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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Pró- Reitoria de Extensão e Cultura – PROExC


Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PROPG
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana

ISSN: 2178-2539

ANAIS DOS TEXTOS COMPLETOS

V JORNADA
NACIONAL
ARQUITETURA,
TEATRO E
CULTURA
Evelyn F. W. Lima (org)
Adilson Florentino (org)
Regilan Deusamar Pereira (org)

04 à 06 DE SETEMBRO DE 2019
Realização: Apoio:
V JORNADA NACIONAL ARQUITETURA, TEATRO E CULTURA
04,05 e 06 de setembro de 2019
Rio de Janeiro

ANAIS DOS TEXTOS


COMPLETOS
ISSN: 2178-2539

Evelyn F. W. Lima (org.)


Adilson Florentino (org.)
Regilan Deusamar Pereira (org.)

Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana


Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
www.unirio.br/espacoteatral

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 1 de 272


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V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura

Comissão Organizadora:
Evelyn F.W. Lima (UNIRIO/ CNPq/ FAPERJ)
Adilson Florentino (PPGAC/UNIRIO)
Leonardo Munk (PPGAC/UNIRIO)
Regilan Deusamar Pereira (UFSJ)

Comitê Cientifico:
Andrea Borde (PROURB/UFRJ)
Andréa Sampaio (PPGAV/UFF/FAPERJ)
Evelyn F.W. Lima (PPGAC/UNIRIO/ CNPq)
Fabíola Zonno (PROARq/FAU/UFRJ)
Leonardo Mesentier (PPGAV/UFF/ IPHAN)
Niuxa Drago (FAU/UFRJ)

Capa
Milena Fernandes

Revisão e Copydesk
Evelyn F. W. Lima

Editoração Gráfica
Milena Fernandes

Produção
Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas

Coordenação Geral
Evelyn Furquim Werneck Lima

Ficha catalográfica:

C719 Brasil. Anais de resumos expandidos/ IV JORNADA NACIONAL


ARQUITETURA, TEATRO e CULTURA Coord. Geral: Evelyn
Furquim Werneck Lima. – Rio de Janeiro, Brasil: UNIRIO/CNPq,
Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana,
2019.

ISSN: 2178-2539

1. Arquitetura – Congressos 2. Teatro – Congressos 3. Cultura –


Congressos I. Jornada Nacional Arquitetura, Teatro e Cultura (V:
2019: Rio de Janeiro, Brasil). II. Lima, Evelyn Furquim Werneck,
1946-. III. Pereira, Regilan Deusamar Barbosa, 1974. IV.
Florentino, Adilson, 1962. V. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (2003-). VI. Laboratório de Estudos do Espaço
Teatral e Memória Urbana. VII. ANAIS DE RESUMOS
EXPANDIDOS. VIII. Título.

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Apresentação
O Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana em conjunto com o
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas realizou a V Jornada Nacional sobre
Arquitetura, Teatro e Cultura: Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana nos
dias 4, 5 e 6 de setembro de 2019, na Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, no auditório Paschoal Carlos Magno do Centro de Letras e Artes da Unirio.
O evento constou de 3 conferências, 6 mesas redondas, Exposição e Apresentação
de Pôsteres de pesquisadores de diferentes estados do país selecionados pelo
Comitê Científico e atividades de extensão, como exibição de vídeos e de
documentários sobre a arquitetura teatral.

No cerne do debate pretendido por esta 5ª edição do evento esteve a questão da


discussão da arquitetura teatral, das relações entre o teatro e a cidade, da
conservação do patrimônio cultural brasileiro, bem como as formas de expressão
contemporâneas das possíveis adaptações de espaços alternativos para a
experiência teatral, entre outros temas.

Considerando, portanto, que o enfoque da V Jornada Nacional sobre Arquitetura,


Teatro e Cultura: Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana foi primordialmente
discutir a arquitetura teatral e os espaços alternativos, foram convidados para
discutir as relações entre a arquitetura, a cenografia, a pedagogia, as práticas
artísticas e a história cultural, professores de reconhecido mérito como o professor
Dr. Ismael Scheffler da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, também
coordenador do GT Poéticas Espaciais, Visuais e Sonoras da Associação Brasileira
de Pós-Graduação e Pesquisa em Artes Cênicas-ABRACE, a professora Dra. Andrea
Renck, da UFRJ e a professora Dra. Doris Rollemberg da UNIRIO e representante
brasileira na OISTAT- que virão partilhar com a audiência suas pesquisas e
conhecimento. Outros palestrantes, vinculados a diversas instituições federais de
ensino estarão também discutindo suas pesquisas recentes com a plateia.

A recente produção acadêmica no âmbito europeu sobre a arquitetura teatral tem


conferido novos significados e possibilidades à encenação em espaços construídos
ou reformados para receber grandes contingentes de público. Vários pesquisadores
discutirão a dinâmica de conformação destes espaços que se moldaram a par e
passo com suas cidades. Para documentar o evento, além dos registros das
conferências em vídeos, foram publicados os Anais da V Jornada Nacional
Arquitetura, Teatro e Cultura (ISSN 2178-2539), que ora apresentamos e que estão
disponíveis para consulta no site.

Esperamos que os artigos completos das conferências e palestras venham a


enriquecer a produção científica desse campo do conhecimento. Boa leitura!

Evelyn Furquim Werneck Lima (org.)


Adilson Florentino da Silva (org.)
Regilan Deusamar Barbosa Pereira (org.)

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Programação

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V JORNADA NACIONAL ARQUITETURA, TEATRO E CULTURA (04,05 e 06/09)
Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana - LEG T5
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas- PPGAC

SUMÁRIO

CONFERÊNCIA

Ismael Scheffler
Considerações sobre quatro bases pedagógicas referenciais do Laboratório de Estudo do
Movimento 10

MESA REDONDA - Arquitetura, Teatro e Cultura Coord. Fabíola Zonno

Carlos Eduardo Ribeiro Silveira


Flávio Império, Poeta do Espaço: A Reforma do Teatro Oficina e as Cenografias Inusitadas 28

Evelyn Furquim Werneck Lima


A historiografia da arquitetura teatral no Brasil: poucos estudiosos envolvidos 41

Maria Cristina Cabral


Modos de produção: Museus, Arte E Cultura 50

Carolina Lyra
Arquitetura e Teatro: A antropofagia e a perda da ágorafobia 64

MESA REDONDA - Espaço, cidade e cenografias Coord. Leonardo Mesentier

Liliane Ferreira Mundim


Reflexões sobre O Coletivo Cantareira - Movimento pelas tradições e memórias da ilha de
Paquetá 73

Joana Navallé
Ah, Se eu fosse esse rio e soubesse falar...experimentos cênicos na cidade histórica de Laranjeiras 83

Sara Fagundes
Ocupação #6 Terras - Entre o teatro Épico e o teatro Performativo, A Cidade 93

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MESA REDONDA - Arquitetura, Teatro e Artes Visuais Coord. Ana Bulhões

Elizabeth Motta Jacob


No arquipélago das sensações: A visualidade háptica nas fotografias da performance “A voz do
ralo é voz de Deus 110

Maria Odette Monteiro Teixeira


Raul Pederneiras no palco do Teatro Apollo 122

Leonardo Munk
Do desprestígio do observador à apoteose da experiência: Uma breve genealogia 133

Regilan Deusamar Barbosa Pereira


Por tempos mais justos, um olhar sobre a cenografia e a docência de Helio Eichbauer 142

CONFERÊNCIA

Andréa Renck
Transformações na estética da cena brasileira nos anos 1960 e 1970: estudo de quatro obras
cênicas de Marcos Flaksman. 156

MESA REDONDA - Pedagogias e Práticas Teatrais Coord. Leonardo Munk

Adilson Florentino
A pedagogia do teatro e a experiência sensível no espaço da cidade – algumas
problematizações reflexivas 171

MESA REDONDA - História e Historiografia Coord. Tania Brandão

Henrique Buarque de Gusmão


A história em busca do corpo: sobre as potencialidades de uma história dos atores 183

Cláudio Guilarduci
Uma Prática da pesquisa em teatro: a imagem dialética benjaminiana 193

Angela de Castro Reis


Dos edifícios teatrais às ondas do rádio: apontamentos sobre atuação no teatro carioca da primeira
metade do século XX 205

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Ana Paula Brasil Guedes


A mágica no Rio De Janeiro, o assombroso desaparecimento de um gênero 215

MESA REDONDA - Cenografia e Arquitetura Coord. Lidia Kosovski

Luiz Henrique Sá
Teatro e imagens: buraco negro, buraco de minhoca 229

Francisco José Cabral Leocádio


A cidade que cabe no palco e vice-versa 238

Niuxa Drago
Ateliê Morphosis: expografia e cenografia estudos sobre o tempo e o cubo 250

CONFERÊNCIA

Doris Rollemberg
Os Teatros Da América Latina – TTLA-TELA 259

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TEXTOS COMPLETOS DAS CONFERÊNCIAS E PALESTRAS

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CONFERÊNCIA

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Considerações sobre quatro 1987 e conheceu Krikor Belekian,


bases pedagógicas que foi seu aluno e assessor.
referenciais do laboratório Lecoq e Belekian iniciaram o LEM,
de estudo do movimento
somando-se à dupla docente, a
1
Ismael Scheffler partir de 1988, Pascale Lecoq, ex-
aluna do LEM e também da
O Laboratório de Estudo do
3
ENSAPLV . Após a aposentadoria
Movimento (LEM) foi fundado em
de Belekian (2011), Carlos García
1976 junto a Escola Internacional
Estévez integrou o LEM com
de Teatro Jacques Lecoq, em
Pascale Lecoq. Outros professores
Paris. Os pressupostos
da escola também dirigem
pedagógicos são os mesmos que
algumas aulas no LEM.
embasam o curso de formação de
O legado escrito e publicado
atores, sendo que os fundamentos
por Jacques Lecoq sobre o LEM é
voltados à cenografia, à
muito restrito. Existe o artigo
arquitetura, ao design e às artes
L.E.M - Mouvement et espace
plásticas foram inicialmente
publicado na revista Actualité de la
desenvolvidos na Escola Nacional
Scénographie, em junho de 1995,
Superior de Arquitetura de Paris
e as páginas no livro O corpo
La Villette (ENSAPLV)2. Ali,
poético (LECOQ, 2010). Na página
Jacques Lecoq lecionou de 1969 a
da internet da Escola4, as ideias
essenciais do artigo aparecem.
1
É professor do Departamento Acadêmico
de Desenho Industrial da Universidade Conforme expresso na
Tecnológica Federal do Paraná. É
coordenador do curso de Especialização
em Cenografia e Especialização em Artes
3
Híbridas da UTFPR. É autor do livro Ver os artigos: O Laboratório de Estudo
Teorias da cena: teatro e visualidades, do Movimento da Escola Internacional de
entre outros. Teatro Jacques Lecoq (SCHEFFLER, 2012);
Atuação docente de Jacques Lecoq na
2
Minha tese de doutorado trata sobre o formação de arquitetos: laboratórios de
LEM em aspectos históricos e cenografia experimental (SCHEFFLER,
pedagógicos. Para esta publicação, reviso 2018a); Jacques Lecoq e o Laboratório de
e sintetizo alguns aspectos que estão Estudo do Movimento (LEM): da escola de
distribuídos pela tese. (SCHEFFLER, arquitetura a um espaço autônomo de
Ismael. O Laboratório de Estudo do cenografia experimental (SCHEFFLER,
Movimento e o percurso de formação de 2019).
Jacques Lecoq. 2013. 591 f. Tese
4
(Doutorado em Teatro) – Universidade do Conforme a página da internet da Ecole
Estado de Santa Catarina, Programa de Internationale de Théâtre Jacques Lecoq:
Pós-Graduação em Teatro, 2013. http://www.ecole-
Orientação: Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro. jacqueslecoq.com/fr/lem_fr-000004.html .
Apoio: bolsa sanduíche PSDE/ CAPES.) Acesso em: 10 ago. 2019.

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página da internet, o LEM é trajes dinâmicos5) que são postas
considerado um departamento em movimento para que se
cenográfico, dedicado conheça sua potência dinâmica e
especialmente à pesquisa expressiva (LE LABORATOIRE).
dinâmica do espaço e do ritmo, O ensino é baseado em
por meio da representação permanências que são: as
plástica. Seu ensino não é uma transferências; o estado de calma
transmissão de técnicas, mas um ou o neutro; o equilíbrio de forças;
processo de experiências práticas a economia de ações físicas (LE
que visa permitir ao aluno LABORATOIRE). Estes elementos
encontrar posteriormente sua não são trabalhados em forma
própria escrita criativa poética. seqüencial, mas transversalmente.
Apóia-se em uma lógica do fazer No presente artigo, serão
que “engendra uma maneira de apresentadas ponderações sobre
criar que confia mais na estes quatro aspectos de acordo
inteligência do instinto do que na com a proposta metodológica do
reflexão que precede o ato LEM. Serão observadas as
criativo” (LE LABORATOIRE). correspondências entre a pesquisa
O aprendizado propõe o corporal e a pesquisa plástica,
desenvolvimento de um corpo considerando-se possibilidades de
sensível que percebe o mundo ao aplicação no trabalho cenográfico
redor e que o expressa, analisando e arquitetônico. Serão utilizados
os movimentos, compreendendo exemplos de exercícios realizados,
assim o jogo de forças que fontes bibliográficas de autoria de
organiza o espaço. Este material Jacques Lecoq e outros
percebido é transposto em pensadores nos quais se vislumbra
construções com materiais simples correlações teóricas, minha
(papel, papelão, madeira, arame, experiência como aluno no LEM no
etc), inventando formas-dinâmicas ano letivo de 2010-2011 e
plásticas ou arquitetônicas entrevistas.
(estruturas portáteis, máscaras e
As transferências

5
Ver artigo: As estruturas portáteis no
Laboratório de Estudo do Movimento
(SCHEFFLER, 2018b).

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A proposta de ensino como rejogo [rejeu]. Tem caráter
desenvolvida tanto para a de pesquisa pessoal e não visa
formação de atores quanto no LEM que se codifique movimentos, mas
tem base no movimento corporal. que se explore as dinâmicas. O
No que concerne ao LEM, a rejogo precede o ato criativo e
pesquisa corporal se dá em compõe o que Lecoq definiu como
especial sob dois pressupostos: a Fundo Poético Comum.
análise do movimento e o mimo. Uma base conceitual
O mimo para Lecoq fundamental para a prática que
corresponde à expressão corporal Lecoq já realizava, foi a
de tudo que existe no mundo. Antropologia do Gesto, de Marcel
Principia pelos elementos naturais, Jousse6 (2008). Ele desenvolveu
tomando também aspectos do os conceitos de mimismo e
humano e suas produções: os teorizou o processo humano do
quatro elementos (água, ar, terra rejogo: o ser humano recebe pelos
e fogo), animais, plantas, luz e sentidos impressões do mundo
sombra, cores, cinco sentidos, que reverberam dentro dele e ele
paixões humanas, matérias (óleo, rejoga manifestando em gestos os
elástico, plásticos, papéis...), aspectos mais característicos. O
arquiteturas, pinturas, formas, “corpo mimante” é, portanto, o
sons, palavras e músicas... corpo que expressa estes aspectos
O processo se dá pela que lhe remarcaram.
observação direta ou a partir da O rejogo pelo movimento
memória, expressando por corporal, Jousse denominou como
movimentos as dinâmicas do que mimodrama (termo adotado por
se está pesquisando. Estabelece- Lecoq). O rejogo, como destacou
se uma relação de identificação, Jousse, também ocorre por outros
“sendo” o elemento pesquisado, meios, ao que ele denominou de
“fazendo corpo com”. Como o ser mimoplastismo (rejogo por meio
humano não se torna a forma e a plástico, como a argila, por
matéria, ele toma as dinâmicas exemplo), mimografismo (rejogo
mais significativas enquanto se
6
move. Isto também é referido Ver o artigo: Jacques Lecoq e a
Antropologia do Gesto de Marcel Jousse
(SCHEFFLER, 2019).

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pelo grafismo, como o desenho), (do corpo, da mão sobre uma
fonomimismo (rejogo pelo gesto matéria, da voz, etc). Estas
da vocalização), entre outros manifestações não buscam a
termos. imitação, mas o mimismo. Lecoq
Na prática pedagógica do buscava não o mimo da forma, mas
LEM, as atividades transitam da o mimo da dinâmica (que envolve
experimentação corporal para a para ele o ritmo, o espaço e a
transferência (ou transposição) a relação de forças: atração e repulsão
uma expressão plástica ou gráfica - puxar e empurrar) (Les deux
que novamente pode ser voyages, 2008).
transposta para o movimento Teoricamente, também se
corporal Trata-se de explorar e pode encontrar aporte em Gaston
manifestar as dinâmicas mais Bachelard. Em O ar e os sonhos:
remarcáveis dos elementos. ensaio sobre a imaginação do
Toda expressão humana se movimento, ele defendeu a
dá pelo gesto, variando a matéria questão da dinâmica como central
(ou suporte) sobre o qual ela se para o estudo do movimento,
manifesta. No LEM, são propostas desenvolvendo os conceitos de
atividades de movimento corporal, imaginação dinâmica e imaginação
desenho, pintura, colagem, material. (BACHELARD, 1990).
modelagem, escultura, maquetes e
estruturas arquitetônicas em
escalas portáteis, todos
compreendidos como construções,
variando-se materiais, dimensões
(bi ou tridimensionais) e/ou escalas
(manual, corporal, arquitetural).
Lecoq (1995; 2010) se referiu
a isto como método Mimodinâmico.
O método se apoia: na sensibilização
dos sentidos, na memória, na
intuição, na manifestação das
dinâmicas mais essenciais pelo gesto Figura 1 - O conto O homem de areia, de Ernest
Hoffmann, foi “rejogado” pelo movimento, como um

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mimodrama. Em seguida, o mimodrama foi no deslocamento, as direções
transferido para uma colagem em papel (páginas de
revistas sobre sulfite A3 e cola). Colagem de Ismael assumidas (centro e periferia,
Scheffler. (Fonte: arquivo pessoal)
movimentos centrífugos ou
O estado de calma ou o neutro
centrípetos, linearidades), os
Um dos temas que integram níveis de altura, os ritmos e suas
o programa do LEM é paixões e mudanças, as imobilidades, as
estados humanos. Este tema é amplitudes dos movimentos, a
desenvolvido tanto em pesquisas respiração, etc. Não são definidos
corporais quanto plásticas. Um absolutos sobre uma paixão-
pressuposto deste trabalho é o movimento, mas tendências. É
estado de calma, considerado por parte da pedagogia não
Lecoq como o ponto neutro a convencionar e estabelecer
partir do qual se pode explorar as modelos.
paixões e os estados. A calma é assumida como um
Um exercício de pesquisa estado referencial, “um estado
corresponde a algo bastante sem paixões, um estado neutro.”
simples: delimitando-se uma área (RODRIGUEZ VEGA, 1985: 34). Se
retangular, um pequeno número parte deste estado para ver aflorar
de pessoas adentra este espaço e características de cada paixão.
“se torna” uma paixão (ciúme, Outras pesquisas também
desejo, vontade, soberba, inveja, são feitas com estados
orgulho, vaidade...), rejoga se estabelecendo-se gamas, como o
deslocando pelo espaço. Sem a medo e a cólera, que possuem
utilização de objetos, sem o variações de intensidade, bem
delineamento de personagens, o como o trabalho sobre o riso
ator “é” a própria paixão (embora não seja considerado
pesquisada. Diferentes ritmos e uma paixão). Partindo-se de um
dinâmicas espaciais surgem estado neutro (de calma),
espontaneamente durante gradativamente o ator improvisa
improvisações. Enquanto ele age, de forma crescente. Na gama do
outros observam e realizam medo, por exemplo, tende-se a
constatações das características, perpassar pela desconfiança,
considerando os percursos feitos receio, temor, medo, pavor e

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pânico. Os exercícios não passam respiração e afirmou que o riso
por apelos psicológicos, mas pode ser atingido acionando-se a
exploram as mudanças de mecânica corporal.
respiração e tensão muscular, No que concerne à
observando-se as dinâmicas de transferência para uma expressão
interação com seu próprio corpo, arquitetural ou cenográfica, pode-
com outras pessoas, as se exemplificar com o exercício
sonoridades e as movimentações denominado de percurso de
do corpo no espaço. paixões ou estados. Em pequenos
No trabalho com os grupos, são definidas três paixões
diferentes níveis do riso, foram ou estados (que não de “famílias”
explorados oito momentos: 1) próximas, isto é, com diferentes
olhos se iluminam; 2) sorriso; 3) características). Utilizando objetos,
sorriso com dentes – boca cada grupo deve criar um percurso
entreaberta; 4) sorriso com a ser atravessado.
respiração evidente; 5) sorriso A articulação consciente dos
com respiração evidente e voz; 6) elementos constatados na
começando a se bater; 7) batendo pesquisa corporal inicial é que
no outro; 8) tombando. possibilita uma representação
Em aula vivenciada no ano visual (plástica ou arquitetônica)
letivo de 2010-2011, o professor que pode despertar o ser humano
Jos Houben fez algumas a um estado ou sujeitá-lo a
considerações sobre o riso. Falou vivenciar determinadas
que o espaço do riso é caótico, características de uma paixão. No
pois o espaço é destruído, não se exercício, sem receber explicações
mantendo em ordem. Falou que o ou direcionamentos, o “visitante”
espaço é desestabilizado, existindo deveria atravessar o percurso-
uma busca pelo chão, ruindo. instalação de cada uma das
Observando, pode-se perceber que paixões e vivenciar a dinâmica
o riso começa pelo espaço da delas fisicamente.
cabeça, seguindo pelo peito, indo Na vivência em 2010-2011
à bacia e depois ao chão. Ele no LEM, os grupos utilizaram todo
destacou a importância da tipo de mobiliário e objetos

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disponíveis na sala (bancos, espaço para a provocação da
banquetas, cadeiras, mesas, dinâmica, isto é, transpor de
móveis cenográficos, colchões, forma visual as relações espaciais
colchonetes, etc). Finalizada a e condicionar o corpo de quem
travessia pelas instalações, quem transita. Em seu artigo de 1970,
percorreu deveria identificar as Le corps e son image, Lecoq
paixões a partir de sua experiência argumentou neste sentido: “Os
corporal. Tanto as alternativas espaços construídos predispõem a
corretas quanto as erradas eram certos gestos ou anulam o desejo
analisadas com a professora de lhes fazer [...]. Os espaços
Pascale Lecoq, que orientava o construídos obrigam. Existem
atividade, sobre o que existia de portas baixas para fazer as
características nas construções pessoas se curvarem, e outras
que levavam a propor tal altas para crescer, as portas de
alternativa, o que uma possuía escravo e as portas de rei.” (1970:
diferente de outra. Nas CXXXVII).
considerações, também foi Este é um dos aspectos
pontuada a diversidade de fundamentais da pesquisa iniciada
“escritas” plásticas utilizadas e as na Escola de Arquitetura e
semelhanças, bem como a prosseguida no LEM: a pesquisa
influência das cores em alguns sobre a relação do corpo com os
materiais utilizados, assim como espaços construídos (LECOQ, 1995).
os tipos de materiais dominantes:
O equilíbrio de forças
madeira, ferro, plástico, espuma,
tecido, etc. As primeiras
experimentações corporais
realizadas no LEM estão
relacionadas a análise de duas
ações: puxar e empurrar [tirer e
Figuras 2, 3 e 4: Percurso pela instalação que
condiciona fisicamente a determinadas paixões.
pousser]. Por meio de diversos
Registro de algumas proposições no LEM, turma exercícios o tema é explorado e
2010-2011. (Fonte: arquivo pessoal).
serve de referência ao longo de
O exercício do percurso
todo ano letivo.
exige: pensar na concretização do
As ações de puxar e

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empurrar estão ligadas à Conforme Jacques Lecoq, é o
pedagogia de Lecoq desde os “motor direcional” (1987, p. 103).
primeiros anos de sua escola em São estas ações que estabelecem
Paris, dentro da análise do a tensão da verticalidade, no jogo
movimento. Lecoq viu a partir de impulsão contrária à tração da
destes dois movimentos, a gravidade sobre o corpo. A tensão
dinâmica de atração e repulsão, de corresponde ao embate entre
acolhimento e rejeição, muito mais essas duas ações antagônicas. A
do que movimentos mecânicos oposição das duas forças é o que
funcionais - viu uma dramaturgia gera a intensidade que permite
que aflora da dinâmica: “puxar, atingir o equilíbrio e assim obter a
empurrar não está apenas imobilidade das formas contra a
reservado para o transporte de força da gravidade. A oposição é
móveis, mas também amar e entendida como fundamental para
odiar, dar e receber, se imprimir e gerar o equilíbrio e estabilidade de
se exprimir. As ideias, as opiniões, uma estrutura.
os amores nascem e morrem, se O exercício O equilíbrio do
lançam e caem num ritmo que é o platô, descrito em O corpo poético
da vida.” (LECOQ, 1967, p. 7). (2010: 199 a 204) e que aparece
Puxar e empurrar é no documentário Les deux
diretamente aplicado no LEM em voyages, é proposto para
outras duas vertentes: para a trabalhar no curso de formação de
análise do andar e para o trabalho atores a noção de coro. É
de estruturação de construções. considerado como “um dos mais
Puxar e empurrar belos exercícios inventados na
corresponde, na perspectiva Escola” (LECOQ, 2010: 199). No
lecoquiana, às grandes leis do LEM, ele é explorado com um
movimento. Está no sentido compositivo.
funcionamento do corpo (na Um platô retangular deve ser
respiração, no coração, no imaginado como em equilíbrio
aparelho digestório) assim como sobre um eixo central. Uma
no andar e na luta contra a pessoa entra no espaço, tomando
gravidade, bem como na natureza. um lugar central que permite

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certos movimentos sem provocar oito pessoas estejam no jogo.
uma “inclinação”, percebendo o Em Sintaxe da linguagem
espaço, conservando o platô em visual, Donis A. Dondis (2003),
equilíbrio. Saindo desta região considerando os estudos da
central, ela colocaria o platô em Gestalt sobre a percepção, utiliza
desequilíbrio, provocando uma termos semelhantes aos
inclinação. Assim, a entrada de empregados no LEM: equilíbrio,
uma segunda pessoa seria tensão, atração e agrupamento.
necessária para restabelecer o Segundo a autora, o
equilíbrio, devendo se posicionar equilíbrio é a mais importante
em um lugar favorável para este influência tanto psicológica quanto
fim, em relação à primeira pessoa. física sobre a percepção humana,
Esta entrada, então, estabelece sendo a referência visual mais
uma dinâmica de relacionamento. forte, tanto em nível consciente
Esta pessoa assume o controle da quanto inconsciente. Ela destaca
cena. Assim, ela se desloca pelo que o senso intuitivo de equilíbrio
platô para diferentes lugares, em é inerente às percepções do ser
diferentes níveis de altura, com humano. Parece ser este aspecto
variações de ritmos, a primeira que a pedagogia lecoquiana faz
pessoa deveria então reagir para apelo: sendo inerente e
estabelecer o equilíbrio, inconsciente, pode-se utilizá-lo
deslocando-se. Quando a primeira exercitando a intuição.
pessoa decide não mais responder Dondis explica que a
ao desequilíbrio, é necessária a colocação de um ponto ao centro
entrada de uma terceira que de um retângulo corresponde a
restabelece o equilíbrio e passa a um equilíbrio simples e estático.
ser a condutora, devendo os Mas se colocado mais próximo a
outros dois reagir para manter o uma das laterais, gerará um
equilíbrio. Assim, até que juntas desequilíbrio. Para harmonizar, a
decidam não reagir, surgindo a tendência é a busca pela simetria
necessidade de uma quarta pessoa bilateral e o contrapeso, um tipo
entrar no platô. Isso segue de formulação das menos
sucessivamente até que sete ou complicadas que produz um efeito

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ordenado e organizado, atingindo
um estado de equilíbrio ideal.
Figura 5: Exemplos: equilíbrio simétrico; equilíbrio
No exercício do equilíbrio do com variações de peso e tamanho; equilíbrio com
platô, a proposta é de se criar um variação de tamanho, peso e posição. (Fonte:
DONDIS, 2003)
equilíbrio orgânico no espaço, não
É rumo a assimetria que a
necessariamente geométrico.
orientação do exercício do
Lecoq relatou (2010) que há uma
equilíbrio do platô visa conduzir os
tendência a formações
alunos, pois assim que surge um
geométricas elementares: três
equilíbrio, alguém deve se mover
pessoas tendem a se posicionar
para que o desequilíbrio surja e o
em triângulo, quatro em
movimento aconteça.
quadrado, cinco num círculo. Mas
Após algumas rodadas do
esta não é a única solução ao
jogo do platô, outra regra passa a
desafio:
ser incorporada. Se antes uma
Daí a pesquisa de uma
repartição diferente dos pessoa equivalia em peso à outra
lugares, com ritmos capazes
de fazer viver situações
pessoa, a partir de então quem
dramáticas. Um ator pesa conduz passa a ter o mesmo peso
mais na periferia do
praticável [platô] do que no que todos os demais juntos. Cada
centro, daí a necessidade de
pessoa que entra, provoca,
uma distribuição diversificada
dos lugares para equilibrá-lo. consequentemente, um
Estar progressivamente de
acordo com o tempo, com o reagrupamento de todos os
espaço e com os outros, tal é
demais. Assim, segundo Lecoq,
a aposta desse jogo. (LECOQ,
2010: 201). surge o coro diante de um herói.
Dondis, por sua vez, afirma
que “é mais dinâmico chegar a um
equilíbrio dos elementos de uma
obra visual através da técnica da
assimetria” (2003, p. 43), que não
é tão simples, envolvendo
variações visuais de peso,
tamanho e posição. Figura 6: Equilíbrio do platô: quando um é igual a
muitos. (Fonte: imagem captura do documentário
Les deux voyages de Jacques Lecoq)

Em um primeiro momento do

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jogo, pode-se expressar a forças de atração.
presença dos jogadores com a Nas construções realizadas
expressão numérica [1 = 1 = 1]. durante o LEM 2010-2011,
Com a proposta de variação do Belekian e Pascale Lecoq
exercício que sugere que quem observavam regularmente este
conduz tem peso igual a todos os tipo de aspecto, o caráter unitário
demais, seria possível expressar das construções, se havia ligação
assim: [1= 1+1]. Isto seria uma entre os elementos ou se estavam
maneira de convencionar que o como fragmentos dissociados,
jogo aconteceria entre uma verificavam a tensão, tanto em
unidade simples (condutor ou construções tridimensionais
herói) e uma unidade composta quando bidimensionais.
(grupo conduzido ou coro). Neste A assimetria é investigada no
ponto, pode-se estabelecer nova LEM e é reforçada a ideia de que a
relação com a Gestalt pela lei do dinâmica não é nem a simetria
agrupamento, conforme Dondis se nem o equilíbrio, mas justamente
refere. a luta de dois elementos, a
Conforme ela, o ser humano tensão.
tem necessidade de construir Dinâmica, é o grande
conjuntos a partir das unidades. objetivo do trabalho do LEM, nos
Assim, dependendo da distância trabalhos corporais e construções.
que separa dois pontos, pode-se Lecoq, numa das ementas da
ter a sensação deles se repelirem ENSAPLV, assim esclareceu seu
ou se atraírem se harmonizando. entendimento de dinâmica:
No que tange ao coro, Lecoq “relação de forças, de tensões, e
ressalta que ele pode se dissolver de pressões que caracterizam o
dependendo da distância que seus que vive: o Movimento.” (UNITÉ,
integrantes se posicionam. Dondis 1982: 160).
também escreve sobre como o Muito da pedagogia
olho humano tende a completar as lecoquiana, especialmente do LEM,
conexões que faltam, ligar os está baseado na questão da
diferentes pontos, estabelecer tensão. Dondis (2003) afirma que
relações visuais em torno de a tensão ou sua ausência é o

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primeiro fator compositivo. estudo dos movimentos de puxar
É interessante reconhecer e empurrar. A partir deste
que no exercício do equilíbrio do trabalho, diversas atividades
platô as sensações de atração ou derivam no LEM. O entendimento
repulsão e constituição de da marcha em distinção aos
conjunto são vivenciadas andares é fundamental.
diretamente pelo corpo como A marcha é o movimento
matéria e, indo além, como biomecânico desprovido de
matéria dramática, aspecto qualquer emoção ou intenção,
aplicado tem todas as demais uma descrição de um ideal
expressões construídas. mecânico de todos os movimentos
Sublinhe-se ainda, que todo que possibilitam o deslocamento.
pensamento sobre forma, sempre Lecoq considerava a “ideia”
é proposto pela forma-movimento, da marcha como um ponto de
entendida nesta associação referência, que não existe na
indissociável. realidade, sendo um esquema
necessário para compreender as
diferenças e nuances dos andares
individuais (LECOQ, 1998).
Em relação à marcha
(inexistente) existem apenas os
andares reais e “errados”,
“defeituosos”, “impuros”. Estes,
por suas diferenças em relação à
marcha, são movimentos
orgânicos, marcados pelas
Figura 7: Composição no interior do cubo (40cm), características anatômicas e
estabelecendo diferentes relações de tensão entre
objetos simples. A composição deveria considerar ser fisiológicas particulares, pelos
observada por cada uma das faces abertas.
(Materiais: madeira, papelão, fio de nylon e tinta
estados emocionais, pelas
acrílica). Trabalho de Ismael Scheffler. (Fonte: personalidades, pelas culturas,
arquivo pessoal)
pelas individualidades. “O neutro,
A economia de ações físicas
ele não é neutro, ele tende ao
A análise do andar segue o neutro. Significa que o neutro

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absoluto não existe.” (BELEKIAN, construindo personagens em
2011). Segundo Krikor Belekian: drama. Se, por um lado, na
pedagogia de Lecoq o termo
quando se estuda a marcha,
não se estuda apenas a neutralidade vai aparecer
marcha, se estuda também
os andares, isto é, a marcha
originalmente como a designação
é o neutro dos andares. de um tipo de máscara (neutra), o
Disto, o aluno compreende o
que é uma marcha mecânica, princípio está presente de forma
compreende o que é um
muito mais disseminada em todo o
andar dramático, compreende
como o corpo neutro reage, fundamento.
compreende como o corpo
dramático reage. (BELEKIAN, A neutralidade é um ponto
2011).
ideal almejado, é um referencial
Um dos princípios utilizados de economia de movimentos para
largamente no LEM é o princípio o corpo (para melhor perceber o
da economia: o mínimo para o movimento) e a calma (para
máximo. Uma maneira melhor perceber as variações das
fundamental de trabalhar, isto é, paixões). São referenciais para
por meio da máscara neutra: permitir perceber as variações
“Quando dizemos ‘economia do (LECOQ, 1998).
movimento’, é o movimento que O processo de mimodinâmica
está ali, que é justo em razão do está atrelado a um processo de
tempo, este momento dado. E economia, na medida em que visa
todo o resto, após, é excesso. É captar as dinâmicas essenciais que
interessante conhecer. É por isso se destacam, por exemplo, nas
que trabalhamos sobre a máscara labaredas de uma fogueira ou em
neutra na escola e no LEM.” um touro. Na medida em que das
(LECOQ, Pascale, 2011). labaredas se capta apenas os
Se um dos objetivos da movimentos mais característicos
máscara neutra é perceber melhor (linhas, ritmos, amplitudes e níveis
o corpo do ator e trabalhar na espaciais, concentrações de força,
limpeza de seus gestos, outro será etc), se está abstraindo aquela
conduzi-lo a um processo posterior imagem.
de dinamizar seu corpo, atribuindo A mimodinâmica é, portanto,
acentos, ou de personalizar, um processo de sintetização, de

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economia. Lecoq exemplifica: pudessem compreender uma
abstração, o artista deveria estar
Picasso traçando as linhas de
um touro, mima nele sempre em referência com o real
inconscientemente o touro e
recolhe uma essencialização
pois “se não há real na abstração,
de todos os touros que ele viu isso não tem nenhum sentido.”
e que sua sensibilidade física
aderiu. Estas linhas (LECOQ, 1998).
portadoras de força, de
No LEM, este princípio de
impulso, misturam cheios e
vazios. Elas escapam dele, economia é critério para
transformadas pela
genialidade do artista. (1995: aperfeiçoar não apenas o
49)
movimento corporal, mas também
O mínimo para o máximo eliminar todo decorativismo visual
também é o princípio para a gratuito, em uma sintetização das
abstração, conforme Donis A. formas. Este princípio basilar, se
Dondis afirma: inicialmente era aplicado como
uma norma para a conscientização
é o começo de um processo
de abstração, que vai deixar corporal do ator, no LEM também
de lado os detalhes
irrelevantes e enfatizar os é referência para todo trabalho
traços distintivos. O processo plástico realizado.
de abstração é também um
processo de destilação, ou
seja, de redução dos fatores
visuais múltiplos aos traços
mais essenciais e
característicos daquilo que
está sendo representado.”
(2003: 90).

A abstração surge como


decorrência da redução do detalhe
visual a seu mínimo: “Em termos Figura 8: Pequena estrutura satelizada. Exercício de
construção considerando sempre três pontos de
visuais, a abstração é uma conexão entre cada vareta, buscando utilizar o
mínimo de varetas. (Materiais: varetas de madeira e
simplificação que busca um cola quente). Trabalho de Ismael Scheffler. (Fonte:
arquivo pessoal)
significado mais intenso e
condensado.” (DONDIS, 2003: Considerações finais:
95). Lecoq defendia o vínculo De forma rápida e bastante
entre a abstração e a realidade. pontual, foram abordados quatro
Ele afirmava que para que as importantes aspectos da proposta
outras pessoas fossem tocadas e pedagógica desenvolvida no

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Laboratório de Estudos do referências para Lecoq, como
Movimento: o método de Georges Hébert e seus estudos da
transferências, o estado de calma educação física, Paul Bellugue e
e o princípio da neutralidade, o seus estudos nas artes visuais em
equilíbrio de forças, a economia de relação ao corpo, Marcel Jousse e
movimentos. sua antropologia do gesto.
Observando-se os aspectos O processo no LEM requer do
apontados, é possível reconhecer aluno o despertar de sua
como estes estão sensibilidade corporal e a
significativamente valorização da intuição visual.
correlacionados: a apreensão de Muitos temas tratados abrangem
um dos aspectos envolvidos princípios dos estudos da Gestalt
contribui para a compreensão dos da forma, aqui pontuados a partir
demais. O mimo, segundo Lecoq, de Donis A. Dondis, aplicados na
se torna elemento essencial para a formação e produções de artes
compreensão destes aspectos, visuais, design e arquitetura. Não
bem como os estudos sobre a por acaso, o LEM é considerado
mecânica do movimento das ações como uma escola do olhar.
de puxar e empurrar e o andar. Diferentemente de propostas
A neutralidade também pode pedagógicas que tomam as “leis
ser percebida como um parâmetro da Gestalt” como princípios a
fundamental, seja pelos exercícios serem assimilados externamente
com a máscara neutra, pela pelo estudante, há no LEM a
calma, pelo entendimento do prerrogativa de um ensino a partir
movimento mecânico, distinto dos de metodologias ativas para que o
movimentos dinâmicos, e estes aluno descubra pelas próprias
dos movimentos poéticos. É constatações os princípios que,
importante ressaltar que o significativamente, podem ser
princípio do mínimo para o acessados pela percepção sensível
máximo, significativamente e pela intuição. Percebe-se assim,
apregoado no LEM, também é como princípios pedagógicos da
base fundamental de outros Escola Nova são adotados na
estudiosos que se tornaram pedagogia lecoquiana, tanto

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aplicados no LEM quanto na e 16 de jun. de 2011. 3 arquivos de
Áudio do Windows Media (.WMA) (149
formação de atores.
min.) Francês. Entrevista.
O LEM possui uma complexa
DONDIS, Donis A. Sintaxe da
estrutura pedagógica que se linguagem visual. São Paulo: Martins
desdobra para além do aqui Fontes, 2003.

exposto. Afirmá-lo como um LE LABORATOIRE d'Etude du


laboratório de cenografia Mouvement. Ecole Internationale de
Théâtre Jacques Lecoq. Página da
experimental, significa tomar com internet. Disponível em:
conceito “cenografia” de forma http://www.ecole-
jacqueslecoq.com/fr/lem_fr-
muito abrangente, para além da
000004.html . Acesso em: 14 ago.
compreensão de produção de 2019.
cenários: “A cenografia deve LECOQ, Jacques. Le mouvement et le
oferecer ao jogo do ator um théâter. Atac Information, n.13, p.07,
1967.
espaço favorável. Ela não pode ser
um fundo decorativo ou LECOQ, Jacques. Le corps et son image.
Architecture d'Aujourd'hui, n. 152, p.
simplesmente significante, mas CXXXVI e CXXXVII, oct./ nov. 1970.
engajar um espaço de jogo.”
LECOQ, Jacques. (Org.). Le Théâtre
(LECOQ, 1995: 49). Mesclam-se du Geste: mimes et acteurs. Paris:
linguagens, desterritorializam-se Bordas, 1987.

as produções, instiga-se a LECOQ, Jacques. L.E.M. Mouvement et


espace. Actualité de la Scénographie, n.
criatividade na busca pela
74, p. 48-49, 15 juin 1995.
construção de imagens potentes
LECOQ, Jacques. Une conversation avec
que tragam plenitude ao olhar do Jacques Lecoq : De la Leçon de théâtre
espectador. comme ouverture vers la quête d’un
"ailleurs" qu’on transmet sans le
posséder... ou l’art de régler les moteurs
Referências bibliográficas invisibles du visible! Entrevista concedia
a Christophe Merlant em 1998.
BACHELARD, Gaston. O ar e os
Disponível em:http://ddata.over-
sonhos: ensaio sobre a imaginação do
blog.com/xxxyyy/1/22/65/75/Jeannette
movimento. São Paulo: Martins
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Fontes, 1990.
1998.pdf Acesso em: 14 ago. 2019.
BELEKIAN, Krikor. Entrevista a Ismael
LECOQ, Jacques. O corpo poético:
Scheffler com a participação de
uma pedagogia da criação teatral.
Antoine Blanchet na École
Trad.: Marcelo Gomes. São Paulo:
International de Théâtre Jacques
SENAC São Paulo; SESC SP, 2010.
Lecoq. Paris, 14 de abr., 26 de maio.

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Windows Media (.WMA) (85 min.) SCHEFFLER, Ismael. Jacques Lecoq e
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JOUSSE, Marcel. L’anthropologie du
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diplomação/ Memoirie de 3ème cycle Mascaramento nas Artes da Cena].
(Graduação em Arquitetura) - Unité Anais do X Congresso da ABRACE -
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Estudo do Movimento e o percurso de
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Universidade do Estado de Santa SCHEFFLER, Ismael. O Laboratório de
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Abrace - Associação Brasileira de
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arquitetos: laboratórios de cenografia
Cênicas, 08 a 11 de outubro de 2012,
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Porto Alegre, RS, v. 13, n. 1, 2012.
v. 4, n. 2, jul.-dez. 2018a, p.34-64.
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https://www.revistas.ufg.br/artce/arti
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ago. 2019.
UNITÉ Pédagogique d’Architecture nº
SCHEFFLER, Ismael. Jacques Lecoq e
6. École d’Architecture de Paris La
o Laboratório de Estudo do Movimento
Vilette. Activités d’Enseignement
(LEM): da escola de arquitetura a um
1982-1983. École d’Architecture de
espaço autônomo de cenografia
Paris La Vilette. Ago. De 1982. 391p.

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Mesa Redonda
ARQUITETURA, TEATRO E CULTURA

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Flávio Império, poeta do caracterizar os ambientes,


espaço: a reforma do Teatro principalmente nos séculos XX e
Oficina e as cenografias XXI. Percebe-se que o espaço
inusitadas
contemporâneo é caracterizado,
1
Carlos Eduardo Ribeiro Silveira também, como herança direta das

Em estudos anteriormente experimentações de nomes como

realizados2, desenvolvidos a partir de Le Corbusier e Walter Gropius

de conceitos próprios da área de (no século XX), como

Processos e Técnicas de representantes do Movimento

Construção Teatral, venho Moderno europeu, estabelecendo

discutindo questões que envolvem relações com o momento de

as variadas representações dos ruptura com o Modernismo,

fenômenos da virtualização e quando surgem os novos

construção do espaço, seja este paradigmas que caracterizam a

arquitetônico, teatral, cênico ou pós-modernidade (século XIX).

mesmo urbano, como uma das Em minhas pesquisas, procuro


possibilidades que possam a vir trabalhar com o binômio ‘tempo’ e
‘espaço’, por considerar os mesmos
1
Arquiteto e urbanista. Professor Adjunto
do Departamento de História e Teoria da como conceitos fundamentais para
Arquitetura da Universidade Federal de Juiz
a expansão da realidade aplicada à
de Fora. Doutor em Artes Cênicas.

2
fruição dos espaços gerados pela
SILVEIRA, Carlos Eduardo Ribeiro.
“Algumas relações entre o espaço teatral e arquitetura, especificamente aquela
o espaço público urbano.” (in:) Caderno de
resumos / 2ª Jornada Nacional Arquitetura, voltada para os teatros. Neste tipo
Teatro e Cultura. Coord. Geral: Evelyn
Furquim Werneck Lima. – Rio de Janeiro, de arquitetura, o aproveitamento
Brasil: UNIRIO, Laboratório de Estudos do
Espaço Teatral e Memória Urbana, 2014.
também deve ser pensado levando-
83p. Disponível em: < se em consideração o lugar
file:///C:/Users/acer/Downloads/caderno-
resumos-jornada-2014.pdf>. Acesso em: reservado para a plateia, fator
28/11/2018.
______. “O espaço reinventado: efeitos da determinante para a imersão dos
virtualização no século XXI.” (in:) Caderno
de resumos / 1ª Jornada Nacional espectadores durante o ato
Arquitetura, Teatro e Cultura. Coord. Geral:
Evelyn Furquim Werneck Lima. – Rio de dramático. Nesse campo de
Janeiro, Brasil: UNIRIO, Laboratório de
Estudos do Espaço Teatral e Memória
investigação, o autor de referência
Urbana, 2012. 65p. Disponível em: < utilizado é Jean Baudrillard e suas
file:///C:/Users/acer/Downloads/caderno-
resumos-jornada-2013.pdf>. Acesso em: teorias pós-modernas que
28/11/2108.

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abrangem a construção do Teoria da Arquitetura e dos
simulacro, não só em consequência Processos e Técnicas de
da ação dramática, mas também Construção Teatral, para esta
pela experiência de vivência pesquisa, investiga-se sobre o
sensorial das arquiteturas, formas, repertório do arquiteto Flávio
códigos, digitalidades, estéticas e Império (1935-1985). Império foi
objetos sem referência que se cenógrafo, artista plástico,
apresentam mais reais do que a figurinista, diretor e professor,
própria realidade, ou seja, são iniciando sua carreira na periferia
“hiper-reais”. de São Paulo como cenógrafo,
figurinista e diretor no grupo de
Estes estudos apontam que a
teatro amador da Comunidade de
edificação teatral contemporânea,
Trabalho Cristo Operário. Flávio
cada vez mais, lança mão dos
Império ganhou destaque através
recursos técnicos a serviço de seu
da linguagem aplicada às suas
arranjo, ratificando o emprego de
concepções sobre o espaço cênico,
tecnologias, particularmente o uso
num momento em que o
de vídeos e projeções, construindo
naturalismo da encenação
elementos que configuraram o
predominava no país.
espaço cênico em que a
Em poucos anos Flávio se tornou
hibridização pode ser percebida o nome mais importante da
cenografia paulista. [...] A
como fruto do surgimento da transformação empreendida por
Flávio foi a desnaturalização do
tecnologia digital e da nova
cenário realista do drama
paisagem cultural, em que o ser- burguês e a produção do novo
espaço cênico para o teatro épico
humano está mergulhado em uma e brechtiano no Brasil.3

realidade de constantes Especificamente, interessa


interferências midiáticas. Contudo, neste artigo analisar a atuação de
a maioria dos espaços teatrais Império entre o final dos anos de
ainda se vê presa à configuração 1960 e início dos 1970, tendo a
espacial italiana. reforma do Teatro Oficina (1967)
como ponto de partida, pois, em
Seguindo a metodologia e
lógica de análises já desenvolvidas 3
ARANTES, Pedro Fioravante. Arquitetura
dentro dos universos da História e Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo
Lefèvre, de Artigas aos mutirões. 3. ed. São
Paulo: Editora 34, 2011, p. 60

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termos de composição da lógica adotadas por cada um. Assim
procurei resgatar as contribuições
projetual de arquiteturas teatrais, e particularidades de Império em
sua atuação dentro e fora do
é possível notar os traços Grupo. Império sempre se
característicos do gênio criador de interessou por diversas áreas
artísticas, sendo que seu
Império. O projeto de reforma do currículo envolve o trabalho com
direção teatral, cenografia,
Oficina foi desenvolvido por Flávio arquitetura cênica, desenho e
pintura, arquitetura e ensino de
Império e Rodrigo Lefèvre desenho e linguagens visuais.5
A reforma foi pensada como um
espaço de caráter provisório Nesse sentido, o Grupo
instalado na frente do estreito e
comprido lote urbano da representou uma visão política
companhia teatral, preservando
radical em termos de produção no
o antigo casarão da parte
posterior do terreno, que seria campo da arquitetura e, também,
utilizado como apoio à sala de
espetáculos (camarins, nas artes. Flávio Império
depósitos, salas de ensaio).4
destacou-se por sua obra e
Em 1958, três alunos da formação peculiares.
Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP, Flávio Império, Tomando parte de produções

Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro em grupos como o Teatro de

deram corpo ao Grupo Arquitetura Arena e Teatro Oficina, Império

Nova, o qual, nas palavras de mergulha no tema da

Gorni, transmitiu que espacialidade e da visualidade da

A intensa colaboração entre os cena como elementos constitutivos


três arquitetos durante os anos
essenciais ao espetáculo e ao
60 representa uma radicalização
política quanto aos processos de entendimento do espaço teatral.
produção na arquitetura e nas
artes de modo geral. O seu Busca diálogo com o legado de
trabalho em conjunto se
estendeu após a graduação - em Adolphe Appia e Gordon Craig,
1961 - e quase imediata transitando com extrema liberdade
admissão como docentes na
referida faculdade - em 1962. A entre o palco italiano convencional
maior parte da colaboração do
grupo está centrada no decorrer
da década de 60. Muito embora 5
tivessem vínculos de diversas GORNI, Marcelina. Flávio Império:
arquiteto e professor. Dissertação de
naturezas, os três arquitetos
mestrado apresentada ao Programa de Pós
eram extremamente diferentes
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
quanto aos procedimentos
Escola de Engenharia de São Carlos da
criativos e opções políticas Universidade de São Paulo, como parte dos
requisitos para a obtenção do Título de
4
Disponível em: < Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
http://www.flavioimperio.com.br/projeto/ Orientador Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro
505891>. Acesso 23/12/2018. de Andrade. São Carlos, 2014, p. 01.

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e o uso de espaços cênicos companheiros de trabalho e com o
alternativos. Além do endurecimento do regime
conhecimento adquirido em seu ditatorial militar, instaurado desde
processo de leitura espacial, tira 1964. Nessa época, Império
partido das diversas situações conhece e estreita relações com o
arquitetônicas. grupo teatral norte-americano
Living Theater, que lhe
Em suas duas primeiras
acrescentou subsídios no que
criações junto ao Teatro Oficina,
tange ao questionamento da
em 1962, Império produziu a
ordem social vigente.
cenografia para as montagens de
“Um Bonde Chamado Desejo” e Ao final da década de 1970,
“Todo Anjo é Terrível”. Tais Império deixou a USP e se dedicou
a viagens de cunho cultural, com
experiências junto ao Teatro de
viés de pesquisa artesanal, as
Arena e ao Teatro Oficina abriram- quais foram muito enriquecedoras
lhe um leque de possibilidades para seu experimentalismo
artístico. Já nos anos 1980, Flávio
para exercitar uma alternância de
Império voltou a lecionar, sem
soluções criativas, graças à deixar de lado sua curiosidade
diferença entre as linhas estético- pela produção artesanal observada
em seus inúmeros trabalhos
ideológicas abraçadas por cada um
artísticos ou em qualquer suporte
desses grupos. Os trabalhos junto que lhe despertasse o sentido
aos dois importantes grupos criativo.
paulistas, durante a década de Tendo em vista as questões
1960, foram determinantes na acima, buscamos inter-relações a
construção de seu embasamento partir das respostas plástica,
artístico e repercutiram em funcional e formal dadas à reforma
trabalhos futuros, tanto em teatro do Teatro Oficina, em 1967, e das
como em arquitetura. relações existentes entre o

O início da década de 1970 processo de criação de espaços

marca uma notável reviravolta no teatrais, performances e estética

seu trabalho artístico, período de espaços cênicos, a fim de gerar

coincidente com a saída do Brasil conhecimentos teóricos e práticos

por parte de vários de seus próprios da ordem da arquitetura


teatral, bem como da cenografia,

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“tendo como referencial teórico o Flávio Império foi um
conceito de cena entendida como arquiteto, cenógrafo e artista que
processo de criação autônoma e dominou códigos e linguagens
global, baseado na ideia de diversas relacionadas ao espaço,
6
pluralidade sígnica” e a sendo que sua extensa produção
bibliografia relacionada ao compreende importantes trabalhos
Movimento Moderno no Brasil. no campo da cenografia. Sua
primeira experiência profissional
Ao longo da pesquisa temos
num espaço cênico foi a
buscado recuperar e analisar o
elaboração da cenografia e dos
material iconográfico, técnico e
figurinos de “Morte e Vida
textual do arquiteto, artista e
Severina”, para o Teatro
cenógrafo, montando e
Experimental Cacilda Becker, em
catalogando o repertório teórico-
1960, antes mesmo de se graduar.
conceitual utilizado pelo arquiteto
Sérgio Ferro, ao assistir a essa
na sua experiência neste projeto,
montagem,
traçando paralelos com sua
conta que ficou convencido de
incursão pelo campo da cenografia que Flávio estava dando uma
espécie de confirmação do
e das artes, quando possível.
que deveria ser feito em
arquitetura: materiais simples
Paralelamente, temos buscado (saco de estopa engomado e
amassado nas roupas, papel
reconstruir e ratificar a poética e cola nas caveiras de boi)
existente no universo relacionado transfigurados pela invenção
lúcida convinham mais ao
à espacialidade da edificação nosso tempo [e lugar] do que
a contrafação de modelos
teatral projetada por Império, metropolitanos.7
dentro de seu repertório
A análise do conjunto da
específico, que inclui estética,
produção arquitetônica de Império
técnica, subjetividade,
por meio da concepção das
espacialidade e linguagem como
questões envolvidas na sua
métodos e processos de
compreensão espacial e em seu
construção.
pensamento arquitetônico levam
ao conceito de “miserabilismo” e
“poética da economia”, para além
6
Disponível em: <
http://www4.unirio.br/espacoteatral/linha
7
s-pesquisa.asp>. Acesso em: 28/11/2018 ARANTES, op. cit, p. 60

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de sua inserção no Grupo Sobre o “tombamento” do edifício
onde funciona o Teatro Oficina de
Arquitetura Nova, a saber: São Paulo pelo CONDEPHAAT,
meu parecer é totalmente
Tal constatação motivou-os a
favorável, por razões que se
lançar a plataforma de uma
encontram apoiadas na opinião
poética arquitetônica própria à de nossos historiadores e críticos
situação no conflito: “Do especializados quanto à
mínimo útil, do mínimo importância dos trabalhos
construtivo e do mínimo realizados pelo Grupo Oficina.
didático necessários, tiramos, Todos os registros existentes
quase, as bases de uma nova sobre seu pensamento, sua
estética que poderíamos atividade, repercussão e crítica
chamar a ‘poética da encontram-se documentados,
economia’, [...].” A poética da organizados e, em parte,
economia, entretanto, deve ser publicados pelo próprio Grupo
entendida não apenas como [...]. No edifício do Teatro Oficina
uma arquitetura realizada a todos esses sinais estão
partir de poucos recursos, mas completamente presentes: 1. A
estabelecida dentro das velha casa original nas suas
contradições entre capital e dependências de fundos: porão,
alpendrados e salas, cobertura e
trabalho no capitalismo.8
caixilharia de madeira. 2. Metade
Em 1966, um incêndio da frente transformada em salas
de espetáculos, com suas
destruiu a sede na qual funcionava paredes de contorno descascadas
de revestimento, revelando no
o Teatro Oficina, em São Paulo. A assentamento dos tijolos suas
funções primeiras: arcadas dos
adaptação da edificação da década porões, paredes de apoio do
de 1920 para teatro era projeto do telhado, intersecção de paredes,
etc. O “teatro” propriamente dito,
arquiteto Joaquim Guedes, sendo o “lugar da ação teatral na sua
relação palco-plateia, [...]. 3. A
que as causas do incêndio situação urbana do edifício em
bairro de periferia de centro: o
permanecem desconhecidas.9 O BIXIGA ou Bela-Vista.10
reconhecimento do Teatro Oficina
Construída na década de
pode ser comprovado, para além
1920, em um casarão típico da
das inúmeras apresentações
arquitetura paulista daquela
ocorridas ao longo de sua história,
época, por imigrantes italianos, a
no Parecer de Tombamento
primeira sede para o Teatro
redigido pelo próprio Flávio
Oficina não se adequava ao
Império em 1982:
conceito de teatro do Grupo, o que

8 levou à reforma do edifício, com


Ibidem, p. 71
9
SILVA, Isabela Pereira Oliveira da, Bárbaros projeto de Guedes, que usou uma
Tecnizados: cinema no Teatro Oficina.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Atropologia Social, da
10
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Disponível em: <teatroficina.com.br/wp-
Humanas da Universidade de São Paulo, para content/uploads/2017/03/parecer-flavio-
obtenção do título de Mestra, 2006. imperio.pdf>. Acesso em: 21/12/2018.

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configuração tipológica de A relevância do Teatro Oficina
11
‘sanduíche’. Nessa configuração, não está pautada somente nas
o palco ficava situado entre duas suas ações durante o regime da
áreas de plateia, alocadas de ditadura militar, mas
frente uma para a outra, principalmente na sua concepção
permanecendo desta forma até o de teatro: um instrumento
incêndio em 1966. No início da catalizador de lugares, tempos e
década de 1980, o parecer cenas.
elaborado por Império (acima Seu objetivo era transformar a
cena cultural brasileira inserida
citado) para o Órgão Estadual de na nova realidade brasileira.
Eles desejavam um diálogo
Preservação do Estado de São mais próximo entre público e
Paulo, reitera a prática do Teatro arte, ao desmontar o conceito
de teatro convencional, com o
na intenção de conferir uma palco apartado do público, e
atuar junto do público.
acepção particular de Começaram por mudar a
encenação a fim de atuar mais
transformação inalterável ao próximos ao público,
edifício, como se vê oferecendo a oportunidade da
integração entre atores e
público, conectando-se mais
É neste ponto que a lei, ao diretamente com a realidade
reconhecer este documento, não social.13
poderia mais ter dissociado o
valor imaterial do valor material Apagadas as chamas que
do Teatro Oficina. Império
impregnou oficialmente o edifício
colocaram a edificação original em
de vida ao mesmo tempo em que ruínas, Flávio Império é designado
eternizou o gesto dos artistas. para fazer o projeto de
Reconhece que aqueles gestos
são capazes de operar
reconstrução da edificação teatral.
transformações permanentes no Como poeta do espaço, com sua
espaço ao mesmo tempo em que sensibilidade e senso estético
o edifício é, e deve ser, capaz de
absorver as ações do tempo.12
peculiares, junto a Lefèvre,
concebem a nova edificação. A
plateia foi disposta em uma
arquibancada de concreto com
11
Ver Evelyn F. W. Lima. 2018. “Factory, acessos laterais. Já o palco, à
Street and Theatre: Two theatres by Lina Bo
Bardi”. (In:) Andrew Filmer; Juliet Rufford.
maneira italiana, contava com um
(Org.). Performing Architectures. Projects, círculo central giratório, criando
Practices, Pedagogies. 1.ed. London: uma nova configuração para o
Bloomsbury Methuen, 2018, v. 1, p. 35-48.
12
VERGUEIRO, Frederico. (Re)existência de
13
Lina Bo Bardi: em defesa do Anhangabaú da BREIA, Maria Teresa de Stockler;
FeliZcidade. Disponível em: Disponível em:< MINOZZI, Celso Lomonte. A cena brasileira
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ e o Teatro Oficina. 2006. Disponível em: <
minhacidade/14.158/4862>. Acesso em: http://www.cetup2016.wix.com/cetup-pt>.
21/12/2018. Acesso em: 21/12/2018.

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teatro, diferente da original, como Bo Bardi e equipe. “Surgia, em
descrevem os curadores do site de 1984, o ‘teatro-rua’: palco
Flávio Império
longitudinal em desnível ladeado
O palco, italiano, apresentava
pela plateia alojada em galerias de
uma plataforma central
giratória, e se interpunha entre tubos de aço desmontáveis que
a antiga construção e uma 15
hoje conhecemos.”
arquibancada de concreto, que
avançava até o alinhamento da
calçada; os acessos ao interior Desta forma, ao se constatar o
eram laterais e em meio-nível potencial criativo presente na
da plateia. Na perspectiva do
ator, o espaço afunilava em construção do acervo estético de
direção à rua com altura Flávio Império, pretende-se reforçar
crescente da arquibancada e
decrescente do forro e no que a principal intenção desta
encontro dessas superfícies era pesquisa se reporta à relação entre
instalada, em balanço sobre a
calçada, a cabine técnica de a resposta estética, técnica e formal
som e iluminação, equipamento do projeto de reforma do Teatro
funcional que entrava na
composição da nova fachada do Oficina, após um incêndio destruir a
teatro. Nesse palco estreou O edificação anterior, em 1966. A
Rei da Vela, de Oswald de
Andrade, com direção de José escolha dessa abordagem se dá
Celso Martinez Corrêa, pela forte presença do caráter
cenografia e figurinos de Helio
Eichbauer, marco da história da simbólico presente no projeto e no
dramaturgia nacional.14 traço de Império, além de marcar
Nos anos seguintes, as uma fase específica na sua vida
ocupações irregulares, a situação onde o arquiteto, juntamente com
político-econômica do país e uma Rodrigo Lefèvre, se envereda pela
disputa judicial deixaram o edifício busca constante por outros
em ruínas. Graças ao parecer caminhos relacionados à
elaborado por Flávio Império para representação e apreensão do
o Conselho do Patrimônio espaço; porém, sem abrir mão de
Histórico, Arqueológico e Artístico suas escolhas estéticas relacionadas
do Estado de São Paulo, teve início à “poética da economia” e aos
um novo projeto para o Teatro elementos-chave presentes no
Oficina, a cargo da arquiteta Lina vocabulário construído pelo Grupo

14
Arquitetura Nova.
Disponível em:
<http://www.flavioimperio.com.br/projeto
15
/505891>. Acesso em: 21/12/2018. Ibidem.

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Autores dedicados à Teoria e pertinentes dentro do contexto da
História da Arquitetura, criação subjetiva ligada a Flávio
especificamente sobre a produção Império, supõe-se ser importante
paulista correspondente ao trazer alguma definição de
período conhecido como cenografia, dentro do universo do
Modernismo, como Hugo Segawa cenógrafo Gianni Ratto (1999),
(1999), com sua obra de cunho pois a mesma é uma manifestação
histórico, e também crítico, na espacial que se encontra no meio
qual é possível obter informações do caminho entre a arquitetura e a
e dados relevantes da arquitetura arte. Com vistas a maior
brasileira de quase todo o século compreensão da fruição dos
XX. Segawa evidencia a espaços, busca-se a
existência, em cada momento da fenomenologia, pela ótica de
história, das diversas tendências teóricos como Merleau-Ponty,
projetuais que procuram caminhos (1999-2009) e Gaston Bachelard
próprios. Já Villanova Artigas (2000), que se destaca na geração
(2004) colabora para esta do ‘olhar que devaneia’, nos
pesquisa quando aborda sobre o passando a noção de um
processo dos seus primeiros contemplar poético, pois o olhar
escritos, que envolve suas aulas próprio do devaneio só se precipita
inaugurais, além de vários ensaios no mundo ao se deparar com
sobre o projeto da arquitetura síntese da poesia.
modernista. Pedro Fiori Arantes
Através da proposta de
(2011) aborda, numa pesquisa tão
Bachelard, o olhar poetizador
profunda quanto completa, as
dobra o objeto que admira dando
contribuições do Grupo Arquitetura
a ele os valores de uma
Nova para a construção do
imaginação, de uma outra
vocabulário técnico, estético,
realidade. É neste sentido que se
político e revolucionário das
pretende entender o ato de
últimas décadas da arquitetura
contemplar, ou seja, incorporado a
modernista paulistana. Contudo,
um ímpeto criativo, presentes na
uma vez que pretendo salientar
visualidade espacial sempre
outras abordagens que julgo
almejada por Flávio Império.

