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Nas entrelinhas do tempo

O despertar de um recomeço
Nas entrelinhas do tempo
O despertar de um recomeço
Título original: Nas entrelinhas do tempo
Subtítulo: O despertar de um recomeço

ISBN: 978-85-8108-852-5

Copyright © dezembro de 2018 por R. Douglas

Capa – seleção de imagens: R. Douglas

Capa – montagem: Influence Marketing e Design

Revisão: R. Douglas

Diagramação:R. Douglas

Impressão: Clube de autores

LITERATURA BRASILEIRA

ROMANCE DE FICÇÃO

Livro 2 da série NET – Nas entrelinhas do tempo

www.instagram.com/douglas.escritor

Copyright © R. Douglas.
Todos os direitos reservados. Apenas trechos deste livro podem ser utilizados ou reproduzidos
sem autorização por escrito do autor.
“Tudo é construção mental”
Nota do autor

“Escrever um livro, não se trata de criar uma história e


moldar personagens a ela. Escrever um livro, trata-se de
criar personagens e deixar que eles contem suas próprias
histórias”

Tempus fugit,
Carpe diem

(Virgílio & Horácio)


Sumário
Abrindo os olhos ................................................................................ 17
Nada além de um sonho ..................................................................... 24
Temos companhia .............................................................................. 37
Um velho conhecido .......................................................................... 52
A magia da ciência ........................................................................... 104
De volta ao trabalho ......................................................................... 129
Entrando no clima ............................................................................ 156
A encíclica oculta ............................................................................. 164
Carta na manga ................................................................................. 174
Algo mais ......................................................................................... 190
Presente de um grego ....................................................................... 198
Mão amiga ........................................................................................ 204
Reviravolta ....................................................................................... 210
Aliados? ........................................................................................... 218
Em cima do muro ............................................................................. 235
Mudança... de foco ........................................................................... 244
Vontade dos homens ........................................................................ 269
Reforço tardio ................................................................................... 287
Última cartada .................................................................................. 292
Rasgando o céu ................................................................................. 299
Prefácio
Mesmo sendo magnífica, a máquina a qual chamamos corpo humano,
necessita de repouso e descanso. Às vezes de forma superficial, destacando
apenas a ausência de agitação, outras vezes de maneira mais profunda, onde a
volição e a consciência se encontram em inatividade parcial ou completa,
ocorrendo neste período uma suspensão temporária da atividade perceptivo-
sensorial e motora-voluntária.
A essa necessidade fisiológica nomeamos sono, o qual especialistas
dizem ser necessário diariamente por um período, entre sono REM e NREM, de
sete à oito horas, possibilitando assim a recuperação física e mental para
começar um novo dia. E, é neste estado também, em pleno descanso, que a
mente por vezes, decide nos pregar algumas peças, reunindo pensamentos,
ideias e fantasias em uma realidade singular, exclusivamente nossa, a qual
vivenciamos, mas nada controlamos, nem mesmo aquilo que remete-se a nós
mesmos.
O renomado neurologista Sigmund Freud, dizia que os sonhos noturnos
são gerados na busca pela realização de desejos reprimidos, o que reforça ainda
mais a individualidade de cada um, ou seja, todos temos um querer, um almejar,
um sonhar. A tênue linha entre a percepção da realidade que vivemos e da que,
inconscientemente materializamos, entre o abrir e fechar dos olhos, é o que nos
permite fazer escolhas que modelam nosso destino.
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Prólogo
Um simpático grupo de idosos jogava conversa fora enquanto
desfrutavam do agradável aumento da temperatura na Piazza III Novembre, à
luz do sol a meio do outono.
- Hey, amici!
Um dos velhos aproximou-se lentamente do táxi onde se encontrava o
homem que lhes direcionara o cumprimento.
- Sí, buongiorno.
O rapaz tirou o que parecia ser o recorte de um folhetim e o mostrou ao
velho. Depois, folheou o dicionário inglês/italiano e perguntou:
- Tu conosciquest´uomo? – seu italiano era um horror, ainda assim o
simpático velhinho não só entendeu o que ele dissera, como parecia conhecer o
homem com o rosto estampado no papel envelhecido.
- Sí, sí. – Respondeu jocoso ao ver a tentativa bizarra do turista em
esconder o sotaque.
O rapaz de olhos azuis e cabelo castanho-claro liso, cobrindo as orelhas
até a metade, esperou um pouco imaginando receber o complemento da
resposta, que não veio.
Chegou a abrir novamente o dicionário, mas pedir ao taxista que
intermediasse a conversa agora, lhe parecia bem mais prático.
Aprendo italiano outro dia.
O velho que queria ver o rapaz com expressão confusa se aventurar no
italiano novamente, apenas apontou o dedo quando percebeu que isso não
aconteceria.
- Osteria. – Leu o homem saindo do táxi, não sem antes receber a
resposta do que significava. Taberna, e eu pensei que ele já tivesse superado.
Fez um sinal de espere ao motorista e voltou-se novamente para o
senhor.
- Graziemille! – abanou uma das mãos em um gesto espalhafatoso.
Desta vez o velho nem disfarçou o sorriso ao vê-lo passar.
Indo na direção indicada, o americano chamava um pouco mais de
atenção do que um turista comum, muito devido a uma caixinha de vidro
transparente que carregava.
Apenas um casal de jovens turistas aproveitava o facho de luz do sol
que atingia as mesas do lado de fora do estabelecimento. Pela fumaça que
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fumegava de seus copos, notara que aquele lugar não vendia apenas as bebidas
associadas a uma taberna que o homem estava acostumado.
Poucas luzes amareladas ajudavam o sol a iluminar o local que, com
duas janelas de frente para o nascente, possuía um charme pitoresco e uma
atmosfera aconchegante.
Seguiu direto para o balcão, rústico, de madeira escura bem trabalhada.
Não foi difícil encontrar o homem que procurava, pois ou seria o cara de gorro
preto e casaco verde-escuro lendo um jornal, ou outras quatro ou cinco senhoras
espalhadas pelo recinto.
Sentiu o forte cheiro de álcool ao se sentar.
- Um pouco cedo para beber, não? – Falou em inglês, torcendo, instantes
depois, para o homem não ter entendido, afinal, não foi o seu melhor “puxar
assunto”, nem seu momento mais delicado, ainda mais depois que olhou em
volta e não viu nenhum copo. Hum, pode ser que tenha superado.
Aproveitou a não manifestação de seu interlocutor para tentar de novo.
- As árvores ficam bem bonitas por aqui nesta época, não é? Do alto,
nas montanhas, se consegue uma paisagem incrível, como se o lugar tivesse sido
protegido da ação do homem – colocou a caixa de vidro com uma pedra dentro
sobre o balcão, bem à vista.
A ausência de resposta continuou. Sabia que era aquele o homem que
procurava, mesmo este estando bem diferente da foto, até porque se fosse apenas
um rapaz italiano que não falasse inglês, no mínimo se manifestaria nesse
sentido. Aquele homem era alguém que não queria ser encontrado, pelo menos
não por um americano.
Após alguns constrangedores segundos de silêncio, percebendo uma
sutil olhadela para o objeto dentro da caixa, decidiu tentar mais uma vez.
- Posso te pagar um...
- Não sei quem você é, nem o que quer, mas já adianto – dobrando o
jornal com rispidez, virou-se finalmente, falando em inglês com uma fluência
invejável – não construo mais bombas. – Olhava nos olhos do americano.
- E quem disse que vim até Lamon atrás de bombas?
- Não? Então veio atrás de que? – Sua barba desgrenhada e os olhos
caídos, davam àquele jovem uma expressão bem mais velha que a idade que de
fato possuía.
- Ora, atrás de descanso, de belas paisagens, de montanhas e...– botou a
mão sobre o objeto de vidro.
- E? – Pela primeira vez o rapaz de gorro demonstrava algum interesse
na conversa.
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- Rochas – girou a caixinha 180°.


O homem esboçou um sorriso, mal dando para ver seus dentes
amarelados.
- Rochas?
- Exato. Fiquei sabendo que você conhece algumas.
Olhos fixos na caixa. O chamativo brilho dourado que agora se via,
oriundo do objeto protegido, era no mínimo incomum.
- Certo, diga-me o seu nome que – esfregou os tufos de barba espalhados
pelo rosto – te deixo me pagar uma bebida.
- Maravilha! Camerieri! – estendeu o braço chamando o garçom e
depois a mão, cumprimentando empolgado o homem ao seu lado. – Meu nome
é Arthur Campbell, muito prazer.
O garçom achegou-se.
- Aceita um chá? – perguntou Arthur olhando para o lado.
- Não. – Sua expressão seguia firme.
- Então o que quer beber?
- Não chá.
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Abrindo os olhos
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Sem saber o quanto havia dormido nem que horas eram, despertado de
seu repouso pela incidência da luz solar que persistia em procurar brechas entre
as cortinhas, August Hermes ainda sonolento, com os óculos sujos e visão
embaçada, abriu o guarda-roupa. Praticamente sem abrir os olhos, esticou o
braço na direção costumeira para pegar a camisa do seu uniforme de trabalho.
Por mais que puxasse pela memória, não se lembrava o porquê de ter
fugido da sua rotina noturna habitual e dormido com seu sapatênis branco, de
calça jeans e óculos, apesar deste último não ser tão incomum assim.
August não toma bebidas alcoólicas, sendo assim, acabou por culpar o
cansaço oriundo de um fim-de-semana mais curto do que deveria.
Passando rápido os olhos entreabertos em seu relógio de pulso,
assustou-se.
5h14m.
Enfim deve ter parado. Você resistiu bem meu camarada, muito bem.
Pensou sem sequer se dar ao trabalho de retirá-lo, gostava de tê-lo em seu braço.
Limpou superficialmente os óculos, vestiu a camisa e aproveitando o
fato de que já se encontrava bem-trajado, saiu do quarto esfregando os olhos,
imaginando estar muito atrasado para o trabalho, visto que seu despertador
provavelmente já tocara, no entanto, sem conseguir acordá-lo.
Com um pressentimento estranho lhe causando incômodos em toda
região do tórax, só despertou e recuperou os sentidos de fato, quando recebeu a
incidência de mais luz, oriunda agora do exterior do quarto a caminho do
banheiro.
Abriu de vez os olhos meio avermelhados, ainda ardidos, limpou
novamente os óculos e que surpresa teve ao olhar para baixo e reparar a casa,
chegou a esfregar o rosto mais de uma vez para garantir que enxergava direito.
Mas o que é isso? Onde estão as minhas coisas? Pensou utilizando o
recurso da retórica a medida que se aproximava do belo corrimão artesanal
branco-gelo da escada.
Tudo estava mudado, tudo mesmo. August não conseguiu encontrar, em
uma primeira vista, nenhum dos objetos que ele mesmo escolheu para ocupar
cada espaço daquela casa.
Será que aquele sonho foi... não...
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O jovem bastante confuso, deteve-se antes de chegar na escada ao


escutar um barulho.
Passos. Tem alguém aqui.
Subindo os degraus lentamente, uma mulher com avental, trazia um
cesto com algumas peças de roupa e um espanador preso à cintura. Ao chegar
no piso do segundo andar e se deparar com August, parou subitamente.
Os dois trocaram rápidos olhares e percebendo que eram estranhos um
ao outro, não tiveram outra reação se não a mais comum em ocasiões como esta.
Gritos. Primeiro a mulher, com aparência robusta, branca e de cabelos
curtos avermelhados, pouco abaixo das orelhas, seguida por August, induzido e
de certa forma, intimidado por ela.
- Ah! Quem é você? O que quer aqui? – perguntou a mulher largando o
cesto de roupas, pegando o espanador e o apontando para August, segurando-o
firme como se fosse um florete, estendendo o braço direito a frente e se
posicionando de lado, em posição de combate.
August se é que ainda encontrava-se sonolento, despertou de vez.
- Ei, abaixe isso! Você é quem precisa se identificar e dizer o que faz na
minha casa!
A mulher arqueou as sobrancelhas.
- Sua casa? Você é maluco?
- Não, não sou não! Esta é a minha casa! – afirmou August com
convicção, não se deixando intimidar pela forte e escandalosa mulher que o
interpelava.
- Por onde entrou que não te vi?
- O que? – Realmente não havia entendido a pergunta.
- Por que está usando uma camisa do senhor Ferdinand? – Continuou a
indagá-lo, mesmo sem receber a resposta da primeira pergunta.
- De quem? – A confusão só aumentava.
- É um ladrão? – A mulher, esticando ainda mais o braço que portava o
espanador na direção dele, continuava a pressioná-lo, estava aflita.
- O que? Não! – respondeu August desnorteado. – Espera um pouco aí
– espalmou as mãos ao sentir o forte cheiro de poeira vindo do “florete”. – Olha
só, deve estar havendo algum mal-entendido aqui, um grande mal-entendido.
- Com certeza está! – recuou um pouco ao sentir certa hostilidade no
semblante do invasor.
- Eu moro aqui e vim do meu quarto ora – começou a falar devagar – de
onde mais seria? E, que camisa de Ferdinand, esta é a camisa do meu...
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August parou de falar ao olhar para a peça de cima de sua vestimenta e


perceber que não era a blusa do seu uniforme, não era azul-escuro, sequer era
sua, pois apesar de curtir algumas músicas na pegada da New Wave, nunca teve
uma camisa estampada com o nome da banda The Police.
- Mas o que... – esticava a camisa enquanto a observava tentando
entender.
Com a confusão aquietando August por completo, os ânimos se
acalmaram um pouco.
- Então já caiu em si? O efeito do que você tomou, seja lá o que for, já
passou?
O jovem manteve-se em silêncio ainda olhando para si sem entender.
- Ei rapaz, está mais calmo? Acredito que agora possa me explicar o que
faz aqui, certo? – indagava a mulher vestida com roupas de uma governanta
enquanto abaixava lentamente o espanador.
- Espere, deve haver uma explicação razoável para tudo isso – retirou os
óculos com uma das mãos e esfregou os olhos com a outra, depois continuou
sorrindo sem graça – Já sei, isso é uma pegadinha! Vocês me enganaram
mesmo! Onde estão as câmeras? Podem sair agora, vocês me pegaram, acabou
a graça! – Olhava para os lados e para o alto procurando câmeras escondidas,
fingindo ter achado graça. – Foi o tio Munin, não foi?
Olhando aquele homem estranho, de aparência até agradável e
simpática, mas que além de invadir a casa, furtou uma camisa e agora procurava
câmeras imaginárias, a mulher não viu outra escolha, tornou a erguer o
espanador.
- Vamos tio, pode sair! – continuava a correr os olhos pela casa até pará-
los novamente na mulher. – Você atua muito bem, devo admitir.
Receosa de que o jovem resolvesse agir ao perceber que o efeito do que
tomara havia passado, a mulher viu-se compelida a gritar outra vez.
- Senhor Holister! Tem um maluco aqui em cima vestindo uma camisa
do senhor Ferdinand! Chame a polícia!
- Polícia? Não, por que a polícia? Já disse que esta brincadeira não tem
mais graça!
- Senhor Holister! Senhor Holister! – Continuava a gritar.
- Mais que droga! Quem é Ferdinand? – August começou a gritar
também, balançando freneticamente a cabeça de um lado para o outro, se
afastando da mulher que demonstrava um descontrole perigoso.
De repente, August que já pensara em iniciar outra frase, parou. Um
breve instante para raciocinar. Lucidez.
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Espera aí. Pensou um pouco e encontrou algo familiar naquela confusão


toda.
- Você disse, senhor Holister?
- Sim meu caro August, foi o que ela disse. – Respondeu um senhor de
cabelos grisalhos, alto e magro, bem vestido com uma camisa branca e um
paletó marrom, acabando de subir as escadas, atraindo os olhares de ambos.
Claro que o do jovem era de extrema surpresa. – Eu sou Rodolph Holister,
grande amigo do seu avô – sorriu um tanto ofegante – e Ferdinand é meu filho
mais novo.
Tanto August quanto a governanta arregalaram os olhos, cada um por
seu próprio motivo.
- O senhor conhece este maluco?
- Sim Daiane, eu o conheço. Na verdade, não o conheço pessoalmente,
– fez uma expressão confusa enquanto estendia o braço apontando para August
– mas já ouvi falar. Pode voltar ao trabalho tranquila, ele não representa perigo.
– Respondeu o velho com uma tranquilidade, no mínimo, curiosa. Mantendo um
discreto sorriso de satisfação acrescentou – Pode deixar que eu termino de
receber nosso ilustre convidado.
Convidado? É cada um que aparece. Pensava Daiane enquanto recolhia
as roupas, colocando-as de volta no cesto.
August, mesmo não entendendo absolutamente nada da situação, a
ajudou, de forma automática, quando percebeu já estava com toalhas nas mãos.
Era de fato um bom rapaz.
Com uma expressão ainda mais confusa e perdida, de certa forma
assustada, logo que Daiane se retirou, August novamente de pé, olhou
firmemente para o velho que surgira diante de seus olhos, como uma pessoa
normal, e parecia não acreditar no que via.
Não era para o senhor estar morto? E por que aparenta ser tão jovem?
Eram as perguntas que fazia em sua mente. Era educado demais para ser tão
direto assim logo de cara, mesmo se tratando de um sonho, como pensava.
Antes que Rudolph Holister falasse algo mais, pois já se preparava para
tal, August balançou rapidamente a cabeça de um lado para o outro novamente,
como se estivesse tentando acordar de um pesadelo. Não conseguiu.
- Seja o que for que esteja acontecendo aqui, pode esperar um pouco.
– Passando pelo velho de maneira acelerada, começou a descer as escadas,
chegando até a pular alguns degraus.
- Onde vai? – perguntou Rudolph quando o jovem já se encontrava a
meio das escadas.
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- Preciso ir ao banheiro!
- Mas temos banheiro aqui em cima! – gritou sem entender.
- Eu sei! – respondeu no mesmo tom, sem olhar para trás – Eu moro
aqui!
Observando de longe, Daiane arqueou as sobrancelhas e apontou para o
telefone fixo no canto da sala de estar.
- Polícia – falou em tom reduzido e quase que por separação silábica.
Recebeu apenas um sorriso simpático e um leve balançar lateral de
cabeça de seu patrão.
Desde que se mudou, August só utilizava o banheiro do primeiro andar.
No começo era para se exercitar tendo que descer e subir as escadas, agora,
tornou-se uma questão de hábito.
Neste momento na cabeça do jovem, pairava um único pensamento.
Que eu não molhe a minha cama, por favor, que eu não molhe a minha
cama.

Capítulo 2

Ao retornar, após lavar o rosto inúmeras vezes tentando acordar, August


reparava os objetos antigos espalhados pela casa.
Definitivamente, estas não são as minhas coisas. Mas que droga! Um
sonho dentro de outro. Sabia que não deveria ter assistido A Origem tantas
vezes.
Não foi preciso subir as escadas para ir atrás de explicações. August era
esperado para se juntar a família à mesa e tomar o café da manhã.
Achegou-se meio sem graça.
- Por favor August, sente-se.
Rudolph Holister, ao que tudo indica, anfitrião da casa, o convidou e o
apresentou a seus familiares como um amigo, apresentando também sua família
a ele.
- Bom, esta é minha governanta Daiane que você já conhece – não
segurou alguns risos. – Só não leve em consideração aquela famosa frase “a
primeira impressão é a que fica”, pois ela é um amor de pessoa. – Estendia o
braço na direção da pessoa que apresentava. – Este aqui é meu filho Ferdinand,
que involuntariamente lhe emprestou a camisa que esta vestindo – brincou.
O desconforto do visitante agora, era mais do que evidente.
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- Peço desculpas por isso. Sinceramente pensei estar vestindo meu


uniforme, se quiser posso tirá-la agora mesmo, apesar de achar que ficou muito
bem em mim. – August tentava quebrar a tensão ajeitando a camisa em seu
corpo.
- Não cara, tudo bem, pode ficar com essa – respondeu o também jovial
e atlético Ferdinand Holister, aparentando ser um pouco mais novo que August.
– Agora se tivesse pegado a minha relíquia do Pink Floyd autografada, com
certeza você teria arrumado problemas – concluiu bem-humorado passando
enfaticamente os dedos sobre o cavanhaque.
Todos acompanharam os jovens na descontração. Sem precisar de muito
esforço, August logo foi se soltando.
- Me deixem terminar, pois guardei o melhor para o final! – Olhando
para a mulher a sua direita, o velho sentado à mesa continuou – Esta é minha
bela esposa Suzan, a mulher que, me apropriando das palavras de Shakespeare,
me fez “duvidar da luz dos astros, do calor do sol, até da mais pura verdade, mas
confiar em meu amor” – alisava o branco bigode enquanto a apresentava – pois
foi através dele que encontrei a felicidade, a mais pura e completa felicidade,
somente ao seu lado.
- Hum... – provocaram-no Ferdinand e Daiane.
- Rud, assim você me deixa encabulada – disse Suzan com expressão
tímida.
- Ah, para com isso mãe, o pai faz essas declarações cafonas para a
senhora toda hora, em qualquer lugar e na presença de qualquer um, tenho
certeza que já se acostumou.
- Aprenda uma coisa meu filho, – limpou suavemente os lábios com um
guardanapo – para uma mulher, em qualquer relacionamento, um elogio é
sempre bem quisto e deve ser recebido com a mesma emoção do primeiro,
aquele inesperado, apaixonado. E para os homens, convém fazê-los sempre, em
qualquer ocasião e na presença de qualquer um. Isso ajuda a manter acesa a
chama da paixão, a qual já nos acompanha há mais de vinte anos. – Respondeu
a maquiada e bem vestida Suzan Holister, olhando e pegando na mão do marido.
- Nossa vocês sempre me surpreendem! – Comentou Daiane em tom
choroso enquanto recolhia algumas xícaras da mesa. – Gostaria de arrumar um
marido romântico assim... e que aguente pegar no pesado.
Todos riram embaraçados e olharam para ela, simultaneamente, no
entanto, só August demonstrava surpresa.
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Terminaram, sem perguntas, calma e agradavelmente o café e cada um


seguiu com seus afazeres, ficando apenas August e o Sr. Holister sentados à
mesa, a pedido do, pode-se dizer agora, atual anfitrião.
- Bom meu rapaz, acho que já é hora de tentar esclarecer algumas de
suas dúvidas, não é? Apesar de ter certeza de que serei eu quem fará a maioria
das perguntas. – Levantou-se e ajeitou o paletó marrom, com tons a combinar
com a cor de seus cabelos.
- Discordo – brincou –, mas tudo bem.
O velho pôs-se a andar.
- Esta conversa pede um lugar mais reservado, venha até meu escritório,
sei que não será necessário lhe mostrar o caminho – sorriu simpático.
August assentiu. Desde que começara a refeição, sua expressão seguia
leve, tranquila. Decidira se deixar levar pelo seu inconsciente, ainda mais depois
que provou o delicioso e bem real, bolo feito por Daiane.
Talvez eu esteja na Matrix. Expirou junto a um sorriso.
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Nada além de um sonho


Após entrarem e se acomodarem no escritório, mais parecido com uma
biblioteca, Rudolph Holister, respirando fundo e cruzando as pernas, tomou a
palavra.
- Antes que você me faça perguntas, e eu sei que possui várias, deixe-
me contar uma história.
- Este lugar está exatamente como o encontrei quando me mudei. Como
pode ser tão preciso? – interrompeu August retoricamente, observando os
detalhes do lugar, mantendo o mesmo olhar perdido e expressão incrédula
apresentada no início da manhã.
Minha memória espacial está de parabéns, é boa até no inconsciente.
Antes de continuar, Rudolph direcionando um olhar de certa piedade a
August, engoliu seco.
Nossa! Ele não sabe mesmo de nada!
- Meu caro August, sei que incertezas o dominam agora, porém, preste
atenção no que vou lhe dizer e tenho certeza que em breve tudo será esclarecido.
Mesmo que a luz utilizada para isso seja totalmente desconhecida.
O velho tentava obter um mínimo da atenção do jovem, que lutava para
se concentrar, procurando de todas as maneiras entender a bizarra situação.
- Há cerca de um ano e meio, recebi uma estranha carta feita de papiro.
– A frase surtiu efeito. Logo que ouviu a palavra papiro, August trouxe seu foco
para o velho.
Ah claro, é a continuação do pesadelo.
- O texto escrito nela, dizia o que eu deveria fazer em relação a um
pergaminho antigo que, hoje encontra-se em minha posse.
- Deixe-me adivinhar: – interrompeu erguendo uma das mãos – um
pergaminho que fala sobre uma inusitada crença egípcia e talvez um motivo que
legitime, por preceitos explicitamente religiosos, o poder dos faraós?
- Sim. – Rudolph trouxe à tona uma expressão curiosa. – Acredito que
é melhor eu não perguntar como sabe disso, estou certo?
August deu de ombros.
- Sabe, antes eu acreditava que sim, mas agora estou mais liberal,
disposto a desfazer a compartimentalização de informações sobre esses assuntos
– sorriu um tanto indiferente.
- De acordo – assentiu Rudolph. – Deixe-me terminar de contar a minha
história, que será um prazer ouvir a sua.
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O jovem apenas desceu e subiu a cabeça.


