Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NAS SOMBRAS DO AMANHA Johan Huizinga
NAS SOMBRAS DO AMANHA Johan Huizinga
JOHAN HUIZINGA
tradução e notas de
Sérgio Marinho
Goiânia, 2017
Copyright © 2017: Editora & Livraria Caminhos
Título original:
In de schaduwen van morgen: een diagnose van het geestelijk lijden van
onzen tijd
COLEÇÃO HORIZONTE
Conselho editorial:
Publicação digital
www.editoracaminhos.com.br
Table of Contents
Nota dos editores
Prefácio à primeira e à segunda edições
Prefácio à terceira edição
Notas
Nota dos editores
Pouco poderíamos dizer, nesta nota, no sentido de apresentar o historiador
holandês johan huizinga ao leitor brasileiro. basta lembrar a monumental e
relativamente recente edição de O outono da idade média (cosac naify,
2013), ou do clássico e conhecidíssimo Homo Ludens (perspectiva). De
fato, Huizinga é um nosso velho conhecido. O historiador e acadêmico José
Honório Rodrigues, autor de Teoria da história do brasil, dizia já em 1952:
Realmente, como sói acontecer entre nossos intelectuais, são poucos os que
admitiriam desconhecer a obra de Huizinga. Entretanto, o conjunto de sua
obra ainda é, em grande parte, pouquíssimo conhecido dos brasileiros,
principalmente no caso dos escritos eminentemente políticos. É preciso
notar, todavia, que este livro, de 1935, não é simplesmente um panfleto
anti-totalitário – ao examinar (ou diagnosticar) seu próprio tempo,
Huizinga elabora também uma filosofia da História e uma teoria da cultura
cujos desdobramentos (principalmente nos conceitos de “heroísmo” e
“puerilismo”) foram as bases do já citado clássico Homo Ludens (1938).
Além disso, o leitor perceberá que as crises observadas por Huizinga em
meados dos anos 1930 não se demonstraram fenômenos passageiros; pelo
contrário, estão cada vez mais presentes e mais pungentes nesse início do
século XXI.
Sobre a edição
Ao planejarmos a coleção horizonte, e consequentemente a publicação
deste livro, nosso primeiro impulso foi o de republicar a mencionada
tradução de Manuel Vieira. Entretanto, pela dificuldade em rastrear os
direitos da tradução (além da questão da linguagem, algo ultrapassada),
decidimos por realizar uma tradução inteiramente nova, de que se incumbiu
o editor Sérgio Marinho. Esta decisão mostrou-se providencial: no
cotejamento entre edições, percebeu-se que, além de trechos suprimidos, a
tradução de Manuel Vieira apresentava diversas expressões em comum com
a tradução inglesa de Jakob Herman Huizinga (In the shadow of tomorrow,
1936), mas inexistentes no original holandês. Concluímos, portanto, que as
edições anteriores deste livro traziam não só uma tradução indireta, mas
incompleta. Sendo assim, o leitor lusófono tem em mãos pela primeira vez
uma edição integral e em tradução direta de Nas sombras do amanhã.
Por fim, se é verdade que este mundo tem suas noites, desejamos que
este livro traga ao leitor pelo menos umas poucas horas de verdadeira
iluminação.
Os Editores.
Prefácio à primeira e à segunda
edições
Este livro foi desenvolvido a partir de uma apresentação proferida por mim
a 8 de março de 1935, em Bruxelas.
É possível que muitos, por conta do que estas páginas encerram, venham a
chamar-me de pessimista. Lamento informá-los de que, na verdade, sou um
otimista.
Quanto às opiniões em si, não vejo motivo para voltar atrás. Quanto à forma
em que foram expressas, quisera muito poder corrigi-la. Estou ciente de ter
pecado muitas vezes por excesso de concisão. Porém dificilmente um
ensaio poderia expandir-se num volume de grandes dimensões sem se
arruinar e, ademais... o tempo urge. Limitei-me, portanto, a corrigir algumas
irregularidades, obscuridades e escorregões revelados durante a supervisão
das traduções do livro. E só agora, com todas as mudanças introduzidas,
diria que o texto tem a forma que posso considerar definitiva.