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Josette Féral esclarece sobre o para a discussão, já que o mesmo,
“teatro performativo” em grande parte das vezes, não
consegue conceber e elaborar toda
Performer, no seu sentido
schechneriano, evoca a noção de a logística que envolve o ambiente
performatividade (antes mesmo
da de teatralidade) utilizada por cênico, estabelecendo, dessa
Schechner e por toda a escola
forma, sua própria opinião a
americana. Mais recente que a
de teatralidade, e de uso quase respeito da experiência gerada da
exclusivamente norte-americano
(mesmo se Lyotard utiliza o relação palco-receptor.
termo), sua origem poderia ser
retraçada nas pesquisas Ainda sobre a percepção do
linguísticas de Austin e Searle, espectador e a fruição, os ensaios
que foram os primeiros a impor
o conceito pelo viés dos verbos de Jacques Rancière (2012)
performativos que “executam
uma ação”.16 consideram que estabelecer uma

Uma vez que se deseja a relação entre obras distintas pode

interseção entre os diversos se configurar em uma

campos de criação do espaço, por oportunidade para um

Império, a contribuição de Patrice distanciamento radical das

Pavis acerca da análise dos implicações teóricas que amparam

espetáculos (2010) mostra que os debates sobre as formas de

esse território ainda é um tema espetáculo teatral, as quais

pouco discutido, uma vez que os colocam corpos em ação diante de

pesquisadores que se aplicam ao um público. Sobre o “espectador

estudo não esclarecem a emancipado”, Rancière afirma que

metodologia utilizada. Além disso, “os pressupostos teóricos que

pesa a questão da abordagem ser põem a questão do espectador no

complexa para ser desenvolvida cerne da discussão sobre as

por uma só pessoa. Pavis também relações entre arte e política”17

contribui ao trazer o espectador, podem ser reunidos numa

ou usuário da edificação teatral, “fórmula essencial” que nomeia


por paradoxo do espectador.
16
FÉRAL, Josette. “Por uma poética da
performatividade: o teatro performativo.” Considero relevante também
Sala Preta, Brasil, v. 8, p. 197-210, nov.
2008. ISSN 2238-3867. Disponível em: destacar que
<http://www.revistas.usp.br/salapreta/art
icle/view/57370/60352>. Acesso em:
17
28/11/2018. RANCIÉRE, Jacques. O espectador
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238- emancipado. São Paulo: Martins Fontes,
3867.v8i0p197-210. 2012. p. 08

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A ênfase de sua crítica e a Referências bibliográficas
importância de ser lido recaem
sobre a análise que ele faz sobre AMARAL, Glaucia. Flávio Império em
a política da arte e da cultura cena. São Paulo: SESC, 1997.
contemporâneas. Os três
regimes estéticos – o ético, o ARANTES, Pedro Fioravante.
representativo e o estético – que Arquitetura Nova: Sérgio Ferro,
percorrem sua obra constituem a
Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de
filosofia política da qual se
Artigas aos mutirões. 3. ed. São
ocupa.18
Paulo: Editora 34, 2011.
A visualidade proposta por ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da
Império como um criador de Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify,
2004.
espaços também pode ser
BACHELARD, Gaston. A Poética do
analisada sob o prisma dos Espaço. Tradução Antonio de Pádua
Danesi, São Paulo, Martins Fontes,
estudos de cenografia de Pierre 2000.
Sonrel (1984), uma vez que o
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e
criador do espaço cênico pode ser simulação. Tradução Maria João
Pereira. Relógio d’Água, 1991.
entendido como artista,
BURIAN, Jarca. The scenography of
responsável pela identidade visual Josef Svoboda. Michigan: Wesleyan
da performance e também como University Press, 1971.

co-participante no processo de sua CARLSON, Marvin. Places of


Performance: the Semiotics of
concepção, elementos que são Theatre Architecture. Ithaca, Cornell
facilmente percebidos nos estudos University Press, 1989.

de caso aqui propostos. CORVIN, Michel. Jacques Polieri


criador de uma cenografia moderna.
O percevejo online. V. 8, n.1, 2016.1.
Disponível em:<
http://www.seer.unirio.br/index.php/
opercevejoonline/article/view/5775>

FERRO, Sergio. Arquitetura e


Trabalho Livre. São Paulo: Cosac
Naify, 2006.

GORNI, Marcelina. Flávio Império:


arquiteto e professor. Dissertação de
mestrado apresentada ao Programa
de Pós Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Escola de Engenharia
18
JULIANO, Dilma Beatriz Rocha; de São Carlos da Universidade de
HOULLOU, Jean Raphael Zimmermann. “O São Paulo, como parte dos requisitos
paradoxo do espectador em Rancière.” (in:) para a obtenção do Título de Mestre
Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v.8, em Arquitetura e Urbanismo. São
n.2, p.417-424, jul./dez. 2013. Disponível
Carlos, 2014.
em:<linguagem.unisul.br/paginas/ensino/po
s/linguagem/critica-
cultural/.../080218.pdf>. Acesso em:
28/11/2018.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 38 de 272


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HAMBURGUER, Amelia Imperio; POLIERI, Jacques. Scénographie:
KATZ, Renina. Flávio Império. 1. ed. théâtre, cinéma, télévision. Réédition
São Paulo: EDUSP, 1999. revue, corrigée et argumentée de
l’ouvrage publié en 1963 aux Editions
JAMESON, Fredric. Espaço e Architecture d’Aujourd’hui. Paris:
Imagem: teorias do pós-moderno e Editions Jean-Michel Place, 1990.
outros ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro:
UFRJ Editora, 1995. _____. «Le théatre kaléidoscopique».
(in:) Art et architecture, Aujourd’hui
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. N°17, mai 1958.
“Factory, Street and Theatre: Two
theatres by Lina Bo Bardi” In: Andrew ______. Scénographie. Sémiographe.
Filmer; Juliet Rufford. Org. Performing Paris: Denoel/Gonthier, 1971.
Architectures. Projects, Practices,
Pedagogies. 1ed. London: Bloomsbury ______. 50 Ans de recherches dans le
Methuen, 2018, v.1, p.35-48. spectacle. Paris: Biro Editeur, 2004.

LIMA, Evelyn Furquim Werneck, RANCIÉRE, Jacques. O espectador


“Espaços teatrais de Lina Bo Bardi. emancipado. São Paulo: Martins
Entre o Teatro Oficina e o Teatro Fontes, 2012.
SESC fábrica da Pompéia,” (In:) E. F.
RATTO, Gianni. Antitratado de
W. L. Espaço e Teatro. Do edifício
Cenografia: variações sobre o mesmo
teatral à cidade como palco. Rio de
tema. São Paulo: Editora SENAC, 1999.
Janeiro: 7 Letras, v.1, 2008, p.12-29.
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no
LIMA, Evelyn Furquim Werneck; Brasil 1900-1990. 3.ed. São Paulo:
MONTEIRO, Cassia Maria Fernandes. EDUSP, 2014.
Entre arquiteturas e cenografias. Lina
Bo Bardi e o teatro. Rio de Janeiro: SILVA, Isabela Pereira Oliveira da,
Contra Capa, 2012. Bárbaros Tecnizados: cinema no
Teatro Oficina. Dissertação
MARCONDES, Rogério. Flávio apresentada ao Programa de Pós-
Império, teatro e arquitetura 1960- Graduação em Antropologia Social,
1977: as relações interdisciplinares. da Faculdade de Filosofia, Letras e
Tese apresentada à Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Arquitetura e Urbanismo da de São Paulo, 2006.
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de doutor em SILVEIRA, Carlos Eduardo Ribeiro.
Ciências. Área de Concentração: Espaços cênicos: do ‘Teatro Total’ às
Projeto, Espaço e Cultura., 2017. tecnologias digitais. Tese
apresentada ao Programa de Pós-
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Graduação em Artes Cênicas, da
fenomenologia da percepção. Tradução Universidade Federal do Estado do
Carlos Alberto R. de Moura. 2.ed. São Rio de Janeiro, para o título de
Paulo: Martins Fontes, 1999. doutor em Artes Cênicas, 2012.
______. O visível e o invisível. SONREL, Pierre. Traité de
Tradução José Artur Gianotti e scenographie. Editora: Librairie
Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: théâtrale, 1984.
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em: 28 nov. 2017.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2 VERGUEIRO, Frederico.
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_________. “O espaço reinventado:


efeitos da virtualização no século
XXI.” (in:) Caderno de resumos / 1ª
Jornada Nacional Arquitetura, Teatro
e Cultura. Coord. Geral: Evelyn
Furquim Werneck Lima. – Rio de
Janeiro, Brasil: UNIRIO, Laboratório
de Estudos do Espaço Teatral e

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 40 de 272


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A historiografia da prevista para 2022, propõe avaliar a


arquitetura teatral no Brasil: historiografia da arquitetura teatral
poucos estudiosos a partir do Renascimento, em
envolvidos
diferentes etapas, à luz de conceitos
1
Evelyn Furquim Werneck Lima emitidos por historiadores como

É fato que a historiografia da Manfredo Tafuri (1975) e Kenneth

arquitetura tem sido enriquecida Frampton (2003[1980]). Em que

com alguns trabalhos de revisão pese à arquitetura destinada às

com base em novas leituras, fontes artes performáticas ter sido

e métodos. Entretanto, são raras as estudada por alguns historiadores da

obras historiográficas arquitetura no âmbito de outras

especificamente referentes à tipologias, em geral, nas

arquitetura destinada a abrigar o universidades europeias e norte-

fenômeno teatral. americanas, são alguns historiadores


do teatro que têm investigado
Há 25 anos investigando os
espaços teatrais com maior
rumos e as mudanças de
detalhamento. Uma análise crítica
paradigmas da arquitetura teatral no
da introdução da historiografia da
Brasil e no mundo ocidental e no
arquitetura teatral no âmbito
intuito de averiguar especificamente
europeu e norte-americano é objeto
o que os historiadores têm publicado
de um outro paper ainda inédito2.
sobre este programa arquitetural,
decidimos empreender um Na IV Jornada Nacional

ambicioso projeto. Submetemos ao Arquitetura, Teatro e Cultura de

CNPq um projeto de amplo escopo 2018, apresentamos um primeiro

no sentido de abarcar a esboço teórico-metodológico para o

historiografia selecionada existente desenvolvimento da pesquisa e o

sobre o tema. O projeto ora em que discutimos nesta Jornada são os

desenvolvimento, com finalização primeiros resultados das


investigações em relação aos

1
historiadores da arquitetura de
Arquiteta e historiadora. Professora Titular
da Universidade Federal do Estado do Rio de teatros no Brasil que se dedicaram a
Janeiro- Unirio. Pesquisadora 1-B do CNPq e
pesquisadora da FAPERJ. Coordenadora do 2
LIMA, Evelyn F.W. Por uma historiografia da
Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e
Memória Urbana. O projeto ao qual este arquitetura teatral moderna e contemporânea
artigo se vincula é apoiado pelo CNPq. no Ocidente (1927-2017) (inédito)

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 41 de 272


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estudar os séculos XX e XXI, seja considerado pelos especialistas
enfatizando neste paper a como muito ufanista em relação ao
constatação da grande lacuna Movimento Moderno no Brasil,
desses estudos em nossas consideramos esta obra sobre a
universidades. história da arquitetura geral a que
mais descreve e analisa criticamente
Neste estudo aqui apresentado
alguns teatros concebidos no Brasil
investigamos as obras: Arquitetura
nos primeiros sessenta anos do
contemporânea no Brasil (1981) de
século XX.
Yves Bruand; Arquitetura moderna
brasileira (1982) de Marlene Milan
Acayaba e Sylvia Ficher, Arquitetura
no Brasil 1900 – 1990 (1997) de
Hugo Segawa e Brasil: Arquiteturas
após 1950, (2010) de Maria Alice
Junqueira Bastos e Ruth Verde Zein
e Arquitetura e Teatro. De Andrea
Palladio a Christian de Portzamparc,
de Evelyn Furquim Werneck Lima e
Ricardo Brugger Cardoso (2010).

Apesar de ser muitas vezes Figura 1 - Capa do Livro Arquitetura Contemporânea


do Brasil de Yves Bruand, 1981.
criticada, a obra do francês Yves
Apesar de somente uma breve
Bruand foi a primeira obra
referência ao Teatro Municipal de
verdadeiramente compreensiva da
São Paulo, projetado por Ramos
arquitetura que ele denomina
de Azevedo e inaugurado em 1911
“contemporânea” enfocando o que
(BRUAND, 1981: 39), Bruand
se projetou e construiu no Brasil do
analisa obras do Art Nouveau no
século XX. Trata-se de uma tese de
Brasil, descrevendo e ilustrando o
doutorado defendida na Sorbonne e
projeto de Victor Dubugras que
o autor é um arquivista paleógrafo
participou do Concurso para o
que trabalhou na USP nos anos 1970
Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
e se interessou pela história da
obtendo o segundo lugar. Ele
arquitetura brasileira. Ainda que o
atribui a excelente formação de
livro, publicado na França em 1981,

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Dubugras aos estágios em Buenos Armando Gonzaga), inaugurado
Aires com o arquiteto italiano em 1951. Segundo Bruand, o
Tamburini, autor entre outros do volume claro, constituído pela
Teatro Colón (BRUAND, 1981: 48- interpenetração de dois prismas
49). Mais adiante, Bruand analisa de faces oblíquas conforma-se
as obras de Oscar Niemeyer na “por uma laje contínua de
Pampulha, em Belo Horizonte, concreto, dobrada como uma folha
publicando o detalhamento do de papel em ângulos
Cassino da Pampulha no qual alternativamente agudos e
existe um teatro bem original obtusos num todo inseparável sob
(BRUAND, 1981: 110). o teto em “V” e os elementos que
Outro edifício teatral o sustentam [...]” (BRUAND,
analisado no livro é o Teatro Castro 1981: 234-235)
Alves em Salvador, projetado por
O livro Arquitetura moderna
José Bina Foniat entre 1957-1958,
brasileira (1982), de Marlene Milan
que segundo Bruand teve forte
Acayaba e Sylvia Ficher, discute a
inspiração no projeto de Niemeyer
história da arquitetura segundo
para o auditório do Parque
três temporalidades: no período
Ibirapuera em São Paulo, mas sem
em que se estabelecem os
“aquele aspecto aéreo que tende a
contatos iniciais dos brasileiros
tornar-se a principal preocupação
com o Movimento Moderno na
de seu autor”. (BRUAND, 1981:
Europa até a concepção de
218-219). O historiador francês
Brasília, momento no qual
acrescenta que o teatro não teve o
dom de agradar os cidadãos. Ele prevaleceu no país a inspiração no

não menciona o incêndio que racionalismo de Le Corbusier,

destruiu o teatro antes da porém gerando projetos bem

inauguração. brasileiros. O segundo período


enfoca o concurso para a seleção
Contudo, um dos teatros
do Plano Piloto de Brasília e vai até
construídos mais bem analisado no
a inauguração da nova capital. A
livro é o projetado por Afonso
última temporalidade aborda as
Eduardo Ready e, ainda na época,
diversidades de linguagem da
conhecido como Teatro Popular de
arquitetura mais características
Marechal Hermes (hoje Teatro

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dos contextos regionais.
Infelizmente, as autoras não
analisam arquiteturas de teatro,
fazendo apenas uma breve
referência ao Teatro Castro Alves
do José Bina Foniat (ACAYABA;
FICHER, 1982: 30).

Figura 3 - Capa do livro Arquitetura no Brasil 1900-


1990 de Hugo Segawa. 1997.

Segawa critica Yves Bruand,


considerando que este autor
elabora uma leitura “triunfalista e
apologética do Movimento
Moderno no Brasil”. Mais do que
Figura 2 - Capa do livro Arquitetura moderna
brasileira de Marlene Milan Acayaba e Sylvia Ficher as obras e seus autores, Segawa
1982
dedica-se a estudar os processos
O terceiro livro investigado,
da constituição da arquitetura
Arquiteturas no Brasil - 1900-1990
moderna brasileira em diferentes
(1997), é obra de Hugo Segawa,
matizes que caracterizam
de um dos mais renomados
diferentes modernidades, de
historiadores da arquitetura do
acordo com uma classificação que
século XX no Brasil, professor e
ele próprio estabeleceu (SEGAWA,
pesquisador da USP. Neste livro
1997: 15)
ele investiga o surgimento do
Segundo Segawa, a história e
movimento moderno na
a historiografia recentes ainda se
arquitetura brasileira e em que
refazem do “impacto
cidades foram erguidos os
epistemológico provocado, por
principais exemplares, elaborando
exemplo, pelas ideias de um
uma análise crítica da trajetória do
Michel Foucault – escritos tecidos
movimento ao longo do século.
com a microtrama de uma

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complexa urdidura” (SEGAWA, parte dos arquitetos que
1997: 13). Com base nos estudos praticavam o moderno “à la
de Foucault, o autor, cedendo Perret”, não se engajaram no
espaço às diferenças, revê a linha proselitismo de Le Corbusier ou no
historiográfica até então raciocínio à Bauhaus” (SEGAWA,
dominante, e enfoca diferentes 1997: 73), fato que também
interpretações sobre o moderno constatamos ao analisar os teatros
em arquitetura, entendendo que João Caetano e Carlos Gomes,
“não há definição unívoca de edificados nos anos 1930 no Rio
modernidade [...]”. (SEGAWA, de Janeiro, na obra Arquitetura do
1997:16). Espetáculo (LIMA, 2000: 137-171).

Entretanto, como não se Como nos demais trabalhos


trata de um historiador que se historiográficos consultados, há na
proponha a estudar pesquisa uma ênfase especial na
especificamente a arquitetura produção arquitetônica de Oscar
teatral, são muito poucas as Niemeyer, porém, no que tange à
referências aos edifícios teatrais arquitetura teatral concebida por
edificados no Brasil no século XX, este arquiteto, ele destaca apenas
com algumas exceções como o o Teatro Municipal de Belo
Teatro de Goiânia, edificado em Horizonte, obra de 1942, não
1942 por Jorge Felix de Souza concluída (SEGAWA, 1997: 140),
(SEGAWA, 1997: 63), o Teatro cabendo ressaltar entretanto que
Guaíra em Curitiba de 1948, por Segawa interpreta os novos
Rubens Meister (SEGAWA, 1997: objetivos de Niemeyer nos anos
143), entre alguns outros. 1960, quando este admite a busca
da
Sobretudo, neste livro de
Segawa, interessam à pesquisa forma bela” do “novo” como
desafio à ortodoxia do
ora em desenvolvimento as funcionalismo, segundo o
observações críticas quanto ao historiador, um
reconhecimento da vontade
conceito de moderno no Brasil e as artística (Kunstwollen) à
maneira de Alois Riegl como
diferentes apropriações ocorridas. vetor da arquitetura, elegendo
Referindo-se às obras dos anos a estrutura como personagem
principal de sua atuação”
1930, o autor revela que, “boa (SEGAWA, 1997: 144).

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evitar “discursos esquemáticos
Apesar de não mencionada no
triunfais e pretensamente
livro de Segawa, a pertinência
eficientes, que embalam e
desta interpretação pode ser
consolam tanto quanto simplificam
identificada no Teatro Claudio
e enganam” (BASTOS e ZEIN,
Santoro3 em Brasília (1966-1981),
2011, p. 395). As autoras
com formas inusitadas, porém,
consideram que Brasília não foi o
sobretudo, esta “vontade artística”
ápice da arquitetura moderna,
reaparecerá nas obras projetadas
mas sim um ponto de mutação e
por Niemeyer para teatros do
de abertura para uma boa
século XXI, tais como o Teatro
arquitetura em diferentes estados
Popular de Niterói e o Teatro Raul
do Brasil. Ampliando o escopo
Cortez cujas arquiteturas
regional, citam e analisam
analisamos detalhadamente em
inúmeras obras.
recente artigo (LIMA, 2017) e,
também, no documentário que
realizamos Arquitetura Teatral
Contemporânea no Estado do Rio
de Janeiro (LIMA, 2017).

A quarta obra historiográfica


investigada foi Brasil: Arquitetura
após 1950, de Maria Alice Bastos e
Ruth Zein, que não buscou uma
história linear da arquitetura,
defendendo um cenário de
realidade fragmentária, e,
Figura 4 - Capa de Brasil: arquiteturas após 1950. De
segundo as autoras, tentando Bastos e Zein. 2010

Todavia, para o estudo aqui


3
Com a forma de um tronco de pirâmide, desenvolvido sobre a historiografia
o Teatro Nacional, em Brasília, é um dos
maiores equipamentos culturais
da arquitetura teatral no Brasil,
projetados por Oscar Niemeyer destinado apenas interessam a menção ao
exclusivamente às artes ver LIMA e
CARDOSO, 2010:150. Ver também Teatro José de Alencar, a
SOARES, 2015.
propósito das obras de

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 46 de 272


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conservação e acréscimo ocorridas
em 1989-1990, e ao Teatro
Oficina, quando as autoras
comentam que obras de
reciclagem e recuperação não se
restringem a prédios históricos
(BASTOS; ZEIN, 2010, 338-340).
Infelizmente, não foi propósito das
autoras aprofundar uma análise
sobre a história da arquitetura
destinada ao teatro e à música.

Como já confirmado por Lilian Figura 5 - Capa do livro Arquitetura e Teatro de


Evelyn Lima e Ricardo Cardoso. 2010
Vaz no prefácio do livro
O livro Arquitetura e teatro.
Arquitetura e Teatro. De Andrea
O edifício teatral de Andrea
Palladio a Christian de
Palladio a Christian de
Portzamparc de Lima e Cardoso, a
Portzamparc, de Evelyn Furquim
historiografia ostenta uma enorme
Werneck Lima e Ricardo José
lacuna no que se refere à
Brügger Cardoso, um intenso
arquitetura teatral, privilegiando
trabalho de “pesquisa crítica dos
igrejas, palácios e prédios
diferentes tipos de configuração
públicos, mas quase nunca os
espacial do teatro ao longo da
teatros (VAZ in LIMA e CARDOSO,
história e sua relação com a
2010: 6). A obra objeto do
cidade e a sociedade, é resultante
prefácio investiga a arquitetura de
de aprofundada coleta e exame de
teatros em diferentes
material teórico, iconográfico e
temporalidades, na Europa e no
histórico, discutindo o papel
Brasil, confrontando teatros
estético, urbano e social de cada
populares e teatros monumentais,
edificação analisada”. (VAZ, in
buscando identificar regras e/ou
LIMA e CARDOSO, 2010: 5).
modelos de acordo com conceitos
Especificamente nos séculos XX e
formulados pela filósofa Françoise
XXI, cinco exemplares edificados
Choay (1985).
no estado do Rio de Janeiro são

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 47 de 272


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analisados nesse livro: o Teatro parte da produção nacional de
João Caetano, projetado por edifícios destinados ao teatro e à
Alejandro Baldassini, o Teatro música, ao passo que a obra de
SESC Copacabana, o Teatro Segawa apesar de contribuir em
Popular Oscar Niemeyer de Niterói suas análises críticas para um
e o Teatro Raul Cortez de Duque melhor julgamento sobre as
de Caxias, sendo os três tendências arquiteturais do século
projetados por Oscar Niemeyer, e XX, pouco analisa o edifício
a Cidade das Artes (anteriormente teatral.
Cidade da Música), concebido no Arquitetura moderna
Rio de Janeiro pelo arquiteto brasileira (1982), de Marlene Milan
franco marroquino Christian de Acayaba e Sylvia Ficher é um
Portzamparc. excelente trabalho e realmente
abarca momentos bem distintos
Algumas considerações
da arquitetura no Brasil, porém
O estudo preliminar sobre o
não contempla a arquitetura de
que a historiografia no Brasil tem
teatros, enquanto Brasil:
abordado sobre a questão
Arquitetura após 1950, de Maria
específica do edifício teatral
Alice Bastos e Ruth Zein, introduz
comprovou que os estudiosos da
um novo olhar crítico e mais
arquitetura no Brasil no século XX
fragmentário sobre a arquitetura
pouco se debruçam sobre o
brasileira na segunda metade do
programa que abriga as artes
século XX, ignorando, no entanto,
performáticas.
as colaborações ocorridas na área
Em que pese ter abarcado
específica dos edifícios teatrais
apenas a história da arquitetura
Consideramos, portanto, para
contemporânea até os anos 1970,
efeitos de estudo da historiografia
o trabalho canônico do francês da arquitetura teatral no Brasil,
Yves Bruand, pareceu-nos o que que o livro Arquitetura e Teatro,
mais aprofundou os estudos sobre de Lima e Cardoso (2010)
a arquitetura teatral, visto que signifique uma contribuição efetiva
analisou em detalhe algumas para o projeto em andamento no
obras e projetos relevantes, mas Laboratório de Estudos do Espaço
que deixa sem análise a maior Teatral e Memória Urbana.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 48 de 272


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formação da Praça Tiradentes e da

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Modos de produção: museu pós-moderno. Na passagem


museus, arte e cultura do século XX para o XXI,

Maria Cristina Cabral1 especialistas discutiram o novo


papel do museu, em meio à
Origens e transformações do
existência de diversas propostas,
museu de arte
que se desenvolveram no novo
Desde que a ideia de museu
século, tanto dando seguimento às
assumiu seu caráter moderno, no
práticas empresariais neo-liberais
Iluminismo, essa instituição
quanto às mais recentes práticas
tornou-se paradigmática, ao
de inclusão social. O trabalho aqui
associar legitimidade cultural a
apresentado revisita a historicidade
caráter nacional e universal. No
da ideia de museu, e
século XIX, conhecido como a
especificamente do museu de arte,
Idade de Ouro dos Museus, definiu-
relacionando os modos de
se o papel do museu como
produção das práticas artísticas
instituição e, também, as
com as econômicas vigentes,
variedades de seus tipos
buscando compreender como se
arquitetônicos. Na primeira metade
materializam no espaço da
do século XX, o funcionalismo
arquitetura expográfica.
moderno modificou o antigo
Desde as últimas décadas do
conceito de museu de depósito de
século passado que a ideia de
tesouros para o de organismo ativo
museu se afastou da sua definição
e atuante nas artes e na sociedade.
original como depositório de uma
A partir da década de 1960, a
coleção, responsável por sua
predominância da cultura de massa
coleta, restauração, conservação e
ampliou definitivamente o conceito
amostragem. Neste século,
e o papel institucional do museu,
observa-se a fundação de museus
que nos anos 1980, incorporou as
cujo foco não é especificamente a
práticas do capitalismo tardio
coleção de objetos, mas práticas
gerando o que nomeamos de
culturais como o Museu da Língua
1
Arquiteta e Urbanista. Professora Portuguesa (2006) e o Museu do
associada da Universidade Federal do Rio de
Futebol (2008), e mais
Janeiro ( FAU/UFRJ) e docente permanente
do Programa de Pós-graduação em recentemente o Museu do Amanhã
Urbanismo (PROURB). Pesquisadora do
CNPq.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 50 de 272


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(2015), embora com proposta ocorre, indiretamente, uma espécie
diferenciada dos anteriores. de mecenato da instituição sobre a
Atualmente, percebe-se o produção artística.
deslocamento da definição de Quando os museus de arte
Krzysztof Pomian para a ideia de foram criados, no século XVIII, eles
museu. acolheram arte herdada, obras que
Todo museu é uma coleção: haviam sido feitas para contextos
um conjunto de objetos naturais ou espaciais específicos como igrejas,
artificiais, desviados de suas palácios e outros tipos de edifícios,
finalidades originais, mantidos e que foram deslocadas de seu
temporária ou definitivamente fora contexto original. Ao entrarem nos
do circuito de atividades museus, essas obras adquiriram
econômicas, submetidos a uma um fim em si mesmas: um fim
proteção especial e expostos ao estético. Dentro de um museu,
olhar dentro de um lugar fechado uma pintura litúrgica perde sua
destinado a este efeito. (POMIAN, função religiosa e limita-se à
1989) definição dentro da tradição da
Quando a coleção do museu é pintura. Esse objeto é então
constituída de objetos de arte, é oferecido ao olhar, à contemplação
importante distinguir o tipo de arte estética, independentemente de
exposta: arte herdada do passado sua função original.
– e seu tempo histórico – ou arte Durante largo período (até
em vias de ser feita (POMIAN, meados do século XIX, variando de
1989, p. 6). No primeiro caso, os acordo com o lugar), a instituição-
procedimentos limitam-se à museu ocupou-se somente da arte
escolha das obras dentro de um herdada. Os museus forneciam os
conjunto predeterminado. No modelos para a arte que estava
segundo caso, há possibilidade de sendo feita, segundo princípios da
se exercer influência direta sobre Academia de Belas Artes. Até a
as obras produzidas, sobre seus década de 1920, a arte moderna
temas, formatos e técnicas, foi veiculada pelos marchands,
através de critérios aplicados à galeristas e colecionadores. Em
seleção das obras. Neste caso, 1929, quando o cubismo já

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contava com mais de vinte anos, comparada à da arte do passado. A
foi criado em Nova York o Modern partir da Segunda Guerra Mundial,
Art Museum (MoMA), que se grande parte da produção moderna
constituiu, ao longo das décadas já era destinada aos museus,
seguintes, um modelo no gênero. prática esta que triunfou nos anos
No início da década de 1930, 66 1950, sobretudo nos EUA.
museus europeus, dos quais 30 Nas décadas seguintes,
alemães (POMIAN, 1989, p. 9), multiplicaram-se pelo mundo os
tinham galerias de arte moderna, museus de arte moderna. A partir
cujos acervos não eram de 1960, os conservadores e
constituídos da arte da época, mas diretores de museus de arte
de obras produzidas até 50 anos moderna procuraram participar
antes. Tratava-se de obras de cada vez mais da produção
artistas vivos, mesmo de alguns artística do período. A arte
que já haviam se tornado realizada a partir da década de
“clássicos” da arte moderna. As 1970 acarretou um alargamento no
obras foram doadas por campo e na definição de arte, que
colecionadores ou adquiridas no ultrapassou os limites da chamada
próprio mercado. As obras de arte arte moderna (KRAUSS, 1984).
moderna, salvo raras exceções, Os museus modernos
não foram produzidas para continuaram adquirindo obras,
museus. Até o surgimento do gerando problemas de
MoMA-NY, o museu era uma superlotação em suas reservas, e
instituição com práticas e alargando os limites de suas
interesses artísticos ainda coleções para além do recorte
fundamentados nos preceitos do inicial: a produção moderna. Para
Século XIX. Pierre Gaudibert, a modernidade, a
arte moderna e os museus de arte
Museu-manufatura e museu-
máquina moderna formam três instâncias
encaixadas, constituindo três
A instituição museu de arte
parâmetros intimamente ligados. O
moderna alterou a relação entre o
esfacelamento de uma delas
museu e a arte que estava sendo
implica triplo declínio, o que
feita, conferindo-lhe uma dignidade

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ocorreu a partir dos anos 1980 processos de produção materialista
(GAUDIBERT, 1989). descritos por Karl Marx. Nessa
Recusando-se a assumir seu comparação, afirma que o museu
“encerramento” na história, os surgiu simultaneamente à
museus de arte moderna, produção manufatureira, e é lugar
sintomaticamente, foram-se de representação desse novo
tornando a partir do último quartel processo de produção, ainda que
do século XX, museus de arte de maneira simbólica. Damisch
moderna e contemporânea. analisa a atuação da instituição em
Ocorreu uma espécie de dois momentos, nomeando-os
recuperação do seu objetivo inicial: “museu-manufatura” e “museu-
ser um museu de artistas vivos, máquina”.
lugar de atualidades, e não de O museu imitaria a operação
artefatos mortos, reafirmando manufatureira de divisão do
assim sua contradição inicial. trabalho, reunindo os metiers,
O filósofo Hubert Damisch, associando-os e combinando-os de
expôs a contradição na gênese do maneira a criar a ideia de unidade
museu de arte moderna e de um conjunto cujas partes têm a
contemporânea que por ser um mesma tarefa; ou seja, o museu
lugar que tem como função reúne as obras de arte como a
constituir suporte de uma memória produção manufatureira reúne as
específica, abriga algo que se tarefas. Por correlação, a arte
caracteriza por sua atualidade aparece como produto coletivo de
(DAMISH, 2000). No entanto, os uma massa de artistas no lugar de
especialistas (curadores, arquitetos trabalhadores especializados. Desta
e museólogos) “acomodaram” esta maneira, a arte poderá ser
contradição através das percebida pelo público como parte
características dos múltiplos de um conjunto. Tal apreensão
espaços expositivos. confronta-se com o sentido
Para explicar as eminentemente moderno de
transformações ocorridas na função valorizar a experiência da “solidão
do museu de arte, Damisch, da obra”. A percepção da obra de
compara a instituição aos arte pelo público alterna-se entre

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elemento que faz parte de um Oficiais, mais do que na ruptura
conjunto, cujo sentido lhe será pretendida entre a arte moderna e
impregnado, e seu isolamento o museu. Em outras palavras, a
intransponível. Essa alternância de complexidade atual do museu é
recepção está relacionada com a originária do confronto de uma arte
pretensão dupla da obra moderna que se pretendia, e que sempre se
de reinar e simultaneamente ter pretende, independente e nada
uma singularidade não mais.
compartilhada. Por correlação com o
O museu-máquina repete a apresentado por Pomian,
operação retrospectiva do museu- poderíamos associar as práticas do
manufatura, pretendendo, além de museu-manufatura com o museu
acolher e apresentar a produção que expõe arte herdada, o qual
contemporânea ao público, fazer escolhe as obras dentro de um
parte ativa na ordem da produção. conjunto pré-existente e as
Damisch afirma: “o processo organiza; neste caso, em lugar de
histórico que conduz do museu- nos limitarmos ao século XVIII, ao
manufatura ao museu-máquina nascimento dos museus de arte,
não obedece somente, nem poderíamos referir-nos aos museus
inicialmente a determinações de de Belas Artes em geral, e até
ordem técnica ou tecnológica.” mesmo aos museus de arte
(DAMISH, 2000, p. 76-77). Para moderna, desde que de arte
ele, o museu de arte moderna herdada. Os museus-máquina
pode funcionar no modo correspondem aos museus para
manufatureiro do museu clássico: arte em vias de ser feita, ou seja,
cada artista e cada movimento os chamados museus de arte
ocupando seu lugar. As moderna a partir de 1940, e alguns
transformações e relações, dos atuais museus de arte
complexas e contraditórias, que se moderna e contemporânea.
estabelecem no museu têm sua Ambos os autores apontam os
origem sobretudo no divórcio problemas gerados pela influência
operado entre a arte dos da instituição sobre a prática e a
independentes e a arte dos Salões produção artística. A posição de

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Pomian demonstra desaprovação e servir a seus fins, sem se deixar
desgosto com a arte moderna. Sua levar por ela. Damisch conclui que
crítica é dirigida à arte americana é importante substituir a crítica
produzida nos anos 1950, feita à instituição pela utilização
especificamente aos lúdica de que sua máquina
expressionistas abstratos, e ao corresponderia à prática real da
meio artístico da época, que criou a arte moderna e contemporânea. Às
ideia do cubo branco, uma espécie definições de Damisch somaremos
de espaço sacralizado para a arte. à ideia de museu pós-industrial,
Pomian acredita que, ao exercer cujo modo de produção, não se
influência sobre a arte, o museu a resume às experiências de
deturpou de sua finalidade original, fabricação, manufatureira ou
produzindo para ela efeitos industrial, mas que incorpora as
perversos ao se construir como práticas contemporâneas de
destinatário direto das obras interação social, sejam elas
(POMIAN, 1989). hegemônicas ou contra-
A posição de Damisch é hegemônicas, características da
menos fatalista. Para ele, por mais sociedade contemporânea. No
que o museu tenha aprendido a entanto, antes apresentaremos o
acolher a arte moderna – por conceito de museu pós-moderno.
exemplo, o radicalismo dos ready-
O museu pós-moderno
made de Duchamp –, a força atual
do museu reside em sua Foi o advento do Centro

capacidade de recolocar em cena Georges Pompidou, sob a égide do

uma arte que se pretendia curador Pontus Hulten, que coroou

independente da arte acadêmica e, a transformação da narrativa

por perversão da máquina da museológica linear e hegemônica

instituição, finaliza por da arte moderna, iniciada pelo

institucionalizar a própria arte. MoMA-NY, em múltiplas narrativas.

Caberia à arte contemporânea Esta nova prática expandiu-se para

fornecer as provas, através de seus outras instituições, tornando-se um

próprios meios, de sua capacidade novo modelo. Os museus abriram-

de dispor dessa máquina para se para novos e antigos artistas


que não estavam inseridos no

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circuito institucional, e novas processo autocrítico e auto-
curadorias sugeriram outras analítico a partir da década de
possibilidades de leitura, tanto da 19602.( SCHUBERT, 2009, 67)
arte do passado como da de seu De um ponto de vista mais
próprio tempo. amplo, essa transformação das
A partir dos anos 1980, o diretrizes do conceito de museu –
estabelecimento de modelos de centrada em um discurso
conceituais e de realização únicos homogêneo e linear para múltiplas
tornou-se cada vez mais restrita, narrativas – está em consonância
em meio à crescente pluralidade. com seu tempo, como parte da
Há poucas instituições cujas alteração do discurso hegemônico
práticas metodológicas são da modernidade, a grande
referenciais, como o foram as de narrativa, para os múltiplos
meados do século XX. Grande discursos que caracterizam a
parte das instituições adaptou as chamada pós-modernidade. A
práticas reconhecidas, aplicando-as história apresentada pelos museus
de acordo com seus próprios através de um discurso linear
contextos (nacional, político, iniciou-se com a constituição do
cultural e econômico). Muitas conceito de museu iluminista e foi
questões são partilhadas entre as revisada junto com os limites do
instituições, como adaptações da moderno.
arquitetura, metodologia de Fredric Jameson apontou as
exposição, enfrentamento de origens do que denomina pós-
intenções políticas externas aos modernismo em um conjunto de
objetivos do museu, conflitos entre rupturas ocorridas no fim dos anos
fundos privados e do Estado e, no 1950 e começo dos anos 1960,
caso de instituições dedicadas à com a atenuação dos princípios do
arte contemporânea, movimento moderno (JAMESON,
relacionamento com os artistas. O 2000 [1991]). O aparecimento do
resultado das práticas institucionais
é bastante diferenciado, muito 2
Os problemas e as práticas dos museus
são abordados por SCHUBERT, Karsten.
embora os problemas sejam
The curator's egg: the evolution of the
comuns, instaurando-se um museum concept from the French
Revolution to the present day. Londres:
Ridinghouse, 2009.

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pós-modernismo está relacionado entendido não como um estilo, mas
com a canonização e como uma dominante cultural do
institucionalização acadêmica do capitalismo tardio. Sociedade pós-
movimento moderno, que remonta industrial, sociedade de consumo,
ao fim da década de 1950. A sociedade das mídias, sociedade da
continuidade do estilo internacional informação, sociedade eletrônica
na arquitetura, o expressionismo ou sociedade high-tech, foram
abstrato na pintura, o termos adotados por outros
existencialismo filosófico são campos de conhecimento, cujas
alguns exemplos do impulso final interpretações, assim como as
do modernismo que se exauriu na teorias do pós-moderno,
sistematização. Decorrida mais de demonstraram como a nova
duas décadas após o lançamento formação social não mais obedece
do livro do crítico norte-americano à lógica do capitalismo clássico e
(1991), as teorias do pós-moderno da luta de classes (JAMESON, 2000
multiplicaram-se, e o significado do [1991]).
termo alterou-se paulatinamente, Segundo Jameson, a era da
até seu enfraquecimento, com a informação ou da sociedade de
crise financeira de 2008, com o fim mídia é uma era na qual, além de o
de um processo de consenso capital atingir sua pura forma, os
ideológico do capitalismo métodos industriais atingiram
financeiro. outras esferas, como a do lazer, a
O ponto de vista de Jameson do esporte e a da arte. A
é adotado por abordar a questão mecanização, a estandardização, a
da cultura neste novo estágio superespecialização e a divisão do
socioeconômico, possibilitando trabalho, que no passado
cerzir os diversos aspectos da pertenciam ao âmbito da produção
instituição-museu. Para Jameson, industrial, penetraram em todos os
qualquer ponto de vista a respeito setores da vida social. A cultura na
do pós-modernismo na cultura é época do capitalismo tardio já não
necessariamente uma posição era dotada da autonomia, ainda
política sobre o capitalismo que relativa, dos momentos
multinacional. O pós-modernismo é anteriores. A cultura expandiu-se

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por todo o domínio do social, até o mas sobretudo a concepção da
ponto em que tudo da vida social relação do observador para com o
pode ser considerado como objeto artístico observado. Para
cultural, dos valores econômicos ao Karsten Schubert, a história do
poder do Estado. museu, da Revolução Francesa aos
O museu mudou dias atuais, pode ser vista como
progressivamente ao longo dos um deslocamento gradual do
dois últimos séculos, de instituição público da periferia para o centro
iluminista com preceitos da prática museológica, do século
pedagógicos para empresa XVIII, no qual os visitantes eram
geradora de proventos. Este é o vistos como imagem do curador,
museu a partir dos anos 1980, admirador solitário, letrado e
que, na falta de uma nomenclatura recluso, até os anos 1980, quando
mais adequada, é aqui denominado o público se tornou o interesse
pós-moderno. Tal como Jameson central da instituição (JAMESON,
havia apontado, o museu na era da 2000).
cultura de massa incorporou os Segundo Rosalind Krauss, a
procedimentos industriais. O implosão cultural que marcou a
museu pós-moderno é uma prática estética dos anos 1980
empresa que, como todas as realizou uma colagem de estilos
outras, busca altos índices de históricos, em um período no qual
produtividade. Os grandes museus a arte elevada (alta cultura) e a
passaram a ter departamentos de cultura de massas só se imitavam.
marketing e de desenvolvimento, Como exemplos de novos edifícios,
raridades no início dos anos 1990. Rosalind Krauss aponta o
A audiência tornou-se a chave Stadtisches Museum Abtielberg
do sucesso e a questão central do Monchengladbach, de Hans Hollein,
reconhecimento. As maneiras de se e o Museum Für Kunstlandwerk, de
referir àquele que observa a obra Richard Meier, em Frankfurt, que
foram se transformando: não têm afinidades em termos
observador, visitante, espectador e formais e, em termos de
público são expressões que agenciamento de layout interno,
revelam a ideologia museológica, dizem muito pouco, porque a

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experiência espacial transcende a concluindo uma experiência de
parede e o piso como obstáculos desorientação (JAMESON,
(KRAUSS, 1984 [1979]). Em 2000[1991], p. 70). O espaço
termos conceituais, a ideia é abrir museológico e o discurso linear
um campo perspectivo sobre moderno foram substituídos por
diversos planos; nas paredes, um espaço aberto, no qual o juízo
inesperadas aberturas que estético foi substituído por um
permitem avistar um objeto ao discurso de inclusão.
longe, construindo referências Segundo Fredric Jameson, na
entre as obras da coleção. época do capitalismo tardio, as
A circulação é operações da indústria atingem
simultaneamente física e visual, outros campos, como o lazer e a
através de aberturas nas arte, e a ideia de cultura é
separações, janelas internas e ampliada a todas as instâncias da
balcões abertos. O olhar é sociedade (JAMESON, 2000).
constantemente solicitado por Apoiada na teoria de Jameson,
outra coisa, motivado pelo Rosalind Krauss analisa as
interesse e pela distração. Segundo transformações operadas nos
Rosalind Krauss, é a descoberta do museus de arte moderna no início
museu como mercado de pulgas. dos anos 1980. Essa autora é uma
Retomo Fredric Jameson, para das primeiras a denunciar a
quem o espectador pós-moderno é apropriação dos discursos e
solicitado a ver todas as coisas ao práticas artísticas para fins
mesmo tempo – no caso, obras estranhos a elas, exemplificando a
diferentes, sem unidade, com maneira como o Minimalismo foi
questões próprias e radicais, utilizado por Thomas Krens, diretor
inseridas em um espaço da Fundação Guggenheim como
arquitetônico que está além das parte de uma estratégia para
capacidades “do corpo humano de legitimar a nova concepção do
se localizar, de organizar o espaço museu (KRAUSS, 1997). Krens
circundante e mapear passou a se referir ao museu
cognitivamente sua posição em um utilizando termos emprestados da
mundo exterior mapeável”, linguagem econômica, como

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indústria do museu, suas imagens comerciais
overcapitalização, fusão, aquisições descorporificadas) e cultura de
e administração de recursos, em consumo (com os objetos
lugar de obras. Ele aplicou também banalizados), ao fazer uso dos
termos da indústria se referindo às métodos materiais industriais, abre
atividades do museu, exposições e uma brecha para o mundo da
catálogos, como produtos. produção capitalista. Nesse
Rosalind Krauss identifica a momento, Krauss se pergunta:
existência de uma tendência de como um movimento que se
tratar a coleção do museu como pretendeu ser contra a banalização
patrimônio capital, em lugar de do mundo em mercadoria e a
cultural. A fim de enfrentar a crise primazia da tecnologia pode
do espírito do mercado livre dos carregar os códigos de seu oposto?
anos 1980, diretores e trustees de A resposta, Rosalind Krauss a
museus norte-americanos encontra no conceito de revolução
colocaram partes dos acervos em cultural de Jameson e na leitura
circulação, convertendo-as em que esse autor faz para
recursos financeiros. O museu compreender como a lógica do
guardião do patrimônio público foi capital funciona na arte moderna.
substituído pelo museu como Como uma arte que insiste na
entidade corporativa, com alto especificidade pode programar sua
inventário comercial e elevadas própria violação? Este tipo de
expectativas de crescimento. paradoxo é comum na história da
Ocorreu uma reestruturação do arte na era do capital. Na arte
original estético pelo mercado, moderna, ao oferecer resistência a
através da transformação da obra uma manifestação particular do
como patrimônio em obra como capital, o artista produz uma
recurso financeiro (KRAUSS, alternativa ao fenômeno que pode
1997). ser lida em outra versão, em
Mas, ao mesmo tempo em função dele ou favorável a ele. Por
que a arte e mais especificamente revolução cultural, compreenda-se
o Minimalisno lutava contra o que, enquanto o artista tenta criar
mundo de cultura de massa (com uma alternativa utópica para o

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pesadelo induzido pela era potencial dentro do
industrialização ou pelo consumo, movimento, mas foi a revisão que
ele está, ao mesmo tempo, efetivamente gerou o sentido
projetando um espaço imaginário atordoado e eufórico do espaço
formado pelas mesmas pós-moderno do museu, e não o
características estruturais que movimento artístico, tal como o
produzem o pesadelo, sugerindo a sugeriu Thomas Krens.
possibilidade de ocupar um O museu do capitalismo tardio
território que poderá ser um nível ou museu industrializado é
mais avançado do capitalismo. conectado com a indústria de lazer.
No entanto, Rosalind Krauss Os problemas de circulação dos
ressalta ainda, há que se produtos do museu, exposição e
diferenciar o sujeito minimalista, catálogos, exigem também um
da experiência vivenciada do corpo mercado conectado, capaz de
da década de 1960, do sujeito escoar os produtos, o que Krens
disperso e submerso em um chama de mercado partilhado.
labirinto de signos, do pós- Rosalind Krauss contabiliza os
modernismo do final da década de requisitos fundamentais capazes de
1980. Este é o sujeito que não permitir a expansão do mercado do
percebe, que fica atordoado para museu: um extenso inventário,
decodificar os signos ao seu redor, filiais de escoamento e
o sujeito que se tornou foco de alavancagem da coleção –
várias análises do pós- requisitos presentes ou
modernismo. Nestas, o espaço não providenciados para a expansão
mais é dominado pelo sujeito; promovida inicialmente pela
trata-se de um espaço Fundação Guggenheim, e no século
grandiloqüente, que lhe escapa ao XXI por outros grandes museus
alcance e ao entendimento. como o Louvre.
A revisão do Minimalismo
O museu pós-industrial
processada nos anos 1990 coincide
com a revisão e o reprocessamento Identifica-se atualmente as

do museu. Esta releitura sobre o práticas relativas aos museus-

Minimalismo explora aquilo que já manufatura e museu-máquina


definidos por Damisch. No entanto,

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a atual era da financeirização aquisitivo, buscando estabelecer
econômica que rege tanto as processos de inclusão social não
práticas sociais quanto políticas apenas do público, mas na própria
aponta tanto para o produção da arte, tal como no
desenvolvimento de práticas museu-máquina. Neste sentido,
hegemônicas na instituição-museu, podemos exemplificar com a
quanto para práticas contra- proposta de curadoria do Museu de
hegemônicas. Nas práticas Arte do Rio, com suas temáticas
hegemônicas, podemos constatar a expositivas e aquisições, mas
continuidade dos procedimentos do também com as frequentes
museu empresa, ou museu pós- alterações dos espaços de convívio,
moderno, já relatadas. Mas há abertos aos transeuntes como
também o aspecto que é o espaço público da cidade, focados
rompimento do suporte do edifício- nos jovens da periferia. A ação
museu para a exploração da educativa do museu vem
cidade-museu, ou o do museu à exercendo papel importante, ainda
céu aberto, tal como foi que em pequena escala, na
estabelecido no Projeto do Porto- formação cultural do cidadão.
Maravilha. A execução de grafites Resta-nos acompanhar quais
contratados pela Prefeitura do Rio serão as novas perspectivas,
explorou o significado simbólico respostas e questionamentos dos
desta mídia artística, extraindo-lhe artistas sobre o atual processo. A
o mais essencial e significativo do instituição-museu só guardará o
valor artístico, que é a liberdade do seu papel social legítimo de sua
artista atuar sem finalidade e origem, e não apenas comercial, se
interesses pré-estabelecidos. de fato suas práticas museais
No entanto, como cada estiverem em consonância com as
momento histórico produz sua ação práticas artísticas.
e reação podemos perceber dentro
da instituição-museu práticas Referências bibliográficas
contra-hegemônicas que caminham DAMISCH, Hubert. L’amour m’expose.
contra a hegemonia econômica da Bruxelas: Yves Gevaert, 2000.

exclusão social por padrão GAUDIBERT, Pierre. Modernité, art


moderne, musée d’art moderne. Les

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http://www.unirio.br/espacoteatral/arquivos/evento-extensao/AnaisVjornadaNacionaldeArquiteturaTeatroeCultura.pdf
Cahiers du MNAM. L’art contemporain
et le musée. Paris: Centre Georges
Pompidou, 1989, p. 10-12. Hors-
série.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo.


A lógica cultural do capitalismo tardio.
São Paulo: Ática, 2000 [1991].

KRAUSS, Rosalind. Le musée sans


mur du postmodernisme. Les Cahiers
du MNAM. L’art contemporain et le
musée. Paris: Centre Georges
Pompidou, 1986.

KRAUSS, Rosalind. A escultura no


campo ampliado. Gávea – Revista de
História da Arte e Arquitetura. Rio de
Janeiro: Curso de Especialização em
História da Arte e Arquitetura no
Brasil, PUC-Rio, n. 1, 1984, p. 87-93.

POMIAN, Krzysztof. Le Musée face a


l’art de son temps. Les Cahiers du
MNAM. L’art contemporain et le
musée. Paris: Centre Georges
Pompidou, Hors-série, 1989, p. 5-10.

SCHUBERT, Karsten. The curator's


egg: the evolution of the museum
concept from the French Revolution to
the present day. Londres:
Ridinghouse, 2009.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 63 de 272


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Arquitetura e Teatro: a assim como o mundo sob a


antropofagia e a perda da mediação de sombras descrito pelo
ágorafobia filósofo, o teatro que Oswald
1
Carolina Lyra condena é uma representação de
um mundo sob a mediação de um
O presente artigo versa sobre a
autor ou encenador, que além de
arquitetura cênica pretendida pela
excluir a vitalidade do aqui agora,
Antropofagia a partir do estudo do
inibe a permanente transformação
texto A Morta de Oswald de
inerente ao homem, em especial ao
Andrade. No texto o autor expõe um
antropófago. A Antropofagia
questionamento à caixa preta
absorveu das artes modernas a
propondo uma arquitetura aberta ao
qualidade significante, o desejo da
devir, ao imprevisível, transpondo os
não significação como recurso
conceitos da Antropofagia para a
propositor de uma ação do
arquitetura cênica. Em A Morta,
espectador, e o primitivismo, como
Oswald critica o espaço cênico
tábula rasa para construção de um
habitual por ser este um espaço
novo mundo. Porém a ação canibal
idealizado que exclui a vitalidade e a
dos Tupinambás, de potencialização
imprevisibilidade da vida. Esta
a partir do devoração do que é do
característica esteve presente nas
outro, emprega à esta ideia de
artes modernas europeias e no
primitivo o desejo da permanente
modernismo paulista, ambos
transformação. Para o antropófago
herdeiros da filosofia de Friedrich
modernista, manter-se “virgem”, ou
Nietzsche e contemporâneos ao
seja, livre da moral e da mediação,
crescimento da velocidade dos
pertmite que não haja barreiras
acontecimentos numa era de
ilógicas para o pensamento e a ação
industrialização. No texto de Oswald
dos indivíduos. Para o teatro político
uma “lareira” indicada como um dos
de Oswald no qual o espectador
poucos elementos cênicos sugere
toma consciencia de sua passividade
uma menção à caverna de Platão e
e é impelido á ação, tanto o recurso
1
Cenógrafa e Figurinista. Doutoranda na do distanciamento crítico, no qual o
Universidade Federal do Estado do Rio de espectador assiste a sua
Janeiro, UNIRIO. passividade, quanto o choque, são

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recursos utilizados em uma peça como a arquitetura cênica de Oswald
construida como um percurso que se e habitacional em Flávio,
inicia com o espectador na absorveram o conceito moderno de
“catacumba”, passivo, e termina eliminação do que é ilusório, artificial
com ele nas “barricadas”. O espaço para construir espaços no qual os
cênico oswaldiano em A Morta, indivíduos são incitados à vida real.
ainda que não tenha um estudo
A Peça A Morta é posterior a
arquitetural no qual a
elaboração do Manifesto
imprevisibilidade da cidade relembre
Antropófago de Oswald de Andrade
ao espectador a imprevisibilidade da
(1928) e faz parte de uma série de
vida, o devir, reclama a queda da
peças do autor participantes dessa
caixa preta com um recurso literário
vontade criadora de uma estética
surrealista como no diálogo entre
antropofágica brasileira. A “trilogia
duas personagens sobre os riscos de
da devoração”, como denomina
abrir uma “porta” e a entrada de
Carlos Gardin em “O teatro
elementos como a “girafa, o oficial
Antropofágico de Oswald de
de justiça, a metralhadora, a
Andrade” (1993) é composta por: O
poesia”. A arquitetura teatral
Rei da Vela, O Homem e o Cavalo e
criticada por Oswald é um edifício
A Morta. Segundo Oswald, “A morta
fechado, como uma “cidade sem luz
foi escrita em São Paulo, em 1937.
direta” e esta busca do contato dos
O rei da vela em Paquetá, em 1933”
indivíduos com a cidade foi pauta
(Andrade, 1972, p. 2). A peça O
da arquitetura de outro antropófago
Homem e o Cavalo foi também
modernista, Flávio de Carvalho, que
escrita em 1933 e deveria ter sido
no mesmo ano da publicação de A
apresentada no Teatro da
Morta (1937), construía em São
Experiência criado por Flávio de
Paulo um conjunto de dezessete
Carvalho no mesmo ano. O jornal
casas cuja a base do pensamento é
Diário da Noite2 noticia a leitura de
a de que as pessoas já não sofriam
cenas da peça, porém o Teatro que
de ágorafobia, e por isso já não fazia
estreou com a peça O bailado do
sentido a construção de fortalezas.
Deste modo, este artigo pretende 2
Diário da Noite. A leitura de algumas
analisar a partir da peça A Morta, cenas de “O homem e o cavalo” será feita
hoje a noite pelo sr. Oswald de Andrade.
São Paulo, 21 de novembro de 1933, p.3.

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deus morto, de Flávio, em outubro depósito de couro segundo o
de 1933, foi encerrado pela censura. levantamento da delegacia que
buscava meios de censurar a prática
O Teatro da Experiência foi
teatral modernista que segundo
inaugurado em 15 de novembro de
Flávio objetivou “despertar no
1933, no piso térreo do mesmo
cérebro dos observadores emoções
edifício no qual funcionou o Clube
que estavam antes adormecidas:
dos Artistas Modernos, CAM, fundado
acordar forças capazes de mostrar
em 24 de novembro de 1932 por
um novo rumo”, o que Flávio chama
Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti,
de “processo de transformação” de
Carlos Prado e Gomide. O CAM
uma “energia latente em uma força
funcionou no primeiro andar do
em movimento: energia cinética”4.
edifício da rua Pedro Lessa, nº 2,
O espírito de laboratório que motiva
São Paulo, edifício já ocupado
o Teatro de Flávio como espaço de
anteriormente pelos ateliers dos
transforção do estado de uma
artistas que se uniram para criação
“matéria” também motivou a
do Clube cujas finalidades seriam a
dramaturgia de Oswald em sua
criação de um espaço de reuniões,
“trilogia” na qual destava A Morta
formação de uma biblioteca de arte,
em que segundo o autor “os
e a defesa de interesses de classe.
soterrados, através da análise,
No CAM foram realizadas palestras,
voltam à luz, e, através da ação,
exposiçoes, bailes e reuniões e ainda
chegam as barricadas” (ANDRADE,
que adaptado dentro das condições
1973, p.3)5.
do edifício, Flávio garante que o
“clube não tem limites dentro [das] Antes do primeiro ato, o
paredes claras” e a comunicação do personagem Hierofante sentado
Clube com o mundo seria viabilizado sobre a caixa do ponto6 anuncia a
pela tecnologia: a radiotelefonia, a peça como uma “autópsia”, uma
aviação, e o Graf Zepelin3. O Teatro análise dos indivíduos assistida por
da Experiência ocupou o piso térreo eles próprios de suas cadeiras, os
deste mesmo edifício e teria sido um 4
Flávio de Carvalho em entrevista ao Correio
de S. Paulo de 6 de dezembro de 1933.
3
Jornal presente nos cadernos de Flávio 5
Dedicatória de Oswald em A Morta à
pertencentes ao arquivo Flávio de Carvalho.
Julieta Bárbara em 25 de abril de 1937.
Sem indicação de título ou data. Referência
6
do arquivo do Centro de Documentação Didascália de Oswald no primeiro ato da
Alexandre Eulália: FC_ALBI 1_139 peça A Morta.

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soterrados. Os espectadores, como este edifício só tem forros fechados.
afirma o Hierofante fazem parte da Habitamos uma cidade sem luz
cena que se divide entre o palco e direta – o teatro” e em seguida:
dois “camarotes” instalados no “Navegamos num rio preso!”. Em A
meio da platéia. Além de uma Morta, a abertura de uma porta por
lareira e um banco metálico no qual onde entrariam elementos
a Enfermeira que demonstra inusitados, reclama a participação
“extrema fadiga de um fim de dos acontecimentos externos à sala
vigília noturna está posicionada, há preta como crítica a arquitetura
quadro “tronos altos” com quatro cênico que representaria um espaço
marionetes que se movimentam a sob mediação, controlado. A
partir da fala dos personagens Antropofagia oswaldiana, e a antes
localizados nos “camarotes” no dela o Manifesto da Poesia Pau-
meio da platéia. Do primeiro Brasil7 também de Oswald
diálogo entre os personagens A reclamaram uma eliminação de
Outra, O Poeta e Beatriz manifesta- barreiras e fronteiras do
se a crítica ao teatro como espaço pensamento criticando a moral e os
sob mediação: hábitos inquestionáveis, mas

A Outra: Estão batendo.


também as fronteiras espaciais,

O Poeta: Aqui não há portas ainda que não houvesse por Oswald
Beatriz: Abre aquela porta uma proposta arquitetural. Oswald
O Poeta: No meio da mágica. define a Poesia Pau-Brasil como
Beatriz: Nunca se sabe quem “uma sala de jantar domingueira,
é que está batendo.
com passarinhos cantando na mata
A Outra: É perigoso abrir toda
a porta. resumida das gaiolas […] e a
[…] Maricota lendo o Jornal. No jornal
O Poeta: O que haverá atrás anda todo o presente”. A sala de
de uma porta?
jantar domingueira resume a
A Outra: Abre a porta! Chi lo
sá! estética brasileira, mas não exclui os
O Poeta: Pode ser a girafa, o fatos externos, o que garante a
oficial de justiça, a
metralhadora, a poesia! teoria de Oswald a criação de uma
(ANDRADE, 1973, p.13)
subjetividade brasileira em oposição
A personagem A Outra observa
7
Manifesto da Poesia Pau-Brasil In
no meio do diálogo: “Praticamente ANDRADE, 1978, p. 5 – 10.

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a uma inflexível identidade. No 1973, p.63), e ainda que esta
Manifesto Antropófago, publicado janela seja parte de uma
quatro anos mais tarde, Oswald cenografia, a questão da
volta a reclamar pela destruição de comunicação da cena com a
fronteiras: “e nunca soubemos o que imprevisibiliadde da cidade está
era urbano, suburbano, fronteiriço e presente. A solução de Hélio
continental” (Andrade, 1928 In Eichbauer para a cenografia da peça
Campos, 1975, p. 3). A ”Trilogia da em 1967, realizada em um palco
devoração” de Oswald levou para o giratório projetado por Flávio
teatro o questionamento de um Império para o Teatro Oficina, foi
espaço cujo devir, o vir a ser, a uma janela que se põe entre a cena
imprevisibilidade são excluidos e o e a platéia, porém a concepção de
espaço cenico é um ambiente espaço teatral presente na critica
controlado e seguro como as leis oswaldiana ultrapassa a cenografia
morais que afastam o indivíduo do e torna-se o paradigma teatral da
pensamento livre. companhia depois do encontro com
a obra antropofágica de Oswald. A
Com o fechamento do Teatro
arquitetura do Teatro Oficina, como
da Experiência, a cena
se conhece hoje, projetada por Lina
antropofágica ficou reservada para
Bo Bardi e Edson Elito concretizam
à geração seguinte que revive na
o diálogo entre a cena e a cidade
década de 1960 a teoria de Oswald
através de uma ampla janela,
de Andrade. A montagem de O rei
porém a arquitetura modernista,
da vela pela companhia Teatro
ainda na década de 1930 mobilizou-
Oficina em 1967 reativa a cena
se para a projeção de habitações
antropofágica e com ela toda a
cujo o princípio era o de uma nova
filosofia que será base não só
arquitetura para um novo homem
dramaturgica, mas também
que “já não sofre de ágorafobia”.
arquitetural da companhia. Em O
rei da vela, Oswald descreve como Flávio de Carvalho, engenheiro,
cenografia uma “ampla janela” por arquiteto, artista plástico e
onde “entra o barulho da manhã na encenador, qualidades até então
cidade e sai o das máquinas de reconhecidas no artista na década
escrever da ante-sala” (ANDRADE, de 1930, une-se ao grupo de

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antropáfagos ainda em 1929 e decorativos que mascaram a
através dos jornais e congressos que eficiencia dos componentes
participou entre as décadas de 1930 estruturais, porém não se
e 40 exibe a partir da filosofia e da enquandra no conceito racionalista
psicanálise um diagnóstico do “novo de construção baseado na
homem”, o antropófago, e a partir standartização.
do diagnóstico, como arquiteto, o
A arquitetura das casas sob o
espaço ideal.
ponto de vista da eliminação de
E o homem e a curiosidade. obstáculos entre o habitante e a
Da beatitude intra uterina de
fortaleza ele passa espiar a sua liberdade de pensamento e
paisagem […]. Ele põe a ação é defendida por Flávio não só
cabeça de fora para olhar o
mundo e compreender. Ele na estrutura, mas também através
exibe um pouco do seu
interior ao que é para ele um das cores e formas interiores:
mundo selvagem. Ele não
sofre mais de agorafobia.” As cores fortes foram
(CARVALHO, Dom Casmurro, evitadas para aumentar a
2 de março de 1940). ideia de volume e espaço, de
horizonte livre nas salas e
para diminuir a noção de
Flávio afirma que “sair de casa obstáculo. As cores,
combinadas com os volumes
não tem mais a natureza de uma
e as aberturas contrariam
expedição” e não seria mais completamente a
claustromania que tanto
necessário ao Homem “armas e caracteriza a arquitetura
colonial. […] Saindo da
munições para enfrentar o mundo lá
escuridão fetal dêsse ovo
fora de casa”. As casas construidas colonial o nosso homem, ao
despontar com a arquetura e
por Flávio inauguradas em 1938 na a arte modernas se acha
cidade de São Paulo, ainda hoje diante do fenómeno de
‘nascer de novo’. (Carvalho,
pertencentes a paisagem paulista, Revista Problemas, ano 1,
número 8, 1938, p.56)
apesar das inúmeras modificações
que sofreram, são a concretização Flávio no mesmo artigo admite
do ideal arquitetônico antropofágico que o Homem ainda “sofre um
de Flávio. O conjunto de casas da pouco da aterradora ágorafobia”,
Vila Modernista de Flávio dialoga mas analisa que a arquitetura ideal
com o pensamento moderno da ao “Novo Homem”, o antropófago
arquitetura de eliminação de liberto, é também espaço de
elementos arquiteturais meramente transformação a partir das

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“combinações de cores e volumes Referências bibliográficas
que proporciam a ideia de grandes ANDRADE, Oswald. Obras Completas
espaços.” (CARVALHO, 1938, p. 56) de Oswald de Andrade 8: Teatro. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.
__________. Obras completas de
Oswald de Andrade VI: Do Pau-Brasil
à Antropofagia e às utopias. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira,1978
__________. A utopia antropofágica.
São Paulo: Globo, 1990
Figura 1- Fotografias de uma das casas da Vila CAMPOS, Haroldo. Revista de
Modernista. Revista Problemas, nº8, 1938, p. 55 Antropofagia - Reedição da Revista
literária Publicada em São Paulo – 1ª e
Desta forma, tanto o espaço
2ª “Dentições” – 1928 – 1929. São
cênico oswaldiana em A Morta, Paulo: Abril, 1975
quanto a arquitetura habitacional CARVALHO, Flávio de. Revista Anual
do Salão de Maio. Nº1, 1939
de Flávio compreendem, assim
___________. A origem animal de
como as artes modernas, que a
deus e o bailado do deus morto. São
eliminação de barreiras morais é Paulo: Difusão europeia, 1973.

condição para a construção de GARDIN, Carlos. O teatro


antropofágico de Oswald de Andrade:
uma nova sociedade baseada na da ação teatral ao teatro de ação. São
ação. Os “soterrados” descritos Paulo: Annablume, 1993.

por Oswald como os espectadores LEITE, Rui Moreira. Flávio de Carvalho:


o artista total. São Paulo: Senac, 2008.
passivos do teatro, e os indivíduos
LIMA, Evelyn Furquim Werneck &
que se escontem nas casas- MONTEIRO, Cassia Maria Fernandes.
fortalezas criticadas por Flávio, Entre arquiteturas e cenografias: a
arquiteta Lina Bo Bardi e o teatro. Rio
necessitariam de um espaço no de Janeiro: Contracapa, 2012.
qual a imprevisibilidade inerente a LYRA, Carolina. Apolo sob o signo da
vida tome lugar. Tanto o espaço devoração: a antropofagia no
desenvolvimento de uma prática
pretendido pela cena oswaldiana, cenográfica. Dissertação de mestrado.
quanto o espaço habitacional de 2016. Escola Superior de Música e
Artes do Espetáculo do Instituto
Flávio exercem dupla função: o Politécnico do Porto.
espaço ideal ao Homem livre e o NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia
espaço de confronto cruel que da moral. São Paulo: Escala, 2013
TOLEDO, J.. Flávio de Carvalho: o
transforma a energia latente em
comedor de emoções. Campinas:
energia cinética, ou seja, a Unicamp, 1994.
passividade em ação.

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Periódicos

“A leitura de algumas cenas de “O


homem e o cavalo” será feita hoje a
noite pelo sr. Oswald de Andrade”.
Diário da Noite. São Paulo, 21 de
novembro de 1933, p.3.

“Clube dos Artistas Modernos”. Diário


da Noite. São Paulo, 24 de dezembro
de 1932.
“O teatro da Experiência é um
elemento de progresso”. Correio de S.
Paulo. São Paulo, 6 de dezembro de
1933, p.2.

“O teatro da experiência em São


Paulo”. Diário da Noite. Rio de
Janeiro, 8 de dezembro de 1933.
“Por onde se insinuam doutrinas
subversivas e a corrupção da arte e
dos costumes”. Diário da Noite. Rio de
Janeiro, 9 de dezembro de 1933.

S. Paulo tem dezessete casas


verdadeiramente próprias para a
gente morar!. Revista Problemas. São
Paulo, ano 1, nº 8, 1938, p.53 – 56
“A máquina e a casa do homem do
século XX”. Dom Casmurro. Rio de
Janeiro, 2 de março de 1940.