Os dois, apesar de aparentarem tranquilidade, carregavam olhares
repletos de dúvidas e incertezas.
- Bom, indo direto ao ponto, de acordo com a carta recebida não tenho
ideia da sua origem, eu deveria, ainda sobre o pergaminho – gesticulava
– "guardá-lo em casa e não entregá-lo a quem eu pretendia entregar, pois seria
perigoso".
August fez que ia interromper, mas se conteve.
- Primeiramente, como é de se esperar, fiquei receoso a respeito de sua
procedência, afinal poucas pessoas sabiam da existência de tal relíquia, sendo
que algumas delas realmente são perigosas, o que poderia caracterizar tal
conselho como sendo uma armadilha. No entanto, percebi que o selo fixado no
envelope era o mesmo selo encontrado em outras cartas com características
peculiares, como você já deve saber, creio.
- Como assim já devo saber? – August deixou exaltar-se um pouco,
queria tirar a prova, as peças estavam se encaixando de uma forma perfeita
demais, até mesmo para ele. Levantou-se da poltrona em um único e abrupto
movimento. – Entendi tudo o que o senhor disse porque estranhamente eu tive
um longo sonho com isso antes deste, inclusive o senhor estava nele, bom, pelo
menos seu nome estava... – gesticulou desajeitado – enfim, nele eu acabei
misturando a realidade, como é característico dos sonhos, com essas tais cartas
malucas, – sacudia a cabeça – porém, tudo não passou de um pesadelo, igual ao
que estou tendo agora. Um sonho dentro de outro sonho, igualzinho ao filme A
Origem. E, apesar de não ter um inconsciente treinado para me proteger de uma
fantasiosa extração, eu sei que estou sonhando, sabe por quê?
O velho não mudara a expressão desde o início da conversa, nem mesmo
frente a postura ofensiva do rapaz.
- Porque o senhor está morto! – concluiu o jovem alterando
consideravelmente o tom de voz.
A incômoda sensação de perder o chão voltara com força máxima. Foi
preciso August se debruçar sobre a mesa para não se espatifar.
O que começara como uma encenação para obter respostas conclusivas,
acabou por se transformar em uma real e sincera manifestação dos conflitantes
pensamentos e sentimentos que preenchiam o jovem.
- Acalme-se August – pediu o Sr. Holister com extrema serenidade. –
Peço por favor que se sente e me deixe terminar de falar, depois tire suas
próprias conclusões. De momento, a única verdade que posso lhe garantir, é que
nunca estive tão vivo.
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O jovem respirou fundo uma, duas, três vezes, esforçando-se para


retomar a compostura. Erguendo-se com cautela, sem óculos, esfregava os olhos
e passava forte os dedos pelo couro cabeludo.
- Perdoe-me pela grosseria senhor Holister – dizia visivelmente contrito.
– Acontece que estou bem confuso e... – fez uma longa pausa após sentir seu
coração acelerar – perdi uma pessoa muito querida se essa história das cartas
realmente for... – não acreditava no que ia dizer – verdadeira.
- Lamento muito em saber disso filho, lamento mesmo.
O jovem, agora com o olhar vazio e ao mesmo tempo assustado, tentava
controlar a respiração.
- Tudo bem, obrigado. Por favor continue. – Certo de que perderia o
chão outra vez, sentou-se.
- Pois bem, como eu dizia, ao reconhecer o selo, falei com um amigo e
decidi fazer o que o remetente da carta pedia, porém, como ainda havia muito
espaço nela, respondi antes perguntando o porquê – gesticulava –, querendo
obter mais detalhes, mesmo não sabendo como enviá-la. – Pausou ao perceber
melhoras na expressão do jovem. – Escrevi e por dias pensei em uma maneira
de mandá-la para o remetente original, mas nada me ocorria. Até que em uma
tarde, brincando com meu neto...
- Frank? – August não se conteve.
- Exato, Frank. Você o conhece?
- Sim, sim. Tivemos algumas experiências juntos. – Forçou um sorriso.
– Mas, pode continuar, me desculpe pela interrupção. Só pode estar de
brincadeira. Meu cérebro está se superando.
- Certo. Então, pensei tê-la perdido, a carta – confirmou para ter certeza
de que August o estava acompanhando – pois ela estava em cima da cama
quando ele chegou, aí mais tarde quando fui procurar, havia sumido.
- Pelo visto a habilidade de gatuno chegou cedo – sussurrou sorrindo,
agora sim, de forma espontânea.
- Perdão, como é? – perguntou o Sr. Holister interrompendo mais uma
vez a história.
- Não, nada. Prossiga.
- Pois bem, alguns dias se passaram desde então, até que curiosamente
eu a encontrei no mesmo lugar onde a havia visto pela última vez.
- Em cima da cama – interveio o jovem.
- Exato! Foi quando percebi que poderia ter conseguido o que desejava
e agora ela retornara com novas informações – fez uma pausa para enfatizar o
momento, parecia repetir os gestos e expressões do momento vivido. – Foi
27

exatamente o que aconteceu! – não conteve a empolgação, continuou a contar


de maneira frenética – Eu tinha perguntado simplesmente o porquê de ter que
tomar aquela atitude em relação ao pergaminho e o remetente respondeu que
não poderia escrever muito pois estava sendo vigiado, que eu teria informações
em breve e que um jovem chamado August me faria uma visita e explicaria tudo,
pois fora quem herdara esta casa no futuro.
August arregalou os olhos.
Meu Deus! Preciso mesmo parar de assistir ficção científica antes de
dormir.
- Tais palavras me deixaram ainda mais confuso, então procurei seu avô,
o meu grande amigo e companheiro de pesquisa – enfatizou –, e resolvemos
pedir mais detalhes enviando novamente a carta, mas, infelizmente, ela nunca
retornou. A única pista que temos do possível remetente é a assinatura, que na
verdade pode significar suas iniciais ou a sigla de algo, algum lugar talvez,
escrita no fim do papiro: “LHC ”.
Caramba! Isso só piora. Pensava August enquanto tentava organizar as
peças, não mais tão bem encaixadas como ele acreditava. Mesmo assim,
sabendo que o foco era sua principal arma contra os efeitos do sabe-se lá o que
estava tendo, entrou no jogo.
- Certo, vamos deixar a indagação mais complexa para depois e
começar, aparentemente, com a mais simples.
- De acordo. – O velho Rudolph Holister mantinha a expressão
acolhedora.
Uma última inspiração profunda foi necessária.
- Como sabe que este seu grande amigo e companheiro de profissão é
de fato meu avô?
- Esse foi um belo palpite, reconheço, a rodagem que temos, seu avô e
eu, contribuiu bastante. Fico feliz por ter acertado, seria estranho se assim não
fosse – respondeu sorrindo. – O que me levou a tal dedução foi o fato de eu já
ter feito o testamento e colocado seu avô como herdeiro desta casa, afinal foi ele
quem me ajudou a consegui-la, praticamente deu-a para mim, e minha esposa e
filhos foram totalmente de acordo com isso. Ele é quem ainda não sabe –
expandiu o sorriso.
- Porque se souber, não irá aceitar – completou o jovem satisfeito.
- Exato. Está vendo como acertei em cheio? – Brincou.
- Mas isso não significa muita coisa. Ele poderia tê-la vendido – rebateu
o jovem.
28

- Acha mesmo que seu avô venderia uma casa como essa? Ainda mais
se fosse uma casa com histórias para contar e presente de um amigo?
- Tem razão… não venderia – foi obrigado a concordar.
- Outro aspecto importante da minha conclusão é sua entonação.
- Ahm?
- O jeito como fala e gesticula, é muito parecido com seu pai Huginin,
presumo. – O jovem fez que sim com a cabeça. – E também idêntico ao seu avô.
Hoje, você e Huginin parecem irmãos.
August deixou sobressair o lábio inferior.
- Aí você ligou isso tudo ao futuro herdeiro como dizia a carta e
descobriu quem sou, ou quem serei, sei lá?
- É isso aí.
- Ok. Concordo que foi uma bela dedução. Vamos prosse... – August
parou de falar de repente.
Rudolph deu a ele alguns segundos de silêncio, imaginando que ele
ordenava a sequência de perguntas. Não foi o necessário. Mais de um minuto se
passou e o silêncio manteve-se. Quando decidiu interpelar o jovem, ele o
interrompeu.
- Com licença – já estava de pé. – Preciso ir ao banheiro outra vez.
- Tudo bem, eu aguardo.

Capítulo 4

Jogando água em seu rosto pela terceira vez em menos de trinta


segundos, August encarava o espelho. Mesmo com pensamentos distantes,
conseguiu focar por um breve instante em sua fina e mal distribuída barba, que
já crescera o suficiente para começar a lhe incomodar.
August sabia que em sonhos a dor, o medo, o prazer, são tão reais quanto
ao que sentimos quando estamos acordados. Mesmo quando temos o
inconsciente no comando, a materialização das sensações ocorre quase igual e
simultaneamente, às que recebemos por estímulos externos.
O luto pela suposta morte de seu pai ainda não se fazia presente, até
porque é necessário acreditar que alguém faleceu para sentir a dor da perda. O
problema era que ainda assim, August a sentia, não a dor de quando se perde
alguém próximo, alguém que ama, mas uma dor estranha, diferente, uma dor de
perder alguém por saber que este, nunca existiu.
29

Como isso pode ser tão real? Olhava para suas mãos espalmadas. Eu
sequer a conheço de verdade.
O barulho da água da torneira jorrando o atentara para a realidade que
ele insistia em negar.
Mesmo nunca tendo estudado os sintomas, as causas ou alguma forma
de tratar ataques de pânico, mesmo sem nem saber que estava de fato tendo
ataques de pânico, August conseguiu cessar todo o mal-estar que sentira no
escritório do Sr. Holister. Seu único incômodo agora, era bem diferente,
limitava-se a uma sensação, a um sentimento forte e indefinido, a uma pessoa.
Ana Schmidt.

Rudolph Holister aguardava o inusitado convidado sentado no mesmo


lugar e com a mesma postura de quando interromperam a conversa.
É claro, ele continua ali. Pensava August ao adentrar. Foi ali que o vi
pela última vez, ali meu cérebro o irá colocar. Lógica simples. Convencia-se.
- Então August, tudo bem? Se quiser podemos conversar uma outra
hora.
- Não, vamos continuar. – Pensava no tempo médio de duração de um
sonho, na verdade buscava estimar o tempo médio, visto que os sonhos se
parecem tanto com a realidade que o único fim forçado a surgir no horizonte, é
a morte. – Vamos prosseguir, ver onde isso nos leva.
- Ótimo. Você perguntava... – estendeu o braço.
O jovem demorou alguns segundos para se situar, organizar as dúvidas
e seguir de onde havia parado.
- Certo. Diga-me onde está o pergaminho?
- No quarto de hóspedes, dentro de um belo espelho dos anos 40. –
Respondeu sem o menor receio, demonstrando plena confiança no visitante.
- Isso também faz sentido, foi lá que o encontrei quando me mudei para
esta casa, inclusive onde hoje é o meu quarto, ou será, não sei. – Fez mais uma
expressão esquisita, bastante confusa ao proferir a última frase. Em seguida,
permaneceu pensativo por um instante, o foco aos poucos voltava a ser
inteiramente na conversa. – Mas, por que o senhor disse que é de hóspedes,
aquele não é o quarto do seu filho Ferdinand?
30

- Ferdinand é um hóspede. Ele não mora aqui, não mais, apenas


aproveitou as férias para nos visitar – respondeu simpático e rapidamente trocou
de assunto. – Percebi que, como seu avô, você se apega aos detalhes, não é?
August balançou a cabeça positivamente, meio que dando de ombros
depois.
- Então deixe-me fazer uma pergunta nesta mesma linha de pensamento
– Rudolph fechou parcialmente as pálpebras. – Por que decidiu fazer daquele
quarto o seu, se o meu é muito maior e confortável, com banheiro, uma bela
vista e tudo mais?
À mente de August veio a imagem de seu pai, que com certeza havia
descoberto a resposta para essa pergunta no dia dos filmes do Capitão América,
no sonho que tivera antes deste.
- Bom, isso é porque aquele quarto recebe a revigorante luz matinal do
sol durante boa parte do ano – respondeu desviando o olhar, que normalmente
encontra-se compenetrado durante as conversas.
A resposta pareceu automática.
- E o que mais? Vamos lá, diga. – Insistiu o Sr. Holister quase fechando
os olhos por completo, como se estivesse desconfiado de algo.
- Pela luz solar e ...
- E...
- ... porque não gosto da ideia de dormir no quarto de um morto, ou pelo
menos que eu sei que fora o quarto de um morto – fez uma careta enrubescida.
– Com todo respeito.
- Eu sabia! – bradou extrovertido quase assustando o jovem. – Você é
igualzinho ao seu avô: postura séria e impecável, pragmático e detalhista,
racional ao extremo, todavia, cheio de superstições. – Concluiu sorrindo.
August acanhado, foi obrigado a concordar.
- Afinal, quem não tem? Mas... – fez uma pausa para conseguirem se
focar no assunto mais importante da conversa novamente – vamos voltar ao que
de fato interessa, pois, receio que a próxima pergunta vai abalar completamente
tudo o que conheço sobre o universo, de uma forma geral, dependendo da
resposta. Vamos ver até onde você vai cérebro.
A expressão de Rudolph mudara.
- Então, vamos a ela.

Mesas ao ar livre, sombra boa para se refugiar do sol da manhã e um


clima bem agradável a volta, convidativo a um bom café para começar a semana.
31

Murmurinhos aqui e ali entre um conhecido e outro, mas nada de turistas


por agora, pelo menos não muitos.
Ocupando uma das mesas retangulares para quatro pessoas, um jovem
de cabelos claros, lisos, até um pouco abaixo das orelhas, segurava a cabeça com
as mãos para não dormir. Seus cotovelos, apoiados na madeira clara, dançavam
a medida que o peso saia do pescoço e despencava sobre eles.
As cadeiras de cor marrom-escuro eram confortáveis e para a sorte do
rapaz, possuíam encosto, responsável por segurá-lo pelo menos umas duas
vezes, quando sua cabeça ao invés de ir para frente, foi para trás.
Dois homens, sentados próximos ao rapaz, observavam curiosos a cena.
- Ele está dormindo?
- Não – abriu um largo sorriso. – Ele está pescando.
Gargalharam tão alto que o próprio rapaz despertou em um solavanco.
- Vou até ele. – O homem de bigode que havia feito a piada, levantou-
se com duas xícaras nas mãos.
- O que?
- O rapaz precisa de ajuda, não vê? – Sorria maliciosamente. – Vai
acabar caindo da cadeira.
- Mas, isso não faz parte do plano.
- É, estou sabendo. Mas, vou improvisar. – Olhava em volta. – Preciso
garantir que ele faça o dele, para que consigamos fazer o nosso.
Um pouco antes de chegar ao jovem, o homem parou um garçom e o
pediu para encher as xícaras com café.
- Aí cara – o abordando em inglês, colocou as xícaras sobre a mesa. –
Você parece um pouco cansado.
O jovem esfregou os olhos por baixo dos óculos escuros.
- Nem fala – mal conseguiu abrir os olhos sem a proteção das lentes ao
direcioná-los para seu interlocutor. – Estou numa ressaca daquelas. – Esticou o
braço. – Senta aí.
O homem sentou e ambos deram um senhor gole no café escaldante.
- Odeio café – fez uma careta. – Mas eu precisava, obrigado. – Estendeu
a mão. – Munin, prazer.
- Doutor Hill – cumprimentou-o. – Na verdade, é Hillebrand, mas
prefiro que me chame de Hill.
- Doutor? Então estou na companhia certa – ergueu a xícara como se o
saudasse.
- Não – sorriu sem graça – lamento, mas não sou esse tipo de doutor.
32

- Ah que pena! Eu ficaria bem contente se você tivesse um bloquinho


de receitas aí no bolso.
- Eu imagino – soltou um riso meio forçado, mas precisava admitir que
fora uma boa piada. – Mas diz aí, o que lhe traz às confortáveis camas da Plazza
Cementerio de San Nicolás?
Foi a vez do jovem admitir a piada.
Com a xícara na boca, Munin respondeu com um único movimento de
cabeça.
- Veio pela vista? – Insistiu o Dr. Hill imaginando que o jovem apontara
para o Calle Mirador, uma pracinha a uns trinta metros dali com uma vista
incrível de Granada, a perder no horizonte.
- Não, pela igreja.
- Se veio para a missa, você a perdeu.
- Não vim por ela – outro gole no café. – Aliás, quem vai a uma missa
às nove da madrugada?
- Não sei – franziu a testa. – Todos os cristãos?
- É – expirou sorrindo. Logo que terminou de responder o sino tocou.
– E por falar nisso, eu preciso ir – espreguiçou-se na cadeira antes de levantar.
– Doutor que não é doutor, foi um prazer.
O homem lhe devolveu a saudação de antes erguendo a xícara.
Até breve meu caro Munin, até breve.
- Então Sir Lancelot, ele está com a carta? – Perguntou o homem que
antes encontrava-se sentado com o doutor.
- Não, está indo pegá-la. – Mantinha os olhos no jovem que seguia rumo
ao Mirador, na direção contrária aos fiéis, caminhando na calçada ao lado da
igreja.

Capítulo 5

Outra pausa foi necessária, o momento pedia.


August preparava-se para descobrir quão fértil era sua imaginação, ou o
quão louco havia se tornado do dia para noite.
- Por favor, me diga... – o jovem esfregou os olhos por baixo dos óculos,
não conseguia acreditar que estava sendo capaz de criar tudo aquilo – que dia é
hoje?
O velho titubeou.
33

- Já esperava que essa fosse a tal pergunta complexa e, confesso que


estou ansioso e receoso ao mesmo tempo para ver sua reação ao ouvir a resposta,
por isso precisa me prometer que, assim como eu, não vai surtar, mas procurar
uma explicação racional para o que está prestes a ouvir.
August já havia decidido se deixar levar pelo sonho, e se isso incluía
participar com seriedade da bizarra situação por ele mesmo criada, que assim
seja.
- De acordo, eu prometo. E, mais uma vez, me desculpe pelo chilique
da outra hora. – Sentia-se mesmo envergonhado por ter se deixado levar pelas
emoções mais uma vez.
- Ok, sem problema. Então lá vai... hoje é – deixou sobressair o lábio
inferior – segunda-feira, 17 de setembro.
Devo ter dormido por uns 10 meses. Não é tanto assim. Brincou em sua
mente.
O jovem engoliu seco antes de prosseguir.
- Dezessete de setembro de?
- Posso dizer? Tem certeza de que não vai pirar? – insistiu Rudolph
tentando utilizar uma linguagem mais próxima da utilizada pelos jovens, pelo
menos pelos jovens de sua época, meio que para descontrair.
- Tudo bem, pode dizer. Irei me conter. Prometo – ergueu a mão como
em um juramento.
- Certo. Estamos no dia 17 de setembro de 1984.
August não se levantou da poltrona dessa vez, quase caiu dela.
- É brincadeira não é? Vocês continuam com a pegadinha de cedo?
- Receio que não.
- Continuam sim, e não tem graça.
Rudolph apenas balançou a cabeça.
- Então, está me dizendo que eu voltei no tempo? – questionou incrédulo
e cético. – Eu voltei mais de 30 anos no tempo?
- Por mais incrível que pareça, sim, é a explicação mais plausível.
- Plausível? – Expirou irônico sem saber como reagir.
Tentava respirar e conter-se, mas o fato de estar considerando acreditar,
mesmo que contracenando em um sonho, não estava permitindo.
- E, como isso é possível? – Insistiu levantando-se.
- Olha, olha. Você prometeu. – Rudolph tentou intervir e evitar a
descompostura de August, porém não foi necessário. Percebeu logo que a
alteração não refletia o que o jovem de fato estava sentindo ou, principalmente,
acreditando. Está em negação.
34

- Até li muito a respeito, sou de fato um aficionado por este tema, mas
estamos longe de descobrir algo desse tipo. Agora, de uns poucos dias para cá,
ou anos, não sei! – o último pedaço da fala recebeu um tom ainda maior de voz
– Conheci cartas que viajam através da estrutura tempo-espaço, perdi meu pai e
acabei vindo parar a mais de um ano antes do meu próprio nascimento! Ou isso
é um sonho, ou fiquei louco!
- Sei...
- Ou as duas coisas! – Interrompeu ele já andando pelo cômodo. – É
isso! Com certeza são as duas coisas.
- Sei como se sente August.
- Sabe? – Indagou condescendente.
- Sim – arqueou as sobrancelhas. – Consegue imaginar como me senti
quando você apareceu de repente dentro da minha casa, vindo possivelmente do
futuro, cumprindo uma espécie de profecia escrita em uma carta antiga vinda
nem sei de onde e escrita por nem sei quem?
Pela primeira vez desde seu despertar, August parara para pensar no que
alguém, além dele, estava sentindo ou pensando com tudo aquilo que estava
acontecendo. Pensamento este que não durou muito.
O sonho é meu! Só importa o que eu sinto ora!
- Também estou sedento por respostas lógicas que expliquem tudo isso
meu jovem – completou o Sr. Holister.
August se recompusera em partes e voltou novamente a tratar tudo como
uma situação real.
- De fato, o senhor tem razão. – A maldita sensação de estar caindo em
um poço fundo batia a porta. August sabia que era preciso se acalmar, e
precisava fazer isso rápido.
- Está tudo bem filho?
- Está, foi só uma tonteira. – Disfarçou. – Acho que entendo como o
senhor possa estar se sentindo. Se eu puder lhe esclarecer algo, ficarei
extremamente satisfeito. – Respirou fundo. Se recompôs por completo, pelo
menos externamente.
- Agradeço. E, para começar, você poderia tentar lembrar o que lhe
aconteceu antes de acordar no meu quarto de hóspedes, seu futuro quarto, esta
manhã e… talvez, me contar. – Sorriu meio sem graça. – Isso já ajudaria
bastante.
O jovem voltou a sentar-se.
- Não é necessário que eu tente, me lembro perfeitamente de tudo que
aconteceu antes de vir parar aqui, desde a visita surpresa dos meus pais, até o
35

provável fim do mundo, engolido por um enorme buraco negro ou coisa


parecida.
- Uh! – o velho assustou-se – Parece que este será um primeiro passo e
tanto.
- Desculpe senhor Holister, eu deveria ter ido mais devagar, não é?
- Não tudo bem, eu só não esperava uma informação dessa logo de cara.
– Os olhos do velho teimaram em ficar arregalados por alguns segundos.
- Quer que eu comece do momento em que descobri sobre as cartas? –
Perguntou torcendo por um não. Definitivamente não estava nem um pouco a
fim de contar todo o sonho que tivera antes, dentro do sonho de agora.
- Ainda não. Uma história como esta merece uma plateia maior, com
certeza. Poderia apenas me contar brevemente sobre essa sua última
lembrança?
- Claro. Como desejar. – Neste momento August não se importava com
mais nada, queria apenas seguir logo aquele infindável caminho traçado por sua
mente, torcendo para que chegasse ao fim da mesma maneira que iniciara.
- Obrigado. – Juntou as mãos. – Imagino o quanto isso deve ser difícil
para você.
August fechou por um instante os olhos e respirou fundo antes de
prosseguir, parecia efetuar um profundo mergulho para dentro de si, não para
acessar as lembranças, pois essas já estavam bem vivas, mas as emoções.
- É... – expirou.
- August, se não quiser...
- Planetas com a estrutura muito parecida com a da Terra vistos de longe
surgiram no céu, – interrompeu o anfitrião já começando a contar – assim como
um imenso buraco negro que, rasgando a estrutura tempo-espaço, os sugava e
se aproximava da Terra rapidamente. Esta por sua vez, parecia ter saído
completamente de sua órbita, sendo atraída pela força gravitacional do
fenômeno. – Falava de forma acelerada. – Vários tremores ocorreram e tudo a
nossa volta começou a se desmaterializar a medida que ele se aproximava. De
repente, fomos ofuscados pela intensa luz provinda do seu centro, tão próximo
que parecia o próprio sol.
Foi a vez do atual anfitrião engolir seco e não conseguir disfarçar a
insegurança.
- Caramba! Por essa eu realmente não esperava. Estou ansioso e um
tanto preocupado para ouvir o restante da história. – Comentou um pouco
empolgado e assustado, ao mesmo tempo.
36

August levantou-se novamente com um semblante angustiante. Estava


demorando demais para acordar.
Deu alguns passos em direção a porta e parou. Se virou devagar na
sequência e olhou diretamente para o anfitrião, ainda sentado ao lado de sua
escrivaninha.
- Me desculpe senhor Holister, mas o restante terá mesmo que ficar para
mais tarde, espero que consiga a plateia – brincou. – Confesso que apesar de ter
levantado a pouco tempo, me sinto cansado e gostaria de tirar um cochilo no seu
quarto de hóspedes, se não for incômodo.
- Não é incômodo algum August, descanse o quanto precisar,
conversamos depois. – Respondeu acolhedoramente.
August deu mais alguns passos e assim que colocou a mão na maçaneta
da porta para abri-la, Rudolph o indagou de forma séria, porém serena.
- Você ainda acha que está sonhando, não acha?
Ele terminou o movimento de abrir a porta e desta vez sem se virar
respondeu com um tom de voz ainda mais baixo do que o costumeiro.
- Não senhor Holister, eu não acredito que isso seja um sonho, eu desejo,
ou melhor, preciso que tudo o que está acontecendo não passe de um sonho. –
Saiu do escritório indo em direção ao quarto, esboçando um discreto sorriso
quando Daiane colocando-se em posição de ataque, lhe apontou o espanador
pelo caminho.
37

Temos companhia
Sentado no cercado de pedra com menos de um meio metro de altura
que delimitava a praça, de costas para a vista responsável por trazer os turistas
ali, Munin aguardava o sacerdote que conversava com alguns fiéis em frente à
igreja.
O céu limpo, o clima agradável e as árvores de tronco fino dali já
chamando o outono, deixavam o lugar ainda mais bonito e inspirador, no
entanto, Munin apenas lutava contra o desejo de botar as pernas para cima dos
blocos de pedra do cercado, se deitar e tirar um longo cochilo.
- Ei, você me parece ser o senhor Munin – disse o reverendo se
aproximando.
Munin levantou-se para cumprimentá-lo.
- Em minha defesa, esta cidade é bem barulhenta, ainda mais nos fins
de semana.
- É sim, com certeza – ironizou. Enfiou a mão no envelope que trazia e
retirou uma folha dobrada como uma carta, fechada com um lacre dourado. –
Aqui está o...
Munin fez um movimento rápido para evitar que o padre retirasse por
completo a carta do envelope.
O religioso se assustou.
- O que foi?
O jovem olhara rapidamente para os lados.
- Não foi nada, me desculpe. São maus hábitos da profissão –
desconversou. – De qualquer forma, muito obrigado.
- Nós é que agradecemos. A doação que a sua família fez para a paróquia
foi muito generosa, ainda mais por documento não aceito pelos historiadores. –
Antes de entregar de vez o envelope, o padre sentiu-se na obrigação de ser
sincero.
- Tudo bem, nós já sabemos. – Respondeu Munin se virando, colocando
o envelope em seu tronco, debaixo da blusa e o prendendo em sua cintura,
cegando a apertar o cinto para tal.
- É realmente uma fonte incrível – insistia. – Remete-se aos reis
católicos Fernando II e Isabel I e até sobre a viagem em que Colombo descobriu
a América, todavia, é uma pena que o tenham considerado forjado.
- É... – terminava de se ajeitar – é uma pena mesmo. Mesmo assim, nós
te agradecemos – despediu-se com outro forte aperto de mão.
38

Sem entender nada, o presbítero viu o jovem se afastar com pressa,


refazendo o caminho feito até chegar ali, ou seja, indo de novo até a Plazza
Cementerio.
Seguindo pela calçada na lateral da igreja Sancte Nicolae, Munin viu
um dos homens das gargalhadas de mais cedo se levantar, olhando
disfarçadamente para ele.
Dois jovens que vinham conversando em cima de suas motos, passaram
na frente de Munin, que esperava para atravessar a rua, vindos da direita. Em
um movimento ousado, de pura habilidade, Munin derrubou um dos rapazes e
virou a moto cento e oitenta graus quase no ar, montando nela e saindo em
disparada pela via por trás da igreja.
O homem vestido com um fino casaco preto que fitava Munin antes de
perdê-lo de seu campo de visão, olhou para trás, na direção do homem que o
acompanhava, o Dr. Hill.
- Vai atrás dele!
Com a mesma habilidade de Munin, ou quase, o homem se apoderou da
moto do rapaz que ajudava seu amigo a se levantar e acelerou a BMW R80 G/S
branca e vermelha pelas estreitas ruas daquela parte da Andaluzia.
Retirando a peruca e o bigode falso, o Dr. Hill seguia a passos largos
em direção ao carro.
Quer brincar cara? Então vamos brincar!
Contornando a igreja em alta velocidade, Munin seguiu pelo caminho
de pedras até chegar em um muro no fim da rua, onde virou a esquerda em uma
descida.
Mesmo sendo veloz, a BMW do perseguidor não conseguia alcançar a
Rieju MR80 pilotada por Munin, pois por ser uma moto feita para resistir aos
desafios das estradas rurais, levava uma grande vantagem com os degraus
longos e baixos das rampas que compunham as vielas entre os muros e as casas
por ali.
- Saiam da frente! – Gritava Munin para as pessoas ao passar por ruas
cada vez mais estreitas.
Em determinados pontos do percurso, seria bem mais fácil seguir a pé,
mas Munin era habilidoso e além de fazer as curvas sem cair ou bater nas
paredes, ainda desviava das pessoas que, desesperadas, pulavam para dentro de
suas casas.
Em um beco que antecedia um pequeno Café, cercado de um lado por
um muro e do outro pela parede de uma casa, Munin decidiu abandonar a Rieju
39

de forma que fechasse a passagem, seguindo a pé o caminho que o levara até as


ruas bem movimentadas da Calderería Nueva.
Sem ter como desviar ou tempo suficiente para parar, o perseguidor
bateu na moto atravessada no beco e foi lançado vários metros pelo piso de
pedras acimentado.
Quando se levantou, deixando a moto para trás e ignorando os
ferimentos, pôs-se a correr.
A corrida durou poucos metros, apenas até o caminho se expandir.
- Merda! – Bradou ao se deparar com uma bifurcação. Para onde você
foi hein?
Um casal de velhinhos tomava café ali, em uma das mesas ao ar livre.
Para grande parte dos espanhóis, até dos europeus, frequentar Café´s é uma
tradição e mesmo os que moram a metros de tal estabelecimento, preferem fazer
a primeira refeição no lugar do que em suas próprias casas.
- Para onde foi o americano? – Perguntou em inglês.
Não obteve resposta.
- Droga! Como pergunto isso em espanhol? – Esfregou forte o rosto. –
Chico? – Perguntou mais para saber se havia pronunciado correto do que
pedindo informação.
O velho, um tanto amedrontado, a fim de se livrar logo do homem,
apontou o dedo.
Foi só correr algumas dezenas de metros na direção indicada, para a
ficha cair.
Pegando o comunicador, agora sim, fazendo careta devido as dores,
precisou admitir que o havia perdido.
- E agora, o que vamos fazer?
Do outro lado da linha, o Dr. Hill parou o carro, coçou forte a cabeça e
respirou fundo.
- Eu, vou à Portugal, você, vai mantê-lo no radar.

