade na maioria dos casos, que é
aquela em que as pessoas trabalham por necessidade, por questão de sobrevivência:
Nos espaços organizacionais, muitas vezes, os trabalhadores não podem ser eles
mesmos, humanos; precisam ser entes despersonalizados. Levando em conta que essa
despersonalização pode acabar gerando sofrimento através de doenças físicas e psíquicas,
210
torna-se necessário debruçar-se sobre o tema. Às vezes, nessa conjuntura em que o
trabalhador se encontra, ele não consegue identificar seu sofrimento como sendo de
ordem psíquica, ele atribui a fatores de ordem pessoal ou social.
Compreende-se que a hierarquia de uma organização tenha seus padrões de
convivência já pré-estabelecidos,contendo suas próprias regras, para que se possa
distribuir as responsabilidades individuais e coletivas e os objetivos a serem alcançados
dentro da empresa, seja ela pública ou privada. Borges & Yamamoto (2014, p. 58)
esclarecem que “Assim consideramos as relações de poder dentro das organizações,
podemos distinguir o trabalho subordinado das chefias intermediárias, dos gerentes, dos
diretores, dos proprietários, etc”. No entanto, a hierarquia não pode ser utilizada para
infligir aos subordinados situações vexatórias e humilhantes, que reiteradas ao longo do
tempo passem a caracterizar assédio moral.
O assédio moral no trabalho é um fenômeno que, embora antigo, somente a partir
da década de 1990 passou a ser estudado com maior interesse. Dependendo do país de
origem do estudo e da época, pode-se encontrar os seguintes termos para designar o
assédio moral: acoso moral (Espanha), mobbing (Estados Unidos, Suíça, Alemanha, Itália),
bullying (Inglaterra), harcèlement moral (França).
Esta pluralidade de designações indica, além da dificuldade de uniformização de
terminologia, uma dificuldade de conceituação de referido fenômeno. Assim, apresenta-
se pertinente trazer os conceitos de alguns dos principais autores que pesquisaram sobre
o tema.Marie-France Hirigoyen assim definiu o assédio moral no trabalho:
Já Guedes, por sua vez, nos traz o seguinte conceito para o assédio moral no
trabalho:
O caput do art. 927 do Código Civil brasileiro (CCB), por sua vez, prevê o dever de
indenizar àquele que por ato ilícito causar dano a outrem. Sendo o assédio moral um ato
reconhecidamente ilícito e prejudicial à vítima, é pertinente acionar o assediador em
busca de indenização. Embora em um primeiro momento tenha havido controvérsia sobre
a possibilidade jurídica de reparação financeira do dano moral sofrido, a jurisprudência
evoluiu nesse sentido, como bem explica Cahali (2002, p. 22/ 23):
3 MÉTODO
213
e análise de dados do questionário semiestruturado, foi realizada a análise de conteúdo e
estatística.
O público alvo deste estudo são agentes penitenciários (homens e mulheres) que
trabalham nas unidades do regime fechado do sistema penitenciário do Estado do Rio
Grande do Norte. Pretendia-se fazer uma amostra aleatória simples de 20%, o que
equivaleria a 56 agentes para aplicação do questionário, no entanto, em virtude da crise
do sistema prisional do RN na época conseguimos realizar com 21 agentes entre homens
e mulheres. Ressalta-se que a presente pesquisa foi aprovada pelo CEP – Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Potiguar, nos termos do Parecer Consubstanciado n.
1.847.781, seguindo assim todas as etapas orientadas pelo comitê.
“Afirmo que existe neste trabalho que exerço muita corrupção aqui no
sistema penitenciário. Para mim, não posso chamar isso de trabalho e sim
de subemprego. Salário baixo faz com que os agentes se corrompam. Para
mim não é justificativa. Tenho 15 anos de sistema e já levei muitas
“cantadas” de apenados, porém sou solteiro e não vivo pendurado em
empréstimos. Meus valores morais são outros. E digo mais: conta-se nos
dedos os que não são corrompidos. Pode anotar. As armas entram com a
maior facilidade e as fugas são facilitadas, para isso tem um grande preço,
chama-se dinheiro alto. Existe até um esquema (tabela de preços) para
liberar entrada de celular, faca, armas...” (ASP 1).
“Entrei para ser ASP porque na época foi essa opção que consegui passar
em concurso. Nunca gostei desse trabalho, ele é insuportável.... No início
até conseguia ir com um pouco de ânimo, hoje, detesto. Esse é o tipo de
trabalho que não acrescenta nada na formação pessoal do trabalhador,
pelo contrário, só tenho aborrecimentos. Hoje tomo remédio para
dormir”. (ASP 1).
Esse é um tipo de assédio horizontal (de colega para colega) que surge com
agressões psicológicas, uma forma grave de violência, colocando medo na vítima,
desvalorizando-a em nome da competitividade, do individualismo e da inveja, que ocorre
no sistema prisional. Por vezes, esses cenários de violência se naturalizam e não é dado o
devido valor no cotidiano do trabalho e assim acaba por acontecer o assédio. O agente
penitenciário vive constantemente cercado pelo medo, por uma sensação de insegurança,
e não pode impedir de sentir esse sentimento, pois é subjetivo. Alguns ficam ansiosos,
depressivos, quando pressionados pelo colega ou pelo gestor, e algumas vezes mentem
para si mesmos dizendo que querem este emprego. O medo pode ser manifestar como
uma “voz” dizendo que isso é coisa da própria cabeça.A exposição de forma repetitiva e
prolongada a situações humilhantes e constrangedoras faz com que o trabalhador a cada
dia vá adoecendo mentalmente. Esta condição é assim descrita por um outro agente
penitenciário:
Durante o processo de escuta, por vezes, ela chorou e ficou nervosa, ao relembrar
aqueles momentos tão sofridos. Mas, ao mesmo tempo, ela colocava que era importante
falar novamente sobre esse assunto, porque as sequelas ainda existem, ou seja, as marcas
ficaram. Ela ainda toma medicação e faz terapia, mesmo depois de tantos anos. Quando se
instala o assédio moral inicia-se o processo de adoecimento da vítima, trazendo danos
psicossociais para a sua saúde física e mental, podendo ocorrer desde uma simples
gastrite até uma síndrome do pânico. Vejamos depoimento a seguir de uma agente:
“Procuro fazer o que me cabe, não levando para fora daqui os problemas
aqui de dentro, assim como não trazendo os problemas lá de fora aqui
para dentro. As duas brigavam por poder, a chefe e a subchefe. Parecia
que eu era a “vaca” da vida delas, e era um medo.... Elas me desprezaram.
Uma vez a chefe disse que eu vivia falando das agentes e quase todas
íamos parar na delegacia. Eu me recordo dessas cenas, sofro, ainda tenho
medo. As outras ASP’s não queriam trabalhar comigo. ” (ASP6).
216
“Tenho dificuldade de manter relacionamentos duradouros, não aguento
pressão. Estou afastado por assédio moral de um colega. Sou formado
em... [curso omitido para evitar a identificação do entrevistado]. Não
quero essa vida para mim. Vou largar esse lugar”. (ASP10)
“A família não sabe o que eu passo não. Tenho 16 anos de agente e não
gosto dessa profissão. Desde que entrei, vivo doente. Tenho o sono
perturbado, ansiedade, angústia, irritabilidade, consumo bebida e
cigarro, tomo remédio controlado.... Aqui não existe amigos.... É cada um
por si.... Já fui perseguida por uma colega de trabalho, por inveja. Eu
consegui minha transferência para a escolta. Olha, isso, isso não é vida
não. Às vezes prefiro nem sair de casa quando estou de folga, prefiro ficar
sozinha em casa. O desgaste aqui é muito grande e nunca que vou
recuperar, sabe? É na cabeça...” (ASP12).
217
competências profissionais, contra 40% que afirmaram ter recebidoatribuições que
exigem experiência superior a elas.
Na categoria condições de trabalho, 80% afirmaram que outros retiveram
informações que eram essenciais para o seu trabalho, enquanto 90% informaram que lhes
teriam sido retirados equipamentos/instrumentos necessários para realizar as suas
atividades. Ademais, também 90% dos entrevistados afirmaram que foram obrigados a
realizar trabalhos perigosos ou especialmente nocivos à saúde, que iriam além das
funções exercidas enquanto agentes penitenciários. Na análise da desconsideração
sofrida pelos agentes penitenciários, afirmaram que sofrem desconsideração, sendo que
65% disseram ter sido ignorados na frente dos outros, 85% afirmaram que as suas
opiniões e pontos de vista foram ignorados, enquanto 60% disseram que foram
impedidos de se expressar.
Em relação aos ataques à vida privada dos agentes penitenciários do RN, percebe-
se que nem a vida particular dos agentes escapa ao escrutínio no ambiente de trabalho, já
que 60% dos entrevistados disseram ter recebido críticas sobre a sua vida privada,
enquanto 55% afirmaram ter sido vítimas de brincadeiras tendo como pano de fundoa
sua vida privada.Outro dado é que apenas 30% dos entrevistados declararam ter sido alvo
de comportamentos intimidatórios, enquanto 90% disseram nunca ter sofrido agressões
físicas. 40% afirmaram que tiveram sua presença física impedida, e mesmo sendo um
percentual razoável não há como garantir que referida questão não tenha sido
interpretada, pelos entrevistados, como extensão daquela relativa ao isolamento, posto
que uma das formas de isolar é, justamente, impedir a presença física de alguém em um
determinado ambiente.
A pesquisa constatou que 65% dos agentes entrevistados disseram que foram
ameaçados verbalmente, enquanto 55% afirmaram ter sido aterrorizados pelo telefone.
Já 65% receberam gritos ou insultos e 50% foram ridicularizados em público. Por fim,
60% dos agentes ouviram falar mal de si em público.
Com base nos dados em relação dos motivos que levaram os colegas a não
denunciar os abusos sofridos pelos agentes penitenciários do RN, demonstra que para
10% dos entrevistados é o receio de se tornarem, os colegas do assediado, também
vítimas de perseguição que os impede de denunciar o agressor. Para 15%, outros seriam
os motivos para essa postura de omissão, mas 100% dos respondentes simplesmente
silenciaram quanto a estes supostos motivos.Enquanto 70% dos entrevistados
disseramter ficado desmotivados para o trabalho, 65% declararam que deixaram de ter
confiança nos responsáveis pela organização. 70% dos agentes tornaram-se desconfiados
(as). Por fim, 60% dos entrevistados disseram que aumentaram a ingestão do consumo
de álcool, enquanto 60% aumentaram o consumo de medicamentos para os nervos ou
depressão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
218
Segundo o relato dos entrevistados, os episódios de agressões por eles vivenciados
perduravam no tempo, o que serve, também, como parâmetro de classificação de
referidas condutas como eventos de assédio moral, pois as agressões pontuais ou
esporádicas não podem ser assim classificadas.
Em relação aos efeitos nocivos à saúde das agentes vítimas de assédio foram
relatados sintomas como insegurança, apatia, irritabilidade, problemas de
relacionamento, desmotivação para o trabalho, aumento na ingestão de álcool e de
medicamentos para nervos e depressão, dentre outros. Apesar de tais sintomas não serem
exclusivos deste tipo de situação, podendo ser causa ou consequência de diversas
patologias, considerados em conjunto com os demais fatores compilados (condutas dos
gestores e duração das agressões) corroboram a conclusão de que efetivamente existem
casos de assédio moral no sistema prisional do Estado do RN.
É preciso deixar claro, no entanto, que o assédio moral é algo bastante difícil de
caracterizar e comprovar. Depende, quase sempre, de prova testemunhal, e como vimos
nem sempre aquele que o presencia está disposto a testemunhar em favor do assediado,
pelas mais variadas razões.
Esta situação pode ser enfrentada exatamente pela disseminação de
conhecimentos, sendo este um dos objetivos do presente trabalho. É importante enfatizar
que quando se debate sobre um assunto passa-se a melhor conhecê-lo, desmistificando-
o, o que por certo contribui para a sua resolução. Neste sentido, a divulgação de
informações sobre o assédio moral a um só tempo ajuda a quem está vivenciando superar
tal situação, mas também funciona como prevenção, evitando episódios futuros.
Assim, a realização de palestras, a confecção e distribuição de cartilhas, a exposição
de cartazes e a utilização das mídias digitais, por exemplo, pode contribuir para
disseminar o conhecimento a respeito do que seja assédio moral, devendo tais estratégias
ser utilizadas para que todos os interessados possam apropriar-se do tema. Pode-se
inserir referido tópico, também, no treinamento dos agentes penitenciários, devendo ser
constantemente realizado. A apresentação de vídeos e a organização de exposições sobre
o assunto também podem ser boas estratégias de prevenção.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Y. S. Dano moral. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
219
DEJOURS, C. Psicodinâmica do trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
GLINA, D. M. R., Rocha, L. E. Saúde mental no trabalho. São Paulo: GEN, 2014.
220
“ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL”: OS EFEITOS DO PATRIARCADO NO
SISTEMA PRISIONAL FEMININO BRASILEIRO
2 MULHER NO CÁRCERE
Na América Latina, por sua vez, as Casas de Correção, como eram chamadas,
foram agrupadas ao sistema jurídico no final do século XIX. Pertenciam à igreja, e os
conventos se encarregavam de amparar mulheres classificadas como criminosas para
resgatar o pudor a partir do auxílio religioso.
No Brasil, por conseguinte, a primeira prisão exclusiva para mulheres também foi
fundada pela igreja católica e, conforme Queiroz (2015), agrupava criminosas,
prostitutas e desajustadas sociais – consideradas como sendo aquelas que não se
casaram ou fugiram de esposos violentos. Dessa maneira, a origem das prisões femininas
no país teve uma concepção moral, tendo como expectativa que a mulher se adequasse à
sociedade, domesticando-as em conformidade com os critérios da moral e dos bons
costumes. Aprendia-se a costurar, cozinhar e reprimir a própria sexualidade para que se
convertessem em freiras ou em donas de casa obedientes.
Diante dessa configuração, a mulher foi historicamente construída como dócil,
pura e subjugada. Quando ela se configura como criminosa, passa a ser indócil e,
portanto, rejeitada. Não obstante, o homem criminoso enfrenta diversos estigmas como
consequência de seu delito, mas não em decorrência de seu gênero, na medida em que
estão inclusos em um grupo em que se aceita ou ao menos se espera a ocorrência de
alguma espécie de desvio.
O crime cometido por uma mulher representa mais do que a violação da lei penal
ou do dano provocado, pois se trata de uma verdadeira ofensa às normas morais e sociais
de gênero enraizadas durante toda a história, baseadas em estereótipos do feminino.
Logo, conforme Pimentel (2016), o cárcere tem uma dupla função: tanto punir pelo
desrespeito à legislação, quanto devolver essas mulheres para seus lugares de
silenciamento e submissão. O sistema penal, portanto, reproduz a cultura patriarcal da
organização social.
Para a mulher, ser marginal nunca será uma arte, será sempre uma
desonra. O próprio malandro vai recriminá-la por estar presa, largando
os filhos a sua própria sorte. Ele, o homem, pode. Seja malandro,
operário, estudante, o homem sempre pode afastar-se dos filhos se
assim o exigir sua ocupação. A mulher nunca. Essa exigência que
conflitua todas as mulheres, atinge mais ainda aquelas que não podem
orgulhar-se de seu meio de vida, mesmo que o façam para sustento dos
filhos. (LEMGRUBER, 1999, p. 86).
225
Além das consequências psicológicas negativas que o abandono traz para a
apenada, outro efeito é a quebra de acesso aos meios jurídicos que possibilitam o
progresso de seus processos, visto que na condição de encarceramento e abandonadas
pela família, elas não têm como contar com uma prestação jurisdicional efetiva.
A carência de recursos da família também se caracteriza como uma causa
importante, porque algumas mulheres são afastadas de suas cidades de origem devido
ao menor número de estabelecimentos prisionais femininos, o que dificulta ou até
impossibilita as visitas. Além disso, em virtude desse pequeno número, também acontece
de muitas mulheres ficarem detidas em cadeias públicas.
Algumas poucas mulheres no cárcere podem contar com a ajuda da família para
proporcioná-las os itens e produtos necessários para uma vida digna, porém, isso
prejudica a renda familiar, já que a maioria das apenadas tem poucas condições
materiais, além de fomentar o comércio ilegal dentro dessas instituições, promovendo
controle e poder a quem recebe esses itens. No entanto, as mulheres que sofrem o
abandono familiar pela falta de visitas, além da falta de suporte emocional, ficam sem
suporte material.
De acordo com o art. 3º da Lei de Execução Penal, “ao condenado e ao internado
serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Logo, o
apenado tem sua liberdade restrita, mas mantem os demais direitos salvaguardados pela
Constituição Federal e pelos tratados internacionais os quais o Brasil é signatário. Dentre
estes, é garantido o afastamento da tortura no tratamento dos presos, protegendo tanto
a integridade física quanto a psíquica como forma de conservação da dignidade humana.
Porém, a forma de lidar com esse assunto no encarceramento feminino é questionável.
226
caracteriza, ainda, como uma questão invisível.
Destarte, a visita íntima, direito constitucional, é comum nos estabelecimentos
prisionais masculinos, porém, nos femininos traz consigo uma concepção de “privilégio”,
isto é, a sexualidade da mulher é vista como uma regalia. Conforme Vingert (2015), os
responsáveis pela organização dessa visita, por influência direta da cultura machista,
não compreendem como um direito da apenada, mas como uma regalia concedida por
merecimento ou por intermédio de uma vasta luta burocrática.
Deste modo, “o presídio é uma máquina de abandono para a qual os sentidos da
violência são múltiplos” (DINIZ, 2015, p. 210). No encarceramento feminino essa
violência atinge sua concretude de múltiplas formas, tais como: mulheres que já foram
sujeitas a dar à luz com algemas, estabelecimentos prisionais sem a disponibilização de
creches, privadas trocadas por buracos no chão, dentre outros aspectos já mencionados.
Isso contrasta diretamente às Regras de Bangkok, que buscam atestar que os direitos e
as necessidades das mulheres encarceradas sejam respeitados desde a entrada destas no
sistema.
Em suma, faz-se necessária a compreensão de que a força da cultura patriarcal no
sistema prisional feminino se opõe às normas constitucionais e penais que visam a
proteção da dignidade humana dos indivíduos que passam pelo encarceramento.
227
Figura 1 – Raça, cor ou etnia das mulheres privadas de liberdade
229
Figura 4 – Estado civil das mulheres privadas de liberdade no Brasil
A adesão à política de guerra às drogas teve influência direta dos Estados Unidos.
Consoante Germano, Monteiro e Liberato (2018), esse processo denota a construção de
uma política pautada no proibicionismo internacional das drogas, tendo por finalidade a
supressão do tráfico a partir da tradição punitivista. Esse sistema vem ditando a postura
dos países latino-americanos em lidar com a questão das drogas, o que resultou no
crescimento significativo da quantidade de mulheres e homens encarcerados.
Dessa forma, a Lei de Drogas nº 11.343/2006 é considerada como um elemento
importante acerca das razões que resultaram o aumento do encarceramento feminino no
país. Essa lei, por sua vez, visava salvaguardar a saúde pública e objetivava endurecer as
penas para o traficante, enquanto despenalizava o usuário.
Não obstante, a referida norma penal não estabeleceu de maneira concreta a
diferenciação entre o traficante e o usuário, deixando livre para o julgamento subjetivo
da pessoa que age no ato da abordagem e para quem age no julgamento legal posterior.
Conforme seu art. 28, §2º: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal,
o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como
à conduta e aos antecedentes do agente”. Assim,
231
pobres e jovens enquanto traficantes, como já apontam as estatísticas.
(GERMANO; MONTEIRO; LIBERATO, 2018, p. 36).
232
de outras formas (formal ou informalmente), ou até para conseguir ficar mais no lar
acompanhando a criação dos filhos, exercendo uma função social mais tradicional.
Outrossim, o Habeas Corpus 143.641 do Supremo Tribunal Federal entendeu como
regra a substituição da prisão preventiva pela domiciliar quando a encarcerada é gestante,
puérpera, mãe de criança com até 12 anos incompletos ou é mãe de deficiente. Não havia
uma manifestação do Supremo sobre a prisão domiciliar nos casos em que a apenada
respondia por tráfico de drogas, e os tribunais aproveitavam para indeferir por se tratar
de uma excepcionalidade. Contudo, o STF se pronunciou declarando que o fato de a
mulher ter realizado o tráfico em sua residência, ou ter levado drogas para a instituição
prisional, não se caracterizam como impedimentos para a concessão da prisão domiciliar,
não sendo qualificados como situações excepcionais.
A política de guerra às drogas, na verdade, não diminui o tráfico e tampouco a
criminalidade feminina. Só provoca ainda mais violência e exclusão. Logo, faz-se
importante que o Estado reflita e reconsidere suas políticas criminais de forma a
abrandar o avanço da quantidade de encarceradas ligadas ao tráfico de drogas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
234
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal
para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
235
127-8.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.
DINIZ, D. Cadeia: Relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
International Centre for Prison Studies – ICPS. (2017). World Female Imprisonment
List (4a ed.). London: WPB. Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/about-
wpb>. Acesso em 12 out. 2019.
236
IRELAND, T. D.; LUCENA, H. H. R. de. Educação e Trabalho em um Centro de
Reeducação Feminina: um estudo de caso. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v36n98/1678-7110-ccedes-36-98-
00061.pdf>. Acesso em: 13 out. 2019.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam: a brutal vida das mulheres – tratadas
como homens – nas prisões brasileiras. 1. ed. São Paulo: Record, 2015.
237
ENTRE A PRISÃO E A ESCOLA: EDUCAÇÃO, CULTURA ESCOLAR E ENSINO EM
ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
1 INTRODUÇÃO
239
a discussão em torno de como o passado é relatado, nomeado, imaginado,
apresentado. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 226)
[...] a escola é uma dos mais exemplares, entre outros motivos por ser
destinada a produção de conhecimento, a produção de subjetividades, a
produção de sujeitos, á construção e vinculação de identidades, á
definição de lugares de sujeito. A escola é uma das instituições sociais
modernas que continua existindo entre nós, nesses tempos de crise da
modernidade. Instituição que ainda goza entre todas as instituições que
a modernidade fez emergir, entre todas aquelas que a sociedade de
prestigio social, se comparada com outras instituições modernas
(ALBUQUERQUE JÚNIOR , 2019. p. 234).
O acesso à educação não pode ser tratado como uma regalia, pois é um direito
garantido pela Constituição Federal. Os índices relacionados à educação nos espaços de
privação de liberdade são alarmantes, não apenas pelo Brasil ser o 26º em uma lista de
226 países que mais encarcera pessoas, segundo pesquisa realizada pelo Portal de
notícias G1e que teve como fonte o banco de dados da “World Prison Bbrief” da
Universidade de Londres. A reportagem foi veiculada no dia 24 de abril de 2019.
De acordo com a reportagem, o país tinha até aquele momento 704.395 presos, o
equivalente a 335 encarcerados a cada 100 mil habitantes. Com relação aos estados
brasileiros, a Paraíba figura na 16ª posição com 299 presos para cada 100 mil habitantes. Se
for levado em conta apenas o número bruto, o país figura na 3º posição que mais
encarcera pessoas, mas por termos grandes índices de presos provisórios, ou seja, acaba
sendo uma teia, não apenas um déficit ou um problema encontrado em uma única
instituição, mas em várias como na Polícia Militar que faz a segurança ostensiva e levam
as delegacias inúmeros casos de prisões em flagrante, em seguida a Polícia Civil que
enquadra esses casos e encaminham a audiência de custódia, e, por fim, o judiciário em
inúmeros casos que tem a chance de aplicar medidas cautelares diversas da prisão, mas,
preferem manter os ainda acusados acautelados de forma provisória, por anos.
Dessa forma, muitas dessa pessoa que não tem condições de arcar com honorários
advocatícios acabam dependendo sofrendo mais uma vez por depender de outra
instituição, neste caso a Defensoria Pública, que devido à demanda, infelizmente, não
consegue atender a todos de forma igualitária e em um tempo razoável. Com isso, a
população carcerária é esquecida, há muitos presos com direito a progressão de pena, mas
diante dessa grande teia apresentada anteriormente, aguarda contando com a sorte que
um dia possa ser lembrado para desfrutar de um direito assegurado pela legislação.
Enquanto isso não acontece, estes definham, gradativamente, dia após dia, como se
sofressem uma morte em vida, tendo seus direitos mais sublimes sendo negados e,
consequentemente, violados.
240
Os índices de analfabetismo entre a população carcerária são alarmantes.
Segundo os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN),
dos mais de 700 mil presos em todo o país, 3,45% são analfabetos, 51,35% não chegaram
a concluir o ensino fundamental e 14,98% não concluíram o ensino médio, 13,1%
possuem o ensino fundamental Não chega a 0,05% os que possuem um diploma do ensino
superior. Apesar do perfil marcado pela baixa escolaridade, diretamente associada à
exclusão social, nem 13% deles têm acesso a atividades educativas nas prisões. A
impressão que fica é que esses sujeitos nunca foram socializados ou enquadrados na
sociedade, e sim preparados para o crime.
Encontramos em nosso ordenamento Jurídico, a legislação necessária para que
seja inserida a educação, nos sistemas prisionais, porém estamos caminhando a passos
lentos, afinal a quem interessa que os sujeitos conhecidos como “criminosos” tenham
consciência ou até mesmo opinião crítica, política e social formada?
A Constituição Federal assegura o direito à educação estendendo a todas as
pessoas, como sendo um direito consagrado, direito universal e norteado pelos princípios
da igualdade de direitos, em seu Art. 205 assegura que:
241
tecnologias de ensino, o atendimento aos presos e às presas. 7.627
(Incluído pela Lei nº 13.163, de 2015).
242
Encontramos também como legislação adequada a Resolução de nº 2, de 19 de
maio de 2010, criada pelo Conselho Nacional de Educação, que dispõe sobre as Diretrizes
Nacionais para a oferta de Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de
liberdade nos estabelecimentos Penais. Em seus Artigos 1º e 3º, estabelece que:
243
VIII - Será organizada de modo a atender às peculiaridades de tempo,
espaço e rotatividade da população carcerária levando em consideração
a flexibilidade prevista no art. 23 da Lei nº 9.394/96 (LDB).
3 ADEQUAÇÃO DE PROFISSIONAIS/PROFESSORES
244
É notório que a educação passa por uma crise como menciona Albuquerque Júnior
(2019). De acordo com o autor, a educação está em crise, desde de a sua criação e nunca
se imaginou que a instituição escola entraria em crise em algum momento, porém não foi
o que aconteceu e, consequentemente, todos os sujeitos que dela participam sofrem, os
alunos por não terem uma educação adequada e de qualidade, os profissionais da
educação “professores” por não terem o reconhecimento adequado de seu trabalho não
apenas com relação ao piso salarial, mas a contexto assustador, inclusive com relação a
segurança a segurança e, por fim, toda uma sociedade que deveria ser baseada na
educação, de acordo com a própria legislação.
Em entrevista ao Portal de notícias Justificando, o professor do Departamento de
Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da USP e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da USP, Roberto da Silva afirmou que é
necessário apressar, dentro da carreira do magistério, a criação de uma especialidade
para esses professores, assim como há professores de libras, de educação especial.
Segundo ele, esses profissionais “devem receber uma formação específica, e abrir concursos
para eles. Essa é à maneira de efetivação, valorização e também pensar a médio e longo prazo a
formação específica que eles precisam”. Para Roberto da Silva, “a educação do preso é um
direito. Não tem mais o que se discutir sobre isso. No entanto, é tratada como um
privilégio, por meio de projetos, e não como parte de uma política púbica de educação”.
Em consequência disso, as instituições como os presídios que diferente da
instituição escola, desde o seu surgimento já se discutia que era preciso, reformas e
melhorias, sendo um lugar onde seriam socializados os sujeitos e não apenas, jogados,
esquecidos, invisíveis, em ambientes degradantes, onde correm risco de morte
diariamente.
O profissional da educação que se adeque a esses ambientes, com a necessidade de
devolver a esses sujeitos a dignidade humana, que consiga fazer com que os mesmos
construam uma bagagem cultural diariamente, mesmo que acautelados, que possam ser
responsáveis por construir socialmente esses ambientes.
245
de um novo sentido, sua desterritorialização, a fim de transformar-se em
outra coisa (SILVEIRA, ET FERREIRA, 2013, p.245).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instituição escola ao ser pensada e criada pelos Jesuítas no século XIX, a princípio
para escolarizar os índios, ou melhor, descentralizar a cultura original dos mesmos e
instituir uma nova, no afã de fazer com que os indígenas se socializassem com os
portugueses recém-chegados ao País, mas logo depois no intuito de permitir que apenas
os burgueses ou os detentores do poderio econômico tivessem o acesso devido à
educação. Vale ressaltar que esta não era a mesma aplicada aos índios, sendo, portanto,
uma educação voltada a burguesia.
Após muita luta na tentativa de inclusão social e da publicação de inúmeras
legislações assim como a Constituição de 1988, onde a educação é um direito de todos.
Desta feita, sendo, portanto, obrigatório acesso igualitário a todos, independente de raça
cor ou religião. Mesmo com leis que incentivam o investimento das políticas públicas em
lugares de sequestro como é o caso dos presídios, legislação que já foi publicada há certo
tempo, ainda é possível encontrar instituições que não asseguram esse direito a seus
reeducandos. Os motivos para o não cumprimento do que determina a lei são os mais
variados e simplistas possíveis: falta de espaço, carência de profissionais qualificados,
insuficiência de escassez de agentes penitenciários que garantam a segurança dos presos
ou dos profissionais que ali se encontram.
Percebe-se que o que ocorre na realidade é um grande e total descaso com os
“inservíveis” da sociedade e reféns do cárcere. Para que dar voz a esses sujeitos? É melhor
que permaneçam esquecidos, ignorados, invisíveis, apesar de se tratar de um problema
político, social e cultural. Por isso, a melhor solução fazer com que permaneçam sem voz.
O que encontramos são estabelecimentos prisionais com superlotação e um
sistema à beira de um colapso, que volta e meia tem que enfrentar rebeliões violentas em
forma de protesto, colocando a vida de todos que integram o sistema penitenciário em
risco. Muitas vezes o resultado dessas rebeliões é o silêncio eterno de vozes que não
tiveram a oportunidade de mudar o tom do discurso através da educação. São de
inúmeros pais e mães de famílias órfãs de seus filhos vivendo o reverso da história. A
impressão que se tem é que é muito mais fácil silenciar a educar ou devolver a esses
indivíduos sua dignidade que fora perdida, desviada ou terá sido negada e sufocada por
um sistema falido e sem perspectiva de mudança por falta de vontade política.
As verdades encontradas e apresentadas extramuros do sistema penitenciário são
o que acaba levando esses indivíduos a voltar a delinquir. Quando se suscita que é
246
necessário socializar, dentro do sistema, enquanto estão acautelados pelo estado, para
que sejam (re)inseridos na sociedade, após o cumprimento de suas penas.
Inúmeros filósofos, historiadores, educadores afirmam que a educação é
libertadora da alma e da vida. Mas, para tal é necessário o acolhimento devido não apenas
para aqueles que estão encarcerados, mas a todos que buscam através da educação uma
vida digna. O que não faltam são exemplos do poder que a educação tem em transformar
vidas. Basta que cada um, realmente, cumpra em seu papel e não desacredite no ser
humano garantindo-lhe o acesso ao que é seu por direito.
REFERÊNCIAS
ALBURQUERQUE JÚNIOR , Durval Muniz de. O tecelão dos tempos novos ensaios de
teoria da História, São Paulo: Intermeios, 2019.
SARAIVA, Karla; LOPES, Maura Corcini. Educação, inclusão e reclusão. Currículo sem
fronteiras, v. 11, n. 1, p. 14-33, 2011.
247
SHICHOR, David. The corporate context of private prisons. Crime, Law and Social
Change, v. 20, n. 2, p. 113-138, 1993.
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre,
ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45.
248
A “QUESTÃO SOCIAL” E AS INFLEXÕES DO NEOLIBERALISMO NAS POLÍTICAS
SOCIAIS NO BRASIL: UM RECORTE ANALÍTICO A PARTIR DO ENCARCERAMENTO
FEMININO
Camila Luana Teixeira Freire
Bernadete de Lourdes Figueiredo de Almeida
1 INTRODUÇÃO
249
Estado. Desde os primórdios, as prisões confinam pobres, excluídos e desempregados em
sua maioria.
Na contemporaneidade, as relações sociais antagônicas agudizam as expressões da
“questão social”, criminalizando as classes subalternas. Produto das relações de
dominação e exploração entre as classes no capitalismo, a “questão social”, é
criminalizada e naturalizada como condição das classes mais baixas que são excluídas dos
processos de modernização da produção.
Este artigo tem o objetivo de tecer uma breve análise das políticas sociais no
sistema capitalista, especialmente, no contexto neoliberal, discutindo a criminalização da
“questão social” com recorte analítico do encarceramento feminino. Por meio de uma
revisão bibliográfica de autores que discutem a questão em tela, adota-se a perspectiva
crítica marxista, apreendendo a “questão social” e as políticas sociais na sua condição
histórica, na sua relação dinâmica com a totalidade.
Nesse sentido a estrutura do trabalho está pautada nos seguintes aspectos: é
imprescindível uma discussão acerca do papel do Estado - e as inflexões neoliberais-, o
qual tenta administrar as expressões da “questão social” por meio de políticas sociais;
para o entendimento da “questão social” no Brasil mostra-se necessário estabelecer os
fundamentos econômico-sociais do seu surgimento e de sua explicitação a partir do
desenvolvimento capitalista em seu processo de acumulação e expansão; e faz-se
necessário também uma análise acerca do encarceramento feminino como parte das
estratégias de criminalização da pobreza do Estado para responder às necessidades
provenientes da relação antagônica entre capital e trabalho.
As políticas sociais resultam das relações antagônicas entre capital e trabalho. Para
que se possa compreender as políticas sociais em sua totalidade faz-se mister a análise
das determinações históricas e econômicas do desenvolvimento do capitalismo,
corroborando com Behring e Boschetti (2011, p.39) que afirmam que as políticas sociais
“[...] devem ser situados como expressão contraditória da realidade, que é a unidade
dialética do fenômeno e da essência [...]”. Neste sentido, as políticas sociais assumem
especificidades de acordo com o movimento histórico da sociedade e das inflexões do
ideário neoliberal.
As ideias do Welfare Stare ou Estado de Bem-Estar Social é proposta pela teoria de
John Maynard Keynes em países da Europa e nos Estados Unidos da América que tinha
como princípio de ação o pleno emprego e a menor desigualdade social entre os cidadãos.
Conforme Behring e Boschetti (2011), o keynesianismo é erigido pela concepção de que
os governos são responsáveis pela garantia de um mínimo padrão de vida para todos os
cidadãos, como direito social. É baseado no mercado, contudo com ampla interferência do
Estado que deve regular a economia de mercado de modo a assegurar o pleno emprego, a
criação de serviços sociais.
Em tal realidade, ampliaram-se as funções econômicas e sociais do Estado que
passou a controlar parcialmente a produção e a assumir despesas sociais. Essas
transformações do Estado foram de acordo com a força do movimento trabalhista e
ocorreram nos chamados países desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos.
250
de vida das massas no capitalismo central, e um alto grau de
internacionalização do capital, sob o comando da economia norte-
americana (BEHRING E BOSCHETTI, 2011, p. 88).
O período conhecido como a Era de Ouro, que vai do pós II Guerra (1947) até a
crise mundial da década de 70, representa, segundo Hobsbawm (2003, p. 15), “anos de
extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente
mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período”.
Esse período representa claramente a defensiva do capital ao trabalho, pois permitia ao
trabalhador certos benefícios, como: o poder de consumo, uma vez que se tinha no
período fordista a produção em massa para consumo de massa.
Assim, tornou-se possível a produção de excedentes e desenvolvimento econômico
para sistema através da ocultação das bases de um trabalho repetitivo, rígido e
extremamente cansativo por meio do consumo dos trabalhadores. Em síntese, existiam
medidas que de modo limitado reconheciam as demandas da classe trabalhadora e
proporcionavam na mesma medida às taxas de lucros para o crescimento econômico do
capital.
Entretanto, a Era de Ouro não permaneceu mais que três décadas, pois, aos finais
da década de 1970 foi demonstrando sinais de seu enfraquecimento. Conforme Piana
(2009, p. 32), “a crise fiscal do Estado de Bem-Estar e a estagnação da economia ganham
forças e os argumentos neoliberais recuperando as ideias liberais propõem a mínima
regulamentação do mercado e a ampla liberdade econômica dos agentes produtivos”. O
motivo do esgotamento, segundo o discurso neoliberal, eram os altos investimentos na
esfera social, havia um “excesso de paternalismo do Welfare Stare” (BEHRING E
BOSCHETTI, 2011, p. 91), bem como, o enfraquecimento do modo de produção.
Diante deste quadro de crise estrutural o capitalismo engendrar estratégias que o
permitam uma reação, assim foram adotadas medidas como a financeirização, a
reestruturação produtiva e a ideologia neoliberal. Com o avanço das ideias neoliberais,
ganha espaço o discurso de êxito do capitalismo. Tem-se uma realidade ideológica em
defesa dos interesses do capital, favorecendo grupos monopolizados, em detrimento dos
trabalhadores, realidade essa, velada por um discurso de direitos individuais, tem-se a
naturalização da desigualdade social, a busca pela eficiência e competitividade no mundo
da globalização.
Esta reestruturação teve sua intensificação a partir da década de 80, nos EUA e na
Europa, no interior do padrão produtivo taylorista/fordista, sendo este substituído ou
mesclado com novos processos tecnológicos que contribuíram para adequação da
produção e dinamização do processo produtivo. Tudo isto contribuiu para a
desconcentração industrial e a racionalização dos custos do processo produtivo,
ocasionando a diminuição da quantidade de funcionários em diversos setores.
Junto à restauração produtiva adota-se o projeto neoliberal, o qual propõe a
construção de um Estado que não possua intervenção na economia, que incentive o
investimento privado em contrapartida privatizando as empresas públicas e cortando ou
reduzindo os gastos sociais. Essas novas reformas estatais se basearam nas estratégias de
buscar superlucros mediante a privatização de setores públicos do Estado, podendo
identificar dessa maneira a regressão aos direitos sociais anteriormente adquiridos.
No contexto neoliberal, a política social sofreu um sucateamento que dificulta o
acesso aos direitos sociais, uma vez que em tempos de capital financeiro os
desdobramentos das políticas provocam a desmobilização da luta coletiva e da
251
consciência de classe. Tal investida pode ser percebida mais claramente no Brasil a partir
dos anos 90, como será tratado a seguir.
29Netto (2001) destaca o discurso conservador que se instalou na expressão “questão social”, a partir da
segunda metade do século XIX, convertendo-a em objeto de ação moralizadora e mistificando a sua real
existência enquanto expressão da luta de classe. Nesse sentido, o uso das aspas passou a ser usado pelos
que a entendem enquanto contradição social inerente ao modo de produção capitalista.
253
os institutos de aposentadorias e pensões e da Consolidação das Leis Trabalhista, em
1943. Timidamente, emergem tentativas de introdução do Estado de Bem Estar Social,
seguindo o modelo adotado na Europa Ocidental. Contudo, seu caráter corporativo e
fragmentado se difere da perspectiva de universalização adotada pelo modelo
beveridgiano (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).
Nas décadas de 1950 e 1960, o país entra em um momento de consolidação das
aspirações da burguesia industrial com objetivo de fazer com que a economia nacional
saísse de séculos de agroexportação para ingressar em uma industrialização substitutiva
de importações. As atividades produtivas vão se subordinar cada vez mais aos
movimentos do capital externo e forma-se uma aliança entre o grande capital financeiro
nacional e estrangeiro, capitaneado pelo apoio financeiro e político do Estado.
Em 1964, o país vivencia o período de ditadura militar. De acordo com Behring e
Boschetti (2011), o golpe instaurou um sistema ditatorial que permaneceu por 21 anos,
impulsionando o país para um novo momento da modernização conservadora. A “questão
social” foi incorporada ao regime autocrático como ação estratégica de manutenção da
estabilidade política e social do país, as lutas sociais silenciadas e consideradas ilegais.
Não fazia parte da agenda do Estado o reconhecimento dos direitos sociais.
Somente com o esgarçamento do modelo político e autoritário na década de 1980
é que os movimentos sociais reconquistam as lutas sociais e as reivindicações voltam à
arena brasileira. A mais importante conquista desse período de transição democrática é a
Constituição Federal de 1988, que garantiu os direitos sociais e conferiu o caráter político
à “questão social”.
Os anos de 1990 são apontados pelas investidas do neoliberalismo no papel do
Estado brasileiro. As inflexões do capital leva a mais uma crise econômica e política,
provocando mudanças em toda a sociedade, especialmente no mundo do trabalho. Acerca
desse período, Behring (2008, p.133) abaliza: “A partir dos anos 1990, o Brasil adentrou
num período marcado por uma nova ofensiva burguesa, mais uma vez adaptando-se às
requisições do capitalismo mundial”.
A crise do capital, gerada pela queda das taxas de lucros, impulsionada pela crise
do petróleo, afora o avanço no desenvolvimento informacional, a mundialização do capital
e as mudanças no processo produtivo fordista/taylorista determinam várias
consequências, dentre elas: a flexibilização no processo do trabalho que acarreta a
horizontalização e a terceirização do processo produtivo, junto com a qualidade total e os
círculos de controle de qualidade, o trabalho precarizado e desregulamentado, mão de
obra polivalente e o desemprego estrutural, tornando-se mais acentuado o embate da
classe que explora e a classe explorada.
Segundo Netto (2007) a crise do fordismo/keynesianismo é a expressão da curva
decrescente da eficácia socioeconômica da ordem do capital, evidenciando que a dinâmica
do capitalismo chegou, naquele momento, a um nível no qual a sua reprodução tende a
requisitar, progressivamente, a eliminação das garantias sociais e dos controles mínimos
a que o capital fora obrigado no arranjo fordista. Neste sentido,
Enfatiza-se neste trabalho, a “questão social” como uma categoria que busca
analisar a existência das contradições entre as classes sociais, produzidas e reproduzidas
na dialética relação entre capital e trabalho. A criminalização da classe trabalhadora e
pauperizada tem sido estratégia adotada pelo Estado para compensar à ausência de ações
sociais que combatam de forma efetiva a violência estrutural que toma conta da cena
contemporânea na sociedade brasileira- mais especificamente.
A ordem burguesa no Brasil é profundamente marcada pelo emprego do aparato
jurídico, policial e militar no que se refere à intervenção nos conflitos sociais. O
desenvolvimento do modo de produção capitalista traz consigo diversos mecanismos e
instrumentos de ordenação e normatização da vida que tentam se apresentar como meios
capazes de solucionar os conflitos sociais.
É nesse atual cenário de contradições que cresce o número de pessoas
encarceradas, mais especificamente de mulheres presas. Dessa forma, as características
basilares da formação cultural, socioeconômica e política do país estão relacionadas às
especificidades do tipo de controle social, compreendendo a prisão como uma estratégia
funcional aos interesses do capital.
Apesar das prisões terem sido criadas antes do marco histórico de reconhecimento
das problemáticas sociais, enquanto “questão social”, as suas finalidades eram, e ainda
são, destinadas para os indivíduos considerados como “disfuncionais”, trata-se do “[...]
combate à pobreza mediante a ‘criminalização da pobreza’” (SIQUEIRA, 2014, p. 242).
Pode-se destacar a exclusão social vivenciada por estes indivíduos, em que no Brasil na
255
da década de 1980, o país tenha passado a reconhecer o conceito da cidadania, como
igualdade para todos, o que observamos a realidade é o aumento desenfreado da
exploração e dominação econômica e de exclusão das políticas sociais.
O encarceramento, como meio de prevenção e/ou solução dos problemas, não
pode ser a única alternativa para o enfrentamento de suas causas. A prisão não pode ser
a solução para a exclusão social e o aprofundamento crescente das desigualdades sociais.
Assim com em outros países, no Brasil a população prisional tem aumentando em
números alarmantes. O país conta atualmente com uma população prisional de 726.712
pessoas presas em junho de 2016, conforme o Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (Infopen). Desse total, 5,8% é composto por mulheres. O encarceramento
em massa, para Wacquant (2001) busca reprimir a anomalia causada pela
desregulametação da economia, pelo empobrecimento do proletariado e o aumento da
intervenção via repressão policial.
Um ponto marcante da questão prisional no século XX foi o crescimento
desenfreado da população carcerária em todo o mundo. Esse fato guarda relação com a
reprodução da “questão social”, vivenciada pelas classes pobres e vulneráveis,
principalmente nos países periféricos. As políticas sociais e econômicas de cunho
neoliberal vêm promovendo o desemprego e subemprego em massa, em detrimento da
desresponsabilização do Estado na proteção social. Este vem sendo o cenário que
configura o tratamento punitivo “Estado-penitência” em detrimento ao “Estado-
providência”, como bem indica Wacquant (2001).
As prisões brasileiras são instituições detentoras e reprodutoras da exclusão social
e são, em sua imensa maioria, insalubres, superlotadas e negligenciadas por parte dos
governantes, produto de um sistema social e econômico profundamente excludente,
sendo sua principal clientela pessoas de classe social baixa, jovens, negras,
semialfabetizadas, desempregadas, desqualificadas para as exigências do mercado de
trabalho.
Nessa lógica, Wacquant (2001, p. 7) aponta para “[...] o estado apavorante das
prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com
empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais”. A criminalização da
“questão social” tem demonstrado que no Brasil os investimentos públicos têm se
concentrado apenas na construção, ampliação e reformas dos presídios, destituídos de
uma política social para a área, no âmbito nacional. Soma-se a isso, a inoperância do
Estado na administração dos presídios do Brasil, que faz crescer a ideia de privatização
das prisões como uma possível saída da crise.
Quando se trata do encarceramento feminino, muitos se surpreendem com os altos
índices de encarceramento, bem como com as múltiplas violações de direitos. Com base
no Infopen Mulheres 2018, a população prisional feminina no país é de 42.355 mulheres
presas. O Brasil ocupa a quarta colocação30 no rancking mundial, ficando atrás dos
Estados Unidos (211.870), China (107.131) e Rússia (48.478).
Deve-se considerar os determinantes sociais como uma porta de entrada para se
compreender a relação das mulheres com a criminalidade. Conforme salienta Salmasso
(2004, p.18), é necessário estar atento às múltiplas determinações que contribuem para
inserção da mulher na criminalidade, “[...] em qual meio social essas mulheres estão
30Essa colocação se refere ao tamanho absoluto da população prisional feminina. Com relação à taxa de
aprisionamento, que indica o número de mulheres presas para cada grupo de 100 mil mulheres, o Brasil,
com 40,6, ocupa a terceira posição entre os países que mais encarceram mulheres, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos (65,7) e Tailândia (60,7).
256
inseridas (área de trabalho, ambiente doméstico) e, num segundo plano, relevar as
condições biológicas e psicológicas [...]”.
Apesar de os determinantes sociais serem fatores basilares para análise do
fenômeno do encarceramento feminino, o envolvimento afetivo, emocional e a
dependência psicológica em relação ao parceiro também são fatores relevantes para a
compreensão. Muitas mulheres condicionadas pela herança patriarcal, ainda presente
nas relações familiares e na sociedade em geral, acreditam que devem obedecer e serem
fiéis à vontade dos seus companheiros. Comportamentos que podes ser observados no
fato de muitas mulheres serem presas quando tentam entrar nos presídios masculinos
portando drogas ou por esconder a droga com intuito de proteger seus companheiros.
A pobreza não é sinônimo de criminalidade, mas pode-se afiançar o seu estreito
relacionamento com as questões advindas de suas consequências. O desemprego
estrutural e a extrema concentração de renda tem sido responsável pelo aumento da
violência. Zaluar (2004) atenta para a importância dessa discussão, no intuito de
problematizar as causas da criminalidade, não associando apenas à pobreza, mas
compreendendo em seus múltiplos determinantes.
Devido à crise da força de trabalho assalariada e do aumento da superpopulação
relativa, ratificam-se os altos índices de trabalhos precarizados e temporários que se
configuram como alternativas à ausência de renda e estão inseridos no campo da
informalidade. São jovens e mulheres que estão no mercado de trabalho pela primeira vez
e encontram dificuldades para se integrar ao trabalho formal, assalariado, devido à baixa
qualificação e falta de oportunidades de emprego. Conforme Siqueira e Alves (2018, p. 20)
257
Para minimizara os impactos da condição de mulher presa e de seus familiares, a
legislação brasileira, por meio da Lei nº11.942/2009 prevê garantias, como por exemplo,
berçários e creches para que as mulheres possam cuidar de seus filhos de no máximo sete
anos de idades. Entretanto, observa-se que a maioria dos presídios femininos não tem
estrutura para o cumprimento da lei, deixando inúmeras crianças sem o convívio com as
mães, atenuando as violações de direitos humanos sofridas no interior do cárcere.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
258
população carcerária feminina nos presídios brasileiros, dado a rotatividade de pessoal
nesse tipo de atividade, por exemplo as mulas do tráfico.
Destarte, faz-se necessário destacar que o aumento de mulheres no sistema
prisional traz novas demandas ao Estado, apontando não só para a necessidade de
adaptação estrutural das unidades prisionais femininas, de forma que atendam as suas
especificidades, mais especialmente para a implementação de políticas que considerem
as demandas que essas mulheres apresentam.
É preciso intervir para que as mulheres não cheguem à realidade prisional, desta
feita, fazem-se necessárias políticas que deem subsídios para que os direitos humanos
sejam efetivados fora dos muros da prisão.
REFERÊNCIAS
NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. São Paulo: Cortez, 2007.
QUEIROZ, Nana. Presos que Menstruam: a brutal vida das mulheres tratadas como
homens nas prisões brasileiras. São Paulo: Record, 2015.
SIQUEIRA, Luana. ALVES, Glaucia Lelis. Pobreza e desigualdade social: uma breve
reflexão Brasil e América Latina. In: Revista Direitos, trabalho e política social,
Cuiabá, V. 4, n. 6, p. 11-36, Jan./jun. 2018
ZALUAR, Alba. Integração Perversa: Pobreza e Tráfico de Drogas. Rio de Janeiro: FGV,
2004.
260
ACHADOS EMPÍRICOS SOBRE A DISCIPLINA NO PRESÍDIO FEMININO DE SERGIPE
1 INTRODUÇÃO
É... a disciplina, na verdade algumas seguem, outras não. Acho que isso
é em qualquer sistema prisional. E as disciplinas elas são agregadas à
gente assim que a gente chega. Os guardas já passam pra gente o que
pode e o que não pode, como deve ser feito, como não deve ser feito. A
gente recebe a roupa da farda da cadeia e a guarda diz que a gente deve
seguir sempre com a cabeça baixa e as mãos para trás sempre que sair
de dentro do pavilhão. Em nome de... acho que respeito, às guardas, ou
para não esboçar alguma... nem sei como falar. E lá dentro também a
disciplina é exigida quando as guardas entram para fazer a chamada, a
gente deve estar sempre em fila, para fazer a chamada, tá sempre
formado, quando ela vai fazer a chamada, cada uma diz presente no seu
nome. E quando sai (do pavilhão) para vir aqui fora o trato também é a
mesma coisa, respeito com todos. E os castigos vêm quando a gente faz
264
coisa que não pode... Tipo brigar, agredir as guardas... nem com agressão
e nem verbalmente... coisas que não pode, não faz. Por exemplo, tem
coisas que não pode sair pra visita, tem que sair normal. A gente às vezes
faz algum artesanato, não pode sair com coisas na cabeça que fica de
castigo, né... com gritaria, com baderna também... de castigo. Desrespeito
também é castigado, e... essas coisas. Mas assim, o que mais dá castigo
na cadeia é briga lá de dentro. Punição mesmo quando alguém briga lá
dentro, quando alguém coloca alguma coisa para dentro que não pode,
é que vem as punições. A punição mais severa é quando alguém tenta
burlar o sistema e traz alguma coisa, né? Sempre tem aquelas mais
danadinhas que botam uma droguinha, botam alguma coisa pra dentro
e por isso elas pegam um castigo, um processo administrativo... é o
castigo mais severo. Os outros são mais leves, porque brigaram... a
senhora sabe né, que a maioria das brigas dentro do sistema prisional é
mais por relacionamento de mulher né? É tudo mais sobre
relacionamento ou não se suportam uma com a outra...alguma que é
linchada ou já veio da rua com problema de quadrilha... sempre tem
brigas e sempre são punidas com a tranca por isso.
Disciplina... é quando sair pra ir pra fora, quando for chamada, tem que
vir de cabeça baixa, mãos pra trás, se não vir, é punição. Tem alguns
plantões que não ligam, tem outros que já ligam, que tem que andar
assim, sempre na ordem. Obedecer, é, essas coisas são... (...) são essas,
essas ai, essas regras ai que tem que ser cumprida, se não for cumprida,
é punição. Assim, os castigos daqui, as disciplinas daqui é...respeita, nós
temos que se por no nosso lugar de presa, respeitar o lugar delas de
267
guarda. A gente não pode fazer bagunça, danificar e quando a gente tem
uma falta grave, nós vamos pro RD.
O tempo que uma custodiada pode ficar no isolamento varia, podendo chegar a
até dez dias. Embora no discurso oficial, bem como no procedimento legal, a tranca
aplicada diretamente por uma guarda seja para garantir averiguação da falta disciplinar,
nem sempre este é o uso que se faz dela na prática. Em geral, a tranca é utilizada também
como uma punição em si mesma, não apenas no período de apuração de faltas. Isto
ocorre porque muitas faltas não passam pelo processo formal de apuração estabelecido
pela lei, como será detalhado em tópico adiante. Nos casos que envolvem o isolamento
da interna na tranca, contudo, a detenta será sempre chamada ao Cartório para depor
sobre o que aconteceu, ainda que o procedimento legal completo não ocorra.
Deve-se fazer a ressalva que o uso da tranca não parece ser a primeira opção para
as guardas. Inicialmente, é feita uma tentativa de negociação oral, ou até mesmo uma
repreensão. Caso a/as interna/s não corresponda/am ao comando das guardas, então é
que será utilizada a tranca, segundo relatos de presas e Administração.
Apesar disso, não existe uma definição exata, dentro do ambiente prisional, sobre
quais são exatamente os eventos puníveis que podem levar uma pessoa para a tranca. As
respostas das internas variavam em muitos aspectos, mencionando desde o desrespeito
e a desobediência às guardas quanto brigas e agressões físicas a outras internas. Desta
forma, a incerteza é permanente, havendo margem para autoritarismos e abusos de
autoridade na aplicação desta que é a sanção mais grave no sistema prisional. Este
aspecto crítico está intrinsicamente ligado ao modo de aplicação das sanções no
PREFEM, detalhado a seguir.
No PREFEM, em geral, as sanções são aplicadas diretamente quando acontece
algum evento punível, nos termos acima descritos. Quando o evento punível que ocorreu
não apresenta muita gravidade, e a depender também de quem é a guarda que tomou as
providências do caso, a punição é diretamente aplicada e inscrita no livro de ocorrências
para depois ser fiscalizada pela equipe dirigente.
269
Na verdade, embora saiba-se quais são as condutas desejadas e aquelas
indesejadas, não é possível prever com segurança qual será a consequência ao
descumprimento de uma regra. A punição depende não só de quem a aplica, mas também
da opinião dessa pessoa em relação ao caso concreto. Ou seja, uma mesma atitude
indesejada pode receber punições diferentes, ainda que aplicadas por uma mesma
guarda.
Após a aplicação direta da sanção, há dois caminhos. Nos casos mais simples, o
processo se encerra na aplicação da sanção. Nos mais complexos, faz-se a lavratura de
um termo de ocorrência para apuração do fato, no qual se registra o depoimento da
interna sobre o assunto, que será juntado à pasta individual da presa. Esse registro do
ocorrido poderá ser enviado ao juiz de execução penal, sendo capaz de influenciar na
progressão do regime das presas condenadas. Esse relatório nos remete ao que Foucault
chama de exame.
O exame consolida o bom adestramento por meio da fusão da vigilância e da
sanção, “é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e
punir” (2014, p. 181). Consiste numa forma de exercício invisível do poder, que se
manifesta mediante laudos, investidos de suposta impessoalidade e imparcialidade.
Além disso, a força individualizante da disciplina se exerce no exame a partir da criação
de um sujeito individual a ser examinado, a ser conhecido em seus detalhes e
especificidades, a ser, então, inventado individualmente pelo exame – para cada pessoa,
um caso individual (FOUCAULT, 2014, p.187). O poder, através desses mecanismos,
produz a realidade de corpos submissos a ele, individuais e vigiados, controlados e
examinados (FOUCAULT, 2014, p.189).
Assim é que ambos recursos de adestramento mencionados por Foucault
(vigilância hierárquica e sanção normalizadora) são reconhecíveis na prisão, embora as
sanções normalizadoras não correspondam a um ordenamento positivado ou previsível.
Por exemplo, “conversar demais” pode ensejar a perda do posto de trabalho, enquanto
ameaçar outra interna pode gerar a perda da visita do natal, brigar pode levar à tranca
ou à perda da visita por uma semana ou algumas semanas. Enfim, é provável que haverá
uma sanção para a indisciplina, mas não é possível prever qual será. Em raras exceções,
é possível que pequenas indisciplinas sejam até mesmo ignoradas pelas guardas.
As técnicas disciplinares já descritas estão alinhadas a mecanismos que
funcionam controlando as presas, não apenas através da imposição de vigilância e de
sanções, mas também a partir de barganha de elementos benéficos para as internas,
operando uma espécie convencimento. Neste ponto, as reflexões de Deleuze (2007),
sobre uma sociedade de controle, e de Chantraine (2006), sobre as prisões pós-
disciplinares, dialogam com a realidade encontrada no campo da pesquisa. Em outras
palavras, não apenas uma racionalidade disciplinar, normalizadora dos corpos físicos,
está presente, mas também uma racionalidade de segurança, de observação indireta, de
convencimento das controladas para que cooperem com o controle, se autovigiem e
vigiem umas às outras, como também já descrevia Foucault (2014) no funcionamento
básico de prisões em geral.
Existem, no PREFEM, instrumentos de controle do comportamento das presas
que vão além das regras e punições. Tais instrumentos servem a uma exigência mais
genérica e coletiva de obediência e bom comportamento. Há dois tipos de instrumentos
de controle: aqueles voltados à fiscalização/intervenção direta das presas/nas vidas das
presas, pela Administração, e outros, indiretos, ligados à barganha institucional das
regalias.
No que tange aos instrumentos de fiscalização e controle direto, é a partir deles
270
que a equipe dirigente acessa esferas mais particulares da vida das presas, organizando
sua disposição espacial de modo a adequá-la conforme a conveniência da instituição. É
um exemplo desta forma de controle a triagem, realizada após a chegada de uma nova
interna: durante um período de 10 dias, a nova detenta será observada em seu
comportamento e relação com as outras presas, para averiguar-se a existência de
inimizades do mundo extra- prisão, coligações, rivalidades, enfim, relações do “mundo lá
fora” que possam interferir no mundo do presídio. Esse dispositivo de controle
demonstra um exame inicial, feito pela instituição, da pessoa recém-presa. O exame
definirá onde a pessoa vai morar, bem como pode dar o tom da forma como a
Administração vai observá-la. É interessante notar que esse exame parece ser feito
informalmente, ou seja, a partir dos dados coletados nesta pesquisa não é possível
afirmar que existe uma formalização ou positivação desse exame ou de suas conclusões.
As revistas são outra forma de incidência direta dos braços da instituição sobre
as presas. Mas não só as presas são revistadas, este controle também é imposto sobre as
suas visitas. Realizadas rotineiramente, as revistas variam em sua forma: podem
acontecer quando alguma das presas sair do pavilhão ou for entrar de volta para sua cela.
Sempre acontecerão nos dias de visitas, tomando a forma mais drástica no momento de
retorno às celas, após a despedida das visitas. O dia de visitas é o momento em que
ocorrem com certeza e por isto exploraremos melhor o que acontece nesse momento.
As revistas mais simples são feitas quando as internas vão sair do pavilhão para
encontrar as pessoas no pátio. A custodiada deve levantar a blusa, folgar o top
(semelhante àqueles usados para prática de atividades físicas) e virar o cós do short,
para mostrar que não carrega nenhum objeto. Segundo as guardas, as visitas que irão
entrar no presídio devem tirar toda a roupa e sapatos, permanecer apenas de roupas
íntimas e folga-las para demonstrar que não existe nenhum objeto guardado. Este
procedimento é feito em salas da recepção improvisadas para esse fim e a visita será
revistada por uma guarda do mesmo sexo/gênero. Ainda foi dito pelas guardas que, caso
existam “suspeitas” o procedimento pode exigir que a visitante tire toda a roupa e se
agache.
Segundo as internas, ao irem ao banheiro no dia de visitas é feita outra revista,
em que precisam retirar toda a roupa. Ao sair, as visitas não são revistadas. Já as presas
passarão por uma revista mais detalhada, em que novamente é preciso tirar toda a roupa,
conforme seus relatos.
De acordo com os relatos e a observação empírica, esta última revista é feita numa
sala separada: a pessoa deve ficar nua, se agachar, tossir, soltar os cabelos, enquanto uma
guarda a observa. Depois, já vestida, deve ser sentar em um banco detector de metais e,
caso este não sinalize a presença de um metal, a interna poderá retornar à cela. Durante
a pesquisa, o banco detector não sinalizou a presença de metal nenhuma vez.
As revistas servem para que a Administração controle o fluxo de objetos entre
dentro e fora do presídio e entre os diferentes setores da prisão (as internas não devem
transportar objetos de seus trabalhos para as celas nem o contrário). Neste controle de
fluxo, é evidente como a equipe dirigente pode interferir nas vidas privadas das internas.
Os visitantes, por exemplo, não devem levar presentes, pois são proibidos, em nome da
“segurança”, da manutenção da ordem e das condições de convivência no presídio.
No PREFEM, o baculejo é a revista feita nas celas, em busca de artefatos proibidos
ou de uso restrito. Normalmente é feito de surpresa, para garantir que não sejam
escondidos os artigos interditados. Segundo os relatos, o baculejo não tem periodicidade,
podendo acontecer sempre que houver alguma “suspeita”, “denúncia”, ou, segundo as
guardas, quando a cadeia estiver se “favelizando”11, conforme explica a guarda
271
entrevistada.
Segundo as descrições, assim acontece o baculejo: as guardas entram nos blocos
e mandam que as presas saiacom seus colchões e pertences pessoais mais básicos,
deixando o restante nas celas para que tudo seja contado. As internas vão para a quadra,
onde seus pertences mais íntimos serão também contados. O que estiver em suposto
“excesso”, será descartado ou devolvido à família. O baculejo é um exemplo de controle
direto muito claro, com o mesmo tom das revistas, porque é uma interferência da
Administração diretamente na esfera privada dos indivíduos.
O controle indireto diz respeito às ferramentas do poder disciplinar que não são
exercidas por meio de uma influência direta nas esferas individuais das pessoas presas,
nem por meio de punições diretas (como a restrição de direitos ou regalias) mas sim por
um discurso de barganha na gestão de eventos benéficos da vida na cadeia (eventos
sociais e postos de trabalho).
A seguir, em detalhes, os principais argumentos utilizados para tais estratégias de
ameaça ou barganha. O uso desses mecanismos de pode ser comparado ao sistema
bombom retratado por Chantraine (2006, p. 284), em que um direito da pessoa presa
depende de “bom” comportamento. Esse sistema, aplicado em uma prisão no Canadá,
reintegra direitos relativos à gestão da pena (saída condicional, progressão de regime -
direitos que já eram, naquele país, garantidos a todas as pessoas indiscriminadamente)
a uma lógica de merecimento baseada na cooperação com a governabilidade da prisão e
na negociação de privilégios, inclusive com grande importância de pareceres técnicos e
psicológicos para o acesso a tais prerrogativas, numa espécie de chantagem institucional
(CHANTRAINE, 2006, p. 184).
A barganha de direitos ligados à gestão da pena também é prevista pela legislação
brasileira, que atrela o livramento condicional e a progressão de regime de cumprimento
de pena a pareceres da diretoria dos presídios sobre os comportamentos das pessoas
presas. Na prática do PREFEM, contudo, como aparentemente a comunicação exigida
entre a diretoria e o juízo de execução da pena não existe (afinal, a apuração de faltas e
aplicação de punições não é formalizada) o que se usa de fato na chantagem institucional
são direito básicos, como o banho de sol e as visitas, além dos instrumentos discursivos
mais importantes, a seguir descritos.
Assim é que as únicas constantes na condução da disciplina no PREFEM são o
controle e o arbítrio. O controle permanente sobre as internas e grande poder de arbítrio
conferido às guardas para que determinem o que pode ser punido e como se opera tal
punição, ainda que estas decisões precisem ser posteriormente aprovadas pela inspetora
geral e pela direção. Não existe, sequer informalmente, uma relação entre a prescrição
do comportamento e a sanção aplicável, o que é esperado para garantir um mínimo de
limitação ao arbítrio em sistemas de punição desde Beccaria (2003). Ou seja, no PREFEM
não existe uma garantia de controle ao arbítrio pensada desde pelo menos a segunda
metade do século XVIII.
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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(Org.). História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, v. 1, 2009.
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CHUÇO. Dicionário online Caldas Aulete, 25 maio. 2018. Disponível em: <
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DELEUZE, G. Conversações. 6ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2007 (1ª ed.
1992). ECO, U. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1983.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 42ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. Trad.: Dante Moreira Leite, 7ª ed. São
Paulo: Perspectiva, 2005
HARDT, M. La société mondiale de contrôle. In: ALLIEZ, E. (Org.). Gilles Deleuze, une
vie philosophique. Paris: Synthélabo, 1998. p.359-37
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possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres. São Paulo: ITTC,
2012. Disponível em: <http://ittc.org.br/mulheresemprisao/>. Acesso em: 24 jun.
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ZEDNER, L. Wayward Sisters, The Prison for Women. In: MORRIS, N., ROTHMAN, D.
(Org.) The Oxford History of the Prison. New York: Oxford University Press, 1995.
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Reclusos. ONU: 2015. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/justice-
and- prison-reform/Nelson_Mandela_Rules-P-ebook.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.
GRILLO C. e outros. Primavera das mulheres. Pub. em 07 nov. 2015, Atual. 22 dez.
2015. Disponível em: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/primavera-das-
mulheres.html. Acesso em 12 jun. 2017.
REDE ALELUIA. Rede Aleluia de rádio: você não pode deixar de ouvir. Pub. em 19
fev. 2016. Disponível em: http://redealeluia.com.br/rede-aleluia-de-radio-voce-nao-
pode-deixar- de-ouvir/. Acesso em 07 jun. 2018.
278
PARTE II
DIREITOS HUMANOS, ESTADO, VIOLÊNCIA,
SEGURANÇA PÚBLICA E LUTAS
DEMOCRÁTICAS NA AMÉRICA LATINA
279
FEMINICÍDIO: UM ESTUDO SOBRE A VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA DAS
MULHERES NA PARAÍBA
1 INTRODUÇÃO
Sendo assim, o feminicídio não pode ser limitado ao feminicídio íntimo, pois apesar
de ser mais visibilizado pela mídia, pelo Estado e pela sociedade, tem como aparato
judicial a Lei Maria da Penha (11.340/2006), o mesmo não acontece com o feminicídio
não-íntimo. O feminicídio cometido por conhecidos e desconhecidos das vítimas não
282
possui um aparato judicial ou um “manual” que os identifiquem como feminicídio, sendo
passível de ser confundido como violência urbana.
É preciso atentar para as formas, características e contextos das mortes femininas.
As características que essas mortes apresentam estão associadas aos contextos que
acontecem, as circunstâncias e as formas de violência perpetradas. Segundo o documento
Diretrizes Nacionais Feminicídio - Investigar, Processar e Julgar (2016), entre os
contextos, as circunstâncias e as formas, estão: os contextos que envolvem tanto os
ambientes privados, relacionados à violência doméstica e familiar, inscritos na Lei Maria
da Penha (11.340/2006), quanto em ambientes públicos; as circunstâncias desses crimes
inscrevem a violência nas relações familiares e afetivas e também aquelas que envolvem
a exploração sexual, a presença do crime organizado e o tráfico de mulheres; as formas de
violência que geram o sofrimento das vítimas são as mais diversas, a violência sexual
(estupro), a tortura, o cárcere privado, a mutilação/degradação de partes do corpo
feminino, como os seios, os órgãos sexuais e o ventre, o uso de meios cruéis e a
carbonização.
No entanto, nem todo assassinato envolvendo mulheres são considerados
feminicídios, estes têm que ocorrer em virtude do menosprezo pela condição do sexo
feminino, pelo fator predominante do sexismo. Como analisa Russel,
A respectiva lei foi inserida aos crimes hediondos, tal como estupro, genocídio,
latrocínio, entre outros (Compromisso e Atitude, 2015), possuindo agravantes (gravidez,
menor de 14 anos e maior de 60 anos, com deficiência e na presença de seus filhos). A
pena para quem comete esse crime varia de 12 a 30 anos de reclusão.
Destarte que, segundo Mello (2017), antes da Lei qualificadora dos crimes de
feminicídio (13.140/2015), alguns casos eram considerados como crimes hediondos
(homicídio por motivo torpe, fútil, entre outros). Porém, não era um entendimento
jurídico unânime. A Lei do feminicídio tornou-se essencial para caracterizar as mortes de
mulheres decorrentes de menosprezo/discriminação ao fato de serem mulher, em sua
totalidade, como feminicídio.
Ademais, no próximo tópico analisaremos sobre os índices de violência fatal
cometida contra as mulheres no Brasil e na Paraíba, mediante estudos do Mapa da
violência (2015), Atlas da Violência (2019) e o Centro da Mulher 8 de Março.
4 FEMINICÍDIO EM ÍNDICES
285
Primeiramente, o levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas
(2018), por meio do estudo produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime (NODC) foi constatado que no ano de 2017 foram assassinadas 87 mil mulheres, e
dentro desse contingente 57% foram mortas por seus companheiros e familiares, sendo
a África e as Américas regiões com maiores incidências de feminicídio íntimo. Para a
África temos a taxa de 3,2 vítimas para 100 mil mulheres; as Américas (1,6); Oceania (1,3);
Ásia (0,9); e Europa (0,7).
Em termos de Brasil, segundo o Mapa da Violência (2015), por meio de dados
homogêneos da Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou o Brasil na 5ª posição
com taxa de 4,8 feminicídios para 100 mil mulheres, entre 83 países do mundo que mais
matam mulheres. Os países da América Latina ocupam as principais colocações no
referido estudo: Colômbia (6,3), El Salvador (8,9) e Guatemala (6,3). Com exceção da
Rússia com a taxa de 5,3 para 100 mil mulheres. Meneguel et al (2017, p. 2969) aponta
que,
286
Quadro 1 - Número de Feminicídios na Paraíba (2007-2017)
Paraíba
2007 2008 2009 2010 2011 2012
69 87 98 119 140 137
2013 2014 2015 2016 2017
126 117 111 107 88
2007 a 2017 2012 a 2017 2016 a 2017
287
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Lourdes.; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. A violência contra as mulheres:
um problema coletivo e persistente. In: LEOCÁDIO, E.; LIBARDONI, M. (Orgs.). O desafio
de construir redes de atenção às mulheres em situação de violência. Brasília: AGENDE, 2006.
BRASIL. Lei 7.210/1984. Lei 11.340/2006. Lei Maria da Penha. Brasília, 2006.
CARMO, Perla Cristina da Costa Santos do; MOURA, Fernanda Gomes de Andrade de.
Violência Doméstica: a difícil decisão de romper ou não com esse ciclo. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278278656_ARQUIVO_VIOLE
NCIADOMESTICAADIFICILDECISAODEROMPEROUNAOCOMESSECICLO.pdf>. Acesso em:
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social. São Paulo: Cortez Editora. 2018.
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feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
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Mulher no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2017.
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TÁBOAS, Ísis Dantas Menezes Zornoff. Viver sem violência doméstica e familiar: a práxis
feminista do Movimento de Mulheres Camponesas. Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados
Multidisciplinares, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Global Study on Homicide:
Gender-related killing of women and girls. EUA: UNODC; 2018. Disponível em:
289
<https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/GSH2018/GSH18_Gender-
related_killing_of_women_and_girls.pdf>. Acesso em: 25 jul.2019
290
ELAS E O TRÁFICO DE DROGAS: NÃO É CASO DE POLÍCIA É CASO DE POLÍTICA
1 INTRODUÇÃO
292
que foram as lutas sociais que romperam o domínio do privado nas
relações entre capital e trabalho, extrapolando a questão social para
a esfera pública” (IAMAMOTO, 2012 p. 160).
Afirmamos então que sem ocorrer modificações nas bases que fomentam essas
estruturas, o pauperismo que assola inúmeras pessoas e contribuem para as distintas
práticas ilícitas de sobrevivencia vão perdurar. Necessitamos de mudanças que
propiciem as mulheres o conhecimento da própria história, quem foram e são ao longo
dos séculos, bem como, que as suas ações criminosas são jugadas socialmente para
além da pena estipulada judicialmente, porque para elas o crime denota outro peso,
são mulheres e são mulheres pobres que ultrapassaram a regra pré-estabelecida do
ambiente privado e da sociedade.
Para Alba Zaluar (2004), essa forma de agir e pensar da nossa sociedade pode
ser compreendido também como preconceito e discriminação.
Em nossa sociedade existe uma gama de mulheres que são impactadas pela
indústria do trafico de drogas, mas que não são usuárias e não são traficantes, no
entanto, estão ligadas ao tráfico por outros meios. A obra: “Falcão mulheres e o tráfico”
dos autores Atayde e Bill nos mostra a realidade das mulheres (mães, avós e irmãs)
que costumam se expressar, dizendo que perderam os seus filhos para o trabalho no
tráfico de drogas, sem que esses jovens tivvessem oportunidades de sobreviver nas
suas comunidades e tão pouco fora delas, e passam a ver no táfico o caminho para
matar a fome do corpo e a fome da vaidade.
A palavra utilizada na obra é exatamente essa: “perda”. Mulheres que relatam
que usam dos seus argumentos sem sucesso, na tentativa de convencer seus filhos,
netos, irmão e companheiros a não entrar no submundo do tráfico de drogas, mulheres
que expressam uma luta desigual, de um lado as privações, fome e os sonhos de
alcançar algum trabalho que lhes proporcione sair daquela realidade, do outro os
traficantes ostentando tudo que eles sonham possuir. (ATAYDE E BILL 2007).
A realidade de uma sociedade capitalista e excludente que determina lugares e
funções as pessoas como lhe convém, condicionando uma significativa parcela da
sociedade em total desalento a enxergar no tráfico uma alternativa, mesmo sabendo
que ele se configura como um ato ilegal, ao mesmo tempo em que possibilita o fim de
uma busca incessante e até então sem sucesso de ter acesso a alimentação diária e ao
tênis da moda bombardeado insistentemente na mídia televisiva e nos outdoors
espalhados pela cidade.
No tocante a indústria do tráfico existe, é o sentimento de fascínio que os chefes
do tráfico e os donos da “boca”7 exercem sobre muitos jovens que sonham e lutam sem
conquistarem nada, passando a ver nesses homens o sinônimo de poder, respeito e
boas condições financeiras. (ATHAYDE E BILL 2007). Uma situação retratada por uma
das personagens da vida real, da obra: “Falcão mulheres e o tráfico”, é a dona Zezé que
desabafa a sua dor e a sensação de culpa que algumas mulheres carregam por ter que
se ausentar de casa e da comunidade para locais distantes onde exercem funções na
grande maioria de empregadas domésticas, e precisam deixam os filhos sozinhos ou
sobre os olhos dos mais velhos, quando muito de alguma vizinha.
Relata ainda, que ficava sabendo que o filho saía da escola na hora do recreio e
se embrenhava na cominidade, presenciava o que muitos adultos nunca chegaram
vivenciar na vida, passando assim a fazer parte de uma realidade que ia se
naturalizando na medida em que o tempo ia passando. No dia seguinte tudo voltava a
se repetir, dona Zezé não tinha como levar o filho e não podia deixar de ir trabalhar. E
nessa dolorosa relação vivenciava o envolvimento do filho no tráfico, ficando aflita
quando via noticiado que políciais entram na comunidade onde reside. (ATHAYDE E
BILL 2007).
Por esse e tantos outros motivos é que a problemática da droga não pode ser
vista meramente como um caso de polícia, ela envolve situações que vão além do
295
pensar que o encarceramento vai resolver. Cotidianamente os jornais midiáticos e
sensaccionalista nos mostra mulheres como dona Zezé, com filhos envolvidos no
mundo do tráfico de drogas, passando a desenvolver na vida dessas mulheres uma
relação que transita entre o medo e a necessidade, que temem perder os seus filhos
precocemente para a morte ou para o sistema penal.
De acordo com INFOPEN Junho/2016, 55% dos presos são formados por jovens
segundo o estatuto da juventude, Lei 12.852/2013, a cada 100 mil habitantes jovens
487,7 estavam presos em junho de 2016, com destaque para o Acre, Amazônia, Pará,
Espírito Santo, Pernambuco e Sergipe que mais de 6 a cada 10 pessoas privadas de
liberdade no Brasil são jovens, dados que não se distinguem dos apresentados
inicialmente sobre o encarceramento feminino. E essa passa a ser a realidade das
inúmeras pessoas envolvidas com o tráfico, seja de maneira direta como os grandes e
pequenos traficantes, seja como os jovens que veem na atuação no tráfico uma
possibilidade de ter acesso a uma vida digna.
Então quando falamos da transversalidade do tráfico na vida de mulheres nos
referimos a situações como essa, na qual a mulher passa a lidar cotidianamente com o
medo de perder os seus entes queridos ao desempenharem funções de olheiros8 ou
fogueteiros9, ou tantas outras. No que se refere a atuação feminina também se registra
a participação delas, no entanto, com pouca ou quase nenhuma autonomia ou posição
de liderança, a função de subalternidade que acompanha a mulher ao longo dos
espaços se desemboca na hierarquia do tráfico também, sendo elas
predominantementes mulas do tráfico de drogas. (SOARES E ILGENFRITZ, 2002).
De acordo com as autoras, a mulher possui características que lhes tornam
alvos adequados à função de mula do tráfico de drogas, função que exige pouca ou
nenhuma experiência embora seja de grande exposição. As mulheres que fazem o
papel de “mulas” do tráfico, nada mais são que instrumentos de transporte da droga
em uma organização com papéis bem delimitados não devendo elas ser comparadas
ou confundidas nem mesmo aos aviões do tráfico10, pois esses participam da divisão
de tarefas, mas às mulheres mulas não cabem tal papel.
De acordo com dados do INFOPEN-2016, 62% das mulheres estão presas por
assossiação ao tráfico de drogas. É importante citar que a justiça não determinou
expressamente a quantidade de drogas para diferenciar o usuário do traficante. Ou
seja, o que ocorrerá no ato ou após o aprisionamento é uma avaliação para determinar
quem é traficante ou usuário ou nem um dos dois, baseando-se o judiciário em uma
soma de fatores a âmbito social e ecônomico, como local que mora, com que ocupa seu
tempo, se já cometeu algum crime. Não difícil compreendemos que os julgamentos
perpassam por determinada classe e faz um recorte sobre aqueles que habitam
determinados lugares.
Ainda sobre os personagens da vida real contidos na obra de Atahyde e Bill
(2007, p. 190), uma delas faz o seguinte relato: “Aprendi que quem mora em favela ou
quem mora em prisão é rotulado sempre de favelado ou preso pelo resto da vida, se
tu fizer algo errado, pronto. Ai eles caem em cima e dizem: não disse que ela é ladra,
mesmo. Por isso a gente têm que se unir, não deixarem eles rotularem a gente. Qual é?
O pessoal que usa terno e gravata nunca errou na vida, nunca fez nada de errado? A
gente faz e tem que pagar por isso pelo resto da vida?!”.
Retornando a questão “mula do tráfico”, alguns fatores colaboram para
inserção da mulher nesse papel, a exemplo, nenhuma escolaridade é exigida, fato
observado na população prisional feminina e que vale salientar é a baixa porcentagem
educacional nas mulheres presas, apenas 15% da população prisional feminina
296
concluiu o ensino médio, somado a esses fatores, a falta de inserção laboral
remunerada, a ausência de oportunidades que lhe permita almejar outros horizontes,
questões imbricadas a uma construção social que colabora para a situação de
enquadramento da mulher ao papel de subalternidade que o tráfico passa também a
lhes remeter nesse universo.
Podemos compreender que a questão da droga em nossa sociedade não pode
ser tratada como um caso de polícia, desprezando as reais situações que esses sujeitos
da vida real estão constantemente envolvidos, mas o que ocorre é o contrário. Não se
trata de limpar as ruas retirando os indivíduos que são jugados como ameaça
causadores de desequilíbrio e medo. De acordo com Teixeira (2006), atualmente
existe um conjunto de políticas repressivas conhecidas como guerra às drogas, sendo
essa uma política expressiva do encarceramento maciço, concebida nos Estados
Unidos, responsável pelo controle e encarceramento de negros e pobres.
Pontos falasiosos são colocados para classificar e diferenciar o usuário e o
traficante de drogas, mas poucos se direcionam para a vinculação da pobreza a esses
que estão na busca por sobrevivência. Tão pouco, a condição da mulher presa em
nossa sociedade é diretamente abordada, quando ela recorre aos caminhos ilícitos na
busca atender as suas necessidades em uma nova realidade a de chefe de família.
(ZALUAR 2004).
Muito menos os meios de justiça buscam compreender a relação mulhere e
homem em nossa sociedade que guarda uma forte cultura patriarcal, forjada em
relações nas quais mulheres buscam atender a figura masculina transportando a
droga, seja por medo ou pelos sentimentos afetivos na figura de um filho, irmão ou
companheiro que esteja preso, e que por fim essa tentativa de atendê-los termina
tornando-se também estatística. (SOARES E ILGENFRITZ 2007). Sobre a
superpopulação carcerária afirma Davis:
Ainda nesse sentido a autora aponta que o encarceramento que está ocorrendo
é um gerador de lucros, na medida em que se alimenta ferozmente da riqueza social,
levando a reproduzir as condições necessárias e pobreza que levam as pessoas as
prisões, a contradição e quanto mais riquezas se produz mais aumenta a miséria em
alguns lugares.
Observamos então a partir de algumas premissas, o que vem predominar em
nossa sociedade é um distanciamento cada vez mais acentuado entre os ricos e os
pobres. A criminalização da pobreza é uma espécie de fenomeno atemporal. Nesse
sentido, Ricardo Antunes afirma que as respostas do capital na busca incessante por
acumulação no século XXI têm produzido profundas mutações no interior do mundo
do trabalho, levando aquelas que nunca se inseriram em uma atividade laboral de
maneira formal a serem totalmente excluídas.
4 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ATHAYDE, Celso; MV Bill. Falcão: mulheres e o tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
299
270p.
CASTRO, Mary Garcia (2001). Feminização da pobreza em cenário neoliberal. In: Galeazzi,
Irene M. S. (org). Mulher e trabalho. Porto Alegre: PED-RMPA.
SAFFIOTI, Helena. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2004.
SOARES, Barbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras. Vida e violência atrás das
grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Capital fetiche, questão social e Serviço Social. In: Serviço
Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. – 7 ed.
São Paulo: Cortez, 2012. (p. 105 – 208).
NETTO, José. A questão social na América Latina. In: A questão social e as políticas
sociais no contexto latino-americano. Maria Lucia Teixeira Garcia, Eugênia Célia Raizer
(Orgs.). Vitória, ES: EDUFES, 2012. (p. 83-111).
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
300
VIDAS EM RISCO: FAMILIARES DE DETENTAS (OS)
1 INTRODUÇÃO
Este estudo versa sobre a relação prisão e família de detentas (os) e é fruto do
nosso trabalho de conclusão de curso, uma pesquisa de campo que se deu junto às
familiares das detentas do Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão
(CRFMJM), em João Pessoa/PB.
Inicialmente trataremos acerca das consequências que são acarretadas às
famílias que possuem parentes encarceradas (os). Essas pessoas são majoritariamente
mulheres, pobres, negras, oriundas de periferia e que convivem com inúmeras
dificuldades para sobreviver e, quando sua/ seu familiar é presa (o), os desafios
aumentam.
Após, mostraremos os dados da pesquisa de campo colhidos a partir de entrevista
semi estruturada. Analisaremos o perfil dos indivíduos entrevistados a partir de
condicionantes como gênero, renda familiar, nível de escolaridade, estado civil.
Por fim, trabalharemos o discurso dessas pessoas através de categorias
analíticas, a saber: Avaliação da relação com o corpo funcional, queixas da parenta
encarcerada, influência na renda familiar com a prisão da parenta.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
301
Os familiares aqui retratados pertencem a essa parcela marginalizada da
população que, em uma rotina de violações, são encarados enquanto inimigos em
potencial devido sua condição e a extensão do delito do seu semelhante. São atingidos
negativamente pela globalização e estão encerrados nas favelas o que reflete uma
segregação cotidianamente experimentada.
Conforme o artigo 5°, inciso XLV da Constituição Federal de 1988,
30%
70%
Homens
Mulheres
304
Gráfico 2: Renda familiar
0% 0%
Menos de um salário
10% Um salário mínimo
30%
Dois salário mínimos
305
Gráfico 3: Faixa etária
0%
8% Menos de 20 anos
17%
8%
Entre 20 e 30 anos
Entre 30 a 40 anos
17%
Entre 40 a 50 anos
0% 0%
10%
Solteiro
40% Casado
Viúvo
Divorciado
50%
Outro
Conforme a presente pesquisa, 50% dos entrevistados são solteiros. Como vimos
no gráfico 1, 70% das pessoas entrevistadas são mulheres solteiras e, em seus discursos no
momento da aplicação da entrevista, percebemos que foram abandonadas por seus
companheiros, acarretando no acúmulo de responsabilidades das mesmas.
Atentamos para o fato de que há uma prevalência das mulheres na realização das
visitas sendo elas mães, irmãs, companheiras o que cabe um questionamento: onde estão
os homens dessas famílias, principalmente os companheiros? Quando estes não estão
presos, é notório o abandono do homem á mulher na prisão elucidando questões como
infidelidade e machismo uma vez que, quando alguns são presos, parte massiva das
mulheres permanecem fiéis durante toda a pena, seja na união conjugal seja no
acompanhamento no cárcere.
O gráfico 5 mostra que exatos 70 % dos entrevistados possuem ensino
fundamental incompleto. De acordo com a Constituição Federal de 1988,
306
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 2015).
A LEP (Lei de Execuções Penais, 1984) em seu artigo 40, inciso X 10assegura
enquanto direito da pessoa presa, visitas da família e dos amigos. No CRFMJM, algumas
normas precisam ser respeitadas para realização das visitas inclusive a tipificação dos
alimentos que podem adentrar ao ambiente. Segundo um dos entrevistados, o processo
de revista dos alimentos é invasivo e por vezes desfazem alguns pratos preparados por
eles para sua familiar presa. Percebemos uma invasão do espaço do outrem que
enfrentam tantos empecilhos dentre eles, a situação financeira para comprar os
alimentos e realizar as visitas. Há também, segundo os dados coletados, uma falha na
comunicação do corpo dirigente com as famílias quando elas estão na cela de disciplina
impossibilitadas de receber visitas.
Em relação ao tratamento do corpo funcional, as respostas variam de acordo com
os entrevistados entre indiferença, normalidade e elogios. Notamos o receio de alguns
de falar dessa questão por inibição ou medo de retaliação. Já outros elogiaram o trabalho
dos agentes penitenciários destacando o bom tratamento dispensado as famílias.
No que concerne às queixas da familiar encarcerada, observamos diversas
violações de direitos e descumprimento de legislações vigentes.
A LEP, no seu artigo 12 coloca que "A assistência material ao preso e ao internado
consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas." (BRASIL,
2015). No artigo 41, inciso I, vemos como direito da pessoa presa "[...] alimentação
suficiente e vestuário." (BRASIL, 2015). Conforme os evocadores 1,2,3 e 4, as condições
objetivas na prisão deixam a desejar principalmente em relação a comida. Como revela o
evocador 3 [...] o governo manda, mas ai eles não preparam direito." Identificamos a
necessidade de um melhor preparo da alimentação no CRFMJM.
O artigo 6° da Constituição Federal de 1988 afirma que
308
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 90, de 2015) (BRASIL, 2015).
Essa tensão ilustrada por Goffman é utilizada para moldar os indivíduos tanto às
normas da Unidade quanto às regras estabelecidas pelas detentas. Se uma reeducanda
se recusa a cumprir, sofre todo tipo de represália como, por exemplo, o não
compartilhamento de artigos de higiene pessoal de outras apenadas.
309
Quadro 2 - Influência na renda familiar com a prisão da parenta
310
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CABRAL, Yasmin Tomaz. MEDEIROS, Bruna Agra de. A família do preso: efeitos da
punição sobre a unidade familiar. Revista Transgressões: Ciências criminais em debate,
2014. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/transgressoes/article/download/6652/5148>. Acesso em
15 de outubro de 2016.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas da pesquisa social. 5 ed. São Paulo:
Atlas,1999.
311
de abril de 2016.
MYNAIO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: Teoria, Método e Criatividade. 14 ed,
São Paulo: vozes, 1999.
312
“CADA CASSETETE É UM CHICOTE PARA OS MEUS”:
ESTADO E GENOCÍDIO NEGRO EM PERNAMBUCO
1 INTRODUÇÃO
O autor ainda ressalta que a principal política de Estado voltada para a população
negra, foi a repressão e o controle, instrumentalizada por meio da força, constituindo-se
como “caso de polícia”. Nesse sentido, o Estado sempre utilizou a violência, através da
força policial com o objetivo de repressão e submissão forçada e esse artifício não é
diferente dos dias de hoje, a medida que os dados do Segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (2016), revelam que o número de negros mortos por policiais é o
triplo do número de brancos. Entre 2015 e 2016, 963 pessoas brancas foram mortas por
policiais. Já entre os negros, as mortes chegaram a 3.240.
Ao utilizar o termo genocídio em casos de homicídios da população negra
brasileira, se faz essencial compreender o que vem a ser esse fenômeno por sua definição
formulada pela Organização das Nações Unidas (ONU), na Convenção sobre a Prevenção
e Repressão do Genocídio (1948, p.1):
317
do negro sobre sua condição de desigualdade e do apagamento de sua cultura e
espiritualidade. Essa tentativa de branqueamento da população utilizada até como
política de Estado – com o fomento do governo para a chegada de populações europeias
para o país –, representa bem o genocídio cultural, pois a partir do momento que há uma
miscigenação das raças e uma delas é considerada culturalmente inferior, essa
consequentemente sofre apagamento social.
Sémelin (2009), dá indicações de quem são esses “intelectuais” e de acordo com
o autor, podem ser profissionais do espírito, da educação, do saber ou da ciência. Podem
ser professores, jornalistas, engenheiros ou médicos e até não ter realizado nenhum
curso superior. Logo, esse último apontamento nos remete ao astrólogo que ganhou
bastante destaque nos últimos anos, Olavo de Carvalho7, um dos principais
influenciadores da extrema,
Mais um fator agravante tratado por Sémelin (2009), é o papel da igreja diante do
massacre. O autor dá exemplos de como a igreja por vezes ajudou a legitimar genocídios
pelo mundo. Abdias do Nascimento (1978), aborda sobre a questão da religião, ao levar
em consideração que no Brasil as religiões de matrizes africanas sofrem perseguições,
realidade denominada pelo autor de “bastardização da cultura afro-brasileira”, sempre
ligada ao medonho e demoníaco. Nos dias atuais, alguns discursos de líderes evangélicos
chamam atenção, como o de Marcos Feliciano, pastor e deputado federal do partido
Podemos (PODE), que chegou afirmar que os africanos são amaldiçoados por Deus.
Isso nos leva mais uma vez a Sémelin (2009), ao bordar a “sacralização do povo
eleito”, nesse caso, o povo eleito seria o branco, a medida que o negro é considera como
“o outro”, o estranho e além de tudo como no exemplo acima, “o amaldiçoado”.
Girard (2008) em sua obra Violência e o Sagrado, propõe como tese central do seu
estudo, a religião como a raiz da violência. Apesar de alguns autores, como o próprio
Sémelin, o considerarem como um pouco especulativo, o autor traz contribuições ao
realizar uma longa reflexão sobre a violência humana. Em sua obra, Girard (2008)
aborda que ao passo que as sociedades evoluem até chegar ao sistema judiciário atual,
ainda carregam a ideia de vingança, originária nas sociedades primitivas que se
utilizavam de sacrifícios para canalizar a violência para grupos específicos, o que ele
chama de “bodes expiatórios”.
A mídia também ocupa um papel importante na construção social do genocídio
negro, a medida que podem promover a violência e por vezes incentivam a vingança da
população. De acordo com Ribeiro (2012) em seu estudo sobre linchamento, a mídia
promove a “espetacularização” da violência, cobrindo os casos de forma imparcial. Nesse
sentido, se a maioria dos encarcerados no Brasil são negros13, porque não associar que
nos casos de linchamento os negros são os maiores alvos? Conforme almeida (2014, p.
2):
318
[...] na maioria das vezes rendemo-nos diante da força da mídia que,
maciçamente, naturaliza a violência racial contra a população negra em
seus programas sensacionalistas, ridicularizando e inferiorizando a
imagem desse grupo étnico-racial no trabalho, na educação, na
religiosidade, no noticiário policial e até no exercício da sexualidade e
orientação sexual.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. 50. ed. São Paulo: Global, 2005.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. 3 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008
HOBSBAWM, E. A era das revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
IPEA. Atlas da violência 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?
option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432 > Acesso em: 10 de jul.
2019.
SCHWARCZ, L. M. Nem preto nem branco muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
324
A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UMA EXPERIÊNCIA NA COMUNIDADE
PRAIA MAR/NATAL-RN
1 INTRODUÇÃO
31Disponível em
http://www.lex.com.br/legis_25247243_PORTARIA_N_21_DE_22_DE_JANEIRO_DE_2014.aspx
32Disponível em
http://portal.imprensanacional.gov.br/materia/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/34198305/
do1-2018-07-26-portaria-n-464-de-25-de-julho-de-2018-34198278
325
político institucional do território e da população beneficiária. Esses
estudos consideram também as características da intervenção, visando
promover o exercício da participação e a inserção social dessas famílias,
em articulação com as demais políticas públicas, contribuindo para a
melhoria da sua qualidade de vida e para a sustentabilidade dos bens,
equipamentos e serviços implantados (BRASIL, 2018, p.1).
O trabalho se justifica, a priori pela busca de efetivação dos direitos humanos e por
uma transformação de uma realidade, que era tomada por facções criminosas, ausência
de políticas públicas, dentre outros problemas sociais, que assolam as comunidades do
país. Acrescido a isso, originariamente, encontrava-se ali uma população ocupando
barracos em péssimas condições de moradia, crianças dividindo a lama e o lixo com
galinhas, cachorros e porcos, vida indigna, sem sequer constar nos cadastros e estatísticas
das demandas locais.
Diante desta realidade, o poder público sensibilizou-se e contratou a urbanização
da área com incremento de habitabilidade também para o entorno. Tal proposta tem sido
desde 2006, trabalhada pelas equipes de trabalho social da CEHAB/Governo do Estado
em projeto de trabalho social compondo o objeto do contrato de urbanização da área em
epígrafe, juntamente com a obra.
As famílias são contempladas por haverem sido beneficiadas com unidades
habitacionais, decorrente do contrato do Residencial Praia Mar, no entanto, as
construções das UH’s segue uma regra para que efetivamente aconteça o Projeto de
Trabalho Social, assim, a execução do PTS, é indispensável para viabilização de ações que
colaborem para as necessárias mudanças de suas condições de vida numa perspectiva de
inclusão social, fundamentada na identidade e no reconhecimento da cidadania destas
famílias, além das reformas das moradias, devem ser trabalhadas todas as necessidades
que elas apresentam no desenvolvimento de ações/atividades técnicas sociais de cunho
socioeducativos voltados a essa população beneficiária. Estas atividades são relacionadas
aos seguintes eixos: Mobilização, Organização e Fortalecimento Social; Acompanhamento
e Gestão Social da Intervenção; Educação Ambiental e Patrimonial e Desenvolvimento
socioeconômico como preconiza a portaria 21/2014 e a 464/2018 do Ministério das
Cidades.
É importante lembrar que, tornar as pessoas capazes de planejar e gerenciar seu
próprio desenvolvimento significa alimentar um processo de educação continuada e
permanente. Esta é, portanto, a proposta do presente PTS.
A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo e do PTS se deu através de
pesquisa-ação, levantamento e revisão bibliográfica e análise documental, visitas
técnicas/domiciliares, reuniões e debates com a equipe, levantamento de informações
junto às comunidades e aplicação de questionários sociodemográfico junto aos
moradores da comunidade, que gerou o diagnóstico socioambiental.
Ressalatmos que a pesquisa bibliográfica e documental, com o apoio teórico das
legislações que discutem sobre o trabalho social, família, comunidade, aos direitos
humanos, em especial o direito à moradia, como, por exemplo, Declaração Universal do
Direitos Humanos, a Constituição Federal Brasileira/1988, o Estatuto das Cidades,
Decretos relacionados ao tema, a Lei de nº 11.445/2007, lei Orgânica da Assistência Social
(LOAS), lei orgânica da saúde (LOS), dentre outros.
De acordo com Gil, (1999, p.66), “a pesquisa documental vale-se de materiais que
não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de
acordo com os objetivos da pesquisa”. Podemos ainda definir que para a construção deste
326
diagnóstico utilizou-se também da pesquisa-ação que na concepção de Severino (2007), é
aquela que, além de compreender, visa intervir na situação, para modificá-la. O
conhecimento objetivado articula-se a uma finalidade intencional de alteração da situação
pesquisada. Assim, ao mesmo tempo em que se realiza um diagnóstico e analisa uma
determinada situação, a Pesquisa-ação propõe ao conjunto de sujeitos envolvidos
mudanças que levem a um aprimoramento das práticas analisadas.
Outro procedimento adotado foi à realização das visitas técnicas de campo com o
intuito de conhecer as demandas e realidade da comunidade, através de visitas em todas
as estruturas existentes no empreendimento, bem como em outros órgãos como unidade
básica de saúde, Companhia de Habitação e Centro de Referência da Assistência Social
(CRAS).
Cabe observar que a participação da comunidade foi de extrema relevância para
nosso trabalho, isso remete refletir que a:
A participação facilita o crescimento da consciência crítica da população,
fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder
na sociedade. Além disso, a participação garante o controle das
autoridades por parte da sociedade, pois lideranças altamente
centralizadas podem ser levadas à corrupção. Assim, a participação pode
ser compreendida, como um processo de intervenção ativa na construção
da sociedade, o que é feito por meio da tomada de decisões e das
atividades sociais em todos os níveis (BORDENAVE, 1983, p.20).
327
2 REFERENCIAL TEÓRICO
34 Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf,
35 Disponível em escrevapordireitos.anistia.org.br/.../278-guia-educacao-em-direitos-humanos-
clovis.pd.acesso fev. de 2018.
36 Disponível em https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_03.07.2019/art_6_.asp
329
Direito ao ambiente equilibrado, de uso comum e essencial à qualidade de vida. E no caput
do art. 225 aduz:
Outro aparato legal é o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01), que define no seu
inciso I do Art. 2 que: “Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito
à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para às presentes e futuras
gerações” (BRASIL, 2001).
3 RESULTADOS
22,7%
Feminino
Masculino
77,1%
Os dados evidenciam que, a maioria dos moradores é do sexo feminino com 77,1%,
o que é bastante representativo a esse público prioritário ao direito à moradia, onde são
elas a maioria chefes de família nesta comunidade e que essa política priorizam as
mulheres para serem beneficiárias deste programa.
Esta realidade não difere do país “Brasil” que tem 6,3 milhões de mulheres a mais
que homens, elas são quase 105 milhões, enquanto eles somam 98,5 milhões, segundo
pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE a população brasileira é
de 203,2 milhões de habitantes, sendo 98,419 milhões de homens (48,4% do total) e
104,772 milhões de mulheres (51,6%). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -
PNAD 2014 entrevistou 362.627 pessoas, que vivem em 151.291 residências de todas as
unidades da federação. No Sudeste, há quase 4 milhões de mulheres a mais que homens.
330
Gráfico 2: faixa etária do Morador
Entre 41 e
59 anos
Entre 60 e
36,0% 69 anos
40,7%
Igual ou acima
de 70 anos
Informação
não Disponível
Parda
55,7% 19,0%
Amarela
Informação não
Disponível
331
Gráfico 4: Estado Civil do Morador
2,4% 1,2% 0,4%
5,5% Solteiro (a)
União Estável
Divorciado (a)
Separado (a)
27,3%
Viúvo (a)
9,5%
Informação não
Disponível
Fonte: pesquisa de campo agosto (2018).
Podemos auferir que a maioria, ou seja, 37,5% se declaram solteiro, todavia,
durante a aplicação do questionário a maioria das pessoas relatava está vivendo no
mesmo domicilio com outra pessoa. Mas, que legalmente não possuía nenhuma
comprovação jurídica. E no caso da união estável não declarada atinge 27,3%, esta já
reconhecida no Brasil como uma forma de união familiar seja com casais do mesmo sexo
ou não.
332
Sul (3,6%). A meta 9 do Plano Nacional de Educação para 2015, que previa a redução
desse indicador para 6,5%, só foi alcançada para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.37
Observamos com base nos dados que 17,4% dos moradores da comunidade se
encontram em situação de emprego informal, e 20,2% se declaram autônomos e 25,3
estão fora do mercado de trabalho o que infelizmente é uma realidade nacional, tendo em
vista o auto índice de desemprego no Brasil no atual cenário que o país vive.
16,6% Autônomo
17,4%
Aposentado/Pensionis
ta
Não Trabalha
Desempregado (a)
25,3% 20,2% Auxílio Doença
Estágio
37Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de
noticias/releases/18992-pnad-continua-2016-51-da-populacao-com-25-anos-ou-mais-do-brasil
possuiam-apenas-o-ensino-fundamental-completo.
38 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-04/taxa-de-desemprego-sobe-
para-131-diz-pesquisa-do-ibge
333
Gráfico 7: Remuneração Mensal do Morador
0,8%
Menos de 1
salário
Apenas 1 salário
35,2% 36,8%
De 1 a 3 salários
Sem Remuneração
Com base nos dados, observamos que a maioria dos moradores do Residencial
Praia Mar com 36,8% recebe menos de 1 salário mínimo, seguido respectivamente de
35,2% sem remuneração, 21,2% apenas 1 salário, 5,9% de 1 a 3 salários. Deixando claro
mais uma vez, o quanto os fatores educacionais, as condições do mercado de trabalho
entre outros fatores influenciam diretamente da renda dos indivíduos e na sua qualidade
de vida.
Esses dados só vêm reforçar a situação atual do residencial Praia Mar conforme
especificado nas tabelas anteriores. Todavia, vale ressaltar que segundo o IBGE a nível
nacional, não é diferente o cenário ao que se refere à renda familiar. Todavia, vale
ressaltar que segundo o IBGE a nível nacional, não é diferente o cenário ao que se refere
à renda familiar, como podemos observa que a desigualdades de rendimento acarretam
muitas outras: 80% dos domicílios dos 10% mais ricos têm saneamento adequado, contra
um terço dos 40% mais pobres; existem mais de 30% de empregados sem carteira entre
os 40% mais pobres e apenas 8% entre os 10% mais ricos; o percentual de estudantes de
nível superior, de 20 a 24 anos, também é bastante desigual nos dois grupos, de 23,4% e
de 4%, respectivamente.
Renda das famílias com filhos é menor em se tratando do tipo de arranjo familiar,
nas famílias em que o homem é a pessoa de referência, os tipos de família mais frequentes
são "casal com filhos" (70,9%) e "casal sem filhos" (18,2%). Nas famílias em que a mulher
é a referência, predominam as sem cônjuge e com filhos (65,1%), seguidas do tipo
unipessoal (17,1%). Observa-se que, independentemente do sexo da pessoa de referência,
as famílias com filhos têm as mais baixas médias de rendimento familiar per capita. As do
tipo "casal com filhos", chefiadas por homens, têm rendimento médio de R$295,80, e as
chefiadas por mulheres "sem cônjuge com filhos", R$263,9039.
Observamos com base nos dados que o perfil da comunidade do residencial Praia
Mar não difere muito da maioria da população que se encontra em situação de
vulnerabilidade social do país e que são os maiores beneficiários dos programas e
39 Disponível em https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/12062003indic2002.shtm.
334
políticas públicas, mesmo que essas ainda sejam insuficientes e não consiga atender a
todos/as que delas necessitam.
335
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do
poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990, s/nº)
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990, s/nº)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
336
Sendo de suma importância, pois visa ampliar o acesso à moradia digna, com
padrões mínimos de sustentabilidade e segurança, o referido programa ainda possibilitou
a geração de emprego e renda, assim reforçando o que sugere a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, Artigo XXIII: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha
de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o
desemprego”. (ONU, 2017, p.12).
Baseado nos questionários e no registro em campo, a comunidade do Residencial
Praia Mar, enfrenta diversas problemáticas socioambientais, tendo em vista que os
problemas sociais insidem nas questões ambientais, ao qual esta é a primeira a ficar de
lado quando estamos passando por dificuldades, sejam elas financeiras ou de saúde, e isso
não difere nas famílias do Residencial Praia Mar.
Portanto, a sensibilização e a mobilização são imprescindíveis para se alcançar um
nível de conscientização da comunidade local sobre os valores e comportamentos
ambientais, e que estes levarão a uma melhor convivência dos cidadãos com o meio
ambiente, gerando uma melhoria na qualidade de vida de todos e consequentemente
possibilitando o desenvolvimento sustentável da comunidade, conforme orienta a
portaria 464 de 2018.
Assim, a educação ambiental representa a possibilidade de contribuir para o
processo de conscientização da sociedade acerca da necessidade de participação ativa no
controle social do meio ambiente, rompendo aquela atuação passiva e fazendo surgir uma
população mobilizada e também preocupada com manutenção de seu meio, buscando
assim a tão aclamada sadia qualidade de vida.
Vale salientar que as ações de cunho de geração de emprego e renda, os plantões
psicossociais e as ações socio pedagógicas são muitos salutares, principalmente no
tocante em que o cenário brasileiro encontrasse em uma crise de desemprego, destarte,
essas ações buscaram promover uma capacitação/preparação de jovens e adultos com
vista a atender o mercado de trabalho em conformidade com a conjuntura do município,
coadunando com alguns Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) dos quais
cabem assinalar: 1. Erradicação da Pobreza; 8. Trabalho decente e Crescimento
Econômico; 10. Redução das Desigualdades, bem como, preparação destes para a
realidade local promovendo articulações e encaminhamentos a rede socioassistenciais,
fortalecimentos de vínculos familiares e comunitários, haja vista que os fatores
emocionais e familiares interferem no sujeito.
Indubitavelmente, pensar no Trabalho Social no âmbito Habitacional de Interesse
Social, é ter compreensão de que tornaremos visíveis àqueles que estão invisíveis, ou seja,
os sujeitos de direitos que estão na invisibilidade social, é buscar fortalecer o espirito de
cidadão e consigo o de pertencimento de um local, de um lugar. Não se pode visualizar
uma sociedade em que seus cidadãos estão excluídos dos direitos sociais básicos dentre
eles o da moradia digna, ao qual, este não se pode vislumbrar apenas pela concessão de
uma UH, deve-se ir além, é galgar a moradia digna, para que os sujeitos de direitos
galguem o protagonismo social e assim fortalecer o exercício da cidadania ativa.
337
REFERÊNCIAS
BRASIL. Portaria nº 464, de 25 de julho de 2018. Dispõe sobre Trabalho Social nos
Programas e Ações do Ministério das Cidades. Diário Oficial da União, Poder executivo,
Brasília, DF, 26 jul. 2018.
BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que é Participação. São Paulo: Brasiliense: Coleção Primeiros
Passos, 1983.
Gil, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. - São Paulo: Atlas,
1999.
338
LOUREIRO, Carlos F. B. Educação Ambiental Transformadora. In: LAYRARGUES, Philippe
Pomier (Org.). Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: Ministério do
Meio Ambiente, 2004.
SANTOS, Camila Buzinaro dos. A moradia como direito fundamental. In: Âmbito
Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 116, set 2013. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13
677>. Acesso em 27 de setembro de 2019.
339
A PROTEÇÃO SOCIAL DAS MULHERES CONTRA VIOLÊNCIA DOMESTICA E A
PERSPECTIVA DE DIREITOS: UMA REFLEXÃO DESDE AMERICA LATINA AO
TOCANTINS
Eliseu Riscaroli
1 INTRODUÇÃO
Para Wolker, a violência contra a mulher apresenta um padrão que ela denominou
de “ciclo da violência” que percorre três estágios: acumulação de tensão, explosão e lua
340
de mel. Com o passar do tempo o ciclo se repete podendo chegar ao assassinato, suicídio
ou homicídio. Tal situação exige que o estado assegure às mulheres vítimas de violência,
um conjunto de serviços tais como, saúde, policiamento, justiça e acompanhamento
psicossocial.
A justiça e outras políticas sociais podem ser entendidas a partir da tríade de
Fraser redistribuição/reconhecimento/representação. Assim, reconhecer a condição de
violência das mulheres como resultado dos processos de (não) representação nas mais
variadas instâncias da sociedade – família, igreja, política, direção/governança – requer a
instituição da redistribuição de direitos, salários, poder nos diferentes espaços da vida
social.
Essa violência se reflete na tabela abaixo produzida pela CEPAL/Observatório da
Igualdade de Gênero que visibiliza o feminicídio em 16 países da América Latina. El
Salvador aparece como o mais violento e o Chile como melhor país no trato ao combate a
violência contra a mulher, considerando os números absolutos e taxa por cada 100
mil/mulheres. O ressurgimento de partidos de extrema direita tem favorecido o
afloramento da violência contra mulheres, população LBGT, migrantes, afro descendente,
entre outros. A falta de autonomia financeira das mulheres corrobora para a elevação da
violência e sua dependência dos maridos/esposas/companheiros.
No relatório, produzido pela Organização Pan-Americana de Saúde em colaboração
com os Centros para Controle de Doenças dos EUA (CDC), destaca-se que e violência
sexual contra as mulheres por parceiro íntimo é generalizada em toda a América Latina e
nos países do Caribe, onde os dados da pesquisa foram coletados. Entre 17% e 53% das
mulheres entrevistadas relataram ter sofrido violência física ou sexual por um parceiro
íntimo. Em sete dos países, mais de uma em cada quatro mulheres relataram violência (El
Salvador - 26.3%, Guatemala - 27.3%, Nicarágua - 29.3%, Equador - 32.4%, Peru - 39.5%,
Colômbia - 39.7%, Bolívia - 53.3%). No Brasil, este índice figura na casa dos 20%, segundo
Instituto Patricia Galvão. Para combater essa sanha humana, os movimentos, partidos,
entidades de classe vão propondo leis para combater, amenizar a violência. Outro aspecto
que afeta diretamente as mulheres diz respeito aos cuidados com a saúde sua e do bebe.
Nesse sentido foi criado a licença maternidade como estratégia de oferecer às mães um
tempo dedicado ao cuidado do filho recém-nascido. Embora a licença seja um fator
importante na organização familiar e reconhecida como política pública para dar
segurança a mãe e filho, segundo o site da ONU news há 119 países que não oferecem
nenhum subsidio pra licença maternidade. Já a licença paternidade é concedida em 78
países. O quadro a seguir apresenta um esboço de como as sociedades tratam da questão
da violência e proteção das mães e futuros cidadãos.
40Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Panamá, Paraguai,
Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela preveem cotas.
341
Feminicidio**41 16 04
Licença maternidade**42 15 05
Casamento homoafetivo**43 08 12
Adoçao homoafetiva ** 05 15
Fonte: * Araujo. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos. 2016.
** compilação feita pelo autor para países da America Latina.
Destarte que a violencia é tambem fruto das condições salariais e renda das
familias e poulações. Desse modo, países nordicos tem apresentado melhor equidade
quando o quesito de comparaçao na igualdade de genero é o salario/renda – Noruega,
Islandia, Finlandia, Suécia e irlanda encabeçam a lista. Mas chama atençao um pais
africano cuja diferença é de 1,75%, é o caso de Ruanda. Na outra extremidade estao Iemen,
Paquistão, Irã, Jordania e Marrocos com as maiores disparidades, chegando a 82% (World
Economic Forum. 2015). O reconhecimento de uma desigualdade material em desfavor
das mulheres, exige a redistribuição da justiça/renda e por conseguinte maior
representaçao das mulheres nas instancias responsaveis pela criação/atribuição de
direitos agora reconhecidos como politica publica.
Por outro lado, o Art. 2.1 do PIDESC – Pacto Internacional sobre Direitos
Economicos, Sociais e Culturais exige que os estados mobilizem o maximo de recursos
disponiveis para a efetivaçao progressiva dos direitos humanos. Constou nos Objetivos do
Milenio o item 3, que apontava para uma especificidade: igualdade entre os sexos e
valorizaçao da mulher. Falhamos, apesar dos esforços, segundo o infografico produzido
por Araujo, nos paises do Norte só 1,4% das mulheres economicamente ativas recebem
pelo trabalho domestico, ao passo que no Oriente Medio e America Latina/Caribe o indice
chega a 31,8% e 26,6% respectivamente. Ou seja, paises desenvolvidos e ricos não pagam
o trabalho doméstico. Mais recentemente, no estabelecimento dos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentavel o objetivo 5 reconfigura o objetivo 3 do OM, que remete à
igualdade de genero, e a meta porposta para que tal seja alcançado será 2030.
Quando o nosso olhar foca na presença de mulheres no executivo a disparidade se
repete. Matéria da Agencia Brasil aponta que os dez países com melhor indice de
lideranças femininas no executivo são: Nova Zelandia, Chile, Reino Unido, Suiça, Islandia,
Noruega, Peru, Alemanha, Ilhas Marshal e Myamar. O levantamento considera o ranking
do Forum Economico Mundial (2017) que tras um painel da situaçao de igualdade de
genero e de salario. Em 2018 ja fomos para o 95º, pior resultado desde 2011.
342
8º Irlanda Bolivia (17º), Barbados
9º Nova Zelandia (23º), Cuba (25º), Bahamas
10º Filipinas (27º), Argentina (34º),
Colombia (36º) Equador
(42º).
90º Brasil
Media salarial em 2017 Homem Mulher
US$ 21mil US$ 12mil
Fonte: forum Economico Mundial. 2017.
343
Quadro 03 – representação de genero – instancias de poder
44
Argentina, Bélgica, Espanha, EUA, França, Guiana Francesa, Guiana Inglesa, Holanda, Inglaterra, Itália,
Luxemburgo, Noruega, Paraguai, Portugal, Suíça, Uruguai e Venezuela.
344
Quadro 05 – Violencia contra mulher – indicadores nacionais /estaduais. 2016.