S. Bernardo de Claraval
I. ATMOSFERA DE DECADÊNCIA
Por toda parte pairam dúvidas quanto à solidez da estrutura social em que
vivemos, um vago receio do futuro próximo, sentimentos de declínio e
esgotamento da civilização. Não se trata meramente de ansiedades das que
nos assaltam na calada da noite, quando a chama da vida queima mais
baixo. São antes expectativas nascidas da reflexão, fundadas na observação
e no juízo. Os fatos são estarrecedores. Diante dos nossos olhos, quase tudo
o que fora um dia sagrado e inabalável começa a tremer: verdade e
humanidade, razão e justiça. Vemos formas de governo que já não
funcionam, sistemas produtivos à beira do colapso. Vemos forças sociais
atuando de modo frenético. A ruidosa máquina destes tempos espantosos dá
sinais de que vai enguiçar.
Para esta civilização ser salva, para não submergir em séculos de barbárie,
mas sim poder, mantendo os valores supremos que lhe foram legados,
passar a um novo e mais sólido estágio, para tanto, é necessário que os
homens presentes compreendam claramente a gravidade do processo de
decomposição em curso.
Foi só recentemente que o sentimento de um colapso iminente e de uma
deterioração progressiva da civilização vieram a generalizar-se. Para a
maioria foi a crise econômica, sentida na pele (a maioria tem a pele mais
sensível que o espírito), o que lhes abriu os olhos para a realidade. Escusado
dizer, por outro lado, que aqueles que costumam refletir de modo
sistemático e crítico sobre a sociedade e a civilização — sociólogos,
filósofos — já há muito sabiam que, na tão louvada civilização moderna,
nem tudo andava bem. Para estes está claro que os transtornos econômicos
constituem apenas um aspecto de um processo cultural de alcance muito
maior.
Hoje em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise
civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da
sociedade. O livro A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, soou o
alarme para muita gente em diversos países. O que não quer dizer que todos
os leitores do célebre volume se converteram às ideias ali transmitidas. Mas
pelo menos familiarizaram-se com a possibilidade de um declínio da
civilização moderna, ao passo que antes ainda acalentavam uma crença
irrefletida no progresso. O otimismo inabalável por enquanto é privilégio ou
daqueles incapazes de enxergar o que há de errado com a cultura, tendo sido
eles mesmos afetados pelo mal, ou daqueles que, com sua doutrinação
salvacionista, julgam possuir a receita da civilização futura, prontos para
despejá-la sobre as cabeças da humanidade sofredora.
Esse era o espírito de toda pregação religiosa que, além da salvação eterna,
discorria também sobre a paz na terra. Esse foi o espírito de Erasmo de
Roterdã: com o saber da antiguidade recuperado, teríamos a chave que dava
acesso às fontes puras da fé; nada mais obstava à conquista da ventura
terrestre; em breve a nova mentalidade colheria os frutos da concórdia, do
humanismo e da civilização. Também para o Iluminismo do século XVIII e
para Rousseau, que a ele se vinculava, o bem-estar do mundo dependia
ainda de uma simples visão, de uma mudança de perspectiva. Para os
pensadores iluministas, tudo se resumia ao abandono da superstição e ao
triunfo do conhecimento; para Rousseau, a um retorno à natureza e à prática
da virtude. No seio dessa vetusta e sempre renovada ideia, a de uma simples
reviravolta ou giro na sociedade, foi que se originou a ideia de revolução. O
termo revolução se refere ao movimento de uma roda, e por trás dessa
imagem por muito tempo esteve a roda da Fortuna, de onde se viam, com
suas coroas, os reis caírem por terra. Revolução refere-se também ao giro
dos corpos celestes. Em sentido político, a palavra é usada inicialmente para
uma brusca mudança causada por acontecimentos singulares, como os
sucedidos em 1688 na Inglaterra. Somente após o grande abalo de 1789, o
termo revolução foi adquirindo, ao longo do século XIX, a conotação com
que o socialismo viria a entendê-lo. Ainda hoje a ideia mantém a essência
da concepção inicial: a de uma melhora súbita e irreversível.