- Bom dia pessoal! – Empurrou a porta de entrada da agência de correios


em Gloucester. – Cadê todo mundo? – August estranhou o silêncio.
Ao se dar conta de que não eram seus olhos, devido a mudança de
ambiente, os responsáveis pela falta de iluminação lá dentro, começou a ficar
preocupado.
40

Cautelosos passos foram dados em direção ao balcão de atendimento.


As marcações no chão pareciam brilhar.
August apertava frenético os interruptores pelo caminho. Apenas as
luzes de emergência iluminavam o local.
- Beth? Bernard? Mas que droga! Onde está todo mundo?
Nenhum movimento era avistado no interior da agência. Nem mesmo o
disciplinado Sr. Cole, sempre o primeiro a chegar, encontrava-se em sua sala.
- Caramba Phill, se isso for uma pegadinha para descontar todas as
minhas brincadeiras, você está de parabéns! Estou me borrando aqui! – Disse
quase aos berros, imaginando que o segurança seria o único com senso de humor
e disposição para lhe pregar uma peça como aquela.
Ao voltar os olhos para a entrada, silhuetas foram avistadas. Um casal
encontrava-se sentado nas cadeiras de espera.
August aproximou-se.
- Mãe? Pai?
- Hermes, nós falhamos. – Mal acabara de falar e desmaterializou-se.
- Pai! O que está acontecendo? – Correu para junto de sua mãe, apenas
chegando a tempo de vê-la desaparecer também, mal conseguiu reparar em seu
semblante pesaroso.
August levou as mãos à cabeça. Desnorteado, girou olhando mais uma
vez para a escura e vazia agência onde trabalhava. Saiu à passos vacilantes.
Novamente uma brusca mudança na incidência de raios luminosos. Um
clarão oriundo do céu, como se o próprio sol estivesse se aproximando, fazia a
Westminster Bridge brilhar.
O que? Londres?
Ao longe, destacando-se em meio a multidão alvoroçada, uma jovem de
cabelos ruivos subia na mureta da ponte, preparando-se para pular.
- Ah meu Deus... Ana! – Pôs-se a correr, passando por cima de alguns
carros ali abandonados a fim de alcançá-la o quanto antes.
A jovem o avistou.
- É tarde August! O tempo acabou!
- Ana! Não! – Também não chegara a tempo. Sequer vira a queda da
jovem. Um carro invadindo a calçada, o impediu de chegar à proteção.
Não podia acreditar. O carro que bloqueava o seu caminho era um
Aston, não um Aston qualquer, mas o seu inconfundível e estimado Aston
Martin DB5 prateado.
A sensação de perder o chão, associada aos tremores, o fez cambalear
até se apoiar na traseira do veículo mais próximo.
41

De dentro do seu precioso carro saiu um homem. Cabelos levemente


grisalhos, aparência agradável, talvez um pouco mais velho que seu pai.
O jovem nem precisou se deter na face do doutor para o reconhecer. As
letras GT em dourado ganhavam destaque naquele paletó preto.
- Jovem promissor August Hermes! Estamos sem tempo para conversas.
Entregue logo o pergaminho! – Estendeu o braço direito enquanto flexionava o
esquerdo, portando uma arma apontada para o jovem.
August estava tonto. Não sabia se era sua cabeça ou se eram as coisas a
sua volta que não paravam de girar.
- Não está comigo. – A voz saiu embargada.
- Me dê o pergaminho! – Engatilhou a pistola.
Surgindo do nada, um homem saltou e pôs-se entre August e Lawrence.
O velho não hesitou. Disparou duas vezes.
- Não! – Bradou August ao ver Dimitri estirado no chão. – Seu
miserável! – A adrenalina o ajudou a se recompôr. Mesmo assim estava indefeso
frente a Beretta 92 empunhada pelo doutor.
- Vou pedir pela última vez: o pergaminho por favor. – Encontrava-se
agora a menos de cinco metros do rapaz.
- Eu já disse, não está comigo!
Lawrence balançou a cabeça e correu os olhos pela ponte antes de trazer
o jovem de volta ao foco, ou melhor, à mira.
- Acredito em você.
Percebendo o que o homem estava prestes a fazer, August tentou
impedi-lo com um brado acompanhado de um salto. Não conseguiu. Apenas
ouviu os disparos que precederam a escuridão.

Algumas horas se passaram desde que August se recolhera. À mesa, a


família Holister se preparava para almoçar.
Hoje o prato principal era o tradicional roast beef inglês, o preferido de
Ferdinand, que divertia a todos com suas histórias de sucesso no trabalho, outras
nem tanto, arrancando risos e gargalhadas, em um clima completamente
descontraído.
Assim seguiram até serem interrompidos.
Gritos estridentes vindos do quarto onde August descansava os
colocaram em alerta novamente.
42

Dois brados. Primeiro um grave e na sequência outro mais agudo.


Se olharam assustados.
Rudolph logo correu os olhos em busca de Daiane, que surgira correndo
vindo da cozinha, também surpresa.
- Desta vez não fui eu! – Ergueu os braços desajeitada.
Levantaram-se da mesa quase em simultâneo e correram em direção ao
quarto de hóspedes.
Não por acaso Daiane foi a primeira a se colocar diante da porta, afinal,
mesmo demorando a subir as escadas, era impossível alguém a ultrapassar.
Sem bater, com o aval do patrão, Daiane abriu bruscamente a porta e
todos entraram em um salto.
- Uh! – Ferdinand não conseguiu segurar.
O total espanto estampado na face de cada um, mostrou que a interjeição
do jovem de cabelos pretos e lisos na altura dos ombros, era uma reação
apropriada e, principalmente, coletiva.

Capítulo 7

Em um, pela atmosfera silenciosa, reservado e bem mobiliado cômodo,


parecendo um quarto de hotel 5 estrelas, um homem cuja apenas a silhueta podia
ser vista devido a falta proposital de iluminação, encarava uma espaçosa mesa
de escritório, possuindo em cima, em seus quase dois metros de extensão,
apenas uma simples caneta.
Seu semblante era de uma angústia profunda e a força com que contraía
determinados músculos, indicava um nível altíssimo de ansiedade.
Por que essa carta está demorando tanto?
Em sua mente, as imagens perturbadoras que tiravam-lhe o sono há
meses, estavam quase o levando a loucura: pessoas feridas correndo em busca
de socorro, corpos espalhados pelo chão, gritos de pavor, explosões, escuridão
no lugar onde deveria se encontrar tons de azul, tons de um azul tão belo e
reconfortante que o homem lhe dera o nome de céu.
Como fomos deixar isso acontecer? A que ponto chegamos?
As perguntas não paravam de surgir. A cada reflexão, cada olhar
direcionado a humanidade e ao caminho em que ela insiste em percorrer,
aumentavam as dúvidas, os questionamentos e com isso, as inseguranças. Uma
única certeza, frente à tudo que lhe fora revelado se afirmava, nítida,
incontestável.
43

Isso precisa parar.

Os olhos arregalados dos recém-chegados ao quarto, forneciam um


indicativo do tamanho da surpresa. Mesmo após admitirem, ainda que de forma
bem superficial, a presença de um viajante do futuro entre eles, suas mentes não
se mostravam preparadas para compreender, portanto acreditar, na cena que se
formara diante de seus olhos.
- É outro? – Daiane franzia a testa.
- Outro não, outra. – Rudolph desfez logo a expressão de espanto,
colocando um sorriso acolhedor em seu rosto. Que interessante.
Por estar neste mundo das cartas misteriosas a vários anos, Rudolph
Holister passou não só a manter a mente aberta quanto ao que pensava ser
impossível, como si manter calmo, seja qual fosse a situação.
August sentado próximo à cabeceira da cama, paralisado inicialmente
pelo susto, depois pela incredulidade, olhava fixamente para uma garota de
cabelos ruivos amarrados em um rabo de cavalo, sentada no chão, aos pés da
cama, usando os braços para se manter firme.
As emoções conflitantes fizeram o silêncio durar tempo demais.
- Ana? – O jovem pronunciou um nome, permanecendo da mesma
forma que se encontrava antes ao terminar de falar, boquiaberto.
- August? – A moça não estava diferente.
- Ana, é você mesmo? – Saltou em direção a ela para lhe ajudar a
levantar.
- Bom, acho que sim. – Olhou para si mesma com um sorriso meio sem
graça e colocou-se de pé segurando as mãos de August, que percebendo que ela
o reconhecia, deu-lhe um abraço tão forte quanto aquele no hotel em Roma após
o fim do sequestro.
O abraço foi tão emocionado quanto forte, o que fez com que a jovem
ficasse literalmente sem ar.
- August, está me sufocando! – disse quase sem voz.
Ele afrouxou o abraço rapidamente e a olhava nos olhos enquanto
segurava seus ombros.
- Me desculpe, você está bem? Como chegou aqui? Você é mesmo real?
– Apalpava de maneira acelerada seus braços, dos ombros aos cotovelos.
- Real? Como assim? – fechou os olhos – Do que você está falando?
Ele a olhou profundamente, seus olhos encheram-se de água durante
uma breve expiração. Era a confirmação.
44

Abraçou-a outra vez.


Por cima do ombro do parceiro, Ana olhava confusa e acanhada para
aquele grupo de pessoas estranhas encarando-a, tão surpresos quanto ela.
- August? – Deu dois tapinhas em suas costas.
- Sim. – Afastou-se um pouco para olhá-la nos olhos, ainda mantendo
contato físico.
Bastou apenas avistar uma rápida mudança no foco de visão de Ana para
August soltá-la e sentir o rubor subir por seu pescoço.
Raspou a garganta tentando disfarçar o embaraço.
- Então Ana, como está se sentindo?
- Bom, estou um pouco tonta e fraca, mas, no geral estou bem –
respondeu olhando para os demais. Queria respostas, mas August insistia com
perguntas.
- Como foi que você chegou aqui? Se lembra?
A jovem estava visivelmente constrangida com a intimidadora plateia.
- Na verdade, não faço a menor ideia de como cheguei aqui – olhava em
volta. – Aliás, não sei nem onde é aqui. Minha última lembrança é de estar sendo
sugada por uma espécie de buraco negro, ou sei lá o que – ajeitava o cabelo. –
Pareceu bem real, mas deve ter sido só um sonho, não é?
August não aquiesceu como Ana esperava.
- Não é? – insistiu.
O jovem fez uma careta.
- Não, definitivamente não foi um sonho. – Lamentou olhando para o
Sr. Holister, que confirmou complacente com um simples balançar de cabeça.
- Então eu bebi alguma coisa, ou passei mal? – Ana continuava sem
entender.
- Respire fundo Ana, precisamos conversar e, precisa ser com calma.
- Concordo! Vocês nos deixam participar dessa conversa também? –
Interveio o Sr. Holister descontraído.
- Mas é claro! – August sorria com a irreverência do anfitrião.
- Ah que ótimo, porque... – Ana sorriu sem graça – estou mesmo
querendo saber quem são vocês.
Gargalharam com os trejeitos da jovem.
45

Capítulo 8

Ansiando por respostas, o anfitrião Rudolph Holister mal esperou os


jovens sentarem-se na cama.
- Vocês se conhecem, isso é evidente, agora, – olhava para August – ela
estava com você quando aconteceu? Quero dizer, o finalmente?
- Sim. Ela, minha mãe e meu tio Munin.
- Todos estavam com você quando foram sugados? – Insistiu o Sr.
Holister.
August assentiu com a cabeça e respirou profundamente antes de
continuar.
- Meu pai morreu momentos antes em uma explosão... após capotar o
carro.
Todos pareciam ter sentido uma pontada no peito.
- É mesmo! Se tudo o que aconteceu foi verdade, seu pai... – foi a vez
da senhorita Schmidt lhe dar um apertado e compassivo abraço – sinto muito
August, sinto muito mesmo.
Quase foi possível ouvir as batidas aceleradas dos corações, tamanho o
silêncio.
- Acredito que falo em nome de todos August, quando digo que
lamentamos muito sua perda. – Confortou-o Rudolph.
Outro instante de silêncio foi necessário. Enquanto isso, a jovem
Schmidt parou pela primeira vez para considerar que podia estar sonhando.
- Obrigado pessoal, muito obrigado. – Seu olhar seguia vazio
direcionado à janela. – Acho que a ficha não caiu direito ainda.
- Isso é normal querido, estão acontecendo coisas demais e é difícil lidar
com tudo. – Foi a vez de Suzan tentar confortá-lo.
- Mas, e seu olho? Seu rosto...você não estava ferido? – questionou Ana
sempre atenciosa aos detalhes, querendo pegar o próprio inconsciente com as
calças na mão.
- Sinceramente não sei. Nem estava lembrando disso. Cheguei um
pouco mais cedo e... – parou de falar, parecia pensar em algo. – Espera aí! –
exclamou na sequência. Em um lampejo de alegria, colocou-se de pé em um
salto.
- O que foi? – Daiane assustada levantara os braços e flexionara os
joelhos, já pensando na necessidade de se movimentar rapidamente.
46

- Se essa história toda for verdade e meu pai realmente morreu em 2016,
como estamos em 1984, ele ainda está vivo! Assim como meu avô!
A empolgação foi contagiante.
Todos o acompanharam na felicidade após ver a satisfação voltar ao seu
rosto, menos Ana, que se apegara em outro detalhe, desta vez, um detalhe não
tão sutil.
- O que? – arregalou os olhos – Eu ouvi bem? Você disse 1984?
A ausência de resposta do parceiro, seguido por uma careta, foi pior do
que um “sim”.
- August? Por que você disse que estamos em 1984?
O jovem coçou a cabeça. Neste momento, os demais presentes no quarto
pareciam mesmo uma plateia, daquele tipo que não faz parte do espetáculo, só
assiste.
O jovem engoliu seco e retirando os óculos com uma mão, esfregou os
olhos com a outra.
- Desculpe por ter soltado isso assim Ana, sem preparar o terreno antes.
Eu mesmo, até minutos atrás, achava que tudo – fez um gesto com os braços
apontando em volta – não passava de um sonho. Para ser sincero, você me trouxe
para a realidade – seu olhar não escondia o tamanho da satisfação em ter a
companhia da jovem outra vez.
Como era de se esperar, a jovem permaneceu incrédula.
- 1984... como isso é possível?
- De modo técnico, ainda não sabemos, mas, apesar da minha negação
inicial, agora percebo claramente que tudo é real, desde as cartas misteriosas, as
agências, o fenômeno, até esta viagem ao passado. – A seriedade apresentada
por August, não só na fala, mas também em sua expressão, assustara a jovem.
Ana permaneceu quieta, ainda que por dentro gritasse com todas as
forças. Isso não pode estar acontecendo!
- Lamento muito Ana, mas essa é a verdade. – Acrescentava August
contrito. – O que nos resta é tentar entender como tudo isso foi possível e
descobrir como voltar, se é que existe um lugar para voltarmos, ou uma maneira
para isso.
Ana manteve a calma, externamente expirava normalidade, algo que
não condizia em nada daquilo que August havia se acostumado.
- Está mesmo bem? – Indagou-a preocupado.
A jovem esboçou um sorriso por educação. A incerteza e o medo a
inundava de pensamentos e sensações.
47

- Me dão licença? – Interveio Ferdinand pedindo passagem para


adentrar em seu próprio quarto.
Não recebeu um consentimento de forma direta, mas prosseguiu assim
mesmo, até porque ninguém se habilitou a proibir sua ação.
O filho mais novo do Sr. Holister, aproximou-se de uma caixa média,
quase com o formato de um cubo perfeito. Era em sua maior parte preta e na
face da frente, possuía um quadrado cinza de pontas meio arredondadas, liso,
como se fosse de vidro.
- Ela precisa de provas, – olhou para os demais após apertar um enorme
botão redondo ao lado da tela cinzenta, que aos poucos começou a ganhar brilho
– e ele também. – Estacionou o olhar em August.

Capítulo 9

O aparelho televisor, rústico aos olhos de Ana e August, possuía


enormes botões em uma das laterais da face frontal, e apesar do tamanho
considerável, havia passado despercebido aos olhos dos jovens devido suas
cores foscas, que praticamente o incorporava a mobília.
- Vamos ver o que está acontecendo hoje. – Ferdinand começou a trocar
os canais.
As imagens em cores com um brilho excessivo surgindo na tela,
chamaram imediatamente a atenção dos jovens.
- Como hoje é segunda, os noticiários estão repercutindo os
acontecimentos do fim de semana. – Ferdinand deixava que absorvessem as
informações antes de mudar de canal, narrando ele próprio alguns fatos. – Aí, a
Thatcher continua tendo problemas com os grevistas... a atual seca na Etiópia é
a pior da história... e vejam, ainda temos novidades sobre o nascimento do
príncipe que nunca será rei.
- Príncipe Harry? – Indagou Ana.
- Henry Charles Albert David, para ser mais exato. – Interveio Rudolph
sorrindo.
- É, e do jeito que o príncipe William vai, Ferdinand tem razão. –
Brincou August conseguindo enfim arrancar um sorriso descontraído da
parceira.
- Ele já tem filhos, não é? – Perguntou o locutor das notícias que
pipocavam na televisão.
48

- Tem sim, dois – confirmou August. – e não parece que irá ficar só
nestes – concluiu sorrindo.
- Típico. Então nosso bebezinho ali já é o quinto na linha de sucessão.
– Acrescentou Ferdinand tornando a trocar de canal. – No futebol, o Nottingham
virou ontem para cima do Luton e é líder isolado da Premier League, mas ainda
está no começo, acredito que se o Arsenal parar de perder para os times do meio
para baixo da tabela, ainda chegue – sorriu esperançoso.
- Gosto do seu otimismo filho.
- Aprendi com o senhor.
- É, mas nesta acho que não vai – fez uma expressão desanimada.
August até pensou em revelar a eles que o Everton FC ia dominar o
futebol inglês naquela temporada e nas próximas, vivendo sua melhor fase desde
que fora fundado, como vira em um documentário esportivo, mas decidiu
guardar a informação para si. Ninguém gosta de spoilers.
Vendo o Sr. Holister e seu filho conversarem sobre futebol,
especialmente sobre o Arsenal, Ana trouxe logo seu avô a mente, caindo em si
outra vez e deixando a preocupação tomar conta de sua face.
August logo percebeu e fez um sinal para Ferdinand trocar outra vez de
canal.
- E aí está o cara na crista da onda!
- Ainda está negro! – Ana não se conteve ao voltar sua atenção
novamente para a televisão e ver Michael Jackson arrebentando em uma de suas
apresentações.
- Como é que é? – Daiane pausadamente, deu voz ao pensamento de
todos os que ouviram, claramente, o que Ana dissera e apenas conheciam o Rei
do Pop em sua tonalidade natural.
Ana se calou. A ficha parecia ter caído.
- Ele mudará de cor? Tipo, trocará de pele? – Ainda que de forma bem
inocente, Daiane queria os detalhes.
Pensando que Ana estivesse sem condições até de falar, August tomou
a liberdade de responder.
- Ele irá sofrer de uma doença que causa manchas brancas por todo o
corpo chamada vitiligo. Em função disso, aderiu a um composto orgânico, cujo
nome não me recordo, mas que atua na produção de melanina, causando um
clareamento irreversível.
- Caramba! E isso virou moda? – Daiane estava estupefata – Não possui
nenhum problema, os tais efeitos...
- Colaterais – completou Ferdinand.
49

- Para a primeira pergunta não, não virou moda. – August gesticulava e


mantinha o foco no grupo de curiosos que lhe prestava atenção, não percebendo
assim, a encarada que Ana lhe dava. – E, para a segunda sim, possui efeitos
colaterais, especialmente em relação a exposição à luz solar, ele vivia sob
guarda-chuvas. Sempre que saia de casa...
- August! – Chamou-o antes que pudesse revelar alguma outra
informação.
Apenas pelos olhos arregalados de Ana, o jovem percebera do que se
tratava e pela expressão confusa que apresentara na sequência, o velho Rudolph
também.
- O que aconteceu? – Até mesmo Daiane percebeu uma alteração no
clima.
Os jovens se entreolhavam pensativos.
- Agora que sabem que, definitivamente, não estão dentro de um sonho,
precisam filtrar o que dizem, certo? – O anfitrião pareceu acertar na mosca.
- Filtrar o que dizem? Como assim?
- Bom Daiane, – interveio Ferdinand – eu nunca entendi muito bem isso,
mas pelo que sei, através do que o pai sempre contou quando se referia as cartas,
eles estão com medo de uma interferência, ou da criação de um paradoxo
temporal, é isso mesmo? – Finalizou direcionando a pergunta aos jovens, agora
confirmados, viajantes do tempo.
- É exatamente isso. – Confirmou August, lembrando-se com certa
preocupação da revelação do possível fim do mundo feita mais cedo.
Daiane coçava a cabeça.
- Poderiam ser um pouco mais explicativos?
- Claro que sim! – Ana finalmente saiu de seu mergulho interior, uma
surpresa até para o parceiro a seu lado. – No entanto, antes de qualquer hipótese
a respeito do improvável, antes impossível, gostaria que – virou-se para August
– me apresentasse seus amigos e dissesse onde exatamente estou, pois me
lembro vagamente deste local, porém acho que agora, ele está meio diferente –
sorriu para descontrair.
A acompanharam na descontração e concordaram em mudar um pouco
o foco.
Logo que percebera o assentir coletivo, August começou as
apresentações.
- Estes são Ferdinand, Suzan e Daiane, filho, esposa e governanta do
senhor Holister respectivamente, dono da casa que futuramente será minha, bom
eu acho – apontava para cada um, com uma expressão bem diferente da que
50

tinha antes, muito mais serena e simpática. O raro bem estar estampado na face
de Ana o deixava satisfeito.
- É um prazer conhecê-los, eu sou Ana Schmidt – direcionava o olhar
de forma individual, passando por todos até parar nos atuais anfitriões – Os
senhores são os avós do Frank?
- Sim minha jovem – confirmou Suzan.
- Você também o conhece? – Indagou Rudolph.
- Pode-se dizer que sim – balançou a cabeça entre uma olhadela e outra
na direção de August. – Ele nos ajudou a encontrar a mensagem escrita pelo
senhor em uma das paredes daquele galpão da entrada.
- Mensagem? Qual mensagem? Não me lembro de ter escrito nada na
lá.
A jovem arqueou as sobrancelhas pensativa.
- Claro! – deu um leve tapa com as pontas dos dedos em sua própria
cabeça – Viemos antes do senhor escrevê-la, August ainda não deve ter lhe
contado a história… opa! – a jovem parou de falar de repente. Lembrou-se das
interferências. – Disse algo que não deveria? – perguntou apreensiva olhando
para os presentes, pensando ter falado demais.
- Não Ana. Posso te chamar de Ana, não é?
- Claro que sim senhor Holister, até prefiro assim. – Abriu o sorriso.
- Não creio que conseguirei todas as vezes, mas tentarei – sorriu. – Pode
ficar tranquila, todos da minha família já sabem das cartas e dos seus mistérios
envolvidos, isso contribui bastante para que eles me ajudem a manter a
discrição. E sobre as interferências, é melhor falarmos com mais calma depois,
mesmo assim afirmo que não disse nada além.
Ana sentiu-se aliviada.
- O que não sabiam – continuou o Sr. Holister – assim como eu até
pouco tempo, é que receberíamos visitantes de outro tempo – brincou – mesmo
assim, tenho certeza que todos ficaríamos honrados em escutar suas histórias,
não é pessoal?
Todos fizeram um sinal de positivo com a cabeça, apenas Daiane
também concordou falando:
- Com certeza! Se não for incômodo, será um enorme prazer da nossa
parte. – Disse querendo apresentar uma primeira impressão a jovem, melhor do
que apresentara ao primeiro visitante do dia.
- Que ótimo, fico feliz em saber disso. Com certeza não será incômodo
algum, pelo contrário, o que sabemos pode ser útil para vocês nos ajudarem,
quem sabe, a entender tudo isso e voltarmos para casa. No entanto, – Ana ficou
51

meio sem jeito, parecia mais acanhada do que de costume – estou com um pouco
de fome. Se importam de me dar algo para comer antes? – sorriu embaraçada.
Gargalhadas.
- Claro que não minha querida, estávamos almoçando quando chegou.
Ficaríamos muito felizes em ter você e August se juntando a nós – respondeu
Suzan, esbanjando simpatia.
Antes que saíssem do quarto, Ana os abordara com uma nova dúvida:
- Só um momento! – Olhava curiosa para o atual dono da casa. – Se a
sua família conhece a história das cartas que viajam através do tempo, por que
Frank não sabe de nada?
- Porque só tem três anos – respondeu Daiane mais que depressa.
Não seguraram o riso.
- O que foi? Qual a graça?
- Daiane, a moça está se referindo ao Frank mais velho, do tempo deles,
– explicava Ferdinand – já com seus trinta e poucos anos, entendeu?
- Ah sim, entendi – sorriu sem graça.
- Interessante. – Disse Rudolph pensando alto.
- Você não sabe o porquê, não é? – Foi a vez de August acertar a mosca.
- Não mesmo – foi falando e balançando a cabeça. – Vocês têm certeza
disso?
Os jovens se olharam, dando de ombros quase que em simultâneo.
- Ah, agora eu já falei mesmo – rendeu-se Ana sacudindo os braços. –
Temos sim. Ele estava atrás do pergaminho que hoje o senhor possui, imagino,
para tentar corroborar uma teoria sobre o poder dos faraós no Egito Antigo.
Até mesmo Suzan mostrou surpresa.
- Difícil saber o motivo, porque sempre fomos abertos com nossos filhos
sobre isso, e uma prova disso é que a mãe dele sabe. Só se ela escolheu não
contar – olhou para o marido.
- Bom, o motivo fica sendo uma incógnita, mas o fato dele não saber foi
crucial. – Concluiu August.
- É mesmo? – Fora Ferdinand quem regalara os olhos agora.
- É sim, mas essa história fica para mais tarde, pois acabo de ouvir daqui
o estômago da Ana e começo a ficar com medo.
52

Um velho conhecido
Durante a refeição, retomaram a conversa sobre a, antes impossível,
situação dos jovens e como ela poderia ter sido acontecido. Suposições, eram só
o que podiam fazer. A ficha de nenhum dos presentes havia caído ainda.
- Primeiramente, – August falava – após a confirmação de que fizemos
mesmo uma viagem no tempo, pelo menos até o momento, acredito que o
assunto mais importante a ser tratado são as possíveis interferências.
Todos à volta da mesa, inclusive Daiane, assentiram.
- Para tanto porém, é preciso discutirmos antes qual teoria de linha
temporal vamos aderir.
- Como assim? – Indagou Ferdinand.
- A abordagem de linha temporal que escolhermos, irá influenciar
diretamente na possibilidade ou não de interferências – Ana tomou a palavra.
As cabeças moveram-se ao mesmo tempo. – De maneira inicial, temos três
teorias a serem destacadas, cada uma mais improvável e difícil de provar que a
outra – sorriu, confirmando com o olhar se August partilhava de seu
posicionamento.
- Manda ver senhorita Schmidt! O improvável é para nós, como o ar que
respiramos. – O velho Sr. Holister demonstrou continuar bastante animado.
- Ok, mas é Ana, só Ana – brincou.
- Eu disse que não conseguiria – sorriu.
- Tudo bem, vamos às teorias então! – Bateu uma leve e tímida palma.
Os olhares seguiam ainda mais vidrados na jovem, inclusive o de
August, que adorava ver Ana desenvolvendo qualquer tipo de raciocínio.
- Vale lembrar que estamos tratando apenas da viagem no tempo ao
passado, que por si só já é uma “impossibilidade explicativa” gigantesca.
- Quer dizer que se fosse para o futuro, a explicação seria mais fácil? –
Ferdinand tentou entender.
- É. Viajar para o futuro já foi explicado e provado por Albert Einstein,
é apenas uma questão de velocidade atrelada a engenharia e muito, muito
dinheiro.
- Sério? – Interrompeu meio cético.
- Sim – a jovem sorriu satisfeita. Havia feito a mesma expressão
incrédula que Ferdinand, quando ouviu isso pela primeira vez. Desde então,
nunca mais parou de pesquisar a respeito.
53