Descriçao 1º 2º 3º 4º 5º
Agravos de violencia TO MS AC PR MG
Relatos de violencia DF MG RJ PI ES
Homicidio de mulheres RR MT GO ES RO
Inqueritos novos sobre violencia RS AC RJ DF MS
domestica
Execuçao penal de violencia domestica SC AP RO MS RR
Fonte: Senado Federal. Panorama da violencia contra mulher. 2016.
Pelos dados da SSP o numero de hmicidios de mulheres cresceu 228% nos dez anos
tomados como base. Tomando o municipio de Palmas cujos dados estao mais acessiveis,
de 2018/19 os casos de violencia domestica cresceram 135%, isso nos dá uma visao geral
da (in)visibilidade acerca da violencia domestica. Agentes sem formaçao na questão de
genero, falta de infra estrutura, falta de espaços proprio para as DEAM’s, falta de delegado,
etc.
Se tomarmar uma DEAM especifica – Tocantinopolis – veremos que o fluxo de BO
e inqueritos é siginificativamente baixo no segundo, elemento que gera denuncia no juizo
contra o agressor.
Tipificação/ano 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
B.O 124 1 1 3 3 2 1 2 1 9 1
55 30 8 8 22 78 01 03 2 67
Inquéritos 18 8 4 0 0 1 8 1 5 5 5
4 6 81 1 40 6 2 8
% de BO 5 3 - - 8 4 6 5 5 3
transformados 14,5% 4,1% 5,3% ----- ----- 1,5% 5,5% 9,6% 4,6% 4,1% 4,7%
em Inquéritos
346
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos dias atuais a violencia tem ganhado um aliado real que exerce poder simbolico
extraordinario. Quando o presidente gesticula como se estivesse atirando, quando o
governador do Rio de Janeiro comemora a execução do sequestrador, tais fatos
corroboram para a (re)afirmação de uma violencia que autoriza o homem a exercer um
poder nada simbolico, mas tambem ele de forma reforçada.
Como a Lei Maria da Penha viza(va) coibir a agressão vislumbrando tambem uma
reeducação do agressor tal perspectiva ao nosso ver, acabou por corroborar a pouca
eficacia da lei, o agressor, na grande maioria dos casos, sofre apenas um constrangimento
social. Medidas protetivas obsoletas, falta da ‘casa da mulher brasileira’, agentes publicos
mal formados, coleta de dados nos formularios das Deam’s são alguns dos elementos que
reforçam a permanencia da violencia.
Some se a isso tudo uma cruzada contra aspectos educativos do Plano
Nacional/Estadual/municipal de Educação que em muitos casos solaparam os temas
genero e sexualidade dos componentes curriculares. O plano por si só nao resolve as
questões afetas a gravidez na adolescencia, drogas, violencia,, etc, mas com certeza seria
uma elemento a mais no processo de formaçao de homens e mulheres mais solidarios,
mais justos, menos violentos.
O combate a violencia contra a mulher ou qualquer outra deve considerar aspectos
como misoginia, androcentrismo, lesbofobia, racismo. O mundo atual nao permite uma
unica ordem normativa, seja do ponto de vista economico, social, sexual, artistico
teologico. Infelizmente o esforço para essa multiplicidade ainda é pequeno. Maes de santo
são mais estigmatizadas do que mulheres em geral, pelo simples fato de professarem uma
fé diferente da minha, da sua.
Pensar a redistribuição da justiça, da renda pode ser uma forma de normatividade
um pouco fora do padrão atual, mas necessario. E nem vai essa redistribuiçao que
promoverá a derrocada do capitalismo. Assim como o reconhecimento de que a violencia
exige ações do poder publico para frear a onda de assassinatos de mulheres. Mas tambem
é preciso dar mais atenção à representatividade: mesmo sendo 51% da população, as
mulheres continuam votando no candidato masculino, geralmente branco, cristão, rico.
Ha que se construir uma perspectiva diferente, uma nova normatividade politica que
tenha na equidade seu principal fundamento. Nem o capitalismo nem a lei estão sob o fio
da espada, como diz Fraser, “quero tornar o capitalismo um objeto de critica. O que eu
chamo de redistribuiçao e reconhecimento poderia ser chamado de economia politica e
cultura”.
Como diz Baptista, a violencia pode ser denunciada no conceito do ‘amolador de
faca’:
A fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui aliados,
agentes sem rostos que prepara o solo para estes sinistros atos. Sem cara
ou personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas,
moddos de viver, modos de pensar que circulam entre familias,
jornalistas prefeitos, artistas, padres, psicanalistas, etc. Destituidos de
aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vitima,
reduzindo-a a pobre coitado, cumplice do ato, carente de cuidado, fraco e
estranho a nós, estranho a uma condiçao humana pelnamente viva. Os
amoladores de faca, à semelhança dos cortadores de membros,
fragmentam a violencia na cotidianidade, remetendo-a a
particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades
são alguns dos produtos desses agentes. Onde estarão os amoladores de
347
facas? Ja que invisiveis no dia a dia, a presença desses aliados é dificil de
detectar. A ação desse discurso é microscopico, complacente e
cuidadosa.nao seguem as regras dos torturadores, que reprimem e usam
a dor. Avidos por criarem perguntas e responde-laspor criar problemas e
soluciona-los, defendem um humanismo que preencha o vazio de um
homem fraco e sem força, um homem angustiado e perplexo, necessitado
de tutela (BAPTISTA. 1999. P.46)
REFERENCIAS:
Araujo, Maria de F. & Mattioli, Olga C. Genero e Violencia. Arte & Ciencia. Sao Paulo.
2004.
Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. Trad: Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro.
Bertrand. 2011.
Campello, Tereza. Gentili, Pablo. Rodrigues, Monica. Hoewell, Gabriel Rizzo. Faces da
desigualdade no brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Revista Saude Debate. Rio
de janeiro. V 42. 2018.
Cerqueira, Daniel. Bueno, Samira. Lima, Renato Sergio et al. Atlas da violencia 2017.
Rio de Janeiro. IPEA/Forum Brasileiro de Segurança Publica. 2017.
Capraro, Chiara. Direitos das Mulheres e Justiça Fiscal. Revista Internacional de Direitos
Humanos 24. V. 13 N. 24. 2016.
Georges, Rafael. A distancia que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras.
Oxfam. Sao Paulo. 2017.
Sites consultados
348
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/brasil-cai-para-95o-em-lista-de-
desigualdade-de-genero-do-forum-economico-mundial.shtml acesso em 02 set 2019.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/589892-cuba-feminicidios-os-crimes-que-o-
socialismo-esconde acesso em 29 ago 2019.
349
DA ESCOLA AO TRABALHO: VIOLAÇÃO DO DIREITO À EXISTÊNCIA CULTURAL DOS
CIGANOS NO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
45 Os traços diacríticos são sinais ou signos manifestos (BARTH, 1998) que escolhemos e exibimos na
intenção de demonstrar ou representar nossa identidade e se diferenciar do outro.
350
educacionais e do trabalho, analisando as informações mais importantes que
problematizam as questões relacionadas ao objeto da pesquisa.
2 OS CIGANOS BRASILEIROS.
Responda rapidamente, quando falamos sobre ciganos qual primeira imagem vem
a sua mente? Será que as primeiras imagens que vêm a sua mente estão relacionadas com
as cartas, com o vestuário, ou será que estão relacionadas com a dança ou música? Se sua
resposta foi positiva e você imaginou uma mulher vestida a caráter lendo as mãos de
alguém, por traz de uma bola de cristal, ou mesmo lendo a sorte de alguém nas cartas,
então temos um problema que é preciso esclarecer.
A despretensão dessa pergunta enseja um fenômeno, ou um problema social,
muito importante para o estudo das relações sociais entre ciganos e não ciganos, e por sua
vez, ao estudo das violações dos direitos educacional, ao trabalho e de existência cultural:
o estereótipo.
Isso porque, o estereótipo traz uma falsa ou ilusória imagem do objeto
estereotipado, desviando a atenção, não para os dados de sua existência real, mas como
uma projeção imagética de alguns traços identitários, culturais e históricos que são
significados como universais e naturais. No entanto, nem são universais nem tão quanto
naturais, são socialmente construídos.
Da mesma forma, como ocorre com os índios, que são ilustrados como indivíduos
com cocais na cabeça, pinturas corporais e morando no meio do mato. A própria mídia em
geral promove a reprodução dos estereótipos e estigmas vinculados aos ciganos no
mundo. Esse mesmo fenômeno social que estereotipa o cigano nessas projeções
imagéticas também o projeta como indivíduo festeiro e por isso vagabundo, malandro e
não propenso ao estudo, nem ao trabalho. Por questões semelhantes a essa, Dantas e
Goldfarb (2015), esclarecem que “trata-se de dimensões ou projeções imagéticas que
tentam incutir uma displasia étnico-cultural, que não converge com a realidade vivida
pelos ciganos no mundo contemporâneo”.
Na vida real, os ciganos46 são grupos ou comunidades tradicionais diversas que são
considerados grupos étnicos47. Enquanto para Barth (1998) grupos étnicos são grupos
que se consideram e são considerados como culturalmente distintos; para Weber (1994),
são grupos de pessoas unidas em torno da crença numa descendência ou história comum.
Os grupos étnicos são para Cohen (1994) um fenômeno de natureza política ou
econômica, onde seus membros estão unidos em torno de interesses comuns.
Os “ciganos” como um grupo étnico único não existe, o que realmente existe é uma
diversidade de grupos que se subdividem a partir de algumas ramificações principais,
nomeadas como: os Rom, os Calon, os Sinti e os Kalderash48. Tendo como maior
representação quantitativa em território brasileiro os ciganos Calon.
No mundo, atualmente, estima-se que existam cerca de 12 milhões de ciganos, dos
quais, a maior parte se encontra na Europa (IVATS, 1975). No Brasil, o segundo país com
46 O termo “ciganos” foi uma denominação aplicada pelos não ciganos aos grupos étnicos originários da
Índia e que migraram a partir do século X (FOLETIER, 1984, p.6), em diversas direções e localidades do
mundo.
47 Grupo étnico é aquele definido como uma forma de organização social em populações cujos membros se
identificam e são identificados como tais pelos outros (BARTH, 1969: 11).
48 Aplicamos aqui a "Convenção para a grafia dos nomes tribais", aprovada na 1- Reunião Brasileira de
Antropologia, em 1953, que diz: "Os nomes tribais não terão flexão portuguesa de número ou gênero, quer
no uso substantival, quer no adjetival" (Revista de Antropologia, vol. 2, n° 2, 1954, pp. 150-152). Resultando
disso: os Rom, os Calon, os Sinti, os Kalderash, etc.
351
a maior população cigana no mundo, com cerca de 800 mil ciganos49, distribuídos em,
aproximadamente, 21 estados com grupos ciganos acampados ou sedentarizados. Os
estados que tem uma maior representação de ciganos no Brasil são Minas Gerais, Bahia e
Goiás. No entanto, a Paraíba é o estado que tem a maior comunidade de ciganos
sedentarizados em um único bairro, distribuídos em três ranchos, na cidade de Souza.
Os grupos ciganos de acordo com sua mobilidade podem ser divididos entre
aqueles que são sedentários (que tem residência fixa), semi sedentários (que tem
residência fixa mas passam a maior parte do tempo em trânsito, e os nômades (que não
tem moradia fixa, vivem em carroças ou acampamentos que mudam constantemente de
lugar). Essa classificação a partir do uso permanente, ou não, de determinados espaços
físicos é muito importante para a análise crítica das políticas educacionais, de emprego e
renda que precisam ser diferenciadas dado as especificidades de cada grupo.
Outro fator que precisamos considerar é a origem dos ciganos brasileiros, que
chegaram ao Brasil seja pela força do degredo português ou pelas políticas de
povoamento e trabalho no Brasil colônia na segunda metade do século XVI, como foi o
caso dos Calon; ou a partir do final do século XIX, no caso dos ciganos Rom, kalderash, etc.,
para a formação da força de trabalho industrial que rotulava a figura nacional como
"vadia", optando pelos estrangeiros e ou ex-escravos que passaram pela escola do
trabalho (KOWARICK, 1994, p.13). Esse segundo período, que marca a chegada dos
ciganos Rom no Brasil é o período pós libertação arquitetada dos escravos e início do
processo de industrialização de nosso capitalismo periférico que contrastava com a fase
imperialista do capitalismo central, e a urbanização acelerada dos espaços sociais e
dinamização dos espaços metropolitanos.
Em uma análise objetiva que partisse do princípio da legalidade exposto no art. 5º,
inc. XXXIX, da Constituição Federal brasileira de 1988, que diz que “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL,1998), e
concomitantemente com o art. 1º do Código Penal brasileira que dispõe semelhantemente
que: “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”
(BRASIL, 1940), poderíamos homologamente afirmar que a inexistência de leis
integrativas ou regulação formal de qualquer tipo ou em qualquer esfera pública ou
privada, que promovesse a escolarização plena dos ciganos no Brasil, de forma a respeitar
suas especificidades culturais não pode ser considerada uma violação de direitos, pois não
havia ainda direito formalmente determinado no ordenamento jurídico brasileiro. Esse
posicionamento respeita também o princípio da irretroatividade de uma lei.
No entanto, quando dizemos que certo direito foi violado em uma época anterior a
proclamação do direito reclamado, é porque esse direito se vincula aos direitos
fundamentais inalienáveis, como o direito à vida (artº 5º da Constituição Federal de
1988), o que envolve o direito a existência física, moral, psiquica, política, social e cultural.
Pressupomos assim, a existência precípua de certos direitos, mesmo que o direito legal
implantado a posteriore, mas violado no passado, não possa imputar pena ou sanção
formal ao violador. Desta forma, mesmo que a violação de certos direitos não tenha valor
penal, pelo principio da irretroatividade, ele tem um forte apelo moral de direito natural.
49
Tais números podem não refletir a quantidade real de ciganos no país, dado que muitos ciganos, por medo de
represálias, negam durante os censos oficiais a sua origem étnica.
352
Essas explicações são necessárias para a justificação do anacronismo intencional
exposto nesse artigo, quando atribuímos um valor formal negativo - violação de um
direito – à uma época que não existia, nem ao menos, as concepções idealistas destes
direitos.
A educação é um direito violado historicamente determinado, não apenas, a partir
do momento que o Estado reclama para si a tutela de uma educação pública “e/ou”
universal “e/ou” de qualidade50, ocorrida a partir de 1827, no período imperial brasileiro.
Mas, desde quando se implantaram processos educacionais em território brasileiro51.
Historicamente a educação brasileira tem, em geral, uma caracrística seletiva e
elitista desde a fundação, pelos jesuítas a partir de 1549, das primeiras atividades
educativas no Brasil colônia até a promulgação da constituição federal cidadã de 1988.
A escola jesuítica (1549-1759) tinha seu caráter seletivo e elitista porque
destinava-se aos filhos dos colonos excluindo os indígenas, escravos negros (SAVIANI,
2013; FALEIROS, 2011), e concomitantemente excluia os ciganos, que desde a segunda
metade do século XVI, já estavam em nosso território mandados da metrópole portuguesa
por via do degredo. Esse seletismo e elitismo das primeiras práticas educativas em
território brasileiro, sob domínio português e norteada por princípios religiosos
converteram-se em instrumento de formação da elite colonial, e se encarregavam de
manter os pobres e principalmente aqueles que realizavam algum trabalho manual, o que
envolvia diretamente os ciganos e seus meios de sobrevivência, longe dos espaços
escolares.
Com as reformas educacionais do despotismo esclarecido (1759 a 1827),
influenciadas pelo iluminismo português, que se iniciaram com as reformas pombalinas,
as caracerísticas mais notórias da educação jesuítica, seletismo e elitismo continuaram
enraizadas em todos alvarás e decretos promulgados à época. Com essas reformas o
ideário elitista da sociedade brasileira:
50 Uma impropriedade lexical ou um erro de tipo gramatical propositalmente inserido para salientar que
distante das pretenções e discursos formais da tutela estatal essas três características dificilmente
conseguiram ser concretizadas simultaneamente.
51 È preciso lembrar, para via dessa exposição, que os ciganos estão presentes em território brasileiro desde
o ano de 1574.
353
pelo planalto, e cujos colégios e seminários forma, na Colônia, os grandes
focos de irradiação da cultura. (AZEVEDO, 1976, p. 61)
53Neste sentido a nossa dissertação de mestrado (DANTAS, 2017) traz alguns pressupostos teóricos o
declinio profissional imposto aos ciganos.
355
que salientam os traços diacríticos54 de cada grupo. De acordo com Cunha Filho (2000,
p.34):
54 Os traços diacríticos são sinais ou signos manifestos (BARTH, 1998) que escolhemos e exibimos na
intenção de demonstrar ou representar nossa identidade e se diferenciar do outro.
55 Não nos referimos ao direito cultural, como um direito autoral, um direito de promoção cultural, de
preservação de um patrimônio cultural no sentido de coisa paupável, etc., mas como um direito à existencia
e reprodução cultural.
56 Além da qualificação para o trabalho.
57 O termo originalmente adotado é “assegurando-se lhes”.
58 Inciso I
356
estabelecidas na atividade educativa. Um vínculo que é estreitado pelo §1º59 do Art. 1º da
Lei de diretrizes e bases da educação nacional – LDB - Lei Nº 9.394 de 20 de dezembro de
1996, que estabelece a escola como uma instituição cultural.
Então, quando um cigano é obrigado a silenciar sua cultura por medo ou pressão
da cultura dominante no ambiente escolar ele tem seu direito cultural violado. Quando
um currículo formal não privilegia conjuntamente sua existência cultural valorizando
apenas as culturas índia e afrodescendente, enquanto o currículo real e oculto lhe impõe
o silenciamento de sua própria cultura, ele tem o direito ao seu pluralismo cultural
violado, uma existência cultural violada, dado que a existência cultural não deve ser
apenas uma existência real e física, mas também deve ser uma existência epistemológica,
abstrata, ideológica, social, psicológica e cognitiva.
Assim, a escola enquanto aparelho ideológico de Estado ao promover uma
homogeneização cultural imperativa em seu ambiente, viola o mesmo direito a existência
cultural dos ciganos, e torna o Estado dolosamente violador de direitos que deveria
proteger já que o tutelou, pois “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1988).
A escola é uma instituição cultural de ensino, que é modelada pela reprodução
social do conhecimento cultural socialmente acumulado, mas que não atende as próprias
diferenças culturais encontradas em seu meio. Isso porque, historicamente a escola serviu
mais aos processos de homogeneização do que à convivência pacífica e respeitosa da
diversidade cultural ali presente, por isso, a escola em si torna-se uma instituição
contraditória, pois foi criada e ordenada para a reprodução cultural mesmo que não
assegure a existência da diversidade cultural. Nestas questões é indissociável a percepção
histórica de suas caracteristicas mais eminentes: eurocentrismo, etnocentrismo, elitismo
e seletivismo.
A notoriedade dessas caracteristica podem ser obervadas em vários fenômenos,
dentre os quais podemos destacar, dentro do próprio arcabouço jurídico apresentado,
que, apesar da Lei de diretrizes e bases da educação nacional – LDB - Lei Nº 9.394 ter sido
promulgada 8 anos após a promulgação da Constituição Federal, em 1996, apresentando
nos Artigos 2º e 3º os princípios e fins da educação nacional, somente 25 anos depois da
CF e cerca de 17 anos após a LDB, foi que a Lei Nº 12.796, de 4 de Abril de 2013 instituiu
que o ensino deveria ser ministrado com base também pelo princípio da “consideração
com a diversidade étnico-racial.
A Carta Magna brasileira viola o mesmo direito a diversidade cultural que declara
respeitar, quando assume no artº 205, que “O Estado protegerá as manifestações das
culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional”. Viola o direito que os ciganos tem de serem reconhecidos
nomeadamente como participantes do processo civilizatório brasileiro, dado estarem em
território brasileiro desde 157460, que é relativamente o mesmo período da chegada dos
negros escravizados no Brasil.
Mas disso deriva outra problemática de ordem interpretativa que se coaduna com
a negação aos grupos étnicos ciganos do direito ao reconhecimento de sua participação
no processo civilizatório brasileiro: a interpretação restrita das relações etnicos raciais ao
binômio índio/africano, que se funda a partir da Resolução nº 1, de 17 de Junho de 2004
59 §1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino,
em instituições culturais.
60 Alguns estudos apresentados por Costa (2006, p.17), mostram a data de 1568, como a data oficial da
Apesar de nem ser uma regra, nem um determinante, [...] em relação aos
ciganos, as roupas, as indumentárias, o nomadismo, o sedentarismo, a
mobilidade por carroça, carro ou virtual , a casa, a família, a solidariedade
orgânica, a dança, a “buena dicha”, o dialeto, entre outros, são aspectos
que se fundem aos modos de reproduzir materialmente a vida, como o
mercado, o comércio e os serviços, pois todos esses âmbitos se
locupletam, formando sua rede de sustentação e sobrevivência.
361
Então, entre o direito ao trabalho não efetivado enquanto um direito de ter um
trabalho e o direito do trabalho regulado restritivamente ao âmbito do trabalho em
exercício, os ciganos transitam procurando se encaixar naqueles espaços que vão
surgindo, principalmente margeados e periféricos, tendo assim o seu direito de existência
cultural violado pela violação de seu direito ao trabalho.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
______. Presidência da República. Casa Civil: subchefia para assuntos jurídicos. Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Brasília, 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/L9394.htm>. Acessado em: 6 mai. 2019.
363
DANTAS, José Aclecio. Dissimetria Entre o Habito Cigano do Mercado e o Trabalho
Formalizado - Encontros e Desencontros. João Pessoa, 2017. 255f. Dissertação de
Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Serviço social. João Pessoa - PB,
Universidade Federal da Paraíba. 2017.
DANTAS, José Aclecio; DANTAS, Liliam Karla de Lima Souza. Escola para quem?
precarização nas condições de acesso e permanência dos ciganos na escola. In: Anais do
V Congresso Nacional de Educação - CONEDU, Recife-PE, V. 1, 2018, ISSN 2358-8829.
Disponível em: <
https://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/TRABALHO_
EV117_MD1_SA6_ID3271_07092018163627.pdf> Acesso em: 20 de Maio de 2019.
FOLETIER, François de Vaux de. O mundo como pátria. In: O Correio da Unesco. Rio de
Janeiro: Ed. brasileira. Ano 12, Dezembro/1984.
SAVIANI, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas, SP:
Autores Associados, 2013. xxix, 472 p. (Coleção memória da educação).
364
OS DESAFIOS DA INTERSETORIALIDADE DAS INSTITUIÇÕES NO ATENDIMENTO ÀS
MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA, JOÃO PESSOA-PB
1 INTRODUÇÃO
64
De acordo como Rua (1998), os inputs e os withinputs podem expressar demandas e suporte (apoio). As
demandas podem ser, por exemplo, reivindicações de bens e serviços, como saúde, educação, estradas, transportes,
segurança pública, normas de higiene e controle de produtos alimentícios, previdência social, etc.
365
ganha uma remuneração abaixo a dos homens que exercem as mesmas funções na esfera
da produção e reprodução do trabalho (HIRATA e KERGOAT, 2005).
As mulheres em vulnerabilidade social, usuárias do CRAS, que precisam serem
ouvidas e acolhidas em sua situação ou demanda, resolvidas ou encaminhadas para uma
possível resolução necessitam que seus direitos sejam efetivados e não corram o risco de
serem violados. No território de vivência observa-se que essas protagonistas de sua
própria história apresentam suas vidas marcadas por fragmentações, resistências e lutas,
contra as desigualdades sociais geradas pelo capitalismo contemporâneo que em sua
lógica reduzem cada vez mais os espaços para tais e fragmentam o atendimento nas
instituições para essas mulheres.
Sabe-se que o CRAS não é a unidade que atende diretamente as questões de
violência contra mulher, mas é um local frequentado por muitas delas, no qual serve de
apoio para encaminhá-las, pois é uma unidade pública da política de assistência social que
compõem a rede de atendimento inserida na seguridade social.
366
2 TRAJETÓRIA E CONQUISTAS SOCIAIS: A LUTA DA CLASSE TRABALHADORA POR
PROTEÇÃO SOCIAL
367
E o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, que tem seu marco de início em
2005 possui o princípio descentralizador e participativo, com função direcionada a gestão
do conteúdo específico da Assistência Social no campo da proteção social brasileira.
Por séculos, poucas detinham um suporte para uma educação que lhe viabilizasse
um aprendizado à leitura, eram as filhas de pais ricos que conseguiam apenas este
pequeno avanço da época, a mulher era vista apenas como um bem do marido, onde o
mesmo agia com domínio, com intuito de submetê-las a suas vontades.
Segundo Umasnky (1985), a igreja também disseminava essa relação de que o
homem seria o provedor maior e a mulher deveria ser submissa, pois desde pequenas
eram ensinadas a cuidar do lar e cozinhar, como se sua única tarefa e habilidades
devessem ser essas.
Pensando nas mulheres essencialmente como esposas e mães, eles viam
o lar como o domínio natural das mulheres, enquanto sustentavam que a
esfera pública da vida religiosa, aquela do estudo e da adoração pública,
era o domínio natural dos homens” (UMANSKY, 1985, p. 479).
As concepções das décadas passadas sobre o ser mulher, e seus deveres, trazem
consequências danosas para si, entre elas a violência contra a mulher, onde o parceiro
e/ou homem, mantêm a ideia primitiva e enviesada de que a mulher tende a ser submissa,
daí em diante tem-se vários casos de afronta contra a mesma que perpassam entre a
sociedade, sem fazer distinção de cor, religião ou classe.
Para chegarmos aos tempos atuais, se faz importante citar momentos de avanço e
revolução com uma visão feminina e imponderada, a partir do final dos anos 80 para 90,
as mulheres passaram a conhecer os demais problemas advindos de uma sociedade
368
fortemente machista e passaram a reagir, mostrando grandes capacidades, e atuação no
âmbito político-social. De acordo com Sarti (1998, p. 8):
Nos anos 80 o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social
consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em que estavam em jogo as relações de gênero.
As ideias feministas difundiram-se no cenário social do país, produto não só da atuação de suas
porta-vozes diretas, mas do clima receptivo das demandas de uma sociedade que se modernizava
como a brasileira. Os grupos feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração
do movimento feminista em associações profissionais, partidos, sindicatos, legitimando a mulher
como sujeito social particular (SARTI, 1998, p. 8)
Diante desse cenário a mulher se ver pressionada para muitas vezes se
sobrecarregar de tarefas que lhe mostram tamanha competência e habilidades, a mesma
ver a necessidade de romper com padrões antes gerados pelo sistema, e trazer mudanças
e um olhar que faz a própria sociedade se permitir a enxergar, para construir caminhos e
não disseminar barreiras.
No Brasil, a mobilização das mulheres foi decisiva na conquista do direito ao voto,
na participação em cargos políticos, nos avanços da Constituição, na aprovação da Lei
Maria da Penha, no Centro de referência da Mulher, e no projeto de lei que classifica o
feminicídio – lei que torna hediondo o crime caracterizado pelo assassinato de mulheres
por razões de gênero. Para Pedro (2010, p. 8):
A criação da Lei Maria da Penha (11.240/06), possibilitou o esclarecimento
perante a definição do que seria violência. Até então, entendia-se por violência, apenas
agressões que deixassem marcas visíveis como hematomas ou feridas. Nesta Lei discorre
sobre as diversas formas da violência: caráter físico, psicológico, sexual, moral ou
patrimonial. É, portanto, uma lei na qual a compreensão da violência refere-se a tudo
aquilo que fere a integridade da pessoa (PEDRO, 2010, p. 8):
Porém, a violência ainda existe como um problema a ser enfrentado nos tempos
atuais. E segundo Sardenberg (2010):
No Brasil, a passagem da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha,
representou um relevante avanço no combate à violência de gênero. A população
brasileira conhece e apoia essa legislação. Mas o OBSERVE (Observatório de
Implementação da Lei Maria da Penha) – instância autônoma da sociedade civil que
acompanha esse processo – tem alertado para as inúmeras dificuldades que se interpõem
à aplicação da nova lei, a começar pela resistência do Judiciário em criar os juizados
especiais de combate à violência doméstica praticada em mulheres, e exigidos pela Lei
Maria da Penha. (SARDENBERG, 2010).
Tais avanços alcançaram muitas mulheres sobre o apoio em instituições e leis que
asseguram o bem-estar e o direito de escolhas, porém são muitas afetadas diariamente
por questões de violência seja, verbal, moral, psicológica, física e patrimonial.
Presente no cotidiano das mulheres, com expressividade por relações de poder
entre o homem sob a mulher, os relatos da violência crescem em números alarmantes
como uma forma de violação de direitos.
Conforme os dados do gráfico acima, a violência física é a mais cometida contra a
vítima totalizando no percentual de 51,06 por centro, em segundo lugar está a violência
psicológica com 31,10 por centro, depois a violência moral e daí em diante
consecutivamente as demais formas de violência. É visto que as formas de violência física
e psicológicas são as mais ocorridas, porém há várias outras formas que assolam.
Diante disso, afirmamos, que a centralidade deste trabalho é contribuir, e dar
visibilidade ás discussões no entorno da imprescindível articulação e intersetorialidade
entre as políticas públicas sociais, sendo esta uma das maneiras de acessar e garantir os
direitos sociais.
369
A religião é um dos fortes fatores que refletem silenciosamente nas relações de
poder, o que faz apoiar a notória dominação dos homens, algumas pregações expressam
o machismo levemente ou fortemente impregnado nas falas de alguns cristãos, o que
implica nas livres decisões de muitas mulheres vítimas de violência nas denúncias tardias,
fazendo prolongar as marcas do agressor sobre a vítima. Segundo Umasnky (1985), a
igreja também disseminava essa relação de que o homem seria o provedor maior e a
mulher deveria ser submissa, pois desde pequenas eram ensinadas apenas a cuidar do lar
e cozinhar, e aceitar esta condição de vida como natural.
Portanto, essa visão de ligar a cor rosa especificamente para mulher, de atribuir a
ela somente a sensibilidade, fragilidade, sentimentalidade, e fraqueza, vem de uma
construção social, e costumes de caráter totalmente desiguais, que refletem na sociedade
que temos hoje, ou seja, essa fragmentação de pensamentos sobre poder e domínio, do
ser homem e ser mulher, foram e são rótulos criados pela sociedade, porém, rótulos esses
que ‘’o que se coloca também se tira’’, essa realidade pode e deve mudar, quando constata
que não está fazendo bem aos seres humanos ou tais indivíduos, sendo um problema
social, pois qualquer tipo de violência feri os Direitos Humanos. Araújo (2008), afirma
que,
A dominação masculina, segundo Bourdieu (1999), exerce uma "dominação simbólica"
sobre todo o tecido social, corpos e mentes, discursos e práticas sociais e institucionais;
(des)historiciza diferenças e naturaliza desigualdades entre homens e mulheres. Para Bourdieu a
dominação masculina estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida
social. (ARAÚJO, 2008, p.1).
As concepções das décadas passadas sobre o ser mulher, trazem consequências
danosas para o gênero em si, entre elas a violência contra a mulher, onde o parceiro e/ou
homem, mantêm a ideia primitiva65 e enviesada de que a mulher tende a ser submissa,
como era de costumes por décadas atrás, daí em diante tem-se vários casos de afronta
contra a mesma que perpassam entre a sociedade, sem fazer distinção de cor, religião ou
classe. Segundo Pedro (2010, p. 3):
65
Que persiste desde os primeiros tempos; antigo: fóssil primitivo. /Dicio.com – Acesso em 02/10/2018.
370
âmbito da casa voltado para o cuidado da família não é reconhecido pelo gênero
masculino. Observa-se em uma pequena concentração de famílias onde o trabalho da casa
é dividido entre os gêneros.
Portanto as desigualdades entre homem e mulher são resultantes das ideias
disseminadas pelo patriarcado, que delimitam espaços sobre os sexos, criando assim,
rótulos que limitam ou feri a capacidade de cada um.
Os movimentos e atitudes de resistência contra o machismo se deu por volta da
década de 80 para 90, o fenômeno denominado ‘’violência contra a mulher’’ no Brasil foi
criado/denominado em 1970, por meio de movimentos feministas, que perceberam que
a violência estava nos diversos espaços públicos e privados, principalmente nos próprios
lares, quando o homem ficava impune por suas ações violentas por justificativas vazias
que chamavam-se de ‘’defesa da honra’’, GROSSI, (1988).
Daí em diante as mulheres passaram a conhecer os demais problemas advindos de
uma sociedade fortemente machista, as mobilizações começam a formar corpo e as
reivindicações ganham vozes. De acordo com Sarti (1998, p. 8):
Na atualidade não existe profissão que seja apenas para homens, a mulher tem
capacidade de desempenhar o que lhe convir. Temos muitos exemplos: caminhoneiras,
motoristas de ônibus coletivo nos centros urbanos, engenheiras, pilotas de aeronaves etc.
Diante do cenário exposto observa-se que as mulheres são pressionadas há
demostrar eficiência, competência e habilidades, com sobrecarga de atividades na esfera
da produção e reprodução do trabalho. Diante desse quadro social existe a necessidade
de rompimento com os padrões determinados pelo capital determinante nas relações
entre o homem e a mulher. As bandeiras de luta vão na maré contraria exigindo do estado
371
mudanças e um olhar com nova concepção fundada na igualdade e equidade entre os
gêneros, como fundamenta os direitos humanos.
No Brasil, a mobilização das mulheres foi decisiva na conquista do direito ao voto,
na participação em cargos políticos, nos avanços da Constituição, na aprovação da Lei
Maria da Penha, no Centro de referência da Mulher, e no projeto de lei que classifica o
feminicídio66 – lei que torna hediondo o crime caracterizado pelo assassinato de mulheres
por razões de gênero, apenas pelo simples fato de ser mulher.
Ainda com os perceptíveis avanços, há muito o que melhorar, pois os números de
agressões denunciadas não diminuíram, pelo contrário, de 2016 para 2018 as estatísticas
segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, são alarmantes em números elevados,
esses fatores se explicam pela resistência que parte machista da sociedade mantém com
pensamentos retrógrados da sociedade, uma vez ou outra escuta-se frases machistas
sendo reproduzidas pelas próprias mulheres, e as vezes elas próprias se martirizam, por
discursos da sociedade que culpabilizam a mulher grande parte das vezes quando se trata
de comportamento dos filhos ou por algum problema no casamento ou com o marido.
São frases machistas que estucamos diariamente, ‘’ vai sair com saia curta? Ta
pedindo para acontecer’’, ‘’ o marido foi embora, culpa dela que não segurou’’, ‘’ cortou o
cabelo? Homem não gosta de cabelo curto’’, ‘’ seu namorado aprova você sair com essa
roupa’’? Escutamos diariamente essas e outras frases e as vezes nem nos damos conta do
quando a reprodução de comportamentos machistas se põe facilmente aos nossos
redores, se não nos policiarmos até nós mesmos reproduziremos tais discursos.
Esses discursos são combustíveis para os machistas e violentos de plantão, que
pensam que as coisas se resolvem por forças braçais, ou pressões psicológicas, e a cada
dia vemos os noticiários ou escutamos falar de conhecidos nosso retratando a cena de
alguma violência ou homicídio contra a mulher.
É preciso resistência, educação e apoio do Estado para progredir nas ações, é
necessário politizar essas pessoas sobre a conjuntura vivida e as sequelas que o machismo
pode causar, e por vez, fazer valer o que está expresso na constituição 1988, o direito de
ir e vir, a liberdade, e a dignidade da pessoa humana.
Conforme o dado do 12ª anuário Brasileiro de segurança pública verifica-se um
aumento alarmante entre os anos de 2016 a 2017 no que refere a violência contra a
mulher da forma mais drástica que é o feminicídio, a morte de mulheres como pode se
observar no gráfico 02.
Segundo os dados são 4.539 mulheres vítimas de homicídio em 2017, com
aumento de 6,1 por cento em relação a 2016, e desse total 1.133 foram registradas como
sendo vítimas de feminicídio, em 2016 havia sido um número menor sendo 929.
Os dados colhidos são alarmantes, sem contar em tantas outras ocorrências que
ainda não chegaram à denúncia para a materialização dos dados.
Diante de tantas atrocidades, a resistência da mulher se faz presente e é muito
importante para uma mobilização contínua de todos, independentemente de classe,
religião, cor ou raça. Para Pedro (2010, p. 8):
66
O feminicídio é o crime de assassinato de uma mulher cuja motivação envolve o fato de a vítima ser mulher.
Isso não quer dizer que todo o assassinato de uma mulher seja um feminicídio, mas que todo assassinato de mulher
que se justifica pelo fato de a vítima ser mulher o é. https://direitosbrasil.com/lei-feminicidio-o-que-e-e-qual-
importancia/ acesso: 25.10.2018
372
visíveis como hematomas ou feridas. Nesta Lei discorre sobre as diversas
formas da violência: caráter físico, psicológico, sexual, moral ou
patrimonial. É, portanto, uma lei na qual a compreensão da violência
refere-se a tudo aquilo que fere a integridade da pessoa. (PEDRO, 2010,
p.8)
373
O centro de referência da mulher67 (CRM), atualmente localizado em R. Afonso
Campos, 111 - Centro, João Pessoa, compõe uma equipe multiprofissional, com
advogada, psicóloga, assistente social, arte educadora, terapeuta holística. As atividades
desenvolvidas têm seu ponto de partida com o acolhimento e ouvida em suas
necessidades. No CRM desenvolve-se um trabalho para a elevação do auto estima da
mulher, e o empoderamento feminino, como também traumas consequentes de
violências e agressões, contando com toda a rede de apoio e ação intersetorial com
diversas políticas, para acolhe-las, orientá-las e encaminhá-las.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iremos adotar em todo texto a sigla CRMEB – Centro de Referência da Mulher Ednalva Bezerra do
67
REFERÊNCIAS
COSTA, Jurandir Freire. Homens e Mulheres. In: ________. Ordem Médica e Norma
Familiar. São Paulo: Graal, 1979.
DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania. 6 ed. Campinas: Papirus, 2006.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5. Ed. São Paulo: Atlas,
1999.
RUA, M.G. “As políticas públicas e a juventude nos anos 90”. In: BRASIL. Ministério do
Planejamento e Orçamento. CNPD - Comissão Nacional de População e
Desenvolvimento. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília:
CNPD, 1998.
378
INTERNAÇÃO OBRIGATÓRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS À LUZ DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
1 INTRODUÇÃO
“(...) zonas urbanas consagradas ao uso explícito e incoercível de crack (...)” (CONSELHO REGIONAL DE
68
Existe uma polêmica neste artigo, pois ele determina que a internação compulsória
deva estar em consonância com a legislação vigente. Mas, qual legislação?
383
Coelho e Oliveira (2014, p. 361) asseveram que, a exigência de legislação especial
é devido ao princípio da legalidade, principalmente nos casos que envolvem a pena
privativa de liberdade. Ressalta ainda que, para o caso em tela, a única legislação
pertinente seria a Lei de Execuções Penais (LEP), em seus artigos 99 a 101, que se referem
a medida de segurança para portadores de doença mental, quando estes cometem crime.
Nessas situações, o indivíduo é encaminhado para hospitais de custódia e não para prisão.
Nota-se, que a internação compulsória disciplinada pela lei 10.216/2001 diverge
da internação judicial prevista no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Enquanto a
primeira tem um caráter curativo e protecionista para o próprio usuário, pois este perdeu
toda capacidade de entendimento; a última tem um caráter punitivo.
Após a promulgação da mencionada lei, houve realmente uma política de proteção
dos portadores de transtornos mentais e a tentativa de inseri-los na sociedade. A
internação passou a ser a exceção, no caso da internação compulsória, devendo ser
autorizada se não for mais possível à realização de outros tratamentos existentes.
Já a recém-publicada Lei 13.840/2019, alterou a Lei de drogas (11.343/2006) e
promoveu mudanças na política nacional de drogas.
Com relação ao tratamento de usuário ou dependentes, a nova lei determina que
este seja realizado prioritariamente na modalidade ambulatorial. Sendo admitida, de
forma excepcional, a internação em unidades de saúde e hospitais e vedada à internação
em comunidades terapêuticas.
Entretanto, quando apresenta as modalidades de internação, não incluiu a
internação compulsória, ficando o texto legal da seguinte forma:
A omissão acima destacada não foi justificada pela Lei, mas existem duas
possibilidades para o ocorrido: a primeira seria que os legisladores não consideram a
necessidade da intervenção judicial no caso em tela; a segunda possibilidade seria uma
dualidade quanto à nomenclatura utilizada na lei, pois muitos pensam que internação
compulsória e internação voluntária são termos iguais.
O atual Presidente da República utilizou a nomenclatura equivocada ao mencionar
a publicação da lei, conforme é possível extrair do seu depoimento:
384
Outro ponto de destaque é que o pedido para a internação involuntária também
poderá ser feito por “servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos
públicos integrantes do SISNAD (...)” (BRASIL, 2019).
Mesmo antes da promulgação desta lei, tornou-se comum a utilização da força
policial, em locais como as cracolândias69, a fim procurar e levar coercitivamente os
usuários encontrados para clínicas, e mantê-los lá por tempo indeterminado.
Para Coelho e Oliveira (2014, p. 364), os episódios que ocorreram em 2012 nas
cracolândias, instigaram discussões acerca da atitude da Prefeitura da São Paulo em
promover a internação forçada dos usuários de Crack, pois, parte da classe média e alta
defendeu a política municipal, tendo em vista que, aquelas pessoas reunidas
representavam um perigo para o trânsito de terceiros.
Ainda segundo os autores, tal conduta foi justificada pela prefeitura, sob o
argumento de preocupação com os usuários de crack. Entretanto, foi nítido o objetivo
higienizador do programa, já que seriam realizadas algumas internações pouco tempo
depois do ocorrido.
Fachin (2008) resume com louvor a ascensão deste princípio como fundamento
constitucional:
69“Hoje a PM me acordou com jeito, pediu com educação pra levantar. Mas tem dia que a gente já acorda
com o pau de choque”, Depoimento de um morador da Cracolândia em São Paulo, publicado por Galhardo
(2013) no Último Segundo – IG.
385
garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração
os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral –
psicofísica, da liberdade e da solidariedade (MORAES, 2003, p. 85).
Nesse passo, tanto a Lei 10.216/2001, quanto a Lei 13.840/2019, deixam claros
que a internação obrigatória deve ser a última medida escolhida para a realização do
tratamento. Ou seja, deve ser a exceção à regra, que são os tratamentos ambulatoriais.
Contudo, as medidas de internação em massa, efetivadas por algumas prefeituras,
são cada vez mais frequentes. O que demostra uma interpretação equivocada das
supramencionadas leis.
A Organização Pan-americana de Saúde (2013) “considera inadequada e ineficaz a
adoção da internação involuntária ou compulsória como estratégia central para o
tratamento da dependência de drogas.”
Ainda segundo a Organização:
6 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
_______. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental. Diário Oficial. Brasília. 6 de abril de 2001. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10216.htm. Acesso: 10 set.
2019.
_______. Lei no 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de
2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de
10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de
1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22
387
de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para
dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de
atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das
políticas sobre drogas.. Diário Oficial. Brasília. 05 de junho de 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm. Acesso:
10 set. 2019.
_______. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial.
Brasília, DF, 10 de outubro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm . Acesso: 10 set. 2019.
BOLSONARO, Jair. Nesta semana, sancionei lei que autoriza a internação
compulsória de dependentes químicos, podendo ser solicitada pela família ou
responsável legal. Por vezes, esse é o último recurso possível para impedir um mal
ainda maior. O dependente não é livre, é um escravo da droga. Brasília, 07, jun.
2019. Twitter: @jairbolsonaro. Disponível em:
https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1137125025226612736. Acesso em: 19 jun.
2019.
COELHO, Isabel; OLIVEIRA, Maria Helena Barros de. Internação compulsória e crack: um
desserviço à saúde pública. Saúde em Debate, [s.l.], v. 38, n. 101, p.359-367, 2014. GN1
Genesis Network. http://dx.doi.org/10.5935/0103-1104.20140033. Acesso em: 19 jun.
2019.
388
a-tecnica-da-opas-oms-no-brasil-sobre-internacao-involuntaria-e-compulsoria-de-
pessoas-que-usam-drogas&Itemid=875. Acesso em: 19 set. 2019.
PRATTA, Elisângela Maria Machado; SANTOS, Manoel Antônio dos. O processo saúde-
doença e a dependência química: interfaces e evolução. Psicologia: Teoria e Pesquisa,
[s.l.], v. 25, n. 2, p.203-211, jun. 2009. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s0102-37722009000200008. . Acesso em: 19 jun. 2019.
389
CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COM O ADVENTO DA LEI
13.718/18: AVANÇO OU RETROCESSO?
1 INTRODUÇÃO
396
fotografia ou filmagem) sem o consentimento da vítima, comete o crime do artigo 216-B
do Código Penal (registro não autorizado da intimidade sexual), infração de menor
potencial ofensivo, visto que a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa.
Caso haja, contudo, uma posterior divulgação do conteúdo a terceiros, também de forma
não consentida, responderá pelo 218-C, sendo absolvido o crime anterior pela infração
mais grave. (ESTEFAM, 2019).
As causas de aumento estão especificadas no parágrafo primeiro do artigo: a
primeira causa envolve a existência de relação íntima de afeto existente entre o agente e
a vítima, não importando o gênero e nem a intensidade ou tempo de duração do
envolvimento. A segunda e terceira causas de aumento estão relacionadas à motivação:
vingança e/ou humilhação. O juiz deve graduar o aumento de acordo com a intensidade
da relação mantida, bem como a reprovabilidade do fato motivador da vingança e grau
de humilhação. (ESTEFAM, 2019).
Por seu turno, o parágrafo segundo do artigo trata das causas de exclusão de
ilicitude do fato:
Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput
deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural
ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação
da vítima, ressalvada sua prévia autorização, se ela for maior de dezoito
anos. (ESTEFAM, 2019, p. 794).
Por conseguinte, deve haver uma garantia de paz social e da segurança pública
com o respeito à liberdade individual. Segundo esse princípio, o direito punitivo estatal
deve sempre ser limitado, de modo a ter como prioridade os objetivos de realização dos
interesses sociais maiores.
No que tange a pornografia de vingança, será que esta não pode ser tutelada por
outros ramos do Direito? Muitas vítimas têm buscado a reparação do dano civilmente,
mesmo antes da criminalização da conduta. No âmbito civil há a proteção da Lei do
Marco Civil da Internet que, no seu artigo 218 da Lei nº 12.965/14 dispõe que o provedor
de aplicações de internet só será responsabilizado se manter o conteúdo após a
notificação do participante ou de seu representante. Ou seja, terá a sua responsabilidade
excluída após a retirada dos conteúdos gerados por terceiros que contém a cena de
nudez.
A responsabilidade civil, segundo o artigo 9279, caput do Código Civil, permite a
obrigação de indenizar daquele que causar dano. Tal responsabilidade pode ser dividida
em objetiva, a qual independe de culpa, e subjetiva, a qual necessita que haja a
comprovação. Em relação à pornografia de vingança, especificamente, a comprovação da
culpa do agente é imprescindível, ou seja, deve ser provado que o expositor do conteúdo
teve o dolo de expor a vítima. (SALES, 2017).
Importante destacar, contudo, que a reparação civil possui particularidades que
dificultam a sua aplicação. Em primeiro lugar, repara-se que esse padrão deixa de punir,
coibir e prevenir a história sócio-cultural que envolve a pornografia de vingança.
(PINHEIRO, 2018). Estabelecer um valor indenizatório, independentemente de quanto
seja, não é suficiente para evitar novos casos, tampouco para mudar o papel naturalizado
da mulher na sociedade ao longo dos séculos.
Outro problema encontrado na reparação civil é que, por ser inestimável a dor e
sofrimento causados pelo delito, não há um padrão para a aferição do montante devido.
O que ocasiona em divergências demasiadas nos valores arbitrados a título de
indenização, para casos praticamente idênticos. Isto porque, segundo o Código Civil,
ficará a discernimento do magistrado a quantificação do valor, sendo arbitrado o que ele
considerar razoável em cada caso concreto. (SILVA, 2017).
Tal situação se mostra exemplificada com a grande quantidade de decisões
judiciais cuja sentença inexista qualquer expressão à metodologia empregada para se
chegar ao valor reparatório à vítima, não havendo qualquer critério técnico. Há, além
disso, uma dificuldade do magistrado em estabelecer um valor que seja justo para a
vítima e que não lhe cause enriquecimento ilícito, reparando integralmente o dano
causado. (BARREIROS, 2018). Há um problema em fixar os critérios de quantificação do
dano, mantendo o equilíbrio entre a lesão sofrida pela vítima, a efetiva punição do
acusado, e a obrigação de prevenir o enriquecimento sem causa, de modo que a
indenização sirva unicamente para reparar o que foi causado na vítima.
Além disso, a dificuldade de padronização se dá também porque há magistrados
que ainda não reconhecem a pornografia de vingança como uma violência de gênero,
398
enquanto que outros entendem a mulher como um sujeito de direitos. Em decisões dos
tribunais é comum nos depararmos com votos e discursos repletos de preconceitos
emitidos pelos magistrados, bem como a falta de padronização nas decisões em casos
semelhantes.
Em um julgado no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (2015), após provada a
divulgação de material, bem como o constrangimento causado na vítima, foi fixada a
condenação de cem mil reais, na sentença de primeiro grau. A vítima, a qual mantinha
uma relação com o agressor por mais de um ano, trocava conteúdos íntimos por
morarem em cidades distintas. Entretanto, após o fim do relacionamento, o ex
companheiro salvou as fotos íntimas da vítima em computadores de uma faculdade e as
enviou para o email de usuários de diversos países. (SILVA, 2016).
Em apelação, todavia, a indenização foi reduzida de cem mil para cinco mil reais
com base em argumentos que demonstram o quanto a vítima ainda é culpabilizada pela
exposição também pelo judiciário brasileiro. Segundo entendimento do Desembargador
revisor do caso:
Todavia, tais funções apresentam uma eficácia puramente simbólica, visto que
não são exercidas. Enquanto isso, outras funções antagônicas vão sendo realizadas e são,
além disso, totalmente contrárias às funções socialmente úteis que o discurso oficial
promete. Diferentemente da função legitimadora, o Sistema Penal não possui como
escopo combater a criminalidade e proteger os bens jurídicos universais, de modo a
garantir uma segurança pública. A real função do sistema é garantir a seletividade e
construí-la de maneira estigmatizadora, reproduzindo as desigualdades e assimetrias
sociais. (ANDRADE, 2005)
No caso da pornografia de vingança, a vítima que busca o sistema requerendo o
julgamento da conduta acaba sofrendo um julgamento moral pela visão masculina da lei,
da policia e da Justiça, devendo provar que não é uma vitima simulada, mas real. Diante
dos crimes sexuais, tem sido destaque a forma como as demandas femininas são
expostas a constante suspeita e submetidas a constrangimento durante o inquérito e
processo penal, sendo investigada a moralidade da vítima para enquadrá-la em
apropriada ou inapropriada e mantendo dúvidas acerca da sua credibilidade.
(ANDRADE, 2005).
É certo que o sistema jurídico foi pensado, desenvolvido e aplicado por homens e
para homens. Durante toda a história as mulheres ficaram de fora e foram
desconsideradas. É um sistema opressor, o qual reforça o patriarcalismo, pois se trata de
um Direito machista e sexista. É certo também que as prisões são negócios, fonte de lucro
para as empresas construtoras e que trabalham com vigilância e segurança, bem como o
lucro advindo da mão de obra barata. (DAMITZ, 2018).
Além disso, o sistema penal é, e sempre foi, marcado pela seletividade. Apesar da
maioria das pessoas praticarem fatos definidos como crimes e contravenções, apenas
determinados grupos da população são criminalizados, no qual a maioria é composta
majoritariamente por jovens, de classe social baixa e negros. Ou seja, percebe-se que a
impunidade e criminalização são norteadas pela seleção desigual de pessoas e não pela
incriminalização igualitária de condutas. (ANDRADE, 2005).
Por outro lado, a classificação de vítima também se dá de forma seletiva, pois, há
400
também uma distribuição desigual do status de vítima, sobretudo porque o Estado
costuma separar entre mulheres “honestas” e mulheres “não honestas”. Dessa forma, aos
olhos do sistema penal, as primeiras são classificadas como vítimas, enquanto estas são
abandonadas pelo sistema. Portanto, ao criminalizar a pornografia de vingança não será
reconhecia a violação contra a liberdade sexual feminina, mas sim será julgado o seu
comportamento e reputação sexual. (ANDRADE, 2005).
Dito isso, sabe-se que, historicamente, o Direito Penal é ineficaz na proteção
contra a violência de gênero, visto que não previne novas violências, não busca
compreender a realidade da vítima e da violência vivida, tampouco transforma as novas
relações de gênero. (BUZZI, 2015). Além disso, duplica a violência contra elas, as dividem
em um processo extremamente excludente, afetando assim a própria unidade que o
movimento feminista objetiva. Tal violência se duplica porque, além de sujeita à
violência masculina, ainda é à violência institucional, pois é refém da desigualdade de
classes e da desigualdade de gênero, fruto do patriarcalismo. (ANDRADE, 2005).
Há uma enganadora sensação de resolução do problema, pois a imposição da pena
desvia o foco caracterizado pelo combate à violência de gênero. O poder punitivo
fomenta às desigualdades e controla e oprime a sexualidade feminina, reproduzindo
estereótipos e preconceitos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de direito penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, 760p.
BARRETO, Kállita Almeida; FONSECA, Samara Oliveira; SILVA, Silvana Lovera. Revenge
Porn: crime rápido, consequências Perpétuas. Revista Extensão, [S. l], v.2, n.1, p. 42-48.
2018. Disponível em:
<https://revista.unitins.br/index.php/extensao/article/view/1175/860>. Acesso
em: 08 abr. 2019.
402
direitos assegurados à mulher pela Lei Maria da Penha, bem como reconhece que a
violação da sua intimidade consiste em uma das formas de violência doméstica e
familiar; tipifica a exposição pública da intimidade sexual; e altera a Lei n° 11.340 de 7
de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de
1940 (Código Penal). Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2013. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=576
366>. Acesso em: 09 ago. 2019.
BRASIL. Projeto de Lei n. 7.377, de 07 de abril de 2014. Altera o Código Penal para
tipificar o delito de violação de privacidade. Câmara dos Deputados, Brasília, DF,
2014. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=6116
08>. Acesso em: 18 ago. 2019.
403
1940, Código Penal, e inserindo a conduta no âmbito protetivo do sistema de combate à
violência contra a mulher, da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Câmara dos
Deputados, Brasília, DF, 2016. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2078
031>. Acesso em: 18 ago. 2019.
BRASIL. Projeto de Lei n. 6.668, de dezembro de 2016. Esta lei tipifica o crime de
pornografia e revanche, bem como a publicação de material pornográfico, como
fotografias ou vídeos que contenham cenas consideradas pornográficas ou cenas de
sexo explícito, se não houver ordem ou autorização da vítima, e dá outras providências.
Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2016. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=151653
9&filena me=Tramitac ao-PL+6668/2016>. Acesso em: 18 de ago. 2019.
ESTEFAM, André. Direito penal, volume 2: parte especial. (arts. 121 a 234-B). 6. ed.
ão Paulo: Saraiva Educação, 2019, 840p.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal: dos crimes contra a dignidade
sexual aos crimes contra a administração. 23. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2019, 248p.
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte especial (arts. 213 a 359-H). 9. ed. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, 1032p.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2019, 1612p.
406
DIREITOS HUMANOS COMO MECANISMO DE ENFRETAMENTO DA POBREZA: UMA
EXPERIÊNCIA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
1 INTRODUÇÃO
2 REFERENCIAL TEÓRICO
70Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-04/banco-mundial-alerta-
para-aumento-da-pobreza-no-brasil.
408
tipo urbano-industrial”. Já que a industrialização condicionou um processo de expansão
populacional nos grandes centros urbanos, decorrente do êxodo rural em razão da saída
em massa da população do campo para a cidade, onde crescem “as oportunidades de
emprego ou ocupação”, favorecendo um crescimento acelerado e desorganizado das áreas
urbanas, sobretudo daquelas localidades onde o desenvolvimento industrial mais se
dinamiza.
Na cocnepção de Silva et al (2013, p.52)
Os direitos humanos é parte central para que estas famílias que estão inseridas
nessa comunidade posssam ter uma melhor perspectiva de vida e se tornem sujeitos de
direitos, considerando o Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos humanos, “Todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DO DIREITOS HUMANOS, 1948, p. 471).
Assim, entendemos que as relações entre o meio ambiente e a saúde da pessoa
humana são alicerçadas nos serviços de saneamento básico. A população é a mais afetada
pela ausência desse saneamento, aumentando cada vez mais as desigualdades sociais,
contrariando os direitos fundamentais e sociais garantidos na Carta Magna de 1988,
prevendo ainda o direito ao ambiente equilibrado, de uso comum e essencial à qualidade
de vida. E no caput do art. 225 aduz:
71 Disponível em https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf
409
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990, s/nº)
No Residencial Praia Mar tem muitas crianças e adolescente que estão em situação
de vulnerabilidade social e econômica, ou seja, vivem em espaços de pobreza, de violações
dos seus direitos e que, infelizmente, não são tem seus direitos básicos efetivados e assim
crescem em ambientes que em nada contribuiem para uma perspectiva de vida melhor.
É importante salutar que os beneficiários devem fazer o seu papel para manter seu
meio ambiente sustentável, destinando de forma adequada o seu lixo, cuidando do
esgotamento sanitário e utilizando medidas de combate ao desperdício de água e reuso
da mesma, transformando a sua moradia, compatível com uma vida saudável. Portanto,
através da educação ambiental a equipe alcançou resultados positivos, uma vez que o
principal problema relacionado ao meio ambiente foi reduzido drasticamente (a questão
do lixo), comparado à realidade da comunidade no início do trabalho social e ambiental.
Nesse sentido, as ações proprocionaram a todos o acesso universal aos direitos
humanos, em especial a moradia com qualidade, equidade e de forma continuada é de
extrema necessidade e se constitui premissa central da efetivação dos direitos inerente a
pessoa humana, mostrando que a pobreza não pdoe ser limitante para ter um ambiente
saudavel e com efetivação de direitos humanos.
412
Gráfico 1- Tipos de atividades no encontro que mais gostaram
31% 20%
AP. VIDEOS
DINÂMICAS
9% PALESTRAS
OFICINAS
40%
No gráfico a seguir, baseado nas ações que tiveram o maior numero de jovens no
dia de sua execução, as crianças e adolescentes responderam quais foram os encontros
mais marcantes realizados pela equipe do PTS.
14% 15%
10%
SESSÃO PIPOCA
GINCANA ECOLOGICA
13%
DIA DAS MÃES (CARTAS)
PASSEIO SOCIOCULTURAL
18%
Com base nisso, conseguimos observar certo equilibrio na preferência das ações
realizadas, sendo a gincana ecologia (18%) e o passeio sociocultural (17%) os que mais
marcaram esses jovens.
Dando continuidade, ao serem questionados sobre as questões sociais e
ambientais muito trabalhadas com eles nos encontros, na pergunta 9 eles responderam
quais as maiores mudanças pessoais que os mesmos obtiveram.
413
Gráfico 3 - Maiores mudanças obtidas pelos jovens, após participar do grupo infantojuvenil.
27% 31%
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
414
Assim, as ações sociais e ambientais com as crianças e adolescentes permitiram
contribuir para um processo de conscientização para um meio ambiente sustentável e
efetivação dos direitos das crianças e adolescentes e de todos na comunidade, pois a
pobreza não signiifca falta de direitos humanos.
REFERÊNCIAS
______. Portaria nº 464, de 25 de julho de 2018. Dispõe sobre Trabalho Social nos
Programas e Ações do Ministério das Cidades. Diário Oficial da União, Poder executivo,
Brasília, DF, 26 jul. 2018.
415
PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do trabalho
científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. – Novo
Hamburgo: Feevale, 2013. [Recurso eletrônico].
SILVA, Ana Caroline de Sousa Silva; PONTE, Jéssica Holanda Ponte, PACHÊCO, Tereza. A
pobreza como expressão da questão social. In: IV Seminário CETROS,
Neodesenvolvimentismo, Trabalho e Questão Social. Fortaleza – CE – UECE, 2013.
VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil. In: BOSCHI;
Renato R.(Org).Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no
Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo,IUPERJ,1991.
416
A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES MEDIANTE O ASSÉDIO MORAL NAS
RELAÇÕES DE TRABALHO
1 INTRODUÇÃO
72 Ver em: MARX, Karl; O capital: crítica da economia política, livro 1: o processo de produção do capital.
419
política e econômica para as mulheres, que possibilite igualdade entre os
gêneros. (SANTOS, 2010, p. 04 apud LOPES, 2017, p. 07).
420
sentimentos de desânimo e desistências, podendo chegar, inclusive, na depressão e no
caso mais extremo: expresso através da tentativa ou na realização de suicídio.
É neste agravante que notamos de que forma o assédio moral se caracteriza como
uma violação dos direitos humanos, o que fere diretamente a dignidade humana daquele
que sofre o assédio. Diante disso, é de suma importância a exposição e consolidação da
proteção legal para as vítimas do assédio moral através das leis e projetos de combate a
este tipo de violência.
Apesar de a legislação específica que configure o combate ao assédio moral no
Brasil ainda estar em processo de construção, como o Projeto de Lei 4742/01, é possível,
entretanto, identificar os direitos do/a trabalhador/a através da Constituição de Federal
brasileira de 1988 (CF/88), que garante o direito do/a cidadão/ã a um trabalho pleno e a
um ambiente laboral saudável. Sendo assim, a partir do reconhecimento do assédio moral,
é de extrema necessidade que o/a cidadão/ã, vítima desta violência, entre com ações
judiciais, pleiteando os seus direitos trabalhistas. Nesse sentido, adentrando na legislação
da CF/88, percebe-se que o combate ao assédio moral pode ser considerado conforme
aponta o seu inciso V do artigo 5: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao
agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (BRASIL,1988), e o
seu inciso X do mesmo artigo: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).
Desse modo, é importante que as vítimas do assédio moral estejam sempre
atentos/as a configuração desta violência no ambiente de trabalho, a fim de que possam
enfrentar essa situação e recorrer em busca de seus direitos, sendo pleiteados pelas leis,
e que as indenizações precisas sejam tomadas referentes ao/à assediador/a.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
423
https://leidyane2030.jusbrasil.com.br/artigos/489126339/consequencias-juridicas-
do-assedio-moral. Acesso em 15 de agosto de 2019
COLLINS, Patricia Hill. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como
categorias de análise e conexão. Reflexões e práticas de transformação feminista, São
Paulo, ano 2015, n. 4, p. 13-43, 2015.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1 . ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
MUNIZ, José Artur; MACHADO, Francisco Oliveira; VIEIRA, Djuri Tafnes. Assédio moral
na universidade: um estudo de caso em Pernambuco. Congresso Virtual Brasileiro de
Administração , [s. l.], ed. VIII, 2011. Disponível em:
http://www.convibra.com.br/artigo.asp?ev=25&id=3397. Acesso em: 2 set. 2019.
PARADELLA, Rodrigo. Diferença cai em sete anos, mas mulheres ainda ganham 20,5%
menos que homens. Estatísticas Sociais , [s. l.], 8 mar. 2019. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/23924-diferenca-cai-em-sete-anos-mas-mulheres-ainda-ganham-20-
5-menos-que-homens. Acesso em: 16 set. 2019.
424
A POLÍCIA CIVIL COMO PROTAGONISTA NO PROCESSO DE EDUCAÇÃO PARA A
CIDADANIA: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO CRIANÇA CIDADÃ
1 INTRODUÇÃO
Esse artigo tem como um dos seus objetivos relatar e discutir acerca da experiência
da Polícia Civil do Estado da Paraíba no projeto de prevenção à violência denominado
Projeto Criança Cidadã, visando estabelecer as possibilidades de contribuição de uma
Educação em Direitos Humanos.
O supramencionado Projeto Criança Cidadã, atendeu crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade social e foi realizado em parceria com o governo federal
através do convênio nº 795195/2013-MJ/SESDS, proveniente do Fundo Nacional de
Segurança Pública.
A Polícia Civil, órgão da Segurança Pública, tem como função precípua definida pelo
art. 144 § 4º da Constituição Federal, as funções de polícia judiciária e apuração das
infrações penais. Em termos gerais, cabe a ela diante do fato delituoso, através da
investigação criminal, determinar a autoria, materialidade e as circunstâncias em que
ocorreu o fato (BRASIL, 1988). Não há dúvidas de que a Polícia Civil tem uma atividade
repressora da criminalidade, entretanto, seria possível à Polícia Civil ser protagonistana
atuação preventiva à criminalidade? E ainda, essa mesma polícia ter como instrumento
de mediação em todo o processo a Educação em Direitos Humanos?
O objetivo do projeto é que a Academia de Ensino da Polícia Civil atue de forma
proativa na prevenção à violência e a criminalidade, promovendo a inclusão social de
crianças e adolescentes que se encontram em situação vulnerabilidade, preparando-os
para o protagonismo e a promoção social, auxiliando no desenvolvimento do senso crítico
para as tomadas de decisão, propiciando experiências que favoreçam o enriquecimento
sociocultural e distanciamento do crime, consolidando ainda política de aproximação da
sociedade junto aos órgãos de segurança, ou seja, ações que vão de encontro ao que visa
a Educação em Direitos Humanos quando busca estabelecer uma cultura de paz
despertada por ações que levem os sujeitos envolvidos a despertarem em todo o processo.
Nesse sentido, o interesse pela temática, surgiu a partir do envolvimento da autora
no projeto mencionado, vez que algumas inquietações surgiram durante a sua
aplicabilidade, tais como: a necessidade de uma formação em Educação em Direitos
Humanos mais aprofundada por parte dos agentes envolvidos, a exemplo dos professores;
a participação de uma equipe multidisciplinar que possa estabelecer pontes entre os
Direitos Humanos com as diversas áreas do conhecimento; a ausência de um debate que
seja contínuo dentro da comunidade, para que se possa despertar em todos a sensibilidade
e a consciência em torno dos Direitos Humanos, a fim de que eles se sintam protagonistas
de todo o processo, além de outras que ao longo deste artigo serão apresentadas.
O artigo mostra-se relevante do ponto de vista social, sem, no entanto, descuidar do
aspecto acadêmico, pois a educação em Direitos Humanos necessita se fazer presente nas
discussões da academia, sobretudo, agregando às temáticas correlatas do mestrado em
Direitos Humanos que visam apropriar o conhecimento teórico coma realidade social.
Com o intuito de melhor problematizar a discussão, o estudo foi norteado por uma
pesquisa bibliográfica tendo como principais autores: Paulo Freire, Frei Beto, Benevides,
425
Bobbio, Dallari, Magri, além de artigos encontrados e selecionados no Banco de Dados do
Portal de Periodicos da Capes nos últimos 10 anos. Baseou-se também na pesquisa
documental, a partir da análise da Constituição, do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), as Diretrizes Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos (Resolução CNE/CP n. 1/2012), somado a resoluções e
outros documentos que subisidiam a discussão em torno dos direitos do Estado para com
as crianças e os adolescentes, a exemplo dos dados apresentados pelo IBGE que nos ajudam
a apresentar o cenário no qual nos dispomos a analisar.
Para um melhor aprofundamento do tema, o artigo está estruturado da seguinte
forma: Inicialmente, aborda a evolução das políticas de proteção e atendimento as crianças e
adolescentes após a Constituição de 1988, em que se apresenta uma contextualização de sua
atuação na questão social. Seguindo a linha de reflexão, num segundo momento, tratamos
sobre a realidade da criança e do adolescente frente aos avanços legislativos, atentando-se
para o espaço que elas ocupam e como o cenário legal tem se constituído. Por útimo, mas
não menos importante, estabelecemos um dialogo entre os princípios da Educação para os
Direitos Humanos aliada ao papel da polícia civil como protagonista no processo de
prevenção e aproximação da comunidade, tendo como base a experiência do projeto
Criança Cidadã.
Verificamos que, a nossa Carta Magna, passa a garantir os direitos das crianças e
dos adolescentes com prioridade, o que nem sempre foi assim.O ‘código de menores’ de
1979 que vigorava durante o Regime Militar (1964-1985) dispunha de um modelo
punitivista com uma ideia de confinamento, tanto para os adolescentes que cometiam ato
infracional quanto para àquelas que estavam em situação irregular, à exemplo das
crianças órfãs, abandonadas ou que estivessem fora da escola.
Em 1989 foi aprovado a Convenção Internacional da Criança e do Adolescente pelas
Nações Unidas, tendo sido ratificada pelo Brasil no ano seguinte, juntamente com mais de
196 países.Essa mudança de perspectiva abre caminho para a aprovação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), pela Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, representando
um novo olhar sobre a infância, através de garantias e direitos, definindo a criança e o
adolescente como sujeitos de direitos e reconhecendo a condição peculiar de
desenvolvimento em que se encontram, reiterando a necessidade de prioridade absoluta
(BRASIL, 1990).
Em 1991, foi promulgada a Lei nº 8.242 de 12 de outubro, que criou o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, órgão vinculado ao Poder Executivo
Federal, dentre as suas atribuições, está a de zelar pela aplicação da política nacional de
426
atendimento dos direitos da criança e do adolescente (BRASIL, 1991). No tocante a essa
condição de desenvolvimento e formação aos quais estão submetidos, destacamos o que
dispõe a Constituição Federal de 1988, que em seu Art. 6º estabelece como um dos direitos
fundamentais, dentre outros direitos sociais, o direito à educação, bem como a proteção à
infância (BRASIL, 1988).
Este direito à educação é parte precípua das ações da Educação em Direitos
Humanos, pois nos leva a refletir sobre o papel transformador que esse direito pode
estabelecer na vida das pessoas, levando-as a enxergar a posição que o ser humano ocupa
enquanto sujeito e agente indispensável nos processos de conscientização e mudança.
Para Benevides (2000), existem três apontamentos que são pilares basilares para a
educação em Direitos humanos, sendo estes: uma educação que seja contínua,
permanente e que possa conscientizar a todos; em segundo que busque por mudanças;
por último que seja prática, que possa atingir os seres humanos em sua essência, em seus
valores, visando uma educação que não seja mecânica, mas transformadora, atuante em
seus princípios.
427
aos quais devem atuar de forma articulada e integrada, com o fito de efetivamente
implementar a doutrina de proteção integral por meio da política nacional de
atendimento infanto-juvenile (PEREZ; PASSONE, 2010).
Nesse passo, o Sistema de Garantias está composto por três eixos, são eles: o de
promoção, defesa e controle. No primeiro, destacam-se as políticas sociais básicas (saúde,
saneamento, educação, moradia, etc); no segundo (defesa) estão afetas as políticas de
assistência social e proteção especial, pelos conselhos tutelares, pelos centros de defesa
da criança e do adolescente, pelo Ministério Público, pelo Judiciário e pela segurança
Pública através das suas delegacias especializadas e, por fim, o eixo dedicado ao controle
social que é composto por Conselhos de Direitos, Fóruns de Defesa dos Direitos das
Crianças e dos Adolescentes e outros instrumentos judiciais e institucionais de controle
interno da administração pública, como as Controladorias, Tribunais de Contas, Ministério
Público, Poder Judiciário, etc.
Após a reforma, no âmbito do Sistema de proteção social, ampliou-se os executores
dessas políticas sociais, sejam através de setores estatais ou não, observando-se então que
nas últimas décadas, o engajamento de “novos” atores no campo do atendimento às
políticas sociais à infância e à juventude amplia-se significativamente.
428
e esporte. Precisamos enfrentar o ciclo de reprodução de pobreza gerado pela gravidez na
adolescência, abandono escolar e ausência de formação para o trabalho.
No período da submissão do projeto “Criança Cidadã” a taxa de mortalidade
específica por causas externas na Região Metropolitana de João Pessoa se apresentava de
acordo com o quadro abaixo:
Capital 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Δ%
Nordeste 689 801 786 775 898 1.036 1.141 1.193 1.36 1.36 1.54 124,7
6 0 8
Brasil 3.718 3.737 3.721 3.742 3.510 3.295 3.309 3.145 3.22 3.09 3.30 11,1
5 8 6
Fonte: SIM/SVS/MS
Atendimentos Ta
Popul
<anos
<1 a
Município U xas de
<
a
a
F violência
0 a 14
5 a 19
1 a 19
física
1 ano
(mil)
anos
anos
ação
nos
nos
nos
19
a
João Pessoa P 2 1 7 1 2 6 1 5
B 22,3 9 1 8 4 29 8,0
Bayeux P 3 6 0 0 2 1 1 5
B 5,1 0 8 1,3
Santa Rita P 4 3 2 2 6 8 2 4
B 3,2 1 8,6
Cabedelo P 1 0 1 1 4 2 8 0
B 9,2 ,0
Fonte: SIM/SVS/MS
Exploração
Pornografi
Violência
Atentado
Estupro
Assedio
Taxas de
viol. ao
sexual
pudor
l li
Fonte: Sinan/SVS/MS
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua
natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
absolutos ou relativos, mas, sim qual é o modo mais seguro para garanti-
los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados (BOBBIO, 1992, p. 25).
Reconhecer estes direitos, ter consciência do seu papel, saber zelar pelos
princípios basilares da nossa Constituição é uma forma de estabelecer e fortalecer o
exercício de uma cidadania mais efetiva, que estabeleça uma conscientização que, embora
deva ser inerente ao ser humano, precisa ser despertada a partir da educação enquanto
instrumento de transformação. Mas, para que isso ocorra, o que deve ser feito?
Ao Estado cabe pensar em políticas públicas que possibilitem trabalhar com ações,
projetos, planos que estejam próximo da sociedade, estabelecendo processos de diálogos
buscando efetivar “[...]a construção de uma cultura voltada para a vivência eas práticas
dos direitos humanos, com vistas à construção de uma sociedade solidária e mais justa”
(MAGRI, 2012, p.45).
431
Neste sentido é que trazemos a tona o Projeto “Criança Cidadã” que foi iniciado
pela Academia de Polícia no ano de 2011 e atendeu 160 crianças e adolescentes do bairro
de Mandacaru, na cidade de João Pessoa, capital do Estado Paraiba. Este Bairro é uma das
zonas de maior número de homicídios. Neste periodo, as crinças e adolescentes
frequentavam a Academia de Ensino de Polícia Civil (ACADEPOL) apenas aos sábados,
nesse dia elas tinham aula de direitos humanos, ética e cidadania, convivência
democrática, inclusão social e tinham atividades desportivas. As atividades aconteciam
em horário integral e com direito a 03 (três) refeições, retornando apenas no fim da tarde,
para suas casas.
São objetivos do projeto a redução do envolvimento de crianças e adolescentes em
violência e criminalidade, além da melhora no rendimento escolar, comportamento,
disciplina e o trabalho em equipe. Busca ainda, promover aos participantes o
desenvolvimento do senso crítico e compreensão da cultura de paz. Através das
atividades multidisciplinares (oficinas de música, artes, dança, teatro, esportes,
informática e cursos profissionalizantes) proporcionar experiências que promovam o
enriquecimento cultural dos alunos e além de experiências que subsidiem à escolha e o
desenvolvimento professional.
Para a Educação em Direitos Humanos “é imprescindível a comunicação entre
diferentes áreas de saberes, pois este tipo de educação se desenvolve em diferentes
dimensões, como a sociopolítica, jurídica e cultural” (CALISSI, 2014, p. 117) e que esteja
sempre com respaldo no vivido, nas experiências de vida, pois a aprendizagem de perto,
que seja próxima a realidade do sujeito envolvido torna-se mais fácil de ser assimiliada,
compreendida e, consequentemente, apropriada.
No curso do projeto, verificamos a necessidade de uma equipe multidisciplinar
(assistente social, psicólogos e pedagogos) para auxiliar a Polícia Civil de forma mais
técnica e especializada, que foi fortalecida a partir dos relatos dos adolescentes que nos
transmitam o desejo de ter aulas de informática, bem como, demonstraram preocupação
em adentrar ao mercado de trabalho. Percebemos também que, seria mais proveitoso e
menos cansativo para os beneficiários que os encontros tivessem um tempo menor e fosse
ofertado mais vezes na semana.
Em novembro de 2012, foi realizado na cidade de João Pessoa, o III Colóquio do
Programa Brasil Mais Seguro que veio a (re)alinhar as estratégias do Projeto “Criança
cidadã” as suas diretrizes de atuação.
O Colóquio tinha como objetivo possibilitar a visibilidade de experiências exitosas
na área e o debate sobre possíveis rumos para a execução de políticas públicas voltadas
para a prevenção e redução da mortalidade violenta. Assim, o Governo Federal estabeleceu
um marco inicial, ao promover o debate e concretização de ações com o Estado da Paraíba,
por meio de um processo de cooperação federativa e articulação intersetorial, de modo a
fomentar o diálogo e a sensibilização política necessária, a partir da referência a
diagnósticos que abordem estratégias e diretrizes eficazes no enfrentamento da situação
dos homicídios no Estado.
O Programa é estruturado em eixos estratégicos e cada um prevê uma série de
projetos e ações a serem elaboradas e executadas em conjunto pela Secretaria Nacional
de Segurança Pública, Secretaria de Reforma do Judiciário, Departamento Penitenciário
Nacional, através da Secretaria da Administração Penitenciária, pela Secretaria de
Segurança Pública e Defesa Social do Estado da Paraíba, respectivos Departamentos e
órgãos vinculados, Prefeitura Municipal de João Pessoa e demais municípios que forem
considerados prioritários, assim como os órgãos que integram o sistema de justiça
criminal, quais sejam: Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.
432
Diante deste cenário, o projeto “Criança Cidadã” que passou a alinhar as suas
estratégias com as do Programa, de prevenção à violência e a criminalidade, busca
atender crianças e adolescentes que estejam em situação de vulnerabilidade social. A
proposta foi aprovada no ano de 2013, está sendo executada pela Academia de Polícia
Civil (Acadepol), através da parceria com o Governo Federal, por meio do Convênio nº
795195/2013-MJ/SESDS, proveniente do Fundo Nacional de Segurança Pública.
O projeto abrange um total de 300 beneficiários provenientes dos municípios de
João Pessoa, Cabedelo, Bayeux e Santa Rita, uma vez que esses municípios à epoca
contavam com um alto índice de criminalidade. De acordo com a proposta, os alunos
foram divididos em quatro faixas etárias, sendo a primeira de 10 a 12 anos, a segunda de
13 a 14 anos, a terceira de 15 a 16 anos de idade e a quarta de 17 anos de idade.
Todos os alunos, independentemente da faixa etária, tem aulas de Direitos
Humanos, Ética e Cidadania, Inclusão Social, Convivência Democrática, Informática Báscia
e Esportes.Os alunos das três primeiras faixas etárias, ainda possuem aulas em uma das
quatro oficinas ofertadas (dança, música, teatro ou artes).Os alunos da quarta faixa etária,
ao invés de ter aulas nas oficinas, participaram de um curso profissionalizante em
parceria com o SENAI.Os cursos profissionalizantes ofertados, foram de eletricista
predial, costureiro industrial e confeiteiro.Todos os cursos foram pensados de forma que
o jovem pudesse ser absorvido pelo mercado de trabalho, ou que possibilitasse que o
mesmo pudesse empreender de forma autônoma.
Esta perspectiva de dimensionar as estratégias com base na possibilidade de
inserção destes adolescentes no Mercado de trabalho é uma forma de fazer com que eles
possam visualizar, projetar um futuro que seja cada vez mais longe das drogas, da
violência, do crime, pois eles passam a deslumbrar um crescimento com dignidade, fruto
da sua capacidade de ser bom em algo que ele se dispôs a aprender.
Entretanto, o foco no mercado de trabalho deve está sempre aliado a questão da
cidadania, pois é necessário
No que tange ao trabalho com foco na cidadania, alguns dos professores que
lecionam no projeto são policiais civis, com conhecimento técnico na área especializada,
que busca trazer essa aproximação dos alunos com os policiais através de outras
atividades, buscando transformar essa convivência através do compartilhamento e troca
de experiência de ambos os atores, buscando aproximar a realidade enfrentada por cada
um deles. Este trabalho que parte da realidade vivida, busca problematizar diversas
situações de vulnerabilidade, de conflito para que eles possa saber identificar soluções
para além da violência, do crime, em busca de uma cultura de paz enquanto protagonista
de suas ações.
A estes mediadores, cabe estudar sobre Direitos Humanos, a partir de um rigor
ético,em que haja um compromisso professional baseada numa “posição política frente à
realidade cotidiana, observando valores e princípios democráticos” (MELLO; FERREIRA,
2014, p. 23). Nesta perspectiva identificamos fragilidades que devem ser repensadas a
partir de uma formação em Direitos Humanos que possa ser contínua com os nossos
profissionais, com os professores das diversas áreas com foco em um conjunto de valores
433
que implicam em diversas dimensões sendo elas: ética, juridical, politica, economica,
social, cultural e educative (TOSI; FERREIRA, 2014)
As atividades do projeto contemplam ações que ressaltam e estabelecem a criança
e o adolescente como sujeitos de direito, considerando-os em seus aspectos
multifacetários de pessoa em peculiar desenvolvimento, buscando oferecer amplo leque
de possibilidades que estimulem o senso de decisão e desenvolva a prática reflexiva.
Nesse sentido, trazemos as considerações de Paulo Freire, quando explica que:
Ao trabalhar essa reflexão e visão crítica da realidade, constroi uma imagem que
cada um é parte do mundo e pode e deve intervir de acordo com suas decisões. Todos os
alunos do projeto estão regularmente matriculados na rede de ensino e um dos requisitos
estabelecidos pela Academia é que os mesmos não estivessem em conflito com a lei, além
de quê a particpação é voluntária, ou seja, o aluno tem que “querer” participar do projeto,
de maneira que ele não seja imposto a isso, sua livre escolha é de extrema relevância ao
nosso processo, pois a forma natural de aderi-la, resulta numa apropriação mais adequada
de todo conhecimento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BETTO, Frei. Por uma educação Crítica e participativa. 1ª edição. Rio de Janeiro:
Editora Rocco LTDA, 2018.
BOBBIO, N.A Era dos Direitos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campos, 1992.
DALLARI, D. Um Breve Histórico dos Direitos Humanos. In: CARVALHO, José Sérgio
(org.). Educação, Cidadania e Direitos Humanos. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 21-42.
436
FARIAS, Maria Lígia Malta de. Escola e Relações Interpessoais: mediação de conflitos e
sujeitos de dignidade.In: FLORES, Elio Chaves; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra;
MELO, Vilma de Lurdes e (Orgs.). Educação em Direitos Humanos & Educação para
os Direitos Humanos. João Pessoa: Editora UFPB, 2014, p. 265-288
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 57ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2018.
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Ambiente Escolar e Direitos Humanos.In: FLORES, Elio
Chaves; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra; MELO, Vilma de Lurdes e (Orgs.). Educação
em Direitos Humanos & Educação para os Direitos Humanos. João Pessoa: Editora
UFPB, 2014, p. 203-234
437
AS REFORMAS DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA: O ESTADO DEMOCRATICO
DE DIREITO AO AVESSO
1 INTROUÇÃO
Nos últimos três anos, a disputa política no Brasil ficou mais acirrada e ascendeu, em
segmentos da sociedade, a radicalização, a intransigência e o ódio. Além disso, não faltam
aqueles que apelam para a apologia ao crime e a incitação à violência. Nesse cenário,
acentuam-se a intolerância e o medo e, ao mesmo tempo, aumentam as denúncias de
violência e de crimes com requintes de crueldade.
Os meios tradicionais de imprensa e as mídias digitais veiculam casos de violência
destacando as barbaridades praticadas. A forma como as notícias policiais são veiculadas
propiciam a manipulação de leitores e/ou de telespectadores e, de modo geral, contribuem
para gerar sentimentos de clamor público a respeito da punição a todo custo do acusado.
É nesse clima em que, geralmente, são debatidas e analisadas as proposições relativas às
políticas de segurança pública.
Quanto às políticas criminais, de segurança pública e penitenciárias, passam a ter
aumento de penas privativas de liberdade e, igualmente, mais repressão ao crime, quando
não ao criminoso, com a redução dos direitos penitenciários apoiada por determinados
segmentos da sociedade. Enfim, exacerba-se o uso da força e usam-se o encarceramento
em massa e o direito penal do inimigo4 como fórmula para solucionar a violência e a
criminalidade, ou seja, como política pública.
Considerando esse quadro, entende-se que são relevantes estudos e pesquisas que
contribuam para desmistificar o legado autoritário que teima em se manter na segurança
pública brasileira, desconsiderando avanços democráticos que vinham sendo delineados
até 2016.
Neste artigo, adotou-se como objetivo analisar os avanços e os retrocessos da
política de segurança pública brasileira, fundamentando-se na discussão sobre o Estado
Democrático de Direito e seus princípios de defesa e garantia dos direitos humanos. Por
outro lado, recorreu-se ao tema autoritarismo político e social, considerando os elementos
autoritários que se mantêm na política de segurança pública, como também características
autoritárias dominantes na sociedade brasileira a partir das reflexões de Marilena Chauí
(2012).
Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório, baseada em um levantamento
de dados bibliográficos e documental relativo ao período compreendido entre 2000 e
2019, tendo como referência principal os planos de segurança dos governos Fernando
Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair
Bolsonaro, atual governo.
Os dados apontaram que as reformas da segurança pública, de 2002 até o primeiro
trimestre de 2016, trilharam caminhos democratizantes, em consonância com o Estado de
Democrático de Direito. Todavia, desde o golpe contra a Presidente Dilma Rousseff, essa
política vem passando por retrocessos, no sentido avesso aos princípios democráticos e à
defesa dos direitos humanos. Enfim, considera-se que essa política, contrária ao Estado
Democrático de Direito, está associada à ideia do mito da não violência, espraiado na sociedade
brasileira, que carrega consigo traços autoritários desde a escravidão.
438
O artigo está estruturado em três itens. O primeiro versa sobre as políticas de
segurança pública em processo democratizante, consoante com os planos dos governos
brasileiros de 2000 a 2016. O item dois discorre sobre a política de segurança configurada
como autoritária, que se contrapõe à defesa e à garantia dos direitos humanos. Por último,
é feita uma análise da relação do mito da não violência com a política de segurança pública
de cunho autoritário, que vem sendo priorizada pelo governo brasileiro nos últimos anos.
439
O governo evidenciou e sinalizou para a sociedade e os órgãos encarregados da
segurança pública que não há incompatibilidade entre os direitos humanos e a política de
segurança pública. Em outros termos, anunciou que é possível enfrentar o crime sem
violar a Constituição nem as leis vigentes no país.
Essa política de segurança tem como suporte outro princípio, o da legalidade, que
é um dos elementos do estado democrático de direito, mas não o único. Não se pode, em
nome da lei, estabelecer regras destituídas de prudência e em direção inversa ao que
estabelece a Constituição de 1988, determina que o Estado deve “assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, 1988).
Apesar de esse plano não ter sido executado a contento, até porque teve curto
tempo de vigência, por ter sido editado faltando apenas dois anos para expirar o governo
FHC, ele merece ser reconhecido, por se preocupar em evidenciar os princípios
democráticos e reconhecer o papel da sociedade nessa política, a partir da filosofia de
polícia comunitária.
Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, ao assumir o governo federal, adotou como
Plano Nacional de Segurança Pública o projeto elaborado pelo Instituto Cidadania e
pelaFundação Djalma Guimarães. Nele está expressa a prioridade da política de
prevenção à violência e destacam-se, como núcleo fundante dessa política, a ética e os
direitos humanos. Na parte introdutória do plano, verifica-se, textualmente, o
compromisso formal do governo com
O plano, lançado pelo governo Lula, teve como foco o Sistema Único de Segurança
Pública – SUSP, que se inspirou na unificação das demais políticas sociais, como, por
exemplo, o Sistema de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Como
o plano afetava a hegemonia dos órgãos da área de segurança pública, o governo Lula
enfrentou resistências em relação à sua efetividade e, inclusive, no que diz respeito à sua
normatização.
Para implementar essa política, o Presidente Lula adotou como estratégia o “pacto
nacional pela segurança pública”, a ser celebrado com os Estado e os municípios. O SUSP
tinha como preocupação primordial articular setores públicos e da sociedade civil visando
à formação de Gabinete de Gestão Integrada da Segurança Pública. Foram estabelecidos
princípios e metas, em consonância com o Estado Democrático de Direito, a serem
seguidos pelos governos estaduais e municipais, quando da elaboração dos seus planos
de segurança pública.
Como não alcançou o êxito desejado na implantação do SUSP nem conseguiu
formalizá-lo, o governo Lula recorreu à nova estratégia política e editou o Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI, através da Lei 11.530/2007.
Segundo o art. 1º dessa lei, o programa deveria ser executado por meio de articulação dos
entes federados com a participação da família e da comunidade (BRASIL, 2007).
Em 2008, a lei que instituiu o PRONASCI foi alterada5 com diversos objetivos,
440
dentre eles, o de assegurar a articulação de ações de segurança pública com as políticas
sociais e ações de proteção às vítimas (BRASIL, 2007). Consagrava-se o pressuposto de
que a política de segurança pública não podia ser formulada e implementada isolada das
demais políticas do Estado brasileiro. Isso significa dizer que o novo plano se norteia por
uma visão de segurança ampliada, ao vislumbrar os direitos humanos como
indissociáveis. A política de segurança continuava sob a orientação dos princípios da
participação social, e à sociedade civil competia tratar da forma de organizar e de
participar da formulação, do controle e da implementação da política de segurança.
Destaque-se que, em agosto de 2009, o governo Lula, por meio de decreto
presidencial, inseriu a participação de representantes de entidades e organizações da
sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Pública – CONASP, um órgão que tem
a finalidade de formular e de propor diretrizes para as políticas públicas de segurança, com
o objetivo de prevenir e reprimir a violência e a criminalidade. No mesmo ano, foi
convocada a I Conferência Nacional de Segurança Pública, com a participação da
sociedade civil e de profissionais da área. Esse direcionamento governamental fortaleceu
o processo de democratização política de segurança pública.
Dilma Rousseff, ao assumir a Presidência da República, não editou de imediato uma
nova política de segurança, de certo modo, sua política, nessa área, seguiu o estabelecido
no governo anterior. A secretária de Segurança Pública, Regina Miki, em 2011, apresentou
um plano de segurança pública, denominado de Plano Nacional de Prevenção e Redução
de Homicídios, com quatro eixos: informação; investigação; polícia e comunidade; e
prevenção. Segundo Fábio Sá e Silva (2017, p. 19), esse plano apresentava “contribuições
razoáveis para a superação de alguns dos limites que marcavam a trajetória da PNSP
desde a redemocratização”, mas não foi aceito pela Presidente.
Em 2012, foi lançado um plano nacional de segurança pública, que teve como
eixos: estratégias para atuação nas fronteiras; o programa “Crack é Possível Vencer”;
ações de enfrentamento ao crime organizado; Programa de Apoio ao Sistema Prisional;
Plano de Segurança para Grandes Eventos; proposta de instituição do Sistema Nacional
de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas – SINESP; Programa de
Enfrentamento à Violência - Brasil Mais Seguro, segundo Fábio Sá e Silva (2017, p.22). Vale
destacar que o governo Dilma teve grande desafio em seu primeiro mandato, no que diz
respeito à garantia de segurança, tendo em vista a realização da Copa do Mundo, no ano
de 2014, que ocorreu no território brasileiro. Como destaca Renato Sérgio de Lima
(2016, p. 66), esse grande evento demonstrou que é possível uma segurança pública
eficaz, baseada no compartilhamento e nas responsabilidades entre diversas
organizações e as distintas esferas do poder público, por meio dos Centros Integrados de
Comando e Controle (CICCS) instalados em cada sede onde haveria jogo. Segundo esse
autor, no período da Copa, os dados de criminalidade demonstraram que a iniciativa de
integração foi sobremaneira significativa. A partir dessa experiência, surgiu o Programa
Brasil Integrado, experimentado como política de segurança em cidades do Nordeste.
Da leitura dos planos, dos programas e dos textos normativos que fundamentam a
política de segurança pública dos governos Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma
Rousseff, pode-se inferir que há convergência de princípios na formulação dessas políticas
públicas em torno dos direitos humanos, da participação da sociedade e da legalidade.
Também não se pode deduzir que esses governos abdicaram dos meios repressivos no
enfrentamento ao crime e a organizações criminosas.
Esses planos trilharam caminhos democratizantes, procurando superar modelos
de segurança pública tradicional que se balizam pela sociedade autoritária, conforme
características sinalizadas acima. Os planos, que se mantiveram de 2000 até 2016,
441
embora, por razões diversas, não tenham se consolidado como política de estado ou
atendido plenamente à demanda de segurança de todos, de certo modo, contribuíram para
desmistificar a ideia de que o usuário da política de segurança pública deve ser visto como
mero bjeto.
443
O governo Bolsonaro afasta qualquer possiblidade de interdependência entre a
política de segurança pública e os direitos humanos e, por meio de decreto, extinguiu
diversos conselhos, comitês, comissões e grupos de trabalho, dentre eles, o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT e a Comissão
Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. A constitucionalidade desse decreto foi
questionada pelo Partido dos Trabalhadores em Ação Direta de Inconstitucionalidade no
Supremo Tribunal Federal. Essa corte de justiça deferiu uma medida cautelar para
suspender seus efeitos.
Do conjunto das informações levantadas, pode-se afirmar que não há divergências
entre o governo de Michel Temer e o de Jair Bolsonaro quanto à política de segurança
pública, porquanto ambos elegeram o uso da força, o encarceramento em massa e o direito
penal do inimigo como diretrizes para a política de segurança pública.
Enquanto isso, outra explicação, segundo a mesma autora, seria que a violência é
algo casual, ou acidental, algo passageiro, principalmente se o autor da violência não for
pobre e negro. Desse modo, prevalece a ideia de homem cordial.
Enfim, o mito da não violência está associado à figura do homem cordial, que se
444
apresenta como “solidário, que desconhece o racismo, o machismo e a homofobia, que
respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua
classe social, etnia, religião ou escolha sexual, etc.” (CHAUÍ, 2012, p. 155). No lastro do mito
da não violência é que o brasileiro constrói sua autoimagem como um “povo ordeiro e
pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou
sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das
diferenças regionais e, evidentemente, destinado a um grande futuro” (CHAUÍ, 2012, p.
155).
Fica, portanto, sinalizado que o mito da não violência, que se encontra disseminado
no imaginário coletivo dos brasileiros, constitui-se como um entrave parademocratizar a
sociedade, ao camuflar a realidade violenta e favorecer a prevalência de relações sociais
autoritárias.
Ademais, a violência é apresentada de forma circunscrita ao campo criminal,
facilitando a identificação do autor da violência que, certamente, não é o “cidadão de
bens”. Veja-se quem se encontra nos presídios amarrotados de gente e a quem se destina
a ação policial focada no uso da força sem limites. Assim, a razão de os crimes cometidos
pelos pobres serem espetacularizados, como forma de justificar a ação violenta da polícia
contra pobres, negros, índios, grupos socialmente inferiorizados (CHAUÍ, 2012).
É raro, mas, às vezes, a intervenção policial chega a ser concebida como violenta,
todavia isso só acontece, segundo Marilena Chauí (2012), quando o número de vítimas é
elevado, geralmente em chacinas. Todavia, em caso de assassinato decorrente do uso
abusivo da força policial, ao ser apresentada uma justificativa, por mais rasteira que seja,
a tendência é de ser considerado como natural. O que prevalece é a segurança daquele
que se constitui como sujeito de direito preferencial da política de segurança pública, ou
seja, o uso abusivo da força e o assassinato “são considerados normais e naturais, uma vez
que se trata de proteger o ‘nós’ contra o ‘eles” (CHAUÍ, 2012, p. 157).
Como mostra a autora, essas são características de uma sociabilidade, construída de
forma hierárquica, com marcas profundas do autoritarismo social, fruto das relações
sociais específicas da sociedade colonial escravocrata, que tem como referência a figura
de um superior, que manda, e de um inferior, sempre apto a obedecer. Esse que está
subjugado ao mando e à obediência, ou seja, numa condição de desigualdade, socialmente
é tomado como o outro, aquele que não pode ser reconhecido jamais como sujeito de
direitos. São eles os desprezados pela sociedade, por não serem consumidores, e as
vítimas preferenciais da violência policial naturalizada.
Enquanto isso,
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ADORNO, Sérgio. A Lei e a ordem no segundo governo FHC. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 15, n. 2, p. 103-140, nov. 2003. Disponível em:
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(coord.). Enciclopédia do golpe. Bauru: Canal 6, 2017.
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<http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/procuradoria_geral/nicceap/legis_ar
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Acesso em: 6 out. 2019.
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armadas para a garantia da lei e da ordem na desobstrução de vias públicas.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e
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Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-
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SOUZA, Jessé de. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
449
A NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO DE IMPACTO DAS POLITICAS PÚBLICAS DE
DEFESA E SEGURANÇA CIBERNÉTICA NO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
73Edward Snowden, ex-contratado da CIA, deixou os EUA no final de maio, depois de vazar para a mídia
detalhes de extensa vigilância na Internet e por telefone pela inteligência americana. Snowden, que recebeu
asilo temporário na Rússia, enfrenta acusações de espionagem por suas ações.
450
sobre a temática a partir de artigos e documentos oficiais sobre a temática, além da
utilização do process tracing.
451
Como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, "colocar o
governo em ação" e/ou analisar essa ação (variável independente) e,
quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas açõ es
(variá vel dependente). Em outras palavras, o processo de formulaçã o de
política pú blica é aquele atravé s do qual os governos traduzem seus
propó sitos em programas e açõ es, que produzirã o resultados ou as
mudanças desejadas no mundo real ( SOUZA, 2012, p.3).
Ou seja, percebe-se que a política pública para ser considerada como algo eficaz
tem que gerar um bem público ao seu final. A imagem abaixo demonstra os modelos
descritivos operacionais sobre políticas públicas.
Consequentemente, tais políticas são compostas por estágios que possuem
características específicas e que ao final torna-se um ciclo. Lasswell (1971) dividiu a
política pública em sete estágios que são : i) informação ; ii) promoção; iii) prescrição; iv)
invocação; v) aplicação ; vi) término ; vii) avaliação. Como pode ser visto na figura abaixo:
Consequentemente, o presente artigo abordará apenas esta última, ou seja, a
avaliação. A avaliação preocupa-se com o alcance dos objetivos , resultados e
procedimentos que foram adotados no perdurar da implementação dos planos,
programas e projetos, mas, tendo sempre como referência o que foi proposto e executado,
até o momento da avaliação.
454
Além disso, o Brasil possui outros instrumentos jurídicos que se debruçam sobre a
temática de forma distinta, como a Lei no. 12.965/ 2014 que é conhecida como o Marco
Civil da Internet e a Lei no. 12.737/12, que ficou conhecida com o caso da atriz Carolina
Dieckmann.
Em relação a defesa cibernética, o Brasil tem o livro verde que é exclusivamente
referente a questão da segurança e defesa cibernética e que tem como escopo reunir as
propostas e diretrizes relacionadas ao tema. Ademais, tem a Estratégia Nacional de
Defesa, que é o primeiro documento de referencia.
Para o Brasil, o ciberespaço é visto como um domínio milita, uma vez que, a guerra
cibernética seria vista como uma gama de operações que que estão centradas nas
informações cujo existe ações ofensivas e defensivas contra os centros C2 ( TEXEIRA
JÚNIOR; VILLAR-LOPES; FREITAS, 2017).
É indispensável salientar que, no Brasil a segurança cibernética fica sob a égide do
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, e não pertence a
hierarquia militar, e o Exército fica responsável pela Defesa Cibernética do país.
De acordo com Guedes de Oliveira et al. (2017) o Brasil foi o país que mais sofreu
ataques cibernéticos entre os países da América Latina, em contrapartida é o país que
mais faz ataques cibernéticos no mundo.
Para combater tal problema, o Brasil busca criar leis e regulamentações para tentar
sanar ou até mesmo reduzir o tal problema. É indispensável salientar que, todos os anos
desde 2000 há discussão sobre a questão cibernética, mas entre 2014 e 2015 que houve
uma intensa preocupação e tentativa de regulação (OLIVEIRA, 2017). Entretanto, tais
documentos são limitados e por isso que se torna indispensável cooperar tanto
multilateralmente, quanto bilateralmente.
5 CONCLUSÃO
No contexto aqui estudado, percebe-se que o Brasil por ser um país gigantesco, tem
um grande número de pessoas conectadas na internet e isso faz com que o país fique cada
vez mais vulnerável a esse tipo de ataque, necessitando assim que o país tome medidas
enérgicas sobre tal fato.
Para isso, o país vem desde 2008 criando instrumentos jurídicos para reduzir tais
ciber ataques. Mas, não é suficiente. Para que isso aconteça, está sendo realizado ações de
cooperação tanto no âmbito multilateral quanto bilateral. Por isso, que o presente artigo
buscou fez um breve apanhado sobre esse tema.
O presente artigo buscou realizar uma breve discussão acerca da importância da
avaliação de impacto das políticas públicas nas políticas públicas de defesa cibernética. É
através da avaliação de impacto que é verificado se de fato a política está gerando os
resultados e impactos esperados, conforme definido na base normativa.
É indispensável salientar que, exista mais políticas públicas de defesa nacional.
Pois, as que existem são poucas e recentes, necessitando assim de um maior investimento
em tal setor, pois é o que menos tem investimento no país.
As políticas de públicas de defesa e segurança no que tange a cibernética ainda são
incipiente e necessita urgentemente de que as politicas implementadas sejam avaliadas
para poder compreender se elas estão funcionando corretamente ou não.
Um aspecto extremamente importante da avaliação de impacto é que esta pode ser
executada, em projetos pilotos, por exemplo, pois, permitirá testar em desenhos
amostrais distintos e evita o desperdício de recursos com as políticas não irão gerar os
455
resultados propostos. É nessa perspectiva que a avaliação de impacto pode ser
considerada como accountability das políticas públicas.
De forma geral, é necessário que exista uma combinação de métodos para poder
reduzir as incertezas existentes e consequentemente alcançar uma melhor compreensão
do fenômeno estudado. Em suma, a avaliação de impacto é tida como um dos momentos
mais críticos do ciclo de políticas públicas porque se refere as mudanças que são
observadas de fato pela população.
Em suma, a avaliação de impacto pode ser utilizada em qualquer política pública
brasileira, desde do Programa Bolsa Família que foi implementado pelo Governo Federal
em 2003, até políticas voltadas para a segurança e defesa do país, como por exemplo, nas
políticas públicas de segurança fronteiriça e cibernética. É necessário que os países
procurem cada vez mais se debruçar sobre a temática da defesa cibernética, uma vez que,
um ataque pode afetar a soberania do país e até gerando uma ciberwar.
REFERÊNCIAS
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qualitativas na avaliaçã o de impacto de políticas pú blicas. Revista Brasileira de Ciências
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456
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GERTLER, Paul J. et al. Impact evaluation in practice. Washington, World Bank. 2011.
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1989
PILATI, José; OLIVO, Isaac; VIEIRA, Mikhail. Um novo olhar sobre o Direito à Privacidade:
caso Snowden e pós-modernidade jurídica. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2019.
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e pluralista. Revista Brasileira de Políticas Públicas, São Luís, v.15, n.2, p. 305-313,
jul./dez. 2011
457
FORMADORA DOS DISCURSOS SOBRE O EMPODERAMENTO FEMININO E SUA
RELAÇÃO COM NORMATIVAS EM DEFESA DA MULHER: A MÚSICA COMO
EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Matheus Rodrigues
1 INTRODUÇÃO
Também na música pop desse século pode-se citar como principal exemplo
Beyoncé Knowles, que adotou diversos discursos militantes como temáticas de seus
trabalhos nesta década. Sua primeira abordagem política veio em seu álbum denominado
“4” (2011), através do qual Beyoncé se desvincula do estilo mais comercial da indústria e
aposta em uma sonoridade R&B5 com letras e mensagens mais direcionadas a mulher.
Seu primeiro single do álbum foi “Run The World (Girls)”, em que a cantora
reafirma o poder feminino, que começava a ganhar mais força na sociedade, com a mulher
461
garantindo direitos em vários lugares do mundo através dos debates sobre o machismo e
a dominação masculina, sendo cada vez mais fortes. A música de Beyoncé (lançada em
2011), “Quem manda no mundo? Garotas! Fortes o bastante para criar as crianças, e ainda
voltar aos negócios”, consiste numa clara referência ao empoderamento - sustentáculo
para a independência da mulher e sua valorização como uma figura que não só cuida do
lar, mas também o provê.
Ainda sobre os questionamentos feministas e o que estes implicam na sociedade,
segundo Louro (2002, p.14):
Trabalhar esses mais diversos temas trouxe uma série de riscos para a carreira de
Beyoncé. Seu primeiro single destinado à temática feminista foi o seu mais baixo
desempenho em início de uma nova “era”. As críticas, partindo esmagadoramente de
homens, colocavam a figura da artista como uma pessoa controversa e oportunista, que
por fazer anteriormente músicas dançantes com objetivo unicamente comercial, não teria
condições para ser porta voz da causa.
No final, os ataques eram uma clara resposta do opressor se sentindo acuado e
tendo como defesa um ataque machista, preconceituoso e conservador, juntamente da
não aceitação por parte de uma indústria musical que beneficia artistas masculinos, como
sendo os únicos que podem falar de sexo, relacionamentos e poder, sem julgamentos da
sociedade, em que um cantor pode usar da sonoridade, do lirismo e rimas que desejar,
com a certeza de não sofrer retaliações.
No cenário nacional, existem várias figuras femininas com forte
representatividade nos debates sobre gênero e feminismo. Em um contexto mais atual se
tem como exemplo a artista brasileira, Pitty, que se denomina feminista e, além da sua
música, usa dos meios de comunicação para expressar o seu posicionamento.
Em um texto intitulado “The F Word”, publicado na coluna “#AgoraÉQueSãoElas”
do jornal “Folha de São Paulo” (2016), a cantora define de forma sucinta o feminismo
como sendo um movimento que busca equivalência nas relações sociais entre pessoas de
sexos distintos, agindo de forma política e igualitária.
Ela também trouxe o debate sobre o feminicídio para as redes sociais, indagando
sobre as mulheres trans não serem contempladas pelo direito brasileiro. Enfatizando
sempre que o medo de aderir ao movimento, por temer represálias do homem opressor,
deve ser combatido através da união entre as mulheres, Pitty (2016) afirma:
Então, para as meninas e mulheres que têm vontade, mas ainda se sentem
inseguras em se dizer feministas, vai o meu apoio: não deixe ninguém te
assustar com ideias tortas. Não se intimide com a falácia de que
feministas odeiam homens, querem subjugá-los, não podem ser
femininas, não gostam de elogios (cantada é outra coisa, tá?), não devem
casar ou ter filhos, ou tantas outras velhas bobagens que – gente, 2016! –
ainda circulam por aí. O feminismo luta para que justamente você possa
o que quiser em relação a seu corpo, suas relações afetivas, sociais e
profissionais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2016).
Por fim, fala sobre a necessidade e importância da mulher se auto afirmar feminista
e entender o movimento. Pois, o mesmo é ensinado e reproduzido de forma equivocada,
por uma sociedade machista e, muitas vezes, se torna alvo de críticas infundadas e
incoerentes sobre seu real objetivo.
Decerto que, mesmo havendo muito ainda a se conquistar no âmbito das questões
feministas, existem vários ganhos advindos com a Lei Nº 13.104/15 (BRASIL, 2015),
criada e promulgada durante o governo da presidente Dilma Rousseff, que coloca o
feminicídio como um crime hediondo e que, em meio as suas qualificadoras legais, visa ter
poder coercitivo e educativo para a sociedade zelar pela proteção da mulher.
Sendo elencado na nova legislação: “§ 2o- A Considera-se que há razões de
463
condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II -
menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Podendo ser qualificada com
aumento de 1/3 da pena se o crime for cometido: I – durante a gestação ou nos 3 (três)
meses posteriores ao parto; II contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60
(sessenta) anos ou com deficiência; III – na presença de descendente ou de ascendente
da vítima.
Apesar desta garantia em defesa da mulher, os casos de feminicídio tem sido
crescentes em todo o país. Isso demonstra que, apesar das políticas públicas de combate
ao crime e aos homicídios, ainda existe um grande déficit no alcance da aplicabilidade da
lei para o combate ao feminicídio.
Corroborando com tal afirmação, o Monitor da Violência, levantamento estatístico
criado em parceria do G1 com a USP, indicou que no ano de 2018, apesar da redução de
assassinato de mulheres, os crimes qualificados como feminicídio aumentaram em
comparação com o ano anterior, totalizando 1.173 no ano passado, em contraponto
com 1.047 em 2017. Ainda assim, segundo os dados, uma mulher é morta a cada 2 horas
no Brasil. Os dados também apontam que o Estado de Roraima é o líder na violência
contra a mulher, chegando a 10 vítimas a cada 100 mil mulheres, mas se tratando do
crime de feminicídio, o Estado do Acre tem a maior taxa com 3,2 vítimas a cada 100
mil mulheres. Segundo a pesquisa realizada os casos mais comuns estão ligados com
a separação entre casais. Com a Lei do Feminicídio passaram-se a ser atestadas tanto
mais denúncias, como maior preparo das delegacias de polícia para catalogar o crime,
não apenas como um homicídio doloso. Ainda com certa precariedade na sistematização
dos dados, foi apontado que doze Estados ainda não possuem registros completos
sobre as mortes causadas por feminicídio.
Nesse sentido, anteriormente a lei sobre feminicídio, o direito já abarcava outras
leis de proteção à mulher, a exemplo da Lei Maria da Penha. Esta, advinda da violência
doméstica cometida contra Maria da Penha Maia Fernandes, que tolerou 19 anos de
impunidade em meio à morosidade do sistema jurídico brasileiro, para que seu parceiro
fosse condenado a apenas 3 anos de prisão. Sendo necessário levar o caso a um Tribunal
Internacional, para que o Brasil fosse responsabilizado e pudesse desenvolver algum
mecanismo que coibisse a violência de gênero de uma forma mais efetiva.
Em 2006 a Lei Nº 11.340 entrou em vigor, tendo a própria Maria como presença
ilustre na cerimônia de promulgação. Essa lei pode ser considerada precursora no
combate as disparidades de gênero e a cultura machista que, diariamente, vem sendo mais
debatida pela necessidade iminente de mudanças.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil está entre os cincos
países com mais mortes de mulheres por motivações de gênero. A principal meta é levar
através dos debates feministas sobre gênero, a construção de uma visão crítica sobre a
realidade do mapa da violência contra a mulher no país. Tanto Pitty, quanto as demais
cantoras e porta-vozes femininas já citadas, disseminam discursos políticos e educativos
através de suas músicas, apresentações e debates colocados, como forma de promover o
entendimento de forma didática e interativa sobre os verdadeiros significados da luta
feminista.
Essas discussões estão interligadas diretamente ao Direito, sobretudo ao que
confere os direitos humanos, e sendo a arte responsável pela construção de novos
significados e aprendizados no seio social, a lei é sua forma expressa e leva o subjetivo
criado pela expressão musical a um patamar legal que protege, combate e empodera a
mulher.
464
5 CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
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1989. Disponível em:
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SOUZA, Valéria Pinheiro de. Violência doméstica e familiar contra a mulher – A lei Maria
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http://www.geledes.org.br/violencia-domestica-e-familiar-contra-mulher-lei-maria-da-
penha-uma- analise-juridica. Acesso em: 16 jan. 2017.
1 INTRODUÇÃO
Sendo assim, a (o) psicóloga (o), em vista de buscar meios para assumir a
responsabilidade social da profissão, deve reconhecer objetivamente as mazelas que
468
afligem os países latino-americanos, definindo o papel da Psicologia frente à busca pelo
enfrentamento desses problemas (LUCKNER et al, 2017).
“O colonialismo e a exploração instauraram na América Latina uma situação de
dependência e opressão, mantida, ao longo da História, por diferentes estruturas políticas
e ideológicas” (GOIS, 2009, p. 25). Dessa forma, os países dominantes crescem às custas
da opressão dos países subdesenvolvidos. O Brasil, junto aos demais países latino-
americanos carrega as marcas de uma colonização que foi capaz de deixar rastros de
pobreza e opressão a povos que vivem dentro de um sistema que culpabiliza suas vítimas
de acordo com uma ideologia burguesa que prega o individualismo, colocando o sujeito
como responsável único por conquistas próprias (GUZZO; LACERDA JR, 2007).
469
3 TERRITÓRIO E CAPITALISMO
470
nas questões que cercam a comunidade e promover assim o fortalecimento do grupo
(LUCKNER, 2017).
Em seu estudo, Batista (2017) busca entender olhares de mulheres habitantes de
áreas de pobreza sobre sua moradia, bairro, cidade e sobres si mesmas. Essas mulheres,
que se sentem “solitárias, descontentes, desesperadas, sofredoras, enganadas, inseguras,
um lixo” (BATISTA, 2017, p.4) não só pensam em ir para um lugar melhor de se viver,
como têm desejos que refletem sua inclusão no padrão de vida presentes nas classes
representantes do ideal capitalista de se habitar. Para a autora, a prosperidade e felicidade
desejada por essas mulheres “está predefinida por um modelo hegemônico que entra em
sua casa pela janela da mídia televisiva, intensificando a alienação social” (BATISTA, 2017,
p.6).
Dessa forma, temos o território como mediador de subjetividades e modos de se
viver e de existir. A inserção em espaços delimitados por uma lógica hegemônica e
autoritária evidencia um conjunto de forças que constroem identidades degradadas. A
Psicologia, tendo essas categorias e realidades como focos de estudo, tem o papel de
colocar a identidade do pobre e da periferia como ponto de análise para a construção de
suas teorias.
472
período de chuvas e não têm renda fixa, continuam enfrentando as mesmas problemáticas
ano a ano?
74 O Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) foi desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada
(IPEA), que indicam quais as populações que estão em maior situação de vulnerabilidade social para que
indique onde deve haver mais investimentos em políticas públicas. Na escala produzida pelo IVS, de 0,000
a 1,000, quanto mais próximo de 1,000 for o IVS em maior vulnerabilidade está a população envolvida.
473
6 MULHERES QUE HABITAM O ABRIGO: ENQUANTO ELES VÃO, NÓS FICAMOS
474
exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de
mando seja auxiliada pela violência (SAFFIOTI, 2001, p. 115).
Com isso, percebe-se uma dupla violência/ exploração que atravessa a categoria
social mulher, como põe a autora. Além da violência simbólica sofrida pela exploração de
sua força de trabalho, tomando a informalização como estratégia de alcance desta, há
ainda a violência sofrida na rede doméstica com a desvalorização do que a mulher produz
pelo companheiro e exposição a violência física quando este quer demarcar sua
dominação, tal como no exemplo supracitado.
475
lares ou arranjar novas moradias e isso vai além dos meses chuvosos, as consequências
se prolongam junto com as necessidades básicas dessas pessoas, em contraste o apoio
dessas ONGS cessa com o passar dos meses de chuva.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Posto isso, fica clara a importância de se ter uma Psicologia implicada nas causas
sociais, bem como profissionais encorajados a construir estratégias que favoreçam os
processos e a dinâmica de funcionamento de famílias pobres, isto é, oferecer redes de
apoio que façam sentido no contexto do indivíduo ao invés de sobrepor profilaxias rasas,
descontextualizadas e ineficazes. Deve-se, nesse sentido, produzir práticas que sejam de
fato voltadas para a transformação social das vidas atravessadas pela pobreza.