Embora não haja como voltar atrás, o passado ainda guarda lições,
serve-nos de guia. Há precedentes históricos em que a civilização de um
povo, um reino, um continente, tenha passado por provações semelhantes às
nossas? Crise civilizacional é um conceito histórico. Ao examinarmos a
história, ao compararmos este tempo com os que o precederam, podemos
formular esse conceito objetivamente. As crises anteriores, afinal, nos
informam não apenas sobre seu início e agravamento, como também sobre
seu desfecho. O nosso conhecimento a seu respeito tem uma dimensão a
mais. Nalguns casos, toda uma civilização foi destruída; noutros pôde se
recuperar e dar origem a novas formas de existência. Tais processos
históricos podem ser julgados como casos encerrados. E ainda que a
autópsia historiográfica não prometa terapias para o presente, talvez nem
sequer um prognóstico, qualquer meio que ajude a entender a natureza do
mal deve ser tentado.
Tudo somado, a comparação tanto com 1500 quanto com 1800 deixa-
nos com a impressão de que o mundo agora passa por um processo
traumático mais intenso e radical do que o daqueles dois períodos.
Resta ainda a questão sobre até que ponto o processo de mudança por
que estamos passando seria comparável ao ocorrido no seio do Império
Romano, quando da passagem da Antiguidade para a Idade Média. Aqui
sim teríamos o equivalente da situação que, no entender de muitos, é a que
nos aguarda logo adiante: uma grande civilização que aos poucos vai dando
lugar a outra, de início indubitavelmente inferior e precariamente
organizada. Porém a comparação esbarra em uma diferença crucial: aquela
cultura rebaixada de cerca de 500 a.C. herdou, da antecessora, uma forma
superior de religião, com que a própria cultura antiga em certo sentido não
soubera lidar. Animava esse mundo bárbaro um intenso elemento
metafísico. O cristianismo tornou-se, malgrado suas tendências ao rechaço
do mundo, a força que impeliu a sociedade através de séculos de barbárie
até aquela harmônica e inteira alta cultura dos séculos XII e XIII, que é
ainda o fundamento sobre o qual repousa a civilização moderna.
Cultuur (cultura), eis uma palavra que não nos cansamos de ouvir. Mas
está claro o que queremos dizer com isso? E por que esse termo estrangeiro
vem suplantando beschaving (civilização), em holandês castiço? — Esta
última pergunta é fácil de responder: “cultura”, termo cosmopolita e
conceito universal, tem mais peso que o gentil “civilização”[2], em que
predomina amiúde a ideia de erudição (eruditio), palavra latina da qual,
aliás, beschaving é um decalque. Foi a partir do idioma alemão que se deu a
disseminação pelo mundo de uma acepção particular de cultura (Kultur),
em linhas gerais, como algo mais intrínseco, individual e espiritual[3]. O
holandês, os idiomas escandinavos e eslavos adotaram-na desde logo;
também no espanhol, no italiano e no inglês americano é termo corrente.
Apenas no francês e no inglês europeu é que, malgrado o seu uso em certas
expressões consagradas, o termo depara com alguma resistência. Ao menos
não se pode empregá-lo livremente no lugar de civilisation[4]. E não é por
acaso. O francês e o inglês tiveram, em virtude de sua vetusta e rica
evolução como línguas de pensamento, muito menos necessidade do
recurso ao alemão para formarem seu vocabulário científico-filosófico
moderno, sobretudo se comparados à maioria das línguas europeias que
progressivamente, ao longo do século xix, aproveitaram a fértil riqueza
expressiva alemã.
Cada uma dessas metáforas tem seu sentido apropriado quando aplicada
aos fenômenos da cultura de hoje.
Esse fantástico incremento do saber não foi assimilado por uma nova e
harmônica concepção de mundo, que brilhe acima de nós e ilumine como a
luz do sol a estrada por onde andamos. A soma das ciências ainda não foi
por nós assimilada como cultura.
Por mais que a reviremos, a teoria racial aplicada segue sendo uma
prova contundente do declínio dos parâmetros que a opinião pública exige
do julgamento crítico. Os freios da crítica estão falhando.