A jovem Ana Schmidt, estava satisfeita consigo mesma, agora


conseguiria passar todo aquele saber, tão surpreendente quanto pouco
conhecido, para frente. Ela não entendia como algo tão espetacular como viajar
para o futuro, algo que fora cientificamente provado que é possível, não é
gritado a todo tempo pelos quatro cantos deste nosso pálido ponto azul.
- Caramba! Então nos conte! – Ferdinand, também empolgado, deu voz
ao desejo de todos.
- Será um prazer, no entanto, o que sei se limita a parte teórica, ok? A
matemática em si, com todas aquelas formas e letras gregas são para os experts,
mas deixo registrado que tudo é abrangido pela teoria Especial da Relatividade
de Albert Einstein, ou seja, é cientificamente possível. – O assunto a envolveu
por completo e acabou por levar a plateia junto.
- Maravilha! – Bradou Ferdinand – Uma explicação de física sem a
matemática? Eu não poderia estar mais satisfeito!
Rudolph limitou-se a dar uma balançada de cabeça.
- Certo, vamos começar pelo seguinte: a velocidade da luz é o limite
máximo que qualquer corpo no universo consegue alcançar. Ela é sempre
constante e nada, nada mesmo, consegue mudar isso.
August entendia bem sobre o assunto que a parceira estava
apresentando, e sabia também, que aquela conversa não traria nenhuma resposta
para a pergunta que martelava em sua cabeça. Como viemos parar aqui? Ainda
assim, não se atreveria a interromper um momento como este.
- Na antiguidade, chegaram a pensar que a luz saia dos nossos olhos,
chocava-se com os objetos e voltava para os nossos olhos, o que é falso –
gesticulava. – A final, não podemos enxergar quando está escuro. Hoje, sabemos
que os fótons, ou seja, as partículas que formam a luz, viajam da fonte até os
objetos e depois até os nossos olhos, isso, numa velocidade de quase 300
milhões de metros por segundo.
- O que? – Daiane precisava confirmar. – Quer dizer que a luz percorre
isso tudo em um segundo?
- É isso aí. A distância vai depender do meio, mas sim, a velocidade é
imutável. – Fez uma breve pausa para tomar um pouco de suco.
Todos a acompanhavam bem.
- Para exemplificar, se o nosso sol morresse agora, nós apenas
saberíamos disso daqui a oito minutos.
- Brincou? – Daiane ficou surpresa consigo mesmo por não saber disso.
- Verdade. Esse é o tempo que a luz emanada dele demora para chegar
aqui.
54

Querendo pular logo para a parte interessante, Ferdinand tentou adiantar


as coisas:
- Ok, mas o que isso tem a ver com viagem no tempo?
- Absolutamente tudo – Ana sorriu. – Um físico, cujo o nome não me
recordo, resumiu essa teoria de Einstein na seguinte frase: O tempo desacelera
quanto mais rápido você se move, para que a velocidade da luz seja uma
constante em todo o universo. – Fez uma pausa meio que para efeito, mas
principalmente para conseguir dar umas mastigadas.
- Ainda não cheguei lá. – Ferdinand olhou para seu pai.
- Nem eu – abriu os braços.
Ana fez um sinal, precisava de mais alguns segundos. De maneira
nenhuma falaria de boca cheia.
- Darei a vocês o exemplo que o próprio Einstein usou para apresentar
a teoria, com algumas mudanças para facilitar pra mim – sorriu sem jeito. –
Pense o seguinte: Você está olhando para um espelho dentro de um trem e
consegue ver o seu reflexo perfeitamente. Está de dia e só é possível ver sua
imagem por meio da luz que entra pelo trem vindo de uma fonte externa, em
nosso caso, o sol. Até aí, tudo certo?
- Perfeito – August fez questão de demonstrar sua satisfação.
A jovem sorriu meio sem graça outra vez. Adorava compartilhar seus
conhecimentos, mas não curtia muito ser o centro das atenções. Era um
paradoxo.
- Então, esse seu reflexo é todo feito das partículas que compõem a luz,
o que significa que eles estão saindo do espelho em direção aos seus olhos com
uma velocidade de quase 300 mil quilômetros por segundo e…
- Espere aí! – Interrompeu Daiane. – Você não havia dito que era 300
milhões por segundo?
- Ela só transformou metros em quilômetros Daiane – Ferdinand
explicou. – Por isso o número ficou menor.
- Ah tá, entendi. Mas ainda é muito chão – acrescentou impressionada.
- Com certeza. – Ana tomou novamente a fala após matar um pouco
mais sua fome. – Diante desta situação, eu lhes faço a mesma pergunta que
Einstein se fez: se este trem também estivesse viajando na velocidade da luz,
você ainda conseguiria ver o seu reflexo?
Agora o silêncio demorou um pouco mais, o que fez com Ana
caprichasse no pedaço de roast beef levado à boca.
- A resposta é sim. – August decidiu dar mais um pouco de tempo a
parceira. – Mesmo vindo do exterior, incidindo no espelho e depois em nossos
55

olhos, a velocidade da luz não sofre alteração, ainda que o trem esteja na mesma
velocidade.
- Exatamente. – A resposta foi tempo suficiente. – Poderíamos pensar
que o reflexo sofreria alguma mudança devido à luz externa ter que se equiparar
a velocidade do trem para só então chegar a nós, mas isso não acontece.
- Hum, a ideia é bacana, mas ainda estou na mesma – Ferdinand
demonstrava um pouco de acanhamento. Só um pouco.
- Agora ficará claro. Einstein descobriu que o tempo e o espaço
precisavam ceder para que a velocidade da luz se mantivesse constante, em
outras palavras, o trem ficaria menor e o tempo dentro dele a esta velocidade,
passaria bem mais devagar do que para um observador do lado de fora. Isso, já
acontece na vida real, porém a diferença é tão ínfima, que não percebemos.
- Vale ressaltar a impossibilidade de um trem atingir essa velocidade,
pois, de acordo com a teoria, aí entrando na parte da matemática, quanto mais
velocidade, mais peso, e um trem para alcançar essa velocidade, ficaria tão
pesado que tornaria isso inviável. – Acrescentou August.
- Mas, imagino que no espaço seja outra história, não é? – Indagou o Sr.
Holister.
- É sim – respondeu Ana com o pensamento de encerrar a explicação. –
Como foi provado em 1971, por meio de uma experiência envolvendo relógios
atômicos extremamente precisos e um jato americano que voava próximo a
velocidade do som, seria possível viajar para o futuro, tendo esse preceito como
base, pegando uma nave capaz de atingir uma velocidade realmente alta, dar
uma volta pelo cosmos e retornar a Terra. O tempo para o astronauta à bordo da
nave terá passado bem mais lentamente do que para os que aqui ficaram.
- Isso é sério mesmo? – Ferdinand ainda estava descrente.
- É sim – August completou. – Na experiência que comprovou essa
dilatação temporal, um relógio ficou em solo, enquanto o outro foi colocado à
bordo do jato que deu uma volta no globo e quando foram comparar, o relógio
levado para um passeio pelo planeta, havia andado mais devagar.
- Einstein é de fato impressionante – Ferdinand estava, de fato,
admirado.
- Sem dúvida e tem mais, – August acrescentava – no futuro, cientistas
já aceleram átomos a 99% da velocidade da luz e como o corpo humano é feito
de átomos… existe a possibilidade, mas é como Ana falou, para chegarmos lá
precisamos de mais desenvolvimento tecnológico e muito, muito mais dinheiro.
56

- Quer dizer que quando conseguirmos veículos que viajam próximos


da velocidade da luz, viajaremos mesmo para o futuro? – Suzan mostrou que
também estava atenta.
- Exatamente – respondeu Ana. – Por exemplo, se viajarmos pelo espaço
na mesma velocidade dos átomos que o August falou, uns 500 anos/luz seriam
o suficiente para nos fazer voltar a Terra mil anos depois da nossa saída.
- Fantástico! – Agora sim Ferdinand estava realizado.
- É, mas para isso, muito estudo ainda precisa ser feito, pois o espaço
físico – August fez um gesto como se segurasse algo – também é contraído e até
mesmo o relógio biológico seria alterado, fazendo com que o astronauta que
fizesse essa viagem, passasse por um certo retardar do envelhecimento.
- Só deixou ainda mais incrível! – Brincou o filho mais novo do Sr.
Holister.
- Realmente é sensacional. – Vendo que Ana debruçara-se de vez sobre
o prato, August fez o trabalho de encerrar o assunto. – Agora, o que me dizem
de focarmos no nosso problema atual? Pois se a viagem para o futuro, que é
possível, traz todas essas complicações até para explicar, temos um longo
caminho a percorrer para tentarmos, e só tentarmos, entender como foi que
viemos parar aqui.
- É! Esse papo será ainda mais irado! – Ferdinand era só sorrisos.

- Então agora falaremos sobre as tais interações? – Indagou Ferdinand.


- Isso, sobre elas e as linhas temporais correspondentes – respondeu
August.
- Certo, prossigamos.
- Ótimo então, vamos lá. – Ana detinha de novo a palavra. – August e
eu, tivemos muito tempo para pensar a respeito disso enquanto efetuávamos as
buscas e para começar, acredito que seja melhor apresentar primeiro a hipótese
mais comum de se pensar e a mais complexa de se entender.
August mais que assentiu, a incentivou.
- Certo, vamos a ela. – Ana adorava falar sobre viagem no tempo e isso
a fez esquecer que ela poderia estar vivendo em uma. – Caracterizamos esta
hipótese como de complexo entendimento, porque abrange a ideia de uma única
linha temporal, onde tudo, em qualquer tempo está ligado e interagindo a todo
57

instante, estando sujeita assim, a interferências diretas. – Fez uma breve pausa
para ver se a acompanhavam.
- Acredito que seja essa a ideia que sempre associamos às cartas. –
Rudolph mostrou que sim.
- Exatamente. – August dava sequência. Cabeças virando novamente. –
Meus pais também me apresentaram às cartas dessa maneira, onde se alguém
enviasse uma delas para o passado e interferisse na ação ou não ação de alguém
em algum ponto da história, as mudanças seriam sentidas na realidade da pessoa
que enviou a carta, ou seja, em um futuro que já havia se tornado presente de
uma maneira diferente.
- Eita! Aí complicou foi tudo. – Daiane coçou a nuca e riu meio sem
graça.
- Exemplificando... – Ana deu sequência, parando alguns segundos para
pensar em um fato relevante, especialmente para a época em que agora estava –
já sei! John Lennon.
O nome pegou-os de surpresa. Mesmo depois de quatro anos, alguns
britânicos ainda não conseguiam acreditar que o ex-Beatle tinha morrido.
- John foi baleado e morto em 1980, certo? – Confirmaram. – Então,
vamos supor que a Daiane hoje, pegasse uma das cartas que viajam através do
tempo e enviasse para ele o avisando de seu assassinato. De acordo com a
hipótese de uma linha temporal única, o que ele decidir fazer após receber a
carta, lá em 1980 – enfatizou – vai mudar o hoje, 1984, entendeu? – Olhou para
a governanta.
Uma breve pausa para absorção.
- Acho que... – franziu a testa. – Quer dizer que se o John escolher passar
o dezembro de 1980 fora de Nova York devido a carta que enviei, ele apareceria
vivo hoje?
- Basicamente. Essa é a ideia.
Daiane coçava forte a cabeça. As marcas de expressão em sua testa
sobressaltaram de novo.
- Mas, e o funeral, as homenagens, toda a comoção? Isso tudo
aconteceu! Não pode desaparecer assim, do nada.
- É isso aí. – August confirmou. – Para nós, é exatamente onde essa
teoria se perde. Achamos que não se pode mudar o que já foi vivido, sentido,
presenciado. É impensável, entendem? – Perguntou, aguardando uns poucos
segundos o balançar de cabeças. – Assim sendo, vamos dar lugar a outra
abordagem, um pouco mais complexa, imaginando ainda uma linha temporal
única.
58

- Mais complexa? – Daiane já estava com as duas mãos sobre a cabeça.


August segurou a risada para continuar.
- Vamos manter o exemplo que ficará fácil de entender.
- Ótimo, fácil é bom – balançou a cabeça em aprovação.
- Ah! – interveio Ana antes que August apresentasse a nova abordagem
– Ainda em relação a primeira hipótese, só para deixar claro, tudo o que
aconteceu nesses últimos quatro anos, poderia seguir exatamente da mesma
forma se o Lennon resolvesse ignorar a carta ou simplesmente não recebê-la.
Não tem como ter certeza, conseguem entender? – não esperou a resposta – Nem
mesmo se ele sobreviver, pois o mais plausível seria que os 4 anos que se
passaram após sua morte, sejam revividos por todos desta realidade, mesmo que
por meio apenas de memórias, onde as novas, com John, entrariam no lugar das
velhas, sem John, inclusive, fazendo com que a conversa que estamos tendo,
nunca existisse.
- Isso não tem nada de plausível – comentou Ferdinand em tom de
deboche.
- De fato. – Ana deu de ombros.
- Bom, eu não sei vocês, mas essa aí eu já descarto de cara – gesticulava
o jovem, filho mais novo do anfitrião atual.
- Não seja apressado filho, tudo isso está muito além do conhecimento
que temos hoje, assim como o heliocentrismo na época do Galileu.
- Sábias palavras senhor Holister – August simulou aplausos. – Acredito
que a hipótese que abordaremos agora, nos ajudará a ter uma opinião um pouco
mais técnica sobre a própria linha temporal única.
- Tomara – brincou Ferdinand.

Capítulo 11

Enquanto discutiam sobre um dos assuntos mais fascinantes de se


conversar, viagem no tempo, August e Ana mal pensavam na complexidade da
situação em que se encontravam. Nenhum trauma por terem perdido suas
famílias, a realidade e enfrentado um “fim do mundo”, era percebido. Estavam
imersos.
- Como eu dizia, – continuou August – ainda tendo em mente o exemplo
levantado por Ana e também parte de sua explicação, pensem no seguinte: – o
jovem se levantou, foi até a cozinha, pegou um muffin e o trouxe consigo.
59

Chegando na mesa o partiu pela metade com uma faca em um corte vertical –
esqueçam o surgimento ou desaparecimento mágico de memórias, pessoas ou
coisas, o passado que vivenciamos já foi, é um fato e ninguém pode mudar isso,
de acordo?
- Agora sim! – Ferdinand gostou.
- Pois bem, na primeira abordagem, se mexermos com nosso passado
ele mexe com a gente, hoje, no presente, ignorando tudo o que já passamos em
função dessa… “mexida”, trazendo as próprias mudanças com ela.
- Essa mexida é o que conhecemos com interferência. – Acrescentou o
Sr. Holister.
- Isso, e para diferenciarmos os tipos de interferência, vamos chamar
essa de... – pensou por um instante. Sorriu travesso quando a ideia surgiu –
interferência AS, de Ana Schmidt.
Ana chegou a derramar um pouco do suco de seu copo.
- Está brincando, não é?
- Você apresentou a hipótese, é justo que fique com o crédito – quanto
mais August falava, mais ele sorria.
- Para de brin...
- Na verdade é uma ótima ideia para diferenciarmos uma das outras –
interrompeu Ferdinand. – Gostei, digo, não da hipótese em si, mas do nome da
interferência – ainda que em tom de brincadeira, fez questão de deixar bem
claro.
Sorriam enquanto olhavam para a jovem.
- Se vai facilitar as coisas, então tudo bem. – Mesmo um pouco sem
graça, Ana aceitou a, pode-se dizer, homenagem. – Ficamos com a interferência
AS.
- Maravilha! Vamos continuar então. – A cada sincero sorriso de Ana,
August ficava mais empolgado e cada vez mais longe das sensações que sentira
mais cedo. – Olhem para o muffin. Nesta abordagem, ainda na ideia de linha
temporal única, esse muffin nunca mais será inteiro de novo, pois eu já o parti e
nada que eu ou alguém fizer irá mudar isso, compreendem?
- Mas, e se ao invés de mandar a carta para o John, eu mandar a carta
para você, pedindo para não cortar o muffin, ou até para mim mesmo, me
obrigando a não fazê-lo? – Demorou, mas Daiane entrou nos trilhos.
Ferdinand comemorou como se fosse um gol do seu time do coração.
- Agora você arrasou mulher! – Deu-lhe um forte beijo na bochecha,
recebendo um tapa brincalhão no ombro.
60

Desde pequeno, Ferdinand e sua babá Daiane, viviam em um


descontraído clima de provocações e brincadeiras.
- Essa é a pergunta chave dessa segunda hipótese Daiane – continuou
August – e a resposta para ela é: nada vai mudar, o muffin continuará cortado.
- Quer dizer que não existirá interferência? – Suzan mostrou que
também acompanhava e se interessava pelo assunto.
- Não.
- Não, não existirá, ou não, a negativa da pergunta da minha mãe? –
Ferdinand quase confundiu a si próprio.
- Não, para a resposta da pergunta da sua mãe – August entrou na dança.
– A interferência existirá, porém os efeitos causados por ela, já aconteceram.
Trazendo para a situação do bolo, mesmo que tentássemos evitar que ele fosse
cortado por mim, tudo levaria a exatamente isso.
- Nessa teoria, John morreu e não a nada que possamos fazer para evitar,
qualquer intervenção que tentarmos fazer, só irá corroborar o resultado final, no
caso, seu assassinato. – Completou Ana.
- Então onde está a interferência? – Ferdinand questionou abrindo os
braços.
- Está nas entrelinhas. – Rudolph enxergou o quadro todo. – Não é
porque não vemos ou não sentimos diretamente algo, que ele não exista.
- Isso é filosofia pai, a conversa aqui é sobre ciência – provocou.
Rudolph Holister direcionou um olhar um tanto vaidoso para August.
- Posso?
- Mas é claro, o senhor ainda é o dono da casa.
Sorriu e manteve o olhar de orgulho maquiavélico, porém, em direção
ao filho agora.
- Fugindo ao que acreditamos todos esses anos, essa abordagem traz um
tipo de interferência, digamos, necessária – August balançou a cabeça em
aprovação – pois ao invés de bagunçar a linha do tempo, algo que sempre fora
nosso maior medo, ela o confirma, o mantém da forma como conhecemos.
- Hum? – A careta de Daiane entregava a confusão.
- Parabéns pai, o senhor acaba de chover no molhado.
- Quer um exemplo? – Arqueou as sobrancelhas.
- Ajudaria.
- Certo, mas não seja apressadinho, lembre-se que é apenas uma
hipótese. As peças podem começar a se encaixar rápido demais para você.
- Uuuu! – Ferdinand fez um gesto espalmando as mãos e balançando os
dedos.
61

August sentiu um arrepio. Pressentia algo na revelação que estava por


vir.
- Sempre fomos honestos com você e sua irmã em relação as cartas, não
fomos?
- Sim.
- E você, quando enfim decidir nos dar netos, vai apresentar esse
conhecimento a seus filhos, não vai?
- Vou – assentiu novamente.
- Ótimo! Então pense assim: visto que o Frank do futuro não sabe de
nada, como os meninos garantiram, por que você acha que sua irmã agiu de
forma diferente?
Ferdinand arregalou os olhos. August e Ana, apesar de conhecerem bem
a teoria, o acompanharam. Não tinham parado para observar daquele ângulo,
um ângulo correspondente a eles.
- Porque eles interferiram – coube a Suzan, olhando para os jovens de
outra época, responder. – Como no futuro, de acordo com os nossos viajantes,
foi importante Frank não saber, podemos pedir a sua irmã que não conte nada a
ele sobre as cartas.
Foi inevitável a reflexão sobre tais implicações.
- Se essa for a teoria correta, nada do que vocês fizerem aqui vai mudar
o que aconteceu em 2016, apenas o vai confirmar. – Concluiu o Sr. Holister
encarando-os com pesar.
Uns malditos segundos de silêncio e pensamentos profundos
entristeceram novamente a senhorita Schmidt e August, que ainda sentia de
longe, aquela incômoda sensação gélida na lombar.
- E a essa interferência – August elevou o tom de voz e estufou o peito
tentando ao máximo se desvencilhar do mal-estar – vamos dar o nome de
Interferência AH.
- De August Hermes, certo? – Ana completou quase de imediato.
- Não, na verdade pode ser, mas já que estamos falando de coisas
surreais, eu prefiro de August Heimdall, é mais apropriado.
A jovem fechou parcialmente os olhos e juntou alguns fatos que a
fizeram acreditar naquele sobrenome.
- Brincou!
- De maneira nenhuma. Este é mesmo o meu nome. – Sorriu de orelha
a orelha.
- Não acredito que seu pai seguiu com essa dos nomes da mitologia
nórdica – ironizou Rudolph.
62

- Pode acreditar, ele seguiu sim – confirmou August meio sem graça.
Ana não ia ficar só naquilo.
- Então fala aí, como é o seu nome todo? – Fez uma expressão tão jocosa
que August jamais a deixaria sem resposta.
- August Hermes Heimdall Dunkeld.
- Ah! – Ana teve um insight – O guardião da ponte do arco-íris! Agora
entendi! – Gargalhava.
- É isso aí, este é o motivo.
Os demais não entenderam absolutamente nada da crise de riso dada
pela senhorita Schmidt, mas antes que se delongassem naquele assunto e
perdessem o foco de vez, August trouxe a conversa de volta aos trilhos.
- Essa teoria também, mesmo tendo seus pontos altos, possui um fator
diferencial que me incomoda bastante, além de inúmeras... complicações.
- Paradoxos? – Indagou Ferdinand.
- Exatamente, paradoxos. E o fato de que ela nos deixa refém do nosso
próprio destino, fazendo com que a nossa acidental viagem ao passado, não
passe de uma peça no quebra-cabeça montado pelo tempo, e isso não me agrada
nada.
Ana ainda se recuperava das gargalhadas enquanto os demais pensavam
sobre a hipótese de linha temporal única envolvendo as Interferências AH -
August Heimdall.
- Poderia dar mais detalhes sobre os pontos, digamos, negativos dessa
teoria? – Pediu Ferdinand – Porque confesso que estou pendendo para ela.
- Claro, posso sim – August deu um gole em seu suco de laranja. – Essa
abordagem entra em conflito com um paradoxo que chamamos de “Paradoxo do
avô”.
- Espere, – Daiane interrompeu – é este mesmo o nome, ou está
inventando também?
- Não, o nome é este mesmo e, basicamente, é autoexplicativo –
continuou August. – Trata-se do seguinte: alguém viaja ao passado e mata o
próprio avô, o que seria impossível por meio dessa teoria, pois a pessoa que
viajou no tempo após matar um galho da sua árvore genealógica, não deveria
nascer, entendeu?
- Quer dizer que se você matar seu avô hoje, confirma que essa teoria,
onde tudo está interligado, está errada? – Ferdinand queria trocar tudo em
miúdos.
- Não, pois o meu avô hoje, já é pai do meu pai, então eu ainda nasceria.
No caso, eu teria que matar meu pai ou minha mãe... – gesticulava com o copo
63

nas mãos – mas para a finalidade da sua pergunta, sim, isso seria uma prova que
refutaria por completo esta teoria.
- Caramba! Essa prova é forte. – Ferdinand mostrava-se desanimado.
- E tem outra – Ana estava de volta ao seu estado normal.
- Tem mais? – Até mesmo o velho Holister demonstrara surpresa.
- Sim – a jovem sorriu. – Mesmo que o problema com os paradoxos
temporais fosse resolvido, para corroborar esta hipótese seria preciso provar que
vivemos em um eterno loop de tempo, sem começo e sem fim, apenas uma série
de acontecimentos fadados a se repetir por toda a eternidade.
- Ou seja – Ferdinand raciocinava – vocês continuariam a viajar no
tempo para o August partir o muffin? – nem esperou a resposta, as ideias
pipocavam em sua mente – E ainda, na realidade de vocês, em 2016, antes de
vocês virem parar aqui, alguém já havia comido esse muffin partido por um
viajante do tempo? É isso?
Ambos sorriram e responderam juntos:
- É isso aí.
- Então serei eu a comer esse muffin partido pela eternidade – brincou
pegando uma das metades e levando à boca.
Não seguraram o riso.
- Mas que bagunça hein! – Daiane arregalara novamente os olhos.
- É, realmente – Rudolph coçava a cabeça. – Preciso admitir – espalmou
as mãos –, pensei que o futuro fosse simplificar um pouco as coisas.
- Pois é, mas não quebrem a cabeça ainda – Ana continuou – porque a
melhor vem agora.
- Exato. Essas que apresentamos, são os dois tipos mais pensados de
interferências, pois se referem a um seguimento de linha temporal única, no
entanto, possuem vários paradoxos que impossibilitam suas confirmações como
apresentamos, e é devido a isso, que minha inclinação e da senhorita Schmidt,
ficam por conta da terceira opção, uma bem diferente das duas primeiras.

Capítulo 12

Olhando por uma minúscula janela de um avião comercial, não vendo


nada além de tons de azul entre céu e mar, um homem com feições simpáticas,
acariciava um objeto peculiar.
Não acredito que até hoje não descobri como mandar você de volta.
64

Os rígidos dedos do senhor passeavam suavemente pela superfície


dourada de um lacre em alto relevo, anexado a um tipo de papel antigo. O medo
de que algo acontecesse enquanto sobrevoava o Atlântico com outras dezenas
de passageiros, não o deixava pressionar mais.
Quem estará esperando essa resposta? LHC... se é que ainda está.
Em sua mente, contracenando com as dúvidas sobre aquele conhecido,
porém ainda misterioso objeto, uma frase, dita por um velho amigo em sua
última ligação recebida, o transtornava ainda mais.
Seu neto está aqui.
Meses atrás, havia recebido uma ligação deste mesmo amigo, sobre o
mesmo assunto. Todavia, ainda que acreditasse no conteúdo da carta, desejava
bem lá no fundo, que tudo aquilo não passasse de um sonho, um longo sonho
que evoluiu de um pesadelo.

- Então pai, podemos voltar às buscas?


O velho dava uma última olhada na papelada espalhada sobre sua
mesinha de escritório.
- É, parece que está tudo certo com as contas – balançava a cabeça. –
Na verdade, os lucros estão melhores que eu pensava – fez sinal de positivo com
os dois polegares.
O jovem Huginin sorriu orgulhoso.
- Senhor Dunkeld? – Christine entrou na biblioteca/escritório –
Telefone.
- Sabe dizer quem é?
- É o senhor Holister.
- Certo, obrigado Christine. – Ia saindo quando seu filho o interpelou.
- Então! Podemos voltar às buscas?
- De acordo com as obrigações financeiras, sim – virou-se com
expressão pomposa. – Agora vamos às teorias – sorriu. – Vão preparando a
apresentação aí que eu já volto.
Ainda que se encontrasse dentro de casa, foi necessária uma boa
caminhada para chegar ao aparelho.
Vou colocar um telefone em cada cômodo dessa casa. Pensou enquanto
recuperava o fôlego.
- Ahoy! – Ofegava.
65

- Que isso BO? Estava se exercitando?