Cabe, portanto, à nossa ciência psicológica buscar a integração da realidade
brasileira com modos de se estudar/entender o indivíduo a partir de sua diferença,
observando sempre os diversos fatores ambientais, culturais, sociais, políticos que
atravessam suas vidas, a fim de fazer valer práticas que não os reduzam de sua realidade,
e contribuir de forma mais efetiva para o enfrentamento dos fatores que provocam seu
sofrimento físico e psíquico.
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477
A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E VIOLÊNCIA POLÍTICA NO PANORAMA DA
AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DA REALIDADE BRASILEIRA À LUZ DO CASO
MARIELLE FRANCO
1 INTRODUÇÃO
478
2 REFERENCIAL TEÓRICO
A partir dessa definição, é possível notar que o autor se mantém alinhado com o
argumento de democracia como método político defendido por Schumpeter, sendo as
eleições o eixo central do sistema político, assim como ferramenta de controle não
apenas dos eleitores com os líderes, mas também entre os líderes. Nesse sentido, se faz
pertinente destacar o conflito, retomando a discussão das consequências da mudança de
local vistas também como indicadores da democracia liberal, girando em torno da
disputa eleitoral, confronto esse inerente à política, tal como defende Bobbio e
Schumpeter, sendo reiterado por Dahl quando diz que “o conflito torna-se um aspecto
inevitável da vida política e o pensamento e as práticas políticas tendem a aceitar o
conflito, não como uma aberração, mas como uma característica normal da política”
(DAHL, 2012, p. 345).
Ainda é válido ressaltar que a representação também faz parte da construção do
pensamento de Dahl no tocante à democracia. Isso porque, ao longo dos tempos, os
representantes foram substituindo a assembleia dos cidadãos, além de que, com a
característica típica dos Estados modernos de serem extensos territorialmente , a
participação direta dos cidadãos nos assuntos do governo se tornou quase impossível.
A partir disso viu-se a necessidade de ampliação da base eleitoral para que o
parlamento se tornasse mais representativo, ainda que não obrigatoriamente através
do sufrágio universal. Nessa perspectiva, Dahl pontua que “o processo de ampliação
levou a um governo representativo baseado em um demos inclusivo, ajudando a atingir
a concepção moderna de democracia” (DAHL, 2009, p. 120). Dessa forma, a democracia
adaptou-se às peculiaridades dos Estados nacionais da modernidade e seus governos
representativos com eleitores inclusivos, com uma variedade de direitos e liberdades
pessoais, próprios dos governos com ampla diversidade.
Dahl também traz essa diversidade como um aspecto essencial dos Estados
democráticos modernos, que é proporcional ao seu tamanho territorial e à inclusão na
unidade política, esperando-se que resulte em uma grande multiplicidade de modos
relacionados à vida política. Essa diversidade se torna fator ainda mais imprescindível
às democracias modernas quando observado nela um gerador de conflitos, dada a sua
capacidade de intensificar as divisões políticas.
Dentre as consequências elencadas pelo autor, boa parte sendo elementos
constitutivos de uma democracia, as três últimas são as mais pertinentes justamente
por melhor se relacionarem ao princípio liberal da democracia, norteador da maioria
das formas democráticas de governo do mundo atualmente. O pluralismo social e
organizacional possui uma forte relação com a diversidade e, consequentemente com
o conflito, sendo um produto da poliarquia na teoria dahlsiana, e se enquadra aqui por
ser responsável pela existência de um número relevante de grupos e organizações
sociais que são relativamente autônomas tanto em relação às outras quanto ao
governo. Esse pluralismo societal configurado pela igualdade de acesso e de controle aos
recursos de poder socioeconômico e de coerção é o principal fator a favorecer a
482
democracia. Além disso, é cabível incluir também a expansão de direitos individuais
nessa análise.
Esse aumento se deu pelo sortimento de instituições ao longo dos tempos. Sendo
a diversidade e o conflito típicos das grandes sociedades modernas, não se vê como
possível que estas não tenham divergências de interesses e a conquista de novos
direitos individuais pode ser vista como uma substituta para o consenso político, bem
como assegura Dahl ao dizer que “os direitos pessoas oferecem um modo de garantir
para todos um certo espaço livre que não pode ser facilmente violado pelas decisões
políticas comuns” (DAHL, 2012, p. 349).
Por fim, as instituições também se alinham bem mais à concepção da democracia
atual, pois caracterizam-na, diferenciando-a dos demais sistemas políticos por garantir
uma cidadania extensiva e dar a oportunidade dos cidadãos a oporem-se aos
funcionários mais altos do governo e de removê-los através do voto, assim como
também defende Schumpeter.
Ao longo da sua obra, Dahl se utiliza do termo poliarquia por entender que as
democracias atuais são simples aproximação do ideal de democracia, que é impossível
de se alcançar segundo Bobbio. É por isso que Robert Dahl usa a palavra “democracia”
para referir- se a esse modelo ideal, enquanto que a palavra “poliarquia” diz respeito à
“democracia real”, distinção essa feita em 1953 juntamente com Charles Lindblom na
obra “Politics, Economics and Welfare”.
Mais adiante, na obra “Democracy and its critics” (1989), Dahl lista sete
instituições que ele vê como essenciais à poliarquia: os funcionários eleitos, que estão
investidos do controle político das decisões governamentais por força das
Constituições; o sufrágio inclusivo, onde aproximadamente todos os adultos têm direito
ao voto; o direito a concorrer à cargos eletivos, com a realização de eleições frequentes;
informação alternativa; eleições livres e justas, conduzidas de forma justa e
praticamente livre de coerção; liberdade de expressão e autonomia associativa, também
conhecida como liberdade de associação. Essas três últimas estão intimamente ligadas
ao caráter liberal das democracias atuais, sendo objeto de proteção do princípio que as
norteiam.
Essas instituições podem servir como indicadores de poliarquias, ou seja, o país
que corresponder aos critérios, é governado por uma poliarquia. Sobre isso, Dahl
pontua que essas instituições são obrigatórias para a “consecução mais viável possível
do processo democrático no governo de um país” (DAHL, 2012, p. 352).
Dahl afirma que o regime de poliarquia só se tornou pleno no século XX, sofrendo
posteriormente momentos de queda e ascensão. Após essa instauração, houve
gradativamente o processo de democratização da poliarquia que se deu com o respeito
à pressupostos, sendo eles a liberdade dos cidadãos de terem suas preferências, bem
como de expressá-las aos demais e ao governo através de ações individuais ou coletivas
e de serem essas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, livre de
discriminações tanto pelo conteúdo como pela fonte. Dahl observa isso como
prognóstico da democracia quando explana que “essas me parecem ser as três
condições necessárias à democracia, ainda que, provavelmente, não sejam suficientes”
(DAHL, 1997, p. 26), o que de fato talvez não o sejam, visto que a democracia atual, pelo
menos, é um regime político muito complexo, dada a diversidade que lhe é
característica, não sendo possível reduzir em apenas três as condições para constituí-
la.
Porém, para que essas condições possam existir no contexto atual das
democracias modernas, unidades políticas de grande escala, as instituições devem
483
oferecer oito garantias, nomeadas anteriormente de consequências, para que haja um
desenvolvimento conjunto das organizações que estabelecem o ordenamento político
das nações, distanciando-se de qualquer outro regime político e configurando, assim, a
poliarquia.
Os três autores até aqui discutidos possuem percepções convergentes tanto do
que é democracia como da sua dinâmica, pois constroem seus conceitos com base no
princípio liberal da democracia e defendem que os conflitos e a multiplicidade de
interesses são inerentes a um regime democrático, ao mesmo tempo em que afirmam
que não é possível atingir uma democracia plena, podendo-se apenas constatar
governos mais democráticos ou menos democráticos.
Nesse sentido, tendo como base a análise preambular teórica, se faz possível e
pertinente traçar um painel atual dos indicadores da democracia na América Latina
através de dados obtidos por estudos especializados de uma instituição internacional
independente, a qual se empenha em monitorar e proferir análises das performances
das democracias ao redor do mundo a partir de diversas variáveis, tal como a
democracia liberal.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHMITT, Carl. El concepto de lo político. Trad. Rafael Agapito. Madrid : Alianza, 1991.
489
DEMOCRACIAS DISJUNTIVAS LATINO-AMERICANAS: O PROBLEMA
TRANSCONSTITUCIONAL DA AUSÊNCIA DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À VIDA
DE TRANSEXUAIS E TRAVESTIS
1 INTRODUÇÃO
O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo (TGU,
2018). O México ocupa a segunda colocação nesse ranking (NAVARRETE, 2016).
Consideradas seres humanos abjetos a partir de regimes de verdade construídos com
490
apoio em discursos médico-jurídico-religioso (FOUCAULT, 2001), transexuais e travestis
são tidas como expressão da lógica de exclusão social e segregação existente nas
sociedades brasileira e mexicana contemporâneas, formas que convivem com
características democráticas dessas mesmas sociedades, por essa razão as observamos
como exemplos notáveis do caráter disjuntivo dessas democracias.
Notamos, portanto, que existem duas lógicas que ocupam posições opostas que
estão constantemente em embate: em uma parte temos a lógica da democracia, dos
direitos civis e de suas instituições, em outra encontramos a lógica da segregação e da
violência (CALDEIRA; HOLSTON, 1999). Essa lógica representa um grande impedimento
à consolidação da primeira lógica, sendo, logo, um empecilho para o total
desenvolvimento da democracia nesses países.
O caráter disjuntivo atribuído ao Brasil por Caldeira e Holston (1999) ao analisar
seu período de transição democrática, é utilizado para a realidade mexicana também
neste texto, na medida em que ambos os países, apesar de terem alimentado em seus
territórios a propagação da cidadania política, viram se desenvolver de maneira frutífera
a deslegitimação e comprometimento da cidadania civil e a constituição de territórios
públicos fragmentados e segregadores, residindo aí a marca disjuntiva desses processos
de democratização, pois os cidadãos são atingidos frequentemente por violações
sistemáticas dos seus direitos fundamentais, como acontece com o direito à vida de
transexuais e travestis.
A democracia disjuntiva se instalou no Brasil a partir da década de 1980
(CALDEIRA, 2009) e no México cujo período de transição inicia em 1977 e finaliza em
2000, com a vitória do candidato opositor, Vicente Fox (VALENZUELA, 2016). Se por um
lado, os elementos políticos que qualificam uma democracia estão presentes nesses
países; por outro, eles ocupam o mesmo cenário cotidiano de injustiça, impunidade e
violência. Essa dimensão civil da democracia equivale aos direitos que preenchem
axiologicamente a noção de liberdade e a noção de justiça. Registramos que é por
intermédio dos direitos civis que todo e qualquer cidadão em uma democracia é protegido
contra abusos vindo do Estado ou da própria sociedade (CALDEIRA; HOLSTON, 1999), o
que não ocorre no tocante ao direito à vida de transexuais e travestis nesses países da
América Latina. Para essas pessoas, haveria uma limitação de direitos em três quesitos
centrais:
Primeiro, no que diz respeito à impossibilidade de acesso às agências que
viabilizariam a proteção e o exercício dos direitos civis (vida, igualdade, liberdade e
propriedade), o que seria devido à desconfiança que os indivíduos possuem quanto à
capacidade das instituições estatais em materializarem os dispositivos legais. Em tais
cenários, quando a liberdade ou a igualdade é ameaçada, a preferência é pela resolução
privada de conflitos. Segundo, porque quando a confiança nas instituições responsáveis
pela garantia dos direitos civis está presente, a possibilidade de obter serviços é bastante
limitada, já que eles são, em geral, caros e pouco compreensíveis a quem possui baixa
escolaridade. Terceiro, porque quando a confiança e o acesso são vencidos, há grande
probabilidade de uso ilegítimo dos poderes conferidos às instituições estatais por parte
de seus profissionais e, dessa forma, a regulação das demandas dos cidadãos termina por
ocorrer em evidente oposição àquela idealmente desejada, dado que pela via de
autoritarismos ilegais (RODRIGUES, 2006, p. 247-248 apud RIBEIRO, 2013, n./p.).
A Constituição do Brasil, de 5 de outubro de 1988, tutela o direito à vida como
direito fundamental no artigo 5º, caput, que diz: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]” ; a Constituição mexicana, de 5
491
de fevereiro de 1917, por sua vez aponta o direito à vida como direito individual no artigo
14º, onde consta que “Nadie podrá ser privado de la vida [...]”. Notamos, assim, que impera
no Brasil e no México a morte de transexuais e travestis por motivações transfóbicas, o
que acarreta um cerceamento do direito fundamental à vida desse grupo socialmente
vulnerável, fomentando um quadro de violência, impunidade e descrença na capacidade
desses Estados de concretizar esse direito básico inscrito em suas constituições.
Constatamos através dos altos índices de homicídios de transexuais e travestis no
Brasil e no México uma enorme deslegitimação e inefetividade dos seus direitos civis e
individuais, notadamente do direito à vida. Tomamos esse direito no sentido a própria
existência, de estar vivo e assim permanecer, sem a interrupção do Estado e/ou de
terceiros (FERRAZ, 2009). No caso dos homicídios que mencionamos está sendo
subtraído de transexuais e travestis o direito à existência por intermédio do desrespeito
do prosseguimento do processo vital desses grupos vulneráveis, sendo que tanto no Brasil
quanto no México, esses Estados não têm realizado medidas para assegurar devidamente
a concretização desse direito, nem mesmo por meio da segurança pública.
Um dos principais sinais disso é que o corpo é um território de intervenções
fortemente toleradas nesses países, isto é, o corpo incircunscrito. Essa noção do corpo é
construída a partir de “circunscrição” do corpo como espaço de plena incorporação do
exercício dos direitos civis e da cidadania, em oposição ao corpo incircunscrito
(CALDEIRA; HOLSTON, 1999).
Percebemos que no Brasil e no México os aspectos civis da cidadania e os direitos
civis propriamente ditos são frequentemente vilipendiados e suspensos. Não poderia ser
diferente o resultado disso: o corpo adquire o status de alvo, onde toda sorte de violações
lhe são direcionadas. Destacamos, contudo, que não é qualquer corpo que sofre com o
aviltamento dos direitos civis, mas sim aqueles corpos historicamente e socialmente
objeto da fúria implacável da sociedade punitivista que vivemos. São principalmente os
corpos negros escravizados, indígenas, pobres e de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais
e travestis, especialmente estes últimos que, por vezes, performatizam o feminino, sendo
esse considerado o gênero inferior (BUTLER, 2013).
Nesse momento, acenamos para além de Caldeira (2009) e consideramos que a
marca da seletividade do nosso sistema penal punitivista deve ser inserida nas reflexões
sobre o corpo inscircunscrito, na medida em que não é todo corpo que na sociedade
brasileira e mexicana é observado como tal. Assim, o corpo inscircunscrito é aquele visto
como impuro e, portanto, é uma entidade permeável, vulnerável a intervenções diversas
e manipulações pelo Outro, resultando na sua eliminação (CALDEIRA, 2009). É
inscircunscrito porque para os sujeitos específicos mencionados a negação e a violação de
direitos civis fundamentais é uma constante nesses corpos que são desprotegidos,
destituídos (se é que algum dia eles tiveram) de direitos fundamentais de primeira
geração, como a vida, a liberdade (colocar mais dois exemplos) etc. (RAMOS, 2005).
Em uma leitura a partir de Agamben (2002) e considerando que o corpo também
é um território, tanto biológico quanto simbólico (LOURO, 2001), há no corpo
inscircunscrito de transexuais e travestis a personificação da noção de Estado de exceção,
aqui atualizada para território de exceção. Se o Estado de exceção pode ser pensado como
um limbo, ou melhor como um território vazio que fica entre a imposição da soberania do
Estado através da edição de leis e o cotidiano vivenciado pelas pessoas. Notamos que
existe uma fratura entre o direito e a (não) vida de travestis e transexuais, onde as leis
que garantem a vida, a saúde, a segurança, a integridade física etc., continuam em vigor,
mas ficam suspensas para essas pessoas.
492
Queremos direcionar a atenção para o fato de que travestis e transexuais, em razão
do estigma de abjetos que carregam, tem no seu corpo um território onde o ordenamento
jurídico tanto brasileiro quanto mexicano não alcançam no seu dia a dia. Travestis e
transexuais têm corpos-territórios de exceção, nos quais são percebidos como um espaço
onde as leis em vigor não tem efeito, cujos atos praticados contra esses corpos ficam
frequentemente impunes. Vistos como seres degenerados e abjetos, concepção forjada
nos discursos jurídico-médico, transexuais e travestis são inseridas dentro de um lugar
de indeterminação, onde se torna viável atribuir um juízo de valor sobre o quanto vale e,
consequentemente, o que não vale suas vidas, se é que poderiam serem encaradas como
vidas humanas, antes têm reforçado a figura mítica do monstro.
Observamos, logo, que os homicídios transfóbicos são um problema que ultrapassa
os limites constitucionais da soberania interna do Brasil, atingindo outras ordens
constitucionais da América Latina, como é o caso do México. Diante de uma maior
integração da sociedade dita globalizada, os direitos humanos ou direitos fundamentais
tornaram-se problemas que transcendem as fronteiras político-administrativas de
somente uma ordem jurídica interna. Assim sendo:
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato dos países latino-americanos, Brasil e México, serem os que mais registram
assassinatos de pessoas Trans no mundo evidencia o desprestígio do direito à vida desse
grupo socialmente vulnerável. Essa realidade aponta ainda para o caráter marcadamente
disjuntivo dessas democracias que foram sendo constituídas privilegiando direitos
políticos e sociais, em detrimento dos direitos civis.
As graves violações ao direito à vida, inscrito no texto constitucional de ambas as
democracias sinalizam para a compreensão dessas realidades como sendo geradora de
498
um problema transconstitucional, pois é do interesse desses países que o direito à vida
dessas pessoas sejam garantidos. Através de um diálogo que leve em conta a relação
complementar entre identidade e alteridade, as ordens jurídicas brasileira e mexicana
poderiam fortalecer suas identidades constitucionais na busca por soluções para a total
fragilização ao direito à vida de pessoas Trans.
Evidenciamos, por último, a similaridade das vivências Trans nesses dois países,
marcados por tranfobia social e institucional, revelando a necessidade de políticas
públicas que busquem incluir, assegurar e efetivar os direitos dessa população.
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VALENZUELA, Rubén Aguilar. A democracia no México. Revista USP, São Paulo, n. 109,
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502
“POR QUE A BALA PERDIDA É SEMPRE ENCONTRADA EM CORPOS NEGROS?”
VIOLAÇÃO DE DIREITOS E A OPRESSÃO RACISTA
1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a população negra tem, historicamente, sido atingida pela ação
sistemática e cotidiana do racismo. Tendo seus direitos violados pela interface de várias
formas de materialidade da opressão racialmente estabelecida. Assim sendo, intentamos
apresentar alguns elementos que possam apreender o processo de construção do que
venha a ser o corpo negro no Brasil, como também desnudar as bases materiais que
condicionam a sua existência.
O presente trabalho tem por objetivo tratar da relação entre o extermínio do povo
negro e a ação do racismo como elemento basilar da sociabilidade brasileira. Contudo,
não é nossa pretensão esgotar esse debate dada sua complexidade, bem como em função
das tantas mediações necessárias para que ele seja contruído.
Em nosso percurso teórico-metodológico, usamos de pesquisa bibliográfica e
documental, como também das notícias disponibilizadas sobre esta temática na mídia
nacional, a partir de um método crítico de análise, de forma a obter aproximações
sucessivas para com a realidade analisada.
Na primeira parte do texto, intentamos trazer algumas considerações acerca da
forma pela qual vai se dando a construção política, cultural, histórica e social do que é
ser negro/a no Brasil e como isso vai demarcar o espaço de subalternização desta parcela
da população. Nesses termos, temos a preocupação de fazer apontamentos capazes de
indicar em que medida esse corpo racializado é alvo da ação nefasta do racismo.
No segundo momento, visamos localizar o debate em torno das condições
objetivas de vida do povo negro, mediante a busca pelo entendimento do racismo e suas
formas de ganhar materialidade na experiência social deste povo, que não de forma
eventual, é alvo constante da violência racista. Assim, nos propomos a levantar
elementos que possam iluminar os caminhos propostos pela seguinte questão: quanto
vale uma vida negra?
Na sessão que se segue, a nossa proposição foi a de trabalhar com alguns casos
concretos da vitimização de pessoas negras no Brasil, mais especificamente entre os anos
de 2015 a 2019, através das notícias que foram veiculadas nos meios de comunicação do
país. Entendendo, sobremodo, que estes acontecimentos estão relacionados a existência
do enraizamento da opressão racial que acarreta no tombamento de corpos negros.
À guisa de conclusão, buscamos apresentar algumas sínteses referentes ao debate
realizado ao longo deste estudo, de modo a apreender os condicionantes e os
determinantes dessa processualidade que apontam para uma violência direcionada pelo
opressão racial, cujo alvo é a população negra.
A primeira questão que poderia ser levantada por algum/a leitor/a ao se deparar
com a proposta desse trabalho, seria justamente a partir da defesa de que existe o corpo
503
humano, aquele que independente de cor ou racialização encontra-se no mundo assim
como o podemos enxergar. Dito de outro modo, algumas pessoas poderiam questionar a
opção deste estudo em tratar de aspectos relacionados ao processo de hierarquização
racial construído em torno do corpo que, em última análise, seria tão pura e
simplesmente pertencente aos humanos de maneira geral.
Todavia, a nossa defesa se origina a partir da constituição do corpo negro
enquanto um corpo perigoso, também aquele que por ser racializado é forjado pela via
da inferiorização. Nessa perspectiva, partimos da premissa de que o corpo negro, aquilo
que é a primeira coisa a ser observada ou identificada na pessoa que o carrega ou possui,
age como uma espécie de carta de apresentação, como um elemento capaz de definir ou
condicionar a experiência social deste grupo racial. Seguindo esta linha de raciocínio,
cumpre observar que
Nesses moldes, tomam relevo aspectos que vão ampliando a nossa compreensão
de que várias facetas racistas vão se somando e se reforçando e, assim, destinando um
lugar de desprestígio ao corpo negro na dinâmica da sociedade brasileira. Atribuindo,
deste modo, à população negra, o status de desqualificada, perigosa e menos importante.
Seguindo este horizonte e na tentativa de promover uma discussão profícua em
torno da temática da racialização, que se materializada mediante um racismo estrutural
e estruturante nas relações sociais na forma de sociabilidade brasileira, buscamos
apreender o modo pelo qual a população negra é afetada pelos processos de banalização
da vida e de uma histórica inferiorização desta cor/raça/etnia no Brasil. O que está
relacionado aos aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, educacionais, ou seja,
da própria formação do imaginário social e de como isso ganha materialidade no
cotidiano da população em sociedade.
O alcance deste tipo de pensamento entre nós pode ser medido, por
exemplo, pelo fato de que, até hoje, qualquer um que consulte o principal
dicionário do país, o Aurélio, saberá que as pessoa “definem” a palavra
“negro” com termos como “sujo, encardido, preto, muito triste,
melancólico, funesto, maldito, sinistro, perverso, nefando e escravo” e
“branco” como “sem mácula, inocente, puro, cândido, ingênuo” (SILVA,
2016, p.108, aspas do original).
504
negros durante quase quatro séculos. Por este ângulo, podemos observar que,
Assim, temos que neste país o povo negro tem seus direitos violados
cotidianamente a partir de uma lógica expressamente racista que, dentre outras coisas,
subjuga este povo nas tramas violentas da dimensão racial do sistema de opressões. Esta
lógica que se vale da diferenciação entre os grupos raciais, gera profundas desigualdades
manifestas na forma de estruturação da sociedade. Nesse sentido,
Há, portanto, uma divisão no trabalho que se vale do elemento racial para a
manutenção da lógica do sistema do Capital, e de sua própria base material. Base essa
que se ancora no discurso da meritocracia e da instituição do mito da democracia racial,
por exemplo, como meios para escamotear ou mesmo negar a existência da
hierarquização racial, do racismo e, desa maneira, garantir os interesses das elites.
A falácia de que neste país, entre os grupos raciais distintos notava-se a existência
da mais profunda harmonia, tende a propagar essa falsa ideia de democracia racial que
torna o racismo um fenômeno passível de tratamento apenas no campo da
individualidade, sem reconhecer que ele corresponde a uma base estrutural para os
estabelecimento das relações sociais brasileiras.
Desta maneira, a opressão racial é disfarçada numa propagada, mas não real,
aceitação e respeitabilidade entre as raças no Brasil. “Desconsiderando por completo que
a marca registrada e asquerosa deste “intercâmbio” foi o estupro (e “esquecendo-se”,
inclusive, da hipocrisia do celibato)” (SILVA, 2016, p. 118). E, mais uma vez, revelando a
face detruídora e nefasta das práticas racistas que informam o imaginário e as condições
objetivas da vida em sociedade.
Ademais, o mesmo autor afirma que o racismo opera como uma ferramenta de
controle social, dada a possibilidade de ofertar salários mais baixos aos extratos dos
grupos que são subalternizados socialmente, além de servir como instrumento capaz de
inibir a capacidade reinvindicativa dos trabalhadores brancos pelo temor de serem
substituídos por essa camada mais suscetível a níveis mais elevados de exploração,
inclusive por serem mais aingidos pelo desemprego. O que nos remete ao entendimento
de que a dinâmica de acumulação de capital e de obtenção de lucros se vale da
hierarquização racial como estratégia para garantir os interesses do sistema do Capital.
As pessoas negras são alvo frequente da opressão racial, como uma forma de
controle social e também para operar na manutenção das desigualdades sistêmicas. Por
esta razão, nas linhas que se seguem, traremos alguns exemplos de como a violência
racista ganha materialidade por meio de sua face mais perversa: aquela que envolve o
tombamento de corpos negros, trazendo à tona , através desses acontecimentos, o
quanto o racismo é destruídor.
O racismo mata e não é coincidência que os assassinatos dos jovens negros
aumentaram nos últimos 20 anos em 429%6 (PUTTI, 2019). Em face disso, é que
reafirmamos ser necessário trazer alguns casos de genocídio da população negra no
Brasil, que tiveram evidência na mídia do país durante os anos de 2015 a 2019.
Seguindo uma sequência cronológica, vamos ao nosso primeiro caso: são os cinco
jovens mortos à tiros de fuzil dentro de um carro pela Polícia Militar (PM) do 41º
Batalhão da Polícia Militar (BPM-Irajá) na Estrada João Paulo, Zona Norte do Rio de
Janeiro. Wilton Esteves Domingos Júnior; de 20 anos, Wesley Castro Rodrigues, de 25
anos; Cleiton Corrêa de Souza, de 18 anos; Carlos Eduardo da Silva de Souza, de 16 anos,
e Roberto de Souza Penha, de 16 anos, todos jovens negros e de periferia, residentes da
Comunidade do Largatixa, localizada no Complexo da Pedreira na cidade do Rio, foram
assassinados numa noite de sábado no dia 28 de novembro de 2015.
Os jovens saíram para comemorar o primeiro salário como “Menor Aprendiz” do
Roberto de Souza e foram surpreendidos com a ação policial, segundo o jornal Extra
(2015), familiares afirmam que ao chegarem no local do crime, os policiais os impediram
de prestar socorro:
510
homicídio culposo, quando não há intenção de matar, pois segundo o delegado
responsável pelo caso, o crime ocorreu em legítima defesa (Idem).
Não podemos nos esquecer também da família alvejada com 80 tiros em
Guadalupe no Rio de Janeiro no dia 07 de abril de 2019. Este crime cometido por
militares do Exército Brasileiro acarretou na morte de Evaldo dos Santos Rosa, de 51
anos. Segundo o Comando Militar, a família foi confundida com assaltantes e por isso sua
ação severa (CARAMANTE; COELHO; STABILE, 2019). Os parentes das vítimas defendem
que o ocorrido se trata de um crime de execução:
Eles atiraram e uma familiar minha, que pegou o filho dela que estava no
carro, gritou: ‘É carro de família’. Não tinha vidro fumê, foi execução. Eles
atiraram, só teve tempo dos outros saírem do carro, menos o marido dela,
que estava de motorista. Depois que o tiro acertou, eles continuaram
acertando. Tem vídeo mostrando quantos disparos foram, foi execução’,
conta o homem, que pede anonimato por temer represálias (idem, aspas
do original).
511
Fatos como esses levantados no presente estudo, revelam que o genocídio da
população negra evidencia o racismo estrutural presente no Brasil. Demonstra, ainda,
que os trezentos anos de abolição não foram suficientes para apagar as cicatrizes da
escravidão na sociedade brasileira. Ainda é necessária muita luta para desconstruir
padrões historicamente construídos em desigualdade racial, econômica, política,
cultural e social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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a família e a PM. In: G1. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <
https://g1.globo.com/rj/rio- de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-como-foi-a-
morte-da-menina-agatha-no-complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml>.
Acessado em: 13 de Outubro de 2019.
JORNAL EXTRA. Cinco Jovens são fuzilados dentro de carro na Zona Norte do Rio.
2015. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/cinco-jovens-sao-
fuzilados- dentro-de-carro-na-zona-norte-do-rio-18174696.html>. Acessado em: 13 de
Outubro de 2019.
SOARES, Rafael. Família acusa policiais à paisana por morte de menina de 11 anos
em Triagem: Jenifer havia chegada da escola e descascava cebolas na porta de um
bar na Zona Norte do Rio. In: O Globo Rio. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/rio/familia-acusa-policiais-paisana-por-morte-de-
menina-de-11- anos-em-triagem-23454570>. Acessado em: 13 de Outubro de 2019.
514
A LEI MARIA DA PENHA E O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL
515
e familiar. A superação da situação de violência requer, necessariamente, uma rede de
apoio e proteção, traduzida em serviços, que a auxiliem nesse processo.
O papel exercido pelo assistente social é de suma importância frente na garantia
dos direitos das mulheres que sofreram algum tipo de violência. Para a realização de um
atendimento qualitativo, é imprescindível que o profissional esteja atento as políticas
públicas e tenha uma compreensão do espaço de atuação, no contexto social, político e
econômico para que as mulheres sejam vistas e atendidas de forma integral, respeitando
as peculiaridades de cada uma e da localidade onde se encontra.
Para que a humanidade seja mais perfeita e feliz, é necessário que ambos
os sexos sejam educados segundo os mesmos princípios. Mas como será
isso possível, se apenas a um dos sexos é dado o direito à razão? [...]é
preciso que também a mulher encontre a sua virtude no conhecimento, o
que só será possível se ela for educada com os mesmos objetivos que os
do homem. Porque é a ignorância que a torna inferior
(WOLLOSTONECRAFT apud BARROS, 2011, p.8).
516
Todas as justificativas, tanto para o tratamento desigual no campo do direito
penal quanto no direito civil, vão sendo desconstruídas ao longo dos anos, a partir das
“resistências” das mulheres às diversas práticas de opressão e abusos e, mais
recentemente, da segunda metade do século XX para cá, aos movimentos de mulheres e
feministas que incorporam em suas pautas a violência doméstica e o direito de as
mulheres viverem sem violência onde quer que estejam, na família, nas ruas, no trabalho,
nas escolas, etc.
Os maus-tratos e "castigos" infligidos às mulheres não eram entendidos como
forma de violência. Esses atos passam a ser nomeados de violência no final da década de
1970, a partir da indignação do movimento de mulheres e feministas contra a absolvição
dos maridos ou companheiros que assassinavam as mulheres, sob a justificativa da
legítima defesa da honra. Uma das estratégias eleitas pelos movimentos de mulheres foi
o campo das reformas legais. Nesse sentido, no que tange ao campo penal,
gradativamente, leis discriminatórias foram sendo alteradas ou excluídas do
ordenamento jurídico, como é exemplo o crime de adultério, inscrito em todos os códigos
penais brasileiros e somente afastado, definitivamente, muito recentemente, pela Lei
11.106, de 2005.(ILB, 2016)
No campo cível, em especial no Direito de Família, cabe registrar o trabalho
pioneiro das advogadas Romy Martins Medeiros da Fonseca e Orminda Ribeiro Bastos
do Conselho Nacional de Mulheres do Brasil (CNMB), que elaboraram texto preliminar
do Estatuto da Mulher Casada, questionando a hierarquização e o papel de
subalternidade da mulher namfamília, o que foi conseguido em parte, pois a Lei nº 4.121,
de 1962, suprimiu a incapacidade relativa da mulher casada e elevou a condição da
mulher na família à colaboradora do homem. (ILB, 2016)
A Constituição Federal de 1988, após longo período ditatorial, é o grande marco
para os direitos das mulheres, contribuindo, para tanto, os movimentos de mulheres,
conhecidos no período constituinte, como o Lobby do Batom. Dentre diversas demandas
dos movimentos de mulheres incorporadas ao texto constitucional, cabe destacar os
dispositivos que tratam do princípio da igualdade entre homens e mulheres em todos os
campos da vida social (art. 5º, I), inclusive na sociedade conjugal (art. 226, § 5º), e de
torna efetivo o dispositivo constitucional que impõe ao Estado assegurar a "assistência
à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência, no âmbito de suas relações” (art. 226, § 8º,). (BRASIL,1988, pg. 128)
O Comitê Latino-americanos e do Caribe – CLADEM, em 1988, lança a campanha
“Sem as Mulheres, os Direitos não são Humanos”, em ocasião ao cinquentenário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Brasil lança-se a campanha “Vive sem
Violência é um Direito Nosso”. (LIMA, 2011, p. 39)
Em 1993, criou-se o Conselho Estadual da Condição Feminina CECF pelo poder
público, visando tratar políticas públicas para as mulheres, impulsionado o Estado a
reconhecer a violência e discriminação contra a mulher. Paralelo a isto, o ministério da
Saúde cria o Programa de Atenção à Saúde da Mulher – PAISM, resultante da forte
mobilização empreendida pelos movimentos feministas. (LIMA, 2011)
No ano de 2004 realizou se a I Conferência Nacional de Políticas Públicas para as
Mulheres, visando às diretrizes para fundamentação do Plano Nacional de Políticas
Públicas.
Assim, no que diz respeito à temática da violência contra as mulheres, muitos anos
depois da inclusão do artigo que trata da violência nas relações familiares, no texto
constitucional de 1988, surgem leis específicas contra a violência que atinge as mulheres
pelo fato de serem mulheres: a Lei nº 11.340, de 2006, mais popularmente conhecida
517
como “Lei Maria da Penha” (BRASIL, 2006) e a Lei nº 13.104, de 2015, conhecida
como Lei do Feminicídio (BRASIL, 2015).
Com a implantação da Lei Maria da Penha que coibi a violência doméstica contra
mulheres, seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, essa questão tem tido
maior visibilidade, tanto pelo aumento das denúncias, quanto pelos avanços na
legislação atual que a reconhece como crime. A introdução do texto aprovado constitui
uma boa síntese da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006):
518
Na audiência preliminar, a conciliação mais do que proposta, era imposta
pelo juiz, ensejando simples composição de danos. Não obtido o acordo,
a vítima tinha o direito de representar. No entanto, esta manifestação era
feita na presença do agressor, o que constrangia a mulher e contribuía
para o arquivamento de 70% dos processos. Mesmo feita a
representação, e sem a participação da ofendida o Ministério Público
podia transacionar a aplicação de multa ou pena restritiva de direitos.
Aceita a proposta, o crime desaparecia: não ensejava reincidência, não
constava da certidão de antecedentes e nem tinha efeitos civis. (DIAS,
2010, p. 28).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Lúcia Barroso Freitas de. O Direito das Mulheres no Brasil sob a ótica
da igualdade: uma reflexão. Disponível em:<http://www.tanianavarroswain.com.br>.
Acesso em: 17 setembro 2019.
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da Penha”. Disponível em:< http://saberes.senado.leg.br >Acesso em 23 de agosto de
2019.
524
UM ESTUDO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE
PARA A POPULAÇÃO LGBTI+
1 INTRODUÇÃO
“Eles próprios são a doença”, “Já nasceram todos doentes!”, “Ser homossexual = ser
doente mental”, “Que adoeçam é morram então” e “É isso aí, tem que adoecer mesmo” são
frases escritas por internautas em uma rede social a respeito de uma matéria jornalística
que tratava sobre o adoecimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e
Intersexuais (LGBTI+).
Essa visão das práticas não cisheterossexuais e dos seus sujeitos, se estende ao
longo da história da humanidade desde o século XIX, algo que era visto como pecado,
crime e desvio moral se transmuta em algo psíquico e/ou biológico. Passando então, nos
séculos XIX e XX, dos cuidados da religião e do direito para as mãos da psicologia,
psiquiatria e medicina. Esse discurso cientifico, hierarquizou as formas de exercício da
sexualidade humana, estabelecendo uma normalidade e única possibilidade, a
heterossexualidade e estabelecendo a homossexualidade como uma “doença
degenerativa da sociedade” (PRETES & VIANNA, 2007, p. 321).
Essa associação da homossexualidade ao campo da doença perdurou grande parte
do século XX. Deixando de ser reconhecido como doença pela American Psychiatry
Association - APA ao ser retirada do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders) no ano de 1973. Já a Organização Mundial da Saúde – OMS retira a
homossexualidade em 1990 da Classificação Internacional de Doenças – CID-10. No Brasil,
desde 1999, o Conselho Federal de Psicologia – CFP proíbe que os psicólogos realizem
“práticas de tratamentos de “cura” e/ou das chamadas “terapias de conversão”,
reconhecendo oficialmente que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio,
nem perversão” (SANTOS, 2013, p. 18).
Entretanto, mesmo após a saída da homossexudalidade do CID e do DSM, percebe-
se que ainda existe uma forte associação entre pessoas LGBT e o campo da doença. Santos
(2013) é enfático ao afirmar que mesmo após a despatologização da homossexualidade,
não houve “a superação da ideia de uma “sexualidade anormal” (SANTOS, 2013, p. 18).
Assim, é facilmente perceptível que essa ideia se mantem na atualidade. Os
comentários dos usuários da rede social onde se realizou os comentários sobre a
reportagem reforçam e dão suporte a permanência nos discursos sociais da associação
entre pessoas LGBTI+ e o campo da doença. Melo (2015, n.p.), sinaliza que o “estigma da
homossexualidade associado à doença permanece nos dias atuais” mesmo não sendo mais
considera uma patologia. Desse modo, é evidente “a complexidade de desconstruir
conceitos e concepções construídos cultural e socialmente”.
Sutter e Perrin (2016) afirmam que a discriminação fundada em orientação sexual
e identidade de gênero estão associadas a diferentes resultados negativos de saúde física
e psicológica de sujeitos LGBT, ocasionando ainda um aumento das ideações suicidas.
Surgindo dessa forma a necessidade de se “individualizar os sujeitos sociais” que as
ciências costumeiramente tendem a tratá-los de forma universal e abstrata
(SCHIOCCHET, 2007, p. 61).
525
Desse modo, é perceptível a associação entre discriminação e o agravamento do
estado de saúde dessas pessoas não cisheterossexuais. O Estado deve compreender essas
especificidades dessa parcela da população e atuar através de políticas públicas7677,
visando a diminuição da discriminação e do preconceito por orientação sexual e
identidade de gênero, para que se consiga uma equidade em termos de acesso e garantia
do direito à saúde.
Contudo, o reconhecimento das políticas públicas em saúde voltadas a grupos
socialmente vulneráveis quando postas em prática por entes políticos levando em conta
as especificidades desses grupos são, muitas vezes, rechaçadas e entendidas enquanto um
“privilégio” em detrimento de uma “coletividade”.
Assim, buscamos com essa pesquisa analisar os comentários realizados por
internautas a respeito de uma matéria jornalística compartilhada em uma rede social que
possuíam essa compreensão, ou seja, comentários que contribuem para o que Silva e
Barbosa (2017, p. 196) denominaram de “ideologia meritocrática”. Segundo esses
autores, a ideologia meritocrática impede que as pessoas consigam visualizar as
“desigualdades sociais vividas pelas minorias sociais”.
2 METODOLOGIA
Este tipo de método permite o estudo das diversas relações sociais e culturais que
estão presentes em diferentes grupos, sendo utilizado no desenvolvimento e produção de
diversos conhecimentos das ciências sociais (BARBOSA & SILVA, 2016).
A seleção da matéria ocorreu em uma das páginas jornalísticas mais “curtidas” na
rede social Facebook. Foi acessada a página do “G1 - O Portal de Notícias da Globo” no dia
12/10/2018 contando com um total de 10.557.521 curtidas no momento de acesso. A
notícia foi selecionada ao utilizar palavras-chave na busca por publicações realizadas pela
página do G1 no facebook. Os termos utilizados foram: “suicídio LGBT”, “Suicídio
homossexual”, “Suicídio homofobia” e “Suicídio gay”.
Os termos que resultaram em publicações com a busca foram apenas “suicídio
LGBT”, “suicídio homofobia” e “suicídio homossexual”. A primeira e segunda busca
resultaram apenas em uma publicação com o título “‘Jovens estão adoecendo por
homofobia’, diz União Nacional LGBT” do dia 17 de maio de 2018 com um total de 7,9 mil
reações (3,5 mil Curtir, 2,1 mil Haha, 1,9 mil Triste, 107 Grr, 57 amei e 52 Uau), 1,5 mil
comentários e 1.066 compartilhamentos. A terceira pesquisa com os termos “suicídio
homossexual” resultou em apenas uma publicação intitulada “’Era uma carta de suicídio’,
76 Rua (1997, n.p.) compreende que “As políticas públicas (policies), por sua vez, são outputs, resultantes da
atividades política (politics): compreendem o conjunto das decisões e ações relativas à alocação imperativa
de valores”.
77 Essa área, das políticas públicas, tem crescido de modo considerável no campo das pesquisas acadêmicas
no Brasil, em que diversas áreas do conhecimento produzem inúmeras investigações a respeito do que faz
o Governo ou do que deixa de fazer (SOUZA, 2003).
526
diz garoto agredido por ser homossexual no RS” do dia 22 de março de 2012 com um total
de 13 reações curtir, 2 comentários e 11 compartilhamentos. Por fim, a quarta busca
“suicidio gay” não gerou resultados. Assim, de acordo com tais resultados, optou-se por
realizar a pesquisa com os comentários feitos na matéria “‘Jovens estão adoecendo por
homofobia’, diz União Nacional LGBT” pelo número expressivo de comentários em relação
a outra matéria encontrada através da busca.
527
maneira distinta. Ao lado dessas concepções científicas, as abordagens de Hipócrates, o
pai da medicina com sua teoria dos quatro fluidos (humores) se apresenta como uma das
primeiras tentativas de explicar o adoecimento, a partir do desequilíbrio de quatro
elementos no corpo humano: o sangue, a fleuma, a bílis negra e a bílis amarela. Tal teoria
traz como contribuição a possibilidade da relação de saúde e doença com o ambiente. “Daí
emergirá a idéia de miasma, emanações de regiões insalubres capazes de causar doenças
[...] O nome, aliás, vem do latim e significa “maus ares”” (SCLIAR, 2007, p. 33).
Somado a essas concepções, a descoberta do microscópio no século XVII, e a
revolução pasteuriana, no final do século XIX, trouxeram a noção de um mundo habitado
por microorganismos ainda não conhecido de fato pelos seres humanos, bem como a
abertura de novos campos de estudos na biologia e o desenvolvimento de soros e vacinas
(SCLIAR, 2007), fazendo com que o entendimento de saúde e doença passasse a ser
encarado por novos ângulos.
A partir dessa descoberta, foi possível observar ainda a rápida ascensão da
medicina, como ciência de controle e medição, capaz cada vez mais de discursar sobre o
que seria normal e o patológico, criando um modelo biomédico do corpo humano com
ênfase no processo de cura e erradicar doenças, aproximando a noção de um
funcionamento mecânico da vida.
Ainda por fim, em anos mais recentes devido a evolução do conhecimento
científico e a constatação do fenômeno multicausal do processo saúde e doença, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu o conceito de saúde “não apenas como a
ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”
(SEGRE e FERRAZ, 1997, p. 539), atentando para a complexidade do fenômeno
biopsicossocial, e para um novo entendimento do binômio saúde-doença.
Essa definição foi estabelecida na Conferência Internacional de Saúde realizada na
cidade de Nova York, no ano de 1946. A constituição da Organização Mundial de Saúde,
estabeleceu ainda alguns princípios como a responsabilidade dos governos pela saúde de
seus povos que só pode ser satisfeita pela prestação de serviços de saúde e medidas
sociais. Tal documento foi assinado por 61 Estados (OMS, 2009).
A definição de saúde apresentada traz a importância de se pensar a presença de
sintomas de saúde, e a inevitável reflexão sobre a impossibilidade de separar a vida social
do processo de adoecimento mental e biológico, de modo que todas as dimensões do ser
humano participam desse processo, “graças à vivência psicanalítica, percebe-se a
inexistência de uma clivagem entre mente e soma, sendo o social também inter-agente, de
forma nem sempre muito clara, com os dois aspectos mencionados” (SEGRE e FERRAZ,
1997, p. 540).
Ao perceber essa impossibilidade de separar as facetas do ser humano diante do
processo de saúde e doença, tem-se a partir de então como foco tratar a pessoa doente,
levando em consideração a sua totalidade, e não apenas a sua doença, além de promover
a abertura necessária para discutir conceitos de normalidade e patologia, e não apenas
categoriza-los diante de uma postura biomédica.
Nessa perspectiva, há “uma visão anti-positivista e mais humana” (SEGRE &
FERRAZ, 1997, p. 540) do conceito de saúde, que é sensível a vida humana além de mero
corpo. A pessoa dotada de subjetividade, relações sociais, e direitos está dentro de um
contexto político, social e cultural que interfere diretamente nos modos de produção de
saúde e doença.
Alguns grupos apresentam maior vulnerabilidade e especificidades no processo de
saúde e doença. A Organização Mundial de Saúde (WHO, 2014) traz alguns dados sobre o
recorte “identidade de gênero” e “orientação sexual”, no qual é possível perceber por
528
exemplo, que a população LGBT possui mais propensão a sofrer com pensamentos de
suicídio se comparado ao resto da população cisgênero heterossexual.
TOLEDO e PINAFI (2012) em suas pesquisas demonstram que o adoecimento do
público LGBT ocorre de maneira bastante relacionada ao processo da LGBTfobia
enfrentada, denunciando a homofobia estrutural e seus níveis alarmantes. O impacto
ocorre não apenas pelo processo da violência direcionada a esse grupo, como também
através da homofobia internalizada, acentuando a presença de depressão, pensamentos
de suicídio ou comportamentos destrutivos. Tais sistemas rígidos podem sem
encontrados nos diversos espaços sociais, seja na escola, família, ambiente religioso
conservador ou mesmo no trabalho.
Diante do complô existente na produção da LGBTfobia estrutural e institucional
pelas diversas instituições sociais, Toledo & Pinafi (2012, p. 140) nos recorda de três
importantes agentes promotores da homofobia na história do ocidente, agindo através
das noções pecado-patologia-crime:
529
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”
(BRASIL, 1988).
O Ministério da Saúde tem atuado em projetos de áreas como prevenção de
infecções sexualmente transmissíveis, processo transexualizador, formação direcionada
a profissionais de saúde sobre conteúdos relacionados a população LGBT e outros temas,
observando que “o combate à homofobia é uma estratégia fundamental e estruturante
para a garantia do acesso aos serviços e da qualidade da atenção” (BRASIL, 2008, p. 578).
Outro significante exemplo disso é a adoção por parte do Ministério da Saúde, da
Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(LGBT) criada a partir da Portaria nº 2.836 em dezembro de 2011, voltada para uma
mudança na compreensão da determinação social de saúde desse grupo social (BRASIL,
2013).
O referido documento faz citações aos princípios de Yogyakarta, tais princípios
“tratam sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à
orientação sexual e identidade de gênero” (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006, p. 3).
Os princípios de Yogyarkarta afirmam normas internacionais que buscam a
redução das desigualdades sociais de identidade de gênero e orientação sexual, se
tratando de obrigações primárias dos Estados.
Ao todo há 29 princípios elencados, que vão desde “gozo universal dos direitos
humanos”, passando por direito à educação, direito ao trabalho, direito a constituir uma
família, até o direito à liberdade religiosa. Dentre estes há “o direito ao Padrão mais Alto
Alcançável de Saúde”. Nesse ponto é destacado como princípio, um dos deveres dos
Estados: “Desenvolver e implementar programas para enfrentar a discriminação,
preconceito e outros fatores sociais que solapam a saúde das pessoas por efeito de sua
orientação sexual ou identidade de gênero” (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006, p. 25).
O reconhecimento das peculiaridades da vida social dessa população por parte do
Estado, bem como ações que busquem minimizar as desigualdades sociais vivenciadas
por essa parcela da população, como estratégias de efetivação do casamento igualitário,
leis de criminalização da LGBTfobia, e perspectivas educacionais inclusivas tende a
reverter em aspectos positivos para a saúde dessa população. Trata-se de direitos básicos
para a vida em sociedade que constantemente são negados a essas pessoas.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
532
Outros comentários questionam essas visões negativas dirigidas as pessoas
LGBTI+. Um desses, afirma que “E tem um monte de gente que ri da situação! Falta de
respeito com o corpo alheio” comentando o fato que a reação “haha” ocupa o segundo
lugar dentre as reações feitas na postagem nessa rede social com 2,1 mil reações, ficando
atrás de “curtir” com 3,5 mil e a frente da reação “triste” com 1,9 mil.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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among LGBTQ people of color. Journal of counseling psychology, v. 63, n. 1, p. 98-105,
2016.
535
A PRÁTICA DO LINCHAMENTO NO BRASIL: ANÁLISE SOB UMA PERSPECTIVA DE
CLASSES
1 INTRODUÇÃO
2 REFERENCIAL TEÓRICO
538
estudos sobre a cultura popular em nosso país e o discurso abstrato sobre a cidadania.
(MARTIN,1995, 308)
Com os altos índices de criminalidade, com a população carcerária crescente todos
os dias e o sensacionalismo midiático tomado de discursos conservadores e
criminalizantes dos grupos sociais “vulneráveis” (como a população de rua, LGBTQ+,
negros, pobres, índios, etc.), a população, sem oportunidade de observação crítica do
corpo social em que faz parte, observa a justiça proveniente do Estado como uma
abstração, algo inalcançável e inexistente. A população compreende que, existindo a
oportunidade, cabe à ela proteger a sua comunidade, realizando sua própria “justiça”, de
forma a exercer todos os papéis necessários para a efetivação da mesma. Logo, a discussão
propõe uma série de questionamentos sobre essa autoridade do justiceiro, assim como
por ser um tema atual, faz com que tenha-se a oportunidade de poder dialogar e ir a campo
para, de fato, pesquisar e estudar o linchamento como um problema social de luta de
classes e de violência urbana, especificamente.
As implicações de tais ações fizeram com que o grupo se interessasse em trabalhar
esse assunto, tendo em vista ser um ponto relevante na realidade social brasileira
caracterizada por uma longa história de violação de direitos correspondentes à vida
humana e, neste caso, representada neste momento de efervescência da sociedade em
tomar para si o poder de justiça.
Esse reflexo pode ser também em virtude de uma sensação de não real efetivação
da justiça, o que instiga cada vez mais a sociedade tomar para si o poder de assumir esse
papel de justiceiro, o que não deveria ser feito. Entretanto, a estrutura da sociedade,
mesmo que aponte essa distorção, agrupa essas ações ilegais como conjunto de violação
dos direitos dos cidadãos. Visto desta maneira, a contradição do que se é certo ou errado
aponta que o linchamento não é a solução para a justiça na sociedade.Com todos esses
fatores contraditórios, não é possível visualizar a coerência desses fatos por não ter a
neutralidade dos lados para apurar a real penalidade - caso seja necessário puni-lo
- sendo assim, essa legitimidade proposta é incoerente.
A verdadeira multidão o é menos pelo número dos que a compõem do que pelas
características de sua mobilização e participação nos atos de linchar. Neste caso, maciças
mobilizações para linchar por grupos que se identificam e são identificados como vizinhos
e moradores, não configuram propriamente situações de multidão, embora os
comportamentos aí se confundam com comportamentos de multidão. Sobretudo porque
a multidão reúne pessoas que não têm entre si outro vínculo que não seja o vínculo
ocasional, fortuito e acidental derivado de ação orientada por um objetivo passageiro,
embora compartilhado através de um fugaz sentimento de identificação e
companheirismo, uma espécie de comunidade breve e transitória. (MARTINS, 1996, p.17)
O reflexo dessa inquietação foi a identificação da ação de justiça com as próprias
mãos, o que de fato foi um termo importante de ser discutido. Outrossim, expor a
identificação dessa sociedade oprimida que sofre o linchamento faz com que seja refletido
valores sociais relativos ao ponto de vista do agressor, que muitas vezes tem um viés
tradicionalista e radical.
A experiência em grupo foi gratificante e enriquecedora, de forma que
proporcionou compreender como se fomenta na sociedade essa ideia e, principalmente, o
fato de que é algo que ocorre devido o antagonismo entre as classes. Portanto, através
dessa pesquisa, foi possível identificar que o linchamento é um fenômeno que acomete a
sociedade, de maneira que atinge grupos societários específicos, que são historicamente
menosprezados. De fato, compreender essa manifestação é de grande importância e de
contribuição para todos, pois muitas vidas se perdem por de fato essas vítimas do
539
linchamento não terem a oportunidade de defesa, já que se trata de um ato impulsivo,
gerido por emoções.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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redes. Disponível em:
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2015. Disponível em: <https://bit.ly/2TNrPQJ>. Acesso em 25 ago. 2019.
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Disponível em:
<https://amitafamitaf.jusbrasil.com.br/artigos/220020703/linchamento-virtual-uma-
arma-perigosa-que-pode-ser-letal?ref=topic_feed>. Acesso em 27 ago. 2019.
1 INTRODUÇÃO
543
o aborto em território nacional, sendo essa discussão importante para fomentar os
debates sobre as formas de intervenção do Estado sobre a vida das pessoas.
a relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não
é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é
78 Por biopoder pode-se entender o “exercício do poder sobre corpos pela via da disciplina, do adestramento
central a estatística e o controle epidemiológico e as chamadas políticas sociais” (RIBEIRO, 2011, p. 62).
544
abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em
que vida, direito, interno e externo se confundem (AGAMBEN 2002, p.
36).
O aborto no Brasil é visto nos dias atuais como um tabu. O silenciamento sobre o
tema conduz a sociedade a encobrir a realidade que nos é apresentada diariamente por
diversas reportagens e pesquisas que demonstram, em números, os malefícios que o
aborto inseguro e precário gera à saúde, ao corpo e à vida das mulheres.
O aborto inseguro é definido pela Organização Mundial da Saúde – OMS quando
ocorre a interrupção da gravidez feita por uma pessoa sem o treinamento necessário para
a realização desse procedimento ou quando essa interrupção ocorre em um local que não
atenda minimamente os padrões médicos ou ainda quando essas duas circunstancias
estão presentes (OMS, 2018).
A prática do aborto envolve questões de cunho moral e religioso, que se torna
objeto de uma contundente sanção social. Esse cenário implica uma obscuridade nos
relatos das mulheres, de modo particular no contexto de ilegalidade, assim como ocorre
no Brasil (MENEZES & AQUINO, 2009). Essa restrição legal e o estigma que é atribuído ao
aborto, dificultam e inibem as mulheres de buscarem atendimento médico após a
realização de um aborto inseguro, nessas circunstancias até mesmo o abortamento de
“baixo risco” gera uma exposição das mulheres a “um risco excessivo caso o processo
derive em uma emergência” (OMS, 2013, p. 23).
Nesse sentido, as pesquisas coadunam da compreensão de que a ilegalidade do
aborto afeta severamente a saúde das mulheres, através de diversas consequências
negativas advindas dessa ilegalidade. Além desse fator, é possível compreender que essa
tipificação da prática do aborto não coíbe a realização desse ato e ainda gera uma
perpetuação das desigualdades sociais, já que o risco associado a essa ilegalidade afeta de
modo substancial as mulheres pobres e as que não possuem acesso a recursos de saúde
para a realização de um aborto seguro (BRASIL, 2009).
Em pesquisa publicada recentemente no periódico The Lancet, Ganatra et al.
(2017) apontaram que a cada ano, no intervalo entre 2010 e 2014, ocorreram 55,7
milhões de abortos no mundo, onde cerca de 30,6 milhões foram seguros, equivalente a
54,9%, 17,11 milhões foram categorizados como “menos seguros”, igual a 30,7% e 8,0
milhões foram “nada seguros”, correspondente a 14,4%. Os dados dessa pesquisa
546
sinalizam assim que a cada ano ocorreram, nesse mesmo intervalo, de 2010 a 2014, 25,1
milhões de abortos inseguros, 45,1% do número total de abortos nesse período estudado.
Desse número, 25,1 milhões de abortos inseguros, 97% ocorreram em países em
desenvolvimento, sendo proporcionalmente maior a taxa de abortos inseguros nesses
países do que nos países desenvolvidos, 49,5% a 12,5% respectivamente. Por fim, os
autores constataram uma maior proporção de abortos inseguros nos países que possuíam
leis mais restritivas ao aborto do que nos países com legislações menos restritivas.
No Brasil, a Pesquisa Nacional de Aborto - PNA realizada em 2010 apontou que
uma em cada cinco mulheres já fez aborto ao completarem quarenta anos, desse modo, o
aborto se caracteriza como uma prática comum. A pesquisa também apontou que os
abortos ocorreram em geral entre 18 e 29 anos, período reprodutivo das mulheres. Por
fim, se constatou que metade das mulheres foram internadas após o aborto e que metade
também fez uso de medicamentos para indução no último aborto realizado (DINIZ &
MEDEIROS, 2010).
Nesse mesmo sentido, apontou os dados publicados da PNA, em 2016. Essa
pesquisa, assim como a PNA 2010, sinalizou que ao completar quarenta anos em 2016
uma em cada cinco mulheres já realizaram ao menos um aborto, sendo que quase 416 mil
mulheres realizaram um aborto em 2015. Essa pesquisa, como assinalado pelos seus
autores, apresentou dados semelhantes aos da PNA 2010, em que “metade das mulheres
utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar
internada para finalizar o aborto” (DINIZ, MEDEIROS & MADEIRO, 2017, p. 653).
Entretanto, esses pesquisadores afirmam que ao comparar esses dados, 2010 e 2016, é
possível observar uma diminuição nas internações, o que poderia sugerir que mesmo a
ilegalidade e a repressão dessa prática, essas mulheres estão utilizando cada vez mais
métodos mais seguros para abortar.
Na audiência pública no Supremo Tribunal Federal – STF que tratou da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 442, em exposição, a representante
do Ministério da Saúde, Mônica Almeida Neri, sustentou que em relação a mortalidade
materna, mais de 90% possuem causas evitáveis, apontando que dentre as principais
causas diretas dessas mortes maternas está o abortamento, que entre as causas diretas,
representa a terceira causa de morte da mulher (STF, 2018).
Maria de Fátima de Souza, representante do Ministério da Saúde na mesma
audiência pública, afirmou que a estimativa do Ministério da Saúde é que ocorram a cada
ano aproximadamente um milhão de abortos induzidos. Ela defende que essa taxa é
extremamente alta e que não depende de classe social, porém, o que vai depende da classe
social é a gravidade e a morte, pois quem “mais morre por aborto no Brasil são mulheres
negras, são mulheres jovens, são solteiras e tem até o ensino fundamental” (STF, 2018, p.
25).
Em relação ao número de complicações e mortes que chegam ao Sistema Único de
Saúde – SUS, é apontado por Maria de Fátima de Souza que para cada morte materna,
existem ao menos 30 casos graves. Os procedimentos relacionados ao aborto inseguro
geram por ano 250 mil hospitalizações no SUS, 15 mil complicações, 5 mil complicações
extremamente graves (quase morte) e 203 mortes, sendo cerca de uma morte a cada dois
dias. Apenas nos últimos dez anos ocorreram a morte de 2 mil mulheres em decorrência
de complicações no aborto inseguro e 50 mil complicações graves (STF, 2018)
Essas complicações geradas pelo aborto inseguro, produzem custos humanos e
financeiros para o SUS. Apenas nos últimos dez anos, o SUS gastou 500 milhões de reais.
Além disso é importante sinalizar que tais complicações, são decorrentes de causas evitais
e consequentemente também poderiam ser evitáveis tais gastos (STF, 2018).
547
Desse modo, se evidência que o aborto é um “um fenômeno frequente e persistente
entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e
religiões” (DINIZ, MEDEIROS & MADEIRO, 2017, p. 653). Porém, não é possível indicar
que esse fenômeno ocorre de modo linear em todas as mulheres, é necessário considerar
as especificidades e diferenças, já que existem taxas que são mais acentuadas entre
“mulheres de baixa escolaridade e renda, pretas, pardas e indígenas, além das expressivas
diferenças regionais” (DINIZ, MEDEIROS & MADEIRO, 2017, p. 659). Ganatra et al. (2017)
apontam que as condições que conduzem a um aborto seguro são influenciadas por
diferentes fatores, como as leis e políticas públicas que tratem sobre o aborto, as
condições socioeconômicas, a disponibilidades dos serviços de saúde para a realização do
aborto seguro e o estigma sobre o tema.
Assim, cabe ressaltar que mesmo nos casos em que a interrupção da gravidez é
permitida pelo Estado brasileiro, conhecido como “aborto legal”, tal ato é compreendido
por Morais (2008) como uma forma de aborto “semi-clandestino” ao considerar a má
informação da população e a invisibilidade dos serviços. Essa desinformação é
comprovada pela autora através de dados de uma pesquisa legislativa sobre aborto e
serviços de atendimento realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE, a qual apontou que 48% da população desconhecia a existência de serviços de
aborto legal em hospitais da rede pública.
A legalidade e a existência de serviços não produzem uma garantia plena do acesso
a saúde das mulheres quando se trata de aborto legal. Morais (2008, p. 52) afirma que
mesmo nesses casos existe uma resistência dos hospitais públicos em cumprir o que está
assegurado em lei, pois muitas mulheres são “constrangidas a peregrinar de hospital em
hospital, muitas vezes, de um estado a outro”.
Em relação ao tema, foi realizada uma pesquisa pelo Datafolha com 2.077 pessoas
com idades a cima de 16 anos em 130 cidades nos dias 18 e 19 de dezembro de 2018. A
pesquisa revelou que 4 em cada 10 pessoas que responderam à pesquisa afirmaram que
o aborto deveria ser totalmente proibido, inclusive nos casos em que atualmente são
permitidos por lei (AMÂNCIO, 2019).
Essa pesquisa do Datafolha sinalizou que 41% dos entrevistados são favoráveis a
proibição total do aborto, 34% defendem que deve continuar as mesmas regras que
vigoram atualmente sobre o aborto no Brasil, 16% das pessoas são favoráveis a permissão
do aborto em mais situações além das permitidas legalmente e 6% defendem que o aborto
deve ser permitido em todas as situações. Em relação ao gênero dos entrevistados, não
houve grande variação, porém, os fatores mais relevantes de variação foram à
escolaridade e à renda, onde os mais ricos e os com maior grau de escolaridade tenderam
a defender menores restrições ao aborto (AMÂNCIO, 2019).
Além disso, essa pesquisa indicou que 46% dos entrevistados concordaram com a
frase “Mulheres estupradas que engravidarem não deveriam abortar e sim receber ajuda
financeira para ter o filho”, desse total 34% concordaram totalmente e 12% concordaram
apenas em parte (AMÂNCIO, 2019, n.p.). Tal posicionamento vai de encontro a um direito
individual da mulher, como defende Scavone (2008), afinal, “não querer ter um/a filho/a
decorrente de um ato violento como o estupro é um direito individual já garantido por lei
que deve ser assegurado” (SCAVONE, 2008, p. 678).
Cabe ressaltar que a gravidez quando decorre de uma violência sexual, representa,
para muitas mulheres, uma segunda forma de violência (BRASIL, 2012). Impor, por
exemplo, que a mulher vítima de estupro continue a gestação, seria violentar mais uma
vez essa mulher, ferindo seus direitos básicos.
548
Entre as consequências da violência sexual, a gravidez se destaca pela
complexidade das reações psicológicas, sociais e biológicas que
determina. A gestação indesejada ou forçada é encarada como uma
segunda violência, intolerável para muitas mulheres (BRASIL, 2012, p.
67).
No Brasil, assim como em outros países, o aborto ainda é tratado como crime, como
algo inaceitável e condenável. Tais afirmações se fazem, sobretudo, em razão da falta de
políticas públicas sobre o aborto, fato que recrudesce o preconceito e a falta de
informação sobre o tema. Frisa-se que as políticas públicas são de extrema relevância,
posto que estas são primordiais para a transformação social.
Nesse contexto, mister se faz a análise das políticas públicas no tocante ao aborto
no Brasil. Segundo HOCHMAN, G. et al (2007), a área de estudos de políticas públicas no
Brasil nasce com a transição do autoritarismo para a democracia, entre final da década de
70 e início da década de 80. Durante esse processo de redemocratização passou-se a dar
maior importância para os problemas sociais e, consequentemente, estes passaram a
fazer parte da pauta/agenda do Estado.
De fato, com a redemocratização do país, houve mudanças a respeito da questão
do aborto, mas mudanças, sobretudo, na visibilidade do tema e na ampliação do debate.
No entanto, não houve modificações significativas no tocante às políticas públicas e à
legislação.
Dentre as definições que podem ser atribuídas ao termo “políticas públicas”, insta
mencionar a definição trazida por Dye (1984), a qual sintetiza esta definição como sendo
o que o governo escolhe fazer ou não fazer. A partir desta, entendemos que as políticas
públicas se constituem no momento onde os governos traduzem seus propósitos
eleitorais em programas e ações, as quais poderão produzir mudanças (HOCHMAN, G. et
al, 2007).
Depreende-se, assim, que as políticas públicas têm o condão de propor mudanças
sociais. No entanto, nem sempre essas mudanças trazem resultados esperados, nem
tampouco os governos dão a devida importância aos assuntos que são de elevada
significância para a sociedade, de modo que é notória a carência de políticas públicas
sobre determinados temas.
549
No contexto do aborto, este vem se apresentando cada vez mais como uma
realidade no nosso país. Inúmeros são os relatos de mulheres que encontram óbices à
realização do aborto, mesmo nas situações em que este é permitido. A questão da
criminalização que cerca a prática do aborto e todo o debate que a envolve é uma política
na qual o Estado se recusa a adentrar e, por isso, sua omissão pode ser enquadrada como
uma política pública de saúde (ANDRADE, 2017).
O acesso à interrupção da gravidez de forma segura, baseada na autonomia da
mulher, é uma condição indispensável para a cidadania. Desse modo, a criminalização do
aborto se coloca como sendo uma renúncia ao enfrentamento de um grave problema de
saúde pública, assim como a aceitação de que a autonomia das mulheres não é respeitada
(MIGUEL, 2012).
Pode-se citar algumas conferências internacionais em que o Brasil participou, as
quais serviram para recrudescer o debate em torno do aborto. Em 1994, no Cairo, houve
a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento e, em 1995, em Beijing, a IV
Conferência Internacional sobre a Mulher. Naquela, os países reconheceram o aborto
como um problema de saúde pública, enquanto nesta os países participantes afirmaram
o direito das mulheres de decidirem livremente sobre fertilidade e sexualidade (GALLI,
et.al, 2012).
Mesmo depois de passadas mais de décadas das referidas Conferências
Internacionais, no Brasil, o aborto clandestino é considerado um grave problema de saúde
pública, e sua solução é um desafio a exigir medidas urgentes que passam,
inevitavelmente, pelo processo de descriminalização (FUSCO; ANDREONI; SILVA, 2008).
Como mencionado, no nosso país, o aborto ainda é criminalizado em uma série de
situações, somente sendo permitido em algumas ocasiões específicas, como pressupõe o
artigo 128 do Código Penal Brasileiro, são elas: se não há outro meio de salvar a vida da
gestante; se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal; ou conforme a Arguição de
Preceito Fundamental 54, se o feto for anencéfalo, frisa-se que antes desta ADPF, o aborto,
nesta situação, somente era possível a partir de autorização judicial (BRASIL, 1940).
Nesse contexto, depreende-se que a situação de ilegalidade do aborto contribui
para a sua realização de forma clandestina, onde através deste aborto inseguro a mulher
fica exposta a riscos a sua saúde e, sobretudo, a sua vida. Além disso, a mulher pode
enfrentar também o abalo moral decorrente de um processo judicial (FREIRE, 2012).
O Ministério da Saúde, inclusive, informou que a criminalização do aborto pouco
coíbe a prática, além de perpetuar a desigualdade social. Assim, o risco imposto pela
ilegalidade do aborto é, em sua maioria, vivido pelas mulheres de baixa renda e que não
têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro (BRASIL, 2009).
Estima-se que a desigualdade de gênero e de acesso à educação, além do déficit de
recursos econômicos, bem como de acesso à informação e direitos humanos fazem com
que o aborto inseguro atinja, especialmente, as mulheres pobres e marginalizadas
(BRASIL, 2010).
Ademais, quanto às implicações do aborto inseguro tem-se as sequelas à saúde
física, mental e reprodutiva da mulher, como as hemorragias, infecções, perfurações de
órgãos e infertilidade, que se somam aos transtornos psicológicos (BRASIL, 2010).
Portanto, propor políticas públicas e descriminalizar o aborto significa garantir
não somente o direito da mulher a deter a propriedade sobre si mesma, ao tomar as
decisões que compete ao seu próprio corpo, mas também assegurar que ela terá a devida
assistência e acompanhamento médico fornecidos pelo Estado. (ANDRADE, 2017).
550
Vislumbrou-se que as políticas públicas sobre o aborto são escassas, bem como não
há uma preocupação pautada no desejo da mulher, mas tão somente em preceitos morais.
Ademais, denota-se a articulação de diversos atores sociais no sentido de provocar o
Estado a propor políticas públicas, bem como ensejar as discussões em torno da
descriminalização do aborto.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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553
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RIBEIRO, Luziana Ramalho. “... O que não tem Governo...” Estudo sobre
Linchamentos. 2011. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação
em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
554
A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A INCOMPATIBILIDADE
DA LEI DE ANISTIA
1 INTRODUÇÃO
A Lei n° 6.683, de 08 de maio de 1979, intitulada Lei80 de Anistia, tem por finalidade
anistiar todos que no período de 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, sendo instituída mediante um
"acordo", como instrumento para uma justiça de transição de um período de regime
militar brasileiro, para um Estado democrático de direito.
Internacionalmente, as leis de anistias que surgiram após períodos de exceção,
buscam anistiar aqueles que cometeram crimes políticos praticados durante a vigência
desses regimes opostos ao Estado de direito. Porém, no caso do Brasil, percebe-se uma
peculiaridade, pois aqui, a Lei n° 6.683/79, tendo como base para a concessão de anistia
o termo "conexo", anistiou crimes comuns como o homicídio, estupro e tortura cometidos
por agentes da repressão, caracterizando-se assim, uma autoanistia.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil é signatário,
mediante vários casos, inclusive o Gomes Lund versus Brasil (Guerrilha do Araguaia),
julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, já decidiu pela invalidade das leis
de anistias que impedem a persecução penal de agentes violadores de direitos humanos,
assim como a autoanistia.
Desse modo, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADFF) n°153, que buscava a revisão da lei de anistia, decidiu
pela improcedência, indo de encontro à jurisprudência da Corte Interamericana, fazendo
com que as milhares de vítimas que sofreram direta ou indiretamente, não pudessem ter
acesso à justiça.
O presente estudo tem como objetivo central analisar a incompatibilidade da lei de
anistia brasileira frente à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Deste modo, este estudo possui pertinência significativa para a construção de uma análise
sobre a lei de anistia brasileira, buscando-se através dessa pesquisa, dirimir o problema
existente quanto à incompatibilidade do direito interno e internacional na abordagem da
lei de anistia, a fim de que encontre-se uma harmonização para um melhor tratamento
dos direitos humanos refletindo no acesso e tutela ao direito a verdade e justiça.
Nesse sentido, cumpre salientar que a análise do tema em questão possui
relevância tanto para o direito interno, quanto para o internacional, pois mostra-se
necessário a harmonização e uniformidade desses, a fim, de que haja uma cooperação
entre as cortes, na busca de um sistema internacional protecionista simétrico para a
garantia dos direitos e garantias fundamentais.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi adotada uma abordagem qualitativa de
caráter exploratório e bibliográfico. Para a fundamentação teórica, os autores utilizaram-
se de um conjunto de livros, legislação, documentos jurídicos, artigos acadêmicos e
80O artigo academico exposto é fruto de uma pesquisa realizada no formato de Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado a Universidade Federal de Campina Grande no ano de 2018, intitulado “A
Incompatibilidade da Lei de Anistia à Luz da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”,
elaborado por um dos autores do presente Artigo Cientifico.
555
materiais disponíveis na internet, subsidiando o estudo com os fatos e fenômenos
relacionados à temática.
Para facilitar na compreensão do tema, o artigo foi estruturado em sub-tópicos,
sendo o primeiro deles uma discussão acerca da base histórico-político para a
promulgação da Lei de Anistia no Brasil. Em seguida, o artigo trás uma análise do processo
de julgamento da Corte Interamericana de direitos humanos no caso Gomes Lund Versus
Brasil (Guerrilha Do Araguaia). Por fim, buscou-se verificar a posição do Supremo
Tribunal Federal frente à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº153.
Para que se tenha uma melhor compreensão sobre a Lei de Anistia, é de extrema
importância, ter-se ciência não só dos motivos que levaram a sua promulgação, mas
também, que saibamos os antecedentes históricos que levaram o Brasil ao Regime Militar
(1964-1985), tendo sido esse, servido de base para a elaboração da Lei em questão.
Após a queda do Estado Novo81, com a saída do então presidente Getúlio Vargas,
ocorreu no Brasil uma forte oposição feita pelo partido União Democrática do Brasil
(UDN), que autodeclarou-se defensor da moralidade econômica e das liberdades
individuais. Fazia ferrenha oposição ao "getulismo"82, compondo-se de ideais de
liberalismo econômico e, contrapondo-se, assim, ao populismo que outrora vinha sendo
empregado no governo Vargas.
Tendo como base grupos conservadores e, utilizando-se de campanhas
difamatórias como arma de oposição, a UDN, teve como candidato, nas eleições de 1945,
o brigadeiro Eduardo Gomes, mas, perdeu a eleição para o general Eurico Gaspar Dutra, o
qual teve o apoio de Getúlio Vargas. Após sua posse, o então presidente da república,
tomou várias medidas que levaram a esquerda a juntar-se ao Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), como o Decreto-lei 9.070, que regulamentava o direito de greve, sendo
este, praticamente proibido; pressão sob o Supremo Tribunal Federal (STF) para a
declaração de ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB); rompimento de relações
com a União Soviética, entre outras.
Nas eleições de 1950, "Getúlio Vargas recebeu 48,7% dos votos, Eduardo Gomes
29,7% e Machado do PSD83 21,5%" (SKIDMORE, 2003, p.188). Mesmo vencendo as
leições, Getúlio teve sua base dividida em razão do desgaste político decorrido de atos
políticos84 e acontecimentos que provocaram a insatisfação de seus aliados.
Outro problema que ocorria no novo governo Vargas era a crescente inflação que
preocupava vários setores da sociedade, nesse sentido Fausto (1995):
81
O Estado Novo situa-se entre 10 de novembro de 1937, quando foi proposta uma nova Constituição, que
estabelecia as bases do novo regime, e 29 de outubro de 1945, quando Vargas partiu para o exílio.
82
Termo utilizado pelas pessoas que apoiavam o governo de Getúlio Vargas.
83
Partido Social Democrático.
84
O desgaste político agravou-se com a queda dos preços internacionais do café e o crescente déficit comercial.
Pressionado pelo FMI e pelos Estados Unidos, o governo lançou em 1953, um rigoroso plano de ajustes que
restringia o crédito e impunha um grande arrocho salarial. (AMBOS et al., 2010)
556
apresentando só neste último ano uma variação de 20,8%. (p. 409).
Nesse diapasão, greves foram deflagradas em várias cidades do país e uma forte
oposição se levantou contra o governo, sendo esta, encabeçada por Carlos Lacerda,
proprietário do Jornal Tribuna da Imprensa, que tinha como arma, a acidez e a
radicalização contra o governo Vargas. Neste mesmo cenário, João Goulart, Ministro do
Trabalho e simpatizante do populismo, aumentou ainda mais a desconfiança da classe
conservadora oposicionista daquela época, quando propôs um projeto para o aumento de
100% do salário mínimo, elevando de 1.200 para 2.400 cruzeiros. “Não são os salários
que elevam o custo de vida. Pelo contrário, a alta do custo devida é que exige salários mais
elevados”. (GOULART, 2004, p.50)
Após a aprovação do projeto, mesmo sob fortes críticas de oposicionistas e aliados,
João Goulart renuncia e vê seu projeto embora aprovado, não sendo posto em prática por
vários empregadores que achavam o projeto demasiadamente perigoso para a economia,
que vinha cambaleando devido à inflação, mas conseguiu deixar para os trabalhadores
uma imagem de contribuinte da classe. Após esses conturbados acontecimentos, estaria
por acontecer mais um que seria o estopim para a desestabilização política e emocional
de Getúlio Vargas, e levaria as Forças Armadas a ultrapassar as barreiras da legalidade em
prol da deposição do chefe do executivo. Com uma dicotomia profundamente acentuada,
Vargas envolveu-se em um ato polêmico, lembrado até os dias atuais, como lembra Friede
(2015):
Inicia-se assim, o regime militar, marcado por fortes embates de ideias, e graves
violações aos direitos humanos e garantias fundamentais.
A priori, o movimento político-militar caracterizava-se como sendo o paladino da
legalidade, lutando a finco, contra a corrupção e o avanço comunista. Não demorou muito
para que essa defesa se tornasse contrária ao ideal inicial. Justificando-se por um caráter
revolucionário, foi baixado o primeiro Ato Institucional – AI-1, que manteve a constituição
de 1946, como forma de mascarar o caráter autoritário que estaria por vir com a edição
dos novos atos. Este ato aumentou o Poder do Executivo, a fim de reduzir o do Congresso;
concedeu ao presidente poderes de cassação de parlamentares em qualquer nível; criou
base para o estabelecimento dos Inquéritos Policiais Militares; e designou eleições
indiretas, chefiadas pelo Congresso Nacional. Como resultado, Humberto de Alencar
86 De 1957 a 1961 o PIB cresceu a uma taxa anual de 7% (AMBOS et. al., 2010 apud FAUSTO 1995, p.432)5.
À época, as leis eleitorais permitiam que o presidente e o vice, pertencessem a chapas políticas contrárias.
87 Em 13 de março, o presidente discursou na Central do Brasil para 150 mil pessoas, anunciando reformas
558
Castello Branco, foi eleito Presidente da Republica. Em seu Governo, Boris (1995), aponta
que:
Castello Branco, "moderador", sofria forte influência dos militares radicais, e isto
foi posto a prova, quando nas eleições estaduais de 1965. Após perder em Estados
importantes, Castello foi pressionado a instituir o AI-2, que teve como principal
característica a criação do bipartidarismo, extinguindo-se os antigos, e criando o partido
de situação, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), de oposição. Também aumentou o poder do executivo mediante os
decretos-leis. Após esses acontecimentos, o Congresso, que havia sido fechado, foi
convocado pelo AI-4 para aprovar o texto da nova Constituição de 1967.
O grupo de Castello sem êxito em conseguir um novo sucessor, viu em 1967 tomar
posse como presidente, o general Artur da Costa e Silva, e como vice o udenista moderador
Pedro Aleixo. Esse governo teve como característica o endurecimento do regime por meio
da promulgação do AI-5, que estabeleceu a censura nos meio de comunicação, colocou em
recesso por tempo indeterminado o Congresso, suspendeu a garantia do habeas corpus de
acusados de crimes contra a Segurança Pública. A promulgação do AI-5 foi decorrente de
protestos que ensejaram a luta armada, e atos violentos como o assassinato de Charles
Chandler, capitão do Exército Americano. Agora, nitidamente ditatorial, a repressão era
arma de Governo.
Costa e Silva após sofrer um derrame foram afastado do poder, assumindo em seu
lugar uma Junta Militar constituída por três Ministros das Forças Armadas. Fica claro aqui,
que a repressão era institucional, pois por meio da promulgação do AI-12, Pedro Aleixo,
vice-presidente, não tomou posse. Foi nesse contexto, que mais Atos Institucionais foram
promulgados, como o AI-13 e AI-14, em decorrência da luta armada de grupos como a
Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8),
responsáveis pelo sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick.
Por meio do AI- 16, que declarou vago, o cargo de presidente, em 30 de outubro de
1969, o general Emílio Garrastazu Médici, toma posse, com prazo final de seu mandato em
15 de março de 1974. Foi nesse Governo que ocorreu o ápice da repressão, caracterizado
pelas lutas armadas, como no caso da Guerrilha do Araguaia89, a criação do Destacamento
89 Movimento Guerrilheiro na região do Araguaia entre as décadas de 60 a 70, organizado Partido Comunista
do Brasil (PcdoB) com o obejtivo de combater a repressão que aumentou consideravelmente com à
instituição do AI-5.
559
Operações de Informação Centro de Operações de Defesa Interna DOI-CODI90, e pelo
"Milagre Econômico" 91
Após atos cruéis praticados pelos militares, Médici decide demitir o general
responsável pelo II Exército. Como bem lembra Ambos (et al., 2010), o ato poderia ser
entendido como uma inclinação aos direitos humanos, mas na verdade, refletia as
necessidades de restabelecer a hierarquia militar para que fosse reforçada a autoridade
do presidente.
Começava assim, após divergências entre radicais e moderados, uma abertura
política, que foi caracterizada, sobretudo, com a revogação do AI-5. Em 1979, João Batista
Figueiredo assume a presidência com o intuito de promover a abertura política. Após ter
sido aprovada pelo Congresso, a Lei de Anistia foi promulgada no mesmo ano, sendo ela,
responsável por um ânimo de justiça, que até os dias atuais, é colocado em questão.
Juridicamente falando, todo Estado democrático de direito, possui competência
para aplicar o instituto da anistia quando necessário for, a fim, de harmonizar os embates
de grupos antagônicos, buscando a reestruturação social-democrática. Dessa forma, de
acordo com Carlos (2013), ocorreu na Inglaterra, quando Carlos II, depois da Revolução
Puritana, teria iniciado seu reinado mediante um decreto de anistia plena. Nesse viés,
vários países como França, Itália, Argentina e Alemanha, em diversos períodos,
concederam anistia. Os Estados Unidos também concederam, mas, de uma forma
diferente, pois aqui, a competência é do Presidente, diferente daqueles citados
anteriormente, onde compete ao Poder Legislativo.
Em nosso País, a Anistia é utilizada desde a época do Império, sendo de
competência do Imperador, a sua concessão, mediante alicerce da Constituição de 1824.
Já na República, a Constituição de 1891, atribuiu ao Congresso Nacional à concessão,
competindo a este, exclusivamente, dispor sobre a anistia. Em sequência, seguindo esta
regra, as constituições federais de 1934, 1946 e 1988, garantiram o instituto da anistia. A
atual Constituição Federal vigente, nos garante em seu Artigo 48:
90O DOI-CODI reunia os militares das três Armas, policiais militares estaduais, Polícia Civil e Federal, tudo
sob um mesmo comando. Rapidamente ficaram conhecidos como centros de tortura e repressão. Os dois
maiores estabelecimentos do DOI-CODI localizavam-se em São Paulo e no Rio de Janeiro.
91 Esse período foi caracterizado por aceleração do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto),
industrialização e baixos níveis inflacionários. Entre as explicações para a ocorrência do milagre econômico
está o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG). O programa foi instituído na gestão do presidente Castelo
Branco (1900 - 1967), primeiro governante do período da ditadura militar.
560
mas por outro lado, trouxe inquietação e sentimento de impunidade para aqueles que
sofreram com o golpe, devido a suas características, que até os dias atuais, sofrem duras
críticas.
Por volta de 1970, inicia-se no Brasil o movimento a favor da anistia, mas é em
1975, mediante liderança da Advogada Therezinha Zerbini, com o apoio de amigos e
familiares de presos políticos, que a luta organiza-se através da criação do Movimento
Feminino pela Anistia (MFPA). O movimento começa a ganhar força com a criação do
Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), em 1978, que tinha por objetivo, organizar a luta
pela anistia levando-a as ruas.
Após sentir-se pressionado pelo movimento, que mostrava força nas ruas, o
Governo envia ao Congresso Nacional o projeto para discussão. A partir daí, inicia-se
conflagrações em relação ao teor da lei de anistia. De um lado, políticos pretendiam excluir
do alcance da anistia, os guerrilheiros, aprovando assim uma “anistia parcial”92. Do outro,
lutavam por uma anistia, ampla, geral e irrestrita.
Dessa forma, começa-se um período de lutas e embates ideológicos, a fim de que
fosse construido uma ponte, para que o País saísse do estado que se encontrava, para um
estado democrático de direito, onde fosse assegurado o acesso e a garantia à justiça,
principlamante daqueles que constitucionalmente possuíam o direito a anistia.
A justiça de transição caracteriza-se como construtora de harmonia e paz social em
sociedades em período de conflito. Integram-se assim, os objetivos da anistia e, da justiça
de transição, quando visam conjuntamente, um bem comum maior. Ao longo dos anos, a
percepção de justiça de transição aproximou-se intimamente da proteção de direitos
humanos, trabalhando sincronicamente, para a garantia de seus objetivos. Dessa forma,
agem na dimensão de reparação de danos e punição de executores de violações aos
direitos humanos e ilegalidades, algo que não ocorreu na Lei 6.683/79.
A Lei de Anistia Brasileira possui pontos em comum com leis de outros países,
como Argentina e Chile, que sofreram com regimes autoritários em sua história. Todos
eles sofreram abusos e violações de direitos, tendo a Lei de anistia, como instrumento
para uma justiça transicional, buscando a retomada de um Estado democrático de direito.
Mas no Brasil, a Lei que ora serviria para buscar a justiça, trouxe impunidade, quando
anistiou perpetradores de abomináveis crimes, indo assim, em viés oposto a sua função
precípua. Como lembra Moraes (2015):
Sabe-se que a anistia foi uma das bandeiras de luta das oposições ao
regime militar instaurado no Brasil em 1946, representando senão o
primeiro, mas um dos principais instrumentos em prol de instalar um
período de transição. Entretanto, se a lei nº 6.683, de 28 de agosto de
1979, concedeu anistia para os seus opositores, representou, também,
uma autoanistia‖ do regime militar, em especial, aos seus agentes de
repressão. Este diploma legal, diferentemente dos ideais defendidos
pelas vitimas do regime ditatorial, fora criado para anistiar ambos os
lados da guerrilha, levando ao esquecimento. Portanto, essa não se
tornou conquista do povo brasileiro, como sonharam seus formuladores,
mas sim um instrumento de revanchismo imoral (p.58).
92 Também pode ser chamada de restrita, ocorre quando aponta e exige uma condição pessoal do acusável.
561
pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos
direitos humanos.
Nesse viés, a Lei nº 8.072/90, que trata sobre crimes hediondos, em seu artigo 2º,
I, preleciona que são insuscetíveis de anistia à prática de tortura e os crimes hediondos,
como homicídios e estupros, que foram comumente usuais no regime, principalmente no
auge da repressão93.
Diante dessa celeuma, deve-se analisar a Lei nº 6.683/79, pois fica claro o caráter
de apaziguamento que ela proporcionou ao momento histórico que foi inserida, mas
também, deve-se ter ciência que esse espírito apaziguador não fincou raízes nas centenas
de famílias que ainda sofrem o reflexo dessa convertida lei.
É notório que a Lei 6.683/79, mesmo tendo como objetivo conceder anistia àqueles
que cometeram crimes políticos, atendendo a sua natureza legal, concedeu também,
anistia para agentes que cometeram crimes de outra natureza, mas, que se resguardaram
na controversa expressão "conexo". Segundo Brasil (1979), o artigo 1º da lei em comento,
"É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de
1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes (...)".
Para uma melhor compreensão, é pertinente que entendamos um pouco mais
sobre os crimes políticos no Brasil, assunto que a partir de agora será discutido.
Em 04 de abril de 1935, surge no Brasil a inicial Lei de Segurança Nacional do País,
que versava sobre crimes de natureza social e politica. Essa lei ficou vigente até 1953. Com
a redemocratização e a queda do Estado Novo, foi promulgada a Lei nº 1.802 deste mesmo
ano, criminalizando ações contra o Estado e a ordem política e social.
A Lei nº 1.802/53, por não suprir os ideais "revolucionários" do movimento em
1964, é revogada e, entra em seu lugar, a primeira legislação com base na Doutrina da
Segurança Nacional (DSN)94, o Decreto Lei nº 314, de 13 de março de 1967; o Decreto Lei
n. 898 de 20 de setembro de 1969, a Lei nº 6.620 de 17 de dezembro de 1978, e por fim,
ainda em vigor em nosso ordenamento jurídico, a Lei n. 7.170 de 14 de dezembro de 1983,
durante o governo do presidente João Figueiredo. Sobre o conceito de crime político,
entende Hungria (1960):
Nesse sentido, aquelas pessoas que lutavam contra o regime militar, tinham como
respostas as consequências legais previstas nas legislações executadas pelo próprio
93 A Comissão Nacional da Verdade (CNV), em seu relatório final, no ano de 2014, confirmou o número de
434 pessoas mortas e desaparecidas durante o regime militar (1964-1985). (CANES, 2014).
94 Com o pretexto inicial de lutar contra subversivos, os militares estabeleceram no País o chamado Estado
de Segurança Nacional, o qual tem como base teórica a Doutrina da Segurança Nacional – DSN, muito
utilizada durante a Guerra Fria nas ditaduras militares da América Latina. Nesse período histórico havia a
grande tensão Leste/Oeste, a bipolarização do Planeta, dividido entre a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, de orientação comunista, e os Estados Unidos da América, de formação capitalista, cada um com
seus aliados e seus inimigos. A Guerra Fria foi o pano de fundo político sobre o qual se desenvolveu a
utilização da Doutrina da Segurança Nacional por parte das ditaduras militares. (RIGONI, 2013).
562
Governo, como o Decreto Lei nº 314, com base na DSN, e também, as edições dos Atos
Institucionais. Dessa forma, devido à proibição do habeas corpus e a inexistência de
diálogo, o preso político era mantido nos órgãos de segurança, onde era alvo de torturas.
Assim, a época ditatorial foi marcada pelo exílio daqueles que cometeram os
chamados crimes políticos, cujo objetivo central dessa punição era reduzir a zero as
manifestações daqueles que atentavam contra a ditadura que ali se encontrava. Com isso
em vista, o governo utilizava-se do exílio como forma de reprimir e banir todos que
ousassem contrariar o atual regime.
Frente a isso, a Lei de Anistia vem para conceder o perdão necessário àqueles que,
outrora, foram expulsos do País e tidos como criminosos por exporem seu sentimento de
revolta contra a forma de governo que estava o Brasil presenciando. Nesse sentido, aduz
Paim (2014), que:
Diante disso, temos que a Lei de Anistia trouxe a luz necessária para volta dos
brasileiros exilados à sua terra de origem e, ainda, restituiu a dignidade e devolveu a voz
àqueles que foram obrigados a se calar, diante da injustiça que ocorria no país.
Um dos casos mais emblemáticos sobre violação dos direitos humanos no Brasil
foi o caso Gomes Lund. Versus Brasil, conhecido com a Guerrilha do Araguaia. Analisa-se
assim, as características desse caso, apontando a decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, e o reflexo desta, para o Estado brasileiro.
Durante a década de 60, período em que o Brasil já se encontrava sob o
regime militar, um grupo de militantes, dissidentes do PCB, se organizou e formou um
novo partido político, o Partido Comunista do Brasil (PcdoB), que tinha como um dos seus
objetivos, enfrentar o regime militar por meio de uma revolução a partir das zonas rurais.
Posteriormente a essa organização, um grupo de 70 pessoas foi enviado para a região do
Rio Araguaia, que abrange parte dos Estados do Pará, Maranhão e Goiás. Essa migração
ocorreu em virtude do agravamento do regime devido à instituição do AI-5, por qual do
qual a repressão aumentou substancialmente nos centros urbanos.
Já na região do rio Araguaia, os militantes organizaram-se entre os moradores da
região, levando a eles, uma doutrinação política, haja vista o descaso público em que
viviam naquela região, pois eram privados de direitos básicos como educação e saúde.
Consequentemente, encontraram apoio dessas pessoas, iniciando assim, a organização da
guerrilha.
Logo que o governo tomou conhecimento da organização na região, inicia-se uma
série de investidas a fim de barrar o avanço dos militantes. A falta de apoio dos militares
563
conjuntamente com a falta de informações sobre o local levaram algumas investidas ao
fracasso. Segundo Lucena e Gaiote (2016):
Somente dois corpos foram localizados até hoje. O de Maria Lúcia Petit,
morta em junho de 1972 numa emboscada. Seus restos mortais foram
identificados em 1996.
O outro corpo localizado foi o de Bergson Gurjão. São esses os dois únicos
guerrilheiros mortos e identificados posteriormente, que tiveram um
enterro digno dado por seus familiares. (PINTO, 2013, p.20).
Com sede de justiça, as famílias dos desaparecidos entraram com uma ação civil
perante o Estado brasileiro, pleiteando resposta quanto às mortes e desaparecimentos
dos corpos. Sem atenção necessária por parte do Estado brasileiro, o caso foi levado a
Corte Interamericana de Direitos humanos, haja vista o retardamento na análise e
julgamento do processo.
Tentando alcançar uma conversão de um Estado fundado na impunidade, tendo
como base a Lei de Anistia, para um Estado onde impera a Justiça, os familiares das vítimas
da Guerrilha do Araguaia, tendo esgotado a jurisdição interna, recorreram a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, com finalidade de punir os agentes envolvidos no
massacre ocorrido na região do rio Araguaia.
O caso da Guerrilha do Araguaia chega a Corte Interamericana de Direitos
Humanos mediante a regra de exceção, concernente a demora injustificada do Estado
Brasileiro em analisar e julgar o caso internamente. Verifica-se a demora, em análise as
datas, pois, as famílias promoveram o processo em 1982, ficando sem respostas, até 1996,
passando-se mais de uma década de silencio e dor. Nesse liame, Pinto (2013), ensina:
564
Direitos Humanos. O Estado Brasileiro sempre contestou, rechaçando sua
responsabilidade e requerendo seu arquivamento, com base na Lei de
Anistia de 1979 (nº 6.683/79). (PINTO, 2013, p.3).
565
Dessa forma, seguindo o artigo supratranscrito, a Corte ajuizou como vítimas das
ações e omissões do Estado, aqueles que despareceram forçadamente e seus familiares,
reconhecendo a existência de danos materiais e morais, com base no princípio da
equidade, também determinou que o Estado prestasse atendimento psicológico aos
familiares, para que pudessem melhorar as condições perpetradas pelos fatos.
A Corte determinou também, que o Estado designasse as correspondentes
responsabilidades penais, seguindo a lei, e aplicando as sanções oriundas dela. Assim
como, que publicasse a sentença no Diário Oficial e tornasse disponível em um site
eletrônico adequado, visando dar publicidade à sentença. Impôs também ao Estado, ações
necessárias para a ratificação da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento
Forçado e tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas.
Assim sendo, pode-se observar que a sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos condenando o Brasil as determinações ora citadas, possibilitou o exercício do
direito a verdade e a memoria das vítimas, que sofreram com as perseguições e violações
de direitos humanos, ocorridos durante o período do regime militar, mais
especificamente, no caso da Guerrilha do Araguaia.
Considerando a incompatibilidade da lei de anistia no ordenamento jurídico
brasileiro, como bem sentenciou a Corte, espera-se que o Brasil cumpra todas as
determinações, punindo os agentes violadores dos direitos humanos, para que assim, a
história do país possa caminhar, daqui pra frente, sobre os degraus da justiça, lado a lado
com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
95O ministro Joaquim Barbosa não participou da votação, pois estava de licença médica. Já o ministro Dias
Toffoli não votou alegando impedimento, haja vista que à época do ajuizamento da ADPF Nº153, estava à
frente da Advocacia Geral da União.
566
Ao tratar sobre a dignidade da pessoa humana, deu apenas conotação politica ao
caráter normativo e principiológico, quando argumentou ser “exclusivamente política,
não jurídica” a dignidade da pessoa humana.
Em síntese, os votos dos ministros que decidiram sobre a improcedência da ADPF
Nº153, podem ser interpretados mediante análise de Filho (2010), que dividiu os votos
em três linhas de interpretação:
Após uma análise geral sobre o tema, temos, segundo Mendes (2008, p. 225-226), que:
"as posições adotadas pelo STF são, cada vez mais, resultados da interação com os outros
Poderes, o que impossibilita uma análise puramente jurídica das questões a ele
submetidas". Por fim, observa-se que a decisão do STF sobre a ADPF Nº153, foi fundada
numa análise político-social dos fatos, não se atentando para a análise jurídico-
constitucional, como deveria ter sido feita.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sendo a lei de anistia, oriunda de um “acordo político” e promulgada com o objetivo
de anistiar crimes desta natureza, foi pensada como um instrumento de justiça de
transição, edificando a pacificação social, e marcando a abertura do regime militar,
voltando-se assim o Brasil, para um Estado democrático de direito.
Por quanto, percebeu-se que no plano prático, a lei de anistia ocasionou a
impossibilidade da persecução penal dos crimes comuns cometidos por agentes da
repressão, mediante a característica de conexão criminal entre crimes comuns e políticos,
que a Lei n° 6.683/79 trouxe no §1º do seu primeiro artigo. Com isso, a pacificação social,
dá lugar à denegação ao acesso a justiça por parte das vítimas da repressão do regime
militar.
567
Por conseguinte, o sistema interamericano de direitos humanos, a qual o Brasil é
signatário, devendo assim obediência, não vista no plano prático jurídico, através de seus
órgãos, já decidiu em outros casos, condenando o Estado no caso Gomes Lund versus
Brasil, que as leis de anistia que impedem a persecução penal de agentes violadores de
direitos humanos e declaram a autoanistia, não possuem validade jurídica.
É notório que a contrariedade entre a lei de anistia brasileira à luz da
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi ainda mais acentuada
quando o Supremo Tribunal Federal, julgando a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº153, decidiu pela improcedência, indo de encontro à jurisprudência
internacional, e ferindo a própria Constituição, haja vista, a recepção de uma lei que fere
princípios fundamentais como o da dignidade da pessoa humana.
Todas as evidências dos referenciais abordados expõe que a lei de anistia no Brasil,
possui características legais contrarias ao próprio ordenamento jurídico, quando
recepcionou tal lei, ferindo princípios garantidos constitucionalmente, além da
contrariedade com a jurisprudência internacional, indo de encontro, ao sistema
protecionista de direitos humanos, que visa por meio da uniformidade entre direito
interno e internacional, garantir esses direitos.
Percebeu-se que a incompatibilidade entre a lei de anistia no Brasil com a
jurisprudência internacional, acentuou-se com a não observância dessa jurisprudência
durante o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153,
onde a Corte Suprema deveria ter observado as normas e tratados internacionais, fazendo
assim, uma simetria e uma compatibilização entre a lei interna e a jurisprudência
internacional, o que se dá pelo controle de convencionalidade.
As evidências deste trabalho serão de fundamental importância para o meio
acadêmico e jurídico, por abordar uma temática contraditória entre o direito interno e o
direito internacional, edificando uma base para uma compreensão e uma possível solução
da problemática em questão, a fim, de que haja uma harmonização entres esses direitos,
garantindo legalmente as vítimas o acesso à verdade e justiça.
REFERÊNCIAS
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1995.
CASADO FILHO, N. Direitos Humanos Fundamentais. 58. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
569
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ÊXODO. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de José Luiz Gonzaga do Prado. São
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GOMES, L. F. Lei de anistia: brilharam pela ausência as vítimas e seus direitos. Portal
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LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
570
LOCKE, J. O Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa
Lobo da Costa. Editora Vozes: Petrópolis, 1994.
NAPOLITANO, M. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto,
2014.
571
2013. 78f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito). Universidade do
Sul de Santa Catarina, 2013.
SKIDMORE, T. E. Uma História do Brasil. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
SOARES, G.F.S. Common Law: Introdução ao Direito dos EUA. 1ª. ed., 2ª tir. RT, 1999.
572
PRISÃO PREVENTIVA DOMICILIAR COM MONITORAMENTO ELETRÔNICO: UMA
ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DA CONCESSÃO DA MODALIDADE PARA MULHERES
EM JOÃO PESSOA NO ANO DE 2018
1 INTRODUÇÃO
96Instituto adotado pelo STF quando do julgamento da ADPF 347 MC/DF, caracterizado como “presente
quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais”.
574
Nas sedes das discussões acerca do tema, foram sopesados entendimentos
distintos acerca do cabimento do remédio constitucional de caráter coletivo, visto que
buscava conceder às mães encarceradas a prisão preventiva em caráter domiciliar,
resguardando o interesse da criança em face da aplicação da medida cautelar.
Como pacientes se enquadravam “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar
no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou
de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias
crianças”. Cabe ressaltar, ainda, que foram adicionadas às pacientes originais também as
mães de pessoas com deficiências e adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou
grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as
quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício.
O HC foi impetrado pela Defensoria Pública da União, que defendeu o direito que
assiste às mães de crianças sob sua responsabilidade e às gestantes de não se verem
recolhidas à prisão preventiva, ressaltando ser comum a situação da mulher presa
cautelarmente que é, ao final, condenada à pena restritiva de direito97, o que não reverte
os danos sofridos pela mãe e pela criança.
O argumento, além de acertado em suas linhas, conta com o apoio da presunção de
inocência prevista no art. 5º, LVII da Constituição Brasileira, visto que a prisão preventiva
não pode ser utilizada como antecipação da pena e deveria ser utilizada apenas como
última opção pelos operadores do direito, o que ocorre de forma totalmente banalizada.
Apesar de enfrentar pareceres desfavoráveis à procedência da ação pela
Procuradoria Geral da República - que se manifestou pelo não cabimento do remédio,
antes a impossibilidade de concessão de “habeas corpus genérico, sem individualização
do seu beneficiário” e expedição de “salvo conduto a um número indeterminado de
pessoas” – o resultado final da votação foi positivo, tendo sido decidida a concessão pela
maioria (vencidos apenas os Ministros Dias Tóffoli e Edson Facchin, que deles conheciam
em parte).
A decisão pelo STF por atitude tão drástica reflete o reconhecimento, pelo próprio
poder público, da incapacidade dele de gerir a saúde e o exercício da maternidade dentro
dos presídios de sua responsabilidade. Nesta senda, apenas reforça-se a necessidade de
medidas que garantam a efetiva aplicação da LEP no que tange aos direitos e garantias
direcionados a mães e filhos que perpassam a experiência do encarceramento.
97 Segundo o art. 44 do CP, as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de
liberdade, quando esta não é superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave
ameaça a pessoa, ou qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; o réu não for reincidente em
crime doloso; a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como
os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Suas espécies, segundo o art.
43 do CP são: prestação pecuniária, perda de bens e valores, limitação de fim de semana, prestação de
serviço à comunidade ou a entidades públicas e a interdição temporária de direitos.
575
Unidas em 1966, assegura a presunção de inocência em seu artigo 14. -2: “Toda pessoa
acusada de um delito terá o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa”.
No nosso direito interno, a Constituição Federal, no seu art. 5º, LVII, informa que
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”. O princípio da presunção de inocência – ou de não culpabilidade, como
assumido pela nossa Constituição - para Badaró (2018) dever ser analisado de três
formas: primeiramente, como garantia política para o cidadão, sendo um fundamento
sistemático e estrutural para o sistema acusatório98. Em segundo lugar, como regra de
julgamento a ser utilizada “sempre que houver dúvida sobre o fato relevante para decisão
do processo” (Badaró, 2018, p. 68) e, por fim, como regra de tratamento do acusado ao
longo do processo, como forma de garantir o respeito à sua dignidade e evitar que seja
antecipadamente tratado como culpado. Para Lopes Jr. (2018) o princípio ainda deve
atuar externamente contra a exposição abusiva do réu na publicidade e sua
estigmatização precoce. Segundo o autor, a presunção de inocência deve ser utilizada
como verdadeiro “limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato
criminoso e do próprio processo judicial” (Badaró, 2018, p. 368).
Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas, em seu art. 11, dispõe que “toda pessoa acusada de delito tem direito a
que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade (...)”. Já a
Convenção Americana, no §2º do seu art. 8º, informa que “Toda pessoa acusada de delito
tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua
culpa”.
Entretanto, a despeito de todo o aparato legal construído tendo como base o
Princípio da Presunção da Inocência, este ainda é o mais desrespeitado no ordenamento
jurídico pátrio. No estado da Paraíba, o número de presos provisórios é de 38,25%,
superando a média nacional. Em continuidade, temos 44,48% de presos sentenciados no
regime fechado, 11,68% cumprimento em meio semiaberto, 5,38% em regime aberto e
0,21% em internados por medida de segurança (dados do INFOPEN 2019).
No tocante às mulheres, representam 5,82% da média nacional da população
carcerária, sendo esta estatística de 5,4% no Estado da Paraíba. De acordo com o INFOPEN
Mulheres (2018), o perfil destas mulheres é constituído, em sua maioria, por jovens (50%
das custodiadas habitam a faixa etária de 18 a 25 anos). Quanto ao grau de escolaridade,
percebe-se que 45% não chegaram a completar o ensino fundamental, abrindo vistas
também para a classe social que ocupam - predominantemente pobres. Dentre o total,
62% declaram-se solteiras e apenas 1% da população feminina privada de liberdade é
constituída por pessoas com deficiência. Ainda sobre elas, estima-se que 62% são de pele
negra (categoria que abrange pretas e pardas segundo o IBGE), esmagadora maioria
frente às demais etnias representadas (INFOPEN Mulheres (2018).
Em brevíssima explicação acerca do instituto, entende-se prisão preventiva como
aquela que é decretada no decorrer do processo ou no durante realização das
investigações. Para tanto, é necessária a existência do fumus comissi delicti99 e periculum
98 Para Badaró (2018, p. 101) o sistema acusatório é “essencialmente um processo de partes, no qual a
acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições, e que apresenta um juiz sobreposto a ambas” –
sendo suas maiores características a nítida separação de funções e a imparcialidade do juiz.
99 Fumus comissi delicti, consiste na soma da prova da materialidade de um crime e indícios suficientes de
autoria.
576
libertatis100, de maneira a evidenciar a imprescindibilidade da sua custódia para que o
processo tramite de forma regular.
Listando brevemente seus pressupostos (previstos no artigo 312 do Código de
Processo Penal), a saber: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando
houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Apesar de passíveis
de críticas que não serão possíveis de serem realizadas pelo curto espaço disponível para
escrita, todos necessitam estar bem fundamentados na decisão que decreta tal prisão,
fator que dificilmente se é observado nas praxes dos tribunais brasileiros.
Além dos pressupostos, também existem hipóteses para admissibilidade da prisão
preventiva, sendo cabíveis apenas naquelas trazidas pelo art. 313 do Código de Processo
Penal, que exige como parâmetro crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade
máxima superior a quatro anos. A justificativa deste quantitativo está no fato de que no
art. 43 o CPB permite que penas não superiores a quatro anos possam ser substituídas
por sanções restritivas de direito101. Logo, não faria sentido manter encarcerada
preventivamente que não sofreria prisão mesmo que fosse condenado.
O segundo inciso do art. 313, por sua vez, trata da reincidência102 em crime doloso,
outra circunstância em que pode ser admitida a prisão preventiva. Violando mais uma vez
a presunção de inocência, o legislador opta por estigmatizar o réu reincidente, aplicando-
lhe punições em bis in idem103, como explica Lopes Jr (2018). A terceira hipótese de
admissibilidade busca resguardar pessoas consideradas como vulneráveis (mulheres,
crianças, idosos, pessoas com deficiência), demonstrando o maior rigor aplicado aos
acusados de crimes contra tais pessoas. Por fim, a última hipótese trazida pelo artigo é
quando há dúvidas sobre a identidade civil do indiciado ou quando este não fornecer
elementos suficientes para fornecê-la.
Acerca do prazo das prisões preventivas, em que pese a doutrina e jurisprudência
atual considerá-la de no máximo 81 dias, soma dos prazos fixados para atos do processo
em primeira instância (Lima, 2018, p. 265), este cômputo não considera os tempos de
movimentação cartorária, que se agrava diante do caos encontrado em diversos tribunais
em nosso país.
Tem-se, então, a aplicação da prisão preventiva como um analgésico em meio a
todo o caos da segurança pública instaurado nas cidades brasileiras. Delmanto (2001)
entende a prisão preventiva como uma circunstância de “justiça imediata”, trazendo
reações rápidas com o condão de acalmar os ânimos da população, de forma a afastar a
sensação de impunidade sentida no duro dia a dia do nosso país. Esta impunidade,
todavia, caracteriza-se como vingança cruel para réus ainda não julgados, exigindo uma
repressão sumária do poder judiciário.
Esta mesma sociedade desconsidera os inúmeros desrespeitos às determinações
expressas na nossa Constituição, como, por exemplo, a previsão de que presos provisórios
devem ficar em locais distintos dos presos definitivos. Não sente a rispidez do ambiente
que revolta, gera ódio, incita violência, emana doença e nem se alimenta com refeições
100 Periculum libertatis: requisito das medidas cautelares que indica que a liberdade do acusado traz perigo
para o andamento do processo.
101 Espécies de penas alternativas previstas no art. 43 do CPB, consubstanciadas em prestação pecuniária,
perda de bens e valores, limitação de fim de semana, prestação de serviço à comunidade ou entidades
públicas e interdição temporária de direitos.
102 Segundo o art. 63 do CPB, “verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de
transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.”
103 Bis in idem é uma expressão em latim que significa "duas vezes o mesmo" ou "repetição sobre o mesmo".
O uso deste termo pode indicar a ação de repetir uma determinada atividade, metodologia ou cobrança.
577
que causariam a interdição de qualquer restaurante que as servisse. Nesse caso, não
interessa à população a sentença condenatória, bastando apenas o sofrimento em si pelo
encarceramento, o desejo da vingança rápida e cruel. É a lógica do sofrimento explicada
por Rogério Schietti Cruz (2018, p. 27).
Dando efetividade aos diversos tratados internacionais que o Brasil figura parte
(art. 9º, item 3 da PIDCPNY e art. 7º, item 5 da CADH) e tendo a necessidade de sua
utilização reforçada por decisão do ADPF nº 357 (o mesmo que declarou o “Estado de
Coisas Inconstitucional” do Sistema Penitenciário brasileiro), a resolução nº 213/2015 do
CNJ instituiu a Audiência de Custódia, onde deve haver a condução do preso, sem demora,
à presença do juiz para controle da legalidade da prisão e a possível aplicação de medidas
cautelares (conversão em prisão preventiva ou as demais104).
Além disso, a audiência de custódia também tem o importante papel de analisar a
circunstância em que ocorreram as prisões, a fim de fiscalizar o tratamento dispensado
aos acusados pelos policiais envolvidos e garantir os direitos que lhe são devidos.
Entretanto, ainda não foi alcançada a total utilização desta finalidade, vez que é bastante
improvável que o acusado entregue, em uma sala de audiência com a presença de
policiais, informações acerca do tratamento desumano dispensado pelos seus colegas de
trabalho.
A audiência de custódia foi implantada como tentativa de promover determinada
“humanização” ao processo penal, garantindo um primeiro contato breve entre o juiz e o
acusado que anteriormente só ocorria no seu interrogatório, que poderia acontecer meses
após a prisão. Paiva (2017) confirma:
Conforme se nota facilmente, trata-se de um sistema puramente cartorial, em que o Poder
Judiciário, de forma asséptica, decide a partir do papel, sem garantir ao preso o direito de –
pessoalmente – se fazer ouvir, revelando um padrão de comportamento judicial que, com o passar
dos tempos, se tornou praticamente gerencial, uma atividade quase que burocrática, em que
predomina a conversão do flagrante em prisão preventiva com base em elementos
excessivamente abstratos, fomentando uma atividade decisória “em série” e customizada. (Paiva,
2017, p. 67).
Em que pese a boa intenção da sua criação, as pretensões reais punitivas do
sistema judiciário acabaram por desviar o caminho traçado pelos objetivos da audiência.
O lugar de fala ocupado pelo apresentado, ainda que na sua oportunidade de ser ouvido,
se torna abafado pelas pré-concepções na parcialidade de cada um das autoridades ali
presentes, reforçada pela seletividade penal. Neste azo, ilegalidades ou maus tratos
ocorridos durante a prisão, ainda que existentes, são diversas vezes ignorados por
partirem de indivíduos cuja credibilidade é abalada.
Ferreira (2017) questiona a utilização do instituto como real promovedor de
descarcerização ou reafirmação de estereótipos criminosos, duvidando do exercício de
alteridade no reconhecimento dos fatos imputados criminosos pelo lugar de fala do
indiciado. Sobre o assunto, comenta:
104Segundo o art. 319 do CPP, são medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em
juízo (...); II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (...); III - proibição de manter contato
com pessoa determinada (...); IV - proibição de ausentar-se da Comarca (...); V - recolhimento domiciliar no
período noturno e nos dias de folga quando (...); VI - suspensão do exercício de função pública ou de
atividade de natureza econômica ou financeira (...); VII - internação provisória (...); VIII – fiança (...); IX -
monitoração eletrônica.
578
Considerando-se a empreitada punitiva que não deixa de acompanhar as
audiências de custódia, ainda que se trate de um instrumento
descarcerizador, a preocupação dos atores do sistema de justiça criminal
não parece ser com a melhor decisão, com a atenção à pessoa presa, com
a mudança de sua situação. Aos olhos da equipe de pesquisa, o
destinatário, hoje, é o Poder Judiciário – preocupado com metas, com
números, com “produção de estatísticas” (Ferreira, 2017, p. 296)
Segundo Karam (2007), o ano de 1984 não foi apenas o ano em que o Grande
Irmão, preconizado por George Orwell, passou a vigiar todos ao seu redor. Este também
foi o ano em que o monitoramento passou a ser utilizado no sistema penal. E assim como
o Grande Irmão, a tecnologia aliada ao processo penal passou a ser “uma dessas figuras
cujos olhos seguem a gente por toda parte” (Orwell, 2005, p. 2).
A utilização do monitoramento eletrônico como medida cautelar ou associada à
prisão domiciliar alega contribuir para a repressão da criminalidade na modalidade
aprimorada de observação dos corpos defendida por Foucault (2010) – o panóptico105.
Com a evolução da tecnologia, o “pós-panóptico” consubstanciado no monitoramento
eletrônico regula os comportamentos dos usuários a partir da sua obrigatoriedade (ou
vedação) de permanência em determinados locais. Esta regulação dos corpos, ainda
segundo o autor francês - em qualquer que seja instituição utilizada - produz a docilização
destes corpos e a adequação deles à realidade desejada pelo Estado que os observa a todo
instante.