Por ora permanece em aberto a questão sobre até que ponto o inevitável
reconhecimento da Seinsverbundenheit, da Situationsverbundenheit
(“dependência da situação concreta”) do pensamento terá lançado luz sobre
a consciência cultural, e até que ponto poderá, entendido de maneira
simplória, minar o edifício da cultura.
Eis o ponto a que chegamos no mundo civilizado. Mas não pensem que
a capacidade crítica veio a degradar-se só nos países onde triunfou o
nacionalismo extremo. Basta olhar à nossa volta para perceber sem muita
dificuldade o quanto se tem disseminado entre pessoas com algum grau de
instrução, sobretudo jovens, certa indiferença pela veracidade das ideias que
povoam — ou assombram — as suas mentes. As categorias ficção e
história, no sentido simples e corrente destes termos, já não se distinguem
claramente. É indiferente se um argumento pode ou não ser testado quanto à
sua veracidade. A voga em torno da ideia de “mito” é o exemplo mais
significativo dessa confusão. Adota-se uma representação do mundo
deliberadamente permeada de desejos e fantasias e que, apesar disso, é
proclamada “o verdadeiro passado” e elevada a norma de vida, com a
consequência inevitável de se tornarem indiscerníveis a esfera do
conhecimento e a da vontade.
No instante mesmo em que a filosofia da vida (seinsverbundene) se
expressa verbalmente, metáforas fantasiosas, sem empecilho algum da
crítica, esgueiram-se para dentro da argumentação lógica. E uma vez que a
vida não pode ser expressa em termos lógicos (no que todos concordamos),
a palavra, a fim de dizer o que a lógica não alcança, deve passar ao poeta. É
o que tem acontecido desde que houve algo como a poesia neste mundo.
Mas, à medida que a cultura se desenvolveu, veio à tona uma distinção cada
vez mais clara entre o poeta e o pensador, e atribuiu-se a cada um a sua
parte. A linguagem dessa nova filosofia, tentando regressar ao estágio
primitivo, logo se extravia numa estupefaciente confusão entre meios de
expressão lógicos e poéticos. Entre esses, ocupa um lugar sobressalente a
metáfora do sangue. De geração em geração, poetas e sábios de todos os
povos vêm recorrendo à figura do sangue para apreender de modo preciso e
numa palavra o princípio ativo da vida. Embora a princípio outros fluidos
corporais pudessem com igual eficácia sugerir a ideia de hereditariedade e
parentesco, foi no sangue que se viu, sentiu e ouviu pulsar a corrente da
vida; no sangue derramado, a mesma vida fugir; o sangue significava
coragem e luta. Essa figura, além disso, adquiriu há muito um sentido
sagrado, tornou-se com efeito a expressão do mais profundo mistério
divino. Ao mesmo tempo, o termo guarda toda a sua riqueza expressiva no
uso cotidiano. Mas será que não estamos diante de um abuso confinante
com a mitologia, quando testemunhamos agora esse mesmo termo ser
adotado pelo credo jurídico de um grande Estado moderno, e ouvimos um
ministro, ao advogar um novo direito penal, recorrer à imagem do sangue, e
com tal plasticidade que nem o homem feudal seria capaz de igualar?
14. Embora não seja o meu objetivo polemizar nesta revisão, não posso
deixar de dizer que não compreendo como o Dr. M. ter Braak, em sua
resenha do Vaderland de 27 de outubro de 1935, pôde chamar esta
passagem de “carregada de retórica”. voltar
19.Hans Freyer, Der Staat (“Do Estado”). Leipzig, Rechfelden, 1925, pág.
146. voltar
22. Ibid. pág. 14. Ver também Der Mensch und die Technik (“O homem e a
Técnica”), cap. 14 e seguintes. voltar
23. Referindo-se a Maquiavel e a Hobbes. voltar
Talvez alguém aqui diga: o cinema assim procede porque estão em jogo
os seus interesses comerciais. Mas esses interesses comerciais são
determinados pela demanda do público, muito mais que pelos riscos de
censura. Pode-se assim concluir que o código ético do cinema ainda
responde às expectativas da consciência moral popular. Isto é importante,
pois mostra que todo o combate às ideias morais ainda não foi capaz de
mudar radicalmente o sentimento moral do público. Veremos em breve até
que ponto isso se mantém.