- Que nada... dei só uma esticada para chegar ao telefone. Parece que
estou morto em vida – sorriu sem graça.
- Esse sedentarismo ainda vai te matar hein!
- O sedentarismo foi o responsável pelo desenvolvimento da sociedade,
e olha o tamanho dela hoje – brincou, já com a respiração normalizada.
- É né? Você que não dá um jeito logo para ver não. Ainda nem chegou
nos 50, mas parece que já passou dos 70.
- Mas e aí, além de bancar meu médico, o que deseja?
- Quero notícias da carta, ora. Já conseguiu enviá-la?
- Eu acho que sim.
- Você acha? – Rudolph não conseguiu deixar quietas as sobrancelhas.
- É. Se lembra de quando você a perdeu e depois, do nada, a encontrou
já tendo ido e voltado?
- Bom, sim mas...
- Então! É a mesma coisa. – Falava e também não conseguia segurar os
braços, parecia estar falando pessoalmente. – Ainda não sei como enviá-la, por
isso não posso dizer com certeza quando foi que aconteceu, mas ela sumiu já
faz uns três dias, simplesmente desapareceu.
O telefone ficou mudo por alguns segundos.
- RH, ainda está aí?
- Cuidado Frank! – Ouviu-se distante. Depois veio o conhecido estalar
de quando alguém pega o telefone.
- Ei Rud! Está tudo bem aí?
- Está sim. Foi só meu neto tentando escalar a mesa através da toalha
outra vez.
O Sr. Dunkeld gargalhou.
- Não vejo a hora de ter um netinho.
- São uma benção! – Deixou escapar com ar mais enfadonho do que
esperava.
- Eu sei que são – olhava para o vulto de uma garotinha correndo de um
lado para o outro na cozinha. – Aliás, eu descobrirei em breve, visto que meu
neto está para chegar.
- Christine está grávida? – Perguntou empolgado.
- Não! Você sabe que eles não...
- Ah! Vai dizer que é de uma das garotas do Munin? – Interrompeu.
- Também não! Deixe-me falar homem, segure essa empolgação!
Ouviu-se risos do outro lado linha.
66

- Já entendi, está falando da carta.


- Exato.
- E acredita mesmo nessa história BO?
- Rud, você mais do que ninguém conhece os motivos que me fazem
acreditar. Essa não é a história que inventei do pombo e do funcionário do
palácio, isso é real, assim como o começo dessa bagunça. Eu posso sentir.
- Entendo. Mas, acha que o tal LHC pode ser...
- Não.
- Assim? Seco?
- Pela linguagem estritamente técnica e objetiva, posso cravar que não
é quem você pensa que é. – A feição do Sr. Dunkeld deixou de ser tão agradável.
- Mas a objetividade pode ser devido a cautela, talvez falta de tempo
para escrever com calma, não sei. Na carta mesmo diz sobre uma possível
vigilância.
- Você me conhece RH e sabe que desculpas comigo não têm vez. Quem
quer, faz, quem não quer, arruma uma desculpa.
- É, você tem razão – inspirou. – Então, assim que seu neto chegar, eu
lhe aviso.
- Ótimo! Tudo de bom velho amigo.
- Para você também e vê se cuide-se. Até!
Logo que colocou o telefone de volta no gancho, o Sr. Dunkeld foi
abordado por uma bela jovenzinha com o cabelo volumoso, possuindo no
máximo uns quatro anos.
- Senhor Dunkeld, minha mãe está perguntando o que vamos ter de
almoço.
Apesar de uma certa troca de palavras, o velho entendeu.
- Hum... alguma ideia? – Fechou suavemente as pálpebras.
- Eu gosto de batatinhas.
- É, eu também – sorria. – Mas eu tenho um amigo muito chato que disse
que estou engordando, acredita?
- Sim. Sua barriga está grande mesmo. – Respondeu com toda
serenidade do mundo.
Agora ele gargalhou.
- Certo – ainda ria. – Peça a sua mãe para fazer alguma coisa com o
mato que ela deve ter pegado lá na horta que já está ótimo.
- Eu não gosto de mato.
67

- Nem eu, mas às vezes é preciso fazer o que não gostamos. – Olhou
dentro dos imensos olhos negros da garotinha e percebeu um certo
desapontamento.
- Tudo bem. Mas vai ter só mato?
O velho balançou a cabeça e cantarolou como se estivesse pensando.
- Pode ser mato com... batatinhas! – Finalizou gritando e correndo atrás
dela querendo lhe fazer cócegas.

Capítulo 13

Com o copo de vidro transparente nas mãos, querendo pegar um pouco


mais de suco, mas um tanto receoso por já ter tomado dois, August teve uma
ideia.
- Para esta última teoria, vamos tentar outro exemplo prático – destacou
o copo vazio colocando-o no centro da mesa, onde antes estava a vasilha com o
muffin.
- Vai explicar a teoria que vocês acreditam ser a correta? – Perguntou
Ferdinand.
- Isso. Ana e eu conversamos muito a respeito dessas teorias em 2016 e
a que apresentaremos agora, foi a que mais se encaixou em tudo que
acreditamos, baseado é claro, nos materiais que dispusemos para estudar e em
nossa compreensão de como o universo funciona – fez questão de esclarecer. –
Apesar de bastante complexa em termo de cálculos, que inclusive nós
desconhecemos, a explicação é bem simples – ergueu o copo.
- Ótimo! Simples é bom, muito bom – comentou Daiane sorridente.
- Vamos lá. Aqui, temos a noção que possuímos e vivenciamos chamada
“tempo-espaço”. Isso – continuava a mostrar o copo – é a nossa realidade, é
nossa linha temporal.
Ana captou rapidamente o raciocínio da explicação do parceiro, não
demorando a pegar dois copos vazios iguais ao que August estava usando, e
deixar à vista dele.
68

- Há aproximadamente 13,5 bilhões de anos, a explosão cósmica


primordial conhecida como Big Bang, criou tudo, inclusive o tempo, que a partir
de então, começou a correr.
- Não precisa começar de tão longe parceiro. – Ana arregalou os olhos
sorrindo.
- Pelo visto a maçã não cai mesmo longe da árvore – brincou Rudolph
trazendo as lembranças das inúmeras histórias contadas pelo avô de August à
mente.
August ignorou risonho as interrupções e seguiu com sua apresentação.
- Com o tempo em movimento e o universo em constante expansão...
- Espere aí – interveio Rudolph – Desculpe a interrupção August, estava
voando aqui. Já conseguimos ir além deste ponto? Digo, ao início do início?
O jovem abriu um sorrisão.
- Ainda não senhor Holister, só chegamos até aí, mas continuamos em
expansão, então – fez uma pausa.
- Então o que? – Ferdinand estava vidrado.
- Então não sei – deu de ombros sem graça – só fomos mesmo até aí.
Caíram na risada.
- Certo viajante do tempo, então prossiga com o que você sabe. –
Ferdinand fez um gesto estendendo o braço.
- Bom, seguindo... há 4,5 bilhões de anos, um pequeno planeta, recém
formado, orbitando uma estrela quente e pesada, que o mantinha por perto,
começou a sentir os efeitos do tempo.
- Devo admitir: ele fala bem igual ao avô – sussurrou Suzan para o
marido.
- As décadas, os séculos, os milênios foram se passando e o planetinha
começou a se resfriar. – August pegou a jarra de suco e foi colocando o líquido
no copo bem devagar. Por rara felicidade, uma pequena semente de laranja veio
junto com o líquido. – Eis que surge a vida!
- Nessa área, temos novas informações? – Interveio Rudolph
novamente, erguendo uma das sobrancelhas.
- Bom, aí depende das teorias que vocês já possuem hoje, mas acredito
que também não tivemos avanços significativos.
- Na verdade, tivemos sim.
Os olhos voltaram-se para a senhorita Schmidt. August acomodou-se na
cadeira para vê-la encantar a todos com seu brilhantismo mais uma vez.
Olha ela aí!
69

- Além das teorias, praticamente, já descartadas como Panspermia,


Abiogênese e até mesmo Biogênese, temos a mais aceita atualmente, tratando-
se da mesma teoria hoje, em 1984, e em 2016, que é a Hipótese Heterotrófica,
correto?
- Sim, ela mesma. A teoria apresentada por Oparin e Haldane. –
Confirmou o Sr. Holister.
- Pois bem, além dessa ideia do Oceano Primordial, dos compostos
orgânicos que se agruparam formando o coacervado, que juntou-se ao RNA para
formar o chamado protobionte, o primeiro ser vivo de acordo com a hipótese –
falava de forma acelerada –, temos uma outra interpretação, a nível ainda
especulativo é verdade, de como o primeiro ser vivo surgiu de fato em nosso
planeta.
- Ei gente, desculpem a interrupção, mas do que diabos vocês estão
falando? – Daiane abriu os braços com a expressão completamente perdida outra
vez.
- Da origem da vida. Não viu a sementinha dentro copo? – Brincou
Ferdinand.
Daiane o ignorou.
- Mas a vida não veio com Deus criando o mundo, os animais e Adão e
Eva?
August e Ana se retesaram. Mesmo certo do que falavam, contrapor
crenças nunca deixa de ser um assunto delicado.
- Não Daiane. – Suzan percebeu o desconforto dos jovens e respondeu
com segurança.
- Não? Então veio de onde? – Insistiu embasbacada.
- De onde a garota do futuro falou. – Respondeu Ferdinand apontando
para Ana.
- Mas para mim ela falou, falou, falou e não falou nada – sorriu sem
graça.
Não conseguiam olhar para as expressões faciais de Daiane e não
sorrirem com a desajeitada simpatia da governanta.
- Bom, eu não sei direito os nomes que ela falou – continuou Ferdinand
– mas no começo, acreditavam que os primeiros micro-organismos tinham
vindo do espaço por meio de meteoros.
- ET´s? Vocês acreditam em ET´s? – Chegou a se levantar.
- Não Daiane! Acalme-se – dando um puxão em seu avental de pano
branco impecável, a fez sentar-se – deixe-me terminar. Essa teoria foi
70

descartada, relaxa. Não tinha como nenhum ser vivo sobreviver a tal viagem e
principalmente à delicada aterrissagem de um meteoro – ironizou.
- Mas então vocês acreditam que existam ET´s por aí?
Todos balançaram a cabeça verticalmente.
- Não seres verdes, com cabeças enormes e formas humanoides, mas
sim, existe uma grande possibilidade de encontrarmos vida fora do nosso
planeta.
- Até a senhora? – Olhou para a patroa.
- Sim Daiane. Seria muito egoísmo da nossa parte acreditar que em um
vasto universo como este, exista vida apenas aqui.
- Exato – Ana tomou novamente a palavra. – A vida na Terra existe pela
simples localização que ela possui em relação ao sol. Se o orbitássemos mais
para perto ou para longe, nosso planeta seria tão estéril quanto os demais que
compõem o sistema solar. E se você pensar, existem incontáveis estrelas como
essa, – apontou para a janela – que iluminam o nosso planetinha azul, espalhadas
por todo o cosmos.
Daiane ficou estática. Pensava no que a garota ruiva acabava de dizer e
dessa vez, não buscava entender, pendia a acreditar.
- É, até que faz sentido, mas eu penso nisso mais tarde – coçava a
cabeça. – Por agora quero saber onde o jardim do Éden entra nessa história.

Capítulo 14

Daiane mantinha o olhar curioso sobre os jovens que vieram de um


outro tempo.
- Por favor. – Ana, saindo pela tangente, pediu meio sem graça para
Ferdinand continuar a explicação.
- Ok, posso tentar, mas você me auxilia, beleza?
A jovem assentiu simpática.
- Depois da teoria de extraterrestres pegando carona em meteoros...
- Panspermia. – Completou Ana.
- Isso, obrigado. Depois dessa teoria, veio a ideia de que a vida surgia
do nada.
- Tipo Deus? – Daiane sorriu jocosa.
- Sim, tipo Deus, mas não deram a Ele o crédito, mas sim, a uma força
vital invisível que fazia surgir a vida de coisas não vivas.
71

- Tem certeza que não está falando de Deus?


Nem mesmo Ferdinand conseguiu continuar sem rir.
- Tenho sim. Mas essa foi refutada por um experimento envolvendo um
tal pescoço de cisne, não é?
- Exatamente. A experiência de Louis Pasteur. – Acrescentou seu pai.
- Como é que é? Mataram um cisne para que?
- Pelo amor de Deus Daiane! Isso era só o nome de um frasco de vidro
que utilizaram para fazer o experimento, mas deixa pra lá. – Ferdinand não sabia
se ficava bravo ou se ria. – O negócio é que chegamos na teoria onde a vida
surgiu no mar, que estava cheio de material orgânico que foi se juntando até
ocorrer a primeira respirada, certo?
Ana fez uma singela careta.
- Bom, tecnicamente, durante esse período de desenvolvimento da vida,
nosso planeta ainda não tinha oxigênio, então os primeiros seres eram
anaeróbicos...
- Foi só uma expressão e você sabe – Ferdinand fez cara de indignado.
- Ela sabe, está só se exibindo – August provocou. – A perfeitinha
Schmidt.
Ana desdenhou.
- Mas é isso. O único fato, ou melhor, teoria que acrescentamos desde
então, foi elaborada por um físico do MIT – Massachusetts Institute of
Technology – e ainda está sendo apresentada ao mundo. E por alto, também
porque não sei muitos detalhes, ela trabalha com a ideia básica de que a vida
surgiu de forma “espontânea” – fez o sinal de aspas com as mãos – mas não a
partir de Deus, nem de uma força vital, nem de compostos orgânicos específicos,
mas da própria entropia que permeia o universo, da dissipação de energia e da
atuação dela sobre os átomos.
Até mesmo August agora, parecia perplexo.
- Caramba! Pode explicar mais Ana?
- Na verdade, não posso – sorriu sem jeito. – ainda estava
acompanhando as notícias a respeito dessa teoria quando viemos parar aqui.
Mais algumas risadas.
Outra vez a ficha da jovem deu sinais de que ia cair e seu rosto logo
demonstrou isso. August agiu rápido novamente.
- Mas então, é basicamente isso. Eis que a vida surgiu! – Pegou o copo
com suco de laranja até a metade e o balançou de forma circular, fazendo a
pequena semente dançar lá dentro.
- E Deus, nada?
72

Silêncio novamente. Mesmo na sociedade da qual os jovens vieram, em


pleno século XXI, esse assunto ainda é considerado bem delicado.
- Sim Daiane, nesse contexto mais aceito, nada de Deus. – Suzan
interveio outra vez.
- Como assim Su? Acredita nisso? – Mesmo a chamando de senhora na
maioria das vezes, sempre por opção própria, Daiane tinha uma considerável
intimidade com a patroa, a qual fora se formando em seus 19 anos de trabalho
prestados a família Holister, basicamente, sua família.
- Sim Daiane, até o momento é a que melhor se encaixa.
- Mas a senhora é cristã! É uma católica fervorosa que vai à missa e reza
o terço!
- Sim minha querida, sou sim – a voz doce de Suzan conseguiria
amenizar batalhas medievais. – Porém, o fato de acreditar em algumas teorias
científicas que explicam ou tentam explicar aspectos básicos e fundamentais da
nossa existência, não faz de mim menos cristã. Isso ficou no passado.
Agora, eram os jovens viajantes do tempo, os vidrados da vez.
Encontravam-se boquiabertos com a maneira sábia de Suzan levar a situação e
principalmente, conduzir sua fé.
- Ciência e religião não são mais inimigas – continuava – pelo contrário,
precisam caminhar juntas. Ambas são importantíssimas para o bem viver da
sociedade, imagino que no futuro seja ainda mais – olhou para os jovens.
August e Ana balançaram a cabeça enfaticamente.
- Então não foi Deus quem criou o mundo, os animais, Adão e Eva...
nada?
- Não foi o que eu disse.
Daiane pensou em argumentar usando a própria resposta anterior da
patroa, mas a deixou concluir.
- Eu disse que não acreditava nisso, mas não sou a dona da verdade –
sorriu simpática.
- Mas isso não a mesma coisa? Isso não é negar a sua fé? Ir contra a
doutrina da igreja?
- Sim e não.
A cada concisa resposta da Srª Holister, mais os jovens espantavam-se.
- Como assim?
- O jardim do Éden, a Arca de Noé, a abertura do Mar Vermelho, são
todos mitos criados para a formação da religião, ou das religiões se preferir,
visto que as mesmas histórias originaram o Judaísmo, o Cristianismo e o
Islamismo, que se separaram com o passar do tempo, o que não vêm ao caso. O
73

fato é que, não é porque eu não acredito nesses escritos, que eu não acredite em
Deus. Para mim, Deus não se limita a apenas um povo que vagou pelo deserto
e batalhou contra outros povos para dominar um território, não, para mim Deus
é a resposta para as perguntas que nem mesmo os jovens do futuro conseguem
responder.
Rudolph deu um disfarçado e orgulhoso sorriso.
- Quais perguntas? – Daiane não dava descanso.
- Tente-se lembrar da pergunta que o Rud fez quando o senhor Heimdall
começou a explicação.
- Só August, por favor – pediu com jeitinho.
- É claro, também prometo tentar. – Assentiu a Sr.ª Holister.
O silêncio permaneceu até Daiane se lembrar.
- Foi sobre a grande explosão?
- O Big Bang. A grande explosão cósmica que gerou tudo do nada. Bom,
eu quietinha aqui em 1984 já não gosto da ideia do nada, imagina os cientistas
do futuro – arqueou as sobrancelhas e olhou outra vez para os jovens.
- É onde entra Deus. – Soltou Ana sem perceber. Estava completamente
envolvida pela fala de Suzan.
- “E Deus disse: haja a luz”. – Testas franzidas. – Quem disse que a luz
da tal explosão cósmica não é a mesma luz do Gênesis? Para mim será, até que
me convençam do contrário. Assim como foi quando parei para pensar e percebi
que se não temos o mesmo DNA, não poderíamos ter vindo todos de Adão e
Eva, e ainda quando li, na própria Bíblia, que Deus colocou um sinal em Caim
quando este fora banido, para que não fosse ferido por quem o encontrasse,
ficando claro que existia vida fora do Éden.
- Na Bíblia diz isso? – Daiane duvidou.
- Sim – respondeu de forma serena.
- Vou verificar – levantou-se com a intenção de ir buscar sua Bíblia.
- Vamos continuar com a teoria por aqui, ok? – O Sr. Holister sabia
como lhe dar com a governanta.
- Certo, eu procuro depois – sentou-se. – Por favor August prossiga.
O jovem olhou para a parceira à procura de consentimento. Fisicamente
com a ficha ainda por cair, Ana balançou a cabeça.
74

Capítulo 15

Apontando para o copo de vidro transparente com suco de laranja até a


metade, August enfim, continuou com a teoria.
- A vida surgiu, se multiplicou e foi evoluindo – pegou novamente a
jarra de suco, começando, de forma ridiculamente lenta, a adicionar mais líquido
ao copo. – Vieram as Eras com os Dinossauros – de forma pouco espalhafatosa,
fez como se tivesse garras – que tanto ficaram, mas logo se foram. – Fez uma
pausa encarando disfarçadamente sua parceira. Queria ter certeza de que ela
estava ali, com ele.
Ana sorriu com o jogo de palavras.
- Aí veio a Pré-História com o homem, que se tornou sedentário, formou
comunidades, desenvolveu a escrita, Pirâmides, Stonehenge, guerras e tudo
mais. – Ferdinand falava de forma acelerada, gesticulando da mesma forma. –
Desculpe a impaciência, mas tenho que ir embora amanhã e quero muito ouvir
a tal teoria – sorriu sem graça. Apesar do jeitão meio truculento, o filho mais
novo do Sr. Holister, não fugia à boa educação dos pais.
Quando Ferdinand havia começado a falar, August interrompera o
acréscimo de suco ao copo.
- Certo, vamos direto ao ponto agora. – Falava olhando para o copo
quase cheio. – A sociedade se desenvolveu, Grécia, Roma, lugares bacanas que
até deram um nome para o nosso planeta: Tellus ou Gaya, deuses da fertilidade,
que tornaram-se Terra. – Pegou uma colher e com o cabo dela começou a fazer
movimentos circulares dentro do copo. Não demorou muito e o redemoinho
formado, fez com se derramasse um pouco de suco. – Depois quase ruiu em
guerras, fome e doenças. – Retirou a colher. – Surgiram os Reis, os Estados, as
Classes. Os pensadores, os revoltosos e os artistas. Circundamos o globo e
depois saímos dele, olhando hoje para um além sem fim. – Esperou que o líquido
no copo se aquietasse de vez. – Isso é História, é algo vivo, pulsante, não pode
ser esquecido ou apagado. – Correu os olhos pela mesa para ter certeza de que
detinha a atenção de todos. – Este suco representa 14 bilhões de anos,
comprimidos dentro de um copo, e o ponto próximo a borda é o ano de 2016,
tudo bem?
Assentiram. Bom, quase todos.
- Mas ainda estamos em 84 – retrucou Daiane.
75

- Era onde eu queria chegar. – August gostou da interpelação. – Ana e


eu, já vivemos os anos que sucedem 1984 e antecedem 2016, mesmo que não
todos de fato, por termos nascido um pouco depois da data inicial citada.
- Você um pouco e eu muito – provocou Ana arrancando risos.
August deu de ombros.
- Ha ha ha, muito engraçado. Sou mais velho que você quase uns dez
anos e nem se nota diferença entre nós – fez pose.
- Se nota assim. – Foi a vez de Daiane provocar.
Mais risadas.
- São oito apenas, ok? – Comentou Ana.
- O que?
- Oito anos de diferença. Não vem querer aumentar para tentar se sair
bem não, comigo não cola.
- Hum – fez cara de desdém – se está dizendo. Mas enfim, isso não é
relevante, minha jovialidade frente a idade cronológica que possuo, não é o
objeto principal da teoria, mas sim o fato de que Ana e eu nascemos e até o
presente momento – se apalpou nos braços e tronco – estamos vivos.
- Hum? – Daiane fez mais uma de suas caretas.
- Ele está reafirmando o que havia dito antes sobre a história ser viva. –
Respondeu Ferdinand.
- Não melhorou muito. – A governanta mantinha a expressão confusa.
- Vou explicar assim, de uma maneira bem simples – August tomou um
gole generoso do suco.
- Sabia que havia um segundo motivo para um floreio tão grande na
teoria – Ana sorria de orelha a orelha.
August a ignorou, ficando meio sem graça, pois era de fato verdade.
- O copo cheio, representava a realidade até 2016 onde Ana e eu
estávamos, ou seja, o avanço do tempo-espaço criado lá no Big Bang até o ano
de 2016. Agora – apontou para o copo um tanto mais vazio – estamos em 1984.
– Pegou novamente a jarra de suco e colocou até atingir quase a mesma
quantidade de antes. Como era o restante, mais alguns pedaços de sementes
caíram dentro do copo, outra vez, com rara felicidade para a explicação. – O que
aconteceu até o ano de 2016 que conhecemos não pode mudar, eu já tomei –
sorriu – e o que vai acontecer de agora em diante, mesmo que a tendência seja
acontecer exatamente o mesmo, será diferente e ainda assim, não mudará o que
já vivemos – pegou dois copos daqueles colocados perto por Ana e distribuiu o
suco entre eles.
76

- Você acha mesmo que simplificou as coisas? – Daiane estava


acelerada.
- Múltiplas realidades. – Rudolph deu a entender que sim, August tinha
simplificado.
As cabeças trabalhavam.
- Nessa teoria cada interferência cria uma nova realidade – comentou
Ferdinand, meio que falando consigo mesmo.
Ainda assim, Ana sentiu necessidade de explicar.
- Na verdade, apenas a primeira interferência cria a realidade paralela,
as demais passam a ser apenas interação e montagem daquela que fora criada.
- Quer dizer que esta realidade – Suzan apontava para baixo com os
indicadores – se tornou única no momento em que August chegou aqui?
- Talvez. – O próprio August respondeu.
- Como assim, talvez? – Ferdinand deixou subir os ombros.
- Acontece que não sabemos se esta foi a primeira interferência. –
Respondeu o jovem prontamente. – Só o fato de seu pai ter perdido alguns
segundos ao ler a carta vinda do futuro meses atrás, já alterou a sequência da
vida dele e se, por exemplo, no futuro de onde eu venho, ele não recebeu essa
carta, mesmo que Ana e eu não tivéssemos chegado, já seria uma realidade
diferente – passava a mão de um copo a outro – entende?
- É um tanto complexo, mas entendi.
- Isso significa que, caso esta teoria seja verdadeira, as interferências
apenas têm efeitos na realidade em que são implantadas e com certeza, a nossa
já foi alterada em algum momento. – Concluiu Rudolph.
- Exatamente. – Afirmou August.
- Mas tantas realidades, tantas linhas temporais, tantas dobras no
tempo... – Rudolph parou um pouco antes de concluir – não são uma quantidade
considerável de massa e matéria a ser suportada pela malha do Universo? Ou a
cada interferência criamos outro?
- O senhor está ficando bom em fazer perguntas que não podemos
responder. – Brincou Ana. – É difícil compreendermos as demais realidades nos
planos e dimensões que conhecemos, é algo além até da nossa imaginação.
- Acredito que mais alguns anos serão necessários para entendermos de
fato tudo isso – Acrescentou August.
Alguns instantes de destaque às respirações.
- Muito bem! Essa teoria é a que August e eu mais acreditamos, porém
não podemos dizer com certeza de que se trata da correta.
77

- É, ainda não temos provas – completou August, parando para pensar


um instante. – Se bem que...
- Se bem que o que? – Ana ficou curiosa.
- Lawrence disse que havia mandado uma carta para ele mesmo
esperando que ficasse rico na realidade em 2016 e nada aconteceu.
- Mas isso não é prova concreta. Ele disse que o destinatário confirmou
o recebimento?
- Não, acho que não.
- Então ainda não se trata de uma prova, pois permite especulações em
duas teorias: a que acabamos de explicar e a outra que trabalha com linha
temporal única, a da interferência AH, onde se o Lawrence do presente não é
rico, qualquer alteração no passado, acabará por não levá-lo a riqueza.
- É, você tem razão. – Assentiu August.
- Esperem um pouco, vocês disseram Lawrence? – Indagou Rudolph.
- Sim, o senhor o conhece? – Rebateu Ana.
Rudolph meio que fechou os olhos, parecia pensar, ou fingia pensar,
disfarçando o bater de asas de borboletas que começou em seu estômago logo
que ouvira o nome.
- Acho que sim, mas não me lembro de onde.
- Depois falamos mais dele quando formos contar a história toda. Agora,
se não se importarem, gostaria de levar a senhorita Schimdt para respirar um ar,
dar uma volta na cidade. – Falou August terminando o copo de suco e se
levantando.
- Claro, realmente a conversa estendeu-se por demais. Vão esticar as
pernas, só não assustem muito com as diferenças que com certeza, vão encontrar
por aí. – Brincou.
Os jovens organizaram os utensílios que utilizaram e saíram da mesa
cumprimentando a todos. Ana, logo interrompeu os passos e retornou, pegando-
os ainda sentados.
- Ah, só para facilitar a lembrança, a última teoria é conhecida como
Teoria do Multiverso e para registro nosso, chamaremos a interferência de AA
– sorriu.
78

Capítulo 16

Com exceção da camisa emprestada por Ferdinand, as roupas que


August e Ana trajavam, eram as mesmas que utilizavam no último momento
deles em 2016. Incrivelmente, nem mesmo as meias de August encontravam-se
molhadas e mais incrível ainda, seu MP3 branco e redondo, parecido com um
disco voador, com um botão verde também redondo no meio, ainda funcionava.
- Impressionante! Ainda funciona. – Interrompeu os passos e ofereceu
um dos fones para a senhorita Schmidt.
Um pouco avoada, passando os olhos pelo verde espalhado por todo
lado naquele trecho, ainda a centenas de metros do centro urbano, Ana demorou
um pouco a colocar o fone.
A caminhada até ali havia sido, praticamente, de pura contemplação,
onde a paisagem ocupava o espaço do que deveria ser a reflexão e August sabia
disso.
Está na hora da ficha cair.
August deixara a música pausada até a parceira estar à postos. Como os
fios eram curtos, precisou prender o MP3 na gola da camisa e andar bem colado
a jovem. Começou a falar junto com player. Um reggae suave embalava sua
voz.
- Sabe, eu andei pensando naquele estrondoso fenômeno que engoliu a
Terra e, não pode ser um buraco negro, pois dava para se ver luz oriunda de seu
centro, e em buracos negros, nem mesmo a luz consegue escapar, por isso se
chamam buracos negros. – Tentou fazer uma graça por não saber como iniciar
aquela conversa. Mesmo assim, mesmo com um assunto nada a ver com o que
ele realmente queria falar, August chegou onde queria. Três passarinhos fizeram
o trabalho.