Esta fiscalização exacerbada e exploradora da intimidade, entretanto, não cumpriu
as promessas de diminuição da criminalidade. Dados do INFOPEN (2019) demonstram
que de 2011 (ano em que a reforma do CPP implementou medidas cautelares, dentre elas
o monitoramento) a 2017, a população prisional aumentou de 514.600 para 726.350
pessoas, resultando em mais de 210 mil pessoas presas neste interregno. Dessa forma, em
seis anos (2011 a 2017) a população carcerária sofreu o mesmo aumento que havia feito
de 2003 a 2011, em oito anos (INFOPEN 2019).
Como é sabido que grande parte destas prisões são aquelas que ainda esperam por
condenação criminal, evidentemente mais pessoas inocentes foram encarceradas,
contrariando a perspectiva de que o monitoramento eletrônico (e as demais cautelares)
reduziria o número de prisões.
Este fenômeno, em sua totalidade, acresceu vertiginosamente o poder punitivo do
Estado, que agora, além de punir inocentes e condenados com a prisão, também os
controla através do monitoramento e demais medidas cautelares.
Neste azo, em que pese ser preferível o monitoramento eletrônico à prisão
(conclusão lógica e necessária para esta pesquisa) percebe-se que o uso do
18 Modelo de penitenciária ideal concebida pelo jurista inglês Jeremy Bentham (1785) que permite a um
único vigilante observar a todos, sem que saibam que isto ocorre.
19 Fonte: Ministério da Justiça. A partir de 2005, dados do Infopen. Nota: Número de pessoas em milhares.
579
monitoramento eletrônico também falhou na tentativa de exercer a diminuição da
criminalidade.
2 ANÁLISE DOS RESULTADOS
106O art. 301 do CPP dispõe que qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão
prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Considera-se em flagrante delito, para o art.
302 do CPP, quem está cometendo ou acaba de cometer infração penal, ou é perseguido ou encontrado logo
após em situação que faça ou com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o
autor da infração.
580
passou desapercebida - foi a postura dos magistrados acerca da utilização de algema
durante as audiências.
Foram encontrados três posicionamentos: o primeiro, garantia ao autuado o
direito de não permanecer algemado durante a audiência, em conformidade com o art.
8º107, II da Resolução nº 213/2015 do CNJ e a Súmula Vinculante nº 11 do STF108; o
segundo informava apenas que o custodiado havia permanecido algemado haja vista o
teor da Portaria nº 01/2015 daquele Núcleo de Custódia. Esta portaria considerava o
elevado número de audiências de custódia, a necessidade de organização dos trabalhos e
a alta de estrutura física para determinar que todos os presos ingressassem e
permanecessem algemados quando fora da cela existente no andar, bem como a proibição
do acesso de parentes ou conhecidos ao preso, com exceção de seu advogado.
Em relação ao uso de algemas nas audiências de custódia analisadas, um terceiro
posicionamento foi observado nos termos de audiência. Vejamos:
107 “II -
assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio
de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por
escrito;”
108 Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade
física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob
pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do
ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
581
seguida, afirma que a utilização das algemas nada tem a ver com o uso da força – mas logo
após as cita como exemplo de neutralização da força do autuado. Em terceiro lugar, tenta
justificar a necessidade das algemas diante da falta de estrutura do local para o
recebimento de presos – sendo este o mesmo local que abrigou todas as outras audiências
descritas nos termos anteriores, quando outras mulheres tiveram assegurado o seu
direito de não permanecerem algemadas - demonstrando a discricionariedade dos
magistrados para a tomada desta decisão. Cabe ressaltar que, mais uma vez, em nenhum
destes termos de audiência se registrou tumulto ou ação dos autuados que desse ensejo à
necessidade das algemas regulamentadas pela Súmula Vinculante nº 11 ou a Resolução
nº 213/2015 do CNJ.
Dentre os tipos penais que supostamente praticaram, 99 das 181 (correspondente
a 54,7%) mulheres foram acusadas de tráfico de drogas, seguidas de 28 (15,4%) por furto,
16 (8,8%) por roubo e 48 (25,1%) em outros delitos (tais como estelionato, porte de arma,
crimes de trânsito, agressões leves, etc). Quando comparado com a média disponibilizada
pelo INFOPEN Mulheres (2018), percebe-se que o enquadramento por tráfico na cidade
de João Pessoa é menor que a nacional (62%), ocorrendo o mesmo com o crime roubo
(11%), embora a de furto seja maior que a geral (que é de 9%).
Quanto à violência ou grave ameaça, contabiliza-se que 155 (85,6%) foram crimes
que não utilizaram da violência, em contrapartida de apenas 26 (14,4%) em que houve
coação física.
Sendo responsável por mais da metade das prisões, o tráfico de drogas merece
atenção especial durante a análise dos termos destas audiências. Como demonstrado ao
longo deste trabalho e corroborado por autores como Varella (2017) e Queiroz (2015),
grande parte das mulheres presas pelo crime de tráfico são surpreendidas quando tentam
entrar em presídios portando tais substâncias.
Em João Pessoa, das 99 mulheres enquadradas no art. 33 da Lei 11.343/2006 no
ano de 2018, 62 teriam o praticado no interior de estabelecimentos prisionais,
aproximadamente 62% do total. Seguidamente, 35 mulheres foram surpreendidas com
drogas nas ruas ou suas residências e 12 termos de audiência não especificaram o local
da apreensão. Da análise dos casos ainda se percebe que apenas uma delas tentava
pretendia entregar as substâncias a outra mulher (sua mãe), enquanto todas as outras
direcionavam seus atos a entes masculinos de sua convivência, sendo eles filhos,
companheiros e irmãos, fatos também elucidados por Varella (2017) e Queiroz (2015).
Acerca da faixa etária das mulheres apreendidas, 112 das 191 contavam com idade
de 18 a 29 anos, 64 possuíam mais de 29 anos e 15 não informaram a idade. Neste sentido,
as apreensões em João Pessoa no ano de 2018 seguiram (e foram além) da faixa etária
nacional demonstrada pelo INFOPEN mulheres 2018: 58,6% das apreendidas são
consideradas jovens109, em consonância com a estatística 50% da média nacional de
encarceradas.
Quanto à defesa recebida pelas mulheres, infere-se que 135 foram assessoradas
por advogados, enquanto 56 receberam assistência da defensoria pública. Entretanto,
estes números não nos permitem chegar a conclusões acerca da classe socioeconômica
em que estas mulheres se encontram, vez que a maioria destes advogados não foram
patrocinados pelas rés ou sua família, mas sim denominados dativamente pelos juízes
frente à carência de defensores públicos na Vara de Custódia (segundo verificado em
conversas com servidores da Vara). Ainda, não há nos termos registros da forma de
583
que, em sua maioria, receberam ordens de utilização do aparelho àquelas mulheres a
quem foram atribuídas prática de tráfico de drogas.
Em virtude da percepção do grande número de repetições nos termos, pelo fato de
serem confeccionados a partir de modelos (praxe ilegal devido ao caos em que se encontra
o Poder Judiciário), a simples análise da fundamentação de algum deles – e a escolha do
mais completo – foi o suficiente para entender de que forma houve a concessão destas
prisões.
De início, como comum a todos os tipos de termos de audiência, há a breve
qualificação do autuado, contando com seu nome, data de nascimento, nome de seus pais
e local e data da realização da audiência. Em seguida, são identificados os presentes na
audiência, entre eles o magistrado, a defesa do acusado, o representante do Ministério
Público e eventuais estudantes que possam estar presentes na sala de audiência.
A partir daí, registra-se a ocorrência do contato prévio do autuado com seus
defensores, conforme dispõe o art. 6º da Resolução nº 213 do CNJ, bem como a
apresentação do autuado (com ou sem algemas), como já discutido anteriormente. Além
de disposto na Resolução, a entrevista é uma prerrogativa dos defensores públicos e
advogados (previstos nos arts. 44, VII, 89, VII e 128 VI da LC 80, bem como art. 7º, III, do
EOAB). Paiva complementa:
Percebe-se que a classificação da custódia cautelar como “de rigor”, mais uma vez,
fere o princípio da presunção de inocência e generaliza a todos os casos em que é o
indivíduo é surpreendido com drogas à prisão, independentemente da quantidade que
carrega ou da sua situação pessoal.
Ademais, o argumento de que a sociedade se veria “privada de garantias de sua
tranquilidade” não pode ser utilizado, vez que como o próprio STF já apresentou na
decisão HC 120.167/PR que o clamor público não é fundamento apto para decretação da
prisão preventiva. Além disso, o sossego da sociedade deve estar baseado no devido
processo legal que, após toda a fase de instrução chegue- a conclusão ou não da
condenação do réu – e não da utilização da prisão preventiva como panaceia de todos os
males. E, desta forma, o magistrado converte a prisão em flagrante em preventiva.
Realizadas considerações acerca da prisão preventiva, passamos a analisar as
fundamentações acerca da modalidade domiciliar da prisão. Requerida, por vezes, pela
defesa, e outras pelo Ministério Público, sob a justificativa de que “será a melhor forma
para garantir a segurança da sociedade, da presa e da criança, na forma do art. 318, V, do
Código de Processo Penal, em respeito ao princípio da Proteção Integral à Criança”.
Necessário apontar que, mais uma vez, o pedido do uso do monitoramento eletrônico não
é justificado.
O art. 318 do Código de Processo Penal, anteriormente citado (reforçado pela
citação ao HC 143641/SP do STF), não só em seu inciso V, mas em demais incisos que
envolvem a proteção à infância, em acertada escolha legislativa, dispõe:
Além disso, desenvolve sobre a Proteção Integral à Criança, informando que esta
deve prevalecer em relação à atual situação de sua genitora, conforme prevê o art. 4º em
parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que informa que “a garantia de
prioridade compreende: a) a primazia de receber proteção e socorro em qualquer
circunstância (...)”.
Como explicado anteriormente, das 37 decisões que impunham a mulheres a
prisão domiciliar, 21 utilizaram-se da decisão do STF em seu Habeas Corpus 143641/SP.
Para apresentar uma visão completa destas concessões, também analisaremos a forma
com que esta decisão foi utilizada para argumentação.
Além de informar que o “STF reconhece a existência de mulheres grávidas e mães
de crianças que estavam cumprindo prisão preventiva em situação degradante, privadas
de cuidados médicos pré-natal e pós parto” também assume o reconhecimento da cultura
de encarceramento citada na decisão da Corte Superior, assumindo a “imposição
exagerada e irrazoável de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis, em
decorrência de excessos na interpretação e aplicação da lei penal e processual penal”.
586
Irônico e trágico, as decisões dos magistrados problematizam, utilizado argumentos do
STF, sobre questões por ele mesmos decididas e imposições absurdamente utilizadas por
eles próprios.
Em seguida, apresentam dispositivos que reforcem a utilização da decisão do STF,
como o art. 227 da CRFB/88110, as Regras de Bangkok111 e o Estatuto da Primeira Infância
(Lei 13.257/2016).
Por fim, estabelece as condições em que a prisão domiciliar deve ser cumprida, sob
pena de revogação imediata do “benefício”. Dentre as medidas impostas estão os deveres
de não se ausentar de sua residência sem prévia autorização do juiz competente; não
mudar de endereço sem autorização deste juízo; não receber visitas, salvo de familiares;
comparecer a todos os atos do inquérito e da instrução criminal, sempre que for intimada;
e recolhimento domiciliar noturno, das 21h até às 5h da manhã do dia seguinte, nos dias
em que a autoridade judicial conceder autorização para a presa se ausentar da residência.
Além disso, impõe monitoração eletrônica consistente no uso de tornozeleira
eletrônica, “enquanto durar o processo”. Esta imposição por lapso temporal que abarca
toda a duração do processo, entretanto, é inaceitável mediante o Princípio da
Razoabilidade (e em analogia da brevidade com que a prisão preventiva deve durar), vez
que se estaria, dessa fora, a praticar uma execução adiantada da pena a alguém que ainda
não fora condenado.
Por fim, os termos procedem informando os trâmites burocráticos para expedição
de mandado de prisão domiciliar e requerimento do uso do monitoramento eletrônico, e
após isto encerrando as audiências.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou entender os motivos (em sua maioria, pífios) que
levam estas mulheres ao sistema prisional e, principalmente e compreender - de forma
crítica - as fundamentações das decisões que as concedem a prisão preventiva em caráter
domiciliar. Além disso, buscou-se apontar sempre para a negatividade da prisão –
agravada na modalidade preventiva - ainda que com o benefício de cumprimento em sua
residência. Estruturando-se em breve explicações sobre prisão preventiva, audiência de
custódia e monitoramento eletrônico, o texto buscar instruir o leitor e apontar o caminho
do viés do conhecimento utilizado ao analisar os termos as audiências de custódia em
questão.
Tal estudo se faz importante para que possa ser evidenciado tudo aquilo que existe
por trás da prisão de uma mulher: desrespeito a sua condição e saúde no cárcere,
abandono por parte da família, problemas com o crescimento dos seus filhos. Como já
mencionado, além do caráter social já referido, minha trajetória pessoal como estudante
com enfoque em processo penal e a condição de mãe reforçam o interesse no tema.
Diante da pesquisa realizada, foi verificado que o uso da prisão preventiva em João
Pessoa no ano de 2018 seguiu o fluxo apontado pela doutrina e jurisprudência, que acusa
intensa banalização e utilização exacerbada. Ainda pior, as prisões em flagrante de
mulheres em João Pessoa tem estatísticas maiores que a média nacional de
110 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
111 Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade
REFERÊNCIAS
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto nacional sobre direitos civis e
políticos de nova york. 16 de dezembro de 1966. Disponível em
http://www.refugiados.net/cid_virtual_bkup/asilo2/2pidcp.html. Acesso em: jun. de
2019
588
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adm?documento=3059. Acesso em: 22 jul. 2019.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal / Gustavo Henrique Badaró – 6ª ED. Ver.,
Atual. E Ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20ª ed.. Petrópolis: Editora
Vozes, 1999.
LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar: doutrina, jurisprudência e prática.
3ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.
LOPES Jr., Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva
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ORWELL, George. 1984. 29ª ed. São Paulo: Ed. Companhia Editora Nacional, 2005.
589
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ed. ver. e ampl. – Florianópolis: Empório do Direito, 2017. 188p.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2015.
590
ESTADO BRASILEIRO E EDUCAÇÃO: VIOLAÇÕES DE DIREITOS E VIOLÊNCIA
CONTRA A POPULAÇÃO NEGRA
1 INTRODUÇÃO
Na segunda metade do século XVIII, após a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo
Marquês de Pombal, os projetos de educação voltam-se a políticas mais sistemáticas, que
foram implementadas pela sua administração.
592
O Brasil Império foi o período da consolidação da independência do Brasil e da 1ª
constituição, no ano de 1824, garantindo a instrução primária gratuita somente aos
brasileiros. Desta forma, automaticamente, restringia o acesso da população escravizada
ao sistema oficial de ensino, porque a maioria era de origem do continente africano. E o
artigo 94, inciso II marca mais uma restrição ao informar através da legislação que só
poderia votar e ser votado quem fosse liberto, então nesse caso, a população que estava
escravizada não poderia exercer a cidadania.
O Decreto de nº 1.331 de fevereiro de 1854, regulamentou a instrução primária e
secundária no Brasil. O artigo 69 afirma que: “não serão admitidos à matrícula, nem
poderão frequentar as escolas: § Os meninos que padecerem de moléstias contagiosas. §
2º Os que não tiverem sido vaccinados. § 3º Os escravos” (BRASIL, 1854, p.1) (texto igual
ao original). Portanto, mais um mecanismo de exclusão realizada pelo Estado ao impedir
a inclusão da população negra ao ensino formal.
Ao proibir explicitamente as crianças que tinham moléstias contagiosas e que não
foram vacinadas à escolarização, essa atitude atingia diretamente a população desprovida
de condições socioeconômicas, sendo em sua maioria negros e mestiços. Assim,
perpetuando a exclusão da população negra, da criança ao adulto liberto, à educação
formal.
Um projeto de lei de 1870 destinava aos senhores de engenho a obrigatoriedade
de “criar e tratar as crianças nascidas de mães escravas, devendo oferecer-lhes, sempre
que possível, instrução elementar. Em contrapartida, os libertos permaneciam em poder
e sob a autoridade dos proprietários de suas mães” (GONÇALVES & SILVA, 2000, p. 136).
Diante disso, Fonseca (2000, p. 39) elenca que:
593
de acesso às escolas noturnas por parte das pessoas escravizadas.
Para que os não livres e libertos pudessem frequentar as escolas noturnas, os seus
senhores deveriam deixar que eles participassem, levando em consideração que isso
ocorreria após um dia e/ou noite árdua de trabalho. Marcando, então, a continuação dos
impedimentos de acesso à escola, pois mesmo se os senhores consentissem tal
participação, outra forma de restrição nesse caso seriam as condições físicas e mentais
após um dia exaustivo de exploração do seu trabalho.
Desse modo, Gonçalves & Silva (2000, p. 136) relatam que:
595
uma forma digna e de qualidade de acesso à educação. Indagar-nos sobre a atuação do
Estado para que essa realidade seja mudada e que os direitos dessas pessoas sejam
efetivados, nos parece uma ação necessária.
Em seus relatos, Neiva de Oliveira Moro (1993) aborda a situação e o perfil dos
(as) estudantes negros (as) que cursam o ensino superior. Ressaltando que os cursos
optados pelos discentes são de menor prestígio social. Os (as) discentes negros (as) das
universidades, em sua maioria, teve um ensino deficitário no em suas fases fundamental
e média, inclusive pela necessidade de começar a trabalhar desde cedo. São pessoas
acima dos 30 anos que, tendo que passar o dia todo trabalhando, fazem seus trabalhos
universitários durante as madrugadas. Uma proporção menor teve acesso aos cursos
preparatórios e tendo que fazer vários vestibulares para conseguir passar em algum
curso superior.
Esses dados têm reflexos em um contexto social de histórica exclusão ao ensino
escolar.
Nesse sentido, Pinto (1993, p. 26) aborda que:
Corroborando com as reflexões de Pinto (1993), que apontam para um alto nível
de precarização da pessoa negra mediante processos agudos da ordem da hierarquização
racial, os dados do IPEA (2000) apontam o alto índice de pobreza entre os afrodescentes.
Os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (2000) fazem um
comparativo entre os anos de 1992 e 1999, em relação ao percentual de pobres entre
brancos e afrodescentes e constata o elevado percentual de pobres na população negra,
um total de 63,0% em 1992 e tendo uma elevação para 65,6% em 1999. Enquanto que
na população branca esse percentual é de 37,0% em 1992, reduzindo em 1999 para
34,4%.
Configura-se como uma questão de total importância abarcar a situação
educacional da população negra, visto que mesmo controlando-se a influência dos fatores
sociais e econômicos, através de “variáveis como nível de renda, local e região de
residência, os negros continuam a apresentar um perfil educacional inferior” (PINTO,
1993, p. 27).
Diante disso, na 1ª Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (2005), na área educacional é informado que:
[...] entre 1991 e 2000, a taxa bruta de freqüência dos brancos ao ensino
fundamental passou de 105, 3% para 120,6%. Já entre os negros, os
índices passaram de 95% para 128%. Esse conjunto de indicadores
expressa um sistema educacional discriminatório produzindo uma
realidade singular para os alunos e alunas negros: 1) a entrada precoce
596
no mercado de trabalho; 2) a baixa qualidade do ensino público, onde se
concentra a maioria dos estudantes afrodescendentes; 3) a imposição de
um conteúdo programático que não valoriza o universo dos
afrodescendentes e, portanto, não estimula a elevação de sua auto-estima;
4) a presença do racismo e do preconceito em sala de aula e no ambiente
escolar, que reduz o estímulo à continuidade dos estudos (BRASIL, 2005,
p. 16).
Com isso, podemos afirmar que a pauta da educação esteve sempre presente nas
preocupações e nas reivindicações do movimento negro. E, “[...] se antes o negro
almejava simplesmente se educar, paulatinamente ele passa também a reivindicar do
sistema educacional formal e da sociedade brasileira o reconhecimento da sua cultura,
do seu modo de ser e da sua história” (PINTO, 1993, p. 28).
E, esse processo de reivindicação se dá pela organicidade da população negra
enquanto movimento social, enquanto sujeitos de direitos que protagonizam suas lutas
e processos de resistência, muito embora isso não tenha sido evidenciado pela história
oficial durante muito tempo. Nesta direção, o surgimento do Movimento Negro Unificado
corrobora para o fortalecimento das pautas de luta dos afrodescendentes. Desse modo
que a imagem a seguir mostra a efervescência do movimento negro na luta pela
democracia racial e contra a discriminação dos negros e negras.
Surgimento, em julho de 1978, do Movimento Negro Unificado, o qual emergiu da
necessidade de uma organização social negra que denunciasse a discriminação racial
contra os afrodescendentes e primasse pela construção de uma verdadeira democracia
racial, pela necessária equidade racial no país e pelo fim do racismo.
Assim, ganha relevo um esforço que objetiva o fortalecimento da identidade
negra: a participação do movimento negro na conscientização da importância da cultura
negra e no esforço de “uma intenção política de união em torno de uma causa comum e,
consequentemente, de fortalecer o negro para que se impusesse perante a sociedade e
expresse as suas reivindicações” (PINTO, 1993, p.28).
Vale mencionar, neste sentido, que a educação era vista pelos movimentos negros
como uma ferramenta de luta para emergir da desigualdade social que enfrentavam, “daí
a crítica às autoridades por não se terem preocupado com a instrução do negro após a
abolição, abandonando-os e abandonando-as à própria sorte” (GONÇALVES & SILVA,
2000, p. 153). Mas será que o Estado não atuou de forma intencional em não
proporcionar a instrução aos negros e negras após a abolição? O que sabemos é que
poucas ações foram realizadas pelo Estado para incluir e permitir à inclusão e a
escolarização do povo negro.
A pesquisadora Pinto (1993) nos chama atenção para um aspecto importante em
que o negro brasileiro formula as suas necessidades em comparação com os imigrantes
597
e as pessoas brancas, mediado pelo olhar do outro. “Mas é também no decorrer desse
processo que ele se volta para si mesmo e começa a expressar os seus problemas e as
suas inquietações a partir de uma perspectiva própria” (p. 29).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
598
que por intermédio da opressão racista, promoviam o apagamento da história deste povo
e impediam o acesso aos sistemas educacionais.
O fim dos anos 1990 marca novas formas sociais, econômicas e políticas de um
país e com ela também o amadurecimento reivindicatório dos movimentos sociais,
sobretudo, o movimento negro. Aumentando o conhecimento sobre a identidade negra,
levantando a bandeira de luta da educação e exigindo a representatividade negra nos
espaços de poder e também o lugar de fala. Sendo estes, aspectos importantes para que
a população negra possa sair das margens sociais e se tornar protagonista na luta pela
equidade.
Nessa empreitada, o Estado aparece como o ente que deve promover a reparação
dos anos de exclusão da população negra dos processos educacionais, responsável que é
pela garantia do acesso e da permanência deste contingente populacional nos sistemas
de ensino, o que deve ser feito com qualidade e comprometimento.
Portanto, a reivindicação da população negra por educação ocorre pelo viés do
Estado, para que sejam efetivadas e implementadas as políticas públicas, capazes de
garantir o acesso e a gratuidade da educação, tendo como norte um ensino de qualidade e
emancipador que forme pessoas para a prática da cidadania e para atuarem como
protagonistas na transformação social.
REFERÊNCIAS
CONTRIM, Gilberto. História e consciência do Brasil. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
CRUZ, Marilía dos Santos. Uma abordagem sobre a história da educação dos
negros. In: ROMÃO, Jeruse. História da Educação do negro e outras histórias.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília, 2005.
599
PARTE III
600
LAVA JATO E MÃOS LIMPAS: COMO AS MAIORES OPERAÇÕES ANTICORRUPÇÃO
DA HISTÓRIA VIOLARAM GARANTIAS FUNDAMENTAIS PARA COMBATER A
CORRUPÇÃO POLÍTICA
1 INTRODUÇÃO
601
(Progressistas-PR). Youssef já havia sido investigado e processado, em 2003, por crimes
contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro.
Pelas interceptações, foram identificadas quatro organizações criminosas que se
relacionavam entre si, lideradas pelos doleiros Habib, Nelma Kodama, Youssef e Raul
Srour. Inclusive, a investigação que prendeu Chater era denominada de “operação Lava
Jato”, nome que acabou sendo usado, mais tarde, para se referir a toda operação. Tal
alcunha foi obtida porque Carlos Chater era proprietário do Posto da Torre, em
Brasília/DF, e, no local, funcionava uma casa de câmbio que era uma das formas usadas
para distribuir propinas e lavar dinheiro do esquema (BRASIL, [ca 2016]).
O monitoramento das conversas entre os doleiros revelou que Youssef, mediante
pagamentos feitos por terceiros, havia “doado” um veículo de luxo para o ex-diretor de
Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. Em razão disso, no dia 17 de março de
2014, foi deflagrada a primeira fase ostensiva da operação Lava Jato, sendo cumpridos 81
mandados de busca e apreensão, 18 mandados de prisão preventiva, 10 mandados de
prisão temporária e 19 mandados de condução coercitiva, em quase duas dezenas de
cidades de várias regiões do país.
No transcurso da operação, algumas figuras responsáveis pelo seu comando
ficaram famosas, ao ponto de serem tratadas como “super-heróis”, como o ex-juiz federal
da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba/PR e atual ministro da Justiça e da Segurança
Pública do Brasil (MJSP), Sérgio Moro. Outros personagens afamados foram Deltan
Dallagnol (procurador da República e coordenador da força-tarefa) e Newton Ishii,
conhecido como “Japonês da Federal” (agente da Polícia Federal e responsável pela
execução de diversos mandatos).
Sérgio Moro, de descendência italiana, durante sua atuação como magistrado na
Lava Jato, nunca escondeu sua admiração pela operação anticorrupção Mãos Limpas,
ocorrida na terra dos seus ancestrais, durante a década de 1990. Diversas vezes, o togado
utilizou técnicas semelhantes às utilizadas pelos juízes italianos durante a condução das
investigações. A principal estratégia de ação adotada pelos magistrados da força-tarefa
italiana era a submissão dos investigados à uma profunda pressão com a finalidade de
confessarem, espalhando a notícia de que outros suspeitos já teriam confessado.
Na perspectiva do ex-juiz federal, a operação Mani Pulite (Mãos Limpas, numa
tradução livre) constituiu “um momento extraordinário na história contemporânea do
Judiciário” (MORO, 2004). Deflagrada em 1992, a Mãos Limpas teve como estopim a
prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor do Pio Alberto Trivulzio,
instituição filantrópica milanesa. Em seu bolso, no momento da prisão em flagrante por
crime de concussão, havia aproximadamente ₤ 7.000,00, que teria recebido como propina
de uma companhia de limpeza. Posteriormente, mais de quinze bilhões de liras teriam
sido arrestadas em contas bancárias, imóveis e títulos públicos de sua propriedade.
Ao lançar um olhar analítico sobre as duas maiores forças-tarefas de combate à
corrupção da história recente (Mãos Limpas e Lava Jato), é possível observar a utilização
de um sistema processual inquisitivo112, em que todos os meios investigativos e
processuais, mesmos que ilegais ou não previstos em lei, foram adotados no propósito de
alcançar êxito, não prosperando, deste modo, as garantias fundamentais, tais como o
devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório efetivo e a presunção de inocência.
112“É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes
instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco
contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e
gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu” (LOPES JÚNIOR, 2016, p.40 ).
602
Em suma, sob o manto do combate à corrupção, “vale-tudo” para prender políticos
corruptos, inclusive, transgredir garantias processuais e penais.
Outra particularidade idêntica às operações é a atribuição da figura de “inimigos
do Estado” aos políticos considerados corruptos. Essa estratégia, que advém de uma base
teórica formulada pelo jusfilósofo alemão Günther Jakobs, busca separar, dentre os
cidadãos, aqueles considerados inimigos, situados fora do sistema, que não merecem as
mesmas garantias fundamentais reservadas aos demais (NUCCI, 2014). Para esses, não há
o que se falar em meios legítimos de investigação e punição, admitindo-se, por
conseguinte, para atingir triunfo, excessos ou até mesmo medidas consubstanciadas no
abuso de poder.
É importante enaltecer que, quando desenvolvida, a teoria de Jakobs era aplicável
tão somente àqueles indivíduos que apresentavam um risco desmedido para sociedade,
tais como “criminosos econômicos, terroristas, membros do crime organizado, autores de
delitos sexuais e de outras infrações penais perigosas” (SOUZA, 2017). Nada obstante,
como asseveram Fonseca, Delgado e Silva (2016) “o direito penal do inimigo repousa
sobre a subjetividade do que se queira dizer com “inimigo/perigo”.
Nessa concepção, Silva (2016) evidencia a possibilidade do corrupto ser
considerado um inimigo na atualidade. Em sua perspectiva, cada vez mais o Direito Penal
adapta-se no intento de punir diferenciadamente a corrupção, de modo a mitigar as
garantias processuais fundamentais daqueles que a praticam. Como exemplo, no Brasil, o
autor cita a edição das 10 Medidas contra a Corrupção, que demonstra de forma nítida a
atribuição da imagem de inimigo aos corruptos brasileiros. O autor ainda acrescenta que
a adequação da teoria desenvolvida por Jakobs trata-se de matéria nova, “amplificada pelo
Direito Penal de reação, mormente no que se refere ao alarmismo da mídia quanto ao
crescimento da corrupção, de forma que os casos concretos e leis eficazes sobre o assunto
ainda são incipientes”.
Assim, diante da conjuntura apresentada acima, o objetivo primário deste estudo
foi realizar um traçado comparativo entres as duas maiores operações anticorrupção da
história (Mãos Limpas e Lava Jato) e como essas, notadamente a brasileira, violaram
garantias fundamentais, utilizando-se da base teórica do direito penal do inimigo para
combater a corrupção política. Para atingir tal propósito, os objetivos secundários foram:
averiguar a influência do populismo midiático na execução da força-tarefa da Lava Jato, e,
por fim, realizar ponderações acerca da politização dos responsáveis pela condução das
forças-tarefas.
Quanto à metodologia do trabalho, consoante com as definições apresentadas por
Gil (2008), a pesquisa foi de natureza qualitativa com finalidade aplicada. Em relação ao
tipo de pesquisa, se tratou de um estudo exploratório. Quantos aos delineamentos, foi
realizado uma pesquisa bibliográfica. A pesquisa ocorreu nas bases de dados, repositórios
de informação, bibliotecas digitais, doutrinas, legislações e sites de notícias, com a
intenção de buscar perspectivas e opiniões de autores nacionais e internacionais acerca
da temática abordada.
Para uma melhor abordagem da temática, o artigo foi estruturado da seguinte
forma: inicialmente, foi-se apresentado um comparativo entre as operações
anticorrupção Mãos Limpas, ocorrida na Itália, e Lava Jato, deflagrada no Brasil. Em
seguida, fora evidenciado como ambas as forças-tarefas se utilizaram do direito penal do
inimigo para combater a corrupção. Por fim, se expôs como a intensa midiatização
influenciou na criação de “heróis” e nos procedimentos adotados pela operação brasileira.
603
2 OPERAÇÃO LAVA JATO: MÃOS LIMPAS À BRASILEIRA?
113 “A pontuação indica o nível percebido de corrupção no setor público numa escala de 0 a 100, em que 0
significa que o país é considerado altamente corrupto e 100 significa que o país é considerado muito
íntegro” (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2018).
114 Apesar de não haver uma definição consensual para o termo outsider, Andrés (2016) define algumas
características para esse grupo: são postulantes a cargos eletivos que se apresentam sem quaisquer
experiências políticas, advindo de outros ramos profissionais de fora da seara política; também são
candidatos que se identificam como pessoas à margem do sistema eleitoral e político, com críticas aos
políticos tradicionais e indicando-os como fonte de todos os problemas existentes no Estado. Por fim, são
seres com pouquíssimas chances de vitória, mas tornam suas campanhas em verdadeiros fenômenos virais,
repletos de momentos de frenesi, logrando êxito apesar de todos os percalços existentes.
604
Também no Brasil, em 2018, na segunda edição das eleições gerais ocorridas sob
a égide da operação Lava Jato, os partidos e políticos tradicionais foram frontalmente
atingidos pelas citações nas colaborações premiadas e investigações, com muitas figuras
consagradas obtendo derrotas acachapantes nas urnas. Sob os ventos da “nova política”,
os cidadãos manifestaram suas insatisfações com a política “fisiológica e corrupta”. O
reflexo disso foi a renovação recorde atingida pelo Senado Federal, em que 85% dos
parlamentares da câmara alta do Congresso Nacional brasileiro não lograram êxito na
disputa, sendo a menor taxa de reeleição observada nas cinco últimas eleições pós-
redemocratização que colocaram em jogo dois terços das vagas do Senado. Já na câmara
baixa do Parlamento federal, o índice de renovação foi de 47,37%, sendo, em números
proporcionais, a maior renovação na Câmara dos Deputados desde a eleição da
Assembleia Constituinte, ocorrida em 1986 (BRASIL, 2018a; BRASIL, 2018b).
Como acontecera na Itália décadas atrás, os grandes partidos do cenário político
brasileiro também perderam força. A título de exemplo, o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), partido derivado da agremiação oposicionista ao regime militar (1964
– 1985) e integrante da coalizão de todos os governos desde a restauração da democracia
no país, perdeu uma quantidade considerável das 540 cadeiras disponíveis no Congresso
Nacional no pleito de 2018. O partido caiu de 92 eleitos, em 2010 (última vez em que dois
terços das vagas do Senado havia sido disputadas), para 41. O Partido dos Trabalhadores
(PT), que venceu, até o pleito de 2018, as quatro últimas eleições presidenciais, também
perdeu força no Parlamento, diminuindo de 99 deputados e senadores eleitos pela
legenda, em 2010, para 60 congressistas. Já o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), principal legenda oposicionista durante os governos do PT (2003 – 2016), foi de
59 eleitos para o Parlamento em 2010, para 33, em 2018 (CAESAR, 2018a; CAESAR,
2018b).
De modo também similar à Itália, um “novo” partido ganhou protagonismo no
cenário político brasileiro. O então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), que além de
obter a maior crescente no Congresso Nacional, saltando de uma única cadeira, em 2010,
para 56 em 2018, conseguiu eleger Jair Bolsonaro à presidência do país. Apesar de ter sido
deputado federal pelo Rio de Janeiro por quase 28 anos e ter passado por nove legendas
diferentes ao longo da sua trajetória política, o então candidato se apresentou durante a
corrida eleitoral como outsider. De fato, a eleição de Bolsonaro ao Palácio do Planalto foi
um reflexo direto da operação Lava Jato.
Com os três maiores partidos (MDB, PSDB e PT) enfraquecidos pelos
desdobramentos da força-tarefa ao longo dos quatros anos precedentes, o discurso
conservador, lavajatista, contra a corrupção e antissistema encontrou reverberação no
eleitorado brasileiro. O próprio presidente, após eleito, anunciou o então juiz Sérgio Moro
como titular do MJSP e prometeu-o “carta branca” na agenda “anticorrupção e anticrime
organizado, com respeito a Constituição, a lei e aos direitos”, como o próprio Moro definiu
na sua nota após a aceitação ao cargo (O GLOBO, 2018; FERNANDES; CARAZZAI; RANGEL,
2018).
É importante enaltecer que os resultados da operação italiana são bastantes
semelhantes ao da força-tarefa que está acontecendo em território brasileiro; basta ver
que, na época, aquela somou um total de 25.400 citações, 4.525 prisões, 1.069 políticos
investigados e 1.300 condenações e acordos judiciais. Entretanto, é imperioso averiguar
quais foram as implicações sociais e a efetividade ao combate à corrupção representado
nesses vultosos números (TORRENTE, 2019).
605
No que concerne a “solução” do problema da corrupção, a operação Mãos Limpas
não se mostrou tão efetiva, visto que mais de 40% dos políticos que estavam envolvidos
nos esquemas reingressaram na carreira política. Sobre a operação, Kerche (2018)
assevera que, ainda com todos os esforços empenhados pelo Poder Judiciário, esse se
mostrou ineficiente no combate à corrupção. Essa ineficiência pode ser vislumbrada nas
palavras de um dos magistrados da operação: “Depois de Mãos Limpas, os corruptos
venceram. Melhoramos a espécie predada: prendemos as zebras lentas, enquanto as
outras se tornaram mais rápidas, os políticos não pararam de roubar, só pararam de ter
vergonha [de roubar]” (CICCARELLO, 2016).
Além da baixa eficiência no combate à corrupção, faz-se mister destacar os ultrajes
contra o Estado Democrático de Direito, uma vez que o devido processo legal foi
manipulado conforme os interesses da operação, em que se instaurou um conflito entre
os três poderes, de modo específico entre o Judiciário e Executivo, os quais, na verdade,
deveriam atuar dentro de suas competências. Como já citado, houve também mudanças
expressivas no campo da política, com a decadência de partidos consagrados e a ascensão
de partidos populistas. Já no contexto econômico, ocorreram quedas consideráveis. Todas
essas perdas, em diversos setores da Itália, foram consequência da cega crença criada,
através de falsas promessas, que a partir de tal operação a corrupção teria fim, e, por
conseguinte, haveria melhorias no país (D’IPPOLITO, FIGUEIREDO, 2017).
Da mesma maneira, a operação brasileira, que ainda não chegou ao seu desfecho,
repetiu e continua repetindo os mesmos erros que a força-tarefa italiana, e, atualmente,
caminha para os mesmos resultados. Assim como Antonio Di Pietro, símbolo da operação
Mãos Limpas, deixou a condução da operação para ingressar na carreira política, Sérgio
Fernando Moro, estandarte da operação Lava Jato, seguiu os mesmos passos,
contradizendo suas próprias palavras, haja vista ter o ex-magistrado, em 2016, como
resposta à pergunta sobre a possibilidade de adentrar na política, ter lançado a seguinte
afirmação “Não, jamais. Jamais. Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não
sou um homem da política” (RESENDE, 2018).
Doutro norte, no que pertine à proposta da operação brasileira em minimizar a
corrupção, vale salientar, essa não fora atendida efetivamente, tal como na força-tarefa
italiana. A situação é vislumbrada nos números do IPC, citado anteriormente, e elaborado
anualmente pela Transparência Internacional (2018), que, em 2018, o Brasil passou a
ocupar a 105ª posição no ranking, caindo em relação a 2014, quando ocupava a 69ª
posição.
606
de sua tese, defendendo-a como sendo o caminho ideal ao combate do mal que afronta o
Estado, ou seja, os indivíduos os quais ele denomina como sendo inimigos.
Günther formulou a diferença entre o direito penal do cidadão e o direito penal do
inimigo. Para ele, os inimigos são aquelas personalidades que praticam crimes de forma
reincidente ou de maneira extremamente grave, como, a título de exemplo, o terrorismo.
Tais indivíduos não podem ser considerados como pessoas, em consequência disso, não
podem dispor de garantias fundamentais e, devido ao nível de periculosidade, devem ser
exterminados. Por outro lado, aqueles que são categorizados como cidadãos, são os que
permanecem no âmago do Estado e corroboram com a permanência do status quo da
sociedade; a essas pessoas são resguardados os direitos e garantias fundamentais
(ESTEFAM; GONÇALVES, 2018). Tal distinção é nítida nas palavras do autor quando
afirma que:
Nelma Kodama, primeira presa pela operação Lava Jato, em entrevista para o
programa Pânico, da emissora de rádio paulista Jovem Pan, revelou os métodos utilizados
para forçá-la a aceitar o acordo de delação premiada. Em suas palavras, Kodama
expressou: “Eu fiquei sem água e sem comida durante alguns dias. Era uma cela sem luz
com um colchão cheirando a xixi. Eu não podia comer, não podia nada, não tinha direito a
banho de sol” (JOVEM PAN, 2019). Nessa situação, ocorreu uma grave infâmia à
607
Constituição da República Federativa do Brasil, que em seu artigo 5°, LXIII estabelece o
direito ao silêncio e a não-autoincriminação, assim sendo, em circunstância alguma
justifica-se tal tratamento.
Faz-se mister salientar que além dessas violações, a dignidade da pessoa humana
foi-se também agredida, visto que alimentação e um ambiente minimamente habitável,
são elementos imprescindíveis para qualquer ser humano, sendo assim, o Estado não
pode privá-los como forma de obtenção de provas.
Fonseca, Delgado e Silva (2016, p. 97) asseveram que
115“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
(BRASIL, 1988).
609
declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à
guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei” (BIBLIOTECA
VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS, 1789).
A partir dessa mudança no paradigma da culpabilidade, houve uma verdadeira
inversão do ônus da prova na seara criminal, dado que, antes do estabelecimento dessa
garantia pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, além de se presumir
culpado da imputação penal que sobre si recaía, mesmo sem o trânsito em julgado da
sentença, cabia ao acusado provar sua inocência. Essa responsabilidade foi transferida, a
partir da positivação do citado princípio, ao órgão acusatório. Se debruçando sobre o
tema, afirma Mirza (2010, p.543):
Esclarece Barbagalo (2015) que “após essa primeira positivação, a garantia passou
a compor todos os diplomas jurídicos que vieram a ser editados pelos principais
organismos internacionais”. E não se pode discordar dessa sapiente observação, já que,
de fato, o princípio da presunção de inocência integrou o cabedal de garantias estipuladas
nos mais variados instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, a
exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 11116, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, em seu artigo seis, tópico dois117,
da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969,
em seu artigo oitavo, tópico dois118, entre outros.
É importante salientar, que mesmo com a adesão do Estado brasileiro à Declaração
Universal dos Direitos do Homem forjada no ano de 1948, que trazia em seu texto a
garantia da presunção de inocência, adverte Mirza (2010), citando Tourinho Filho, que
não foi observada nenhuma reforma processual que pretendesse amoldar nossos códigos
processuais penais ao citado princípio, tendo chegado Tourinho Filho à conclusão: “a
adesão do nosso Representante junto a ONU, àquela Declaração, foi tão somente poética,
lírica, com respeitável dose de demagogia diplomática” (MIRZA, 2010, p. 546 apud
TOURINHO FILHO, 2008).
Ou seja, nada obstante o princípio da presunção de inocência nascer no ano de
1789 dentro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, leciona Gomes Filho
(1991) que a sua internalização em nosso ordenamento jurídico deu-se apenas com o
advento da Constituição Cidadã de 1988, momento em que, de fato e de direito, passou a
ser respeitada. Apesar do dificultoso caminho percorrido para a efetivação do princípio
da presunção de inocência, através da luta histórica travada entre os defensores das
116 “Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa” (ONU, 1948).
117 “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas” (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).
610
liberdades individuais e os Estados absolutistas, mesmo diante de toda a memória nefasta
que se tem dos processos judiciais anteriores à revolução penal e processual penal
promovida por Cesare Beccaria, hodiernamente, no cenário jurídico-penal brasileiro, o
princípio da presunção de inocência tem perdido a sua força, sendo relegado ao oblívio.
Esse recrudescimento do princípio da presunção de inocência é motivado,
notadamente, pelo desserviço que a mídia sensacionalista e irresponsável presta, haja
vista que essa apenas preocupa-se com a sua posição no “Ibope”. Sobre a atuação
midiática, Augsten (2018, p.2) assevera que:
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No transcurso deste trabalho, foi possível apreciar a atuação midiática como forma
de discriminar heróis e inimigos no contexto social, observar as similitudes entre as
operações e a utilização dos princípios do direito penal do inimigo como mecanismo de
supressão de garantias e direitos fundamentais processuais. Sobre os resultados da
operação brasileira, a proposta em minimizar a corrupção, não fora atendida
efetivamente, uma vez que desde o início da operação até o ano de 2018, o Brasil caiu mais
de 35 posições no IPC.
Na contemporaneidade, a credibilidade da operação Lava Jato está sendo posta em
xeque, após vazamentos de supostas mensagens de conversa entre os membros do MPF e
o juiz Moro e entre os procuradores da operação (em grupo), no aplicativo Telegram. A
título de exemplo, em matéria publicada pelo The Intercept Brasil, em mensagens de um
grupo privativo dos procuradores, esses celebraram o sucesso da ação do Partido Novo
que impediu a entrevista do ex-presidente Lula ao Jornal Folha de São Paulo antes das
eleições. Os membros do Parquet acreditavam que essa interlocução ajudaria a eleger o
então candidato do PT à Presidência da República, Fernando Haddad. Em suma, embora
o ex-juiz da 13ª vara tenha tido sua reputação enfraquecida em razão desses vazamentos,
especialmente após seus diálogos com o procurador-chefe da força-tarefa tornarem-se
públicos, ele ainda goza de certa popularidade.
No Brasil, assim como ocorreu na Itália, percebe-se o desenvolvimento de um
processo de politização dos principais agentes responsáveis por conduzir as operações
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2019. Disponível em: https://bit.ly/2L5A3hr. Acesso em: 5 ago. 2019.
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Saraiva, 2008.
1 INTRODUÇÃO
Depois dessa breve análise do que vem a ser direitos humanos, cabe a devida
pergunta; porque as pessoas tendem a afirmar que quem defende os direitos humanos
defende bandidos? Essa afirmação é de uma ignorância sem tamanho, e ela se dá pela
falta de conhecimento do que são os direitos humanos, as pessoas tendem a demonizar
aquilo que não conhece. Direitos humanos são os direitos básicos de todos os seres
humanos, assim como o direito à vida, como outros direitos essenciais a existência
humana.
Tratando o sistema prisional como ele se encontra atualmente, cabe uma análise
de possíveis saídas para essa problemática. Atualmente, o sistema penal vive uma
decadência descomunal, uma vez que, existe uma certa ineficácia das punições tidas
como privação ou restrição de liberdade, tendo em vista que já não se cumpre com a
prevenção de crimes nem tampouco com a ressocialização, sendo estes objetivos que
sustenta o sistema prisional. O desprezo com os direitos humanos nas penitenciárias é
visível, haja vista, que nos deparamos com a superlotação dos presídios, sendo esta uma
realidade cruel.
620
O Estado por ser o maior responsável dentro dessa problemática, negligencia os
direitos dos detentos, consequentemente já não se cria projetos para tentar amenizar os
problemas mais drásticos que assolam as penitenciárias (como a superlotação,
reincidência, saúde precária, má administração, falta de apoio da sociedade) negando
direitos e levando, com isso, à morte de inúmeros presos por “guerra de facções” e
insalubridades.
Exemplo recente publicado pelo portal de notícias G1, enfatizou que de 2017 a
2019, 259 presos foram mortos em conflitos de rebeliões, sendo que em julho de 2019
uma briga de facções deixou 57 mortos em Altamira/PA e, no mesmo mês, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) fez uma avaliação, constatando que o Centro de Recuperação
Regional de Altamira estava superlotado e em péssimas condições. Nesse contexto, nota-
se os inúmeros problemas que vem a surgir quando não é assegurando os direitos básico
dos presos.
E é essa realidade que precisa ser confrontada: o sistema prisional, por não
assegurar mais os direitos humanos, os direitos fundamentais, a lei de execução penal, e
não efetivar seus objetivos, torna-se um sistema falho e desumano, não sendo, portanto,
viável. A sociedade anseia o sentimento de “justiça” e acredita que as penitenciárias
passa uma certa segurança de estar se fazendo “justiça” mas, na realidade, se criam
prisioneiros ainda mais capacitados para o crime, elevando, portanto, seu grau de
reincidência.
No que se refere a realidade do sistema prisional brasileiro, o Projeto de Lei
anticrime de 2019, documento disponibilizado pelo Ministério da Justiça, proposto pelo
atual ministro da justiça Sergio Moro, esse projeto desconsidera o atual cenário em que
se encontra as penitenciárias brasileiras, a superlotação e as condições degradantes,
visto que a Lei anticrime, prevê no seu projeto medidas para endurecer o cumprimento
das penas, parâmetro esse que despreza a realidade dos apenados.
O pacote anticrime, vem corroborar ainda mais com a superlotação dos presídios,
assim como suprimir direitos fundamentais. Nas circunstâncias em que se encontra o
sistema prisional brasileiro, medidas como essas comprova que o sistema criminal só
puni, tratando, dessa forma, de punições autoritárias que se escondem por trás de rótulo
da justiça criminal.
A princípio, o sistema prisional entra em decadência a partir do momento em que
ele só desempenha uma das suas funções que é a punição, já as outras duas que seriam a
de prevenção e ressocialização, não são efetivadas. Seguindo essa mesma linha, da
desumanização que é o sistema criminal, lembra a fala do jurista Raúl Zaffaroni(2010,
p,139) ao afirmar que “colocar uma pessoa numa prisão, e esperar que ela aprenda a
viver em sociedade, é como ensinar alguém a jogar futebol dentro de um elevador”. Não
se consegue imaginar uma possível ressocialização com a privação ou restrição da
liberdade nas condições em que se encontram.
Essa ressocialização não acontece tanto por conta do Estado, que não oferece as
condições mínimas para uma possível reintegração, tendo em vista o mal preparo dos
funcionários públicos, que deveriam trabalhar visando o desenvolvimento social; como
do judiciário que muitas vezes, não regulam a individualização da pena, impondo, na
maioria dos casos, a privação da liberdade.
A tese da regulação da individualização da pena, se dá pelo perfil dos presos
brasileiro, sendo que uma grande parte dos detentos se enquadra nos que cometeram
crime de roubo de menor valor ou tráfico de drogas, sendo estes crimes possíveis de
aplicar as penas alternativas, haja vista que esses detentos, na sua maioria, não
apresentam antecedentes, tornando-se esta uma possível saída para “desinchar” as
621
penitenciárias.
Essa lotação das penitenciárias faz com que a separação dos detentos se torne
cada vez mais difícil, sendo essa junção considerada insegura, contradizendo, portanto,
a Lei de Execução Penal (LEP) em que no seu artigo 84º fala; “o preso primário cumprirá
pena em seção distinta daquela reservada para os reincidentes”. Essa repartição é de
essencial importância, tanto para uma possível ressocialização, quanto para a não
reinsersão dos detentos.
Uma concepção comprometida com essa realidade é a seletividade do sistema
penal, uma ideia maniqueísta empregada pela mídia de que há pessoas boas e más,
criando, com isso, o julgamento de que existem malfeitores que são antagônicos ao
“cidadãos de bem”. A sociedade não se revolta com a negação de direitos pelo Estado, uma
vez que, a população brasileira com sua visão míope, não percebe que a União ao
negligenciar direitos, gera muito mais violências do que prevenção e ressocialização.
Alexandre Pereira da Rocha(2006) na sua dissertação de mestrado salientou que a
punição sem ferramentas para uma possível ressocialização, acaba por incitar o desejo de
vingança dos transgressores.
A mídia trabalha junto com o Estado nessa propagação maniqueísta onde, no lado
que compõe o “mau”, estão os pobres e pretos. Os meios de comunicação e o sistema
prisional são altamente seletivos, na propagação de informação e na execução de uma
prisão. A propagação dessa seletividade está na diferença das notícia; em 2015 o portal
de notícia G1 publicou que “polícia prende jovem de classe média com 300 kg de
maconha” uma semana depois o mesmo portal de notícias publicou; “polícia prende
traficante com 10 quilos de maconha”. Nota-se com isso o racismo estrutural existente no
Brasil, e a criação do inimigo social pela mídia.
Sendo visível a violação dos direitos fundamentais e humanos. No que compete à
seletividade mencionada, Zaffaroni; Batista falam:
O direito penal, por muito tempo, fez da tortura a principal forma de punição e
penas desumanas para aqueles que cometiam crime. A privação de liberdade só tornou-
se parte do código criminal brasileiro em 1830, ainda no Império, como dizia Carvalho
Filho, (2002, p.21) “o encarceramento era um meio, não era o fim da punição”. Foucault na
sua obra Punir e Vigiar, criticava essa forma de penalidade, ele dizia que a partir do
momento que as penas passaram a ser a privação de liberdade, as sanções deixam de
622
punir o corpo e passaram a punir a alma.
Com o surgimento da ONU, buscou-se reunir nações que tivessem interesses
comum, no que diz respeito a promover a paz e a segurança tanto na esfera internacional
como no desenvolvimento dos países e o incremento dos Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 tem cadeiras ocupadas por
representantes de países latino-americanos, incluindo o Caribe. Diante disso, fica claro
que os países membros desse conselho, aceitaram e devem garantir os direitos e as
liberdades para os cidadãos. E é principalmente nos países da América do Sul que os
direitos humanos nas penitenciárias estão sendo banalizados.
O sistema prisional tem como sanção a privação da liberdade, sendo que essa
converte-se na maioria das vezes, em penas cruéis e desumanas, chegando, em muitos
casos, a uma “sentença a morte”. Fica comprovada a falência do sistema e o desrespeito
aos Direitos Humanos quando analisado o banco de monitoramento de prisões do
Conselho Nacional de Justiça(CNJ) onde constatou que em julho de 2019, tinha, pelo
menos, 812.564 presos, sendo que, 41,5% são presos provisório que aguardam
julgamento, tratando-se, portanto, da terceira maior população carcerária do mundo.
As informações divulgada pelo CNMP, do primeiro trimestre de 2019 sobre a
capacidade e a ocupação das prisões mostra o grau de superlotação desses
estabelecimentos, no Brasil a capacidade dos cárceres é de 435.016, entretanto, os
números de ocupação são de 735.203 tendo uma taxa de ocupação quase o dobro de
capacidade, sendo esta 169,01%. Esses dados mostra o quanto nosso sistema prisional
está criticável e desumano.
Nesse cenário de violação dos direitos humanos entra as opiniões populares
sendo essas ideias na maioria das vezes eminentemente passionais, sobre o direito penal
e a criminologia. Um dos chavões mais disseminado ao longo de 2018 foi o de “bandido
bom é bandido morto” opinião essa que gira em volta de três epicentros, são esses:
merecimento, prevenção, e economia. Essas ideias são afloradas por pessoas que não tem
o mínimo de discernimento sobre a Constituição Federal que no seu artigo 5º expressa:
O CNMP informou também quanto à integridade física dos presos. No que tange
624
aos maus- tratos com os presidiários praticados por servidores, foi registrada a prática
desse tipo de crueldade em 66 estabelecimentos, os dados mais assustadores é no que
diz respeito aos estabelecimentos que foram registrado lesões corporais a presos por
servidores, cerca de 385 instalações foram apontadas cometendo esse tipo de crime.
Isso mostra que, além de estarem em estabelecimentos com situações de extrema
insalubridade, condições essas que negam quaisquer vestígios de Direitos
Humanos/Fundamentais, os detentos ainda sofrem danos à sua integridade física dos
próprios servidores do Estado. A União, ao contrário do que temos visto, tem o dever de
assegurar a integridade física e moral do preso, presente no artigo 5º da Constituição
Federal. Tem o dever também de efetivar os direitos humanos e fundamentais do homem,
executando, dessa forma, as bases do Estado Democrático de Direito.
Ademais, existem fatores que favorecem com essa não ressocialização dos presos,
um exemplo desses fatores é a própria sociedade, tendo em vista que os presos tem o
direito ao esquecimento presente no artigo 202º da Lei de Execução Penal (LEP), que
funda-se na ideia de que após cumprir a pena, o condenado terá o direito de não ser mais
lembrado como quem já cometeu determinado crime, porém a própria sociedade não
deixa que o esquecimento venha, ou seja, não dando chance para essa população se
reintegrar à sociedade. O população brasileira é toda hora bombardeado por estigmas
criado pela mídia, influenciando demasiadamente a opinião pública a respeito dos
direitos dos detentos, não colaborando, portanto, com uma possível reintegração.
Baratta expõe também seu pensamento a respeito da ressocialização e a educação,
mostrando que não tem como pensar em reintegrar se não passar primeiro pela
educação
As penas alternativas surgem como uma saída distante do que se espera quanto à
ressocialização, mas é um dos caminhos mais prováveis para uma parcial forma de
reintegrar parte dos detentos na sociedade. Torna-se até um contrassenso querer
ressocializar tirando do preso o convívio social.
Na conjuntura em que se encontram as penitenciárias, a Lei 9,714/98 expressa
das penas restritivas de direitos em conjunto com seu artigo 44º, tem-se alternativas para
punir quem veio a cometer algum crime de menor potencial ofensivo (prescrito na Lei
9.099/95) no que tange a superlotação que é um dos principais problemas que o Brasil
626
enfrenta atualmente.
Associações de Proteção de Assistência aos Condenados (APAC), sendo estas uma
entidade civil de direito privado, dedica-se a recuperar e reintegrar os presos condenados
a pena privativa de liberdade, essas associações vem ao longo do tempo desempenhando
um papel importante no que tange o cenário prisional brasileiro. As APAC são sustentadas
pela Constituição Federal, e seu estatuto é amparado pelo Código Civil e pela Lei de
Execução Penal (LEP).
A APAC, Trabalha com os objetivos de estimular a humanização das prisões, sem
deixar de lado sua função de punir, seu propósito é evitar a reincidência, fornecendo
alternativas para o preso se recuperar. Baseia-se em metas que são pautadas em 12
elementos importantes para essa ressocialização, sendo elas: participação da
comunidade, recuperando ajudando recuperando, trabalho, religião, assistência jurídica,
assistência à saúde, valorização humana, participação familiar, voluntariado, centro de
reintegração social, o mérito e a jornada de libertação com cristo.
A Declaração Universal de Direitos Humanos, junto com outros pactos,
substanciaram as experiências das Nações Unidas na implantação, execução e
fiscalização das medidas alternativas à pena privativa de liberdade. Mas foi no sétimo
congresso das Nações Unidas que ressaltaram a necessidade da redução no número de
encarcerados, buscando soluções alternativas à prisão e da ressocialização dos reclusos.
As penas alternativas são os meio mais viáveis de se alcançar uma possível
reinserção social, tendo em vista o baixo custo com os presos, conseguindo, portanto,
“desinchar” as penitenciárias e, consequentemente, garantir os direitos básicos do ser
humano. Mas essa reintegração precisa andar junto com a educação e as políticas sociais,
amenizando, portanto, as desigualdades sociais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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2007.
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ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro . 4. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2011.
629
POLÍTICA DE DROGAS E BIOPOLÍTICA: ALGUNS APONTAMENTOS
1 INTRODUÇÃO
Para pensar sobre as várias formas possíveis de problematizar a vida e seu valor
político-jurídico um autor fundamental é Giorgio Agamben filósofo italiano que promoveu
fecundos estudos sobre a biopolítica contemporânea e como a vida foi investida pelo
poder. Em seu livro “Homo Sacer” (2014), Agamben busca estudar o elo entre os
dispositivos jurídicos e os dispositivos biopolíticos, elo que o autor considerou pouco
explorado na obra de Foucault. Ao realizar este estudo Agamben vincula a análise do
poder soberano e dos dispositivos da biopolítica concluindo que a inserção da vida nua
nos cálculos políticos do poder só se torna possível graças as ferramentas do poder
soberano. “Pode-se dizer, aliais que a produção de um corpo biopolítico seja a
contribuição original do poder soberano” (AGAMBEN, 2014, p.14). Neste sentido, por se
imbricarem, é que o filósofo considera que a biopolítica não é uma invenção moderna, mas
se fez presente em todas as expressões do poder soberano ao longo da história.
Tomando estas considerações sobre a continuidade da biopolítica ao longo da
história é que Agamben insere o debate sobre biopolítica e poder soberano a partir da
constituição da vida nua no pensamento político contemporâneo. A vida nua seria “a vida
matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna
pretendemos reivindicar” (AGAMBEN, 2014, p.16). Esta categoria remete ao direito
romano clássico na figura de uma vida que seria excluída da polis sendo insacrificável, mas
se converteria em uma vida matável, pois aquele que contra ela atente não seria punido.
Temos no pensamento de Agamben um retorno às concepções gregas e romanas para
pensar a biopolítica contemporânea e a continuidade da constituição da vida nua nas
expressões do poder soberano. Assim, distingue-se a bíos, vida juridicamente qualificada,
da zoé, vida juridicamente desqualificada. Ao reler as teses foucaultianas sobre o
biopoder, Agamben observa que não foi fruto da modernidade a inclusão da zoé, da vida
politicamente desqualificada, nas práticas políticas, o que a modernidade trouxe e que
constitui sua inovação em termos de biopolítica será a expansão da vida nua nas práticas
políticas. Assim, torna-se decisivo na modernidade, esta expansão da vida nua na mesma
proporção em que a exceção constitui-se como regra tornando “o espaço da vida nua,
situada originalmente a margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com
o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato, entram
em uma zona de irredutível indistinção” (AGAMBEN, 2014 p.16).
A partir desta percepção da conversão do cidadão moderno em vida nua a partir
da expansão indefinida desta, Agamben (2014) situa a proximidade entre democracia e
totalitarismo graças a esta biopolítica moderna. Afirma o mesmo que cada acontecimento
político moderno é como se tivesse uma dupla face. Como exemplo as reivindicações
políticas populares frente aos poderes políticos, que constituíram o direito à vida e à
saúde nos ordenamentos jurídicos modernos como direitos humanos e direitos
fundamentais positivados, também trazem consigo a certeza de que a vida e a saúde da
população estão sendo inscritas na ordem jurídica moderna. Assim, a reversibilidade que
proporciona Estados democráticos tornarem-se Estados totalitários, bem como, Estados
totalitários converterem-se em democracias constitucionais fortes só é possível em vista
da política ter se tornado biopolítica, ou seja, ter a vida nua sido incorporado no discurso
jurídico estatal da modernidade.
631
Um ponto fundamental nesta linha de raciocínio é o alargamento progressivo do
potencial de decisão sobre a vida nua que permite “um alargamento, para além dos limites
do Estado de exceção, da decisão sobre a vida nua na qual consistia a soberania” (2014,
p.119). Este ponto é fundamental pois em cada Estado existe, segundo Agamben, um
ponto em que vida e morte se confundem e que a decisão sobre uma se converte em
decisão sobre a outra. Este é o ponto em que a biopolítica se converte em tanatopolítica,
ou seja, uma política de morte. O que caracteriza a modernidade é o fato de que este ponto
não é fixo, mas sim móvel o que faz com que se adentre cada vez mais nas muitas esferas
sociais. A decisão soberana sobre a vida e sobre a morte se desloca e se espalha por outras
tecnologias de poder fazendo com que ocorra uma simbiose entre o soberano “não só com
o jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o perito [...]” (2014, p.119). Isto
implica que a história política da modernidade se constitui como um conjunto de
episódios que implicam a inclusão dos princípios biológicos e da vida nua no pensamento
político-jurídico moderno, entre os quais estão, inclusive, as declarações de direitos
humanos.
Este processo de valoração sobre a vida se espalha e se torna difusa. É possível
observar que isto implica uma decisão sobre a vida de modo a cindir a vida que merece
ser vivida e a que não possui relevância jurídica. “A vida nua não está mais confinada em
um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada
ser vivente” (AGAMBEN, 2014 p.135). Esta valoração entre a vida juridicamente relevante
e a vida que pode morrer articula-se a missão biopolítica de proteção da população
convertendo a biopolítica em uma tanatopolítica.
É assim que se distribui desigualmente o direito à vida e à saúde a partir de uma
qualificação jurídica das vidas dos indivíduos valorizados a partir desta decisão. Neste
contexto, vemos uma integração mais estreita entre a medicina e a política neste processo
de valoração de uma vida dentro da forma jurídica. Neste sentido, a implicação deste
imbricamento faz com que a “decisão sobre a vida se desloque, de motivações e âmbitos
estritamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano
parecem trocar de papeis” (AGAMBEN, 2014 p.139).
Deste modo é que, ao refletir sobre as considerações contidas no livro “Vontade de
saber” (FOUCAULT, 2014a), Agamben (2014) recomenda calma à leitura de Foucault
sobre a possibilidade de uma nova economia dos prazeres. Parece que, para o filósofo
italiano sendo o corpo humano na modernidade a vida nua, não há possibilidade de
escapar, através dele ou de uma nova economia de seus usos, da lógica do poder soberano
que coloniza a vida em estratégias biopolíticas. Esta leitura, se tomada na forma expressa
pelo autor, impõe a necessidade de observar com ceticismo a possibilidade de resistência
às manifestações mais assustadoras do biopoder. Tal fato se dá pelo avanço da indistinção
entre o bíos e o zoé, entre o corpo juridicamente qualificado e portador do direito à vida e
a mera existência biológica sem valor jurídico. O direito e corpo se unem de forma que
escapar do espaço soberano sobre a vida constitui-se algo a ser pensado com cautela.
Agamben se torna refratário da tentativa de Hanna Arendent de tentar reativa as
categorias da política clássica como forma de luta contra o totalitarismo. Estas mudanças
introduzidas pela modernidade são irreversíveis no sentido de retorno a uma pretensa
política mitificada no passado.
Para o autor não será a partir da substituição do corpo biopolítico do ocidente
moderno por outro corpo político que promova uma nova economia dos prazeres que
poderá se resistir a este processo de desvalorização da vida e conversão em vida nua. Este
é um tema que demanda pesquisas e que o próprio autor nos convida a olhar com certo
ceticismo as idealizações das resistências a este processo. Pois talvez o que aparenta ser
632
resistência, pode ser uma nova face deste processo móvel e dinâmico. Aponta, por fim, a
necessidade de pesquisas sobre a vida nua e sua constituição nos discursos científicos
modernos de modo a problematizar o avanço desta categorização e os efeitos de
desumanização que a valoração da vida nua tem nas práticas sociais da medicina, do
direito e de outros campos técnicos (AGAMBEN, 2014).
Estas reflexões nos ajudam a relacionar o poder soberano e a política de
constituição de vidas nuas na lógica biopolítica. Assim, a desumanização da vida e a
constituição de práticas de morte que converte a biopolítica em tanatopolítica se ligam ao
exercício da soberania que se expande para além das fronteiras do Estado. Nos revela
assim as ambivalências que implicam a inscrição da vida na política moderna. Também é
importante por mostrar a difusão do poder de desqualificar uma vida a partir de critérios
técnicos da medicina. Estas construções discursivas implicam a distribuição desigual da
cidadania e a exclusão de pessoas da possibilidade de uma vida cidadã com o respeito aos
direitos humanos.
Estes estudos focam na relação de morte e sua face biopolítica, que foi
problematizado por Foucault ao refletir sobre o racismo de Estado, dando densidade
conceitual a esta relação. A ênfase no poder de morte da biopolítica não se encontra
restrito apenas aos estudos de Agamben. Achille Mbembe enfoca também o potencial de
morte que a assunção da vida como objeto de intervenção tem mostrado nos fenômenos
que se relacionam ao exercício do poder soberano. Estuda, assim, vários fenômenos
políticos que se expressam nas áreas periféricas do poder global e representam os
extermínios modernos para, a partir deles, trabalhar este poder de morte presente na
política contemporânea. Afirma Mbembe (2016), em diálogo com Foucault, ao tentar
compreender a forma de exercício do poder soberano sobre a vida na contemporaneidade
que a noção de biopolítica se torna insuficiente, preferindo a substituição pelo termo
necropolítica e necropoder para designar a criação de mundos de morte que seriam
“formas novas e únicas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas
a condições de vidas que lhes confere o status de mortos-vivos” (MBEMBE, 2016, p.146).
Mbembe considera fundamental nesta economia da morte o exercício do poder soberano
que é responsável por ditar o poder de vida e de morte.
Este poder de morte inscrito dentro da biopolítica já havia sido tematizado por
Foucault ao se referir ao exercício do racismo de Estado e suas práticas de inserção da
morte na economia política da vida. Mbembe expande e até radicaliza a concepção
foucaultiana ao explorar esta potencialidade de morte dentro do exercício soberano
ampliado pelas novas tecnologias de extermínio em massa das novas formas de
colonialidade moderna. A ideia de que a vida de um cidadão representa ameaça a
existência de outro é algo que entra no imaginário da soberania e faz funcionar esta
economia de morte. Ao pensar no exercício do poder de morte contemporâneo reflete
sobre as formas de dominação soberana sobre a vida. Elas impõem a racionalidade
instrumental e tecnológica no cálculo do poder de morte. As novas tecnologias fazem
funcionar a morte em uma escala quase industrial. Faz-se assim uma combinação de uma
política disciplinar, uma biopolítica e uma necropolítica do terror na criação de novas
formas de apartheid social.
Suas direções de análise nos fazem pensar como nas periferias, ou seja, onde se
estruturou regimes de colonialismo e a relação entre esta forma de dominação política e
uma política que tem como foco a inserção da vida no cálculo político da modernidade.
633
Isto nos permite examinar uma perspectiva periférica da emergência da modernidade e
de sua economia sobre a vida na nossa realidade que guarda um legado histórico de
colonialidade. Segundo Mbembe (2016, p.130), a escravidão constitui-se como “uma das
primeiras instâncias da experimentação biopolítica”. Assim, “em muitos aspectos, a
própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura
emblemática do estado de exceção” (idem). A redução de indivíduos a condição de
escravos constitui como parte de uma economia que presume sua desumanização frente
ao poder constituído que outorga a possiblidade de outro o possuir. A escravidão impõe
a perda de um lar, de seu corpo e de sua condição política. Desta forma, segundo o autor
a fazenda colonial constitui um lugar jurídico-político de negação da vida humana e de
exceção. Assim, o extermínio contemporâneo esta em continuidade com o legado da
escravidão nas Américas, e no Brasil especificamente.
Deste modo, pensar o investimento político sobre a vida a partir de realidades
periféricas nos traz desafios importantes ao pensamento sobre biopoder. Isto implica
considerar que no imaginário político dos centros de poder mundial a colônia “representa
o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder a
margem da lei e no qual tipicamente a paz assume a face de uma ‘guerra sem fim’”
(MBEMBE, 2016 p.132). Neste sentido é que pensar a realidade jurídico política da colônia
e a relação com o poder político sobre a vida implica em considerar que ela é por
excelência o local do estado de exceção, ou seja, “zona em que a violência do estado de
exceção supostamente opera a serviço da civilização” (MABEMBE, 2016, p.133). Deste
modo que “todas as manifestações de guerra e hostilidade marginalizadas pelo imaginário
europeu encontram lugar para reemergir nas colônias” (MABEMBE, 2016, p.134). Esta
visão nos faz pensar sobre o controle político criminal das drogas em áreas da periferia
do poder global marcadas pelo genocídio posto em marcha pela violência repressiva.
Assim, este que é um dos mais importantes estudos sobre o tema em termos de
amostragem do impacto da guerra às drogas na população carcerária nacional a partir da
atuação do judiciário, acaba por confirmar o impacto do proibicionismo na constituição
de um encarceramento massivo no Brasil.
Tal realidade apontada neste estudo vai ao encontro dos dados oficiais sobre o
tema. Segundo dados do Infopen no Brasil a população carcerária é constituída, no recorte
temporal apresentado no estudo, por 726.712 pessoas privadas de liberdade, destas
176.691 pessoas estão presas por crimes relacionados a Lei de Drogas (BRASIL, 2016).
Estes dados oficiais confirmam importância do crime de tráfico no processo de super
encarceramento nacional.
Ver-se, portanto, que os dados oficiais e as pesquisas acadêmicas diagnosticaram
um fator importante: a criminalização das drogas constitui-se como um dos principais
motivos da explosão da população carcerária no Brasil.
Além disto, a letalidade da repressão das agências punitivas constitui-se um ponto
importante na análise. Orlando Zaccone (2015) teceu importantes estudos sobre o tema
os quais apontam para uma política de extermínio penal em curso no Brasil. Para tanto
analisou Autos de Resistência, qualificação jurídica que expressa vítimas de confronto
636
policial, e concluiu que a política de repressão das agências punitivas legitima a
intervenção letal e concorre para a constituição de um extermínio de determinadas
pessoas consideradas “indignas” pelo sistema.
Neste sentido, destaca o autor:
A crítica à política de guerra às drogas foi capitaneada pelos EUA que visavam
estabelecer uma influência maior geopolítica sobre os países da América Latina. Assim, a
luta contra o tráfico de drogas, a partir de intervenções nos países produtores dariam a
legitimidade para atitudes imperialistas em países inseridos no mercado internacional de
drogas como produtores, a exemplo da Colômbia, ou como países de rotas de escoamento,
como no caso do Brasil (CARVALHO, 2013). O proibicionismo em seu momento de maior
vigor tinha por por traz de seu discurso, estratégias de controle geopolítico, constituindo-
se um discurso jurídico-político imposto pelo imperialismo (OLMO, 1990).
O resultado disto é uma política de extermínio. Uma das maiores expressões da
biopolítica contemporânea em seu viés política de morte. Este fator morte, como destacou
Zaffaroni é uma característica marcante da política criminal na América Latina e que se
aprofundou com a intervenção punitiva e com a política de guerra às drogas. A emergência
de Leis de Drogas que refletissem a intensidade reclamada pelo poder punitivo para lidar
com o fenômeno do tráfico, fez surgir ao longo da América-Latina legislações de
emergência e que aproximam as jovens democracias desta região à estados de exceção,
quando se trata de matéria penal. Destaca Zaffaroni, sobre as Leis de Drogas na América
Latina e seu viés antidemocrático:
Assim, como ponto final de nosso estudo cabe reforçar a relação entre a política de
drogas e as práticas que fazem funcionar o poder de morte dentro do biopoder no Brasil.
Como visto através da revisão sistemática sobre política de drogas e dados político-
criminais, os efeitos da guerra às drogas no Brasil tem como ponto fundamental o super
encarceramento que atinge preferencialmente pessoas negras, das classes sociais mais
vulneráveis e habitantes de áreas de periferias. Também a política repressiva acaba
resultando num amento de violência que resulta em significativas mortes em confronte
de pessoas envolvidas com o comercio de drogas, além de policiais e de pessoas que
habitam em áreas de periferias urbanas, locais onde frequentemente ocorrem confrontos
em nome da guerra às drogas.
Assim, conforme salientou Mbembe, radicalizando a concepção de Foucault resta-
se num ponto em que a biopolítica atua juntamente com uma necropolítica de extermínio.
Tal fato é enfatizado por Agamben, que teorizou que dentro do poder soberano do Estado
existem pontos em que a política de vida se converte em política de morte, ponto este
móvel e decorrente da divisão desigual da cidadania política e dos direitos humanos, em
637
que determinadas pessoas são convertidas em vidas nuas, vidas politicamente
desqualificadas como detentoras de direitos fundamentais. Foucault relaciona o biopoder
e o poder de morte a partir da ferramenta do racismo, como discursos legitimador de
práticas de extermínio e que fazem funcionar a morte dentro das políticas da vida. Toda
esta reflexão, nos implica em pensar que a política de encarceramento em massa posta em
marcha pelo proibicionismo no Brasil, bem como, o extermínio biopolítico nas áreas
pobres dos grandes centros são males que ameaçam os direitos humanos e que implicam
repensar o modelo atual de gestão da política de drogas, com vista a superação do
proibicionismo e do super encarceramento.
4 CONCLUSÃO
A estruturação de hierarquia entre vidas que devem ser vividas e vidas que podem
ser sacrificadas em nome da defesa da sociedade permite o funcionamento do poder de
morte dentro da economia política moderna.
A política de guerra às drogas que permite o super encarceramento e o extermínio
de jovens negros, pobres e periféricos sobre a justificação da defesa do bem jurídico da
saúde pública constitui um grande exemplo da potencialidade do poder de morte nas
políticas sobre a vida.
Nelas existe um ponto de produção de vidas nuas. E esta morte não seria apenas
uma morte como destruição biológica propriamente dita, mas também a negação de uma
vida saudável e das políticas de saúde, a negação de remédios e etc. constituem exemplo
de uma potência política de morte incluída dentro das biopolíticas.
A criminalização das drogas faz operar uma lógica de morte que se espalha dentro
de uma regulação biopolítica e que opera tanto extermínio direto de pessoas na guerra às
drogas, como a uma morte indireta daqueles que se encontram impossibilidades de
obtenção de remédios à base de plantas proscritas em virtude desta política de interdição
em relação ao uso das drogas.
Vemos o proibicionismo como uma importante ferramenta biopolítica que visa não
apenas o controle a nível do disciplinamento dos corpos, como também na
regulamentação racista de uma biopolítica de extermínio de determinados grupos
étnicos. No nível da anátomo política o proibicionismo constitui corpos dóceis e uteis ao
sistema capitalista, na medida em que impõe um disciplinamento e um corte entre o que
se deve consumir e o que não se pode consumir. No fundo vemos a constituição de
subjetividades dóceis a partir do processo de exclusão de determinadas drogas e de
promoção de outras drogas.
Quando no nível da biopolítica observamos que a militarização da segurança
pública e do discurso do tecnicismo punitivo, aliado ao racismo penal, constitui as áreas
pobres no Brasil um local de extermínio biopolítico em que as principais vítimas são
pessoas negras e das classes menos favorecidas do capitalismo.
REFERÊNCIAS
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2004.
638
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; et ali(org.). Série Pensando o Direito: Tráfico de
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Janeiro/Universidade de Brasília: Rio de Janeiro/Brasília, 2009.
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2013a.
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FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2014b.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
639
IMPORTÂNCIA DO TRABALHO NA RESSOCIALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO SUJEITO À
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como principal objetivo analisar o trabalho dentro das
penitenciárias brasileiras e ponderar se este é um instrumento significativo no processo
de ressocialização do condenado. Para tanto, foram utilizados os métodos histórico,
comparativo e o estudo de caso.
Com o fito de alcançar a compreensão da importância do trabalho nas prisões como
meio de ressocializar e dignificar o homem, é necessário que se revisite a história das
penas. Por essa razão, será apresentada um breve histórico da evolução das penas,
partindo dos castigos corpóreos até as atuais penas privativas de liberdade, focando
sempre na função e execução do trabalho prisional dentro das peculiaridades de cada
sistema. Ademais, será tratada a visão do estudioso francês Michel Foucault a respeito das
penitenciárias e os meandros do trabalho desenvolvido dentro desse sistema.
Em seguida, far-se-á uma sucinta revisão da Lei de Execução Penal (LEP), visto que,
no cenário do ordenamento jurídico brasileiro, esta é a principal legislação no que diz
respeito à execução do trabalho prisional. Além disso, serão discutidas algumas das
principais discordâncias doutrinárias acerca do dispositivo legal.
Por fim, será abordado o trabalho aplicado no âmbito da Associação de Proteção e
Assistência aos Condenados (APAC), pessoa jurídica de direito privado que propõe a
aplicação da pena de forma humanizada e ressocializadora, inserindo o trabalho no dia-
a-dia dos condenados. Ademais, haverá a exposição de exemplos com casos práticos de
penitenciárias estaduais brasileiras que oferecem trabalho a seus internos e o impacto do
exercício da atividade laboral na vida de cada um deles.
A forma de gerenciamento interno das prisões é essencial para definir o papel que
terá na vida do preso, seja como um ambiente de ressocialização, seja como um antro de
reprodução da violência institucionalizada.
Pensei um dia que, se quisessem esmagar por completo, aniquilar um homem,
puni-lo com a punição mais pavorosa, de maneira que até o assassino mais terrível ficasse
tremendo de medo perante essa punição, antes mesmo que ela fosse aplicada, bastaria
somente tornarem o seu trabalho totalmente inútil e plenamente absurdo (DOSTOIÉVSKI,
2016, p.40).
Antes de abordar apropriadamente o significado do trabalho penal, é necessário
entender o contexto histórico de construção dos modelos de penas até se chegar à pena
privativa de liberdade, no qual ele passou a ser efetivamente aplicado. Inicialmente,
evoca-se o Código de Hamurabi e a vingança privada, em que a vítima tinha a prerrogativa
de interferir diretamente no julgamento do réu. Contudo, vale destacar que também foi
nesse cenário que surgiu as primeiras noções de proporcionalidade nas penas por meio
do célebre ditame “olho por olho, dente por dente”. Posteriormente, passou a ser aplicada
640
a noção de ‘justiça divina’ (grifo nosso), através da qual o delito era considerado tanto
uma ofensa aos homens quanto a divindade em si. Desse modo, punia-se pela vontade dos
deuses a ofensa causada (COSTA; FREIRE; OLIVEIRA, 2016).
Já na Idade Média, as penas corpóreas passaram a ter grande importância no
direito penal vigente, despertando medo e temor no coração das pessoas. Os suplícios,
portanto, representavam com maestria o ápice de uma época na qual a vingança da pena
era pública e se fazia cruel nos detalhes com o fito de intimidar a população e, ao mesmo
tempo, difundir uma mensagem de que o monarca cuidava da segurança de seus súditos.
Não obstante, no mesmo período, o direito canônico serviu como base para o surgimento
das primeiras noções de penas privativas de liberdade. A prisão, até então, era apenas o
meio para o fim, ou seja, as pessoas ficavam encarceradas apenas como garantia de que a
pena seria aplicada. Se por um lado, estar preso em si não era considerado uma pena; por
outro lado, nas instituições religiosas da época, havia um tipo muito especifico de punição,
no qual o pecador era exilado temporariamente dos demais para que pudesse pensar e
arrepender-se de seus erros. Assim surgiu o termo “penitenciaria”, pois esse designava o
lugar ao qual as pessoas se dirigiam para pagar suas penitências (COSTA; FREIRE;
OLIVEIRA, 2016).
Na modernidade, entretanto, a pena de morte e os suplícios gradativamente
passaram a ostentar um cunho extremamente negativo para a população, fato que, aliado
ao movimento de humanização, incutiu no direito penal importantes modificações. A
busca por penas mais brandas, que tivessem a finalidade precípua de impedir a
reincidência dos réus e a ocorrência de novos delitos (BECCARIA apud COSTA; FREIRE;
OLIVEIRA, 2016), e o fim dos espetáculos punitivos públicos possibilitou a construção de
um certo ar de mistério bem como de durabilidade em relação à aplicação da pena, já que
os indivíduos não teriam mais o conhecimento de como se daria a execução em si.
Em contexto paralelo, pode-se dizer que o trabalho como forma de punição para o
direito penal ganhou força após uma série de fatores de viés socioeconômicos. No período
após a peste negra, entre os anos de 1380 a 1650, a falta de mão de obra ocasionou a
criação das primeiras Work Houses e Houses of Correction, casas de trabalhos, nas quais os
indivíduos ficavam enclausurados. Inicialmente, esses ambientes serviam somente para
abrigar a população pobre masculina, mas logo passaram a receber também infratores de
baixa periculosidade, idosos, crianças órfãs e criminosos no aguardo de julgamento. A
atividades desenvolvidas nas casas abrangiam desde trabalhos domésticos até o
tratamento de enfermos. No Brasil, essa ideia chegou muito tempo depois com a
construção da primeira Casa de Correção da Corte em 1850 na cidade do Rio de Janeiro,
destinada à aplicação da pena privativa de liberdade com trabalho) correspondente ao
artigo 46 do Código Criminal do Império do Brasil (1830).
641
superpopulosas e com altos índices de criminalidade. Devido ao excesso de mão de obra
e ao fato do trabalho prisional possuir uma conotação, na época, socialmente negativa, as
Work Houses começaram a perder força rapidamente. Assim, os condenados passaram a
viver no ócio em celas superlotadas, submetidos, ainda, à pena de morte, aos castigos
corpóreos e à pena de deportação.
Atualmente, o trabalho obrigatório deve ser entendido sob a luz dos princípios
constitucionais e do sistema infraconstitucional, que prezam, acima de tudo, pela
dignidade da pessoa humana. Ou seja, embora a LEP estabeleça o trabalho prisional como
um dever, o preso pode, a qualquer momento, recusar-se a realizá-lo, e o aparelho estatal
responsável pela execução da pena privativa de liberdade não poderá utilizar-se de sua
força, legitimidade, ou de qualquer outro meio para compelir o preso ao trabalho.
Além disso, a realização de atividade laboral no ambiente penitenciário é
entendida pelo ordenamento jurídico brasileiro como um instrumento indispensável para
o desenvolvimento físico e intelectual do homem, para o alcance pleno da sua dignidade,
dessa compreensão emana a sua obrigatoriedade. O ser humano depende do trabalho
para a sua subsistência e integração à sociedade. Ao trabalhar, portanto, o condenado
participa do desenvolvimento econômico e social da comunidade na qual está inserido.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
651
Dessa forma, apesar da defasagem no sistema penal aplicado pelo ordenamento
jurídico brasileiro, torna-se viável afirmar que o trabalho pode, através dos incentivos
adequados, ajudar na efetivação do processo ressocializador definitivo do condenado
perante à comunidade. Para tanto, faz-se indispensável demonstrar a eficácia da inserção
de sistemas penitenciários alternativos, que utilizam o trabalho de maneira benéfica tanto
para a sociedade quanto para o apenado, e do próprio sistema penal comum quando este
demonstra meios produtivos de aplicação do trabalho penal. Transformá-los em modelos
para a elaboração de novos regimes de labor prisional parece, ademais, um excelente
recurso para a construção de medidas que suprimam as evidentes deficiências do modelo
penal brasileiro, dentre elas, as altas taxas de reincidência criminal.
REFERÊNCIAS
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Saraiva, 2017.
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BROGLIATTO, Sandra Regina Machado; SHIKIDA, Pery Francisco Assis. O trabalho atrás
das grades: um estudo de caso na Penitenciária Estadual de Foz do Iguaçu – PEF (PR).
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Penitenciária Estadual de Maringá. Gestão & Regionalidade, São Caetano do Sul, SP, v.
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653
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juristrabalhista. 2009. 148 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte.
654
DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SEU PARADIGMA EMANCIPADOR - OUTRAS
LENTES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO CRIME
1 INTRODUÇÃO
657
por amigos e conhecidos que ouviram sobre a tragédia. Essas feridas
abertas acabam gerando mais suspeitas, medo, raiva e sentimentos de
vulnerabilidade em toda comunidade. Aliás, operam em silêncio minando
o espírito comunitário. (ZEHR, 2008, p. 39∕40)
No que diz respeito àquela(e) que pratica o crime, a intervenção retributiva não é
menos violenta e estigmatizante. Pela dinâmica retributiva, o processo que visa à
resolução da situação de crime se dá sob a expectação daquela(e) que agiu em ato
delituoso. Não há oportunidade para uma participação decisória. Todo o procedimento
ocorre a partir da contribuição de profissionais diversas(os) - promotoras(es),
juízas(es), advogadas(os), psicólogas(os), psiquiatras, assistentes sociais, entre
outras(os) - que se propõem a afirmar ou não a culpa sobre um delito definido em lei.
Terceiras(os), legitimadas(os) pelo sistema para tanto, se propõem a investigar e
a afirmar sobre a intenção, a subjetividade, de quem praticou o crime, imputando-lhe
culpa. Destas(es), um(a), em juízo, em pretensões de salvaguardar interesses sociais, se
arvora a lhe atribuir uma punição - sofrimento – pelo ato praticado, decidindo o que será
feito dela(e).
A lógica retributiva, portanto, em que pese um discurso que afirma a
responsabilização daquela(e) que pratica o crime, se operacionaliza de tal forma a
realizar uma prática distante da atribuição de responsabilidades. Não há verdadeira
responsabilidade sem a compreensão, por quem pratica o crime, das consequências
humanas advindas do ato delitivo; sem, portanto, uma vinculação intrínseca entre o
crime e as medidas tomadas para recompor os danos por ele ocasionados. Punir alguém
não lhe torna responsável, de tal forma que:
Com efeito, apesar de o sistema penal ser plurifuncional (...), entre essas
funções emergem, como as mais notórias, a criação e o aprofundamento
de antagonismos e contradições sociais e consequentemente o
enfraquecimento e a destruição de vínculos comunitários, horizontais e
de simpatia.
(...) Tudo isto leva, em nossa região marginal, a se considerar o sistema
penal como o maior obstáculo à paz social e, fundamentalmente, à
coalizão civil frente ao exercício arbitrário do poder.
660
Também frustra as vítimas, que têm dificuldades para casar a descrição
jurídica dos fatos com sua própria experiência. Mas tanto vítima quanto
ofensor são obrigados a falar a linguagem do “sistema”, definindo sua
realidade em termos que não lhes são próprios. (ZEHR, 2008, p. 72 e 77∕
78)
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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direitos humanos como objeto e limite da lei penal. Tradução de Francisco Bissoli Filho.
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ZEHR, Howard. Trocando as lentes: justiça restaurativa para o nosso tempo. Tradução de
Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
668
A “FIRMA” É GRANDE: UM ESTUDO SOBRE AS FACÇÕES “OKAIDA” E ESTADOS
UNIDOS NO PRESÍDIO SÍLVIO PORTO
1 INTRODUÇÃO
Iniciaremos a discussão nos apropriando da história das prisões, como e com que
finalidade surgiram, usaremos o conceito de instituições totais, que segundo Goffman
(1974), são aquelas cujos internados são privados do contato com a sociedade e essa
privação aparece não só nas normas e na dinâmica da instituição, mas em sua estrutura
física, que se materializa com os altos muros e portões. Nestas instituições totais, no
670
caso dos presídios, os internados são moldados conforme as atividades e as normas
estabelecidas por quem está na condição de dirigente, são dois grupos que fazem parte
de um mesmo cotidiano, convivem juntos, mas não integrados, eles têm diferentes
funções e percepções do mundo e da instituição, os internados e os dirigentes são
grupos distintos, mas que são essenciais ao funcionamento das instituições totais:
Nas instituições totais, existe uma divisão básica entre um grande grupo
controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e uma
pequena equipe de supervisão. Geralmente, os internados vivem na
instituição e têm contato restrito com o mundo existente fora de suas
paredes a equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito
horas por dia e está integrada no mundo externo. Cada agrupamento
tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis - a
equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos,
reservados e não merecedores de confiança: os internados muitas vezes
veem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os
participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e
corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-
se inferiores, fracos, censuráveis e culpados (GOFFMAN, 1974, p. 18-19).
No que diz respeito a essa justiça de classe, vale ressaltar os interesses políticos
e econômicos, o abuso do poder é manifesto no judiciário, não há uma distribuição
equitativa e todo esse excesso de poder recai como sentenças severas a um segmento, as
classes subalternas, sobre quem são aplicados todos os castigos possíveis, o
“superpoder” é um privilégio que precisaria ser dividido, para os reformadores, essa
estratégia é válida, porém se punir com mais severidade, introduzindo a sociedade a
lógica do poder de punir
Quando falamos de crime é preciso endossar que os crimes foram construídos
pela sociedade e que muitos são classificados a partir de interesses políticos e
econômicos, e essa forma de dar o castigo conforme o crime seria como dizer que a
sentença não está sendo dada segundo a vontade humana de quem julga, mas quem
cometeu puniu a si mesmo segundo a gravidade do que fez, toda responsabilidade é
transferida para o indivíduo, ocultando o poder de punir, levando a culpa o próprio
homem, unicamente pelo seu ato monstruoso e seu desvio de conduta. “Que o castigo
decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja
mascarando-se sob a força suave da natureza” (FOUCAULT, 1987, p.136).
A lógica da punição nas instituições era de tornar o crime menos atraente,
reforçando a desvantagem da pena, para combater um mau hábito seria preciso mostrar
um bom, combater a ociosidade e a vadiagem, que eram tidas como razão de muitos
delitos serem cometidos, o controle das paixões que faziam o homem se desviar de uma
conduta e descumprir a lei era uma forma de evitar os crimes. Em suma, o
desenvolvimento dessas instituições de caráter reformatório trouxe com ele a
institucionalização do poder de punir, as prisões passam a ter uma função social de
devolver o homem à sociedade livre de seus costumes ilegais e sem os desejos do antigo
criminoso. Porém de acordo com os estudos atuais vemos que as prisões se tornaram
um ambiente de violações de direitos e o encarceramento em massa tem se tornado um
instrumento de recrutamento para o crime.
Entrevistado 3: Nós faz parte de Osama Bin Laden, não tem Osama Bin
Laden? Nós faz parte da facção deles, esses bicho aí de PCC e Estados
Unidos não chega ao rastro de nós não que a firma é muito grande.
(informação verbal).
Acerca da história do surgimento da facção “Okaida” foi opinião comum que ela
surgiu na Penitenciária Flósculo da Nóbrega, mais conhecida como Presídio do Roger e
de início se estabeleceu nos bairros de Mandacaru, Ilha do Bispo, São José, Alto de Mateus
e Novais. Leva- se também em consideração neste caso o aspecto da cautela por parte
dos sujeitos entrevistados ao falar de todo um grupo. Apesar de pertencerem à um
mesmo grupo foi possível identificar nos discursos as diferenças entre os integrantes,
pois ao mesmo tempo em que uns falaram abertamente, outros mostravam precaução
no falar, pensando antes de verbalizar, expressando assim a prudência em expor não só
ele mesmo, mas um coletivo de pessoas bastante conflituoso.
A facção rival da “Okaida” tem o nome de Estados Unidos, segundo integrantes,
ao contrário da “Okaida”, a facção tem respeito pelas famílias e não as envolve em suas
“guerras”, ou seja, seus problemas, seus conflitos. Conta um entrevistado que escolheu
a facção também por este motivo, apesar da influência do território. Os Estados Unidos
vêm disputando os territórios com a “Okaida” e de acordo com alguns relatos a facção
nasceu de uma divisão da própria “Okaida”, há diferentes versões sobre a história da
673
formação destas facções, mesmo sendo um grupo, há divergências em suas falas. Em
entrevista, os apenados comentaram sobre o que consideram ser as facções de acordo
com sua visão:
674
O que há de comum sobre o surgimento destas facções é que ambas tiveram sua
gênese no “Presídio do Roger”6, sendo formada primeiro a “Okaida” após o atentado que
aconteceu nos Estados Unidos em 2011, e posteriormente os Estados Unidos em
oposição, saindo do sistema penitenciário para as ruas. Os integrantes da “Okaida” fazem
questão de expressar uma espécie de hegemonia que foi conquistada dentro e fora dos
presídios, sentem-se dominantes e transparecem isto no modo de falar do grupo, ao
longo da minha experiência no campo de estágio não pude deixar de notar as tatuagens
nos corpos dos apenados que nos momentos do banho de sol ficam ainda mais à mostra,
quando aproveitavam o pouco tempo para jogar futebol ou fazer algum exercício físico,
uma vez que dentro das celas o espaço é limitado. Até mesmo respirar o ar que não seja
o das celas faz bem, as condições são insalubres e os pavilhões são mal cheirosos. Muito
do que se diz na Lei de Execução Penal –LEP não é materializado, faltam produtos
básicos nas unidades prisionais.
A população encarcerada é negra e advinda da periferia. Segundo o relatório do
INFOPEN, a população carcerária do Brasil é de 622.202, enquanto o número real de
vagas é de 371.884, temos um déficit de vagas de 250.318, do ano de 2004 até o ano de
conclusão do relatório 2014, a população carcerária do Brasil quase dobrou, passando
de 336.358 em 2004 à
622.202 em 2014. Doravante, iremos adentrar nesta jornada de tentar captar
como se sentem os integrantes das facções, a perspectiva dos integrantes de como é estar
em um grupo como estes. Alguns depoimentos revelam que a família é um ponto que traz
incômodo e/ou preocupação no sentido de correrem algum risco e/ou por estarem
tristes com a atual situação deles, na fala abaixo o pedido da mãe para que o filho saia
do crime fica em sua mente, mas não pode dar uma reposta positiva à sua mãe devido
aos desentendimentos que causaria e levaria até à morte, o que deixaria abalaria a mãe
mais ainda.
Também foi possível notar que há aqueles que não necessariamente sentem
orgulho em ser integrantes de uma facção, as circunstâncias os obrigaram a escolher de
um dos lados para estar, mas não se reconhecem de fato enquanto membros da facção:
676
não existia FEBEM, era Juizado de Menores, então quando eu me conheci
por gente eu já tava num pavilhão de menores infratores, sem pai nem
mãe. Aí tem aquele problema de adoção, teve uma família que me adotou,
quando foi feito todo aquele negócio, tramite de adoção eu não me
adaptei com a família que me adotou e fui pra rua. Meu pai que me adotou
já que recuperou várias vezes na rua, levava pra casa mas não dava certo
cara com a minha mãe que me adotou. Então desde nove anos que eu tô
na rua lutando com a sobrevivência em São Paulo, como diz o ditado, tique
que matar um leão todo dia pra ficar vivo. Tinha o Esquadrão da morte
que matava menor de rua que era pra limpar a cidade. (informação
verbal).
A disputa entre “Okaida” e Estados Unidos acontece dentro e fora dos presídios,
para os Estados Unidos, a “Okaida” não tem respeito pela família de ninguém, mesmo
com os comentários negativos ao seu respeito a “Okaida” se sente dominante dentro e
fora das unidades prisionais.
Mais uma vez encontramos uma expressão típica de quem está recluso, “morar”,
que significa viver no mesmo pavilhão, como já estão tão familiarizados com o local e
criam um certo cuidado pela sua cela e pelos poucos pertences que são permitidos
guardarem.
As características da formação das facções representam bem o que Turner
(1974) explicou com o conceito de communitas, onde os homens criam laços,
hierarquias ou classes, conforme encontram-se no mundo. Pra Turner existem dois
modelos de sociedades, o primeiro é a do sistema estruturado, onde os homens
apresentam posições políticas, jurídicas e econômicas, há juízos de valor e uma definição
de padrões a segurem seguidos. O segundo tipo é considerado não-estruturado, onde há
indivíduos iguais que se submetem a uma autoridade geral. Na communitas há aspectos
em comum, no caso do grupo estudado, o pertencimento à uma facção. Sobre isto Silva
L. (2014) comenta:
Os líderes nesses lugares não são escolhidos por uma forma organizada,
mas sim por apresentar poder, dinheiro, força e ter cometido algum delito
considerado muito grave. Mas, a própria estrutura exige novos líderes, e
com esses criam-se novos seguidores e aparecem as conhecidas facções,
as quais os seguidores terão que se submeter para terem proteção. A
submissão gera uma dinâmica própria que por sua vez cria processos de
socialização a partir de moedas de trocas como, por exemplo: drogas,
cigarros, remédios, sexo e outros. A communitas absorve nessa estrutura
677
pessoas que apresentem um estigma, o qual afastou da sociedade, e que
para viver nessa nova estrutura tem que seguir novas ordens (SILVA.L,
2014, p.41).
Nos presídios é preciso escolher um lado para pertencer, existem apenados que
já chegaram fazendo parte de um grupo, outros com o decorrer da convivência tornam-
se mais próximos de alguns colegas e por isto unem-se, passando a ser parte daquela
communitas, ao passo que uma parte daquele grupo torna-se rival.
Além dos Estados Unidos a “Okaida” tem outro oponente, o PCC, que aqui na
Paraíba é aliado aos Estados Unidos. Durante entrevista com um integrante do PCC que
está cumprindo pena aqui na Paraíba pude perceber que o PCC não se considera uma
facção, em eu relato ele fez questão de deixar claro que o PCC é diferente, e que lá em
São Paulo os confrontos são diferentes daqui. Ele exemplificou isto falando da rivalidade
entre as duas facções que estamos explorando, a briga pelos pontos de vendas de
drogas, ou até as brigas entre quem está do mesmo lado, para ele isto é facção, o PCC é
uma organização que difere muito dos grupos que ele conheceu aqui em João Pessoa.
Ele comenta que a capital João Pessoa está dividida, enquanto em São Paulo existe
apenas o PCC, todos com pensamento em comum, existe respeito à hierarquia da
organização, e respeito à “ética do crime”, segundo o interlocutor também existem
regras no mundo do crime, nem tudo é permitido, nem tudo é aceito, existe uma ética
norteadora das práticas no crime à qual o PCC tem observado e agido de acordo com a
mesma.
Entrevistado 6: Nosso ponto de vista, nós que somos de São Paulo, é que
nós não temos guerra contra vagabundo, em São Paulo não existe duas
facções, em São Paulo existe um grupo organizado, uma organização
criminosa que luta pela paz, pela justiça, os nossos ideais é esse, nossa
guerra é exclusivamente com a polícia. Lá em São Paulo a gente não corre
o risco de tomar um tiro nas costas, eu não vou ser atacado porque eu
vendo uma droga nessa esquina, porque o cara que vai vender na outra
esquina também é do PCC, lá não tem duas, então essa guerra só existe
aqui, a gente não concorda com esse negócio de facção. Facção é
“Okaida”, Estados Unidos é um grupo que bate de frente, que combate,
que luta pra preservar as área deles que os cara da “Okaida” disse que ia
tomar, eles toma geral, eles não têm respeito pela vida, eles não têm
respeito por ninguém, a gente não se bate não, a gente não se gosta, a gente
não aceita. (informação verbal).
Através das entrevistas pude extrair algo em comum nas falas e nas concepções
dos apenados quanto ao que eles entendiam como sendo uma facção, eles se referem
imediatamente aos conflitos e rivalidade entres os dois grupos antagônicos, como se já
fosse um sinônimo. O que é compreensível devido ao clima de disputa entre os dois
grupos. Diferente da Organização Criminosa que é o PCC, que segundo as entrevistas só
disputa espaço com a polícia, aqui acontece uma guerra entre “iguais”, se assim
podemos dizer, pois os dois estão entre o proletariado, a massa marginalizada e
estigmatizada pela sociedade. As facções aqui ainda não apresentam nenhum
documento conhecido como o Estatuto do PCC, que funciona como uma espécie de
regimento a ser seguido pelos membros, até então as regras existentes são passadas de
maneira informal oralmente.
10%
10%
80%
Não queremos aqui criminalizar a pobreza, nem tomar como regra o fato de
todos os que chegam à uma penitenciária pertençam à famílias pobres, mas
infelizmente são, queremos sim expor de acordo com os números obtidos na pesquisa
que o fato de muitos destes homens estarem apenas realizando trabalho informal, e
outros nem chegarem a isso, foi um fator de influência para que realizassem alguma
atividade ilícita e ingressassem assim no sistema prisional, recebendo o estigma de ser
um presidiário.
De acordo com o relatório de 2014 do INFOPEN, a população carcerária com
idade entre 18 a 24 anos representava 30,12% e a população com idade entre 25 e 29
anos representava mais 24,96%, sendo assim pode-se afirmar que a juventude
brasileira tem sido a ocupante dos presídios, as população carcerária é jovem, as
pessoas de 18 a 29 anos compõem 55,07% de toda a população. Como prevenção deste
problema seria necessário investir em políticas públicas para a juventude, educação,
esporte e lazer, atividades que afastassem os jovens do tráfico. A Lei 12.852 de 5 de
Agosto de 2013 institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens,
podemos destacar alguns:
Um detalhe que também tem relevância nesta discussão sobre a questão racial é
a autoafirmação enquanto negro, o gráfico mostra que 50% dos interlocutores se
identificaram não como negros, mas pardos, e apenas 20% se declararam negros. É
possível perceber que ainda existe uma indiferença em se declarar de pele negra, como
se a declaração trouxesse o estigma que a história trouxe a este povo. Todas as
desigualdades sociais estão contidas no interior das prisões, a etnia/ ou cor de pele se
faz presente mostrando que de fato a população negra e/ou parda faz parte dos que
menos tem acesso à cultura, educação, saúde e etc, resvalando assim em um sistema
carcerário formado por homens pobres e negros.
Os crimes cometidos pelos homens do grupo entrevistado, 53% foram
sentenciados pelo crime de Assalto, este é um dos crimes mais cometidos, segundo os
apenados muitos começaram essa trajetória ainda meninos, assaltando mercados
pequenos,
junto de outros colegas da mesma idade, e posteriormente cometendo outros
delitos. Em segundo lugar está o crime de Homicídio representando 17%, em seguida e
em igual escala os crimes de Porte ilegal de arma e Tentativa de homicídio,
representando cada um 12%, em quarto lugar está o crime de Tráfico de drogas,
representando 6% do total, e nenhum furto foi contabilizado, vale salientar que temos
aqui apenas uma aproximação, apesar de uma minoria de entrevistados ter sido
sentenciada pelo crime de tráfico, observando as estatísticas a nível nacional podemos
ver que os crimes contra o patrimônio e tráfico estão no topo da lista, somando mais de
50% das sentenças das pessoas encarceradas do Brasil. O Mapa da violência 2004
aponta o tráfico de drogas como um dos principais responsáveis pelo aumento do
número de encarceramento no Brasil. O Instituto Penal Desembargador Silvio Porto até
o período em que finalizei a pesquisa chegou a receber 1.199 apenados, mesmo com
capacidade para 600, deste contingente 443 eram reincidentes. Antes de serem
sentenciados exerciam alguma atividade informal ou eram desempregados, atingidos
pela desigualdade gerada pelo modo de produção capitalista passaram a fazer parte não
mais da população desempregada, mas da população carcerária.
682
humanos, inclusive o direito à própria vida (IAMAMOTO, 2000, p. 86).
Uma vez que estes homens cumprem uma pena, tornam-se marcados pelo
estigma de ex-presidiário, e mesmo tendo quitado sua dívida com a justiça, para a
sociedade ainda não é suficiente, ainda a justiça não foi aplicada, com isso a sociedade
trata de excluí-los cada vez mais seja dos meios de convivência ou como mão de obra, é
como se estes homens representassem a todo tempo o delito que antes cometeram, com
isso fica cada vez mais difícil reinserir-se no mercado de trabalho. A perda dos direitos
sociais juntamente com o desemprego é um fator que contribui para o aumento do de
encarceramento, pois uma vez sem meios para prover as necessidades básicas da
família muitos optam pelo crime como um meio lucrativo.
Se o sistema capitalista tem sido cruel com homens e mulheres ditos “de bem”,
com os egressos ele então nem chega a aproximar-se. O desemprego que apresenta o
caminho do crime, é o mesmo que coloca-os de volta em privação de liberdade. Além do
papel da sociedade civil neste sentido de reinserção do egresso, há também a falha do
estado em não cumprir com seu papel de assistir o egresso. A LEP dispões sobre os
direitos e deveres dos apenados e também do egresso, neste caso há o direito à auxílio
moradia por um tempo determinado, mesmo que ainda pouco e precisando de
reformulações há este direito estabelecido por lei, o Artigo 25 da LEP fica estabelecido
que o egresso tem direito se necessário a ser abrigado em um alojamento, recendo
alimentação por dois meses, que podem ser prorrogados uma vez, recebendo ainda
colaboração de um Assistente Social para obtenção de trabalho. Porém, a realidade não
tem nenhuma semelhança com a lei, a realidade dos egressos é a falta de assistência por
parte do estado, muitos não são mais apoiados nem pelas próprias famílias, assim
retomam ao ciclo da reincidência.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, podemos dizer que as facções são formadas por jovens negros, de
baixa escolaridade e oriundos de famílias em situação de vulnerabilidade social, que
buscaram nas facções um meio de lucrar com o crime, representando um coletivo com
os mesmos interesses e com inimigos em comum, em nome da facção e para mostrarem-
se destemidos realizam crimes que não necessariamente serão lucrativos.
Aqui em João Pessoa estas facções ainda não possuem documentos com suas
regras, tudo é acordado oralmente, pessoalmente ou pelos meios de comunicação que
circularam dentro das unidades prisionais, foi notório que mesmo com as afirmações
sobre hierarquia, o poder dentro das facções é fragmentado, podendo haver líderes
dentro e fora dos presídios que articulam a venda de drogas no município. Também foi
evidenciado durante a pesquisa que há uma solidariedade entre os membros do mesmo
grupo, onde uns defendem os outros dos adversários, protegendo a vida dos aliados.
Estes homens não tem receio de explicitar qual o grupo que pertencem e mostram isso
através também das tatuagens que foram mostradas no segundo capítulo. Ainda há
muito para ser pesquisado sobre esses grupos e como eles tem se disseminado, como
683
têm exercido influência sobre a vida de diversos homens.
As facções podem ser apenas um problema de ordem policial e judiciária, porém
é necessário enxergar este problema como uma expressão da Questão Social, mais um
problema gerado pela desigualdade do modo de produção capitalista sob o qual
vivemos, e como problema social é preciso dar respostas que modifiquem a vida das
pessoas atingidas pela violência, o encarceramento destes homens não será a solução
para a violência, a ampliação do sistema prisional não diminui a violência nas ruas,
encarcerar é a última da punições e que não tem surtido efeito no que diz respeito a
diminuir a criminalidade, pelo contrário, as prisões tem sido um lugar de articulação e
fortalecimento das atividades criminosas, recrutando a juventude pobre e negra do
Brasil.
Precisamos de um sistema prisional que não sirva apenas para conter aqueles a
quem a sociedade teme, mas de instituições comprometidas com uma segurança
pública democrática e que respeite a vida. Só será possível diminuir a criminalidade pela
via da cidadania, da garantia de direitos e dignidade humana, o sistema prisional precisa
de uma reforma estrutural, desde a capacitação dos funcionários para uma atuação
humanizada, bem como melhores salários e melhores condições de trabalho. O
cumprimento da LEP também seria uma forma de responder o problema da violação dos
direitos humanos dentro das nossas prisões.
Para além de melhorias no sistema prisional, o problema precisa de atenção
desde seu nascimento, os homens que estão nas prisões um dia foram crianças e
adolescentes que por vários motivos iniciaram uma trajetória de infração da qual não
conseguem sair tão fácil, porque são rapidamente absorvidos pela facções quando saem
dos centros educacionais para os presídios, precisamos atuar na prevenção deste
problema através de uma educação para os direitos humanos. É de primazia do estado
garantir a segurança pública, porém a sociedade civil precisa participar de discussões
sobre segurança pública, o que é um direito estabelecido pela Constituição. E a
Universidade precisa fomentar o debate sobre violência e Segurança Pública no sentido
de trazer contribuições para uma transformação da realidade.
REFERÊNCIAS
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GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva S.A,
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1974.
685
PRESENTE DE GREGO: REFLEXÕES SOBRE OS PRECEDENTES NEOLIBERAIS E AS
NOCIVIDADES DO PACOTE ANTICRIME
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Percebe-se, ainda, a busca incessante pela confissão. Tal qual nos tempos
inquisitoriais, a confissão do acusado torna-se a “rainha” de todas as provas, a que
legitimará toda a atuação das instituições punitivas. Desse modo, andou bem o Grupo de
Trabalho sobre a Legislação Processual Penal da Câmara dos Deputados em rejeitar o
instituto do pleabargain – o que por si não é capaz de retirar, por óbvio, a nocividade do
Pacote como um todo.
O mesmo ocorreu quanto às expressões “violenta emoção” e “escusável medo” na
proposta que almejava acrescentar, no artigo 23 do Código Penal, a previsão de que “o
juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de
escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, acerca da excludente de ilicitude23 – as
quais foram suprimidas –. Ora, em seu artigo 23, o CP deixa claro que, quem atua em
legítima defesa não comete crime, fazendo a ressalva de que o agente responderá caso
se exceda nessa ação. O artigo 25, do mesmo diploma penal, determina por sua vez, o que
seria a legitima defesa: “quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele
injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Desse modo, a lei atual
já isenta de culpa o policial que age “usando moderadamente os meios necessários” para
defender-se de “agressão, atual ou iminente”, a si ou a outra pessoa. Nesse ponto, no
entanto, o Pacote pretendia ir além, inserindo na lei um dispositivo cuja potencialidade
para acarretar arbitrariedades era manifesta, visto quão demasiadamente abertos e
subjetivos eram tais expressões (medo, emoção).
No que se refere à possibilidade de prisão após condenação em segunda
692
instância, é imprescindível rememorar que o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição
Federal, ao estabelecer que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória” e oartigo 283 do Código de Processo Penal , além
dos tratados e declarações internacionais dos quais o Brasil é signatário, deixam claro
que o acusado só poderá ser preso quando realmente provada a sua culpa, ou seja, quando
todas as possibilidades de defesa forem esgotadas. Apesar disso, o Pacote procura tornar
legal tal possibilidade; mais uma vez, a ânsia punitivista tenta, diuturnamente, romper
garantias mínimas dos cidadãos, e não seria diferente com o princípio da presunção de
inocência.
Importante lembrar que, em 2016, por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal,
no julgamento do Habeas Corpus 126.292, entendeu que a pena poderia ser executada já
após a condenação na segunda instância. Excluiu, assim, a possibilidade do recurso
especial ou extraordinário –cujas competências para julgamento pertencem ao Superior
Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, respectivamente – suspenderem o
cumprimento imediato da pena. No entanto, ao que parece – com base nas declarações
recentes dos ministros –, esse entendimento poderá ser revertido caso tal tema seja
rediscutido (o que deve acontecer em 2019, segundo pauta de julgamento já divulgada).
Desse modo, o projeto de Moro enviado ao Congresso Nacional, contendo as bases
e propostas de modificações legislativas, possui o intuito, inclusive, de pressionar o STF
a não decidir em sentido contrário. Aliás, cerca de 150 mil presos foram já afetados, em
tese, pelo atual entendimento do STF de que é possível a prisão em segunda instância o
que evidencia, portanto, o impacto desse ponto no atual encarceramento em massa
brasileiro.
Em relação à prisão nos casos de competência do júri, a lógica é bem parecida com
a prisão em segunda instância, tratada nos parágrafos anteriores. Os crimes dolosos
contra a vida (homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio;
aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento; e o aborto provocado sem
o consentimento da gestante) são julgados em procedimento especial previsto no Código
de Processo Penal (CPP), sendo os únicos em que o júri, formado por 7 pessoas da
comunidade, decide sobre a inocência ou a culpa do acusado. De acordo com a
Constituição Federal, a decisão do júri é soberana (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea c); ou
seja: não pode ser revertida pelo juiz. Caso alguma das partes (defesa ou acusação)
entenda que a decisão final dos jurados afrontou manifestamente as provas contidas nos
autos, poderá pleitear por um novo júri (art. 593, inciso III, alínea d do CPP); se a apelação
for negada, a decisão do júri deverá ser cumprida de imediato; caso seja acolhido o
pedido, um novo júri será formado para julgar o caso, não sendo mais passível de recurso
a decisão desse segundo julgamento. O projeto anticrime do Moro busca, portanto,
prender de imediato o acusado condenado no primeiro júri; uma obsessãoque busca
prender a qualquer custo.
Como se não bastasse, o Pacote buscar alterar também o artigo 25 do CP,
aumentando o número de hipóteses que se enquadram dentro da categoria de legítima
defesa(e, portanto, excluída a ilicitude da ação): quando “o agente policial ou de
segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado,
previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”; e quando “o agente
policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima
mantida refém durante a prática de crimes”.
Esses dois pontos do projeto constituem, em resumo, verdadeira “carta branca”
para arbitrariedades policiais. É a volta oficial – de algo que, em verdade, nunca deixou
de existir dos autos de resistência. Bastará à autoridade policial alegar que estava
693
inserida em uma suposta situação de conflito para que, na nossa atual conjuntura de
“guerra às drogas”, se enquadrenas hipóteses de legítima defesa propostaspor tal
projeto,a fim deexculpar-se.
De acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as polícias
brasileiras foram responsáveis, em 2017, por 5.144 mortes – uma média de 14 óbitos
por dia. O número corresponde a um aumento de 20% em relação a 2016. No mesmo
período, foram 367 policiais mortos, 5% a menos que no ano anterior30. A mudança
legislativa trazida no projeto Anticrime, portanto, tende a aumentar as taxas de
letalidade dos agentes de segurança, visto que, se já há previsão que lhes garante não
serem punidos quando atuarem em legítima defesa, a previsão vem como uma
mensagem simbólica: dar ainda mais poder às forças policiais brasileiras e assegurar-
lhes um maior conforto jurídico para o uso abusivo da força, legalizando, de vez, o
extermínio dos que são, quase sempre, marginalizados pela sociedade e pelo Estado.