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Mesa Redonda

ESPAÇO, CIDADE E CENOGRAFIAS

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Reflexões sobre o Coletivo olhares para os lugares.


Cantareira - movimento A reflexão sobre o processo do
pelas tradições e memórias Coletivo Cantareira2, independente
da Ilha de Paquetá
de tentativas de classificação, se
1
Liliane Ferreira Mundim pauta, prioritariamente, em apontar
caminhos que possam articular a
São muitas as maneiras de
produção de uma cultura popular, no
perceber a cidade em seu
cerne comunitário, construído em
arcabouço de características plurais
bases cooperativas e coletivas,
e diversificadas, que se configuram
atribuindo valores estéticos a essa
em diferentes contextos sócio-
produção; o processo em si tem sido
histórico-culturais. Compreender
uma tentativa de integrar a criação
esses diversos lócus, suas
artística, inserida nos pressupostos
particularidades e complexidades
de um fazer cultural de cunho
como espaço em fluxo permanente,
popular, entendendo esse termo
sempre em metamorfose é tarefa
como um conjunto de fazeres e
árdua, mas instigadora e
saberes dos indivíduos, bem como
provocadora de reflexões.
seus papéis sociais e históricos na
Especificamente, perceber
2
nesses arcabouços a cultura O Coletivo Cantareira é um movimento
comunitário empenhado em lutar pela
manutenção de algumas tradições e
popular como algo vivo e praticado singularidades da Ilha de Paquetá, assim
como em construir diferentes
e suas interfaces com as possibilidades criativas circunscritas no
âmbito do teatro, da música e da
experimentações que envolvem o performance. Inicialmente, o grupo tinha
em média 15 ou 20 pessoas mais
fazer artístico refazem muitas próximas, que de certa forma se mantêm
até hoje como uma espécie de referência
vezes esse tecido urbano que, para as tomadas de algumas decisões
necessárias ao andamento dos trabalhos,
como campo poroso e fértil e coordenadas gerais das ideias, entre
outros aspectos – são como aglutinadores
aberto às intervenções, e integradores. Porém, o quantitativo de
participantes oscila muito e o grupo pode
modificações e transformações chegar a aproximadamente 80 a 100
integrantes em muitas ocasiões,
permite aos habitantes outros principalmente em tempos de pré-
produção dos trabalhos artísticos, entre as
encenações performáticas que o grupo
realiza. O nome "Cantareira" deve-se
1
Professora Adjunta da Unirio onde ao Portal da Cantareira, a denominação
desenvolve pesquisa sobre a cidade e o usada para as fachadas do prédio nas
espaço urbano em relação ao jogo teatral ruínas remanescentes do antigo estaleiro
e coordena vários projetos pedagógicos, e estação das barcas da Companhia
inclusive o ligado à educação à distância. Cantareira e Viação Fluminense. Como foi
Doutora em Artes Cênicas (UNIRIO) com também a embarcação que transportava
Estágio Doutoral na Université Paris Ouest passageiros para a Ilha, a barca ganhou o
Nanterre La Défense (PARIS X). apelido de Barca da Cantareira.

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coletividade. cotidianas e comuns.
Prioritariamente o trabalho do Em um mundo conectado às
Coletivo tem como premissa novas tecnologias, que influenciam
experimentar o teatro e a comportamentos e costumes, a
performance como um jogo de utilização da rua para o lazer e para
construção inserido em acordos de a diversão vem perdendo
grupo, liberdade de expressão e gradativamente muito de seu
produção de conhecimento sobre a significado e força, tanto social,
linguagem teatral. como cultural e poético. No entanto,
Considerando que na Paquetá pode ser citada como esses
contemporaneidade, fatores como raros lugares onde ainda se pode
globalização e novas tecnologias, vislumbrar manifestações dessa
entre outros, provocam um natureza, que utilizam o espaço da
aumento de tensão e apreensão, rua para suas práticas, servindo,
além de perda de referências, de muitas vezes, como exemplo de
privacidade e de vínculos, que tentativa de recuperação da história
afetam sobremaneira todos os e da memória local.
níveis de relações sociais, ainda se Em se tratando de um lugar
pode vislumbrar pequenos e sutis com características singulares,
movimentos que ainda apostam na principalmente por suas
contramão dos modelos dimensões, mas muito também
formatados e estereotipados que por conta de sua configuração
dominam e determinam padrões geográfica,4 uma das
de comportamento, agindo em particularidades se refere ao fato
detrimento das criações mais de que a população local e os
comuns e particulares. A Ilha de visitantes, sejam eles eventuais ou
Paquetá3 pode ser considerada um mais frequentes, utilizam os
desses lugares com peculiaridades mesmos espaços públicos e
e características que tangenciam e semipúblicos que ainda conservam
priorizam essas maneiras de fazer algumas características típicas dos

4
3
Sua localização, no fundo da Baía de
Bairro da cidade do Rio de Janeiro Guanabara, a aproximadamente 15km do
situado em ilha bucólica no fundo da Baía centro nervoso da cidade do Rio, é um
de Guanabara, com características bem pedaço de terra em forma semelhante a
diferentes do restante da metrópole. um oito, com cerca de 1,2km² de área e
8km de perímetro.

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antigos subúrbios ou cidades Seu mote principal foi a
interioranas. Costuma-se dizer que intervenção artística cênica
as ruas da ilha são como um realizada na festa de São Roque,
grande quintal para todos; onde tradicional festejo em homenagem
crianças brincam, jogam bola, ao santo padroeiro da Ilha de
eventualmente utilizam alguns Paquetá – São Roque. A festa, que
brinquedos e brincadeiras infantis, se perpetua até hoje mobiliza a
como bolas de gude, pião ou comunidade local de forma
pipas; entre outros fazeres como significativa. Voltada para a
as rodas de conversas em cadeiras representatividade do santo
nas calçadas, entre outros. padroeiro de Paquetá, o festejo é
Especificamente, o Coletivo comemorado há mais de cem anos
Cantareira é um grupo formado e se realiza no mês de agosto, na
por moradores e frequentadores data de aniversário do santo,
da Ilha, que se reúne desde 2009, atraindo muitos visitantes. Em
informalmente, em vários locais da forma de quermesse, a festa
própria ilha, entre casas de acontece na praça em frente à
amigos, bares e praças, e dali Capela de São Roque, construída
saem ideias que acabam se no século XVII, em homenagem
transformando em produções de ao santo. Os relatos sobre a festa
5
caráter artístico-cultural. comprovam sua notoriedade, de
acordo com historiadores, “foi sem
5
O grupo foi se constituindo como um
processo de criação e passou a produzir dúvida a mais concorrida, tendo a
outros trabalhos que utilizam o espaço da
rua. Algumas das criações do coletivo, ela comparecido por mais de uma
como Autos de Natal, Folia de Reis, Corso
carnavalesco e encenações diversas com vez o próprio imperador D. Pedro
temas do lendário da Ilha de Paquetá vêm
se repetindo a cada ano em diferentes II e a imperatriz, hospedados,
épocas. Embora, não contando com
patrocínio ou verba fixa para a realização segundo consta, no Palacete
dos trabalhos, as doações, de caráter
espontâneo e irregular podem vir tanto Alambari”. (DE AQUINO &
por meio dos próprios participantes, como
também de contribuições diversas, como ZILBERGERG, p. 1991, p. 112 in
do comércio local ou outras.Vale ressaltar
que, o grupo vem contando com forte Coleção Bairros Cariocas)
apoio para seus trabalhos principalmente
pelo responsável pela Paróquia Católica Porém, com o passar do
local que abre socializa o espaço do Salão
Paroquial para reuniões e recentemente tempo, essa festa foi tomando
para a guarda do acervo de figurinos e
adereços do grupo, o que vem facilitando
o trabalho de forma qualitativa.

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outras características e, apesar da bastante, segundo a própria
estética de “festejo colonial”, seus organização da Paróquia local, pois
aspectos lúdicos foram sendo há um rodízio dos párocos; tais
mantidos. mudanças de liderança religiosa
De maneira geral, parte da provocam variações no
população de Paquetá – tanto envolvimento com a comunidade.
moradores, como frequentadores Retomando a trajetória do
habituais ou eventuais – participa Coletivo Cantareira, a partir da
de certa forma dos preparativos primeira intervenção realizada na
dos festejos de São Roque, festa de 2009, o denominado Auto
ocupando-se com várias de São Roque, observa-se que,
atividades. De acordo com nos festejos subsequentes, a
pressupostos que caracterizam os performance como encenação de
festejos religiosos, a festa reúne rua que adentrou a Praça em meio
trabalho, sacrifício, forças e ao festejo, causando
poderes formais e informais; traz, estranhamento, surpresa e até
fundamentalmente em seu âmago, mesmo um certo impacto visual,
a prática da sociabilidade. Estar plástico, sonoro, cênico, mas
presente na festa é, portanto, principalmente modificando o fluxo
estar envolvido em e o trajeto do corpo da festa, foi
emoções, de modo que as
ações ritualísticas tenham as de um simples movimento
dimensões social e simbólica espontâneo e pontual a algo
articuladas para atribuir
sentido à realidade e à incorporado ao evento de forma
compreensão do mundo
circundante, bem como à vida oficializada pela própria
e ao imaginário das pessoas comunidade tanto local como
ligadas aos festejos. (LÔBO &
MAIA, 2007, p. 150) também alcançando os visitantes

Na atualidade, observa-se eventuais da festa. Agraciada

que essa capacidade de pelos que puderam contemplar o

aglutinação e integração que o acontecimento, foi a partir do ano

evento dos festejos de São Roque seguinte cobrada como algo

provocava outrora acontece em obrigatório a ser representado e

menor intensidade. Vale ressaltar, pertencente ao festejo.

no entanto, que pode variar


Ao longo desses dez anos de

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participação efetiva, já faz parte do fortes elementos lúdicos
calendário oficial dos festejos e atravessados pelas influências da
vem passando por modificações e Comédia Del`Art e o Carnaval,
transformações, perfazendo um transitam em uma seara que
trabalho processual baseado nos possibilita liberdade estética,
pressupostos da construção incluindo múltiplas linguagens,
coletiva e colaborativa. O trabalho sempre em modificação e
que envolve das conversas transformação. Para embasar essas
informais a pesquisas tanto reflexões sobre processos de
historiográficas, contendo trabalho que tangenciam diferentes
elementos e repertório das Artes vertentes, Pavis aponta que “o
em geral, como Teatro, Música, termo inglês performance, aplicado
Artes Visuais, entre outras ao teatro, designa aquilo que é
abordagens, tem características desempenhado pelos atores e
tanto do Teatro de Rua6 quanto da realizado por todos os
Performance;7 porém, a partir das colaboradores da 'representação',
análises apontadas nessa ou seja, daquilo que é apresentado
investigação, optou-se por defini-lo a um público após um trabalho de
no campo da Performance, visto ensaios” (PAVIS, 2010, p.43).
que a dramaturgia, a criação de
Nessa perspectiva, pode-se
personagens, figurinos, adereços e
dizer também que o trabalho
sonorização, além de serem
desenvolvido pelo Cantareira tem
construídos processualmente, de
sido uma tentativa de integrar a
forma coletiva, cooperativa com
criação artística, inserida nos
pressupostos de um fazer cultural
6
Teatro que se produz em locais exteriores
às construções tradicionais: rua, praça, de cunho popular, entendendo
mercado, metrô, universidades, etc.
Desenvolveu-se particularmente nos anos esse termo como um conjunto de
sessenta, mas, na verdade, volta às origens
gregas. Atualmente tende a se fazeres e saberes dos indivíduos,
institucionalizar e se organizar em festivais e
se instalar num percurso urbano (PAVIS, bem como seus papéis sociais e
2003, p. 385).
históricos na coletividade. Além
7
A performance ou performance art é uma
expressão que poderia ser traduzida por dessas iniciativas, tem como
“teatro das artes visuais”. Surgiu nos anos
1960 e associa artes visuais, teatro, dança, premissa experimentar o teatro
música, vídeo, poesia e cinema. Enfatiza a
efemeridade e a falta de acabamento da como um jogo de construção
produção (PAVIS, 2003, p. 284).

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inserido em acordos de grupo, Para melhor se definir,
liberdade de expressão e produção portanto, o trabalho do grupo, os
de conhecimento sobre a pressupostos expostos por Santos
linguagem teatral. foram tomados como parâmetro,
Considerando ser essa uma ou seja, trata-se de um trabalho
discussão sempre renovada, o de cunho popular, em permanente
trabalho comunitário desenvolvido movimento de atualização de
pelo Cantareira, baseia-se em memória e histórias locais, aberto
princípios e procedimentos e em busca da consolidação de
metodológicos extremamente antigos e novos vínculos,
flexíveis e maleáveis. É um espaço produzindo uma cultura comum e
aberto a todos que desejam ordinária.
contribuir e participar, sendo essa Tais experiências do Coletivo
uma das principais características Cantareira podem comprovar que
de um trabalho popular. De acordo a sociedade civil, organizada e
com a professora e pesquisadora reunida em torno de objetivos
Idelette Muzart Fonseca dos comuns, pode vir a adquirir a
8
Santos, retomada do espaço público da rua
“Popular” é um termo não só como um direito à rotina e
literalmente repleto de
definições, verdadeiras ou ao fluxo cotidiano, mas também
falsas, que gerações de ao folguedo, à festa, ao cortejo,
estudiosos tornaram
problemáticas. O termo traz como formas singulares
em si a complexidade da
palavra povo, que designa, ao construídas no âmago da
mesmo tempo, uma multidão comunidade. Afirmam também o
de pessoas, os habitantes de
um mesmo país que compõem potencial do espaço como lugar de
uma nação e a parte mais
pobre dessa nação “em memória e história, aberto e fértil
oposição com os nobres, ricos, a interferências criativas e
esclarecidos”.9 (FONSECA DOS
SANTOS, 1999, p. 14) imaginativas.

Pode-se dizer também a


8
Idelette Muzart Fonseca dos Santos.
Université Paris Ouest Nanterre La relevância da ocupação do espaço
Défense, UFR de Langues et Cultures
Etrangères/Doctorat d'Etat ès Lettres et público do local que se revelou um
Sciences Humaines/ Université Paris
Sorbonne Nouvelle.
forte indutor para a criação da
9
Tal conceito está baseado em seus dramaturgia, das cenas, dos
estudos com Geneiève Bollême.

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personagens e de todo o processo mais fortes quando ligados ao
de criação. Os elementos do passado, não no sentido de
espaço, em sua amplitude de perpetuação, mas como
dimensões concretas e abstratas, fundadores de outros sonhos e
instigaram as experiências no devaneios (BIÃO, 2007, p. 294).
campo das artes cênicas e Nesse sentido, apontar que a
particularmente no caminho da força aglutinadora e integradora
performance. como ação comunitária, além de
O pesquisador Jorge das contribuir sobremaneira para
10
Graças Veloso aponta que Carl instigar e provocar outros olhares
Gustav Jung, em Memórias, e sentidos mais aguçados para o
sonhos e reflexões (1963), se local reflete o desejo de construir
refere ao processo criativo como coletivamente um maior
um diálogo entre o consciente, o sentimento de pertencimento para
presente, o inconsciente, o com o lugar, reavivando e
passado, o presente e o futuro, em atualizando seu patrimônio
uma prevalência constante da material e imaterial.
memória (BIÃO, 2007, p. 294). O espaço público da Ilha de
Para justificar essa afirmativa, é Paquetá, por sua carga simbólica,
importante ressaltar que o espaço induz à prática desses

onde se realizam os festejos do experimentos, visto que, além de

santo, seus elementos ser um espaço repleto de histórias


que são passadas de geração a
arquitetônicos e sua história e
geração, guarda memórias e
memória, para os habitantes e
ancestralidades. Mas,
frequentadores da ilha, são
principalmente, porque se modifica
dotados de forte simbolismo
e se transforma através do fluxo
histórico-cultural, construído ao
permanente de seus habitantes,
longo desses mais de cem anos. estreitando vínculos através da
Ainda complementa o autor que fácil circulação por entre as ruas,
esses processos criativos são ladeiras, morros e praias do local.
guiados por uma imaginação que Essas formas dialógicas entre o
nos remete ao futuro e se tornam grupo e consequentemente do
grupo com o espaço promovem
10
Ator, dramaturgo e encenador, mestre e
doutor e Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA. relações interpessoais, se não

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mais qualitativas um pouco mais dão um caráter maior na
estreitas. Nesse sentido, o próprio qualidade dos trabalhos e podem
ato de criação se configura, por si também apontar para futuras
só, como um ato performático, parcerias. O trabalho também,
pois abrange elementos de especificamente o Auto de São
gestualidade, teatralidade, Roque foi analisado criticamente
expressividade, comunicação oral, em minha Tese de Doutorado12,
transmissão, recepção e trocas defendida em 2016.
como práticas preponderantes,
Comprovando mais uma vez
que fazem parte do processo de
a potência da Arte, especialmente
criação do grupo.
do Teatro, como linguagem
Embora o trabalho não esteja
milenar, de características abertas
não esteja inserido oficialmente
e democráticas, que vai se
como projeto de extensão
revelando cada vez mais
acadêmico, ligado à Universidade
disponível para todos aqueles que
(UNIRIO), visto que, como
desejam se apropriar dessa área
professora efetiva do Curso de
de conhecimento, de caráter
Licenciatura em Teatro e como
artístico ou performático; mas
habitante da Ilha de Paquetá e
também afirmando seu fazer como
coordenando o projeto nesses 10
11 exercício de ocupação,
anos de existência desde sua
intervenção, entre outras
criação vem contando com apoios
possibilidades estéticas e
pontuais de alguns profissionais do
pedagógicas, como parte
Curso de Teatro que
integrante e fundamental para os
eventualmente prestam
processos de aprendizagem e
consultorias de cunho técnico e
construção de cidadania.
artístico ao grupo, de forma
espontânea. Essas participações

12
Trabalho de Tese defendida em março
11
Como nota triste dessa trajetória, vale de 2016 pela Profª Drª Liliane Ferreira
mencionar a perda inestimável de minha Mundim com o título O espaço da cidade
parceira de trabalho, falecida em como indutor de jogo teatral, sob a
novembro de 2018, criadora e responsável orientação Profa. Dra. Evelyn Furquim
pela coordenação da confecção de Werneck Lima e foi referendado como
figurinos e adereços, Valéria Maia (in performance e cultura popular pela Profª
memoriun) houve um forte abalo na Drª Idelette Muzart Fonseca dos Santos.
estruturação do trabalho desse ano de (Université Paris Ouest Nanterre La
2019, porém o grupo se reintegrou e se Défense, UFR de Langues et Cultures
fortaleceu mais ainda prestando uma Etrangères/Doctorat d'Etat ès Lettres et
homenagem inserida no próprio roteiro e Sciences Humaines/ Université Paris
repertório das cenas e músicas Sorbonne Nouvelle) durante o período de
apresentadas. Doutorado Sanduíche em Paris.

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Ah, se eu fosse esse Rio e Laranjeiras, estudantes de diversos


soubesse falar...experimentos cursos da UFS e a comunidade em
cênicos na cidade histórica de geral, participantes de oficinas de
Laranjeiras
teatro e de oficinas de figurino. Foi
Joana Angélica Lavalée Mendonça e Silva
1
prevista uma apresentação pública
ao final do ciclo de oficinas teatrais
Fui à praia pegar peixe/ mas não
peguei peixe não. do referido projeto na feira livre
Peguei uma sereia/ que roubou meu que acontece aos sábados no
coração
centro da cidade, com vistas a
O presente trabalho propõe investigar possibilidades de
apresentar uma etapa do projeto abordagens poéticas em torno da
de extensão Renovação e sensibilização a respeito das
recuperação do Rio Cotinguiba, questões da saúde do rio
uma parceria dos Departamentos Cotinguiba, território de convívio
de Arquitetura e Urbanismo, do comum na cidade de Laranjeiras.
Departamento de Teatro e do
O Vale do Cotinguiba é
Departamento de Engenharia
entrecortado por rios, inclusive por
Ambiental da Universidade Federal
aquele que o nomeia. O município
de Sergipe (UFS), sediado na Casa
de Laranjeiras, distante
de Extensão do Campus
aproximadamente 20 quilômetros
Laranjeiras.
da atual capital de Sergipe,
Especificamente, trata-se da Aracaju, é situado na região leste
partilha de processos de do estado. Laranjeiras teve sua
experimentação cênica em origem durante a colonização
andamento que envolveram portuguesa, tendo sua paisagem
estudantes bolsistas e professores marcada pela presença do rio
dos cursos de Arquitetura e Cotinguiba, pela arquitetura
Urbanismo e de Licenciatura em barroca das numerosas igrejas, por
Teatro da UFS, jovens estudantes alguns casarões do século
de escolas municipais de dezenove que ainda persistem e é
envolvida por colinas, como a do
1
Cenógrafa e Figurinista. Professora Morro do Bonfim. As praças e ruas
Adjunta do Departamento de Teatro da
Universidade Federal de Sergipe (UFS). alinham-se, obedecendo ao traçado
Doutora e Mestre em Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Estado do Rio de fluvial, e, ao redor delas, estão
Janeiro (UNIRIO).

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implantados os principais edifícios, 1848, dispondo de um porto de
trapiches, sobrados comerciais e importantes trocas comerciais com
residenciais, mercado e centro a Bahia, Pernambuco, Rio de
administrativo. Grande parte do Janeiro e Europa, segundo
núcleo urbano atual é formado pelo Wellington Bonfim (2014:63-64).
centro histórico, conjunto As cidades daquele período eram
arquitetônico, urbanístico e construídas, preferencialmente,
paisagístico tombado pelo Instituto próximas a rios, melhor meio de
do Patrimônio Histórico e Artístico circulação da época. Nas partes
Nacional (IPHAN), desde 1996. altas da povoação estavam
localizados os poderes da Igreja e
Nações indígenas
do Estado e ainda a residência dos
viveram ao longo do grande rio que
mais abastados. Na parte baixa
nascia na Serra Comprida e
localizava-se a moradia dos menos
desembocava no mar, utilizado-o
afortunados, juntamente com o
para navegação, pesca, rituais e,
comércio.
às margens, solo fértil para a
agricultura de subsistência. A economia açucareira no
Chamavam-no Cotinguiba, segundo século dezenove, calcada no
Cezar Alexandre Neri Santos sistema escravista estruturado no
(2012), nome proveniente da união tráfico de pessoas oriundas de
das palavras em tupi Ybi (terra), diferentes regiões do continente
cui (pó), tinga (branco), tyba africano, alavancou o crescimento
(lugar). A expressão “lugar de pó de várias cidades nordestinas,
branco de terra” possivelmente se como foi o caso de Laranjeiras.
deve à presença de grande Esta foi especialmente favorecida
quantidade de sedimentos pela fertilidade do terreno
calcáreos nas águas. massapê2 próximo ao Rio e pela
possibilidade de escoar a produção
Tropas de Cristóvão de
por via fluvial, distribuindo e
Barros dizimaram as nações
recebendo mercadorias de outras
indígenas residentes na região, por
localidades. Os senhores de
volta de 1590, e desde então,
engenho construíram seus
iniciou-se novo povoamento nas
margens do Rio. A antiga vila foi 2
Terra argilosa de excelente qualidade
alçada à condição de cidade em para a cultura da cana-de-açúcar.

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casarões e abasteciam-se de de formação da região
produtos e da mão de obra metropolitana de Aracaju com a
escravizada por meio desse porto. redução das áreas rurais, a
Barracões de armazenamento ampliação da população urbana
(trapiches) localizados à beira do com novos modos de viver, a
rio Cotinguiba foram construídos diversificação das atividades
para efetivar transações econômicas, o trabalho nos
comerciais. mercados e fábricas (MELLO,
2011).
Segundo Janaína Mello
(2011: 305), de 1878 a 1904, A restauração do conjunto
Laranjeiras vivenciou seu apogeu do antigo Quarteirão dos Trapiches,
econômico. Neste momento, foi realizada pelo Programa
amplamente propagado o título de Monumenta4 foi obra concluída em
Atenas sergipana, amparado pela 2009 e permitiu a implantação de
efervescência cultural e intelectual um campus da Universidade
da cidade materializada na Federal de Sergipe num antigo
presença de dois grandes teatros: quarteirão em avançado estado de
o Teatro Santo Antônio e o Teatro arruinamento, situado na margem
3
São Pedro. O Teatro Santo Antônio do Rio Cotinguiba (COSTA,
recebeu companhias nacionais e 2013:81). Aquele espaço era
internacionais que se apresentaram composto por sobrados
em seu espaço. residenciais, depósitos de
mercadorias e um pier onde
Passado o auge da economia
aportavam navios comerciais. Hoje
açucareira, o rio passa a ser
comporta o campus da UFS no qual
navegado por pescadores e
estão estabelecidos os cursos de
utilizado por agricultores para
Arquitetura e Urbanismo,
irrigação. Ainda no século XX,
Museologia e Arqueologia. Este
Laranjeiras experimentou seu
campus já abrigou o curso de
processo de urbanização no quadro

4
O Programa Monumenta foi um
3
Posteriormente este edifício teatral ficou programa do governo federal brasileiro
executado pelo Ministério da Cultura e
abandonado, utilizado como cortiço, mas
patrocinado pelo Banco Interamericano de
obteve novo uso após restauração, Desenvolvimento (BID) que consistiu na
passando a sediar a Biblioteca e salas de reforma e resgate do patrimônio cultural
professores do campus da UFS. urbano em todo Brasil. Criado em 1995,
atendeu a mais de 26 cidades.

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Teatro, hoje situado no Campus de compromisso com o meio
São Cristóvão, antiga capital de ambiente, buscando consolidar
Sergipe. vínculos diretos entre a
universidade e a sociedade.
Entre os problemas de cunho
socioambiental detectados no rio O projeto de extensão
Cotinguiba no século XXI, segundo Renovação e recuperação do rio
Wesley Santos (2012: 136), Cotinguiba tem atuado a partir de
destaca-se a degradação da uma demanda da Cooperativa de
qualidade dos mananciais Pescadores de Laranjeiras. Esta
ocasionada pela falta de ação de extensão propõe trabalhar
tratamento adequado de resíduos e uma frente junto à Associação dos
a consequente contaminação por Comerciantes e à Câmara de
fontes diversas, recebendo dejetos Vereadores com o intuito de iniciar
provenientes das indústrias, um programa para a diminuição de
agrotóxicos, matadouro, postos de sacolas plásticas nos
gasolina entre outros. estabelecimentos comerciais, visto
que este item foi um dos principais
Nesse sentido, o objetivo
resíduos encontrados no leito do rio
geral do projeto é fomentar uma
em uma ação da universidade em
campanha de recuperação do rio
2017.
Cotinguiba que mobilize a
população em prol desse fim. A A realização de eventos visa
situação das águas é de associar-se a oficinas de teatro
fundamental importância para a oferecidas a jovens estudantes das
qualidade de vida. No caso de escolas municipais na Casa de
Laranjeiras, o rio Cotinguiba, além Extensão de Laranjeiras, tendo
de apresentar valores simbólicos como foco dramatúrgico o próprio
relacionados à história da cidade, é rio Cotinguiba. No intuito da
de vital relevância para a sensibilizar moradores e
manutenção da comunidade frequentadores, Maria Cecília
pesqueira da região. Assim, este Tavares, como coordenadora do
projeto visa criar um impacto projeto e professora do curso de
positivo no engajamento tanto da Arquitetura e Urbanismo,
população residente quanto na juntamente com a coordenadora
população acadêmica no adjunta e professora do

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Departamento de Teatro Márcia escolas municipais moradores do
Baltazar, apoiaram-me como centro de Laranjeiras, recolhessem
professora orientadora do mesmo e anotassem suas impressões a
Departamento. Desenvolvi o respeito desse território
projeto orientando a estudante de aparentemente já tão conhecido e
Arquitetura e Urbanismo Mayra corriqueiro como o rio e a
Lima e os estudantes de paisagem que o circunda. Saindo
Licenciatura em Teatro Elenilton da Casa de Extensão, foram
Farias e Anderson Severo, que visitados pontos do centro histórico
integraram esta etapa. como a lateral dos trapiches, local
onde atualmente está instalada a
Desde os primeiros
universidade, o marco inicial da
encontros ficou estabelecido que os
cidade (entre a universidade e o
estudantes bolsistas envolvidos
mercado), a Praça da Prefeitura e o
compartilhariam com toda equipe o
Largo do Quaresma, ao lado do
que chamamos de Diário de Bordo,
Centro de Artesanato. Os jovens
que consiste em registros
demonstraram o desejo de
compostos por fotografias e relatos
apresentar um outro aspecto não
das atividades das oficinas.
incluído no trajeto, que seria a
Como afirma Evelyn F.W.
ponte antiga da cidade, pela qual é
Lima, deve-se ter em vista as
possível acessar o rio Cotinguiba. A
afinidades entre a cidade e o teatro
ponte fica próxima à Igreja Nossa
como lugares de trocas e de
Senhora da Conceição dos Pardos e
sociabilidade, como estímulo à
às ruínas do antigo Teatro São
micropráticas do espaço cotidiano
Pedro.
vivido e a ênfase nas práticas
No encontro que se seguiu à
artísticas como meio de conferir
essa experiência da caminhada
novos significados aos espaços
pelo centro, em um grande papel
urbanos (LIMA, 2013).
estendido no chão da sala na qual
Após alguns encontros aconteceram as oficinas, os
destinados a jogos de iniciação participantes foram estimulados a
teatral, propôs-se uma deriva pelo registrar impressões recolhidas
centro da cidade, para que os sobre o rio, por meio de desenhos
jovens participantes, estudantes de e por meio da escrita, por livre

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associação de ideias. Partilhamos desenvolvimento de propostas
algumas músicas que expressam a cênicas tomaria tempo integral.
temática das águas de diversas
No primeiro encontro da
maneiras, com vistas a atentar
oficina de figurino, ao qual
para aspectos poéticos, e buscando
compareceram tanto estudantes da
evitar o já suficientemente
UFS quanto jovens moradores de
explorado modo discursivo e
Laranjeiras, apresentou-se a
panfletário de abordagem destas
problemática do rio e o intuito do
questões.
curso de curta duração que era criar
Como levantamento de e confeccionar os figurinos para a
possibilidades de criação de cena em andamento nas oficinas de
aspectos da visualidade da cena a teatro. Ao longo da apresentação
ser construída, os jovens pessoal de cada participante,
participantes das oficinas de teatro trocamos ideias sobre qual era a
foram estimulados a propor figurinos relação de cada um com o vestuário,
individuais, com base nos desenhos com o figurino. Os participantes da
e impressões recolhidos por eles oficina de figurino circularam em
mesmos no grande painel. Foram torno do painel de impressões e dos
sugeridos, por meio de livre desenhos de figurinos produzidos
expressão gráfica, tanto pelos alunos, observando e
personagens do cotidiano como refletindo a respeito das palavras e
pescadores, como peixes os desenhos dos alunos.
apresentando aspectos huanizados
No encontro seguinte da
ao sinalizar apreensão e melancolia
oficina de figurino propôs-se uma
e ainda figuras míticas como sereias
deriva pelo centro da cidade, para
e entidades protetoras das águas.
que os alunos, alguns não
Ao longo destes encontros moradores de Laranjeiras, se
foi detectada a necessidade de se familiarizassem com o rio e a
abrir nova turma, dedicada paisagem que o circunda. Foi feito
exclusivamente à criação e um percurso com alguns pontos
construção de figurinos, já que no semelhantes aos que alunos da
decorrer das oficinas teatrais oficina de teatro percorreram no
observou-se que o centro histórico. Naquele momento
atentou-se para o fato de que o

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experimento cênico deveria Oficina de Teatro no mesmo turno,
transitar pelo local ocupado pela chegaram ao fim da discussão e
feira livre, que ali acontece desde o falaram sobre ideias que foram
século XVII quando ainda existia o discutidas com os alunos da oficina
porto fluvial. A feira instala-se na de Teatro sobre ideias de
rua paralela ao curso do rio. personagens como base para
Propôs-se que os participantes pensarmos figurinos.
expressassem de forma livre o que Como traçados iniciais da
viram e sentiram ao longo de todo visualidade deste experimento
o percurso. Foram visitados a rua cênico, foi proposta uma espécie de
na qual se instala a feira aos figurino-cenografia (PAVIS, 2009),
sábados, a praça da Prefeitura, na um grande tecido de cerca de 5
qual encontra-se a estátua em metros de comprimento por 3
homenagem ao poeta João metros de largura, a princípio
Sapateiro e o busto em utilizado nos aquecimentos e jogos
homenagem ao pintor romântico teatrais vivenciados na abertura dos
Horácio Hora, ambos moradores encontros da oficina de teatro. Este
ilustres da cidade. E por fim o passou a ser o dispositivo vestido e
Largo do Quaresma, que margeia o manipulado em movimento pelos
Rio, onde se pode acessá-lo e vê-lo participantes em cena.
mais de perto. Poemas, fotografias
Nos encontros finais os
e desenhos e observações foram
participantes criaram e
partilhados ao fim da caminhada.
confeccionaram, usando como
Voltamos à Casa de matéria-prima materiais recicláveis
Extensão e nos reunimos em roda. que seriam descartados, adereços
Os participantes partilharam suas de cabeça, adereços para os
anotações e desenhos sobre o rio e punhos e para o tronco, isto é,
expressaram suas impressões. destinados às as partes do corpo
Alguns através de poesia, desenho mais evidenciadas com o uso do
e desabafos, sobre a atual situação grande tecido. Visualmente,
do rio que se encontra poluído e passaram a operar como pontos de
um pouco mais seco do que lixo descartados no leito do Rio.
outrora. A professora Márcia e o
Vestido com esse figurino-
aluno Elenilton que ministram a
cenografia por meio do uso

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coletivo, o grupo participante Neste percurso cênico, a
transitou na feira livre que materialidade efetivou-se no uso
acontece aos sábados, chamando a como matéria-prima do que seria
atenção dos transeuntes, descartado, com o intuito do alerta
recolhendo lixo com talheres de a respeito daquilo que se descarta
salada que, pela forma com que no território comum que é o rio
são manipulados remetem às patas Cotinguiba. Frequentadores da
de caranguejo. Percebeu-se o papel feira, são encorajados a se engajar
dinâmico que um dispositivo cênico subjetiva e imaginativamente com
opera, ao orquestrar o ambiente a performance por meio do
visual e sensorial. construto espaço-visual do figurino
que se movimenta pelo espaço
Após as referidas
urbano. O próprio lugar, a feira, foi
caminhadas realizadas no centro
concebido como o anfitrião,
com os participantes das oficinas
ressonante com as vidas dos
de teatro e de figurino, no intuito
habitantes. O outro componente
de captar impressões, a feira
ativo que constitui o evento é o
terminou por se constituir de fato
público. Conforme Arnold Aronson
como a circunstância e local
(2005: 1), a apreensão do espaço,
escolhido para a partilha pública,
apesar de ser quase sempre
historicamente consolidado como
registrada subconscientemente,
local de trocas e de sociabilidade
pode vir a ser a mais profunda e
desde a consolidação daquela
vigorosa experiência teatral.
localidade. A feira e o porto foram
elementos determinantes no Ao longo do trajeto, foram
desenvolvimento e consolidação do cantadas cantigas populares
núcleo urbano laranjeirense amplamente conhecidas que
(COSTA, 2013: 84). A feira situa-se remetem à temática das águas,
dentro do perímetro do centro associadas ao universo da infância
histórico, próxima ao Campus da de várias gerações. Todas elas
UFS, região na qual se concentram apresentam refrões de fácil
as principais atividades comerciais, assimilação, como A canoa virou,
administrativas e muitas dos Peixe vivo, Caranguejo não é peixe,
eventos em torno dos quais o Fui no Tororó e Peixinhos do Mar.
turismo local se organiza.

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As canções entoadas pelo Observou-se que
grupo foram lançadas como experimentos como estes podem
recurso de memória e afetividade, ainda estabelecer elos conceituais
aqui lançadas sobretudo no (re) com práticas e reflexões a serem
atentar à presença do Rio naquela desenvolvidas nas disciplinas do
cidade. O recurso da repetição curso de Licenciatura em Teatro
propicia outras camadas de diretamente ligadas à visualidade
significados para as respectivas da cena como Indumentária, Teatro
letras. A exemplo das palavras de de Formas Animadas, Máscaras e
um trecho de Peixe vivo: “como Cenografia, aliados ao estímulo a
poderei viver sem a sua um olhar atento e sensível às
companhia?”, pergunta que pode questões da cidade. Joslin
ser aplicada a uma possível falta ou McKinney observa que conceber
ausência do rio e seus recursos. cenografia é um processo de
pensamento que oscila entre o
Considerações finais
visual e o cognitivo (MCKINNEY,
Como resultado desta etapa, 2008:34).
pretende-se proporcionar aos Está sendo discutida a
envolvidos o conhecimento e a proposta de apresentar o
reflexão crítica a partir de realidades experimento cênico Ah, se eu
vivenciadas na cidade de Laranjeiras fosse esse Rio e soubesse
no seu convívio com o rio falar...em outras localidades nas
Cotinguiba. Atentamos para quais verificam-se problemáticas
inúmeras possibilidades expressivas semelhantes. É recorrente, desde
e comunicativas ocorridas no a colonização até o momento, o
percurso ao longo da feira livre no descaso das políticas públicas com
centro histórico de Laranjeiras, a as nascentes dos rios, cursos
interação com fragmentos de d´água e áreas do entorno,
dramaturgias sugeridas pelas comprometendo a quantidade e
cantigas populares que evocam a qualidade de recursos vitais.
temática das águas, com os
participantes e o engajamento do Evidenciou-se que resultados

público espontâneo. podem ser desenvolvidos e


utilizados na próxima ação e assim
sucessivamente, de forma a

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propiciar uma espiral de PAVIS, Patrice. A Análise dos
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Ocupação #6 Terras - entre forma de ferro e vidro2. É


o teatro épico e o teatro justamente na cidade símbolo do
performativo, a cidade desenvolvimento e do progresso
Sara Fagundes1 capitalista que ocorre a luta entre
C. Shilink, um comerciante de
O presente estudo se dedica
madeiras malaio e George Garga,
a analisar o trabalho desenvolvido
funcionário de um sebo de livros
pelo grupo teatral paulistano
que se mudou, junto de sua
mundana companhia – a partir do
família, do campo para a cidade
texto dramatúrgico de Bertolt
grande. O texto é dividido em
Brecht Na Selva das Cidades
onze cenas independentes que
(1923) – no projeto Na Selva das
acontecem como se fossem rounds
Cidades – Em Obras - #ocupasp
de uma luta de boxe. A cada
(2017), especificamente na
sequência um confronto vai
encenação denominada de
traçando o caminho da família e
Ocupação #6-Terras. O trabalho
dos personagens rumo a
busca reflexões acerca do espaço
decadência na selva das cidades.
da cidade como elemento central
Conflitos muitas vezes
na conjunção de uma estética e
contraditórios, sem uma
poética épico-performativa.
explicação clara. É a luta pela luta.
O jovem Brecht escreveu Na A peça se desenvolve em cenas
Selva das Cidades em meados da isoladas, mas traça, embora de
década de 1920 momento em que forma fragmentada e lacunar, um
a Alemanha tentava se
reconfigurar política, social,
econômica e culturalmente, após a 2
Havia crença nos modelos capitalistas
que se conformavam e, com isso,
destruição da Primeira Guerra aumentava-se a confiança no progresso
Mundial. Enquanto isso, em que chegava. A proposta urbanística
desenvolvida após o incêndio que destruiu
Chicago, vivia-se um momento de a cidade, em 1871, mostrou-se como uma
excelente resposta ao elevado crescimento
euforia com a modernidade em
urbano do período. Racionalismo, novos
materiais, novas tipologias, verticalidade e
vias de transporte rápido eram os
pressupostos adotados para a
conformação do que hoje seriam as
1
Arquiteta e cenógrafa. Mestranda em metrópoles.
Artes Cênicas (CAPES/UNIRIO)

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percurso do início em direção ao texto para além das experiências
catastrófico final. de caráter mais aberto surgiu, e
ao retomar a sala de ensaios e
Os senhores encontram-se no
ano de 1912 na cidade de uma possível relação tradicional
Chicago. Observam a com o espaço, texto e
inexplicável luta entre dois
homens e acompanham a espectadores a companhia
decadência de uma família precisou pensar uma forma que
que veio do campo para a
não sintetizasse em um único
selva das cidades. Não
quebrem a cabeça sobre os espetáculo as experiências
motivos dessa luta, mas
realizadas. Mas, um modelo que
participem das jogadas
humanas, julguem se testasse no esgarçamento de
imparcialmente o método de sua própria forma, nas idas e
luta dos adversários e voltem
seu interesse para o final. vindas, nas construções e
(BRECHT, 2016:28) desconstruções realizadas a partir

Foi no encontro do texto com das imersões na cidade.

a realidade atual da cidade de São


Voltar ao centro da cidade, à
Paulo, que a mundana companhia sala de ensaio, ao texto e,
em última instância, ao
desenvolveu a primeira etapa do
teatro, parecia não fazer mais
projeto, Na Selva das Cidades - sentido. As experiências que
Entre tempos e Espaços vivemos na cidade eram tão
mais potentes, radicais e,
(2014/2015), que se propunha principalmente, mais vivas e
como uma pesquisa, ainda sem urgentes, do que
simplesmente montar mais
vistas à montagem da peça. Esta
uma peça de teatro. [...]
etapa se constituiu a partir de
Resolvemos, juntos, abrir
imersões em espaços pungentes radicalmente o espetáculo
da cidade, experimentando as para a potência das
experiências vividas na
ações evocadas pelo texto e cidade. A cada nova
criando a partir da imersão nesses ocupação, faríamos uma nova
pesquisa de campo e uma
espaços as estruturas e a
ocupação singular onde tudo
espessura das cenas. A cada local se transforma na relação com
ocupado um quadro específico da o espaço ocupado, as pessoas
que frequentam e a sua
dramaturgia foi trabalhado. No história. (FORJAZ, 2016:17)
entanto, o desejo de encenar o

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A segunda etapa do trabalho, desdobramento, o grupo retornou
Na Selva das Cidades – Em Obras, aos espaços que imergiram
3
compreendeu 15 ocupações , ao durante a primeira fase do
longo de dois anos – 2016 e 2017 projeto, colocando a encenação já
– também na cidade de São Paulo. estruturada para ser atravessada
Esta etapa sofreu uma subdivisão, e reconstruída a partir da
que separaram as três primeiras realidade dos lugares que ocupou.
ocupações, das 12 subsequentes. Cibele Forjaz aponta que “a
As Ocupações #1, #2 e #3, concepção que a gente conseguiu
aconteceram em espaço dos ter na Selva, a partir da
SESCs da cidade e em um centro experiência forte das imersões, foi
cultural, e as seguintes, da #4 a que era impossível ter uma [única
#15, fizeram parte de um concepção]. Que qualquer uma e
subprojeto dentro deste maior, o qualquer teatro diminuiria. Porque
Na Selvas das Cidades – Em obras já que a personagem principal é a
– #ocupasp. Neste cidade, o lugar é o diretor.”
(FORJAZ, 2019).
3
Encenações em tempos e espaços
específicos. Em cada ocupação era
Deste modo, o encontro da
apresentada uma montagem diferente do
mesmo texto: Ocupação #1 – Sesc companhia com a comunidade
Ipiranga – SP (2015); Ocupação#2 –
Instituto Capobianco – São Paulo (2015); Coliseu ocorreu em 2014 durante
Ocupação #3 – Sesc Pompéia – São Paulo as pesquisas imersivas realizadas
(2016).; Ocupação #4 – Pessoal do
Faroeste (Sede da Companhia do em Na Selva das Cidades - Entre
Faroeste, Região da Luz), Ocupação #5 –
tempos e Espaços. O grupo, que
Águas (Yacht Club de Santo Amaro),
Ocupação #6 - Terras (Vila Coliseu, Vila investigava a espacialidade da
Olímpia), Ocupação #7 – Comida
(Sindicato dos Carregadores da CEAGESP,
Avenida Luís Carlos Berrini e o
Vila Leopoldina, Ocupação #8 – novo centro econômico da capital
Reciclagem (Favela do Escorpião, Jardim
Ipanema), Ocupação #9 – Pele paulista – e elegeu o Shopping JK
(Madeireira Amarante, Butantã) Ocupação
para a leitura da segunda cena da
#10 – Love Story (Centro), Ocupação #11
– Morte (Cemitério da Lapa), Ocupação peça –, descobriu a favela em uma
#12 – Espetáculo (Paróquia Divino Espírito
Santo, Arthur Alvim), Ocupação #13 –
deambulação pelas ruas do
Matas (Horto Florestal), Ocupação #14 – entorno do shopping. Nesta fase
Catch (Viaduto Alcântara Machado, Região
da Luz), Ocupação #15 – Caos (Teatro do projeto, realizaram na casa de
Oficina Uzyna Uzona).
Dona Terezinha, uma moradora da

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comunidade, a leitura do quadro da região, que certamente aos
4
três . Com prosseguimento do olhos do capital perturbam a
trabalho e seu desdobramento imagem de bairro de elite e centro
com o Na Selva da Cidades - Em de negócios da cidade. A referida
Obras -#ocupasp, o grupo decidiu operação propõe a construção de
retornar à favela para a realização torres residenciais que em tese
de uma versão específica para o abrigariam as famílias que moram
local. na comunidade. No entanto, na
prática, o momento vivido é de
A Favela Coliseu surgiu em
completa incerteza, pois
meados da década de 1960,
primeiramente os moradores terão
quando as primeiras famílias de
de ser removidos do local para a
imigrantes pernambucanos e
demolição dos barracos – inclusive
mineiros, em busca de
cerca de setenta famílias já
oportunidade de trabalho na selva
desocuparam o local –, para
da cidade grande, instalaram-se
apenas depois da construção dos
no bairro Vila Olímpia – que na
edifícios poderem comprar suas
época era uma região pouco
unidades habitacionais.
ocupada, uma área alagadiça sem
infraestrutura urbana. Atualmente, A equipe propositora da
com a consolidação do bairro Ocupação#6 - Terras, formada por
como o novo centro econômico da Nana Yazbek, Renato Banti e
capital a favela se encontra Yghor Boy, tinha como ponto de
espremida entre arranha-céus partida o desejo de perpassar toda
espelhados, sedes de a peça – ou seja, do prólogo ao
multinacionais e o shopping mais quadro onze –, respeitando o texto
luxuoso da cidade. Inclusive a e as situações evocadas por ele,
área que corresponde a mas ao mesmo tempo, desejavam
comunidade faz parte de um que a encenação fosse
programa maior – Operação contaminada pela vida que vibra
Urbana Consorciada Faria Lima – na Coliseu, suas complexidades e
de “requalificação” de três favelas contradições com o suntuoso
entorno. A encenação aconteceria
4
Que tem como indicação a casa da
família Garga.
em um percurso pela comunidade

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e a intenção era relacionar cada o a rubrica do texto. Foi ali, dentro
quadro da dramaturgia – e seus do sebo de livros C. Maynes /
conflitos essenciais – à um lugar Biblioteca Coliseu que teve início o
específico da favela. confronto entre as duas
personagens principais. George
O espetáculo teve início com 5
Garga , em seu ambiente de
um cortejo que entoava
trabalho – que se resume a
marchinhas carnavalescas e
algumas pilhas de livros – recebe
misturava os atores e membros da
de C. Shlink6 que está
comunidade, que juntos,
acompanhado de seu funcionário
convidavam o público para o
Skinny7, uma oferta para que
acontecimento. O cortejo
venda sua opinião sobre um livro
encaminhou público e cena até a
que não conhece e não se
sede da comunidade, na qual
interessa. O ator é provocativo e
existe um escritório / biblioteca e
direciona para a plateia a
um pátio coberto, onde
pergunta, “um quilo de peixe ou
aconteceria o prólogo e a quadro
uma opinião?”8. A tensão vai
um. Dentro do espaço retangular
aumentando a medida que Garga
do pátio, havia alguns engradados
resiste, afinal como diz a
que conformavam um quadrado,
personagem, sua opinião não
no qual a plateia se posicionava.
estava a venda. A sonoridade de
Na parede do fundo lia-se “Sou
animais rastejantes realizada pelo
Coliseu” pintada com cores
ator/músico Guilherme Calvazara
coloridas. O prólogo foi dito por
com uma baqueta nas grades das
uma moradora da comunidade,
janelas e nas paredes do espaço,
que dentro do espaço delimitado
assim como uma música eletrônica
pelo público, através de um
se juntam a intensidade, ao ritmo
microfone, lia num caderno o
texto. Uma batida no gongo, uma
5
Interpretado pelo ator Lee Taylor.
mudança sutil nas luzes – ainda
6
Interpretado pelo ator Aury Porto.
era dia e as luzes naturais 7
Interpretado pelo ator Vinícius Meloni
invadiam o espaço –, 8
O texto original: “Shlink com
ingenuidade: É preciso saber o que é
enquadraram a centralidade da melhor: meio quilo de peixe ou uma
cena e o ator Lee Taylor anunciou opinião, ou um quilo de peixe ou uma
opinião. (BRECHT, 2016: 52).

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e aos direcionamento dos em processo de demolição.
movimentos dos outros Rodeados por muros imensos, e
personagens em torno do que acima deles deixavam ver os
9 10
funcionário – Verme e Babuíno edifícios espelhados do entorno, a
que fazem parte do bando do tensão visual entre as duas
malaio e que também adentraram realidades naquele espaço era
a cena. Garga se mantém firme, muito evidente e intensa,
embora coagido e perplexo com o sobretudo porque ainda era dia e
complô que vê surgir diante dele. os elementos do terreno e do
No ápice da tensão e da entorno se faziam muito
provocação, a personagem Senhor presentes. As ações realizadas
Maynes11 – o chefe do rapaz –, pelos atores – que não Shlink e
interrompe a cena e com Garga –, caracterizados como
veemência anuncia que ele está operários de obras, com capacetes
demitido. Neste momento a e luvas e óculos de proteção,
música cessa e os movimento dos giravam em torno do manejo dos
atores também. George, tomado entulhos da (des) construção. A
pela sensação de liberdade tira luz verde que vinha de um refletor
parte de suas roupas e sai instalado em um dos muros,
correndo do centro do ringue e da associado à música eletrônica –
biblioteca. O gongo soa e o público que vinha de uma caixa de som
é convidado a pegar um móvel em cima de um carrinho
engradado e seguir a cena. que percorreu toda a peça –
potencializavam a atmosfera de
Para o segundo quadro o
uma grande máquina em
público foi conduzido para fora da
funcionamento – o escritório do
sede, retornou à rua principal da
comerciante, neste caso um
favela e foi direcionado a um
canteiro de obras destruídas.
terreno repleto de entulhos de
Enquanto os outros atores
construção, com alguns barracos
trabalhavam com os entulhos e os
dois personagens principais
9
Interpretado pelo ator Guilherme
Calvazara.
travavam o diálogo que revela o
10
Interpretado pelo ator Mariano Mattos aceite da luta por Garga, foram
11
Interpretado pelo ator João Bresser.

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incluídas não apenas referências representam justamente o poder
espaciais do local, mas também da opressivo e perverso do dinheiro.
situação vivida – a iminência de Como diz o comerciante, e que faz
remoção da população e a completo sentido em relação
construção de um conjunto àquela realidade, “Minha casa e o
habitacional –, de modo que não meu negócio, por exemplo, me
somente no âmbito visual, mas colocam em condições de tocar os
textualmente a realidade da favela cachorros no seu encalço. Dinheiro
passava a fazer parte da peça. é tudo.” (BRECHT, 2016:72).
Como exemplo pode-se destacar o
Para o quadro três o público
momento em que Shlink passa
fora conduzido à casa da
seus bens para Garga e diz, “Esse
moradora mais antiga da
terreno todo é seu. Esse negócio
comunidade, Dona Amazina, na
de madeiras e de construção civil
qual aconteceu a cena três. A
também é seu.”12, ou ainda
rubrica “Varanda na casa da
quando Garga indaga “O senhor se
família Garga”14 foi anunciada por
referia a todo terreno, Mr. Shlink?
John Garga, o pai de George. O
A todo o estabelecimento, os
público se posicionou na Rua
barracos, o inventário?”13. Naquela
Coliseu com seus engradados e
espacialidade, o confronto entre o
assistiu frontalmente a cena. A
poderoso Shlink e o humilde
fachada da casa era atravessada
funcionário do sebo de livros se
por fios e em um dos postes foi
traduzia de forma muito potente
instalada uma lâmpada tubular de
na opressão vivida pela
LED branca, o que acentuava o
comunidade com seu espaço
improviso já evocado pelos fios,
destruído em oposição aos
mas também fazia uma
edifícios do entorno, que
interferência na luminosidade
12
O texto original: “Essa casa e esse original da rua e da casa. A
negócio de madeira, registrados no
cadastro público de bens e imóveis da
fachada funcionava como um
cidade de Chicago com o nome Shlink, no plano de fundo para a cena. Na
dia de hoje passam para o senhor George
Garga de Chicago.”. (BRECHT, 2016: 73) frente uma varanda repleta de
13
O texto original: “O senhor se referia ao
seu negócio de madeiras, o legítimo
14
Shlink? O estabelecimento, os troncos, o Rubrica original: “Sala de estar da
inventário?”. (Ibidem.) Família Garga”. (Ibidem, p.90).

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plantas, com uma escada móvel qual se explicita a falta de
que se apoiava em um pequeno liberdade do trabalhador e sua
volume criando um plano ausência de opção frente à
intermediário entre o primeiro e o exploração do trabalho. Após a
segundo pavimento da casa, no conversa, que tem a emoção
15 16
qual o John Garga , Pat Mankey acentuada, sobretudo pela atuação
17
e a Mãe conversavam sobre o de Sylvia Prado, o filho lhe entrega
paradeiro de George e de sua irmã um dinheiro para que viva por
Marie que andavam sumidos. mais seis meses. Os dois se
Quando Garga chega à casa da abraçaram e neste momento o
família para anunciar sua partida, público não se conteve e aplaudiu
há um diálogo entre ele e a Mãe em cena aberta. A identificação da
que deixa muito evidente a plateia com o diálogo de Garga
questão da luta de classes18, na com sua mãe foi muito clara,
havia ali um espelhamento sobre
15
Interpretado pelo ator João Bresser. as mães da comunidade, assim
16
Interpretado pelo ator Vinícius Meloni. como das dificuldades encontradas
17
Interpretada pela atriz Sylvia Prado.
18 para sobreviver na selva das
“Nós não somos livres. Começa de
manhã com o café e a surra quando se é cidades, na qual as “as paredes
um pobre macaco e as lágrimas da mãe
salgam a comida dos filhos e suor dela estão sujas e o fogão não aguenta
lava a camisa deles e você está garantido mais um inverno” (BRECHT,
até a era glacial e a raiz está presa no
coração. E quando o filho cresce e quer 2016:91). Ouviu-se uma moradora
fazer alguma coisa de corpo e alma aí é
na plateia dizendo “eu fiz isso
pago, contratado, carimbado, vendido a
alto preço e não tem liberdade para semana passada com meu pai”. As
naufragar. (...) Ah, todas essas outras
pessoas, essas muitas pessoas boas, dificuldades da família Garga
todas essas muitas outras e boas pessoas, pareciam perpassar a vida de
que trabalham nos tornos e ganham o seu
pão e fazem muitas mesas boas para os todos por ali. Sem muito tempo
muitos bons comedores de pão, todos os
para a comoção – assim como na
muitos outros bons fabricantes de mesa e
comedores de pão com suas muitas boas vida que não os permite demorar
famílias, que são tantas, já são multidões
e ninguém cospe na sopa deles e ninguém
sobre as lamúrias – e também
despacha eles para o outro bom mundo provocando, após a identificação,
com um bom pontapé e nenhum dilúvio
cai sobre eles ao som de ‘Noite de um distanciamento da situação,
tempestade e o mar se revolta’.”
Shlink chega à casa após a partida
(BRECHT, 2016: 90)

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do oponente para sustentar sua frequentadores, e o público da rua
família que perdeu o principal assistia frontalmente a cena.
esteio. O gongo, novamente, Garga distribuiu pizza aos
marca o fim da cena. convidados e comentava sobre as
melhoras trazidas pelo
Avançando no tempo e no
comerciante de madeira à vida da
espaço, a encenação passou pelo
família. Vestes novas, móveis
Bar da Dona Regina, no qual
novos, anunciava a Mãe no início
aconteceram os quadros quatro e
do quadro. Embora a localização
cinco19 e o quadro seis foi
dada pelo texto seja a casa
realizado na entrada da
renovada pelo mobiliário, a
comunidade na Rua Coliseu. Para
tradução na fartura do banquete
o quadro sete, o público fora
trazia a dimensão da ascensão da
conduzido ao som de um samba
econômica da família. A aquela
antigo à porta de uma das igrejas
altura da peça, as crianças
evangélicas da comunidade. A
estavam completamente
mãe do noivo anunciava o
envolvidas na cena, fosse por Jane
casamento de Jane e George e de
com um menino no colo, ou pelo
dentro da igreja saiu o pastor
fato do posicionamento claro
Danilo cantando uma canção
diante da luta. Na chegada do
gospel. Depois saíram os noivos
malaio à festa elas começam a
que foram recebidos com chuva de
gritar em coro: “ih, fora!”, e ao
arroz pela plateia. Após a música o
longo da cena repetiram o gesto
público foi convidado para o
em vários momentos. O
coquetel de núpcias no Bar da
comerciante vai comunicar a
Dona Graça, que fica ao lado da
Garga a carta que recebeu do
igreja. Ao chegar, as fitas de led
tribunal da Virgínia, na qual é
que atravessavam a rua
acusado pela venda dupla da
demarcavam o ambiente festivo. O
madeira – realizada pelo jovem
estabelecimento em madeira
funcionário no quadro dois quando
possuía uma pequena varanda
o malaio passa para ele seus bens.
onde estavam alguns de seus
Shlink o pressiona para que ele vá

19
para a cadeia em seu lugar, afinal
Que tem como localização indicada pelo
texto o Hotel Chinês.

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é o mais jovem. George acaba Shlink, só queria a luta, e Garga
aceitando a proposta. Sua família, seu fim. Entretanto, o malaio diz
que parecia se estar se que “o fim não é a meta, o
reintegrando na celebração do episódio final não é mais
matrimônio volta ao processo de importante que qualquer outro”
ruína. Ele se entrega a polícia, (BRECHT, 2016: 264).
Jane retorna ao hotel Chinês e a Independente disso, Garga, em
Mãe desaparece. cima de uma pilha de escombros,
após arrancar brutalmente os
Saltando em direção ao final
sapatos de Shlink, grita aos quatro
do espetáculo, após a saída de
cantos: “o mais jovem vence a
George da prisão e a revelação da
luta” (BRECHT, 2016: 265). A
carta escrita por ele denunciando
plateia aplaude, assobia,
os crimes cometido pelo malaio
comemora. Os linchadores –
contra sua família, e revelados
atores com roupas pretas,
pela imprensa – conflitos dos
lanternas de cabeça e
quadros 8 e 9 –, o público foi
sinalizadores de fumaça vermelha
encaminhado para a batalha final
na mão – adentram a cena ao som
entre os dois homens – quadro
pulsante dos tambores. Eles
dez –, no acampamento
cercam o comerciante e a tensão
abandonado dos trabalhadores na
aumenta. Maior intensidade dos
estrada de ferro, ali novamente o
tambores, Shlink está sendo
terreno com entulhos do segundo
linchado. A ação se resume ao
quadro. No entanto, já era noite e
cerco e aos movimentos com os
entorno ficava menos visível. Os
sinalizadores em direção a ele,
escombros eram visibilizados por
como se o estivessem
uma luz branca e indireta que
apunhalando. Fim do linchamento,
iluminava a cena. O confronto final
blackout, fogos de artifício
entre Shlink e Garga marca alguns
explodem.
pontos centrais do combate que
fora travado entre eles. Num O quadro onze foi anunciado
diálogo que por vezes se acalora, ainda dentro do terreno por um
os dois trocam os últimos golpes,
por vezes verbais por outras físico.

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dos atores20 com capacete de parte para Nova York, fim do
obras e uma placa de venda de espetáculo.
imóveis. Ele veio comunicar o
Conforme procurou-se
pedido de reintegração de posse
evidenciar, ao longo do
da área, exigindo que as famílias
acontecimento teatral – que durou
se retirassem do local. O público
cerca de três horas – o espetáculo
reclamou, mas foi empurrado para
foi invadido e reestruturado por
fora. A plateia se posicionou na
múltiplos elementos que pulsam
entrada do terreno, na qual os
na vida da favela. André Carreira
barracos em demolição foram
quando pensa o teatro
iluminados e foi colocada uma fita
performativo a partir do uso da
de obras indicando a interdição do
cidade como texto dramatúrgico
local. A cena que corresponde a
afirma que “um teatro na cidade
venda da madeireira de Garga, de
deve explorar funcionamentos que
sua irmã e de seu pai para Pat
contemplam o ruído da rua e sua
Manky se converteu na venda da
multiplicidade de estímulos e
comunidade para uma grande
interferências, não como meros
empreiteira. George debateu o
obstáculos, mas como condição
valor com Manky, que se
sine qua non do estar na cidade.”
interessava em comprar a
(CARREIRA, 2012:12). Nesse
comunidade. A plateia interferiu
sentido, a prática cênica
diretamente reivindicando valores
performativa empreendida pela
mais elevados, questionando que
mundana permitiu que a dinâmica
o valor oferecido – dez mil reais –
e os fluxos da favela, para além da
não comprava sequer um barraco.
luta entre Shlink e Garga, fosse o
Pat, por fim, oferece cinquenta
grande estruturador da
milhões e um apartamento para
encenação. Da materialidade do
cada família. Garga pergunta ao
espaço às pequenas e muitas
público se deveria vender. A favela
interferências da vida na Coliseu,
aceitou a oferta. Estava feito o
o teatro invadiu o território e foi
negócio. Terreno vendido, Garga
invadido por ele.

20
Mariano Mattos Martins.

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Ainda sobre a próprio deslocamento entre uma
performatividade da cena, o fato cena e outra. Entretanto, somam-
de estarem em um espaço da vida se a tais elementos os fluxos da
comum e ordinária exigia dos favela, que por muitas vezes
atores – e ao mesmo permitia a interrompiam ou cruzavam as
eles –, que suas subjetividades ações, fosse o carro que parava a
aflorassem. Conforme aponta cena e fazia o público se levantar
Féral, em uma obra performativa para que o automóvel passasse
“o performer instala a pela a rua, pela música alta que
ambiguidade de significações, o tocava na comunidade e por vezes
deslocamento dos códigos, os encobria a voz dos atores, pelo
deslizes de sentido.” (FÉRAL, público que emitia opiniões e
2008: 204). Ou seja, ora eram interferia nos diálogos dos
personagens, ora os próprios personagens, ou ainda pelos
indivíduos que estavam em cena, moradores que cruzavam a rua e
e assim, sujeitos reais e objetos passavam em frente à cena. Ao
ficcionais muitas vezes não se mesmo tempo que compõe o texto
distinguiam ou estavam em uma dramatúrgico conformado pela
constante tensão. E isso também cidade, tais elementos também
pode ser aplicado ao público, que podem ser apreendidos como
por vezes eram espectadores, por dispositivos que provocam o efeito
vezes os próprios co-atores e co- de distanciamento da cena.
autores da cena.
Nessas interrupções geradas
Já no âmbito dos dispositivos pela vida na favela o gestus social
épicos, pode-se considerar que os emergia. Afinal, para Walter
efeitos de distanciamento na Benjamin, “quanto mais
Ocupação #6 ocorrem por meio de interrompemos alguém em ação,
elementos presentes na estrutura mais gestos obteremos. (...) Ou
do texto e por meio de dispositivos seja, o teatro épico não reproduz
da encenação – como o gongo que situações; antes, as revela. A
separa as cenas, o anúncio da revelação das situações acontece
rubrica dos quadros, a quebra da por meio da interrupção dos
quarta parede pelos atores e o processos.” (BENJAMIN, 2017:12-

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13). E, no caso deste contradições com o entorno e a
deslocamento para o espaço iminência da remoção, a
urbano, conforme afirma Cibele possibilidade de enxergarem o
Forjaz, “a releitura do gestus é próprio espaço por um viés poético
menos cênico, menos teatro diferente da realidade cotidiana, e
explícito como é com Brecht, por meio deste olhar poderem
porque é no palco, e mais a visão aguçar ainda mais a visão crítica e
dessas máscaras sociais em pleno política sobre a situação. E, para o
vigor na vida. (...) É como se ele público externo, a possibilidade de
não fosse mais teatral, (...) se deslocar das salas
porque a gente foi pra vida.” convencionadas para o uso teatral
(FORJAZ, 2019). Desse modo, o e descobrir outros fragmentos da
gestus social adquire uma nova cidade, a história de luta e
abordagem que amplifica a função resistência da favela e
social do teatro almejada por potencializar o olhar questionador
Brecht, pois ocorre no território da sobre a produção capitalista do
vida cotidiana e a partir dela. Isto espaço urbano em que vivem.
é, a própria dinâmica do espaço Cibele Forjaz afirma que
utilizado pelo grupo que
esse gestus social tem a ver
interrompe, distancia e reorienta o com ir para lugares e olhar os
público, aguçando sua capacidade lugares, ver a contradição dos
lugares, e atravessar a peça
crítica em relação ao seu contexto revelando essa contradição
do humano com a cidade na
social.
cidade, na sua cidade, na
cidade em que você vive, na
Uma outra questão que pode sua selva. Para que talvez
você abra os olhos para a
ser apreendida por meio da desigualdade da cidade, para
como a cidade vai devorando,
encenação na Coliseu é o como chronus, com as nossas
despertar crítico para as condições agendas, os seus filhos, como
a gente vive para a cidade e
urbanas, de duas diferentes não faz da cidade um lugar
pra pessoas morarem. É para
formas. Primeiro para os próprios os carros, é para o capital, é
moradores da Coliseu, que já para a venda. (FORJAZ,
2019)
estão habituados – porém jamais
conformados – às condições Ao ocupar a comunidade

precárias da comunidade, às Coliseu com o texto de Brecht, a

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mundana coloca o teatro emerge a ficção, hora se desperta
brechtiano do pensamento crítico, para a vida.
da luta de classes, das relações de
No que diz respeito a
poder e dominação engendradas
ocupação do espaço, embora
pelo capital, para além da
estivessem fora do palco italiano e
representação – embora não
houvesse o percurso e o
abiquem dela. E é nesse sentido
deslocamento das cenas, as
que a estética performativa aflora
configurações entre palco e plateia
na cena, na tensão entre o
muitas vezes passavam pelos
ficcional e o real, na tensão entre
modelos já amplamente
a representação e apresentação.
experimentados dentro da caixa
A invasão da favela, cênica – ainda que alternativa –,
entretanto, não ocorre sem as como a frontalidade, a
camadas que conformam a circularidade e a bilateralidade.
dimensão teatral do evento, afinal Por essa ótica, é interessante
o que acontece ali, embora se observar como o espaço, embora
integre a vida ou rompa com ela, possibilite rompimentos, muitas
ainda é teatro. A base conformada vezes reforça dispositivos teatrais
pelo texto brechtiano não está convencionais. O que em hipótese
apartada do contexto no qual se alguma diminui a potência do
insere fisicamente, do mesmo acontecimento, mas, mais uma
modo que a realidade não está vez aponta a ambiguidade que
crua, pois é contaminada pelas envolve os procedimentos atuais
operações de teatralização. Por de configuração da cena.
essa perspectiva, o cuidado
Deste modo, o trabalho
meticuloso com a visualidade da
realizado pela companhia na
cena, a iluminação específica para
referida encenação aponta a
cada quadro, o figurino, a música,
contradição e o desejo ambíguo
a relação entre as personagens, o
das práticas cênicas atuais de sair
jogo entre atores e a narrativa
e retornar ao teatro, buscando
ficcional que conduz toda peça não
nessa tensão a possibilidade de
abscondem o real. Mas criam essa
criar novas leituras sobre o
tensão e oscilação em que hora

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homem e sua relação com o provocando em cada um dos
mundo, com a cidade. E, dentro espaços por onde passou distintas
de sua maneira de operar, sempre possibilidades de leitura sobre a
este caráter duplo. Ao mesmo condição humana e urbana nos
tempo em que se direciona para tempos de hoje. É nesse sentido
fora, o teatro também reforça a que se fala em uma estética
potência daquilo que o configura épico-performativa, pois, a
do ponto de vista interno; o texto representação é
e a cena que ressignificam a fundamentalmente épica, mas é a
cidade e a cidade que ressignifica todo momento invadida pelas
texto e cena; o espaço cênico centelhas da realidade, que
como elemento estrutural e refazem seu sentido, que
estruturante que configura e é reposicionam as discussões e
configurado; a capacidade do críticas passiveis de serem tecidas
teatro em tornar-se vida e da vida em cada uma das realidades
em tornar-se teatro. urbanas percorridas. E nesse
sentido, a cidade funciona como
Se o viés político de teatro
disparador e agente das duas
épico de Bertolt Brecht se constrói
poéticas exploradas.
na formalidade textual, nos
debates engendrados pelo texto e Por fim, a cena épico-
na forma de sua representação – performativa instaurada pela
e isso incluía o espaço da cena mundana companhia carrega um
como um agente político dentro desejo constante de construção e
da encenação –, e a partir disso desconstrução dos modos de fazer
na criação de possibilidades de e sentir, seja do objeto artístico,
desenvolvimento de um seja da própria cidade. Não se
pensamento crítico acerca da trata, portanto, da negação de
realidade, a mundana companhia características muitas vezes
radicaliza o pensamento convencionais do fazer teatral,
brechtiano, pois coloca a cidade, mas a possibilidade de trazer
ou seja, a vida real, como um esses dispositivos para serem
elemento sobre o qual o texto vai entrecruzados pela vida. E, a
agir de diferentes maneiras, partir de então, ter-se a

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possibilidade de ressignificá-lo Cidades – Em Obras. In: Imersão
Selva. São Paulo, 2016.
como manifestação poética e
política. Para além de promover FORJAZ, Cibele. Entrevista concedida
à autora em janeiro de 2019.
uma discussão teórica sobre uma
estética do teatro contemporâneo,
a Ocupação #6 – Terras permite,
por meio ato teatral e de sua
relação com o espaço urbano, a
reivindicação do direito à cidade
como valor de uso, na contramão
de um todo sistema rege e
organiza a vida urbana como
mercadoria, extremamente
evidente na realidade vivida pela
comunidade Coliseu.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Ensaios sobre


Brecht. São Paulo: Boitempo, 2017.