“Rise up this morning


Smile with the rising sun
Three little birds
Pitched by my doorstep
Singing sweet songs
Of melodies purê and true
Sayin': This is my message to you

Saying, don't worry about a thing


'Cause every little thing
79

Gonna be all lright”

(Levante esta manhã


Sorria com o sol nascente
Três passarinhos
Cantam à minha porta
Cantando músicas doces
De melodias puras e verdadeiras
Dizendo: Esta é a minha mensagem para você

Dizendo, não se preocupe com nada


Porque cada pequena coisa
Vai ficar tudo bem)

- Está tudo bem?


Ana até tentou segurar, mas as lágrimas mostraram-se imparáveis.
Ali à beira da estrada, tendo cascalho sob os pés, a jovem o abraçou e
rendeu-se ao pranto.
Em meio aos soluços, com uma voz suave e ao mesmo tempo
agonizante, Ana resolveu falar, decidindo contar o que até hoje, não contara a
ninguém.
Apesar do calor, o tempo estava nublado, o que não justificava,
principalmente com a ausência de vento, os arrepios sentidos por August.
- Estou com medo August – interrompeu o abraço e o encarou. Seu rosto
estava manchado pelas lágrimas. – O mesmo medo que possuo cada vez que
entro em um carro, mas agora, aqui... – olhava em volta. Seus olhos que hora
pareciam azuis, hora verdes, contrastavam com o vermelho que tomara quase
por completo seus globos oculares – eu não vejo janela para abrir. – Voltou a
chorar.

- Rud? – Suzan chamou o marido enquanto ajudavam Daiane, já há


algum tempo no banheiro, a arrumar a cozinha.
- Sim meu bem.
- O tal Lawrence que os meninos falaram é o sobrinho da Linda?
- Acredito que sim.
- Então porque disse que não o conhecia?
80

Rudolph coçou a cabeça.


- Não me venha com historinhas, já passamos dessa fase – acrescentou
ela olhando de rabo de olho.
- Não sei se o BO enfim, resolveu contar para eles sabe, no futuro.
- Mas Munin e Huginin sabem do desaparecimento da mãe deles.
- Sim, mas não sabem que o Arthur é irmão dela. Pelo menos não hoje
– levantou as sobrancelhas.
Suzan parou o que estava fazendo e olhou para o marido.
- Mas vocês trabalharam com ele um bom tempo. Está me dizendo que
os sobrinhos nunca tiveram contato com o tio, nem com o primo?
- Por parte de mãe, não. BO sempre deixou os filhos de fora dos assuntos
da Guardiões, sabia que a obsessão de Arthur o estava levando para um caminho
complicado.
Suzan expirou empática.
- Entendi. Mas, e o filho dele? Lembro de vocês conversando, um pouco
antes de saírem, que se ele herdasse a agência, as coisas poderiam ser…
diferentes.
- Pois é, estou curioso para saber o que os viajantes do tempo têm a nos
contar sobre ele. Lawrence nunca deu a entender de que seguiria os passos do
pai. Esteve sempre com ele porque é um bom filho e sabe que Arthur nunca
superou a perda da esposa.
Suzan abraçou o marido.
- Deve ter sido difícil para ele – respirou fundo. – Uma criança
crescendo sem a mãe, tendo que fazer papel de pai e ainda longe da família.
- Não, a família do Arthur sempre deu suporte a ele e ao filho. Os
Campbell possuem muito dinheiro e inclusive, financiaram a Guardiões por
muito tempo, praticamente todo o período em que o BO e eu estivemos lá.
- Ah é? E eles trabalham com o que?
- Isso eu não sei. Só sei que, se a Guardiões do Tempo existe hoje, é por
causa do dinheiro dos Campbell.
Desfizeram o abraço e voltaram a lavar e arrumar as louças.
- Mas como ele obteve lucro ou conseguiu investimento para a agência,
digo, para convencê-los? Vocês eu sei que se tratava de um trabalho paralelo,
mas e ele?
- Ele disse a verdade.
- Sobre as cartas, a esposa e sobre a Linda?
- Sobre tudo. Arthur se convenceu e depois convenceu a família toda de
que podia trazê-las de volta.
81

Suzan arregalou os olhos. Por um instante pareceu escutar aquela


história pela primeira vez.
- E ele pode?
Rudolph sorriu.
- No início BO e eu acreditávamos que sim, afinal você viu o que essas
coisas podem fazer. Aliás, esse foi o motivo de entrarmos para a agência. Mas,
os anos foram passando, as pesquisas não avançavam, não estabelecemos
contato com nenhum remetente original e como eu disse, Arthur parecia não
distinguir mais o certo do errado, então optamos por sair.
- E ele ainda continua procurando um jeito de trazê-las de volta?
- É, continua sim – balançava a cabeça. – Lá se foram vinte anos.
O comentário de Rudolph ganhou ares de reflexão ao preceder o
silêncio. Que não durou muito.
- Aqui, eu encontrei! É verdade mesmo. – Daiane entrou afobada
mostrando um versículo específico da Bíblia a seus patrões. – Nesta do jardim
eu tenho que concordar, agora vamos em frente. Por que a senhora não acredita
na Arca de Noé?
Suzan e Rudolph se entreolharam.
- Foram quarenta dias e quarenta noites, certo? – Indagou a patroa.
- Certo.
- O que os animais comeram Daiane?
Ela parou um pouco para pensar e antes de responder, encolheu os
ombros, tornando impossível descobrir se falava sério ou não.
- Os herbívoros comeram o mesmo maná que caia no deserto e os
carnívoros... comeram os corpos flutuantes dos pecadores?
Rud e Suzan gargalharam.

Capítulo 17

- Quando eu tinha 5 anos – Ana contava – minha tia tomava conta de


mim enquanto meus pais trabalhavam. Ela é ótima! – tentou se animar um pouco
– Acho que... ela tinha a idade que tenho hoje quando aconteceu.
Os jovens estavam apoiados em uma cerca de madeira, debaixo de uma
árvore, à poucos metros da estrada, na entrada de uma das muitas propriedades
espalhadas por ali.
82

- Ela sempre me levava para fazer compras, eu adorava. Como a casa


onde ficávamos nas férias encontrava-se mais afastada da zona urbana, íamos
de carro. – Fez uma pausa. Nitidamente falar sobre aquele episódio a perturbava.
– Todos estavam na fazenda aquele dia, comemorávamos alguma coisa. Minha
tia ainda jovem, era a única que não bebia, então se ofereceu para buscar os
ingredientes do jantar e... eu fui junto.
August a escutava mais com o coração do que com os ouvidos. A cada
inspiração da jovem, seus batimentos aceleravam.
- Tudo certo com o passeio. Mais um rolê divertido que terminara em
sorvete ao lado da melhor tia do mundo. – Ana nem percebeu uma lágrima
escorrer por sua face. – Pegamos uma baita chuva na volta, nada que já não
tivéssemos pegado umas cem vezes. Minha tia amaldiçoava o vovô por não ter
mandado colocar ar condicionado naquela lata velha – esboçou um sorriso –
mesmo assim, mesmo com calor, ela mantinha os vidros fechados, não ia
arriscar molhar os cabelos esticados.
Alguns segundos com a jovem observando dois ou três carros que
passaram por ali foram necessários para ela conseguir continuar.
- Faltavam alguns poucos quilômetros para chegar, passávamos perto
de um lago, pequeno, distante umas poucas dezenas de metros da estrada.
Ouvimos o barulho de um dos pneus furando, nada de mais, mas minha tia se
apavorou e tentou parar o carro de uma vez.
- Era uma picape? – Interrompeu August tentando despertar apenas o
lado descritivo de Ana, visto que o emocional estava em frangalhos.
A jovem franziu a testa.
- Era sim. Um carro pesado que saiu da estrada e passou por algumas
lombadas em meio a gramínea, batendo na única árvore num raio de uns
duzentos metros dali. Isso que é sorte – ironizou.
August pegou a mão da jovem e a colocou entre as suas, da mesma
forma que fizera no dia em que foram apresentados.
- Se não quiser terminar, tudo bem.
- Não, já está acabando. – Respondeu Ana, respirando fundo antes de
continuar. – Minha tia desmaiou com a batida e a picape, que batera meio de
lado na árvore, começou lentamente a descer o barranco em direção ao lago.
August arregalou os olhos. Não conseguia evitar se colocar no lugar de
uma garotinha indo sem rumo, presa, para dentro de um lago gelado.
- Não se alarme – Ana percebeu os acelerados batimentos de August
através das mãos – eu nem cheguei a me molhar. A picape desceu devagar,
adentrou apenas os pneus dianteiros no lago e parou.
83

A jovem olhou para o céu nublado e se lembrou de como desejou ter um


céu como este naquela tarde.
- Eu gritei por vários minutos tentando acordar minha tia, acreditando
que o carro, já completamente imóvel, acabaria por afundar no lago. – Fez uma
pausa. Olhava para o nada. – Por fim, eu percebi.
- Percebeu o que?
- Que a picape estava parada. Com isso, eu decidi parar também.
- Parou de gritar?
- Sim e fiquei como uma estátua, morrendo de medo de que um
movimento meu, por menor que fosse, desencadeasse o afundar da picape, que
já estava no local mais fundo daquele lado do lago.
- Caramba Ana! – cerrou os lábios – Você ficou lá por quanto tempo?
- Bom, as horas ao certo não sei, mas quando minha tia acordou, já à
noite, e ligou para meu pai ir nos buscar, eu já havia contado as gotas que iam e
vinham da janela, várias vezes até o número que eu sabia.
- Nossa! – Foi a vez de August respirar fundo. – Por isso hoje os vidros
abertos te ajudam a enfrentar sua fobia de carros?
- Não sei se o que tenho é de fato uma fobia de carros, mas sim, o vidro
aberto ajuda – fez alguns gestos com as mãos. – Enquanto minha tia seguia
desmaiada, os vidros começaram a embaçar e eu, sentada atrás dela no banco de
trás, não conseguia abrir a janela, era dura demais. Até pensei em me soltar e ir
até a outra janela, mas o medo de ir parar no fundo do lago não permitiu. Então,
fiquei limpando constantemente a janela com a mão na esperança de ver o
socorro chegando.
- Caramba Ana! Lamento muito que tenha passado por isso. Se tiver
algo que eu possa fazer para...
- Tem – nem deixou-o terminar. – Me ajude a voltar para casa August.
– Encarou-o com os olhos marejados. – Naquelas horas passadas ali, imóvel,
com medo de muitas coisas, o que eu mais temia era não conseguir voltar para
casa, não ver meus pais novamente, nem tanto por mim, mas por eles, o quanto
eles sofreriam por ficar sem sua garotinha – desabou em prantos novamente.
August voltou a abraçá-la.
- Vamos dar um jeito Ana, vamos dar um jeito. Confie em mim. – Nem
mesmo ele confiava, sequer acreditava que pudesse existir uma forma de
consertar tudo aquilo. Mesmo assim, precisava passar confiança, esperança. Ana
precisava acreditar.
- Veja se isso é coisa de uma menina de quatro anos pensar – falava em
meio a soluços – meus pais August, meus pais.
84

Na sala de estar de um casarão, muito bem iluminada pela luz solar


atravessando enormes vitrais espalhados por um dos lados, um senhor de
cabelos cinza desgrenhados, acabara de sentar para tomar o seu café.
- Com licença senhor Arthur! – Pediu uma das empregadas da casa.
O velho já com a xícara na boca, convidou-a a se aproximar com um
gesto.
- Desculpe a interrupção senhor Arthur, mas acredito que este seja um
dos objetos que o senhor pediu que trouxéssemos imediatamente caso fosse
encontrado.
- Onde estava? – Ajeitou-se em um rápido salto na cadeira e pegou o
envelope.
- No quarto do senhor Lawrence. Eu entrei lá para limpar, pois sei que
ele está viajando e encontrei isso em cima da cama. – Falava de forma acelerada.
– Deve ser dele, mas como o senhor havia pedido que...
Ele a interrompeu com outro gesto.
- Obrigado. Você fez bem. Pode continuar seu trabalho.
A moça agradeceu e retirou-se.
Mal esperou a empregada se ausentar, foi logo movendo o lacre
dourado, que exibia a figura de uma torre, desdobrando a folha em formato de
envelope e lendo o conteúdo da carta.
Lera duas vezes e com calma, sequer notara que o líquido em sua xícara
não expelia mais fumaça.
Isso não pode ser verdade.
Levantou-se e foi até o telefone. Enquanto esperava a chamada ser
completada, admirava o belo quadro pendurado em sua parede. “A Morte do Rei
Arthur”.
- Sir Galahad! Preciso que fique de olho em alguns locais por aí. Tem
algo acontecendo e quero descobrir o que é.

Capítulo 18

Com Ana mais calma, caminhando ao lado de August em direção ao


centro urbano, o jovem, que também começava a sentir-se mal ao se deparar
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com a nostalgia daquele caminho, o qual efetuara várias e várias vezes de


bicicleta, trouxe de volta um assunto para desviar o foco das incertezas.
- Então... voltando ao assunto – Ana lhe prestara atenção – estava
pensando naquilo que vimos sugando a Terra e tudo que via pela frente, sabe?
- Sim, o que tem aquela coisa monstruosa destruidora de planetas?
- Acho que não era um buraco negro afinal.
- Sim, por causa da luz, não é?
- Exato. Uma luz intensa parecia sair do seu interior, como se
ocorressem várias explosões lá dentro, lembra?
- Difícil não lembrar.
- Todavia nem mesmo a luz, com sua velocidade de 300 mil quilômetros
por segundo, consegue se propagar dentro de um buraco negro, daí o nome
buraco negro – gesticulou novamente ao ressaltar o óbvio. – Por isso penso que
aquele fenômeno astrológico de grandes proporções, seja algo diferente, talvez
até uma espécie de wornhole – buraco de minhoca – que nos trouxe até aqui. –
August mantinha seu jeito mais técnico e formal de falar, tentado despertar o
lado analítico da jovem e até mesmo diverti-la talvez.
Ana o fitou de lado, sem interromper os passos.
- Concordo com você sobre a questão do buraco negro, mas um buraco
de minhoca é uma grande incógnita, pois além de não ser comprovado
cientificamente que exista, ainda traz um questionamento, específico da nossa
situação.
- Qual? – August sabia que ela falaria, mas optou por perguntar mesmo
assim.
- Por que só nós dois viemos parar aqui?
- Sim, de fato. Tudo parecia estar evaporando, ou se desmaterializando,
sei lá. E, além disso, muitas outras pessoas estavam lá, algumas até bem
próximas a nós – fez uma expressão contrita, sacudindo logo a cabeça e voltando
para a conversa. – Também podemos nos perguntar “por que aqui?”, visto que
até onde sabemos, tratando-se de viagem no tempo, uma ida ao futuro seria um
pouco mais plausível.
- Pois é. Além de viajarmos no tempo, viajamos também no espaço –
Ana parou e inspirou profundamente olhando para um campo mais aberto. – Isso
que nos trouxe, fenômeno espacial ou tecnologia, está muito além do que
sabemos August, essas cartas parecem ser apenas a ponta do iceberg, um enorme
iceberg escondido debaixo de um mar de perguntas.
86

August coçou a cabeça. Buscava no horizonte algum ponto que


justificasse a concentração e o olhar fixo da parceira. Nada, ela olhava para
dentro.
- Vamos embora. Faremos esse passeio em uma outra ocasião, tudo
bem?
Ana pareceu meio surpresa.
- Vamos falar com o senhor Holister, estudar o pergaminho, os papiros,
os selos, tudo. Vamos atrás de respostas.
O olhar confiante e decidido de August encheu Ana de entusiasmo. Por
um instante, na mente de ambos, a animação e a esperança estampada em seus
rostos no desembarque em Minneapolis fizeram-se presente.
- Certo parceiro, dessa vez vamos inverter um pouco as coisas e ir atrás
do... – fez uma pausa acompanhada de um sorriso travesso – remetente.

- Atenção pessoal! – apesar de ter o objetivo de reunir um grupo de no


mínimo umas cinco pessoas, a chamada de atenção foi contida.
Em volta daquele que parecia ser o comandante da operação, vários,
podia se dizer, agentes, faziam silêncio e prestavam atenção.
A vestimenta preta usada por eles, incorporando-os a noite, ainda mais
com a baixa iluminação do local onde se encontravam, junto com as estranhas
pistolas curtas acinzentadas já em suas mãos e óculos de visão noturna,
indicavam um momento singular de tensão por ali.
- O rastro da ativação do último selo nos trouxe até aqui – falava o chefe
da operação. – Eu nem preciso ressaltar a importância de obtermos sucesso hoje.
– Olhava firme para cada um deles. – Isso não é um treinamento. Vamos entrar,
imobilizar e capturar, precisamos do indivíduo vivo. Vocês conhecem as
implicações de tal ação, então não me façam interrogar um morto.
Cumprimentaram-se em silêncio com as mãos no centro da roda e
seguiram sorrateiramente em direção a uma casa com um designe curioso.
A residência era compacta vista de frente, poucos metros separavam
uma lateral da outra, onde se ligava a outras casas parecidas. O acabamento
arredondado em suas extremidades, dificultava a escalada dos soldados, que
para a cercarem de cima, em seu segundo andar, tiveram que acessar os imóveis
vizinhos.
- Todos em suas posições? – Perguntou o comandante esperando pelos
cinco “Ok´s” com as vozes já conhecidas. Um a um eles vieram. – Agora!
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O barulho de portas sendo arrombadas e dos pesados passos adentrando


sem delicadeza no recinto, ecoaram por toda rua.
Um a um os cômodos foram sendo verificados.
- Limpo!
- Limpo!
- Limpo!...
Ao escutar a informação do última agente o homem no comando
enfureceu-se.
- Mas que droga! Não é possível que estamos no lugar errado de novo?
– Retirou os óculos e o compacto capacete que protegia sua cabeça enquanto
subia até o segundo andar para reunir sua equipe.
- Capitão. – Foi chamado por uma voz feminina logo que subiu as
escadas em caracol.
- O que foi?
- Não acho que erramos o local dessa vez.
- Ah não?
- Não, – expirou olhando para o alto – no entanto, outra vez, chegamos
tarde.
Colocando os óculos especiais de volta, logo que vira toda sua equipe
com o olhar fixo em algum ponto acima de suas cabeças, o comandante pôde
confirmar com seus próprios olhos que haviam fracassado.

Capítulo 19

No caminho de volta a casa do Sr. Holister, futura casa de August, os


jovens continuavam conversando sobre a situação.
- Você viu o que aconteceu ao pergaminho quando o soltou? –
perguntou Ana.
- Não. Assim que o soltei, abracei vocês e fechei os olhos por causa da
luz. Mas por que a pergunta?
- Eu estava pensando se ele não poderia ser o responsável direto por
estarmos aqui.
- Como assim?
- Pense comigo: Lawrence disse que os lacres eram os responsáveis
pelas viagens das cartas, as quais viajavam pelo tempo e pelo espaço...
88

- Assim como nós. – Interrompeu August apenas para mostrar que a


acompanhava.
- Exato. O lacre, mais parecido com um selo, afixado no pergaminho,
significava restauração e, de acordo também com Lawrence, possuía uma
estrutura mais complexa que os outros. Entende onde quero chegar?
- Sim. São três tipos de lacres ou selos, como preferir, que encontramos
até hoje. – Repetindo o que já sabiam, August tentava fortalecer esses conceitos
em sua mente, para conseguir organizar melhor as ideias. – Todos são símbolos
egípcios com significados diferentes: o PILAR DJED é a estabilidade, o
ESCARAVELHO é a existência e o UDJAT – Olho de Hórus – é a restauração,
entre outras coisas que minha mãe acrescentaria – brincou – mas é basicamente
isso.
Ana assentiu concordando com a linha de raciocínio do parceiro.
- O que você está querendo dizer – continuou August – é que cada lacre
tem uma função, características próprias e interage com a estrutura tempo-
espaço de forma diferente.
- Exatamente. O Olho de Hórus deve com certeza estar ligado ao tal
fenômeno.
- Está sugerindo que aquele pequeno pedaço de papel foi o responsável
por criar aquela coisa?
- Não August, pelo fenômeno não, apenas pelo, foi você quem disse,
wornhole que nos trouxe – gesticulava tentando se fazer entender. – Tipo, um
buraco de minhoca a nível molecular, que se abriu antes de sermos engolidos
por aquela coisa.
- Hum. – O jovem mostrou-se pensativo.
- E não é um papel, é um pergaminho. – Acrescentou Ana só para
provocar.
- Tá bom, engraçadinha – debochou. – Mas eu gostei muito da sua ideia,
é uma hipótese completamente válida e vale a pena tentarmos comprová-la.
- Ah é? E como faremos isso? – perguntou ela de olhos arregalados,
mantendo a animação.
August só de vê-la sorrir já se sentia bem.
- Bom, tenho alguns conhecimentos da área, mas ainda não sei ao certo.
Destrinchar aquele pergaminho, com certeza nos dará algum direcionamento.
89

August e Ana ao chegarem em casa, tiveram uma surpresa.


Um garotinho correndo por toda rampa da entrada, ia na direção deles
com uma pistola de água nas mãos.
- Nazistas! Nazistas! – Disparava sem parar.
Os jovens foram obrigados a correr na direção contrária para não
acabarem encharcados.
- Franklin Holister, venha já aqui! – gritou uma mulher de cabelos
longos, lisos e loiros, da entrada da casa.
O jovenzinho deu meia volta e voltou cabisbaixo.
- Só podia ser mesmo – comentou August sorrindo. – Realmente é a
cara dele aprontar com as pessoas dessa maneira. Me admira ele ter parado de
fazer isso quando ficou grande.
- Ah, que lindinho! – disse Ana enquanto retomavam o caminho em
direção a casa depois de terem fugido do ataque surpresa de água dos aliados.
Enquanto caminhavam, subindo a rampa e depois por todo o pátio da
entrada em direção a casa, August não tirava os olhos da mulher loira arrumando
a roupa de Frank na varanda.
Ao perceber a expressão um tanto deslumbrada do parceiro, Ana não
perdeu a oportunidade.
- Gostaria de avisar que aqui na Inglaterra, principalmente nesta época
do ano, também existem muitos mosquitos, ok? – sorriu sem receio.
August cerrou os lábios na hora. Dando de ombros em seguida, sorriu,
sabia exatamente do que ela estava falando.
- Touché!
Acabaram de chegar. Entraram apressados e foram até o Sr. Holister
para lhe contar a teoria e pedir para ele lhes mostrar o pergaminho.
Sem nenhum empecilho, o anfitrião foi até o quarto, o pegou e junto a
eles foram ao escritório, tentar tirar a prova de que fora aquele pedaço de
pergaminho velho o responsável por levá-los ali, de alguma maneira.
Lá, abriram o envelope e dele tiraram o pergaminho, exatamente como
o conheciam.
Raro e belo. O selo dourado em alto relevo no formato do Olho de Hórus
ao fim do objeto, reluzia por toda a sala. Seu formato era repleto de história, real
e mítica. Sua importância e seu valor eram inestimáveis.
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- Hum – August expirou. – Está diferente.


- Sim, está inteiro – debochou Ana.
- Não o pergaminho, o selo.
- Como assim?
- Não tenho certeza, mas parece estar invertido – August franzia a
sobrancelha encarando o selo dourado afixado no fim do pergaminho.
- Tipo, o que usamos para chegar aqui era o olho direito e esse é o
esquerdo?
- Isso.
- Mas isso não é possível, é o mesmo selo.
- Sim, eu concordo, mas, sei lá – deu de ombros.
- O importante parceiro, é que ele está inteiro! – bradou a senhorita
Schmidt animada, voltando-se para o Sr. Holister em seguida – Quer dizer que
chegamos antes mesmo do senhor tentar entregá-lo para a CRONOS, não foi?
- Na verdade eu teria entregado a eles no início do ano, mas devido a
carta que recebi, decidi mantê-lo sob meus cuidados um pouco mais.
- Mas, a que carta o senhor se refere? – perguntou Ana olhando para
August com uma expressão surpresa.
- É verdade, esqueci de te contar – o jovem levantou os ombros.
- Sério? – Ana tentava mostrar indignação. – Conversamos a tarde toda
e você esqueceu de mencionar que temos outra carta?
- Bom, na verdade também – interveio Rudolph – nós não mais a temos.
Houve uma pequena confusão e não sabemos mais de seu paradeiro.
- O que? – A jovem não acreditou.
- Sente-se por favor senhorita Schmidt, será um prazer lhe contar a
história agora se quiser.
- Claro! Digo, quero sim por favor, será um prazer ouvi-la. – Concordou
sentando-se.
91

Capítulo 20

Ao fim da história, acreditando em cada palavra, cada linha, cada fato


apresentado pelo Sr. Holister, diferente de August ao ouvi-la pela primeira vez,
a jovem sempre atenta aos detalhes o indagou, tão animada quanto confusa:
- Quer dizer que alguém, provavelmente do futuro, sabe que estamos
aqui?
Nem mesmo August tinha parado para analisar essa possibilidade.
- É o que tudo indica. – Respondeu o anfitrião.
Ana se levantou. A euforia tradicional foi substituída por aflição.
- Como isso pode ser possível se o futuro foi, sei lá... sugado, como disse
August, por um fenômeno astrológico de grandes proporções?
O velho não soube responder.
- Talvez esta pessoa esteja vivendo no tempo que antecede a catástrofe,
ou seja, antes do ano de 2016, o que não deixaria de ser o futuro para nós hoje.
– respondeu August.
- Ok. Então me diz como essa tal pessoa pode saber que viríamos parar
aqui? Aliás, como ela nos conhece?
Nenhum dos dois conseguiu responder essa.
- Com certeza, além de nos conhecer, essa tal pessoa sabe como e porque
estamos aqui, pois além do tempo, quase preciso, ela determinou com sucesso
também, nossa localização! Chega a ser assustador. – Acrescentou.
Respiravam em silêncio enquanto se entreolhavam.
- Tem razão Ana, mas por hora vamos nos concentrar no único objeto
concreto que possuímos e que, de acordo com vocês, pode ser que contenha
respostas, não adianta nada ficarmos levantando hipóteses sobre tudo de uma
vez só. – Disse Rudolph abrindo o pergaminho sobre a mesa.
- O senhor Holister tem razão – concordou August olhando para a
parceira. – Vamos fragmentar o processo.
A jovem se juntou a eles. Todos sentados em volta da escrivaninha para
analisar novamente aquele pergaminho, o mesmo que lhes trouxera tantos
problemas no futuro e que agora encontrava-se completo.
Assim que bateu novamente o olho no selo, a senhorita Schmidt pareceu
encontrar uma solução.
- Por que você não pressiona ou esfrega o selo do mesmo jeito que fez
antes? – perguntou, agora olhando para August.
- Está maluca? – O parceiro assustou-se.
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- Ora, por que? Deve ter sido isso que nos trouxe até aqui, quem sabe
nos leve de volta.
August passou alguns instantes com a boca aberta e os olhos
arregalados.
- “Deve”? “Quem sabe”? – encolheu os ombros – Quem é você? Onde
está a minha perfeitinha Schmidt?
Mesmo não sendo com uma entonação amorosa ou mesmo carinhosa,
tanto August quanto Ana, sentiram algo diferente após a utilização, ainda que
impensada, do pronome possessivo pelo jovem, que aliás, não demorou a dar
sequência.
- Ana – falava bem mais calmo agora –, é perigoso demais, não sabemos
o que pode acontecer, não sabemos nem se o selo foi de fato o responsável por
nos trazer aqui. – Colocou a mão sobre a mão da jovem. – Vamos devagar, ok?
Vamos deixar para usar este recurso como última opção, afinal não sabemos os
efeitos ou poderes, sei lá, que este pequeno objeto possui, e se ele tiver mesmo
a capacidade de servir como máquina do tempo, sabe lá onde ele pode nos deixar
– terminou em tom divertido.
Ana concordou fazendo sinal de positivo com a cabeça, aliás, depois de
pensar melhor, ela mesma percebera que a sugestão foi péssima.
Até gostaria de visitar a Idade Média, mas, Deus me livre ir parar na
pré-história! Riu alto enquanto pensava.
- O que foi Ana?
- Nada não – desconversou. – Apenas tive um lampejo de imaginação
fértil aqui.