Não é por acaso que parte da opinião pública pretende encontrar uma
pronta justificação para a injustiça e a violência, sobretudo no aumento da
ordem e da disciplina externas. Ordem e disciplina são, afinal, os sinais
mais visíveis de um organismo político em bom funcionamento. Aqui, mais
uma vez, o que está em jogo é aquela tendência enganosa a inverter um
juízo válido. O organismo político saudável caracteriza-se pela ordem e a
disciplina. Inversão: a ordem e a disciplina comprovam a saúde de um
organismo político. Como se o sono tranquilo por si só pudesse comprovar
a paz de consciência.
XIV. O ESTADO LOBO DO ESTADO?
27. Grifos meus. Atente-se para como aqui a norma moral é de antemão
descartada. voltar
30. N.T.: “Podem-se fazer acordos com o Céu”, verso de uma peça de
Molière. voltar
XV. HEROÍSMO
O ideal heroico, desse modo, aos poucos foi-se dividindo nas espécies
teatral, histórico-política, filosófico-literária e poético-fantástica.
34. N.T.: “Sangue e solo", lema nacionalista alemão bastante utilizado pelos
nazistas. voltar
Sem dúvida, por muito tempo atribuiu-se à guerra uma grande dose de
eficácia. Um reino oriental da antiguidade, destruindo os seus inimigos, não
tinha por que preocupar-se com o fato de que tal sistema, no longo prazo,
transformaria o Oriente próximo em um deserto ressequido. Também na
história europeia houve um grande número de empresas bélicas defensivas
e mesmo algumas ofensivas perfeitamente justificáveis. A grande maioria
delas, porém, muito dificilmente poderia ser considerada eficaz. Pensemos
na Guerra dos Cem Anos, nas guerras de Luís XIV, nas guerras
napoleônicas, cuja eficácia deu de cara com Leipzig e Waterloo. Em quase
todos os casos a eficácia limita-se ao resultado imediato. Os fins de paz e
segurança desejados, com efeito, resultam sempre não da atividade bélica
em si, mas do esgotamento que produz.
O mundo não pode mais com a guerra moderna. Tudo o que esta
consegue é mutilá-lo. Trazer a paz, sabemos que não trará. O espírito das
gentes é de tal modo um de mobilização geral e está de tal modo
envenenado, que qualquer guerra deixará atrás de si uma quantidade de
ódio muito maior do que encontrou. O resultado final da guerra mundial
podia ser ditado pelos vencedores. Havia um consenso político. E quais
foram as medidas tomadas? Cruas amputações, novas complicações, mais
insolúveis do que antes, um combinado de miséria e devastação para o
futuro! É fácil fazer pouco da estultícia que foi Versalhes. Como se uma
vitória do outro lado pudesse ter resultado em homens mais sábios e
decisões mais prudentes!
A arte, por outro lado, não sofre coação externa alguma. A exatidão não
é seu dever. Seus próprios passos a conduziram, melhor dizendo,
conduziram a muitos de seus cultores, a um completo rechaço das normas
da percepção e do pensamento. Buscam entregar-se às sensações e emoções
concretas que constituem a matéria a ser apreendida esteticamente. A
compreensão estética (pois que se trata ainda de uma compreensão),
afastando-se sempre da lógica, torna-se cada vez mais vaga. O poeta, a fim
comunicar sua mensagem, lança no espaço unidades de sentido que, em
contato umas com as outras, tornam-se absurdas.
Bem sei que para muitos a arte de Chagall é um problema. Mas ela em
si mesma nada tem de problemático, é uma arte que brota
imediatamente do espanto e de uma entrega ao mito da vida, sem
reflexão, sem participação do intelecto. Tem por base um sentimento
religioso. Ali está a sua fonte, no coração, se quiserem, ou no sangue,
ou no mistério mesmo da vida. Problemática ela é somente para os
que não conseguem sair do problema estético, ou para os que querem
pensar algo a respeito daquilo que veem, ao passo que esta arte põe
de lado o pensamento. Pode-se perguntar por que tal coisa foi feita de
tal ou tal maneira. A resposta é o silêncio, pois não há o que
responder. Finalmente, há tanto um mistério quanto uma mística da
arte, e existe também uma arte com poder mágico, que não fala ao
entendimento, mas a todas as coisas, para as quais dispomos apenas
de míseros conceitos. Contra a entrega confiante à vida não cabem
argumentos. Há somente duas possibilidades: entregar-se também ou
ficar onde se está.