BRECHT, Bertolt. Na Selva das


Cidades. In: Imersão Selva, São
Paulo, 2016.

CARREIRA, André. O teatro


performativo e a cidade como
território. In: ArteFilosofia. Revista de
Estética e Filosofia da Arte do
Programa de Pós-graduação em
Filosofia da Universidade Federal de
Ouro Preto, número 12, Ouro Preto,
2012, p. 5-15.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da


performatividade: o teatro
performativo. In: Revista Sala Preta,
n 8, 2008.

FORJAZ, Cibele. Das imersões ao


conceito do espetáculo Na Selva das

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Mesa Redonda

ARQUITETURA, TEATRO e ARTES VISUAIS

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No arquipélago das fotografias foram encontradas na


sensações: a visualidade internet, muitas delas sem autoria
háptica nas fotografias da explicitada. Busca-se entender os
performance “A voz do ralo
efeitos de intensificação da
é voz de Deus
experiência estética da
1
Elizabeth Motta Jacob performance a partir da

A construção da visualidade construção da visualidade háptica

háptica tem sido o centro de pela fotografia neste nosso mundo

nossas investigações nestes contemporâneo no qual os sujeitos


estão sobrecarregados pelo
últimos anos uma vez que
excesso de informação visual que
identificamos no cinema e na arte
lhes é oferecido pelas mais
contemporânea a abertura para
diversas mídias.
novos processos e práticas
artísticas que contemplam esta A partir da livre navegação

dimensão da imagem mais tátil do no mar de imagens que nos é

que visual. Nossa preocupação oferecido pela internet nos

recai nos discursos artísticos deparamos com a pungência

contemporâneos que operam no imagética criada por diferentes

corpo buscando novas dimensões olhares impressos por fotógrafos

dos sentidos promovendo diante desta performance

agenciamentos fora da mediação realizadas no espaço público.

lógica e racional. Entendendo que a força destas


imagens reside em sua capacidade
Deste modo pretendemos
de realizar a transposição das
analisar o agenciamento dado por
qualidades do toque para o
fotografias da performance
domínio da visão e da visualidade,
realizada no calçamento em frente
as consideramos relevantes para
a Casa França Brasil, em 14 de
janeiro de 2019, chamada “A voz análise.

do ralo é a voz de Deus” do A visualidade háptica:


Coletivo És Uma Maluca. Tais
A imagem háptica é aquela
1
Coordenadora do Curso de Pós- que induz um espaço e um modo
Graduação em Artes da Cena, ECO/ UFRJ,
de percepção mais tátil do que
Professora Adjunta do Curso de
Comunicação Visual - Design, EBA/UFRJ

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visual, uma imagem que demanda pertence, e é distinta da função
uma percepção próxima, ótica”. E ainda:
funcionando pelo toque. Na
Uma imagem tátil se
visualidade háptica os olhos aproxima de um tipo de
imagem que, por sua
funcionam, eles mesmos, como natureza fugidia, imaterial,
órgãos de toque, como uma forma provoca-nos o desejo de
tocar. Uma imagem pode ser
de contato. O olhar tende a se ótica e/ou tátil, enquanto a
visão háptica se refere a um
aproximar da imagem e sobre ela
modo de compreensão do
correr, alongando sua papel do observador. A visão
háptica, segundo Gilles
permanência sobre ela. Deleuze, relaciona-se
primeiramente a uma
O que temos aqui é um tipo capacidade de tocar da visão,
de visualidade que a uma aderência do olho à
poderíamos qualificar, superfície das coisas a ponto
juntamente com Gilles de todos os contornos se
Deleuze e Félix Guattari, esvaírem, todas as sombras
como háptica. Isto é, um tipo que podem trazer uma
de imagem que induz um mudança de profundidade
espaço e um modo de desaparecem. Nesse sentido,
percepção mais tátil do que trata-se de uma aproximação
visual, uma imagem que radical entre sujeito e objeto
demanda uma percepção de modo a ultrapassar
próxima, funcionando pelo qualquer possível
toque. Na visualidade profundidade. Em uma visão
háptica, afirmam os filósofos háptica há a supressão da
franceses, os olhos profundidade e tudo corre
funcionam, eles mesmos, para a superfície, suprimindo
como órgãos de toque, como a distância entre observador
uma forma de contato. Mais e imagem. A perda de centro
do que ser projetado numa e de subjetividade torna-se
estrutura centralizada ou num um ganho de subjetividade
espaço ilusionístico profundo, para o objeto. Nessa
o olhar tende aqui a se aproximação, é o objeto que
aproximar do corpo da nos vê de sua profundidade.
imagem, a correr por sua (CARVALHO, 2017, p.86-87)
superfície, hesitando e
demorando-se sobre Observando a fotografia da
inúmeros efeitos de performance disponíveis na
superfície. (GONÇALVES,
2012, p.78) internet verificamos, em muitos

Segundo Carvalho “trata-se casos, uma imagem comprometida

para Deleuze de uma descoberta, em despertar sinestesicamente o

por parte da visão, de uma função espectador. Identificamos nas

de tocar que lhe é própria, que lhe imagens uma materialidade


pautada em texturas, relevos,

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cores, corpos, objetos, outra forma de apreensão
urbana e, consequentemente,
fragmentos. Os planos fechados de reflexão e de intervenção
recortam a imagem, o espaço, os na cidade contemporânea.
(s.d., p.2)
corpos, lhes dão densidade, http://www.corpocidade.dan.
ufba.br/arquivos/Paola.pdf
fisicalidade ao mesmo tempo que
os resignificam a partir da Desta forma as performances

restituição imagética de sua urbanas buscam inscrever-se no

tactibilidade. No confronto entre o espaço urbano quebrando com as

corpo e a rua vê-se nascer uma formas cotidianas e rotineiras de

nova visualidade da ação inscrição do corpo no espaço. São

performada. novas formas de apropriação do


espaço e da memória a ele
O corpo na rua: materialidades relacionado. Tais ações quebram a
sensíveis
relação do passante pelas ruas e
As performances
colocam questionamentos de novo
contemporâneas evocam muitas
tipo sobre a vivênci,a a memória e
reflexões a respeito do corpo e da
a noção de pertencimento ao
memória da própria cidade que
espaço urbano.
nele se inscreve. Os espaços
públicos contemporâneos levam a Entendemos que diversas
diferentes tipos de reflexão sobre performances contemporâneas
a cidade dando nova inflexão a buscam novas formas de diálogo
sua vivência pelos cidadãos. Como com a cidade e a materialidade do
nos diz Bernstein espaço da rua convocando o
público para um contato.
Os novos espaços públicos
contemporâneos, cada vez Acontecendo na rua,
mais privatizados ou não transformando passantes
apropriados, nos levam a
repensar as relações entre desavisados em público as
urbanismo e corpo, entre o
corpo urbano e o corpo do performances vão transformar a
cidadão. A cidade não só rua, o próprio conceito de
deixa de ser cenário, mas,
mais do que isso, ela ganha espectoralidade, a vivência e a
corpo a partir do momento
em que ela é praticada, se memória das cidades.
torna “outro” corpo. Dessa
relação entre o corpo do Nota-se que a arte
cidadão e esse “outro corpo
urbano” pode surgir uma contemporânea tem franqueado

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um olhar diferenciado, vivo e não forma as performances incidem na
idealizado sobre o corpo, produção de presença e
trazendo-o em sua resignificam as reminiscências do
substancialidade, transformando-o passado coletivo.
em matéria viva. Para tanto, a
porque o enigma da visão é
arte contemporânea resgata e realmente o enigma da
presença, mas da presença
estabelece contato por meio das estilhaçada de seres que
sensações e cria um novo embora sendo diferentes
estão, no entanto,
território artístico no qual a absolutamente em conjunto,
é o mistério da
materialidade do corpo, sua carne,
simultaneadade, da
fluidos, fragilidades são centros coexistência do todo.
(DASTUR,1991, p. 49)
nevrálgicos do fazer artístico.
Deste modo a apreensão da
Uma vez que a obra de arte cidade vai ser questionada,
escapa ou contesta a
representação e abandona o entendida e transmutada. Tais
espaço do quadro e da
galeria, o corpo do artista é o efeitos e impactos da performance
novo cenário onde se realiza o vão se estabelecer no seio das
processo artístico que leva em
conta a relevância da filosofia materialidades expostas, na carne
e da sociologia para denunciar
numerosas problemáticas que viva da cidade, isto é, na pedra,
os humanos engendram na no calçamento, no lixo, nos restos
sociedade ocidental e para
questionar o status que de um uso cotidiano e invisível do
ocupava em conjunto com a
espaço urbano que se
tecnologia.” (Santos, 2009, p.
155) consubstanciam no fazer artístico
Nesse sentido, as e no corpo vivo do artista.
performances vão acionar
A força residente então no
mecanismos importantes de
próprio confronto de substâncias
confronto e resistência ao uso
vivas dos corpos em confronto
regulamentar e policiado do
franco com as substâncias não
espaço urbano, elas vão rasgar a
vivas que compõem o espaço
catatonia dos transeuntes e
urbano, vão fazendo brotar
deslocar sua atenção para aquilo
reflexões que diante de suas
que se instala diante de seus olhos
dimensões materiais vão evocar as
como uma contravenção ao uso
memórias, o passado, as
regular do espaço urbano. Desta

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inscrições das práticas antigas aparece para si mesmo como
visão, se existe com certeza
residentes em determinados uma experiência de duplo
espaços urbanos. Tal impacto se contato, um tocar e um ser
tocado, o que, porém, não há
inscreve na pele de quem o faz e é uma “reflexividade”
parecida, nem um “ver-visto”.
de quem o vê, é precisa em seu (LANZA, 1995, p.125)
local de realização e em sua
Entretanto, continua o autor,
inscrição temporal.
quando o olhar se transforma em

No entanto, torna-se contato

necessário perenizar estas ações e


(...) e não no exercício da
neste momento ocorre a sua visão, se produz nela algo
que é privativo do tato: o
inscrição fotográfica. Esta desloca objeto percebido entra em
relação imediata como corpo
a performance de seu meio
que o percebeu”. (LANZA,
instaurando-a em outra dimensão, 1995, p.125)

estabelecendo, deste modo, novos Deste modo, a materialidade


paradigmas de visualidade para a de um mundo sensível vai se
mesma. A câmera vai permitir consolidando nos espaços e no
uma proximidade do olhar que corpo dos performers aderindo aos
vem a favorecer, potencializar e nossos sentidos nos remetendo a
aflorar novas sensibilidades momentos vividos, se
tácteis. Estas se constroem nesta manifestando na plenitude de sua
constante superposição de potência criadora.
estímulos visuais e hápticos,
Recortando a performance e
permitindo um contato íntimo
destacando a sua materialidade
entre a imagem e o espectador. As
uma densidade de outra ordem
convocações feitas pelas imagens
lhe é atribuída. São os corpos
transcendem o domínio da visão
recortados pela câmera, os
para envolver o corpo do
objetos, fragmentos de um lugar,
espectador de um modo profundo,
as texturas e vivências dos
muito além do campo da visão.
objetos e chãos plenos de
(...)toda sensação táctil tem passado que agregam densidade
uma dupla função: percepção
de um corpo externo e à imagem. Assim a imagem vem
sensação local do próprio
corpo, porém o olho não a transbordar o campo da visão e

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vai evocar os demais sentidos. ditadura e apenas uma mulher,
Assim o fotógrafo trabalha as vestida, performou.
sensações e as memórias A performance, de
aparecem aderidas aos sentidos, a expressividade pungente, remete
visão torna-se háptica. diretamente a violência ocorrida
nos porões da ditadura ao mesmo
Quando os bichos saem dos
esgotos tempo em que estabelece novos
paradigmas da visão para a
A performance “A Voz do
violência.
Ralo É a Voz de Deus” teve como
Se uma imagem presente não
origem um conto do escritor faz pensar numa imagem
Rodrigo Santos sobre uma mulher ausente, se uma imagem
ocasional não determina uma
que é torturada durante o período prodigalidade de imagens
aberrantes, uma explosão de
da ditadura militar com a
imagens, não há imaginação.
introdução de baratas em sua Há percepção, lembrança de
uma percepção, memória
vagina. A obra idealizada pelo familiar, hábito das cores e
das formas. (BACHELARD,
grupo “És Uma Maluca” deveria ter
2001, p.1).
sido realizada no dia 14 de janeiro
A partir do impedimento,
de 2019 na Casa França Brasil e
mencionado acima, de se
consistia na colocação de 6000
apresentar no interior da Casa
baratas de plástico em torno de
França Brasil ela se deu no solo de
um bueiro do qual sairia a voz do
paralelepípedos em frente a
presidente eleito Jair Bolsonaro,
instituição sob forte policiamento.
diante de duas mulheres nuas. O
Sabendo que
grupo encontrou a Casa fechada
Para uma interpretação de
por ordem de seu diretor o que fez imagens pode haver sempre
com que a performance se desse outra, até uma terceira ou
quarta. As fotografias são
na rua. O discurso do presidente sempre suscetíveis a multi-
interpretações. Portanto não
foi substituto por uma receita de é a mesma coisa da análise
bolo fazendo menção a uma cultural. Nesta, estamos
todos razoavelmente de
estratégia de resistência por acordo. Na interpretação
começamos a enxergar coisas
jornais como O Estado de S. mais sutis e propor hipóteses
Paulo durante a censura da sobre valores de alguns
sinais. É bastante aleatório. E
nada é assim tão evidente, já

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que tudo é muito discutível torno dela a observando e
(DUBOIS, 2000 APUD
AVANCINI, 2011, p.56). fotografando. A foto apresenta
Arriscamo-nos a ler as uma angulação particular e tem a
imagens que selecionamos. Vamos cabeça da performer parcialmente
a este arriscado exercício iniciando cortada. No primeiríssimo plano
por duas fotos assinadas por vemos uma câmera fotográfica.
Rodrigo Santos e Pedro Rocha
Na segunda foto divulgada
publicadas pelo coletivo És Uma
pelo coletivo não se vê a
Maluca, em sua página do
performance executada por Juliana
Facebook alguns momentos após a
Varner, mas sim a realizada pelo
performance. Estas imagens foram
público que em torno dela se
publicadas antecedidas pelo
aglomera fotografando-a por meio
seguinte texto
de inúmeros aparelhos celulares.
Gostaríamos de agradecer a
todos que compareceram e O diálogo estabelecido entre as
apoiaram o ato na porta da
imagens divulgadas e a o texto
Casa França-Brasil realizado
agora há pouco. Foi muito deixam claro o caráter político do
significativo para todos nós, e
para quem tá na luta com a discurso empreendido pelo coletivo
gente, e mostrou que o
e a sua afirmação nas ruas
momento no qual acabamos
de entrar, há 2 semanas, só cariocas. O registro da ação e o
vai reforçar a nossa
capacidade de resistência! apoio a esta dado pela audiência é
Arte é território de livre- o foco central das tais fotografias,
expressão! Abaixo à
repressão! A rua é nossa! abordagem que se torna maior,
CENSURA NÃO! (
https://www.facebook.com/e neste relato, do que a
sumamaluca/, 2019) performance em si. As fotos são
Na primeira imagem um pouco distanciadas e não
disponibilizada no site aprofundam seu olhar na ação
(https://www.facebook.com/esum performática proposta.
amaluca/) vemos a performer
No entanto navegando pela
estendida no solo no primeiro
internet outras fotos a estas se
plano próxima ao ralo de onde
somam e afirmam outro tipo de
saem as baratas que recobrem
convocação estética apontando
parcialmente a sua vagina. A
audiência forma um círculo em

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para outras dimensões do olhar e apos-o-fim-do-terror-pequeno-
sua capacidade háptica. manual-sobre-o-modus-operandi-
da-ditadura-militar-argentina/).
Ainda no dia 14 de janeiro de
2019 a deputada Jandira Feghali Trazer a memória destes
(https://julianawaehner.allyou.net tristes fatos é muito importante
/9467399/a-voz-do-ralo-e-a-voz- para que essas ações não se
de-deus) posta uma foto, realizada repitam. A criação de novas
pelo mesmo fotógrafo, Pedro imagens que sejam capazes de
Rocha, em seu facebook trazer à tona essas memórias é
destacando não mais o apoio dado relevante uma vez que, como nos
pelo público mas a presença da diz Bruno (2002), “a memória é
polícia fortemente armada no
uma casa de imagens hápticas,
evento. Vemos em primeiro plano
uma encarnação de um teatro
uma arma de grande porte. Um
mnemótico em movimento. Uma
pequeno detalhe vermelho, entre
recoleção da imagem para
esta e o uniforme do policial dirige
explorar, em todo o sentido,
nosso olhar para a mesma e a
museológica”
descola do corpo do seu portador
dando-lhe ainda mais destaque. Se entendemos esta
performance como um alerta
A foto postada por Feghali
contra a opressão, a censura e a
leva nossa memória aos tempos
tortura fica claro entender a opção
tristes da ditadura militar e a
do fotógrafo (autoria não
recepção pela polícia dada a
creditada) ao disponibilizar a uma
manifestações políticas naquele
imagem da performance em preto
período
e branco
(http://memorialdademocracia.co
(https://luizsalatino.com.br/essa-
m.br/card/novo-sindicalismo) bem
foi-a-performance-que-o-
como as pungentes imagens das
governador-do-rio-acertadamente-
sessões de tortura existentes no
proibiu/)
período no Brasil, na Argentina e
no Chile Na imagem em preto e
(https://internacional.estadao.com branco colocada acima vemos as
.br/blogs/ariel-palacios/31-anos- pernas abertas da performer no

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primeiro plano e sobre elas e a sua Diante dessas obras, o olhar
vê obrigado a abandonar a
calcinha estão inúmeras baratas. A clareza e a distância típicas
posição da performes evoca o ato da produção visual corrente,
a ceder certo grau de domínio
sexual remetendo, neste caso, à ou de controle sob o que está
vendo e colocar em
violência. O vestido retorcido
movimento um outro modo
sobre o ventre, os braços largados de ver – uma outra economia
do olhar. Trata-se de um
sobre o calçamento e o rosto caído olhar mais íntimo e
contra a pedra sugerem o cuidadoso, um olhar próximo,
atento aos pequenos
desfalecimento da moça. O foco detalhes, aos pequenos
eventos que emergem na
escapa do rosto da moça se
superfície da imagem.
centrando em sua vagina e pernas (GONÇALVES, 2012, p.77
e nas baratas que por ali se Na imagem apresentada no
espalham. A luz que incide sobre o site Brasil de fato
joelho desenha um eixo difuso em (https://www.brasildefato.com.br/
direção a calcinha clara, único 2019/01/15/ex-presa-politica-
tecido de tonalidade próxima a da destaca-censura-do-governo-
pele da moça sobre a qual as estadual-a-performance-artistica-
baratas escuras se destacam. A no-rio/) vemos um
materialidade da pedra se impõe enquadramento mais fechado que
revelando sua dureza contra o revela as coxas abertas da
corpo lasso de Varner. As baratas performer, a sua calcinha e as
ocupam, ainda, o espaço entre os baratas que pelo seu corpo

braços da moça e suas coxas passeiam. O restante da imagem

mostrando a invasão das mesmas apresenta-se difuso, uma mancha

em seu em torno. A matéria fria e escura no canto inferior esquerdo


revela o ralo do qual saem as
morta dos paralelepípedos
inúmeras baratas que formam
contamina o corpo da moça que
uma massa disforme identificáveis
parece em vias de perder a vida. A
apenas pela variante nas suas
violência da tortura é assim
colorações. Aquilo que foi calado
explicitada. Sentimos a força da
pela ditadura volta a se manifestar
imagem que desliza e recai sobre
assim como a sua sombra funestra
os detalhes nos revelando as
aparece na saída do ralo. Ainda no
texturas do corpo vivo, inerte
canto inferior esquerdo vemos a
sobre a pedra.
mão da moça, em foco doce, sobre

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um piso frio, cujos contornos não As imagens que nos são
são mais discerníveis. O corpo da oferecidas vão criando uma série
moça foi apreendido em escorço, de reações em nossos corpos e
de seu rosto vemos apenas o nariz nos transtornam. Perturbados pela
em ligeiro desfoque e logo atrás os dureza das imagens nos
pés calçados dos observadores defrontamos agora com o rosto
que a cercam. A visualidade doído de Juliana sobre a pedra
háptica aqui se instaura nesta pele dura
clara sobre o solo duro e (https://heloisatolipan.com.br/arte
asqueroso onde rastejam os /depois-da-censura-do-governo-
insetos urbanos, que tanto witzel-artistas-se-reunem-para-
odiamos. manifestacao-em-espaco-publico/)

Na imagem apresentada em Isso que o rosto expõe e


revela, não é qualquer coisa
(https://heloisatolipan.com.br/arte que possa ser formulada
nessa ou naquela proposição
/depois-da-censura-do-governo-
significante, nem mesmo é
witzel-artistas-se-reunem-para- um segredo destinado a
restar para sempre
manifestacao-em-espaco-publico/) incomunicável. A revelação
a captura da cena se torna mais do rosto é a revelação da
própria linguagem. Essa não
restrita, o olhar recai sobre tem, conseqüentemente,
detalhes com forte carga nenhum conteúdo real, (...) é
unicamente abertura,
expressiva. O pé da moça resta unicamente comunicabilidade.
caído sobre o solo duro, uma Caminhar pela luz do rosto
significa ser essa abertura,
ferida em seu dedo assume a padecer dela. Assim, o rosto
mesma tonalidade das baratas que é, sobretudo, paixão da
revelação, paixão da
estão dispostas ao seu redor. A linguagem. (Agamben, 1996,
proximidade do enquadramento p. 74-80)

reforça ainda mais a Quantos pensamentos,


potencialidade háptica da imagem. temores, dores vemos no rosto de
A imagem gera a dimensão da Juliana e quantas falas
tactibilidade e nos convida ao percebemos que ele encobre. Mas
toque, no entanto, seu conteúdo eis que, entre os paralelepípedos
abjeto nos causa repugnância a vemos brotar, sem foco, pequenos
visualidade háptica nos convida musgos que apontam para vida e,
para o que não queremos sobre um amarelo vívido, vemos
compartilhar. em sua tangibilidade inúmeras

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baratas de casca brilhante e a nossa pátria e a faça brilhar
rugosa como os cabelos rebeldes da
(https://luizsalatino.com.br/essa- criança que existe em todos nós.
foi-a-performance-que-o-
Referências bibliográficas
governador-do-rio-acertadamente-
proibiu/). A materialidade das AGAMBEN, Giorgio. Il volto. In: Mezzi
mesmas evoca o sentido do tato senza fine. Note sulla politica. Bollati
mas nossa repulsa nos faz Boringhieri: Tradução de Murilo
recolher as mãos e a capacidade Duarte Costa Corrêa Torino, 1996, p.
háptica do olhar, novamente nos 74-80
constrange.
BACHELARD, Gaston. O ar e os

Em meio a todas essas sonhos. São Paulo: Martins Fontes,

imagens densas eis que surge uma 2001.

criança e se instala junto a moça BRUNO, Giuliana. Atlas of Emotion, -


que permanece pétrea sobre o Journeys in Art, Architecture and Film.
calçamento New York: Verso, 2002.
(https://luizsalatino.com.br/essa-
CARVALHO, Victa. Fotografia,
foi-a-performance-que-o-
cotidiano e cidade: entre o ver e o
governador-do-rio-acertadamente-
habitar a imagem1, revista passagens
proibiu/). - Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal
O contexto repulsivo escapa
do Ceará Volume 8. Número 2. Ano
aos olhos da criança, signo de
2017
vida, que não se intimida e não
tem a memória do passado ao DASTUR, F. Merleau-Ponty et la

qual a performance se refere e, pensée du dedans. In M. RICHIR e E.

nem mesmo pode interpretar a TASSIN (Org.) Merleau-Ponty.

sua significação. Ele percebe Phénomenologie et experience .

naquelas baratas de plástico não Grenoble: Jérôme Million, 1991, p.49.

seres abjetos, mas sim, e apenas, DUBOIS, 2000 _______. Depoimento


um brinquedo com o qual na Escola de Comunicações e Artes da
experienciar Universidade de São Paulo, out. 2000
(https://luizsalatino.com.br/essa- APUD AVANCINI, Atílio. A imagem
foi-a-performance-que-o- fotográfica do cotidiano: significado e
governador-do-rio-acertadamente- informação no jornalismo brazilian

proibiu/ ). Que a luz retorne sobre

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journalism research - Volume 7 -
Número 1 – 2011

GONÇALVES, Osmar. Reconfigurações


do olhar: o háptico na cultura visual
contemporânea. Disponível em:
https://www.revistas.ufg.br/VISUAL/a
rticle/viewFile/ 26551/15145.
Visualizado em: 20 /03/ 2017.

JACQUES, Paola Berenstein.


Corpografias urbanas ver
http://www.corpocidade.dan.ufba.br/
arquivos/Paola.pdf

LANZA, Amélia Gonçalves. La textura


del deseo. Disponível em: https://
books. google. com. br/books?.
Visualizado em 20/03/2017.

MARKS, Laura. The Skin of the film:


Intercultural cinema, embodiment,
and the senses. London: Duke
University Press, 2000.

SANTOS Alexandre. As Imagens Em


Trânsito De Orlan, Salvador, Bahia,
2009, ver
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/3
1161

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Raul Pederneiras no palco parte da vida cultural carioca do


do teatro Apollo início do século XX. Além de ser

Maria Odette Monteiro Teixeira1 um dos caricaturistas mais


profícuos da Primeira República,
O artigo apresenta a revista foi advogado e professor de Direito
teatral O Esfolado (1903), primeira Internacional na antiga
inserção do caricaturista Raul Universidade do Brasil, como
Pederneiras como dramaturgo do também ministrava a disciplina
teatro de revista. A peça, levada Desenho Anatômico na Escola
ao palco do Teatro Apollo em Nacional de Belas Artes.
1903, aborda as consequências Historiadores reconhecem a
das reformas urbanas do Prefeito importância da crônica visual
Pereira Passos na capital da desse artista como testemunho
República. Busca-se apresentar os das mudanças da cidade do Rio de
intercâmbios de conteúdo entre o Janeiro na primeira metade do
texto teatral e o desenho gráfico século XX. O seu traço crítico
do artista. Como suporte para a esteve nos principais jornais e
apreciação, foram usados o livro revistas da época, como O Malho,
de Jose Murilo de Carvalho, o Fon-Fon!, O Tagarela, Don
estudo de Elias Thomé Saliba Quixote, Gazeta de Notícias, Jornal
(2002) e as pesquisas de Laura do Brasil, O País, Correio da
Moutinho Nery (2000 e 2010) e Manhã, A Noite, O Globo e a
Monica Pimenta Velloso (1996, Revista da Semana, onde
2000, 2010). No que concerne ao trabalhou desde a primeira
teatro de revista, utilizaram-se os publicação, em 1900, até o seu
estudos de Neyde Veneziano último número, em 1948. Parte
(1996 e 1991). dessa produção foi reunida em
Entra em cena o caricaturista dois álbuns, intitulados Cenas de

A biografia de Raul vida carioca, publicados pelo

Pederneiras (1874 a 1954) faz Jornal do Brasil em 1924 e 1935.


Neste artigo aborda-se um

1 aspecto, não menos importante,


Professora Adjunta de História do Teatro
e Dramaturgia na Universidade Regional mas pouco conhecido da história
do Cariri (URCA).Doutora em Artes
Cênicas.

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de Raul Pederneiras: a sua teatro de revista, sendo que
atuação como dramaturgo do Peixoto chegou a assinar centenas
teatro ligeiro. Segundo a de peças. Desse grupo, Raul
historiadora Laura Moutinho Nery Pederneiras foi o primeiro a se
(2000), Pederneiras teria escrito aventurar no teatro,
40 peças, no entanto, grande experimentando, ao longo da vida,
parte dessa produção se perdeu. a concomitância entre o trabalho
Após vasta pesquisa para a tese de caricaturista e revistógrafo, e
de doutorado Entre a página e o conquistando reconhecimento nas
palco: teatro e caricatura na obra duas áreas.
de Raul Pederneiras, só foram
No Teatro Apollo
encontrados onze textos, estando
alguns incompletos. O Esfolado é uma revista de

Em novembro de 1903 Raul ano, concebida às vésperas da

Pederneiras estreou, com a revista Revolta da Vacina2. O texto,

O Esfolado, de cujo texto só restou portanto, revisita o cotidiano das

a parte cantada, impressa pelo reformas urbanas implantadas

Teatro Apollo e hoje presente ao pelo Prefeito Pereira Passos. No

acervo do crítico José Ramos momento em que estreia no

Tinhorão, sob tutela do Instituto teatro, o caricaturista já era

Moreira Salles. bastante famoso no universo da

Segundo o memorialista imprensa, e estava à frente do

Herman Lima (1963) e o semanário humorístico O Tagarela

historiador Elias Tomé Saliba (1902 a 1904), de orientação

(2002), havia um fluxo intenso 2


Revolta que ocorre no Rio de Janeiro em
novembro de 1904, após o governo
entre as páginas das revistas
instituir a vacina obrigatória da varíola.
ilustradas e os palcos das revistas A medida gerou reações contrárias por
parte de algumas lideranças, a exemplo
teatrais da Republica Velha. do senador Lauro Sodré. Juntou-se a
isso o fato de a população estar sendo
Figuras notáveis do desenho expulsa de suas habitações, em função
do alargamento das ruas e a truculência
gráfico, como J. Carlos (1884 a de agentes de saúde, que invadiam, de
forma indistinta e desregrada, os lares
1950), Calixto Cordeiro (1877 a cariocas. Foi esse clima que gerou a
revolta popular que tomou as ruas da
1957) e Luiz Peixoto (1889 a
cidade. Ver: CARVALHO, José Murilo de.
1973), também escreveram para o Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo:
Companhia da Letras, 1987.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 123 de 272
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combativa, no qual ensaiou um autoria de Arthur Azevedo, e
desenho agressivo, criando felicita a entrada de Raul
caricaturas pessoais e charges de Pederneiras no teatro, com a
políticos, como o presidente montagem de O Esfolado, escrita
Rodrigues Alves, o prefeito Pereira em parceria com Vicente Reis -
Passos e o médico Oswaldo Cruz. que, como se observa nos versos,
Contudo, seu desenho é mais era um desafeto do autor
reconhecido por apresentar grupos maranhense. Reis, com quem o
da sociedade carioca, nos quais caricaturista ainda criou também
aponta os contrastes entre a O Badalo (1904), já era um nome
tradição e a modernidade. Criou importante no teatro de revista,
charges antológicas acerca dos tendo escrito com Moreira
tipos banidos da cidade Sampaio, principal parceiro de
remodelada, como na charge Azevedo, o sucesso O Abacaxi
Algumas figuras de hontem. Pode- (1893).
se dizer que o universo do [...] Vivo, vegeto, insaciável
bruto,/ sem ter sossego
trabalho, dos transportes, do lazer apenas de um minuto. /Sou
e as mazelas da cidade do Rio de respeitável Público Pagante,
/de toda parte o bode
Janeiro estão registrados em seus expiatório,/Que sofre o mal
na mansidão constante/Sou
desenhos. sempre e sempre público é
Analisando o texto da peça, notório/O respeitável Público
pagante/Quem paga o pato
percebe-se um claro intercambio do banquete o humano/e
aguenta a carga forte e
entre essas formas de expressão. fatigante? /Eu, a quem
O enredo de O Esfolado será chama sempre soberano e
respeitável Público Pagante,
alimentado pelo desenho do /Zé Povinho, Bocó, Marca
Barbante, /Um João
caricaturista, pois uma charge Ninguém, um Pedro Sem
pode ser lida como um projeto de mais nada, /Embora tenha
bolsa depenada, /sou
quadro de revista. respeitável público pagante!!!
(PEDERNEIRAS, 1903, 1º
“Esta revista
Quadro, Cena 5).
certamente/Triunfará de norte a
A fala acima pertence ao
sul/Tem quase nada do Vicente/
personagem Esfolado,
Tem quase tudo do Raul” (LIMA,
representante das camadas
1963: 992). Esta quadrinha é de
populares da cidade, que lamenta,

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com veemência, o papel que de alter ego da imprensa, cuja
ocupa numa sociedade que o missão é “falar pelos cotovelos”.
segrega e explora. Trata-se de um A estreia aconteceu em 20 de
3
dos compadres que apresentam a novembro de 1903 e alcançou
cena ao público. O personagem excelente acolhida, tanto de público
funciona como uma espécie de quanto de crítica, não obstante se
mestre de cerimônia, cuja função tratar de um dos momentos mais
é expor e comentar os conturbados da Primeira República:
acontecimentos que são levados o governo Rodrigues Alves. A
ao palco. O enredo da peça contou capital era regenerada pelas
com mais dois compadres: ao ator reformas do prefeito Pereira Passos
Brandão (o Popularíssimo) coube o e pelas medidas sanitaristas do
papel do personagem Esfolado, o médico Oswaldo Cruz.
povo excluído do projeto Intencionando a limpeza, a saúde e
regenerador da cidade; ao ator a beleza da nova urbe, as
Peixoto, o papel de Jamegão (gíria autoridades promoveram o famoso
relativa à assinatura documental), “Bota–abaixo”, que derrubou os
numa alusão direta à assinatura cortiços onde vivia grande parte da
oficial que baixava decretos sem população de baixa renda, expulsa
levar em conta as camadas para os morros e periferias. A
populares. O ator Campos viveu o insatisfação do povo era tal que a
Tagarela, a versão em carne e obrigatoriedade da vacina variólica
osso da personagem símbolo do acabou culminando na chamada
periódico homônimo, uma espécie Revolta da Vacina, ocorrida no mês
de novembro de 1904. A intenção
3
Compadre: uma espécie de mestre de
do estado republicano era varrer
cerimônias da revista. Na revista de ano,
havia geralmente uma dupla de definitivamente do espaço urbano
compadres, cuja função era ligar os
quadros e apresentar e comentar a cena. todas as mazelas da antiga Corte.
Em geral, eram tipos estrangeiros à
cidade, oriundos de outros estados ou As ruas estreitas do período colonial
mesmo de outros planetas. A peça
iniciava-se por algum fato que inseria seriam derrubadas e alargadas, pois
esses personagens nos quadros; um
deles era roubado, ou confundido com a capital da jovem República se
algum criminoso. A perseguição é o
remodelava à luz da Paris de
pretexto para que os personagens
corram pelos quadros, descortinando, Georges-Eugène Haussmann.
assim, a vida da cidade (VENEZIANO,
1996:29).

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das picaretas abafava esse
protesto impotente5
O texto acima é parte de uma
crônica de Olavo Bilac, publicada
na revista Kosmos, e apresenta
um fato ocorrido próximo à estreia
de O Esfolado: a derrubada das
construções populares para a
abertura da Avenida Central. É
nesse ambiente que o caricaturista
encena seu texto, que oscila entre

Figura 1 – Capa do Semanário O Tagarela, de o entusiasmo com as mudanças


21/01/1904. Fonte: Hemeroteca Digital
Brasileira
4 impressas no espaço urbano e a
denúncia às desumanidades do
Há poucos dias, as picaretas
entoando um hino jubiloso, projeto. No enredo da peça, a
iniciaram os trabalhos de
construção da Avenida ferramenta símbolo do “Bota–
Central, pondo abaixo as abaixo”, a enérgica picareta que o
primeiras casas condenadas.
Bem andou o governo, dando poeta parnasiano saudou em sua
um caráter solene e festivo a
inauguração desses crônica, ganha vida na pele da
trabalhos. Nem se atriz Blanche Grau.
compreendia que não fosse
um dia de regozijo o dia em Não é qualquer Tutameia/
que começamos a caminhar para limpar a cidade/Picareta
para a reabilitação. é uma Teteia/Que destrói
No aluir das paredes, no ruir sem piedade/ Da vida na dura
das pedras, no esfarelar do liça/ Ninguém me passa a
barro, havia um longo palheta/Desde o calhau a
gemido. Era o gemido caliça/Tudo cede a picareta
soturno e lamentoso do Quando surge a
Passado, do Atraso, do picareta/Tremem de susto os
Oprobio. A cidade colonial mortais/ E qualquer bicho
imunda, retrógada, careta/ se cai não levanta
emperrada nas suas velhas mais!/ Dou cabo do mais
tradições, estava soluçando pitado/ Que se ostente
no soluçar daqueles ameaçador/Fica logo
apodrecidos materiais que desabado.../Não arvora o seu
desabavam. Mas o hino claro ardor! [...] (PEDERNEIRAS,
1903, 1º Quadro, cena 7).

Fica claro que não foi tarefa


fácil derrubar o passado colonial e
4
Disponível em:
5
<http://memoria.bn.br/DocReader/70968 BILAC, Olavo. Crônica. Kósmos, ano 1,
9/1084>. n. 3, p. 3-4, mar. 1904.

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tentar instituir, à força, uma nova alguns apresentados na Revista da
ordem civilizatória numa Semana, em 15 de novembro de
sociedade recém-saída da 1903.
escravidão. Reiterando o antes No texto publicado pelo
referido, a estreia de Pederneiras teatro Apollo, a referência aos
no teatro coincide com sua intensa atores está muito apagada,
colaboração no semanário O dificultando a definição dos papéis
Tagarela, que se posicionou de de cada um. Destaca-se que a
forma contrária à maneira peça possuía mais de setenta
intolerante e desumana que as personagens. Os quadros são
reformas foram conduzidas. Além assim descritos: 1. O esfolado é o
disso, o caricaturista foi povo; 2. Sensações; 3. Boatos
especialmente agressivo quanto às Mentirosos; 4. Salve D. Carlos!; 5.
medidas sanitárias adotadas por Na botica do Chico há de tudo; 6.
Oswaldo Cruz. Portanto, apesar da Nosso Senhor dos Passos; 7.
peça ter estreado quase um ano Antoine e companhia; 8. Chegou
antes da efetiva eclosão da Santos Dumont; 9. Ainda os tais;
Revolta da Vacina, ela já 10. Zaxis em penca!; 11. A flauta
representava a insatisfação da por flauta com flauta; 12. Os
população carente com um projeto últimos brinquedos do [parte
de cidade que não a contemplava. ilegível]; 13. A procura dos
A produção do espetáculo emissários; 14. A Grande Avenida.
ficou a cargo da companhia do Em 14 quadros e três atos foi
ator Brandão, com quem distribuído um vastíssimo painel
Pederneiras ainda trabalharia em de personagens, sendo a maioria
outras montagens. A música, de alegóricos. Desse modo, vai-se
capitaneada por Assis Pacheco, de Santos Dumont à Gritalhona,
teve a colaboração de Francisca do Mosquito à Antypirina, do
Gonzaga. Os cenários eram de Tagarela à Água fria. A revista
autoria de outro caricaturista, possui três apoteoses: a primeira
Alexandre Santos, cujo em homenagem à colônia
pseudônimo é Falstaff. Os portuguesa no Brasil, daí a
figurinos, muito elogiados pela saudação ao rei Carlos; a segunda
imprensa, foram concebidos por em homenagem a Santos Dumont,
Raul Pederneiras, tendo sido que encantava o mundo com suas

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máquinas voadoras; e a terceira da publicação do Teatro Apollo que
em homenagem à desejada a fala da personagem Gritalhona
Avenida Central, símbolo máximo (prostituta) é grifada como uma
da cidade regenerada. Pelos títulos anotação manuscrita em
dos quadros, percebe-se que a vermelho, na qual se lê: “Este
cena abrange os assuntos da pedaço é muito imoral”. O alvo da
cidade, do país e do teatro, Gritalhona é o prefeito Pereira
destacando a passagem pelo Rio Passos; a personagem reclama
de Janeiro da companhia do com ironia por ter sido banida das
encenador francês André Antoine ruas: “És um desmancha prazeres
(1858 a 1943). / que a nossa vidinha arrazas/ Ai
O enredo de O Esfolado foi deixa em paz as mulheres, / Não
parcialmente descrito no periódico sejas empata vazas./ Bem sabes
O Tagarela, de 3 de dezembro de que as horas mortas/ horas de
1903: os compadres da peça, sono e preguiças/ o amor bate às
Esfolado, Jamegão e Tagarela vêm nossas portas [...]”
para a cidade juntos e encontram Por outro lado, na Revista da
tipos como Chícara, Amaral, Zé Semana de 20 de dezembro de
Leiteiro, Mulher do Hidrômetro, 1903, consta uma notícia sobre a
Gritalhona, Mulata Gorda, peça, na seção intitulada Os
Quitandeira, Trovoada e Dr. Theatros, assinada por Marciolus.
Habeas Corpus (advogado “de Narra-se a ação censória da
porta de cadeia”). polícia, que baixa uma interdição
Na fala do Coro dos ao personagem Chícara, após ter
Suspensos há uma referência permitido a encenação de
direta ao prefeito Pereira Passos:
dezenove récitas do texto
“O senhor dos passos veio deixar-
completo. Importante mencionar
nos num belo estado, / O nariz de
que, no exemplar de O Tagarela
palmo e meio e tudo
de 17 de dezembro de 1903, há
desempregado/ Reduzidos a
uma referência ao personagem: “A
capachos, que triste situação!”
figura mais bem achada do O
(PEDERNEIRAS, 1903, 3º Ato, 6º
Esfolado é certamente o general
quadro).
Chícara com seus clássicos pares
A peça incomodou os
de calças brancas, à moda de
censores, pois vê-se nas páginas

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boiadeiro do Piauí6”. caricaturista expõe a violência
Provavelmente, trata-se de uma desses jagunços das oligarquias
alusão ao senador piauiense políticas. A imagem apresenta o

Joaquim Pires Ferreira, pois as valentão com um porrete,

referências ao político induzem à ameaçando um assustado eleitor,


dizendo: “Hein! Repete mais uma
imagem de um político bajulador e
vez que houve violência na
ignorante; contudo, sem o texto
eleição”. Como fica claro, o
completo, torna-se difícil entender
caricaturista criticava com
o porquê da interdição. Por sua
veemência o processo eleitoral, no
vez, em outra matéria do mesmo
qual o voto não era secreto,
Marciolus, na Revista da Semana, permitindo às lideranças locais
de 27 de dezembro 1903, a imporem, pela força, candidatos
censura não é mais mencionada e em suas áreas de domínio.
o assunto é o sucesso da peça,
que continuava lotando o teatro,
mesmo em fim de temporada.
Nas falas da Quitandeira e do
Galinheiro ironiza-se o corrompido
processo eleitoral: a personagem
lembra-se do seu defunto marido,
um valentão que trabalhava como
capanga dos políticos, recrutando
eleitores pela cidade, “todos do Figura 2 – Revista da Semana 24 de maio de 1903.
7
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira
cujo tinham medão”. Já o
Galinheiro menciona o fato de ter Na publicação do Teatro
um burro, o qual pretende Apollo, a fala dos médicos é
qualificar com diploma de eleitor. cáustica, revelando a descrença da
Pederneiras fez muitas caricaturas população pela classe.
nas quais ironizava o processo Somos nós o melhor pronto-
alivio,/Dessa senhora
eleitoral corrompido, a exemplo de humanidade/E por cobre ou
charge da Revista da Semana de caridade/ Vamos nós de mal
a pior/Muitas vezes, porém,
24 de maio de 1903, intitulada quase sempre,/Quando
“Convencendo”, na qual o
7
Disponível em
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocRe
6
Tagarela, ano 2, n.95, 1903. ader.aspx?bib=025909_01&PagFis=1798>

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menos esperamos/Todos nós a figura de destaque, reverenciada
nos espichamos/E o doente
vai desta p’ra melhor! e cantada, é o Rei Calunga (o
(PEDERNEIRAS, 1903, 2º Ato, boneco, personagem das charges).
Cena 18).
Portanto, em sua copla inicial, a
A desconfiança do Caricatura exalta suas qualidades:
caricaturista com a medicina é Caricatura adorada, /A tilintar
atestada em uma série de charges com um guizo,/Nasci de uma
gargalhada, /No quente ninho
do periódico O Tagarela, nas quais do riso. /Aos boléus surjo,
ridiculariza o médico Oswaldo brincando /Como travessa
criança, /Do burguês de
Cruz, expondo desconfianças quando em quando/Dou
palmadinhas na pança, /A
quanto às medidas sanitárias
velha mitologia /Já me
empregadas na cidade. No abrigou em seu seio. /A
minha musa é gorjeio /Cheia
entanto, se os médicos são
de graça e alegria!/Ontem
incompetentes, a personagem simbólica e esquiva, /Hoje
ridente e sagaz, /Amanhã
Antipyrina é eficiente: muito mais viva/ Muito mais
“Farmacêutica propina/ melhor viva e mordaz! /Hoje em dia
/Que ventura!/Onde imperar
não há quem conheça/ do que a a alegria/Impera a caricatura
leve antipyrina / para as dores de (PEDERNEIRAS, 1903, 1º
Quadro, Cena 3).
cabeça.” A presença desta
personagem demonstra a ligação Há também as donas de
efetiva do teatro de revista e dos cachorros ameaçadas pelos
caricaturistas com as pioneiras carroceiros, a mosca e o mosquito,
práticas da propaganda, uma noiva enganada, uma
comprovando, portanto, que o uso candidata a cargo político, as
da personagem pode ser flores, a mulher do hidrômetro
compreendido como um precursor (cujo marido vive a prestar
da prática do merchandising. atenção ao relógio do hidrômetro e
Atestando o efetivo fluxo esquece-se dela), a Ditadura e
entre página e palco, o Generala Pandega, os Teatros em
caricaturista entra para o teatro crise, a Loteria, as Finanças, a

apresentando ao público o seu Água Fria (que além do calor

ambiente de trabalho, seu arsenal resolve outros problemas), as

de artista gráfico. Nesse sentido, Despesas, os Suspensos, os


Funcionários.
introduz a Caricatura, a Estampa,
Como se pode ver, trata-se de
o Pincel, o Lápis e a Pena, como
um painel eclético de personagens.
personagens alegóricos, sendo que

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É necessário levar em conta que, no preta-mina (baiana vendedora de
que concerne aos personagens, o cocadas), o caldo de cana com
desenho de humor vale-se dos música (pequena carroça com
mesmos recursos empregados na músicos vendendo caldo de cana),
cena revisteira. Nos dois espaços é o reclamista (homem que chama
possível usar personagens fregueses para os
alegóricos, como quando se retrata estabelecimentos), e o trapeiro
uma bela jovem representando a (ambulante que recolhe e vende
República. Por outro lado, também trapos). Enfim, os tipos alijados do
circulam entre os dois meios espaço urbano em nome de um
personagens singularizados em projeto civilizador. Portanto, esse é
caricatura pessoal, como no caso do o tema central de O Esfolado. É
Chícara, e outros, sintetizados em expondo essa realidade que o
tipos sociais de uma cidade, como o caricaturista entra em cena.
Esfolado.
Não é difícil estabelecer
conexões entre o desenho de
humor e teatro de revista, pois são
duas formas de representação que
têm por conteúdo a crônica
humorística de seu tempo. Uma
charge possibilita ao leitor
vislumbrar um quadro de teatro de
revista, pois pode ser lida como Figura 3 – Algumas figuras de hontem. “Cenas da
vida carioca”, 1924. Fonte: Acervo da Associação
uma proposta de mise en scène. Brasileira de Imprensa (ABI)
De acordo com Henri Bergson
Segundo Elias Thomé Saliba
(2007:79), o desenho cômico
(2012:16), os dispositivos do
permite que o imaginemos como
desenho cômico funcionaram
uma cena de comédia, uma vez
como uma espécie de prêt-à-
que se trata de uma criação
porter para as cenas teatrais de
concebida sub specie theatri.
Pederneiras. Influenciado pela
Dentro dessa lógica, visualizando a
mensagem concisa, breve e fugaz
charge Algumas figuras de hontem,
de suas charges, Pederneiras
verifica-se que ali estão expostos
aventurara-se no palco, dando
os tipos suprimidos da cidade pós
“Bota-abaixo”, a exemplo de a

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vida a um projeto satírico iniciado Referências bibliográficas
nas páginas da imprensa. BERGSON, Henri. O Riso: ensaio
sobre a significação do cômico.
Tradução de Nathanael C. Caixeiro.
No livro Raízes do Riso no Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
Brasil, o historiador traça um perfil
CARVALHO. Os bestializados: o Rio de
da história do humor brasileiro no Janeiro e a República que não foi. São
Paulo, Companhia da Letras, 1987,
início do século XX. Levando-se 186 p.
em conta o conteúdo, é possível LIMA, Herman. História da caricatura
identificar dois tipos de humor no no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio,
1963, 1795 p.
período que vai do Segundo
NERY, Laura Moutinho. Cenas da vida
Império à República Velha: o de carioca: Raul Pederneiras e a belle
époque do Rio de Janeiro. 2000.
“ilusão republicana” e o de Dissertação (Mestrado) -
“desilusão republicana”. O primeiro Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica, Rio de Janeiro,
é concebido por autores como 2000.
Ângelo Agostini, no século XIX, PEDERNEIRAS, Raul. O Esfolado.
Música de Assis Pacheco et al. Rio de
cujo temas se pautavam na Janeiro, s.n, 1903, 32 p.
campanha abolicionista. O
SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso.
segundo, do início do século XX, A representação humorística na
história brasileira: da Belle Époque
foi responsável por captar as aos primeiros tempos do rádio. São
Paulo, Companhia das Letras, 2002,
incongruências e falhas entre o
366 p.
projeto modernizador do estado
TEIXEIRA, Maria Odette Monteiro. Entre
republicano e a vida em uma a página e o palco: teatro e caricatura
na obra de Raul Pederneiras. 2015.
sociedade saída da escravidão. Tese. Programa de Pós-Graduação em
Pederneiras vivencia os dois Artes Cênicas da UNIRIO, Rio de
Janeiro, 2015.
direcionamentos. Quando jovem,
VELLOSO, Monica Pimenta, LINS,
entusiasmou-se com a ideia da Vera, OLIVEIRA, Claudia. O moderno
em revistas: representações do Rio de
República, mas vai, aos poucos, Janeiro de 1890 a 1930. Rio de
perdendo a crença nas melhorias, Janeiro, Garamond, 2010.

sendo que a cena de O Esfolado VENEZIANO, Neyde. O Teatro de


Revista no Brasil: dramaturgia e
denuncia essa ambiguidade, pois, convenções. Campinas, Editora da
Unicamp, 1991, 194 p.
ao passo que critica a
desumanidade do projeto
modernizador excludente, saúda
seus feitos, reverenciando, na
apoteose final, a construção da
Avenida Central.

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Do desprestígio do [...] com efeito [...], quando


observamos situações
observador à apoteose da dolorosas, em suas imagens
experiência: uma breve mais depuradas, sentimos
genealogia prazer ao contemplá-las; por
exemplo, diante das formas
dos animais mais ignóbeis e
Leonardo Munk1 dos cadáveres. A causa disso
é que conhecer apraz não
É sabido que o teatro apenas aos filósofos, mas, de
modo semelhante, também
praticado na Grécia antiga, e que aos outros homens, ainda que
nos chegou por meio de [,,,] participem disso em
menor grau. Pois sentem
depoimentos e materiais, de prazer ao observar as
imagens e, uma vez reunidos,
produção dramatúrgica e de aprendem a contemplar e a
estruturas arquitetônicas que elaborar raciocínios [...]
sobre o que é cada coisa, e
sobreviveram a erosão do tempo, dirão, por exemplo, que este
é tal como aquele, E desde
sempre privilegiou a visão. Não que não tenham por acaso se
coincidentemente é ‘o lugar de deparado anteriormente com
tal coisa, o prazer não se
onde se vê’ a tradução mesma da construirá em função da
mimese, mas do resultado,
palavra grega theatron. Ou seja, a ou da tonalidade obtida, ou
cena de uma determinada de qualquer outra causa
desse mesmo tipo.
apresentação, trágica ou satírica, (ARISTÓTELES, 2015: 57).
que se destinava, de imediato, a
Ao atrelar, portanto, a
ser apreendida pelos olhos. É mais
observação das coisas à elaboração
do que conhecida, nesse contexto,
de raciocínios, Aristóteles evidencia
a apreciação de Aristóteles acerca
principalmente o caráter intelectual
das virtudes da observação de
da poesia mimética. Não
imagens, que propiciaria ao
surpreende que, na Poética, o
homem a possibilidade de
elemento estrutural mais
conhecer as coisas e o mundo.
importante do poema seja
Cito abaixo excerto da Poética, na
justamente o mythos (o enredo, na
criteriosa tradução de Paulo
tradução de Pinheiro), e não a
Pinheiro.
opsis (o espetáculo). Essas

1
observações aqui feitas se
Professor Adjunto da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro- justificam, sobretudo, a fim de
Unirio, atuando nos Programas de Pós-
Graduação em Ensino das Artes Cênicas destacar que o protagonismo do
(PPGEAC), Artes Cênicas (PPGAC) e
Memória Social ( PPGMS). ato de ver, e sua inevitável

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descritividade, não implicava traziam consigo o conhecimento
necessariamente o embotamento de que a ultrapassagem das
de, por exemplo, ações gestuais e medidas levaria a desgraças,
musicais, que eram realizou-se plenamente enquanto
tradicionalmente executadas pelos relação dialógica comprometida
representantes do coro. É natural, com um efetivo caráter
no entanto, que enquanto pedagógico. É compreensível,
festividade alçada a condição de nesse sentido, que os aspectos
evento fundamental na constituição espetaculares dessa manifestação
do ethos grego, as representações representacional específica fossem
teatrais dialogassem intimamente secundários, havendo a inegável
com os temas políticos e jurídicos proeminência dos enredos em
de seu tempo. A esse respeito, me detrimento dos elementos lírico-
parece relevante aqui o retorno ao gestuais. Estes em larga medida
clássico estudo de Jean-Pierre passaram a ser menosprezados e,
Vernant e Pierre Vidal-Naquet. com o passar do tempo, cada vez
É a língua do coro que, em mais associados aos exageros da
suas partes cantadas,
prolonga a tradição lírica de comédia, e, por isso, distantes dos
uma poesia que celebra as costumes da classe dominante.
virtudes exemplares do herói
dos tempos antigos. Na fala Exemplar disso é o menosprezo
dos protagonistas do drama,
a métrica das partes com que o poeta romano Horácio
dialogadas está, ao contrário, trata, em uma de suas epistolas, o
próxima da prosa. No próprio
momento em que, pelo jogo comediógrafo Plauto ao compará-
cênico e pela máscara, a
personagem trágica toma as lo a um autor de tragédias gregas.
dimensões de um desses O trecho a seguir foi extraído de
seres excepcionais que a
cidade cultua, a língua a estudo de Richard Hunter,
aproxima dos
contemporâneos do público.
helenista da Universidade de
(VERNANT, VIDAL-NAQUET, Cambridge.
1977: 20-1)
O ‘escravo correndo’ da
Do trecho citado, pode-se comédia romana, que entra
apressado com uma
intuir que o drama grego – e, mensagem importante, tem
uma ressonância
nesse caso particular, a tragédia – sociopolítica, assim como
, constituído como apresentação à teatral. A discussão no palco
sobre ‘como andar’ pode
pólis dos grandes mitos que então esclarecer o que os

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atores efetivamente faziam entre o espectador e o mundo.
no palco. Horácio expressa
seu desdém às farsas de Nesse contexto, a representação
Plauto em comparação ao teatral não se excluiria dessa
refinamento e valor educativo
da tragédia grega [...]. ao vocação, até mesmo porque, como
representar Plauto correndo
de forma atabalhoada pelo observou Roland Barthes, em um
palco, preocupado, não com ensaio de 1973, não haveria entre
arte, mas com ser pago.
(HUNTER, 2008: 225-6) àquela e os outros meios de

Relevante aqui é a percepção representação, como o futuro

do ‘refinamento’ e do ‘valor cinema, por exemplo, nenhuma

educativo’ da tragédia grega. Nada diferença essencial no que dizia

tão distante, aliás, do que seria respeito à constituição de uma

desejado séculos depois na corte cena. Cito-o:


[...] o teatro e o cinema são,
francesa do século XVII com o
certamente, expressões diretas
decoro vislumbrado nas tragédias da geometria [...], mas o
discurso literário clássico
de Jean Racine, contemporâneo do (legível), abandonando há
muito tempo a prosódia, a
‘geômetra’ René Descartes. A
música, é também ele, um
menção ao autor do cogito, ergo discurso representativo,
geométrico, pois que recorta
sum faz sentido na medida em que trechos para pintá-los:
este dedicou parte de sua obra a discorrer (teriam dito os
clássicos) é ‘pintar o quadro
pensar o ato de ver e os que se tem na mente’.
(BARTHES, 1990: 85-6)
fenômenos óticos. Profundamente
interessado nos experimentos da Essa imagem do pintor que

câmara escura, pois esta, como pinta o que lhe vai na mente se

nos diz Jonathan Crary, em seu aproxima muitíssimo dos reclusos

notável estudo sobre as Técnicas estudiosos retratados pelo pintor

do observador, “(...) é coerente holandês Johannes Vermeer e

com a busca dos fundamentos do analisados por Crary na obra

conhecimento humano segundo anteriormente citada. Tanto em O

uma visão de mundo objetiva”, astrônomo quanto em O geógrafo,

Descartes nos chamou a atenção temos a representação

para uma tendência que, datando paradigmática do observador

já do século anterior, passaria a isolado que se distancia do mundo

regular cada vez mais as relações para melhor apreendê-lo. Tem-se

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aqui, em outras palavras, a arte. A citação de Crary, embora
instauração da cisão entre mente longa, é aqui de extrema
e mundo (espírito versus corpo). pertinência.
No final do século XVI, a
figura da câmara escura
começa a assumir uma
importância proeminente na
delimitação e na definição das
relações entre observador e
mundo. Várias décadas
depois, a câmara escura não
será mais um dos muitos
instrumentos ou opções
visuais, mas, ao contrário, o
lugar obrigatório a partir do
qual a visão pode ser
concebida ou representada.
Acima de tudo, ela indica a
emergência de um novo
modelo de subjetividade, a
hegemonia de um novo
Figura 1 - O astrônomo (1668). J. Vermeer. efeito-sujeito. Antes de mais
Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File
:VERMEER_El_astrónomo_(Museo_del_Louvre,_
nada, a câmara escura realiza
1688).jpg uma operação de
individuação; ou seja, ela
necessariamente define um
observador isolado, recluso e
autônomo em seus confins
obscuros. Ela o impele a um
tipo de askesis, ou
distanciamento do mundo, a
fim de regular e purificar a
relação que se tem com a
multiplicidade de conteúdos
do mundo agora ‘exterior’.
Nesse sentido, a câmara
escura é inseparável de uma
metafísica da interioridade:
ela é uma figura tanto para o
observador, que apenas
nominalmente é um individuo
livre e soberano, como para
Figura 2 - O geógrafo (1669). J. Vermeer. Fonte: um sujeito privatizado
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:J._VERMEE confinado em um espaço
R_El_ge%C3%B3grafo_(Museo_St%C3%A4del,_Fr%C quase doméstico, apartado de
3%A1ncfort_del_Meno,_1669).jpg um mundo exterior público.
(CRARY, 2012: 45)
Nesse sentido, a difusão da
câmara escura no século XVI O tipo de ascetismo (áskesis)
a que Crary se refere pode, por
termina por alinhar a metafísica à
analogia, ser aferido nas artes
ciência e às novas tecnologias da

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cênicas quando da separação entre invisibilidade e do voyeurismo.
o lugar da ação e o lugar da visão, Exilado da cena, ele assumiu o
ruptura essa que só se dá de modo papel de um observador diante de
efetivo a partir da renascença um quadro. A identificação do
italiana. Mesmo na Grécia clássica, quadro pictórico e da cena teatral é
inevitável inspiração para uma consequência natural dessa
arquitetos italianos como, por tendência, e Denis Diderot, no
exemplo, Sebastiano Serlio (1475- século XVIII, seu principal
1554), nunca houve de fato propagador. Para o enciclopedista
separação física entre o espetáculo havia a necessidade do
e seus espectadores uma vez que a desenvolvimento de uma nova
circularidade do espaço cênico e dramaturgia que, cenicamente,
sua abertura asseguravam essa pudesse se inspirar na pintura,
continuidade. Esse não proporcionando deste modo um
distanciamento entre as duas universo fechado, independente do
esferas era justamente o que observador e da experiência. E não
mobilizaria Friedrich Nietzsche em se tratava mais dos ‘valores
seu elogio do coro grego. Em O educativos’ da tragédia clássica,
nascimento da tragédia ou pois, afinal, esta representaria a
helenismo e pessimismo, publicado monarquia em decadência, com
em 1872, ele dizia o seguinte: François Boucher e sua Diana
Um público de espectadores, saindo do banho (1794) [figura 3]
tal como nós o conhecemos,
era desconhecido aos gregos: como um de seus maiores
em seus teatros era possível representantes.
a cada um, graças ao fato de
que a construção em terraço
do espaço reservado aos
espectadores se erguia em
arcos concêntricos, sobrever
com inteira propriedade o
conjunto do mundo cultural à
sua volta e, na saciada
contemplação do que se lhe
apresentava à vista,
imaginar-se a si mesmo como
um coreuta. (NIETZSCHE,
1999: 58)

Delimitado o espaço da Figura 3 - Diana saindo do banho (1742). F. Boucher.


Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bou
representação, coube ao cher_Diane_sortant_du_bain_Louvre_2712.jpg
espectador o aprendizado da

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Na concepção de Diderot, como o lugar da ação, vedado,
sairiam de cena os heróis e deuses portanto, ao olhar dos observadores.
para dar lugar aos pais de família Tornar-se-ia ideal então a ausência
e suas desventuras sentimentais. do público, desejo esse que só se
Jean-Baptiste Greuze, segundo concretizaria de fato no final do
esse raciocínio, viria a ocupar o século seguinte com o cinema e a
lugar dos libertinos. desmaterialização da imagem
projetada. É sintomático, aliás, como
o cinema em seus primórdios foi
dependente do teatro, constatação
essa que pode ser verificada até
mesmo em filmes realizados no
período sonoro. Ironicamente foi
necessário que o cinema se
teatralizasse, por assim dizer, para
que ao teatro fosse permitido
Figura 4 - O filho punido (1778). J. B. Greuze. Fonte: novamente abolir a distância entre o
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Greuze.jpg
espetáculo e os espectadores.
Defendendo uma composição Experiência essa vivenciada por
simples e clara, Diderot assim se Antonin Artaud, também homem de
manifesta: cinema, ao assistir a um espetáculo
A pintura partilha com a
de dança balinesa em Paris na
poesia, e parece que ainda
não se tem dado conta desse década de 1930.
fato, o deverem ser ambas
bene moratae; é preciso que
digam respeito à moral. Em O teatro e seu duplo,
Boucher ignora-o radical manifesto por um novo
completamente: é sempre
depravado e nunca atrai. teatro e onde estão expostas suas
Greuze é sempre virtuoso, a
multidão amontoa-se em
teorias acerca da “crueldade”,
torno de seus quadros. Artaud fala sobre a cena e a sala
(DIDEROT, 2013: 85)
de espetáculo.
Tanto nas telas de Greuze Suprimimos o palco e a sala,
quanto nos dois dramas de Diderot, substituídos por uma espécie
de lugar único, sem divisões
O pai de família e O filho Natural, nem barreiras de qualquer
tipo, e que se tornará o
tem-se agora o ambiente familiar próprio teatro da ação. Será

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restabelecida uma outra passagem de O teatro e seu
comunicação direta entre o
espectador e o espetáculo, duplo, Artaud é claro a respeito da
entre ator e espectador, pelo subordinação da cena ao texto.
fato de o espectador,
colocado no meio da ação,
estar envolvido e marcado Para nós, a Palavra é tudo no
por ela. Esse envolvimento teatro e fora dela não há
provém da própria saída; o teatro é um ramo da
configuração da sala. Assim, literatura, uma espécie de
abandonando as salas de variedade sonora da
teatro existentes, usaremos linguagem, e se admitimos
um galpão ou um celeiro uma diferença entre o texto
qualquer, que falado em cena e o texto lido
reconstruiremos segundo os pelos olhos, se encerramos o
procedimentos que teatro nos limites daquilo que
resultaram na arquitetura de aparece entre as réplicas, não
certas igrejas e certos conseguimos separar o teatro
lugares sagrados, de certos da ideia do texto realizado.
templos do Alto Tibete. (ARTAUD, 1987: 90)
(ARTAUD, 1987:122-3)
Não se trata aqui do
O resgate da proposta
obrigatório exílio do texto, mas sim
artaudiana deve ser compreendido
do reconhecimento de que a
à época como uma tentativa de
tendência textocêntrica que
redimensionamento do teatro
acompanhava a produção
enquanto espaço de vivência em
dramatúrgica europeia ao longo dos
exata contraposição ao chamado
três últimos séculos resultara num
teatro burguês, que, em 1938,
engessamento da plasticidade
ano em que Artaud elaborou seu
inerente à linguagem teatral, pois
manifesto, se apresentava quase
como também observou Artaud, “O
que exclusivamente como uma
domínio do teatro não é psicológico,
arte subordinada à literatura.
mas plástico e físico [...]” (ARTAUD,
Tem-se com Artaud, portanto, o
1987: 93). Há naturalmente nesse
início da compreensão de que o
pensamento a constatação implícita
teatro demanda uma linguagem
de que as línguas europeias eram
própria cujo ponto de inflexão
de certo modo incapazes de
reside na peculiaridade do
expressar sentimentos com verdade
encontro entre o texto e a cena,
e paixão. Segundo esse moto,
percepção essa que só seria
Artaud pleitearia a força espiritual
vivamente aceita a partir das
das palavras, única alternativa para
últimas décadas do século XX. Em
a impossibilidade da enunciação.

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Daí o caráter essencialmente entende Artaud, e que são já
comentários exilados.
ritualístico de seu teatro. (DERRIDA, 2005: 115)

Cabe lembrar aqui que, em A contraposição à ambição


outro contexto, o da antropologia, burguesa, a da observação
Victor Turner aproximou o conceito distanciada do mundo, é aqui
de experiência ao de ritos de radicalmente questionada. Artaud
passagem. Segundo ele, experiência apontou em seus escritos o que,
e perigo viriam da mesma raiz indo- segundo ele, representaria um dos
europeia, per, que possui o possíveis empobrecimentos do
significado literal de se aventurar teatro, ou seja, a excessiva
(DAWSEY, 2005:163). Nada mais intelectualização da experiência
adequado a um teatro que teatral. Tendência essa que
pressupunha a interação entre arte precisaria ser subvertida em nome
e vida, dissolvendo desse modo as de uma experiência capaz de
delimitações de uma arte de caráter dissolver os limites de uma
eminentemente representacional e representação ancorada no
metafísico. A esse respeito, a leitura paradigma da relação sujeito-
de Jacques Derrida acerca do objeto. Ao científico olhar de um
fechamento da representação em observador alheio à cena se
Artaud é oportuna. demandaria, portanto, alguém
Procurando uma desejoso de participação. É
manifestação que não fosse
uma expressão mas uma
compreensível, nesse contexto,
criação pura da vida, que que à ampliação do desejo de
jamais caísse longe do corpo
para decair em signo ou em compartilhar experiências –
obra, em objeto, Artaud quis
aumentado sobretudo a partir da
destruir uma história, a da
metafísica dualista que segunda metade do século
inspirava, mais ou menos
subterraneamente, os ensaios passado –, se reduzisse o apelo à
acima evocados: dualidade da
contemplação e à fruição estética.
alma e do corpo sustentando,
em segredo sem dúvida, a da Cabe questionar, no entanto, até
palavra e da existência, do
texto e do corpo, etc. que ponto essas duas atitudes
Metafísica do comentário que
(ações) são, de fato, antagônicas.
autorizava os “comentários”
porque presidia já às obras O debate ainda está longe de um
comentadas. Obras não
teatrais, no sentido em que o satisfatório desfecho.

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duplo. Trad. Teixeira Coelho. 1ª
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Por tempos mais justos, um da equanimidade entre ética e


olhar sobre a cenografia e a estética na realização profissional
docência de Helio Eichbauer artística. Esta harmonização se faz
Regilan Deusamar Barbosa Pereira1 ainda mais necessária quando
observamos que na atual
Em seu livro Cartas de
sociedade brasileira ainda vigoram
Marear: Impressões de viagem,
condições trabalhistas que retiram
caminhos de criação, publicado em
do trabalhador as funções criativas
2013, o cenógrafo e professor
relativas ao campo da produção,
Helio Eichbauer afirmou no
substituindo as atividades
capítulo 3, intitulado O estudante
humanizadas de criação e
de praga, a sua opção por
fabricação por atividades
“trabalhar como artesão,
exclusivamente operacionais.
rigorosamente, por tempos mais
justos” (EICHBAUER, 2013, p. Para melhor
112). Ao considerar a opção deste compreendermos esta
renomado cenógrafo carioca este aproximação entre ética e
estudo traça uma relação entre o estética, primeiramente se faz
fazer técnico e artístico das artes necessário tecer considerações
da cena e a aptidão fabril, própria sobre o fabricar no campo das
da natureza humana, nos tempos artes. O livro The culture of craft,
atuais, pois a cenografia, organizado pelo jornalista britânico
indumentária, iluminação Peter Dormer em 1997, jornalista
demandam realizações próprias que se especializou em estudos e
dos artífices para que a cena publicações sobre a produção
construída seja apresentada. artesanal, evidenciou o fato de
Observa-se, portanto, o ponto de que a reflexão sobre a realização
interseção entre a arte técnica artística ao longo do século XX
destinada à produção da cena, e a abordou mais amplamente a
habilidade humana para perspectiva do ponto de vista do
fabricação, no sentido de que conceito. Considera-se que tal
existe a necessidade da promoção destaque privilegiou a concepção e

1
relegou ao segundo plano a
Cenógrafa e figurinista. Doutora em
Artes Cênicas. Professora Substituta da execução técnica. Certamente a
Universidade Federal de São João del Rei.

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arte não possui delimitações por Dormer, fez uma distinção
teóricas para ser abordada. Cada entre o aprimoramento na
artista opera seu processo de fabricação de objetos para fins
realização artística segundo a utilitários, reconhecido como um
própria expressão, experiência, atributo do designer, que lida,
conteúdo, domínio das inclusive, com estudos de
ferramentas, mas existe um liame ergonomia, e a fabricação
entre o artista e a sociedade, que artesanal que, apesar de lidar com
este estudo compreende como confecção de objetos utilitários,
uma conexão entre ética e teria um vínculo maior com o
estética, consequentemente se a contexto cultural. Rees observa,
realização artística se estabelece inclusive, que o designer tem
socialmente nos termos de: arte é maiores condições de manter a
pensamento, todos os demais empregabilidade, em relação ao
campos que lidam com a arte a artesão, porque a realização do
partir do aprimoramento técnico primeiro está diretamente
podem sofrer desvalorização, falta orientada para satisfazer a
de reconhecimento, até mesmo necessidade do consumidor. Esta
exclusão. De acordo com Dormer, comparação entre o designer e o
o século XX foi tendencioso no artesão despertou a atenção para
sentido de privilegiar a arte como a comparação entre o estilista e a
reflexão e desconsiderar os ateliês costureira. O estilista está
dedicados à experiência fabril. circunscrito pelo mercado da
Estes se encontram diretamente moda, a costureira também, mas
conectados ao domínio da técnica o primeiro, assim como o
artística em conformidade com o designer, pode atuar no universo
campo da criação, tais como os industrializado, que se apropria da
ateliês de tecelagem, pintura, atividade operária destinada à
ourivesaria, marcenaria, entre produção em escala, enquanto que
outros. a costureira bem como o artesão
detém o conhecimento e os
A designer Helen Rees, que
instrumentos de execução do
publicou o artigo The challenge of
objeto ou da vestimenta, não
technology neste livro organizado

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afeitos, portanto, ao domínio dos no campo da técnica, poderá
detentores da força de trabalho e consequentemente alijar
do poder econômico. Certamente realizações e realizadores que
esta oposição entre o artesão e a estão neste liame entre arte e
indústria é desigual, avassaladora cultura, arte e sociedade,
para o artesão, porém ainda mais tornando-se excludente. Daí a
2
sacrificante para a sociedade, pois afirmação de Peter Dormer a
o mercado se abastece com os respeito da necessidade premente
produtos industrializados e impõe de que artistas, artesãos e
os mesmos a diferentes designers escrevam sobre o
grupamentos sociais, processo de fabricação artesanal e
consequentemente a humanidade suas implicações artísticas,
perde em produção cultural, que é teóricas e técnicas. Compreende-
sua capacidade de criar realidades se que esta observação de Dormer
amistosas para o bem estar social, colabora, também, para a
ou seja, os artesãos deixam de valorização e concessão do direito
produzir arte e cultura de fala ao corpo de trabalhadores
diretamente relacionada à sua que atua no campo da criação e da
comunidade, para operar execução, consequentemente tal
máquinas fabris. Tal compreensão amplitude de perspectivas no
foi discutida pelo inglês William campo da arte poderá dinamizar e
Morris, que no século XIX fortalecer as relações entre o
contribuiu para a criação do universo acadêmico que pensa a
movimento Arts & Crafts, que arte e a técnica e respectivo
singularmente defendeu o atributo universo popular que emerge da
humano de criação e fabricação. relação entre arte e cultura.

Ao voltarmos a inquirir sobre 2


Writing has assumed considerable
o processo de realização artística e importance in the battle of the status of
the crafts because the written text has
seus modos de expressão e itself a high cultural status. (…) It is
apparently all right to admire a painting of
produção, verificamos, portanto, Elizabeth I in which her lavish dress,
jewellery and headwear are so well-
que se o processo de reflexão executed in paint. It is not, however,
sobre a arte deixar de expor thought relevant to show the jewellery or
clothing of the period and discuss the art
teorias e considerações também of these crafts in their own right.
(DORMER, 1997, p. 15 e 16)

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Ao longo de sua atividade No Parque Lage, faremos a
mesma coisa,
profissional Helio Eichbauer atuou fundamentalmente. Não
como professor. Na década de importa se o aluno é lavador
de pratos de uma lanchonete
1970 deu aula tanto em ou arquiteto famoso: todos
têm coisas a trazer. E é sobre
universidade pública quanto em essa matéria-prima que nós
escolas de artes. Nesta mesma trabalharemos, procurando
repensar a nossa maneira de
década, ao ser indagado em ser, de viver.4
entrevista para Tania Pacheco Eichbauer, ao afirmar que
sobre suas intenções no campo da prefere “a busca da obra coletiva”
docência, Eichbauer afirmou a em conformidade com um grupo de
necessidade de expressar mais alunos que não se distingue por
livremente sua arte naquele pré-requisitos escolares, mas que
período em que o teatro estava certamente tem as próprias
sob a ditadura militar no Brasil. experiências de vida para
Palavras de Eichbauer: “...entre compartilhar interage com o corpo
aceitar um trabalho no qual não social no qual ele mesmo se
vejo sentido e pesquisar com encontra e, garante desta forma,
meus alunos, prefiro a busca da que um fluxo de conhecimentos e
3
obra coletiva” . Portanto, ao atuar experiências seja mantido em via
como professor ele intentava de mão-dupla entre o professor e
maior liberdade de expressão e seus alunos e alunas, a partir do
criação, cujos alunos, em relação intercâmbio no campo de
ao seu curso na então recém- conhecimentos e linguagens
criada Escola de Artes Visuais do artísticas. É preciso lembrar que a
Parque Lage, não seriam promoção da sala de aula de artes é
restringidos por sua formação por si um investimento na
escolar, pois ele atenderia tanto humanização da sociedade, por ser
ao “lavador de pratos” quanto a expressão artística um atributo do
àqueles que tivessem tido maior ser humano. Esta promoção da
contato com o universo da arte.
4
Este trecho da entrevista foi extraído de
De acordo com suas palavras: matéria jornalística apresentada na
exposição Jardim da Oposição 1975-1979,
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage,
Rio de Janeiro, 2009. A referida matéria
3
Entrevista concedida à Tania Pacheco, foi fotografada e na mesma não consta
para o jornal O Globo, em 1976. data e nem o nome do jornal.

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docência no campo das artes e morreu discretamente, sem
ter gravado seu depoimento
humanidades ser feita por um para as futuras gerações. A
cenógrafo, que é um técnico das direção do teatro, que não se
importava muito com aquele
artes cênicas tem a particularidade “velho ranzinza”, nunca
prestou as homenagens que
de possivelmente colaborar com ele merecia. As pessoas
mais um requisito de humanidade também são patrimônio
histórico. Bertelli tinha belas
que é o de fabricação de objetos, histórias para contar, que
foram enterradas com ele.
ou seja, desenvolvimento de (EICHBAUER, 2013:47)
técnicas de fabricação.
Embora Eichbauer tenha Estas falas do cenógrafo e

trabalhado mais intensamente a professor Helio Eichbauer que

expressão corporal em suas aulas foram documentadas reúnem,

oferecidas na década de 1970, a portanto, dois importantes fatores

fazer experiências de que contribuem para a aliança

reconhecimento do espaço através entre ética e estética na reflexão

do corpo, de acordo com o olhar de sobre o processo artístico: 1) a

um profissional que atua integração de participantes nas

dimensionado o contorno espacial e oficinas de artes oriundos de

os objetos por ele captados, contextos sociais e econômicos

Eichbauer em seu livro Cartas de diversos, o que promove inclusão

Marear, publicado em 2013 indistinta no campo das artes; 2)

destacou mais um integrante desta valorização do exercício e da fala

“obra coletiva” que é o técnico que dos profissionais do campo da

trabalha nas montagens técnica artística, o que amplia a

cenográficas e cenotécnicas da compreensão da arte no sentido

caixa cênica. De acordo com as de que esta se constrói também

palavras de Eichbauer: no diálogo com os artífices, que


são os construtores, portanto, tão
O chefe do setor de
fundamentais quanto a produção
iluminação do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro do pensamento a respeito da
era o médico do teatro José
Bertelli Sobrinho; um grande concepção artística, pois a
inventor da arte cênica, com
execução demanda conhecimentos
larga experiência na área
desde os anos de 1950. Viu próprios que dizem respeito à
tudo de bom, participou de
montagens antológicas e resistência e propriedade dos

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materiais, máquinas e ferramentas expôs reflexões que frutificaram a
adequadas para fabricação, partir da realização das maquetes
conhecimento de medidas, cálculo dos edifícios teatrais. De acordo
de materiais necessários para com a apresentação introdutória
execução do projeto. dos autores:

Os conhecimentos técnicos A documentação escrita e


iconográfica permitiu aos
na realização de uma obra de arte pesquisadores reescrever a
podem ser apropriados pelo artista arquitetura teatral do século
XVII, especialmente na
que concebe a obra ou não. Tal Inglaterra, Espanha e França
e deu novos significados e
aprimoramento vai depender da possibilidades de encenação
expressão individualizada de cada em espaços construídos ou
readaptados para receber o
artista, no entanto, as artes grande público.
Paralelamente às maquetes,
cênicas na pujança das montagens mapas e planos de edifícios
idealizadas para a cinética da relativos ao século XVII e ao
barroco, a exposição enfatiza
caixa cênica demandam a os locais das estruturas
recentes do século XX e do
produção de uma obra de arte que século XXI, construídas ou
se faz na coletividade. A respeito readaptadas em edifícios
antigos, ou mesmo em
da arquitetura teatral que permite estruturas provisórias. (LIMA;
DRAGO; LEOCÁDIO, 2017: 5)
toda essa dinâmica cenográfica e
construção cênica, a publicação Tão ricos quanto os estudos

bilíngue Arquitetura Teatral do teóricos e técnicos de Lima, Drago

Renascimento ao século XXI da e Leocádio a respeito das

autoria de Evelyn Furquim arquiteturas teatrais, foram os

Werneck Lima, Niuxa Dias Drago e importantes esclarecimentos que o

Francisco J.C. Leocádio revela a professor e cenógrafo Eichbauer

grandiosidade tanto material trouxe a partir dos relatos sobre

quanto mnemônica destes suas experiências nos ateliês do

edifícios, e também o infinito de Teatro Nacional de Praga, que ao

possibilidades que cada uma funcionarem associados ao edifício

dessas arquiteturas possui na teatral promoviam verdadeiras

contemporaneidade. Esta fábricas movimentadas por

publicação tratou, inclusive, da artífices. De acordo com

conexão entre arte e técnica, pois Eichbauer:

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Despertar na madrugada, reaproveitados, conforme o relato
tomar o bonde, ingressar no
ateliê às sete horas – que no deste professor e cenógrafo, o que
inverno ainda era noite –, naturalmente promove uma espécie
encontrar com o mestre,
realizar exercícios e participar de educação no contexto do
dos diversos setores da
fábrica de teatro: marcenaria, ambiente e da economia entre os
pintura, adereços, profissionais que trabalham nestas
serralheria, desenho e
escultura. Aprendi a construir oficinas. É possível considerar,
o cenário em módulos
aproveitando parte de outras inclusive, que ao lidar com a
montagens; planos, escadas, fabricação cenográfica e de
praticáveis, nada se
dispensava. A madeira figurinos os profissionais envolvidos
escassa era reutilizada por
anos, os pregos e parafusos
possam adquirir conhecimentos
recolhidos, as rodas das sobre os diferentes enredos a partir
construções móveis e os
trilhos desenhados para servir dos quais aquelas construções
em várias cenografias.
serão realizadas, portanto não
(EICHBAUER, 2013:94)
somente a plateia será contemplada
É preciso considerar a por aquelas narrativas, mas
importância social, cultural e também os fabricantes desses
econômica desses relatos de enredos, ainda que num contexto
Eichbauer a partir de suas diverso. Tem-se, portanto, uma
experiências nos ateliês destinados dinâmica educacional humanizada a
à fabricação da cenografia, figurino partir do exercício de construção da
e adereços para teatro. Estas arte para cena, no qual todos os
oficinas não funcionam de acordo envolvidos para a elaboração da
com uma fabricação em série encenação empreendem técnica e
porque cada cenário, adereço ou apreensão das narrativas que serão
figurino é destinado a uma contadas, desde os cenotécnicos, as
específica montagem, a diferentes costureiras, as camareiras, aos
atores, a diferentes linguagens, iluminadores, cenógrafos,
portanto compreende uma figurinistas, atores, bailarinos. Esta
realização técnica dinâmica para circulação e disseminação de
cada integrante da equipe, seja saberes, técnicas, conteúdos, ainda
uma realização da carpintaria, da que apropriados pela indústria
pintura, da serralheria, ou da cultural, como acontece em
costura. Os materiais são

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encenações diretamente voltadas só, uma arte diretamente
5
ao mercado de consumo da arte , é relacionada ao aprimoramento
de fundamental importância para a intelectual, que se desenvolve
democratização da educação, a desde a fabricação e alcança o ato
qual, neste caso, se faz através das da reflexão, inclui a vivência na
artes cênicas, pois no campo da coletividade e a percepção por
fabricação artística existe o intermédio da arte.
exercício da invenção, da criação,
O cenógrafo Helio Eichbauer
os quais garantem o atributo
ao buscar atuar no campo da
humano de solucionar os problemas
docência intensificou este atributo
que surgem cotidianamente através
que o edifício teatral possui de
da invenção de novas ferramentas,
promover o aprimoramento
condições de convivência,
intelectual e educacional das
superação de obstáculos. Tal
sociedades que se formam nos
exercício cognitivo intrínseco às
espaços das cidades. Esta atuação
artes cênicas faz do teatro, por si
singular de Eichbauer se torna
ainda mais exemplar quando
5
O mundo inteiro é forçado a passar pelo
crivo da indústria cultural ...reproduzir de atentamos para a realidade sócio-
modo exato o mundo percebido
cotidianamente tornou-se o critério da
educacional brasileira, tão marcada
produção ...Superando de longe o teatro pelas precariedades que impedem
ilusionista, o filme não deixa à fantasia e
ao pensamento dos espectadores qualquer que a massa populacional conclua o
dimensão na qual possam ...se mover e se
ampliar por conta própria ...A atrofia da ensino fundamental e médio
imaginação e da espontaneidade do
consumidor cultural de hoje não tem satisfatoriamente. Trata-se,
necessidade de ser explicada em termos
psicológicos. Os próprios produtos portanto, de uma atuação singular
...paralisam aquelas capacidades pela sua
própria constituição objetiva. Eles são
que reúne arte e educação, de
feitos de modo que a sua apreensão acordo com a perspectiva de que o
adequada exige, por um lado, rapidez de
percepção, capacidade de observação e teatro se afirma como potência
competência específica, e por outro é feita
de modo a vetar, de fato, a atividade edificadora de sociedades mais
mental do espectador, se ele não quiser
perder os fatos que rapidamente se humanizadas tanto a partir das
desenrolam à sua frente ...para que se
reprima a imaginação ...A violência da encenações realizadas na caixa
sociedade industrial opera nos homens de
uma vez por todas ...Infalivelmente, cada
cênica quanto a partir das práticas
manifestação particular da indústria de artes técnicas de cada um dos
cultural reproduz os homens como aquilo
que foi já produzido por toda a indústria profissionais que colaboram com a
cultural. (ADORNO, 2002:15, 16 e 17)

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construção da arte da cena. aula: caixa de papelão aberta,
Para que possamos compreender reaproveitada para servir como
melhor como o cenógrafo Helio expositor das matérias a serem
Eichbauer fez da sua profissão estudadas e comentadas pela classe
eminentemente artística um de alunos e professor. Este dado a
exercício educacional, façamos respeito do reaproveitamento de
análises de registros fotográficos materiais já havia sido tratado por
em dois distintos momentos de Eichbauer em seu livro publicado em
docência deste cenógrafo- 2013, Cartas de Marear, quando o
6
professor . Primeiramente a foto de mesmo disse que nos ateliês do
uma aula realizada no curso Teatro Nacional de Praga os cenários
intitulado O jardim de Epicuro ou eram construídos a partir de
sobre a natureza das coisas: materiais reutilizáveis. Portanto,
desde sua formação em princípios
da década de 1960 Eichbauer
aplicou, quando possível, tal prática
ecológica, a qual tratou de incentivar
em suas aulas através de objetos
que funcionavam como dispositivos
Figura 1 -Helio Eichbauer ministra a aula em 19 didáticos, à maneira de cenografias,
de abril de 2014 no Espaço Tom Jobim. Esta
aula integrou o curso O jardim de Epicuro ou pois se constituíam de objetos
sobre a natureza das coisas. Fotografia: Regilan
Deusamar.
construídos ou montados, que
A figura 1 apresenta-nos uma atraíam a atenção de alunos
fotografia de Helio Eichbauer de observadores, e que possuíam
costas, erguendo parte do painel significados próprios relativos à
que montou para exibir o conteúdo didática. Ainda nesta foto se
de sua aula em 19 de abril de 2014. encontra à esquerda do painel a
É importante observar o material reprodução da gravura de 1504 de
que este cenógrafo-professor utilizou Albrecht Dürer, na qual se vê
para apresentar o conteúdo de sua representado o casal Adão e Eva, e
à direita do painel a pintura deste
6
Este binômio foi apresentado na tese de
mesmo artista que nos apresenta
doutorado defendida pela autora deste
artigo intitulada Helio Eichbauer e Lina Bo Eva. Através destas apresentações e
Bardi: artífices que constroem a arte e
edificam a cidade.

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objetos didáticos e cenográficos os serem desenvolvidas e aplicadas
alunos despertavam a curiosidade cotidianamente para diferentes
pelo conteúdo e quando eram finalidades. A respeito das
convidados a apresentar os próprios reproduções de pinturas e gravuras,
trabalhos, solicitados pelo professor, as quais Eichbauer com frequência
sentiam-se estimulados a criar e apresentava em suas aulas, as
construir seus próprios objetos mesmas despertavam a curiosidade
artísticos, e mesmo aqueles que por conhecer diferentes mitologias
previamente manifestavam a bem como diferentes períodos
dificuldade para execução de históricos da humanidade, ou seja, a
trabalho artesanal, não deixavam de partir do conhecimento de diferentes
exercitar suas habilidades técnicas e obras pictóricas os enredos
criativas, pois o desejo em se desenvolvidos ao longo da história
desafiar havia sido despertado, secular de homens e mulheres eram
menos pela apresentação de algo estudados e comentados. Para
inovador e mais pelo desejo de exemplificar, particularmente a
descobrir as próprias potencialidades autora destes estudos teve a
criativas e técnicas. E a oportunidade de, a partir da pintura
apresentação de trabalho por parte de 1913, Baile à fantasia, de
dos alunos e alunas era sempre uma Rodolpho Chambelland, aprender
grande satisfação para todos, pois sobre a cultura musical brasileira do
cada integrante tinha a oportunidade início do século XX, a qual foi
de expressar suas próprias comentada pelo professor e desta
aventuras ao criarem e executarem maneira as nossas próprias raízes
suas ideias, o que naturalmente artísticas e culturais tornaram-se
envolvia erros e acertos. Todos os alvo de distintas reflexões.
trabalhos eram bem recebidos e não
De fato, como um artesão, o
se tratava de uma classe de aula
professor Eichbauer construía suas
profissionalizante, mas sim uma sala
aulas em superfícies e volumes a
de aula que despertasse as
exibir conteúdos à maneira de um
habilidades individuais, que
neo-humanista, revendo as
certamente eram diferentes umas
diferentes reflexões e realizações
das outras, mas todas passíveis de
feitas por homens e mulheres ao

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longo dos séculos, mas não para ficou registrado no caderno: “A
enaltecer a humanidade, como se melancolia e a fuga para o sonho
esta estivesse em grau superior às poético”. Este sonho poético
demais formas de vida terrestres, certamente estava relacionado ao
mas para trazer à luz do Machado de Assis e ao Teatro de
conhecimento fatos que não devem Brinquedo de Álvaro Moreyra, que
se manter ignorados, pois ao nos conferiram título ao curso, mas
tornarmos informados a respeito esta aula especialmente nasceu
da nossa própria história, dos estudos do Professor
estaremos melhores capacitados a Eichbauer sobre o livro do filósofo
compreender a realidade presente alemão Walter Benjamin: Origem
que nos afeta. A seguir a fotografia do drama trágico alemão, o qual
do professor Eichbauer integrou a bibliografia do curso.
apresentando estudos matemáticos Esta singular sistemática teórica
a partir da gravura de 1514, fazia parte do que o professor
Melancolia I de Albrecht Dürer: Eichbauer denominava como “salto
quântico”7, através do qual o
professor conectava assuntos de
distintos períodos históricos. Este
estudo de Benjamin associou à
figura soturna e shakespeariana
de Hamlet a figura alada e
melancólica que se encontra na
gravura de Dürer. A tradução do
Figura 2- Na aula proferida em 18 de outubro de
2014, para o curso Lição de Botânica, Machado ano de 2004 deste livro de
de Assis – Teatro de Brinquedo na Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, o Professor Benjamin realizada por João
Eichbauer apresentou aos alunos uma
reprodução de Melancolia I, gravura de 1514 de
Albrecht Dürer, na qual, acima da figura de um
7
anjo de aparência entristecida vê-se o desenho Esta particularidade da didática de Helio
de um quadrado mágico. Três diferentes Eichbauer foi abordada pela autora deste
quadrados com o princípio matemático do artigo na mesa redonda Homenagem a
quadrado mágico foram montados pelo Helio Eichbauer em 2018, por ocasião da IV
professor Eichbauer. O quadrado menor à
Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e
esquerda é composto pela mesma numeração
que se apresenta na gravura de Dürer.
Cultura, cujo resumo expandido intitulado
Fotografia: Regilan Deusamar. Salto quântico: a didática de Helio
Eichbauer se encontra disponível em:
A respeito da fotografia da http://www.unirio.br/espacoteatral/arquivo
s/evento-
aula que se apresenta na figura 2, extensao/Anais_de_resumos_expandidos-
iv_jornada.pdf

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Barrento, assim apresenta esta versa), o quadrado Sator. O
comparação entre a personagem importante ao observar este
criada por William Shakespeare e estudo matemático e linguístico
a imagem de Dürrer: “...em em uma das aulas conferidas por
Hamlet uma ascendência saturnina Eichbauer é que este cenógrafo
...As imagens e figuras que esse adentrou o campo da docência
drama põe em cena são dedicadas desejando ampliar a comunicação
ao gênio düreriano da melancolia da informação, afirmando a
alada” (BENJAMIN, 2004:169). De vocação educacional que permeia
fato, a gravura fora realizada em o campo das artes cênicas. O
1514 e a tragédia do príncipe da professor Eichbauer, através dos
Dinamarca fora escrita entre 1600 estudos no campo da história e da
e 1601, ou seja, quase um século filosofia da arte e da técnica
após a realização artística de construtiva da cenografia
Dürer. É preciso considerar que a empreendeu a disseminação do
imagem pictórica de homens e saber que se origina na arte por
mulheres melancolicamente compreender que desta maneira
debruçados sobre caveiras tornou- estaria contribuindo com “tempos
se célebre entre o Renascimento e mais justos”, portanto ousou
o Barroco, mas Benjamin foi o fabricar, a maneira de um artífice,
autor que fez este estudo dispositivos didáticos. A julgar
associativo entre a personagem pelas suas salas de aulas
shakespeariana e a gravura de invariavelmente repletas por
Dürer. Eichbauer, por conseguinte, considerável número de alunos,
decidiu analisar não somente o este cenógrafo, que lecionou até
sonho poético advindo da figura seu último mês de vida, obteve
alada de tez melancólica, mas sucesso neste seu objetivo de
também o enigmático quadrado colaborar através da sua arte e da
mágico que se apresenta sobre sua técnica, com a sociedade
este anjo e prosseguiu no estudo brasileira que tivesse acesso à
do palíndromo (frase ou palavra informação através da arte e da
que se pode ler, indiferentemente, cultura.
da esquerda para a direita ou vice-

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21st Century: book of the exhibition =
Arquitetura teatral do renascimento
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Francisco J. C. Leocádio. – Rio de
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Programa de Pós-Graduação em Artes
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UNIRIO, Rio de Janeiro, 2018.

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CONFERÊNCIA

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Transformações na estética que floresceram na década de


da cena brasileira nos anos 1960 e às grandes transformações
1960 e 1970: estudo de políticas e sociais ocorridas no
quatro obras cênicas de
período. A cenografia rompeu com
Marcos Flaksman.
paradigmas formais, o que se
1
Andréa Renck refletiu na experimentação de
O que cada época cria não é a novas configurações espaciais,
representação do espaço, mas
o espaço em si, quer dizer, a notadamente influenciadas pelas
visão que os homens têm do
teorias construtivistas russas e
mundo num dado momento
(FRANCASTEL, 1970:143). pelo teatro épico de Erwin Piscator
e Bertolt Brecht.
As décadas de 1960 e 1970
O interesse e a
foram marcadas, nas artes cênicas
experimentação de novas
brasileiras, pelas limitações
propostas foram intensificados pelo
impostas pela ditadura militar,
surgimento, na cena sessentista,
pelo teatro político, pelas
de um grupo de jovens talentosos
primeiras experimentações de
cenógrafos que participou
espaços alternativos ao tradicional
ativamente da reinvenção da
palco à italiana, pelo surgimento
cenografia brasileira: Marcos
de expressivos nomes na
Flaksman (1944), Helio Eichbauer
dramaturgia nacional, pelo
(1941-2018), Flávio Império
emprego de uma nova
(1935-1985), Joel de Carvalho
materialidade cenográfica e pela
(1930-1974) e Luiz Carlos Mendes
propagação de novas ideias,
Ripper (1943-1996).
fatores diversos e complexos que
A nova geração de
suscitaram uma revolução cênica.
cenógrafos inaugurou um outro
No campo da cenografia
campo de modernidade ao atuar
teatral, houve uma renovação
na transformação do espaço
estética associada aos movimentos
cênico: Flávio Império trabalhou
da vanguarda artística mundial
as possibilidades do espaço
1
Cenógrafa e Figurinista. Professora
circular no Teatro de Arena de São
Adjunta dos Cursos de Artes Cênicas - Paulo, Marcos Flaksman a arena
Cenografia e Indumentária - Departamento
de Artes Teatrais – BAT, Escola de Belas de três lados do Teatro de Arena
Artes – EBA da Universidade Federal do Rio da Guanabara; Joel de Carvalho
de Janeiro - UFRJ
estabeleceu espaços cênicos nas

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dependências do Museu de Arte espaço de comunhão entre cena e
2
Moderna e radicalizou na público. Cenografias com acúmulo
integração do público com a cena; de referências, presença de
Helio Eichbauer e Luiz Carlos panejamentos, intervenções sonoras
Mendes Ripper transformaram a e objetos sensoriais fizeram uma
organização espacial de teatros oposição às construções geométricas
italianos e realizaram cenografias e reproduções ainda de inspiração
para espetáculos itinerantes. A realista do início dos anos sessenta.
valorização dos processos criativos Dentre os cenógrafos da nova
e a participação ativa na geração sessentista3, realizamos
construção da encenação, muitas um estudo aprofundado sobre a
vezes evidenciando o cenógrafo obra de Marcos Flaksman,
como co-criador do espetáculo, apresentado na tese de doutorado
também estão entre as inovações intitulada Uma vida impressa em
promovidas e vivenciadas por palco: processos e realizações de
estes artistas. Marcos Flaksman no campo da
Com o intuito de identificar cenografia teatral brasileira nos
práticas e tendências cênicas da anos 1960 e 19704. A pesquisa foi
cenografia de vanguarda dos anos realizada considerando-se o
1960 e 1970 através das obras da momento social e político em que
nova geração, percebemos, o cenógrafo iniciou a sua atuação
observando a iconografia referente e suas consequentes implicações
ao período, que a estética sobre os movimentos culturais e
construtivista, a abstração e a artísticos, procurando também
organização presentes na cena estabelecer relações de afinidade
sessentista deram lugar, na década ou disparidade entre o trabalho do
seguinte, à uma cena experimental,
desestruturada, marcada por 3
Yan Michalski (1989) cunhou o termo
“arquitetos-cenógrafos” para se referir a
espaços ritualísticos desenvolvidos essa geração, mas dentre estes cinco
artistas, somente Marcos Flaksman, Joel
em processos investigativos de Carvalho e Flávio Império se formaram
realizados não mais para um em arquitetura.
4
Tese de doutorado desenvolvida no
espetáculo, mas para um Programa de pós Graduação em Artes
acontecimento teatral, em um Cênicas (PPGAC) da UNIRIO, na linha de
pesquisa Processos e Métodos da Criação
Cênica (PMC) com orientação da Prof. Dra.
Lidia Kosovski, defendida em Maio de
2
MAM, RJ. 2019.

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artista e aquele desenvolvido por A partir do levantamento de dados
cenógrafos contemporâneos a ele e dos primeiros depoimentos do
no mesmo período, reconhecendo artista, optamos por realizar
tendências ou movimentos quatro estudos de caso, elegendo
estéticos que caracterizaram a para tal os espetáculos A vida
cena da época. impressa em dólar (1965), Dois
Investigamos realizações perdidos numa noite suja (1967),
cênicas de Flaksman Os convalescentes (1970) e Rasga
desenvolvidas entre 1964 e 1979 - Coração (1979), cujas análises são
os primeiros quinze anos de sua apresentadas em linhas gerais
atuação como cenógrafo - com o neste artigo.
objetivo de identificar processos, Os primeiros quinze anos de
procedimentos e características do atuação de Flaksman como
seu trabalho para evidenciar o seu cenógrafo foram quase
pensamento sobre a cenografia e integralmente dedicados ao teatro,
comprovar a hipótese que o artista experiência fundamental que
foi um dos transformadores da proporcionou ao artista um grande
estética da cena brasileira nas conhecimento sobre o palco e a
décadas citadas, realçando a sua cenografia teatral. Marcos
importância para a cenografia. Flaksman estreou como cenógrafo
Para tanto, realizamos um aos vinte anos, no espetáculo A
mapeamento das atividades Tempestade, de Shakespeare, em
artísticas desenvolvidas por uma montagem amadora do grupo
Flaksman no recorte temporal Mambembe5. O ofício de cenógrafo
definido, com ênfase nas trinta e foi desenvolvido em concomitância
cinco peças teatrais com com a sua formação e atuação
cenografia assinada por ele no como arquiteto6. O artista, hoje um
período, e uma série de oito
entrevistas com o artista que
5
O Mambembe foi um grupo de teatro
contribuíram para definir quais amador fundado por Paulo Afonso Grisolli
espetáculos, entre os muitos em 1963 e sediado em Niterói, RJ. A
Tempestade foi encenada no Teatro
realizados, foram representativos Nacional de Comédia - RJ (atual Teatro
Glauce Rocha), com direção de Tite de
do seu percurso e do seu ideário Lemos.
estético a ponto de merecerem um 6
Marcos Flaksman cursou arquitetura na
Faculdade Nacional de Arquitetura (FNA),
estudo aprofundado e ilustrativo. atual faculdade de Arquitetura e Urbanismo

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dos profissionais brasileiros mais família judaica, uma crítica à
respeitados na área de cenografia guerra, ao capitalismo e à busca
e direção de arte, iniciou com A desenfreada ao status
tempestade uma carreira de rápida proporcionado pelo dinheiro. A
ascensão que o consagrou como direção de Paulo Afonso Grisolli
cenógrafo teatral em um período imprimiu a prática de um tipo de
inferior a dois anos. trabalho associativo que solicitou o
O reconhecimento foi envolvimento de toda a equipe no
impulsionado pela cenografia de A processo de criação do espetáculo.
vida impressa em dólar7, de Clifford A ativa participação do cenógrafo
Odets, espetáculo dirigido por Paulo neste processo resultou em uma
Afonso Grisolli no Teatro Dulcina em concepção cenográfica que
outubro de 1965. Esse trabalho foi correspondeu ao caráter realista
investigado por ser um marco na do texto ao mesmo tempo em que
carreira do artista: foi a sua primeira inovou criando em cena uma
cenografia para uma produção imagem poética do local da ação.
profissional, a primeira experiência Na espacialidade deste
em um palco italiano e o início do espetáculo – a ação se dá no
processo de aprendizado sobre apartamento da família no Bronx,
cenotecnia. A cenografia chamou a em Nova York - Marcos Flaksman
atenção de público e crítica, colocou em prática um
revelando o cenógrafo que foi pensamento sobre cenografia que
contemplado com dois dos mais se tornaria característico de seus
importantes prêmios da categoria na projetos: o uso do ângulo reto – o
época: “Prêmio Molière de Melhor ângulo do espaço real – na
Cenografia” (Prêmio Air France de reprodução de ambientes internos.
Teatro) e “Revelação de Cenógrafo” O artista concebeu um cenário de
(Prêmio Jornal O Globo). gabinete que se diferenciou dos
Em A vida impressa em dólar gabinetes tradicionais pela
Clifford Odets coloca em cena, angulação das paredes
através do cotidiano de uma cenográficas e seu posicionamento
no palco, assim como pela
da UFRJ, entre 1962 e 1966, quando se inclusão de elementos estruturais
formou.
- vigas aparentes delimitando a
7
Tradução livre do título original Awake
and sing. parte superior das tapadeiras - e

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pela ausência de teto, o que de partida para uma concepção
permitiu que o público visualizasse cenográfica que colocou em cena,
outra inovação desta proposta: a além do interior do apartamento, o
cenografia de ambiente externo seu entorno.
criada nos bastidores do palco. Ryngaert (1996) define como
Cogniat (1964), ao tratar da espaço fora de cena, um espaço
transposição da realidade para o que a princípio não se destina à
palco através da cenografia, representação. Este espaço
defende que o teatro deve criar a intervém no enredo para
cenas que não tem lugar,
sua própria realidade. Para o autor, mas que são evocadas ou
os cenários não devem ser uma relatadas pelas personagens.
Estas começaram ali seus
reconstituição histórica, mas ter percursos (são então os
lugares de onde vêm) ou os
uma aparência de exatidão,
perseguirão por
fornecer uma imagem de uma intermitências (são os lugares
as quais se dirigem, aos quais
época ou de um lugar que seja planejam ir). Estes espaços
aceita no presente: “A realidade ausentes, mas literalmente
presentes “nos bastidores”
não é o essencial. O que importa é existem “fora do texto” assim
como existem “fora de cena”
dar a ilusão de uma certa realidade;
(RYNGAERT, 1996: 86).
é que o cenário desprenda uma
O autor cita como exemplo os
atmosfera conforme o espírito da
espaços fora de cena da
obra (...). A realidade de uma obra
dramaturgia clássica, muitas vezes
é sempre uma transposição”
descritos com precisão pela fala,
(COGNIAT, 1964: 100).
mas sem representação espacial na
O texto de Clifford Odets
cena. Em Awake and sing, Clifford
solicita, como lugar da ação, o
Odets localiza uma cena trágica no
interior de um apartamento com
terraço do prédio onde reside a
várias indicações, localizado numa
família. Esse acontecimento no
região específica de uma cidade
terraço, espaço fora de cena
específica, e em uma época
evocado pelas falas dos
determinada. Flaksman considerou
personagens, legitima a necessidade
a imagem das “escadas de
da trama se passar em um prédio de
incêndio” dos prédios nova-
apartamentos e não em uma casa
iorquinos suficiente para remeter,
térrea, e possivelmente contribuiu
ou dar a ilusão do lugar da ação.
para a criação, pelo cenógrafo, de
Essa referência visual foi o ponto

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uma imagem do exterior do edifício. das relações da família
A referência visual da qual Flaksman protagonista. Jean-Pierre Ryngaert
partiu para conceber a cenografia e identificou essa possibilidade de
a ideia de mostrar também o percurso criativo ao afirmar que “o
entorno do prédio foi potencializada universo espacial de um texto se
pelas características do palco do define tanto por oposição a tudo o
Teatro Dulcina: de tipologia italiana, que ele não é como por tudo o que
o palco, além da verticalidade, ele é” (RYNGAERT, 1996: 87).
contém varandas e passarelas que Em 1967, Flaksman realizou a
se apropriavam à sua proposta.
cenografia da primeira montagem
A concepção de Marcos
carioca de Dois perdidos numa noite
incorporou à cenografia a estrutura
suja, de Plínio Marcos, dirigido por
existente nos bastidores do palco,
Fauzi Arap e Nelson Xavier no Teatro
inserindo na mesma, elementos
Nacional de Comédia. O espetáculo
cenográficos como escadas de
foi investigado por sua importância
incêndio, varais de roupas e letreiros
histórica - a montagem revelou o
luminosos que identificavam um
dramaturgo Plínio Marcos (1935-
espaço exterior. Esse espaço
1999) e a peça se tornou um
“externo” ao apartamento, embora
clássico do teatro nacional - e por
presente desde o início do
apresentar uma concepção cênica
espetáculo, só era revelado na cena
que confirma a teoria espacial de
final, através da iluminação. Assim,
Flaksman sobre o uso privilegiado do
a cenografia de A vida impressa em
ângulo reto em cena, experimentada
dólar contou com a representação
pela primeira vez, por ele, em A vida
de um local interior – o cenário de
impressa em dólar.
gabinete com os cômodos sugeridos
Dividida em dois atos, a peça
no texto – e um local exterior – o
apresenta a relação tensa entre
entorno do prédio de apartamentos.
dois personagens à margem da
Flaksman relatou8 que a ideia
sociedade que atuam em um
de mostrar o mundo exterior surgiu
cenário único, um quarto simples
também para confrontar o clima
de pensão. Para essa cenografia, o
claustrofóbico existente em torno
artista utilizou diferentes texturas

8
em uma ambientação figurativa, ao
Em depoimento à autora, em
08/05/2018.

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mesmo tempo em que recusou o canteiro de obra, espaço
tradicional cenário de gabinete, intermediário entre o caos e a
estabelecendo um jogo de edificação futura, esconde os
correspondências entre o espaço moradores clandestinos, num estado
indicado nas rubricas do texto e o de suspensão entre a ruína e a
espaço proposto para ação. renovação.
Pavis (2003:43) catalogou a Essa adaptação permitiu que
“ilustração” e a “figuração” como o artista empregasse materiais e
funções dramatúrgicas da texturas distintos, agregando uma
cenografia. De acordo com ele, o maior plasticidade à cenografia. O
cenógrafo, ao eleger objetos e cenário foi estruturado por apenas
lugares sugeridos pelo texto - duas paredes unidas em uma
ilustração e figuração de elementos angulação de 90°. Marcos repetiu a
que se supõem existentes no sua “teoria do ângulo reto”, ideia
universo dramático - atualiza este que beneficia o ângulo real em
quadro ou dá a ilusão de mostrá-lo cena, centralizando no palco a
mimeticamente. Esta figuração é quina das duas paredes existentes,
sempre uma estilização e uma de forma que nenhuma delas
escolha pertinente de signos, porém ficasse paralela à linha da boca de
varia de uma abordagem naturalista cena, com a intenção de romper
até uma simples evocação mediante com o formato e posicionamento
alguns traços pertinentes de um tradicionalmente utilizado para
elemento do espaço. cenários de gabinete, oferecendo
Ao realizar a leitura do texto, um outro ângulo de visibilidade
Flaksman teve a ideia de transpor o para o espectador.
local da ação, indicado como um A concepção espacial, os
quarto de hospedagem, para um materiais utilizados, a pintura de
local improvisado em uma edificação arte e os objetos que compuseram
em construção. Esta concepção a cena colaboraram para a
espacial dá a entender que os realização de uma cenografia
personagens teriam se apropriado realista. A pintura de arte indicou a
daquele local e construído um umidade da parede, os tijolos reais
tabique para fechar uma aresta. O utilizados denunciaram o estado

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inacabado da obra, e a divisória de invisibilidade dos indivíduos
tapumes, com dizeres pichados excluídos ou à margem da
desencontrados, colaborou para o sociedade, funcionando como uma
entendimento da proposta de metáfora da situação dos
apropriação daquele lugar pelos personagens. O cuidadoso trabalho
personagens. de criação cenográfica se integrou
Flaksman quis que a cenografia à proposta da encenação,
fizesse alusão à época em que foi materializando um espaço que
9
realizada . Uma das paredes, favoreceu a força dramática do
construída com ripas de madeira, texto pungente de Plínio Marcos.
funcionou como um muro que Três anos após este
continha referências aos espetáculo, Flaksman alcançou
personagens e ao período. O maturidade estética e técnica como
cenógrafo inseriu fotografias de artista cênico na cenografia de Os
mulheres seminuas – elementos convalescentes, de José Vicente
sugeridos numa rubrica – ao lado de (1945-2007), dirigida por Gilda
cartazes rasgados e inelegíveis, e Grillo. O texto, escrito em 1969,
das palavras “abaix” e “ura”, uma coloca em discussão o papel
decomposição da frase “abaixo a político dos intelectuais e da classe
ditadura” que foi pintada nas tábuas. média frente aos regimes
Justificando que a frase estaria totalitários. O tema refletiu um
pichada num tapume de rua, cujas assunto em voga naquele
tábuas teriam sido reutilizadas pelos momento: uma avaliação sobre as
personagens para a construção do formas de luta das organizações
tabique, Flaksman desordenou as opositoras ao regime militar estava
palavras, levando sorrateiramente à na pauta da militância brasileira,
cena o grito dos opositores ao que precisava encontrar novas e
Regime Militar. eficientes estratégias de ação
A ideia de situar o espaço da frente ao recém-promulgado AI-5,
ação em um “quarto clandestino” em dezembro de 1968. A peça Os
improvisado em uma edificação convalescentes estreou na arena
inconclusa, reforçou a imagem de do Teatro Opinião em 1970,

9
marcando a temporada teatral
Segundo depoimento à autora em
20/03/2018.

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daquele ano. Em 1972, o limites abrigaram os sentimentos de
espetáculo foi remontado com a frustração, desespero e falta de
cenografia original em Paris, por perspectivas que moviam a
Gilda Grillo e Norma Bengell, com o encenação. À luz de Ubersfeld
apoio de Simone de Beauvoir. (2005), podemos afirmar que este
A ação de Os convalescentes espaço - lugar cênico - possui uma
se passa em uma cidade da relação icônica com o texto
América Latina, a fictícia San dramatúrgico e com o universo
Vicente, no ano de 1961. Segundo histórico em que está inserido. O
a rubrica de José Vicente, as cenas caráter opressivo do texto de José
se dão nas ruas da cidade e no Vicente refletiu a realidade sofrida
interior de um apartamento de um por muitos brasileiros em diversas
casal de classe média. áreas - cultural, social, política - no
De acordo com Ubersfeld período histórico em que foi escrito.
(2005: 93) o lugar cênico “deve ser
A cenografia consistiu em um
entendido como o espelho ao
hexaedro estruturado em madeira,
mesmo tempo das indicações
sem base inferior ou superior, com
textuais e de uma imagem
as faces revestidas de tela
codificada”. Marcos Flaksman
metálica, que possibilitaram a
concebeu a cenografia de Os
visibilidade do seu interior. Os
convalescentes a partir das
locais indicados pelas rubricas - o
didascálias e do sentimento
apartamento e a rua - foram
provocado pela leitura do texto,
traduzidos espacialmente pelo
influenciado pelo momento
dispositivo cênico que poderia ser
histórico. Estes fatores incitaram o
“fechado” ou “aberto”, conforme a
cenógrafo à criação de uma
posição de suas faces, abarcando,
cenografia composta por um único
na sua própria forma e na sua
elemento, que continha em si
implantação no espaço cênico, os
mesmo a imagem de uma cela: um
conceitos de interior (espaço
cubo modulado que gradualmente
fechado) e exterior (espaço
vai se fechando e aprisionando as
aberto). A estrutura vazada se
personagens em seu interior. Um
adequava ao espaço em arena do
espaço de confinamento, cujos
Teatro Opinião, que por sua

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tipologia solicitava a instauração de cerceamento da atividade
uma cenografia que permitisse ao intelectual no país.
público a visibilidade por três lados.
A quarta cenografia de Marcos
O cenário geométrico Flaksman que analisamos em
funcional de Os convalescentes, de profundidade foi a concebida para
estética evidentemente Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna
construtivista, reflete o interesse Filho, dirigido por José Renato. A
do artista pelas teorias daquele peça de 1974, última escrita por
movimento. O espaço criado por Vianninha, premiada pelo Serviço
Flaksman propôs uma linguagem Nacional de Teatro e censurada por
para a encenação, apoiou as cinco anos, é reconhecida como
performances dos atores e uma das obras primas do teatro
contribuiu para a força dramática brasileiro. Usando como foco o
do espetáculo, compondo imagens conflito de gerações entre pai e
sugestivas que remetiam tanto ao filho, o dramaturgo colocou em
enclausuramento psicológico das questão as lutas políticas a partir do
personagens como aos becos olhar das esquerdas, apresentando
devastados de uma cidade como pano de fundo um
assolada pela violência. abrangente panorama histórico do
A tensão existente no texto se Brasil que se inicia nas primeiras
refletiu na opressão imposta pelos décadas do século XX segue até o
limites telados do cubo, cuja forma ano de 1970.
quando fechado remetia à uma Para Betti (2013:209) Rasga
jaula. A imagem poética criada Coração é o trabalho estética e
pelo dispositivo cênico reforçou a politicamente mais significativo
desilusão das personagens, entre as obras criadas nos anos de
confinadas na sua casa-prisão. A chumbo. A autora também
cenografia de Os convalescentes identificou, na obra, um avanço na
simbolicamente reflete o texto dramaturgia épica nacional.
visceral de José Vicente e pode A estrutura épica de Rasga
espelhar também o momento Coração expõe, simultaneamente,
histórico do Brasil pós 1968, com a cenas do tempo passado e do
falta de perspectivas em relação ao tempo presente, datado de 1972.

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Além da presença do coro apartamento10 da família do
(soldados, integralistas, personagem principal, Custódio
estudantes), que comenta as cenas Manhães Júnior, e a ação indicativa
através de canções, representação do tempo passado - que abrange
e dança, o dramaturgo indicou a tanto referências a fatos históricos
utilização de recursos épicos, como como memórias de situações
a projeção de imagens de vividas por Custódio e por seu pai –
momentos históricos e de cenas da é solucionada através de iluminação
própria peça e a inserção, no texto, cênica. Segundo Flaksman,
de frases históricas de Vianninha sugeriu que a peça
personalidades políticas. tivesse um núcleo realista para as
Flaksman trabalhou durante cenas do presente e as cenas do
cinco meses na concepção da passado poderiam girar em torno
espacialidade de Rasga Coração: o desse local11. Essa indicação foi
texto exigiu uma cenografia considerada pelo cenógrafo no
elaborada, que localizasse o plano momento de solucionar a
do presente (realidade) e indicasse espacialidade da trama:
o plano do passado (memória), Rasga Coração é uma peça
com estrutura de carpintaria
permitindo a representação de teatral muito específica. As
cenas simultâneas e oferecendo ações dramáticas se dão
simultaneamente em diversas
suporte à atuação e a circulação de épocas e se diferenciam em
termos de tipo de imagem.
um numeroso elenco. A leitura da [...] Vianninha tinha toda a
vasta e meticulosa pesquisa razão quando falava da
necessidade de um núcleo,
realizada por Vianninha para a um local gerador de imagens.
Os universos da memória e
escrita do texto, indicou ao da alucinação deveriam
cenógrafo uma atmosfera dos orbitar em torno dele, como
elétrons em torno do átomo
períodos históricos abordados na (FLAKSMAN, Jornal do Brasil,
22/10/1979).
peça, contribuindo para o processo
de concepção da cenografia.
Nas rubricas do autor, a ação 10
Com exceção de uma cena na “casa de
Milena” (a reunião dos estudantes) e de
do tempo presente, se dá no cenas na “sala do diretor da escola”, estas
simultâneas à cenas no apartamento.
11
Fonte: Jornal do Brasil-RJ. Título: Marcos
Flaksman. Um imenso coração que pulsa.
Autor: Maria Lúcia Rangel. Data:
22/10/1979.

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Em um estudo do percurso continha um espaço central
dos elétrons em torno do núcleo do quadrado, interligado por
átomo, o artista visualizou o escadarias a sete praticáveis de
desenho de um coração que quatro alturas diferentes, que,
acabou por definir uma sugestão dispostos simetricamente,
deste no próprio formato da formavam, também na planta
cenografia, a partir da junção das baixa, o desenho de um coração
duas escadas centrais. estilizado. Na frente do praticável
central, duas escadas acessavam o
A espacialidade de Rasga
porão através de vãos abertos no
Coração foi concebida a partir da
proscênio, e um piso vazado de
ideia da estrutura do átomo:
sarrafos substituiu parte do piso do
Flaksman projetou o apartamento
palco. Ao fundo da cena, cinco
da família - local gerador da ação
telas verticais, com base triangular,
no tempo presente - em uma
complementavam a composição.
posição central, como um núcleo, e
O quadrado central,
os locais onde se desenvolvem as
implantado com dois vértices sobre
ações do plano do passado foram
a linha que divide o palco na sua
ambientados em praticáveis de
largura, continha um fragmento de
níveis distintos em torno deste
apartamento. Os demais espaços
local central, como elétrons em
eram utilizados para as cenas do
órbita ao redor do núcleo do
tempo passado ou para ambientar
átomo, tendo como ponto mais alto
locais do tempo presente. No texto
do percurso os praticáveis ao fundo
de Vianninha, as cenas do passado,
e como ponto mais baixo o próprio
na sua maioria, se dão em
porão do teatro, de onde era
simultaneidade com as cenas do
possível acessar a cena através de
presente. A diferenciação dos níveis
escadas projetadas para este fim.
do cenário e do próprio piso foi
Essa concepção exigiu que esta
concebida para diferenciar o plano
produção fosse sempre encenada
“real” do plano das memórias.
em palcos com porão.
A visualidade da cena foi
Desenvolvendo esta ideia,
complementada com projeções de
Marcos projetou uma cenografia
imagens poéticas realizadas nas
toda estruturada em madeira, que

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telas brancas suspensas no fundo Estas quatro cenografias
do palco. realizadas por Marcos Flaksman
A cenografia de Rasga entre 1965 e 1979 apresentam
Coração possui características procedimentos inovadores
construtivistas (construção apoiada característicos da obra do artista,

no piso do palco, exposição das opções formais e estéticas que

estruturas dos praticáveis e foram experimentadas nos seus

escadas, uso de espaços não primeiros anos de atuação e que se

descritivos para as cenas do tornaram marcas reconhecíveis da


sua obra cênica.
passado) e pode ser identificada
O resgate da obra do jovem
com cenografias realizadas
Marcos Flaksman comprova sua
anteriormente pelo artista,
atuação como transformador da
indicando um percurso criativo em
estética da cena e destaca a
que há um desenvolvimento formal
importância do artista - testemunha
de sua obra, como o uso do ângulo
e personagem vivo de meio século
reto nos espaços internos com
da cenografia brasileira - na nossa
tratamento realista, a criação de
historiografia. Com 55 anos de
um piso cenográfico para a cena, a
carreira completados em 2019,
indicação de espaços realistas
Flaksman continua atuando como
através de fragmentos
cenógrafo de teatro e diretor de
arquitetônicos e a contestação ao
arte de cinema, televisão e séries,
uso de linhas paralelas à boca de com grande capacidade e
cena nos seus projetos. reconhecimento. Seu extenso
Rasga Coração foi encenado currículo - oitenta e uma peças
em uma grande produção que teatrais (são mais de noventa se
estreou em Curitiba em 1979, e a contabilizarmos teatro dramático e
seguir entrou em cartaz no Rio de teatro lírico), quarenta e dois filmes
Janeiro e em São Paulo. O de longa metragem, diversas
espetáculo, cuja luta por sua cenografias para televisão, shows
liberação foi uma das mais longas musicais, publicidade, eventos e a
da história do teatro brasileiro, se imponente quantia de vinte prêmios
tornou um símbolo da abertura – atesta a intensa e importante
política de 1979. produção artística desenvolvida ao
longo de sua longeva trajetória.