Outra proposta apresentada no Pacote Anticrime é o endurecimento no
cumprimento de penas em alguns casos. Acrescentam-se mais parágrafos ao artigo 33
do Código Penal, determinando que “no caso de condenado reincidente ou havendo
elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou
profissional, o regime inicial da pena será o fechado”. Determina, também, o regime
inicial fechado para os crimes de peculato (art. 312), corrupção passiva (art. 317),
corrupção ativa (art. 333) e roubo, quando realizado com o emprego de arma ou no caso
de resultar lesão corporal grave (art. 157, parágrafo 2º, inciso I e parágrafo 3º).
Dessa forma, percebe-se a tentativa de recrudescimento da pena de prisão, pois
tal projeto possibilita a aplicação arbitrária do regime inicial fechado para condenados
em caso de existência de provas que “indiquem conduta criminal habitual”. Ou seja: é
desnecessária a comprovação – basta que os elementos probatórios indiquem essa
reiteração de crimes para que seja imposto o regime inicial fechado. O princípio
constitucional da presunção de inocência é, portanto, completamente esquecido e
desrespeitado. Ademais, a proposta de imposição de regime mais severo para os crimes
de peculato, corrupção ativa e passiva será, na prática, assim como todas as outras penas,
aplicada seletivamente e destinada àqueles que minimamente desagradarem os desejos
do capital, cujo destino será a prisão.
Destarte, fica claro que as propostas “anticrimes” de Moro suprimem diversas
garantias fundamentais do cidadão com fundamento em um processo penal eficientista.
Aprofunda, portanto, a lógica repressora e prioriza ainda mais a pena de prisão. Assim,
caso sejam adotadas e positivadas em leis, ter-se-á não menos violência e corrupção – tal
qual pregava a bandeira de campanha de Bolsonaro – mas, sim, um aumento
considerável da (já enorme) enorme população carcerária brasileira.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 10ªed. São Paulo: Saraiva, 2018.
696
PENA COMPARTILHADA: PERSPECTIVA EXTENSIONISTA ACERCA DAS VIOLAÇÕES
DE DIREITOS SOFRIDAS POR FAMILIARES DE PRESOS
1 INTRODUÇÃO
697
processo pelo qual experimentam o estigma e a violência apenas por sua vinculação com
uma pessoa presa é denominado de pena compartilhada.
As experiências junto ao cárcere, vivenciadas durante projeto de extensão
desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão em Subjetividade e Segurança
Pública (LAPSUS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), constituem importante
ferramenta para que se compreenda esse fenômeno. As extensionistas se fazem presentes
semanalmente nas filas dos presídios na região metropolitana da capital paraibana e
acompanham a dinâmica de sobrevivência nos relatos de familiares, seu
comprometimento e desgaste quando se comprometem a acompanhar o seu familiar
durante a prisão.
Este trabalho tem como objetivo analisar o fenômeno da pena compartilhada a
partir das principais violações aos direitos humanos impostas às famílias do cárcere, bem
como os possíveis impactos à sua subjetividade. Para tanto, utilizou-se da revisão
bibliográfica para as análises teóricas empreendidas e da experiência extensionista como
importante dispositivo de reflexão sobre a realidade.
699
A maior parte dos que integram as celas das prisões brasileiras são homens
(74,85%), enquanto as mulheres ocupam 6,97% da população prisional. Mesmo
ocorrendo tamanha disparidade no que se refere ao aprisionamento por distinção de
gênero, é fundamental compreender como as relações de gênero atravessam o cárcere.
Quando se refere especificamente às mulheres em situação de aprisionamento, os dados
do INFOPEN Mulheres (2018) reafirmam o que aponta o INFOPEN (2017), como pode ser
observado em alguns números: 45% delas não concluíram o Ensino Fundamental, 62%
são negras, 60% possuem entre 18 e 29 anos. Portanto, as mulheres presas são, em sua
maioria, jovens, negras e com o ensino Fundamental Incompleto.
Cabe destacar, no entanto, que entre os anos 2000 e 2016 houve um aumento
exponencial de 656% na taxa de encarceramento feminino, demonstrando que o Estado
brasileiro está cada vez mais sujeitando vidas à exclusão dentro do ambiente carcerário.
De acordo com Germano, Monteiro e Liberato (2018):
700
Entretanto, ser familiar de preso remete a situações bastante agravadas em nossa
sociedade. As violações de direitos exercidas pelo sistema prisional atingem não somente
os presos, mas também os seus familiares. A este fenômeno de extensão da pena atribui-
se o nome de “pena compartilhada”, que, de acordo com Tannuss, Silva Junior e Oliveira
(2018), trata-se de um suplício não previsto em lei, marcado pela vulnerabilidade e
invisibilização desse grupo social. Refere-se às dificuldades no acesso à justiça, aos
processos de revista e visita íntima, e também aos maus tratos cotidianos aos quais essas
mulheres encontram-se submetidas.
Na maior parte dos casos, os familiares são responsáveis por acompanhar o
processo do parente preso. Neste sentido, são elas que contatam advogados(as) ou
defensores(as) públicos e deslocam-se à repartições do Poder Judiciário, como os fóruns
criminais e as defensorias públicas. Entretanto, seja referente à assistência jurídica ou às
demandas de natureza diversa, é possível notar a grande dificuldade enfrentada por essas
mulheres no tocante ao acesso à justiça, expressão que de acordo com Cappelletti e Garth
(1988, p. 8)
701
ansiedade ou vergonha causados pelo processo. Conforme pontua Tannuss, Silva Junior e
Oliveira (2018),a prática da revista íntima vexatória pode ser considerada uma grave
violação aos direitos humanos, maculando a dignidade das pessoas revistadas e
produzindo uma elevada carga de sofrimento psíquico.
No processo de cumprimento de pena privativa de liberdade, a presença da família
é imprescindível, dentre outras coisas, porque simboliza o único vínculo afetivo com o
qual o indivíduo encarcerado tem contato. Nesta lógica, consiste em direito dos presos e
dos familiares a visita íntima, em que cônjuges e companheiros(as) podem ficar “à sós” e
desfrutar de um momento de privacidade. Entretanto, durante a visita íntima, assim como
nos demais momentos junto ao cárcere, as mulheres têm os seus direitos violados pelo
Estado, dada a longa espera durante a fila, o descaso e a submissão à revista íntima
vexatória, por exemplo.
Neste sentido, apontam Tannuss, Silva Junior e Oliveira (2018, p. 12):
703
convidado a falar sobre seus pontos de vista, ouvir posições diferentes e refletir sobre as
diversas possibilidades de se pensar sobre uma mesma problemática.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
704
REFERÊNCIAS
CAPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1988.
D’ANDREA, Isadora Grego; SILVA JUNIOR, Nelson Gomes De Sant’ana e.; TANNUSS,
Rebecka Wanderley. Famílias do cárcere: sistema prisional e violações aos direitos
humanos. In: IX Seminário Internacional de Direitos Humanos da UFPB, 2017, João
Pessoa. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/ncdh/wp-
content/uploads/2017/11/IX-SIDH_Anais-Eletr%C3%B4nicos_24_11_17.pdf>. Acesso
em: 29 set. 2019.
GERMANO, Idilva Maria Pires; MONTEIRO, Rebeca Áurea Ferreira Gomes; LIBERATO,
Mariana Tavares Cavalcanti. Criminologia Crítica, Feminismo e Interseccionalidade
na Abordagem do Aumento do Encarceramento Feminino. Psicol. cienc.
705
prof., Brasília , v. 38, n. spe2, p. 27-43, 2018 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932018000600027&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 28 set. 2019.
JUNQUEIRA, Hercília Rodrigues; SOUZA, Patrícia Dayane Marques de; LIMA, Vanessa
Aparecida Alves de. A percepção de familiares de ex-apenados sobre a experiência
do cárcere e do processo de inclusão social. In: Revista Mnemosine, Vol. 11, nº2, p.
74-99, 2015, Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41589/28858>. Acesso em: 12
out. 2019.
RANGEL, Flavio Medeiros; BICALHO, Pedro Paulo Gastalho de. Superlotação das prisões
brasileiras: Operador político da racionalidade contemporânea. Estud. psicol.
(Natal), Natal, v. 21, n. 4, p. 415-423, dez. 2016 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
294X2016000400415&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 out. 2019.
SANTOS, Nathalia Stefaniny Ferlizado dos; SILVA JUNIOR, Nelson Gomes De Sant’ana e.
O sistema prisional paraibano e suas dificuldades de acesso à justiça, saúde,
educação e trabalho. In: IV Seminário Latino-Americano de Direitos Humanos, 2013,
Fortaleza/CE. Anais, 2013.
706
A MARGINALIZAÇÃO DA PUNIÇÃO NO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
711
principalmente por meio do encarceramento (e às vezes da morte) está
vinculada a projetos de políticos, ao desejo de lucro das corporações e às
representações midiáticas do crime. O encarceramento está associado à
racialização daqueles que tem mais probabilidade de ser punidos. Está
associado a sua classe e, como vimos, a seu gênero, que também estrutura
o sistema penal (DAVIS, 2018, p. 121)
Assim como acontece no Brasil, a realidade vivenciada pelos demais países latino-
americanos é permeada por inúmeras peculiaridades que caracterizam o problema da
violência na região. Esse contexto é resultante de uma construção histórica, que tem na
evolução econômica e social um fator preponderante para o desenho da situação
apresentada por esses países, especialmente sobre a forma como ocorre o processo de
marginalização da América Latina.
Conforme a teoria sustentada por Zaffaroni (2001), a situação em que se encontra
a região é fruto de um de uma “atualização histórica comparativa” implementada pelos
países centrais por meio de um processo de marginalização sobre os demais países
periféricos. Esse contexto teve início com a primeira revolução tecnológica, a mercantil,
ocorrida no século XVI, quando os países europeus colonizaram os outros continentes.
Em seguida, com a revolução industrial, por meio do neocolonialismo, essa prática se
manteve, com outros métodos e formas. No final da década de oitenta, quando o
argentino publicou “Em busca das penas perdidas”, chamou atenção para uma nova
revolução que estava prestes a ocorrer, a tecnocientífica, na qual os Estados Unidos e
outros países desenvolvidos desempenhariam esse papel marginalizador.
Sob esse cenário, os sistemas penais latino-americanos desempenham uma
função crucial para que esse movimento obtenha sucesso. A marginalização, no âmbito
interno, ocorre pela adoção de um regime penal mais autoritário e inquisitivo, pautado na
seletividade e justificação de seus métodos, sob o viés de políticas criminais que visam a
segurança pública por meio de uma repressividade direta da violência. Isso faz com que
o discurso jurídico-penal seja fortalecido em um primeiro momento, especialmente ao
demonstrar ser um mero exemplo de reprodução de um modelo que deu certo em países
onde os índices de violência são menores, permitindo assim a concretização do processo
de atualização histórica comparativa, por meio da revolução técnocientífica:
Sem dúvida, esta visão corresponde a um projeto genocida, que corresponderia
ao projeto da terceira civilização planetária, da civilização gerada pela revolução
712
tecnocientífica, se a América Latina for surpreendida por esta revolução na forma
“atualização histórica incorporativa”, ou seja, se essa civilização fizer com que o poder
central nos incorpore a um projeto tecnocolonialista por ausência de capacidade política
para protagonizarmos uma atualização histórica. No caso de não desenvolvermos a
capacidade de “aceleração histórica”, cairíamos, inevitavelmente, neste projeto de
repúblicas “técnico-oligárquicas”, que representariam o equivalente tecnocolonialista
das repúblicas oligárquicas do neocolonialismo. (ZAFFARONI, 2001, p.122)
Partindo dessa previsão pessimista apontada por Zaffaroni naquele momento, é
possível identificar elementos que comprovam a sua teoria, especialmente no que diz
respeito a demonstração da realidade brasileira. A despeito de não só o Brasil, mas
também outros países da região terem vividos momentos de progressos econômicos e
um maior desenvolvimento social nas últimas duas décadas, ficou evidente que a
redução da pobreza local e os pequenos avanços sociais não foram suficientes para
reverter a projeção que foi feita. Não houve fôlego suficiente para alcançar a chamada
“aceleração histórica” e fugir da prática tecnocolonialista decorrente da última revolução
tecnológica. E as consequências parecem emergir mais recentemente, especialmente
com a escalada de regimes políticos mais conservadores e antidemocráticos em diversos
países latino-americanos.
Esse novo contexto que vem se desenhando regionalmente proporciona o
fortalecimento do discurso jurídico-penal, impedindo assim que sejam encontradas
respostas adequadas para o enfretamento da prática colonizadora dos países centrais, o
que abra ainda mais caminho para a marginalização das sociedade latino-americana. O
Estado passa a atuar de forma cada vez mais violenta, e uma prática genocida é cada vez
mais evidente, especialmente quando os dados são analisados por meio de um
referencial étnico ou racial. Forma-se uma classe denominada de indesejáveis, na qual
estão as camadas sociais mais miseráveis, representada em sua maioria por negros e
pobres.
Como um aspecto de novidade nas formas de penalização da pobreza
característica do capitalismo contemporâneo, os “indesejáveis”, os “párias” urbanos,
além de serem vítimas do desemprego em massa, do trabalho precário, do recuo das
políticas sociais e do aumento de medidas mais punitivas, foram submetidos à lógica
perversa do encarceramento privado, para desta maneira contribuírem com a
acumulação de capital. (KILDUFF, 2010, p. 245)
O discurso jurídico-penal vigente nos países latino-americanos, resultante do
processo de atualização histórica incorporativa promovido pelos países centrais,
aproveita da vulnerabilidade desses grupos de indivíduos e das estatísticas sociais,
muitas vezes forjadas pelo próprio discurso (a exemplo do elevado número de
homicídios, em que grande parte dos casos são oriundos da atuação estatal), para
acentuar seu autoritarismo por meio de medidas mais punitivistas. Foi o que aconteceu
nos Estados Unidos, na década de oitenta, com a política de Lei e Ordem (Law & Order),
que teve como seu principal expositor o programa de “Tolerância Zero” implantado pelo
prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani. No entanto, em um estudo mais aprofundado
sobre a questão criminológica americana, Loic Wacquant (2007) desconstrói a ideia
apresentada pelos referidos programas e expõe tais movimentos como interessados
apenas em estabelecer punições para as camadas mais pobres da sociedade
estadunidense, por meio da criação de uma percepção equivocada sobre segurança
pública, a fim de servir a outros interesses econômicos e sociais.
A estrutura punitiva estatal vigente nos Estados Unidos e descrita por Wacquant
se assemelha em muitos pontos aos ideais que têm sido difundidos nos últimos anos em
713
países como o Brasil. O recente “Projeto Anticrime” apresentado pelo recente governo
brasileiro, as novas alterações no estatuto do desarmamento e decisões judiciais que
violam leis e a própria Constituição, a exemplo do que fora decidido sobre a chamada
“prisão em segunda instância”, são demonstrações de uma política penal que segue os
mesmos mandamentos do ocorrido há cerca de três décadas atrás no estado americano.
Esse caminho adotado pelos modelos político-criminais adotados na América
latina revelam um processo de manutenção dos ideais colonialistas ao não romper com
as práticas impostas pelos países centrais e aceitas como única direção a seguir. Na ótica
de Aílton Krenak (2018), isso faz com que o pensamento central prevaleça sob qualquer
ideia surgida de “baixo para cima”, estabelecendo uma barreira na construção de um
saber local e mais apropriado e fazendo com que esses conceitos hegemônicos se
consolidem ainda mais.
Cinco séculos de extrativismo predatório contínuo em vastas regiões do Sul global
foram marcados pela construção de uma epistemologia hegemônica capaz de aniquilar
qualquer pensamento alternativo que colocasse em questão esse extrativismo gerador
de miséria humana. Com isso, agentes do saque também saem do meio dos saqueados. A
epistemologia do saque faz com que do meio das comunidades que são despojadas e
expropriadas também saiam sujeitos que tiveram origem nos lugares que foram
destruídos, de forma que estes sujeitos dessa violência sejam capazes de reproduzir a
violência, e integrar essas práticas como uma ferramenta de afirmação do projeto
extrativista colonial. A cultura garimpeira se constituiu num grande animador desse
projeto de saque ecológico pela mentalidade que alimenta, justifica e legitima localmente
esse processo de desterrar e desgarrar. A identidade do garimpo naturaliza na cabeça
das pessoas o desterro e a predação da paisagem em uma ecologia predatória. Os agentes
desse processo que saíram deste mesmo meio, são capazes de devolver uma justificativa
do que acontece e justificar que era preciso matar o rio ou assassinar a montanha como
uma lógica de desenvolvimento local. Esses agentes produzem uma tradução da
epistemologia hegemônica, para se fazer aceita a lógica colonial do capital. (KRENAK,
2018, p. 2)
A adoção de medidas importadas de realidades estrangeiras representa a
incorporação histórica apontada por Zaffaroni, inviabilizando assim um processo de
evolução independente e mais adequado as peculiaridades que envolvem os estados
periféricos. Além disso, nos Estados Unidos, essa política levou o sistema carcerário
americano a beira de um colapso, fazendo com que o país atingisse a marca de mais de
dois milhões de presos, tornando-o território com a maior população carcerária do
planeta. Estimular essa política no Brasil pode levar a consequências inimagináveis e
ainda mais graves do que aquelas suportadas pela sociedade americana.
Em um país onde morrem mais de sessenta e cinco mil pessoas por ano, segundo
o ATLAS DA VIOLÊNCIA 2019, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), o endurecimento da atuação punitiva por meio do Estado pode resultar em
consequências catastróficas. Isso porque, segundo o mesmo documento, em média dois
terços das pessoas mortas são pardas ou pretas e de baixa escolaridade, características
próprias das camadas menos favorecidas da população. Além disso, no ano de 2018,
foram apuradas 6.160 mortes cometidas por policiais, representando um aumento de
18% em relação ao ano de 20177.
Esses dados, ao serem confrontados com a informação de que, no Brasil, mais de
noventa por cento dos casos envolvendo homicídio não possuem solução, apontam para
uma falta de interesse do Estado em combater esse tipo de prática. Ou, em outro sentido,
pode representar um interesse estatal legítimo em perpetuar esse tipo de ação,
714
promovendo assim uma espécie de controle da pobreza por meio de uma política
pautada na morte de pessoas “indesejáveis” (necropolítica).
No entanto, é preciso destacar que o sistema penal não é autossuficiente. As
agências penais, os órgãos e instituições que o compõem não são dependentes uns dos
outros e operam cada um sob lógicas diferentes, apesar de servir ao interesse primário
de imposição de um poder configurador perante a sociedade local. Como prova disso,
basta apontar as diversas vezes que órgãos executivos como as polícias são colocadas
em contraposição a órgãos judiciais. Apesar ambos servirem a um mesmo propósito
estipulado pelo discurso jurídico- penal, suas ações independentes podem resultar em
conflitos institucionais graves. Isso faz com que, em alguns casos, um agente ou outro seja
apontado por esse discurso como parceiro ou como um obstáculo a concretização de seus
ideais.
Além de promover essa problemática social apontada até aqui, o Sistema Penal
viola direitos humanos não só dos criminalizados, mas dos próprios agentes que o
operam. Isso ocorre em razão das agências operarem independentemente uma das
outras. Para Zaffaroni (2001, p. 145) “o sistema penal é o maior obstáculo à paz social e,
fundamentalmente, a coalisão civil frente ao exercício arbitrário do poder”. É preciso se
livrar desses antagonismos para buscar uma resposta ao processo de colonização que se
desencadeia e que só será possível por meio da construção de vínculos comunitários
sólidos dentro da sociedade.
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? 1.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2018.
LOIC, Wacquant. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A
onda punitiva]. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
KILDUFF, Fernanda. O controle da pobreza operado através do sistema penal. Rev. Katál.
Florianópolis v. 13 n. 2 p. 240-249 jul./dez. 2010.
716
A ERA DAS REDES SOCIAIS E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA: O JORNALISMO
POLICIALESCO NO CASO “NEYMAR”
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
121 Na definição apresentada pelo Dicionário Michaelis Online: “palanque, tablado ou estrado alto, em local
aberto, usado para a execução de condenados”.
717
midiatica nos casos de jornalismo policial.
Assim, justica-se a utilização do metodo hipótetico-indutivo já que foi necessrario
uma atitude critica permanente para analise do fenomeno em estudo (GUIMARÃES,
2018).
Partindo-se da premissa de que as notícias de cunho criminal veiculadas de modo
sensacionalista pelos diversos meios midiáticos efervescem no debate público, buscou-se
investigar se teriam o condão de acarretar prejuízos às partes diretamente envolvidas no
ocorrido, além da criação de um arremedo de tribunal no âmbito das redes sociais em
detrimento do tribunal organizado e protegido pelo Estado e seu ordenamento jurídico.
No sentido de contribuir para um maior aprofundamento da temática optou-se por
estruturar o trabalho em três momentos, quais sejam: primeiro realizar uma análise sobre
o que se entende por liberdade de expressão; em seguida, realizar um apanhado a respeito
do direito ao devido processo legal e; por fim, ponderar sobre como esses direitos
figuraram em um caso concreto.
2 A LIBERDADE DE IMPRENSA
A Lei n.º 5.250 de 1967, que regulava a imprensa, foi revogada ao ser considerada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) n.º 130, por cercear a liberdade de expressão. Desta forma,
a imprensa e suas responsabilidades passam a ser reguladas tão somente pela
Constituição Federal, vez que, o Código Civil e o Código Penal não há mais lei específica
tratando do tema. Resta aos profissionais da imprensa obedecer aos princípios
constitucionais e se pautar no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros para desenvolver
a atividade jornalística.
A nação sofreu por décadas dificuldades no campo político, sobretudo com o
regime militar. Durante o período de repressão foi perpetrada uma ampla censura aos
meios de comunicação de massa em todos os aspectos de divulgação social, o que facilitou
uma restrição à liberdade de imprensa. A ocorrência destes fatos no passado é que dão
respaldo aos discursos daqueles que repudiam qualquer forma de reparo aos meios de
comunicação.
Atualmente, o país vive um momento de ampla liberdade a todas as formas de
mídia possíveis, a Constituição de 1988 rompe totalmente com a ordem que se estabelecia
anteriormente a sua promulgação, deixando, assim, de aplicar restrições severas à
atuação desta liberdade.
Consagrada na Constituição Federal, a liberdade de imprensa está contida na fusão
de alguns incisos do artigo 5°, são eles:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
[...]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
718
comunicação, independentemente de censura ou licença;
[...]
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo
da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 11º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar,
escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta
liberdade nos termos previstos na lei.
Esses limites garantem que a liberdade de imprensa atinja a sua função social, ou
seja, tragam à baila apenas a verdade conforme uma lógica de adequação, necessidade e
utilidade em divulgação de tal fato.
Há de se lembrar que estas restrições só podem ter cunho constitucional, não
havendo que se falar em controle por outros meios, pois estaria configurada a tão
combatida censura.
É assegurado o direito de resposta para a proteção da imagem social do indivíduo
proporcional ao agravo. Nesse aspecto, Silva (2007) aponta o direito de resposta como
uma faculdade da pessoa em ver divulgada uma contestação ou retificação de fatos
inverídicos anteriormente difundidos. Se negado este direito de desagravo, cabe ao lesado
buscar a tutela jurisdicional com o pedido de indenização por danos materiais, morais ou
a imagem. Inclusive este dano pode ser buscado cumulativamente conforme
entendimento da Súmula 37122 do Superior Tribunal de Justiça.
Tanto o direito à liberdade de expressão quanto o direito à intimidade estão
estabelecidos no artigo 5° da Lex Legum como direitos fundamentais possuindo a mesma
importância. Assim, não raras vezes há choque entre os referidos direitos quando são
divulgadas informações sem o devido respeito a veracidade dos fatos.
122 Súmula 37 do STJ: São cumulaveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo
fato.
720
3 O DEVIDO PROCESSO LEGAL: UM LIMITADOR DO “ABUSO” DO PODER PÚBLICO
De modo conciso, Uadi (2014, p. 685) apresenta o devido processo legal como “o
reservatório de princípios constitucionais, expressos e implícitos, que limitam a ação dos
Poderes Públicos”. Deste princípio irradiam diversos outros, a exemplo do duplo grau de
jurisdição, da razoabilidade, do juiz natural e do contraditório e ampla defesa.
Embora na atualidade seja quase automático associar o processo à obediência aos
ditames legais, especialmente quando se trata do debate a respeito do cometimento ou
não de uma conduta penalmente típica, esta nem sempre foi a realidade. O
desenvolvimento do que viria a ser chamado de devido processo legal levou tempo para
ser feito e tinha como norte a busca de garantia dos direitos dos súditos/cidadãos perante
o monarca/Estado.
A nomenclatura dada ao princípio em comento pode ser considerada
relativamente recente, contudo, o “espírito” do princípio em questão começou a ser
cunhado na Inglaterra no período de elaboração da Magna Carta de 1215, de modo a
instituir um meio mais eficaz de impedir que o monarca se valesse dos seus poderes para
abusar e restringir as liberdades dos seus súditos, especialmente aqueles que eram
proprietários de terras (UADI, 2014).
Com o passar das décadas, o desenvolvimento do direito e a construção do
entendimento do que seriam os direitos humanos puderam ser observados na feitura de
diversos tratados de abrangência internacional. Dentre esses tratados podem ser
mencionados os Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A respeito do devido processo a ser garantido pelos países signatários do PIDCP,
Giacomolli (2016) destaca que as regras visando assegurar o respeito às liberdades dos
indivíduos constam no referido Tratado e já passaram pelo processo de ratificação123
exigido pelas normas brasileiras, sendo, portanto, parte integrante do arcabouço jurídico-
normativo deste Estado desde o ano de 1991.
Importante se faz mencionar que o direito ao devido processo legal só passou a ser
expressamente garantido no Brasil a partir da promulgação da Constituição Federal de
1988, em seu art. 5º, LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”). Esta previsão constitucional se revela significativa na medida em
que seus mandamentos tornam-se de obrigatória obediência pelas normas que ocupam
posições inferiores no esquema da pirâmide de Kelsen. Neste sentido, Giacomolli (2016,
p. 99) defende que “a vinculação constitucional, seja pela leitura das regras preexistentes
a ela, seja pela reforma posterior, é uma necessidade condicionante do processo penal
contemporâneo, de um processo penal democrático, capaz de superar os vícios
autoritários”.
De modo coerente, o Supremo Tribunal Federal vem apresentando interpretações
mais amplas e completas do devido processo legal, abarcando assim a inviolabilidade à
vida, à privacidade, a legalidade, o direito de locomoção etc. (UADI, 2014). Este
entendimento pode ser facilmente assimilado pela leitura de algumas decisões proferidas
pela Corte, a exemplo das Súmulas 70 e 323 e dos Recursos Extraordinários n.º 374.981
123 Na lição de Piovesan (2013, p. 109), “a ratificação é um ato jurídico que irradia necessariamente efeitos
no plano internacional”. No caso brasileiro, conforme determinado nos arts. 84, VIII e 49, I, da CF/88, este
ato é de competência do Presidente da República, após a apreciação e aprovação do tratado pelo Congresso
Nacional
721
(Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 8-4-2005) e n.º 158.215 (Rel. Min Marco Aurélio, DJ de 7-
6-1996).
Assim como ocorre no direito norte-americano, no Brasil tem-se a garantia ao
devido processo legal abarcando tanto a igualdade formal (procedural due process of law)
quanto a substancial (substantive due process of law) (FIGUEIREDO, 1997). Esta visão é
compartilhada por Uadi (2014) que, inclusive, menciona que esta seria o equivalente ao
direito de acesso à Justiça e aquela teria como exemplo o controle dos atos
administrativos e a liberdade para contratar.
Em sua obra, Lopes Jr. (2018) faz importante ressalva ao defender que a exigência
de obediência ao princípios e direitos fundamentais não pode ser nunca confundida com
o desejo por impunidade:
Por fim, o processo não pode mais ser visto como um simples
instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que
desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a
ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias
fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu
isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se,
legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência
quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as
regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido
processo legal) (LOPES JR., 2018, p. 23).
124 Expressão utilizada para referir-se, normalmente de modo pejorativo, ao jornalismo direcionado à
cobertura de casos policiais.
722
não deixa de ser verdade, mas a informação sem análise das fontes nestas redes, também
cria um estado de euforia e excitação que pode levar a um “linchamento” público das
pessoas envolvidas na matéria.
Em casos como esse, a maçante insistência da mídia em fazer investigações por
conta própria em fatos criminosos e divulgá-los ao público sem um prévio filtro de
adequação e veracidade pode ocasionar um embate com o princípio do devido processo
legal. Nas palavras de Araújo, Guimarães e Aragão (2018, p. 60):
Assim, para que de fato ocorresse a proteção dos envolvidos faz-se necessária a
proteção dos dados desde o inquérito policial. Entretanto, não foi isso o que ocorreu no
caso em análise.
Como relatado anteriormente, desde o primeiro dia após o registro do Boletim de
Ocorrência houve uma enxurrada de notícias em todos os meios de comunicação.
723
As primeiras notícias davam conta de um estupro ocorrido em um quarto de hotel,
informavam data, local e forma do suposto crime. Os dados chegavam a ser atualizados de
hora em hora até mesmo nas redes sociais, nas emissoras de televisão (sobretudo, nos
programas ditos, “sensacionalistas”) e no rádio.
O crime de estupro por si só desperta nas pessoas um grande sentimento de
repúdio e ojeriza, e no caso do jogador havia o elemento publicidade inflamando a opinião
pública em face das duas partes.
Em virtude de matérias sensacionalistas de jornalismo policialesco os usuários das
redes sociais, como Twitter e Instagram, realizaram um verdadeiro linchamento público
ora em face da vítima ora em face do agente do crime, a depender de quais novas
informações eram prestadas pela mídia.
Em que pese toda a responsabilidade atinente aos crimes sexuais, sobremaneira a
cultura machista existente na sociedade brasileira, cabe a ponderação sobre os princípios
constitucionais analisados até agora.
De certo que não é possível retornar a era da repressão, período em que são
retirados da imprensa, os seus direitos e até mesmo deveres de informar. Contudo, este
princípio não é absoluto e ao ser confrontado com princípios como o do devido processo
legal, pode ter a sua aplicação mitigada, sobretudo, nos casos em que levam o indivíduo a
um prejuízo irreparável.
Após as notícias sobre o caso de Najila e Neymar, houve um levante dos internautas
em face do investigado, acusando-o e julgando-o como culpado mesmo estando o
procedimento em fase inicial de inquérito policial, baseando-se tão somente nas matérias
sensacionalistas que eram lançadas a cada momento pelos veículos de massa. O caso de
fato fora transformado em um reality show sem precedentes.
A partir daí se instaurou um verdadeiro tribunal nos qual os julgadores eram os
internautas e a investigação era feita pela mídia. Todas as formas de insultos foram
perpetradas neste período de investigações da polícia civil de São Paulo, até o
arquivamento do caso.
Tal espetacularização da imagem dos envolvidos, levou a queda na popularidade
do jogador e custou-lhe um contrato milionário suspenso com a empresa Mastercard,
segundo o site UOL Notícias125. Mesmo que posteriormente fosse comprovada a autoria
do crime, ainda assim não seria cabível tal afronta à imagem que é um aos direitos básicos
do jogador.
Na outra ponta do caso, segundo João Batista Jr (2019), na matéria “O segredo de
Najila Trindade”, publicada pela Revista Veja, a suposta vítima teve toda a sua vida
devassada pela mídia com informações sobre seus relacionamentos anteriores, trabalhos,
dívidas prescritas e até mesmo a sua alimentação. Desta maneira, coube, doravante, à
vítima apresentar cada vez mais provas de suas alegações, o que em princípio contraria a
própria forma de apuração de crimes sexuais, numa verdadeira inversão do inquérito
policial. Caso se comprovasse a ocorrência do crime, quais danos psicológicos teriam sido
impostos à vítima destes abusos, primeiro sexual e depois a violação aos seus direitos à
intimidade e à vida privada, apenas para que fosse permitida a vazão da necessidade dos
meios de comunicação de se apresentarem como os primeiros a divulgar tais matérias,
125 Mastercard suspende contrato com Neymar após polêmica com Najila. UOL Notícias. Brasilia, São Paulo
e Rio de Janeiro, 06 de julh. de 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/de-
primeira/2019/06/06/mastercard-suspende-campanha-com-neymar-apos-polemica-com-najila.htm.
Acesso em: 24 set. 2019.
724
sem muitas vezes tomarem a precaução de checar a veracidade das informações
propagadas.
O que se retira da situação em exame é que apesar de não ter chegado a seara
judicial, já que o procedimento foi arquivado, as pessoas em comento foram julgadas,
processadas e condenadas por pessoas estranhas ao Judiciário. Gerou-se, portanto, um
dano.
Os dois envolvidos, na condição de cidadãos, são detentores de direitos básicos,
dentre eles o direito a ter um processo legal adequado ao longo do qual poderão
responder apropriadamente aos fatos típicos que porventura lhe sejam imputados.
Este caso mostra-se emblemático, pois sugere uma temerosa colocação do devido
processo legal em segundo plano, para dar espaço a uma disputa de narrativas perante à
opinião pública. Diante do vazamento da informação constante no boletim de ocorrência,
o investigado utilizou-se de suas redes sociais para narrar sua versão dos fatos expondo
conversas trocadas através de aplicativos de celular, bem como expondo fotos íntimas da
suposta vítima, possivelmente incidindo na conduta típica do art. 218-C do Código Penal.
À vista disso é possível verificar que a pressão social exercida em torno da mídia e
da opinião pública cria nos indivíduos uma espécie de “espírito” que antes mesmo de eles
atenderem ao princípio do devido processo legal e se defenderem perante os órgãos
cabíveis, recorriam, em primeira instância anunciavam as suas provas à mídia e ao
público. Ou seja, no ímpeto de se defender moral e socialmente, as partes apresentaram
seus argumentos, preferencialmente, nas redes sociais, deixando em segundo plano o
meio adequado de defesa. Tudo isso em consequência do aviltamento público iniciado
pelas matérias policialescas.
O caso utilizado como exemplo neste trabalho, lamentavelmente, é apenas mais um
dentre tantos outros observados ao longo das últimas décadas, tanto em países
considerados desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Dos Estados Unidos da
América, por exemplo, é possível mencionar casos emblemáticos como o envolvendo o ex-
atleta O.J. Simpson, então acusado de ter assassinado sua ex-esposa e um jovem rapaz. O
feito foi incessantemente explorado pelos veículos de imprensa e tornou-se assunto entre
os cidadãos norte-americanos, durante um longo período.
Percebe-se, portanto, que a propagação leviana pela mídia e redes sociais de
informações relacionadas a casos a serem apreciados pelo judiciário acarreta verdadeira
ofensa à princípios e direitos fundamentais do ser humano, a exemplo da presunção de
inocência e do devido processo legal. Estes devem ser preservados a fim de assegurar o
respeito aos direitos do acusado, da vítima e de proteger a imagem da própria justiça
(ARAÚJO; GUIMARÃES; ARAGÃO, 2018).
Não se está olvidando de que as características peculiares ao procedimento do júri
não devem ser consideradas, mas não se pode negar que o processo e a sua percepção
pelos envolvidos sofreu considerável influência dos embates de narrativas travados fora
do processo legal, nomeadamente através de recursos midiáticos.
O papel do jornalismo policialesco na sociedade não é – ou não deveria ser – tornar
essa em uma julgadora precoce baseando-se em discursos de ódio que podem causar
sérios danos a outras pessoas e sim levar até a população a informação como forma de
refletir sobre os fatos típicos identificados e a forma de aperfeiçoar as leis e assim
melhorar a relação na comunidade.
725
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
726
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Douglas da Silva; GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar; ARAGÃO, Jônica Marques
Coura. O poder de persuasão da mídia frente aos princípios e garantias do agente
delituoso. Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos. Natal, vol. 10, n. 2, pp.
45-63, jul. 2018. Disponível em:
https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/issue/view/776>. Acesso
em 27 out. 2019.
BATISTA, João Junior. O segredo de Najila Trindade. Veja, Brasil, 19 de junh. de 2019.
Disponivel em: https://veja.abril.com.br/blog/veja-gente/o-segredo-de-najila-
trindade/. Acesso em: 24 set. 2019.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
CUNHA. Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 10 ed. rev., ampl. e
atual. Salvador: JusPodivm, 2018.
727
LAZARSFELD, Paul F. MERTON, Robert K. Comunicação de massa, gusto popular e a
organização da ação social. In LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo:
Paz e terra, 2005.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018
Mastercard suspende contrato com Neymar após polêmica com Najila. UOL Notícias.
Brasilia, São Paulo e Rio de Janeiro, 06 de julh. de 2019. Disponível em:
https://www.uol.com.br/esporte/futebol/de-primeira/2019/06/06/mastercard-
suspende-campanha-com-neymar-apos-polemica-com-najila.htm. Acesso em: 24 set.
2019.
NUCCI. Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Forense, 2014.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28 ed. São Paulo:
Malheiro, 2007a.
728
CÁRCERE E DIREITOS HUMANOS: O (IN)ACESSO DE PRESOS E SEUS FAMILIARES À
JUSTIÇA
1 INTRODUÇÃO
2 DISCUSSÃO
Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência
enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo,
toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias
mínimas:
732
Outro dos obstáculos, além da linguagem e simbolismo, é o alto custo processual,
considerado como um dos maiores problemas de acesso aos tribunais (NASCIMENTO,
2010). Visando atenuar esse problema, o Estado brasileiro oferta aos hipossuficientes, na
forma da lei, a justiça gratuita, operando por meio dos serviços da Defensoria Pública, em
âmbito da justiça estadual e federal.
Segundo o art. 134, caput da Constituição da República,
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cenário do sistema prisional é caótico, seja pela superlotação, seja pela precária
infraestrutura, ou pelas diversas violações aos direitos humanos que atingem aos presos
e seus familiares que vivenciam conjuntamente esse ambiente insalubre, o qual reflete de
forma ainda mais sinistra toda a desigualdade e precariedade do sistema socioeconômico
capitalista brasileiro.
Como se já não bastasse toda esta problemática, os detentos e suas famílias ainda
encontram inúmeros obstáculos para acessar à justiça de forma digna e integral,
demonstrando o abismo existente entre o que as leis abstratamente preconizam e o que
faticamente se implementa. O descaso do judiciário com as famílias das classes mais
pobres, serve como indicativo de que os tribunais e toda estrutura judiciária não foram
feitos para serem acessados por determinadas classes, senão para colocarem tais
personagens no banco dos réus, mostrando que a prisão e o Direito Penal têm funcionado
como uma forma de gerir a miséria e controlar a ameaça dos miseráveis ao patrimônio
das elites econômicas.
As familiares dos presos ocupam um lugar de destaque em meio a estes processos,
já que representam um elo do preso com o meio social e afetivo, além de oferecer a maior
735
parte do apoio material e principalmente, quem lida diretamente com as instituições
essenciais ao sistema de justiça, cobrando providências e da sua maneira, acompanham o
processo dos detentos. Deveriam ser tratadas como parceiras e colaboradoras do preso,
como um elo que mantém possível sua resistência aos horrores do cárcere e a sua
reintegração à sociedade, mas contrariando o Princípio da Individualização da Pena, são
enxergadas também como indivíduos potencialmente perigosos, pelo fato de se
relacionarem com os presos, sendo afetadas direta e indiretamente pelas violações e
agressões dos mais diversos agentes que integram a administração penitenciária e o
sistema de justiça penal.
Desta forma, diante de todo o exposto, entendemos o papel que o Estado e o Poder
Judiciário ocupam enquanto instituições que protegem e favorecem os interesses das
classes dominantes, às quais estão estruturalmente ligados, em detrimento das camadas
mais pobres da população que dificilmente conseguem reclamar seus direitos por meio
da justiça formal.
O Estado, tem o dever de implementar os direitos e garantias sociais, visando
reduzir as desigualdades estruturais e a concentração de renda, porém o faz de forma
deficiente, sucateando a maior parte dos serviços públicos e políticas públicas nos mais
variados campos de interesse político, o que produz um conjunto de desigualdades
cumulativas. O judiciário, por sua vez, reforça o distanciamento dos menos favorecidos ao
acesso à justiça, uma vez que em seu meio abunda o formalismo excessivo, a linguagem
hermética dos operadores do Direito, vestimentas peculiares, ou seja, impõe um filtro pelo
qual os grupos de indivíduos hipossuficientes dificilmente atravessam, uma vez que estão
submetidos aos problemas estruturais advindos do descaso do Estado na produção de
políticas inclusivas e efetivas e à concentração de renda na mão de poucos indivíduos
(SADEK, 2014).
A precarização de tal acesso (à justiça), portanto, não é algo a nos surpreender se
levarmos em conta a lógica excludente e segregacionista do modelo socioeconômico na
qual vivemos e de como funciona o aparato judiciário do Estado, escolhido pelo legislador
como o único meio legitimo de pacificar conflitos de interesse entre os cidadãos, ou entre
estes e o próprio Estado, quando este deixa de ofertar os direitos mais elementares, como
saúde, educação, vida e direito à liberdade, essenciais à dignidade da pessoa humana.
Chega a ser um paradoxo perceber que quem mais necessita acessar às
prerrogativas de justiça no sistema legal, sejam os que mais possuem dificuldade em
conseguir demandar e reivindicar seus direitos e garantias. A obstacularização de tal
direito, portanto, agrava de forma significativa a desigualdade estrutural da sociedade e
do sistema penal e penitenciário brasileiro, haja visto que o acesso à justiça, como direito
humano fundamental, é a ponte para a efetivação de todos os outros direitos
fundamentais, incluso aqui o direito à liberdade e o direito a um tratamento humano
digno por parte dos agentes de segurança pública do Estado, frente ao trato com os presos
e as familiares que os visitam.
REFERÊNCIAS
736
_______CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Levantamento dos Presos Provisórios do
País e Plano de Ação dos Tribunais. 2019. 61p. Brasília, DF. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wp-
ontent/uploads/2017/02/b5718a7e7d6f2edee274f93861747304.pdf. Acessado em: 12
de outubro de 2019
_______Lei nº 7.210. (1984). Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência
da República.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. San José, Costa Rica, 22 nov.
1969.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1967.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
737
MASSULA, Letícia. A violência e o acesso das mulheres à justiça: o caminho das
pedras ou as pedras do (no) caminho. In: C, Diniz, L. da Silveira, L. Mirim, vinte e cinco
anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher: alcances e limites. São Paulo:
Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, pp.140-166, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal - Parte Geral e Parte Especial.
3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SADEK, Maria. Tereza A. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP,
n. 101, p. 55-66, 30 maio 2014.
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001.
738
FOUCAULT, DOSTOIEVSKI E SISTEMA PRISIONAL: A FALÁCIA DA
RESSOCIALIZAÇÃO.
1 INTRODUÇÃO
O clássico “Vigiar e Punir”, escrito por Michel Foucault e publicado em 1975, foi um
dos marcos de sua época, mudando a forma de pensar a prisão como instituto humanitário
740
e ressocializador, junto de outras publicações da época como “Criminologia Crítica e
Crítica ao Direito Penal” de Alessandro Baratta, também da década de 1970. O livro é
dividido em quatro partes e nos manteremos fiéis a última, “Quarta Parte: PRISÃO”, para
analisarmos a obra do século anterior, “Recordações da Casa dos Mortos” de Fiódor
Dostoiévski.
Devemos começar observando os pontos em comum das obras, o que Dostoiévski
já falava mais de 100 anos antes da publicação da obra de Foucault? Como visto na parte
anterior, o russo em sua obra já aponta a realização de trabalhos forçados “improdutíveis
e inúteis”, diminuindo assim o caráter humanizado que a prisão teria. Foucault disserta
um pouco sobre isso, mostrando que o objetivo não é realizar uma atividade de produção
útil, mas sim sujeitar os corpos a “movimentos regulares, excluir a agitação e distração,
impondo uma vigilância e uma hierarquia que serão mais bem aceitas e penetrarão mais
fundo no condenado”127. Essa também seria uma forma de domesticar os corpos,
tornando-os dóceis, de acordo com o próprio filósofo. Além disso, Foucault mostra como
eles são desumanizados, não sendo vistos como um ser humano que cometeu erros, mas
um “delinquente como sujeito patologizado”128. Isso é bem exemplificado por Dostoiévski
em todos os momentos que o autor narra sobre o hospital, onde os encarcerados ficam
algemados até sua morte e no emblemático “esse também tinha mãe!”.
Outro ponto seria a ideia “igualitária”, mostrado por Dostoiévski ao mostrar que o
protagonista do seu livro era um ex-fidalgo, contudo preso com os demais, sendo eles civis
normais, militares e outros nobres. Esse aspecto também é mostrado pelo francês logo no
início da quarta parte de sua obra129, afirmando que é o resultado dessa noção de
“progresso de ideias e educação do costumes”. Contudo, ambos os autores mostram que
essa igualdade é apenas uma ilusão, sendo a prisão uma instituição de manutenção das
desigualdades sociais advindas de fora, bem exemplificado em Recordações quando o
autor narra sobre as moedas de troca, sendo aqueles com maior poderia econômico os
que também possuem maior poder dentro da prisão.
Já um ponto em que as obras se distanciam, é quanto ao caráter de isolamento do
preso. Enquanto Foucault afirma que um dos princípios da prisão seria o isolamento, para
impedir a formação de uma população homogênea e solidária, chegando a citar:
[...] o isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles,
com o máximo de intensidade, um poder que não será abalado por
nenhuma outra influência; a solidão é a condição primeira da submissão
total [...] O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder
que se exerce sobre ele. (Foucault, 1975)130.
Tal ideia não se faz presente na obra de Dostoiévski, na qual o protagonista reitera
repetidamente ao longo do livro o quanto sente falta de ficar sozinho, estando sempre em
coletivo, acompanhado por outros prisioneiros, ao longo dos 10 anos em que esteve preso,
se assemelhando mais com a superlotação do sistema carcerário brasileiro, do que os
sistemas prisionais de Auburn e da Filadélfia, citados por Foucault.
Tais sistemas carcerários apostam no isolamento do preso com o objetivo de levá-
lo a “reflexão, provocando sua consciência e despertando em si um sentimento moral”. No
sistema de Auburn, os únicos momentos de convivência em comum são no trabalho e nas
741
refeições, as quais o preso está sob regra do silêncio absoluto, então, à noite, é levado a
sua cela individual. O único momento em que o preso pode falar – e baixo – é com a
permissão dos guardas e voltado para os mesmos. Já no sistema de Filadélfia, o
encarcerado fica sob regime de isolamento absoluto.131
Entretanto, não é porque nas prisões na Sibéria vigorava o sistema de coabitação
e convivência entre os presos que eles formavam uma população homogênea e solidária
ou que o poder exercido sobre eles era menor. O autor russo mostra que outras formas de
dominação eram criadas, sendo estimulado disputas e conflitos entre os presos, também
eram realizadas humilhações constantes e uma obrigação tão grande para trabalhar que
eles não tinham como interagir devidamente uns com os outros, tanto é que a forma de
diversão entre eles era por troca de insultos e palavrões. Além disso, o autor também
afirma que o ambiente prisional ia criando similaridades nas personalidades dos presos,
não sendo esses traços positivos, pelo contrário, eram traços relacionados a inveja,
presunção, formalismo, dentre outros que aumentavam ainda mais os conflitos dentro da
prisão e distanciavam os presos uns dos outros.
Após mostrar dados das prisões francesas da época, Foucault afirma que a
detenção produz a reincidência e a delinquência, não só diretamente, mas também de
forma indireta, como nas famílias dos condenados. Então, se há dados que comprovam o
Por isso, nota-se que a prisão está diretamente relacionada a dominação dos
corpos e até das mentes. Voltando a inserir Dostoiévski na conversa, pode-se retirar
capítulos inteiros de sua obra aqui discutida que discutem os efeitos psicológicos da
prisão no protagonista e nos outros personagens, mostrando o adestramento e
subjugação de suas mentes, enquanto o trabalho forçado inútil faz o mesmo trabalho com
o corpo, deixando-o totalmente suscetível a hierarquia e disciplina desejada pela justiça
penal.
Ademais, Foucault aponta quais são esses corpos que precisam ser domesticados
e subjugados:“[...] o crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões
introduziram no coração de todos os homens, mas é coisa quase exclusiva de uma certa
classe social”. (Foucault, 1975)135.
Essa classe social é a inferior, a menos abastada, a base. A distribuição dos crimes
presentes na citação anterior deixa de lado a classe dominante, enquanto domina e torna
dócil os das classes mais baixas, os prisioneiros. Apesar do protagonista da obra de
Dostoiévski ser um ex-fidalgo e conter, no livro, outros personagens nobres e militares, a
maioria dos prisioneiros eram pobres, que pediam esmolas, inclusive um dos
personagens, Suchilov, aceitava ser servo por poucas moedas, dentro da prisão. Sendo
assim, a prisão não visa a ressocialização, mas a punição, dominação e produção da
delinquência.
743
populações carcerárias do mundo. Ou seja, a sociedade, ao apresentar sede de justiça, tem
a impressão de que pouco se prende no Brasil, mas os dados mostram justamente o
contrário.
Diante disso, percebe-se que a prisão como ambiente de ressocialização falha
miseravelmente. Como resultado, os índices de violência não conseguem ser reduzidos,
pois muitos voltam a reincidir no crime, gerando consequências péssimas para a
população. De acordo com o Atlas da Violência, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), segundo os dados do Sistema de Informações sobre
Mortalidade, do Ministério da saúde, o Brasil atingiu em 2017 o maior nível histórico de
letalidade violenta com intenção. Houve 65.602 homicídios, o que equivale a
aproximadamente 31,6 mortes para cada mil habitantes.
Com a superlotação das prisões, é mais difícil a atuação dos agentes penitenciários,
o que gera a falta de segurança no interior das celas, isso permite a ação do crime
organizado, que impõe suas leis e atua no controle. Segundo o estudo Sistema Prisional
em Números, a população carcerária atingiu 166%, sendo 729.949 presos para 437.912
vagas. O Dr. Drauzio Varella explica os impactos econômicos desse cenário:
Levantamento produzido pelo jornal ‘Folha de São Paulo’ com base nos censos
realizados nas 150 penitenciárias e nas 171 cadeias públicas e delegacias de polícia,
mostra que o estado de São Paulo precisaria construir imediatamente mais 93
penitenciárias apenas para reduzir a superlotação atual e retirar os presos detidos em
delegacias e cadeias impróprias para funcionar como presídios. (Drauzio Varella, Cadeias
e Demagogia, 2019).
De fato, para que haja construção de novas cadeias é necessário que haja métodos
de arrecadar financeira tal. Contudo, mesmo diante dessa possibilidade, é preciso ainda
considerar aperfeiçoamento policial e os demais gastos necessários as cadeias, como luz,
assistência médica, e funcionários públicos. Portanto, analisando essa situação, percebe-
se a impossibilidade de manter o ritmo de prisões como está, sendo esta mais uma
consequência negativa do aumento do número de presos no Brasil. Independente disso,
não podemos considerar a construção de mais prisões como solução, precisamos
justamente do contrário disso.
Frente a esta crise do sistema prisional brasileiro, umas das alternativas é reduzir
população carcerária. Para isso, considera-se os programas de remissão de pena, entre
eles o do trabalho. Sob esse viés, o artigo 6º da Constituição Federal dispõe:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Diante disso, percebemos o trabalho tido como um direito social. Dessa forma, este
quando direcionado ao cidadão comum será regido pela CLT, todavia, quando se fala
sobre trabalho no sistema prisional, a LEP é a responsável pela sua regulamentação. A LEP
permite, entre as suas medidas, a redução da pena em um dia para cada três dias de
trabalho realizado. Tal dispositivo desperta grande interesse por parte dos presos em
praticar atividades laborais, tendo em vista o benefício que lhe é ofertado. Ademais, a LEP
também garante o direito a remuneração não inferior a três quartos do salário mínimo,
além de apresentar jornadas diárias entre seis a oito horas. Outro ponto é que esse meio
de remissão só é permitido para aqueles que estão dentro do regime fechado ou do regime
semiaberto.
Apesar de ter como objetivo a preparação destes detentos para o retorno ao
convívio social, de diminuir a taxa de reincidência e permitir a entrada deles no mercado
de trabalho; o trabalho dos presos não é uma realidade em muitas unidades prisionais. De
744
acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 16% dos
detentos tem acesso ao trabalho, um número bem abaixo do esperado. Logo, a ineficácia
do trabalho como elemento de devolução do detento à sociedade é percebida seja quando
este é forçado, seja quando há vontade dos presos em cumpri-lo, uma vez que não há
aplicação desta medida na realidade.
Isso ocorre por conta do desinteresse das empresas em contratá-los ou em instalar
oficinas dentro das penitenciárias, sendo possível perceber isso através da fala de Dráuzio
Varella, em seu artigo Cadeias e Demagogia, publicado em fevereiro de 2019:
Desde o antigo Carandiru, ouço diretores de presídios reclamar da falta de
empresas dispostas a instalar oficinas nas dependências das cadeias, a despeito das
vantagens financeiras e tributárias que o governo oferece. (Drauzio Varella, 2019).
De acordo com o G1 e o seu programa de análises de violência, o Monitor da
Violência, que é resultado de uma parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV)
com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apenas 18,9% dos presos trabalham.
Dentre os estados observados o Ceará é o que apresenta o menor percentual, com 1,4%;
seguido do Rio de Janeiro, com 1,7%. Já o estado de Sergipe é o que possui maior número
de detentos que exercem atividade laboral com 37,2%.
Para entender o que ocorreu em Sergipe, o secretário de Justiça e Cidadania,
Cristiano Barreto afirma:
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Código Penal (1940) – Brasília: Planalto. Subchefia para Assuntos Jurídicos,
2019.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Recordações da casa dos mortos, 1° Edição. São Paulo, 2006.
748
RACISMO, SELETIVIDADE PENAL E GENOCÍDIO NEGRO NO BRASIL
1 INTRODUÇÃO
O Brasil é um dos países que mais prende no mundo: ocupa a 3º posição no ranking
mundial.136 Nesse sentido, percebendo o crescimento da população encarcerada nas
últimas décadas e relevância de se estudar os fatores sociopolíticos que podem explicar o
crescimento no número de encarcerados, o presente trabalho foi construído visando
analisar os fatores que influenciam a dinâmica do sistema penal.
De maneira geral, este artigo lança a hipótese de que a prática do racismo é uma
mazela socialmente incorporada pelas instituições brasileiras e – em especial – pelo
Judiciário, fenômeno responsável por mascarar o controle social que o Estado opera
contra grupos em condição de vulnerabilidade. Este controle é materializado a partir da
desigualdade, da discriminação racial, da seletividade penal, da rotina de vigilância
ostensiva, do encarceramento exacerbado e das mortes causadas por agentes do Estado.
O objetivo é, portanto, analisar a partir da Criminologia Crítica a relação entre
racismo, seletividade penal e genocídio negro, entendendo que as instituições estatais
incorporam práticas discriminatórias e racistas, o que leva a seleção de indivíduos.
Ademais, procurou-se compreender o racismo enquanto prática interligada a negação de
direitos, além de entender o fenômeno da demonização social, que cria exclusão e o “perfil
inimigo” de grupos marginalizados.
Desta forma, a metodologia desenvolvida é a bibliográfica e documental, a partir
de uma análise que tem como base pesquisadores como Sueli Carneiro, Sérgio Adorno e
Juarez Cirino Santos. Além disso, conta com a análise de documentos e dados a saber
INFOPEN, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Atlas da Violência, etc.
Assim posto, o racismo é uma prática que viola direitos fundamentais, em especial
o direito a igualdade. O Poder Judiciário, ao promover distinção entre grupos, dificulta o
acesso à justiça e ratifica o funcionamento de um sistema desigual, opressor e excludente.
Além disso, ao estigmatizar e selecionar alvos puníveis, que via de regra são jovens, negros
e da periferia, o sistema legitima práticas racistas e classistas, segrega parte da população
e reafirma o funcionamento de um Estado genocida, que extermina a população negra.
2 RACISMO
136 Notícia do jornal O Globo, publicado em 08 de dezembro de 2017. Acesso: 20 de Agosto de 2019
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/brasil-o-terceiro-pais-com-mais-presos-no-mundo-diz-
levantamento-22166270
137 Disponível em:
749
Desse modo, entende-se por racismo o conjunto de ideias e práticas
discriminatórias que tem por objetivo afirmar a superioridade racial de um grupo frente
a outro. Assim, pode-se compreender que a raça é vista não como um conceito puramente
biológico, mas como uma construção social que busca impor a superioridade de certo
grupo.
Conforme Sueli Carneiro, as condutas racistas caracterizam-se pela concepção de
que certos grupos humanos são mais ou menos humanos que outros. Essa concepção,
pois, naturaliza a desigualdade de direitos, consolidando a ideia de que certos humanos
são portadores de humanidade incompleta, tornando-se natural que não participem do
pleno gozo dos direitos. Assim, as desvantagens vivenciadas por grupos raciais
discriminados da sociedade sustentam os privilégios dos grupos raciais dominantes e
explicam as desigualdades de que padecem os grupos dominados.
Desse modo, o racismo é uma forma de discriminação que tem por critério a raça,
manifestando-se a partir de práticas que culminam em desvantagens ou privilégios a
depender do grupo ao qual pertença o indivíduo. As engrenagens do sistema social
“normalizam” o funcionamento e a disseminação de práticas racistas, reproduzindo e
perpetuando a discriminação e a desigualdade.
Nesse sentido, o racismo é uma prática institucional e culturalmente incorporada
que se manifesta através de condutas discriminatórias cotidianas. A estrutura social é
racista pois em todos os espaços têm-se indivíduos negros em condição de subalternidade
e, consequentemente, afetando a capacidade da população negra em ter acesso à justiça e
aos diversos benefícios gerados pelo Estado e pelas demais organizações e instituições.
Dessa forma, compreende-se que o racismo promove a exclusão e a desigualdade
entre indivíduos, dificultando o acesso a direitos a certos grupos em decorrência da
raça/etnia. Visto assim, defende-se neste trabalho que a exclusão social destrói a
imparcialidade da lei, visto que a desigualdade tem efeitos na atuação das instituições
brasileiras, no sentido que protege os poderosos e criminaliza os marginalizados. De
acordo com Oscar Vilhena (2007), a exclusão causa a invisibilidade daqueles que são
submetidos à marginalização e a imunidade dos privilegiados, afetando a imparcialidade
da lei.
Assim, procurou-se evidenciar e entender como o racismo se manifesta dentro das
instituições sociais, com ênfase no Judiciário, levando em consideração que essas práticas
discriminatórias corroboram para a perpetuação da seletividade penal e, a partir de um
processo de demonização social, para o genocídio da população negra.
3 SELETIVIDADE PENAL
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/discriraci.htm
750
Conforme Sérgio Adorno (1995), a cor configura-se como um poderoso
instrumento de discriminação no acesso à justiça na sociedade brasileira. As sanções
punitivas, a maior severidade na aplicação das penas e a intimidação policial recaem de
maneira mais forte sobre uma parcela especifica da população: jovens, pobres e negros.
Os cidadãos negros aparecem no imaginário coletivo como potencialmente
criminoso e a construção social desse “perfil” é suficiente para criminalizar indivíduos
negros. No entanto, nenhum estudo comprova que pessoas negras possuem maior
inclinação para cometer delitos. Todavia, ainda segundo Adorno, estudos americanos
realizados a partir de 1920 demonstram que preconceitos sociais e culturais, em especial
o racismo, comprometem a neutralidade dos julgamentos e das aplicações das penas:
Um dos estudos demonstraram a preferência seletiva das sanções penais para
negros, comparativamente a brancos. Segundo ele, as taxas desproporcionalmente
elevadas de encarceramento de negros em relação à dos brancos (13 contra 1) não deviam
conduzir à conclusão de que aqueles cometem mais crimes do que os demais grupos
étnicos. A superpenalização dos negros resultava de um processo mais complexo que
tinha início na polícia, cujas estratégias de vigilância ao privilegiar comportamentos dos
cidadãos negros, redundam em taxas de encarceramento muito superiores aos demais
grupos, circunstancia que influía decisivamente na distribuição de sentenças
condenatórias. (ADORNO, 1994)
Constrói-se socialmente a figura do criminoso, aquele que coloca em risco a ordem
social, coincidente com o perfil do homem negro e da periferia. Assim, o discurso que se
adota é o de combate ao inimigo, ao alvo que o Estado deve destruir. A criminalização e o
encarceramento funcionam como destino daqueles que são considerados “naturalmente
perigosos”, cuja solução é reforçar a repressão e a violência. Nesse contexto, a supressão
de direitos é uma forma de destruir e combater o inimigo que a sociedade criou.
O Judiciário enquanto instituição incorpora e dissemina diversos preconceitos que
recaem sobre a população negra, suspeita de ser perigosa e violenta, e os refletem nas
sanções penais:
752
No Brasil, indivíduos negros são os maiores alvos da ação policial e também os
que mais vão presos. Segundo dados do Atlas da Violência 2019, 65.602 pessoas foram
assassinadas no Brasil no ano de 2017. Destas, 75,5% eram negras. Além disso, segundo
dados do INFOPEN (2016), 64% da população encarcerada é composta por pessoas
negras. Entretanto, esses dados não demonstram que a população negra é mais perigosa
ou mais criminosa, ao contrário, demonstra que a justiça, a polícia e o Estado são seletivos.
Conforme CARVALHO (2018), a estigmatização do negro enquanto criminoso não
só afirma a “não-criminalidade” do branco, como faz com que este seja marginalizado,
alocado a lugares subalternos, e até mesmo “destinado” a morte. O indivíduo
criminalizado carrega a marca do crime: ser negro. Ainda:
É sobretudo uma polícia, militar, que têm tido o poder de julgar e condenar à morte,
sem provas, sem direito à defesa. A vítima sendo considerada culpada, até que se prove
sua inocência, e não o contrário, como o princípio da presunção de inocência, de ordem
jurídica constitucional e penal. (CARVALHO, 2018)
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública avaliou 5896 boletins de ocorrência de
mortes decorrentes da ação policial entre 2015 e 2016 e, ao descontar as vítimas cuja
informação raça/cor não estava disponível, identificou que 76,2% das vítimas de atuação
da polícia são negras. Ainda, conforme dados do Atlas da Violência 2019, para cada jovem
branco que morreu assassinado, morreram 2,7 jovens negros. Esse quadro, que vem
piorando na última década, demonstra uma piora na desigualdade de letalidade racial no
país:
De acordo, ainda, com o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, em
pesquisas realizadas no Rio de Janeiro, em 2003 1.195 pessoas foram mortas por ação
policial, das quais 65% apresentavam sinais claros de execução. Em 2004 contabilizou-se
984 vítimas, e em 2005, 1087. Todavia, o fenômeno que se destacou é que quase
totalidade das vítimas eram jovens, negros, pobres e moradores das periferias. Destaca:
Os números assustadores descrevem um verdadeiro genocídio, resultado de uma
política deliberada de extermínio, absolutamente ilegal e arbitrária, que embutia a crença
de que ao policial cabia identificar o suspeito, julgar o réu, sentenciar a penal capital e
executá-la, no mesmo momento e em um único e contínuo procedimento, incorporando a
autoridade judiciária e traindo todos os limites legais, na contramão das garantias
constitucionais. (SOARES, 2007)
Além disso, cabe citar:
Desse modo, raça e classe são fatores extremamente importantes para analisar
esse fenômeno. O racismo institucionalizado determina quem deve viver e quem deve
morrer e o discurso da segurança pública indica atividades de cunho repressivo que
culminam na morte de milhares de pessoas.
Além disso, a Anistia Internacional (2015) relatou que a força policial brasileira
é a que mais mata no mundo, em meio à justificativa de “guerra contra o crime”. Há um
padrão nas escolhas de quem será alvo do Estado, visto que os altos índices de brutalidade
policial e assassinatos são direcionados às pessoas negras e às periferias. Portanto, a
753
polícia, enquanto representante dos interesses do Estado, vê no indivíduo negro um
inimigo a ser combatido e exterminado.
A polícia brasileira é uma instituição organizada que tem por dever proteger
direitos e liberdades constitucionais, fazendo com que as leis sejam seguidas e a ordem
estatal mantida, entretanto, sem ferir direitos e garantias no processo. O uso da força é
permitido desde que em moderação e em situações de extrema necessidade e relevância,
atentando para o princípio da proporcionalidade.
Uma das características principais da organização policial é o comedimento do
uso da força, levando em conta que o objeto da sua ação não é um inimigo a ser executado
– diferentemente das Forças Armadas – mas um cidadão cuja vida deve ser preservada
até o momento que constitua ameaça à terceiros ou à vida do próprio policial. Ou seja, um
policial pode – legitimamente e em conformidade com os direitos humanos - tirar a vida
de um cidadão, desde que este constitua-se como ameaça à vida de outrem e que não haja
solução menos brutal.
Os agentes policiais assumem função de defender a soberania e a ordem do
Estado, sendo, portanto, defensores dos interesses do Estado e das demais instituições
ligadas a este. O Estado ao estigmatizar e criminalizar indivíduos jovens, pobres e negros,
reproduzem posicionamentos conservadores e autoritários em nome da segurança
pública. Dessa forma, esses agentes policiais reproduzem a opressão e a desigualdade
caracterizadora do Estado brasileiro.
Visto assim, o extermínio em massa de indivíduos negros permite reconhecer a
noção de necropolítica, fenômeno que produz a morte de forma seletiva. De acordo com
Mbembe, a necropolítica é a capacidade de ditar quem pode e quem não pode viver, em
outras palavras, o Estado escolhe quem vive e quem morre. Deste modo, o Estado controla
e opera contra grupos marginalizados, seja pela desigualdade econômica, pela
discriminação racial, pela seletividade penal, pela rotina de vigilância ostensiva, pelo
encarceramento exacerbado e, finalmente pelas mortes causadas por agentes do Estado.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ADORNO, Sérgio. Crime, justiça penal e desigualdade jurídica. São Paulo, 1994.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26942
______________ Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. 1995. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/203942/mod_resource/content/1/Adorno.p
df
______________ Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e réus negros
em perspectiva comparativa. Rio de Janeiro, 1996. Disponível em:
http://www.nevusp.org/downloads/down179.pdf
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo? Belo Horizonte, Letramento, 2018.
BRASIL. ATLAS DA VIOLÊNCIA. IPEA e FBSP. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=3025
3
755
______ DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de
Informação Penitenciária – INFOPEN. Brasília, 2017. Disponível em:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro,
2011.
SILVA, M. A. “Olha quem morre, então veja quem você mata”: o Sistema Interamericano
de Direitos Humanos e o reconhecimento do genocídio da população negra na violência
policial, um estudo de casos: Wallace de Almeida e Favela Nova Brasília. Brasília, 2018.
Disponível em: http://bdm.unb.br/handle/10483/20431
756
CORPOS QUE TRANSGRIDEM: UMA ANÁLISE SOBRE AS ALAS LGBT E A
GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS
1 INTRODUÇÃO
759
e mulheres se diferenciam de acordo com o modo que devem atuar no mundo e de que os
relacionamentos afetivo-sexuais devem ser entre pessoas de sexos diferentes.
Homem e mulher, nos seus atributos tidos como naturais, tornam-se as referências
na orientação sexual, na identidade de gênero, nas dimensões afetivas e na sexualidade.
Porém, o que esse padrão deixa passar é que as subjetividades são muito mais complexas,
as relações de gênero normatizadas socialmente não são as únicas que compõem nossa
realidade. Há uma diversidade de formas de expressão que subvertem a lógica
estabelecida. “Diferença sexual, sexualidade (heterossexual) e gênero passam a ser
dimensões que se cruzam, mas uma não decorre da outra” (HEILBORN, RODRIGUES,
2018, p 11 - 12).
O sexo, biologicamente falando, onde se deve considerar as “características
orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais” (JESUS,
2012), não necessariamente definirá identidade de gênero e orientação sexual.
De acordo com os Princípios de Yogyakarta, a orientação sexual é definida como “a
capacidade de cada pessoa de sentir uma profunda atração emocional, afetiva e sexual por
pessoas de um gênero diferente ao seu, ou do mesmo gênero, ou de mais de um gênero,
assim como a capacidade de manter relações íntimas e sexuais com estas pessoas” (CIDH,
2015, p. 32).
A orientação sexual pode ser heterossexual (atração afetivo-sexual por pessoas de
sexos opostos), homossexual (a atração afetivo-sexual se dará entre pessoas do mesmo
sexo) e bissexual (na qual o indivíduo terá atração afetivo-sexual por pessoas do sexo
oposto e pessoas do mesmo sexo), entre outras possibilidades e definições. E a identidade
de gênero, caracteriza o gênero ‘homem ou mulher’ com o qual o indivíduo irá se
identificar e representar-se socialmente, o que independe do sexo biológico (JESUS,
2012). Há ainda a expressão de gênero, que consiste na “manifestação externa do gênero
de uma pessoa.” (CIDH, 2015, p.33). Entretanto, gênero não cabe apenas na caixa do
binarismo (homem ou mulher), há indivíduos que não expressam ou identificam-se com
um gênero específico, indivíduos não-binários.
A partir dessas definições, tem-se a sigla LGBT. Onde a letra L corresponde a
lésbicas, denominação essa que se refere às mulheres que sentem atração sexual e/ou
afetiva por outras mulheres, a letra G que se refere a gays que compreende os homens que
sentem atração sexual e/ou afetiva por outros homens. A letra B diz respeito à bissexuais,
pessoas que sentem atração sexual e/ou afetiva por ambos os sexos e a letra T se
subdivide em três categorias: Travestis, Transexuais e Transgêneros.
De acordo com JESUS (2012 p.06), os transgêneros compreendem uma categoria
para enquadrar qualquer indivíduo não cis-gênero, ou seja, todos aqueles indivíduos que
não se enxergam em seus sexos biológicos.
Os conceitos de travestis e transexuais, embora comumente sejam confundidos,
possuem suas divergências, “são travestis as pessoas que vivenciam papéis de gênero
feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros
de um terceiro gênero ou de um não-gênero.” (JESUS, 2012. P.09). Já os Transexuais
também não se identificam com seu sexo biológico e, portanto, irão assumir os papéis
sociais do sexo oposto, e modificar seu corpo. Sobre os transexuais JESUS, (2012 p.09)
definirá que “Transexuais sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam
e se sentem, e querem corrigir isso adequando seu corpo ao seu estado psíquico. Isso pode
se dar de várias formas, desde tratamentos hormonais até procedimentos cirúrgicos.”
Atualmente, a fim de compreender e incluir mais indivíduos que desafiam os
padrões sociais impostos, utiliza-se a sigla LGBTQI+, o QI+ acrescentados a sigla LGBT,
compreende os sujeitos da Teoria Queer, que não significa uma categorização ou rótulo a
760
identidade ou orientação sexual dos indivíduos, é um movimento, que de acordo com
Mota (2016), consiste em “admitir múltiplas formas de identidade. Não apenas lutar a
favor dessas múltiplas formas de identidade, mas denunciar os mecanismos por meio dos
quais elas foram situadas como anormais” (p.77).
Os Intersexuais, por sua vez são o que antes denominava-se hermafroditas, uma
condição biológica na qual o indivíduo nasce com a genitália indefinida se pertencente ao
masculino ou feminino. Por fim, o símbolo + representa demais indivíduos não
contemplados pelas siglas anteriormente descritas, partindo da compreensão que a
orientação sexual e a identidade de gênero extrapolam o binarismo homem-mulher,
masculino-feminino, existindo assim, uma diversidade muito maior.
Ao que se refere a população LGBTQI+ (Lesbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros,
Queer, Intersexuais e etc) os valores patriarcais, sistema que consiste na dominação do
sexo masculino sobre o feminino e a qualquer tipo de feminilidade, afetam diretamente
essa população, pois trazem consigo ideais conservadores apoiados em uma
heteronormatividade e um heterossexismo produzidos socialmente. HEREK (1992) apud
SOUZA e PEREIRA (2013), definirá que “O heterossexismo pode ser compreendido como
um sistema ideológico que nega, denigre e estigmatiza qualquer forma não heterossexual
de comportamento, identidade, relacionamento ou comunidade ” (p.84).
Além do preconceito vivenciado por toda a comunidade LGBT, as mulheres
transexuais e travestis encontram espaços ainda menores de atuação e visibilidade, os
espaços de trabalho e voz são ainda menores. O papel que a mulher trans assume na
sociedade, (o papel feminino) já é o papel de um segmento invisibilizado, e que encontra
no mercado de trabalho, por exemplo, desigualdades de gênero expressas, muitas vezes,
na desvalorização do trabalho feminino, em que mulheres que exercem as mesmas
funções que homens, têm salários reduzidos em relação aos primeiros.
Tais padrões sociais vigentes que concebem apenas como adequado a
heteronormatividade e as funções de gênero baseadas no sexo biológico, oprimem toda a
população LGBTQI+, e no caso das travestis e das mulheres transexuais, a invisibilização
de suas pautas e necessidades configuraram uma forma de opressão específica, que
repercutirá na escassez de políticas sociais voltadas às necessidades da população trans,
e em preconceitos cujo alvo não será somente a homossexualidade e sim a condição de
ser uma mulher ou homem transexual. A Transfobia, de acordo com JESUS (2012), se
caracteriza como um preconceito que se dará pela condição de gênero (homem ou
mulher) que divergirá da identidade de gênero imposta socialmente pelo sexo biológico
do indivíduo. Esse preconceito resultará, por fim, em uma opressão social que legitimará
condições de invisibilidade, intolerância e violência contra essa população que, por sua
vez, propiciam a marginalização desses sujeitos.
As condições de vulnerabilidade a que são submetidos possibilitam que estas
pessoas sejam incluídas em tristes estatísticas como a violência urbana e o
encarceramento. Nesses aspectos, os conceitos de homofobia, LGBTfobia e transfobia se
traduzem em números, segundo relatório elaborado pelo Grupo Gay da Bahia sobre
assassinato de homossexuais (LGBT) no Brasil:
O Brasil continua sendo o campeão mundial de crimes motivados pela
homo/transfobia: segundo agências internacionais, 50% dos assassinatos de transexuais
no ano passado foram cometidos em nosso país. Dos 326 mortos, 163 eram gays, 134
travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais e 7 amantes de travestis (T-lovers). Foram igualmente
assassinados 7 heterossexuais, por terem sido confundidos com gays ou por estarem em
circunstâncias ou espaços homoeróticos. (Grupo Gay da Bahia, 2014)
761
Documentos mais recentes mostram crescimento nesses números. Em 2017,
segundo relatório produzido pelo Grupo Gay da Bahia, a cada 19 horas um LGBT foi
assassinado ou se suicidou em razão da LGBTfobia. Totalizando ao final do ano 445
mortes documentadas. Até o mês de maio de 2018, 111 homicídios e 42 suicídios.
Os relatórios trazem informações também acerca das subdivisões para a sigla
LGBT e porcentagem de assassinatos para cada componente dessa sigla. Em 2017, por
exemplo, a taxa de assassinato de pessoas trans foi de 42,9% (191 trans), ficando atrás
apenas do número de mortos gays (194), segundo o Grupo Gay da Bahia.
O que mais chama atenção em 2017 é o significativo aumento de 6% nos óbitos de
pessoas trans: enquanto nos últimos cinco anos as/os transgêneros representavam em
média 37% dos assassinatos, no último ano subiram para 42,9%. Observe-se que tal
crescimento é particularmente grave pois enquanto os gays representam por volta de 20
milhões de habitantes, 10% da população brasileira (Kinsey), estima-se que as travestis e
transexuais não devem ultrapassar 1 milhão de pessoas (infelizmente faltam estatísticas
oficiais sobre tais populações), o que significa que o risco de uma trans morrer vítima da
transfobia é 22 vezes maior do que os gays. (Grupo Gay da Bahia, 2017)
Além do alarmante número de mortes, a forma como ocorrem esses assassinatos
chama atenção pela crueldade e ódio.
Os gays são geralmente executados a facadas ou asfixiados dentro de suas
residências, lançando mão o assassino de fios elétricos para imobilizar a vítima, almofadas
para sufocar e de objetos domésticos para tirar-lhes a vida. Outras formas de execução
com requintes de crueldade tipificam tais execuções como crimes de ódio: enforcamento,
pauladas, apedrejamento, garrafadas, muitos golpes, múltiplas formas de tortura,
degolamento, desfiguração do rosto, queima do corpo. (Grupo Gay da Bahia, 2017).
Uma outra questão importante acerca das violências sofridas pela população
LGBTQI+ em razão da LGBTfobia é que o número de crimes praticados contra essas
pessoas é muito maior do que o número de crimes denunciados às autoridades policiais.
Ou seja, há uma grande lacuna de subnotificações. Em relatório produzido pelo Ministério
dos Direitos Humanos (2018), “Violência LGBTFóbicas no Brasil: dados da violência”,
informa-se que o número de denúncias recebidas pelo Disque 100139 dobrou entre o ano
de sua criação e o ano posterior, tendo recebido 1159 denúncias no ano de 2011 e 3031
em 2012. No entanto, o número de violações que de fato ocorreram, trazido por este
mesmo relatório, representam mais que o dobro do número de denúncias recebidas,
foram 2353 violações em 2011 e 6136 em 2012. Nos anos seguintes (2013 – 2014) se
observou uma queda no número de denúncias, mas o padrão de subnotificação
permanece.
Os grupos minoritários permanecem sendo invisibilizados e no caso da população
LGBTQI+ não é diferente. No ano de 2018, o Brasil continua a liderar o ranking de país
mais violento do mundo para essa população, mantendo a estimativa de um LGBTQI+
assassinado ou que se suicidou em razão de LGBTfobia a cada 20 horas. “Segundo agências
internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e
transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte
contra os LGBT.” (Grupo Gay da Bahia, 2019).
Segundo o Relatório “Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil” do Grupo Gay da Bahia
(2019), a parcela de pessoas inscritas na sigla LGBTQI+ que estão em mais grave situação
140“O uso de patriarcado enquanto um sistema de dominação dos homens sobre as mulheres permite
visualizar que a dominação não está presente somente na esfera familiar, tampouco apenas no âmbito
trabalhista, ou na mídia ou na política. (MORGANTE, NADER. 2014)”
764
Considerando-se que os detentos e detentas vivenciam condições de
isolamento social, importantes alterações em seus modos de vida e
constantes ameaças à sua integridade física e mental, e, somando-se a
isso, a insatisfação com diversas das condições em que vivem, bem como
a dificuldade de encontrar sentido para a vida, tem-se uma situação em
que a saúde mental desses indivíduos encontra-se bastante vulnerável
(EUSTÁQUEO JUNIOR, BREGALDA e SILVA, 2015, p. 267).
4 AS ALAS LGBT
766
No que tange ao acesso à saúde, as Transexuais e Travestis possuem demandas
específicas nesse quesito, tal como o acompanhamento médico para o tratamento
hormonal. Este constitui-se como fator fundamental para o bem estar e saúde, além de
estar efetivado como um direito. Entretanto, o acesso à saúde dentro das unidades
prisionais muitas vezes não é fácil. Segundo dados do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias, do mês de Junho de 2017, “é possível inferir que 66,7% das
pessoas custodiadas estão presas em unidades que contam com estrutura prevista no
módulo de saúde” (INFOPEN, 2017, p.52), e no caso da Paraíba ainda de acordo com os
dados a INFOPEN 2017, 61,75% dos presos estão em unidades que possuem estrutura
para atender as demandas de saúde e cumprir com a assistência à saúde. Ainda que seja
um número maior que 50% e, portanto, possivelmente considerado satisfatório, significa
que ainda há presos e presas reclusos em unidades que sequer podem cumprir com a
determinação da assistência à saúde. A precariedade da saúde nas unidades prisionais,
consequentemente atingem as Alas LGBTs e precarizam o acesso à saúde e aos
medicamentos, bem como aos hormônios.
É direito dos internos também, de acordo com a Lei de Execução Penal, a assitência
Jurídica, embora, esta também não seja efetivada como deveria. Ainda na pesquisa
realizada por Eustáqueo Junior, Bregalda e Silva, (2015) no presídio Flósculo da Nóbrega
constatou-se que nas Alas LGBTs, muitas detentas ficaram sem assistência jurídica, e ou
eram mal informadas sobre os procedimentos e andamento de seu processo e situação.
767
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade atual é marcada pelo patriarcado, que trás consigo muitos outros
processos que estão a serviço da segregação e hierarquização de corpos, tomando por
base o gênero e sexualidade dos individuos. Ser mulher em uma sociedade patriarcal é
desempenhar um papel de resistência cotidiana, ser uma mulher transexual é duplamente
resistir e enfrentar o patriarcado apenas em um ato de existência (e resistência).
O papel do que era considerado normal, foi criado hegemonicamente, pela mesma
sociedade patriarcal e heteronormativa que ainda hoje se atualiza nesses parâmetros.
Sendo assim, os corpos que ao longo da história divergiam do padrão cisgênero,
heterossexual, masculino e branco eram, e ainda são, postos em posição inferior,
segregados ou “ajustados”.
A prisão nasce, assim, como uma ferramenta de segregação, dos corpos
“desviantes” e sua função na atualidade guarda vestígios e heranças originárias. Em um
primeiro momento pensada para homens, veio ao longo dos anos adaptando-se para
admitir e incorporar mais corpos, tais como mulheres e LGBTs, e a permitir que estes,
dentro desse sistema, continuassem a ser invisibilizados e oprimidos.
O sistema prisional, no Brasil, tem funcionado para punir os corpos através do
discurso da ressocialização, entretanto, suas táticas e condições de funcionamento
distanciam-se do “educativo”. Superlotação, condições precárias de moradia, alimentação,
saúde e ensino tornam o cárcere um sistema de punição e não de justiça.
A questão de gênero, dentro do sistema carcerário, por muito tempo foi tratada
com descaso, visto que, admitia-se, ainda muito recentemente, que as Transexuais e
Travestis não poderiam dividir celas com homens cisgêneros. Tal medida precisou ser
tomada em função do machismo e da violência que perpassam a sociedade, e que expunha
os corpos das Travestis e Transexuais dentro de celas masculinas a violências e abusos.
Assim, a criação das Alas LGBTs, regulamentada e com diretrizes claras, configura
uma conquista e uma forma de proteção para as Travestis e Transexuais em situação de
cárcere. Entretanto, na prática, as diretrizes não são suficientes para a garantia dos
direitos desta população, visto que continuam a sofrer violações de direitos humanos,
tendo seus direitos negados de forma naturalizada e institucionalizada.
Mesmo dentro das Alas LGBTs, o sistema carcerário continua o mesmo, seguindo a
mesma lógica da sociedade fora dele, patriarcal e heteronormativa, estigmatizando
aqueles que divergem do padrão da “normalidade”.
O objetivo deste trabalho deu-se no sentido de problematizar as questões de
gênero dentro do cárcere, bem como trazer reflexões e questionamentos acerca dos
avanços e benefícios que a criação de uma Ala LGBT trouxe para essa população, pensando
a legislação que a regulamenta e orienta e os resultados de sua real efetivação na vida dos
LGBTQI+ encarcerados.
Desse modo, podemos compreender que a criação de Alas, diretrizes e demais
regulamentações, apesar de terem avançado e proporcionado condições de menos risco
de violências aos corpos dos LGBTQI+ encarcerados, não efetivou mudanças significativas
no que tange a efetivação de direitos e opressão desses corpos, visto que, a prisão como
ferramenta de controle, fruto de uma sociedade patriarcal, heteronormativa e classista,
segue a oprimir e segregar os corpos que fogem do conceito de “normalidade”, e assim, os
invisibiliza em celas.
768
REFERÊNCIAS
BRASIL, Brasília. Lei N 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.
Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm> Acesso em 01
Out. 2019
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brasileiros: possibilidades ou controvérsias?. Seminário Internacional fazendo gênero
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Grupo Gay da Bahia. Relatório 2017, Pessoas LGBT mortas no Brasil. Disponível em <
https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/relatorio-2081.pdf > Acesso em
20 Set. 2019.
769
Grupo Gay da Bahia. Relatório 2018, GGB mortes violentas de LGBT+ no Brasil.
Disponível em <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio-2018-
1.pdf > Acesso em 01 Out. 2019
MORGANTE, Mirela Marin. NADER, Maria Beatriz. patriarcado nos estudos feministas:
um debate teórico. XVI Encontro Regional de história da Anapuh-Rio. 2014
MOTTA, José Inácio jardim. Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer
para tempos de crise democrática. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, N Especial p.73-
86. 2016.
SILVA, Vera. Controle e Punição: as Prisões para Mulheres. Ex aequo, Vila Franca de Xira
, n. 28, p. 59-72, 2013. Disponível em
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-
55602013000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 14 out. 2019.
770
AUXÍLIO-RECLUSÃO: INSTRUMENTO PARA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E
A INVIABILIDADE DE SUA CONCESSÃO COM O ADVENTO DA MEDIDA PROVISÓRIA
Nº 871
1. INTRODUÇÃO
Ao prender uma pessoa que era a responsável por manter financeiramente um lar,
é necessário algum mecanismo para suprir as necessidades da sua família. É nesse
contexto que falamos do auxílio-reclusão, um direito constitucionalmente previsto de
acordo com a redação do art. 201, IV (BRASIL,1988) que viabiliza concretizar outros
direitos fundamentais de familiares dos presos, pois não se pode falar em sustento sem
capital e, com a pessoa cumprindo pena privativa de liberdade, muitas vezes os
dependentes do preso perdem a única fonte de renda mensal ou boa parte dela e, desta
forma, ficam desprotegidos à medida em que a desigualdade social se agrava.
É importante destacar que esse benefício é alvo de ataques por parte de
determinados grupos reacionários que utilizam da massiva propagação de informações
enganosas nas redes sociais e afins, além de disseminarem ideias equivocadas de que o
benefício é pago diretamente a pessoa encarcerada ou que os valores são exorbitantes em
comparação ao que um "trabalhador honesto" recebe. Além disso, desqualificam o
benefício por meio de outras expressões, tais como “bolsa-bandido’, “bolsa-preso” e
“bolsa-vagabundo”.
Desta forma, cabe-nos desmistificar alguns aspectos do auxílio-reclusão com o
intuito de romper o senso comum que sobre ele paira e, a partir disso, fundamentar a
existência e importância desse direito na garantia da dignidade humana dos dependentes
das pessoas encarceradas.
Em conjunto com o enrijecimento de recentes alterações legislativas aplicáveis à
concessão do auxílio-reclusão, o número de concessão de benefícios em detrimento da
totalidade da população carcerária, assim como o perfil socioeconômico daqueles que, em
tese, deveriam ter acesso a esse direito, busca-se investigar as principais consequências
jurídicas advindas a partir da dificuldade de concessão desse direito.
Outrossim, com a problemática a partir dessa questão, qual seja a importância do
auxílio-reclusão como meio de proteção à pessoa humana e os obstáculos criados para
concessão do benefício com o advento da Medida Provisória n° 871 – posteriormente
convertida na Lei n° 13.846, de 2019 –, o debate será montado a partir de revisão
bibliográfica sobre o tema, de pesquisas levantadas por órgãos oficiais, dos dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais.
Em primeiro plano, é traçada a breve origem do benefício na legislação brasileira
e seu principal objetivo, os requisitos previstos em lei para sua concessão e a quem esse
benefício é precipuamente destinado, especialmente no que diz respeito ao que a lei
confere como destinatário o dependente da pessoa reclusa, presente no artigo 25 da Lei
8.213, como também disposta e modificada de forma condicionante pela Lei 13.846 de
2019. Em seguida, faz-se uma delimitação do estudo ao direito à proteção da pessoa
humana, atrelada ao supraprincípio da dignidade da pessoa humana.
771
Conclui-se que tal proteção – auxílio-reclusão – é muitas vezes negligenciada e até
mesmo violada pelo Estado e pela própria sociedade com fundamento na lógica de que os
familiares do preso também são responsáveis pelas supostas práticas ilicítas
resposánsaveis pela sua prisão. Nota-se, portanto, uma clara violação ao princípio da
intranscendência da pena, vedada por nossa constituição federal (artigo 5º, inciso XLV)
ao determinar que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.
141 “A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) firmou a tese jurídica de que
é possível a flexibilização do conceito de ‘baixa renda’ para o fim de concessão do benefício previdenciário
de auxílio-reclusão, desde que se esteja diante de situações extremas e com valor do último salário de
contribuição do segurado preso pouco acima do mínimo legal – sendo considerado como ‘valor irrisório’. A
decisão do Colegiado da TNU foi tomada, por maioria, na sessão do dia 22 de fevereiro, realizada na sede do
Conselho da Justiça Federal (CJF), em Brasília.” (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2018).
773
Nesse sentido, Bonini (2011, p. 93) assim discorre sobre o papel fundamental que
o benefício desempenha:
Um benefício que o encarcerado faz jus para sua família durante o período
em que ele está atrás das grades. Ou seja, aquele elemento que
sequestrou, que roubou, que estuprou e que matou, caso ele seja detido,
142“Apesquisa foi realizada pelo Instituto Paraná Pesquisas, a pedido do R7 Planalto, com 2.184 brasileiros
maiores de 16 anos, em 170 municípios de 26 Estados e do Distrito Federal. As entrevistas foram realizadas
por telefone entre os dias 17 e 20 de julho de 2019. A amostra tem grau de confiança de 95% para uma
margem estimada de erro de aproximadamente 2 pontos percentuais para os resultados gerais.”
774
condenado e preso, nesse intervalo de tempo a sua família passa a ter um
benefício do Estado. (BOLSONARO, 2016, online)
775
Com isso, não diferentemente destes casos práticos em que o princípio da
instranscendência da pena é violado, é notório que as ações discriminatórias e medidas
que visam limitar o acesso ao auxílio-reclusão são atos violadores deste princípio, pois
transferem a pena para aqueles diretamente ligados ao apenado, já que os familiares
dependentes desse suporte ficam limitados, aprisionados pelo preconceito e desamparo
da sociedade e, principalmente, do Estado.
776
É possível verificar, desta forma, a razão existente entre a baixa escolaridade e a
dificuldade de acesso ao mercado de trabalho das pessoas que foram encarceradas.
Outrossim, é importante destacar que a população carcerária no Brasil atingiu o
total de 726.354 pessoas nessa condição (INFOPEN, 2019) e, por outro lado, como aponta
o Boletim Estatístico da Previdência Social do mesmo mês e ano, havia a emissão de
apenas 48.744 auxílios-reclusão (PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2017). Diante desses dados,
conclui-se que aproximadamente 6,71% dos dependentes da totalidade das pessoas
privadas de liberdade recebiam o benefício – sendo importante destacar que esses dados
foram colhidos antes do advento da Medida Provisória n° 871, analisada em capítulo
próprio.
Trata-se, portanto, de um direito ineficaz e de difícil acesso, seja por não
corresponder ao perfil socioeconômico das pessoas presas ou seja porque exige acesso a
informações, documentos e procedimentos os quais muitas pessoas de baixa escolaridade
não possuem. Nesse sentido, é necessário, também, que haja um efetivo sistema de
informação para essas pessoas que se encontram em flagrante situação de
vulnerabilidade social, a fim de que haja o conhecimento de seus direitos, sempre visando
coibir a repulsa de julgamentos e preconceitos que a natureza do benefício, por si só, possa
gerar, sob pena de infringir direitos constitucionalmente assegurados, ao passo em que
aprofunda a desigualdade social.
Cabe-nos evidenciar que não houve quaisquer dados informados relativos ao labor
ou até mesmo aos salários que as pessoas presas pudessem receber antes de seu
encarceramento, vislumbrando algo já mencionado por Paiva, ao levantar a seguinte
questão:
143Segundo o artigo 33, parágrafo 1º, alínea b do Código Penal, considera-se regime semiaberto a execução
da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.
777
prazo de carência, o regime da pena, o salário de contribuição quanto ao direito inicial, a
perda de qualidade do segurado e da compatibilidade com o salário-maternidade e a
pensão por morte.
Como já visto em capítulo anterior, antes da MP 871, tanto a Lei 8213/91, em seu
art. 26 (BRASIL, 1991), como o Decreto 3.018/99, art. 30 (BRASIL, 1999), traziam que a
concessão do auxílio-reclusão não dependia do período de carência. Após a
implementação da medida supramencionada, passou a ser segurado do INSS apenas os
detentos que obtiverem dentre inúmeras prerrogativas, vinte e quatro contribuições
mensais.
Percebe-se, assim, que essa alteração veio para marginalizar e oprimir ainda mais
os indivíduos presos, isso porque, sabendo da seletividade no sistema penal, no qual a
maioria dos criminalizados são oriundos da classe mais pauperizada, o que nos leva a
concluir que boa parte dos detentos não possuíam trabalhos formais, isto é, com carteira
assinada. Dessa forma, percebe-se que a grande maioria buscava na informalidade ou na
ilegalidade o seu sustento, não obtendo, portanto, as vinte e quatro contribuições
necessárias, o que só ressalta a desigualdade social e a criminalização seletiva que atinge
essa parcela marginalizada da população.
Nessa toada, Chies e Passos argumentam sobre a limitação imposta de acesso ao
benefício a partir da própria qualidade de segurado do preso:
144“Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade
educativa e produtiva. [...]” (BRASIL, 1984)
778
internas e externas as unidades penais, o que representa um total de 127.514 pessoas
trabalhando.
Como discorrido em capítulos anteriores, é possível verificar que a maioria dos
apenados já possui larga dificuldade de acesso ao mercado de trabalho antes da
prisãodecorrente do baixo nível de escolaridade e, ainda dentro do sistema prisional, não
há efetivo incentivo para que estes passem a desenvolver atividades laborais com o intuito
de obter alguma capacidade técnica para que possam encontrar oportunidades de
empregos quando não mais estiverem cumprindo o regime fechado, o que acaba por
impedir a função declarada da ressocialização.
Se pensarmos em um preso que não está envolvido em quaisquer atividades
laborais dentro da unidade prisional e que cumpre regime fechado, caso ele progrida para
o regime semiaberto e seus dependentes estivessem recebendo o benefício, deixará de
fazer jus imediatamente ao auxilio. A lógica da medida é a seguinte: deixando de receber
o benefício, a única saída para manter o sustento da sua família é buscar um emprego. No
entanto, como já comentamos no presente trabalho, as chances de um preso obter algum
emprego são extremamente reduzidas em decorrência de inúmeros fatores: da falta de
experiência e de oportunidade para desenvolver certa técnica laboral, da baixa
escolaridade e, principalmente, do estigma de presidiário.
Ademais, a terceira alteração mencionada trata que o benefício previdenciário era
devido desde que o último salário de contribuição do segurado, tomado no seu valor
mensal, fosse igual ou inferior ao valor fixado por Portaria Interministerial, atualizada
anualmente (BRASIL, 2019).
Entretanto, após a MP 871/09, o enquadramento do segurado como de baixa renda
passou a ser definido pela média dos salários de contribuição apurados no período de
doze meses anteriores ao mês do recolhimento à prisão. Destarte, percebe-se que essa
modificação visa excluir uma quantidade significativa de dependentes que necessitam
desse salário para a complementação de sua renda e, com isso, garantir o seu sustento que
antes era proporcionado também pelo familiar que se encontra privado de liberdade.
Além das mudanças citadas acima, acerca das condições necessárias para a
concessão do auxílio-reclusão, ainda é ressaltado outras duas que, após a vigência da MP,
vieram dificultar o acesso dos familiares a esse benefício, quais sejam: a prisão do
segurado da previdência social passou a ser causa de interrupção do pagamento de
auxílio-doença e, na hipótese de perda da qualidade de segurado, em seu texto original,
este deveria cumprir o período integral de carência (vinte e quatro meses) a partir da data
da nova filiação à Previdência Social, porém, a conversão da Medida Provisória na Lei
13.846 alterou e passou exigir metade do período de carência para manutenção da
qualidade de segurado – ressalte-se que antes da edição normativa, não se exigia sequer
a carência. (BRASIL, 2019)
Em consonância com o art. 3º da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), é garantido
ao presidiário manter seus direitos que não forem restritos pela sentença ou lei, sendo a
previdência social um direito não restrito, inclusive sendo tratado mais à frente no mesmo
diploma legal, em seu art. 41, III (BRASIL, 1984). Logo, é inadmissível que um Estado que
possui como objetivos fundamentais insculpidos em seu texto constitucional (BRASIL,
1988) a erradicação da pobreza e a marginalização promova tantas mudanças que
atingem diretamente a dignidade da pessoa humana, especialmente desses indivíduos
afetados por já estarem vulneráveis e desamparados em vários sentidos.
Com o advento da MP 871/2019, é fatídico que o Estado propicia a transcendência
da pena do detento para os seus familiares ao provocar inúmeras alterações que
acarretam dificuldades para concessão do auxílio-reclusão. Com isto, nota-se que a lei,
779
criada para garantir a proteção dos familiares dos presos, não está cumprindo com
eficiência seu objetivo, de modo que retira direitos conquistados e viola a dignidade da
pessoa humana em relação ao núcleo familiar do presidiário.
Ademais, constata-se a total falta de proporcionalidade nas alterações legislativas
que, nas lições de Bonavides (2014), seria o núcleo central e mecanismo de proteção
eficaz aos direitos constitucionalmente assegurados. Também, conceitua o mesmo autor
que a proporcionalidade parte da escolha de uma medida dentre várias para, assim,
atingir uma determinada finalidade, a ser escolhida aquela que for considerada a menos
nociva.
Nesse sentido, Bonome explica:
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 30 set. 2019.
BONINI, Rejane Maria Nalério. AUXÍLIO RECLUSÃO: um olhar a partir dos sujeitos
encarcerados, seus familiares e técnicos do sistema prisional. 126 f. Dissertação
(Mestrado em Políticas Sociais). Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, 2011.
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. TNU flexibiliza conceito de baixa renda para concessão
de auxílio-reclusão. Disponível em:
https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2018/fevereiro/tnu-flexibiliza-conceito-de-baixa-
renda-para-concessao-de-auxilio-reclusao. Acesso em: 30 set. 2019.
EL PAÍS. Desemprego no Brasil chega a 12,5% e atinge 13,2 milhões de trabalhadores, diz
IBGE. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/31/economia/1559312475_679888.html.
Acesso em: 29 set. 2019.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Ed. 18. Rio de Janeiro: Impetus, 2016. p. 194.
782
MARTINEZ, Wladimir Novaes. A Seguridade Social na Constituição Federal. São
Paulo: LTr, 1992.
PORTAL R7. 77,4% dos brasileiros são contra auxílio-reclusão para presos. Disponível em:
https://noticias.r7.com/prisma/r7-planalto/774-dos-brasileiros-sao-contra-auxilio-
reclusao-para-presos-25072019. Acesso em: 2 out. 2019.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. ed. 2. São Paulo: Saraiva,
2016.
SCHILLING, Flávia; MIYASHIRO, Sandra Regina Galdino. Como incluir? O debate sobre o
preconceito e o estigma na atualidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.34, n.2, p. 248,
maio/ago. 2008
783
A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E A PRIVATIZAÇÃO DOS
PRESÍDIOS
1 INTRODUÇÃO
784
2 O CENÁRIO ATUAL DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO
Como já relatado neste artigo, o país passa por uma grave crise no tocante ao
segurança pública e consequentemente no sistema penal, sobretudo em função da
cultura do encarceramento. A superlotação carcerária, somada aos altos indicies de
violência nos grandes centros urbanos, têm sido problemas recorrentes no diversos
estados da federação.
Diante deste cenário caótico a temática da privatização das unidades prisionais
tomou força nos debates, somada a outras pautas semelhantes como a redução da
maioridade penal e o incremento do aparato policial. Os argumentos favoráveis a
temática giram em torno da redução de custos para o Estado, além da melhoria das
condições de vida dos próprios presidiários, ante as inúmeras violações aos direitos
humanos fundamentais constatadas dentro dos presídios públicos.
A privatização do sistema prisional é um modelo que vem sendo difundido no
mundo, com a implantação em alguns países, dentre eles podemos destacar os exemplos
dos Estados Unidos e da Inglaterra. Ocorre que a importação dessa mágica solução para
o cenário brasileiro não leva em conta as diferenças substanciais existentes no campo
social e político para com os países onde a privatização já é realidade. (MESQUITA, 2017)
No Brasil a discussão acerca da privatização dos presídios teve seu início nos anos
1980, com a difusão das ideias neoliberais. Isto porque foi nesse período em que o
recente Estado Democrático de Direito passou a ser visto como ente ineficiente no
desempenho de suas atividades essenciais, as quais passaram a ser vistas como custosas.
Dentre esses atividades estavam no rol os serviços de saúde, educação, previdência
social, transporte e a até mesmo a segurança pública. Houve a partir desse período uma
forte pressão para que o Estado cedesse espaço para atuação dos interesses do mercado.
(BRASIL, 2014).
Segundo Laurel (1977, p. 166), o neoliberalismo se fundamenta no “processo
acelerado de privatização, desregulamentação financeira, abertura externa,
desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, reestruturação das
políticas sociais etc.” (LAURELL, 1997, p. 166) Assim sendo, a privatização dos presídios,
no Brasil, não é uma medida isolada. Ela está atrelada ao projeto neoliberal, indicado
como saída para responder o que se apresenta como crise fiscal do Estado. Assim sendo,
com base na ideologia neoliberal deve-se recorrer a “redução dos gastos sociais e
consequentemente a reforma do Estado na perspectiva de desmonte do arcabouço
788
jurídico de direitos conquistados legalmente”. (PEREIRA; et. al. 2006)
A primeira experiência de privatização de presídio, no Brasil, foi vivenciada no
Estado do Paraná no ano de 1999, chegando a ter seis unidades funcionando em parceria
com entes privados. Atualmente no país existem mais de 30 estabelecimentos prisionais
que funcionam sob algum dos regimes de privatização, eles estão localizados nos estados
de Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia Sergipe, Alagoas e Amazonas (que
recentemente registrou a morte de 55 detentos). Perfazendo o percentual de 4 % dos
estabelecimentos carcerários brasileiros. (Brasil, 2014).
Na prática existem dois modelos de participação da iniciativa privada no âmbito
prisional. O primeiro deles é denominado de cogestão, o qual corresponde a maioria dos
modelos já implementados no país, neste modelo o Estado assume a direção da unidade,
realizando a guarda e a escolta externa. Enquanto que a entidade privada fica
responsável pelos serviços de saúde, alimentação, limpeza e vigilância interna da
unidade. (BRASIL, 2014)
O outro modelo de atuação são as chamadas Parcerias Público-Privadas –PPPs,
neste caso os estabelecimentos prisionais são financiados, construídos e mantidos pela
empresa privada por um longo período de tempo, que no caso do Brasil em torno de 30
anos. Trata-se de espécie concessão especial administrativa atualmente implementada
apenas no Estado de Minas Gerais, qual seja o complexo penitenciário de Ribeirão das
Neves.
Sob a perspectiva mundial os autores consagram dois modelos básicos de
privatização dos presídios, quais sejam o modelo americano e o modelo francês. No
primeiro modelo o estado repassa sua função de administração penitenciária para a
empresa privada, a qual além de construir os estabelecimentos prisionais ainda exerce
poderes de gestão e administração prisional, esse modelo assemelha-se as PPPs acima
definidas. (MATOS,2017)
Por outro lado, no modelo francês vigora a partilha de responsabilidades, onde o
estado poderia delegar a iniciativa privada determinadas atividades acessórias, como
assistência médica, alimentação e oficinas de trabalho, nesse caso, cabe ao poder público
o exercício dos poderes de gestão e administração. Em razão dessas características é
possível apontar que o modelo francês aproxima-se dos chamados contratos de
cogestão, visto que há responsabilidade compartilhada entre o poder público e a
inciativa privada. (MATOS, 2017)
Entretanto existem inúmeras críticas que devem ser tecidas acerca dessa espécie
de mercantilização do cárcere. A primeira delas refere-se ao real objetivo da privatização
dos estabelecimentos prisionais, isto porque sob o véu da ineficiência e fracasso do
poder público na administração dos presídios confere-se a tutela sob os corpos do
detentos às empresa privadas. Aqueles considerados indesejáveis agora são convertidos
à lógica da acumulação do capital. Esse discurso que hoje se massifica na doutrina penal
brasileira, já foi utilizado décadas atrás pelo governo norte americano como justificativa
para a abertura ao setor privado. Senão vejamos:
789
Outro ponto controvertido sobre os modelos já implementados no país diz
respeito a espécie de pré-seleção para seus futuros detentos. Isto porque as empresas
não pretendem produzir experiências negativas para seus modelos já implementados,
sendo assim optam por acolher em seus sistemas apenas aqueles que possuem histórico
de bom comportamento, baixa periculosidade e não tem qualquer histórico de doenças
contagiosas. Desse modo, aponta o Relatório Produzido pela Pastoral Carcerária
Nacional (2014):
791
Ocorre que ao contrário de que acontece atualmente nos Estados onde há um
declínio desses tipos de estabelecimentos de correção, bem como do próprio
encarceramento, o Brasil intensificou nos últimos os debates sobre a questão da
privatização apresentada como solução para crescente violência. Isto é, enquanto boa
parte do mundo caminha para políticas menos repressivas, o nosso país faz o caminho
inverso, pretendo submeter o sistema prisional a lógica do capital, corroborando para
mercantilização do cárcere.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil figura nas lista dos países com a maior população carcerária do mundo.
No entanto esta superlotação carcerária não resulta em maiores níveis de segurança. As
penitenciárias públicas nacionais acabam por funcionar com verdadeiros depósitos
humanos onde direitos fundamentais são a todo tempo violados. É diante desta
conjuntura caótica que surgem as propostas de privatização dos estabelecimentos
prisionais, sob o principal fundamento do custo benefício estatal.
A ideia da privatização é uma importação da política penitenciária norte
americana que teve início nos anos de 1980 e hoje colhe as consequências desastrosas
de tal medida. Trata-se de uma solução baseada na teoria neoliberal que alcança as
estruturas do cárcere e encontra nele sua nova ferramenta de mercado.
Pois bem, a partir dos elementos apresentados neste artigo é possível concluir
que ao contrário do que se advoga, a política de privatização dos presídios contribui para
o agravamento dos problemas penitenciários do país. Isto porque na prática ocorre a
mercantilização dos cárceres, os detentos além de serem convertidos em números,
passarão a ser vistos como mercadoria.
Segundo os dados evidenciados neste artigo não há qualquer certeza sobre a
redução de custos com a transferência de responsabilidades para iniciativa privada, pelo
contrário, o que se visualiza nas poucas experiências vivenciadas no país é o aumento de
repasses do poder público aliados à insegurança dos presídios, diante da dificuldade de
acesso a informações.
Ademais, existe quase que uma tela de disfarce construída pelas unidades
privadas existentes no país, visto que realizam uma pré-seleção dos seus usuários, só
acolhem detentos com bom comportamento, que cometeram crimes de baixa gravidade
e não ligados a facções criminosas. O intuito é não passar uma imagem negativa para a
sociedade pelo menos por enquanto.
Outra conclusão importante que a pesquisa relata refere-se ao percentual mínimo
de 90% de ocupação, cláusula encontrada no contrato de Parceria Público Privada do
Complexo de Ribeirão das Neves. Esse ponto reforça claramente a ideia de lucro que a
privatização do cárcere almeja. Como consequência desse fator e para cumprir com o
percentual mínimo requisitado pelas empresas, a tendência será o Estado passar a
prender mais, isto é, teremos o mais Estado penal a serviço da iniciativa privada.
Sendo assim, entende-se que a privatização dos presídios não é solução para a
crise que vive o sistema carcerário brasileiro. Uma vez que se trata de um problema de
múltiplos fatores oriundos da sociedade brasileira, que para serem solucionados
demanda o empenho conjunto dos três poderes do estado e de toda sociedade civil, e
não apenas o repasse de tarefas para o entende privado.
792
REFERÊNCIAS
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794
O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A CONTÍNUA VIOLAÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS: A CRISE DO SISTEMA PRISIONAL
1 INTRODUÇÃO
795
religioso/espiritual. (BITENCOURT, 2018, p. 111).
A fase da vingança privada foi um período marcado por conflitos entre famílias e
tribos, assim como pelo surgimento da Lei de Talião, de origem latina (tálio + onis)
significa castigo na mesma medida. Pode-se inferir que fora a primeira delimitação da
pena, na qual o crime deveria atingir o infrator da mesma forma e intensidade do mal
causado por ele. Entretanto, não era proporcional como preconizava. Com a referida lei
surge a expressão “sangue por sangue, olho por olho, dente por dente”, com ideais que
podem ser vislumbrados em outros códigos; como o de Hamurabi e a Lei das XII Tábuas.
A Lei de Talião passou por evolução, com a possibilidade de o agressor satisfazer a
ofensa mediante indenização em moeda ou espécie, seja entregando seus gados, suas
vestes, suas propriedades ou valores que lhes pertenciam. Essa evolução fora chamada de
“Composição”, uma alternativa de repressão mais vantajosa ao ofendido.
Por outro lado, na fase da vingança divina houve a confusão entre lei estrita e
religião; o crime era visto como um pecado cometido, ao passo que a pena era um castigo
divino com o objetivo de purificação e salvação da alma do infrator. A referida fase pode
ser vislumbrada, como exemplo, no Código de Manu (Índia), como também no Código de
Hamurábi.
Por sua vez, a fase da vingança pública tinha como objetivo principal a segurança
da classe dominante. Com o poder do Estado cada vez mais fortalecido, as penas passaram
a ter o intuito de intimidação para que os crimes fossem prevenidos e reprimidos. Nesta
fase o soberano exercia sua autoridade em nome de Deus, vez que o Rei era visto como
representante de Deus na terra.
No final do século XVIII, com as ideais iluministas surge a luta pela liberdade
individual face ao arbítrio do poder punitivo do Estado e suas interferências na esfera
privada, trazendo como objetivo desse movimento, entre outros, o degredo à tortura e
desproporção da aplicação da pena, além da insegurança jurídica no que tange à
positivação das leis. Nesse período, merece o destaque Montesquieu em sua obra “O
Espírito das Leis”, Jean Jaques Rousseau em sua obra “Contrato Social”, assim como Cesare
Beccaria com a obra “Dos Delitos e das Penas”.
Em especial, Beccaria, tomando como base a Teoria do Contrato Social de
Rousseau, defendeu que apesar do homem ceder parte de sua liberdade para conviver em
sociedade visando o bem comum, não poderia ser privado de todos os seus direitos de
forma arbitrária como era à época, muito menos a possibilidade de pena de morte ou
qualquer pena desumana. Além disso, defendeu um Direito Penal mais humanizado, com
limitação ao punitivo estatal, para que, só assim o poder fosse entendido como de direito
e legítimo. Defendeu a elaboração de leis apenas pelo legislador.
Posteriormente, em 1789, ocorreu a Revolução Francesa o que teve como corolário
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, positivando direitos individuais e
limitação do Poder Público, como se pode aferir em alguns dos seus dispositivos:
Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos
determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os
que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens
arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou
detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário
torna-se culpado de resistência.
Art. 8º. A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente
necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei
estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.
796
Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado
e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda
da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.
Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém
dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente
comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.
Surge então uma nova era; uma predominância da dignidade da pessoa humana,
segurança jurídica e limitações do Poder Público, o que, de forma essencial, teve
repercussão no Direito Penal até o presente momento, porém em constante mutação
tendo em vista a necessidade do Direito posto alcançar os fatos sociais e se autolegitimar.
De acordo com a doutrina majoritária, a sanção penal possui três teorias que a
fundamentam. Pelo viés da teoria absoluta tendo como representantes Kant e Hegel, a
finalidade da pena é a pura retribuição do mal causado de forma a punir o autor que
cometesse uma infração penal. Dessa forma, a pena tem um fim e si mesma.
Nas palavras de Bitencourt:
Pela teoria relativa, também conhecida como finalista ou utilitária, a pena possui
duas finalidades: a prevenção geral e prevenção especial. A primeira está direcionada à
generalidade dos cidadãos, esperando que a ameaça de uma pena, e sua imposição e
execução, por um lado, sirva para intimidar aos delinquentes potenciais (negativa), por
outro lado, sirva também para robustecer a consciência jurídica dos cidadãos e sua
confiança e fé no Direito (positiva).
Por sua vez, a prevenção é especial está direcionada ao delinquente. Com o objetivo
de intimidar a fim de evitar que ele cometa novos crimes no futuro (negativa), assim como
também tem o objetiva de ressocialização do condenado (positiva). Ainda segundo
Bitencourt:
Por último, tem-se a teoria mista ou eclética que defende qual a pena tem a função
de punir e ao mesmo tempo prevenir a prática do crime, através da reeducação e
intimidação da coletividade:
Nosso Código Penal, no art. 59, caput, parte final, declara que o juiz, ao
aplicar a pena, deverá dosá-la “conforme seja necessário e suficiente para
797
reprovação e prevenção do crime”. Significa que o magistrado deve
voltar-se ao passado e, ao impor a pena, mirar na retribuição pelo ato
cometido e, fazendo-o, graduar a pena segundo a gravidade do ato
praticado; deve ele também mirar o futuro e impor a sanção de modo a
que sirva de exemplo para todos (prevenção geral) e de fator interno de
reflexão (prevenção especial). (STEFAM, 2018, p. 378-379).
Dessa forma, em síntese, a teoria mista é a junção das teorias anteriores que,
segundo a doutrina majoritária, é a teoria adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Pode-se constatar que tal teoria visa uma ressocialização do indivíduo, no entanto, a
crítica que se faz a esse ponto está na dificuldade de se verificar essa ressocialização com
o atual sistema prisional e sua superlotação, assim como a falta de estrutura e segurança.
798
A referida Corte Constitucional também decidiu, na Sentencia T-153/98, o Estado
de Coisas Inconstitucional aplicado aos estabelecimentos carcerários de Bellavista e
Modelo, sendo, posteriormente, decisão que passou a tratar de todos os estabelecimentos
carcerários do país:
Dessa forma, foi estipulado um prazo razoável para que a situação fosse
solucionada, através das diligências, principalmente, com a construção de mais
penitenciárias e a consequente organização dos presos para que possam ter condições
dignas de cumprir a condenação.
Embora tenha apenas pouco mais de duas décadas desde o seu surgimento, a
referida tese teve maior repercussão no ano de 2004, com a Sentencia T-025, que tratava
de cerca de 3 milhões de colombianos forçados a se deslocar, em razão de conflitos e
violência generalizada que atingiram várias regiões do país; uma sistemática violação aos
799
direitos fundamentais, assim como também aos Direitos Humanos em Geral, trouxe em
seu bojo fatores para averiguação da presença do Estado de Coisas Inconstitucional:
800
Ora, em um Estado que se diz “Democrático de Direito”, não se pode aquiescer
inúmeras violações ocorridas desde sempre em seus presídios, indo de encontro ao
próprio fundamento da República, positivado no artigo 1°, inciso III da Constituição
Federal, qual seja, a Dignidade da Pessoa Humana:
Sabe-se que a Dignidade da Pessoa Humana teve como percussor Immanuel Kant,
na obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, dessa forma:
802
A auditoria teve como foco verificar se as transferências de recursos financeiros
atendiam às necessidades estruturais do sistema penitenciário brasileiro, assim como
realizar uma análise dos motivos possíveis de suas falhas.
