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BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros.

Rio de Janeiro:
Zahar, 2017.

Maria Julia Nascimento SILVA


Universidade Federal De Mato Grosso
Majunascimento57@gmail.com

É irrefutável que estudar acontecimentos históricos é primordial para compreender os


feitos dos seres humanos ao longo dos séculos, mesmo que em certas circunstancias tenham
sido acontecimentos catastróficos e prejudiciais para os indivíduos, como em relação ao
processo de escravidão, porém, torna-se necessário entender os fatos de uma forma mais
verdadeira e compreender que neste processo escravocrata há um protagonismo de resistência
dos povos negros muito mais forte do que é repassado hodiernamente nos âmbitos escolares.
Desse modo, a obra As abolições da escravatura no Brasil e no mundo, de Marcel Dorigny,
importante especialista em história da escravidão, retrata justamente a relevância dos
movimentos abolicionistas no processo da abolição da escravatura e o longo período percorrido
até que fosse possível o “fim da escravidão”. O autor busca explicar a notabilidade dos povos
negros neste movimento e o apagamento da verdadeira realidade dos processos abolicionistas,
sendo este o principal assunto tratado no livro.
O referido livro apresenta cinco capítulos: o primeiro, cujo título é As resistências à
escravidão, descreve as diversas tentativas de resistência dos escravos em relação as
circunstâncias em que eram submetidos pelos senhores; o segundo, de nome de As contestações
ao tráfico e à escravidão, é explicado as diferenças e os termos entre “antiescravismo”,
“abolicionismo” e “reformadores coloniais”; o terceiro capítulo, intitulado Surgimento e
expansão do movimento abolicionista, informa as criações de associações cujo objetivo era
abolir o tráfico negreiro internacionalmente; o quarto, nomeado A primeira abolição da
escravatura(1789-1804), enfatiza o pioneirismo do Haiti na resistência e abolição da escravidão
com a revolução haitiana que ocorreu na colônia Francesa de São Domingos; por fim, o quinto,
de título As abolições do século XIX relata os movimentos abolicionistas em múltiplos países
após a revolução haitiana assim como os processos e o modo na qual ocorreu a abolição nesses
locais.
No primeiro capítulo, o autor disserta sobre como os escravos nunca aceitaram esse
destino e sempre rejeitaram este processo, conhecido nos dias atuais como “Resistência a
escravidão”. Deste modo, haviam diversas maneiras de resistir a escravidão e são explicadas as
mais ocorrentes neste período, como a recusa ao trabalho ou desleixo ao realiza-lo, era comum
também o envenenamento dos animais ou até mesmo dos próprios senhores o que gerou durante
muito tempo um medo por parte dos patrões, que por receio, evitavam beber água dos poços
com temor de conter alguma substância, outro modo de resistir era a negação em gerar filhos,
tendo em vista que a criança nasceria com o mesmo status que a mãe e não seria livre, outrossim,
inúmeros motins eram realizados a bordos dos navios negreiros na tentativa de escapar do
processo árduo da escravidão.
O segundo capítulo trata de explicar a diferença entre termos comumente usados e o
motivo pela qual não possuem equivalência, como as palavras “Antiescravismo” e
“Abolicionismo”. A priori, os termos parecem possuir semelhança gritante, contudo, os ideais
são diferentes, logo que os indivíduos antiescravistas condenam a escravidão mas não
apresentam propostas ou soluções para propor um trabalho livre, no caso dos abolicionistas é
previsto ações concretas para o fim da escravidão e como a sociedade ficará após a abolição.
Neste interim, havia algumas vertentes do abolicionismo, como os radicais, cujo objetivo era
defender a abolição imediata e os gradualistas que pregavam o término da escravidão de forma
gradual. Ademais, existiam os reformadores coloniais, cujo objetivo era preservar a escravidão
mas fornecer mudanças a este processo, entretanto esta proposta foi de encontro aos ideais dos
conservadores que defendiam a permanência da escravidão e alegavam que reformar levariam
a extinção da escravatura.
Neste terceiro capítulo, é comentado as tentativas de organizações internacionais para
que fosse possível abolir o tráfico negreiro e consequentemente várias civilizações
antiescravistas passaram a ser abolicionistas, mas estas sociedades não aprovavam uma
abolição imediata e sim de forma gradual, que poderia durar décadas. Porém, mesmo com as
medidas ainda haviam questionamentos em como seria a vida dos libertos fora das colônias e
se iriam roubar para sobreviver e defendiam que somente a passagem gradual deste período
tornaria a economia escravagista em trabalho livre, por outro lado, apesar de negar a abolição