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Material inédito, elaborado em projeto
para o CNPq. Fonte: Enciclopédia Itaú
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Mesa Redonda
PEDAGOGIAS E PRÁTICAS TEATRAIS

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A pedagogia do teatro e a cumprir o objetivo de iniciar um


experiência sensível no profícuo debate em torno das
espaço da cidade – algumas relações entre o espaço urbano, a
problematizações reflexivas
educação e o teatro.
1
Adilson Florentino
A cidade como palco da
Esta comunicação é parte do aprendizagem sensível
debate estabelecido no Laboratório Hoje, as cidades se
de Estudos do Espaço Teatral e caracterizam por serem dinâmicas,
Memória Urbana que busca as demandas da sociedade geram
reavaliar e redefinir o lugar que a uma mudança nas estruturas
educação teatral ocupa nos sociais, culturais e funcionais que
espaços institucionais escolares da afetam não apenas as condições
cidade, mais especificamente na físicas do local, mas também as
Cidade do Rio de Janeiro. A tese dimensões culturais, econômicas e
em questão gravita sobre a culturais da sociedade. Estes
reflexão na qual o espaço público requisitos são evidenciados na
urbano pode se tornar um palco Cidade do Rio de Janeiro que,
para o ensino, permitindo durante os últimos 50 anos, teve
estruturar novas relações com as um processo de crescimento
pessoas e o território. Subjaz na vertiginoso, resultando em
discussão em tela pensar a cidade mudanças em sua paisagem para
como lugar de intercâmbio de novas condições urbanas, gerando
valores e experiência sensível. mudanças drásticas na ocupação e
intervenção do território. Devido a
As considerações aqui
esse fenômeno, a população viu a
levantadas fazem parte de
necessidade de ocupar áreas
algumas reflexões sobre a
inóspitas e ecossistemas
temática em questão e não
estratégicos, agravando ainda mais
pretendem esgotar a problemática
a problemática da ocupação.
apresentada, mas pretendem

1
Por outro lado, o problema da
Professor Titular da Escola de Teatro da
Universidade Federal do Estado do Rio de população que chega a esses
Janeiro – UNIRIO. Atua como Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Artes territórios de desenraizamento é o
Cênicas (Mestrado e Doutorado) da
UNIRIO. acesso a serviços básicos,

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especialmente o acesso à pedagogia teatral focada na
educação. Considerando que a experiência e no jogo, que permite
educação não é apenas um direito melhorar a qualidade da educação
fundamental, mas também um em territórios vulneráveis.
serviço público, que tem sido
Com base nessas
violado pelas entidades
possibilidades, deve-se entender
responsáveis, embora existam
que a educação e a arquitetura são
programas de educação pública
elementos complementares quando
gratuita, não são suficientes para
se trata de montar um cenário
superar esse problema.
acadêmico, que deve aprofundar as
Para compreender os efeitos questões que aproximam a
positivos produzidos pela discussão de pesquisas como a
implementação de um espaço melhoria da qualidade da educação
educacional nas periferias da através do espaço público e a
cidade, é necessário conhecer de compreensão do espaço
forma estruturada quais têm sido arquitetônico da escola em um
os principais paradigmas campo de experimentação e jogo.
pedagógicos impostos no Brasil e
O edifício escolar, como obra
como o espaço escolar foi sofrendo
singular, deve conter uma imagem
transformações. Parte-se da idéia
de abertura para a cidade e não de
de que os espaços escolares têm
negação; deve expressar uma
sido um elemento básico na
ideologia de inclusão e não de
construção social e territorial, o ser
exclusão, e os professores
humano só pode ser entendido nas
contemporâneos devem conhecer
suas relações interpessoais.
as novas formas de ensino, para
Assim, esta comunicação tem que cumpram sua tarefa de
como objetivo compreender o maneira coerente com as diretrizes
espaço educacional a partir da teóricas.
questão de como um cenário
As considerações anteriores
diferente para a sala de aula pode
justificam o desenvolvimento da
ser um motor de transformação
presente reflexão que nos
social, refletindo sobre uma
permitem pensar as relações entre

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a arquitetura e as diferentes entre arquitetura e educação com
formas de ensinar um grupo da seus respectivos componentes
população urbana, reinterpretando técnicos, métodos de ensino e
os elementos da arquitetura do aprendizagem.
lugar e de sua cultura, evitando
No início do século XXI, as
assim os limites dos aspectos
principais tendências pedagógicas
físicos e mentais dos espaços
implementadas na educação
educativos e culturais, de modo a
brasileira estavam focadas no
contribuir para a discussão sobre o
desenvolvimento tecnológico e não
espaço urbano como cenário de
no aprendizado dialógico. O papel
aprendizagem.
do estudante continua ativo e o
No Rio de Janeiro, os espaços professor ocupa o papel de
educativos foram influenciados mediador. Assim, de forma ativa e
pelas linguagens arquitetônicas interestruturada entre discente,
européias, como os estilos saber e professor, o conhecimento
românico, gótico, neogótico e suas é construído pelo sujeito a partir de
derivações, como é o caso dos um discurso pedagógico mediador.
edifícios religiosos, que chegaram à
Em relação às correntes
cidade durante o século XVII.
pedagógicas, considera-se o
As tendências pedagógicas na processo de ensino-aprendizagem
Colônia e na República eram de acordo com os sistemas
sistemas responsáveis por educar a educacionais vigentes a cada
classe alta; os ensinamentos eram momento de sua história, de modo
realizados por várias fundações a gerar respostas diversas no
religiosas da capital, como a campo arquitetônico.
jesuíta, a agostiniana, a
A perspectiva construtivista
dominicana e a beneditina;
de educação tem como foco fazer
algumas dessas instituições
com que o estudante possa pensar
funcionavam como escolas ou
o seu mundo de forma
seminários visando principalmente
independente e significativa; desta
a educação religiosa; dessa forma
forma o contexto social e sua
vai se estabelecendo a relação
relação permanente com ele é a

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base do processo de ensino- garantem a obediência dos
aprendizagem; assim sendo, a sala estudantes.
de aula ou o espaço escolar
Este espaço fechado, aparado
construído devem ter significado
e vigiado em todos os seus pontos
para a vida do estudante.
nos quais os estudantes estão
Esta pedagogia foi inseridos em um lugar fixo,
desenvolvida a partir dos estudos passíveis de serem facilmente
de Piaget (1980, 1999) e Vygotsky controlados nos menores
(1989, 2010). Para eles o movimentos, permite que o poder
conhecimento é dado pela relação seja exercido inteiramente de
entre o contexto real e a acordo com uma figura hierárquica,
aprendizagem que se desenvolve a em que cada estudante é
partir do estudante. Piaget sugere constantemente localizado,
que o desenvolvimento cognitivo examinado e distribuído.
constitui um processo de
Assim, a disciplina e o espaço
aprendizado interativo entre o
pedagógico, cumprem a função de
ambiente e as condições genéticas.
contenção, que visa gerar a
Vygotsky, por outro lado, postula
máxima produção e performance
que o desenvolvimento cognitivo
produzida nos espaços; por isso, é
requer a atenção do adulto que
necessário repensar o modelo de
possui experiência avançada.
como as salas de aula e os
Atualmente, os espaços ambientes escolares são
educativos caracterizam-se por construídos em torno de diferentes
serem espaços fechados, aludindo práticas pedagógicas voltadas ao
ao controle como meio pedagógico, lúdico e à experimentação. Da
pois por meio da disciplina, os mesma forma é necessário
espaços são individualizados; esses repensar o espaço escolar como
espaços permitem estabelecer espaços sustentáveis, resilientes e
relações hierárquicas na qual a flexíveis, a fim de compreender a
disciplina é responsável pela noção de espaço público como
vigilância de todos, marcando cenário de novas práticas
lugares que indicam valores e educativas.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 174 de 272
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Assim, a arquitetura é a princípio busca a reconceituação do
manifestação física de pensamentos espaço público, em torno do ensino
e ideais que ocorrem de artes entendendo que o
sistematicamente em um dado aprendizado é a maneira pela qual
momento e contexto; um reflexo adquirimos habilidades, pois são as
disso são os espaços escolares que interações sociais que compõem o
se formaram de acordo com as espaço, não são apenas o produto
pedagogias desenvolvidas em cada da relação entre forma e vazio. Aqui
um deles; desta forma, a há o entendimento da concepção de
arquitetura escolar existente lugar através de processos abertos,
atualmente é contrastada com os flexíveis e adaptáveis para a
paradigmas pedagógicos atuais, construção de comunidades de
uma vez que estes são geralmente acordo com uma sociedade e uma
dinâmicos. economia em constante mudança
na paisagem urbana heterotópica
Assim como esta comunicação
(FOUCAULT, 2013).
nos permitem perceber a relação
entre arquitetura, pedagogia e Os “territórios dos outros”, as
escola, a relação entre o espaço heterotopias, foram inicialmente
público e a educação deve ser definidas por Foucault na década de
conhecida, abrindo a discussão de 1960 como sendo espaços
como o espaço público pode ser um delineados pela própria sociedade e
cenário de ensino a partir do qual que são uma espécie de contra-
convergem diferentes formas de espaços; uma espécie de utopias
interações sociais, culturais e de efetivamente verificadas onde todos
aprendizagem, sendo a educação o os outros espaços reais que podem
principal dispositivo de construção e ser encontrados dentro de uma
transformação social. cultura são ao mesmo tempo
representados, desafiados ou
A presente reflexão é
revertidos.
formulada a partir do princípio do
espaço público como cenário da A partir das primeiras
pedagogia baseada na experiência intuições do filósofo francês, a
sensível e no ensino do teatro. Este heterotopia foi estendida para se

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 175 de 272
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tornar o espaço paradigmático do físico para se desenvolver, já que
mundo moderno, tornando-se até são intangíveis. Na verdade, se há
mesmo uma condição de todo o algum lugar onde os mundos são
espaço, já que o espaço é justapostos é na Internet, porque
construído como uma esfera de nela não há discriminação ou
justaposição ou coexistência de categoria, há apenas a vontade de
diferentes narrativas, como o fluir do sujeito quando confrontado
produto de relações sociais com sua própria escolha.
dinâmicas. Os lugares são
Portanto, poderíamos pensar
imaginados como articulações
que a marcação espacial da
concretas dessas relações sociais.
diferença implicada pela heterotopia
O lugar é um ponto de encontro
é, como todas as diferenças,
híbrido, poroso e aberto.
sempre "para" algum grupo,
Quando Foucault aplicou o sempre em "relação a", em vez de
conceito ao território - inspirado por ser "em si", o que é a idéia que
um texto de Borges no qual Foucault inicialmente parece ter.
categorias lógicas semanticamente
Para Foucault, todas as
inconsistentes faziam parte da
heterotopias são construídas pelas
mesma classificação alfabética,
sociedades, são "conscientemente",
ocorreu-lhe que uma heterotopia
parte delas, para que possam ser
seria um lugar real em que justapõe
consideradas como homogêneas e
espaços incompatíveis que,
coesas. Os mecanismos de
aparentemente, só poderiam estar
construção da alteridade são
juntos na literatura. Para ele, o
artefatos puramente culturais, que
impossível não é o bairro das
nos falam da história das inter-
coisas, constitui o lugar onde eles
relações entre diferentes grupos de
poderiam ser vizinhos.
pessoas relevantes para uma
E isso também é bastante cultura. E as práticas de interação
complicado quando falamos sobre o entre esses grupos que são
conceito de espaços virtuais, já que reconhecidas como diferentes
estes são uma janela aberta para também variam.
lugares que não possuem espaço

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 176 de 272
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Portanto, as heterotopias, que que impede a visão de lugares
por definição estão "fora" da vida intersticiais (terras de ninguém) e
social "comum", estão fronteiras que são tão importantes
necessariamente "dentro da" vida para entender a dinâmica social.
"comum", já que é uma condição da Em sintese, a oposição social e
vida cotidiana viajar espacial centro-periferia se
constantemente entre os diferentes cristaliza.
mundos dos outros, alguns outros
Em geral, embora o conceito
que compartilham ou não as
seja problemático, tem sido
mesmas regras de ação aplicadas a
proveitoso para a reflexão,
si mesmo.
especialmente no que se refere ao
As heterotopias nos revelam espaço urbano e de suas relações
no "aqui" e no "agora" a com a experiência sensível e
extraordinária finitude da dramática como constitutiva da
globalização. Do ponto de vista do formação subjetiva.
caleidoscópio dos outros, qualquer
A arte é constituída como a
sociedade e, portanto, qualquer
linguagem fundamental do ser
lugar que ocupa, só pode ser
humano, dada a expressão da vida
pensado a partir da fragmentação,
intrapsíquica que se torna possível
já que o que chamamos de
através dela. Desde o nascimento
"sociedade" é fundamentalmente
do signo, fundamento da linguagem
uma construção intelectual cujos
e, conseqüentemente, da arte está
limites são ambíguos e eles
presente na interação social;
dependem da ideologia que é
linguagem e socialização, arte e
aplicada e do seu grupo de
socialização se combinam em todos
referência, que impede você de ver
as pessoas.
o que não está acostumado a ver.
A arte é concebida como uma
Foucault lê o espaço, do ponto
atividade que requer aprendizagem
de vista estruturalista, de forma
e pode ser limitada a uma
gramatical, isto é, como se
habilidade técnica simples ou ser
realmente tivesse lugares
estendida a ponto de abranger a
impermeáveis que se opusessem, o
expressão de uma visão de mundo

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 177 de 272
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particular, uma visão que obedece à afastar a arte da análise individual.
interação sociocultural à qual cada Se a arte é concebida como uma
pessoa está exposta. Num sentido experiência individual em que
mais amplo, o conceito refere-se apenas os processos psicológicos de
tanto à capacidade técnica como ao uma pessoa são considerados, e
talento criativo num contexto ainda mais, buscando interpretar a
artístico específico, seja musical, simbologia nela utilizada, torna-se
literário, visual, cênico. Na arte inevitável cair em subjetivismos
observa-se que a experiência pode sem importância.
ser estética, emocional, intelectual
Deduzir da arte a psicologia do
ou a combinação de todas elas.
artista ou de seu público é
Vigotsky (1990) foi pioneiro na irrelevante, pois é a partir da
necessidade de analisar a arte a semiótica que o trabalho se
partir de uma perspectiva integral, manifesta, o que torna a aplicação
entendendo-a como uma da atividade psicológica à arte um
ferramenta para a expressão processo social. Assim, Vigotsky
emocional e socialização. Vigotsky parte do pressuposto de que a obra
está objetivamente interessado na de arte é especial e
obra de arte existente, premeditadamente um sistema
independente de seu criador. organizado, calculado para provocar
Primeiro de tudo, ele busca a uma certa emoção, um aspecto que
possibilidade de pesquisa objetiva merece atenção. São, portanto, a
da obra de arte. O próprio Vigotsky arte e a própria obra de arte,
afirma que a idéia central da destinadas a despertar emoções no
psicologia da arte (e não da arte e indivíduo, visando comunicar a
da psicologia) é o reconhecimento riqueza que cada pessoa possui e
da superação do material através gerando uma relação do indivíduo
da forma artística, ou a arte como com os outros.
um manifestação social do
De acordo com os
sentimento e da emoção.
pressupostos acima, segue-se que é
A objetividade buscada por na arte que cada indivíduo
Vigotsky na arte consiste em transcende sua própria pessoa para

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se fundir com os outros. Já está em particular, isso não significa que
claro que o ser humano encontra suas raízes e essências sejam
seu significado nos outros, o individuais. É ingênuo entender
significado então, da manifestação como social apenas o coletivo,
artística é participar com o outro as como a existência de um grande
emoções mais profundas e provocá- número de pessoas. O social
las nele. também é onde há apenas uma
pessoa com seus sofrimentos
Sem querer reduzir as
pessoais. E é por isso que a arte,
características da arte e simplificá-
quando faz uma catarse e incorpora
la, esta é simplesmente a
um fogo purificador dos choques
expressão mais pura das emoções;
mais íntimos e mais importantes do
é estético deixar de lado a
espírito, constitui uma ação social.
dimensão ética porque trata-se de
O surgimento de sentimentos
experiências puramente humanas
externos a nós se realiza através da
que, por existirem, devem ser
força do sentimento social, que por
vivenciadas e transmitidas pela arte
sua vez é objetivado, materializado
sem serem submetidas ao juízo do
e fortalecido nos objetos externos
bem ou do mal. A arte é também
da arte, que se tornaram artefatos
socialização porque é o dispositivo
da sociedade.
que permite estar no outro, estar
no outro equivale, através da arte a A característica
realizar a experiência de emoção intrinsecamente social da arte por
manifestada em outro indivíduo, constituir-se num universo de
esse processo é possível porque é a relações, deixa clara a expressão
arte a ponte para chegar ao outro; estética das emoções. Embora em
uma experiência cultural de quem menor medida o julgamento que é
comunica e que é sempre possível fazer através das emoções,
compartilhado por todas as pessoas é o aspecto ético que é relevante,
pelo simples fato de serem sujeitos desde que não julgue os elementos
sociais. da arte em si, mas sim a emissão
de um julgamento das ações da
A arte é social e, embora sua
sociedade, sendo a arte um reflexo
ação seja realizada em uma pessoa
dessa interação. Este ponto levanta

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a seguinte questão: é relevante processo particular de
julgar o indivíduo e a sociedade a internalização, individual,
partir da linguagem emocional intrapsíquico, foi proposto pela
depositada na arte? Sim, porque da primeira vez na análise objetiva das
arte se comunica com a obras de arte, através da
necessidade de responder a essa clarificação da natureza social das
consciência social, não é só julgar a emoções humanas.
sociedade e o indivíduo porque se
A arte é então a exteriorização
perderia a objetividade do processo
da experiência maravilhosa que foi
artístico; é em si um chamado ao
gerada no processo de socialização,
sujeito para acordar, pensar e
é a retribuição feita a essa
fundamentalmente sentir o ritmo
sociedade, é o grito que clama da
dessa sociedade para que o sujeito
linguagem comum que é
seja responsável e agindo de
compartilhada, não simplesmente
acordo com o núcleo social ao qual
uma linguagem criptografada em
está integrado.
signos, mas uma linguagem
Obras de arte são os artefatos universal como sorrir ou chorar. É a
sociais através dos quais a expressão da liberdade e é a
transformação das emoções ocorre capacidade de voar e transcender.
e sua conversão é uma esfera
Em suma, a pedagogia do
particular da vida individual do
teatro aqui se constitui num
homem; essa esfera é tão
compromisso de experiência
importante que os processos mais
sensível que busca contribuir para a
profundos são incorporados a ela.
construção de uma sociedade mais
Desse modo, verifica-se que a lei
justa em que a coexistência da
fundamental formulada por
diversidade é a base para as
Vigotsky (1990) sobre a formação
relações sociais e interculturais de
dos processos psíquicos superiores
colaboração, a fim de gerar a
do homem, isto é a lei segundo a
síntese do conhecimento capaz de
qual qualquer função superior
enfrentar as problemáticas das
propriamente humana existe
contradições socioeconômicas
primariamente na forma externa e
instauradas no espaço da cidade.
interpsíquica e só depois, no

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Referências bibliográficas

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_______________. Psicologia da arte.


1ª Edição. São Paulo: Martins Fontes,
1990, 150 p.

______________. A formação social


da mente. 2ª Edição. São Paulo:
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Mesa Redonda
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

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A história em busca do corpo: Nestes termos, como se pode


sobre as potencialidades de imaginar, a dificuldade de se
uma história dos atores estudar o trabalho do ator é

Henrique Buarque de Gusmão1 potencializada quando saímos do


âmbito da análise de espetáculos
Uma arte fugidia
contemporâneos e partimos para o
A parte II do livro A análise dos
campo da história do teatro ou,
espetáculos, de Patrice Pavis, é
mais especificamente, para uma
dedicada à discussão de diferentes
história dos atores. Nesse caso, os
elementos constituidores da cena,
analistas lidam com performances
sendo o primeiro deles “o ator”.
de artistas muitas vezes distantes
Logo no início desta parte, Pavis traz
no tempo, sendo possível que não
um alerta para seus leitores: o
estejam mais vivos os atores
trabalho do ator seria, no conjunto
estudados e qualquer testemunha
do espetáculo, “o elemento mais
direta de suas atuações. Se, por
difícil de se captar” (PAVIS, 2003:
exemplo, para o historiador
49). Há aí, neste alerta, uma espécie
dedicado à dramaturgia resta um
de lugar comum dos estudos
texto, muitas vezes bem
teatrais: se o teatro é marcado pela
preservado, ao estudioso da história
efemeridade, mais efêmera ainda
dos atores sobram vestígios que
seria a arte do ator, uma vez que ela
parecem, à primeira vista, muito
só seria realizada no contato físico
distantes do fenômeno prático que
direto entre ator e público, naquilo
se busca resgatar. Se levamos em
que Grotowski definiu tão bem como
conta que a disciplina histórica
“encontro”. Nas palavras do diretor
determinadamente privilegiou, ao
polonês, “o teatro é uma ação
longo do século XIX e de boa parte
engendrada pelas reações e
do século XX, documentos escritos
impulsos humanos, pelos contatos
como seus principais materiais de
entre as pessoas. Trata-se de um
trabalho, especializando-se na
ato tão biológico quanto espiritual.”
interpretação de textos do passado,
(GROTOWSKI, 1987: 49-50)
mais uma dificuldade se coloca para
o exercício de estudo de uma arte
1
Professor adjunto do setor de Teoria e complexa, presencial e que
Metodologia da História da UFRJ, membro
do Laboratório de pesquisa em história da acontece nos corpos dos seus
arte e das letras (PEHL) e coordenador da
Oficina de estudos teatrais. realizadores.

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Entretanto, como busco presença física dos agentes deste
desenvolver aqui, algumas questões passado.3
que há algumas décadas ganham
Dou destaque, entretanto, a
força no campo historiográfico
outra tradição nesta reflexão: a
podem alterar significativamente o
história intelectual. A partir dela,
estatuto dos estudos das atuações
busco destacar algumas
teatrais do passado: de um campo
perspectivas que sustentam a tese
do saber frágil, voltado para a uma
aqui defendida. Já Lucien Febvre, ao
arte fugidia, este pode ser visto, já
tratar deste campo, criticava o que
há um tempo, como um espaço de
ele nomeou de uma “história das
discussão fértil para novos
ideias desencarnadas”. Tal
problemas e abordagens que vêm
expressão, consagrada ao longo do
mobilizando a comunidade dos
século XX como um tipo de antídoto
historiadores.
contra as narrativas canônicas que
Contextos e corpos pensam as ideias numa evolução
espiritual e desligada de qualquer
Já nos anos 1970, no bojo dos
traço de historicidade e de relação
tantos discursos e esforços em favor
com o mundo social, certamente
da renovação da disciplina histórica,
ajuda-nos a entender as propostas
de novas “abordagens, problemas e
da chamada Escola de Cambridge,
objetos”, a ideia de uma história do
que nos anos 1970 lançou estudos
corpo ganhou força e gerou
relevantes para a área. Quentin
resultados relevantes, como as
Skinner e John Poccock, lideranças
pesquisas de Jacques Le Goff (2006)
deste movimento, partiam
sobre o corpo da Idade Média2.
justamente da crítica ao caráter
Michel Foucault, atuando de maneira
fortemente anacrônico de uma
particular neste ambiente, traz uma
história das ideias tradicionais e
série de possibilidades
propunham a análise, para a
incontornáveis para o historiador
interpretação das ideias do passado,
que, ao se voltar para passado, quer
de seu “contexto linguístico”.
poder levar em conta o corpo e a

2 3
Além desta obra referida, publicada Dentre os tantos textos de Foucault que
somente nos anos 2000, cabe também buscam levar em conta a presença dos
destacar o esforço coletivo da publicação corpos da construção da cena histórica,
de uma “História do corpo”, já traduzida merecem destaque a História da
para o português. sexualidade I e Vigiar e punir.

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Ao tratar das perspectivas textos são produzidos a partir de
gerais deste “contextualismo modelos que não necessariamente
linguístico”, Marcelo Jasmin chama sobrevivem com eles, o que pode
a atenção para os vários tipos de gerar diferentes tipos de
significado que uma proposição anacronismos nas leituras
pode ter: o significado das palavras posteriores ao momento de sua
enunciadas na frase; o significado produção. Um exemplo contundente
da proposição para mim ou para a deste problema pode ser
comunidade contemporânea de encontrado num famoso artigo de
intérpretes à qual pertenço; e o José Murilo de Carvalho (2000)
significado da proposição como o tratando da retórica como chave de
ato de fala daquele que a proferiu. leitura para uma história das ideias
(JASMIN, 2005: 30-1) políticas no Brasil imperial. Segundo
Carvalho, a historiografia brasileira
Diversos seriam, então, os
teria, durante muito tempo, sido
contextos produtores de sentido
ingênua ao não dar a atenção
para as ideias do passado. No
suficiente para a formação retórica
trecho anterior, como se percebe,
dos homens de letras do Brasil
chama-se a atenção para três
oitocentista. Com isso, seus
deles. O primeiro deles, associado
discursos, seus textos e a própria
por Jasmin à história dos conceitos
imprensa nacional foram lidos sem
e a Reinhardt Koselleck, diz respeito
que se levasse em conta que estes
à semântica histórica, à relação
materiais eram produzidos a partir
entre significante e significado,
de formas de modelar textos muito
variável historicamente, o que
rígidas, conhecidos tanto por seus
desde o século XIX já chama a
autores como pela sua audiência. A
atenção dos historiadores e os
ausência desta importante chave
aproxima da filologia.
analítica fazia com que, por
O segundo diz respeito às exemplo, discursos muito virulentos
condições em que uma sentença é fossem associados mais à
interpretada por uma comunidade inexperiência política e a um
específica, o que também é variável possível ambiente social tenso do
de acordo determinantes históricos que a modelos argumentativos que
e sociais. Este contexto linguístico eram praticados, treinados e que
estaria centrado na noção de que os circulavam amplamente naqueles

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círculos. Estes modelos, inclusive, atos de fala, expressão que nos
ganham corpo em manuais de remete diretamente a uma
retórica que José Murilo de Carvalho tradição intelectual específica que
nomeia e analisa em seu artigo. tem em John Austin sua referência
Apropriando-se, então, de questões mais evidente. Se os significados
que ganharam força com a das ideias são determinados,
chamada “virada linguística”, o então, pela semântica histórica de
historiador chama a atenção para o seu vocabulário, pelos códigos
fato de que as formas discursivas linguísticos e argumentativos de
exerciam um papel determinante na determinadas comunidades, pelos
produção das ideias e no sentido seus suportes materiais, eles
que elas possuíam naquele também estão ligados, em uma
ambiente, formando um contexto outra camada, aos seus modos de
imprescindível para a análise enunciação, o que traz para esta
historiográfica. discussão a questão da presença
física dos agentes do passado.
Ficando ainda na questão dos
Leva-se em conta, aqui, uma
códigos de uma comunidade de
dimensão performativa da
leitores e produtores de ideias,
linguagem, onde as ideias são
poderiam ser destacados o quanto
sempre performadas e sempre
as condições materiais em que as
enunciadas por um corpo, sendo
ideias são inscritas e circulam
geradas a partir de uma presença
também atuam na produção do
física. A reflexão de José Murilo de
seu significado. Tendo a obra de
Carvalho sobre os debates de
Donald McKenzie como um norte
ideias no século XIX brasileiro
nesta discussão específica,
também repercute, ainda que de
podemos ficar com a noção de que
modo mais restrito, esta
os suportes materiais das ideias
perspectiva: os políticos e
lhes conferem estatutos
jornalistas que se confrontavam
específicos, criam modos de
naquele momento encontravam
leitura particulares e estabelecem
nos modelos retóricos um tipo de
relações distintas com os leitores.
uso do corpo e da voz que
Finalmente, o terceiro precisaria ser levado em conta
contexto linguístico citado por para o entendimento das querelas
Marcelo Jasmin está associado aos intelectuais performadas. Por esta

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perspectiva, corpo e linguagem aqueles escombros.” (LOPES, 2003:
não se separam de todo e a 9) Não por acaso, Lopes associa o
produção intelectual tem na fazer historiográfico à química e à
presença física uma dimensão que própria alquimia a partir destes
lhe dá sentido e lhe é inevitável. novos desafios. Redescobrir corpos,
reencontrar presenças, observar as
É curioso observar, neste
materialidades físicas que
percurso, como se parte de uma
compuseram as tramas do passado
tradição que via a história
passam a ser uma das mais
intelectual como uma sequência de
relevantes tarefas do historiador, o
ideias espirituais e chega-se a um
que estabelece uma nova agenda e
rigoroso exercício de historicização
uma nova forma de trabalho com
que tem como ponto de chegada a
aquele material tradicionalmente
presença física do falante. Numa
privilegiado pela disciplina: os
história ancorada durante muito
textos.
tempo nas abstrações filosóficas,
processa-se uma transformação da Textos e corpos
própria noção de filosofia, agora
A perspectiva sustentada por
não mais desligada dos contatos
uma historiografia contemporânea
físicos e da presença dos corpos.
de que os corpos dos homens e
Tal movimento revela-nos uma das
mulheres do passado e suas
explicações para o interesse do
performances ocupam um papel
historiador, evidenciado nas últimas
fundamental na produção do
décadas, pelos corpos do passado,
significado histórico fortalece-se
pela performance dos agentes.
quando se discute mais
Debatendo esta relação entre
especificamente a relação entre
performance e história, Antônio
corpos e textos. Esta relação
Herculano Lopes identifica um dos
mobilizou uma série de questões
grandes desafios do historiador
em torno da história leitura,
contemporâneo: “pensar a ideia de
campo que ganhou a atenção de
performance aplicada ao estudo da
diversos intelectuais nos últimos
história significa trazer de novo à
tempos. Wolfgang Iser e Umberto
vida o momento do crime, detonar
Eco constroem argumentos
a força bruta do momento vivido
determinantes para a perspectiva
que se encontrava sepulto sob
da história da leitura que aqui me

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interessa, uma vez que tratam o século XX, a possibilidade de se
ato da leitura como uma atividade pensar os textos não como
que necessariamente exige uma unidades que em si mesmas
postura ativa do leitor. Iser possuem sentido autônomo, mas
constrói toda uma fenomenologia sim em peças de um jogo que,
da leitura para romper com “a para funcionar, precisa da
impressão de que um texto, por perspicácia, da inventividade e até
assim dizer, imprime-se mesmo a subjetividade de um
automaticamente na consciência leitor. A leitura pode ser
de seus leitores” (ISER, 1996: 9), entendida, então, como um “ato
impressão esta que teria orientado de caça” do leitor, tal como propôs
uma longa tradição da disciplina Michel de Certeau em um texto
histórica. Criticando a imagem de decisivo a respeito deste tema.
uma “passividade própria do
Esta participação ativa e
consumo” (De CERTEAU, 1994:
criativa do leitor na atividade da
262), na expressão utilizada por
leitura, na sua relação com os
Michel de Certeau, os estudos
textos, avançando na
sobre o ato da leitura
argumentação dos autores aos
encaminham-se para outros
quais recorro, não deixa de
lugares, podendo perceber o texto
envolver o corpo do leitor. Mesmo
de uma forma muito distinta,
que tomemos em conta o
como uma espécie de “máquina
inevitável argumento de que, no
preguiçosa” (ECO, 1986: 11) que
mundo moderno, as práticas de
precisa sempre do leitor para que
leitura foram se tornando, muito
seu sentido seja construído e para
amplamente, atividades silenciosas
que este se efetive. Segundo
e individuais, tal como ressaltado
Umberto Eco, “todo texto quer que
por tantos estudiosos, como Roger
alguém o ajude a funcionar” (ECO,
Chartier (2002), é também
1986: 37), ou, ainda, todo texto
inevitável a percepção de que os
“deixa os próprios conteúdos em
textos são produzidos para
estado virtual, esperando-se que a
estabelecerem uma relação com
sua atualização definitiva se dê
seus leitores que é também física.
com o trabalho cooperativo do
Não por acaso os textos “liberam
leitor” (ECO, 1986: 12). Observa-
gestos desconhecidos, resmungos,
se, assim, nas últimas décadas do

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tics, exposições ou rotações, ruídos em volta, os barulhos do mundo e,
insólitos, enfim uma orquestração por cima, o céu de Paris que, no
selvagem do corpo” (CERTEAU, começo do inverno, sob as nuvens
1994: 271), como nos indica Michel de neve, se tornava violeta. Mais ou
de Certeau, apropriando-se da feliz menos tudo isso fazia parte da
expressão de Georges Perec. canção. Era a canção.” (ZUMTHOR,
2014:32). Partindo deste caso
Paul Zumthor torna ainda mais
pessoal, o autor vai adiante na
visível e radical esta relação entre
construção desta relação entre
textos e corpos em suas reflexões,
textos e sentidos, textos e corpos,
propondo “introduzir nos estudos
concluindo que, por esta
literários a consideração das
perspectiva, acaba-se negando a
percepções sensoriais, portanto, de
própria “existência da forma. Essa,
um corpo vivo” (ZUMTHOR,
com efeito, só existe na
2014:31). Ele parte de um exemplo
“performance”.(ZUMTHOR,2014:33)
muito atraente. Relata Zumthor, em
Performance, recepção, leitura, que, Em Paul Zumthor, desta
já na idade adulta, deparou-se com forma, encontramos uma
um papel volante de sua infância. radicalização da noção de que os
Tratava-se de um texto que, textos não se separam de todo dos
originalmente, era vendido por corpos. E não se trata aqui apenas
cantores de rua às crianças que do corpo do leitor, tal como as
esperavam o transporte para escola. diferentes visadas sobre a leitura
Nestas circunstâncias, enquanto já destacavam. Zumthor propõe
aguardavam o transporte, os que um texto guarda algum
estudantes seguiam o texto vestígio da presença física do
acompanhando a ária tocada e próprio autor, fazendo com que
jogavam entre si. Tudo compunha a este encontro entre leitor e texto
canção e o texto que o autor, já seja, em alguma medida, um
mais velho, conseguiu ter em mãos. encontro entre dois corpos, uma
Reflete ele, então, sobre a pobreza relação em que a presença física
deste vestígio do passado sem as não está de todo afastada.
condições gerais que lhe davam
Na leitura, essa presença é,
sentido, que faziam ele funcionar,
por assim dizer, colocada entre
sem “o riso das meninas, [...]a rua
parênteses; mas subsiste uma

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presença invisível, que é fina, sutil, sofisticada e que ainda
manifestação de um outro, muito está por se estruturar.
forte para que minha adesão a essa
O historiador na presença dos
voz, a mim assim dirigida por
corpos do passado
intermédio do escrito, comprometa
As perspectivas aqui
o conjunto de minhas energias
apresentadas, destacadas dentre
corporais. Entre o consumo, se
tantas possíveis que podem ser
posso empregar essa palavra, de
discutidas em outros espaços,
um texto poético escrito e de um
possuem um forte potencial, como
texto transmitido oralmente, a
se percebe, para alterar o estatuto
diferença só reside na intensidade
que uma história dos atores possui
da presença. (ZUMTHOR, 2014: 68)
hoje. Estudos recentes sobre o
Texto, leitura, presença e trabalho dos atores do passado
performance: eis aí uma trajetória não necessariamente encontram
que abre muitas possibilidades na performance dos mesmos um
para o trabalho do historiador. material analítico mais produtivo e
Talvez a principal delas seja a de explorado. Muitos são os estudos
encontrar nos textos vestígios da que debatem as relações de
presença física dos homens e interdependência entre os atores,
mulheres do passado e de suas suas atuações em grupos e
performances. O texto, material companhias específicas,
tão privilegiado pelos historiadores estratégias artísticas e comerciais
em sua empreitada de e, muitas vezes, sua presença
reconstrução do passado, como já física nos palcos não é o que entra
dito aqui, apresenta, assim, em questão nestes trabalhos.
inúmeras novas possibilidades. Evidentemente, tal escolha é
totalmente justificável, uma vez
Surge daqui um desafio para
que não há, de maneira
o historiador contemporâneo: a
estruturada, um conjunto de
criação de novos modos de
métodos de trabalho que nos
abordar e ler os textos do passado
levem a conseguir entrar em
com o objetivo de encontrar
contato e analisar as ações do ator
nestes resquícios da vida física dos
em cena, com os significados das
personagens do passado.
mesmas numa comunidade
Evidentemente, esta é uma leitura

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histórica específica. Não existe Robespierre e Luís XVI, Michelet é
ainda, assim podemos dizer de capaz de ter febre e delirar. Se
modo mais explícito, uma corpo, segundo o belo estudo de
metodologia para a história do Roland Barthes, reage diretamente
trabalho dos atores. Mas a aos eventos do passado, estando
construção desta, hoje, pode totalmente implicado na sua
encontrar nos estudos históricos produção história. “O corpo inteiro
pontos de interlocução muito de Michelet torna-se o produto de
significativos. A partir destes, é sua própria criação, e se
possível, a partir de textos estabelece uma espécie de
dramáticos, de entrevistas, de simbiose surpreendente entre o
relatos, de olhares mais amplos historiador e a história.”
para diversos vestígios dos (BARTHES, 1991: 17). O corpo
mundos sociais do passado, dos personagens do passado
construir a possibilidade de se torna-se presente na própria
produzir inteligibilidade sobre os reação do corpo de Michelet aos
gestos dos atores, o que nos seus traços. Tal configuração
coloca em contato, de algum historiográfica, que ganhou
modo, com seus corpos. contornos específicos e românticos
no século XIX, foi relegada ao
Encerro esta reflexão com
segundo plano diante das
Roland Barthes, que, no início de
pretensões científicas da
sua trajetória intelectual, dedicou-
disciplina. Hoje ela traz desafios
se ao estudo da produção
produtivos para o historiador e,
historiográfica de Jules Michelet,
certamente, pode potencializar a
analisando os modos específicos
história dos atores, um campo
de trabalho do famoso historiador
que, ao invés de visto como difícil
oitocentista francês. Em Michelet,
e fugidio, pode ganhar, diante de
o contato físico entre o estudioso
perspectivas historiográficas mais
do presente e o agente histórico
recentes, o estatuto de um dos
do passado é cotidiano e concreto.
espaços de discussão mais
Ao se deparar com os documentos
inquietantes da história cultural de
da Revolução Francesa, por
nossos dias.
exemplo, com resquícios de
personagens como Danton,

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Uma prática da pesquisa em Portanto, a partir das


teatro: a imagem dialética análises sobre a ideia de Arte
benjaminiana como intervenção desenvolvidas

Cláudio Guilarduci1 por Brecht e Walter Benjamin, a


fase três objetiva analisar os
Não vivemos em apenas um mundo,
mas entre dois mundos pelo menos. O autores Bertolt Brecht, Marcel
primeiro está inundado de luz, o Proust, Charles Baudelaire e Franz
segundo atravessado por lampejos.
(Didi-Huberman, 2011:155) Kafka para discutir as apropriações
dos inúmeros pro-ductos estéticos
O presente texto é a primeira
– Literatura, Pintura, Fotografia,
escrita mais sistematizada de uma
Cinema, Teatro, entre outros –
prática de pesquisa iniciada
que Walter Benjamin acessou para
durante o pós-doutoramento
elaboração de suas ideias, teorias.
(2015-2016) realizado na PUC/RJ,
Sem perder de vista esse conjunto
sob a supervisão da professora
de autores e de pro-ductos
Sônia Kramer, com a pesquisa
estéticos, o foco principal do atual
“Educação das sensibilidades: os
recorte da pesquisa, que
pro-ductos estéticos pedagógicos
provisoriamente pode ser definido
nas Escolas de Educação Básica”.
como etapa 3.1, está restrito às
Atualmente, a pesquisa encontra-
se no início da sua terceira fase e relações estabelecidas entre

é intitulada “Xadrez, Box e Benjamin e Brecht. Esta etapa

Charutos: Benjamin leitor de será, pois, dedicada a analisar os

Brecht (1924-1940)”. Nesta fase, elementos do “modo de produção

serão analisados textos artística” e dos “modos de

benjaminianos a partir do conceito produção teatral” do teatro épico


Literatura (Arte) Como de Bertolt Brecht a fim de discutir
Intervenção. Tal conceito, elementos, ideias ou aspectos que
Literatura (Arte) como esse fazer teatral trouxe para as
intervenção, foi analisado e ideias e teorias de Walter
discutido na fase anterior. Benjamin.
Assim, o presente texto
1
Professor dos cursos de Graduação busca apresentar e discutir a
(Licenciatura e Bacharelado) em Teatro e
da Pós-Graduação em Artes Cênicas prática da pesquisa que venho
(PPGAC) da Universidade Federal de São
João del-Rei (UFSJ). desenvolvendo desde 2015 a

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partir de uma reflexão sobre o artigo “Em busca da felicidade
método elaborado para esse perdida: a astúcia e a arrogância no
projeto tão longo. É importante caminho da iluminação profana”
ressaltar que esta reflexão sobre o (2018a), publicado pela Revista
método, sobre a prática da Diacrítica da Universidade do Minho,

pesquisa nas Artes, é geralmente Portugal; e (ii) o capítulo de livro

discutida apenas por especialistas “Benjamin leitor de Brecht: o teatro

ou entre amigos, e tal percurso como sala de exposição. Assombro

acaba por instituir um lugar e resistência” (2018), que foi


apresentado parcialmente na forma
secundário na própria prática da
de comunicação oral no 3° Colóquio
pesquisa. Um lugar secundário que
Internacional de Arquitetura, Teatro
talvez seja alimentado pela própria
e Cultura em 2017.
ideia de produtividade existente no
quadro geral da pesquisa no
Brasil, que privilegiam as
publicações dos resultados das
pesquisas em artigos de revistas
com índices CAPES qualificados
e/ou em capítulos de livros de
editoras renomadas, em
detrimento da qualidade das
discussões sobre os caminhos
metodológicos e os percursos
realizados durante o
desenvolvimento de projetos de
pesquisa.
Figura 1 - Rede Graduada do Texto “Estudos para a
teoria do teatro épico”.2
Mesmo recorrendo à produção
bibliográfica realizada durante a
presente pesquisa, não é nosso 2
A rede graduada foi elaborada pela
objetivo apresentar os resultados bolsista de IC/CNPq Rayla Dias durante a
execução do projeto “Benjamin leitor de
obtidos, mas alinhavar uma Brecht (1924-1940): ‘Ensaios sobre
Brecht’”. O objetivo do projeto era
narrativa reflexiva sobre o método elaborar Redes Graduadas dos textos
publicados no livro “Ensaios sobre Brecht”
utilizado na prática de pesquisa.
(2017), da Editora Boitempo. Atualmente
Dos artigos e capítulos de livros a referida bolsista é mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Artes
produzidos, serão citados: (i) o Cênicas-PPGAC/UFSJ.

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Para elaboração do método, outro texto, ou colocamos a rede
foi criado primeiramente um graduada de um texto ao lado de
procedimento metodológico para a outro texto.
leitura/análise dos textos
Para a criação desse
utilizados. Esse procedimento foi
procedimento metodológico,
denominado “rede graduada” e um
iniciamos com a análise de dois
dos seus objetivos era a criação de
fragmentos benjaminianos que
um esquema visual. Para a
tematizam “a experiência espacial
elaboração da rede, utilizamos a
mais primitiva”, escritos
ideia de leitura horizontal e
provavelmente em 1917, e que
vertical dos textos analisados.
problematizam os movimentos
Para cada texto lido/analisado
corporais entre o ato de pintar e o
foram definidos conceitos e ideias
de desenhar. O primeiro
que o respectivo texto discutiu.
fragmento foi somente nomeado
Esses conceitos e ideias foram
como Pintura e artes gráficas a
determinantes para a construção
partir do índice dos manuscritos
da rede graduada, que,
da coleção de Scholem. O segundo
semelhantemente a uma rede
texto, intitulado Sobre a pintura,
pescar, deveria demonstrar
ou sinal e mancha, foi inicialmente
visualmente os conceitos, as ideias
referido pelo próprio Benjamin em
e as possíveis relações
suas cartas a Scholem como sendo
estabelecidas no texto analisado. É
Sobre a pintura.
importante ressaltar que na fase
São as obras, elas mesmas
atual da pesquisa elaboramos que solicitam, sugerem e
redes graduadas para cada um exigem um certo movimento,
uma certa disposição ao
dos textos que Walter Benjamin contemplador, que aparece
unicamente no sentido mais
escreveu sobre Brecht e sobre o depurado, relativamente à
teatro épico. A partir da essência espacial da obra,
isto é, relativamente ao lugar
elaboração dessa rede é que do espaço consequente com a
obra contemplada. Fala-se
iniciamos a sobreposição e/ou em exigência da obra, nunca
justaposição dos diferentes textos do ponto de vista. (MOLDER,
1999:19)
analisados: colocamos a rede
Na carta enviada a Scholem
graduada de um texto sobre a de
no dia 13 de janeiro de 1918 é

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possível perceber os objetivos sobre as diferenciações entre a
benjaminianos dos dois textos, Mancha e o Sinal. Ainda de acordo
pois o autor da missiva reafirma com essa autora (idem:19), as
que, do ponto de vista humano, a linhas vertical e horizontal, em
superfície do desenhador está na inúmeras simbologias, convocam
posição horizontal e a do pintor na “os polos dos olhos, a postura dos
vertical. Obviamente, Benjamin, membros, a orientação do corpo
nesses textos, não pretende na sua totalidade, em
apenas discutir sobre as formas correspondência com o eixo da
corporais produzidas, seja no terra, o movimento do sol, a
instante da criação, seja no disposição astral na abóbada
momento em que se olha uma celeste [...]”. Na linha horizontal
obra de pintura ou de artes estaria a energia terrena,
gráficas. A sua preocupação está portanto, finita, e na linha vertical
na origem desses dois tipos de estaria a potência espiritual.
produção artística e, por
De acordo com Otte e Volpe
conseguinte, ele também faz uma (2000), a escrita benjaminiana
reflexão sobre as posições demanda, além do esforço
corporais a partir da oposição horizontal, uma verticalidade dos
entre o vertical e o horizontal que leitores, pois seus textos exigem
estão associadas a cada um deles, um mergulho nas profundezas das
partindo do pressuposto que a palavras utilizadas. Para tanto, os
relação corporal é intrínseca ao autores analisam o uso da
processo criativo dessas duas metáfora constelação, termo
artes. utilizado por Benjamin desde os
seus primeiros textos. O uso
Para Molder (1999:20), esses
recorrente dessa metáfora não
textos, além de apresentarem
pode ser analisado apenas como
uma reflexão sobre as posturas
repetição de um termo, mas como
corporais, o movimento das mãos
um processo de enriquecimento de
e a direção do olhar tanto daquele
uma ideia. É justamente a
que desenha ou pinta quanto
estrutura constelar dos seus
daquele que contempla a obra,
escritos que provocam inúmeras
também trazem uma discussão
dificuldades para a leitura.

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Em lugar de uma cômoda artigo analisou dois livros distintos
sequência de início-meio-fim,
o leitor, bruscamente que foram publicados no Brasil e
mergulhado in medias res, que trazem o poema “A cruzada
encontra um “mosaico” de
reflexões cuja ligação não é das Crianças” de Bertolt Brecht
feita através da concatenação
(1948). O primeiro livro foi
textual-linear, mas através de
uma rede de conexões intra publicado em 1962 pela editora
ou intertextuais. Como nas
juntas do mosaico, há uma Brasiliense e contava com os
lacuna entre os componentes desenhos de Gershon Knispel, e o
do texto, o que resulta na
necessidade de uma certa segundo foi publicado em 2014
distância para sua
pela editora Pulo do Gato e trazia
“contemplação”. (OTTE;
VOLPE, 2000:39) os desenhos de Carme Solé

A rede graduada permite, Vendrell. O artigo, através do


poema brechtiano e dos diferentes
dessa forma, buscar
desenhos, possibilita uma reflexão
primeiramente entender as
sobre as possíveis emoções e
conexões intratextuais para
sentimentos que foram
posteriormente dialogar com
vivenciados na história contada no
outros textos benjaminianos.
poema. Outro dado importante
Após a consolidação da rede
para a reflexão apresentada é que
graduada iniciamos a elaboração
os livros sempre foram entendidos
de um outro esquema visual
em sua materialidade como um
denominado Diagrama da Forma.
brinquedo que possui imagens e
O Diagrama da Forma é o
um universo de signos que pode
resultado visual do método que
narrar histórias.
norteia ultimamente as pesquisas
que venho realizando. Para a Apresentamos tal Diagrama

visualização de um Diagrama por quatro questões: (i) o artigo é

apresentamos abaixo o que foi um dos resultados da pesquisa


elaborado no artigo “Em busca da docente indicada na introdução do
felicidade perdida: a astúcia e a presente texto e foi publicado em
arrogância no caminho da um dossiê específico da revista: “A
3
iluminação profana” (2018a) . O emoção na criação literária e
cultural”. Diante disso, o artigo
3
Cf. artigo: GUILARDUCI, C. “Em busca também tinha o propósito de
da felicidade perdida: a astúcia e a
arrogância no caminho da iluminação indicar a necessidade de se incluir
profana” (2018a).

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a emoção, a sensibilidade, a estabelecer as relações entre os
percepção e suas relações com a desenhos elaborados pelos dois
luta revolucionária, conforme já artistas plásticos. Assim, a
indicava Walter Benjamin sobre importância do artigo também
necessidade de incluir a percepção pode ser percebida na própria
e as sensibilidades na pesquisa experimentação de uma escrita
histórica; (ii) o artigo, elaborado a materialista dialética e na busca
partir da ideia de Diagrama, não de introduzir a História na emoção
segue apenas um caminho estética, ou seja, reavivar práticas
metodológico de valor heurístico, culturais do sensível como marcas
pois o processo de escritura de um passado que podem ser
possibilitou a experimentação de traduzidas no tempo presente.
uma escrita materialista dialética.
O exercício da escrita não se
limitou a teorizar a dialética da
imobilidade benjaminiana, mas
buscou experimentar na escrita a
referida dialética; (iii) ao analisar
o poema “A cruzada das crianças” Figura 2 - Diagrama da Forma

(1948), de Bertolt Brecht, o artigo A elaboração do Diagrama da


acionou dois outros modos de Forma é constituída a partir de
produção artística, que foram os polos antitéticos (horizontal e
desenhos de Gershon Knispel vertical) que objetivam analisar,
(judeu alemão radicado no Brasil) mas não esgotar, a ideia que
e de Carme Solé Vendrell (artista ocupa o ponto zero, ou seja, que
espanhola) que ilustraram o ocupa a centralidade da figura. O
poema brechtiano em diferentes Diagrama ocupa o lugar da forma,
épocas; (iv) o artigo, mesmo não indicando, a partir de conceitos
discutindo os elementos épicos e/ou ideias intra e/ou intertextuais
presentes na obra literária e a localizadas na produção literária
aproximação existente entre de Walter Benjamin, caminhos que
teatro épico e as artes plásticas, poderão ser percorridos para a
parte de tais entendimentos para análise do objeto pretendido. Um

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caminho necessariamente Passagens, Buck-Morss
experimental, porque o Diagrama (2002:225) afirma, a partir de um
é e sempre será temporário, mas esquema heurístico, que Benjamin
necessariamente dialético e ao usa implicitamente em seus
mesmo tempo de imobilidade. trabalhos coordenadas como
Ao pensamento pertencem polaridades antitéticas de eixos
tanto o movimento quanto a
imobilização dos para revelar imagens. O eixo
pensamentos. Onde ele se dessas coordenadas – consciência
imobiliza numa constelação
saturada de tensões, aparece e realidade – teria em seus
a imagem dialética. Ele é a
cesura do movimento do extremos antitéticos os termos
pensamento. Naturalmente, natureza petrificada/natureza
seu lugar não é arbitrário. Em
uma palavra, a imagem histórica e sonho/despertar,
dialética deve ser procurada
onde a tensão entre os polos respectivamente. A mercadoria
dialéticos é a maior possível. seria o centro, o ponto fulcral,
Assim, o objeto construído na
apresentação materialista da para pensar as imagens dialéticas,
história é ele mesmo uma
imagem dialética. Ela é
e em cada um dos campos das
idêntica ao objeto histórico e coordenadas teria um aspecto da
justifica seu arrancamento do
continuum da história. “aparência” contraditória e
(BENJAMIN, 2006:518, [N
transitória dessa mercadoria,
10a, 3])
representada por fetiche e fóssil,
O processo historiográfico
imagem do desejo e ruína.
pensado por Benjamin se
A concepção de Benjamin é
estrutura a partir de um ponto essencialmente estática
crucial: a imagem-dialética, cuja (mesmo que a verdade
iluminada pela imagem
origem está presente na tensão dialética seja historicamente
fugaz). Localiza visualmente
entre os polos histórico e
ideias filosóficas dentro de
metafísico da interpretação, ou um campo transitório e
irreconciliado de oposições,
seja, na relação metodológica que pode ser representado
como coordenadas de termos
existente entre esses dois polos,
contraditórios, cuja “síntese”
que Benjamin qualificava como não é um movimento em
direção à resolução, mas o
sendo uma “meia virada do ponto em que seus eixos se
intersectam. (BUCK-MORSS,
avesso” (BENJAMIN, 2011:328,
2002:254)
Manuscrito n. 852). Estudando as
notas e materiais do projeto das

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Quanto ao sistema de Benjamin dialoga com Marx para
coordenadas utilizado por Walter estabelecer um certo
Benjamin, existe apenas um entendimento sobre Baudelaire,
exemplo e pode ser encontrado pois para Benjamin o poeta se
nas notas do ensaio sobre posiciona às vezes como um
Baudelaire (1994). No entanto, o conspirador profissional, ou seja,
diagrama utilizado não permite como um revolucionário que está
entender a estrutura do seu texto mais preocupado com a
futuro, pois nele só está indicado destruição, com a expiação, com o
um tema da pesquisa: o ócio como castigo e/ou com a morte do que
um dos campos da atividade física. com o esclarecimento mais teórico
Mesmo que o sistema de que também se faz necessário aos
coordenadas não apareça de trabalhadores para entendimento
forma explícita é possível afirmar dos seus próprios interesses de
que Walter Benjamin tinha classe. Ainda de acordo com
‘tendências sistemáticas’ na Walter Benjamin, em outros
construção de seus trabalhos. momentos Baudelaire parece se
Apenas para citar uma das aproximar mais daqueles que
discussões apresentadas no livro estavam preocupados com a
sobre Baudelaire (1994), podemos formação política dos
indicar o capítulo que foi elaborado trabalhadores, haja vista que
a partir de um personagem Baudelaire, por vezes, aparentava
coletivo: A Bohème. Walter gostar de ser conhecido como um
Benjamin, nesse capítulo, cita poeta social. É justamente
Baudelaire em quase todos os dialetizando esses polos antitéticos
parágrafos talvez para indicar a que Walter Benjamin busca
proximidade entre esse universo compreender as alegorias
social e os literatos da época. O presentes nos poemas do Flores
capítulo inicia-se citando Karl do Mal.
Marx, mais especificamente a
Retomando a discussão sobre
resenha Memórias do agente
a imagem-dialética, podemos
policial de La Hodde, publicada em
entendê-la como um “gesto de
1850 na Nova Gazeta Renana.
interrupção e de suspenção, gesto

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de cesura que caracteriza a tarefa mas deve ser imobilizada,
paralisada (teses XVI e XVII)
do historiador materialista crítico” para produzir um choque,
(GAGNEBIN, 2011:32). Gesto esse uma interrupção na narrativa
ronronante e morosa do
que se assemelha ao do teatro relato épico. (GAGNEBIN,
2011:33)
épico de Brecht quando a
interrupção e seus A interrupção, nesse sentido,

desdobramentos têm a função de é um ato político ao questionar a

evitar que o espectador se temporalidade da história e a

identifique com o personagem e, memória dominantes. Logo, ao

solicita, ao mesmo tempo, que ele interpelar o presente, o passado

tome uma decisão, ou seja, que o “exige uma ação que transforma o

espectador assuma uma posição lembrar enrijecido do passado e,

em relação à trama representada. ao mesmo tempo, abre uma

Além disso, também podemos brecha na mesmice e na repetição

aproximar tal interrupção ao (GAGNEBIN, ibidem). Mas esse

momento analítico em que o tempo pretérito “só pode ser

terapeuta é capaz de interromper apreendido como imagem

o fluxo narrativo de seu “paciente” irrecuperável e subitamente

para indicar justamente o seu iluminada no momento do seu

oposto: o trabalho de construção reconhecimento” (BENJAMIN,

de fazer falar e de fazer ouvir o 2012a:11; Tese V).

esquecido que os indícios foram Para Buck-Morrs (2002:264),


capazes de presentificar um o Diagrama demonstra que
determinado passado. Benjamin entendia como

Por que chamar essa imagem necessária a construção de uma


de “dialética”? – num sentido lógica visual e não linear para o
que não é, certamente, o da
dialética hegeliana ou entendimento da história e que
marxista! Indicaria duas
isso seria possível se os conceitos
razões, [...]: é dialética
porque a unidade repentina passassem a ser construídos em
entre passado e presente faz
emergir uma nova imagem imagens a partir do princípio da
tanto do passado quanto do montagem. Entre passado e
presente; e é dialética
também porque a imagem é, presente não poderia existir uma
simultaneamente, fugidia,
continuidade e, por isso, toda
“perpassa veloz” como diz
Benjamin nas teses V e VI, construção pressuporia a

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destruição, pois “o momento O materialismo histórico
baseia seu procedimento na
destrutivo ou crítico na experiência, no bom senso,
na presença de espírito e na
historiografia materialista se dialética. (BENJAMIN,
2006:518 [N 11, 4])
manifesta através do fazer
explodir a continuidade histórica; O método virtual elaborado
é assim que se constitui o objeto por Walter Benjamin ao longo do
histórico” (BENJAMIN, 2006:517 trabalho das Passagens (e que foi
[N 10a, 1]). aqui visualmente apresentado e
definido no percurso das pesquisas
Assim, para que a estrutura
que venho desenvolvendo como
monadológica se torne visível é
Diagrama da Forma) permite
preciso que o objeto seja arrancado
perceber uma epistemologia
do continuum do curso histórico. “E
constelatória; uma constelação
isso ocorre sob a forma da
construída a partir da destruição do
confrontação histórica que constitui
próprio objeto analisado no seu
o interior [...] do objeto histórico e
tempo histórico; uma constelação
da qual participam em uma escala
construída pelos destroços
reduzida todas as forças e
provocados pela explosão e pela
interesses históricos” (BENJAMIN,
consequente contradição dos
ibidem [N 10, 3]). O objeto
materiais de seus próprios
histórico, pois, na estrutura
fragmentos. E, no centro desse
monadológica, encontra sua própria
campo de forças antagônicas, está
história anterior e posterior
a imagem do ocorrido que encontra
representada no seu interior.
o agora; uma imagem lampejante
Walter Benjamin sintetizou
que é capaz de formar uma
em cinco pontos o que ele
constelação, ou seja, “a imagem é
denominou de “doutrina elementar
a dialética na imobilidade”
do materialismo histórico”:
(BENJAMIN, 2006:504 [N 2a, 3]);
1) Um objeto da história é essa imagem que no “agora da
aquele em que o
conhecimento se realiza na cognoscibilidade carrega no mais
salvação. 2) A história se
decompõe em imagens, não alto grau a marca do momento
em histórias. 3) Onde se
realiza um processo dialético, crítico, perigoso, subjacente a toda
estamos lidando com uma leitura” (BENJAMIN, 2006:505 [N
mônada. 4) A apresentação
materialista da história traz 3, 1]).
consigo uma crítica imanente
do conceito de progresso. 5)

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Por fim, não por ser menos Passagens (2006), no fragmento
importante, mas porque será em que aponta que é o índice
apenas indicado e não histórico que distingue as imagens
desdobrado, é importante das “essências” da fenomenologia,
ressaltar que as pesquisas o autor alemão afirma que
realizadas nos últimos tempos pelo o índice histórico das imagens
diz, pois, não apenas que elas
filósofo italiano Giorgio Agamben pertencem a uma
determinada época, mas,
apontam para três problemas na sobretudo, que elas só se
tornam legíveis numa
constituição de seu método de
determinada época. E atingir
pesquisa – o conceito de essa “legibilidade” constitui
um determinado ponto crítico
paradigma, a teoria da assinatura específico do movimento em
seu interior. Todo presente é
e a arqueologia filosófica – que determinado por aquelas
imagens que lhe são
são, de certa maneira, pensados a sincrônicas: cada agora é o
partir dos caminhos metodológicos agora de uma determinada
cognoscibilidade. Nele, a
elaborados por Walter Benjamin. verdade está carregada de
tempo até o ponto de
Aqui ressalto apenas o problema explodir. (Esta explosão, e
nada mais, é a morte da
da teoria das assinaturas que pode intentio, que coincide com o
ser encontrado nos textos nascimento do tempo
histórico autêntico, o tempo
benjaminianos sobre a faculdade da verdade.) (BENJAMIN,
2006:504-5 [N 3, 1]).
mimética, entretanto, é a partir
dos trabalhos com as Passagens Portanto, a imagem-dialética

que a assinatura será apresentada por Benjamin como

efetivamente pensada no âmbito “uma bola de fogo que transpõe

da história aparecendo com o todo o horizonte do passado”

nome de “índices (‘secretos’, (BENJAMIN, 2012:397) e que

‘históricos’ ou ‘temporais’) ou de possibilitou a construção de um

‘imagens’ (Bilder), frequentemente caminho metodológico também

qualificadas como ‘dialéticas” pode ser entendida como uma

(AGAMBEN, 2019:102-103). teoria das assinaturas históricas,


conforme nos aponta o filósofo
Na tese II Sobre o conceito
Giorgio Agamben. É esta bola de
de história, Benjamin (2012a:10)
fogo que buscamos encontrar no
escreve que o “passado traz
ponto zero do diagrama da forma a
consigo um index secreto que o
partir do exercício exaustivo da
remete para a redenção”. E no
tensão dialética apresentada nos

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polos antitéticos (horizontal e GAGNEBIN, Jeanne-Marie. O que é a
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Dos edifícios teatrais às para a configuração da atividade


ondas do rádio: teatral, inteiramente dependente da
apontamentos sobre atuação bilheteria desde seu estabelecimento
no teatro carioca da primeira
em moldes profissionais, no século
metade do século XX
anterior.
1
Angela de Castro Reis Desse modo, tendo sido
erguidas para acolher uma grande
Em estudo sobre a obra de
massa de espectadores, as
Armando Gonzaga (1884 -1953),
espaçosas casas de espetáculos da
Beti Rabetti oferece um vívido
Praça Tiradentes e arredores2,
panorama do “complexo aparelho
principal polo teatral da cidade
artístico, econômico e social” do
desde o século XIX, contavam com
teatro carioca das primeiras décadas
amplos palcos e urdimentos
do século XX, bem como a “estreita
elevados, de modo a que os cenários
correspondência entre as formas de
pudessem subir e descer com
construção dramatúrgico /
facilidade, tendo ainda um fosso
espetacular e sua necessidade de
para a orquestra, indispensável aos
atender, de agradar ao público [...]
espetáculos musicados (LIMA,
intenso e heterogêneo conquistado
2000). Se nestes gêneros o
pelo teatro” (RABETTI, 2007:38).
espetáculo era construído a partir de
Ressaltando o ritmo acelerado em
inúmeros elementos (texto, música
que pulsava o Rio de Janeiro nesse
ao vivo, canto, dança, cenários e
momento, “cidade que fervilhava em
figurinos luxuosos), possibilitando
ritmo ditado pela visão de progresso
aos atores e atrizes o uso do corpo
a qualquer custo e presença de
como elemento expressivo, no
reformas que não conseguem
teatro em prosa - ou declamado - o
apagar o recente passado escravista
estatuto do corpo era o de suporte
e monárquico” (RABETTI,
ao texto, sendo a voz o principal
20007:39), o texto reitera, ao longo
de suas páginas, a afluência do
2
Por exemplo, o Real Teatro São João,
público como um fator determinante atual Teatro João Caetano, tinha, na sua
inauguração, capacidade para receber
1
É Professora Adjunta da Universidade 1200 pessoas (LIMA, 2000: 52); o Teatro
Federal do Estado do Rio de Janeiro e Santana, atual Carlos Gomes, contava em
autora do livro "Cinira Polonio, a divette 1904 com 22 camarotes, 81 cadeiras na
carioca: estudo da imagem pública e do plateia e 500 galerias (LIMA, 2000: 113);
trabalho de uma atriz no teatro brasileiro o Teatro Apolo, situado na Rua do
da virada do século XIX" (Prêmio Arquivo Lavradio, podia comportar mais de 1500
Nacional de Pesquisa 1999), entre outros. pessoas (LIMA, 2000: 117).

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 205 de 272
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recurso de atuação. Segundo Décio período. Na dissertação Escola
de Almeida Prado, no teatro das Dramática Municipal: a primeira
primeiras décadas do século XX, escola de teatro do Brasil, Elza
com o palco cheio de cadeiras, Andrade (1996) mostra como a
poltronas, divãs, banquinhos,
alinhados disfarçadamente em instituição (atual Escola de Teatro
semicírculo e olhando de frente Martins Penna), inaugurada em
para a plateia, representar
significava quase sempre, tanto 1908, teve seu primeiro corpo
nas comédias quanto nos
dramas, conversar tranquila ou docente formado quase inteiramente
animadamente. “Sente-se, por
favor, tenho alguma coisa a
por “imortais” da Academia
dizer-lhe” – era o prenúncio Brasileira de Letras, buscando assim
infalível de uma cena de suma
importância. (PRADO, 1993:83) formar profissionais à altura do

Incontáveis documentos acerca desejado grande teatro burguês,

da história do teatro carioca do sério e erudito, que diriam com

século XIX e meados do século XX perfeição as palavras do texto. Com

usam os termos diseur e diseuse exceção dos professores da

para mencionar atores e atrizes disciplina “Arte de Representar”,

habilidosos na lida com as palavras, Cristiano de Souza e Eduardo

denotando a origem francesa dessa Victorino, que eram artistas de

concepção de atuação, calcada na teatro, os “imortais” ministravam

oratória. São grandes exemplos disciplinas como Prosódia (Professor

dessa tradição os livros do famoso João Ribeiro), Arte de Dizer

ator João Caetano dos Santos (Professor Alberto Oliveira), História

(1808–1863): Reflexões dramáticas, do Teatro e Literatura Dramática

escrito em 1837, no início de sua (Professor Coelho Neto) e Fisiologia

carreira e Lições dramáticas, em das Paixões (Professor Fernando

1862, um ano antes de sua morte3. Magalhães)(ANDRADE,1996:51-83).

Também o currículo da Por fim, um dos mais

primeira escola de teatro oficial expressivos exemplos da

brasileira referenda a voz como permanência dessa tradição no

elemento basilar na atuação deste século XX é a carreira do ator


Procópio Ferreira (1898-1979). Em
3
Em sólido trabalho de pesquisa, Décio de
Almeida Prado revela, em João Caetano e artigo intitulado Procópio Ferreira,
a arte do ator (1984), como todo o
arcabouço teórico das obras está um pouco da prática e um pouco
assentado sobre L’art du theatre (1750),
de François Riccoboni, conhecido como da teoria (1993), Décio de Almeida
Lélio, ator italiano que passou grande
parte de sua vida na França, no século
Prado busca construir um retrato
XVIII, e Aristippe, autor de Théorie de l’art fidedigno do ator, alvo preferencial
du comédien ou Manuel théâtral, de 1826.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 206 de 272
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de ataques no início da jornada Assim, tendo em vista a
profissional do crítico paulistano, importância da voz como
quando este militava pela ferramenta de atuação no teatro
implantação de um teatro carioca até as primeiras décadas
praticado em moldes modernos. do século XX, a hipótese
Embora insistindo que Procópio
formulada nesta comunicação é a
havia sido “um grande ator, mas
de que, no momento em que o
não um grande homem de teatro”
rádio passou a ocupar um lugar de
(PRADO, 1993: 90), o autor,
destaque na sociedade brasileira,
afinal, reconhece a importância
a partir dos anos 305, houve uma
deste para o teatro brasileiro,
oferecendo ao longo do texto fácil adaptação dos atores e

inúmeras informações sobre seu atrizes ao novo veículo. O trabalho

modo de atuar: dos artistas foi favorecido em


Esse exercício de retórica, especial nas radionovelas, calcada
típica do teatro nacional, era
declamado por Procópio [...].
O orador substituía o ator,
pondo em evidência a encenada pelo ator, como o melhor diseur
sonoridade das palavras, os que ele havia conhecido. O mesmo
efeitos de ritmo, o dinamismo documentário oferece um momento
da frase, o poder da fala precioso em que, fumando e “sentado,
humana. (PRADO, 1993: 61) como gostava de representar (...)”
(PRADO, 1993: 42), Procópío repete o
Excelente diseur, como mesmo pequeno texto (“Estava
observou R. Magalhães Jr., justamente esperando por esse momento.
sabendo valorizar cada Diga, responda: mereço isso, mereço?”)
palavra sem prejudicar a com inúmeras entonações, transmitindo
naturalidade da fala como um estados emocionais distintos, como raiva,
todo, destacando na justa surpresa e tristeza, apenas com a
medida os segundos sentidos modulação de sua voz. Disponível em
[da frase]. (PRADO, 1993: 69) https://www.youtube.com/watch?v=U4XlJ
Diseur por excelência, foi eR-mq0 – Inflexões por Procópio Ferreira
nessa linha que Procópio – Trecho do Documentário 100 anos de
interpretou O avarento. [...] Procópio Ferreira – Canal Multishow.
Era inegável a maestria com Acesso em: 15/06/2019.
que o ator brasileiro, dentro 5
da sua concepção de teatro, A primeira transmissão radiofônica pública
manejava o diálogo, quase e oficial no Brasil aconteceu em 7 de
sem se desgastar setembro de 1922, por ocasião da Exposição
fisicamente, com uma Internacional do Rio de Janeiro, que
tranquilidade e autoridade em comemorava o I Centenário da
cena que se impunham ao Independência do país. No entanto, “o rádio
público. (PRADO, 1993: 84)4 deu um salto tecnológico, causando
verdadeira revolução, quando, em 1936,
entrou no ar a Rádio Nacional do Rio de
Janeiro [...]. Transformando-se em um
4
Em programa televisivo intitulado 100 fenômeno de massa, alcançava todo o
anos de Procópio Ferreira, veiculado pelo território nacional e até o exterior, como
Canal Multishow4, Procópio Ferreira é América do Norte, Europa e África”.
descrito também pelo autor Dias Gomes, (NEUBERGER, 2012, 63-64)
que teve aos 18 anos sua primeira peça

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 207 de 272
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no virtuosismo vocal, bem como Oduvaldo Vianna, em 1934 iniciou a
nos programas de humor e de vida profissional na Companhia
auditório, considerando-se Dulcina - Odilon, quando adotou
também outra característica de seu nome artístico. Na década de
grande importância do teatro de 30 trabalhou ainda com grandes
então, a triangulação com a nomes do teatro profissional do
plateia (própria de uma cena período, como Alda Garrido e
produzida a partir da relação com Procópio Ferreira, assim como com
6
o público) . Elza Gomes, Delorges Caminha e
Um exemplo expressivo da Cazarré, com os quais montou uma
adaptação, no rádio, de artistas companhia (REIS, 2016: 160).
oriundos do teatro pode ser obtido Convidado por Olavo de
pelo exame da carreira de Paulo Barros, em 1940 ingressou no
Gracindo (RJ, 16/07/1911 – RJ, Grande Teatro da Rádio Tupi, que
04/09/1995). Filho do ex-senador apresentava todas as semanas uma
Demócrito Gracindo e de Argentina peça completa em três atos
Gracindo, Pelópidas Guimarães (KHOURY, 1994, p. 386).
Brandão Gracindo mudou-se ainda Em 1947, transferiu-se para a
criança com a família para Maceió, Rádio Nacional, cuja história
em Alagoas; na juventude, formou- vincula-se de modo estreito ao
se em Direito. Em 1930, chegou ao Estado Novo (1937-1945), bem
Rio de Janeiro, sua cidade natal e como à figura de Getúlio Vargas.
então Capital Federal, quando Após a deposição de Washington
ingressou no teatro no grupo Luis, este assumiu a Presidência da
amador do Clube Ginástico República, em novembro de 1930,
Português, que “tinha o melhor como chefe de um governo
grupo de teatro da época” provisório. Em 1937, por meio de
(KHOURY, 1994: 375), na peça O outro golpe e com o apoio dos
tabelião Pome; indicado por militares, Vargas impôs o Estado
Novo, cujo centro de sustentação
6
Tal como no teatro de revista, no teatro
declamado deste período o espetáculo era era corporificado funcional e
“resultado de uma colaboração intensa
pessoalmente na sua figura - o
entre a plateia, o autor e o ator – tendo
esse um papel importantíssimo no único civil a comandar uma ditadura
funcionamento da cena”. (REIS,
MARQUES, 2004: 180).