De acordo com os dados levantados, percebeu-se que o sistema prisional está
precisando de uma maturidade no que tange principalmente à gestão, uma vez que não
há planejamentos para a modernização do sistema prisional ou uma sistemática que
possibilite a avaliação e monitoramento da própria política prisional; como a realização
de um levantamento de metas, relatórios dos resultados, apontamento de falhas para que
possam ser reavaliadas e evitadas, além de não se verificar, por parte da gestão,
recomendações para que o Fundo Penitenciário Nacional possa ser mais bem utilizado na
consecução de um sistema justo.
Verificou-se que somente três das doze Unidades Federais fiscalizadas enviaram
os relatórios requeridos dentro do prazo estabelecido pelo Depen. Constatou-se ainda que
o repasse do Fundo Penitenciário Nacional não está sendo empregado e utilizado, uma
vez que em meados de 2018 a previsão de conclusão de obras com os recursos repassados
em 2016 e 2017 era de 55 obras, porém só foram realizadas 5 obras.
Ora, em dezembro de 2016, as doze unidades da federação que foram fiscalizadas,
receberam um valor de R$ 383 milhões que seria utilizado para a construção de vagas,
pois como já fora exposto, há um grande déficit. No entanto, até meados de 2018, foi
utilizada apenas uma porcentagem de 7,2% do valor obtido.
Através das investigações, constatou-se que os atrasos nas obras foram resultados
de ausência ou insuficiência de planejamentos do setor, deficiências administrativas das
próprias unidades federativas, assim como devido à lentidão na análise de processos por
parte do Departamento Penitenciário Nacional.
Há uma ausência de vagas e consequente carência dos estabelecimentos-padrão
estipulados pelo Código penal para o cumprimento da pena no regime semiaberto
(colônia agrícola ou industrial), assim como para o regime aberto (casa de albergado).
Pode-se inferir que essa ausência de gestão, principalmente em 2018, implicou na
ausência de conclusão das obras que eram esperadas, resultando em uma piora na
superlotação carcerária, uma vez que já havia um déficit de vagas e esse déficit não fora
resolvido. É uma problemática que cresce a cada ano e que não pode ser tratada com
descaso.
Com a auditoria, através dos levantamentos de dados, verificou-se, principalmente,
que os recursos percebidos por alguns estados não foram empregados de maneira
“correta”, por exemplo, houve aquisição de objetos incompatíveis com as finalidades no
Estado de Goiás:
804
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
805
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 24. ed. São Paulo:
Saraiva Educação, 2018.
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120). 7. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.
806
PARTE IV
807
CRIMINOLOGIA FEMINISTA E SISTEMA PENAL: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO
DOS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO E SUA REPRODUÇÃO NAS DECISÕES JUDICIAIS
SOBRE CRIMES DE ESTUPRO NO RIO GRANDE DO NORTE
1INTRODUÇÃO
Apesar dos avanços alcançados no que tange os direitos das mulheres brasileiras,
ainda persiste no imaginário social e do judiciário a ideia de um padrão a ser seguido
pelo gênero feminino, fazendo com que os operadores do direito reproduzam esses
estereótipos e preconceitos em seu campo profissional, mais precisamente nos
julgamentos de crimes sexuais, que têm percentual crescente de registros policiais e
exemplificam as violações sofridas pelas mulheres ante da sua condição de gênero.
Diante disso, o presente trabalho intenciona analisar mais especificamente o crime de
estupro como sendo produto das relações desiguais entre homens e mulheres,
objetivando verificar se, no julgamento destes crimes, os magistrados analisam
unicamente o fato em si ou também têm seus discursos contaminados por
discriminações em relação à vítima, naturalizando e justificando a violência sexual
contra as mulheres.
Para isso, em um primeiro momento, objetiva-se conceituar os termos “gênero”
e “patriarcado”, a forma como os papeis de gênero são construídos socialmente e, ainda,
será analisada a violência sexual como violência de gênero, produto das relações
patriarcais de gênero.
Serão abordados, também, alguns aspectos dos crimes sexuais no ordenamento
jurídico brasileiro e sua evolução, bem como as alterações legislativas que trouxeram
importantes modificações para o entendimento da violência sexual.
A pesquisa de caráter bibliográfico também busca analisar criticamente a lógica
seletiva do sistema penal, levando em consideração seu caráter patriarcal e a violência
que este pratica sobre as mulheres, sob a ótica de autoras da Criminologia Crítica e
Feminista, como Vera Regina Pereira de Andrade.
Finalmente, num último momento, serão analisados brevemente os discursos
dos magistrados sobre o crime de estupro, a fim de buscar uma possível reprodução de
discriminações baseadas no gênero, bem como a violência institucional praticada pelo
sistema penal em decorrência da culpabilização da vítima.
808
2.1 Conceitos básicos
Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são
ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo
essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder.
810
A violência sexual do estupro, enquanto violência de gênero, é fenômeno
praticamente universal. Contudo, não é inevitável e muito menos
controlável. [...] É o estupro, enquanto violência de gênero, a mais grave
violência sexual, que tem como vitimas mulheres de todas as faixas
etárias.
Pode-se aferir, portanto, que apesar das conquistas feministas das últimas
décadas, as pesquisas sobre violência sexual, sobretudo o estupro, confirmam que este
se trata de um comportamento marcado pela desigualdade de gênero, baseado nas
relações de poder decorrentes da organização patriarcal da nossa sociedade. Essas
violações resultam da objetificação do corpo da mulher, que é visto como propriedade
do homem e instrumento de manutenção da submissão feminina.
Neste período, a violência sexual era considerada como crime atentatório à honra
da mulher e de sua família, sendo que o bem jurídico tutelado não era a dignidade sexual
da mulher, mas sim os costumes, principalmente aqueles vinculados aos valores
religiosos e a forma como as mulheres deveriam se comportar sexualmente. A legislação
não dava credibilidade à palavra da vítima que não fosse considerada “honesta”,
questionando a veracidade dos fatos que elas declaravam.
Apesar do desuso da expressão “mulher honesta”, que já foi utilizada para
condicionar os crimes de estupro no Brasil, esta categoria só foi abolida em 2005 com o
advento da Lei 11.106, a qual retirou os julgamentos de valor que eram utilizados para
qualificar as vítimas de violência sexual (BRASIL, 2005). Com esta lei, a conduta
consistente em praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal passou a integrar o
tipo do art. 213 do Código Penal que descreve o crime de estupro. Também foram
modificados os artigos 215, 216 supramencionados, além de revogar o artigo 219:
A partir da vigência da Lei 12.015 de 2009 (BRASIL, 2009), também foi alterada
a nomenclatura do Título VI do Código Penal Brasileiro que tinha como chamada “Dos
Crimes Contra os Costumes”, passando então a se adotar a nomenclatura “Dos Crimes
Contra a Dignidade Sexual”, visando proteger, dessa forma, a dignidade sexual da pessoa
humana e não mais os costumes e valores sociais.
Mais recentemente, a Lei 13.718 de 2018 (BRASIL, 2018), introduziu diversas
modificações na seara dos crimes contra a dignidade sexual, inserindo no Código Penal
artigos que tipificam a importunação sexual, tratam da divulgação de cena de estupro e
de estupro de vulnerável e de sexo ou pornografia sem autorização dos envolvidos,
tornam expresso na lei o fato de que o consentimento e a experiência sexual do
vulnerável são irrelevantes para a caracterização do crime e aumentam de um a dois
terços a pena das formas de estupro coletiva ou corretiva.
Diante dessas modificações ao longo do tempo, as condutas caracterizadoras do
crime de estupro foram ampliadas, porém, como será explanado a seguir, ainda
configuram-se como insuficientes para alterar a realidade social, que demonstra que o
812
estupro continua sendo cometido majoritariamente contra a mulher, não se
desvinculando das relações de poder entre o gênero masculino e o gênero feminino.
Os crimes de estupro envolvem uma prática jurídica diferente dos demais crimes,
principalmente no que diz respeito às provas, visto que, sua principal característica é a
dificuldade em comprovar a denúncia da vítima, já que, em geral, o estupro é praticado
em locais isolados, longe de testemunhas.
Nesse sentido, até mesmo o exame de corpo de delito realizado pelo Instituto
Médico Legal pode não ser conclusivo, especialmente nos casos em que a vítima não era
mais virgem e já se passaram muitas horas o acontecido, ou até mesmo quando não há
a conjunção carnal propriamente dita. Importante ressaltar também que, mesmo sendo
comprovado que a vítima teve relação sexual, não é possível constatar se esta foi ou não
consentida, da mesma forma que não se pode afirmar que o homem acusado foi aquele
que manteve a relação.
Portanto, ao desenvolver os processos judiciais, os magistrados contrapõem os
depoimentos dados tanto pela vítima quanto pelo acusado nas fases policial e judicial.
Quando o acusado pelo estupro nega as acusações, a investigação sai do campo da
reconstituição do fato em si e passa para a investigação o comportamento dos
envolvidos. Os agentes jurídicos, através da construção do perfil dos envolvidos,
constroem uma relação entre o comportamento social e a credibilidade das declarações.
Isso pode ser verificado, segundo Barsted (1997, p. 84), pois os operadores do direito
estão submersos numa cultura na qual foram naturalizados determinados estereótipos,
sendo cúmplices da violência simbólica praticada contra o gênero feminino.
Durante muito tempo, a expressão “mulher honesta” fez parte do tipo penal
brasileiro do estupro, visto que a honestidade da mulher era um requisito para a
configuração desse delito. Era feita uma investigação sobre a reputação social e,
principalmente, sexual da mulher, por meio de ideais patriarcais, para analisar se ela
era ou não merecedora da proteção do sistema penal.
Os padrões sexuais impostos às mulheres, estavam e até hoje estão calcados na
dominação masculina sobre os corpos femininos – mesmo que a expressão “mulher
honesta” tenha sido abolida do ordenamento jurídico, demonstrando, inclusive, o
controle político sobre as mulheres, já que suas escolhas sexuais teriam que passar por
uma aceitação social, reafirmada pelo Estado e utilizada como critério para a proteção
jurídica de violência sexual.
Logo, o uso da expressão “mulher honesta” retirava a credibilidade das vítimas
nos crimes de cunho sexual, questionando a veracidade dos fatos declarados por elas e,
813
ainda, reduzindo sua liberdade sexual, excluindo, por exemplo as prostitutas da
categoria de mulheres que poderiam ser estupradas, visto que estas usariam do sexo
como forma de sustento, não podendo reclamar seus direitos sexuais.
Esses padrões, por estarem inseridos num antigo sistema de opressão, não são
facilmente superados, além de que são fortemente reforçados pelo imaginário comum e
pelos sistemas de controle da sociedade, não conseguindo-se superar totalmente as
discriminações contra as mulheres.
Por isso, o tratamento do estupro pelo sistema penal faz prevalecer o que
Andrade (2014, p. 147) denomina de “lógica da honestidade”, que divide e cataloga as
mulheres em dicotomias alicerçadas na moral sexual dominante, contrapondo a mulher
‘puta’ à ‘santa’, a que provocou o estupro e à recatada e de família, ou seja, as mulheres
desonestas às honestas, sendo que somente as últimas são merecedoras da proteção do
Estado.
O sistema penal opera, como já visto, severamente na seleção não somente das
vítimas, mas também daqueles que podem ser considerados criminosos. No tratamento
da violência sexual, o que se julga são o autor e a vítima e suas adequações aos
estereótipos do crime em questão. Portanto, o criminoso seria aquele violador
desconhecido de lascívia desenfreada, enquanto a vítima seria aquela indefesa que
resistiu à violência com todas as suas forças – tendo como acréscimo a “lógica da
honestidade”. Neste sentido, discorre Andrade (2014, p. 147):
814
Destarte, é possível assinalar que a justiça, ao julgar crimes de estupro, resiste
mais em acreditar na mulher quando o suspeito não se encaixa no estereótipo do
“estuprador padrão”, embora, como já vimos, a maioria dos casos de estupro seja
cometida por pessoas próximas à vítima, que nada têm a ver com este estereótipo,
segundo pesquisa do IPEA.
Para Pimentel, Schritzmeyer e Pandjiarjian (1998, p. 207), os operadores do
direito perpetram uma verdadeira violência de gênero contra as mulheres vítimas de
violência sexual, porque não se valem apenas do princípio clássico do in dubio pro reo,
mas basilarmente do in dubio pro stereotypo. Assim, a palavra da vítima é menosprezada
nos casos em que o acusado não se encaixa nesse padrão, quando ele é um “homem de
bem”, com um comportamento social adequado, pai de família, etc.
Como já explanado, o sistema penal opera seletivamente, nos casos de crimes
sexuais, através da “lógica da honestidade”, estabelecendo diferenciações entre
mulheres honestas e desonestas de acordo com sua vida sexual pregressa. Este fator,
combinado a outros que também já foram trabalhados nesta pesquisa, é um importante
elemento que causa a inibição das mulheres a realizarem as denúncias de estupro.
No julgamento desses crimes há, portanto, uma inversão no ônus da prova, pois a
mulher precisa provar que é realmente vítima real e não simulada, precisa provar que
não é culpada por ter sofrido a violência. Neste contexto, embora seja harmonioso o
entendimento de que a palavra da vítima retém grande importância nos crimes desta
natureza, ela terá pouco ou nenhum valor se vier acompanhada de uma figura feminina
que não se encaixe nos padrões de “honestidade” conferidos como obrigatórios às
mulheres.
Em síntese, essa lógica, além de banalizar o estupro, gere também uma descrença
em relação ao sistema penal, visto que este ainda é fortemente influenciado por
preconceitos que valorizam a dominação da mulher pelo homem, que há muito já deveria
ter sido superada, mas que caminha a pequenos passos em direção a isso.
815
Assim, além da violência representada por diversas condutas masculinas (como o
estupro, por exemplo), a mulher se torna vítima, segundo a autora, da violência
institucional que expressa a violência estrutural das relações sociais capitalistas, ou seja,
as desigualdades de classe, e a violência patriarcal que tem fundamento nas relações de
gênero.
A culpabilização da vítima, isto é, a atribuição da responsabilidade da violência
sofrida à mulher, é a chamada “cultura do estupro”, que diz respeito ao fato de que a
sociedade, além de tolerar, incentiva a violência contra as mulheres por meio da
violência sexual, agindo como um processo para constranger as pessoas a se adequarem
aos papéis de gênero.
Essa cultura permeia também o Judiciário, de modo que este reforça todos os
estereótipos de gênero enraizados na sociedade, além do controle sobre a sexualidade
feminina que não pode ser manifestada de forma livre, impondo sentimentos de
vergonha e culpa às mulheres que sofreram violência sexual. Assim sendo, ao acionar o
sistema penal, a vítima é submetida a várias outras violações além das que já sofreu,
passando por suspeitas, constrangimentos e humilhações nas fases de investigação e
jurisdição do crime.
Em conformidade com o exposto, depreende-se que o sistema de justiça penal e
todo o seu aparato é um sistema de violação dos direitos das mulheres e não de proteção
destes. Desta forma, o discurso jurídico exerce sobre as mulheres uma segunda violência,
simbólica e institucionalizada, reproduzindo e ditando os papéis sociais atribuídos a
cada gênero em detrimento de uma moral sexual da classe dominante, assim como
pontua Andrade (1999, p.114): “O sistema penal não pode, portanto, ser um fator de
coesão e unidade entre as mulheres porque atua, ao contrário, como um fator de
dispersão e com uma estratégia excludente, recriando as desigualdades e preconceitos
sociais”.
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 3.ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226,
227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
– Código Penal e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 28 mar. 2005.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Tradução
Chistiane Rufino Debat e Maria Betânia Ávila. New YorK: Columbia Universyty Press,
1989, p. 21.
TELES, Maria Amélia de. e MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher.
São Paulo: Brasiliense, 2002.
821
ASPECTOS HISTÓRICOS DA FAMÍLIA MONOGÂMICA E SEUS MECANISMOS DE
DOMINAÇÃO DAS MULHERES
Rafaela Leandro Pereira
Maria Gabriella Florencio Ferreira
Nívia Cristiane Pereira da Silva
Nathália Pereira Paredes
1 INTRODUÇÃO
Dessa maneira, nota-se que as condições das mulheres nesse estágio da história
são desproporcionais àquelas empregadas aos homens, uma vez que a infidelidade
masculina era aceita e concedida, mas do contrário concebida como crime e punida.
Realizando uma breve viagem ao presente, percebemos que há, ainda, uma naturalização
dos atos infiéis dos homens fundamentados em “impulsos sexuais masculinos”, os quais
as mulheres são destituídas e comumente julgadas socialmente ao ferir essa “norma”.
Com o modelo de matrimônio sindiásmico, era possível a identificação da
paternidade, mas estes não possuíam a responsabilidade de cuidar dos filhos com a
separação – esta era realizada de forma simples. Desse modo, de acordo com Engels
(1979), os filhos do matrimônio só herdavam os bens pela linhagem feminina, e coisa
alguma por parte dos pais ou linhagem paterna, pois esta não era considerada.
Para Engels (1979), apesar da família aqui mencionada ter obtido maior
adequação, às antigas formas de relacionamentos entre homens e mulheres não se
suprimiram inteiramente. Afirma que, em determinadas tribos, matrimônios com mais
de uma mulher era possível, assim como festividades com características sexualmente
“promíscuas”.
Engels (1979) compartilha da tese de que a passagem à monogamia, na fase
superior da barbárie, é resultante, sobretudo, das aspirações das mulheres, pois as
transformações ocorridas no seio da sociedade também alteraram suas condições de
vida, ampliando as opressões. Assim, segundo o autor, era o desejo destas poderem
relacionar-se com apenas um homem, ou nenhum.
Contudo, como já observado, essas relações se desenvolveram de forma desigual,
o que leva a reflexão do quanto essa mudança matrimonial pode ter sido fundamental
para a construção do controle das mulheres, considerando a família enquanto uma
instituição que historicamente desenvolve esse papel a partir desse formato.
As mudanças para outra forma de família, como citado acima, só foi possível de
observação no Velho Mundo. Engels (1979) descreve esse território com avanços
826
significativos na economia, com base no desenvolvimento do trato com os animais,
tornando possível a expansão das riquezas. Assim, cria-se o momento propício para o
surgimento da propriedade privada, inicialmente dos rebanhos, pelos “chefes de
família”.
O autor cita, ainda, que essa propriedade incluía também o trabalho escravo, em
que nessa nova ordem social e econômica se tornaram essenciais para o
desenvolvimento das suas riquezas. Nesse sentido, Lessa (2012) afirma que a vigilância
da classe possuidora das propriedades foi um elemento fundamental para que houvesse
a exploração do trabalho, através do uso da violência, para garantia do excedente
produzido por estes.
Aos poucos, o poder masculino ganhou espaço e força, estabelecendo novas
organizações familiares. Engels (1979), à vista disso, expõe que nesse momento
extinguiu-se o direito materno, passando-o para o pai. Desse modo, aparece em cena o
patriarcado6 como forma de dominação masculina na família e como centralidade na
sociedade, do mesmo modo que age em prol da reprodução econômica de propriedades
para seus filhos.
A perda de poder social das mulheres expressou-se [...] por meio de uma
nova diferenciação sexual do espaço. Nos países mediterrâneos, as
mulheres foram expulsas não apenas de muitos trabalhos assalariados,
como também das ruas, onde uma mulher desacompanhada corria o risco
de ser ridicularizada ou atacada sexualmente (Davis, 1998). Na Inglaterra
–“um paraíso para as mulheres”, na visão de alguns visitantes italianos –,
a presença delas em público também começou a ser malvista. As
mulheres inglesas eram dissuadidas de sentar-se em frente a suas casas
ou de ficar perto das janelas; também eram orientadas a não se reunirem
com suas amigas (nesse período, a palavra gossip [fofoca], que significa
“amiga”, passou a ganhar conotações depreciativas). Inclusive, era
recomendado às mulheres que não visitassem seus pais com muita
frequência depois do casamento (FEDERICI, 2017, p. 200, grifo da
autora).
O fato das mulheres assumirem uma posição de tirania não as isolam de sofrerem
as opressões de estarem nesse espaço. Reproduzem o poder dos homens, mas não
mudam as suas condições. Ao contrário, o poder patriarcal utiliza dessa situação para
manter sua posição de poder.
Esse modelo familiar gerou dois papéis, essencialmente de comportamentos, para
ambos os sexos. As mulheres,
Em contrapartida, os homens
Desse modo, constroem-se normas sociais para direcionar como cada um e cada
uma deve agir e se comportar na sociedade, fundadas pelas relações sociais do período
civilizatório e, mais precisamente, pela família nuclear – a família patriarcal. “Agora, as
mulheres eram retratadas como seres passivos, assexuados, mais obedientes e morais
que os homens, capazes de exercer uma influência positiva sobre eles” (FEDERICI, 2017,
p. 205). Os filhos, ao nascerem e reconhecido que as suas genitálias correspondem a
determinados papéis sociais, são estimulados a seguirem os padrões determinados. A
partir disso, pode-se pensar o sexo como uma construção social.
Ao afirmar que as características de brutalidade, selvageria, crueldade etc. são
dispostas aos homens, e as mulheres como doces, frágeis e ignorantes, significa dizer que
as violências contra estas – de todos os níveis – são concebidas como naturais e
justificáveis. As vítimas, assim, como criaturas que devessem atenuar as situações de
opressões e violências, agirem com doçura a atos agressivos, e serem “sempre perdão”8.
Os conflitos são resolvidos apenas no âmbito privado, em que a sociedade não possui a
concessão de se envolver. As violências contra as mulheres são percebidas como
execução da honra masculina.
Em todo esse processo de formação da propriedade privada das riquezas e
concentração no núcleo familiar, essencialmente burguês, podemos perceber a perda da
autonomia das mulheres. É a partir desse sistema e da família monogâmica patriarcal em
que as opressões se alargam de forma exorbitante, se compararmos as liberdades das
sociedades anteriores ao capital e a exploração do homem-mulher e homem-homem.
O sistema capitalista em desenvolvimento impõe novas formas de relações
pessoais e sociais. Dentro do casamento, como família monogâmica patriarcal, as
desigualdades se alastram, e as mulheres vão se limitando as atividades privadas, não
tendo mais a atribuição com a produção social, em que só há a supremacia do homem.
Tem-se, portanto, mulheres voltadas para a servidão do lar. Vale destacar, à vista disso,
que as mulheres negras possuem um caminho histórico diversos das mulheres brancas,
cujo trabalho produtivo já fazia parte das suas vidas de forma desumana e extremamente
explorada.
Considerando isto, a forma anterior de família coexiste com outras diversas, cujos
papéis se tornam também diferenciados. Apesar disso, a monogamia ainda é um padrão
da nossa sociedade, em que as diferentes constituições que se tornaram reconhecidas na
conformação da sociedade de classes geralmente se incluem nesse modelo.
A naturalização da constituição de família nos moldes da sociedade burguesa,
determina relações de poder que estão diretamente ligadas ao controle do capitalismo,
para barrar um novo contexto que se estabelece para as “novas” organizações de
famílias. Estas, ao transcender a lógica social burguesa fundamentada no
conservadorismo, se colocam como ameaça à estrutura de poder, não havendo
possibilidades de existirem mudanças em um contexto de herança familiar, de uma
ideologia já existente, tendo em vista que “a sociedade molda o que seria família e impõe
regras pelas quais os indivíduos que a compõem devem seguir” (SALES, 2016, p. 10).
O capitalismo instaurado e em desenvolvimento, ao produzir alterações nas
relações sociais, altera toda a dinâmica da sociedade e desencadeia, também,
desigualdades de classe fundamentais para sua manutenção. A introdução das mulheres
no processo produtivo também se tornaram responsáveis pela subsistência das famílias,
mas não alterou a posição desvalorizada e inferiorizada na relação heterossexual, tendo
em vista que “o valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é
o controle, valor que perpassa todas as áreas da convivência social” (SAFFIOTI, 2015 p.
130).
A legalização do divórcio provocou avanços no que se refere ao reconhecimento
dessas outras constituições familiares, possibilitada pela laicização do Estado. O Uruguai
foi o pioneiro na legalização, em 1907, o que no Brasil ocorreu apenas em 1977 de forma
restrita. Cano et al (2009), acerca do caso brasileiro, afirma que antes da legislação que
concedia o divórcio, este já era presente na sociedade de forma velada e reprovada.
832
As autoras supracitadas analisam, ainda, que o divórcio e a introdução das
mulheres no assalariamento significam uma maior independência destas, uma vez que
as chances de permanecerem num casamento indesejado por dependência financeira é
mais remota - embora ocorra, principalmente nas camadas populares, cuja contribuição
financeira mútua no sustento do espaço doméstico é comum.
Sendo assim, não se define família a partir de vínculos conjugais, nem pelo fato de
ter ocorrido relação de natureza sexual, mas pelas circunstâncias de união por meio do
afeto, e dentre outras responsabilidades, que não tem mais haver apenas com raízes de
caráter consanguíneo. Evidencia-se, pois, que na contemporaneidade esse formato de
familiaridade está consolidado e vem se ampliando, no cenário de reorganização
familiar.
Emergiu, também, o reconhecimento da família homoparental, formada por
pessoas que possuem atrações afetivas e sexuais por outras do mesmo sexo, ou que
vivenciam essa sexualidade na formação familiar. De acordo com Dias (2009), a união
não-heterossexual sempre existiu na história da sociedade, todavia, por não fazerem
parte da norma, foram mantidos na invisibilidade.
Vale considerar que desde as notórias marcas de visibilidade de outras
constituições familiares, no âmbito da sociedade, comportamentos e ações reacionárias
das camadas religiosas, que não aceitavam/aceitam o relacionamento de pessoas do
mesmo sexo. Os temores sociais cresciam, na mesma proporção que ocorria com maior
nitidez, as “novas” organizações familiares.
As lutas do movimento LGBT foram e são fundamentais para a visibilidade das
existências dessas pessoas, demandando do Estado respostas para suas necessidades
civilizatórias. No Brasil,
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
836
REFERÊNCIAS
CISNE, Mirla. Gênero, Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social. 2. ed. São
Paulo: Outras Expressões, 2015.
COELHO, Maria Teresa Barros Falcão; DIAS, Cristina Maria de Souza Brito. Avós
Guardiões: Uma Revisão Sistemática de Literatura do Período de 2004 a 2014.
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https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2015_v42.pdf.
Acesso em: 19 out 2019.
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837
mudança da avosidade para a parentalidade baseado na custódia e educação dos
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Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, n. 5, p.
105-119, dez 2012. Disponível em:
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STERN, Luisa. Brasil é o país em que mais se procura pornografia trans e que mais
se mata pessoas trans. Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/brasil-e-
o-pais-em- que-mais-se-procura-pornografia-trans-e-que-mais-se-mata-pessoas-
trans/. Acesso em: 19 out 2019.
838
HISTÓRIA DA SUBJETIVIDADE JURÍDICA SEXO-GÊNERO DISSIDENTE: A
NARRATIVA DE NINA KELLY
1 INTRODUÇÃO
O professor disse:
Por que você não muda o sexo de sua menina? Como é que ela é uma menina e a
senhora bota nome de homem? Se ela tem dois sexos, por que a senhora não tira um e
deixa um? Por que ela é hermafrodita, é?
Ele disse até isso com mãe. Foi por isso que ela me tirou de Mari e me levou para
Natal, porque o povo me chamava de macho-e-fêmea. Pobrezinha, você sabe como é, né?
Esse povo pobre é tudo cismado, tudo com medo. Antigamente não era como é agora. Ah,
agora é liberal. Agora, homem se casa com homem. Mulher se casa com a outra. Troca o
nome na mesma hora, se quiser. Mas, naquele tempo, eu duvido, visse?
Era tão certo, já como era atrofiado, o doutor disse que tinha como operar. Mãe
não deixou porque foram dizer que era para fazer teste. Para que foram dizer isso a ela?
Ela: “Ai, não, não.” Não quis. Se fosse o caso de perguntar, “— Quer?”. Eu diria, “— Sim!”
Eu sem saber. Mas, deixa, que teste é uma coisa que nunca foi feita. Queriam cortar a
pimba, que era embutida. Quem queria fazer era o médico, esse doutor. Disseram para
ela, “— Olha, Dona Maria, é teste”. E ela ficou doida. Como ela não tinha dinheiro para
pagar, ia ser tipo uma experiência. Para ver se dava certo. Ela não deixou. (Nina Kelly)
Nina conta que foi criada pelos pais adotivos, crescendo junto a uma família da
classe trabalhadora rural que a acolheu. Falando sobre sua família, tema muito caro para
pessoas sexo-gênero dissidentes, uma vez que é no meio familiar o primeiro contato com
a LGBTfobia, ela rememora sentimentos de afeto e narra migrações, provavelmente
tendo por objetivo melhores condições de trabalho:
Geraldo, Maria do Carmo, Rosa, Delinha e João Rodrigues. E eu, era de criação. Era
com quem eu fui criado, quem me tem como família, como irmão. Mas não é irmão, é
sobrinho meu. Mas me criou como irmão dele, era para chamar de irmão. De Serraria,
eles começaram a andar. Tu não sabes como é esse povo pobrezinho? Foram morar em
Pilõezinhos ainda; em Amarelinha, ficaram um tempo. Ficaram um tempo em Santo
Antônio, ali perto de Sapé. Aí, pronto, ela comprou uma casa em Mari e ficou lá. Maria
Rodrigues era dona de casa e o povo convidava ela para fazer trabalho de parteira. Zé
Rodrigues fazia serviço de campo. (Nina Kelly)
Lembra-se do nome de sua genitora, Geralda Piojota, da cidade de Serraria,
porém, não guarda detalhes do passado acerca de sua família biológica. Em seu discurso,
justifica que foi entregue à parteira, Maria Rodrigues, porque a família de sua genitora
não aceitava a gravidez. O registro civil, que lhe designa o gênero masculino, foi lavrado
840
na cidade de Mari, então comarca de Sapé, no dia 13 de agosto de 1976, logo, dezessete
anos após o nascimento, constando apenas o nome de Maria Rodrigues da Silva, sem
informações sobre paternidade, além dos avós maternos, Pedro Luis Martins e Josefa
Albina da Silva.
Embora não tenhamos intenções historiográficas, tomemos de empréstimo a
noção de documento-monumento na abordagem deste registro civil, bem como das
fotografias e vídeos apresentados pela interlocutora na evocação e localização das
temporalidades enunciadas em suas memórias (REY, 2010).
Proponho enxergar esses documentos como monumentos da memória sexo-
gênero dissidente paraibana, na linguagem de Jacques LeGoff (2013), em que o conceito
de documento expande o a ideia positivista do texto, como seu sinônimo, abrangendo
documentos escritos, ilustrados, registrados em som, imagem ou qualquer outra mídia.
Independente do suporte, os documentos materializam relações de poder:
841
dispositivos biopolíticos que produzem os gêneros, o que é ser homem e ser mulher, bem
como o seu excesso, as dissidências tratadas como abjetas.
A abjeção, por sua vez, se refere aos processos de subjetivação tocados pela matriz
masculinista cis-heterossexual que exclui corpos dissidentes do estatuto de sujeito,
classificando-os como seu oposto, sua contradição interna, a negação através da qual ele
se afirma (BUTLER, 2000). Isto é, não apenas temos nossa realidade apreendida pelo
centro da cis-heteronormatividade, como somos socialmente marginalizadas(os) pela
expressão de gêneros e sexualidades divergentes.
Os códigos binários de masculino e feminino formam signos de inteligibilidade do
humano, do reconhecimento da condição de sujeito, de modo que o não enquadramento
a estas categorias engendra processos de exclusão. Butler (2016) chama de gêneros
inteligíveis aqueles que mantêm relações de correspondência entre o sexo designado em
função dos órgãos reprodutivos, o gênero culturalmente construído esperado para
aquela anatomia e os desejos manifestados nas práticas sexuais.
A heteronormalidade assegura a reprodução das relações no capitalismo. Ela
opera por meio de procedimentos tecnológicos de inscrição dos papéis e práticas sexuais
atribuídas ao masculino e ao feminino, inscrevendo nos corpos os códigos que
asseguram a exploração de um gênero sobre o outro, de modo que a diferença sexual
corresponda a uma heterodivisão do corpo (PRECIADO, 2014). As memórias da
interlocutora na escola evocam momentos de estigma, estereótipos e preconceito:
Cada tempo que eu ficava na casa do capitão, o homem rico, eu ficava mais
feminina. Pobrezinha não tinha como. Foi outro tererê quando eu voltei. O Capitão de
Campo, Capitão Eliezer, de Tambauzinho, foi na minha casa pediu a minha mãe para
tomar conta de mim. Porque eu era bem pobrezinha. Ela não tinha condições de dar tudo
que eu podia, né? Que eu podia não, que eu queria. Já que eu era mocinha, era menina,
fui crescendo. O capitão Eliezer pediu para tomar conta feito uma pessoa da família dele.
Depois, não fui mais para Mari, fiquei aqui em João Pessoa, me casei aqui em João Pessoa.
Arrumei casa, arrumei marido, tudinho aqui em João Pessoa. Era bom. Foi ele que me
assumiu.
Ah! Foi ele que botou o nome Nina, por causa de uma novela que chamava Nina.
Ele disse:
Ô, Ninor!
Senhor.
Venha cá.
Ele estava assistindo televisão, era até em preto e branco nesse tempo, aquela
televisão antiga, aquele bauzão:
Está vendo o nome dessa novela?
Estou, senhor.
Pois seu nome vai ser o nome dessa novela. Seu nome agora vai ser Nina. Não tem
nada de Ninor. Ninor é nome de homem. Você agora vai ter nome de fêmea. A partir de
hoje, de agora, já sabe, seu nome é Nina.
843
E a minha mãe vai aceitar?
Você mora com quem? Você mora agora com a gente. Se a gente vai aceitar mudar
seu nome, ela vai aceitar também.
Foi dito e feito. Até hoje. Eu cresci lá, eu ia para o interior. Chegava, ela já sabia e
tudo. Meu nome ia ser Nina mesmo.
Não só as relações do espaço público foram impostas pelos invasores
colonialistas, mas, principalmente, as do espaço privado. O pernambucano Gilberto
Freyre (1994), com seus estudos sociológicos na década de 1930, pensava a organização
cultural da família colonial patriarcal brasileira, chefiada pelo senhor de engenho, dono
de terras e escravos(as), a quem devia total submissão a esposa e as(os) filhas(os). A
dominação masculina da casa grande e da senzala estruturava e transferia os poderes do
patriarca da esfera privada para a pública. Nesse ambiente, foi gestada a formação social
e política do país, principalmente do Nordeste.
A família branca, rural, exerceu o maior poder colonizador sobre nosso território,
adquirindo os meios de produção para o desenvolvimento da economia latifundiária,
exportadora de monoculturas a partir do trabalho escravo de africanos(as) e indígenas,
sendo as relações heterossexuais – sacramentadas pela moral católica – as responsáveis
pela transmissão dos laços de sangue e da propriedade privada. Esse modelo de família
vai se ocupar das funções do Estado, governando em nome da metrópole e levando para
o espaço público seus caprichos privados (ITABORAÍ, 2005).
Vânia Maria da Silva Bonfim (2009) vê na família patriarcal e sua economia
escravocrata as bases históricas para a identidade contraditória da mulher negra
brasileira, reduzida à condição de objeto de trabalho e de realização de desejo sexual. A
intelectual considera as conexões entre gênero e raça indispensáveis para pensar a
realidade dessas mulheres, sequestradas de sua organização matriarcal, com autonomia
sobre o próprio corpo, para servir aos machos das oligarquias do novo mundo.
Apesar da imagem conservadora sustentada pelo casamento cristão, os senhores
de engenho controlavam os corpos das mulheres africanas e indígenas, sendo a violência
sexual o doloroso e decisivo meio de branqueamento físico e cultural – ou, como
queiram, miscigenação – da população brasileira (NASCIMENTO, 1978).
Nesse sentido, Durval Muniz (2003) analisa a história do gênero masculino no
Nordeste no começo do século XX, percorrendo a genealogia do “cabra macho” na
reprodução do papel do homem na cultura e sociedade. Nos sertões nordestinos, a
performance masculina se relaciona com a própria imagem áspera, árida e rude da
paisagem, de maneira que o homem será o macho capaz de enfrentar a dureza da seca.
Um projeto de virilidade (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2013) herdado da
tradição patriarcal das famílias de coronéis, que vem se perdendo em face dos processos
de modernização, desenvolvimento, urbanização, conquista dos direitos das mulheres,
direitos da diversidade e, justamente por isso, vem sendo retomado pela ingerência
conservadora em posturas fascistas.
De fato, a tradição patriarcal implantada pelos invasores tem buscado atualizar
suas tecnologias de modulação dos gêneros e sexualidades, em reação às recentes
conquistas de direitos. O fantasma da família patriarcal ronda nossas memórias sobre a
performatividade das identidades de gênero e das práticas sexuais (MISKOLCI, 2009).
Em estudos sobre os discursos memorialísticos dos conquistadores brancos
acerca dos Tupinambá na costa brasileira, Wilma Mendonça pensa o uso das memórias
enquanto textualidade e instrumento de pesquisa. A autora localiza
epistemologicamente a produção de memórias diante da desfragmentação histórica
causada pelo colonialismo, que nos coagiu a aceitar uma realidade construída em cima
844
de nossas dores:
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
848
nutre sua alma transformista para fazer existir uma subjetividade próspera, digna e
louvável.
O trabalho de refazenda da memória das dissidências sexuais e de gênero
caminha pelo compartilhamento da fala. De minha posição jovem, jamais poderia
enunciar tal discurso. Coloquei-me como ponte, meu corpo, meus ouvidos, meu coração
pronto a escutar as histórias narradas pela protagonista da pesquisa e reelaboradas por
mim na etapa de transcrição.
Cruzando nossas memórias, desafiando o confinamento dos territórios na
sociedade capitalista contemporânea, eu me postei à escuta. Ouvir é o contrário de
silenciar. Não sejamos ingênuos, contudo. Foucault já dizia, ainda mais sobre os
dispositivos de sexualidade, que o poder também faz dizer, enunciar a si mesmo,
obrigando sujeitos a fornecerem uma imagem susceptível ao controle. Aqui, no entanto,
estamos agindo pela dilatação das subjetividades históricas na construção de direitos
humanos no Brasil.
O conceito de identidade de gênero enunciado pela interlocutora provoca
reflexões sobre o não-lugar de mulher ocupado pelas travestis e transexuais femininas
na luta por políticas públicas para o seu segmento. A emergência de uma “cara de
mulher” e um “nome de homem”, a contradição localizada nos órgãos reprodutivos para
corpos intersex, a divisão racial e sexual do trabalho imposta a essa população levantam
um debate que atinge a problemática da cidadania.
As personagens construídas pela narrativa referem-se às pessoas guardadas na
memória ou, de tão deslumbrantes, resultam de suas intenções no discurso? Isto e
aquilo! É melhor acreditar na ambivalência do que perder-se no simulacro do
verdadeiro. A lição de seus diálogos, gestos, corporalidades e temáticas grafa o estágio
movediço em que o real se transfigura no fictício. Ao mergulharmos no oceano das
reminiscências trans, enxergamos que o mundo que lutamos para ser verdadeiro está o
tempo todo sendo acusado de falsidade, não restando outra atitude perante a vida a não
ser estabelecer nossa utopia.
A incorporação do gênero acontece na máquina de costura, no cimento e no tijolo
que edifica a casa própria. Mais que um domicílio, um reino de realização de suas
fantasias, pagas pelo preço da solidão. Conectar-se às dores do Outro constitui a tarefa
essencial dos direitos humanos, em suas dimensões práticas e teóricas. Os momentos de
campo mais enriquecedores foram aqueles em que me senti sozinho, distante da família
pelas cobranças do capital em acessar a pós-graduação e pelo afastamento homofóbico,
e fui até a residência de Nina para uma conversa.
Cientes de nossas diferenças, nós redescobríamos na dissidência sexual/de
gênero um lugar comum. Este local, cheio de abjeção e desumanidade, que tentei
materializar nas palavras que compuseram este texto. O método das memórias
autobiográficas institui na área interdisciplinar dos direitos humanos um corte contrário
à tendência universalizante do humanismo que, na modernidade eurocêntrica assassina,
ainda fundamenta os direitos auto- evidentes.
Esta comunicação pretendeu discutir ferramentas para investigação de uma
hermenêutica histórica das subjetividades jurídico-constitucionais, considerando que as
singularidades das vivências pessoais têm o poder de transformar o não-lugar social em
habitação resistente. Eis que, diante da narrativa contada nas linhas anteriores, brota a
sensação de que sempre estivemos por aqui, que a ausência total de direito legislado em
matéria de diversidade sexual e de gênero em nível federal não sedimenta uma
comunidade vencida, mas demarca um terreno a ser ocupado pelo vigor cultural que nos
confere a identidade política necessária a esse movimento.
849
REFERÊNCIAS
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do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Catavento, 2003.
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DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Tradução de Luzia Araújo. São
Leopoldo: Unisinos, 2009.
850
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de Janeiro, 1988, p. 77-86.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. 29ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1994.
852
O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E SUAS FORMAS DE EXPLORAÇÃO: SEXO,
RAÇA E CLASSE
1 INTRODUÇÃO
Tratar uma pessoa da mesma espécie como coisa significa não reconhecer
o ser humano, o que nega a sua própria condição. [...] ao tratar uma
mulher como ‘presa’, evidencia-se que há uma preponderância da sua
dimensão animal (CISNE, 2018, p. 217).
855
determinações das tensões sociais em que grupos discriminados socialmente sofrem,
deixando restrito às suas características particulares, quando na verdade são
provocadas pelo próprio sistema. Assim, individualiza-se e naturaliza-se as opressões,
não deixando aparente que, na verdade, são estruturais e fazem parte da construção
histórica do capitalismo.
A questão social está imbricada ao sistema como aspecto incisivo, cujo capital
institui uma lógica de naturalização das suas expressões. De acordo com Iamamoto
(2001), a questão social surgiu, primordialmente, da contradição do capital versus
trabalho, tendo o Estado para intervir nas inquietações dadas pelas condições dessa
ordem, como os problemas políticos, sociais e culturais. Assim, advém das condições de
trabalho postas aos trabalhadores, de extrema exploração e precarização. Nesse sentido,
vale afirmar que
856
modificaram, também alteraram a posição das mulheres na sociedade e na família.
O capitalismo se torna perverso, também, no que concerne a mercantilização e
objetificação do corpo feminino. Por um lado, há um conservadorismo alicerçado na
ideologia patriarcal, em que coloca às mulheres uma suposta pureza e docilidade, por
outro, consomem conteúdos pornográficos em que os corpos das mulheres são
colocados à venda, ou como materiais de uso público masculino. Essa distinção pode ter
relação com a dicotomia histórica entre esposas e prostitutas: ambas sob o poder do
patriarca.
858
até aqui –, tornando possível a hierarquização de valores. Assim, entende que para
apreender a condição das mulheres nessa sociedade, é necessário analisar como estas
estão inseridas no trabalho, uma vez que este é o elemento motor na sociedade
capitalista.
Assim, com o advento do capitalismo, as mulheres ocupam um espaço
desprivilegiado, em razão da
A maternidade não pode, pois, ser encarada como uma carga exclusiva
das mulheres [...]. [a sociedade] deve pagar pelo menos parte do preço
[...], encontrar soluções satisfatórias para os problemas de natureza
profissional que a maternidade cria para as mulheres (SAFFIOTI, 1979, p.
50).
A cada dia se aprofunda o abismo entre elas, e isso porque suas condições
materiais de vida ficam cada vez mais diferenciadas. O que as leva a
vivenciar o que é próprio do gênero feminino (aquilo que as une) de
maneira diferente. Ser mulher para umas é bem diferente do que ser
mulher para outras. A mulher burguesa por mais oprimida que seja por
ser mulher, não tem dupla jornada, não passa o dia trabalhando, não tem
de lutar por sua sobrevivência. Ela não é explorada. Pelo contrário.
Explora outras mulheres e homens (TOLEDO, 2001, p. 9-10 apud CISNE,
2015, p. 112).
Desse modo, não é preciso que uma mulher seja casada com um homem, e este a
torne submissa dentro do matrimônio, por exemplo. A estrutura do capital, e em todo o
seu desenvolvimento, reproduz o poder patriarcal de modo que ele se entranha nas
instâncias políticas, econômicas e sociais para manter sua hegemonia. O Estado,
enquanto uma instância representativa dos interesses do capital, tão logo da burguesia,
reproduz a lógica patriarcal alicerçado, também, no fundamentalismo religioso.
Assim, a percepção burguesa conservadora aliou-se a uma outra instituição de
poder: a Igreja Católica. Assim, a “[...] Igreja será grande mediadora do pensamento
conservador burguês para manutenção da ordem capitalista por meio da adequação das
pessoas, evidentemente sob uma forte dominação ideológica [...] (CISNE, 2015, p. 51).
Para a autora, essa articulação teve como objetivo o impedimento do avanço comunista,
pois este representava uma ameaça aos interesses burgueses.
Desse modo, ao considerarmos o exposto por Marx e Engels (2008) e as
considerações de Cisne (2015), o conservadorismo fundamentalista está inserido no
Estado, na reprodução patriarcal de papéis e espaços delimitados historicamente. Há
uma lógica de dominação que ultrapassa a esfera econômica, e alcança todos os aspectos
da vida social. As opressões sob as mulheres, desse modo, são institucionalizadas pelo
Estado moderno. A Igreja Católica, assim, reproduz padrões de feminilidade
866
questão social contemporânea é preciso uma análise na realidade social com base crítica
e histórica, pensamento no qual nos encontramos, na perspectiva de tê-la como um
fenômeno estrutural da sociedade.
Assim, entende-se que nos países subdesenvolvidos e periféricos a agudização da
questão social encontra dificuldades para ser enfrentada via Estado. Com isto, segundo
a autora, há um atendimento mínimo e focalizado das necessidades sociais, não
atingindo uma perspectiva universal.
A crise contemporânea desencadeou na sociedade capitalista um processo de
barbárie da vida social, um enfrentamento impetuoso entre as classes sociais. O que se
constata na contemporaneidade, de acordo com Netto (2012), é uma regulação social
baseada na militarização da vida social, a partir da inserção de mecanismos bárbaros no
enfrentamento da segurança pública e como negócio capitalista privado, na produção
bélica nas indústrias.
Esse fato repercute de modo repressivo, atingindo violentamente as classes mais
empobrecidas e, sobretudo, os movimentos sociais, evidenciando o acirramento entre as
classes sociais. Assim, no que concerne aos movimentos sociais, há um ataque, inclusive,
ao movimento feminista e organizações de mulheres, representando a necessidade de
resistência destas numa conjuntura totalmente adversa. Netto (2012) afirma que se
desenvolve na sociedade um estado de guerra permanente, em que não há possibilidades
civilizatórias dentro desse sistema.
Dessa forma, as contradições entre as classes sociais se acirram na sociedade,
sendo essa um espaço de lutas que, formada por sujeitos históricos capazes de
transformar a sociedade capitalista opressora e exploradora em uma sociedade mais
justa e igualitária, há possibilidade de uma contra-hegemonia da classe trabalhadora a
partir da sua organização, mesmo que fragilizada. Dentro desse movimento mais geral
da classe trabalhadora, a partir do seu projeto societário, torna-se essencial as pautas
feministas em suas mais diversas facetas, uma vez que não há homogeneidade em
nenhum grupo e movimento social.
É relevante considerar que os embates dos projetos societários em curso na
sociedade, envolvem interesses sociais contraditórios. Dessa maneira, para haver
viabilidade da superação da ordem societária vigente, faz-se necessário que os
trabalhadores estejam associados com a transformação em uma ordem contra-
hegemônica, e para isso os conflitos entre os projetos societários são fundamentais, pois
reafirmam a luta da classe trabalhadora contra a ordem burguesa opressora.
Nesse contexto, as mulheres encontram um processo de acirramento no controle
das suas vidas. O Estado ao desregulamentar-se perante a lógica neoliberal, e juntamente
com o fundamentalismo religioso, não absorve as demandas por direitos das mulheres,
e corrobora de forma veemente com o controle das sexualidades e espaços públicos e
privados.
Em tempos dilatados para a ampliação da acumulação do capital, ao utiliza-se de
mecanismos para maior exploração do trabalho, impacta de forma particular as
mulheres proletárias e negras. Estas, por ocuparem historicamente espaços mais
precarizados e com baixos salários, estão submetidas a um aprofundamento dessas
condições.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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870
O FEMINICÍDIO E AS IMPLICAÇÕES DA LEI Nº. 13.104/15: UMA ANÁLISE
SOCIOJURÍDICA A PARTIR DA REALIDADE DA PARAÍBA
1 INTRODUÇÃO
871
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA:
Estima-se que a cada ano mais de 100 mulheres são mortas decorrentes de
violência doméstica ou familiar na Paraíba3. Em busca de se mostrar a realidade social e
verificar a gravidade do problema, dados são coletados e estatísticas são calculadas para
se buscar instrumentos eficazes no combate a esse tipo de delito. Todavia, o
levantamento de estatísticas envolvendo questões de gênero não se descortina tão
facilmente.
Coletar dados empíricos para converter em informação e conhecimento hábeis
mostra- se um importante modo para gerar transformação do fenômeno no universo
pesquisado. Para tanto, necessita-se da coleta em diversas fontes para a compreensão
geral da problemática, visto que em casos de violência doméstica, por exemplo, ocorre
uma subnotificação das agressões, o que pode repercutir na identificação do feminicídio
e, consequentemente, nos seus índices de estatísticas. No que tange aos casos de
homicídios, especialmente na Paraíba, os números apontam para um rigor na coleta dos
dados e a busca por retratar fielmente a realidade no Estado.
No entanto, é importante salientar que o Estado da Paraíba, ao contabilizar os
casos de homicídios, diferentemente da maioria das outras Unidades da Federação,
segue criteriosamente a determinação da Secretaria Nacional de Segurança Pública
(SENASP), que estabelece que seja utilizada a nomenclatura CVLI (crime violento letal
intencional) para toda violência intencional que resulte em morte, seja homicídio doloso,
latrocínio, estupro seguido de morte, entre outros, o que pode influenciar no ranking das
estatísticas nacionais, a exemplo do Mapa da Violência e Atlas da Violência, também
utilizados como fontes na pesquisa.
É necessário destacar que em algumas passagens do texto falar-se-á em homicídio
de mulheres (femicídio) ou utilizar-se-á a nomenclatura CVLI referentes à coleta de
dados pelos órgãos institucionais. Isso se deve ao fato de que a as informações acerca
dos crimes chegam primeiramente com a identificação de homicídio ou crime violento
letal intencional e só após a investigação e elucidação dos casos é que a Secretaria de
Estado da Segurança e da Defesa Social (SESDS) da Paraíba tipifica como feminicídio.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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João Pessoa. 2016.
885
O DIREITO À SAÚDE: OMISSÃO INCONSTITUCIONAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
SAÚDE PARA A POPULAÇÃO LGBTIQ+ EM JUAZEIRO DO NORTE
1 INTRODUÇÃO
146 É utilizada a terminação “população” dentre outros sinônimos ao longo deste trabalho para indicar
um agrupamento populacional que compartilha características comuns, neste caso tratando a fobia por
questões de gênero e orientação sexual e o descaso estatal para com o direito à saúde dos mesmos.
147 Princípio previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, constitui um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente à República Federativa do Brasil. (BRASIL, 1988)
148 Tratam-se de princípios sobre a aplicação da legislação Internacional de Direitos Humanos em
relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Eles possuem um amplo espectro de normas de
direitos humanos e são aplicados a questões de orientação sexual e identidade de gênero. Os Princípios
afirmam a obrigação primária dos Estados de implementarem os direitos humanos. Cada princípio é
acompanhado de detalhadas recomendações aos Estados. No entanto, os especialistas também enfatizam
que muitos outros atores têm responsabilidades na promoção e proteção dos direitos humanos.
886
A profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de
cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por
livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios
médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos. (PRINCÍPIOS, 2007, p. 7)
887
2 UM “PROBLEMA” DE GÊNERO: AS DIFICULDADES DE ACESSO À SAÚDE PELA
POPULAÇÃO LGBTIQ+
149 Sempre que mencionada a denominação LGBT – Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais,
entende-se que corresponde à designação tal qual se encontra na redação dos documentos oficiais à época.
888
nela haver um “enquadramento”, ou seja, uma padronização em que estes indivíduos
estão fora do reconhecido e reiterado pelo meio societário. O reconhecimento falado é
visto em regras gerais, costumes e normas, por meio das organizações, interações sociais
e políticas de uma sociedade e é isto que define quem é reconhecido e quem não é. A
padronização demonstrada por Butler é passada, segunda ela, para as operações e
instâncias de poder. Logo, interpreta-se que há uma tendência desta refletir nos serviços
oferecidos pelo Estado ao grupo não reconhecido socialmente, como por exemplo o
direito à saúde digna (BUTLER, 2015, p.14).
150O tema será assunto de tópico específico, porém, de antemão, é válido enfatizar que a política surgida
por Decreto busca integrar e regular o acesso a este determinado setor sócia sob a égide do Sistema Único
de Saúde (SUS).
151O vocábulo “grupos gays” é utilizado pela cartilha da PNSI-LGBT para se referir a todos os setores sexuais
marginalizados durante a historicidade do movimento social destinado a reivindicar estes direitos. A sigla
LGBT , LGBTIQ+ ou outras podem ser utilizadas no texto para relatar o movimento durante seu surgimento
e atuação ao longo do tempo, todavia, deve-se atentar ao fato de que somente tempos depois o movimento
as institucionalizou para representar a parcela.
889
Todavia, o prezar pela saúde da população LGBT foi por muito tempo subalternado
e esquecido pelo fato de este segmento da sociedade ser inferiorizado e considerado
doentio. No momento do acontecimento da Segunda Guerra Mundial (1937-1945), gays e
lésbicas eram submetidos aos mais cruéis tratamentos com o fito de reverter sua
orientação sexual, motivado pela justificativa que esta era algo desvirtuado e anormal,
seguindo a moralidade religiosa dominante na época. Vale ressaltar que, posteriormente
levando em consideração a enorme ocorrência de morte de homossexuais nestes
experimentos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou, no ano de 1990, a
homossexualidade da lista internacional de doenças, e como decorrência, o Conselho
Nacional de Psicologia proibiu os profissionais de realizarem atendimentos às pessoas
com orientação sexual diferente da padronizada socialmente com a intensão de revertê-
la (BRASIL, 2013).
Ademais, em 2018 outro grande avanço ocorreu também por vias da OMS. A
referida Organização desassociou a transexualidade da lista de problemas mentais. Antes
considerada “incongruência de gênero”, a transexualidade após a atualização pelo CID-11
(Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a
Saúde), que substituiu o CID-10 de 1990, foi reinserida em capítulo específico sobre saúde
sexual (OMS, 2019). Essa modificação atualizou mundialmente o tratamento de saúde
destinado a travestilidade e transexualidade no mundo e foi aclamada por militantes de
Direitos Humanos e Saúde Coletiva (ONU, 2019).
Os países têm até 1° de janeiro de 2022 para se adaptarem às mudanças, todavia
as expectativas de melhoramento no que toca a saúde desse grupo podem ser observadas
na afirmação de Victor Madrigal-Borloz e Danius Puras, respectivamente, especialista das
Nações Unidas sobre proteção contra a violência e discriminação por orientação sexual e
identidade de gênero e relator especial das Nações Unidas sobre o direito de saúde:
“Esperamos que esta reclassificação impacte positivamente a percepção errada de que
algumas formas de diversidade de gênero são patologias ou doenças e que isto facilite o
acesso a uma melhor assistência de saúde” (ONU, 2019, p. 1). O ato mencionado dá para a
matéria um pensamento de otimismo e nos leva a crer que a mudança no paradigma da
saúde especializada LGBTIQ+ está ganhando cada vez mais força perante as entidades
internacionais como direção para garantir os direitos humanos dessa amostra. Logo, o
Brasil, por ter consolidado a saúde como direito fundamental na Constituição Federal de
1988 deve buscar meios para seguir a tendência e garantir o previsto na carta magna de
forma eficaz. Para tanto, deve ser analisado, primeiramente, como tal constituição
contempla este direito à saúde e como os fatores de ineficácia são associados a
comunidade LGBTIQ+.
152 “Este conceito refletia, de um lado, uma aspiração nascida dos movimentos sociais do pós-guerra: o fim
do colonialismo, a ascensão do socialismo.” (SCLIAR, 2007, p. 37)
890
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196 evita englobar a discussão sobre
o conceito de saúde, mas a trata como um patrimônio do indivíduo:
891
Nesse sentido, é necessário uma caracterização e análise quanto a intolerância e
discriminação enfrentada pelos LGBTIQ+ quando tentam ou acessam as organizações que
compõe o SUS. Ocorrência esta, que por sua vez influencia diretamente na plena
integridade moral e psicológica de tais pessoas, uma vez que se trata de preconceito e
mesmo que ocorra de forma velada reflete nas suas vidas e corpos.
Ao entrar no SUS, essa parcela demográfica se sente constrangida e coagida de
expressar sua sexualidade livremente e acabam, em virtude do medo e estereótipos
sobreditos somados a despreparo dos profissionais de saúde, afetados pela cultura
heteronormativa de distinção institucional. Isso influencia diretamente no cuidado
apresentado pelo Estado para as questões de saúde especiais a este grupo. Para entender
a problematização da saúde pública e seus efeitos maléficos enquanto discriminatória aos
LGBTIQ+ é necessário avaliar que todas as formas de preconceito por orientação sexual
ou identidade de gênero influi na determinação social da saúde coletiva, pois esta requer
do profissional de saúde uma visão plural e desvestida de estereótipos e preconceitos
para que haja a efetiva acessibilidade e evite as discriminações sofridas por esse público.
Os fatos mencionados são vistos e exemplificados em diferentes formas mediante
o tratado. Conforme a Rede Feminista Saúde (2006, p.19) parte das mulheres lésbicas
nunca fizeram o exame Papanicolau, que previne o câncer de colo de útero. Isso se dá por
razões de “tabu” sobre a orientação sexual delas nos consultórios ginecológicos e quanto
àquelas que procuram o serviço de saúde, cerca de 40% não revelam a sua orientação
sexual, tal fato pode ser explicado pelo constrangimento que é gerado institucionalmente
quando se toca neste assunto, mostrando o despreparo profissional (que vem desde a
graduação) e a ausência de um atendimento humanizado (CAMPOS; ALVES, 2015, p. 4 –
5).
Para caracterização precisa desta discriminação é necessário observa-la nos
diferentes agrupamentos da população LGBTIQ+. Relativamente às transexuais e travestis
nota-se que a discriminação inicia no acolhimento. Muitos transexuais e travestis, pelo
fato de também não ter acesso adequado a banheiros públicos sofrem com problemas
urinários, e a maioria nem procuram o SUS devido a estigmatização e desrespeito quanto
ao seu nome social. É preciso lembrar que, o Ministério da Saúde por meio da nota técnica
nº 18/2014 prevê o uso do nome social no cartão SUS como direito de qualquer pessoa
que se identifique enquanto transexual. No entanto, uma das maiores reclamações neste
sentido é o desrespeito ao nome social durante o atendimento, dentre outras situações
constrangedoras (CAMPOS; ALVES, 2015, p. 5).
Os homens gays e bissexuais também não deixam de sofrer com os estigmas
institucionalizados. De acordo com dados oficiais do último Relatório de Violência
Homofóbica no Brasil, estes são as principiais vítimas de violência e homicídio motivado
por razões homofóbicas na conjuntura nacional (COSTA et al., 2014). Além disso, quando
vão às organizações de saúde e expressam sua orientação sexual, mesmo que o problema
motivador da procura seja diverso, são logo relacionados ao HIV/AIDS, ocasionando uma
exclusão desnecessária que junto aos preconceitos já sofridos diariamente na sociedade
“causam desde baixa de autoestima, sentimentos de culpa, insegurança até isolamento
social, dificuldades de estabelecer e manter relacionamentos amorosos, disfunções
sexuais e episódios depressivos de menor e maior gravidade, incluindo maior risco para
suicídio” (NUNAN, 2004. p. 7 apud CARDOSO; FERRO, 2012. p. 8).
Além de tudo, poderia ser listado aqui outras muitas situações segregadoras com
diferentes indivíduos da população LGBTIQ+, como as exemplificadas. Todavia, é
perceptível que para todos eles o medo é o mesmo, exprimir sua orientação sexual
892
perante os profissionais de saúde ou serem de alguma forma desrespeitados por sua
condição de gênero. Vale salientar que conforme Campos e Alves (2015, p. 5-6):
153 “Documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes
origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo. Estabelece, pela primeira vez, a proteção
universal dos direitos humanos.” (NAÇÕES UNIDAS, 2018)
894
que o maior desafio para a sua implementação não era tanto de ordem jurídica (pois ele
assegura que o valor da Pessoa Humana é um direito positivo, isto é, já observado
solenemente pelas constituições pós Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948)
mas sim de ordem prática. O fato da DUDH ter sido ratificada por diversos países parecia
para Bobbio uma questão meramente formal, sem aplicabilidade prática e despidos da
necessária efetividade para o indivíduo usufruir de sua essência. Para Bobbio é necessária
a promoção de mecanismos para que os direitos do homem não se prendam apenas ao
campo teórico das ideias e terem força de ação, não basta apenas a proteção jurídica.
Inobstante, para Barroso (2006, p. 81), a eficácia dos atos jurídicos consiste na sua
aptidão para a produção de efeitos, para o acontecimento da consequência que lhe foram
desejadas. Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para qual foi gerado. No que toca
as normas, a eficácia designa a qualidade em produzir efeitos, assim eficácia designa
aplicabilidade, a execução da norma e do que nela vinha programado. Nessa linha de
pensamento, as normas constitucionais são classificadas quanto a sua eficácia, no sentido
de delimitar sua aplicabilidade e exigibilidade e quanto a objetividade de seu teor
normativo.
Silva (1999, p. 81) em sua teoria de classificação dividiu as normas constitucionais
em três grupos mediante sua eficácia: plena, contida e limitada. Assim, contextualizando
quanto ao direito a saúde, por ser esse um direito social, classifica-se, conforme Silva,
como uma norma de eficácia limitada, ou seja, de aplicabilidade mediata, já que para ser
eficaz de modo adequado devem ser cumpridas prestações positivas do Estado, bem como
atuação do legislador em complementação à norma maior. Ademais, Barroso (2010, p.
251) conceitua estas normas como:
895
4 UMA ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM JUAZEIRO DO NORTE/CE NA ÓTICA
DO FEDERALISMO DO SUS
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante os tópicos abordados por este artigo torna-se patente que de fato há uma
inconstitucionalidade por omissão, que de fato há uma inacessibilidade e discriminação
organizacional por questões baseadas na intolerância e desrespeito no que tange a
garantia fundamental a saúde da população LGBTIQ+. Tal afirmativa se concretiza pela
não existência de uma Lei Federal que regulamente e norteie a produção de políticas
públicas, logo não havendo um posicionamento do Poder Legislativo sobre a matéria a
897
população supracitada se encontra subalternizada e sofre constantemente com casos de
homofobia e transfobia, configurando uma situação de violência a dignidade da pessoa
humana e da cidadania. No entanto, é valido lembrar que há resoluções, decretos e
portarias que orientam a matéria, mas que não geram uma segurança jurídica nem uma
garantia eficiente para o grupo em questão.
A inconstitucionalidade por omissão existe na relação entre o direito fundamental
a saúde e a atual situação de ineficácia das políticas públicas relacionadas a saúde coletiva
LGBTIQ+ pois o atendimento não comporta a realidade, ou seja, não há uma adequação a
globalidade de acesso tal como previsto na Carta Magna bem como não existe uma
efetivação do seu caráter pluritutelável, ou seja, a não eficácia concretizadora. No entanto
a nível estatual, é valido destacar que o Ceará, encontra-se como o marco inicial de
combate a violência e de integralidade dessa parcela demográfica. Em pesquisa
constatou-se que a Constituição Estadual do Ceará possúi no artigo 14 inciso III a previsão
de punibilidade para qualquer um que discriminar o seu semelhante por conta da
orientação sexual (atração sexual e afetiva) que vai ao encontro de um aparato inclusivo
por meio de ações e políticas públicas, com o intuito de amadurecer a ideia de sensibilizar
os profissionais e capacitá-los para saber lidar com esta parcela da sociedade.
Sendo assim, iniciou-se no final de setembro, mais especificamente no dia 29
(Quinta-Feira) de 2019, o Encontro Estadual de Saúde LGBTQIA+ com o tema “Saúde para
todxs” realizado pela Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) por meio da Coordenadoria de
Políticas e Atenção à Saúde (Copas). O encontro criou o selo “Serviço de Saúde Livre de
LGBTfobia” a ação segundo foi noticiado “visa gerar qualificação da rede de atenção no
cuidado à pessoa LGBTQIA+”, não se trata de vitimizar mas sim de visibilizar essa minoria
, conforme Lia Ferreira Gomes, secretária executiva de Cidadania e Direitos Humanos, da
Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos-SPS: “Essa
população é muito invisível. Há uma necessidade do cuidado integral e conscientizar os
profissionais da saúde para conhecer as doenças mais vulneráveis nessa população [...]”
Ademais, a nível municipal, temos que Juazeiro do Norte/CE possui uma política
recente no que tange a assistência a saúde para a comunidade LGBTIQ+, apenas em 2016
estabeleceu-se uma ratificação mediante o conselho municipal LGBTIQ+ criando-se uma
política integral de saúde, bem como a reafirmação de direitos antes negados, mesmo
sabendo que não há uma eficácia integral das ações por ele concretizadas.
Neste sentido, tendo em vista que há uma crescente demanda reacionada a
temática e sua problematização, é imprescindível a efetivação dos princípios norteadores
do Sistema único de Saúde (SUS) em todas as instancias governamentais com apoio
recíproco, que deve ser expressos em políticas públicas que de fato enfrentem a situação
de LGBTIQ+fobia e heteronormatividade nos espaços institucionais de saúde, visto que
estas são as principais causas de discriminação e exclusão da população estudada na
esfera organizacional do SUS.
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901
UMA ANÁLISE FEMINISTA DOS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA DA VONTADE, DA
AUTONOMIA PRIVADA E DA AUTODETERMINAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Luigi Ferri (apud FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 150) argumenta que embora
indiscutível que a autonomia é uma expressão da liberdade, é possível perceber um uso
indiscriminado das expressões “autonomia privada” e “autonomia da vontade”. O autor
coloca ainda que a própria afirmação de que o negócio jurídico constitui uma expressão
da autonomia depende de uma correta interpretação deste conceito. Para ele, “a
autonomia privada não se identifica com a autonomia do querer” (ibidem, 2017, p. 150).
Sendo assim, embora muitas vezes utilizadas como expressões sinônimas para boa parte
da doutrina civilista brasileira, faz-se mister diferenciar “autonomia da vontade” de
“autonomia privada” e, para tanto, uma retrospectiva histórica, é necessária.
O termo “autonomia da vontade”, embora ainda muito utilizado encontra-se
ultrapassado, posto que se refere a um momento histórico específico, qual seja, a
ascensão do capitalismo e a consolidação do Estado Moderno. Estamos falando do
período pós revoluções burguesas, tomando-se a Revolução Francesa como paradigma,
o que se justifica em razão de seu legado.
É sabido que a Revolução Francesa consistiu em uma reação ao Antigo Regime,
902
marcado pelo Absolutismo, pela estratificação social e pelo privilégio de classes. Neste
sistema, a burguesia, embora responsável em grande medida pelo custeio do Estado, não
detinha participação nas decisões políticas (HOLANDA, OLIVEIRA, 2016, p. 106).
Estamos falando do século XVIII, quando o fortalecimento da economia de mercado
emergente mudou a dinâmica das relações econômicas, sociais e políticas, influenciando
o aperfeiçoamento da teoria do contrato social e o surgimento de um novo tipo de Direito
(HOLANDA, OLIVEIRA, 2016, p. 106).
Assim, a burguesia – classe econômica decorrente do mercado em ascensão –
ambicionava poder político, segurança e liberdade “para realização das relações
mercantis em desenvolvimento, que seria legitimado mediante um contrato entre partes
pressupostamente iguais (HOLANDA, OLIVEIRA, 2016, p. 106-107). Pautando-se nos
ideais iluministas e liberais, que veiculavam os valores de igualdade, liberdade e
fraternidade, a burguesia arregimentou as massas para instituir um novo modelo de
Estado e de Direito (agora, estadualizado), objetivando, através deles, obter poder
político, segurança e liberdade para realização de suas atividades mercantis. Registre-se,
aqui, que a própria concepção de Estado Moderno decorre do chamado contrato social,
que foi um meio de racionalizar o poder político e o Direito.
Esse novo Estado – contrapondo-se ao Estado Absolutista – constitui uma
entidade política consumada, que inseriu o Direito entre os objetivos de autocontrole
(GROSSI, 2007, p. 27). No âmbito jurídico, a Modernidade significou a construção de um
Direito decorrente da função legisladora – processo conhecido por estadualização do
Direito – que tinha por principal objetivo resguardar oferecer segurança para o
desenvolvimento do mercado capitalista em ascensão (HOLANDA, OLIVEIRA, 2016, p.
104).
De acordo com a teoria do contrato social, o Estado e o Direito seriam as razões
pelas quais os homens se uniriam em sociedade, pois proporcionaria liberdade civil. O
Estado Moderno, moldado pelos princípios liberais, criou a ideia de igualdade formal
(igualdade de todos perante a lei), abolindo o princípio do privilégio. Neste sentido,
Otávio Luiz Rodrigues Júnior (2004, p. 116-117) fala sobre o liberalismo:
903
O contrato era, portanto, decorrente da conjunção de vontades humanas e não
uma criação da lei. E essa vontade decorria da liberdade inerente a cada indivíduo social,
somada, ainda, à igualdade formal. Logo, o contrato era “um ato natural e voluntário
constituído pela inteligência e arbítrio do homem, é o exercício da faculdade que ele tem
de dispor dos diversos meios que possui de desenvolver o seu ser e preencher os fins de
sua natureza, de sua existência intelectual, moral e física” (RODRIGUES JÚNIOR, 2004, p.
118). Registre-se, aqui, que a autonomia tinha esse substrato individualista.
É justamente do voluntarismo liberal clássico que surgem os princípios liberais
do contrato como o princípio da força obrigatória (pacta sunt servanda) e o princípio da
relatividade (o contrato não prejudica nem beneficia terceiros). Veja, se o contrato era
fruto da vontade livre entre partes (pressupostas) iguais, logo ele deveria ser cumprido,
já que o contrato era lei entre as partes. Aliás, o Direito dos oitocentos sequer aceitava a
cláusula rebus sic stantibus (cumpra-se o contrato, desde que as condições continuem as
mesmas). Basicamente, a única maneira de invalidar um contrato seria provando vício
na vontade, o que levou à criação da teoria dos vícios de consentimento, ainda vigente
no Direito Civil brasileiro atual.
Nesse diapasão, a autonomia da vontade – fruto do voluntarismo – “concebia o
vínculo contratual como resultado de simples fusão entre manifestações de vontade”
(FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 151), sendo essa a autonomia do querer, clássica e
absoluta, conferida a todos.
Ao longo do século XX, todas as certezas na Modernidade ruíram. As intensas
desigualdades materiais forçaram a superação da igualdade formal, exigindo que as
desigualdades materiais fossem levadas em consideração. Por seu turno, a autonomia
não poderia mais ser compreendida senão levando em conta as condições materiais de
seu exercício. “Todos esses movimentos deram ensejo a que surgisse uma nova visão da
autonomia da vontade, tão própria que repudiará o termo vontade e colocará em
evidência a partícula privada” (RODRIGUES JÚNIOR, 2004, p. 121). Nelson Rosenvald e
Cristiano Chaves (2017) definem a autonomia privada como “o poder concedido ao
sujeito para criar a norma individual nos limites deferidos pelo ordenamento jurídico”.
Assim, o contrato não mais decorre da vontade, mas da lei, que confere aos
indivíduos o poder de regular os efeitos patrimoniais, dentro dos limites legais. Otávio
Luiz Rodrigues Júnior, interligando as posições dos autores Salvatore Romano, Luigi
Ferri, Cariota Ferrara, Santi Romano e Hans Kelsen, expõe sobre a autonomia privada:
Assim, não apenas é excluído das histórias clássicas do contrato original o fato de
que esse contrato é também sexual, como também não é discutido o fato de que as
mulheres estão, na verdade, excluídas dele, pois cabe ao homem a elaboração desse
contrato original. Destarte, não se fala também sobre terem os teóricos clássicos criado
uma versão patriarcal de masculinidade e feminilidade, determinando o que é ser macho
906
ou fêmea. Aqui, apenas aqueles que são do sexo masculino são tidos como seres que
possuem o que é necessário para se participar de um contrato. Em outras palavras,
somente os homens são tratados como indivíduos.
Ao se falar que no estado natural todos os homens nascem livres e são iguais entre
si já há uma clara exclusão das mulheres, pois essas não possuem uma liberdade natural.
A partir disso, é notório que a própria visão clássica do estado natural traz em si uma
sujeição entre homens e mulheres, sobretudo porque os próprios filósofos clássicos
alegam que as mulheres não possuem os atributos e capacidades dos “indivíduos”, ou
seja, dos homens.
Para Carole Pateman (1993, p. 28), “o significado do que é ser um ‘indivíduo’,
produtor de contratos e civilmente livre, é revelado através da sujeição das mulheres
dentro da esfera privada”. Assim, a diferença sexual é entendida como uma diferença
política, uma diferença entre liberdade e submissão. E uma vez que as mulheres não
participam do contrato original utilizado pelos homens para transformar sua liberdade
natural em liberdade civil – não são tidas como sujeitos de direito, pois não são
indivíduos –, elas são tidas como objeto do contrato.
É possível dizer que os contratos reais se assemelham ao modelo de contrato
original, refletindo-o na sociedade moderna na medida em que as partes ao celebrarem
um contrato concordam voluntariamente com seus termos. Nesse diapasão, esses
contratos representam, por excelência, exemplos de liberdade individual, uma vez que a
asseguram. Mas o contrato “dá origem a direitos políticos sob a forma de relações de
dominação e subordinação” (PATEMAN, 1993, p. 25), de modo que as mulheres estão
sempre em uma posição de submissão em relação aos homens, pois esses são detentores
da liberdade individual e aquelas não. Essa relação formada a partir do contrato social
em muito se assemelha a relação entre senhor e escravo, já que a mulher desde o
primeiro momento foi tida como propriedade do homem.
Os ideais democráticos de liberdade e igualdade, resultantes das revoluções
burguesas não incluíam as mulheres, que ainda lutavam pela sua autonomia e poder de
autodeterminação, tendo sido por esse motivo a primeira onda feminista do século XIX
marcada pela questão do sufrágio. Como falar em liberdade individual e na igualdade
entre os homens quando parte da população (as mulheres) nem sequer possuía direito
a eleger seus próprios governantes e com isso votar em favor de legislações que
cessassem as injustiças contra as mulheres?
Os teóricos iluministas, pioneiros da teoria democrática liberal, deliberadamente
excluíram as mulheres de seus projetos políticos. O filósofo John Locke, embora
defendesse que não deveria haver um poder absoluto do rei e se manifestasse a favor de
relações contratuais livres entre os homens, excluiu as mulheres da sociedade civil, uma
vez que não as considerou enquanto participantes desta. Sobre isso, dispõe Andrea Nye:
David Hume (apud NYE, 1995, p. 19), ávido defensor de virtudes como a
solidariedade, pensava os homens enquanto os chefes naturais no lar e que as mulheres
não deveriam participar das relações morais que eram estabelecidas pelos homens, uma
vez que os seres do sexo masculino eram ideais para o papel de porta-vozes da família,
907
enquanto as mulheres possuiriam outras virtudes, sendo essas virtudes tipicamente
femininas.
Já Rousseau (apud NYE, 1995, p. 20) aprofundou-se na questão detalhando a
relação entre a natureza feminina e a submissão das mulheres à autoridade masculina.
O autor pensava as mulheres enquanto seres evidentemente mais fracos por
natureza, sendo essas adequadas para a reprodução, mas não para a participação ativa
na vida pública. Para ele, as mulheres deveriam ser educadas em reclusão sexual,
devendo ser ensinadas a estimular o desejo dos homens e ao mesmo tempo afastar sua
lascívia, visto que a sedução estaria presente em sua própria natureza. Caracterizando-
as como “desejosas de agradar”, ardilosas e vãs, Rousseau ainda coloca que caberia aos
homens governar tais criaturas no âmbito familiar. Assim, é possível perceber que o
sujeito do pensamento clássico iluminista era o homem, pai de família e proprietário,
tendo sido a mulher completamente excluída desse contexto. Por esse motivo, temos
também que a Revolução Francesa, embora fosse um movimento que pregasse ideais
como a igualdade e a liberdade, nada fez para alterar positivamente a situação das
mulheres. Posto isso, Andrea Nye fala dos impactos sofridos
pelas mulheres em razão da Revolução Francesa da seguinte forma:
908
Assim, a Revolução Francesa não melhorou a situação política das mulheres, pois
os ideais democráticos de igualdade e liberdade somente foram atribuídos aos homens.
Eram eles quem exigiam a proteção das instituições democráticas e as normas jurídicas
serviam para tutelar os negócios realizados entre eles, não sendo as mulheres incluídas
na participação política, jurídica e social, o que as igualava aos doentes mentais, aos
criminosos e às crianças. Do mesmo modo, a situação econômica das mulheres também
não sofreu melhorias com o capitalismo e industrialismo (NYE, 1995); em contrapartida,
no feudalismo, ainda que a mulher ocupasse o mesmo local de submissão, o trabalho
exercido por ela era necessário economicamente. Sob essa exclusão a qual estavam
sujeitas as mulheres no âmbito público, expõe Andrea Nye:
912
magistrado que estabelecem seu destino? E de qual corpo estamos
falando? (RODOTÀ apud BARBOZA. ALMEIDA JUNIOR, 2017, p. 251)
A conquista da igualdade material entre os sexos ainda está longe de ser uma
realidade, estando ainda a nossa sociedade repleta de situações que evidenciam que a
mulher segue ocupando uma posição subalterna. Destarte, afirmam Ana Carolina
Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues (2018, online):
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BERTHO, Helena. “O Estado trata o aborto como uma piada”, diz médico
especialista no assunto. Revista Azmina. Disponível em:
<https://azmina.com.br/reportagens/o-estado-trata-aborto-no-brasil-como-uma-
piada/>. Acesso em: 11 de outubro de 2019.
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Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>.
Acesso em: 03 de outubro de 2019.
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<https://pt.org.br/wp-content/uploads/2019/02/mapa-da-violencia_pagina-cmulher- c
ompactado.pdf>. Acesso em: 07 de outubro de 2019.
COFEN. Uma mulher morre a cada 2 dias por aborto inseguro, diz Ministério da
Saúde. Disponível em: <http://www.cofen.gov.br/uma-mulher-morre-a-cada-2-dias-
por-causa-do-a borto-inseguro-diz-ministerio-da-saude_64714.html>. Acesso em: 11
de outubro de 2019.
HOLANDA, Caroline Sátiro de. OLIVEIRA, Olívia Marcelo Pinto de. A codificação (e o
Direito?) a serviço da ideologia patriarcal: uma análise da evolução do direito de
família brasileiro. In: CAÚLA, Bleine Queiroz; OLIVEIRA, Olívia Marcelo Pinto de;
VASQUES, Roberta Duarte. A família no Direito: novas tendências. Vol. 1. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2016.
914
NYE, Andrea. Teoria feminista e as filosofias do homem. Tradução de
Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,1995.
PARADELLA, Rodrigo. Diferença cai em sete anos, mas mulheres ainda ganham
20,5% menos que homens. Agência IBGE Notícias. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012.
915
A ATUAÇÃO DAS MULHERES NO TRÁFICO DE DROGAS NA SOCIEDADE
PATRIARCAL: AUTONOMIA OU SUBMISSÃO?
1 INTRODUÇÃO
Falar das opressões do universo feminino e não citar a igreja católica seria um
dos maiores equívocos, sobretudo, por ser essa instituição religiosa colaboradora nas
ações de “castrar” a sexualidade da mulher e determinar lugares e papéis de submissão
frente aos homens. Dito de outra forma, não citar a igreja seria contribuir para a lacuna
deixada sobre o papel de enquadramento social relegado às mulheres, aos moldes da
boa moça, pura, filha devotada, e seguindo nesse contexto, a excelente esposa e mãe
amorosa, sendo não apenas obrigadas a executar o trabalho doméstico (PATEMAN
1993).
Ainda nesse sentido, segundo a autora, as mulheres, por muito tempo, também
carregarem o peso do “pecado original” e, em razão disso, deveriam ser vigiadas de
perto e por toda a vida, como se já não fosse suficiente, deveriam ainda, seguir
perpetuando a ideia do homem superior a quem cabia o exercício do domínio e da
autoridade. Lamentavelmente, essas concepções ainda estão presentes em diferentes
contextos, mesmo que em menor intensidade do que antes.
Nesse compasso, não é de se estranhar, que as repressões sexuais dirigidas às
mulheres, sobretudo, com apoio da igreja católica, acompanharam histórica e
umbilicalmente o universo feminino, atribuindo ao sexo à função precípua de gerar
filhos e conceber uma família. Na mesma direção, não é difícil de entender que a
prostituição era vista como um pecado e um crime, logo, precisava ser combatida.
Comparação semelhante era feita no período da tradição judaico-cristã, em relação à
sexualidade feminina, a qual era associada ao pecado (PATEMAN 1993).
Igualmente é importante registrar que a figura feminina sempre esteve associada
à ideia de um ser frágil, ocupando uma posição de total dependência à figura masculina,
primeiro pelo pai, irmão e, por fim, pelo marido ou companheiro. Nessa esteira, cabe um
917
destaque às teorias de Lombroso e Ferrero, na obra: “A mulher delinquente: a prostituta
e a mulher normal” (2001), por meio da qual os teóricos europeus esforçaram-se em
provar que a mulher é biologicamente inferior ao homem.
Ambos, renomados representantes da corrente evolucionista, que detém grande
influência nos meios jurídicos e policiais, no fim do século XIX na Europa, os
mencionados autores conceituavam as mulheres com base nas características físicas
que eles consideravam dentro dos padrões de normalidade, buscando analisar àquelas
consideradas desviantes, associando os aspectos físicos aos comportamentos que não
correspondessem ao que se esperava de uma mulher.
Nesse sentido, as desviantes para Lombroso e Ferrero (2017), eram formadas
pelas prostitutas e as criminosas que foram separadas em três modalidades: as
criminosas natas, as criminosas por ocasião e por fim, as criminosas por paixão. O
primeiro grupo: as criminosas natas referem-se aquelas que evoluíram menos que os
homens, que possuem defeitos genéticos e que mais se aproximam das características
masculinas com comportamentos mais violentos do que alguns homens.
As criminosas por ocasião constituíam um tipo mais perverso em razão da
grande característica feminina e de serem dissimuladas em graus distintos. E as
criminosas por paixão, que o nome já denota, são aquelas que agem conforme a
intensidade das paixões vividas. Nesses estudos, os dois autores desconsideram os
fatores culturais e econômicos. Também, deixaram de lado, a análise de atividades
dentro da sociedade que poderiam contribuir para uma melhor compreensão das ações
por elas cometidas.
Uma situação que era muito comum nessa época e que mostra a personalidade
de algumas mulheres, mas ao mesmo tempo, eram acusadas de “desviantes” é o caso
dos casamentos arranjados, por ocasião dos quais muitas mulheres se recusavam a ter
contato físico com seus maridos e consumar o casamento por meio do ato sexual,
chegando a alguns casos, a fugirem. Mas, decidiam não retornarem à casa de seus pais,
para não correrem o risco de serem devolvidas ao seu novo “dono”, o marido. Sem
condições de retorno ao seu lar anterior, restava a maioria dessas mulheres,
praticamente uma única alternativa para sobreviverem: a prostituição (PATEMAN
1993).
Observa-se então, que durante o século XIX não havia uma dissociação dos
crimes cometidos por mulheres em relação aos seus corpos. Isto é, era criado um “saber”
em cima de sua vida, de suas características e de suas práticas sexuais como afirma
Foucault (1988). Os autores Lombroso e Ferrero, são exemplos clássicos de cientistas
que produziram discursos normativos, condenando e tipificando mulheres que não se
encaixavam no padrão.
Mulheres que negavam a maternidade, ocupando espaços públicos, expressando
desejo sexual, cometendo crimes e rejeitando as normas estabelecidas pela burguesia,
de que o espaço privado, era o único destinado às mulheres. Agora, não mais prostitutas
e bruxas, como afirma Campos (1995). Essas mulheres carregavam o peso de serem as
delinquentes, as que ousavam rebelasse contra seus maridos, usar o corpo conforme
suas escolhas e praticar a bruxaria.
Conceituar uma mulher que quebra as regras socialmente impostas e passa a
fazer parte do universo prisional além de não ser uma tarefa fácil para a sociedade, se
configura como algo impactante. Isto é, a sociedade não trata as mulheres que adentram
no universo masculino, pela prática de crimes (exclusivamente cometidos pelos
homens), do mesmo modo que trata àqueles.
Salientamos que durante muito tempo, mais precisamente até meados do século
918
XIX, os crimes que eram imputados às mulheres guardavam relação com o caráter
sexual, sendo das casas de apoio que abrigavam as mesmas, a tarefa de proporcionar o
“enquadramento social”, revertendo comportamentos inadequados para a época e,
tornando-as dóceis, pacatas, com o principal objetivo de voltarem ao espaço doméstico,
amáveis e submissas, seja para seus pais ou maridos (SOARES E ILGENFRITZ 2002).
Não podemos deixar de destacar que as consideradas delinquentes de séculos
atrás, as infratoras do século XXI, passam pela história sendo reprimidas. Ousamos
afirmar, que as mulheres tiveram o seu papel social redefinido à luz das mudanças
ocorridas na família e nas condições sociais e econômicas, ainda que, tardiamente
tenham conquistado direitos políticos e o acesso à educação, tais conquistas foram
fundamentais para mudar o cenário social a que foram submetidas historicamente.
Nesse sentido, a partir do momento que as mulheres passaram a adentrar nos
espaços de atuação pública, com destaque para o mercado de trabalho, elas foram se
deparando com inúmeras restrições, seja no campo dos papéis e atividades a ela
delegados, sejam em relação aos cargos, vítimas de desigualdade salarial, impulsionadas
a ocuparem um novo perfil que lhes permitiram passar do status anterior de esposa e
de mãe para o status de provedora.
Na passagem para uma identidade própria e o reconhecimento social dessa
identidade, as mulheres sofreram um impacto profundo sobre o modelo dominante de
família baseado na ética do provedor, e da mulher unicamente voltada para o marido e
os filhos, pois não tiveram a oportunidade, porque não dizer a liberdade de
desenvolverem as suas potencialidades, as transformações sem as devidas bases e
respeito, lhe trouxeram uma soma de fatores, alguns dos quais serão objetos de análise
nesse artigo.
No entanto, já é possível compreender que o aprisionamento sempre fez parte
da vida das mulheres, em contextos diferentes, mas sendo uma realidade que a
sociedade quer que fique latente, seja por preconceito, seja por vergonha ou até mesmo
para não evidenciar a capacidade da mulher de ser humano passível de falhas. Na
contemporaneidade, milhares de mulheres que passam do espaço privado ao público
em uma tentativa de inserção em atividades remuneradas, tornam-se mão de obra
barata e alvo fácil na mira de aliciadores para a associação ao tráfico de drogas (SOARES
E ILGENFRITZ 2002).
De maneira geral segundo dados do Levantamento Nacional penitenciário-
(INFOPEN-2017), as mulheres presas são majoritariamente pobres, baixa escolaridade
e possuem pouca ou nenhuma instrução profissional. Estão imersas na precariedade e
na exclusão social. Observamos então, que elas levam consigo a herança de
subordinação ao homem em uma relação desigual. Para Lombroso e Fererro (2017), a
mulher criminosa ou delinquente possuía uma aversão à maternidade, e em seus
estudos os autores afirmam que, a “opção” de ser ou não mãe é fundamental para
entender a mulher normal.
Para eles, no caso da criminosa e da prostituta, essa negação à maternidade pode
ser vista como um desvio de conduta dessa mulher, já que a maternidade segundo os
autores fazem parte da docilização feminina. Nesse passo, não é de se estranhar que até
os dias atuais ocorra um julgamento diferenciado do senso comum, e porque não dizer,
de outros meios acerca das mulheres que afirmam serem mães quando passam a
compor a realidade prisional com o propósito de cumprir sua pena.
Não distante de percebermos, o fato é que o cometimento de crimes por
mulheres que possuem filhos causa um incômodo social, ainda maior do que àquelas
que não são mães, dando a entender que a mulher deve ser vista unicamente como a
919
pessoa que tem uma única função é prática cuidar dos filhos que gerou, e o fato de não
o fazê-lo as tornam piores que os homens (SOARES E ILGENFRITZ 2002).
Ainda sobre os autores, Lombroso e Ferrero (2017), as mulheres que eles
afirmavam serem “degeneradas”, como já mencionado, poderiam ser divididas em duas
grandes categorias: prostitutas e criminosas. Para a primeira cabia à forma feminina do
crime, e elas possuíam características muito similares ao homem criminoso, como o
desejo sexual, alcoolismo. Essas mulheres, normalmente, não cometem delitos, ou
quando o fazem eram mais leves e sem grande poder ofensivo.
A categoria formada pelas prostitutas limitava-se a praticar pequenos roubos e
agressões físicas, mesmo assim, não demonstrava grande perigo à sociedade. Para
Lombroso e Ferrero, a segunda categoria, formada por delinquentes constitui uma
classe rara e, segundo os autores, extremamente anormal e degenerada. Essas eram as
mulheres perversas, às vezes até mais que os homens que praticavam crimes.
Em especial, elas possuíam traços masculinos, e os seus crimes eram cometidos
com requintes de crueldade e de violência, como os envenenamentos, assassinatos,
roubos e torturas, às vezes até faziam parte de grupos “gangues”. Para os autores, a
crueldade existente nessas mulheres era exacerbada, e por vezes não se limitavam a
matar, mas fazer a vítima sofrer, e os autores as consideravam grandes inimigas da
sociedade. Atualmente elas são compreendidas como as “inimigas” da sociedade e do
Estado e algumas delas são presas fáceis das armadilhas impostas pela política de
combate às drogas, normatizado pelo Decreto Nº 9.761, de 11 de abril de 2019.
No entanto, cumpre salientar, que não se pretende neste artigo colocar a mulher
que pratica um crime sem que haja a participação masculina, como sendo ela autônoma
de sua própria vontade ou de que a mesma está em um processo de libertação das
“amarras” patriarcais, mas que nesse debate foi evidenciado que dentro da organização
do tráfico de drogas, a mulher ocupa um papel irrelevante.
O fato é que, considerando todas as abordagens feitas até então, esse fenômeno
necessita de uma análise mais profunda, a fim de compreender como ocorre essa
sujeição da mulher ao homem; sujeição que perpassa todos os espaços que constituem
a nossa sociedade, sejam eles positivos ou negativos, lícitos ou ilícitos.
É importante esclarecer que não há pretensão nesse trabalho de afirmar que o
protagonismo feminino esteja atrelado à autoria de crimes. Esse não é o foco de nossa
discussão. No entanto, ao assumir um papel de baixa importância e grande exposição na
hierarquia do tráfico de drogas, como ocorre com a maioria das mulheres, isso só
reafirma que o homem continua assumindo cargos de elevado prestígio inclusive na
hierarquia do crime e, as mulheres continuam sendo a eles subordinadas.
4 CONCLUSÃO
924
significar que, diante das distintas opções que uma mulher venha a ter, ela possa
escolher a que lhe convier, escolher a que lhes trará acesso à alimentação, saúde,
moradia, educação, lazer e acima de tudo, liberdade de ir e vir de onde e para onde
desejar, e a indústria do tráfico não se encaixa aos termos que condizem com a palavra
liberdade, especialmente se foi o único meio encontrado de acesso à sobrevivência.
REFERÊNCIAS
CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e Serviço Social. 2.ed- São
Paulo: Outras expressões, 2015.152p.
SAFFIOTI, H. Não há revolução sem teoria. In: Gênero, patriarcado e violência. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011.
925
A MATERNIDADE SOROPOSITIVA: OS DIREITOS HUMANOS E GARANTIA DO SER
MÃE
1 INTRODUÇÃO
Uma doença altamente mortal. A “peste gay”. Assim fora conhecida a Aids enquanto
doença na década de 80 – período em que o HIV (Human Immunodeficiency Virus) /Aids
(Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) passou a possuir um diagnóstico médico - haja
vista que os maiores índices de contaminação do HIV concentravam-se, sobretudo, na
população LGBTQ+ da época (VARELLA, 2011).
Realizando um breve recorte histórico da Aids nos dias atuais, a teoria mais
acreditada sobre sua origem, refere-se à caça realizada por tribos africanas a um
determinado grupo de macacos - chimpanzés e macacos-verdes - fazendo com que através
desta caça, o vírus fosse transmitido para os humanos (FORATTINI; 1993; UNAIDS, 2015;
SUPERINTERESSANTE, 2018). Contudo, tendo como plano de fundo a atual realidade
global, é necessário entender que a “globalização” da doença foi possibilitada nas décadas
de 60 e 70 a partir da entrada de mercenários de guerra no continente, durante as lutas
de independências que ocorriam na área, sendo potencializada, mundialmente, devido às
aglomerações urbanas e aos testes de tratamento da malária por meio de transfusões
sanguíneas (FORATTINI, 1993; OLTRAMARI, 2004). “A globalização é um fator de
propagação do vírus da Aids devido aos deslocamentos populacionais e à marginalização
dos mais pobres” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2005).
Atualmente, é sabido que a Aids se trata de um fenômeno global, dinâmico e
altamente instável, a qual, ao longo de aproximadamente 40 anos após o seu diagnóstico,
consolidou um série de transformações epidemiológicas: (a) a heterossexualização
(compreende-se que os heterossexuais também podem ser infectados); (b) a
interiorização (inicialmente a Aids era vista como uma doença das cidades grandes, hoje,
nota-se que a Aids está presente nas diversas territorialidades); (c) a pauperização (a
imunodeficiência adquirida que antes afetava um número maior de indivíduos das classes
sociais mais baixa, passa a atacar as camadas mais inferiores da pirâmide social); e (d) a
feminização (os primeiros diagnósticos eram realizados em homens homossexuais ou
bissexuais, o que acarretava em um elevado índice de infecção nos homens, contudo, os
índices de infecção feminina também passaram a se elevar) (BRITO, CASTILHO,
SZWARCWALD, 2001; SOUZA et al., 2010; ANDRADE & CRUZ, 2017).
Nesse sentido, tomando-se o crescimento dos índices de Aids na população
feminina, nota-se que a gestação – seja ela indesejada ou não – acaba por agir como
momento para o diagnóstico da soropositividade nessas mulheres, em que, contudo,
continua mantendo uma posição idealizada sobre o ser mãe (PINTO et al., 2017).
Ressaltando alguns índices valiosíssimos oferecidos pela UNAIDS (Programa
Conjunto das Nações Unidas) pode-se inferir que existe relevante índice de mulheres
grávidas com acesso a tratamentos antirretrovirais. Cerca de 82% das gestantes que
convivem com a Aids, com uma margem de erro de 15 a 20%, possuem acesso aos
tratamentos necessário (UNAIDS, 2018).
Contudo, mesmo mantendo toda a idealização sobre o ser mãe e mesmo com o
oferecimento dos tratamentos necessários para uma gestação com o mínimo de riscos
926
possíveis, nota-se que questões sobre o risco de se infectar o bebê, sobre o ato de abortar
e o medo dos estigmas que seriam criados sobre a mãe e o filho por parte da sociedade se
fazem presentes no contexto da maternidade (SILVA et al., 2019). Porém, observa-se todo
esse sofrimento psíquico que a mulher sofre por parte da sociedade que se torna
imprescindível ressaltar a defesa categórica do seu direito de ser mãe, não apenas por
uma questão ética sobre escolhas pessoais, mas como um direito garantido na
Constituição Federal de 1988:
2 RESULTADOS E DISCUSSÕES
O primeiro caso de morte causada por complicações pela Aids data de 1959, no
lugar que hoje é conhecido por Congo. Contudo, a infecção só veio a ser nomeada no ano
de 1981, com os relatos cada vez mais crescentes de sintomas na população homoafetiva
da época (FORATTINI; 1993; SUPERINTERESSANTE, 2018).
No Brasil, o HIV só passou a ser reconhecido, como um problema emergente em
1985 por parte do Ministério da Saúde, de forma que os movimentos sociais vigentes das
décadas de 70 e 80, período de Redemocratização brasileira no rompimento com o
Regime Militar de 1964, impulsionaram as políticas de saúde pública para que se
atentassem à tal problemática, inaugurando, portanto, uma nova forma de se constituir as
políticas públicas. Vale salientar, ainda, que esse movimento contou com o apoio de
diversas instituições sociais (OLTRAMARI, 2004; SOUZA et al., 2010).
Todavia, mesmo possuindo certa vantagem devido sua precoce resposta à doença,
atualmente o Brasil vem enfrentando um aumento nos seus índices até então controlados.
Isto é, como afirma Grangeiro e colaboradores (2015) e, posteriormente, Greco (2016), o
Brasil construiu para si uma visão de que a epidemia do HIV estaria sendo mantida sob
controle, contudo, a Aids estava e ainda está longe de ser controlada.
Tal fato, podendo ser comprovado em pesquisas que datam desde o ano de 2001,
trazendo dados sobre o crescimento anormal da Aids nos mais diversos grupos sociais do
Brasil (BRITO et al. 2001), e corroboradas por pesquisas mais recentes de 2015, as quais
demonstram a reemergência da epidemia da Aids no continente brasileiro. (GRANGEIRO,
CASTANHEIRA, NEMES, 2015; GRECO, 2016).
Nessa perspectiva de reemergência da Aids, deve-se voltar para a mudança do seu
perfil epidemiológico, isto é, os grupos de risco os quais antes eram resumidos em
homossexuais, hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo,
passaram a se voltar para a sociedade em sua completude. Dessa maneira, qualquer
indivíduo dentro da sociedade poderia estar infectado sem sequer saber. E, com a
heterossexualização da doença, ocorre um aumento significativo no índice de mulheres
com HIV. (ANDRADE & CRUZ, 2017).
A problemática central parte da atividade reprodutiva da mulher, ou seja, do
desejo que as mulheres soropositivas poderiam vir a ter de possuir um filho e exercer o
seu pleno direito de ser mãe. É importante realçar que as mulheres possuem sim tal
direito, como propriamente consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos:
928
ARTIGO XVI Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer
restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair
matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao
casamento, sua duração e sua dissolução. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS; 1948, p.9, grifo nosso).
Dessa forma, o ato sexual, antes visto como um rito de passagem formal para a
vida adulta tanto para a mulher, quanto para o homem, perde sua simbologia que retrata
a vida adulta e passa a representar uma ferramenta para a autonomização do jovem e para
o autoconhecimento. O problema nasce quando tais comportamentos que antes eram
considerados tabu tornam-se comportamentos de risco (PINTO et al., 2017; SILVA et al.,
2019).
Contudo, apesar das relações sexuais, nos dias de hoje possuírem uma visão mais
desconstruída, representando uma fase de autoconhecimento do jovem, nota-se ainda
uma grande influência da superioridade masculina quanto a decisão, por exemplo, do uso
ou não do condom (“camisinha”) nas relações sexuais, o que, consequentemente, aumenta
os riscos para a contração do HIV/Aids. (ANDRADE & CRUZ, 2017; PINTO et al., 2017;
AMAZONAS, LOURENÇO & LIMA, 2018; SILVA et al., 2019).
Além da masculinidade possuir tal lugar privilegiado de escolha, deve-se entender
que, como afirma Vilela e Barbosa (2017), citados em Amazonas, Lourenço e Lima (2018),
as mulheres não se identificam como um grupo de risco, fato esse que possibilitou uma
eclosão silenciosa da IST na população feminina. Essa não identificação com grupos de
risco deriva, como um dos principais motivos, da visão de que a conduta determinaria a
possibilidade de possuir ou não a doença, em que apenas as vivências femininas
consideradas como promíscuas pelos moldes sociais seriam determinantes para o
diagnóstico da soropositividade (AMAZONAS, LOURENÇO & LIMA, 2018).
Outra característica abordada nos estudos de Rasera e Santos (2016) mostra a
soropositividade como uma ameaça à identidade da mulher, não apenas por representar,
através dos modelos sociais, uma promiscuidade da vida, mas, também, por criar um
medo na mulher que a impede de se mostrar como uma mulher soropositiva:
929
Marina: Ah, em tudo, eu acho que eu, pra começo, eu num vou mentir
nada. (...) E, o grupo, vai ser bom porque eu vou ser a Marina autêntica. E
fora do grupo eu num sou autêntica (RASERA, SANTOS & JAPUR, 2016, p.
427)
Possuir Aids e ser responsável pela gestação de um novo ser não é uma tarefa
simples. Ainda mais quando a própria gestação age como o momento do diagnóstico da
soropositividade, haja vista os necessários exames realizados no pré-natal. Todavia,
mesmo com a presença da IST (infecção sexualmente transmissível), a maternidade ainda
continua a possuir uma posição idealizada, em que o dever social do ser mãe é garantir a
segurança do feto (CARVALHO, PICCININI, 2006; PINTO et al., 2017).
Sabendo que a Aids está crescendo constantemente no mundo e no Brasil, e que
ainda há certas lacunas na conscientização civil sobre o HIV, inúmeras mulheres ao
receberem a surpresa de estarem grávidas e, ao mesmo tempo, serem identificadas como
soropositivas para o vírus da Aids, constroem e vivem medos, além da existência dos
estigmas sociais criados sobre elas que as classificam como um grupo passível de ser visto
como abominável dentro da sociedade (GOFFMAN, 1963; CARVALHO & PICCININI, 2006).
A existência de dúvidas e temores recorrentes, colocando a mulher em um estado
de “tortura” mental, muitas vezes são acarretados pela falta de informação sobre a relação
entre doença e gestação. Ademais, o HIV não se trata apenas de uma doença física, ela
exige o confronto com a própria feminilidade, sexualidade, crenças e valores, em que os
preconceitos que a sociedade impôs e impõe sobre elas, passam a ser projetados nelas e
por elas (CARVALHO & PICCININI, 2006).
É importante dissertar sobre o fato de que a Aids ainda é vista como um sinal da
morte iminente, não apenas pela desinformação, mas também pela imagem construída
dos pacientes vivendo com HIV em filmes sobre a temática, como Clube de Compra Dallas
(2013)154. Logo, parte da população lança juízos valorativos sobre informações que
correm livres na mídia e as tomam como realidade. Como declara o músico e compositor
francês Claude Debussy (1862-1918): “Obras de arte fazem regras, mas as regras não
fazem obras de arte”.
Somado a toda a frustração de se enfrentar o diagnóstico de uma doença séria e à
descoberta da gravidez, as relações familiares são afetadas. Como afirma Carvalho e
Piccinini (2006) e Pinto e colaboradores (2017), a quebra com as relações familiares
causam sentimento de perda e solidão.
A princípio, deve-se entender que as mães que possuem HIV/Aids devem ter uma
instrução básica, com o apoio interdisciplinar da medicina e da psicologia, isto é, de
maneira integralizada, para que o auxílio na gestação seja por completo. Assim como as
mulheres que já tiverem um contato com a IST, ao engravidarem, não escolham o aborto,
sobretudo clandestino, como primeira opção para a resolução das dificuldades (BRASIL,
1988; SILVA et al., 2019). Afinal,
Artigo XXVI Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será
gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. [...] A
instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
humanos e pelas liberdades fundamentais. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL
DOS DIREITOS HUMANOS; 1948, p.14).
Portanto, tomando essas declarações como base para a construção de uma saúde
igualitária e integrada, deve-se compreender que todas as mulheres possuem o direito de
construir sua família, possuindo o Estado como aliado para a garantia da sua saúde
enquanto mulher e mãe soropositiva, bem como garantir a proteção e saúde do filho.
Afinal, “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”
(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).
932
Direitos Humanos e a proteção do desejo de se constituir uma família, por exemplo.
Constituição Federal de 1988 Não obstante, compreende-se que a mulher soropositiva, bem
como qualquer outro indivíduo que convive com o HIV, possui
o direito na participação em qualquer atividade coletiva,
sendo garantindo, portanto, a sua inclusão dentro da
sociedade como um todo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível perceber que a Aids, apesar dos 30 anos de estudos produzidos sobre
tal doença, ainda é vista como um diagnóstico que aproxima qualquer pessoa da morte.
Por uma herança patriarcal, a mulher é posta em um lugar ainda mais perigoso, visto que,
mesmo tendo a possibilidade de possuir HIV como qualquer outro indivíduo, à ela não são
construídas, em primeira instância, medidas de saúde voltadas para a mulher enquanto
mulher, mas, sim, a mulher enquanto mãe, reforçando o seu papel social de cuidadora da
família.
Nota-se, então, que a gestação possui um espaço privilegiado, em que o feto é visto
como a vida mais importante do momento. Além disso, parte da sociedade ainda lança
juízos de valores sobre uma gestante soropositiva, muitas vezes a culpando por ser
doente, classificando-a como uma mãe que não condiz com o modelo social de ser mãe.
Assim, deve-se considerar a necessidade que mulheres gestantes soropositivas precisam,
não apenas na área técnica da medicina, mas também nos seus contextos sociais e
culturais, para manter certa estabilidade física e emocional frente às dificuldades que
serão enfrentadas ao longo do percurso da maternidade como o ciclo que é - gestação,
parto e criação.
Se apenas o fato de ser mãe é um fenômeno que assusta inúmeras mulheres, a
maternidade e a soropositividade são contextos que causam sentimentos contraditórios,
que enfraquecedores e, ao mesmo tempo, fortalecedores da sua condição como
soropositiva. A gestante de sorologia positiva deve estar bem para que o seu filho nasça
bem. Isto é, a mulher e o filho devem ser enxergados como um conjunto que necessita de
um cuidado especializado.
REFERÊNCIAS
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Considerações Sobre A Feminização Da Aids. Semana de Pesquisa da Universidade
Tiradentes-SEMPESq, n. 19, 2018.
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VIEIRA, Elisabeth Meloni. A Medicalização do Corpo Feminino. 20. ed. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2002.
935
INEFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA NA APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS
DE URGÊNCIA
1 INTRODUÇÃO
Violência significa o excesso de força de uns sobre outros, ato de violar outrem,
de modo a expressar atos contrários à liberdade e à vontade de alguém. (MODERNA,
2016, p. 8). Para Azevedo (1985, p. 19), a violência é entendida como, toda iniciativa que
procura exercer coação sobre a liberdade de alguém, que tenta impedir-lhe a liberdade
de reflexão, de julgamento, dedicação e que, termina por rebaixar alguém em nível de
meio ou instrumento
num projeto, que a absorve e engloba, sem tratá-lo como parceiro livre e igual.
Sendo assim, a violência é um fenômeno que pode ocorrer com qualquer pessoa
e está presente em todos os países do globo.
Desse modo, nota-se que a violência causa consequências na vida das pessoas,
aquele que agride domina o estado emocional da vítima, fazendo com que a mesma se
sinta culpada por estar naquela situação.
A violência doméstica, também chamada de violência familiar, é todo tipo de
violência que causa dor e sofrimento à vítima, seja ela moral, psicológica, física, sexual
ou patrimonial, motivada por um sentimento de posse, sobre a vida e escolhas daquela
mulher dentro de um âmbito doméstico (GALVÃO, 2001, on-line).
A violência contra a mulher é um fenômeno que tem se intensificado diariamente,
a cada um minuto alguma mulher sofre algum tipo de violência. Para Stampacchio (1995,
p. 114), entende-se a violência doméstica como “a manifestação da violência de gênero
na relação de pares conjugais (ou amorosos) no espaço intrafamiliar”.
É possível analisar a violência doméstica como um fenômeno histórico, enraizado
na sociedade que está ligado diretamente às desigualdades culturais existentes entre
homens e mulheres.
Para Mello (2004, p 95), “a violência dentro do contexto familiar parece que ainda
é concebida como um evento privado. Isto implica numa cultura de crenças e condutas,
por agentes do Estado, que legitimam ou normatizam a violência intrafamiliar, ao invés,
de proteger a vítima”. Desse modo, Vicente (1996, p. 60-61) questiona o porquê as
mulheres não rompem com esse relacionamento violento. Algumas razões podem ser
apontadas, como:
937
A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), adotou, em
1994, a Convenção de Belém do Pará, conhecida como Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a Mulher, essa convenção entende a
violência como:
Ainda, essa convenção estabelece que a violência contra a mulher viola os direitos
humanos e liberdades fundamentais, sendo a sua adoção importante para proteger os
direitos dessas vítimas e eliminar as situações de violência contra elas. Diante disso, é
perceptível que a mulher sofre violência pelo simples fato de ser mulher, uma vez que a
sociedade coloca o homem em uma posição superior, sendo este proprietário da mesma.
Nesse sentido, para Safiotti (2004, p. 48), a violência é entendida como: “violência
de gênero é a violência contra mulher, simplesmente por ser mulher independente de sua
cor, etnia, classe social e perpetrada pelos homens”.
Pensando nisso, em 07 de agosto de 2006, foi sancionada a lei 11.340/2006, lei
esta que foi criada em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que foi vítima da
violência doméstica durante 23 anos do seu casamento. Por duas vezes o seu marido
tentou assassiná-la, na primeira vez utilizando uma arma de fogo, deixando-a
paraplégica. Na segunda vez, foi eletrocussão e afogamento. Após todas essas tentativas
de homicídio, Maria da Penha tomou coragem e o denunciou. Seu marido foi punido pelo
poder público em 2003, porém, cumpriu apenas uma pena de dois anos e hoje está em
liberdade2. Diante disso, foi necessária a criação de uma lei que pudesse assegurar a
integridade física e psicológica dessas mulheres.
Segundo a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/206), configura-se violência doméstica
contra a mulher:
Art. 5o. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial (PLANALTO, 2018, on-line).
941
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra
a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no
9.099, de 26 de setembro de 1995 (BRASIL, 2018, on-line).
E a partir da criação dessa lei foi criado um órgão próprio para julgar os casos de
violência doméstica, chamado de Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher. Por meio deles foi possível que a mulher, vítima de violência, pudesse unir em um
único procedimento todos os seus direitos e garantias que antes era preciso requerer
assistência em diversos órgãos jurisdicionais, como a vara cível, família, infância, entre
outros.
Além dessas ações, outros importantes dispositivos foram criados com intuito de
assegurar maior eficácia e celeridade na proteção das vítimas, como a equipe de
atendimento multidisciplinar, com profissionais especializados nas áreas psicossociais,
saúde e questões jurídicas, conforme previsão nos artigos 29 e 30.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi exposto, é notável que apesar do Brasil ainda estar muito
longe de erradicar a violência doméstica contra a mulher, a Lei Maria da Penha é de fato
uma grande contribuição para o enfrentamento da violência contra a mulher e na maior
rigidez quanto às punições dos agressores. Esta é uma das leis mais inovadoras e
943
completas que tratam desse tipo de crime previsto no ordenamento jurídico.
Porém, as medidas protetivas não possuem toda a sua eficácia pretendida, além
da morosidade da justiça, quando ocorre a sua concessão, as mulheres continuam em
situação de violência, faltando uma maior proteção, fiscalização e um número adequado
de profissionais que estejam qualificados para atender essas vítimas de forma mais
individual e próxima, contribuindo assim, para a ineficácia das medidas de proteção.
A violência contra a mulher ainda é um assunto que é visto como um tabu, algo
que se finge não existir, uma vez que é oriundo de questões culturais, religiosas e sociais,
fixadas na sociedade, o que faz com que as mulheres aceitem viver nesta condição. A
violência retira da mulher seus direitos, seu exercício pleno da cidadania e fere o exposto
no artigo 5º, I, da Constituição Federal, de modo que a vítima se sinta culpada, inferior e
submissa ao seu agressor.
Durante o trabalho, observaram-se vários casos nos quais as vítimas foram à
delegacia realizar um boletim de ocorrência, requerendo medidas protetivas e algumas
delas, por mais de uma vez devido à falta de proteção e fiscalização pelo poder público,
vieram a sofrer novas agressões e até mesmo a serem assassinadas por seu ofensor.
Assim, nota-se que ainda há lacunas na lei quanto à aplicação, execução e
fiscalização das medidas de proteção. Faltam políticas de conscientização dos
profissionais que trabalham na delegacia para que a mulher não seja julgada pela
violência sofrida, mas sim, tratada como vítima da situação em questão.
Desse modo, o combate a violência cabe não só ao Poder Judiciário, dando a
devida celeridade na concessão das medidas de proteção e uma maior fiscalização para
que haja a eficácia da lei, mas, deve existir um entrosamento entre todos os Poderes a
partir da criação de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, emprego, assistência
e a capacitação de profissionais para atender tais vítimas, dando a elas um atendimento
mais humanizado.
Portanto, é necessário investir em campanhas que esclareçam sobre o que é a
violência doméstica contra a mulher, além de orientações sobre seus direitos e
campanhas que incentivem a denúncia, de modo que a lei 11.340/2006 e as medidas
protetivas possam se tornar mais céleres e eficazes.
REFERÊNCIAS
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novos instrumentos de proteção às mulheres. Projeto BuscaLegis 2007.
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Psicologia. PUCSP, São Paulo, 1996
947
CONTROLE E CULPABILIZAÇÃO DA VÍTIMA: A INFLUÊNCIA DAS QUESTÕES DE
GÊNERO NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHER
1 INTRODUÇÃO
A violência contra mulher, traduz-se como uma violência de gênero, pois permeia
complexos aspectos históricos, sociais e culturais que subsidiam relações interpessoais
desiguais, destacando a hegemonia do poder masculino em sobreposição a
subalternidade da mulher, resultando na sedimentação de “imagens reprodutoras de
papeis sociais que definem o ser mulher e ser homem” (RODRIGUES et al, 2016, p.2). A
violência contra mulher foi definida pela Convenção de Belém do Pará (1994), como
sendo: “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.”
(Art.1º).
Trazendo para seara da violência sexual, considerada “uma das mais graves
expressões das iniquidades de gênero, visto que atinge em sua maioria meninas e
mulheres” (BAIGORRIA, 2017, p. 819); destacamos uma definição vasta apresentada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), caracterizando-a como uma série de condutas,
tentativas, comentários, investidas indesejadas de cunho sexual, incluindo os atos
voltados para o tráfico sexual de pessoas (NUNES, LIMA, MORAIS, 2017, p.958), podendo
ser praticada por qualquer pessoa, indepedentemente do contexto (BAIGORRIA, 2017, p.