37. Além do que arte, tekhnê, ars, obviamente significa todas as formas
artificiais, inclusive o artesanato. voltar
XIX. DESAPARECIMENTO DO ESTILO
E IRRACIONALISMO
Com o século XIX isso teve um fim. Não digamos que é porque esse
tempo ainda está a uma distância demasiado curta em relação a nós.
Sabemo-lo bem até demais: o século XIX não teve estilo próprio; quando
muito, foi um medíocre epígono. O seu característico é a falta de estilo, a
confusão de estilos, a imitação de estilos anteriores. O princípio do processo
que levou ao desaparecimento do estilo remonta ao século XVIII; suas
incursões pelo exótico e o histórico prenunciam o gosto pela imitação, pela
qual até a estética do Empire perdeu os foros de um estilo de verdade.
Ora, neste desaparecimento do estilo de época está o ponto de inflexão
da questão cultural como um todo. Porquanto o que ocorre nas artes e na
literatura é apenas a parte mais visível de uma reviravolta da civilização
inteira.
Uma vez que nos demos conta dessa precondição, fica difícil afirmar
que estamos no caminho certo. Parece que enfrentamos os maiores riscos
que jamais pairaram sobre a nossa cultura, e que nos encontramos num
estado de baixa resistência contra a infecção e a intoxicação, comparável à
embriaguez. A inteligência é desperdiçada. O meio de intercâmbio do
pensamento, a palavra, conforme avança a civilização, como que num
processo inflacionário perde valor. Dispersa-se com cada vez mais
abundância, cada vez mais facilidade. E com a desvalorização da palavra
impressa ou falada aumenta, em proporção direta, o indiferentismo pela
verdade. Conforme a mentalidade irracionalista ganha terreno, alarga-se,
em todos os domínios, consideravelmente a margem de equívoco. A
publicidade instantânea, nascida do impulso comercial e sensacionalista,
deforma uma simples diferença de ponto de vista até que se torne uma
alucinação nacional. As ideias do dia exigem efeito imediato, à diferença
das grandes ideias que sempre penetraram gradualmente no mundo. Como o
cheiro de asfalto, fuligem e gasolina sobre as cidades, assim paira sobre o
mundo uma nuvem de palavras vazias.
A noção de responsabilidade, em aparência fortalecida pelos gritos de
guerra do heroísmo, é arrancada de sua base na consciência individual e
mobilizada em favor de toda coletividade ansiosa por fazer de suas estreitas
opiniões o cânone da salvação comum e impor ao conjunto social a sua
vontade. Em toda associação coletiva, juntamente com uma parte do
julgamento pessoal, também uma parte da responsabilidade pessoal é
absorvida pela retórica de grupo. Conquanto sem dúvida no mundo de hoje
haja crescido o sentimento de sermos todos responsáveis por tudo, ao
mesmo tempo agravou-se muito o risco de se desencadearem ações em
massa completamente desvinculadas de qualquer noção de
responsabilidade.
XX. PERSPECTIVA
Sabemo-lo bem: o mundo hodierno não pode voltar atrás. É algo que
enxergamos claramente, por pouco que consideremos o estado das ciências,
da filosofia e das artes. O pensamento, a faculdade da imaginação, devem
seguir adiante, sem desanimar, pelo caminho que o espírito indicar. Mas não
é diferente com a técnica e seu maquinário gigantesco, nem com todo o
sistema econômico, social e político. É impensável uma intervenção
voluntária do homem que seja capaz de limitar o mecanismo onipresente da
propagação do conhecimento, i.e., o ensino público, a publicidade, a
indústria editorial, ou que seja capaz de impedir novas possibilidades de
comércio, de tecnologia e de exploração da natureza.