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 208 de 272
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no Brasil, garantida pelas Forças Ainda segundo as autoras,
Armadas, em especial pelo Exército, por meio da ação do órgão, nos
e apoiada numa política de massas “anos 30 a canção popular e mais
(SCHWARCZ, STARLING, 2015: especificamente o samba se
374). firmaram como o traço essencial e
Para a legitimação ideológica mais evidente da fisionomia
do governo, teve papel musical do Brasil moderno”
fundamental o DIP (Departamento (SCHWARCZ, STARLING, 2015:
de Imprensa e Propaganda), órgão 376). Promovendo intensamente a
de caráter censório. Diretamente ideia de integração nacional, o
subordinado à Presidência, com Estado Novo entronizou o samba
órgãos filiados nos Estados, o DIP como o símbolo da nação,
tinha seis sessões (propaganda, elegendo também dois eventos
radiodifusão, cinema e teatro, para a solidificação dessa
turismo, imprensa e serviços condição: “a institucionalização do
auxiliares) e a tarefa de projetar as carnaval como a festa popular
bases de legitimidade do regime: mais importante do país e a
consolidação do rádio como
A agência interferiu em todas
as áreas da cultura brasileira: primeiro veículo de comunicação
censurou formas de
manifestação artística e
de massas” (SCHWARCZ,
cultural; instrumentalizou STARLING, 2015: 376).
compositores, jornalistas,
escritores e artistas, e É nesse contexto que surge a
desenvolveu múltiplas linhas
Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
de ação. Numa delas,
funcionários do DIP Com o prefixo PRE‐8, entrou no ar
exploraram o potencial da
imprensa escrita criando em 12 de setembro de 1936,
publicações concebidas pra instalada no primeiro arranha-céu
esse fim [...]. Em outra, a
agência buscou assumir o da América Latina, o edifício A Noite,
controle de tudo que se
construído em cimento armado, com
relacionava com a canção
popular, talvez a mais 22 andares, por muito tempo
eficiente linguagem produtora
de conhecimento sobre o considerado um cartão-postal da
Brasil e acessível a toda a cidade, localizado na praça Mauá da
população. (SCHWARCZ,
STARLING, 2015: 376) então capital brasileira. Quatro anos
depois, em 8 de março de 1940,
com o argumento de que havia uma

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dívida de três milhões de libras modo, a Rádio Nacional chegou à
esterlinas, Getúlio Vargas determina liderança da audiência no país
a encampação do grupo onde estava (MUSTAFÁ, 2014: 271), superando
inserida a emissora; passando a a Rádio Mayrink Veiga, que havia
pertencer ao patrimônio da União, ocupado este posto na década de

esta ganha investimentos estatais, 1930 (MUSTAFÁ, 2013).

ao mesmo tempo em que atua como Entre os formatos

uma empresa comercial, por meio desenvolvidos na emissora e que se

das vendas de publicidade. O grande tornaram padrão no veículo, são de


especial interesse nesse artigo as
fluxo financeiro permitiu melhorias
radionovelas e os programas de
constantes em seus equipamentos e
auditório transmitidos ao vivo - que
instalações (levando-a, nos anos 40,
tinham uma “fórmula que incluía
à posição de uma das mais bem
diversos quadros e constituíam-se
equipadas rádios do mundo),
num tipo de espetáculo com
trazendo inovações técnicas e na
características bem brasileiras”
programação e possibilitando a
porque eram dinâmicos e
contratação de artistas estelares em
misturavam show musical, teatro de
todos os campos (MUSTAFÁ, 2014).
variedades e sorteios que
A programação musical e de
mantinham o público atento e
entretenimento estava inserida em
eufórico durante quase quatro
uma grade que incluía, além dos
horas. Nestes momentos ao vivo,
programas musicais, programas
havia apresentações e orquestras,
de auditório, programas
músicos solistas, conjuntos regionais
humorísticos, radionovelas,
e vocais, humoristas e mágicos
jornalismo e reportagens externas
(MUSTAFÁ, 2014: 217). Além do
e esportivas. Os programas de
ineditismo dos formatos artísticos, a
auditório reuniam cantores e
Rádio Nacional tornava-se, assim,
cantoras de sucesso - e atraiam
um local de fundamental
centenas de ouvintes-, musicais
importância para a sobrevivência e
com predominância para a Música
projeção de um imenso número de
Popular Brasileira (MPB),
técnicos e artistas brasileiros: nos
apresentações de orquestras,
anos 50, seu corpo de funcionários
radionovelas, coberturas
era formado por um diretor-geral,
esportivas e importantes
oito diretores, 240 funcionários
programas informativos. Desse
administrativos, dez maestros e

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arranjadores, 33 locutores, 124 ator na Rádio Tupi (“em quase todas
músicos (divididos em três as novelas eu era o galã
orquestras), 55 radioatores, 40 romântico”), imaginou que poderia
radioatrizes, 52 cantores, 44 aumentar seus rendimentos
cantoras, 18 produtores, um (KHOURY, 1994: 392), o que o
fotógrafo, 13 informantes, cinco levou a comprar um horário de três
repórteres, 24 redatores, quatro horas na programação e criar um
secretários de redação (AGUIAR, programa de auditório a partir de
2007:134), totalizando 672 uma fórmula “que não podia dar
contratados. errado: os melhores grandes artistas
A enumeração acima revela que se projetaram na música
com clareza como a rádio firmava-se popular brasileira, como Roberto
como um campo importante de Carlos, Cauby Peixoto, Agnaldo
expressão artística e ganhos Timóteo, Alaíde Costa, Elis Regina e
materiais para atores e atrizes Angela Maria, parada de sucessos e
brasileiros. Compreende-se, assim, muito humor” (KHOURY, 1994: 392-
a passagem de Paulo Gracindo do 393). Mais tarde, o programa foi
teatro - sua meta profissional - para convidado a se transferir para a
o rádio, em um movimento feito, em Rádio Nacional, onde ficou mais
suas próprias palavras, por popular ainda: “Você não queira
“ambição e dinheiro”: saber a popularidade do Cauby
Naquele tempo, o rádio tinha a Peixoto. Era perseguido, rasgado,
força que tem hoje a televisão.
Pagava bem melhor que o beijado e apalpado” (KHOURY,
teatro, era mais certo, mais
seguro e o radialista progredia 1994: 396).
muito mais rapidamente que o Outro momento de grande
ator. Na rádio, fui locutor,
radioator, comunicador e destaque de Paulo Gracindo na
animador e quando comecei a
fazer meus programas de Rádio Nacional foi como Alberto
auditório, comecei a ganhar Limonta, em O direito de nascer. De
muito dinheiro (KHOURY,
1994: 386). autoria do cubano Félix Caignet, a
Na Rádio Nacional, Paulo radionovela estreou em janeiro de
Gracindo obteve imenso sucesso, 1951 e ficou no ar até setembro de
em especial em três momentos. O 1952, às 2as, 4as e 6as, sempre às
primeiro, como apresentador do 20h, como um extraordinário
Programa Paulo Gracindo, de grande fenômeno no Brasil, chegando a
audiência durante 20 anos. Após atingir índices de audiência de 73%,
uma promissora carreira de radio- graças ao enredo de grande apelo

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melodramático7 (AGUIAR, 2007: Criei esse quadro para mexer
com o pai da minha mulher,
91). De grande popularidade desde que era muito rico, foi dono da
Rádio Ipanema e morava numa
os anos 40, as radionovelas foram mansão enorme, toda de
campeãs de audiência na Rádio pedra, na Rua Dias Ferreira. Eu
ia visitá-lo todos os domingos e
Nacional, que atingiu a cifra de 157 morava num modesto
apartamento na rua David
produções transmitidas no ano de Campista. Sempre que
1955 (CPDOC/FGV, s/d: s/p.). estávamos almoçando, ele
vinha com aquela conversa:
Por fim, Paulo Gracindo “Então, como é que está indo a
sua vida tranquila naquele seu
projetou-se na versão original do pequeno apartamento?” E eu
respondia: “Estou chateado, sr.
programa Balança mas não cai, de Xavier, está havendo uma
Max Nunes (1953), o mais bem infiltração e vou ter de gastar
um dinheirão...” Ele
sucedido de todos os programas prosseguia: “Esse negócio de
infiltração é horrível, é por isso
humorísticos da Rádio Nacional, no que uso no teto ouro de 18
qual ficou célebre ao lado de quilates e mesmo assim ainda
tenho problemas!”. Era o
Brandão Filho, no quadro “Primo tempo todo assim. Todo
problema que eu tinha, ele
rico e primo pobre”. Anos mais tinha um parecido, só que era
um milhão de vezes melhor ou
tarde, o programa e o quadro pior. Foi ele quem me inspirou
ganharam nova versão na TV Rio e, o quadro. (KHOURY,1994: 393)

em seguida, na TV Globo. Em suas A trajetória de Paulo Gracindo,


próprias palavras, longe de revelar aspectos relativos
apenas à sua biografia, evidencia o
7
Na conservadora Havana no início do
século 20, a jovem Maria Helena lugar de grande importância
engravida de Alfredo, filho do inimigo de
seu pai. O rapaz se recusa a assumir o alcançado pelo rádio e em especial
filho e ela se torna mãe solteira. A criança,
então, vira alvo do ódio do avô, o pela Rádio Nacional no Brasil. Se a
poderoso Dom Rafael, e para ter sua vida
salva é entregue à empregada negra da projeção da emissora está
família, mamãe Dolores, que o leva para
um lugar remoto e ignorado. Os anos se
intimamente relacionada ao
passam e Maria Helena, sofrida e contexto político do Estado Novo, do
desencantada com a vida, se recolhe a um
convento; Dom Rafael se acalma, certo de ponto de vista estritamente artístico
que o fruto do pecado de sua filha havia
morrido. Contudo, o menino cresce, é possível identificar como parte do
estuda medicina e se transforma no
talentoso D. Alberto Limonta, jamais seu sucesso se deve à incorporação
sabendo de sua origem. Porém, o velho
oligarca sofre um distúrbio neurológico, de características de atuação
perde os movimentos e fica mudo;
internado, é atendido justamente pelo basilares no teatro declamado, uma
neto, que lhe salva a vida. A identidade do
médico - que se apaixona pela prima das mais importantes atividades
Isabel Teresa, sendo correspondido – é
descoberta pela Sóror Maria Helena, assim culturais na cidade do Rio de Janeiro
como pelo avô, que moído pelo
arrependimento, desespera-se por dentro, na primeira metade do século XX,
já que, impedido pela doença, não pode
falar ou locomover-se
como também da rica diversidade

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musical brasileira. Do mesmo modo, Referências bibliográficas
fica patente a dinâmica pela qual
AGUIAR, Ronaldo Conde. Almanaque
passaram os trabalhadores da cena, da Rádio Nacional. Rio de Janeiro,
que, tendo no século XIX apenas o Casa da Palavra, 2007, 184 p.

teatro e o circo como campos de ANDRADE, Elza Maria Ferraz de.


trabalho, no século XX encontraram Escola Dramática Municipal: a
primeira escola de teatro do Brasil:
no rádio possibilidades de expressão
1908-1911. 1996. Dissertação.
criativa e ganhos materiais - em Programa de Pós-Graduação em Artes
movimento que se consolida com a Cênicas, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO),
consolidação da atividade
Rio de Janeiro, 1996.
cinematográfica e o surgimento da
BIANCO, Nélia del, KLÖCKNER,
televisão (REIS, 2016: 14). Deste
Luciano, FERRARETTO, Luiz Arthur
modo, formatos desenvolvidos no (orgs.). 80 anos das rádios Nacional e
rádio, como as novelas e os MEC (Rio de Janeiro). Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2017, 257 p.
programas de auditório, serão
aproveitados mais tarde com CPDOC/FGV. Rádio Nacional. Verbete.
Disponível em:
sucesso pela mídia televisiva, que
<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dici
não apenas absorverá programas já onarios/verbete-tematico/radio-
existentes (entre eles, Balança mas nacional>. Acesso em 20/06/19.

não cai, do qual fazia parte o quadro GOLDFEDER, Miriam. Por trás das
“Primo rico e primo pobre”) como ondas da Rádio Nacional. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1980, 206 p.
atores e atrizes de destaque (a
exemplo de Paulo Gracindo ou Mário GRACINDO JÚNIOR, ALENCAR, Mauro.
Um século de Paulo Gracindo: o
Lago, que na Rádio Nacional foi
eterno bem amado. Belo Horizonte,
“autor, ator, diretor, produtor Editora Gutenberg, 2012, 256 p.
executivo, redator, entrevistador,
KHOURY, Simon. Bastidores I:
cantor e compositor” (REIS, 2016: entrevistas a Simon Khoury (Tônia
145)). Tal como reconhecida pelo Carrero, Henriqueta Brieba, Cláudio
Corrêa e Castro, Paulo Gracindo). Rio
diretor de cinema e televisão Daniel
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A Mágica no Rio de Janeiro, No Diccionario do Theatro


o assombroso Portuguez, Sousa Bastos define a
desaparecimento de um Mágica como "uma peça de grande
gênero1 espectáculo cuja acção é sempre
phantastica ou sobrenatural e onde
Ana Paula Brasil Guedes2
predomina o maravilhoso[...]". No
Eu confesso o meu pecado:
Dicionário do Teatro Brasileiro o
em arte só admito a mágica.
verbete Mágica aparece como:
(Dr. Semana, 1875)
Tipo de peça teatral que fez
As Mágicas eram espetáculos muito sucesso nos palcos
teatrais muito populares no Brasil e europeus e brasileiros durante
o século XIX. Chamada de
em Portugal no século XIX até as féerie na França, porque seus
primeiras décadas do século XX, personagens podiam ser fadas
e outros seres sobrenaturais,
quando desapareceram do universo como sereias, gênios,
teatral como fenômeno. Eram demônios ou gnomos, sua
atração maior não estava nem
espetáculos de farta visualidade e nos personagens nem nas
aposta garantida dos empresários histórias que trazia à cena,
mas sim nos cenários e
do ramo teatral, pois os teatros figurinos, na representação
permaneciam lotados durante todas luxuosa, repleta de truques e
surpresas, assim como nos
as temporadas em que as Mágicas números de dança e música.
eram apresentadas. (GUINSBURG, FARIA e LIMA,
2009, p. 175)
As peças eram separadas em
atos e divididas em quadros. Cada Os críticos deste teatro
quadro compreendia uma imagem popular alegavam as características
cênica, com um cenário em apelativas dos espetáculos como o
transformação, por meio dos mais motivo da assídua frequência do
variados truques, animados pela
público: "duzentas mulheres de
música original ou adaptada. A
perna núa, cangote cheiroso, saiote
transformação de um quadro para
curto, no meio de uma apoteose de
outro era denominada mutação e
poderia ser realizada com grande luz elétrica, quatro dragões alados e

espetáculo e efeito. uma concha de papelão."3 Os


articulistas da época comprovavam
1
Este artigo é resultado da tese de
doutorado Truques e traquitanas, a Magica 3
(Dr. Semana, 1875) Pseudônimo atribuído
no Rio de Janeiro, um carnaval de luzes e
a Machado de Assis, na Semana Ilustrada
formas animadas, 2019, PPGAC/Unirio,
(RJ)-1861 a 1875. Disponível
Rio de Janeiro, 2019.
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/7029
2
Cenógrafa e Iluminadora. Professora da 51/5981>. Acesso em 12 jun 2017.
Escola Martins Pena.

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as "enchentes" de público nesses Fundamentando a imagem cênica
espetáculos teatrais, "em todas as produzida, por meio das mutações
representações do Gato Preto no dos quadros cenográficos das
São Pedro de Alcântara tem havido Mágicas, como imagem metafórica
enchentes colossais, pyramidaes e dialética, no âmbito das

dignas d'elle, do grande Gato alegorias teatrais. O exame das

Preto"4. De fato, as encenações imagens evocadas nos quadros, as

apelavam para a sinestesia entre a mutações de cena, objetivou

música ao vivo e efeitos como descrever os truques por meio dos

transformações, aparições, quais as cenas foram produzidas.

explosões, naufrágios e Nos enigmáticos espetáculos


desaparições, além dos coros de de Mágica prevalecia o intenso uso
mulheres. de formas animadas, como
conchas que se abriam, dragões
Em fins do século XIX, a
alados e transformações
Mágica era um gênero consolidado
surpreendentes. Este fato
na cidade do Rio de Janeiro, o que
conduziu o aprofundamento das
permitiu a exploração acerca das
questões relativas ao discurso
técnicas de maquinaria e
visual e aos procedimentos
iluminação cênica aplicadas nestes
estéticos e técnicos da cena teatral
espetáculos, na virada de século.
das Mágicas.
Foram examinados os
A observação de diversas
reaproveitamentos das técnicas de
técnicas de animação assimiladas
maquinaria e iluminação cênica
nos espetáculos de Mágica, exigiu
nos espetáculos teatrais de
o entendimento e o
Mágica, na virada do século XIX
reconhecimento dos modos de
para o século XX, na cidade do Rio
produção no teatro brasileiro,
de Janeiro. Para tanto a pesquisa
verificando as demandas da cena
foi inserida no campo de estudo
como conjunto de significantes da
das visualidades da cena,
comunicabilidade visual dos
reforçando a presença das formas
espetáculos. Notações sobre os
animadas no teatro.
equipamentos e outros vestígios
4
Gazeta de Noticias (RJ) - 1890 a 1899. como textos, croquis, fotografias,
Disponível em:<
http://memoria.bn.br/DocReader/103730_0 publicidade, relatos, plantas e
3/1099>. Acesso em: 20 jan. 2019.

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certos modos de produção, posteriores ao período estudado,
praticados pelos seus partícipes, como ocorreu no circo, no cinema e
possibilitaram a observação de no carnaval.
indícios da existência de uma
As considerações sobre as
escola estética no uso dos
visualidades da cena em finais do
artifícios da cena, como iluminação
século XIX e início do século XX
e cenografia.
permitiram encarar o teatro da
O conjunto de vestígios foi
época, principalmente as Mágicas,
analisado em razão dos modos de
como o locus de difusão técnica e
operação teatral da época e à
estética. A historiografia que
constituição de uma cultura visual.
dominou o campo teatral no século
Desta forma o estudo das
XX foi ancorada em referências
visualidades da cena com enfoque
textuais do teatro, dando pouca
nas Mágicas, está inserido na zona
visibilidade aos estudos espaciais da
fronteiriça dos espetáculos híbridos,
encenação. Esta pesquisa avançou
em que efeitos visuais
às margens da historiografia
proporcionavam experiências
canônica do teatro no Brasil e
mobilizadoras do olhar e certa
valeu-se do suporte teórico dos
imersão na fantasia
estudos do espaço teatral.
Embora nos jornais de época
Assim como o teatro de
seja possível perceber a
formas animadas, a Mágica inserida
importância considerável do gênero
no teatro híbrido e musical, foi
e seus modos de produção, as
também considerada como um
Mágicas passam à margem da
gênero menor na historiografia. Nas
historiografia do teatro brasileiro.
últimas décadas historiadores do
De fato, o gênero tendeu ao
teatro e pesquisadores das
desaparecimento no começo do
visualidades da cena vem reunindo
século XX, no entanto os artífices
esforços em torno do estudo das
deste gênero teatral, bem como
técnicas teatrais. O presente estudo
seus modos de produção migraram
comprovou que o apagamento
para outras áreas. Um dos objetivos
historiográfico acerca do gênero da
deste estudo foi apontar a
Mágica influencia o entendimento
assimilação das técnicas teatrais da
sobre a história do teatro, a história
Mágica em outros eventos

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da música e história cultural magica”7; “Mas de súbito, quando
brasileira. todo mundo ansioso, esperava a
notícia de um rompimento, a
Sendo o gênero um híbrido
situação mudou como um scenario
dramático-musical, o sentido da
de mágica".8A força metafórica da
cena na Mágica integraliza-se na
expressão mágica foi analisada em
relação entre enredo, imagem e
confronto com a presença das
música. A imagem, animada pela
cenas de mutação de mágica, no
música, parece estabelecer certa
teatro da época.
predominância como discurso nas
narrativas historiográficas, no No período estudado, a

entanto as pesquisas sobre a Mágica gozava de certo prestígio,

música destes espetáculos revelam o público assíduo, de fato, lotava

seu caráter popular, experimental, os teatros nas apresentações. Os

comercial e rico em espetáculos de Mágica chegavam a

aproveitamentos da cultura urbana alcançar centenas de

do Rio de Janeiro.5 apresentações e foram, muitas


vezes, os responsáveis pela
O sentido da palavra Mágica,
manutenção das companhias
como gênero teatral, tornou-se
teatrais.
figura de linguagem: “a fisionomia
Embora tenha alcançado
do francez agitou-se num tumulto
força metafórica, o gênero ganhou
de emoções como um scenario de
tons exóticos e misteriosos nas
magica.”6; “dá-me gana de correr,
narrativas sobre a história do
pedir socorro, desaparecer pelo
teatro no Brasil. Os jornais do
chão, como um diabinho de
período indicam uma incidência
5 variável de críticas positivas e
Cf. FREIRE, V. B. O mundo maravilhoso
das mágicas. Rio de Janeiro: Contracapa /
FAPERJ, 2011. AUGUSTO, A. J. A questão
Cavalier: música e sociedade no Império e
7
na República (1846-1914). Rio de Janeiro: Grifos nossos. A Illustração Brasileira. N
Tese (Doutorado em História Social) 59. 1º Nov. 1911. Crônica assinada por R.
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da de C. Disponível em:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, <http://memoria.bn.br/docreader/107468/1
2008. E AUGUSTO, A. J. Henrique Alves de 985>. Acesso em: 12 out. 2016.
Mesquita: da pérola mais luminosa à poeira
8
do esquecimento. [S.l.]: Folha Seca, 2014. Grifos nossos. Notícia sobre a saída da
6
Grifos nossos. A Illustração Brasileira. N Alemanha da guerra. Illustração Brasileira.
130. 16 Out. 1914. Disponível em: < N 56. 16 Set de 1911. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/docreader/107468/38 http://memoria.bn.br/docreader/DocReader
59 >. Acesso em: 12 out. 2016. .aspx?bib=107468&pagfis=3859 >. Acesso
em: 12 out. 2016.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 218 de 272
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negativas. Aloísio Azevedo capta a Compreendendo uma complexa
essência do debate: rede de dispositivos cênicos e
Nós [...] que não possuímos modos de produção, a
caráter nacional, nós que não
dispomos de ciência, nem arte, comunicabilidade visual da cena
nem literatura... nos fazemos teria garantido o sucesso de público
representar no teatro pela
mágica e pela opereta. Está e estabelecido circularidades entre
claro. (...) Para um povo como
as camadas sociais.
nós somos, só há no teatro
uma manifestação possível, é
o disparate, o burlesco, o O estudo apontou traços
ridículo exagerado feito de
precursores e processos de
cores vivas, de sons
estridentes e de pilhérias rupturas e persistências das
velhacas e extravagantes.
(AZEVEDO, 1882) técnicas operadas. Propondo a
discussão no campo das narrativas
A Mágica, como expressão
historiográficas do teatro no Brasil
teatral, parece ter sido responsável
e o reconhecimento das
pela exposição das contradições
visualidades e formas animadas na
brasileiras. A hipótese levantada
cena do passado, suscitando
sustenta que o uso de imagens
referências e demandas
projetadas, experimentos de
cenográficas e visuais, específicas
iluminação, formas animadas e
da época, extremamente
maquinarias cenográficas teria sido
importantes para o entendimento
recorrente na cena teatral carioca
deste gênero de teatro. Foram
na virada do século XIX para o
observadas questões de
século XX, sendo a Mágica seu
nacionalismo e apropriações que
principal expoente e lugar
envolvem a Mágica como
privilegiado de interseções técnicas
espetáculo brasileiro, a fim de
e estéticas. O gênero híbrido
ampliar o quadro de estudos sobre
dramático-musical teria sido a
teatro no Brasil. Entendendo a
síntese da expressão cultural
histografia do teatro como
nacional. Espaço de experimentação
narrativa e como construção de
e aproveitamento, tanto dos
métodos de pesquisa, que levem
mecanismos rudimentares da cena,
em consideração a importância
quanto da alta tecnologia. Como
das expertises teatrais nas
teatro de visualidades, em que os
narrativas sobre o teatro brasileiro
efeitos visuais, animados por
e a ausência de estudos sobre a
música, atuam como dramaturgia.

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Mágica no Brasil. Portanto, a via foram permeadas por análises que
de análise deu-se em negativo. abordam o desejo e a construção
da modernidade, a transformação
A proposta de uma análise
do olhar da sociedade da época e
em negativo pretendeu o resgate
as tensões da historiografia
de sentidos mobilizadores de um
teatral. Nesse contexto, o Rio de
passado apagado na memória, na
Janeiro aparece como uma cidade
tentativa de compor um quadro
cindida entre a promessa de uma
circunstancial dos fenômenos que
capital modernizada e o enterro de
envolvem a Mágica como um
suas tradições populares e sua
espetáculo que despertou o olhar
memória. A transformação da
da sociedade da época.
cidade e da sociedade, os
Em vista desta questão, a
movimentos de migração e o papel
ausência da Mágica teatral como
da mecanização e da eletricidade
gênero pretérito nos estudos
permitiram analisar o paradoxo da
teatrais foi tratada como um
variabilidade do olhar do
sintoma a ser esclarecido,
espectador finissecular.
empregando o método indiciário
À margem do paradigma do
proposto pelo historiador Carlo
modernismo paulista, a questão
Ginzburg. A ausência de estudos,
da modernidade carioca se fez
diagnosticada como um sintoma
presente por meio do humor na
do recalque historiográfico, os
observação das dinâmicas do
"dados negligenciáveis"
cotidiano. O caráter fragmentário
considerados previamente como
da modernidade na cidade
fenômenos marginais à cultura
estabeleceu a rua como o lugar de
dominante e intangíveis para sua
uma sociabilidade alternativa. O
historiografia, encontram-se na
palco se apropriou dessa cultura
zona opaca a qual se quer decifrar
(GINZBURG, 1986). urbana nos espetáculos híbridos
de Mágica, que apresentavam
Sob o recorte espaço-
números intercalados de
temporal que abrange períodos
prestidigitação, circenses,
adjacentes a virada do século XIX
projeções, danças e músicas.
para o século XX, na cidade do Rio
de Janeiro, as questões que A pesquisa pretendeu gerar
envolvem a modernidade carioca novos conhecimentos para o

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avanço do campo teatral, descritiva desta pesquisa, além da
incorporando a Mágica nos estudos análise, subsidiada por reflexões
historiográficos. O caráter teóricas, foi realizado um
exploratório visou explicitar a levantamento de dezenas de
importância e especificidade de espetáculos. A partir da coleta de
um estilo teatral, bem como a dados e a observação sistemática
propagação de um modo de das visualidades da cena,
execução e trabalho no domínio do entendidas como discurso.
teatro brasileiro. Para tanto ela se
A abordagem foi qualitativa
desdobrou em múltiplos objetivos,
considerando as relações
entre eles refletir sobre os
dinâmicas para interpretação dos
discursos visuais no teatro na
fenômenos na análise dos
virada do século XIX para o século
espetáculos, referenciados em
XX. para o aprofundamento da
anúncios publicitários, críticas
temática. Bem como apontar os
jornalísticas e crônicas, com a
fatores determinantes na
finalidade de explicitar as técnicas
ocorrência dos espetáculos, como
utilizadas e discutir fatores
fenômenos.
determinantes, como a turbulência
Os procedimentos incluíram a política e a transformação
pesquisa bibliográfica e urbanística da cidade. A tensão
documental expo-facto. A coleta que envolvia essas dinâmicas
de dados referentes à relacionais foi avaliada na análise
temporalidade investigada se deu produzida, através da razão
por meio de fontes primárias, dialética entre as práticas sociais,
secundárias e terciárias. No na conformação cultural da área
levantamento foram recolhidos central da cidade do Rio de
dados de licenças e registros civis, Janeiro, e suas representações no
policiais, alfandegários, cartas, teatro, tendo em vista suas
mapas, desenhos, pinturas, múltiplas possibilidades de
fotografias, partituras musicais, sentidos (CHARTIER, 1990). O
filmes, jornais e revistas da época, aproveitamento das técnicas
crônicas, anúncios, caricaturas e cenográficas das Mágicas foi
relatos historiográficos. Na forma

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observado também no cinema, no foram consideradas como alegoria
circo e no carnaval carioca. teatral e imagem dialética,
evocadas na obra de Walter
O eixo de pesquisa
Benjamin (BENJAMIN, 2006).
esquematizou-se por formulações
entendidas como complementares, Investigou-se a Mágica
enquanto o quadro teórico foi buscando comprovar como o
composto por alguns pensadores gênero dramático-musical teve um
da História Cultural. Foram papel fundamental no modo de
abordados conceitos como produção teatral no Rio de Janeiro.
simulacro, alegoria teatral, imagem Tornando-se um espaço de
metafórica, ausência, fantasma, encenação experimental e
fantasia, modernidade, catástrofe, virtuosismo, lugar de interseção e
espaço urbano, espaço teatral, simbiose primordial entre o
culturas populares e urbanas. cinema e o teatro. Além de
Selecionamos o método indiciário, permutar técnicas do teatro e do
proposto pelo historiador Carlo carnaval e aglutinar o erudito e o
Ginzburg (GINZBURG, 1986), popular. Aspectos que foram
margeando os percursos da observados considerando suas
história dominante, como sugere relações com a cidade, desde
Roger Chartier (CHARTIER, 2002). período de sua formação até o
Enfrentando a historiografia como início do século XX. O gênero foi
representação e como uma relação considerado como o locus de
paradoxal entre o real e o discurso, permanência das técnicas desde o
conforme recomenda Michel de início do trânsito atlântico e
Certeau, mobilizando as tensões intensificado no final do século
entre a estrutura do passado e o XIX. Entendendo as mutações
presente, e admitindo a lacuna cenográficas e os truques de cena
historiográfica como um sintoma como formas animadas. O estudo
(DE CERTEAU, 1982). As da imagem cênica foi inserido no
visualidades da cena foram âmbito das alegorias teatrais e da
abordadas como discurso operador antropologia do simulacro na arte.
da cultura visual da virada de Desta forma a Mágica foi estudada
século, sob o conceito de simulacro como um gênero híbrido, no
na arte. As mutações de cena entrecruzamento das linguagens

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artísticas, permitindo o estudo do mensurar o vulto das mágicas no
intercâmbio entre os conjuntos âmbito da produção cultural da
significantes da cena e o olhar cidade, para organizar quadros
mobilizado do espectador. relacionais e lançar luz na história
desses personagens, os artífices
Observando as visualidades
da efervescente cena teatral
da cena como dramaturgia,
carioca na virada do século.
buscou-se relacionar as
arquiteturas teatrais, seus aparatos A ausência historiográfica a
técnicos, recursos de iluminação e respeito dos espetáculos
as possibilidades cenográficas e extremamente visuais na virada
mecânicas para efeitos de cena, de século sugere a
com as Mágicas encenadas. As descontinuidade das técnicas
transformações tecnológicas e o aplicadas ao gênero, porém, em
uso da luz elétrica no teatro foram contrapartida, evoca um fantasma.
associados às transformações Banido do saber, um fantasma se
socioeconômicas urbanas e o insinua na historiografia
desenvolvimento da rede de determinando-lhe a organização: é
iluminação pública e dos circuitos aquilo que não se sabe, aquilo que
culturais noturnos da cidade. A não tem nome próprio. Sob a
cena de mutação das Mágicas foi forma de um passado que não tem
observada como metáfora do lugar designável, mas que não
mundo em transformação. pode ser eliminado, fato que De
Certeau denomina a lei do outro
Estes espetáculos foram
(DE CERTEAU, 1982).
constatados como espaços
mobilizadores do Recorrendo à hipótese
experimentalismo dos artífices da levantada, e seus
cena, cenógrafos, maquinistas, desdobramentos, o uso de
músicos, compositores, projeções e experimentos com luz,
aderecistas. Apontando as formas animadas e maquinarias
relações transmidiáticas entre a cenográficas teria sido recorrente
Mágica, o cinema originário, o na cena teatral carioca na Belle
circo, o carnaval e a música como Époque. Sendo o gênero
narrativa e efeito incidental. A dramático-musical da Mágica seu
análise das fontes permitiu principal expoente, revelando que

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os efeitos visuais têm papel crônicas jornalísticas da época são
fundamental como dramaturgia da reveladoras de uma nova
cena. A Mágica teria sido um lugar sensibilidade da sociedade e
de síntese, abarcando uma refletem o estranhamento, o
complexa rede de dispositivos afastamento e a indiferença entre
cênicos. O reconhecimento dos as camadas sociais.
mecanismos cênicos como parte
Na cidade, como enigma para
fundamental da encenação e como
os seus habitantes, a partir das
linguagem dramatúrgica, o
transformações urbanísticas, um
apagamento histórico e a
lapso de memória do passado teria
descontinuidade das práticas
ocorrido para evitar o mal-estar. O
revelam aspectos da cena teatral
mundo do passado “já não trazia
brasileira na contemporaneidade,
respostas em seu vocabulário
a partir das Mágicas, e apontam
assentado sobre estabilidades, que
sua ressignificação nos desfiles de
dessem conta de representar a
carnaval das Escolas de Samba do
nova ordem turbilhonante das
Rio de Janeiro.
coisas” (SEVCENKO, 1992, p.
A importante oposição entre a 31,32). O vácuo deixado pela ruína
época anterior e os anos 1920, a da tradição teria provocado um
troca dos valores, o esquecimento, estranhamento e uma crise
o “borramento” das memórias identitária. Esta tensão foi
refletiu na historiografia. A ‘maré considerada nas reflexões sobre a
tormentosa’ dos fatos nas grandes historiografia e sobre o declínio ou
cidades bem como uma tensão deslocamento dos espetáculos de
frente as ações reflexivas dos Mágica, cujas encenações
sujeitos naquele período, a qual " apresentavam cunho mais visual e
viria reduzir a visibilidade de um espetacular.
mundo transparente, de contornos
Se razões políticas
definidos até então e que, daqui por
estabeleceram a História como
diante, só parcialmente poderia ser
narrativa de domínio e poder, como
entrevisto, borrado, diluído e
o próprio arquivo, o recurso
impreciso, sobre o rebuliço
dramático da Mágicas de situar a
permanente das águas turvas.
cena em um outro ambiente e ou
(SEVCENKO, 1992, p. 26) As

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temporalidade, para comentar foi definitivamente concluído em
situações da contemporaneidade 1922. As mutações de Mágica
daquela época, pode ser uma chave mimetizavam a cidade, e vice-
para o entendimento. Como muitas versa. Confrontada como
vezes o recurso da paródia era personagem, a narrativa da
utilizado em cenas de improviso que cidade, na sua ocupação, em seus
entremeavam as cenas de Mágica, o acidentes geográficos,
apagamento historiográfico monumentos e demolições, vem
configura indício de perseguição sendo construída, destruída e
política às formas culturais mais reconstruída.
populares e críticas.
O mal-estar revelou-se como
O valor das visualidades da memória "borrada", em
cena foi reafirmado, no âmbito das estranhamento diante do passado
alegorias teatrais, para o estudo indigesto. A imagem metafórica da
dos espetáculos de gênero híbrido. mutação de uma cidade colonial

Desta forma, os aportes para a moderna capital, com


tecnológicos nos espetáculos avenidas e a Cinelândia, trazia

híbridos, especialmente nas alívio das bárbaras memórias


Mágicas, comprovam este espaço suplantadas, a chaga da
teatral, como experimental e, ao escravidão, o derrotado passado
mesmo tempo, guardião de Imperial, as inacabáveis obras de
técnicas tradicionais. reformulação da cidade, com as
decorrentes desapropriações. O
Os fatos levaram a entender
mal que se revela na ausência,
o apagamento da memória como
como mal de arquivo, observado
método dos regimes dominantes,
por Derrida. A partir do século XX,
recorrente nos processos de
qualquer herança do período
arquivamento, resgate e
colonial parecia carregar um
salvaguarda cultural na cidade do
desejo de esquecimento e a
Rio de Janeiro. Seu exemplo
Mágica ainda trazia resquícios do
máximo é o desmonte do morro
passado.
do Castelo, cuja proposta
coadunava com os ideais Nos espetáculos de Mágica a
higienistas da época em estudo e inovação não estava no enredo e

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sim nos arranjos entre o enredo, a a absorção da cultura urbana e
música e as visualidades e nos popular nos palcos, a convergência
aportes tecnológicos, como os da cultura negra no cotidiano da
equipamentos de projeção cidade e a incidência de novos
luminosa. A originalidade estava modelos identitários. A negação do
no modo de pôr em cena a valor artístico das Mágicas e a
narrativa de forma cinestésica. Os consequente ausência do gênero
truques e traquitanas nos estudos historiográficos do
transfiguravam as mutações e teatro brasileiro tem caráter
quadros alegóricos do enredo. persecutório.
Metáforas transportadas para a
Detectou-se a permanência
cena por meio das alegorias. O
de técnicas antepassadas
estudo valeu-se, então, da história
presentes nos espetáculos, devido
das alegorias teatrais para apontar
à recorrência das formas plásticas
as descontinuidades do gênero da
utilizadas. Comprovando indícios
Mágica.
de uma Escola estética, de longa
Como gênero narrativo da duração, motivada pela
imagem e como lugar da maquinaria cênica, no espaço
exacerbação da sátira e da teatral das Mágicas. O gênero
paródia, a alegoria teatral - teatral da Mágica, no
herdeira do teatro barroco - sofreu aproveitamento de técnicas
descontinuidades por meio das antepassadas, em constante
narrativas de valoração. Os fatos atualização, primava pela
corroboram para a afirmação da narratividade das visualidades da
proposição que reivindica o lugar cena, em conjunto com a música e
de permanência da alegoria teatral toda a encenação. Na época, esse
nos espetáculos híbridos e nas ambiente ímpar germinou a
Mágicas, apesar do declínio de musicalidade nacional. Assim
suas premissas político-teológicas. sendo, consideramos a Mágica
como espetáculo de formas
A cena alegórica e satírica
animadas pela música e como
dos gêneros híbridos teria sido
lugar de síntese cultural brasileira
desqualificada por questões
e de suas contradições.
políticas. Questões que envolvem

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Mesa Redonda

CENOGRAFIA E ARQUITETURA

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Teatro e imagens: buraco chamamos de horizonte de


negro, buraco de minhoca eventos) é automaticamente
sugado e esfacelado, devido à sua
Luiz Henrique Sá1
altíssima gravidade. Caso
O conceito físico de buraco consigamos, contudo, escapar
negro, uma região de espaço, deste trágico fim, nosso “prêmio”
causalmente desconectada do seria o acesso à sua imagem
espaço externo, onde a gravidade especular – o chamado buraco
é tão forte que nada consegue lhe branco, simétrico ao buraco negro.
escapar2, originou-se do
Buscando calcular a curvatura do espaço-
entendimento relativístico de que tempo determinada por um buraco-negro,
Albert Einstein e Nathan Rosen
quanto mais denso for um corpo imaginaram um caminho traçado
radialmente pelo interior de um campo
mais ele curvará o espaço a seu emergindo em uma seção separada do
espaço-tempo (EINSTEIN e ROSEN,
entorno. O espaço concentrado em 1935). A conexão entre um buraco negro
e um buraco branco – a chamada ponte
(ou determinado por) um buraco Einstein-Rosen ou simplesmente buraco
de minhoca – pode ser imaginada como o
negro é tão distorcido que tudo caminho contínuo formado por dois funis
interligados por seus gargalos ligando
aquilo que consegue transpor sua duas partes distintas do espaço-tempo;
seu atravessamento conduz
fronteira com a região espaço- necessariamente a uma viagem no tempo,
já que este avança em marchas diferentes
temporal exterior (ao que nas multidimensões.

1
Luiz Henrique Sá é professor do
Departamento de Cenografia e Diretor da
Escola de Teatro da UNIRIO; Doutor em
Artes Cênicas pelo PPGAC-UNIRIO; Mestre
em Design pelo PPD-ESDI/UERJ; Bacharel
em Design pela ESDI/UERJ.
2 Figura 1 - Josef Svoboda: à esquerda, desenho de
O astrônomo Karl Schwarzchild tentou
cenografia para A peregrinação, 1944 (projeto não
calcular a densidade necessária de
matéria para provocar uma curvatura tão realizado); à direita, cenografia para Os contos de
pronunciada do espaço-tempo que a luz, Hoffmann, de J. Offenbach, encenação de B.
em viagem ao seu entorno, acabaria presa Hrdlicka, 1947. Nota-se como as estruturas criadas
neste deslocamento espacial ou mesmo pelo cenógrafo, em forma de dois funis conectados,
dentro de tal corpo. Isso aconteceria lembram a representação gráfica de um buraco de
quando o raio de um corpo esférico fosse minhoca (imagem ao centro).
reduzido a um tamanho crítico em relação
a sua massa (o que passou a ser
conhecido como o raio de Scharzschild), O conceito de buraco de
que é o que acontece quando uma estrela
em processo de colapso tem sua massa minhoca,3 esta topologia hipotética
tão concentrada que se transforma em um
simples ponto no espaço. Como a
do espaço-tempo, fora
densidade de um buraco-negro tende ao
infinito, sua concepção é uma
primeiramente tratado pelo
singularidade, ou seja, uma configuração matemático alemão Bernhard
na qual uma teoria cujas equações
predizem grandezas infinitas, indicando
3
haver algum erro ou fato ainda não No original, wormhole (“buraco feito por
assimilado. um verme”).

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Riemann, quando discorreu sobre a especular, ou seja, conecta dois
possibilidade de uma conexão entre espaços-tempos espelhados.
duas dimensões distintas, mas o Foucault coloca o espaço definido
termo foi efetivamente cunhado em pelo espelho como um dos
1957 pelo físico americano John exemplos de utopias e de
Archibald Wheeler:4 heterotopias:

Esta análise força a se considerar O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um


situações onde existe um fluxo resultante lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo
de linhas de força, aos quais os topólogos lá onde não estou, em um espaço irreal
chamariam de uma alça do espaço que se abre virtualmente atrás da
multiplamente conectado, e que os físicos superfície. Eu estou lá longe, lá onde não
talvez pudessem ser desculpados por estou, uma espécie de sombra que me dá
denominar mais vividamente de “buraco a mim mesmo minha própria visibilidade,
5
de minhoca”. (MISNER e WHEELER, que me permite me olhar lá onde estou
1957, p. 532) ausente: utopia do espelho. Mas é
também uma heterotopia, na medida em
O curioso termo deriva de que o espelho existe realmente e que tem,
no lugar que ocupo, uma espécie de efeito
retroativo: é a partir do espelho que eu
uma simples uma analogia: uma me descubro ausente no lugar em que
estou porque eu me vejo lá longe. A partir
minhoca ou um verme desse olhar que, de qualquer forma, se
dirige para mim, do fundo desse espaço
(considerado como um ser virtual que está do outro lado do espelho,
eu retorno a mim e começo a dirigir meus
perambulante num universo olhos para mim mesmo e a me constituir
ali onde estou. O espelho funciona como
bidimensional), se arrastando uma heterotopia no sentido em que ele
torna esse lugar que ocupo, no momento
em que me olho no espelho, ao mesmo
sobre a superfície de uma maçã, tempo, absolutamente real, em relação
com todo o espaço que o envolve, e
teria de percorrer uma extensão absolutamente irreal, já que ela é
obrigada, para ser percebida, a passar por
específica para alcançar o lado aquele ponto virtual que está lá longe.
(FOUCAULT, 2003, p. 415)
oposto da fruta. Se pudesse,
A formação de uma imagem
entretanto, visualizar a terceira
especular no palco, ou seja, o
dimensão (em analogia para nós,
espelhamento de uma realidade
as dimensões adicionais),
humana por processos de
chegaria, de forma mais rápida, ao
representação, depende da
mesmo ponto através de um
presença de espectadores em um
caminho aberto no miolo da fruta.
campo distinto. Neste sentido,
Um buraco de minhoca
proponho uma analogia entre a
proporciona, enfim, uma interface
conexão do buraco negro com o
4
O matemático alemão Hermann Weyl já buraco branco e a conexão entre o
o havia proposto em 1921.
palco teatral e a plateia: o buraco
5
This analysis forces one to consider
situations […] where there is a net flux of de minhoca inerente ao teatro
lines of force through what topologists
would call a handle of the multiply- ocidental seria determinado
connected space and what physicists
might perhaps be excused for more vividly exatamente pela ligação especular
terming a “wormhole”. (T. do A.)

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destes dois campos. A ribalta, a plateia é virtual. A ideia da quarta
boca de cena, o portal delimitador parede foi uma tentativa de
entre aqueles que estão sendo materialização desta interface e,
vistos e aqueles que estão vendo apesar de algumas experiências de
seriam instâncias deste substrato fechamento concreto da boca-de-
impalpável do espelhamento social cena por alguns tipos de materiais
sobre o qual projeta-se a imagem transparentes ou translúcidos, a
especular da representação teatral: característica típica do dispositivo
um espaço que é tanto real quanto teatral é esta comunicação entre os
irreal. Parafraseando o filósofo dois espaços, matérias e tempos,
francês, o buraco de minhoca sem que haja um elemento
teatral é uma heterotopia, pois concreto de separação.
torna o lugar do espectador A interface virtual que separa
absolutamente real (determinado a área do público da dos atores
por seu posicionamento espacial também parece permanecer
diante de uma encenação) e vigente e até mesmo reforçada,
simultaneamente irreal (por ser o em alguns casos, pelo emprego
espaço virtualmente aberto que cenográfico de tecnologias de
permite nossa própria visibilidade imagem virtual (não pictórica). O
através dos processos de espaço cênico condicionado pelas
representação inerentes à arte cenografias imagéticas promove
teatral). uma atualização contínua de seu
Não quero induzir uma caráter de interface e reforça seu
separação hierárquica entre os caráter liminar: afirma-se
espaços de palco e plateia. Apenas constantemente como espaço
constato que, entre dois universos intermediário, transicional,
distintos e interligados, estabelece- permitindo que diversas entidades
se uma interface, uma superfície se comuniquem numa interface
que forma o limite comum entre pluridimensional e tornando
duas partes de matéria ou espaço possíveis as trocas entre diversos
(GOEBEL, 2000, p.6). sistemas heterogêneos.
Transportando tal definição para o Denomino de cenografia de
espaço-tempo teatral, janelas imagéticas a introdução de
perceberemos que a superfície que imagens (fotocinematográficas,
delimita os espaços de palco e videográficas ou computacionais)

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como item de composição no por Roland Barthes, no ensaio A
espaço cenográfico. Tais janelas câmara clara, no qual este autor
transformam o espaço-tempo propôs uma dialética entre o
cênico ao incorporar à cenografia a caráter iconográfico (de
representação de outros tempos e semelhança com o objeto
espaços/lugares não fisicamente referente) e o caráter indicial
representados. As janelas (prova documental, tangível ou
imagéticas introduzem outros não, de que o evento registrado, de
códigos de signos, ou pelo menos fato, ocorreu) da fotografia. Sobre
uma alteração substancial no seu aspecto icônico, evidenciou que
código semiótico teatral,
uma determinada foto não se distingue
aprofundando o estímulo nunca do seu referente (daquilo que
representa), ou, pelo menos, não se
perceptivo e tornando a atividade distingue dele imediatamente ou para
toda a gente (o que sucede com qualquer
outra imagem, carregada à partida e por
de decodificação dos espectadores estatuto do modo como o objeto é
simulado); perceber o significante
ainda mais complexa. Elas fotográfico não é impossível (os
profissionais conseguem-no), mas requer
transformam certas características um segundo ato de saber ou de reflexão.
(BARTHES, 1989, p.18)
do sistema semiótico teatral
Entretanto, para Barthes, a
definidas por VELTRUSKÝ (2012, p.
indexação é uma característica
134), que afirma, por exemplo, fundamental da fotografia, pois o
que o sistema semiótico do teatro que ela “reproduz ao infinito só
nega a diferença entre os signos e aconteceu uma vez: ela repete
as realidades usadas como signos. mecanicamente o que nunca mais
Entretanto, encenações que se poderá repetir-se existencialmente”
valem de janelas imagéticas (BARTHES, 1989, p. 17), ou seja,
baseadas em imagens uma imagem fotográfica traz
videofotocinematográficas consigo seu caráter de prova, o
confrontam os espectadores com a
histórica e já consolidada relação recepção, fatores importantes inerentes à
captura da imagem, como a subjetividade
da fotografia com seu caráter e a expressão do autor. Um segundo
posicionamento, entretanto, pode ser
indicial.6 Esta relação fora definida classificado como sendo a fotografia um
processo de transformação do real: a
imagem não poderia representar o real
6
O primeiro posicionamento cultural empírico, pois não haveria realidade
perante a imagem fotográfica foi o de dissociada dos discursos que falam dela.
considerá-la um espelho do real: seu Um real interpretado e transformado,
caráter mimético, procedente de sua então, que cria uma espécie de realidade
natureza técnica, trazia ao espectador a interna transcendente. (GUEDES, 2011, p.
ilusão de um aspecto de naturalidade da 203)
imagem e eram excluídos, em sua

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registro ótico (através de aparelhos mídia fotográfica pode ser inserida
mecânicos e processos químicos) eficaz e criticamente em uma
de que o fato retratado realmente cenografia contemporânea,
ocorreu. Sua imagem é a demonstrando a relação
comprovação de um “estive aqui”, fundamental entre teatro,
o traço de uma minúscula fração dramaturgia e tecnologia,
de tempo em que foram enfatizando o caráter de sua
registrados os reflexos luminosos cenografia como uma interface para
de corpos em um espaço-tempo uma comunicação pluridimensional,
específico. O substrato e confrontando o caráter indicial e
fotossensível torna-se um meio iconográfico de uma imagem
quase invisível, perante sua fotográfica para produzir fortes
capacidade icônica e, aspectos semânticos em seu
principalmente, sua função de público, através do uso cenográfico.
registro e prova:7 “uma foto é Escrita por Branden-Jacobs
sempre invisível: não é ela que Jenkins, a peça é baseada no
vemos.” (BARTHES, 1989, p. 20) clássico melodrama de Dion
O espetáculo teatral An Boucicault The octoroon (1859),
octoroon, que esteve em cartaz em considerada a segunda ficção
8
Nova Iorque, no Soho Rep. entre sobre escravidão mais
abril e junho de 2014 e, no começo proeminente nos Estados Unidos.9
de 2015, no Theatre for a New As peças de Boucicault ancoraram
Audience, no Brooklyn, foi um frequentemente suas soluções
interessante exemplo de como a dramáticas em modernas
tecnologias industriais; The
7
Sabemos, no entanto, que alguns octoroon foi provavelmente a
tradicionais usos da fotografia, ao
promover a decodificação da experiência primeira peça teatral na qual a
sensorial humana, fogem à concepção
indicial definida por Barthes. O registro do fotografia teve um papel decisivo
movimento de cavalos feito por Eadweard
Muybridge entre 1878 e 1879 deve ser para o desfecho da estória. Uma
entendido como a desagregação do campo
perceptivo e a afirmação de uma câmera registrara, por acaso, o
instantaneidade da visão na qual o espaço
foi apagado. (CRARY, 2013, p. 151-153) momento exato de um
Outros exemplos clássicos, da mesma
época, são o registro da trajetória de uma assassinato, revelando o
bala (em velocidades mais altas que a da
propagação do som) feito por Ernst Mach e verdadeiro criminoso e, portanto,
a análise fotográfica do movimento
promovida por Etienne-Jules Marey. inocentando aquele que era tido
8
Quando foi aclamado pela crítica e
premiado com o Obie Award de melhor 9
Logo após Uncle Tom’s Cabin (de Harriet
espetáculo teatral norte-americano do Beecher Stowe, 1852).
ano.

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como culpado. Utilizar tal solução
em 2014 não seria, no entanto,
condizente com o aspecto crítico
da montagem; adaptando-se à
realidade contemporânea, a
produção expôs aos espectadores
como seria problemático utilizar
este deus ex machina em uma
época na qual uma fotografia
Figura 2 - O linchamento de dois jovens negros,
jamais poderia ser plenamente Marion, Indiana (EUA), 1930. Foto de Lawrence
considerada como o indício Beitler.

inconteste de um fato concreto. A imagem, que em nada se


Assim, no momento de solução do relacionava com o contexto da
misterioso assassinato, fomos narrativa original, extrapolou o
forçados ao contato silencioso e discurso dramático em um
demorado (um minuto? dois?) com processo metalinguístico que tanto
uma famosa imagem do abordou questões socioculturais
enforcamento de dois homens
seculares sobre o racismo quanto
negros ilegitimamente acusados
colocou em questão o caráter
de estupro.10 Esta foi a única vez
indicial da fotografia, mesmo
que uma fotografia foi exibida na
atualmente. Discretas alterações
cenografia (criada por Mimi Lien)
digitais (feitas pelo designer Jeff
da montagem que, em geral,
Sugg) criavam um leve movimento
possuía uma abordagem plástica
pendular nos corpos
minimalista e simbólica.
dependurados. Foram exatamente
tais alterações que ampliaram a
discussão sobre a fotografia como
um registro e uma prova da
10
Trata-se do registro feito por Lawrence realidade. Apesar de estarmos em
Beitler, em agosto de 1930 na cidade de
Marion (Indiana), do linchamento de um momento no qual o deus ex
Thomas Shipp e Abram Smith, dois jovens
acusados por um adolescente branco de machina ótico-mecânico seria uma
terem estuprado sua namorada. Diversas
outras imagens similares, algumas até solução dramatúrgica ingênua,
mesmo impressas em cartões postais,
eram difundidas como forma de ninguém da plateia poderia cogitar
propaganda do orgulho cívico da
supremacia branca norte-americana, o em descontextualizar aquela
que ainda hoje representa uma ferida
aberta para aquela sociedade. imagem de um fato real. Além

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disso, paradoxalmente, a alteração mais simbólica (seguindo o padrão
digital realçou o efeito de real da produção na maior parte do
fotográfico: tal como no evento ao espetáculo), resultaria na perda de
vivo, os corpos balançavam interesse do espectador. A janela
novamente. A imagem tornou-se imagética conduziu-nos a uma

ainda mais traumática, pois viagem sem retorno. Chegamos ao

inseriu, através do movimento, o real, e nele ficamos, até o final do

tempo passado no tempo espetáculo.

presente. Éramos ali novas As janelas imagéticas tornam


evidentes os múltiplos atos de
testemunhas das atrocidades
representação, ao criar espaços
promovidas pelo preconceito racial
heterogêneos: não mais uma
que, como bem sabemos, ainda
“janela para o mundo”, mas um
hoje acontecem. Através desta
mundo pleno de janelas abertas
janela imagética, o público foi
para outros universos possíveis,
deslocado para outra dimensão
uma variedade de buracos de
que, apesar de virtual, era mais
minhoca para dimensões diversas e
real que a própria realidade do
distintas. Neste ambiente
evento cênico. Um grande
cenográfico, o espaço cênico torna-
momento de irrupção do real.
se ainda mais fundamental para a
A cena final da peça, logo
homogeneização do espaço de
após à exibição da fotografia, foi a
representação, pois é nele que as
única na qual os cenários foram
imagens são relacionadas,
concebidos realisticamente,
estabelecendo conexões semânticas
oferecendo ao público a fachada de
de espaços-tempos plurais sob o
um casebre em meio a uma
olhar do espectador. As janelas
plantação de algodão. Esta cena,
imagéticas não apenas rompem
em que duas escravas libertas
com o ponto de vista tradicional,
conversam sobre os acontecimentos
como também o multiplicam. O
finais da trama, aconteceu na alta
modelo binário de organização
do palco, sob penumbra, exigindo
espacial do teatro pode, assim, ser
do espectador uma concentração
rapidamente transformado em um
ainda maior, o que tornou o
modelo hexadecimal, multiplicando
realismo cenográfico ainda mais
exponencialmente as dimensões
potente. Depois da imagem exibida,
espaço-temporais e recriando
qualquer abordagem cenográfica
possibilidades de viagens virtuais e

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mentais dos espectadores, segundo desdobramentos dimensionais. É a
suas próprias vontades e olhares isto que denomino cenografia de
seletivos. buracos de minhoca: à inserção de
Tomei emprestado da física passagens virtuais que ativam a
alguns termos por entender que percepção dos espectadores para
estes podem ser extremamente outras dimensões além daquela(s)
úteis para a discussão espaço- definida(s) pela própria encenação.
temporal da cenografia. Ela nos Em geral, esta sensibilização
lembra que o atravessamento de perceptiva é visual; no entanto, não
um buraco de minhoca é é difícil pensar em propostas
teoricamente possível, embora cenográficas que conduzem a
extremamente perigoso: outros espaços-tempos, através da
cosmologicamente, podemos ser sensibilização auditiva, olfativa e
esfacelados pela potência tátil – e, por que não, pelo nosso
energética do horizonte de paladar. A sonorização, por
eventos e, metaforicamente, exemplo, pode conduzir os
podemos “esfacelar” no teatro espectadores a outras dimensões,
nossa ilusão ou nosso como o famoso som de jazz
encadeamento narrativo. Seja sugerido por Tennessee Williams em
rompendo temporalmente a cena, Um bonde chamado Desejo:
a partir da saída brusca do ator
Uma atmosfera correspondente é evocada
em contato com a plateia, seja pela música de artistas negros que
frequentam um bar perto da esquina.
tornando o espectador um Nessa parte de Nova Orleans, na
realidade, sempre se está próximo de uma
convidado ou um intruso no esquina e sempre se ouve, algumas portas
mais abaixo, na rua, o som de estanho de
um piano que está sendo tocado com a
espaço-tempo cênico, o teatro, apaixonada fluência de dedos escuros.
Esse piano tocando blues expressa o
este buraco de minhoca por espírito da vida que se leva nesse lugar.
(WILLIAMS, 1980, p. 28)
natureza, tem de assumir as
Da mesma forma, a aplicação
consequências decorrentes de tais
de determinados odores a uma
viagens através do espaço-tempo.
cena pode nos conduzir
A cenografia é o componente
virtualmente a outros espaços não
imediato da viagem espaço-
referenciados na cenografia do
temporal no teatro. É ela que
espetáculo. Meu foco, entretanto, é
agencia os buracos de minhoca,
nos desdobramentos dimensionais
“abrindo” com seus elementos
proporcionados pela sensibilização
(físicos ou virtuais) passagens
visual em cenografias com
sensíveis, promovendo, assim,

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http://www.unirio.br/espacoteatral/arquivos/evento-extensao/AnaisVjornadaNacionaldeArquiteturaTeatroeCultura.pdf
inserções midiáticas v. III, 2003. [p. 411-422] ISBN:
9788530964184.
(especificamente as das mídias
imagéticas fotocinematográficas). GOEBEL, Johannes. The art of
interacting: senses and the discipline
A ciência moderna possibilitou of playing interfaces. Lima: Instituto
uma cosmologia simbólica em que Goethe, 2000.

as dimensões espaciais foram GUEDES, Ângelo Dimitre Gomes.


“Reflexões sobre o estímulo da
multiplicadas. As novas tecnologias fotografia na ruptura do modelo de
de comunicação e transporte representação do exterior pós-arte
moderna”. Revista Eletrônica Trama
comprimiram o espaço sensível, e a Interdisciplinar, São Paulo, N. 1,
velocidade de deslocamento da 2011. [p. 201-210]
http://www3.mackenzie.br/editora/in
informação no espaço dex.php/tint
multidimensional não respeita mais
MISNER, Charles W.; WHEELER, John
nenhuma lei física. Mesmo que A. "Classical Phisics as Geometry:
gravitation, electromagnetism,
virtual ou teoricamente, unquantized charge, and mass as
multiplicamos as dimensões properties of curved empty space".
Annals of Physics, v. 2, n. 6, p. 525-
espaciais, mas ainda não há ciência 603, December 1957. ISSN: 0003-
ou tecnologia que nos faça ter 4916.

controle sobre o tempo. Exceto na VELTRUSKÝ, Jiří. An approach to the


semiotics of theatre. Trad. Jarmila F.
arte.
Veltruský. Prague: Department of
Theatre Studies, Faculty of Arts,
Masaryk University / Prague Linguistic
Referências bibliográficas: Circle, 2012. ISBN: 978-80-210-
5909-2.
BARTHES, Roland. A câmara clara
[1980]. Trad. Manuela Torres. Lisboa: WILLIAMS, Tennessee. “Um bonde
Edições 70, 1989. chamado Desejo”. In: WILLIAMS,
Tennessee; MILLER, Arthur. Um
CRARY, Jonathan. Suspensões da
bonde chamado Desejo / A morte do
percepção: atenção, espetáculo e
caixeiro-viajante. Trad. Brutus
cultura moderna. Trad. Tina
Pedreira. São Paulo: Abril Cultural,
Montenegro. São Paulo: Cosac Naify,
1980.
2013. ISBN: 978-85-405-0453-0.

EINSTEIN, Albert; ROSEN, Nathan.


“The particle problem in the General
Theory of Relativity”. Physical Review,
v. 48, p. 73-77, 1 July 1935. DOI:
10.1103/PhysRev.48.73.
http://link.aps.org/doi/10.1103/PhysR
ev.48.73

FOUCAULT, Michel. “Outros espaços”


[1967]. In: Ditos e escritos - Estética:
literatura e pintura, música e cinema.
Rio de Janeiro: Forense Universitária,

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A cidade que cabe no palco e populacionais. Como apontou a


vice-versa professora e pesquisadora Evelyn F.

Francisco José Cabral Leocádio1 W. Lima, na introdução do primeiro


capítulo do livro Arquitetura, teatro
O teatro desde séculos atrás
e cultura (LIMA, 2012), organizado
possui uma íntima relação com a
por ela, nem todo o testemunho da
cidade, não apenas na presença
história urbana fica gravado na
física de seu edifício de uso
paisagem preservada ou na
exclusivo inserido no tecido urbano,
preservação de seus imóveis (LIMA,
mas também como representação
2012, p. 15). Durante gerações as
no palco, como cenografia de ação
camadas de vidas de seus
cênica e até como dramaturgia. A
habitantes vão se impregnando às
cidade, por ser uma estrutura viva,
pavimentações que por vezes foram
nunca ficará inerte quando o teatro
sobrepostas, e posteriormente
busca o ambiente urbano como
descobertas. A metrópole
espaço cênico (CARREIRA,2012,
contemporânea vive cada vez mais
p.192). Mas precisamos considerar
sua rotina complicada com a
que como estrutura viva, a cidade é
sobreposição de repertórios de uso
um organismo complexo, são várias
(CARREIRA, 2009, p.01). Pelo que
cidades numa cidade. Ao se deparar
relata a Professora Evelyn Lima,
diante da paisagem urbana
“desde as últimas décadas do
contemporânea de muitas cidades,
século XX, a valorização do passado
é possível afirmar que estas podem
das cidades tem sido uma
esconder extratos de vida que
característica comum às
foram encobertas por narrativas e
sociedades.” (LIMA,2012, p.15).
significados do cotidiano. São
Este interesse parece refletir a nova
extratos físicos mas também
relação entre os cidadãos e certas
sociais, que se acumulam sem
temporalidades do espaço em que
muita consciência da população que
habitam, é o despertar da memória
nasce, cresce e morre como
coletiva (LIMA, 2012, p. 16).
habitantes desses adensamentos
Mas há possibilidades de
1
Doutorando em Artes Cênicas.
Universidade Federal do Estado do Rio de
aberturas de janelas no espaço e
Janeiro (bolsista CNPq) no tempo da rotina dos cidadãos.

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São janelas para a percepção de status de cosmopolitismo segundo
extratos esquecidos pela densa padrões europeus. A política de
camada de múltiplas histórias saneamento, ordenamento urbano
simultâneas que a cidade e embelezamento do prefeito
contemporânea normalmente tem Pereira Passos foi inspirada na obra
como exigência para seu de Georges-Eugène Haussmann em
funcionamento. A pesquisa em Paris, anos antes. A abertura da
instituições de memória, com a Avenida Central e a construção do
análise de mapas, de periódicos e Theatro Municipal do Rio de Janeiro
de crônicas do passado, ajuda a são resultados dessa inspiração
registrar a memória, fato que nem francesa (NEEDEL, 1993, p.12-13).
sempre o testemunho material da Pode-se considerar que esta
arquitetura e do tecido urbano reforma foi parcialmente bem
remanescente podem fazê-lo por sucedida, já que o dito progresso
completo (LIMA, 2012, p.17). A “ilumina apenas uma parte da
ação cênica ocorrida na rua, cidade, deixando o resto
apresenta a possibilidade de acesso mergulhado na escuridão.”
a uma dessas janelas para outras (VELLOSO, 1988, p.34)
camadas esquecidas da cidade.
A intervenção acontece não
Esta ação cênica pode ter a cidade
sem resistência, e desta tensão o
como cenário, mas também como
Rio talha sua identidade própria de
protagonista e tema principal. Esta
cidade do século XX. A literatura e
testemunha das passagens do
seus autores, como Lima Barreto e
tempo pode ser uma contadora de
João do Rio presenciam esta
histórias. A cidade guarda em si
mudança e assim atestam em seus
sua identidade, ou melhor, suas
escritos o início da nova capital
múltiplas identidades.
republicana, um recorte desta urbe
O Rio de Janeiro como centenária. São vozes também
metrópole também possui suas preocupadas com as raízes culturais
histórias guardadas no relevo de da cidade (VELLOSO, 1988, p. 10).
sua paisagem construída. A então
Como um registro de
capital federal em início do século
testemunho de suas histórias, a
XX, foi repensada para atingir o

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literatura dramatúrgica também ao espectador uma viagem que o
procura de tempos em tempos levará por algum tempo a um
recriar a cidade e seus habitantes, e outro lugar bem distante do
às vezes colocando na mão das espaço cênico. Esta afirmação é
cidades um dos papeis que pertinente, sem muitas ressalvas,
protagonizam as ações. Na quando o edifício teatral encerra
dramaturgia paulista recente a seus limites de modo bem
cidade tem sido tema recorrente, delimitado. Configuração espacial
especialmente o submundo de esta que se consolida no
marginalizados envolvidos em Renascimento, o edifício teatral
tragédias de rua da metrópole enclausura espectadores e atores
(FERNANDES, 2010, p.80). Da para um acordo tácito de ilusão
dramaturgia para as práticas temporária, secreto para quem
cênicas, podem-se citar os grupos está de fora desta comunhão. É no
Teatro de Vertigem, o Teatro período do Renascimento que a
Oficina e o Núcleo Bartolomeu de caixa cênica começa a ser
Depoimentos como exemplos esboçada, na transição das
emblemáticos na capital paulistana. estruturas efêmeras dos aparelhos
Em Goiânia, os experimentos do teatrais para os permanentes,
grupo Teatro que Roda, em “inaugurando o modelo de teatro
conjunto com o professor e diretor moderno” (CERRI, 2012, p. 5).
teatral André Carreira. No Rio de Mas o teatro praticado na rua
Janeiro, vale mencionar a Grande continua e pode se aventurar com
Companhia de Brasileira de o espectador em outra viagem
Mystérios e Novidades e o Grupo Tá com escalas no mundo real da
na Rua, ainda em atividade. Nesses cidade com seu tempo do agora, e
grupos dentre outros, a cidade se com acordos em que o
mantém operando como um atravessamento do cotidiano
significante fundamental do citadino é inevitável. Incluindo os
acontecimento cênico. É verdade elementos surpresa do cotidiano
que é uma relação nem sempre das ruas, promovendo quebra de
amistosa (CARREIRA, 2009, p. 01). expectativas tanto para
público/transeunte como para os
O teatro tem sua capacidade
atores (CARREIRA, 2012, p.192).
de, em um acordo tácito, oferecer
Gerando um espetáculo em que

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todos são obrigados a dialogar efêmero tinha função de “adaptar-
com o acaso e a imprevisibilidade. se aos espaços existentes no
interior de palácios privados.”
Fazendo um caminho mais
(CERRI, 2012, p. 5)
retrocedente, chegamos aos
postulados do arquiteto bolonhês De igual modo, o projeto do
Sebastiano Serlio, em que as teatro Olímpico de Vicenza,
estruturas efêmeras teatrais projetado por Palladio e Scamozzi,
herdadas do medievo são em Vicenza coloca o espetador
apropriadas. Na representação dos como se estivesse no “interior da
dispositivos cênicos postulados por sala palaciana” “avistando a cidade
Serlio, nota-se um resgate da ao fundo.” Em um edificio
comédia e da tragédia de espírito permanente, o palco deste teatro
clássico, com cenografia análoga possui uma cenografia de
para ambos os casos: “casarios, praticamente igual desenho aos
templos, arcos e palácios propostos por Serlio, acrescidos de
representando a cidade.” ( CERRI, janelas laterais e pórticos,
2012, p. 5). Deste modo o combinado com um arco triunfal
espectador, em uma plateia de central (CERRI, 2012, p. 6). Fica
uma estrutura efêmera semi- evidente que a cenografia, inspirada
circular, numa planta tal qual os pelas práticas da antiguidade, traz a
teatros da antiguidade, terá uma cidade para o palco da dos
visão dirferente. Ele passará a ter primóridios da caixa cênica
uma visão do interior do palácio encerrada em um edifício teatral.
privado, onde estas estruturas
Neste caminho onde a caixa
costumavam ser assentadas, com
mágica procura aprisionar um
“toda a representação da cidade ao
frame da cidade, nota-se a
fundo” (CERRI, 2012, p.5). Esta
possibilidade de se amplificar a
configuração realizada em
percepção do espectador para
estruturas efêmeras será
aquele trecho do tecido urbano. De
prontamente emulada “em espaços
certa maneira, é um recorte que a
de arquitetura permanentes,
boca de cena promove de modo
inaugurando o modelo de teatro
semelhante, séculos mais tarde, ao
moderno.” Tal modelo de teatro

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 241 de 272
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da ação do registro fotográfico e “...qualquer objeto no
teatro pode ser
aos primórdios da arte ‘emprestado’ do mundo
cinematográfica. Relembrando que ‘real’ fora do teatro.
Claramente, dentre
no mesmo período renascentista, o esses objetos, o ator
tradicionalmente detém
tecido urbano começa a buscar na não só o lugar mais
perspectiva monofocal as proeminente, mas
também aquele em que
experiências de valorização de a negociação entre o
mundo externo real e o
monumentos e edificações-chave mundo fictício do teatro
na cidade, indicando uma hierarquia é mais evidente.
(CARLSON, 2016, p.06).
visual que a desordem da cidade
Numa relação mais direta
medieval não apresentava. A boca
entre teatro, ou melhor, o espaço
de cena é o recorte de lugar e
cênico e o cotidiano da cidade, a
tempo em sua função de delimitar o
negociação pode requerer um
limite do espaço irreal do espaço
acordo mais tenso e até mais
cênico do espaço real do público.
frágil. Ao se dispensar os
Embora, o palco italiano, em suas
dispositivos que asseguram esse
delimitações espaciais rígidas e
isolamento, o atravessamento da
suas funções onde se incluem os
rotina citadina deve ser
sistemas de caixa cênica e boca de
considerado como mais um
cena, já foi desafiado em diversos componente do acontecimento
momentos das artes cênicas, em teatral. Vale lembrar que a caixa
especial nos anos de 1960 na cênica inventada no
Europa e Estados Unidos. Renascimento, de algum modo
ajudou a isolar a ação do teatro do
Mas esta separação imposta
mundo real exterior. Muito embora
pela boca de cena não impede que
no início a cenografia que se
objetos do mundo real não sejam
apresentava em seus palcos
incorporados à ação. Segundo,
buscava a representação fiel da
Marvin Carlson, Professor de
cidade em perspectiva, como já foi
Teatro nos Estados Unidos2:
citado anteriormente.3 Em seus

2
Marvin Carlson é Professor de Teatro e
3
Literatura Comparada no Centro de Importante salientar que na Renascença,
Graduação da Universidade da Cidade de muitas cidades europeias ainda recebiam
Nova Iorque (CUNY) apresentações teatrais nas praças, e

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relatos de suas experimentação representação em perspectiva pode
com o grupo Teatro que Roda em até ser tomada analogicamente
Goiânia, André Carreira, descreve como uma representação fiel do
que este “empréstimo”, conforme pensamento do traçado urbano das
termo usado por Carlson na cidades do Renascimento. Traçado
citação acima, não ocorre sem que buscava como propósito novas
muita tensão, é um jogo entre a relações com o espaço público, de
realidade cotidiana e as imagens modo a enfatizar pontos de vista,
teatrais, em que o transeunte, direcionar o olhar do transeunte. A
transformado em público pode
intenção projetual em se abrir
interferir, se transformando-o em
bulevares largos e retos4 que
coautor (CARREIRA, 2012, p.193).
enquadravam a visada da
Entende-se que no caso do teatro
perspectiva cônica monofocal,
de ocupação, termo citado por
encontrava similaridades na
Carreira para estas suas
representação da cenografia nas
produções (CARREIRA, 2012,
caixas cênicas que eram criadas no
p.192), a boca de cena e a
mesmo período. Entretanto não
consequente apreciação frontal é
possamos omitir a presença de
inexistente. Neste caso, é possível
uma outra tipologia de edifício
fazer uma comparação com o
teatral que acontece no mesmo
teatro de Shakespeare praticado
período em Londres, em que a
em palco elisabetano, um
anfiteatro com teto aberto para o natureza cilíndrica do edifício

céu, proporcionado à plateia teatral confere outras impressões

múltiplos pontos de vista. Um quanto a apreciação cênica. Esta

teatro cujos efeitos cênicos eram tipologia também abrigava uma

obtidos por sugestão, deixando dramaturgia de grande vigor


“possibilidades de interpretação ao (LIMA, 2012, p. 72) e a
público.” (LIMA, 2012, p. 71). dramaturgia de Shakespeare

No palco italiano, em suas


4
Podemos mencionar o relato da proposta
primeiras manifestações teatrais do arquiteto Christopher Wren para o
novo traçado do antigo distrito da City, de
num edifício enclausurado, a Londres, que consta no capítulo do livro
de Lima em que trata dos edifícios teatrais
do distrito londrino de Southpark, após a
outros espaços urbanos e também pátios cidade ter sido devastada por um incêndio
de palácios. (LIMA, 2012, p.67) em 1666 (LIMA, 201, p.30).