819). Sendo assim há um desrespeito contra a autonomia/liberdade sexual do indivíduo,
através de atos coercitivos praticados por qualquer pessoa, independentemente da
proximidade afetiva com a vítima e do ambiente:
Sabe-se que a violência sexual também pode ser perpetrada contra homens, mas
quando comparado quantitativamente com o número de mulheres acometidas, observa-
se uma discrepante diferença. De acordo com a pesquisa do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (2014), o sexo do agressor sexual é masculino em 92,55% dos casos,
quando a vítima é criança; 96,69% quando a vítima é adolescente; e 96,66% quando a
vítima é adulta, ou seja, a maioria esmagadora dos agressores é do sexo masculino,
independentemente da idade da vítima (CERQUEIRA; COELHO, 2014)5.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada dez
mulheres no mundo, foi vítima de estupro ou violação até os 20 anos de idade (ARAÚJO,
2014). Já de acordo com a OMS, estima-se que 12 milhões de pessoas no mundo sejam
atingidas anualmente pela violencia sexual, número inferior que não evidencia a
realidade, levando-se em conta que muitos casos acontecem no seio intrafamiliar, não
chegando sequer ao conhecimento público (BAIGORRIA, 2017, p. 819). Essas
informações denotam que o problema da violência sexual contra mulher não possui
948
limites geográficos, tanto acometem países desenvolvidos, quanto aqueles em fase de
desenvolvimento.
No Brasil, o quadro também é alarmante; de acordo com o Panorama da violência
contra mulheres (2018), a violência interpessoal praticada contra mulher tem crescido
ano a ano, mais especificamente a respeito dos casos de violências sexuais, houve um
aumento considerável no período de 2011- 2016, de 14.237 para 27.059 casos. (BRASIL,
2018, p.9-10).
As pesquisas realizadas em 2017 e no início de 2019, pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Datafolha, revelaram que para
cada dez mulheres três sofrem violência, considerando que 40% das entrevistadas
reportaram terem vivenciado algum tipo de importunação sexual, estima-se que 22
milhões de mulheres já sofreram esse evento, ou seja, para cada dez mulheres quase
quatro já foram vítimas de algum tipo assédio. Essa mesma pesquisa também
demonstrou que apenas 18% das entrevistadas fizeram boletim de ocorrência, enquanto
52% não tomaram qualquer atitude frente a violência sofrida (FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA; INSTITUTO DATAFOLHA; 2019, p.18).
Diante do exposto, o presente estudo busca fomentar o debate a cerca da violência
sexual contra mulher, seja ela praticada no âmbito doméstico/familiar ou não, de modo
a expor quais os empecilhos existentes no campo social, jurídico e prático que de
alguma forma, direta ou indiretamente, desestimulam as vítimas a procurarem auxílio
nos órgãos oficiais do Estado e dificultam o enfrentamento efetivo contra violência
sexual perpetrada contra mulher.
No transcorrer deste estudo, seguiremos uma ordem lógico-didática de
raciocínio, primeiramente trazendo à luz questões socioculturais da mulher na
sociedade, posteriormente acrescentaremos informações legislativas, jurídico-penais e
práticas que também estão imbricadas, influenciando nesse fenômeno exposto acima
Para alcançar esse intento, utilizamos uma pesquisa bibliográfica, exploratória,
com abordagem qualitativa, baseando-nos em materiais já publicados, como livros,
artigos, doutrinas, dissertações, teses, leis, resoluções, decretos, demais documentos e
textos publicados em sites confiáveis e periódicos eletrônicos (GERHARDT; SILVEIRA,
2009; PRAÇA, 2015).
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz
por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável:
ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas...em
todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus
dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de
pensamento e de ação. (BOURDIEU, 2002, p.8).
Sousa e Sirelli (2018, p. 327) relacionam essa divisão desigual com o sistema
capitalista patriarcal, não ocorrendo de maneira aleatória, mas para manter sobretudo o
status quo: “com a instauração da propriedade privada e a necessidade de herdeiros, a
mulher perde a sua autonomia e passa a existir em função da família: casar, gerar filhos e
cuidar da casa, do marido e da prole, tornando-se uma extensão do homem” (SOUSA;
SIRELLI; 2018, p. 327).
Os autores supracitados acreditam que a criação do excedente no sistema
capitalista, possibilita a criação da família patriarcal na atualidade, o homem assume o
poder sobre os demais membros da casa e a mulher passa a ser sua propriedade,
“destinada à procriação, a cuidar da casa e dos filhos, bem como dar prazer sexual ao
homem reprodução da força de trabalho a ser explorada.” (SOUSA; SIRELLI; 2018, p.
332)
Homens e mulheres são dotados de animus (princípio masculino) e anima
(princípio feminino), contudo a sociedade estimula o desenvolvimento do animus no
homem, cujo elemento central é o poder, ao mesmo tempo o desencoraja na mulher. Esse
desequilíbrio resulta em “homens prontos para transformar agressividade em agressão;
e mulheres de outra parte, sensíveis, mas frágeis para enfrentar a vida.” (SAFFIOTI, 2015,
p.39)
Corrobando o com o pensamente da autora acima mencionado, Paulino-Pereira,
Santos e Mendes (2017, p.5) asseveram que os homens são educados para “reprimir suas
emoções, não demonstrando afetividade e utilizando o poder e a agressão como
ferramentas para se autodeterminarem enquanto machos, enquanto as mulheres são
950
educadas para apresentar fragilidade, submissão, sensibilidade.”
Nessa perspectiva de dominação/subordinação entre os gêneros, a mulher é
destituída de autonomia e do direito de decidir, inclusisve sobre seu próprio corpo, este
é objetificado, coisificado e transformado em mero receptáculo do desejo e instrumento
de prazer para o homem. De acordo com Pateman (1993), as mulheres estão sujeitas a
um contrato sexual que lhes tolhe a liberdade de usufruir do próprio corpo da maneira
que desejarem, seria uma espécie de “lei do direito sexual masculino” (PATEMAN, 1993,
p.17):
952
2.1 Vítimas culpadas e silenciadas: empecilhos para procura de auxílio junto aos
órgãos oficiais, o medo da dupla violência
953
Constata-se, dessa maneira, que o lugar onde a menina deveria ser
idealmente protegida é, também, o local onde, possivelmente, ela será
vitimada. E, muitas vezes, sem ter a quem recorrer, visto que o
depoimento da vítima contra um agressor conhecido tem a tendência de
ser abafado, para não ‘destruir a vida do estuprador’ que é, até mesmo,
tido como mais uma ‘vítima’ da situação. As famílias não querem, num
primeiro momento, admitir que aquela bestialidade possa ter acontecido
debaixo do seu teto sagrado, optando, muitas vezes, por negar o
acontecido. (SOUSA, 2017, p.19).
A Lei 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, trabalha com as diversas
formas de violência doméstica contra mulher, contudo, mesmo que num primeiro
momento possa parecer que há uma restrição de alcance da referida norma apenas para
crimes cometidos no âmbito da unidade doméstica, não é o que alude no seu Art. 5º, nos
incisos II e III, abrangindo o âmbito familiar, “comunidade formada por indivíduos que
são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa” e “qualquer relação de íntima de afeto” com o agressor, independente
de coabitação.
Texto este que explicita exatamente o que alude a Súmula 600 do STJ: “Para a
configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei n.
11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima.”
(Súmula 600, 3ª seção, julgado em 22/11/2017).
Interessante ressaltar ainda, que esses dados fogem do que idealiza imaginário
social e do que prega a grande mídia, tristemente não há local aonde a mulher possa se
sentir segura e livre da possibilidade iminente de ser violentada, seja num beco escuro
tarde da noite ou mesmo em ambientes privados/domésticos, onde geralmente se espera
encontrar segurança. Essa circunstância acaba obstaculizando à realização da denúncia,
seja para manter a aparência social de “família perfeita”, ou por outros motivos de caráter
prático (depedência social e financeira) ou subjetivo (afeição):
Junta-se o fato do agressor ser conhecido, o local do crime ser privado em sua
maioria, a existência de uma sociedade machista - que julga conforme a conduta da
mulher -, com a dificuldade de produção de provas inerente a própria natureza peculiar
dos crimes sexuais, torna-se uma tarefa no mínimo complexa conseguir efetivamente a
responsabilização do agente. A dificuldade de dilação probatória se dá porque esse tipo
de crime geralmente não possui testemunhas e muitas vezes não deixa rastros, físicos ou
não, pois nem sempre haverá conjunção carnal com penetração:
955
Anteriormente vigorava o disposto na Lei 12.015/2009, prevalecendo a ação
penal pública condicionada à representação, ressalvados os crimes contra menores de
18 anos e vulneráveis, bem como o conteúdo da Súmula 608 do STF: “no crime de
estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é publica incondicionada.”
De acordo com Nucci (2019), houve exagero na decisão legislativa de generalizar
esse tipo de ação penal para todos os crimes contra a dignidade sexual, permitindo a
ocorrência do chamado strepitus judicii (escândalo do processo), cerceando a liberdade
de escolha da mulher:
Mesmo com a redação trazida pelo art. 234-B do Código Penal, que frisa a
obrigatoriedade do segredo de justiça nos processos envolvendo crimes sexuais, afim de
resguardar tanto a dignidade do agente, quanto a da vítima; não há como impedir a
violação à sua intimidade e liberdade, afinal mesmo com o acesso dos autos restrito às
figuras do magistrado, órgão acusatório e defesa, a própria instauração de um processo
para apurar crime sexual mexe com todo o contexto pessoal e social da mulher, força-a a
encarar seu algoz, destrincha suas memórias mais dolorosas, expõe suas feridas e agride
seu íntimo. Trata-se sem sombra de dúvida de uma nova violência contra a mesma vítima.
Não se pode falar em dignidade da pessoa humana sem a liberdade de dispor
livremente sobre seu próprio corpo, preceito que inclui além da escolha do parceiro,
atividade, orientação e expressão sexual (PASSOS; GOMES; GONÇALVES, 2018, p. 71),
também a possibilidade de decidir sobre a instauração de um processo judicial que trata
de questões relacionadas a sua íntimidade/privacidade e o direito de ver serem
priorizados os fatos inerentes ao caso concreto e não os antecedentes morais de quem
foi violentada.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Post. 05 set. 2014. Disponível em <http://www.brasilpost.com.br/2014/09/05/onu-
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dicotomias na coisificação da mulher. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 326-345,
958
maio/ago. 2018.
959
A CULTURA DO ESTUPRO NA MÚSICA É UM PROBLEMA SOCIAL OU CULTURAL?
UMA ANÁLISE A PARTIR DA LETRA DA MÚSICA “OI, FAKE”
1 INTRODUÇÃO
O segundo elemento que devemos observar é a referência que o tipo penal faz a
“alguém”, ou seja, qualquer pessoa pode ser vítima do crime de estupro,
independentemente do gênero, idade e outras características pessoais. Na sua formulação
clássica, o crime de estupro era previsto sempre contra as mulheres, usava-se, inclusive,
a expressão “constranger mulher”, ficando restrito às pessoas do gênero feminino. Com a
reforma promovida pela Lei nº 12.015/09, o crime de estupro ganhou um significado
muito mais amplo, abarcando as violências e graves ameaças sofridas por qualquer
indivíduo. Isso se dá, principalmente, pelo fato de que o crime de estupro não estar mais
relacionado apenas à ideia de conjunção carnal, sendo atualmente levado em conta além
da conjunção carnal qualquer ato libidinoso que a vítima seja forçada a praticar.
Podemos dizer que esta questão constrói um novo problema a ser enfrentado com
relação à tipificação do crime de estupro, visto a difícil separação entre as classificações
de conjunção carnal e ato libidinoso. Dessa forma, faz-se necessário que façamos uma
breve explanação sobre essas características incorporadas ao crime de estupro e o
consenso mais comum que existe entre doutrina e jurisprudência sobre essas práticas.
Há um entendimento geral de que a conjunção carnal seja compreendida como o
ato sexual praticado a partir da penetração vaginal e da utilização do órgão sexual
masculino para efetivar o ato. Essa conceituação recebe críticas por parte de
pesquisadores e ativistas com relação aos direitos das mulheres, visto que é uma
expressão deveras arcaica e que poderia facilmente ser substituída pela expressão “sexo
vaginal”, que traria maior fidedignidade ao ato ocorrido.
Por outro lado, há uma discussão latente sobre a conceituação de ato libidinoso.
Para Fernando Capez (2012), o ato libidinoso pode ser compreendido como:
(...) outras formas de realização do ato sexual, que não a conjunção carnal.
São os coitos anormais(porexemplo, a cópula oral e anal), os quais
constituíam o crime autônomo de atentado violento ao pudor (CP, antigo
art. 214). Pode-se afirmar que ato libidinoso é aquele destinado a
satisfazer a lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante
abrangente, na medida em que compreende qualquer atitude com
conteúdo sexual que tenha por finalidade a satisfação da libido. Não se
incluem nesse conceito as palavras, os escritos com conteúdo erótico,
pois a lei se refere a ato, ou seja, realização física concreta. (CAPEZ, 2012,
p. 455)
961
conjunção carnal ou outro ato libidinoso, esse ato libidinoso deve ser da mesma gravidade
ou de gravidade semelhante à conjunção carnal, é por este motivo que o doutrinador
Fernando Capez cita o sexo anal e o sexo oral, não se restringindo ao ato decorrente da
utilização do pênis para fins de penetração.
Fica nítido que o ato praticado só pode ser enquadrado neste tipo penal caso a
vítima tenha alguma limitação de livre escolha, seja fator da sua faixa etária ou por algum
fator patológico. Caso não fique comprovada a vulnerabilidade da vítima pelas razões
apresentadas acima, o crime se enquadrará em outro tipo penal.
Dessa forma, podemos perceber a gravidade deste crime, visto que é um ato que
causa danos muitas vezes irrecuperáveis pelas vítimas. Podemos, ainda, afirmar que o
crime de estupro tem como maiores vítimas as mulheres, independentemente da idade e
de outros marcadores sociais. Além da violência física ou da grave ameaça sofrida, as
vítimas desse crime carregam marcas para o resto da vida.
Dessa forma, o nosso país, bem como os Estados Unidos, a partir da colonização e
o processo de escravidão construiu as bases da violência contra à mulher, principalmente,
da mulher negra. Hoje, tal processo historico resultou no que chamamos de cultura do
estupro.
Ainda, nesse caminho, vale lembrarmos, que muitos homens negros, escravizados
de boa saúde eram escolhidos como reprodutores, tinham tratamento diferenciado e sua
única função era estuprar as mulheres negras e indígenas, escravizadas, para que o seu
senhor tivesse mais escravos de boa saúde, aumentando, dessa forma, o patrimônio.
Renata Floriano de Sousa, citando Isildinha B. Nogueira afirma que a mulher negra traz
como herança a visão da mulher negra que nem ao menos era vista como humana, e
consequentemente, a naturalização atual dela como objeto sexual ou como uma mulher
‘naturalmente’ hiperssexualizada dos dias atuais:
964
Seu corpo, historicamente destituído de sua condição humana,
coisificado, alimentava toda sorte de perversidade sexual que tinham
seus senhores. Nesta condição eram desejadas, pois satisfaziam o apetite
sexual dos senhores e eram por eles repudiadas pois as viam como
criaturas repulsivas e descontroladas sexualmente. [...] Ainda que hoje a
mulher negra encontre outras condições de vida não é fácil livrar se desse
lugar, principalmente no que se refere à sexualidade. Mesmo que
aparentemente mais assimilados na cultura brasileira, o negro, em
particular a mulher negra, se vê aprisionado em alguns lugares: a
sambista, a mulata, a doméstica, herança desse passado histórico
(Renata Floriano de Sousa, citando Isildinha B. Nogueira, 1999,
pag., 14)
Nesse caminho, mulheres negras e indígenas, eram obrigadas a gerar muitos filhos,
resultado desses atos violentos. Por causa desse recorte histórico, hoje, somos um povo
miscigenado e inserido dentro da cultura que inferioriza a mulher, a mulher negra, e a tem
como um objeto sexual e que o ‘não’ dito é encarado como cena, um jogo, no qual vale
tudo para ganhar, até a violência. Nesse caminho, o tratamento agressivo contra à mulher
gera graves consequências tanto físicas como psicológicas.
O Ministério da Saúde do Brasil em 2017 concluiu que as mulheres adultas que
registaram episódios de violência nos serviços de saúde pública possuem 151,5 vezes
chances de morrer por homicídio ou suicídio se comparado com o restante da população
feminina. Os homicídios e suicídios correspondem a 83% das mortes por causa externas
em mulheres vitimas de agressão anterior. A partir desse estudo, fica evidente, que
quando uma mulher sofre uma agressão, por mais que ela sobreviva e consiga fugir de seu
algoz, as chances dela ceifar sua própria vida ou ser vítima de um homicídio,
posteriormente, são altíssimas.
A partir desse tripé gentileza, graça e tolerância as bases da mulher submissa são
construídas. Quando a mulher tenta esquivar-se dessa concepção geral de ser frágil e
gentil, ela coloca-se nas chamadas ‘situações de risco’, na quais a sociedade a culpa por
não ter seguido as regras. Essas regras de condutas são impostas a mulher desde o
965
nascimento. Somos ensinadas a pensar o que vão pensar da gente, mais especificamente,
o que os homens vão pensar da gente.
Dessa forma, se uma mulher que segue as regras de conduta social, por exemplo,
como e quanto usar de maquiagem, usar roupas adequadas, sair de casa em horários
apropriados, beber em determinados lugares e de forma responsável, ela é considerada a
vítima. Entretanto, quando a mulher passa desses limites pré-estabelecidos, ela é
culpabilizada pelas ações de terceiros contra a sua integridade sexual.
Chimamanda Ngozi Adichie, em seu livro Sejamos Todos Feministas, relata a
história de uma moça que sofreu um estupro coletivo na Nigéria. Nesse caminho, a autora
comenta que
Nesse sentido, devemos entender que discutir gênero é essencial para mudar a
cultura do estupro. A cultura é atividade humana que preserva e dar continuidade a um
povo, mas como ressalta Chimamanda, “a cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a
cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então
temos que mudar a cultura.”.
O caminho para mudar a cultura do estupro é reconhecer que ela existe e que é um
problema. Nesse ponto, todos, tanto as mulheres, quanto os homens, precisam enfrentar
as violências desse sistema de submissão feminina. Não é uma discussão simples, tentar
que uma sociedade mude suas estruturas é tarefa árdua. Dessa forma, reconhecermos os
direitos humanos, em especial os direitos das mulheres, o feminismo, é parte importante
no processo de mudança cultural.
A música sempre fez parte da cultura nacional, nós brasileiros temos uma relação
muito íntima com a música, tanto é que o Brasil é conhecido como o país do futebol e do
samba que é um dos ritmos mais populares no país. Entretanto, a música, atualmente, tem
sido questionada por suas letras e as ideias que são abordadas ao longo da melodia, mas,
aqui acabe uma pequena reflexão acerca do assunto. Será, que, somente, agora, as músicas
estão estampando violência e condutas reprováveis?
Com uma pequena pesquisa a respeito das músicas brasileira sejam elas antigas ou
atuais, com gêneros que nascem nas periferias ou que nascem no centro da cidade ou à
beira mar é possível notar que infelizmente o hábito de escrever sobre a violência não é
uma característica marcante dos novos músicos brasileiros, é fácil encontrarmos
afirmações racistas, machistas e que contenham violência de gênero e todo tipo de
agressão imaginável em músicas produzidas em outrora. É válido dizer que as condutas
encontradas não são só reprováveis atualmente, mas também eram totalmente erradas
naquela época quando foram escritas, então o fato de ter sido escrita a tempos atrás não
legitima tal escrita.
966
Seguindo essa linha de pensamento é respondido o primeiro questionamento
posto em pauta, conseguimos afirmar com plena convicção que o problema de falar sobre
violência em música não é um conceito moderno, muito menos é exclusividade de apenas
um gênero musical, pois é um preconceito o que acontecem com alguns gêneros da música
como o funk, o pagode, o pagode baiano que são gêneros totalmente periféricos e por
causa disso são marginalizados que muitas vezes são colocados em voga a sua titularidade
como música. Nesse sentido a pesquisadora Mariana Lins, pesquisadora do campo da
comunicação escreve:
A origem diz tudo. Você não vai apedrejar a poética de Roberto Carlos,
que é um artista branco, consolidado, que tem o prestígio que tem, apesar
de ele ter uma série de músicas com narrativas de relacionamentos
abusivos. O funk é muito mais fácil, porque são artistas que vendem uma
realidade de vulnerabilidade social vinculada à periferia, então é mais
natural apedrejar essas pessoas. (LINS, 2018)
Para exemplificar e dar mais ênfase a essa abordagem será citada uma música e
logo será analisada. A música a ser citada é uma composição da banda baiana chamada La
fúria que tem como gênero o pagode baiano, ritmo que é muito popular nas periferias de
Salvador.
A música a ser analisada chama se “OI, fake”, a origem dela se dá através das
mensagens trocadas entre o jogador de futebol Neymar Júnior e Najila Tindade, que o
acusava de estupro e como forma de tentar provar sua inocência o jogador expôs a
conversa dos dois nas redes sócias, e como o assunto virou uma pauta nacional e em vez
de se tornar um assunto criminal tornou se um motivo de brincadeira.
“Amor?
Oi,fake
Você é a razão da minha libido
Oi, fake
Saudade do que a gente não viveu ainda
Você é a razão da minha libido
Ei, fake, razão do minha libido!
Venha pra Europa pra poder sair comigo
Falar coisa no seu ouvido
Te apresento o meu amigo
(Eu tô gostando, eu tô gostando)
Aí! De tarde ela quer louvou
De noite ela tá sentando
De noite ela tá sentando
Noite ela tá sentando
De noite ela tá sentando(x8)
Eu não sou Manoel, meu nome é Neymar
Eu não sou Manoel, meu nome é Neymar
Esqueci o meu anel, mas daqui a pouco eu vou buscar
Esqueci o meu anel, mas daqui a pouco eu vou buscar
Venha cá, venha cá, venha cá, venha cá
Venha cá me dar
Venha cá, venha cá
Venha cá me dar!
Venha cá
Venha cá, venha cá
967
Venha cá me dar
Venha cá
Venha cá, venha cá
Venha cá
Aí! De tarde ela quer louvor
De noite ela tá sentando
De noite ela tá sentando, sentando, sentando
De noite ela tá sentando
De noite ela tá sentando.”
Partindo para uma análise da música sem deixar o contexto que ela se encontra,
conseguimos afirmar que um argumento que reina nessas situações é a ideia de que a
mulher sabia o que iria acontecer, que seria a relação sexual ou algum tipo de ato
libidinoso, que se ela está lá se fazendo presente ela está consentindo com tudo, esse foi
um argumento usado não só pela mídia, mas pelos internautas que julgaram a situação, e
na música esse momento é retratado nesse trecho, “venha pra Europa pra poder sair
comigo”, não é pelo fato de aceitar uma viagem que uma mulher é obrigada a ter relação
sexual.
É possível também através desse trecho trazer a para pauta a discussão da
independência sexual da mulher que muitas vez é totalmente podada, se tornando um
assunto tabu e para além disso quando uma mulher tem a independência e é totalmente
dona de si ainda é julgada e tida como oferecida e quando casos assim acontecem elas são
dita como culpada por exercer sua liberdade sexual.
Mais uma problematização que pode ser feita em cima dessa letra e das
circunstâncias entrelaçada a ela encontra se no seguinte trecho “Aí! De tarde ela quer
louvor, de noite ela tá sentando”, trazendo a ideia de antagonismo entre as duas situações,
ela, a mulher de tarde quer ter o seu direito de cultuar uma religião e de noite ter relações
sexuais, qual seria o problema de ter essa vida? Porém graças a nossa cultura e a nossa
sociedade machista a mulher deveria ser apenas aquela que “quer louvor”, isso também
ocorre pela ideia de quer anular os desejos das mulheres.
968
Após uma breve análise na música e da circunstância na qual foi produzida
adentramos em outro questionamento que agora envolve a música brasileira de forma
geral, se não é um conceito moderno dos novos escritores, não é exclusividade de apenas
um gênero musical, o que leva os músicos a escreverem letras que retratem a violência e
até incentivam esse tipo de comportamento, por qual motivo essa tipo de letra, mesmo
sendo uma conduta censurável consegue perdurar por anos a fio?
A resposta a essa pergunta é facilmente respondida quando leva se em
consideração que a música também é um vertente da arte e é aquela que estamos em
contato diariamente e além disso aborda todo tipo de assunto, desde aqueles que
pretendemos alcançar, até aqueles já vividos e é exatamente por isso que a música aborda
a violência, pois infelizmente, no Brasil é um assunto que é frequente e quando se fala de
violência sexual com o estupro os dados ainda são extremamente reprováveis, o Atlas da
violência traz que no Brasil ocorrem 135 estupros a cada dia, que há 22.918 registrados
no SUS, então já que é algo tão recorrente até esse assunto acaba entrando na melodia,
mas infelizmente não como for de protesto ou denúncia, mas sim com uma situação
cômica e que possa ser levada na brincadeira.
Sendo assim, as músicas são apenas um retrato da nossa conjuntural social, as
pessoas escrevem sobre o que vivem e sobre que veem, ainda que seja uma conduta
totalmente lamentável. Para embasar essa afirmação faz se o uso da etnografia da música
que pode ser traduzida como o estudo acerca do jeito que as artistas criam a música. Como
afirma professor de etnomusicologia da Universidade da Califórnia Anthony Seeger, que
discorre sobre a etnografia na música traduzido por Giovanni Cirino podemos colocar tal
pensamento acerca do assunto “música está tão enraizada em culturas de sociedades
específicas quanto a comida, a roupa e até a linguagem” (Seeger, 2008).
Ou seja, a música também é uma forma de expressar a cultura de uma sociedade e
pode se dizer que a música é responsável por traduzir a forma como todos veem tal
assunto, “música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos
por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros.”(Seeger,
2008)
Se a violência contra mulher fosse tratado como um assunto sério jamais uma
música poderia tratar o caso de denúncia de estupro de tal modo, como se fosse algo
normal e em nenhum momento a população se calaria de ante um absurdo que é cantar
uma denúncia de violência, essa é mais uma prova que todos nós estamos sendo
coniventes com a situação. Assim, podemos reafirmar o pensamento de que a forma como
os músicos agem está diretamente ligada a manutenção de um sistema machista e
fomentador da cultura do estupro tendo em vista que “a cultura do estupro é a cultura que
normaliza a violência sexual.” (Burigo, 2016).
Logo, pode se afirmar que essas músicas contribuem de forma massiva para a
conservar a ausência de atenção que esses tipos de crimes deveriam receber, desde modo
a reflexão que fica é de que apesar de a música trazer a violência, seja ela sexual ou não,
de uma forma extremamente banal e sem a sua devida notoriedade ela é apenas um forma
de expressão da nossa cultura. Então, não é necessário mudar a música, o primordial é
transformar o nosso pensamento como uma sociedade acerca de certas questões, apenas
proibir esse tipo de música é tratar da consequência e não da causa.
969
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o final da explanação trazida ao longo deste trabalho foi possível constatar
que houve avanço no que tange a legislação penal, como foi colocado o fato de que a partir
de 2009 com a Lei nº 12.015, o crime de estupro teve uma grande mudança, apesar de
parecer ínfima trouxe a transformação do sujeito passivo do ilícito que antes somente
mulheres poderia denunciar esse tipo de crime, porém atualmente o código traz consigo
a denominação “alguém”, ou seja, qualquer pessoa pode ser vítima do crime de estupro,
independentemente do gênero, idade e outras características pessoais.
Essa alteração ocorre pois o legislador não interpreta o estupro somente com a
acontecimento da conjunção carnal, mas sim também é crime de estupro os atos
libidinosos que são praticados por meio de violência ou grave ameaça, porém apesar da
nova abordagem da lei ainda assim permaneceu espaça, visto que entre a definição de
conjunção carnal e ato libidinoso existem muitas possibilidade e dessa forma com a
alteração houve uma pequena margem para que houvesse conflitos entre os crimes,
levando em consideração que outros crimes trazem o ato libidinoso como uma conduta.
Sendo assim os doutrinadores sugerem atualizações para a unificação dos
conceitos referentes ao crime de estupro, além disso, caso essas novas terminologias
fossem adotadas, teríamos uma linha evolutiva contínua que já foi indicada pela
atualização do crime em estudo que foi realizada em 2009.
Para além da lei que traz o crime e elenca os seus requisitos para ser consumado,
é de suma importância dizer que o crime estupro no Brasil foi legitimado se levarmos em
consideração o processo de embranquecimento ocorrido logo após o fim da escravidão e
que nos deu o status de povo miscigenado. Porém o que não é dito é a forma de como
ocorreu esse processo de miscigenação, que está diretamente atrelada a cultura que
inferioriza a mulher, a mulher negra, e a tem como um objeto sexual e que o ‘não’ dito é
encarado como cena, um jogo, no qual vale tudo para ganhar, até a violência. Assim, o
tratamento agressivo contra a mulher gera graves consequências tanto físicas como
psicológicas.
Dessa maneira em muitos momentos a miscigenação é usada com conotação
positiva. Entretanto, é preciso repensar tal significado, já que esse processo, é fruto, em
sua grande parte, dos estupros e violências que as mulheres escravas e indígenas sofriam.
Dessa forma, o nosso país a partir da colonização começou a ser construido com base na
violência contra à mulher. O que ocasionou, no que hoje entendemos como, a cultura do
estupro.
A dita cultura do estupro está presente em nosso cotidiano desde das falas que
reproduzimos sem mesmo questionar até na arte que consumimos. A arte que foi usada
para análise neste artigo foi a música, que é a mais popular no país. Assim foi possível
perceber que essa arte trazer fatos do cotidiano e o que ficou nítido é que essa sociedade
certo tipos de comportamentos são tido como normais e habituais, porém na muita das
vezes esses hábitos são na verdade atitudes ilícitas que por conta da sociedade machista
e por conta da cultura do estupro, na qual estamos inseridos, essa atitudes são
normalizadas e acabam até se tornando música e não usadas com o forma de denuncia,
mas sim como uma brincadeira.
Sendo assim é possível levar através deste trabalho que as artes de modo geral, a
cultura em si é moldada, não está posta muito menos imposta, é apenas uma padrão
construido por quem pratica, dessa maneira não cabe mudar a arte, cabe mudar as
situações para a produção do conteúdo. É necessário acabar com a cultura do estupro para
que a denúncia não seja motivo para a criação de música.
970
REFERÊNCIAS
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EMAIL_CAMPAIGN_2019_02_05_05_15&utm_medium=email&utm_term=0_069298921c
-6675543903-288596517#Link1 > Acessado em: 07 Out. 2019.
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972
E EU NÃO SOU UMA MULHER? VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES NEGRAS
NO BRASIL E A PERPETUAÇÃO DO PERÍODO ESCRAVAGISTA.
1 INTRODUÇÃO
2. CONTEXTO HISTÓRICO
3 INTERSECCIONALIDADE RAÇA-GÊNERO
155 A autocrítica refere-se à capacidade interna do indivíduo de realizar uma crítica de si mesmo. Ela
implica na análise de seus atos, da sua maneira de agir, dos erros cometidos e das possibilidades de realizar
uma autocorreção. Desta forma o sujeito se aprimora. Esse mecanismo é inerente ao processo de
autoconhecimento – o ser conhece a si mesmo, identifica seus pontos fortes e fracos, suas potencialidades,
e a partir daí corrige os rumos de sua jornada existencial, e se aplica também a um grupo social e a uma
instituição.
977
reconhecimento de pertencimento de ser social e de igualdade de direitos, tanto em
relação às mulheres brancas quanto em questão de gênero ao comparativo masculino.
A discriminação isolada afeta grupos específicos, na qual as lutas separadas e
pontuais se solidificam e diante da pirâmide de gênero e raça de privilégios, o homem
branco está posicionado em oposição à mulher negra, situado em um contexto de
interseção das discriminações que se interligam, culminando na ocupação do índice de
mulheres negras nos presídios femininos, nas ocupações de trabalhos com menores
perspectivas salariais, com os menores índices de escolaridades e com a maioria dos
índices de feminicídio e violência contra a mulher. Segundo os dados do INFOPEN 2018:
No dossiê da violência contra mulheres negras no Brasil, mostra que são negras
58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica, segundo o balanço do ligue 180 –
Central de Atendimento à Mulher de 2015. O Ministério da Saúde em 2015 mostra que
53,6% das vítimas de mortalidade materna são de mulheres negras, ou seja, é um contexto
em que mostra a discrepância de violência contra a mulher negra em vários aspectos da
sociedade, e o aumento que reflete a falta de acesso dessa mulher aos resguardos dos seus
direitos, a não garantia de não ser violentada diariamente em vários tipos de abusos e
agressões.
As legislações e o direito que era usado no período colonial, desde as ordenações
até antes do Código do Império de 1830, nada se falava sobre o crime de estupro, nem
979
sequer as pessoas escravizadas eram consideradas humanas, mas sim propriedades de
seus senhores. No Código do Império de 1830 se falava de crimes de estupro referindo-se
a mulher honesta e a prostituta, ou seja, a mulher negra que era considerada propriedade,
nem sequer era pleiteada pelas leis que puniriam possíveis estupradores..
No Código Penal (Decreto-Lei n° 2848/1940), o crime de estupro está previsto no
artigo 213, estabelece que “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso”. Porém, como o código é desatualizado em relação às novas práticas de crimes
contra a dignidade sexual, a Lei n° 13.718/2018 trouxe algumas alterações nos crimes
contra a dignidade sexual, no qual, no artigo 215-A, trouxe a inserção de um novo delito
chamado Importunação sexual que em seu texto estabelece que “praticar contra alguém
e sem sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de
terceiro: Pena- reclusão, de 1(um) a 5(cinco) anos, se o ato não constitui crime mais
grave”. O que entende que tal dispositivo abarca a parte dos crimes que vinham ocorrendo
nos últimos tempos sem violência ou grave ameaça, no qual não se encaixaria ao crime de
estupro.
Apenas sete casas legislativas elegeram pelo menos uma preta: Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraíba, Bahia, Pernambuco e Amapá. A
Bahia inclusive elegeu em 2018 sua primeira deputada estadual preta em
20 anos, Olivia Santana, pelo PCdoB.São Paulo é o Estado com a maior
assembleia legislativa (94 parlamentares) e quase dobrou o número de
mulheres eleitas para suas cadeiras, de 10 em 2014 para 18 em 2018. O
Rio de Janeiro vem logo em seguida, com 12 mulheres eleitas no domingo
(07/10), quatro delas pretas. Três delas são “sementes de Marielle
Franco”, pois foram assessoras da vereadora assassinada em março:
Mônica Francisco, Dani Monteiro e Renata Souza. (FERRARI,Carolina.
2018)
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
983
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Brasil. Brasília: Ipea, 2013, ISBN 978-85-7811-188-5.
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muito a se fazer. Disponível em:
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brasil,729072/lei-que-torna-racismo-crime-completa-30-anos-mas-ha-muito-a-se-
fazer.shtml> Acesso em: 14 de outubro de 2019
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo,
2016. 244pp
985
O PAPEL DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO AO
ACESSO À JUSTIÇA PELAS PESSOAS LGBTs: UMA PESQUISA JUNTO À ONG CORDEL
VIDA NO MUNICÍPIO DE JOÃO PESSOA
1 INTRODUÇÃO
A informação de que vivemos em um país desigual já não é (ou não deveria ser)
novidade para qualquer pessoa brasileira. Sejam por motivos de classe, raça ou gênero,
percebe-se um amplo grau de desigualdade entre as pessoas brasileiras, situação essa que
vai de encontro direto ao que preceitua nossa Carta Magna. A situação, no entanto, se
agrava ainda mais quando esses dados são aplicados às mulheres e pessoas LGBTs.
O presente trabalho surge, pois, como produção parcial do trabalho de conclusão
de curso do autor a ser apresentado em 2020, sendo, ainda, resultado direto da atuação
em atividades de extensão executadas pelo Grupo Marias de extensão e pesquisa em
gênero, educação popular e acesso à justiça, ligado ao Centro de Referência em Direitos
Humanos da UFPB, com atuação desde 2010 na defesa da democratização do acesso à
justiça, agregando atividades no campo da assessoria jurídica popular, apoio a grupos,
coletivos e movimentos sociais e educação em direitos humanos no campo dos estudos
sobre gênero.
Dentre os objetivos das atividades do grupo, destaca-se o desenvolvimento de
atividades de acompanhamento, orientação e encaminhamento de denúncias de violações
de direitos humanos no campo da saúde e do acesso à justiça junto à assessoria jurídica
popular da organização não governamental CORDEL VIDA, realizando, ainda, o
levantamento de dados sobre violações de direitos humanos, visando, assim, fortalecer o
trabalho da referida ong que, há mais de 14 (quatorze) anos, atua na defesa dos direitos
humanos das pessoas que vivem e convivem com HIV/AIDS.
Nesse ínterim, em compromisso com a efetivação dos direitos humanos e, em
resistência do que dispõe o direito conservador aplicado àqueles/por aqueles que são
dotados de poder socioeconômico, a assessoria jurídica popular surge no Brasil, em
meados da década de 70, como forma de resistência e de luta, em especial pelos direitos
humanos e pela efetivação do acesso à justiça. Não diferente, a assessoria jurídica popular
da ONG Cordel Vida atua, há cerca de 10 (dez) anos, na luta pelo acesso à justiça e à saúde,
em especial pelas mulheres e pessoas LGBTs que vivem e convivem com hiv/aids na
região metropolitana de João Pessoa – PB.
Dessa forma, partindo do pressuposto de que o poder judiciário atua, na verdade,
como obstáculo ao direito de acesso á justiça por essa população, aponta-se como objetivo
do presente trabalho a análise sobre a forma como a atuação da assessoria jurídica
popular da ONG Cordel Vida pode colaborar para efetivar o direito de acesso à justiça e à
saúde, em especial pelas mulheres e pela população LGBT no município de João Pessoa.
Para alcance do objetivo supracitado, utilizar-se-á, nessa primeira fase, do
levantamento teórico-bibliográfico acerca da temática, tendo ênfase na aplicabilidade dos
conceitos básicos trabalhados ao contexto jurídico brasileiro, em especial os conceitos de
acesso à justiça e de assessoria jurídica popular. A pesquisa continuará para fins de
construção do trabalho de conclusão de curso, momento em que serão aplicados
questionários junto às mulheres e à população lgbt atendidas pela assessoria jurídica
popular da ong cordel vida no ano de 2019, com vistas a, a partir de suas respostas,
986
averiguar de que forma a assessoria jurídica popular pôde e pode ser eficaz não somente
no exercício do direito de acesso à justiça, mas na percepção e no exercício da cidadania,
bem como na produção de decisões judiciais que trabalhem a temática de HIV/aids,
gênero e sexualidade no município de joão pessoa – pb.
Nesse sentido, não se pode perder de vista o direito de acesso à justiça como um
direito fundamental, não devendo, ainda, ocorrer qualquer tipo de restrição ou distinção
entre as partes litigantes, assim como aponta Bedaque ao destacar a importância das
tutelas cautelares e de urgência (2003, p. 71):
988
no mercado de trabalho formal a serem ocupados por essas mulheres senão o mercado
da prostituição156, por exemplo, ou outros postos de trabalhos subalternizados.
Nesse aspecto, cita-se trecho de fala da pesquisadora e Doutora em Psicologia
Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília, Jaqueline Gomes de
Jesus, na mesa sobre “Transgener(al)idades: arte, vida e resistência”:
156 Neste ponto, convém-se destacar o reconhecimento da autonomia da vontade das mulheres em
utilizarem a prostituição enquanto trabalho digno, criticando-se, tão somente, a ocupação desse posto por
mulheres que não possuem outras opções no mercado de trabalho.
989
implantação da assessoria jurídica popular na ONG Cordel Vida, organização não
governamental de grande importância na luta hiv/aids no estado da Paraíba, seja
responsável por ser um canal de acesso não somente ao poder judiciário, mas também de
acesso à informação e à conhecimento de direitos básicos à população LGBT, o que se
espera comprovar a partir dos dados extraídos do questionário a ser aplicado junto a
essas mulheres.
É nesse aspecto, portanto, que se dá a importância da assessoria jurídica popular
na atuação pela luta da concretização do direito de acesso à justiça para essa população,
em especial na capital paraibana, bem como de demais direitos e exercício da cidadania
por essas pessoas.
990
Não obstante, ainda de acordo com o referido autor seria a assessoria jurídica
popular uma prática insurgente que passou a ser desenvolvida a partir das décadas de
1960 até os dias atuais, principalmente por advogados/as, estudantes e também
militantes da área de direitos humanos a partir do desenvolvimento de atividades ligadas
não somente à assessoria jurídica, mas, também, atividades de educação popular que
eram/são realizadas principalmente com grupos e movimentos populares (RIBAS, 2009,
p. 49).
Nesse momento, convém diferenciar a assessoria jurídica popular do trabalho
tradicional dos/das demais advogados/as, ditos tradicionais, isso porque, além de ofertar
uma assistência jurídica, aos/às advogados/as populares ainda é de vital importância a
atuação junto às pessoas destinatárias com vistas a propiciar a essas a possibilidade de
identificação de eventuais violações de seus direitos para que, a partir de então, sejam
capazes de revoltar-se contra essas violações e, mais do que isso, buscar pela prestação
de socorro e de respaldo jurídico. Sobre esse aspecto, basilar é, pois, a lição de Alfonsin
(1998) ao apontar que
991
4. ALGUNS RESULTADOS EXTRAÍDOS A PARTIR DA ATUAÇÃO DA ASSESSORIA
JURÍDICA POPULAR DA ONG CORDEL VIDA NO ANO DE 2019.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A democratização do acesso à justiça pelas pessoas LGBTs é medida que se faz mais
do que necessária diante de nosso contexto sociopolítico brasileiro. Para tanto, mister se
faz a percepção de que os sistemas de justiça, ao persistirem discursos e práticas que são
androcêntricas e sexistas, ao mesmo tempo que se apresentam enquanto obstáculo ao
acesso à justiça por essa população, também se apresentam enquanto espaço estratégico
com vistas a desenvolver ações que sejam voltadas à superação das desigualdades e
discriminações baseadas em gênero (SILVA; WRIGHT; 2016).
Pensando por esse ponto, as ações e práticas desenvolvidas pelas assessorias
jurídicas populares brasileiras se apresentam enquanto fortes elementos de resistência
ao pautarem suas ações nas bases da educação popular. Para tanto, requer-se a
necessidade de entender, compreender e identificar que os conhecimentos e os saberes
993
são múltiplos e não advém somente das academias universitárias, mas, também, dos
sabares populares, por exemplo.
Utilizar-se da advocacia popular como ferramenta de efetividade do direito do
acesso à justiça é permitir, pois, que os/as destinatários/as atuem diretamente na defesa
de seus direitos, seja acompanhando os processos nos sistemas de justiça, seja
colaborando com conhecimentos de outras áreas que possam agregar às argumentações
apresentadas pelos/as advogados/as populares e, consequemente, influenciarem nas
decisões judiciais que permeiam a temática. No entanto, para se chegar a este ponto,
necessário se faz que sejam os destinatários capazes de identificar os direitos que lhe são
devidos, para que, então, possam buscar por socorro ao identificar que esses direitos
foram ou estão na iminência de serem violados.
Neste aspecto, se na advocacia tradicional acompanhar de perto o desenvolver da
demanda judicial é vista como desconfiança ao trabalho dos/as advogados/as, na
advocacia popular tal fato pode ser encarado enquanto grande conquista, uma vez que
significaria a identificação pelo/a destinatário/a de sua violação de direito, o
reconhecimento de que é cidadão ou cidadão dotado/a de garantias, bem como a
percepção de que é agente ativo, a partir do auxílio técnico prestado pelo/a procurador/a,
na resolução do conflito, seja na esfera judicial ou extrajudicial.
No que tange à população LGBT, este aspecto se apresenta enquanto ainda mais
delicado, em especial no que tange ao acesso à justiça pelas mulheres transexuais.
Concordando com o que disse a catarinense Ideli Salvatti (2014), enquanto ministra da
Secretaria dos Direitos Humanos do Brasil naquele ano, o poder, infelizmente, é branco,
rico e héterossexual157. Não muito diferente dessa constatação, o poder judiciário, visto
enquanto principal sistema de justiça pela população brasileira compõe-se, historica e
principalmente, a partir também de homens brancos, héteros, cisgêneros e da classe
média ou rica brasileira.
Dessa forma, a partir da percepção e da constatação das específicas pessoas que,
majoritariamente, ocupam esses espaços, não muito diferentes são as práticas e
argumentações apresentadas em decisões judiciais que envolvam as temáticas ligadas à
gênero, raça, classe e sexualidade. A assessoria jurídica popular, neste aspecto, surge
como elemento transformador das decisões judiciais ao lutarem sistematicamente pela
inclusão de discussões e decisões sobre assuntos e grupos que historicamente foram
excluídos.
Estando pautada nas diretrizes da educação popular e, portanto, reconhecendo
que o conhecimento se dá a partir da horizontalidade do saber e que as pessoas
destinatárias da assessoria jurídica popular atuam de forma direta na construção do saber
sociojurídico, a utilização da teoria transfeminista, ao escrever por e para mulheres trans,
se apresenta como elemento de grande importância na efetividade do acesso à justiça
pelas travestis e mulheres trans, em especial por permitir compreender as principais
peculiaridades que permeiam a temática e que se faz de fundamental importância para o
processo de judicialização de eventual demanda.
ALFONSIN, Jacques Tá vora. Assessoria jurídica popular. Breve apontamento sobre
sua necessidade, limites e perspectivas. 1998. Disponível em:
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reconhecimento legal de nome e gênero no Estado de Pernambuco. Revista
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997
PARTE V
998
POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E MOVIMENTO LGBT+: CONQUISTAS,
TENSÕES E RESISTÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
158 Entre as diversas possibilidades de uso de siglas representativas das minorias sexuais, elegemos a
LGBT+, em virtude de conseguir reunir inclusão e síntese simultaneamente. Variações só serão utilizadas
quando se referirem a outros textos, replicando-os em sua originalidade.
159 Informação divulgada no site https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/relacao-homossexual-
e-crime-em-70-paises-mostra-relatorio-mundial.shtml . Acesso em 01.08.19.
160 Indivíduo cuja identidade de gênero está em conformidade com seu sexo biológico, sendo o inverso da
transgeneridade.
161 Durante a III Conferência Nacional LGBT (2016) foi decidido que o movimento adotaria a expressão
LGBTfobia em lugar de homofobia, vez que melhor se adequa às discriminações perpetradas em razão de
orientação sexual e identidade de gênero.
999
apedrejamento162, aplicável, no entanto, apenas a homens. No caso das mulheres, a pena
permanece de 40 chibatadas e/ou até 10 anos de prisão.
No Brasil, contudo, se o cenário é menos grave, não é menos repressor. Apesar das
conquistas alcançadas pela comunidade LGBT+, os índices de violações motivadas pela
LGBTfobia permanecem elevados, sendo o Brasil o país com maior número de mortes
decorrentes da transfobia (preconceito contra pessoas transexuais) do mundo, de acordo
com levantamento divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEU), em 2019163.
Ressalte-se que os dados acerca das violações sofridas por LGBT+, até o momento,
não são sistematizadas, sendo realizadas principalmente por ONGs, universidades e
entidades LGBT+, não havendo estatísticas oficiais baseadas em levantamento
governamental164.
Outros dados alarmantes e que deveriam ser fundamento para adoção de políticas
públicas específicas para comunidade LGBT+, foram divulgados pela San Francisco
University (EUA)165, de acordo com a qual, apenas 35% dos jovens LGBT+, cujas famílias
não aceitavam sua condição, tinham expectativa de serem felizes na vida adulta. Já entre
os que eram plenamente aceitos, o índice foi de 92%. A pesquisa também revelou que os
jovens LGBT+ discriminados pela própria família tinham aumentadas, em três vezes, a
possibilidade de se envolverem com drogas, em seis vezes, de sofrerem de depressão e,
em 8 vezes, de tentarem suicídio.
É em decorrência da demonstrada LGBTfobia social, institucional e também
familiar, que uma forte militância tem se organizado ao longo das últimas décadas e lutado
pela discussão da problemática nas organizações internacionais de direitos humanos, a
fim de alcançarem a inserção formal dos interesses dos LGBT+ em convenções e tratados.
Este ativismo, que se há um tempo eclode em mobilizações a nível internacional,
inicia-se, no Brasil, local e regionalmente, por meio da luta por representatividade e
mobilização junto aos poderes legislativo, executivo e judiciário, assim como em outras
instituições cujas competências incluem a defesa da justiça e do direito, como Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), ministérios públicos e defensorias.
Prosseguindo na discussão da realidade nacional, no que diz respeito a luta do
segmento LGBT+, indubitavelmente uma das questões que requer maior esforço estatal é
a promoção de uma Educação em Direitos Humanos (EDH) que forme não somente
cidadãos críticos, conscientes e autônomos, mas também abertos ao reconhecimento do
outro e à aceitação da diversidade.
Embora a atual conjuntura política brasileira, em que o neofascismo agravou a já
alarmante crise institucional e o esfacelamento do regime democrático é uma realidade
diuturnamente verificada, é principalmente por meio da mobilização provocada pelos
2. REFERENCIAL TEÓRICO
O advento da Pedagogia crítica, a qual tem em Paulo Freire um dos seus mais
importantes fundadores, causou enorme provocação e impacto no campo da educação,
instigando, dentre outros aspectos, profundas reflexões sobre o processo de ensino, a
relação professor-aluno, elementos e propósito do currículo escolar e objetivos da
formação discente, instigando, por assim dizer, uma prática educativa em que o educando
alcançasse não somente a leitura da palavra, mas também do mundo (GIROUX, 2015).
O surgimento da EDH no Brasil se deu em meados da década de 80, por meio da
ação de grupos populares e movimentos sociais, como forma de resistência e
enfrentamento à tirania do Estado sob regime ditatorial. Ambas, Pedagogia Crítica e EDH,
mostraram-se intrinsecamente relacionadas, ao ponto de não se poder vislumbrar a
implementação de uma sem a colaboração da outra, ao menos no que se refere a uma
concepção de direitos humanos segundo um enfoque que parta de uma “dialética e contra-
hegemonia” (CANDAU, 2006, p. 124) e não do caráter neoliberal. Já quanto à inserção
institucional da EDH no currículo escolar, apenas durante a década de 90, observou-se o
seu início.
Atente-se que, no âmbito do sistema global, embora a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), de 1948, e o Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, já fizessem referência a importância de se
promover os direitos humanos por meio da educação, foi apenas na II Conferência
Mundial sobre os Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, que pela primeira vez
se utilizou a expressão “educação em matéria de direitos humanos” e se tratou a respeito
do tema na declaração e plano de ação aprovados. Já quanto às perspectivas críticas da
educação, ou como popularizou-se dizer, pedagogia crítica, surgiram entre as décadas de
60 e 70, de acordo com Maranhão e Paes de Paula (2016, p. 3) “inspiradas nas teorias de
mesmo nome da sociologia e da filosofia das décadas de 40 e 50”. Assim, pode-se dizer
que a Pedagogia Crítica precedeu e, até mesmo, contribuiu para que se propusesse a
implementação da EDH no ensino formal.
Magendzo, ao discutir acerca das inter-relações entre EDH e Pedagogia Crítica,
afirma que esta “é uma das expressões mais concretas e tangíveis da pedagogia crítica”
(2002, p.4), estando ambas “muito interessadas em observar as estruturas de poder
dentro e fora do sistema educativo”. O autor informa que a pedagogia crítica é
substancialmente conectada às teorias críticas associadas a Escola de Frankfurt166.
166Magendzo (2002) aponta como membros desta corrente teórica, autores como Adorno, Horkheimer,
Walter, Benjamin, Marcuse y Habermas e outros. O interesse em torno do movimento seria a promoção de
uma “sociedade mais justa” assim como o empoderamento do sujeito por meio da emancipação, que os
conduzisse ao empoderamento.
1001
Carvalho e Estevão (2013, p. 427) ao discutirem a respeito de fundamentos para
uma proposta pedagógica-crítica em Direitos Humanos, apontam para possibilidade de a
pedagogia crítica dar condições aos docentes de, mais do que educar meramente em
direitos humanos, mostrar caminhos para sua plena efetivação, pois:
1002
movimento, com maior destaque para a atual, demonstrando pontos de contato com a
EDH e de que forma demandam e tem sido ou não contemplados por ela.
Cleyton F. Pereira (2016), um dos estudiosos que mais tem se debruçado no estudo
das políticas públicas LGBT+, nos dias atuais, ao discorrer sobre a história do movimento
no Brasil, recorre à brilhante descrição realizada por Regina Facchine (2005), apondo e
complementando, com semelhante criatividade, a partir de suas próprias constatações. A
autora teve a feliz estratégia de construir uma narrativa acerca do movimento,
subdividido-o no que denominou de três ondas, que iriam de 1978 a 1983, 1984 a 1992
e 1992 até o ano de 2005, em que realizou a publicação do estudo “Sopa de letrinhas?
Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90”. Pereira
(2016), por sua vez, faz relevante contribuição quando identifica a conformação de uma
quarta onda, que seria a que atualmente presenciamos.
A fim de mantermos o foco da discussão, traremos, com brevidade, as
características desta “quarta onda”, uma vez que tal descrição nos concede muita clareza
para entendermos a conjuntura que se apresenta ao movimento LGBT+ atualmente, assim
como sua resposta a ela. Pereira (2016, p. 123) assim descreve a “quarta onda” do
movimento LGBT+:
167 O termo, que não tem correspondente em língua portuguesa, é definido por Alliance apud ABGLT (2007)
como “ um processo contínuo que visa à mudança de atitudes, ações, políticas e leis, ao influenciar pessoas
e organizações em posições de poder, bem como sistemas e estruturas em diversos níveis, a fim de melhorar
a situação das pessoas afetadas por uma questão específica”.
168 Crença que permeou a história de diversas civilizações, segundo a qual, as determinações biológicas
relativas à sexualidade, quanto aos sexos feminino e masculino, devem ser seguidas, resultando na aceitação
social de relações afetivas apenas entre pessoas de gênero e sexo opostos, portanto, uma crença
fomentadora de LGBTfobia.
169 Consultado em https://periodicos.furg.br/divedu/article/view/7712/5117 . Data de acesso: 04.08.19.
170 Em 13.06.19, em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal decidiu que atos LGBTfóbicos deveriam
ser julgados conforme a Lei 7.716/89, conhecida como lei do racismo acatando a tese de que a LGBTfobia é
espécie de racismo social, com o que concordamos. A decisão vigorará até que o Congresso Nacional legisle
sobre o tema.
1004
como muito bem discute Anderson Ferrari (2004) acerca da militância gay, e que
entendemos como extensiva às demais minorias sexuais quando mobilizadas em busca de
reconhecimento e acesso a direitos:
Carvalho e Pereira (2015) chamam atenção para o fato de que uma das causas de
luta dos movimentos sociais é justamente para que a educação seja concebida como um
instrumento formador de seres críticos, o que instiga na luta pelo desenvolvimento de
políticas educacionais pertinentes aos valores democráticos. Outro destaque importante
é que, no entender desses autores, a eficiência e relevância das políticas públicas implicam
que representem “o resultado do diálogo entre o Estado e a sociedade civil, pois é através
da participação social que se vivencia a democracia” (2015, p. 365).
O processo de democratização brasileiro que tem na promulgação da Constituição
Federal de 1988, comumente evocada como “Constituição Cidadã”, foi, em âmbito
nacional, o primeiro momento histórico que sinalizou a possibilidade de uma mudança
nos rumos da história do segmento LGBT+, na medida em que estabeleceu em seu artigo
3º, inciso IV, como um dos principais objetivos da República Federativa Brasileira
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.
Contudo, o processo de superação de preconceitos que existe há mais de 2 mil anos,
em especial com a propagação das religiões monoteístas, não se resolve meramente com
dispositivos legais, embora entendamos como essencial a existência de marcos jurídicos,
pelos quais o movimento LGBT+ tem batalhado arduamente ao longo de sua história.
Outros autores, como Leandro Cooling (2013) e Cleyton F. Pereira (2016), porém, nos
advertem quanto ao surgimento de “Ativismos de Dissidências e de Gênero” ou “Ativismo
Queer”, os quais possuem outras reivindicações, em especial, o enfoque da mudança por
meio da cultura, vez que os preconceitos advêm desse lugar e instrumentos legais teriam
baixa potencialidade para contrapô-los.
Fato é, que, seja por meio de atos normativos, seja pelo desenvolvimento de
produtos culturais que combatam a LGBTfobia, é no terreno da educação que as maiores
tensões, disputas e resistências tem se apresentado, clarificando de que lugar e por quais
agentes parte o contramovimento já mencionado, que tem impedido o progresso para o
alcance da plena cidadania do segmento LGBT+, especialmente no campo educacional.
Isso explica porque apesar de a EDH no Brasil, de forma institucionalizada, já vir
ganhando espaço desde a década de 1990, a inserção da temática específica de combate à
discriminação LGBT+, de reconhecimento e promoção da diversidade sexual, tem sido
sempre confrontada com uma enorme resistência, contraposição e “boicotes” advindos da
LGBTfobia perpetrada pelo próprio estado, na medida em que também é composto por
pessoas que representam grupos conservadores, patriarcais, excludentes e contrários à
emancipação da comunidade LGBT+.
A análise da história da EDH no Brasil deixa claro que foi durante o governo de Luís
Inácio Lula da Silva (2003 a 2011), que se iniciou uma efetiva abertura para introdução
1005
da discussão acerca da orientação sexual e identidade de gênero, com foco no
reconhecimento e promoção da diversidade, assim como do combate ao preconceito.
Durante a gestão de Dilma Rousseff (2011 a 2016), embora tenha havido continuidade
destas políticas, percebeu-se um retrocesso determinante com o veto ao material
educativo do programa Escola Sem Homofobia, sem a disponibilização de quaisquer
alternativas com foco no enfrentamento à LGBTfobia nos espaços escolares.
Contudo, a conquista desse espaço na educação não chegou a ser efetivado e esse
divisor de águas se deu exatamente com o veto da Presidenta Dilma ao Kit “Escola Sem
Homofobia”171, diante da enorme pressão dos grupos conservadores, especialmente
dentro do Congresso Nacional, sob a acusação de que o Estado brasileiro, por meio do
Ministério da Educação, queria sexualizar as crianças, introduzir o que até hoje
denominam ideologia de gênero172 e ensinar que orientações diferentes da heterossexual
são normais, o que interferiria nas crenças, valores e princípios das famílias173
tradicionais.
Entretanto, tais argumentos nada mais são do que preconceito e negação das
diferenças existentes desde o início da história da humanidade e que o conceito da
heteronormatividade bem esclarece. Este discurso excludente culminou com a eleição, em
2018, de diversos representantes políticos, a exemplo do próprio Jair Messias Bolsonaro,
comprometidos com o entrave às políticas públicas LGBT+, especialmente no campo da
educação.
Por fim, no âmbito do governo federal, se o espaço para discussão da LGBTfobia e
diversidade sexual na educação sofreu forte abalo já em 2011, durante o governo Dilma,
da ocorrência do fato até 2019, não houve progressos relevantes, ao contrário: criou-se
no imaginário popular, por meio do uso de estratégias de divulgação de fakenews174 nas
mídias sociais, a crença de que os partidos da esquerda estariam comprometidos com a
destruição da família tradicional, por meio do que acreditavam ser o “ensino da
homossexualidade e transexualidade” nas escolas, provocando grande reprovação e
rejeição prévias a qualquer proposta que visasse combater a LGBTfobia no campo do
ensino.
Toda essa verdadeira guerra ideológica acirrou, e assim permanece, ainda mais o
embate entre o movimento LGBT+ e os segmentos sociais conservadores. Por um lado, a
militância organizada tem se valido especialmente do amparo jurisdicional para alcançar
demandas ignoradas pelo legislativo; por outro, os grupos resistentes ao avanço das
políticas públicas LGBT+ tem feito uso de estratégias especialmente junto a esse mesmo
poder, tanto para vetar projetos de lei contrários aos seus interesses, como para provocar
a propositura dos que o fizessem.
171 O Kit educativo fazia parte do programa “escola sem homofobia”, o qual, como relata Gomes (2016), foi
precedido por atividades formativas para docentes nas 5 regiões brasileiras e implicou também na
realização de uma pesquisa qualitativa sobre homofobia nos espaços escolares.
172 A denominada ideologia de gênero, nada mais é do que uma distorção acerca de constatações do
campo das ciências humanas e sociais,
173 Tais grupos negam a existência de famílias com arranjos diversos do tradicional, formado por um casal
heterossexual e cisgêneros (indivíduos que se identificam com o gênero correspondente ao sexo biológico)
e filhos.
174 Em tradução livre, significa “notícias falsas”. A expressão popularizou-se no Brasil no ano de 2018, por
ocasião das eleições presidenciais, em que a opinião pública foi demasiadamente influenciada em razão da
divulgação de notícias inverídicas sobre diversos candidatos.
1006
Toda essa narrativa revela o quanto ainda somos – a sociedade brasileira –
vitorianos175 (FOUCAULT, 1988), provando que realmente o campo da educação deve
permanecer sendo disputado pelo movimento LGBT+ a fim de que a efetivação de sua
cidadania, sempre tão resistida, se torne uma realidade. Não se trata apenas do combate
à discriminação que acontece fora da escola, mas principalmente dentro dela, a qual tem
servido, ao longo da história, como espaço de discriminação, exclusão e perseguição à
diversidade, resultando em severos danos psicológicos e formativos as suas vítimas. Há
que se ter em conta, também, que “a fixidez das identidades é justamente a arma dos
conservadores. Além disso, as identidades rígidas produzem novos regimes de padrão e,
portanto, de exclusão” (CARVALHO e PEREIRA, 2015, p. 367).
Certo é que a mudança desse cenário não se operará por iniciativa ou boa vontade
política, mas por interferência e persistência da militância LGBT+, pois como assinalado
por GOMES (2016, p. 125), ao discorrer sobre a implementação do programa Brasil Sem
Homofobia, “a conquista da política pública só ocorreu, de fato, em virtude da pressão do
movimento LGBT+, que construiu um diálogo crítico, mas promissor, negociando com as
forças políticas aliadas”.
A EDH, para promoção da diversidade e cidadania LGBT+, é ainda cenário de
muitos conflitos, travados entre a militância e grupos conservadores, o que demonstra,
por si só, que a LGBTfobia é uma realidade a ser combatida e que, se é aí onde “o calo
aperta e a ferida mais dói”, possivelmente é também o principal terreno a ser
transformado e conquistado, para que o Brasil se torne efetivamente mais justo,
democrático e plural, pois “a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos (…) implica tanto o esforço de
reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento” (FREIRE, 1996, p.
55).
175Expressão utilizada por Foucault (1976) em seu livro “História da sexualidade 1”, em referência à
moralidade e pudicícia, especialmente quanto à sexualidade, características do período em que reinou a
Rainha Vitória, mas ainda fortemente observados ao tempo da escrita do livro, até hoje.
1007
Mordaça176. Essas iniciativas normatizadoras, dentre outros objetivos, são tentativas de
barrar os avanços das conquistas do segmento LGBT+.
Ressalve-se, porém, as primeiras demonstrações da perda de espaço da pauta
LGBT+, junto ao governo federal, se deram já durante o pós-golpe do governo Dilma
Rousseff, quando seu assuntor, chefiado na pessoa de Michel Temer, operou modificações
a nível orçamentário em 2017, reduzindo a zero os repasses para políticas de combate à
homofobia.
Por sua vez, o governo Bolsonaro, caracterizado desde a campanha por uma
postura claramente preconceituosa e contrária ao avanço das conquistas da comunidade
LGBT+, excluiu já no início do mandato, a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos
Direitos Humanos, criando, no entanto, uma secretaria para transformação de escolas em
colégios militares.
Na fala da atual ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, Damares Alves, todos os tipos de discriminação, inclusiva as sofridas pelos
LGBT+, permaneceriam sendo combatidas. Contudo, na avaliação de Symmy Larrat 177,
presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais
e Pessoas Intersexo (ABGLT), criticou o que entendeu como mero discurso de
enfrentamento à violência, sem alcançar a promoção das demandas LGBT+, uma vez que
a resposta esperada do estado não é a mera assistência pós violação, mas também
assistência nos campos da saúde e educação, por meio de uma estratégia estatal sensível
às vulnerabilidades sofridas pelo segmento, em razão do forte preconceito de que é
vítima.
Nesse contexto cada vez mais inóspito, tem se observado o quanto a militância
LGBT+ está atenta, buscando amparo principalmente junto ao judiciário para impedir
retrocessos e ataques perpetrados pelo estado brasileiro, seja por meio das ações e
omissões do poder executivo, seja pelas do legislativo. Exemplo disso é o fato de a que a
ABGLBT, Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e Grupo de Advogados
pela Diversidade Sexual (GADvS), associações a nível nacional que atuam como
articuladoras de diversos movimentos relacionados à causa LGBT+ localizados em todo
país, perpetraram em 08.08.19 uma ação civil pública com o fim de restabelecer o
processo vestibular com cotas universitárias para pessoas transgêneros, conforme
mencionado no item 15 do quadro 1. Nesse sentido, segundo Simões e Facchini apud
Duarte e Pereira (2011, p. 5):
176 A nível federal tramita o PL 246/19, uma versão atualizada do PL 7180/14, o qual foi arquivado em
dezembro de 2018 e já tinha mais 10 projetos a ele anexados. No âmbito dos estados e municípios, muitos
projetos foram apresentados e aprovados. Contudo, questionamentos judiciais quanto as suas evidentes
inconstitucionalidades conseguiram suspender os efeitos de alguns desses atos normativos, a exemplo da
Lei Municipal 5.457/208 de Volta Redonda – RJ e da Lei Estadual 7.800/2016 do estado de Alagoas.
177 Divulgado em 02.01.19 pelo site gauchazh.clicrbs.com.br
1008
Ressalte-se que também foi por via judicial que se alcançou o reconhecimento de
união estável entre pessoas de mesmo sexo178, sua posterior possibilidade de conversão
em casamento179, o direito à mudança de nome e gênero nos documentos oficiais ainda
que não realizada a cirurgia de redesignação180, o direito ao uso do nome social na
administração pública federal181 e a mais recente conquista à nível de jurisdicional, qual
seja, a criminalização da LGBTfobia. Tais posicionamentos cada vez mais fazem do Poder
Judiciário uma esfera duramente criticada e acusada de cometer ativismo judicial, como
se reconhecer a dignidade enquanto pessoas humanas dos indivíduos LGBT+,
possibilitando a eles a vivência concreta de direitos humanos desde sempre gozados por
indivíduos heterossexuais e cisgêneros, fosse o mesmo que conceder privilégios e
regalias.
A seguir, apresentaremos um quadro esquematizado com a intenção de ilustrar um
panorama dos acontecimentos ou marcos que, a nível nacional, se refletiram em avanços
e retrocessos para evolução das políticas públicas educacionais LGBT+ ou que
contemplassem o tema da LGBTfobia. A partir desses dados, acreditamos ser possível
melhor clarificar as conquistas, tensões e resistências enfrentadas pelo segmento no
campo educacional. Por fim, a partir das informações coletadas, pretendemos avaliar qual
cenário é atualmente imposto e de que forma o movimento tem respondido a ele.
178 Em 05.05.11, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo.
179 Em 14.05.13, o Conselho Nacional de Justiça emitiu resolução 175/2013 vedando a recusa pelas
autoridades competentes a habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável
entre pessoas de mesmo sexo.
180 Em 09.03.18, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 e decidiu
que pessoas transgênero podem solicitar a correção de nome e gênero nos documentos oficiais, mesmo sem
a realização de cirurgia de redesignação sexual.
181 Em 29.04.16, foi publicado o Decreto 8.727 pela presidenta Dilma Rousseff, determinando que fosse
respeitado o direito ao uso do nome social de travestis e transexuais em todos os órgãos e entidades da
administração pública federal. Alguns estados e municípios também aprovação decretos e leis semelhantes.
Não há ainda amparo a nível nacional, embora já haja garantias do direito de mudança do nome e gênero
nos documentos oficiais, conforme nota de rodapé número 18.
1009
respeito à diversidade sexual como
pertinente à EDH.
Lançamento do Programa Brasil Sem
Secretaria de Direitos
5 Homofobia com previsão de várias 2004 Avanço
Humanos
ações educativas
Início do movimento Escola Sem
Partido, que influiu para a
propositura de um projeto de lei
federal, ainda em trâmite, e a
aprovação de vários projetos de
mesma natureza nos âmbitos
6
estadual e municipal. A Advogado Miguel Nagib 2004 Retrocesso
constitucionalidade de vários deles
foi questionada e aguarda-se o
julgamento de três ações
relacionadas no Supremo Tribunal
Federal
Aprovação do Plano Nacional de Secretaria Especial dos
Educação em Direitos Humanos com Direitos Humanos,
7 menção à orientação sexual e Ministério da Educação, 2007 Avanço
identidade de gênero Ministério da Justiça e
UNESCO
Lançamento do Plano Nacional de
Secretaria Especial de
8 Promoção da Cidadania e Direitos 2009 Avanço
Direitos Humanos
Humanos de LGBT+
Lançamento da 3ª versão do
Programa Nacional de Direitos
9 Humanos (PNDH 3), dando Presidência da República 2009 Avanço
relevância ao combate à
discriminação contra LGBT+
Publicação das Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais da
10 Educação Básica, com menção sobre Ministério da Educação 2010 Avanço
orientação sexual e questões de
gênero
Veto ao kit de materiais educativos
11 Presidência da República 2011 Retrocesso
do Projeto Escola sem Homofobia
Publicação das Diretrizes Nacionais
para o Ensino médio com menção à
12 Ministério da Educação 2012 Avanço
“orientação sexual” e “identidade de
gênero”
Publicação das Diretrizes
Curriculares Nacionais Gerais da
13 Educação Básica: diversidade e Ministério da Educação 2013 Avanço
inclusão. Com menção à “orientação
sexual” e “identidade de gênero”.
Aprovação do Plano Nacional da
14 Educação (PNE) com supressão das Congresso Nacional 2014 Retrocesso
expressões “orientação sexual” e
1010
“gênero”, no que se refere à
promoção de igualdades, contidas no
projeto original
Aprovação da Emenda
Constitucional 95/2016, que
restringiu os gatos públicos,
15 inclusive, na educação, e, Congresso Nacional 2016 Retrocesso
consequentemente, dificultou a
implementação de políticas públicas
educacionais LGBT+
Publicação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), com exclusão dos
temas “diversidade sexual” e
16 Ministério da Educação 2017 Retrocesso
“identidade de gênero”, contidas em
algumas versões do texto, antes de
aprovado.
Extinção da Secretaria de Educação
17 Continuada, Alfabetização, Ministério da Educação 2019 Retrocesso
Diversidade e Inclusão - SECADI
Intervenção do MEC para anulação
de edital de vestibular da
18 Universidade de Integração Ministério da Educação 2019 Retrocesso
Lusofonia Afro-Brasileira, para
pessoas transgênero
Fonte: Melo, 2019.
É possível verificar que, até 2013, predominava uma tendência ascendente quanto
às iniciativas governamentais que influenciavam positivamente para evolução de políticas
públicas educacionais LGBT+, contudo, de 2014 até o presente ano, constatou-se apenas
retrocessos. Ressalte-se que diversos outros acontecimentos a nível governamental foram
prejudiciais às demandas do segmento LGBT+, contudo, nosso objetivo era ressaltar
apenas os fatos que tinham correlação mais direta com o campo educacional.
Entendemos que nenhum dos marcos mencionados, no sentido de representarem
avanços ou retrocessos, ocorreram ao acaso, mas que estão diretamente relacionados aos
embates, tensões e entraves protagonizados pelo movimento LGBT+ e os setores
conservadores com influência nos espaços de poder. Contudo, o cenário atual revela-se
cada vez mais crítico e alarmante quanto a própria vigência do estado democrático de
direito.
Kellner apud Cruz (2011, p. 184) salienta que “se deve prestar atenção ao que fica
fora dos textos ideológicos, pois frequentemente são as exclusões e os silêncios que
revelam o projeto ideológico do texto.”
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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MACEDO, Elizabeth (Orgs.) Políticas de Currículo em múltiplos contextos. SP: Editora
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Direitos Humanos. Trabalho de pós-doutorado. Universidade do Minho/Braga/PT.
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CARVALHO, Grasiela Augusta Morais Pereira de; PEREIRA, Cleyton Feitosa de. O papel
dos movimento sociais na construção dos planos de educação: a recente exclusão
das políticas de gênero e sexualidade em Pernambuco. VII Colóquio Internacional de
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contemporâneos. 2015.
COLLING, Leandro. A igualdade não faz o meu gênero – Em defesa das políticas das
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 1987. 17ª edição. Paz e terra. Rio de janeiro.
GIROUX, Henri A. Pedagogia crítica, Paulo Freire e a coragem para ser político.
Revista e-Curriculum, São Paulo, v.14, n.01, p. 296 – 306 jan./mar. 2016
1013
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Mestrado. 2016.
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Ensino da Administração. XXXII Encontro da ANPAD. Rio de Janeiro/RJ – 6 de
dezembro de 2008l
ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares . A UFPB nas trilhas do autoritarismo. In: TOSI,
Giuseppe; FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra; ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares.
(Org.). A Formação em Direitos Humanos na Educação Superior no Brasil: trajetórias,
desafios e perspectivas. 1ª Ed.João Pessoa - PB: Editora da UFPB, 2014, v. 1, p. 339-372.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo, Atlas, 1994.
DUARTE, Ana Maria Tavares; PEREIRA, Cleyton Feitosa. Políticas Públicas para uma
Educação não sexista e não homofóbica: um olhar sobre as ações do MEC. III
Seminário Nacional de Gênero e Práticas Culturais: Olhares Diversos sobre a
Diferença. João Pessoa – PB. 2011.
1014
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E A LUTA LGBT: UMA APROXIMAÇÃO
TEÓRICA E POLÍTICA
1 INTRODUÇÃO
182Sobre a situação LGBT no regime militar braasileiro, a obra do historiador James Green “A vida
extraordinária de Herbert Daniel-pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão” escrita em 2018,
constitui uma leitura que pode evidenciar os processos de transformação que a causa LGBT vivenciou.
183Além destas autoras, os direitos humanos como discurso não-hegemônico podem ser percebidos também
nos escritos de Boaventura, Zaffaroni, Herrera Flores, José Geraldo, Ricardo Dornelles e João Batista.
1015
gênero/sexualidade, mas em outras pautas (classe, cor, etnia, etc.) e não só no Brasil, mas
também em outros países da América Latina e no mundo (literaturas que falam sobre isso
serão trazidas mais à frente).
A partir disto, é possível identificar algumas contradições. Artistas LGBTs têm
ganhado visibilidade internacional, cada vez mais há dragqueens, travestis, negras, etc.
construindo narrativas extremamente politizadas e potentes sobre racismo, transfobia e
o preconceito no Brasil na música e nas artes. As empresas têm feito propagandas e
anúncios com representatividade de minorias e têm buscado assumir compromissos com
a comunidade LGBT (mesmo que, de maneira contraditória, pois há a crítica de que as
empresas mais buscam os lucros do que as melhorias sociais). A parada LGBT de São Paulo
permanece sendo o maior movimento político do Brasil, com maior adesão. E por fim, as
mais diversas vertentes dos movimentos feministas têm sido reinventadas pelas
construções teóricas de mulheres lésbicas nas universidades brasileiras.
Apesar disto, o Brasil continua sendo o país que mais mata travestis e transexuais
do mundo (TGEU, 2012)184, em 2017, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais
(ANTRA) apontou que ocorreram 179 assassinatos de pessoas trans, sendo que “85% dos
casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade como uso
excessivo de violência, esquartejamentos, afogamentos e outras formas brutais de
violência. O que denota o ódio presente nos casos.” (ANTRA, 2018, p. 21). Observa-se
então um processo de intensificação da violência, que é carregado também de muito
incômodo das elites, dos grupos fundamentalistas e conservadores, em relação aos
avanços da causa LGBT.
Este avanço do conservadorismo não é exclusivo do movimento LGBT, e nem do
Brasil. Almeida e Reis (2018) afirmam que as lutas feitas pelos movimentos sociais,
apoiadas nos Direitos Humanos, possibilitaram a redemocratização, fortalecendo as
mudanças ocorridas nos anos 1980, mas apesar disto começaram a surgir críticas aos
Direitos Humanos pela mídia, pelos conservadores e defensores de um Estado autoritário,
na tentativa de enfraquecer as mudanças que ocorreram até então (ALMEIDA; REIS,
2018).
O conceito de Direitos Humanos está em disputa, uma disputa que perpassa vários
períodos históricos (tal como os processos colonizatórios, as lutas contra o absolutismo,
lutas pelos direitos trabalhistas e os novos movimentos sociais nas décadas de 1968 e
1970), esta disputa têm efeitos em diversos movimentos sociais, dentre eles o movimento
LGBT. Dornelles (2017) defende que "Desde o século XVIII, o conceito de direitos
humanos foi se transformando, como resultado de lutas sociais pela ampliação do
reconhecimento de direitos.” (DORNELLES, 2017, p 156). As transformações deixam
sempre evidente que os Direitos Humanos são um conteúdo político e ideológico, que
refletem os períodos nos quais estão inseridos, pois são “a expressão das demandas
sociais que resultam dos conflitos e da acumulação de forças dos seguimentos sociais sem
poder” (DORNELLES, 2017, p 156).
O avanço do conservadorismo foi também uma resposta indignada aos programas
sociais, aproveitando-se da crise global para propor soluções conservadoras no campo
das políticas públicas, conforme a seguir:
1018
2 OS AVANÇOS NOS DIREITOS HUMANOS JAMAIS SÃO CONQUISTADOS
INDIVIDUALMENTE, MAS SIM A PARTIR DA COLETIVIDADE.
1020
falando mal do movimento LGBT, e até um quantitativo enorme de mulheres que têm se
declarado anti-feminista).
Estes ocorridos têm sido usados de forma bastante estratégica para desarticular
os movimentos sociais, deslegitimando-os, a partir do uso instrumental de anti-ativistas.
Mas apesar dessa imagem estar cada vez mais presente no imaginário da sociedade, ela
não é verdadeira. Afonso e Rodrigues (2008, p 968) mostram que o pertencimento a um
grupo ainda faz com que o sujeito tenha consciência da opressão e seja protagonista em
denunciá-la, tal como a seguir:
1021
A educação em direitos, mais que um simples conteúdo intelectual, deve
ser entendida como mediadora entre a prescrição normativa e a
realização dos direitos no cotidiano. Por isso, a incorporação destes
conteúdos teóricos na aula, tem sentido pois tanto estão inspirados
quanto inspiram certos valores e atitudes que conduzem ao
desenvolvimento de determinadas competências cidadãs de convivência.
Por isto, sua efetividade se mede em quanto estes ensinamentos
permeiam e transformam as inter-relações entre os agentes educativos,
sob uma base comum da dignidade humana (IIDH, 2010, p 2, tradução
livre).
Neste sentido, a luta por direitos é uma luta pela conscientização dos direitos, de
forma relacional. Este valor existente na Educação em Direitos Humanos também está
presente no texto de Fernandez:
1022
direitos econômicos, sociais e culturais por outra. Ele abarca todos” (TOMASEVSKI, 2002,
p 12 tradução livre).
O segundo motivo tem a ver com o fato de que a educação entende que a formação
dos direitos deve envolver diversos setores (governo, política, sociedade civil organizada,
grupos religiosos, família, crianças, mulheres, idosos, etc.). Assim sendo, a educação, tal
como a Educação em Direitos Humanos, entende que os ensinamentos de cidadania
devem ser intersetoriais. Isto está garantido no item 2 do artigo 3 da Declaração das
Nações Unidas sobre Educação e Formação em Matéria de Direitos Humanos da seguinte
forma:
1023
pode-se observar que, quando há maior visibilidade para o
comportamento homossexual, crescem a rejeição e a dúvida entre os
héterossexuais. Quando se comparam os 95% de apoio à afirmação
“ninguém deve ser discriminado por sua orientação sexual” aos 41% de
pessoas que dizem não ver problemas em casais de gays se beijarem em
público, pode-se problematizar que os participantes da pesquisa
relativizam o que é ou não discriminação, permitindo-se inserir, como
lógicas, tensões e contradições no discurso da igualdade. É importante
notar que é justamente quando o comportamento é mais explícito que a
diferença entre os grupos torna-se expressiva (AFONSO; RODRIGUES,
2018, p 959-960).
Embora seja de difícil reconhecimento dos próprios indivíduos, que não percebem
as suas contradições, é de extrema importância mudar o ambiente escolar. Por conta do
preconceito na escolas, muitos LGBTs evadem do ambiente escolar, não concluem os
estudos e passam a ter um problema duplo quando vão entrar no mercado de trabalho:
não conseguem emprego tanto pelo preconceito das empresas quanto pela falta de
escolaridade.
O quarto e último motivo para a atuação nas escolas é o de que a educação é
ambiente de humanização e do fazer política. O autor Lima e a autora Silveira (2016)
ressaltam que é impossível pensar o processo de humanização sem pensar na educação,
especialmente em sociedades mais desiguais (como o Brasil) não é possível uma educação
que não reconheça os valore que estão implícitos e já fazem parte do imaginário social do
brasileiro. Desta forma, os autores defendem que “Os direitos humanos são, na
contemporaneidade, a essência de qualquer projeto voltado para a humanização e,
portanto, comportam os valores e as direções fundamentais a serem mantidos, sob pena
de não nos humanizarmos por falta de educação em valores." (LIMA; SILVEIRA, 2016, p
52). Do ponto de vista político, Bernal (2010) defende que toda prática educativa é uma
prática política. Se considerarmos as práticas sociais e os ideais vigentes numa sociedade,
para transformar a situação dela é necessário “transformar a realidade social e suas
estruturas com a constituição de novos sentidos, significados, posições, práticas, valores
e utopias que se instaurem como renovação daqueles que tem soberania sobre a cultura,
a política e a sociedade” (BERNAL, 2010, p 43, tradução livre).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Camila Nunes; REIS, Helena Esser dos. A educação em direitos humanos como
ferramenta de consolidação e expansão dos direitos humanos.Revista Interdisciplinar
de Direitos Humanos, Bauru, v. 6, n. 1, p. 45-59, 2018. Disponível em:
https://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/569. Acesso: 10 de
agosto de 2019.
1025
BERNAL, Oscar. Pedagogías Críticas y educaciónenDerechos Humanos: Una Mirada
desde Escenarios escolares y no Escolares. Nodos y Nudos, v. 3, n. 29, p. 41-51, 2010.
Disponível em: https://revistas.pedagogica.edu.co/index.php/NYN/article/view/905.
Acesso: 10 de agosto de 2019.
BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Resolução, 175, 14 de maio de 2013. Dispõe sobre
a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em
casamento, entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n175-14-05-2013-
presidncia.pdf. Acesso: 10 de agosto de 2019.
LIMA, Max Fernando. SILVEIRA, Rosa Maria. Educação em/para os Direitos Humanos:
justificando os porquês. In: RECHEMBACH, Fabiana. ANDRADE, Fernando. Educação
em Direitos Humanos: construindo políticas públicas, Editora CRV, Curitiba, 2016.
1026
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF Reafirma Direito de Transgêneros de Alterar
Registro Civil Sem Mudança de Sexo. Brasília, 2018. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386930. Acesso:
10 de agosto de 2019.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADO, 26/2019. Brasília, 2019. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/tesesADO26.pdf> Acesso:
10 de agosto de 2019.
1027
O PROCESSO EDUCACIONAL NO CURSO DE MEDICINA: REGULAMENTAÇÕES DO
DIREITO E DA MEDICINA SOBRE A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
1 INTRODUÇÃO
Desta forma, este artigo nos permitiu compreender em que medida a violência
obstétrica cometida com finalidade didática confronta-se com a educação em direitos
humanos. Para isso, perpassamos por temas como as regulamentações da medicina e do
direito quanto à violência obstétrica; daquela para observar o que os documentos da
medicina externa sobre os direitos humanos e o respeito à mulher, e este para fornecer
elementos de proteção aos direitos das mulheres nesta situação.
1028
país, os quais primam por uma humanização no parto e pelo respeito à autonomia da
mulher gestante.
Temos como marco para a humanização do parto a Lei nº 11.108/2005, também
conhecida como Lei do Acompanhante, a qual alterou a antiga Lei n° 8.080/1990 no
intuito de garantir a presença de acompanhante à mulher durante o trabalho de parto,
parto e pós-parto. Todavia, o seu artigo 19-L foi vetado, o referido artigo qualificava a não
obediência ao previsto na lei do acompanhante como crime de responsabilidade, bem
como sujeitaria o infrator às penalidades previstas na legislação. Dessa forma, ao ter este
artigo vetado, houve o tolhimento da real eficácia da lei, uma vez que o descumprimento
da mesma não enseja responsabilidade alguma ao infrator. Por não haver qualquer
punição, apesar da lei estar em vigor há mais de dez anos, ainda é algo corriqueiro notícias
de acompanhantes que não foram permitidos estarem presentes nos partos, conforme
caso noticiado no dia 26/02/2016: 185
[...]‘Com a lei embaixo do braço fui barrado de ver o parto da minha filha
e não queriam deixar eu ficar como acompanhante’, contou o pai na rede
social. [...] Com o intuito de fazer valer o seu direito, Gabriel chegou a ligar
duas vezes para a polícia, comunicando o descumprimento da norma,
porém as autoridades disseram que não poderiam fazer nada a respeito.
Diante das circunstâncias, ele pediu ajuda para um amigo e só assim uma
viatura foi enviada ao hospital.
A médica, então, tentou argumentar com o policial: ‘Foi explicado a esse
senhor, a esposa dele inclusive já teve o bebê e está quieta lá no canto
dela, fazendo o papel lindamente dela de mãe, e o senhor (referindo-se a
Gabriel) está aporrinhando desde a hora que chegou aqui’. Depois de
tanta discussão, ela acabou cedendo: ‘O senhor quer entrar? Pode entrar,
porque pra mim é indiferente o senhor assistir o parto, não assistir o
parto’. [...] (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2016)
185 http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/02/video-pai-e-impedido-de-assistir-nascimento-da-
filha-e-chama-a-policia.html
1029
foco na atenção ao parto, ao nascimento, ao crescimento e ao desenvolvimento da criança
de zero aos vinte e quatro meses; a organização da Rede de Atenção à Saúde Materna e
Infantil para que esta garanta acesso, acolhimento e resolutividade; e reduzir a
mortalidade materna e infantil com ênfase no componente neonatal. (BRASIL, 2011)
Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 7633/2014, o qual
dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo
gravídico-puerperal e dá outras providências. Neste projeto de lei, de autoria do deputado
Jean Wyllys, prevê a caracterização do que seria a violência obstétrica, bem como a
constitui como infração à legislação sanitária federal, trazendo como consequência
penalidades aos infratores, como a responsabilização civil, penal e administrativa. Além
desse projeto de lei, há também o PL 8.219/17 (de autoria do deputado Francisco
Floriano) e 7.867/17 (de autoria da deputada Jô Moraes), em trâmite no Congresso
Nacional, os quais também dispõem sobre as diretrizes e os princípios inerentes aos
direitos da mulher durante a gestação, pré-parto e puerpério e a erradicação da violência
obstétrica.
Todavia, mesmo havendo leis e dispositivos que definam práticas que evitem a
violência obstétrica e guiem o atendimento da gestante para um parto humanizado, esses
diplomas não são respeitados, tampouco completos, e ainda não possuem dispositivos
que penalizem as condutas contrárias ao que eles preceituam, dificultando, assim, a
aplicabilidade da norma.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre:
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde.
1030
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local; (BRASIL, 1988)
Ao passo que no Brasil inexiste lei federal que coíba a violência obstétrica, mister
se faz mencionar a situação dos nossos países vizinhos, os quais já possuem em seus
ordenamentos leis federais reconhecendo a violência obstétrica.
O primeiro país latino-americano a reconhecer a violência obstétrica enquanto
violadora dos direitos das gestantes e parturientes foi a Argentina, através da “Ley n°
25.929” ou “Ley de Parto Humanizado”, tal lei foi sancionada no ano de 2004 e traz uma
série de direitos inerentes às mulheres gestantes, em trabalho de parto, parto e
puerpério, além de solicitar ao Poder Executivo que realize campanhas para conscientizar
a sociedade acerca da importância de se acompanhar a mulher em trabalho de parto por
alguém que ela deseja.
Apesar de ser pioneira no tema da violência obstétrica, a “ley n° 25.929” não traz
uma definição concreta do que seria a violência obstétrica, a deixa subentendida através
dos direitos elencados às gestantes, mulheres em trabalho de parto, parto e puerpério,
bem como aos recém-nascidos e aos pais. Dentre os direitos, podemos mencionar o direito
a ser tratada com respeito, e que seja garantido a intimidade durante todo o processo
assistencial e que leve em conta, ainda, seus anseios culturais; de ser considerada como
pessoa sã e, de modo a facilitar sua participação como protagonista de seu próprio parto;
de não ser submetida a nenhum exame ou intervenção cujo propósito seja de investigação,
salvo se manifestamente consentido de forma escrita em protocolo aprovado pelo Comitê
de Bioética; de ser informada sobre a evolução de seu parto, o estado de seu filho e
garantida, ainda, que seja partícipe de todas as atuações dos profissionais, entre outros
direitos. No tocante a responsabilização dos infratores à lei, poderá ser configurada falta
grave, bem como haver a responsabilização em âmbito civil e penal.
Em 2007, foi a vez da Venezuela reconhecer a violência obstétrica, sobretudo
conceituá-la através da “Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a uma Vida Libre
de Violencia”, a qual aborda vários tipos de violência contra à mulher, dentre eles, a
violência obstétrica, a qual é estabelecida como:
Neste diapasão, fica perceptível que a lei da Argentina serviu apenas de pontapé
inicial para um desdobramento maior dado pela Venezuela, através da sua lei. No entanto,
em 2009, a Argentina sancionou a “Ley nº 26.485” ou “Ley de protección integral para
prevenir, sancionar y erradicar la violência contra las mujeres en los ámbitos en que
desarrollen sus relaciones interpersonales”, onde estão telencadas tipos de violência
contra a mulher, entre elas a violência obstétrica. Nesta lei, a Argentina se preocupou em
conceituar este tipo de violência, conforme se pode observar que é:
187 1- No atender oportuna y eficazmente las emergencias obstétricas. 2- Obligar a la mujer a parir en
posición supina y con las piernas levantadas, existiendo los medios necesarios para la realización del parto
vertical. 3- Obstaculizar el apego precoz del niño o niña con su madre, sin causa médica justificada,
negándole la posibilidad de cargarlo o cargarla y amamantarlo o amamantarla inmediatamente al nacer. 4-
Alterar el proceso natural del parto de bajo riesgo, mediante el uso de técnicas de aceleración, sin obtener
el consentimiento voluntario, expreso e informado de la mujer. 5- Practicar el parto por vía de cesárea,
existiendo condiciones para el parto natural, sin obtener el consentimiento voluntario, expreso e informado
de la mujer. (VENEZUELA, 2007, p. 52)
188 Aquélla que ejerce el personal de salud sobre el cuerpo y lós procesos reproductivos de las mujeres,
Dos artigos transcritos acima, fica evidente que é vedado qualquer ato que
implique no desrespeito ao paciente, seja através diretamente de atos no tocante ao seu
exercício da medicina, quanto à falta de consentimento perante algum ato que venha a ser
realizado no paciente. Muito se fala acerca dos atos praticados nos hospitais escolas, que
por possuírem esta condição, não necessitam de consentimento dos pacientes para
realizar qualquer ato, uma vez que por estar naquele local, que também é de aprendizado
para futuros médicos, o paciente já estaria ciente que as intervenções a ser realizadas no
seu corpo poderiam ser acompanhadas por estudantes. No entanto, o artigo 28
supracitado é claro e taxativo quanto a essa temática, tendo em vista que é vedado o
189 A episiotomia é uma cirurgia realizada na vulva, cortando a entrada da vagina com uma tesoura ou
bisturi, algumas vezes sem anestesia. (SANTOS, S. K. et al, 2012)
1033
desrespeito ao interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição. Ainda, o
parágrafo único menciona o dever do paciente em denunciar o fato que tenha sido objeto
de desrespeito à autoridade competente e ao Conselho Federal de Medicina.
No tocante à relação dos médicos com os pacientes e familiares, os artigos
referentes a esta seção também são permeados de diretrizes relacionadas ao respeito à
autonomia do paciente, ou na impossibilidade deste, o direito ao consentimento será
repassada a algum membro da família, salvo em casos em que não seja possível esse
consentimento, por estar diante de um caso de iminente risco de vida, conforme se pode
observar abaixo:
Do artigo transcrito fica evidente que a postura dos estudantes deve sempre ser
pautada na ética e no respeito à autonomia do paciente. Portanto, de acordo com os
instrumentos médicos demonstrados depreende-se que a autonomia do paciente é
colocada como algo que deve ser respeitado, até mesmo quando este não puder expressar
sua vontade, a qual é repassada a responsabilidade para um membro da família. Devendo
apenas a mesma ser relegada quando em caso de eminente risco de morte.
Sabe-se que apesar de haver essas recomendações, nem sempre é assim que
acontece. Os relatos de mulheres que sofreram alguma intervenção, como a episiotomia,
sem nem ao menos ser consultada se ela consente ou não, são vários e cada vez mais vem
ocupando espaço nos debates sobre a violência obstétrica. Vejamos o relato de um
estudante da área de saúde. O qual presenciou uma violência obstétrica em 2016 em um
hospital na Paraíba PB:
1035
encontravam em cena). Esta “médica” apresenta como sua primeira
atitude (antes mesmo de ter qualquer contato com a paciente) segurar a
tesoura e comentar com suas colegas de profissão, gesticulando com a
tesoura:
– Olha aqui minha humanização! Olha, minha humanização.
A paciente sente a primeira contração e em conjunto faz força para
expulsar a criança (posição cefálica e com cerca de 40% de sua calota
evidente).
A médica pega a tesoura.
Na segunda contração, enquanto a paciente estava fazendo força, a
“médica”, sem cerimônias, realiza uma episiotomia médio lateral na
paciente (cortou a região perineal da paciente).
Eu e meus companheiros nos entreolhamos e todos reprovaram aquela
atitude, pois a paciente estava evoluindo muito bem e rápido, bastava um
pouco de paciência. Mas não podíamos falar nada, pois ela é “uma médica”
e nós somos estudantes. [...]. (POLÊMICA PARAÍBA, 2016)
190Essa manobra é realizada com as duas mãos empurrando a barriga da mulher em direção à pelve.
(SANTOS, S. K. et al, 2012)
1036
Quanto à prática médica, muitas vezes ela é ensinada e apreendida de forma
distante dos balizamentos éticos, dando preferência a competências em detrimento de
valores como o cuidado. Ainda, fala-se das situações em que as mulheres adquirem uma
condição de objetificação em prol do treinamento de internos, como em casos em que há
negociação entre estudante e residente para a realização de uma episiotomia para fins de
treino sem o consentimento da paciente. (HOTIMSKY, SN 2007)
Tradicionalmente, o ensino da obstetrícia no Brasil, requer do aluno a
demonstração das práticas apreendidas para que seja avaliado. Tal avaliação se faz em
pacientes, o que não é a realidade de outros países, os quais priorizam o estudo de
determinadas intervenções por meio de modelos sintéticos e peças específicas, por
exemplo, o aprendizado da episiotomia e o fórceps. Em contraposição, no Brasil, muitos
profissionais relatam começar seu treinamento das habilidades cirúrgicas nas pacientes.
Assim, “na prática, ensina-se, aos futuros profissionais, que a paciente não tem direito à
escolha ou à recusa informada, e que as necessidades de ensino dos treinandos são mais
importantes que a autonomia ou a integridade corporal das parturientes” (DINIZ et al,
2016).
Ademais, apesar de dar maior ênfase nos atos de exames de toques dolorosos,
mister se faz reconhecer que esta não é a única forma de intervenção com finalidade
didática, tendo em vista que esta se considera enquanto toda e qualquer conduta
violadora de direitos das gestantes realizadas com o fito de ensinar tal conduta a
estudantes. É sabido que, de fato, deve se haver o treinamento dos procedimentos que
serão realizados no curso da sua carreira profissional, no entanto, a priori, esses
profissionais precisam ser ensinados a preservar a dignidade da mulher, precisam ter
uma educação pautada nos Direitos Humanos.
Nesse sentido, insta mencionar que a educação em direitos humanos colabora para
a proteção e a dignidade de todos os seres humanos, bem como, para a construção de
sociedades onde os direitos humanos são respeitados. Quando falamos em educar em
direitos humanos, não estamos nos referindo apenas ao conteúdo curricular, mas
sobretudo aos métodos pedagógicos. É importante formar pessoas sensíveis às outras,
que possam levar a educação em direitos humanos à sociedade. (UNESCO, 2012)
As práticas, ainda que abusivas, são repassadas a outras gerações de futuros
profissionais de saúde, refletindo numa normalização, bem como na impunidade do
acesso abusivo ao corpo feminino. Posto isso, o que se depreende é que o que se ensina
aos futuros profissionais é que a mulher não tem autonomia, e que o aprendizado deles
têm mais valor do que a própria integridade corporal da mulher. (DINIZ et al, 2016).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1038
REFERÊNCIAS
BRASIL. Portaria nº 1.459. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede
Cegonha. Ministério da Saúde, Brasília, 2011. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html>
Acesso em: 15 set. 2019.
BRASIL. Portaria nº 1.820. Dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde.
Ministério da Saúde, Brasília, 2009. Disponível em:
<http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2009/01_set_carta.pdf.> Acesso em: 15
set. 2019.
1039
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações
Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em:
<http://www.dudh.org.br/wpcontent/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 26 jun.
2015.
SANTOS, S. K. et al. Dossiê da Violência Obstétrica “Parirás com dor”. São Paulo: Rede
Parto do Princípio, 2012. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pd
f>. Acesso em: 02 set. 2019.
1040
UNESCO. Plano de Ação: Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos.
2ª Fase. Brasília, 2012.
VENTURI, G.; BOKANY, V.; DIAS, R. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços
público e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo/Sesc, 2010. Disponível em:
<http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra_0.pdf>. Acesso em:
03 set. 2019
1041
ANDALA DO CONHECIMENTO: EDUCAÇÃO, SEXUALIDADES E DIREITOS HUMANOS
1 INTRODUÇÃO
Essa estrutura está intrínseca aos símbolos. Cores, formas, e outras características
compõem essa estética. Segundo Fioravanti (2007), mesmo que o criador da mandala não
tenha consciência daquilo que faz, ele coloca em sua criação elementos simbólicos
ancestrais.
Sendo assim, a preparação deve contemplar uma didática ordenada, que culmine
no entendimento do sujeito. Isto é, desenvolver etapas que sejam agrupadas durante o
processo. Entretanto, os obstáculos estão para além de desenvolver um planejamento.
1043
O desafio principal que temos que enfrentar é o de saber implementar
uma estratégia educativa. Isto é, planejar e pôr em prática processos
educativos ordenados, lógicos, coerentes, que tenham uma sequência e
uma perspectiva tal que nos permitam apropriar criticamente da
realidade para transformá-la. (JARA, 1986, p.02).
1044
3 DIREITOS HUMANOS
1045
território, o que causou um impacto negativo, pois esse sistema de fiscalização se mostrou
falho diante da demanda que lhe foi proposta, já que isso tornou os indivíduos em sujeitos
de direitos internacionais.
No Brasil a introdução do Direito Internacional dos Direitos Humanos se deu a
partir do ano de 1985, no contexto do processo de democratização. Tendo como marco
inicial a ratificação da Convenção contra a tortura e outras formas de tratamentos cruéis
e desumanos ou degradantes, explicitada na Constituição Federal, (BRASIL, 1991). Diante
disso, outros mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos foram
englobados na pauta do Direito Brasileiro, no amparo da Constituição Federal de 1988,
(Piovesan, 2000).
1046
Na concepção de Freire, a relação entre direitos humanos e educação popular, se
dá na perspetiva de respeito e compreensão dos saberes do outro, através do diálogo de
diversos saberes que socializam-se entre si e superam estereótipos de fatos que são tidos
como uma única verdade, sem levar em conta os demais aspectos que permeiam em
determinados contextos na sociedade.
Nesse sentido, a educação popular concretiza-se totalmente no campo dos direitos
humanos por ultrapassar os muros da escola, não fundamentando-se apenas nos aspectos
cognitivos, visando a proximidade entre docente e discente, que deve ir além das
atividades pedagógicas, formulando um mecanismo de diálogo sobre os diversos temas à
serem abordados a partir da diversidade que existe no âmbito educacional ( MELO NETO,
2007).
Assim, se faz pertinente enfatizar que a educação popular não é um modelo único
de prática pedagógica, mas destaca-se principalmente por ser um domínio de ideias e
práticas regidas pela diferença, com a perspectiva de explorar o próprio sentido da
educação, a partir do percurso de diferentes formas do seu ser (BRANDÃO, 2006).
A partir dessa concepção, constata-se que a educação popular emerge do
significado da própria educação e rompe os paradigmas interligados ao conservadorismo
meramente tradicional pelo fato de compor uma estrutura que visa o verdadeiro sentido
da diversidade humana.
Um dos fragmentos que compõem essa estrutura e que necessitam ser
intensamente discutidos no nosso contexto atual é a pauta de gênero e sexualidade, que
apesar de estar presente no âmbito dos direitos humanos ainda constituem uma forma de
pensamento hegemônica que denuncia o quanto o nosso sistema é falho diante de tanta
violência e não aceitação do direito do ser humano de ser o que realmente é em sua
totalidade.
Figura 1 - Mandala elaborada com tecido vermelho e preto com representações sexuais no
centro do tecido vermelho. Arte elaborada para o desenvolvimento da oficina.
O texto "Há lugar para dois” aborda aspectos que questionam: quais são os limites
para os desejos? Qual a relação de poder é exercidanao sexo? Observamos a reação dos
alunos do curso de extensão “Gênero e sexualidade, epistemologia e política dos corpos”,
ambas demonstravam atenção na hora da contação de história e surpresa ao observarem
as esculturas expostas (Figura 2) e (Figura 3).
Figura 2 - SANTÍSSIMA TRINDADE - Representa o patriarcado e o poder que a igreja exerce sob
a sociedade, discriminando o sexo como um ato pecaminoso, quando praticado fora dos padrões
concebíveis.
1048
Figura 3 - HISTERIA - Representa a histerização do corpo da mulher e os tabus que envolvem a
vagina, assim como o sexo oral
Os discursos apontam para as relação de poder, que neste caso, parecem ser
exercidas sobre si mesmo, quando afirmam que tudo cabe na sexualidade, desde que seja
consentido.
A liberdade abordada representa a oposição da repressão que tinha maior poder
de punição em relação ao sexo e suas variações e por hora quer retornar. Reprimir os
desejos deixando a sociedade cada vez mais machista ao ponto de regredir nos direitos e
desrespeitar escolhas e desejos mais uma vez, tratando os indivíduos com indiferença e
fazendo uma inclusão perversa, causando séries de preconceitos por não aceitarem
1049
opções divergentes da considerada normatividade sexual. MAIA (1995), estudando a
"analítica do poder de Foucault", afirma:
1051
que a confissão fosse completa: posição respectiva dos parceiros, atitudes
tomadas, gestos, toques, momento exato do prazer — todo um exame
minucioso do ato sexual em sua própria execução. (FOUCAULT, 1988,
p.22).
O desrespeito que ainda prevalece na sociedade, que outrora era liberal e passa a
ser conservadora, vai criando mecanismos em formas de armadilhas para que ao mesmo
tempo em que consideram importante a discussão sobre a sexualidade, as verdades do
sexo a repressão e a liberação nos discursos se molde para ser uma reprodução
positiva/negativa.
O segundo símbolo foi uma escultura de argila em forma de pênis enrolado com
arame e bolinhas pintadas de azul para representar o gênero masculino e uma de vagina
enrolada com arame e bolinhas pintadas de rosa para representar o gênero feminino
(Figura 7). Esses dois símbolos foram discutidos com a base histórica-cultural da
sociedade, que antes mesmo de nascer, já define-se um sexo para o feto, padronizando
seus aspectos sócio culturais. Nas falas, o que mais incomodou foi a definição de gênero
das representações por cores e da superioridade que tratam os homens em relação às
mulheres.
Figura 7 - XXY - Representa as questões ligadas ao gênero masculino e feminino, assim como a
padronização dos corpos, aspectos sociais e as características estética.
O quarto símbolo são seios femininos com vários olhos sobre si (Figura 9). A
intenção desse símbolo é retratar a sexualização do corpo da mulher e os padrões de
beleza impostos pela sociedade. O símbolo dos seios transita nos discursos dos
participantes desde o desejo e fetiches à amamentação. Comentaram sobre a excitação e
do prazer que sentem em relação aos seios. Em como certas roupas valorizam a mulher e
chamam a atenção para esta parte do corpo.
1053
Figura 9 - PEITÃO - Representa o mecanismo relacionado às questões hipócritas da concepção
púdica do corpo. Além disso, também é uma crítica ao machismo e a misoginia.
O quinto símbolo, são esculturas de argila que formam um conjunto das nádegas e
do ânus e alguns pênis em volta (Figura 10). Este símbolo retrata os desejos sexuais, as
vontades e a liberdade para escolher o que fazer e quando fazer. Os participantes citaram
do prazer que o sexo anal proporciona e que o sexo vai além de penetração. Mais uma vez
se repete o discurso de preconceito da sociedade contra os que praticam o sexo anal e dos
pré-julgamentos que causam desrespeito. Por naturalizam certas práticas, a sociedade
tende a julgar, mesmo que dentre os que julgam, pratiquem. Swain (2002) é uma das
autoras que descreve as representações sociais referente ao corpo sexuado e pelas
práticas sexuais:
Figura 10 - Suruba - Representa o tabu do sexo anal, e a sua classificação como promiscuidade.
1054
O último símbolo retrata duas bonecas com várias notas de dinheiro em volta delas
e em seus corpos e uma corrente que une suas mãos até um pênis (Figura 11). A discussão
sobre esse símbolo foi desde a valorização do corpo e a práticas de prostituição.
1055
julgamentos. A liberdade que se tem de escolha e o poder que exerce e é exercido sobre
os corpos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BENEVIDES, Maria Victoria. Direitos humanos: desafios para o século XXI. Educação
em Direitos Humanos: Fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa, Editora
Universitária, 2007, p. 335-350.
1056
COMPARATO, Fábio Konder. Fundamento dos direitos humanos. Cultura dos direitos
humanos. São Paulo: LTR, p. 52-74, 1998
CONNELL, Robert. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade. Vol.20 (2),
jul/dez. 1995.
FIORAVANTI, Celina. Mandalas: Como usar a energia dos desenhos sagrados. São
Paulo: Pensamentos, 2007.
NASSER, Maria Celina Cabrera. O uso de símbolos: sugestões para sala de aula. São
Paulo: Paulinas, 2006. Coleção temas de ensino religioso.
PELOSO, Ranulfo. Trabalho de Base: Seleção de roteiro organizados pelo Cepis. São
Paulo: Expressão Popular, 2012.
SADE, Marquês. Contos libertinos. Trad. Plínio Augusto Coelho e Alípio Correia de
Franca Neto. São Paulo: Editora Imaginário,1997.
1058
DIREITOS HUMANOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES NEGRAS
1 INTRODUÇÃO
191O perfil dos congressistas eleitos em 2014 pode ser acessada aqui
https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/a-face-e-os-numeros-do-novo-congresso/
1060
dificultando a entrada daqueles historicamente excluídos destas esferas de decisão e
poder.
O campo político, assim, é formado por um “monopólio dos profissionais”, que se
torna mais sólido “quanto mais desapossados de instrumentos materiais e culturais
necessários à participação activa na política estão os simples aderentes” (BOURDIEU,
2004, p.164). Deste modo, a “renovação” dos quadros do campo ocorre a partir de um
conjunto de características tidas como confiáveis para o grupo hegemônico, que assim,
concentra mais capital político e exclui os diferentes de antemão, já que nem acesso ao
treinamento eles têm (RABAY, 2008, p. 234), perpetua-se, deste modo, a exclusão das
“classes perigosas”, e das mulheres, particularmente das mulheres negras, do campo da
política.
Tida desde a antiguidade como um espaço masculino, a política se contrapôs ao
espaço privado, considerado o lugar próprio para as mulheres. Aliado a essa divisão
sexual dos espaços públicos e privados, a falta de apoio financeiro às candidaturas
femininas, recursos partidários limitados, os efeitos da divisão sexual do trabalho, a
entrada tardia na política, a obrigação de conciliar o trabalho doméstico com a vida
profissional são os principais obstáculos que as mulheres enfrentam para entrar na vida
política.
Apesar de, desde o começo do século XX, as mulheres terem conquistado o direito
de participar dos processos eletivos no Brasil, esse direito ainda não resultou numa
participação significativa e as mulheres permanecem sub representadas no campo
político, apesar de se verificar, desde os anos 1980, um crescimento da participação
feminina nos cargos eletivos.
O direito ao voto feminino no Brasil é muito recente, foi somente, em 1932, no
governo de Getúlio Vargas, que as mulheres conquistaram esse direito, com restrições,
pois somente mulheres casadas, mediante autorização dos maridos, mulheres solteiras e
viúvas com renda própria podiam exercer esse direito. Assim, o número de mulheres
negras que puderam se beneficiar desse direito foi bastante reduzido.
São as mulheres negras, ainda hoje, a maioria dos terceirizados, nos trabalhos
informais, empregos domésticos, e as que mais sofrem com os efeitos da crise, visto que
estão no bojo do grupo mais vulnerável com trabalhos precarizados. O fato do trabalho
doméstico concentrar de maneira mais acentuadas as mulheres negras demonstra que o
aumento da presença das mulheres no mercado de trabalho não representou mudanças
significativas na vida dessas mulheres, que ainda ocupam a maior parte dos trabalhos
subalternos. Nesse sentido, entendemos que a garantia de participação política das
mulheres negras na política não é apenas uma questão de representação, mas de mudança
de paradigmas sociais estruturantes.
A Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância (2001) que aconteceu em Durban, na África do Sul, reconheceu que a pobreza
1061
determina a situação econômica e social e estabelece obstáculo à efetiva participação
política de mulheres e homens. Nesse contexto, é dever do Estado criar programas de
inclusão baseados em gênero e raça em todas as políticas econômicas e sociais,
especialmente para indivíduos que são vítimas de racismo, sexismo, xenofobia e
intolerância. O plano de ação de Durban também reconheceu o papel primordial dos
Parlamentos na luta contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata, em adotar legislação adequada, supervisionando sua implementação e
alocando os recursos financeiros indispensáveis.
Entendemos que a representação política deve ser um instrumento de inclusão
política e justiça social, logo as instituições legislativas têm o dever de representar o seu
povo para garantir que as demandas de diferentes grupos sejam ouvidas. Assim,
constatamos que a democracia no Brasil se mostra incapaz de dar voz a grupos
marginalizados, embora a maioria da população seja composta de negros e mulheres, no
processo político eles são excluídos.
Nesse contexto de sub-representação, surgem propostas de medidas que
propiciem maior representação dos grupos minoritários e sujeitos a desigualdades
estruturais. No caso de mulheres e negros, os movimentos sociais sustentam que o
legislativo composto majoritariamente por homens e por brancos não os representam
devidamente, razão pela qual, medidas que proporcionem maior representação de tais
grupos no legislativo seriam necessárias (PHILLIPS, 2001, p. 273).
O Brasil ocupa a 134° posição no ranking mundial que analisa a presença feminina
no parlamento, de um total de 190 países analisados pelo organismo internacional, Inter-
Parliamentary Union (IPU), foi o pior resultado entre os países sul-americanos e abaixo
de muitos outros mais pobres que o Brasil192. As cotas previstas na Lei 12.034, no Brasil,
estabeleceram que houvesse no mínimo 30% e máximo de 70% de candidaturas do
mesmo sexo, nas candidaturas proporcionais nas eleições. No entanto, esse sistema
apresenta falhas, os partidos recrutam mulheres como “candidatas laranjas” ou
candidatas fantasmas, o que contribui para que o percentual mínimo não tenha potencial
para eleger-se . No que se refere à presença feminina negra é ainda menor e sem nenhum
tipo de garantia legal.
A baixa representação de mulheres, negros, indígenas e LGBT’s reflete a deficiência
do modelo de democracia que temos. Diante deste quadro nos interessas saber, apesar de
tantos obstáculos: Quem são as mulheres negras eleitas em 2014? A quais partidos
aderiram? Que propostas defendem? Qual sua formação? Idade, estado civil? Essa
pesquisa faz uma análise não apenas das desigualdades no Congresso Nacional, onde há
uma sub-representação das mulheres negras, mas também analisa como elas estão
incidindo no combate ao sexismo e racismo.
192Segundo o Mapa Mulheres na Política 2019, um relatório da Organização das Nações Unidas e da União
Interparlamentar. https://www.camara.leg.br/noticias/554554-baixa-representatividade-de-brasileiras-
na-politica-se-reflete-na-camara/
1062
de autonomia política, e teve como consequência a participação cada vez mais ampla, de
determinados grupos, no poder político.
O direito à participação política é pressuposto fundamental para a existência da
democracia. Na geração de direitos, os direitos políticos se formaram na primeira geração,
junto com os direitos civis, eles deveriam garantir a participação popular na
administração do Estado. No caso das mulheres negras, é importante notar que as
assimetrias sociais e raciais contribuem para que elas estejam sub-representadas no
espectro político. Portanto, elas têm o direito humano à participação política negado,
mesmo sendo a maioria da população brasileira e do número de eleitores (as). Dessa
maneira, observamos as incongruências da democracia e dos direitos humanos ao não
conferirem espaços na política, nem direitos às mulheres negras.
As opressões de raça, gênero e classe, que afetam às mulheres negras impactam
diretamente a sua percepção política, e, por conseguinte, mitigam a sua participação. Ao
compreendermos o poder político como a capacidade de decisão no mundo público, sabe-
se de pronto que as negras estão expropriadas de exercê-lo (GOMES, 2018, p.54 APUD
SANTOS, 2010, p.11).
O feminismo negro foi essencial para evidenciar que, para além de algo que une as
mulheres, existem mais fatores que separam e hierarquizam isso, que cada vez mais
precisa ser nomeado, reconhecido e enfrentado. Ele é resultado do desdobramento das
teorias feministas e vai criticar a percepção da mulher enquanto categoria universal, já
que as mulheres possuem vivências diferentes e são diversas. Entendemos que mulheres
indígenas e mulheres negras, por exemplo, possuem “demandas específicas que,
essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de
gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e
naquele caso” (CARNEIRO, 2003, p.119).
O modelo de universalidade acaba excluindo outras mulheres, assim a
interseccionalidade precisa ser um enfoque feminista, para incluir mulheres que não
estão representadas no feminismo hegemônico, são mulheres do Sul global, negras,
indígenas, camponesas, com deficiência, gordas, idosas, trans e pobres, que possuem as
suas pautas invisibilizadas, o que contribui para que não ocorram transformações e
mudanças nas condições de suas vidas.