Rudolph, August e Ana, ficaram um bom tempo analisando aquele


objeto antigo, tão simples quanto misterioso. Seguiam compenetrados.
Percorreram todo o pergaminho com os olhos várias vezes, para cima e
para baixo, de um lado e do outro, incansáveis. Rudolph chegou até a traduzi-lo
novamente e transcrevê-lo para uma folha em branco diante deles, com a
intenção de procurar alguma mensagem ou possibilidade nas entrelinhas que
havia passado despercebida, mas não adiantou, nada que ajudasse a explicar a
situação fora encontrado.
- August? – Rudolph viu necessidade em chamar o jovem antes de
direcionar a pergunta, visto o tamanho da concentração que ele apresentava.
93

- Sim.
- Você disse mais cedo que eu, no futuro, tinha escrito a mensagem
desse pergaminho no galpão lá da entrada, é isso?
- Bom, na verdade foi a Ana quem disse.
Olharam para a jovem.
- Então, não sei se foi o senhor quem escreveu, mas sim, o texto que
acabou de traduzir estava escrito lá em uma das paredes, com uma tinta vista
apenas sob luz ultravioleta.
- Hum. – Expirou guardando o papel onde havia escrito a tradução da
mensagem contida no pergaminho.
- Mas, por que a pergunta?
- Não, não, por nada. – Desconversou.
August e Ana nem deram importância, voltaram o foco para o
pergaminho e ficaram vidrados por mais alguns minutos, até a frustração vir à
tona.
- Não adianta quebrarmos a cabeça aqui, o segredo não está mais no
passado, na história em si, está no futuro representado por este selo. – August
apontou para o objeto dourado reluzente no fim do pergaminho. – Enquanto não
conseguirmos analisá-lo, não seremos capazes de descobrir o que ele faz
realmente.
Apesar de compartilhar da mesma frustração do jovem, o Sr. Holister
continuava intrigado.
Quem diria que chegaríamos a isso.
- Entendi o que você disse sobre os selos e a importância, diria
fundamental, deles quando estávamos almoçando, mas tem certeza que algo tão
pequeno possa ser o responsável? – perguntou.
- Bom, de fato estamos lhe dando com uma tecnologia muito avançada,
muito além da nossa compreensão, pois mesmo daqui trinta anos, no tempo do
qual viemos, esta possibilidade ainda é utópica – explicava August gesticulando,
confirmando cada vez mais a tese do Sr. Holister de que ele era de fato neto do
seu velho parceiro de buscas, BO. – Por outro lado, nanotecnologia seria uma
explicação plausível para as cartas que rompem a barreira tempo-espaço e
viajam através dele. Além do mais, Lawrence, creio eu, utilizou o que tínhamos
de mais desenvolvido em equipamentos tecnológicos em nossa época para
analisá-los, percebendo diferenças entre as estruturas dos selos e a maneira
como agiam, ou agem. Portanto, mesmo sabendo que ele não era uma boa
pessoa, ou de confiança, tenho convicção de que as respostas estão de fato neles,
nos selos dourados, – olhou para Ana – utilizados como lacres às vezes.
94

Ana captou e devolveu um sorriso, orgulhosa.


- Confio no seu julgamento, mas quem é mesmo Lawrence? – Rudolph
esforçou-se para fazer uma expressão confusa.
- É uma longa história, com certeza o senhor deve tê-lo conhecido em
alguma missão da Guardiões.
Rudolph arregalara os olhos após o comentário de August. Pelo visto
eles sabem mais do que pensei.
- Vamos esperar minha família chegar para contarmos tudo de uma vez
só. – Completou. – O senhor já os chamou, não é?
Demorou alguns segundos para sair da viagem ao passado através das
memórias, mas o velho respondeu:
- Sim, já estão à caminho.

Capítulo 21

Um homem e uma mulher, trajados como soldados, com certeza


membros de alguma força especial bem financiada, visto o aparato tecnológico
que carregavam já acoplados em suas vestimentas, conversavam em um cômodo
espelhado e bem iluminado, um tanto pequeno para pertencer a uma casa
comum.
O homem, com a barba feita e marcas de expressão contundentes,
detinha a palavra.
- Não acredito que estivemos tão perto dessa vez e o deixamos escapar.
– Expirava com raiva.
- Aquela saída não estava nas plantas, não tinha como sabermos.
O homem olhava para seu reflexo no espelho.
- Mas foi por tão pouco – fechou as mãos. – Chegamos em tempo de ver
o fim da desmaterialização da carta – cerrou também os lábios.
- Sim, mas não adianta ficarmos lamentando comandante, foi quase,
mas falhamos. – O tom de voz era de alguém que tentava amenizar.
- Pois é, mas agora sou eu quem tenho que reportar outro fracasso –
continuava falando nada satisfeito. – Consegue imaginar o que é chegar lá em
cima e falar que tive a carta entre os dedos e não consegui segurá-la?
- É, não deve ser nada bom – tentou, mas não conseguiu segurar um
sorrisinho disfarçado. A porta do cômodo se abriu. – Mas por isso você é o
95

comandante. – Estendeu o sorriso, dando dois tapinhas nas costas do homem


antes de sair.
- É nessas horas que eu começo a repensar sobre minha profissão. –
Falou antes que a porta se fechasse.
Em um movimento extremamente suave, o elevador voltou a subir.
Então vamos… enfrentar a fera.

Enquanto August e Rudolph conversavam, Ana observava e andava


calmamente por todo o cômodo.
- Posso pegar alguns livros e analisar mais de perto estes objetos? –
perguntou e argumentou na sequência – Me ajuda a pensar, afinal é
cientificamente comprovado que pequenas distrações contribuem muito na
elaboração de novas ideias, aliviando a pressão existente sobre determinado
problema ou assunto.
O velho arqueou as sobrancelhas enquanto ainda conversa com August.
Este, apenas deu de lado com o pescoço, disfarçando um sorriso.
- Nem precisava ter ido tão longe na explicação senhorita Schmidt, fique
à vontade. Tudo o que possuo serve simplesmente para despertar o amor e
interesse pela leitura, pela história e pela ciência, em quem entra aqui.
- Obrigada, o senhor possui muitas relíquias, me faz lembrar a coleção
do meu avô. – Pôs-se a admirar de novo. – E... é Ana, pode me chamar de Ana.
- Eu disse que ia demorar a me acostumar, não disse?
Sorriram. O senhor não é o único.
Era natural que alguns objetos chamassem mais atenção que outros,
todavia para Ana, todos traziam uma infinidade de acontecimentos marcantes
consigo. Eram definitivamente, parte da nossa história, parte de quem nos
tornamos, um pedaço de nós.
Dentre outras raridades ali encontradas, algumas também componentes
da coleção futura de August, Ana se deteve um pouco mais em certos objetos:
um astrolábio dourado, já bem fosco, usado pela Marinha Britânica; tigelas de
chá orientais da época em que essa prática começava a se popularizar na
Inglaterra; uma luva utilizada na falcoaria, ao mesmo molde das que Henrique
VIII possuía; uma pequena réplica do “parafuso aéreo” feito por Da Vinci em
1493 – mostrando praticamente a mesma mecânica de voo utilizada nos
helicópteros atuais – sem falar nos inúmeros livros que fizeram parte da
construção da nossa história, como um exemplar bem conservado do livro “A
96

história dos peixes” de Francis Willughby, do século XVII e outro descrevendo


a lei da Relatividade Geral de Albert Einstein, do início do século XX.

Com August e o Sr. Holister ainda vidrados no pergaminho aberto sobre


a mesa, Ana tentando descontrair um pouco, apertou o botão de um abajur meio
diferente, também apoiado sobre um móvel de madeira clara.
De repente, uma luz roxa incidiu sobre o pergaminho e outros objetos
que lá estavam.
- Este abajur é segredo, não posso deixar a Suzan saber que está comigo.
– Disse Rudolph, desligando-o velozmente, em um só movimento.
- Mas ele não é o mesmo de antes! – Acrescentou Ana se referindo ao
abajur do futuro.
- O que? – É claro que o Sr. Holister não entendeu.
- Deixa pra lá – deu de ombros. – Quem não pode descobrir? –
perguntou Ana curiosa, deixando de lado o embaraço de praticamente ter
tomado uma “bronca”.
- Espere, ligue de novo. – Pediu August ainda compenetrado, olhos fixos
no pergaminho.
Rudolph arregalou os olhos.
- Ligar de novo, para que? Acabei de falar com vocês que é segredo.
August pousou a mão sobre o pergaminho, apontando para um lugar em
específico.
- Tive a impressão de ter visto algo diferente escrito ali em cima, antes
do texto. – Bateu duas vezes com o dedo indicador na mesa. – Bem aqui.
Ana achegou-se correndo.
- É provável que sim, foi eu mesmo que escrevi, com uma caneta cuja
tinta só é visível sob a luz do abajur, a luz ultravioleta que vocês falaram. –
Confirmou o Sr. Holister.
- Então, ligue-o novamente para mim por favor! Será rápido. – O jovem
permanecia vidrado.
Pela primeira vez, o anfitrião se demonstrou descontente.
- Não sei como isso irá ajudar, mas prestem atenção bem aqui – apontou
o local com o dedo, um pouco abaixo de onde o dedo de August estava. – Vou
ligá-lo novamente, mas serei rápido, estamos entendidos?
- Sim, entendido – concordaram.
97

Depois de olhar por alguns segundos em direção a porta, Rudolph girou


um botão. A luz roxa foi religada.
Mantiveram-se atentos ao local indicado pelo Sr. Holister, com isso,
viram.
Lá estava alguma coisa, uma escrita bem abaixo do selo.

XIX 84

Primeiro viram as letras X, I, X, logo na sequência, os números oito e


quatro.
Era só mesmo o que faltava. Matemática. Pensou Ana, que
declaradamente não era muito fã da área das exatas.
Fitaram a escrita por alguns segundos, apenas confirmando o que os
olhos mostravam. Aprenderam que naquela história toda, repleta de símbolos e
perguntas mal respondidas, era fundamental trabalhar sempre ao lado da certeza.
- Tudo bem, pode desligar – falou August. – Já temos nossa primeira
confirmação.
Ana e Rudolph olharam para ele com expressão no mínimo curiosa, mas
antes que pudessem perguntar algo, fora ele quem perguntara primeiro:
- Por curiosidade, o que levou o senhor a escrever estes números?
- Números e letras – acrescentou Ana.
- Não Ana, apenas números, não é senhor Holister?
O velho expirou satisfeito.
- Sim. Apenas números.
- Ah, números romanos e arábicos – Ana nem precisou pensar muito.
- É isso aí. – Confirmou o parceiro, voltando-se para o anfitrião. – Então,
pode dizer por que escreveu?
- Isso vai depender do quanto vocês sabem... – deu de ombros fazendo
uma careta. – Digamos que ainda não sei se posso revelar a vocês.
Antes de August continuar indagando-o, Daiane bateu na porta
ligeiramente, apenas para avisar que estava entrando. Na verdade, ela bateu nas
extremidades revestidas de madeira da entrada, onde normalmente ficaria uma
porta.
Adentrando, colocou sobre a mesa uma bela bandeja oval nos moldes
vitorianos, cheia de bolos e pães doces, típicos da culinária inglesa, além é claro,
do chá que exalava seu perfume por todo o cômodo.
98

- Pensei que poderiam estar com fome após tanto tempo enfurnados aqui
e – seguia arrumando uma improvisada mesa de café sobre a escrivaninha –
como minha primeira impressão pode não ter sido muito agradável – olhou para
August – preparei um lanche para vocês.
- Que isso Daiane, não se preocupe com o ocorrido mais cedo, se fosse
eu no seu lugar, teria atacado antes de pedir qualquer explicação – disse o jovem
sorrindo e já servindo aos outros e a si com chá preto e leite. – Eu tenho é que
lhe agradecer pelo voto de confiança.
Daiane sorriu encabulada.
- Muito obrigado Daiane, não sei o que seria de nós sem você –
comentou o Sr. Holister se juntando a August e servindo-se.
- Eu sei, mas se eu disser em voz alta, corro o risco de ser despedida. –
Disse ela com um sorriso satisfatório caminhando em direção à porta.
Já passava muito das cinco, porém uma pausa para o chá é sempre bem-
vinda.
Sentaram-se e foram aproveitar o chá da tarde, da forma como manda o
manual da Duquesa Anna de Bedford, uma das precursoras deste costume
oriental na Inglaterra do século XIX.

Capítulo 22

Ao terminarem, o próprio August recolheu a louça e o que sobrara do


lanche, levando tudo para a cozinha. Quando retornou não perdeu tempo, foi
logo retomando o assunto de onde havia sido interrompido.
- Por que o receio em revelar segredos a nós, visto que, provavelmente
já sabemos e que eles podem ser úteis em nossa busca por respostas caso sejam
novidades?
Rudolph descruzou e cruzou as pernas novamente, invertendo-as.
- Bom, o que posso dizer é que existem assuntos e segredos envolvendo
terceiros, por isso não fico à vontade em revelá-los assim, sem o consentimento
de todas as partes envolvidas – abriu os braços com as palmas das mãos viradas
para cima. – O que posso dizer? Sou um cavaleiro medieval! – completou
soltando uma contida, mas sincera gargalhada, acompanhado pelos viajantes do
tempo na mesma intensidade.
- Entendo e concordo plenamente com o código dos cavaleiros
medievais, principalmente a parte do bom humor, a qual o senhor segue à risca
99

– brincou August. – Mas, mantendo essa premissa de terceiros, quem poderia


autorizá-lo a contar o porquê dos números grafados no pergaminho?
- Neste caso... seu avô.
- Então velho amigo, considere-se autorizado a revelar tudo o que eu
esteja envolvido e que meu neto deseje saber! – disse um senhor de estatura
mediana, um pouco acima do peso, de bermuda e sapatos claros, com meias
altas combinando e blusa xadrez, interrompendo-os, entrando na sala
esbanjando simpatia.
Direcionaram a atenção para a entrada aberta do lugar.
- Vovô! – exclamou August correndo para abraçá-lo. Foi impossível
segurar algumas lágrimas.
Apesar de uma ligeira recusa física inicial, devido a falta de intimidade
por parte do recém-chegado e a um certo constrangimento, o velho, simpático,
aceitou e retribuiu o abraço de August, seu futuro neto, com satisfação.
- Sempre adepto das entradas espalhafatosas, não é? – provocou
Rudolph e completou – É sempre um grande prazer revê-lo meu camarada.
- Digo o mesmo – respondeu o avô de August enquanto se
cumprimentavam com um longo abraço. – Eu fiquei ali fora esperando o
momento oportuno, sabe? Aquele do “fale agora ou cale-se para sempre” –
engrossou o tom de voz soltando aquele sorrisão jocoso no fim.
Os jovens não seguraram as risadas outra vez.
- Não duvidem que ele esteja mesmo falando sério. – Falou Rudolph
com eles e voltou-se para o velho amigo – Chegou bem mais rápido do que eu
esperava.
- As malas já estavam prontas – sorriu. – Assim que você ligou, só
troquei a cueca e parti.
O jeito como falava o futuro avô de August, por si só já era engraçado,
com as piadinhas então.
- E esta bela jovem, quem é?
- Eu sou Ana Schmidt, muito prazer em conhecê-lo senhor…
- Wilson, pode me chamar de Wilson – completou o avô de August sob
os olhares discretamente curiosos do neto e de seu velho amigo.
- Então, é um enorme prazer conhecê-lo senhor Wilson – completou
Ana. – August e sua família falaram muito bem do senhor, Sinto-me honrada
em o conhecer pessoalmente.
- Até porque eu deveria estar morto, não é?
Todos se olharam em silêncio. O comentário foi meio anticlímax.
100

- Caramba pessoal, tipo no futuro, foi uma piada. – Só assim sorriram.


– Do que adianta vivermos uma situação exótica como essa se não pudermos
usá-la para nos divertir?
- De fato – concordou August trazendo o sorriso de volta.
- Então você é da família Schmidt aqui de Gloucester? – o velho
retomou a apresentação com Ana.
- Sim, o senhor conhece alguém da minha família?
- Bom, pode-se dizer que nos encontramos com seu avô uma vez – sorriu
travesso para o velho amigo.
- Mas sente-se, deve estar cansado. – Convidou-o Rudolph.
Wilson Dunked, como se apresentou, recusou.
- O velho Stuart não veio dessa vez? – indagou o anfitrião, insistindo
para que o amigo se sentasse.
Outra educada recusa.
- Não. Diz ele que tinha tarefas a cumprir, mas cá pra nós, acho que ele
se cansou de voar. – Sorriu para o amigo.
- E não é para menos.
- E meus pais? Onde estão? – perguntou August.
- Também não vieram, aliás sequer sabem que estou aqui, ou você.
Decidi não contar a eles por enquanto.
A testa de August franziu na hora.
- Por que? – perguntou Ana fazendo o possível para parecer educada,
não escondendo, no entanto, a preocupação de não ter os pais de August junto a
eles nesse momento – Digo, sem querer ser intrometida.
- É uma longa história e acredito que seja melhor deixar para revelá-la
mais tarde, quando todos estivermos reunidos – respondeu ele ainda de pé. – O
que posso adiantar é que, além deles estarem viajando, desconhecemos a
maneira como se encontra a conjuntura tempo-espaço atual, ou seja, nossa
realidade, por isso existem fatos que é melhor mantermos sob sigilo, visando
evitar possíveis interferências futuras.
- Ah interferências! Já falamos demasiado sobre elas – suspirou
Rudolph.
- Isso pode até fazer sentido, – argumentava Ana em cima do comentário
feito pelo avô de August – aliás faz todo sentido, porém se não fizermos algo
que provoque alterações futuras, o mundo irá acabar da mesma forma que
presenciamos.
- Opa! – Foi a vez do recém-chegado franzir a testa. – Essa do mundo
acabar é nova pra mim.
101

- Nossa! Me desculpe, eu não...


- No entanto, – não deixou que Ana o interrompesse – tenho certeza que
nossa conversa mais tarde irá amarrar as pontas soltas. – Olhou para o anfitrião.
– De momento, gostaria de me dirigir aos meus aposentos, estou cansado por
causa do fuso-horário e preciso muito de um bom banho. Aconselho vocês a
fazerem o mesmo, pois a noite promete ser longa e produtiva – sorriu. – Pode
me mostrar onde ficarei RH?
- Com certeza, venha. – Balançou a cabeça positivamente, acenou para
os jovens e saiu junto a Wilson, que também despediu-se, momentaneamente.
- Seu avô parece ser um cara muito bacana. – Comentou Ana, já a sós
com August.
- Não tenha dúvidas disso. Vovô é espetacular! – disse orgulhoso,
efetuando uma pausa antes de continuar – Mas, hoje ele parecia meio…
estranho.
- Como assim?
- Sei lá, ainda não estava à vontade, eu acho.
- Caramba! Se ele não estando à vontade fez piada com a própria morte,
imagina quando estiver – brincou.
August a acompanhou no sorriso.
- Bom, mas ele está certo. É melhor irmos tomar um banho e descansar
um pouco, pelo menos a mente.
- Tem razão, estou exausta. Um banho seria sem dúvida uma boa.
- Também estou quebrado – completou ele. – Não existe nada melhor
para nos revigorar.
Assim que se levantaram com a intenção de saírem da sala, Ana parou
de repente, fazendo com que August, que caminhava ao seu lado, parasse
também.
- E sua avó? Nunca me contou nada sobre ela.
- Bom, isso é porque eu não sei muita coisa sobre ela.
Ana fez uma expressão contrita. Perdera a avó, por parte de mãe, a
pouco mais de dois anos e mesmo tendo sentido muito a perda, não conseguiria
imaginar não tê-la em sua vida, mesmo que apenas em lembranças agora.
- Minha avó, pelo pouco que meu pai me contou, parece ter abandonado
o vovô quando o tio Munin ainda era um bebê e nunca mais apareceu. Acho que
a família dela nunca aprovou o relacionamento dos dois.
- Sinto muito.
102

- Não. Tudo bem, nem cheguei a conhecê-la, sequer sei seu nome. Deve
ter sido difícil para o meu pai e para meu tio, ser criado sem mãe com certeza é
pesado. Dá para entender porque o vovô não gosta de falar sobre isso.
- Verdade. – Concordou a jovem.
- Sabe o que é estranho?
- Hum?
- É que, às vezes, parece que eu me lembro dela, como se a tivesse
conhecido, entende?
- Ahm?
- É. Acho que já o vi algumas vezes quando era mais novo, mas não
consigo me lembrar direito. Parece que minha mente bloqueou parte das minhas
lembranças da infância.
- Como assim? Você acha que sua avó pode ter voltado em algum
momento e depois ter ido embora de novo?
- Não, acho que não, mas tenho certeza que eles escondem algo de mim
nessa história.
- É possível que quisessem te proteger. – Sugeriu Ana tentando
confortá-lo.
- Bom, se essa foi a intenção deles, então foi bem sucedida, pois não
tenho nenhum sentimento em relação a ela. – Deu um sorriso amarelo.
- Vai ver foi melhor assim. Coisa do destino. – Ana abriu um sorriso de
orelha a orelha.
August a acompanhou novamente.
- Sabe o que acho do destino, mas neste caso... vamos deixar assim.
Encaminharam-se então em direção à porta, com o clima menos tenso
do que Ana imaginara após conversarem sobre um assunto tão delicado.
A jovem seguia um pouco mais a frente. Outra vez parou abruptamente
e August a acompanhou no movimento.
Virando-se devagar, Ana apontou o dedo para uma das estantes com
livros. Ao ver que ele direcionou o olhar para onde apontava, perguntou:
- Antes de irmos, poderia pegar aquele livro verde-escuro localizado na
primeira prateleira para mim?
August assentiu e se dirigiu até lá.
- Este aqui? – perguntou ele já com a mão sobre o único livro da
prateleira base da estante.
- Exatamente. Traga ele para que eu possa ler enquanto descanso, por
favor.
- Claro!
103

Confirmado o livro, August o puxou com tudo.


- Ah não!
Sequencialmente todos os livros da segunda e terceira prateleira caíram,
juntamente com suas bases.
Daiane passava em frente ao escritório naquele momento. Chegou até a
parar olhando a bagunça através da abertura convidativa, onde deveria ter uma
porta.
Olhando para August com ar de malícia, Ana segurou para não soltar
gargalhadas e mais gargalhadas ao avistar Daiane.
- Levando em conta que só temos dois banheiros, além do que fica no
quarto do senhor Holister, e seu avô está em um deles, gostaria de registrar aqui
meu apreço por banhos longos e relaxantes sem ser incomodada – expandiu o
sorriso. – Isto foi pelo Luís, o Piedoso. Os parafusos estão em cima da mesa,
próximos ao abajur. Aproveite a leitura. – Em seguida não conteve a gargalhada
ao reparar a expressão surpresa e desanimada de August olhando todos aqueles
livros espalhados pelo chão.
Não acredito que eu caí nessa! Pensou ele sorrindo. Até olhou para fora,
pensando em pedir Daiane para o ajudar, mas ela havia sumido tão rápido quanto
a estrela de Belém.
104

A magia da ciência
No início da vigésima hora do dia, todos se reuniram na sala, enquanto
Daiane, fugindo completamente da rotina, ainda preparava o jantar.
Como um bom anfitrião, Rudolph fez as honras.
- Bom, todos sabemos que August e Ana vieram do futuro,
especificamente do ano de 2016, ano em que ocorreu ou ocorrerá, o possível fim
do mundo no dizer deles.
Os presentes que não tinham conhecimento daquela informação, se
alarmaram, de forma contida, apenas demonstrando surpresa através das
expressões faciais. Apesar de tudo que já viram e até vivenciavam, ainda se
encontravam descrentes.
- Convidei meu velho amigo de jornada para nos ajudar a encontrar
respostas – continuou – de como e por que eles vieram parar aqui, e decidirmos
o que deverá ser feito de agora em diante. Essa portanto, é a essência da nossa
reunião.
Respiraram fundo. Sincronizados. Todos compartilhavam da mesma
preocupação, do mesmo medo do desconhecido.
- Pode-se dizer que estamos correndo contra o tempo para salvarmos o
futuro do planeta – completou sentando-se e estendendo o braço na direção dos
jovens, dispostos um ao lado do outro no sofá mais espaçoso do recinto. –
Concedo a palavra a August e Ana, para nos contarem tudo que sabem a respeito
das cartas e de como aconteceu a tal catástrofe que destruiu o planeta, ou melhor,
a realidade deles e os trouxe para cá, para os anos 80.
- Mas, e quanto as interferências? – Interveio Ferdinand ainda
preocupado.
- Consegue lembrar das três? – Indagou Ana.
- Com certeza. Elas ficaram martelando minha cabeça à tarde toda.
- Ótimo! – expirou sorrindo – Poderia trazê-las a pauta novamente de
forma resumida?
- Mas é claro – sorriu orgulhoso. – Vamos lá! Interferência AS: tudo
que vocês fizerem aqui, irá alterar o futuro de onde vieram, assim como o que
fizermos para mudar o nosso passado, irá afetar o presente em que estamos, no
mesmo momento em que acontecer, ignorando, ou seja, fazendo com que deixe
de existir, tudo que foi vivido do ponto da interferência em diante, é isso?
- Em linhas gerais sim, perfeito.
- Que teoria é...
105

- Interferência AH: – continuou Ferdinand sem dar chances a


interrupções – o tempo cronológico é uma linha fechada, o que faz com que tudo
sempre aconteça da mesma forma, independente do que fizermos, ou seja, existe
interferência, mas ela é “necessária” – fez sinal de aspas com as mãos – para se
fechar o ciclo.
- Perfeito mais uma vez. E por último? – O incitou Ana.
- Teoria do multiverso: a cada interferência, que nomeamos AA,
ocorrida, um novo universo, ou melhor, uma nova ramificação do tempo-espaço
é criada, deixando com que as realidades flutuem paralelamente, sem que uma
altere diretamente a outra já existente.
Até Rudolph parecia surpreso.
- Onde estava essa inteligência toda quando você frequentava a escola
hein? – Provocou.
Ferdinand deu de ombros.
- É muito mais fácil se dedicar a aprender algo que você realmente quer
saber – deu uma piscadela.
- Ele está certo – assentiu Ana.
- Dê sequência. – Pediu August a parceira
- Ah sim, ok. – Ana se levantou e foi passando o olho pelos presentes
na reunião. Todos em trajes nada voltados para quem se prepara para dormir,
vidrados e tensos, caracterizando de fato uma reunião. – August e eu estávamos
conversando e chegamos a um consenso sobre isso – estendeu o braço dando a
vez ao parceiro.
- As interferências levantadas por nós – August também se levantou –
se de fato existem, não podem nos limitar a tentar o que for preciso para
alcançarmos nossos objetivos.
- Está dizendo para as ignorarmos? – Ferdinand estava de fato, bem
interessado.
- Isso. Não sabemos se existe alguma outra interferência, mas se
tratando das que levantamos sim, podemos ignorá-las completamente.
- Mas isso pode ser perigoso, não? – Indagou seu avô.
- Bom, vamos de trás para a frente: a teoria do Multiverso não muda
nada no futuro do qual viemos, mas pode nos ajudar hoje se conseguirmos fazer
com que esta realidade, se é que já não fizemos, se torne uma realidade
alternativa, ou paralela, como preferir.
- Ele fala igualzinho ao Huginin – sussurrou Wilson para o amigo.
106