imediata da escravidão, era defendido o fim preventivo do tráfico negreiro, o que levou a criar,
em Londres, o “Comitê pela abolição do tráfico” e na década de 1830, reconhecido pelo Tratado
Internacional de Viena, foi definido o fim do tráfico negreiro. Contudo, em alguns países,
principalmente nas américas, era comum a mercancia ilícita dos povos negros tendo em vista
que, mesmo após a proibição do tráfico, o fim da escravidão ocorreu apenas em 1865 nos
Estados Unidos e no Brasil somente em 1888, o que resultou em mais de 50 mil novos escravos
trazidos ao Brasil entre o período de 1829 a 1850, posteriormente, surgiram ondas de
resistências à escravidão e para tentar sanar este problema foi trazido mão de obra de pessoas
da Europa, o que sanou gradualmente a defesa da escravidão.
No capítulo quatro, é mencionado o pioneirismo de São domingos, atual Haiti, na
abolição da escravatura, que foi possível devido à resistência dos povos negros durante este
processo. Sob este viés, esta revolução teve início por volta de agosto de 1791, quando 54
escravos, sob liderança de Boukman, escravo vindo da Jamaica, reuniram-se e juraram lutar
pelo fim da escravidão, consequentemente, ao ter conhecimento desta rebelião a Assembleia
legislativa enviou tropas que tinham como objetivo sanar estas revoltas e posteriormente criou
uma política para reunir os que sentiam-se ameaçados pelos motins, o que iria ao encontro aos
posicionamentos dos colonos, que sempre opuseram a esta prática civil, após esta oposição a
assembleia enviou três comissários civis a São domingos, com o objetivo de corrigir esses
desacertos, porém, os comissários chegaram em 1792, em meio a três outros conflitos: a
revolução dos escravos, a insatisfação dos colonos e a guerra entre espanhóis e franceses. Em
consequência disso, devido ao fracasso dos comissários em amenizar os conflitos existentes em
São domingos foi necessário proclamar a abolição instantânea da escravatura, em 29 de agosto
de 1793.
O quinto e último capítulo, sintetiza os processos abolicionistas nos países após o
pioneirismo haitiano e as revoltas que ocorreram conseguinte a este ato, no ano de 1815, por
meio do Congresso de Viena, é proclamado que a abolição da escravatura deveria ser mundial,
porém muitos países continuaram a negar este decreto o que gerou, em consequência o atraso
no fim da escravidão, como na França que mesmo após a abolição da escravatura em São
Domingos ocorreu rebeliões para que fosse possível a permanência do modelo escravocrata,
devido a isso a abolição na França ocorreu somente no ano de 1848 por meio de um decreto.
Além disso, o tráfico negreiro continuou recorrente e um dos países que mais recebiam escravos
era o Brasil, que estava defasado nos quesitos abolicionistas em relação as outras nações e teve
o fim da abolição decretado apenas no ano de 1888 se tornando o último país do oeste a decretar
o término do período escravocrata.
Por fim, cabe salientar a importância do livro Abolições da escravatura no Brasil e no
mundo de Marcel Dorigny. A obra é essencial para a compreensão das revoltas que ocorreram
durante o período da escravidão, além de ser fundamental para retirar o protagonismo branco
nos processos abolicionistas e mostrar as rebeliões que os povos negros fizeram, que por muito
tempo foram apagadas da história e excluídas dos conteúdos falados nas instituições escolares,
o que corroborou com o apagamento histórico de personalidades e movimentos negros durante
todo o período escravocrata. Desse modo, compreender esses processos é de certa forma
resguardar as lutas e resistências das personalidades negras e entender o meio em que está
inserido com a perspectiva real do ocorrido historicamente durante a abolição da escravatura e
não simplesmente entregar e aceitar, que o processo abolicionista conteve somente pessoas
brancas envolvidas e sim valorizar a luta dos povos negros neste desenvolvimento.
No que tange a formação de professores, esta obra auxilia no entendimento histórico do
processo de escravidão, tendo em vista que os docentes estão em contato direto com todos os
tipos de estudantes, por isso, compreender esses fatos é ter discernimento do que pode ser
dialogado em âmbito escolar. Nesse sentido, Abolições da escravatura no Brasil e no mundo
além de repassar a realidade das revoltas durante o período escravocrata, ajuda a desconstruir
ideias e paradigmas que por muitos anos são construídos na sociedade brasileira, o que
corrobora pra moldar sempre a história da forma que mais convém, aquela que aumenta o
protagonismo de indivíduos brancos e propõe o apagamento da realidade e luta dos povos que
mais resistiram e lutaram para que a escravidão tivesse fim, que são os povos negros.

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