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encenada nesses palcos é um seus templos e ganham as ruas,
exemplo de sua inegável sob a forma de Mistérios. A cidade
relevância. Também conhecida medieval passa ser o lugar de
como palco elisabetano, esta encontro entre palco e plateia,
tipologia é de ocorrência no mesmo quando este não participava da
período de consolidação da caixa própria encenação. Os Mistérios
cênica italiana, de apreciação Medievais eram estruturas
unicamente frontal. O anfiteatro dramáticas que visavam difundir a
elisabetano é embasado no liturgia católica (KOSOVSKI, 1992,
princípio esférico, que se inspira no p.27). O espetáculo dos Mistérios
teatro greco-romano e vai ser tinha uma duração e uma
empregado, séculos mais tarde, ocupação nos epaços internos e
nas propostas de Walter Gropius e externos da cidade de tal forma
Jacques Polieri, como forma de que o espaço cotidiano e seus
trazer o ator para perto do público habitantes estavam imersos no
(LIMA, 2012, p.71-72). Seria um imenso espaço teatral em que a
outro modo de aumentar a tensão cidade se transformava
entre o real e o imaginário. (KOSOVSKI, 1992, p.27).
Diferentemente de como ocorre no
Quando se resgata esta
palco italiano, no qual a disposição
prática teatral na rua, em tempos
da plateia em relação ao palco
contemporâneos, o que acontece é
induz a um ponto de fuga central
a revelação de uma cidade
apenas, e pretende fazer o
fragmentada e descontinuada, que
espectador ser levado a um outro
se sobrepõe e que se justapõe em
mundo que não o da realidade.
seus diversos tempos. Uma
Ao pensarmos na relação do imagem que leva a um dos
teatro com a cidade podemos princípios do diretor teatral
também citar o período medieval Eisenstein, o princípio da
europeu, quando o edifício de uso montagem, escrito em seu
exclusivo para o teatro desaparece manifesto de 1923. Eisenstein
e as próprias manifestações queria um espetáculo... [entre os
teatrais do período vinculadas à desejos de descontinuidade] que
Igreja Católica transbordam dos retire a palavra do centro e nivele

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o texto com outras linguagens ...” Outro princípio que pode
[...] a palavra se põe como se encaixar nesta linha de
estímulo de mesmo valor que pensamento é alinhar as
outros originados na cenografia, intervenções teatrais
nos objetos, na gestualidade dos contemporâneas na rua ao
atores e ginastas, nos sons e nas conceito de site specific, dado seu
luzes, [...´] (XAVIER, 1994: caráter relacional com o espaço
P.360). Aliás, este é um dos existente e de propriedade
princípios centrais da estética da efêmera. A transitoriedade e a
modernidade que se desenvolve mobilidade tem sido consideradas
na literatura, nas artes plásticas e como definições atualizadas de
no teatro, em início do século XX e trabalhos artísticos alinhados com
somente depois se desdobrando o termo, segundo discorre Miwon
em uma teoria do cinema Kwon em seu livro One place after
(XAVIER, 1994, p. 360). O filósofo another: site- specific art and
Michel Foucault é outro que locational identity (KWON, 2004,
menciona esse desejo de p.04). O termo site-specific foi
descontinuidade, mas de outra cunhado pela primeira vez para
forma. Para o filósofo, o tempo práticas ocorridas em fins dos
seria o senhor do século XIX, do anos 1960 e início dos anos 1970.
historicismo, do dualismo, Práticas que incorporavam as
cientificismo com excesso de condições físicas de uma locação
objetividade e um tempo linear, para a produção, apresentação e
sem distinções e alterações. Já o recepção de arte (KWON, 2004,
século XX seria a época do espaço, p.01).
do simultâneo, da justaposição, do Talvez, a ação teatral ocorrida
disperso. “Estamos em um nas ruas, sem a ocorrência de um
momento em que o mundo se delimitador físico como ocorre no
experimenta, como uma grande palco italiano, aguce a tensão entre
rede interligando pontos, que lado o real e o ficcional da ação cênica. A
a lado entrecruza sua trama” materialidade do corpo do ator, a
(FOUCAULT, 1994, p. 411). presença de ruídos e sons da cidade
não podem mais ser ignorados

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como acontece num edifício teatral primeiro não dispensará suas
encerrado num espaço que priva o memórias para receber as da ação
espectador dos acontecimentos da efêmera do teatro, o que
rua. O recorte que a boca de cena poderemos entender, pelo
proporciona é inexistente, deixando pensamento de Foucault como o
frágil qualquer dispositivo ilusionista terceiro princípio da heterotopia,
oferecido ao público como auxiliar como já citado acima, o da
na narrativa da cena. Encenadores, sobreposição (FOUCAULT, 2009:
cenógrafos e atores, deverão levar p.418).
em conta este dado. A partir do A anexação do real é uma
início da apresentação, o risco do característica do teatro
fluxo desordenado da cidade é contemporâneo, através da prática
iminente. Sem contar com a própria da pós-produção, enunciada pelo
instabilidade do público, que a crítico de arte francês Nicolas
qualquer momento pode decidir Borriaud. Esta aproximação com o
voltar a ser transeunte e seguir seu real não necessariamente descarta
curso no seu roteiro pessoal. Esta o caráter dramático com seu
instabilidade evoca o pensamento universo mágico da ação cênica.
foucaultiano de heteretopia. Um processo de composição
Foucault afirma ter a heterotopia o artística que se assemelha à
poder de sobrepor em um só lugar explicação de Borriaud sobre
real vários espaços, diversos processo criativo de Marcel
posicionamentos que são Duchamp, quando ressalta a
incompatíveis, e estarem escolha deste por objetos
relacionadas a recortes no tempo manufaturados (porta-garrafas,
(FOUCAULT, 2009, p.418). Elas urinol,...) para assegurar a
possuem o papel de criar um operação artística atribuindo-lhes
espaço de ilusão que denuncia uma nova ideia, inserindo os
como mais ilusório ainda do objetos em um novo enredo
qualquer outro espaço real (BORRIAUD, 2009, p. 22). O
(FOUCAULT, 2009, p.420). Mesmo crítico informa que usar um objeto
com o espaço real invadido pelo é interpretá-lo e às vezes trair seu
espaço inventado do teatro, o conceito, sendo a apropriação a

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primeira fase da pós-produção, e representação onde a encenação
que ao escolher um objeto ao escolheu se instalar”. O espaço
invés de fabricá-lo é possível cênico: lugar no qual evoluem os
utilizá-lo ou modificá-lo segundo atores e o pessoal técnico: área de
uma intenção específica. representação e seus

(BORRIAUD, 2009, p.21-22). prolongamentos para a coxia, a

Ainda sobre a anexação do plateia e todo o prédio teatral. O

real no teatro, podemos citar a espaço liminar é o que marca a


professora e pesquisadora do separação (mais ou menos nítida
Departamento de Artes Cênicas da mas sempre inalienável) entre o
ECA-USP, Silvia Fernandes. A palco e plateia, ou entre o palco e a
Professora considera a própria coxia. (PAVIS, 2010, p.142)
escolha de espaços públicos para O que acontece quando a
apresentações com um mecanismo cidade é tomada como espaço
de intervenção direta no real, cênico é que a objetivação do
como um procedimento espaço concreto pode ser tomada
performativo híbrido que é como parte do espaço imaginado da
característica do novo teatro ação teatral. Numa oscilação em que
(FERNANDES, 2010, p. XII). Todos o espectador pode se confundir e
esses limites borrados entre o real não mais discernir o que é concreto
e o ficcional de certa forma e o que é imaginado, principalmente
sempre existiram no teatro,
quando o atravessamento do real na
variando em maior ou menor
ação cênica for intensa como ocorre
rigidez de acordo com a época,
em muito dos espetáculos
mas a reconsideração do que pode
contemporâneos. Ocorrências até
ser tomado como lugar teatral
amplificadas quando espetáculos se
parece intensificar o hibridismo
configuram em espaço limiar pouco
que o espaço ganha.
nítidos e o espaço do público se
Faz-se necessário destacarmos
mistura ao espaço da ação. Ao
algumas definições de elementos
tratarmos da incorporação da cidade
que constituem o espaço teatral. O
como cenografia da ação iremos de
teórico estudioso do teatro Patrice
encontro com algumas questões.
Pavis, “O lugar teatral é o prédio e
Uma é que a cenografia segundo o
sua arquitetura” [...]” mas também
pesquisador Arnold Aronson é uma
o local não previsto para uma
arte tridimensional, mesmo quando,

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 247 de 272
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na Renascença fosse pensado para teatro e professor, baseado em
apenas um ponto de vista, de um Florianópolis, André Carreira afirma
espectador imóvel (ARONSON, que sendo o espaço da rua
2005, p.98). Assim a cidade, mesmo característico por justaposição de
como um recorte de uma cena, será usos, então quando o teatro exerce

tomada por sua riqueza volumétrica. sua operação poética seria

Outro aspecto envolve o caráter impossível tomar a cidade apenas

representacional do teatro que se como cenografia, “porque aquilo

difere do da pintura porque usa o que poderia ficar atrás da cena


como elemento cenográfico sempre
objeto significado como
ocupará interstícios da dramaturgia
significantes. Em outras palavras,
porque é um dispositivo vivo por
no palco, uma mesa é representada
onde circulam pessoas em seu
por uma mesa; uma pessoa é
cotidiano” (CARREIRA, 2009, p.04)
representada por uma pessoa. E o
Assim, entender o
espaço de uma cômodo é
acontecimento teatral na cidade é
representado pelo espaço do palco.
despertar outras camadas de
(ARONSON, 2005, p.98). Assim, a
cidade, em sua riqueza, suas
cidade pode ser tomada também
efemeridades e transitoriedades. O
como cidade, mas abrindo
acontecimento teatral pode ser
possibilidades para que seja lida
tomado como uma abertura de
como outra cidade, de outro tempo janela para outras camadas da
e espaço, ainda que fazendo o seu cidade. Abrir janelas, como citadas
próprio papel na ação. no início deste artigo, significa
O papel da cidade numa evidenciar alguns aspectos por
manifestação pode ser não tão algum tempo, mas jamais
coadjuvante, ou secundário, por ser interromperão o fluxo contínuo de
entendido que o teatro produção de sentidos de uma
contemporâneo desconsidera cidade. Os aspectos a serem
hierarquias previamente evidenciados na abertura dessas
determinadas como acontecia até o janelas na cidade passam pelo
período do teatro moderno. O desejo despertar a ressensibilização
“textocentrismo” não é mais uma da cidade. Reforça-se assim o elo
regra onipresente nas montagens estreito entre cidade e teatro que
modernas e contemporâneas (DE existe desde tempos passados.
MARINIS, 1998, p.02). O diretor de

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Estética: Literatura e Pintura, Música e
Cinema. Forense: 2ª edição, 2009.1ª
edição Gallimard, 1994 (Conferência no

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Ateliê Morphosis: expografia visão do espaço urbano que


e cenografia estudos sobre o caracteriza seus projetos de
tempo e o cubo arquitetura.” (BREJZEK, 2017: 66,

Niuxa Drago1
tradução nossa) Para a autora, o
trabalho destes arquitetos no
A pesquisa “Cenografia como palco se caracteriza por grandes
Campo de Experimentação dispositivos experimentais.
Arquitetônico”, desenvolvida junto Embora questões urbanas estejam
ao Departamento de História e sim presentes nestes espetáculos,
Teoria da Faculdade de Arquitetura em sua maior parte transmutadas
e Urbanismo da UFRJ, dedica-se à em imagens e “movimento”, a
análise das obras de grandes autora está certa ao afirmar que a
arquitetos que experimentaram o criação de dispositivos únicos, que
exercício da criação de dispositivos englobam toda a cena e
cenográficos. Estes arquitetos permanecem, transformando-se,
estão, em geral, interessados na durante todo o espetáculo, parece
interação dos corpos com o ser uma característica comum.
espaço, e em como o movimento Thom Mayne é o principal
dos corpos e a luz cênica podem arquiteto fundador do ateliê
transformar a percepção ou californiano Morphosis, criado em
construção do espaço que 1972, que se autodefine, em seu
permeiam. O palco é, para eles, website, como “uma prática
uma “caixa de experiências” que dinâmica e em evolução que
permite ensaiar formas ou efeitos responde à mudança e ao avanço
que, na realidade arquitetônica, das condições sociais, culturais,
permanecem obnubilados pelas políticas e tecnológicas da vida
exigências estruturais e, moderna”.2 Ao definir o ateliê
principalmente, do contexto como uma “prática dinâmica e em
urbano. Thea Brejzek ressalta que evolução”, o coletivo destaca seu
estes “arquitetos-cenógrafos (...) interesse pelo movimento e pela
trabalham a cenografia formal, transformação, não apenas da
abstrata e simbólica, excluindo a prática profissional, mas dos
objetos gerados nesta prática. Daí
1
Professora Adjunta do DHT/FAU/UFRJ. Este
2
trabalho é resultado da pesquisa No original: Morphosis is a dynamic and
desenvolvida com a colaboração do bolsista evolving practice that responds to the
de Iniciação Científica Daniel Disitzer shifting and advancing social, cultural,
Serebrenick (FAU/UFRJ), e apoio da PR1- political and technological conditions of
UFRJ. modern life. Tradução nossa.

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que o Morphosis abrace projetos dentro de um cubo), escolhidas
não apenas de arquitetura e entre dezenas que a empresa
urbanismo, mas de instalações e pretendia expor. Os cubos
espaços expositivos, entendendo a luminosos, suspensos do piso,
arquitetura como um campo formavam um pequeno labirinto por
ampliado. onde os visitantes andavam
No início de sua carreira, no buscando as gretas que permitiam
final dos anos 1970, Thom Mayne desvendar os objetos expostos em
atendeu a certo pragmatismo seu interior. O objeto exposto,
funcional modernista, que começou tradicionalmente sobre o cubo,
a ser revisto pelo arquiteto com a estava agora dentro dele. O
primeira série de casas na objetivo do coletivo foi, em suas
localidade de Veneza, na Califórnia. próprias palavras, “criar interesse
através da mistificação, escondendo
Desenvolvemos um discurso
direto sobre a conexão (ou as cadeiras dentro de um objeto.”
desconexão) entre uso e forma,
que questiona tanto a (idem: 217, tradução nossa)
prioridade da função durante o
processo de concepção como a O dispositivo ressalta a
suposição de que a satisfação qualidade formal do objeto, em
das necessidades é o objetivo
principal do projeto. (MAYNE detrimento de seu valor utilitário,
apud COOK et RAND, 1989: 7,
tradução nossa). porque instiga a curiosidade e
propõe novas visões sobre ele, tanto
Os anos de 1980 deram
deslocando nossa perspectiva (já
destaque a novas iniciativas,
que cadeiras, em geral, aparecem
abrindo perspectivas para jovens
assentadas no chão) como
ateliês como o Morphosis.
fragmentando sua imagem. Ao
Convidados para construir o
mesmo tempo, mostra o interesse
expositor que receberia cadeiras da
pelos deslocamentos, pelos
Vecta num grande showroom em
fragmentos e pelos ocultamentos,
Nova Iorque, em 1989, o escritório
revelado por Thom Mayne:
aplicou suas reflexões pouco
Nosso trabalho (...) transcreve
pragmáticas. Ao invés de destacar as complexidades do mundo e a
natureza fragmentada,
os produtos, os colocou em caixas desdobrada e deslocada da
existência. Nosso interesse pela
luminescentes com pequenas indeterminação é paralelo ao
nosso interesse pela linguagem
frestas por onde o observador podia formal. Nosso trabalho reitera a
natureza inacabada das coisas.
entrever partes de apenas 6 Esperamos que desmascare os
enganos da primeira aparição e
cadeiras (cada uma “escondida” explore o que não vemos.
(idem:7, tradução nossa)

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Em 1999, o coletivo, muitas vezes é esquecido.
encabeçado pela arquiteta Ursula Inevitável é lembrar a tão
Schumaker, concebe o projeto reproduzida definição de Le
expográfico Silent Collisions, para Corbusier: “arquitetura é o jogo
uma exposição de maquetes do sábio, correto e magnífico dos
próprio Morphosis, no Netherlands volumes reunidos sob a luz”.3
Institute of Architecture, em Numa exposição sobre arquitetura,
Rotterdam. Dentro de uma sala o Morphosis nos faz lembrar,
expositiva idealmente “neutra”, com fenomenologicamente, da
dimensões equilibradas, pé direito importância da luz e da longa
alto, dotada de urdimento e fechada duração na contemplação do objeto
ao ambiente exterior, o coletivo cria arquitetônico.
duas camadas de luz: uma No website do Morphosis, a
iluminação expográfica tradicional, instalação é descrita como “um
incidindo diretamente sobre as relógio abstrato, movendo-se a
maquetes e pranchas expostas, e uma velocidade quase
4
uma segunda camada, acima desta, imperceptível”. No mezanino da
que, presa ao urdimento, atravessa sala de exposição, os arquitetos
um dispositivo instalado como uma posicionaram uma cadeira, para
segunda cobertura, translúcida, que o dispositivo pudesse também
criando discretas variações de luz ser admirado, como uma maquete
no ambiente. 1:1 (ou, segundo consta do
O dispositivo, formado de memorial do projeto, “uma
planos triangulares e trapezoidais transformação do espaço numa
pendentes do urdimento, cobrindo escala de um-para-um.”), que
quase toda a área da sala, completava seu ciclo a cada uma
assemelha-se a um telhado hora. Expunha-se, assim, na
translúcido de muitas águas, e se sobreposição de um espaço
move muito lentamente, mudando dinâmico a um espaço estático (o
suas angulações e abrindo frestas, térreo da galeria, com os
transformando-se e promovendo
3
mudanças quase imperceptíveis no A frase tão citada, no original “L'architecture
est le jeu savant, correct et magnifique des
ambiente da exposição. Simula, volumes assemblés sous la lumière”, aparece
em Vers une Architecture, editado pela
assim, a incidência solar, primeira vez em 1923.
4
Este trecho e os subsequentes atribuídos ao
componente tão essencial na Morphosis foram traduzidos diretamente do
website pela autora. Ver Morphopedia –
apreciação da arquitetura, que Architecture<https://www.morphosis.com>
acesso em 16/08/2019

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expositores tradicionais), uma limites do espaço e a luz,
escala de tempos, ou tempos convidando o Morphosis para a
dentro de tempos, como uma das construção de um espetáculo a ser
qualidades intrínsecas da apresentado na primeira Bienal de
arquitetura e da cidade. Dança de Veneza, em 2003, cujo
Nossa experiência da forma tema era exatamente ‘corpo-
construída muda com a luz,
temperatura e clima ao longo cidade’. Interessado em espaços
do dia, enquanto a própria
fisicalidade de um edifício físicos conceituais, Flamand vinha
muda ao longo das estações e trabalhando, desde 1998, num
anos (...). Repetindo a
transformação diurna da projeto de colaboração com
arquitetura, a estrutura da
exposição move-se de forma diferentes arquitetos, de forma a
quase imperceptível, percorre experimentar suas sugestões
o ciclo completo de um dia no
período de uma hora. Tornou- espaciais na criação coreográfica.
se um relógio abstrato.”
(Morphosis) Nestas colaborações, havia criado
junto a Diller+Scofidio (Moving
Poderíamos traçar um paralelo
Target, 1996 e EJM I e II, 1998),
entre a “performance” desse espaço
Zaha Hadid (Metápolis, 1999) e
e os objetivos de Robert Wilson em
Jean Nouvel (The Future of Work,
trabalhos como Einstein on the
2000 e Body/Work/Leisure, 2001).
Beach, do qual Salter afirma: “a
Para o espetáculo criado junto
arqui-cenografia lírica e vagarosa
com o Morphosis, a ideia do
de Wilson criava um evento
dispositivo usado na exposição foi
performático que não era mais
mantida, bem como o título Silent
dominado pelo desenrolar do tempo
Collisions, que traduzia a relação
do relógio (chronos), mas pelo
dos corpos com o espaço da
‘tempus’, o “tempo vivido”
cidade. As coreografias de Flamand
percebido pelo sentido do
foram inspiradas pelas descrições
espectador”. (SALTER, 2010: 60,
de cidades imaginárias feitas por
tradução nossa)
Ítalo Calvino em “As Cidades
O projeto da exposição Silent
Invisíveis”.
Collisions foi premiado pelo
Apresentado no Teatro alle
American Institute of Architects e
Tese, no Arsenal de Veneza, o
o coreógrafo Frédéric Flamand
espetáculo foi montado num espaço
(Charleroi Dance) vislumbrou ali
cênico bifrontal, com as arcadas do
um espaço para experimentar a
galpão limitando lateralmente o
interação dos bailarinos com os
dispositivo e participando da

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configuração cênica. Três grandes movimento do outro. Os arquitetos
planos – cada um deles recortado se orgulham de oferecer ao
em painéis triangulares e coreógrafo “a ferramenta para
trapezoidais, deixando passar a luz operar no ambiente da
entre esses fragmentos – formavam performance, para coreografar não
uma caixa cênica, uma espécie de apenas os dançarinos, mas também
cubo branco: um plano paralelo a o espaço”. Desta forma, tanto
cada a arcada e um plano formando coreógrafo quanto arquiteto buscam
o teto. Os painéis foram construídos criar um espetáculo onde esteja
com armação metálica e tecido representado o diálogo entre corpo
translúcido tensionado, de forma a e cidade.
não impedir a passagem da luz. Iniciando-se como um cubo
Seus vértices pendiam do branco, o dispositivo adquire 11
urdimento por uma rede de cabos, conformações diferentes, relativas a
como numa grande marionete de 11 das cidades imaginadas por
fios, e podiam ser desnivelados, Calvino. Embora sejam
desmontando aos poucos o cubo configurações dinâmicas, o
inicial e reconfigurando o espaço memorial do projeto destaca a
com formas angulares e quebradas. referência ao cubo como uma
“Flamand orquestrou projeções de espécie de “regulador referencial”
texto e imagens como marcadores da forma: “Como um dispositivo de
de lugares, e de bailarinos virtuais, simetria formal e temporal, a
como referências literais ao modo estrutura começa e termina como
contemporâneo de navegar o uma forma platônica - um cubo. Ao
mundo (a internet)”. (WEINSTEIN: longo da performance, os planos do
2008, 30) cubo se dobram para cima ou para
Segundo o memorial do baixo para animar o ambiente.”
projeto cenográfico, “Espaço e (Morphosis, grifos nossos)
dançarino unem-se neste
Este pequeno trecho serve
dispositivo quadridimensional de
como uma chave importante para a
níveis fixos e cinéticos, quebras,
leitura de diversos projetos
planos inclinados e ondulações”
arquitetônicos do coletivo. Podemos
(Morphosis, grifos nossos). Ambos
analisar dois projetos de edifícios
os elementos – espaço e dançarino
educacionais concebidos em
– se movimentam, às vezes
momentos próximos aos da
ditando, às vezes acompanhando o

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instalação e do cenário Silent concluído em 2009.5 Aqui, mais
Collisions. A Diamond Ranch High uma vez, é clara a origem do
School, projeto de 1996, objeto, cujo ponto de partida do
inaugurado em 1999, é um dos processo de concepção pode ser
mais importantes do Morphosis que, remetido a um paralelepípedo
segundo Cohen, consegue renovar derivado da completa ocupação da
a imagem das instituições públicas quadra novaiorquina. A

norte-americanas a partir dele. regularidade do volume é

(COHEN, 213: 461) Trata-se de um quebrada por um movimento


expansivo que vem de seu centro
conjunto de unidades da escola,
e corresponde ao prisma da
articuladas por uma avenida central
escada, local de convivência com
que se implanta em diagonal no
lances e passarelas irregulares que
sítio. A fragmentação e
se expandem para “rachar” o
deformações dos volumes, segundo
paralelepípedo e abrir a visão para
os arquitetos, inspiram-se nas
o núcleo comunitário interior
“formas irregulares e
desde a fachada ou, segundo o
intrinsecamente instáveis do sopé
memorial do projeto, “conectando
de Los Angeles”, mas essa relação
o coração criativo e social do
com o contexto não é tão flagrante
edifício com a rua”.
quanto a lembrança, ainda
presente, dos prismas regulares
que deram origem aos volumes.

Figura 2 - Novo edifício da Cooper Union


(Morphosis Architecture, 2006). Fonte:
Wikimedia Commons (foto: short.dale)

5
A polêmica que envolve o projeto diz
respeito aos altos custos com os quais a
Figura 1 - Diamond Ranch High School. escola teve que lidar para a construção, o
(Morphosis Architecture, 1996) Fonte: que, coincidindo com a grande crise norte-
Wikimedia Commons (Library of Congress – americana de 2008, consumiu os fundos
foto: Carol Highsmith) legados pelo fundador Peter Cooper, levando
a instituição, que fora gratuita por 150 anos,
O mesmo acontece num dos a iniciar a cobrança de mensalidades. O
documentário Ivory Tower, de Andrew Rossi,
projetos mais polêmicos do vencedor do Festival de Sundance de 2014,
questiona a necessidade da construção da
Morphosis, o da nova sede da nova sede e mostra o movimento em defesa
da gratuidade da Cooper Union. O
Cooper Union School de Nova movimento ganhou adesões como a de
Barack Obama, que mediou o acordo da
Iorque, concebido em 2006 e Direção com os estudantes que ocuparam a
sede da escola em 2013.

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A fragmentação do objeto década de 1960 e, segundo Brejzek
mantém-se a uma distância da e Wallen (2018), se tornaram as
origem formal suficientemente curta grandes estrelas dos anos 1980 nos
para nos permitir remontar ao cubo dois maiores eventos internacionais
e, assim, recriar a dinâmica da de arquitetura e cenografia: A
transformação em nossa Bienal de Arquitetura de Veneza e a
imaginação. A imagem do cubo nos Quadrienal de Praga. Para os
permite revisitar a simetria formal autores, os modelos 1:1 não são
e, também, o momento original que representacionais nem iterativos,
deu início à concepção processual mas autônomos, ou seja, instauram
ou, em outras palavras, à atuação eles mesmos uma experiência
das forças transformadoras que espacial conceitualmente
geraram o objeto final. Essas significativa e atingem em cheio o
forças, visíveis e atuantes no observador com seu poder de
espetáculo coreográfico, podem ser imersão:
apenas intuídas no objeto Em tais escalas, o modelo
criado para a exposição torna-
arquitetônico. O arquiteto, no se um espaço e um volume
interior experiencial, o que o
entanto, não desiste de aproximar a faz performativo e autônomo.
Para além da mera exposição
arquitetura destas qualidades da representativa, ele é cada vez
mais construído apenas para
performance. exibição, afirmando seu status
autônomo como um objeto ou
“Como a arquitetura poderia ambiente físico cosmopoético
ou uma criação de mundo.
ser proposta como processo (BREJZEK et WALLEN, 2018:
133, tradução nossa)
evolutivo ao invés de entidade fixa
no tempo e no espaço?” (MAYNE No lírico projeto de instalação

apud WEINSTEIN, 2008: 30, Snow Show, para a exposição de

tradução nossa) Esta é a pergunta inverno ao ar livre de Rovaniemi,

a que Thom Mayne procura na Finlândia, em 2004, o coletivo

responder quando chama nossa Morphosis faz uso das qualidades

atenção para o tempo do sol sobre da água para responder à criação

a arquitetura, ou quando nos de uma arquitetura

propõe remontar formalmente a “performativa”. Três meses antes

transformação do cubo. da construção, cápsulas de líquido

A instalação/cenário Silent anti-congelante vermelho foram

Collisions participa de uma coleção afundadas num lago. Quando o

de modelos 1:1 que tem adquirido lago congelou, foram extraídos

importância crescente desde a dele os blocos de gelo, alguns

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destes com as capsulas em seu Referências Bibliográficas
interior. No pavilhão construído, BREJZEK, Thea; WALLEN, Lawrence.
The Model as Performance - staging
também um modelo 1:1,
space in theatre and architecture. 1º
contrastam, de imediato, blocos ed. London/New York: Methuen/Drama,
2018.
inteiramente sólidos, com outros
que mantém em seu interior o BREJZEK, Thea: Between Symbolic
Representation and New Critical
líquido fluido vermelho. Num outro Realism: Architecture as
tempo contado pela instalação, no Scenographyand Scenography as
Architecture. In: MCKINNEY, J. et
entanto, pode-se assistir à PALMER, S. (ed.) Scenography
Expanded - an introduction to
mutação do objeto como um todo,
contemporary performance design.
tanto pela potencialização dos London: Bloomsbury, 2017. pp.63-78
COHEN, Jean-Louis. O Futuro da
efeitos luminosos nas superfícies
Arquitetura desde 1889: uma história
de gelo, como pela transformação mundial. Trad. Donaldson M.
Garschagen. São Paulo: Cosac Naify,
dos estados da água. 2013.
A instalação reafirma o
COOK, Peter; RAND, Georg. Morphosis:
interesse do coletivo nos conceitos buildings and projects. Vol.1. NY:
que envolvem o tempo, manifesto Rizzoli, 1989.

pela luz, pelos ciclos naturais, e SALTER, Chris. Entangled: technology


and the transformation of performance.
pelas transformações do cubo. Cambridge/London: MIT Press, 2010.

Como nossa exibição do WEINSTEIN, Beth. “Flamand and His


N.A.I. [Netherlands Institute Architectural Entourage”. Journal of
of Architecture] desafiou os
espectadores a perceberem a Architectural Education. v. 21, n.4,
passagem diurna do tempo 2008. pp.25-33.
biológico, este projeto [Snow
Show] provoca o público ao
examinar o processo de
produção ao longo do tempo
sazonal (...). Esse processo,
com sua cronologia biológica
e estrutura experimental
resultante, está
inextricavelmente ligado a
ideias sobre a natureza, a
progressão do tempo, a
entropia e os ciclos de vida
que permeiam nosso corpo de
trabalho mais fixo e
permanente. (Morphosis)

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CONFERÊNCIA

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Os Teatros da América qual o objeto de estudo deriva, de


Latina1 – TTLA-TELA forma direta, da prática
profissional. Artistas-pensadores,
Doris Rollemberg2
artistas-professores fazendo arte,
Dilatando perspectivas produzindo obras assim como
produzem conhecimentos.
Em 2011 participei como
artista convidada da Mostra Em decorrência dessa
Nacional Brasileira na Quadrienal perspectiva, me inscrevi na
de Praga 2011: Espaço e Design WSD13. A obra cenográfica foi
Cênico com a cenografia de selecionada, e desse modo,
Fábulas Dançadas de Leonardo da participei como expositora no
Vinci.3 World Stage Design 20134 com a
maquete-objeto Grafismos a partir
A participação na Quadrienal
da cenografia para Grafismos5.
de Praga 2011 (PQ’11) me
proporcionou a abertura de outros Havia defendido a tese A
horizontes que enriqueceram a cenografia além do espaço e do
minha prática profissional como tempo. O Teatro de dimensões
professora e como cenógrafa. adicionais6 em outubro de 2008, e

Avistei um espaço de
4
Ver em www.wsd2013.com A Mostra
compartilhamentos onde a voz do Scenofest reuni uma coleção de obras a partir
da seleção internacional de designers para
cenógrafo se destaca. Igualmente, performance. A proposta curatorial da WSD13
tinha como meta, explorar outras formas de
grifa-se o olhar dos demais exposição para as obras selecionadas dos
designers da cena. A edição de 2013 foi
designers da cena. Um campo no realizada na Royal Welsh College of Music and
Drama em Cardiff, País de Gales.
5
1
http://teatrosdelatinoamerica.com/en/index.html/ht A obra Grafismos que deu origem a
tps://www.theatre-architecture.eu/project-ttla- maquete-objeto Grafismos estreou na
tela.html .Ver também: www.theatre- Galeria 1 da Caixa Cultural no Rio de Janeiro
architecture.eu/db.html?filter%5Bstate_id%5D=38 em 2010, sendo projetada como espaço
2
Arquiteta, cenógrafa e doutora em Artes instalativo e performativo para a companhia
Cênicas. Professora da Universidade Federal de dança contemporânea Staccato/Paulo
do Estado do Rio de Janeiro. Curadora e Caldas. Duas outras temporadas
Coordenadora do Brasil do TTLA-TELA.
Membro da OISTAT. aconteceram na Caixa Cultural de São Paulo
3 e no Teatro Sérgio Porto no Rio de Janeiro.
A Mostra nacional ganhou a Triga de Ouro,
prêmio máximo da Quadrienal de Praga 6
Tese defendida no PPGAC- UNIRIO com a
2011. Foi apresentada posteriormente na orientação da Professora Doutora Lídia
FUNARTE de São Paulo em dezembro de
2011. Seguindo em 2012, para o Festival Kosovski. O conceito de geometral foi por
Internacional de Salisbury no Reino Unido. A mim desenvolvido na investigação. A
exposição fez parte do evento do Ano do concepção parte do estudo da geometria do
Brasil em Portugal no MUDE - Museu do espaço cênico e da relação temporal como
Design e da Moda de Lisboa em 2012.
quarta dimensão espacial. Dimensão

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desde 2011 estudava possíveis Outro passo nessa direção foi
materializações dos conceitos dado, quando em 2014 fui
investigado na pesquisa. Pretendia convidada pelo cenógrafo e
concretizar em obra, potenciais professor Ronald Teixeira para
grafias para esquematizar as atuar como Co - Curadora da
dimensões adicionais do espaço. Representação Brasileira na 13º
Quadrienal de Praga: Espaço e
Desse modo, a participação
Design da Performance (PQ’15) 7.
na WSD13 revelava-se como
oportunidade para consolidar em
7
Ronald Teixeira foi o Curador da
obra, a minha prática profissional Representação Brasileira. Exerci a Co-
Curadoria, fui autora da ideia para a
por meio de outra perspectiva. Proposta Curatorial, além de autora do
projeto expográfico da Seção dos Países e
Regiões da Representação Brasileira. A
revelada pela ocupação e pela Quadrienal de Praga 2015 nos convidou a
refletir sobre as noções de SharedSpace:
movimentação do ator no espaço. Relação Music Weather Politics, lido por nós como
perfeitamente clara, estudada e aplicada à EspaçoCompartilhado: Sonoridade Atmosfera
cena há mais de cem anos. A pesquisa Políticas. Tudo Por Recomeçar (Everything to
traçou o paralelo do espaço cênico com a Start Over) foi o título adotado pela
Representação Brasileira.
noção de campo da Física, permitindo a “Não olhar o passado como algo a ser
explicitação do Teatro (e do teatro) como recuperado como força original, como
espaço multidimensional. Dessa forma, o verdade ao pé da letra, mas quer capturar o
geometral é entendido como um esquema movimento contínuo da descontinuidade, o
turbilhão de imagens que se sobrepõem, (...)
dinâmico que revela a cinética da cena para de coisas que se desfizeram, destruíram,
o Teatro de dimensões adicionais. A teoria enterraram. Mas estão lá, aí, aqui:
de campo foi introduzida pelo cientista trabalhando, olhando para nós, provocando
britânico Michel Faraday que elaborou nossa reflexão. Tudo por recomeçar.” DA
SILVA, 2008:309.
experimentos com eletricidade e magnetismo A Curadoria brasileira optou por Políticas
no século XIX. O cientista “visualizou linhas para o desenvolvimento do projeto
de força, que como longos ramos espalhados curatorial. A proposta tinha como ponto de
a partir de uma planta, emanavam magnetos partida a investigação da existência de um
lugar prévio a ser desenhado pelo designer
e cargas elétricas e se difundiam em todas como espaço singular. Objetivávamos
as direções, enchendo todo o espaço.” Um revelar, dessa maneira, o lugar idealmente
campo é definido como “um conjunto de construído e habitado pelo designer como
números definido em cada ponto do espaço, um espaço anterior à criação do espaço da
cena. Buscávamos o compartilhamento da
que descreve completamente uma força sua confissão criadora ao revelar o
nesse ponto”. KAKU, 2000: 44. nascimento da ideia. Propúnhamos ainda, a
Faraday chegou a esse conceito na possibilidade de revisitar, de refazer o
comparação com um campo arado. Um instante do start criativo transgredindo para
campo arado é um espaço bidimensional, outros possíveis caminhos ou para a criação
porém em cada ponto desse campo pode de obras originais. Planejávamos com a
conter várias indicações, referências ou proposta, desvendar a ‘cenografia invisível’
números, como por exemplo, a quantidade e (ver texto de apresentação Curatorial da
o tipo de sementes. O campo de Faraday Sodja Lotker no site www.pq15.cz) que é
ocupa um espaço tridimensional (três eixos anterior ao projeto cenográfico como um
de referências) e, para cada ponto do espaço idealizado e utópico. Ao tornar visível
espaço, há seis números que descrevem a percepção dos espaços subjetivos dos
linhas de força elétrica e magnética. No criadores da cena, o agrupamento das obras
campo, em cada ponto do espaço, pode propunha a fundação de um campo-
existir um conjunto de forças que descreve a paisagem, igualmente, coabitado pelo
intensidade e a direção das linhas visitante-observador. Pretendíamos deste
magnéticas, e ainda, outros pontos podem modo, a instauração de uma arena
descrever o campo elétrico. A ideia de pluridimensional onde a multiplicidade de
cotejar a noção de geometral que eu estava olhares coabitasse um vivo território
projetando com o conceito de campo partiu cinético. Esperávamos, portanto, tornar
do cenógrafo Helio Eichbauer que, em visível a percepção de espaços particulares e
entrevista por mim realizada no dia subjetivos que atuam como um campo de
18/12/2007, definiu o espaço cênico como força quando reunidos e quando, em
um campo. Na verdade, o campo só passa a superposição, fundam uma paisagem. Assim,
existir quando é implantado o traçado do planejamos cartografar cinéticos territórios
geometral no espaço cênico. dos desejos. Diferentemente do proposto

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 260 de 272
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Acredito que esse caminho, que me cabe nessa história, uma
aliado a minha trajetória vez que não atuo como
profissional como professora e pesquisadora de arquitetura
como cenógrafa, me encaminhou teatral.
ao convite para integrar o quadro
São os planos derivativos do
do projeto Os Teatros da América
escopo inicial do projeto que me
Latina (TTLA-TELA). Fui convidada
competem, e onde me encontro
pelo arquiteto José Luís Ferrera,
nesse momento. A Investigação
presidente da OISTAT Espanha e
passa por um período de
pela cenógrafa Claudia Suarez8
reestruturação com novas metas
Participo do TTLA-TELA sendo elaboradas, como por
atuando como Curadora do projeto exemplo, a abertura de três
e Coordenadora do Brasil desde janelas no já efetivado site do
2016. É a função curatorial o papel TTLA-TELA. O objetivo será

para a maquete-objeto Grafismos, que abrigar pesquisas existentes,


apresentei na WSD13, dessa vez o
observador não é fixo e nem tão pouco depoimentos de cenógrafos e
solitário. Além dos múltiplos pontos de
vistas, o observador precisa se movimentar arquitetos, além de obras
pelo espaço e ainda, para visualizar o
interior das obras, precisa movê-las
verticalmente. Essa observação é feita, artísticas. Esperamos lançar a
igualmente, através de um peep hole. A obra
inserida no interior de uma esfera, configura, ideia no Seminário Internacional
do mesmo modo, um peep box onde habita
a obra miniaturizada. O interior das esferas
abrigava as obras originais especialmente de Cuba em janeiro de 2020.
compostas para a Mostra Países e Regiões da
Representação Brasileira da Quadrienal de
Praga 2015. Na tampa do peep hole, que O projeto
ocultava a visão do interior da esfera, havia
uma foto com a imagem da obra que deu
origem ao trabalho inédito. Foram
convidados 29 designers da performance de O projeto Os Teatros da
diferentes gerações e regiões do Brasil para
a produção dos trabalhos. Os artistas América Latina é espelhado na
deveriam conceber as obras a partir da
revisitação dos seus processos criativos para
um projeto de encenação por eles realizado pesquisa Theatre Architecture in
anteriormente. Ressaltando que a concepção
da obra não deveria ser a memória do
projeto realizado. A criação deveria ser
Central Europe (TACE9) e tem
traçada como um movimento contínuo de
descontinuidade, da ideia do nosso eterno
retorno.
9
8 O resultado do TACE pode ser conhecido no
Cenógrafa chilena sediada em Paris. site do projeto e na publicação organizada
Doutora em Estudos Teatrais pela por Igor Kovacevic, em 2010, Beyond
Universidade Paris 3 - Sorbonne Nouvelle. Everydayness: Theatre Architecture in
Sua tese investiga o processo criativo de Central Europe Hardcover. -www.theatre-
architecture.eu/project-
cenógrafos latinos americanos e europeus, archive.html;www.theatre-
objetivando explorar as possíveis architecture.eu/about-tace.html;
redefinições de suas funções. Fui uma das https://www.facebook.com/TACE-Theatre-
cenógrafas investigada, por meio de Architecture-in-Central-Europe-
192031846147/
entrevistas e ainda, através do estudo de
casos de alguns projetos cenográficos por A coordenação do site e do projeto do é do
mim realizados. Ondrej Svoboda, Diretor adjunto do Instituto

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como objetivo principal, a com características muito
catalogação dos mais significativos diferentes entre si. Soma-se
10
teatros da América Latina do ainda, na constituição do fórum,
período colonial ao século XXI. uma curiosa característica do
projeto: a existência de
A pesquisa visa inventariar
interlocutores e coordenadores
alguns espaços teatrais latinos
sediados na Europa (Espanha,
americanos que possuam
Portugal, França e República
relevância arquitetônica e/ou
Tcheca). Uma iniciativa
histórica. Compondo, portanto, um
significativa composta por
importante acervo inédito, ao
distintas perspectivas.
expor desenhos, plantas,
fotografias e o breve histórico dos Reconhecemos o quanto o
espaços selecionados. projeto é extremamente difícil e
ambicioso. No que diz respeito ao
A iniciativa conta com a
amplo período de tempo do objeto
participação de 55 professores-
estudado, como igualmente, em
arquitetos-cenógrafos de 14 países
relação à vasta extensão territorial
como México; Costa Rica;
da América Latina a ser
Venezuela; Colômbia; Bolívia;
inventariada.
Peru; Argentina; Chile; Paraguai;
Uruguai; Portugal; Espanha; Entretanto, essa mesma
República Tcheca e Brasil, cuja condição pode ser vista como
função é coordenar as equipes de questão motivadora. A ideia
colaboradores em seus países. inédita e audaciosa desafia todos
os envolvidos.
Deste modo, o projeto Os
teatros da América Latina é A formação do fórum original
composto por diversos e permanente, reunindo
pesquisadores de diferentes países professores, cenógrafos e
pesquisadores latinos americanos
de Teatro - ATI de Praga, sendo Jan K. e europeus, além da inexistência
Rolnik o seu assessor.
10
- Trabalho com a diferenciação proposta da catalogação dos teatros latinos
por Peter Brook entre Teatro com t
maiúsculo e teatro com t minúsculo. americanos são questões que nos
Segundo o encenador, Teatro é o ato teatral
e teatro o um espaço físico.
BROOK,1999:78.

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encoraja a prosseguir como uma Na ocasião, as primeiras
obra em progresso. diretrizes do projeto foram
apresentadas e discutidas pelos
Da mesma forma, foi a
poucos coordenadores presentes.
criação da potente rede que
Mesmo assim, Sevilla16 foi o
determinou o acolhimento do
importante primeiro passo para a
TTLA-TELA pela OISTAT
composição inicial da rede de
(Organisation Internationale des 12
colaboradores . Sendo também, o
Scénographes, Techniciens et
marco do projeto, quando
Architectes de Théâtre),
projetávamos a concepção do
incorporando a iniciativa como
traçado e a formatação para o
projeto da organização desde
esquema de trabalho.
2017.
De 2016 até o presente
A composição do amplo
momento, diferentes proposições
grupo de trabalho e o
do escopo do plano foram
compartilhamento de ideias e
esquematizadas, incluindo
informações possibilitará outros
diferentes propostas do recorte
desdobramentos, para além do
temporal.
inicialmente proposto pela
investigação, como a promoção de Embora algumas definições
parcerias entre Universidades, tenham sido estabelecidas desde o
intercâmbios, dentre outras primeiro momento, como a
possibilidades de futuros projetos. escolha do formato final como um
catálogo virtual, a seleção das
A primeira exposição do
configurações espaciais dos
TTLA-TELA ocorreu em outubro de
teatros inventariados permanece
2016 em Sevilla, no OISTAT
Seville16 Meeting11, encontro 12
Vale destacar, que nessa oportunidade,
promovido pela OISTAT Espanha. participamos de reuniões com Ondrej
Svoboda e Jan K. Rolnik que nos
apresentaram o projeto TACE. Suas
expertises em documentação, formação de
banco de dados e desenvolvimento de
11 mídias, não apenas para o TACE, como
www.oistatsevilla16.com A mesa do também para a Quadrienal de Praga, são
lançamento do projeto foi composta por José importantes contribuições para o TTLA-TELA.
Luis Ferrera, José Manuel Castanheira, A parceria nos permite contar com
Claudia Suárez, Doris Rollemberg, Marcelo referências objetivas. A transferência de
Jaureguiberry, Ondrej Svoboda e Jan K. informações é fator fundamental para que o
Rolnik. Estando também presente a trabalho de investigação possa ser
cenógrafa Aby Cohen, na ocasião vice- desenvolvido a partir de um sistema de
presidenta da OISTAT. sucesso.

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como questão ainda em segmentos de estudos com
planejamento. A discussão não se desenvolvimento simultâneo.
fechou.
O primeiro estudo visa
Outra questão merece identificar historicamente, de
também ser ampliada: interessa forma concisa, alguns espaços
ao estudo refletir sobre as teatrais do período colonial e da
influências da Espanha e de fase imediatamente posterior à
Portugal na construção do legado independência de cada país latino
latino americano. Deveríamos ir americano. Essa seção poderá ser
além. Precisaríamos, do mesmo descrita por listagem ou tabela
modo, investigar a relação como esquemática com os nomes dos
uma via de mão dupla, verificando espaços, local de edificação e data
igualmente a repercussão da de construção13.
América Latina na Europa.
O segundo segmento de
A partir desse aspecto, um pesquisa propõe inventariar os
tema merece atenção. A relação espaços teatrais a partir de quatro
Europa ↔ América Latina pode ser tipologias ou configuração
realmente considerada como uma espacial: espaço ao ar livre, teatro
via de mão dupla no trânsito de com proscênio; arena e espaços
influência entre os dois com configurações variáveis. Para
continentes? tal, a pesquisa apresenta breve
histórico sobre a construção dos
Enfim, futuras possibilidades
espaços, expondo ainda, plantas
de questionamentos, para além da
baixas, cortes e fotos.
catalogação dos espaços teatrais
latinos americanos, o que por si Em maio de 2017, o segundo
só, certamente, já representa um seminário para o projeto Os
extenso e fundamental estudo. Teatros da América Latina (TTLA-
TELA) foi realizado em Setúbal,
De qualquer modo, para a
Portugal: 1º Encontro
primeira fase do trabalho, o
Internacional Casa da Baía,
desenho do projeto prevê dois
13
Segmento do projeto ainda não
desenvolvido.

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Setúbal, Portugal14. O evento teve Etapa seguinte a Portugal,
como um dos objetivos a em junho de 2017, o projeto Os
preparação de materiais (vídeos e Teatros da América Latina foi
textos) para a defesa de projeto defendido pelo arquiteto e
junto à OSTAT. Coordenador geral da pesquisa,
José Luís Ferrera, na assembleia
O encontro em Portugal foi
geral da OISTAT durante a WSD17
uma importante oportunidade, não
(World Stage Design)15. Evento
apenas para desenvolvermos os
que teve a cidade de Taipei como
fundamentos de defesa de projeto,
sede. O TTLA-TELA foi abraçado
mas, sobretudo, pela existência da
pela OISTAT e incorporado como
vasta programação composta por
projeto da organização
palestras e reuniões. Em Setúbal,
internacional16.
diversos pesquisadores
originalmente envolvidos no Assim, de modo inclusivo, o
projeto Os Teatros da América TTLA-TELA foi também exposto no
Latina puderam comparecer. evento comemorativo dos 50 anos
Assim como também, estiveram da OISTAT em Cardiff, Pais de
presentes como palestrantes ou Gales em agosto de 2018. Na
participantes do evento, outros ocasião, a apresentação objetivava
investigadores, arquitetos e ampliar a ideia do projeto como
cenógrafos não inicialmente investigação transversal,
pertencentes ao TTLA-TELA. Desse convidando as comissões de
modo, o encontro foi uma trabalho da OISTAT (pesquisa,
circunstância excelente para a arquitetura e educação) a
incorporação de novos colaborar com Os Teatros da
colaboradores ao projeto. América Latina. Importantes
contribuições à pesquisa poderão
14
O encontro contou com extensa e ser produzidas a partir dessa
produtiva programação elaborada e
coordenada pelo arquiteto, cenógrafo e
professor da Universidade de Arquitetura de proposta.
Lisboa, José Manoel Castanheira. O
programa do seminário com os resumos dos
textos e com as informações sobre os seus
participantes está disponível para download: 15
ver em: www.wsd2017.com
https://www.dropbox.com/s/fizkyixllsznrf0/S
etubal%20Final%20Program.pdf?dl=0 16
ver em: www.oistat.org A condição de
Um filme sobre o projeto, com direção de pertencimento à OISTAT facilitará futuras
Pedro Castanheira, cineasta português, foi
produzido e pode ser visualizado em oportunidades de parcerias entre
https://vimeo.com/224064338. Universidades, Instituições e Organizações.

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Um dos propósitos do projeto os desdobramentos e para as
é a promoção de encontros e propostas futuras representa um
seminários. De tal modo, de 28 de importante feito. Uma significativa
novembro a 01 de dezembro de meta alcançada diante da
2018 foi realizado o 2º Colóquio magnitude do evento.
Internacional TTLA -TELA: “Os
A Quadrienal de Praga é o
caminhos transatlânticos do
maior evento na sua área no
teatro: América, Europa e África
mundo. Reuni pesquisas e obras
(Espaços arquitetônicos teatrais e
contemporâneas de mais de 70
do espetáculo) em Mérida,
países em diversas disciplinas e
Yucatán – México17.
gêneros do design da
Outra etapa prevista no performance19. Portanto, a
cronograma original do projeto Quadrienal de Praga é notável por
ocorreu no dia 07 de junho do acolher, promover e difundir
corrente ano de 2019, quando discussões a respeito do espaço
participamos no segmento teatral e da cena contemporânea.
Historiografias, Teorias e Destacando-se como ambiente
Colaborações da PQ Talks18 na fundamental de reflexão. Um
Quadrienal de Praga 2019 (PQ’19) espaço valioso para investigar o
na cidade de Praga, República lugar teatral como espaço de ação
Tcheca. e de mudança. Sendo,
consequentemente um campo
Apresentar o projeto TTLA-
fértil para o compartilhamento de
TELA na PQ’19, expor as suas
informações e de ideias. Além de
realizações até o presente
proporcionar a oportunidade de
momento, e ainda, apontar para
questionarmos metodologias e

17 processos da investigação.
O colóquio contou com a programação
elaborada e coordenada por Dr. Òscar
Armando García, professor na Faculdade de
Filosofia e letras da UNAM e da Pós- O painel de discussão na
graduação em Literatura e Historia da Arte
na mesma universidade. Dr. Garcia é PQTalks foi desenvolvido a partir
também o Coordenador do Colégio de Drama
e Teatro da Faculdade de Artes na
Universidade Autônoma do México - UNAM.
19
18
A mesa foi composta por José Luís Ferrera, Cenografia; figurino; iluminação;
Claúdia Suarez e Doris Rollemberg. A sonoplastia; site specific; performances
exposição recebeu o título de “How can we multidiáticas; artes performativas e
write about historiography and memory of arquitetura teatral para dança; ópera e
the theatrical spaces in Latin America?” teatro.

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de três segmentos. A primeira existentes sobre a matéria,
parte apresentou o projeto, permitindo que esse conhecimento
descrevendo os seus objetivos. A possa ser transferido e, desse
segunda etapa expos as atividades modo, utilizado para o processo de
e as metas concluídas. E a terceira criação de novos estudos, ou
parte do painel introduziu os ainda, possibilitando a sua
futuros projetos, ainda em utilização para a fundamentação
processo de desenvolvimento de projeto de espaços teatrais.
conceitual.
A investigação pretende,
Igualmente, fizemos as portanto, construir uma potente
primeiras comunicações sobre o ferramenta de instrumentalização,
Seminário Internacional que que poderá ser deslocada e
acontecerá em Cuba em Janeiro aplicada para o estudo da cena, da
de 2020. cenografia, da arquitetura e da
história.
A pesquisa Os Teatros da
América Latina trabalha, O projeto Os Teatros da
primeiramente, com o América Latina tem como meta
levantamento das questões principal a composição do arquivo
projetuais e historiográficas dos virtual. Trabalho atualmente em
espaços teatrais selecionados. desenvolvimento, sendo a sua
Entretanto, o estudo vai além ao veiculação disponibilizada
propor o cruzamento de subsídios paralelamente à execução da
de diferentes ciências ou matérias, pesquisa, portanto, tratada como
enriquecendo a investigação para uma obra em progresso.
além da catalogação dos espaços
Porém, é como Curadora do
com o inventariado de dados e de
projeto, aquela que organiza,
terminologias da arquitetura
ordena temas, remontando
teatral.
pedaços de histórias que projeto o
O projeto ilumina o que se meu lugar no TTLA-TELA.
encontra disperso ao propor
Traço o paralelo entre a
também, em sua próxima etapa,
investigação e o conceito do
relacionar algumas pesquisas

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T(t)eatro como espaço conhecimento e a formação do
multidimensional que assume a fórum é o alicerce para o
multiplicação de focos de compartilhamento de
observação. Dessa forma, conhecimentos entre os
podemos projetar a ideia de pesquisadores-professores da
formação do fórum aberto mais América Latina e da Europa.
amplo, como uma arena
A ideia é propor que a
pluridimensional onde a
investigação possa ser construída
multiplicidade de pontos de vistas
de forma colaborativa. Como
coabita um vivo território. Assim,
instrumento capaz de provocar e
o diagrama de forças e de vozes
estimular o desenvolvimento de
dilata, por conceito, o espaço-
um espaço aberto, dedicado à
tempo através do
geração do saber, através do
compartilhamento de informações
sistema assimétrico e sensível. Um
e de ideias.
campo para a disseminação de
Sob essa perspectiva, e com ideias, através de diferentes
a finalidade de ampliar a ótica do metodologias de pesquisa, tecendo
projeto, pretendemos convidar para isso uma potente trama.
pesquisadores, cenógrafos e
Assim, o mote da segunda
arquitetos que já tenham
fase do projeto passa ser a
trabalhos e pesquisas no tema a
formação de um legado
colaborar com artigos e/ou
multidisciplinar, capaz de ampliar
estudos gráficos. Sabemos que
o conhecimento sobre os espaços
podemos contar com um
teatrais latinos americanos,
expressivo material existente.
estimulando o interesse pela
Dessa maneira, pretendemos memória e pela preservação do
promover o diálogo, travando a patrimônio teatral e cultural dos
discussão aberta e livre, onde a países da América Latina.
investigação apresente diversas
A formação do sistema livre e
perspectivas.
aberto prevê a criação de três
A catalogação está embasada janelas no existente site do TTLA-
em diferentes áreas de TELA. Serão espaços que

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abrigarão pesquisas existentes, espaços imprimem atmosferas
depoimentos e obras artísticas. singulares.

O Teatro multidimensional Temos, sob essa perspectiva,


admite a existência de outras diagramas de muitas
variáveis de linhas de ação e de possibilidades que nos permitem
movimentos, como vetores ainda pensar na existência de
invisíveis que riscam o espaço, infinitas combinatórias de
desenhando diversos esquemas e esquemas. Diversas figuras ou
diagramas. Forças em movimento diagramas de forças traçados por
ilimitado que pulsam e dilatam, superposição. A superposição de
idealmente, o espaço. São vetores pontos de vista pode ser
de força executados e percebidos desenhada como linhas em
pelos atores, pelos espectadores, movimento, vetores invisíveis
por todos. implicando ou influenciando a
ordenação do todo.
O fluxo de linhas em
movimento é traçado no decorrer ‘Visualizamos’ o campo de
da encenação e continua a existir força gerado por esses vetores.
além do momento da sua Forças que são traçadas não
realização. Como se o mapa de apenas pela movimentação dos
vetores de movimento, e ainda, as deslocamentos físicos dos atores,
suas sensações e as suas como também pela agitação dos
percepções ficassem desenhados vetores óticos. Mas, sobretudo
no espaço. Diagramas de forças pode ser igualmente pensada pela
que ficam ‘gravados’ no teatro. mobilidade das tensões, das
Uma ideia subjetiva, um conceito emoções e pelo envolvimento que
ideal que a nossa percepção é o acontecimento teatral e o espaço
capaz de compreender. teatral produzem em cada um de
Principalmente se o teatro tiver nós, incluindo obviamente os
carregado por vetores de uma espectadores. E ainda, como essa
companhia ou de grupo como no emoção repercute no outro e no
Bouffes du Nord ou no Teatro outro e assim reverbera
Oficina, por exemplo, onde os continuamente.

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Sobe essa perspectiva, são Propor, portanto, a
criados diagramas de forças construção de mapas como
diferentes para cada um, para resultantes dos deslocamentos
cada observador. Cada olhar cria físicos e/ou óticos revelando as
um campo ótico que se desloca no suas variações de direções e de
espaço, desenhando imagens tensões. Pensar em propostas de
diferentes a cada momento. Esses estudos, obras ou depoimentos
campos óticos se cruzam e se que idealizem partituras ou
sobrepõem. Um mapa complexo cartografias desses cinéticos
como um esquema de linhas, de territórios.
fluxos, de direções e de sentidos
Ou seja, propor janelas
que continua sendo infinitamente
futuras para o TTLA – TELA que
redesenhado a cada dia e
possam abrigar pesquisas, mas
continuamente em nós.
igualmente apresentem obras
Permitindo, desse modo, que os
artísticas que explorem as
espaços teatrais e igualmente a
partituras bidimensionais, gráficas
cenografia e a cena sejam
ou volumétricas que explicitem as
repensados e recriados dimensões adicionais do espaço
continuamente por conceito. teatral. Representações e
diagramas de movimentos, de
Assim, podemos conjeturar a
direção e de fluxo, como exemplos
abertura de janelas no projeto
de planos bidimensionais e
TTLA-TELA que possibilite
tridimensionais que esquematizem
inventariar, igualmente, a
o teatro multidimensional.
memória imaterial dos teatros.
Dessas janelas, veríamos
Obras que tornem ‘visível’ a
também o compartilhamento da
percepção do espaço rítmico.
confissão emocionada. Uma
Estudos que esquematizem as
possível arena para relatos das
variáveis temporais do espaço
memórias afetivas daqueles que lá
através do esboço das forças
trabalharam, ou lá estiveram como
vetoriais dos olhares múltiplos.
espectadores. Campos capazes de
Admitindo que esse esquema se
provocar emoções delicadas.
constitua de ordenações, de
proporções e de vazios. Dar voz a outras histórias.

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Referências bibliográficas Catálogo

DA SILVA, Edson Rosa. Inventário e Brasil: Tudo por recomeçar.


imaginação in Espécies de Espaços: Quadrienal de Praga: Espaço e design
territorialidades, literatura, mídia. da performance 2015. Everything to
Organizadores: Izabel Margato e start over. Organização: Rosane
Renato Cordeiro Gomes. Belo Muniz. Autores Ronald Teixeira, Doris
Horizonte, Editora UFMG, 2008. Rollemberg e Rosane Muniz. Rio de
Janeiro, FUNARTE, 2015.
LOPES, Denílson. Invisibilidade e
desaparecimento. In Espécies de
Espaços: territorialidades, literatura,
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e Renato Cordeiro Gomes. Belo
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PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.


São Paulo, Perspectiva, 1999.

PETER Brook. A porta aberta. Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira, 1999.

ROLLEMBERG, Doris Cruz. A


cenografia além do espaço e do
tempo. O Teatro de dimensões
adicionais. 2008. Tese. Programa de
Pós-Graduação em Teatro, UNIRO, Rio
de Janeiro, 2008.

KAKU, Michio. Hiperespaço: uma


odisseia científica através de
universos paralelos, empenamentos
do tempo e a décima dimensão.
Tradução de Maria Luiza X. de A.
Borges, revisão técnica de Walter
Maciel. Rio de Janeiro, Rocco, 2000.

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 271 de 272
http://www.unirio.br/espacoteatral/arquivos/evento-extensao/AnaisVjornadaNacionaldeArquiteturaTeatroeCultura.pdf

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Reitor
Prof. Dr. Ricardo Silva Cardoso

Vice-Reitor
Prof. Dr. Benedito Fonseca e Souza Adeodato

Pró-Reitoria de Graduação
Alcides Wagner Serpa Guarino

Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação


Profa. Dra. Evelyn Goyannes Dill Orrico

Decano de Centro de Letras e Artes


Profa. Dra. Carole Gubernicoff

Coordenadores da Pós-Graduação em Artes Cênicas


Prof. Dr. Adilson Florentino (Coord, Geral e Doutorado)
Prof. Dr. Leonardo Munk (Mestrado)

Diretor da Escola de Teatro


Prof.Dr. Luiz Henrique Sá

Chefe do Departamento de Teoria do Teatro


Prof. Dr. Danrlei de Freitas Azevedo

Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana


Profa. Dra. Evelyn Furquim Werneck Lima

V Jornada Nacional de Arquitetura, Teatro e Cultura - ISSN: 2178-2539 - Página 272 de 272

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