E, contudo, esse horizonte de uma civilização entregue à sua própria
dinâmica, de uma crescente dominação da natureza, de uma sempre mais
onipresente e imediata publicidade de todo acontecimento, tudo isso se nos
afigura antes um pesadelo do que uma promessa de purificação,
restabelecimento e elevação da cultura. Tudo o que nos traz à mente são
ideias de uma insuportável sobrecarga e de uma servidão do espírito. Não é
de hoje que essa expectativa de uma metamorfose incessante da civilização
nos faz, receosos, perguntar: “mas será que este processo pelo qual estamos
passando não conduz rumo à barbárie?”
Cada vez está mais claro que a nova doutrina da vontade de poder e do
heroísmo, com sua glorificação da existência às custas do conhecimento,
representa justamente aquelas tendências que para o partidário do espírito
significariam a rendição à barbárie. Pois bem, o que essa filosofia vital
exalta é de fato o mythos em detrimento do logos. Para ela, barbárie não
pode ser algo pejorativo. O próprio termo perde o seu sentido. É tudo o que
os novos senhores desejam.
Quem sabe o passado não nos reserva algum consolo. Olhando para os
dois milênios que nos precederam e neles distinguindo as unidades
históricas a que chamamos civilizações, percebemos que os períodos de
florescimento foram sempre muito breves. O processo inteiro de formação,
ascensão e declínio cumpre-se dentro de alguns séculos. Uma primavera de
dois séculos seria, na medida em que nossos critérios forem confiáveis, o
caso mais comum. No caso da Grécia antiga, foram os séculos quarto e
quinto antes da nossa era. No caso de Roma, o primeiro século antes e o
primeiro depois de Cristo (apesar de algumas opiniões divergentes). No
caso da Idade Média, os séculos XII e XIII. No caso da Renascença e do
Barroco (períodos que podem, antes devem, ser considerados em conjunto),
os séculos XVI e XVII foram os de maior esplendor. Por mais imprecisas e
mesmo arbitrárias que sejam essas periodizações, o fato é que o auge nunca
dura muito tempo. Podemos considerar os séculos XVIII e XIX como o
período da cultura moderna? Nesse caso, estaríamos nos avizinhando do
fim da cultura que conhecemos e talvez também do limiar de uma nova, por
nós desconhecida. Provavelmente uma cultura que ainda levará muito
tempo até ganhar feição própria. Em se tratando de civilizações, não
cabe dizer “le roi est mort, vive le roi” [40].
É cada dia mais urgente o dilema que a nossa época nos propõe.
Reparem no estado de confusão política que prevalece no mundo. Em toda
parte, complicações implorando por alguma solução. Ao mesmo tempo, um
observador imparcial admite que uma solução que não prejudique os
interesses de ninguém, que não frustre as demandas razoáveis de ninguém,
nesta altura é algo praticamente impensável. As minorias nacionais, a
imposição de fronteiras artificiais e impraticáveis, a proibição de
unificações naturais e necessárias, a tensão insustentável nas relações
econômicas — tais situações não se prolongam sem o acirramento que
converte cada uma delas em um barril de pólvora pronto para explodir. E
tanto mais porque o confronto aí se dá entre direito e direito. Só há duas
saídas possíveis. Uma é a violência armada. A outra é um acordo baseado
em um amplo esforço de boa-vontade internacional, em uma renúncia
recíproca às próprias exigências, ainda que razoáveis, e no respeito ao
direito e interesse alheios. Um acordo, em poucas palavras, baseado em
uma combinação de generosidade e justiça.
O autor destas páginas conta-se entre os muitos que têm o privilégio de,
seja no trabalho ou na vida privada, estar em permanente contato com a
juventude. A sua convicção é a de que a geração atual não fica atrás das
anteriores em termos de aptidão para a difícil tarefa de viver. Toda a
dissolução de vínculos, confusão de ideias, dispersão de pensamento e
esbanjamento de energias com que ela vem convivendo desde o berço, não
foram capazes de tirar-lhe a força, de conduzi-la à inércia nem à
indiferença. Pelo contrário, é uma mocidade franca, generosa, espontânea,
pronta para o desfrute tanto quanto para a privação, resoluta, briosa e muito
perspicaz. Caminha mais leve do que a gente de antes.
FIM
Notas
xxxvii. Píndaro, poeta grego do século V a.c., autor das Odes triunfais. voltar