A filósofa Djamila Ribeiro (2018) afirma que a relação entre política e
representação é uma das mais importantes no que diz respeito à garantia de direitos para
as mulheres, e é justamente por isso que é necessário rever e questionar quem são os
sujeitos que o feminismo estaria representando, ela ainda declara que se a universalização
da categoria “mulheres” não for combatida, o feminismo continuará alimentando
estruturas de poder.
3.2 Metodologia
1063
Conforme destaca Lélia Gonzalez (1984), o racismo aliado ao sexismo produzirá
efeitos violentos sobre a mulher negra. A sua imagem será associada ao trabalho
doméstico, a mãe-preta193 e mulata do carnaval. Afastar-se desse estigma requer uma
releitura, a de que as mulheres negras devem também ser compreendidas como sujeitas
de direito à participação política.
4 RESULTADOS
193
Na escravidão, a mãe-preta representava a condição da escrava afetuosa, eram mulheres negras que cuidavam
das tarefas domésticas e criavam os filhos das mulheres brancas, o que não as livrava da situação de subalternidade.
Lélia Gonzalez (1984) criticou a figura estereotipada das mães-pretas.
1064
negra brasileira é uma identidade política e unificadora, que ao questionar à identidade
mestiça busca transformar a realidade do negro no Brasil.
Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que
desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma
definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o
ideal de branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a
questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de
negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e
ideológico, mas não um conteúdo biológico (MUNANGA, 2004, p. 52)
Mais da metade das mulheres negras eleitas para deputada federal, em 2014,
possuiam formação superior completa, no total são oito mulheres, somente duas não
possuiam ensino superior. No Senado, as duas representantes negras eleitas possuiam
ensino superiorcompleto.
O que podemos inferir é que em relação à formação acadêmica, a cobrança de
ensino superior é maior para as mulheres negras e o acesso educacional é um dos fatores
essenciais que para conseguirem inserção na vida política.
4.5 Financiamento
A principal barreira para a elegibilidade das mulheres negras é o financiamento,
uma vez que o sucesso de campanhas eleitorais está atrelado aos recursos destinados às
campanhas. O financiamento de campanhas no Brasil não considera questões paritárias e
de diversidade, assim as candidaturas femininas negras permanecem paralisadas por
falta de financiamento. Inserimos abaixo os dados de recursos das campanhas das
deputadas negras que saíram vitoriosas nas eleições de 2014, no entanto, se observarmos
o financiamento de homens brancos dos mesmos partidos, das referentes parlamentares
eleitas, os recursos são acentuadamente maiores.
1066
Tabela 1 – Total de receitas gastas em campanha por deputada.
Fonte: http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/2014.
Dados sistematizados pela autora
4.5.1 Senadoras
1067
atuação: educação e cultura. As senadoras trabalham também com projetos direcionados
às comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas.
No Senado, destaca-se que a parlamentar que se autodeclara como negra, Regina
Sousa (PT-PI) tem propostas direcionadas a identidade da mulher negra, no âmbito da
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.
Importante frisar que ambas as senadoras possuem matérias relacionados ao
combate à violência contra a mulher.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo. Elsevier Editora, 2004.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.
1068
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GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, p.223-244, 1984.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro. São Paulo. Editora
Companhia das Letras, 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2002.
SOARES, Ingridi. Estudo aponta que países com mais mulheres no governo têm
menos corrupção. Correio Braziliense. Brasília. 2018, Disponível em
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/07/09/interna_poli
tica,693921/paises-com-mais-mulheres-no-governo-tem-menos-corrupcao.shtml
Acessado em: 10.nov.2018.
1070
DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO INTEGRAL: UM ESTUDO SOBRE O BULLYING EM
RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL E/OU DA IDENTIDADE DE GÊNERO
1 INTRODUÇÃO
Atualmente, o bullying é visto como um fenômeno universal que aos poucos vem
sendo discutido na intenção de combatê-lo, especialmente por meio do poder público,
com intervenções e/ou através de campanhas de conscientização, utilizando-se de
conteúdos que tentam dirimir essa prática no meio escolar.
Entretanto, o bullying homofóbico, que tem como alvo a população de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT), não dispõe do mesmo tratamento.
Problemática esta que chama a nossa atenção e, portanto, resulta como objeto desse
estudo.
O aporte teórico sobre a relação entre bullying e lesbo-homo-bi-transfobia teve
referência nas pesquisas elaboradas pelos psicólogos Silva e Barreto, onde ressaltam que
a homofobia e o bullying apresentam relações estreitas e que, por isso, devem ser
amplamente analisadas, pois é através da discussão dessa temática que será possível a
elaboração de ações preventivas e medidas de combate ao problema. Nesse sentido, esses
autores salientam:
1071
sentido, alerta Oliveira e Morgado (2005, p. 2): “Muito embora a maioria dos professores
concorde com a introdução de temas contemporâneos no currículo, muitos continuam a
tratar a homossexualidade como doença, perversão e depravação moral”.
A falta de comprometimento do corpo docente em abraçar a causa de combate à
homofobia em ambiente escolar contribui para a banalização da violência contra a
população LGBTT, tendo como consequência o baixo rendimento escolar, o isolamento, a
evasão e, na pior das hipóteses, o suicídio. Para Lionço e Diniz (2009, p. 9),
Aliado a tudo isso, é possível dizer que por meio da educação em e para os direitos
humanos é possível transformar mentalidades e fazer da escola um espaço democrático,
realmente inclusivo, sem preconceito e sem discriminação.
Um dos episódios que me instigou a pesquisar sobre a violência contra
homossexuais aconteceu no ano de 2010, em uma escola da rede municipal de João
Pessoa. Uma das diretoras adjuntas, evangélica, interrompeu de forma abrupta minha
aula sobre diversidade sexual e direitos humanos e começou a discursar, a partir de temas
religiosos, citando frases como “meninos afeminados vão ao inferno”, “a AIDS veio para
acabar com essas pessoas” e que os gays estavam morrendo de forma violenta pelo motivo
de não serem “filhos de Deus”.
Ao lecionar em escolas públicas da periferia de João Pessoa, deparei-me com
muitas outras cenas de preconceito, violência e discriminação. Logo na escola que,
historicamente, sempre foi vista como um local de convívio harmônico e de acesso livre e
irrestrito ao aprendizado, cada vez se tem verificado novas práticas de segregação e
opressão àqueles/as que são vistos como estranhos ou que diferem da
heteronormatividade.
Em minha experiência como educadora, pude observar que a escola ainda não é
um ambiente que se possa chamar de “inclusiva”, isto é, que aceita de bom grado o
diferente e tampouco as novas temáticas relacionadas à diversidade sexual. Muito disso
ocorre graças aos padrões de educação impostos aos/às alunos/as, como frisa Costa
(2008, p.13):
1072
Meninos e meninas continuam sendo educados dentro de rígidos padrões
comportamentais, psicológicos e sociais: menino não chora, só brinca de
bola e super-herói; menina não pode subir em árvores, só brinca de
boneca e panelinha.
Em relação ao debate tratado pelo autor retro mencionado, vale lembrar que ainda
existe perplexidade em a escola admitir um professor para trabalhar com as séries
iniciais, como também existe certo estranhamento por parte dos pais com medo de o
professor/homem não dedicar carinho e cuidados que são maneiras exclusivas da
“professorinha”, que costumeiramente é chamada de “tia”.
Desta forma, a escola reproduz a disparidade entre o gênero masculino e feminino
a partir das questões preconceituosas da nossa cultura, formando os “guetos”, gerando
diferenças artificiais entre meninos e meninas como, por exemplo, meninos não podem
utilizar lápis e cartolinas cor de rosa para fazer as atividades na sala de aula, pois vai ser
chamado de mulherzinha; as meninas não podem jogar futebol nem brincar de skate, de
pião, de soltar pipa etc., que logo vai ser rotulada de “sapatão”, de “machinho”. A escola,
ao aceitar esses discursos, não está cumprindo o seu papel de transformar esses tipos de
mentalidades preconceituosas, pelo contrário, está contribuindo para reforçar uma
cultura misógina e lesbo-homo-bi-transfóbica, cada vez mais odienta no ambiente escolar.
No ano de 2012, fui convidada para fazer parte do Programa Mais Educação (PME)
como coordenadora em uma escola municipal, integrando uma das formações do Centro
de Capacitação dos Professores (CECAPRO). Nessa ocasião, fiquei sabendo do curso de
Especialização de Educação Integral em Direitos Humanos na UFPB, o que me deixou
cheia de expectativa para aprofundar meus conhecimentos sobre esse tema geral e,
especialmente, em poder fazer um estudo mais detalhado sobre a inter-relação entre o
bullying e a homofobia na Educação de Tempo Integral.
A escola de tempo integral, focada num educação de fato Integrada, está
capacitando educadores para trabalharem com temas considerados tabus, a exemplo da
homossexualidade.
Portanto, meu interesse pela temática acima exposta se dá, além dos motivos
indicados acima, também pela esperança de que o trabalho a seguir venha contribuir com
os movimentos educacionais, no campo da educação integral, que estão empenhados em
dirimir com os preconceitos e discriminações devido às distintas orientações sexuais.
2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Os principais teóricos que me utilizei para a elaboração deste trabalho foram Cléo
Fante, pedagoga e antropóloga que dissecou com maestria as diferentes faces e
manifestações do bullying na sociedade e, principalmente, no âmbito escolar; Daniel
Borrillo, que ilustrou de forma concisa e detalhada o histórico e conceituou a homofobia;
1073
Vera Maria Candau, Nazaré Zenaide e Maria Vitória Benevides, que atuam com
sensibilidade e engajamento na luta pelos direitos humanos. Sobre o tema, Benevides
(2007, p. 345) diz que “[...] a promoção dos direitos humanos requer uma consciência
clara sobre o papel da educação para a construção de uma sociedade baseada no respeito
à dignidade da pessoa humana e na justiça social”; Moacir Gadotti e Jaqueline Moll, que
descreveram de maneira clara e rebuscada a história da educação em tempo integral no
Brasil e no mundo, baseados nos ensinamentos de Anísio Teixeira, John Dewer e Darcy
Ribeiro.
Várias pesquisas definem a violência como um fenômeno de várias faces que pode
se moldar de acordo com os valores de cada sociedade. Dentre esses autores, destacamos
Abramovay (2006, p. 54) que diz:
Mas o conceito de bullying aponta para mais um lado da violência dentro da escola
sustentado pelo tripé “intolerância”, “preconceito” e “discriminação”. Por isso requer por
parte das autoridades escolares estratégias para identificação do problema.
Os personagens que compõem o fenômeno são o agressor, a vítima e as
testemunhas. O agressor é sempre o mais desinibido e violento do grupo. É o que dita as
regras do “jogo” e é temido pelos demais. Por isso, não deve ser entendido como “agressão
reativa”. Sabendo que é “respeitado” pelos demais, ele sempre procura novos métodos
para ridicularizar, constranger, ameaçar e até mesmo chegar as vias de fato, que é a
agressão física.
As atitudes do agressor não se limitam apenas aos colegas de classe ou da sua faixa
etária. Ele é “democrático”, pois consegue impor sua maldade até mesmo nas crianças das
séries iniciais, que, muitas vezes, têm seus pertences subtraídos e, ao mesmo tempo, são
1074
por eles agredidos fisicamente e ameaçados. Por medo de novos ataques, são coagidos a
não relatarem o acontecido aos pais ou funcionários da escola.
Como explicam Monteiro e Garrido (2013, p. 104/105):
As vítimas, na maioria dos casos, são pessoas tímidas, sem vocação para brigas.
Geralmente, não dispõem de habilidades para reagir diante de condutas que lhes são
prejudiciais. São passiveis, inseguras e possuem baixa autoestima. Mas, na dinâmica do
bullying, os perfis não são fixos. Albino e Terêncio (apud CANDAU e SCAVINO, 2013, p.
106) alertam que,
Falar sobre relações homossexuais em pleno século XXI ainda causa burburinhos
e comentários grosseiros, apontando para um comportamento homofóbico. Mas nem
sempre a humanidade condenou as relações homoafetivas. Em muitas sociedades, o amor,
principalmente entre dois homens, era motivo de orgulho e de bom “caráter”, tanto para
o jovem escolhido (passivo), como também para o ativo, que era sempre o mais velho e
não se intimidava em assumir publicamente sua condição de “pederasta”.
Importante salientarmos que estava proibida a troca de papéis sexuais. Cabia ao
mais novo sempre o papel de passivo, nem que fosse por tempo determinado. Na cidade-
estado de Esparta, por exemplo, as relações afetivas e/ou sexuais entre dois homens
recebia o apoio dos comandantes militares, como descreve Dieter (2012, p. 2): “O amor
entre dois homens não era visto como uma anomalia, ao contrário, era estimulado, pois
entendiam que o soldado homossexual, ao ir à guerra, lutaria não só pelo seu povo, mas
também pelo seu amado”.
Ainda sobre a naturalidade do comportamento homossexual presente em várias
sociedades antigas, Cunha (2011, p. 12) relata,
[...] lutar contra o parágrafo 175 do Código Penal Alemão, que condenava
os praticantes do amor do mesmo sexo à prisão com trabalhos forçados.
Para proteger sua pessoa e conferir maior respeitabilidade à defesa desta
minoria discriminada, Kertbeny usou o pseudônimo de Dr. Benkert,
embora nunca tivesse sido médico.
Depois de muito tempo sendo estigmatizada como doença, pecado, crime e vício, a
homossexualidade somente passou a não ser mais considerada uma patologia em 1973,
com a retirada da lista de enfermidades mentais pela Academia de Psiquiatras
Americanos.
O termo “homofobia” foi cunhado por George Weinberg para descrever uma
espécie de medo infundado à homossexualidade. Os ataques aos homossexuais seria um
modo do homofóbico se defender contra o diferente, contra o “anormal”. Mas Borrillo
(2009, p. 15), vai além, dizendo que a homofobia “[...] não pode ser reduzida a apenas isso.
Assim como a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, ela é uma manifestação arbitrária
que consiste em qualificar o outro como contrário, inferior ou anormal.”
A homofobia, em grande parte, tem origem no binarismo masculino/feminino
estabelecido de uma forma que o sujeito já nasce com um rótulo pré-determinado entre
macho e fêmea, devendo segui-lo ao longo de sua vida, sem arguir questionamentos a
respeito de sua sexualidade. Para Borrillo (2008, p. 87),
[...] prevalecia a noção de que ser pessoa e ter direitos, a começar pelo
direito a vida, dependia de certas condições, como o lugar onde nasceu, a
cor da pele e as relações de poder vigente...hoje essa noção ainda
prevalece no mundo, nos vários casos de discriminação, que vão do
preconceito até a eliminação física, por motivos étnicos, geopolíticos,
religiosos, sexuais etc.
1076
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, a partir da
Organização das Nações Unidas (ONU), surgiu da iniciativa dos países que clamavam pela
urgência da necessidade em promover, mesmo que de forma gradual, uma nova cultura
que fosse capaz de provocar mudanças de comportamentos em prol da valorização da
vida e da dignidade humana. Para Zenaide (2007 p. 15, apud Declaração Universal, 2006),
1077
Os objetivos do ensino dos direitos humanos encontram-se fundamentalmente nos
mecanismos de proteção internacionais, tais como Declarações, Pactos, Convenções,
Resoluções. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos artigos XVIII,
XXVI, XXVII, e XXIX, as Nações Unidas reconhecem e defendem o direito de toda pessoa
humana à educação em todos os níveis, com o pleno exercício das liberdades
fundamentais e o respeito aos direitos humanos.
No Brasil, assim como na América Latina, a Educação em Direitos Humanos
emergiu como tema de debate a partir da temática das lutas sociais e populares como
estratégia de resistência cultural e emancipação das classes marginais como sujeito de
direitos. Nas palavras de Basombrio (1992, apud ZENAIDE, 2007, p. 19),
1078
dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e
manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele
é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais.
Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua
educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos
meios de o tornar efetivo. (AZEVEDO,1932 apud GADOTTI, 2009, p. 22)
1079
de sua campanha: a melhoria na educação. Suas ideias foram efetivadas com o I Programa
Especial de Educação (I PEE). O principal objetivo deste programa era oferecer uma
educação de tempo integral de qualidade para crianças oriundas de famílias pobres. Desta
forma, Darcy Ribeiro tentava concretizar o modelo de escola ideal sonhado por Anísio
Teixeira. Durante os anos de 1990, ele instituiu a fundação Darcy Ribeiro e aprovou a nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como Lei Darcy Ribeiro (Lei
9.304/96).
Visando contemplar o instituto da Educação de Tempo Integral no ordenamento
jurídico brasileiro, foi promulgada no corpo da lei de Diretrizes e bases da educação
brasileira (LDB), em seu artigo 34, “o aumento progressivo da jornada descolar para o
regime de tempo integral”. Em 2001, o Plano Nacional de Educação (PNE), visando
aprofundar o conteúdo da LDB, defende o tempo integral e a ampliação do tempo escolar
como uma das principais diretrizes.
Atualmente o dispositivo que dá forma à educação em tempo Integral é o programa
Mais Educação e tem como objetivos integrar diferentes métodos e conteúdos que possam
colaborar efetivamente para o desenvolvimento pleno e integral do indivíduo, haja vista
que, por meio dessa integração, é possível construir uma educação que resulte numa
aprendizagem significativa que verdadeiramente prepare o indivíduo para a vida.
Outro programa federal que é fundamental para o desenvolvimento deste trabalho
é o Brasil Sem Homofobia que, instituído pelo Plano Plurianual 2004-2007, tem como
principal desígnio promover a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais através da equiparação de direitos, do combate à violência lesbo-homo-bi-
transfóbica e do respeito às singularidades de cada um desses grupos.
O programa Brasil Sem Homofobia, assim como todos os outros documentos
reconhecidos como norteadores de estratégias para o combate de todas as formas de
violência, preconceito e discriminação contra a população LGBTT, não pode dar bons
frutos se a população brasileira não abraçar essa causa com responsabilidade,
objetivando mudanças comportamentais e nas práticas pedagógicas de modo que haja
visibilidade e empoderamento da população LGBTT.
3 CONFIGURAÇÃO DA PESQUISA
1080
3.1 Situando o campo de pesquisa
A pesquisa foi realizada em uma escola da rede pública municipal de João Pessoa
que operava em tempo integral entre os meses de novembro e dezembro de 2013 e teve
como objetivo investigar se a proposta da educação integral está capacitando todas as
pessoas que participam direta ou indiretamente do processo formativo, ou seja,
educacional, numa perspectiva da valorização dos direitos humanos, preparando as
crianças para uma convivência respeitosa com as diferenças, assim como no trato com
temas considerados tabus, a exemplo da homossexualidade e da transexualidade na
comunidade escolar.
O questionário foi respondido por cinquenta pessoas que compõem a comunidade
escolar, sendo eles 25 alunos, 2 diretoras, 6 professores, 1 psicóloga, 1 assistente social, 1
vigilante, 3 oficineiros, 1 professora comunitária (coordenadora do programa Mais
Educação), 3 profissionais de apoio, 1 bibliotecária e 6 pais, mães e/ou responsáveis pelos
alunos.
As atividades relacionadas aos direitos humanos ficam a critério da professora de
ensino religioso, que chama a atenção para uma cultura de paz no ambiente escolar. Ao
todo, a escola conta com 12 oficineiros e uma professora comunitária, além do apoio
constante de assistentes sociais, psicólogas, supervisores educacionais e orientadores. No
turno da noite, a escola atende a Educação de Jovens E Adultos (EJA) e o Programa Brasil
Alfabetizado.
Sexo
42%
Masculino
58% Feminino
1081
20% entre 40 e 49 anos e 12% acima dos 50 anos de idade. A seguir, o gráfico que ilustra
a faixa etária dos entrevistados:
Faixa etária
Entre 10 e 14 anos
12% 10% Entre 15 e 19 anos
N.D.A
1082
Figura 04: Gráfico que ilustra a prática religiosa dos entrevistados
Religião Catolicismo
Protestantismo
2%
8% Espiritismo
12%
2% Agnosticismo
0%
58% Outra
18% Sem Religião
N.D.A
22%
Sim
Não
78%
1083
Figura 06: Frequência do bullying, segundo a pesquisa.
Familiares dos
Alunos
N.D.A
Os dois últimos gráficos ilustram o perfil das partes da prática do bullying, sendo,
em sua maciça maioria, apontando os alunos como responsáveis por tais atos. Vindo a
seguir, de forma surpreendente, os familiares dos alunos como agressores, o que ilustra
que o comportamento opressor tem origens na própria casa.
Será abordado agora o tema da discriminação à homossexuais.
Indagados se já presenciaram alguma cena de discriminação à homossexuais, 60%
responderam “sim”, 34% disseram que não e 6% não responderam.
1084
Figura 08: Gráfico que ilustra as informações obtidas acerca da discriminação à homossexuais.
Sim
34%
Não
60%
N.D.A
Dos 60% que presenciaram esses atos discriminatórios, 34% responderam que
raramente visualizam tais fatos, 43% responderam “às vezes”, 10% responderam “muitas
vezes” e 13% dizem que sempre presenciam tais atos discriminatórios.
Figura 09: Gráfico que ilustra as informações obtidas acerca da discriminação à homossexuais.
34% Raramente
10%
Às vezes
Muitas vezes
Sempre
43%
Fonte:ArquivoPessoal
1085
Figura 10: Gráfico que ilustra as informações obtidas acerca da discriminação à homossexuais.
25 Alunos
20
15 Diretoria
10
5 0 4
0 3 1 Familiares
dos Alunos
Professores Alunos Diretoria Familiares N.D.A
dos Alunos N.D.A
Sim
Não
24%
61% N.D.A
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1086
para evitar que pessoas façam o caminho contrário, como ocorre diuturnamente na
imprensa, através de profissionais despreparados e sensacionalistas, que insistem em
dizer que direitos humanos é apenas para defender bandidos.
A escola, como instituição democrática, tem que tomar para si a responsabilidade
de disseminar práticas que contemplem os direitos humanos, promovendo o respeito às
diferenças e as subjetividades. É fundamental que essas práticas sejam constantes, não
apenas para sensibilizar de maneira esporádica em encontros casuais e sem
compromisso, mas que seja de forma efetiva, envolvendo todos/as que fazem parte do
meio escolar, incluindo a comunidade em torno da escola.
De acordo com o resultado da pesquisa aqui elaborada, ficou evidente que a escola
não só mantém como também produz práticas preconceituosas e discriminatórias contra
lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Mesmo por parte de profissionais que deveriam
combatê-las. A maioria se nega em seguir a proposta da educação em direitos humanos
por estarem presos a preceitos religiosos, sendo estes divulgados diante das crianças e
adolescentes, mesmo em um ambiente que deveria ser livre de quaisquer orientações
religiosas.
Acredita-se que a proposta da educação em tempo integral pautada nos direitos
humanos venha para dirimir estes episódios, pois, com o aumento do tempo de contato
da criança com práticas educativas, inclusivas e voltadas para o respeito às diferenças,
brevemente teremos uma sociedade menos violenta e preconceituosa, tirando o Brasil do
ranking de um dos países mais lesbo-homo-bi-transfóbicos do mundo, assim como o
Nordeste, como uma das regiões onde essas fobias são mais fortes e presentes do Brasil.
A escola também deve deixar de se limitar a ser mera transmissora de
conhecimento, devendo aprender a ouvir. Faz-se necessário que a escola traga para seu
meio o debate de temas considerados tabus, incitando a discussão de forma natural para
que se dissipe o preconceito advindo da pura ignorância.
Portanto, pelo que aqui foi apresentado, é mister que haja uma preparação de
maneira viva dos profissionais envolvidos na missão de educar com foco na capacidade
de multiplicar ações e práticas de amor ao próximo, para que tenhamos no futuro uma
educação realmente inclusiva, abarcando todas as diferenças, tratando todos de forma
igual nas suas singularidades.
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Alves de. Roteiros de gênero: a pedagogia organizacional e visual gendrada no
cotidiano da educação infantil. REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, v. 31, 2008.
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Práticas Culturais: Desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande:
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Godoy; DIAS, Adelaide Alves. (Org.). Direitos Humanos: capacitação de educadores -
1088
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SILVA, Hélio R. S. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 216p.
1090
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EFETIVA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
1 INTRODUÇÃO
A situação jurídica atual sobre o tema encontra-se no trâmite da ação ajuizada pelo
PSOL194 perante o Supremo Tribunal Federal, que busca descriminalizar o aborto até a
195Informação extraída do site de notícias do STF, datada de 02 de agosto de 2018, informa que: “Em março,
a ministra Rosa Weber, relatora da ADPF, convocou a audiência por considerar que a discussão, é um dos
temas jurídicos ‘mais sensíveis e delicados’, pois envolve razões de ordem ética, moral, religiosa e de saúde
pública, e ainda a tutela de direitos fundamentais individuais. A relatora recebeu mais de 180 pedidos de
habilitação de expositores, abrangendo entidades da área de saúde, institutos de pesquisa, organizações
civis e instituições de natureza religiosa e jurídica. Destes foram selecionados mais de 40 de acordo com
critério estabelecidos na convocação: representatividade adequada, especialização técnica e/ou jurídica e
garantia da pluralidade da composição da audiência”. (...) IN: site STF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticia Detalhe.asp?idConteudo=385554>. Acesso em: jun/2019.
196Teoria da concepção: o artigo 2º do Código Civil assegura todos os direitos do nascituro desde a
concepção, aliás, o 4º do Pacto de São José, declara que a vida deve ser assegurada desde a concepção. O
Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 4º, prevê que “toda pessoa tem o direito de que se respeite
sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode
ser privado da vida arbitrariamente”. O Pacto de São José da Costa Rica entrou para o Ordenamento Jurídico
Brasileiro através do Decreto 678/1992. Teoria natalista: "fulcrada nos mesmos dispositivos da Lei, defende
que o ordenamento jurídico, através do Código Civil consoante redação do art. 2º, reza que só a partir do
nascimento com vida que a pessoa adquire a plenitude da sua personalidade jurídica, podendo ser sujeito
ativo e passivo de direitos. Para concretização da formação da personalidade, há que se considerar dois
elementos: o nascimento e com vida. Para essa corrente, a reserva de personalidade civil ou biográfica para
o nativivo em nada se contrapõe aos comandos da Carta Magna, uma vez que a Constituição não dispõe
quando começa a vida humana, bem como não dispõe sobre nenhuma das formas de via humana pré-natal.
Em síntese, a Constituição Federal não faz de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomizado
bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva e, nessa condição,
dotada de compostura física ou natural. (...)".
1092
(denominado de aborto necessário ou terapêutico)197. E, ainda, por maioria de votos
(8 x 2),o Supremo Tribunal Federal (STF), no ano de 2012, julgou procedente o pedido
contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, para
declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada; ou seja, o STF, autorizou o aborto no caso
de anencefalia.
A antecipação do parto de um feto anencéfalo passa a ser voluntária e, caso a
gestante manifeste o interesse em não prosseguir com a gestação, poderá solicitar serviço
gratuito do Sistema Único de Saúde (SUS), sem necessidade de autorização judicial. Os
profissionais de saúde também não estão sujeitos a processo por executar a prática.
Menciona-se agora o caso do julgamento do HC nº 124.306/RJ, na qual o STF
avançou e decidiu não ser criminoso o aborto realizado no terceiro trimestre gestacional,
em face da violação aos direitos fundamentais da mulher (autonomia, integridade física e
psíquica da mulher gestante), além de afrontar os princípios da proporcionalidade, da
igualdade, e o direito ao acesso à assistência médica. O HC foi julgado pela Primeira Turma
do STF, tendo como relator designado o Ministro Luís Roberto Barroso (voto-vista),
acompanhado pela ministra Rosa Weber e pelo ministro Edison Fachin, formando maioria
no julgamento.
Nesse artigo que aqui se apresenta, o que se pretende frisar cada vez mais é sobre
a importância em conceder à mulher o seu direito de optar em realizar ou não o aborto
no Brasil, diante do quadro mórbido percebido no cenário do país, cuja realidade aponta
a prática constante do aborto e que essa não cessará. O discurso de que a criminalização
deve permanecer a qualquer custo sob o enfoque jurídico de que a vida se inicia com a
concepção ou sob enfoques morais e religiosos são tidos como ultrapassados na sociedade
contemporânea se levarmos em conta o drama subjetivo e único vivenciado pela mulher
que opta pelo aborto e ainda pelo imenso número de mortes causados pelo aborto mal
executado, ou seja, aborto inseguro. Vozes femininas depois de caladas, mortas, não são
mais escutadas, ainda mais se essas vozes pertenciam a pessoas desprovidas de familiares
ou afins e de condição econômica.
E, por certo, isso acontece em todo o mundo, posto que feministas sempre estão
alertando, quando adentram na luta pelo direito ao aborto, sobre o drama psíquico e de
saúde física da mulher que se encontra nessa posição. No capítulo da obra de Angela
DAVIS (2016, pp. 218-220), “Mulheres, raça e classe” , que trata do controle de natalidade
e direitos reprodutivos, além do comentário de que no século XIX as feministas
apresentaram a reivindicação pela “maternidade voluntária” (tida como uma audácia,
uma afronta, pois a esposa não tinha o direito de recursar-se a satisfazer os anseios
sexuais do marido), afirma que “o controle de natalidade – escolha individual, métodos
contraceptivos seguros, bem como abortos, quando necessário – é um pré-requisito
fundamental para a emancipação das mulheres.
A grande feminista estadunidense ratifica que ninguém é propriamente a favor do
aborto, porque as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres da
gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer
novas vidas ao mundo, e ainda nos indica o quadro real da precariedade a que são
submetidas as mulheres quando assim se decidem, e a morte é mercadoria certa a ser
disponibilizada pelos ditos charlatões de fundo de quintal.
Para tecer comentários sobre aborto no Brasil, então, não se pode escapar do
assunto vida e morte da mulher, daquela gestante que optou pelo aborto e, atormentada
1095
Os números oficiais no Brasil são do Ministério da Saúde, calculados a partir de
informações coletadas no atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde) e ajustadas por
critérios estatísticos. Os números, contudo, mostram apenas os procedimentos legais. Nos
últimos anos, não há variação significativa nos registros. A Dra. Maria de Fátima Marinho,
diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e
Promoção da Saúde da pasta do Ministério da Saúde, apresentou algumas informações em
audiência pública na Câmara dos Deputados em dezembro de 2016.199
De acordo com ela, entre 2011 e 2016, 4.262 adolescentes de 10 a 19 anos tiveram
uma gestação resultante de estupro e o consequente nascimento do bebê. Ou seja, um
direito previsto em lei é negado a mais de 700 jovens brasileiras todo ano. Os dados de
hoje indicam que há quase 1.700 abortos legais no Brasil. Muitas meninas poderiam ter
esse direito, mas ele foi negado a elas. Desse montante, 1.875 eram meninas de 10 a 14
anos violentadas sistematicamente, quase 73% do total. As outras 2.387 jovens tinham
entre 15 a 19 anos. Fátima também chamou atenção que em 68,5% das ocorrências o
autor da violência é um familiar. Ainda de acordo com a Dra. Fátima, o aborto é a 5ª causa
de morte materna no País. Em 2016, dos 1.670 óbitos causados por problemas
relacionados à gravidez ou ao parto ou ocorridos até 42 dias depois, 127 foram devido ao
abortamento. Nesse grupo, a desigualdade racial é evidente. Foram registradas 559
mortes de mulheres brancas e 1.079 de mulheres negras, uma quantidade muito maior. O
número de mães negras e de mães brancas é praticamente similar, há um pouco mais de
um grupo do que de outro, mas a diferença na mortalidade é muito grande, mostrando
uma extrema desigualdade.
Entre os fatores que levam brasileiras a não terem o direito ao aborto garantido
mesmo quando ele é legalizado estão falta de informação, precariedade no atendimento
na rede credenciada e recusa de profissionais de saúde em realizar o procedimento.
Também estão envolvidas questões ligadas ao estigma social, especialmente nos casos de
estupro, devido a dificuldades em denunciar o crime.
De acordo com o estudo "Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da
Saúde", publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) em 2014,7,1%
dos estupros resultaram em gravidez, segundo dados do SUS de 2011.Entre as vítimas
adultas grávidas como consequência do estupro, 19,3% realizaram aborto previsto em lei.
Essa proporção cai para 5,0% entre adolescentes e 5,6% entre crianças. O procedimento
para menores só deve ser feito quando a jovem e o responsável concordam. Segundo o
estudo, tendo em vista a alta prevalência de casos de estupro envolvendo crianças e
adolescentes, onde os próprios familiares são os autores, é possível que a diferença na
taxa de aborto entre menores de idade e adultos reflita esses fatos.
De acordo com o DATASUS200, em 2017, foram registradas 177.464 curetagens
pós-abortamento, um tipo de raspagem da parte interna do útero. Outro procedimento
em casos de aborto é o esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina (AMIU).
Em 2017, foram registradas 13.046. Juntas, foram 190.510 internações. Os números
incluem tanto atendimentos após abortos clandestinos quanto alguns abortos
espontâneos, mas a estimativa médica é que ⅔ do total sejam ilegais. A curetagem é um
dos procedimentos mais comuns no SUS. Representa 3,9% dos 4.570.216 de cirurgias em
2017. Em 2017, o custo com curetagens foi de R$ 37,97 milhões, valor similar a 2016 (R$
199 AudiênciaPública sobre a ADPF 442 realizada na Camara dos Deputados em 16/12/2016, disponível em
https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/stf-abre-audiencia-publica-sobre-descriminalizacao-do-
aborto-1-22945098 ; acesso em 17/10/2019.
200 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/sus-gasta-r-500-milhoes-com-
1097
pela Constituição que garante um Estado laico e que também garante o direito à
privacidade.
Enfim, aparentemente o quadro visto no STF é favorável à aceitação de que a
mulher possui o direito de optar, de exercer seu direito constitucional à privacidade; de
ter seu ‘querer’ respeitado ainda que provindo de situação dramática, acolhido pelo
estado laico e pluralista. A salvaguarda da vida e da integridade física das mulheres deve
ser o fator motivador maior para a análise delicada da situação, entendendo ser urgente
a tomada de decisão pelo STF, a fim de se evitar mortes e internações de urgências de
mulheres com ruptura de órgãos, como vagina e útero, decorrentes de manobras
realizadas em abortos mal feitos.
Com a descriminação não há outra forma de concluir a não ser que ao Brasil será
uma grande vitória na seara dos direitos humanos. Não se olvide que cá estamos
adentrando o ano de 2019, séc. XXI, e o tema aborto mais em evidencia ainda porque
vivemos em tempos sombrios e obscuros em nosso país (de intolerância e preconceito),
por isso não podemos deixar de falar no tema que afronta os direitos femininos, e
precisamos estar atentas e fortes mais do que nunca, enxergando o drama e respeitando
o desejo das mulheres.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim exposto, conclui-se que há um dever social para buscar o equilíbrio entre o
direito individual do médico em alegar objeção de consciência e sua responsabilidade
ética profissional de zelar pela saúde das pessoas. As diretrizes também deveriam tratar
das responsabilidades institucionais, parâmetros para a recusa em prestar o serviço e o
direito de informação das mulheres à informação e referência de outro profissional ou
hospital que realize o procedimento. O respeito ao direito de informação sobre direitos
humanos e ética para atenção ao aborto é imprescindível.
São vários os motivos que levam a mulher a abortar: uma prole maior do que a
planejada, dificuldades para se obter métodos anticonceptivos modernos, falta de
orientação no planejamento familiar, pouca ou nenhuma instrução, comportamento
sexual de alto risco, dentre outros. As mulheres também abortam porque existem relações
sexuais não voluntárias ou não desejadas seja por violência sexual, coerção nas relações
sexuais ou gravidez forçada. Discriminar a mulher que procura o aborto seguro é
penalizá-la duplamente. Tal decisão é de índole muito pessoal, gera consequências
irreversíveis no campo psíquico e, muitas vezes, no físico, somados ao sentimento de
frustração e desamparo. A mulher encontra na gravidez indesejada o resultado da
incapacidade da sociedade de prover condições de educação, cidadania e planejamento
reprodutivo; a violência e a desigualdade de gênero são violações frequentes dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, sendo que geralmente são as mulheres pobres que
enfrentam as mais graves consequências da ilegalidade. A dimensão dos números
comprova que o aborto inseguro é um assunto de saúde pública que deve ser priorizado
pelos governantes, pelos legisladores e pela sociedade, seja por meio de uma reforma da
legislação ou de uma campanha educativa séria. As mulheres não podem ser condenadas
à morte por não terem acesso aos seus direitos previstos na legislação maior e
infraconstitucional.
O Estado deve ser capaz de propiciar às mulheres condições de saúde adequadas,
direito que está dentro do mínimo existencial e não lhe pode ser negado. A eficácia das
políticas públicas depende do planejamento estatal e da participação popular e os gastos
devem ser direcionados para as áreas prioritárias. Sendo o aborto a quarta causa de
1098
mortalidade materna, deve ser reavaliada a atenção que está voltada para a saúde da
mulher, sem o comodismo da solução simplista de afirmar que o aborto é crime.
Como visto, a criminalização do aborto é uma importante causa de mortalidade
materna, devendo o mesmo ser combatido e prevenido com campanhas sobre educação
sexual, acesso igualitário aos vários métodos contraceptivos e acesso ao procedimento de
forma segura. Nesse passo, a eliminação do abortamento inseguro essas medidas são as
mais importantes a serem tomadas frente a saúde pública, visando o respeito ao
indivíduo, a proteção e o cumprimento dos direitos humanos, com um fácil acesso ao
melhor padrão de saúde possível, dando aos casais e indivíduos a liberdade de decidir
livre e responsavelmente o número, espaçamento e o momento de terem filhos, o direito
de receberem informação e os meios necessários para que alcancem a mais elevada
qualidade de saúde sexual e reprodutiva.
A mulher tem o direito de ter controle do seu corpo e de decidir livre e
responsavelmente sobre temas relacionados com sua sexualidade, incluindo a saúde
sexual e reprodutiva, sem coerção, discriminação e nem violência, o direito de ter acesso
à informação sobre a saúde e dos avanços da medicina. O Brasil carece de uma política de
planejamento reprodutivo mais eficaz, com a informação sendo amplamente divulgada,
afinal, se preocupar com a saúde pública é realizar o planejamento familiar e este é mais
do simplesmente controlar a natalidade, é levar a saúde com responsabilidade, educação
e informação.
Por todos esses motivos, temos uma necessidade urgente de renovação do
ordenamento pátrio através da alteração da legislação atual, visando garantir à mulher
seus direitos e a legalização e realização pelo Sistema de Saúde Pública do país dos
procedimentos de interrupção voluntária da gravidez em fase inicial de gestação, ou seja,
até a décima segunda semana de gravidez. É de uma visão extremamente legalista
entender que a quantidade de abortos no Brasil aumentaria ou diminuiriam visto o que
está exposto numa regra, ordem ou lei.
Durante as pesquisas para a construção deste trabalho, analisou-se aspectos
psicológicos da mãe e as sequelas que uma decisão desta natureza poderia causar no
desenvolver da sua vida. Porém, há de salientar que, um aborto natural, deixa à mãe, a
mesma sensação de vazio e dor, bem como o aborto realizado em locais clandestinos. A
decisão de abortar, pelo que se entende, não está e nem nunca esteve pautado na
criminalização ou não do ato, seja para o médico, seja para a mãe. A decisão do aborto é
unicamente dos envolvidos com o futuro do nascituro. Por isso, considerando apenas o
fato da liberdade da mãe do querer gerar, cuidar e proporcionar afeto e educação à
criança, já ser fator basilar para esta definir se segue ou não com a citada gestação, o fato
de saber que: esta criança nascerá com um dos inúmeros transtornos que um bebê pode
ter; esta mãe tem uma patologia crônica preexistente a gravidez e que ceifará a sua vida;
ou ainda as condições de pobreza e abandono que convive, como tantas outras razões, se
faz ainda mais justo dar-lhe o direito de escolha. Isto quer dizer que, indiferente de ser ou
não o aborto punível, as mães que desejam seus filhos, indiferente de condições culturais,
econômicas, psicológicas, etárias, estas terão seus bebês. Mas, aquelas que não desejam
dar seguimento a gestação naquele momento, seriam orientadas a abortar com menor
risco a sua saúde, a sua continuidade fértil, desestimulando também a clandestinidade e
o comércio que existe em torno do aborto. Somente desta forma, essas mulheres teriam
salvaguardados, mais eficientemente, seus direitos da personalidade, da vida, da saúde,
da autonomia e da liberdade.
É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições,
psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por
1099
uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela
criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede
que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar
melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou
impossível de ser levada a termo. Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente,
além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar
com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela
ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral.
Impõe-se uma postura de respeito, de respeito ao direito da mulher, de respeitar o
direito de optar, de escolher, de zelar pela autonomia da vontade da mulher, direito à
privacidade, como se vem respeitando a religião de cada uma, respeitando os preceitos
morais adotados e vividos por elas e por todos, mas aquela que optar em realizar o aborto
que o faça sem criminalização de seu ato.
E, nessa oportunidade, é importante deixar bastante claro e repetir que a intenção
maior não é defender perante a sociedade o favoritismo ao aborto. Ninguém pode ser
favorável ao aborto! É ser, de forma contundente, contra sua criminalização, em prol de
respeitar o desejo da mulher, de respeitar a sua livre escolha, e de zelar pela vida da
mulher que está em jogo.
REFERÊNCIAS
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2016.
1100
ESQUERDA. “Brasil: Aborto clandestino, quinta causa de morte materna”.
Disponível em: <http://www.esquerda.net/artigo/brasil-aborto-clandestino-%C3%A9-
quinta-causa-de-morte-materna / 29651> . Acesso em jun/2016.
OPERA MUNDI. “Mulheres que têm dinheiro podem fazer a interrupção da gravidez
fora do país ou em clínicas adequadas a que mulheres pobres não têm acesso',
ONG Católicas pelo Direito de Decidir”. Bruno Silveira.
25/12/2014,disponívelem:<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/38889/p
roibicao+do+aborto+no+brasil+penaliza+principalmente+mulheres+pobres+e+negras+
diz+diretora+de+ong+catolica.shtml>. Acesso set/2019.
STF. NOTÍCIAS STF. “Ministra Rosa Weber abre audiência pública sobre aborto
nesta sexta-feira”. Publicada em 02/8/2018. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?id Conteudo=385554>.
Acesso em: set/2019.
1101
EDUCAÇÃO FEMININA: A PRECARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E SEUS IMPACTOS NAS
CONDIÇÕES ATUAIS DE ACESSO E PERMANÊNCIA DAS MULHERES NEGRAS NAS
UNIVERSIDADES
1 INTRODUÇÃO
Por ter a sua base no sistema patriarcal, no qual o homem é tido como superior em
relação a mulher, a sociedade perpetuou diferenças entre os gêneros, determinando
papéis e restringindo comportamentos destas na área de atuação reservadas àqueles.
Nesse sentido, a mulher foi entendida como ser com baixa influência intelectual, de modo
que estava sujeita, dentro do contexto familiar patriarcal, a área da atividade doméstica e
procriação. Por esse motivo, não teve acesso à educação ao mesmo tempo que os homens,
tendo este fato como algo conquistado ao longo dos (FERNANDES, 2019)
De acordo com Silva (2018), observando o contexto histórico brasileiro, desde o
Período Colonial era possível encontrar essa inacessibilidade do gênero feminino nas
áreas da educação instrução. Dessa maneira, apenas no Período Imperial que foi possível
este alcance educacional para com as mulheres. Contudo, é válido ressaltar, que durante
esse momento inicial isso foi disponibilizado para aquelas de classe superior e brancas,
uma vez que as mulheres negras estavam ocupando setores de exploração que
dificultavam ainda mais a possibilidade de ter uma educação formal.
À princípio, a educação era dada em casa, com grande foco, ainda, na realização das
tarefas do lar. Apenas em meados de 1700 que houve a inclusão das mulheres no ambiente
escolar de forma separada aos dos homens. No tocante ao que era ensinado, ainda
permeou divergências, pois as meninas não eram entendidas pela sociedade como seres
com interesses a temas mais racionais – ideia que permanece até os dias de hoje – e sim
1102
emotivos, por esse motivo, matérias como geometria e matemática, eram destinadas aos
meninos. (SILVA, 2018)
Como reforço desse ideal, diversos estudiosos renomados, entendiam a mulher
como ser não equiparado ao homem. Como foi dito por Augusto Comte:
Logo, percebemos que a sociedade definia o que era a mulher e o que era papel
feminino sob o prisma masculino. Isso refletia não só na educação, que era limitada, mas
também no mercado de trabalho. De forma que, trabalhos voltados para a ciência e
cálculos eram ocupados em sua maioria por homens; e trabalhos que remetessem ao
cuidado, como lecionar, eram ocupados por mulheres, em sua maioria (SILVA, 2018).
Ademais, é válido ressaltar acerca do acesso e permanência da mulher na Educação
Universitária, uma vez que o atraso histórico também afetou esse setor. Aqui podemos
destacar duas situações gerais com base na classe e na raça. De um lado, temos a mulher
branca, privilegiada economicamente, que luta para ter acesso à educação superior e
consequente mercado de trabalho e, para isso, deve enfrentar a personalização do poder
patriarcal que é alguma figura masculina, podendo ser representada pelo pai ou pelo
marido. Por outro lado, temos a mulher negra sem privilégios econômicos que,
dificilmente vai ter acesso à educação por já ter responsabilidades trabalhistas e
apresenta uma jornada exaustiva muitas vezes acompanhada da responsabilidade
familiar.
Sendo assim, a autonomia feminina é prejudicada pela própria estrutura social,
seja pela ausência de privilégio econômico, seja pelo poder patriarcal, racista e capitalista.
Nesse sentido, a feminista e escritora Simone de Beauvoir afirma que: “a humanidade é
masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele (sic); ela não é
considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 1970, p., 11)
Apesar de conquistar o espaço educacional e de ocupar a Educação Superior, as
mulheres ainda encontram muitas dificuldades que estão ligadas a estes fatores
históricos. Como é o caso da maternidade, por exemplo. Por ser mulher, ainda é entendido
socialmente que o papel da educação está atrelado unicamente a ela, isso faz com que a
responsabilidade da criação permaneça majoritariamente sobre os ombros femininos –
mesmo quando há a presença paterna, tendo em vista que muitos homens permanecem
ausentes da educação ou não assumam no geral o seu papel de pai.
Outro ponto é o econômico. Pelo fato da educação não estar disponível para
as mulheres no mesmo tempo histórico que esteve para os homens, estas não foram
criadas para ter independência financeira. Contudo, os tempos modernos fizeram com
que as mulheres ao lutarem por esse posto de independência, passassem a ter adicionada
uma dupla jornada de trabalho, tendo em vista que o trabalho doméstico continuou com
a figura ausente do homem. Assim, as mulheres permanecem sobrecarregadas o que afeta
de forma negativa na sua educação, gerando ainda mais impacto se esta for negra.
1103
3 AS MULHERES NEGRAS E O (NÃO) ACESSO À EDUCAÇÃO UNIVERSITÁRIA
201 O hiato de gênero (gender gap) na educação ocorre quando existem diferenças nos níveis de
escolaridade entre homens e mulheres. É uma medida útil para evidenciar as desigualdades no acesso à
escola entre os sexos (BELTRÃO; ALVES, 2016).
1105
século XXI são bem melhores do que em qualquer outro momento da história brasileira,
dados do Censo da Educação Superior de 2016, revelam que as mulheres representam
57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação (DAFLON et al., 2013).
Um dos maiores desafios das mulheres atualmente, porém, é o de poder adentrar
em cursos que continuam sendo predominantemente masculinos e de conseguir
permanecer na universidade, “tal desafio deve ser enfrentado em meio a um discurso
generalizado pelas políticas públicas em vigor, que propaga a democratização do acesso
ao ensino superior público brasileiro, mas desconsidera os fatores de sua permanência”
(PEREIRA; FAVERO, 2017, p. 5540). Para Gisi (2006, p. 12), “permanência na educação
superior pressupõe condições preexistentes, em especial, capital cultural que é adquirido
ao longo da trajetória de vida e escolar e que não se adquire de um momento para outro”
Para além, diversos fatores contribuem nesse processo de permanência, estes
afetam não somente as mulheres, mas todos os estudantes que pretendem ingressar na
universidade, dentre eles os econômicos, culturais, de gênero, etnia, entre outros. A
gravidez, por exemplo, ainda é hoje um dos principais fatores de evasão escolar de
meninas no Brasil, os dados de 2016 apontam que apenas 2% das adolescentes que
engravidaram deram sequência aos estudos (IBGE, 2016). Porém, segundo dados da
pesquisa realizada em 2016 pelo IBGE, 8,81% das mulheres cursando o ensino superior,
com idade entre 19 e 29 anos têm filhos na faixa etária de 0 a 4 anos. Isso significa dizer,
portanto, que quase 10% das mulheres universitárias brasileiras nesta faixa etária, são
mães de crianças pequenas, e podem vir a demandar políticas públicas que lhes
possibilitem permanecer no ambiente acadêmico e concluir seus estudos em tempo abiu
(URPIA; SAMPAIO, 2011).
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 novas formas de
promover a participação da sociedade civil nos processos de tomada de decisão começam
a ganhar impulso, umas delas foram às conferências nacionais de políticas públicas, “as
conferências tornaram-se a principal arena de interlocução entre governo e sociedade
civil com o objetivo de debater e deliberar propostas para formulação de políticas
públicas” (PETINELLI et al., 2011, p.12).
As conferências de políticas para as mulheres surgem a partir da demanda pela
participação maior das mulheres dos movimentos sociais na formulação e implantação de
políticas públicas nessa área. Com as realizações dessas conferências foram formuladas
as diretrizes das Políticas Nacionais para as Mulheres e a elaboração do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres (PNPM) desempenhado pela Secretaria de Políticas para as
Mulheres (BRASIL, 2008), criada com o objetivo de desenvolver ações conjuntas com
todos os Ministérios e Secretarias Especiais, tendo como desafio a incorporação das
especificidades das mulheres nas políticas públicas e o estabelecimento das condições
necessárias para a sua plena cidadania. Dentre seus eixos temáticos e ações desenvolvidas
compreende ao PNPM ampliar políticas voltadas à promoção da educação inclusiva e da
mínima condição de permanência das mulheres nesses ambientes (BRASIL, 2008).
As políticas públicas, de modo geral, visam equiparar os direitos dos cidadãos, em
conformidade com o princípio da isonomia. O mesmo ocorre na universidade, onde
existem políticas de assistência estudantis que devem garantir a igualdade de
oportunidade e de tratamento das mulheres no tangente ao acesso e permanência no
âmbito acadêmico (BRASIL, 2016). As políticas de assistência estudantil atentas as
especificidades das mulheres contribuem para que a educação se torne um momento com
menos desafios e com mais suporte, através do papel social da instituição.
A universidade, como local de busca de emancipação dos seres, deve, então,
procurar subsidiar todos os indivíduos que nela se adentrarem (REIS, 2017). Tendo em
1106
vista que ela é um espaço de formação e de construção de saberes acadêmico-científicos,
é extremamente importante refletir sobre causas e efeitos (histórico-culturais, sociais e
políticos) das desigualdades (SILVA, 2008; MATOS, 2012).
Nos últimos anos, em razão de políticas públicas de ação afirmativa202, ocorreu
uma transformação no ensino público universitário, rompendo com as dimensões
historicamente excludentes de um modelo de educação, marcado por padrões
colonialistas, com uma expressiva inserção de estudantes oriundos das camadas
populares, ainda que não preocupados por assegurar a permanência dessas populações
no espaço educacional (MOEHLECKE, 2002).
As ações afirmativas assumiram formas que variou de acordo com as situações
existentes e abrangeu, em diferentes contextos, grupos como minorias étnicas, raciais e
mulheres. Segundo Moehlecke (2002) as principais áreas contempladas pelas ações
afirmativas no Brasil são o mercado de trabalho, com a contratação, qualificação e
promoção de funcionários; o sistema educacional, especialmente o ensino superior; e a
representação política. Além desses aspectos, as ações afirmativas envolveram práticas
que assumiram desenhos diferentes, como é o sistema de cotas, que consiste em
estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área específica por
grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional ou não, e de forma mais
ou menos flexível (MOEHLECKE, 2002). Barbara Bergmann (1996, p. 7) entende que:
202 A ação afirmativa busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade que acomete certos
grupos através de medidas sociais, econômicas, políticas ou culturais (MOEHLECKE, 2002).
1107
mecanismos destinados à população de baixa renda; ela deve, também, se preocupar com
princípios de atendimento universal aqueles que adentram ao ensino público e delas
necessitam.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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2003.
BERGMANN, Barbara R. Saving our children from poverty: What the United States
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1109
DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ações
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LEITE, Janete Luzia. Política de Assistência Estudantil. SER Social, v. 14, n. 31, p. 453-
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MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; NETO, O. C.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria,
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1110
MULTI RIO. A história da educação feminina. Disponível em:
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brasil-tem-118-milhoes-de-analfabetos-metade-esta-no-nordeste.ghtml. Acesso em: 12
set. 2019.
1111
A FAVOR DA FAMÍLIA TRADICIONAL E CONTRA A IMPOSIÇÃO DA IDEOLOGIA DO
GÊNERO”: IDEOLOGIA DE GÊNESIS E PÂNICO MORAL
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1112
justificativa para o exercício do preconceito. A relevância acadêmica deste tema, no
entanto, é inquestionável, tendo em vista que o cenário atual favorece cada vez mais a
adesão ao que chamam de posicionamentos “a favor da família tradicional” e contra a
“ideologia de gênero”, de modo que espaços de discussão de temas como esses devem
sempre se abrir a fim de que seja lançada luz sobre as motivações por traz de tais
posicionamentos e das implicações sociais advindas da interferência na sociedade dos
discursos ditos “em favor da família tradicional”.
O estudo aqui proposto será conduzido tendo como metodologia a etnografia
digital e uma revisão bibliográfica dos temas abordados. Para melhor situar o leitor, além
dos dois casos iniciais reportados acima, estabeleceremos as relações entre os
supramencionados casos e as teorias presentes em autores, tais como Bonassi (2017),
Butler (1990), Cohen (1972), Foucault (1976), Maranhão F.º (2019), Ribeiro (2017),
dentre outros. Para tanto, por meio da análise do discurso, traremos mais detalhes das
falas das pastoras APV e Damares Alves, aprofundado as discussões e estabelecendo as
devidas pontes com os autores aqui abordados e com outros casos em que o tema da
“defesa da família tradicional” contra a “ideologia de gênero” se faz presente.
2 CASOS DE FAMÍLIA
Pelo fato do título deste artigo referir-se à fala da pastora evangélica APV veiculada
em um vídeo e do próprio artigo fazer referências aos seus posicionamentos sobre as
questões de gênero, transcreveremos abaixo, ipsis litteris, o que disse a pastora e cantora
religiosa na gravação de um minuto que deu origem ao título “A favor da família
tradicional e contra a imposição da ideologia do gênero”:
Olá Pessoal. Os últimos dias têm sido bastante interessantes desde que eu
me posicionei a favor da família tradicional e contra a imposição da
ideologia do gênero. Eu quero dizer pra você que tem respondido com
palavras tão agressivas nas minhas redes sociais, que eu aprendi com o
Senhor Jesus a amar os meus inimigos e a orar pelos que me maldizem,
pelos que me perseguem. E eu quero dizer que eu tenho orado por você,
eu tenho abençoado você. E eu quero agradecer aos cristãos que
continuam como eu, acreditando que a palavra de Deus é imutável. Não
importa a geração, a sociedade, os tempos, as épocas. Os princípios, os
valores da palavra são eternos. O Senhor Jesus veio ao mundo e o
Evangelho de João diz que ele veio com amor e verdade. Vamos continuar
falando a verdade, em amor. (Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=63EuCX4iRAo>. Acesso em: 29
ago. 2019).
1113
O texto transcrito acima foi publicado no YouTube por APV como resposta aos
internautas que a criticaram em relação ao seu posicionamento contrário ao comercial da
loja C&A. Tais críticas deram-se em decorrência de uma postagem anterior da pastora
sobre o comercial. A referida publicação (ver Figura 1) foi a primeira postagem da cantora
sobre o caso do comercial da C&A. A postagem foi veiculada no Facebook e Instagram da
pastora:
Fonte: http://dissenso.org/revides/santaindignacao.
1114
e dos seus desdobramentos na compreensão dos papéis e lugares em que as sociedades
delegam aos indivíduos que às compõem.
As hashtags publicadas por APV: #SouFemininaVistoComoMulher
#HomemVesteComoHomem #UnisexNãoExiste #NãoÀIdeologiaDoGênero
#DeusFezHomemEMulher #FamíliaÉHomemEMulher #Heterosexualidade
#MonogamiaHeterosexualÉSexoSeguro exprimem de forma clara e cabal o conceito de
“cisnorma” definida por Bonassi, (2017):
Quando APV em suas publicações apresenta seu discurso como verdade absoluta,
eterna e imutável toma para si a voz da verdade legitimada por Deus, como se a sua fala
fosse a do próprio Deus, uma vez que assume o lugar de quem fala em nome da divindade,
o lugar de quem professa a verdade divina codificada na Bíblia Sagrada. Ao mesmo passo,
encerra o diálogo com quem critica o seu posicionamento e posiciona-se de maneira
diversa ao seu entendimento. E mais, desautoriza e deslegitima qualquer fala, crítica ou
posicionamento contrário ao seu. Desta forma, temos aqui definido o “lugar de fala” da
pastora e cantora gospel.
A compreensão do lugar de fala de quem profere um discurso é de sobremodo
fundamental para que possamos compreender as relações estabelecidas entre os
interlocutores e as implicações advindas das práticas discursivas. Para tanto, Ribeiro
(2017) chama a atenção para o fato de que o “lugar de fala” não tem necessariamente a
ver com as experiências ou posicionamentos individuais, mas, com o lugar social ocupado
pelos indivíduos, de modo que dependendo do lugar que ocupam, terão ou não suas falas
consideradas, terão ou não acesso à cidadania.
Deste modo, ao desconsiderar a presença da LGBTQ+fobia em seu discurso
apontada pelos internautas, APV no lugar de pastora, porta-voz da “divindade” e da
1115
“verdade irrefutável”, anula qualquer possibilidade de legitimidade das críticas a ela
direcionadas, delegando aos críticos do seu discurso a mera posição de pessoas agressivas
e dignas de oração e, portanto, ajuda e bênçãos.
2.2 “Menino Veste Azul e Menina Veste Rosa”: uma análise da fala da Ministra
Damares Alves
Em meio às críticas e apoios à fala da Ministra Damares Alves, o apoio recebido por
parte da advogada e secretária da Família Ângela Gandra Martins merece aqui destaque,
uma vez que pressupõe em seu discurso a existência de um sexo natural inerente ao ser
humano, em oposição a um comportamento sexual antinatural, ideia contestada por
Butler (1990) e que no entanto é compartilhada com o status de “verdade” pelos que
lutam contra a “ideologia de gênero”. A fala em defesa da ministra Damares, a qual nos
referimos, publicada pelo site de notícias Terra207 foi a seguinte:
O que ela quer dizer é que a gente vai procurar acentuar o que é próprio
de cada um. A gente não vai construir uma outra identidade
esquizofrênica dentro dela, vai respeitar o que é natural naquele ser
humano (dentre outras) (Site de notícias TERRA, 2019).
Na defesa de que “menino veste azul e menina veste rosa”, Angêla Gandra, ao se
utilizar da palavra “esquizofrenia”, a associa aos que não estão de acordo ou enquadrados
na cis-heteronorma, ou seja, aos que não concordam com o que ela entende como próprio
de homem e próprio de mulher, ou ainda, no caso, do azul para menino e rosa para menina.
Desta forma, a secretária da Família recai numa patologização dos indivíduos que não se
enquadram em moldes comportamentais de uso de seus corpos ou os quais se opõem à
imposição destes moldes. Moldes estes que podem ser associados ao que Foucault (1976)
chamaria de “dispositivo de sexualidade”. Um dispositivo comumente utilizado como
forma de controle das populações:
Fonte:<https://www.acidadeon.com/ribeiraopreto/politica/NOT,0,0,1396491,ministra+que+disse+meni
no+veste+azul+e+menina+veste+rosa+morou+em+sao+carlos.aspx>.
Em um ideal de Brasil em que o azul é defendido para “os seus príncipes” e o rosa
para “as suas princesas”, a defesa das cores do arco-íris para as pessoas LGBTQ+, ou para
quem mais as venha utilizar, está claramente excluída de sua agenda. Este é tom da “nova
era” do Brasil proclamada por Damares de mãos dadas com a #SantaIndignação de APV
em seu boicote à “ideologia de gênero”.
Uma vez estabelecida a “demonização” dos “inimigos” pelos discursos dos que
dizem combater a “ideologia do gênero”, justifica-se o fato de APV dizer que está orando
pelos que a “maldizem” e “perseguem”, ou seja, orando pelas pessoas que criticam o seu
combate “em favor da família tradicional”, quer sejam pessoas LGBTQ+ ou quaisquer
outras que não estejam de acordo com a sua #SantaIndignação, pessoas carentes de
oração, segundo ela.
Em recente artigo publicado pelo popular médico, escritor e um dos fundadores da
Universidade Paulista, o Dr. Drauzio Varella, constatando nunca ter encontrado o termo
“ideologia de gênero” “mencionado em artigos científicos, nem nos livros de Psicologia ou
de qualquer outro ramo da Biologia”, o descreve:
Podemos enfim constatar que, apesar de não existir uma “ideologia de gênero” o
termo serve como ferramenta de construções discursivas elaboradas por grupos
conservadores para deslegitimar, barrar e reprimir o que de fato existe que são os estudos
de gênero, na tentativa de consequentemente conter, barrar e reprimir comportamentos
não cis-heteronormativos ou que estejam em desacordo com as suas concepções de
família e de papéis pré-estabelecidos para homens e mulheres, tais quais os seus
entendimentos fundamentados em “verdades divinas”. E novamente, o chamado ao
combate da #SantaIndignação da pastora APV: “Nós [...] não podemos ficar calados”, serve
de exemplo para compreendermos de que maneira o uso do termo “ideologia de gênero”
é utilizado para estigmatizar, deslegitimar e reprimir os estudos de gênero. Sobre o uso
do termo e as suas motivações, Junqueira (2018) chama atenção para o fato de que:
Como apontado por Junqueira (2018), o ativismo religioso dos que combatem a
dita “ideologia de gênero”, militantes da ideologia de gênesis, na luta por conter ou anular
avanços relativos aos conhecimentos sobre gênero, sexo e sexualidade, tendo a seu
serviço o dispositivo da cis-heteronorma, cercam com impetuosidade os estudos de
gênero na tentativa de contê-los, sufocá-los e deslegitimá-los. Sendo assim, podemos dizer
que entre a “ideologia de gênero” e a ideologia de gênesis estão os estudos de gênero. Não
que estes estejam entre as duas “ideologias”, pôr a elas fazerem referência, como se a elas
estivessem ligados na condição de um meio termo. Longe disto. Entre a “ideologia de
gênero” e a de gênesis estão os estudos de gênero pelo fato de que as referidas “ideologias”
se colocam ao seu lado e redor como forma de suprimi-los, sufocá-los, naufragá-los, assim
1120
como o dispositivo da cis-heteronoma que tenta o mesmo com as pessoas e grupos
subversivos às suas normas, regras e ordens.
No entanto, faz-se necessário apontar que o caráter de verdade “não-negociável”
da ideologia de gênesis esbarra nas bases dos estudos de gênero que fundamentam-se na
cientificidade, que tem como um de seus princípios a possibilidade de diálogo, crítica e
refutação de suas premissas desde que apoiada em conhecimentos e metodologias
científicas, ao contrário de dogmas e doutrinas que não permitem questionamentos e não
tem abertura para o contraditório. Sendo assim, Maranhão F.º e Franco (2019) trazem luz
à questão:
209 O termo “homossexualismo” soa de modo pejorativo, pois remete-se a doença (mental). É um termo que
foi retirado da lista de doenças mentais pela OMS há quase 30 anos, no dia 17 de maio de 1990, razão pela
qual esta data é considerada o dia internacional contra a LBTQ+fobia. No entanto, continua sendo
insistentemente utilizado por grupos conservadores, especialmente religiosos, na tentativa de estigmatizar
as pessoas LGBTQ+.
1122
VINACC realizou também panfletagens em frente a escolas e universidades e celebrou
cultos em praça pública.
As mudanças sociais mencionadas por Miskolci (2007) como último passo das
etapas do pânico moral, quando compreendidas dentro do contexto do combate à
“ideologia de gênero” dizem respeito a uma pretentida aniquilação e anulação dos
avanços e descobertas advindos dos conhecimentos frutos dos estudos de gênero. Os
passos anteriores referentes ao pânico moral aqui tratado compreendem a
estigmatização dos estudos de gênero e por consequência das pessoas LGBTQ+ e
mulheres que subvertem padrões comportamentais historicamente impostos, em
seguida, a (re)produção nas mais diversas mídias de estereótipos e estigmatizações de
indivíduos e grupos sociais que dão-se por meio de publicações de falas e
posicionamentos tais quais os que aqui foram analisados e como resultado, temos
construída uma preocupação social que tem como resposta a adesão social cada vez maior
ao combate à “ideologia de gênero” em “favor da família tradicional”, no temor de tê-la
extinta. O crescente número de políticos religiosos eleitos no país unidos em torno do
combate à “ideologia de gênero” é um sinal claro da presença do pânico moral que envolve
este tema e como etapa final deste processo temos o retrocesso, como já mencionado
anteriormente: a tentativa de aniquilação e anulação dos avanços advindos dos estudos
de gênero.
Miskolci (2007), ainda sobre pânico moral discorre: “O pânico moral fica
plenamente caracterizado quando a preocupação aumenta em desproporção ao perigo
real e gera reações coletivas também desproporcionais”. Sendo assim, torna-se ainda mais
clara a razão das adesões das massas aos discursos contra os estudos de gênero e o apoio
dado aos políticos que empunham esta bandeira.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1124
verdade um combate a outros modelos de família e por consequencia, aos estudos de
gênero.
Observamos que os estudos de gênero ao passo que são apelidados de “ideologia
de gênero”, passam por um processo discursivo de estigmatização e depreciação
diretamente associado às pessoas LGBTQ+ e demais indivíduos que subvertem a cis-
heternoma estabelecida, a exemplo das feministas que lutam pela igualdade de gênero.
Constatamos que neste processo de estigmatização, na tentativa de deslegitimar os
estudos de gênero perante a opinião pública, os “defensores da família tradicional”
utilizam-se do artifício do “pânico moral”.
Pudemos observar ainda, que o combate a “ideologia de gênero” se dá por meio do
uso de preceitos morais e religiosos tidos como verdades divinas absolutas, imutáveis e
inegociáveis, fundamentadas nos livros bíblicos sob a forma da ideologia de gênesis.
Sendo assim, o sofisma da “ideologia de gênero”, sob a forma de um combate, configura-
se como a construção de um discurso em torno da depreciação dos estudos de gênero, se
valendo do pânico moral e se utilizando da ideologia de gênesis e de sua cis-heteronorma
como meio para atingir os seus fins: a supressão, a repressão, a aniquilação, a anulação e
retrocesso nos avanços das descobertas dos estudos de gênero como uma reação a uma
instabilidade causada por latente perda de hegemonia e subtração de poder (incluindo o
político) de uma estrutura que historicamente subjuga, persegue, domina e mata
mulheres, pessoas LGBTQ+ e quem quer que ouse questionar as suas ordens e normas
estabelecidas.
Sendo assim, temos os estudos de gênero como uma preciosidade que traz luz à
uma estrutura de dominação e poder que confisca das mulheres e pessoas LGBTQ+ o
direito à autonomia sob seus corpos, à liberdade de afeto e sexualidade e muitas vezes o
direito à própria vida. Daí a sua importância.
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Cleycianne, Lady Gaga e Marco Feliciano. Religare, João Pessoa, v. 15, n. 1, 2018.
'Menino veste azul e menina veste rosa é metáfora para respeitar o que é natural', diz
secretária. TERRA, 2019. Disponível em:
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REIS, T.; EGGERT, E. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de
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1126
RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Coleção Feminismos Plurais, Belo Horizonte: Editora
Letramento, 2017.
1127
O ÓDIO AO LGBTQIA+ NA HISTÓRIA
1 INTRODUÇÃO
2 LGBTQIA+ NA HISTÓRIA
O macho alfa tem para si o papel de líder, é o principal reprodutor. Por ser mais
velho e mais forte ele tende a apodera-se das fêmeas, deixando para trás os outros machos
rivais. As práticas homossexuais entre os machos que perderam a disputa ocorrem de
1129
maneira natural e comum, não por existir uma perversão ou luxúria no comportamento
animal, mas porque o exercício da sexualidade é algo inerente às espécies.
Desde os primórdios da humanidade pode ser verificado a existência de práticas
homossexuais, infelizmente nos deparamos com uma escassez de material histórico de
estudos aprofundados sobre o assunto, a provável explicação para isso é a relutância dos
pesquisadores, por questões morais ou por medo, em trabalhar a temática dado o
preconceito acerca do tema. No entanto, não há uma total ausência de trabalhos, alguns
antropólogos produziram pesquisas sobre as práticas de rituais homossexuais realiadas
a cerca de 10.000 anos.
No meio literário, nas criações que apresentam referência às figuras dos faraós,
símbolos do poder absoluto, há a existência de relatos que deixam claro os aspectos mais
humanos de seus governantes, apresentando sua sexualidade.
Segundo Antonio Bracaglion (2012, p.72), um dos contos relata a vida de um rei
Neferkare que mantinha um relacionamento íntimo com um general chamado Sasenet.
Afastando-nos dos relatos que fazem referência aos imperadores e a realeza, temos
imagens e textos de cunho particular ligado às pessoas da elite, nessa esfera encontra-se
a mais rica fonte sobre o homossexualismo no Egito antigo. A tumba feita por
Niankhkhnum e Khnumhotep, que foi descoberta em 1964 e é datada da V Dinastia cerca
de 2400 a.C., traz-nos como informação:
213Aproximadamente 1.185 fórmulas distribuídas de forma variada em cerca de duzentos caixões datados
entre 2130 e 1650 a.C. (BRANCAGLION JR., 2011, p. 77)
1130
estão tão próximos que as pontas dos narizes chegam a se tocar
(BRANCAGLION JR, 2011, p. 74-75).
214 “Falo é a representação do pênis como símbolo da fecundidade da natureza” (AMORA, 2009, p. 307).
1131
Para a educação dos jovens cidadãos atenienses, esperava-se que os
adolescentes aceitassem a amizade e os laços de amor com homens mais
velhos. Só assim eles acreditavam que os meninos pudessem absorver as
virtudes de um bom cidadão e a sabedoria da filosofia. Esta prática só não
era bem aceita para meninos com idade inferior a 12 anos. Após essa
idade, quando o menino concordava e com aprovação de sua família,
transformava-se em um parceiro passivo até a idade de 18 anos, embora
alguns permanecessem passivos por mais tempo. Normalmente, aos 25
anos tornava-se um homem, assumindo o papel ativo, inicialmente
escolhendo um menino e depois casando, tornando-se um cidadão apto a
desempenhar seu papel na sociedade (RODRIGUES, 2004, p. 38).
As mulheres que viviam diante das longas ausências de seus maridos afastados
para guerra, e que eram constantemente maltratadas por figuras masculinas, quando
optavam por se relacionarem sexual/afetivamente com outras mulheres violariam o
poder atribuído ao homem de dispor sobre suas vidas e isso era inaceitável por ser motivo
de vergonha e desonra, o que reafirma a imponência do masculino sob a posição inferior
do feminino e o significado da homossexualidade como algo que iria, naquela cultura,
além do prazer carnal.
1132
A forma de amor mais relevante era a do amor pelo ser igual. Ao homem
era degradante amar o ser inferior – a mulher. O elemento masculino era
descrito como um ser superior, com qualidades e virtudes capazes de
provocar no próprio homem um sentimento de admiração e desejo. Ao
mesmo tempo, os defeitos atribuídos ao elemento feminino acabavam
por despertar diferença e os homens o relegavam ao plano sexual-
procriativo (ZIKAN, 2005, p. 15).
1133
Roma transformara-se na capital da festa e do prazer, ocasionando o
aumento dos divórcios e dos adultérios. Nesse processo, a mulher
aristocrática tornara-se mais liberada e desejosa de sua satisfação sexual,
o que, em conjunto com os demais acontecimentos, provocara reflexos
“negativos” sobre o matrimônio (BARBOSA, 2016, p. 161)
O homem para atingir a felicidade precisava ser virtuoso, livre de afetos e paixões,
a busca pelo prazer era condenável ainda que se desse dentro do casamento, pois segundo
Foulcault (1985, p.178) isso corresponderia a transgredir o princípio que deve unir um
casal de unicamente produzir descendência para beneficiar o gênero humano.
O cristianismo como resposta aos exageros romanos, chegando a Roma por volta
do século I, trouxe um novo ideal de pureza para aquela sociedade tida como decadente.
215 O estoicismo faz parte de um sistema filosófico que teve acolhimento entre os romanos por meio do
“círculo dos Cipiões”. De acordo com Pereira, Cipião Emiliano se beneficiou da biblioteca de Perseu, trazida
da Macedônia por Paulo Emílio, e do magistério de Políbio, prisioneiro de guerra que se tornou um dos
maiores historiadores da Antiguidade (BARBOSA, 2016, p. 169).
1134
Para os judeus a função essencial das relações sexuais é a reprodução, com base na
máxima prevista no livro de gênese Gênesis: "Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai
a terra” (Gênesis, 1: 28).
A homossexualidade, para os judeus era como um mau hábito, abominável e
reprendida nos trechos do livro do Levítico216, de modo que a prática deveria ser punida
com a pena de morte.
No século II em Roma, já com a proliferação do cristianismo e a inserção de seus
ideais, passou-se a questionar a sexualidade em sua totalidade e a criação de medidas para
limitá-la.
Durante o século III, após forte crise doutrinária no século II, os cristãos estavam
conquistando cada vez mais espaço político dentro daquela sociedade como os
mensageiros de Deus. Em 312 o imperador Constantino (307 - 337) converteu-se ao
cristianismo, gerando a principal medida de proibição ao exercício da sexualidade:
colocou a homossexualidade fora da lei passando a ser severamente punida.
Acontece que não é fácil retirar algo que está arraigado na cultura de um povo sem
sofrer represarias, a decisão gerou uma onda de insatisfação e comoção entre os cidadãos
romanos.
Em 337 o imperador Constantino faleceu o que provocou uma série de homicídios
entre os integrantes de sua família pela ambição da sucessão do império, e Constâncio,
seu segundo filho, assumiu o lugar do pai.
Constâncio era adepto da seita dos arianos que se opunham a divindade de Cristo,
isso trouxe instabilidade para a Igreja o que acabou dividindo-a, entre pessoas que
seguiam o novo imperador e outras que continuaram nos ensinamentos do cristianismo.
216 “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é” (Levítico, 18: 22).
1135
Em decorrência das invasões e das constantes batalhas, aqui anteriormente
apresentadas, vários romanos deslocaram-se para o campo na tentativa de superar a crise
econômica e de uma melhoria na qualidade de vida. Essa população que migrou para o
interior constituiu as chamadas vilas romanas que deram origem à sociedade feudal e que
tinha como base o esforço múltiplo para a prosperidade do campo. Não havia aqui a figura
do escravo, o trabalho era executado pelos vassalos que cultivavam nas terras oferecidas
pelo seu senhor feudal.
Com o renascimento comercial e urbano por volta do século XIII, ocorreu o
surgimento da burguesia, um grupo social localizado entre os camponeses e a alta
aristocracia.
Durante esse período medieval a população sofria forte influencia clerical. A
religião, por diversas vezes respaldava-se no medo para doutrinar as pessoas, assim, a
população medieval estava em busca de meios para salvar a alma e garantir um lugar no
paraíso, e para encontrar a salvação deveria obedecer às regas impostas pela Igreja.
As regras traziam a importância da monogamia, da heterossexualidade, e da
valorização do casamento como também da virgindade.
217 Segundo Ronaldo Vainfas (1992, p.64) a palavra tem sua orifem no Antigo Testamento, partindo da
destruição de Sodoma por Deus, narrada no Genesis, onde Lot oferecera suas filhas castas aos sodomitas
que irados as recusaram e partiram contra ele que é salvo pelos anjos, daí parte a associação entre sodomia
e a homossexualidade.
1137
Se o acusado tivesse passado por todas as torturas e ainda assim negasse sua culpa
diante dos servos de Deus, deveria ser considerado uma vítima do diabo e não lhe caberia
qualquer tipo de compaixão.
A Inquisição foi usada diversas vezes como mecanismo de perseguição política e
de extorsão, dado o caráter imutável da posição de acusado. No Brasil ela foi estabelecida
como uma resposta ao modo de vida do seu povo.
Acontece que ao chegarem às terras brasileiras vários colonos sentiam-se livres
para praticar qualquer ato outrora condenado em seus países de origem.
218A copulação entre ideias do movimento feminista e dos movimentos de gays e lésbicas refletiu em uma
luta harmoniosa pela transformação do cenário de opressão discriminatória socialmente imposta por
relações de poder determinadas pela heteronormatividade.
1139
antifeminino, herdeiro da Antiguidade Clássica e da teologia moral cristã,
vulgarizado em escala crescente desde o final da idade média (VAINFAS,
1989, p.120).
219 Segundo David W. Foster (2001, p. 19) a heteronormatividade é a reprodução de práticas e códigos
heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição
de família (esquema pai-mãe-filho(as)).
1140
A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo dessas
relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela se
expressa, frequentemente, de forma indireta, por exemplo, por meio da
disseminação escolar, mas também midiática, apenas de imagens de
casais heterossexuais. Isso relega à invisibilidade os casais formados por
dois homens ou duas mulheres. A heteronormatividade é a ordem sexual
do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo
(MISKOLCI, 2012, p.43).
220“Casos de lesbocídio são diferentes dos casos de homofobia, ainda que ambos sejam motivados pelo
preconceito contra pessoas não-heterossexuais, ou não-adequadas às normas do que é entendido como o
que deve ser o feminino e o masculino, a chamada heteronormatividade. Esta diferença tem base nas
especificidades da condição de ser lésbica e das hierarquias de gênero, ou seja, das relações assimétricas de
poder entre homens e mulheres na sociedade.” Disponível em: <https://www.politize.com.br/lesbocidio-
no-brasil/>. Acesso em: 05 de outubro de 2019.
1141
A mulher bissexual ainda sofre com a sexualização de sua escolha, dentro da
cultura machista, a atribuição de sua imagem a vulgarização e disponibilidade para
realização de fetiches criados a partir da ideia de submissão feminina, onde a escolha da
mulher em relacionar-se com qualquer um dos gêneros a torna rotulável para que possa
colocar em prática os desejos sexuais do homem heteronormativo.
Fato é que vários estudos foram fomentados na comprovação do desejo bissexual,
um destes realizado na Universidade Northwestern, em Illinois nos Estados Unidos,
apontam que esse desejo existe, ao passo que foram testados indivíduos que através de
determinados estímulos mostraram-se excitados tanto por homens quanto por mulheres.
1142
predeterminado para o seu sexo biológico. Para o autor isso seria fruto da construção
ideológica que consiste na promoção constante de uma forma de sexualidade em
detrimento de outra.
Os ataques de ódio homofóbicos ferem diretamente uma série de direitos
fundamentais, a liberdade e a igualdade como também, a dignidade da pessoa humana.
Quando os direitos das minorias sexuais são atacados e questionados por uma
manifestação expressa odiosa gera consequências para além daquele momento, pondo
em risco sua igualdade material no reconhecimento de identidades e o direito a não
descriminação que lhe é atribuído e deve ser assegurado pelo Estado.
A propagação da discriminação pode envolver problemas de aceitação pessoal e
personalidade. Sofrer perseguições faz com que o indivíduo passe a encarar sua
orientação sexual como abominação acarretando desordens, visto que a boa comunicação
da sua identidade e do próprio corpo com a sexualidade é necessária para uma saúde
física e mental.
A violência contra esse segmento gera a exclusão e rejeição em várias searas da
sociedade, a discriminação pode estar presente no mercado de trabalho, nas redes de
ensino, na comunidade, ou no poder público diante da escassez de medidas que garantam
a proteção e efetivação de seus direitos.
Convivendo em sociedade estreitamos o contato com outros indivíduos que em sua
particularidade podem apresentar opiniões e valores distintos dos nossos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1145
REFERÊNCIAS
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Loyola, 2007.
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Janeiro: Campus, 1989.
1147
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE A MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS E O COMBATE A TODO TIPO DE DISCRIMINAÇÃO NO CONTEXTO
ESCOLAR
1 INTRODUÇÃO
1149
Contudo, para que a EDH, de fato, obtenha resultados satisfatórios, é necessário
que os indivíduos possam compreender como se dá as formas de opressão e de dominação
presentes no contexto social, de maneira que consigam intervir adequadamente,
construindo uma sociedade muito mais democrática e justa. No tópico seguinte,
apresentaremos algumas questões referentes a mediação de conflitos.
1151
compreensão da realidade e participação de todos na busca pela resolução empática dos
dissensos, considerando, nesse caso, uma reflexão crítica/construtiva da sociedade. Nessa
ótica, entende-se o mediador como sendo alguém que colabora com o diálogo, intervindo
sempre que necessário nas relações entre os educandos. No tópico abaixo, discutiremos
sobre a EDH e suas contribuições para combater discriminações na escola.
[...] numa mesma sala de aula encontramos alunos oriundos dos mais
diversos segmentos sociais, com diferentes condições econômicas,
descendentes de diferentes etnias, e até aqueles cujas famílias
participaram dos movimentos que se desencadearam no Brasil após
redemocratização do país. Entre estes movimentos podem-se destacar os
dos afrodescendentes, dos homossexuais, gays e lésbicas, a reivindicação
de espaços e direitos pelos portadores de necessidades especiais, dentre
outros (PABIS; MARTINS, 2014, p. 10).
1153
4.1 EDH: a escola como espaço de promoção das atitudes de respeito às diferentes
práticas de gênero e sexualidades
1154
Rousseau citado por Gaspari (2003) expõe um discurso evidenciando que a
educação da mulher deveria limitar-se ao doméstico, salientando, nesse caso, que elas não
podiam ir em busca de saberes libertários ou questionarem as regras que lhes eram
impostas, afinal, tal atitude seria considerada afronta aos preceitos do patriarcado. Dessa
maneira, as concepções referentes ao papel da mulher na sociedade encontravam-se
restritas às condições de subordinação e aceitação, incapacitando-as de exercerem um
papel ativo nos diferentes contextos sociais.
Desse modo, o machismo estrutural social tende a reproduzir uma concepção de
mulher como objeto de dominação e fragilidade. Nietzsche (1992) enfatiza que, nesse
contexto social de dominação masculina, o homem inclina-se a “[...] conceber a mulher
como “posse” como propriedade a manter sob sete chaves, como algo destinado a servir
e que só então se realiza.” (NIETZSCHE, 1992, p. 143). Por conseguinte, o movimento
feminista e a luta das mulheres pela emancipação são vistos como ameaça a essa
hegemonia do poder masculino.
Para entendermos melhor os malefícios dessa problemática que, geralmente,
desdobram-se em violência contra a mulher, debruçamo-nos sobre o Atlas da Violência
(2019) o qual evidencia dados de uma realidade preocupante, indicando-nos que, além
dos atos de violência moral e/ou psicológica, “houve um crescimento dos homicídios
femininos no Brasil em 2017, com cerca de 12 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936
mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007” (IPEA, 2019, p. 35).
Assim, aprofundando ainda mais a discussão, observamos que, de acordo com esse
Atlas, as questões raciais também tem peso diferenciado, haja vista que as mulheres
negras sofrem mais violência do que as não negras, pois “a taxa de homicídios de mulheres
não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres
negras cresceu 29,9%” (IPEA, 2019, p. 38). Nesse contexto, para compreendermos o
conceito de violência, recorremos às reflexões de Teles e Melo (2003) que afirma,
Gráfico 1:
Evolução da taxa de homicídios femininos no Brasil, por raça/cor (2007-2017)
Debruçamo-nos mais uma vez sobre o Atlas da Violência (2019) para entendermos
a dimensão das atitudes discriminatórias e atos de violência que atingem a população
LGBTQIA+. Segundo esse documento, ainda são escassos os dados de agressões de caráter
lesbo-homo-bi-transfóbicos, pois “[...] não sabemos sequer qual é o tamanho da população
LGBTI+ (o que inviabiliza qualquer cálculo de prevalência relativa de violência contra esse
grupo social), uma vez que o IBGE não faz qualquer pergunta nos seus surveys
domiciliares sobre a orientação sexual” (IPEA, 2019, p. 56).
Diante desta preocupante realidade, percebemos o quanto esse público ainda é
invisibilizado nos mais diferentes contextos sociais, tendo em vista que as políticas
públicas continuam não assegurando efetivamente os direitos desse grupo,
desconsiderando-os como sujeitos que necessitam de atenção especial e de políticas
específicas que lhes garantam a integração efetiva na sociedade.
O Atlas da Violência (2019) enfatiza essa problemática ao indicar que “[..] as
polícias (em geral), nos registros de violência, também não fazem qualquer classificação
da vítima segundo a orientação sexual, assim como não existe tal característica nas
declarações de óbito” (IPEA, 2019 p. 56). Ou seja, a falta dessas informações contribui
para a invisibilidade dos crimes de caráter lesbo-homo-bi-transfóbicos, à medida que são
registrados como crimes comuns. Porém, aos poucos, essa realidade da falta de dados vem
sendo modificada graças à luta do movimento LGBTQIA+ e de grupos de apoio a esse
público. O gráfico abaixo revela o número de homicídios e de tentativa de homicídios
contra o público LGBTQIA+ entre o período de 2011 a 2017, segundo o Disque 100.
1156
Gráfico 2:
Número de denúncias de homicídios e de tentativa de homicídios no Brasil contra pessoas
LGBTIQIA+ (2011-2017), segundo o Disque 100
Consoante a essa ideia , Silva (2016) discute ainda que a maior parte daquilo que
acessamos, do que histórica e cultulralmente foi construído pela sociedade, ao longo de
grande período da nossa existência, através das interações, vão acontecer na escola: nossa
compreensão de mundo, de nós mesmo - social, cultural, religiosa e econômica.
A partir do que foi apresentado acima, fica a compreensão de que o espaço escolar
é um espaço plural e por isso conflitante, que possibilita o surgimento de múltiplas
identidades sociais. Assim,
Movidos por esse entendimento, a partir das lições apresentadas por Silva e tantos
outros pensadores, assim como Silveira (2014, p. 11), fica o entendimento de que existe
um grande desafio diante das práticas dos professores e professoras para ser encarado
“no tempo presente, que é a compreensão das novas concepções educacionais e,
sobretudo das práticas educativas face aos processos de socialização cultural
engendradas pela Globalização.”
Entendendo a educação como um ato político, ao tratarmos de gênero e
sexualidade humana estamos tratando de diversidade humana e ao praticarmos a
educação pelo viés dessa concepção, na verdade, estamos assumindo e realçando um dos
papéis importantes da escola, que deve ser o de absoluta compreensão e respeito para
essa pluralidade humana.
É notório que a educação não é um ato neutro, como bem nos diz Freire (2010) em
seus apontamentos e que, como prática, ela se dá através do micro e do macro poder, ou
seja, desdobra-se a partir da prática de cada indivíduo e é influenciada pelo poder
hegemônico, aquele exercido através dos poderes constituídos da sociedade. Nessa
compreensão, numa perspectiva de educação pautada nos direitos humanos, as questões
de gênero e diversidade sexual, assim como outros temas presentes na sociedade, não
podem ficar de fora dos Currículos educacionais.
1159
Sendo assim, precisamos compreender e fazer valer a importância da prática, não
só dos educadores e educadoras que se qualificaram para tal profissão e que a princípio
estudaram e seguem dando continuidade à sua formação, aprofundando-se em temas
pertinentes e atuais, como os que aqui foram discutidos, mas também de todos aqueles
profissionais da educação envolvidos na prática educativa escolar. Consoante ao que já foi
exposto anteriormente, Rodrigues et al (2013) apontam que,
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1992.
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Elio Chaves et al (Orgs.). Educação em Direitos Humanos e Educação para os
Direitos Humanos. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014, p. 81-94.
1163
TRAVESTIS, TRANSSEXUAIS E ESCOLARIZAÇÃO: UMA TRAJETÓRIA DE CONSENSOS
PARCIAIS E PROVISÓRIOS
1 INTRODUÇÃO
222O projeto deste trabalho foi avaliado e aprovado pelo parecer de n° 2.831.947, emitido pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Santa Emília de Rodat, João Pessoa/PB, Brasil, e as
participações na pesquisa foram previamente concedidas por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE.
1164
material coletado foi utilizado o a técnica de análise do conteúdo pautada em Bardin
(2011).
A escola é socialmente vista como o primeiro espaço que permite aos sujeitos o
acesso a uma proposta social maior de interação e conhecimento, no sentido de construir
carreira e agregar uma série de direções que rompem muitas vezes com posições sociais
determinadas. Para tanto, exige-se determinado nível de escolaridade, e com as pessoas
1165
trans não é diferente. Todavia, um aspecto que marca a escolarização desse segmento é a
questão da diferença identitária e também sexual.
Estudar ou não estudar, investir na qualificação e/ou na formação, continuar ou
pausar a trajetória escolar depende de uma série de fatores de ordens objetiva e subjetiva
que irão determinar o valor que a educação tem na vida de cada pessoa, pois é preciso
estar consciente que todos os esforços empreendidos na escolarização trarão benefícios.
Vejo muitas pessoas novas que já chegaram até lá. E às vezes sem o estudo
a gente sofre muitas coisas... Ler é uma coisa, você se capacitar é outra. Eu
poderia hoje ter minha casa, meu emprego, minha vida estruturada, com
os estudos, mas eu botei na cabeça a prostituição. Eu saí da escola para a
rua. […] Juntava o preconceito com a loucura de estar na prostituição
(Vermelha223 - Entrevistada n° 1).
Eu acho que escolarização é tudo. [...] Na realidade, eu acho que escola não era
nem pra ter o nome escola, era pra ter outro nome. Porque é onde você tudo
aprende. Porque a gente passa mais tempo em uma sala de aula do que dentro
da nossa casa. [...] Escola pra mim é onde você tá desde o começo da sua vida até
alcançar seus objetivos (Amarela - Entrevistada n° 3).
[...] é de extrema importância, porque se torna mais fácil pra você conseguir o
respeito, conseguir um trabalho... Alguma coisa. Então isso conta muito, as
pessoas já passam a te ver com outros olhos. Eu creio que o estudo é de extrema
importância (Azul - Entrevistada n° 5).
Escola é um lugar onde você deveria se sentir bem para aprender coisas
que pessoas vão lhe trazer. Tipo, um lugar que você deveria tá lá pra
aprender coisas novas, não só matemática e tudo mais. E aprender de
modo geral da inteligência que você tem, pode ser para arte... Que seja um
ambiente bom para você se sentir ‘em casa’, que não tenha preconceito e
que você possa ser bem-sucedido depois. A escola é quase basicamente o
contrário. Eu sei que tem escolas que de modo geral... você consegue se
223Foram utilizados nomes fictícios para respeitar a identidade dos(as) entrevistados(as). Os nomes foram
escolhidos para fazer referência as cores da bandeira do orgulho LGBTQIA+.
1166
dar bem e tudo bem. Mas é por mérito e esforço seu, não é por um esforço
que a escola está lá para fazer você se sentir melhor. Você tem que se
esforçar o suficiente pra se sentir melhor do seu jeito independente do
que a escola possa te proporcionar (Laranja - Entrevistado n° 2).
1167
[...] na escola a gente passava muito constrangimento com o uso dos
banheiros. ‘A gente’ chegava feminina e tinha que ir no banheiro dos
homens (Vermelha - Entrevistada n° 1).
A partir do momento que fui crescendo, fui tentando tipo: 'ah, não tenho
amiga menina, então vou tentar me adequar para ser uma menina que
nem todo mundo fala e tudo mais. Eu não sou lésbica'. Aí eu comecei a
usar maquiagem, comecei a botar o cabelo para o llado... Tipo, vamos
alisar o cabelo... Vamos botar algo pra aumentar o seio para as meninas
dizerem que eu faço parte delas e tudo mais. [...] então tipo, você tenta
forçar ao máximo ser o que você não é para ser aceito na escola (Laranja
- Entrevistado n° 2).
1168
A fala de Laranja demonstra os esforços empreendidos para que sua identidade
coubesse na escola, alegando que tanto esforço o fazia não querer frequentar as aulas, pois
não existia o reconhecimento de sua identidade no espaço ou de sua liberdade de transitar
pelos gêneros, de modo que a todo momento percebe-se a reprodução de um modus
operandi de como existir ou tornar possível a sua existência dentro do binarismo dos
gêneros.
Quando afirma que não é lésbica e posteriormente passa a tentar reproduzir o
modelo hegemônico de mulher, Laranja demonstra dificuldade em descrever exatamente
os conflitos existentes entre sua identidade e aquilo que cotidianamente as normas
escolares afirmavam sobre ele, pois o órgão genital no mundo do gênero obstaculiza
qualquer possibilidade de trânsito.
Ele demonstra que no período da escolarização era cobrado e se cobrava a
corresponder a dinâmica corporal que sua genitália informava para ser aceito, pelo
espírito de se sentir incluído em algum grupo, encontrar redes de apoio para atender as
expectativas dos outros, em uma tentativa arriscada e violenta de se encontrar, ainda que
seu corpo e seus desejos dissessem o contrário. Trazer no corpo e na mente os signos da
masculinidade acusava sua ambiguidade no espaço escolar.
[...] eu acho que a gente sofre muito... Bullying, né? A gente sofre muito.
Porque é muita gracinha... Seu cabelo para eles é motivo de piada, o seu
corpo é motivo de piada... Eles cobram muito. Aí você tenta mudar... 'Mas
você não tem um peito'... Aí na minha época: 'você não tem uma cintura'.
A gente passava muito por isso. ‘Por que você não faz tua maquiagem?';
gente, calma (Azul - Entrevistada n° 5, grifos do autor).
[...] Eu hoje posso identificar que sou Vemelha. Antes eu estava errada em
fazer isso. Hoje é mais tranquilo... Em sala de aula hoje a gente não é
chamada mais no masculino, me chamam de mulher. As escolas hoje não
tratam a gente como gay, tratam como mulher. Tudo isso teve uma
diferença muito grande (Vermelha - Entrevistada n° 1, grifos dos
autores).
[...] a partir do segundo ano eu não conseguia ir para escola porque lá eles
iriam me chamar no feminino e eu não me sentia no feminino (Laranja -
Entrevistado n° 2).
1169
Seria tão bom se a gente chegasse na escola e dissesse: ‘eu quero ser
conhecida como Amarela’. Porque olhe, o tabu é esse do preconceito, da
própria escola, porque se eu chegasse na diretoria e dissesse: 'diretora,
olhe, eu sou uma mulher trans, tenho meus 14 anos'... (Porque isso não
existe, uma mulher trans nunca vai passar isso, ter 14 anos e querer que
alguém chame ela do nome certo. Não, ela vai se esconder e vai aceitar as
brincadeiras, a ‘chacota’ que fazem dela, até ela começar a ter mais claros
os objetivos dela). Se fosse tão fácil, chegasse na diretoria e dissesse:
‘diretora, meu nome é Amarela, por favor, me chama de Amarela’. Pronto.
Ela abrisse ali um prontuário com o nome Amarela, dizendo que na
caderneta seria Amarela. Então no primeiro momento da sua chamada...
Tá ligado aquela primeira apresentação, que é a que fica? Pronto. Quando
alguém chegasse e chamasse: ‘Amarela’, eu tenho certeza que o ano letivo
seria maravilhoso. Porque do começo ao fim você não ia ter nem o perigo
de lhe chamarem diferente. Porque eu acho que a questão do nome
diminui um pouco o preconceito e diminui um pouco a “chacota”
(Amarela - Entrevistada n° 3).
Para Amarela, o ano letivo seria exitoso se as escolas fossem menos burocráticas
quando o assunto é a garantia dos direitos de pessoas trans de serem reconhecidas como
queiram, considerando tal aspecto como uma forma de exercer a cidadania e reconhecer
suas identidades.
Hoje existem legislações que garantem o uso do nome social224, justamente na
perspectiva de tornar o ambiente escolar menos desconfortável para as trans. Conforme
evidenciado pelas participantes, essas normatizações tem ressonâncias positivas no
relacionamento dela com a escola, todavia, seus discursos revelam que alguns aspectos
merecem ressalvas.
Lá na escola tem Violeta, que é uma mulher trans, mas no colégio chamam
ele de homem... Chamam ela de homem. Só que isso tem o preconceito da
escola. E eu na chamada da escola sempre era Vermelha. Só que eles não
podem fazer isso. Porque Violeta não tem o nome que é Violeta. Na
matrícula escolar não foi tida como Violeta, foi como homem nos
documentos. E o meu tá tudo legalizado com documento. Foi tão afetada
que ela quase saiu da escola por causa disso. Só por causa dessa
documentação. Aí ela foi questionar na secretaria e eles disseram:
‘Vermelha lutou pelos direitos dela nas documentações e você faça o
mesmo, mas seu nome não é Violeta’; ‘não, mas eu tenho meu nome
social’, ela disse; ‘não, mas Vermelha tem o nome de mulher, ela é
registrada como mulher, por isso que ela tá exigindo isso’, disse a
coordenadora. Quer dizer que o nome social existe (Vermelha -
Entrevistada n° 1, grifos dos autores).
Falando sobre um outro corpo trans que habita a escola onde ela está inserida,
Vermelha indiretamente aponta que apesar das tentativas de inclusão das pessoas trans
por meio da utilização do nome social, o seu uso ainda coloca uma série de obstáculos.
Isso quer dizer que apesar do aparato normativo, fazer com que tais normas se
224 “Art. 1° Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis e modalidades, o
reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas cuja identificação civil não reflita
adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do próprio interessado” (BRASIL, 2015a, p.
2).
1170
materializem nas relações cotidianas dessas pessoas e superem as pessoalidades
impressas na sua execução por parte dos agentes sociais ainda é um desafio, colocando o
reconhecimento das identidades a um protocolo que assegure uma existência sem
discriminação, sobrepondo o fundamental: aquilo que essas pessoas sabem e dizem sobre
elas mesmas.
Louro (1997, p. 64) fala sobre o poder da linguagem de criar realidades; a autora
afirma que a linguagem perpassa a maioria das práticas sociais dos sujeitos e aparece
sempre como uma instância “imparcial”, “natural”, apenas como uma forma de
comunicação, todavia, “a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela
os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças”.
Nery (2011, p. 129) em sua autobiografia, relata uma experiência semelhante no
curso de Psicologia nos anos 1970 sobre as práticas de nomeação, enquanto um recurso
cultural de manutenção das condutas binárias:
Só era visto como mulher na sala de aula pela forçosa apresentação, que,
inapelavelmente, tinha de fazer. Fora isso, os outros alunos, professores
e empregados da universidade que não me conheciam, viam-me como
homem. Inclusive, uma de minhas grandes dificuldades era ir ao
banheiro. Arrisquei-me um dia para nunca mais.
A linguagem tem poder e produz sentidos para a vida das pessoas. Por este motivo,
perguntar para alguém como gostaria de ser chamado(a) poderia melhorar
qualitativamente suas vidas dentro do ambiente escolar. Por isso, se o nome social surge
como uma alternativa para “trazer de volta” as pessoas trans para a escola, tal proposta
se perde meio a situações culturais de caráter discriminatório.
A heteronormatividade aparece aqui norteando os dispositivos que atuam na
constituição de corpos e mentes coerentes com a realidade heterossexual,
desconsiderando as incongruências entre o status quo da sexualidade e do gênero
ganhando vida na perspectiva autorizativa do uso dos banheiros por pessoas trans e no
desrespeito a utilização do nome social como forma de inclusão. Desse modo, a
contextualização dos relatos aqui apresentados confirma a determinação de limites para
existência dos corpos trans na escola.
Nascimento (2002) coloca que um projeto de vida pode ser compreendido como o
que o sujeito planeja para si projetando o futuro, delimitando rotas a seguir, definindo
metas e objetivos. Para isso, o sujeito necessita reconhecer o seu valor, a sua inserção na
estrutural social, a sua humanidade e visualizar sua contribuição na sociedade. Logo, o
sujeito precisa dispor das melhores condições possíveis para se reconhecer
subjetivamente e para que o mesmo tenha a certeza de que é possível concretizar suas
perspectivas.
Nos trechos a seguir, observa-se que a escolarização aparece como uma
possibilidade de ampliar os horizontes e de estar inserido socialmente:
Assim... é uma maneira diferente quando você chega nos cantos e você
não sabe ler, e quando você não sabe escrever é punk. A escola é
importante demais (Amarela – Entrevistada n° 3).
Hoje em dia eu acredito que ser uma pessoa escolarizada facilita meus
1171
objetivos, porque tem que ter a escolaridade pra você ser alguém (Verde
– Entrevistada n° 4).
Nessa perspectiva, ainda que as pessoas trans passem por situações vexatórias no
ambiente escolar, a escola e seu significado social os(as) levam a acreditar na
escolarização como uma possibilidade de reificar suas representações sociais, suas
identidades. Por exemplo, a transexualidade pode existir, mas o fato dessa pessoa ter
determinado nível de escolaridade provocará um deslocamento do foco na
identidade/sexualidade para a competência.
A sociedade não está pronta, não está apta ainda, não aceitou. Assim... É
completamente difícil que a gente ocupe os lugares de um hétero, de uma
mulher, de um homem cis, de uma mulher cis. Então creio que a sociedade
não aceita. Mesmo que a qualificação profissional de uma trans, de um
225“Chamamos de cisgênero, ou de “cis”, as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído
quando ao nascimento. Como já foi comentado anteriormente, nem todas as pessoas são assim, porque,
repetindo, há uma diversidade na identificação das pessoas com algum gênero, e com o que se considera
próprio desse gênero. Denominamos as pessoas não-cisgênero, as que não são identificam com o gênero
que lhes foi determinado, como transgênero, ou trans” (JESUS, 2012, p. 10).
1172
gay, de um hétero e de uma mulher [biológica] seja a mesma, ou até que
a trans esteja num nível superior, sempre vão escolher quais pessoas
passariam a melhor imagem. Então sempre seria uma mulher ou um
homem, a terceira opção um gay, e por último a pessoa seria uma trans,
que é muito difícil (Azul - Entrevistada n° 5).
[...] eu sei muito bem que perante a sociedade eles procuram aquela
imagem perfeita, padrão da sociedade. E nós, trans, não somos essa
imagem. Para eles não somos. Porque por mais que aparente ser mulher,
por mais educada, por mais nítida que a beleza feminina esteja ali, a figura
feminina esteja ali, mais eles sempre vão olhar para a gente como um
menino... alguém que um dia foi um menino. Então por mais que eles
vejam que nós façamos, como cirurgia plástica... Eu pensei que eu me
‘emplastificando’ toda não ia ser isso, as pessoas me olhando... [...]
Achando que não iria passar por tanta coisa. Eu acho que aí que eles
apontaram mais (Azul - Entrevistada n° 5).
Ao paço que Azul realça as mudanças corporais, ela suscita a corporalidade como
demanda por legitimidade, ou seja, a busca pela passabilidade, pelo alcance de resultados
corporais visíveis no processo de transição aparece como uma expectativa normativa de
se passar por uma pessoa cisgênera concomitantemente tendo sua inserção no horizonte
normativo bem sucedida.
Além disso, revela-se no discurso de Azul que a apropriação das compreensões
hegemonicamente compartilhadas sobre os sentidos do corpo são internalizadas até
mesmo pelos que não são lineares as normas de gênero, interpelados pelas exigências
normativas para que seja possível a concretização de seus objetivos de vida por meio da
inserção no mundo do trabalho ou na educação, promovendo uma espécie de
reapropriação de jogos de poder que hierarquizam as relações. Por isso vale o cuidado,
pois tratam-se de conteúdos que são “[...] interpretações sobre o masculino e o feminino
em um jogo muitas vezes contraditório e escorregadio, estabelecido com as normas de
gênero” (BENTO, 2014, p. 60).
1173
que se situam na fronteira do gênero, dizer que alguém ‘não parece trans’
pode significar, por outra via, a desvalorização de estéticas lidas pelo
registro da diferença em relação às pessoas cisgêneras, atualizando a
potência da norma para definir o desejável para um corpo. O que está em
jogo, portanto, é uma norma regulatória que organiza o regime de leitura
social dos corpos/sujeitos com base em uma matriz de gênero, definindo
condições de reconhecimento e legitimidade (PONTES; SILVA, 2018, p.
409).
Todas as falas aqui expostas mostram que a cultura concebe as identidades trans
em suas mais variadas formas de negação, discriminação, anulamento e abjeção que se
expressa nos mais diversos âmbitos de sociabilidade, médico, jurídico, social, dentre
outros, assim impedindo a materialização dos objetivos de vida dessas pessoas, bem como
elucidando a importância de pautar políticas públicas de inclusão para inserção no campo
educacional. Todavia, políticas que não estejam pautadas na perspectiva de
universalização de formas de ser e viver que são únicas, pessoa por pessoa, caso a caso.
Quer dizer, não se pode apreender a totalidade desses fenômenos ancorado em uma
perspectiva também normativa. Isto é, se a proposta é o desmantelamento de categorias
prontas e acabadas pautadas pela determinação biológica da humanidade e a inclusão
escolar a partir de um novo paradigma, uma renormalização passa a ser também uma
violência.
Destaca-se, portanto, a necessidade de se conceber as determinações e
particularidades da vida das pessoas travestis e transexuais a partir da perspectiva da
multiplicidade e enquanto questão social, pois suas formas e expressões acontecem
mediante situações históricas e culturais que se desdobram em desigualdades simbólicas
e materiais.
A sexualidade na escola ainda aparece como um tabu, como algo que não faz parte
da estrutura escolar e quando faz deve ser encarada como um aspecto a ser controlado,
comedido. Nessa mesma perspectiva as identidades não binárias (não) são encaradas.
Os caminhos “certos” e “errados” colocados pela escola para se seguir as
sexualidades e os modelos “verdadeiros” para os gêneros impedem um diálogo de
descobertas e liberdades, que poderia contribuir para desestabilizar as certezas sobre o
que é certo ou errado e romper com os equívocos de que discutir sexualidade se resume
apenas ao ato sexual, bem como as discussões sobre identidades, quando encaradas como
formas de influenciar as pessoas.
A escola não estava preparada para identidade de gênero. Ela não estava
nem preparada para sexualidade. [...] não existia identidade de gênero.
Simplesmente não existe. Não tem a preparação. Às vezes eu achava que
não existia preparação para a sexualidade... Na verdade, não existia
sexualidade ali (Laranja - Entrevistado n° 2).
Impera na escola um tratamento conservador sobre esses temas e esse fato chama
atenção para a necessidade de professores(as) se aproximarem das discussões referentes
a identidades e sexualidades, de maneira a desestabilizar os vícios normativos da cultura
imbricados em suas práticas cotidianas.
1174
Xavier Filha (2012) fala que discutir sobre sexualidade em sala de aula, sobretudo
com crianças, parte da perspectiva do medo, e esse medo se dá em razão de que a
discussão de sexo, gênero e sexualidade é função da família. É o caso da escola tornar-se
“coadjuvante”, omitindo-se no processo de educação sexual e, sendo assim, reproduzirá o
que a família exige. À medida que a escola se omite sobre essa discussão, ela se perde
quanto ao seu papel de contribuir para a desmistificação de esteriótipos e a construção
de novas formas de sociabilidade.
Andrade (2012, p. 190) tece que essa omissão é perigosa, pois
1175
maneira de incluir (Azul - Entrevistada n° 5).
Já fui até colocada para fora da sala de aula, por causa de comportamento
de roupa. Teve um dia que o vigia faltou e eu fui vestida de mulher, aí me
colocaram para fora (Vermelha - Entrevistada n° 1).
Eu acho que discutir gênero dentro de uma escola poderia até ser legal.
Só que não é só a discussão do gênero. E a discussão do conteúdo que a
gente vai pegar na disciplina? Porque a gente só ver muito homem ou
mulher. Então, tipo, se você tem um gênero diferente você tem que se
encaixar entre um homem ou uma mulher, entendeu? A gente já
nasce sabendo que azul é para menino e rosa para menina. Então sempre
vai ser assim sua vida. Será discutido gênero? Será. Mas os normais são
esses, quem gostou de azul é menino e quem gostou de rosa é menina. Se
sair desse padrão você já se torna diferente. [...] A escola trabalhava para
incluir na maneira masculina, não do jeito que a pessoa quer (Amarela -
Entrevistada n° 3, grifos dos autores).
Eles já dão aqueles rótulos. Acha que mexer com trans é mexer com
cachorro (Verde - Entrevistada n° 4).
1176
Para Andrade (2012), a travesti sempre será o problema nas relações escolares,
pois seu jeito de ser, suas roupas, assessórios, maquiagem e até o nome social incomodam;
então não permitem o uso do banheiro que elas escolhem, sendo forçadas cotidianamente
a questionar sua cultura, seus modos de ser para que se insiram no gênero masculino.
Vermelha aponta para a interdição do seu gênero dentro da escola; Amarela
destaca a inviabilidade de se pensar em outras formas de existência que se deslocam do
padrão binário, onde a heterossexualidade aparece como compulsória (Louro, 2000), ou
seja, se deduz que todos os sujeitos tem uma tendência a direcionar seus desejos e
vontades para pessoas do sexo/gênero oposto, e Verde fala dos rótulos que a escola está
preocupada em atribuir
Nesse ínterim, a Educação Física também faz parte desse investimento
normatizador de vigilância e sobretudo de correção dos corpos.
Karl Marx (2006, p. 25) fala que “[...] antes de tudo, é um absurdo considerar
antinatural um comportamento que se consuma com tanta frequência; o suicídio não é,
de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas”. O que o autor
226“Essas negociações podem reproduzir as normas de gênero, assim como desestabilizá-las ao longo dos
processos de reiterações” (BENTO, 2006, p. 89).
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está querendo dizer é que os atos de suicídio estão totalmente relacionados as expressões
da questão social que não necessariamente estão relacionadas a fatores econômicos, mas
também a vida privada de cada sujeito.
O trecho acima mencionado contextualiza a fala de Laranja pois, ao passo que ele
atribui a vontade de se suicidar a fatores externos, no caso, a cobrança por corresponder
as normas do gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, as represálias pela não
correspondência a tal tentativa o levaria a pensamentos suicidas, portanto, a exaustão aos
processos de assujeitamento.
Bem como, partindo-se dos fatores sociais, culturais e de ambiência, relaciona-se a
fala de Laranja a um processo de cooptação inconsciente (Borba, 2015), onde de forma
involuntária, os sujeitos passam a absorver e reproduzir pensamentos conservadores, no
caso, as determinações heteronormativas, conduzindo sua trajetória na negação, no
silenciamento e, nesse contexto, tornando-se seus próprios inimigos quando internalizam
e naturalizam a opressão.
Perceber-se que as trans muitas vezes são forçadas a serem suas próprias inimigas,
pelo fato de “decepcionarem” os outros e sobretudo decepcionar-se, tornando difícil o
processo de ressignificação de uma trajetória social que já está pronta e que
obrigatoriamente deve ser correspondida. De certo, encontrar aliados nessa trajetória
também se constitui como uma estratégia, como identifica-se abaixo:
[...] Por causa de alguns professores de lá [do EJA227] que até hoje sinto
falta. [...] De todos, eu vou destacar dois: o professor de matemática e a
professora de Português. Eu comecei a aprender a gostar de matemática.
Eu nunca soube fazer uma conta. Eu vim aprender com ele. Eu disse a ele
muitas vezes: 'parabéns, professor, porque eu comecei a gostar de
matemática por causa do senhor’ [...] (Verde - Entrevistada n° 4).
Só que assim, eu aprendi uma coisa... Não sei se é porque minha mãe já
pensava o que eu ia sofrer na minha vida, que ela sempre me ensinou
assim: ‘infelizmente, se você apanhar, você vai lá e dá duas’; tipo, se você
chegar em casa batido, se chegar aqui assim vai ser batido de novo. Eu
Teve um período que as pessoas soltavam tanta piada pra mim que eu voltava
pra trás e debatia, “batia” boca” (Azul - Entrevistada n° 5).
[...] não importava o que os outros falavam. E também tinha isso, eu nunca
fui uma pessoa de me dar a ousadia de permitir ouvir de mais o que as
pessoas falam. Nunca fui de perder meu tempo com o que as pessoas
falam. Então, portanto, seria apenas mais uma crítica. [...] A minha
vontade de estudar era tão superior que eu consegui desviar de todos eles
aos poucos, tá entendendo? (Azul – Entrevistada n° 5).
Verde fala que o preconceito vivenciado por ela na família a “preparou” para as
violências que sofreria fora de casa. Desse modo, se o apoio familiar não existe e a pessoa
não experimenta esse acolhimento, os sofrimentos que a sociedade coloca já não são tão
inesperados assim.
Situações postas, percebe-se que para que a escolarização não fosse tão injuriosa,
ignorar o preconceito das relações ou “desviar” o foco do sofrimento era um elemento
para que as trans se sentissem apropriadas de si mesmas e pudessem concluir os estudos
ou ao menos enfrentar mais um dia de aula.
Essa realidade expressa que a exigência de um comportamento binário impele
(in)voluntariamente as trans a criarem táticas para poder se expressar, aprender a lidar
com as represálias e, ainda assim, pensar em estratégias que subsidiem sua permanência
na escola.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
ANDRADE, Daniel de Souza; GUEDES, Maria do Socorro; SILVA, Sílvio Cesar Lopes da. O
papel da escola e do professor quanto ao assunto homossexualidade: um estudo com
professores de uma escola pública. In: Congresso Internacional de Educação Inclusiva, v.
6, 2016. Campina Grande/PB. Anais... Campina Grande: Editora Realize, 2016.
Disponível em:
<https://editorarealize.com.br/revistas/cintedi/trabalhos/TRABALHO_EV060_MD1_SA
9_ID3998_21102016024706.pdf>. Acesso em: 21 de novembro de 2018.
BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro:
Garamond, 2005.
BENTO, Berenice. O que pode uma teoria? Estudos transviados e a despatologização das
identidades trans. Revista Florestan. Santa Catarina, v. 1, n.2, p. 46-66. 2014. Disponível
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Acesso em: 10 de setembro de 2019.
1182
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e Sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-
Posições. Campinas/SP, v. 19, n. 2, p. 17-23, maio/ago. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf>. Acesso em: 27 de agosto de
2018.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias de gênero e sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes
(Org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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PONTES, Júlia Clara de; SILVA, Cristiane Gonçalves da. Cisnormatividade e passabilidade:
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8, v. 1 nov.2017.-abr. 2018 p. 396-417. Disponíve em: <
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Acesso em: 10 de setembro de 2019.
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