- Na interferência AH, não importa o que façamos, tudo vai sempre


acabar da mesma forma. Isso já retira esse tipo de interferência do grupo das
preocupações. Independente se agirmos ou não, já aconteceu.
- Ele fala igualzinho a você – devolveu o anfitrião.
Ferdinand o acompanhava bem e balançava a cabeça concordando.
- E, na interferência AS, aquela que nós menos acreditamos, é a única,
das que imaginamos existir, que pode alterar o destino da realidade de onde
viemos e, se assim for, interferir passa a ser – olhou para cada um antes de
continuar – necessário.
- De acordo! – Bradou o Sr. Dunkeld interrompendo os poucos segundos
de silêncio que vieram após a explicação de August.
- Bom, então que se dane as interferências! – Concordou Ferdinand
fazendo um gesto com o braço.
- Olha a boca rapaz! – Rudolph deu um leve tapa na cabeça do filho. –
Certo, vamos dar sequência. – Olhou de volta para os viajantes do tempo.
- Vamos sim, mas primeiro, eu gostaria de refazer uma pergunta ao
senhor, se for possível. – Pediu August, que após o aceno positivo do Sr. Holister
com a cabeça, continuou – Poderia trazer o pergaminho aqui?
August, sabendo que só conseguiria mostrar o escrito aos demais se
usasse o abajur especial do Sr. Holister, pediu apenas para provocar. E, é claro
que Rudolph entendeu.
- Acho que – raspou a garganta – não é necessário trazê-lo até aqui,
passamos a tarde toda debruçados sobre ele. Melhor deixá-lo descansar um
pouco, não? – Parecia implorar com os olhos para August confirmar.
- É verdade, não é preciso. – August sorriu.
Respirou aliviado, mas de forma bem discreta.
- Preciso apenas saber – continuou o jovem – qual o significado
daqueles números no pergaminho.
O velho olhou discretamente para o avô de August. Este por sua vez,
fez um espalhafatoso gesto de positivo com o polegar, dando-lhe consentimento
total para falar a respeito. Arrancando risos de todos.
- É um número de registro: o dezenove em algarismos romanos significa
que o documento data do período da décima nona dinastia egípcia, e o oitenta e
quatro em algarismos arábicos, se refere a seção de fontes correspondentes ao
Antigo Egito. Escrevi porque…
August percebendo que o Sr. Holister titubeava na resposta, talvez por
não se orgulhar muito de seu passado como agente da Guardiões do Tempo, o
interrompeu.
107

- Não é preciso explicar o motivo. Já descobri o porquê de estarmos


aqui, nesta casa e neste tempo. – Falava com firmeza. – Especificamente neste
ano.
- Então diga logo! – exclamou Ana curiosa, representando, sem dúvida,
o sentimento de todos.
- De acordo com o que sabemos, as cartas, graças aos selos, vou explicar
isso depois de uma forma mais clara quando estivermos contando toda a história,
fazem viagens precisas pelo tempo e pelo espaço, sempre respeitando um
princípio: remetente e destinatário – utilizava um guardanapo que pegara em
cima da mesinha de centro para gesticular. Frente e verso. – No entanto, tivemos
uma experiência envolvendo além dessas duas referências, a datação posterior,
ou seja, a carta fora direcionada ao local do destinatário como de costume,
porém em outro tempo. Isso também vou explicar depois. O que desejo enfatizar
agora, é que graças a esses números que o senhor Holister escreveu no
pergaminho, estamos aqui. É uma questão numérica simples – concluiu
sorrindo.
- Hum, fala sério! – comentou Ana após compreender o raciocínio de
August, um tanto decepcionada por não ter pensado em algo tão óbvio assim
antes. Tinha que ser números.
- Já terminou a explicação? – perguntou seu avô.
- Espero que não, porque ainda não entendi! – Intrometeu-se Daiane
gritando lá da sala de jantar, colocando pratos e talheres sobre a mesa.
- Certo, deixe-me mostrar – pediu a caneta que se encontrava a vista no
bolso da frente da camisa xadrez de seu avô. Levantou-se, pegou o mesmo
guardanapo e apoiando-se na mesinha começou a escrever.

XIX – 84
19 – 84
1984

- Se juntarmos dezenove com oitenta e quatro, teremos o atual ano em


que nos encontramos.
Todos sorriram com a forma como August apresentou sua teoria.
Simples e direta.
- É uma bela dedução meu neto, porém, gostaria de ouvir toda história
primeiro antes de me manifestar a respeito.
108

- Conhecer todos os lados. Agora sei de onde você puxou isso. –


Sussurrou Ana para o parceiro.
August assentiu orgulhoso, sentando-se no sofá junto com a parceira.
- Ok, vou começar desde o momento em que meus pais me contaram
sobre as cartas. Conto com sua ajuda para não deixarmos nada escapar –
completou olhando para Ana.

Capítulo 24

- Tudo começou no dia 5 de dezembro – iniciou August – quando eu...


- De qual ano? – Indagou Daiane.
- 2016. – Respondeu Ana.
- OK!
- Foi quando eu conheci a Ana, em seu primeiro dia de trabalho na
agência de correios e recebi a visita dos meus pais aqui, nesta mesma casa –
olhou em volta – onde tivemos que enfrentar um tiroteio.
Ana foi a única que não se assustou ao final da fala do parceiro.
- Como assim, tiroteio?
August expirou em tom de riso.
- Fomos alvejados por balas de borracha, ou algo do tipo, pelo Frank,
doido para nos tirar de casa e pegar o pergaminho que estava comigo.
- Espere aí! Meu neto fez isso? – Rudolph não estava acreditando.
- Não com balas de verdade, mas, fez sim – respondeu August meio sem
graça. – No entanto, essa brincadeira acabou sendo importante, pois foi assim
que eu tive a ideia de trazer o pergaminho e ele para uma conversa.
- E se não fosse pelo Frank, não teríamos descoberto a mensagem na
garagem – completou Ana.
- Mas que mensagem? – Indagou Suzan.
Rudolph ia responder quando Wilson o interrompeu:
- Pessoal, vamos fazer assim: August e Ana vão nos contar o que
aconteceu em forma de narrativa e nós apenas vamos ouvi-los, sem os
interromper. Quem quiser, faça como eu, pegue um caderninho e caneta para ir
anotando as dúvidas, que serão abordadas apenas no final, de acordo?
Apesar de ninguém ter se levantado para pegar papel e caneta, todos
assentiram com a ideia do avô de August, que portava mesmo consigo um
bloquinho para apontamentos. Não queria deixar passar nada.
109

- Agora August e senhorita Schmidt, por favor prossigam e não omitam


nenhum detalhe sobre os acontecimentos, as pessoas, as datas, nada. Tudo é
importante para entendermos essa situação e quem sabe, tentarmos resolver
algo.
- Não se preocupe, detalhes é com a gente mesmo – acrescentou August
olhando satisfeito para Ana.

A medida em que a história ia se desenrolando, os ouvintes se


mostravam cada vez mais vidrados e perplexos com toda a complexidade e
perigo envolvendo as cartas e suas buscas. A única interrupção, após a fala do
Sr. Dulkeld foi feita por Ferdinand após ouvir em detalhes o que Frank havia
tramado para tentar pegar o pergaminho.
- Nossa! Ainda bem que a mãe dele já foi embora – comentou risonho.
Os senhores Holister e Dunkeld até ensaiaram uma interrupção quando
o avô de Ana entrou na história com a carta que poderia embargar uma
construção, no entanto, limitaram-se a trocar olhares discretos.
Uau! Então foi para isso. Era o pensamento que vigorava na cabeça de
ambos.
O avô de August ficava surpreso com cada coisa que os jovens
contavam que ele fez, ou melhor, ainda vai fazer.

- E é isso, depois da intensa luz, acordamos aqui, curiosamente primeiro


August, depois eu. – Concluiu Ana.
Alguns segundos de silêncio se fizeram necessários para eles poderem
absorver tudo o que os jovens viajantes do tempo haviam contado.
A história foi toda detalhada, nenhuma preocupação sobre possíveis
interferências atrapalhara. Os jovens contaram tudo que sabiam, ansiando por
alguma ajuda que os mandasse de volta para casa. O detalhamento foi tanto, que
nem as perguntas mostraram-se necessárias ao final, não que elas não
existissem, pelo contrário, mas todas giravam ao entorno das respostas que
August e Ana também não conheciam.
110

Quebrando o silêncio já constrangedor, Rudolph levantou-se de sua


poltrona individual e disse eufórico:
- Sinceramente, é uma história sensacional! É uma pena que não estarei
vivo para presenciá-la e que tenha um fim tão trágico. – A euforia se foi. –
Todavia, se a Teoria do Multiverso for mesmo a que permeia nossa realidade,
podemos, por meio da interferência AA, fazer a nossa própria história, afinal, e
digo isto na esperança de que nada exploda, a história é viva! – brincou
arrancando sorrisos de todos e gargalhadas dos jovens que presenciaram aquele
momento marcante. – Só não me lembro de nenhum Lawrence. E você, lembra
de algum? – perguntou olhando para seu velho amigo.
O avô de August pensou um pouco, decidindo por balançar a cabeça
negativamente logo em seguida. Guardou o bloquinho de notas no bolso da
frente da camisa e também se levantou antes de tomar a palavra.
- Bom, acho que agora é hora dos velhos falarem. Dos velhos não, dos
mais experientes, melhor dizendo – brincou, certo de que tiraria um pouco o
foco do que acabaram de ouvir a fim de evitar mais especulações. – Acredito
que já tenha contado para eles sobre a carta assinada pelo LHC que recebemos,
certo? – olhou para Rudolph que confirmou – Portanto, é hora de uma revelação
da minha parte, mas não se animem não, porque não é nada boa. – Franziu a
testa.
- Aí está a bomba! – comentou Rudolph estendendo a referência da
brincadeira feita com a explosão do barco no Tâmisa, armada pela família de
August junto a CRONOS, arrancando mais risos.
Tentando manter-se sério, Wilson continuou:
- Sabe a carta que pensávamos ter enviado de volta para o LHC? –
tornou a direcionar o olhar para seu velho amigo, deixando no ar que algo o
incomodava nesta história. Mais uma vez Rudolph respondeu positivamente. –
Pois é, ela de fato sumiu, mas não foi para onde pensávamos – fez uma expressão
receosa, igual a de uma criança prestes a ver sua mãe descobrir que fora ela
quem quebrara o vidro da janela. – Estava em minha casa esse tempo todo,
dentro de um baú em uma casinha na árvore, onde a filha dos Peterson´s havia
escondido, pensando que fazia parte de uma brincadeira.
Rudolph arregalou os olhos.
- Passei ótimos momentos naquela casa da árvore – sussurrou August
para Ana.
- O tempo passou e ela esqueceu. – Arqueou as sobrancelhas. – Duas
semanas atrás, com o clima mais ameno, ela brincando na casinha sei lá de que,
a encontrou e trouxe para mim. Então, aqui está. – Concluiu ele retirando a carta
111

de uma pequena maleta no chão, com uma expressão mais cara-de-pau


impossível.
- E só veio me dizer isso hoje? – perguntou o anfitrião exaltado.
- O que queria que eu dissesse? – retrucou Wilson simulando uma
possível fala sua na sequência – “Ei velho amigo! Sabe aquela carta de grande
importância que você deixou comigo para que eu a mandasse de volta para o
futuro? Pois é, eu a perdi. E sabe o pior? Foi numa brincadeira de detetive com
uma menina de cinco anos”. Hum, fala sério RH!
- Qualquer coisa teria sido melhor do que me deixar as escuras este
tempo todo.
- Tentei enviá-la depois, para ficar o não feito pelo dito feito, mas não
obtive sucesso. Então você me ligou dizendo que a previsão havia se cumprido,
aí eu achei melhor trazê-la para decidirmos o destino dela aqui – completou ele
com um sorriso sem graça.
- Isso é ótimo! Agora temos a carta e o pergaminho para conseguirmos
respostas – comemorou a senhorita Schmidt. – Só nos resta saber como iremos
utilizá-los.
- Seja como for, pode esperar – interrompeu Daiane aproveitando a
deixa de Ana. – Venham, o jantar está esfriando.

Capítulo 25

Mais uma vez não foi possível tirar o assunto da pauta durante a
refeição. Todos pensavam e opinavam a respeito do que poderia ser feito a partir
de agora.
- Por que vocês não datam o pergaminho e tentam enviá-lo de volta?
Talvez ele abra um portal para vocês também – sugeriu Ferdinand.
- Não podemos nos dar ao luxo do “talvez” – respondeu August. – Além
do mais, é preciso descobrir como evitar que Lawrence cause a catástrofe, se é
que foi realmente ele quem a causou.
- Podemos ir à prisão Mamertina e evitar que Lawrence consiga o selo
ESCARAVELHO – sugeriu Ana. – Com isso ele não teria como brincar com o
tempo e causar aquela coisa.
- Que ótima ideia Ana! – August abriu um sorrisão.
- Essa é sem dúvida uma excelente ideia senhorita Schmidt! –
concordou o Sr. Dunkeld e sugeriu na sequência – Mas antes da viagem para a
112

antiga Alba Longa, o que me dizem de tentarmos enviar essa aqui de volta ao
tal LHC? – Levantou a mão mostrando mais uma vez a carta que trouxera
consigo.
- Agora que sabemos como enviá-la, observar o acontecimento e quem
sabe obter respostas, me parece ser o mais sábio a se fazer primeiro. Talvez essa
pessoa ou instituição, não sei, para onde destinaremos a carta, saiba como parar
a catástrofe que se avizinha. – Concordou o Sr. Holister.
- Como assim já sabemos? – Interveio August sabendo que o anfitrião
se referia a ele.
- Ora, você sabe, não?
- Bom, eu posso tentar – fez uma expressão de incerteza – mas consegui
enviar o pergaminho por pura sorte, aliás, nem o enviei na verdade, porque ele
não veio conosco – sorriu sem graça.
- É verdade – Ana ainda não tinha pensado no que o parceiro acabara de
comentar. – Ele deve ter se perdido no tempo quando você o soltou.
Ficaram pensativos por alguns instantes.
- Talvez ele tenha aberto o portal para vocês antes de se desmaterializar
– sugeriu Suzan.
- Mesmo tendo um talvez, isso faz sentido – concordou a senhorita
Schmidt. – O que acham de ficarmos com essa teoria por enquanto?
- Por mim tudo bem. Se todos estiverem de acordo, vamos responder a
carta e enviá-la ao remetente original, torcendo para que o PILAR DJED não
seja tão poderoso quanto o UDJAT – disse August até um pouco animado,
olhando para cada um com a intenção de confirmar a ausência de objeções.
Todos balançavam a cabeça positivamente olhando entre si. Pareciam
animados e confiantes.
- Ok, enviar a carta realmente é o melhor a se fazer, mas o que
responderemos? – perguntou Ana.
- Dizemos a verdade – respondeu Suzan enquanto retirava alguns pratos
da mesa e continuou – Contamos que vocês dois chegaram e perguntamos o que
fazer.
Depois de alguns segundos de entreolhadas, aquiesceram.
- Está resolvido! Assim que terminarmos o jantar estabeleceremos
contato com o futuro! – concluiu o Sr. Holister, ficando meio na dúvida na
sequência – Enviaremos a carta para o futuro mesmo, não é?
- É sim – respondeu August sorrindo. – Este selo em específico somente
viaja em uma linha fechada. A primeira vez vai para o passado, no caso para
nós, aqui nos anos 80 e somente retorna para o futuro, para o remetente original.
113

Bom, pelo menos é isso que a experiência de todos os envolvidos com esses
selos ao longo do tempo diz.
- LHC. – Completou.
- Exato. – Concluiu August.
- Deixe-me vê-la mais uma vez amigo? – pediu Rudolph estendendo a
mão.
Colocando a carta sobre a mesa, o anfitrião permitiu que todos
admirassem aquele objeto tão comum e tão misterioso.
Um simples pedaço de papiro, que por causa de um selo dourado
arredondado, poderia efetuar mudanças drásticas na história da humanidade e
perpetuar o caos.
Inacreditável!

Foram terminando de comer e se retirando da mesa.


August fez um sinal para seu avô postergar a saída da cozinha. Precisava
lhe perguntar algo em particular.
- O senhor está bem? – perguntou August quase sussurrando – Percebi
uma expressão chateada quando contava sobre a carta que receberam do LHC.
Seu avô nem titubeou.
- Esta sigla me lembra algo, algo triste, não consigo explicar, talvez
minha mente tenha bloqueado, mas, ainda tenho sensações estranhas quando a
ouço.
Parecia uma resposta ensaiada e August sabia disso.
- Será que é algum tipo de pressentimento em relação ao remetente da
carta, ou algo do tipo?
Seu avô sorriu.
114

- Se você é de fato meu neto, sabe que não acredito nessas coisas –
forçou um sorriso.
- É, sei sim. Ainda assim devíamos procurar um analista. Talvez fazer
uma terapia de regressão, o que me diz?
- Pode ser.
- Sério?
- Sim. Quando tudo isso acabar, prometo que eu vou.
- Ótimo! Aí aproveitamos para fazer uma bateria completa de exames e
passar no nutricionista – foi falando e batendo nas costas do avô, já em direção
a sala. – O senhor precisa cortar um pouco das batatinhas…

Convocados para uma reunião às pressas, um grupo de homens trajando


preto conversavam comodamente distribuídos pelas confortáveis poltronas que
o salão possuía, enquanto aguardavam o anfitrião.
- Nossa! Ele já conseguiu um apoio considerável. – Disse, em italiano,
um dos participantes que estava ali pela primeira vez.
- E irá conseguir o seu também meu amigo, não tenho dúvidas. –
Respondeu o homem que o convidara, também em italiano, sem sotaque.
- Só passando o olho, posso dizer que as ideias dele já estão em quase
toda Europa.
- E vamos expandir meu caro, o que ele nos apresentou é o futuro,
literalmente.
- Como assim? Ele é algum tipo de vidente? Alega conversar com o
Criador?
Seu interlocutor soltou uma risada.
- Não, não. Ele realmente sabe o futuro e não por meios sobrenaturais,
mas tecnológicos.
- Viagem no tempo?
- Exato.
- Isso é uma piada? – Retrucou sem demonstrar em sua feição a menor
graça.
- Claro que não Francesco! – mostrou-se indignado – Acha que estamos
aqui de brincadeira? Olhe em volta, veja a importância e influência que cada um
aqui dentro possui. Se quiséssemos, poderíamos causar uma revolução!
O homem responsável por promover a reunião acabara de entrar no
recinto.
O interlocutor de Francesco respirou para se acalmar.
115

- Aquele homem – apontou discretamente para o anfitrião – nos avisou


de inúmeros acontecimentos ocorridos nos últimos 6 meses, desde banalidades
até fatos importantes. Tudo o que ele disse até hoje, provou ser verdadeiro.
- E por que o mundo todo ainda não o conhece?
- Porque temos uma tarefa antes e para cumpri-la, é necessário o
anonimato.
- E que tarefa seria essa?
- Você vai descobrir agora meu amigo.
- Buongiorno amici miei! – Cumprimentou-os o anfitrião – Se não se
importarem, darei sequência a nossa reunião em inglês, idioma do nosso amigo
do futuro. – Ergueu um pedaço de papel surrado para que todos vissem.
Os olhares curiosos dos presentes rapidamente saíram do papel surrado,
dobrado até ficar do tamanho de uma carta, para a televisão que o recém-
chegado acabara de ligar.
- O que vou lhes mostrar agora meus irmãos, é o motivo de estarmos
aqui – sua voz firme ecoava forte pelo salão. – Todos vocês foram escolhidos e
agora têm uma missão. – Foi até o computador e abriu um arquivo. – Aí está
ela.

Capítulo 26

O momento mais esperado da noite chegara. Não conseguiam disfarçar


a ansiedade.
A volta de uma mesinha de centro, com pernas de ferro pintadas de
branco sustentando uma pedra de mármore preta redonda, sobre a qual eles
colocaram a carta já com a resposta, ou no caso pergunta, todos mantiveram
distância enquanto August se aproximava para tentar ativar o selo e enviá-la.
Apreensão.
O jovem, agora viajante do tempo, respirou fundo, olhou para Ana e
depois para seu avô. Respirou profundamente outra vez. Colocou sua mão sobre
o selo, pressionando-o por completo, de forma homogênea, por alguns poucos
segundos. Em seguida se afastou.
Receosos, diria até amedrontados, ninguém se atrevia a tirar os olhos da
carta.
Na mente de August, desconfortáveis lembranças de insucessos
passados o incomodavam, não só em relação as cartas, mas em sua vida, odiava
116

decepcionar os outros. E, após mais de um minuto de espera, a decepção o


rondava novamente.
August voltou a se aproximar da carta.
- Já passou o tempo necessário? – Daiane observava virando a esquina
da escada, deixando que vissem apenas sua cabeça.
- Não deu certo. – Lamentou August. – Mas eu fiz exatamente como no
selo do pergaminho.
- Talvez esse aí tenha perdido a validade – Ferdinand deixou sobressair
os ombros.
August pegou a carta e encarou o lacre dourado. Desceu e subiu seu
ponto de foco pelo PILAR DJED mais algumas vezes.
- Os lacres são símbolos egípcios e cada um representa algo e possui
uma função – raciocinava Ana. – Com certeza, a forma de ativação deles
também é diferente.
- Isso! Vamos pensar – animou-se o Sr. Dunkeld, dando sequência com
sua já conhecida eloquência e linguagem corporal, com tudo que fala. – O
PILAR DJED significa estabilidade, vigor. É um hieróglifo ligado a Osíris,
como se fosse a coluna vertebral. O Escaravelho...
- Faz de novo – Ana o interrompeu.
- O que?
Olhares na jovem.
- Faz esse gesto do final aí de novo, o que você fez depois de falar do
Osíris.
Ainda sem entender, Wilson repetiu:
- Como se fosse a coluna vertebral – fez um movimento leve com o
braço direito, de baixo para cima, como se desenhasse no ar uma coluna humana,
do Cóccix ao Atlas.
- Eu tenho uma ideia! – Bradou Ana sob olhares curiosos.
- Então diga! – Daiane chegou a assustar a jovem, falando alto a menos
de meio metro dela.
- Certo, mas preciso que o August me mostre exatamente como ativou
o Olho de Hórus.
- Agora. – August conhece bem o superpoder da parceira, então, não
perdeu tempo. Com suas mãos segurou a mão direita de Ana e com os polegares,
começou pressionar a lisa e macia palma da mão da jovem. Até os que estavam
apenas observando perceberam que o clima mudou.
Os jovens desfizeram o contato quase ao mesmo tempo.
August chegou a raspar a garganta antes de falar.
117

- E aí, a ideia se concretizou?


- Ah, com certeza! – Brincou Daiane, recebendo um puxão de orelha de
Suzan, através do olhar.
- Bom, é só um palpite, mas como tudo nessa história, cheia de
simbolismo e significados tem ligação, talvez dê certo.
- Ótimo! Então vai fundo! – August entregou-lhe a carta.
Ana titubeou inicialmente ao recebê-la, mais por reflexo.
- Quer que eu ative o lacre?
- Nada mais justo, a ideia é sua. – Concluiu seu parceiro de viagem no
tempo.
- Ok – suas sobrancelhas arquearam. Respirou fundo e seguiu em
direção a mesinha de centro.
Enquanto isso, Daiane se movimentava a passos largos, para o lado
oposto.
- O selo UDJAT – Ana começou a explicação – significa, entre outras
coisas, restauração e August o ativou do centro para as bordas, movendo seus
polegares em direções opostas – fez o gesto com as mãos – para cima e para
baixo. Então, após o senhor Dunkeld fazer o gesto da coluna vertebral, me veio
a cabeça alguns gestos que meu avô também fazia, curiosamente encaixando-se
perfeitamente neste contexto – sorriu.
- E quais eram? – Gritou Daiane.
Ana juntou os dois pés e se colocou totalmente ereta com os braços
ligeiramente afastados do corpo.
Hum. August se lembrou.
- Exista – dobrando os cotovelos, trouxe as duas mãos à altura da testa
devagar e as desceu em um movimento semicircular de cima para baixo – e se
estabeleça – fez o movimento inverso, trazendo as mãos novamente até o rosto.
- Exista e se estabeleça? – Indagou Ferdinand imitando os gestos de
Ana, para baixo e para cima.
- É.
- E o que isso tem a ver com a ativação?
- Você tem muito o que aprender meu garoto – interveio seu pai
mudando de voz, como se fosse um cavaleiro falando com seu aprendiz. – A
frase, a grosso modo, descreve os significados dos dois selos em questão: a
existência e a estabilidade.
Ferdinand deu de ombros.
118

- Então este lacre deve ser pressionado de baixo para cima e o lacre
representado pelo escaravelho, deve ser pressionado de cima para baixo? –
Indagou Wilson.
- É – Ana balançava a cabeça – essa é a minha ideia, agora se vai dar
certo já...
- Vai fundo! – Wilson interrompeu a jovem utilizando as palavras de
incentivo do neto. Exista e se estabeleça, gostei. Pelo visto colocar o velho
Schmidt na história, pode ajudar novamente.
Mais uma vez, Ana mostrou-se receosa, mas foi por pouco tempo.
August não ia deixá-la correr esse risco.
- Obrigado Ana, você é mesmo incrível – estendeu a mão para a jovem.
– Eu assumo daqui.
- Mas August, isso pode ser perigoso.
- Sim e por isso peço que me dê a carta e se afaste.
Ana a entregou, porém sua resposta foi na direção contrária.
- Não. Não vou me afastar. Estamos nisso juntos – colocou a mão sobre
o ombro do parceiro.
- Tem certeza? – August temia mais por ela do que por si próprio.
- Tenho sim guardião da ponte. Ativa logo a Bifrost – abriu um largo
sorriso.
August sentiu uma corrente elétrica percorrer o seu corpo.
- Beleza, vamos nessa! – respirou fundo e posicionou-se de frente para
a mesa.
Todos na sala prenderam a respiração.

Entrando apressado em um grande salão, um jovem de óculos, bem


trajado com um terno escuro, aproximou-se do único homem sentado à mesa,
uma enorme mesa arredondada com lugares a perder de vista.
- Senhor Arthur, temos as informações que o senhor solicitou. –
Colocou os papeis que trazia em cima da mesa logo que recebera o sinal de
positivo.
O velho passava os olhos nos papeis enquanto mastigava. Parou quando
viu uma foto. Bateu o indicador duas vezes no rosto do homem da fotografia.
- É ele mesmo senhor. Tudo indica que nosso ex-agente é o cabeça da
operação.
O velho terminou de engolir.
- E já sabemos o que ele quer?
119

- Não exatamente senhor, mas é uma questão de tempo.


- Já temos alguém infiltrado, certo?
O jovem sorriu.
- Temos sim, temos vários e o senhor nem adivinha onde.

Capítulo 27

August Hermes, com o coração disparado e o pensamento fixo em Ana


e na vida que lhes fora tirada, juntou os dois polegares e os posicionou na base
do lacre, começando a pressionar lentamente logo que atingira o relevo da
“torre”.
Todos na sala estavam em silêncio, podia se ouvir a respiração ofegante
do Sr. Dunkeld.
August sentiu algo se mexer no lacre e continuou o movimento na
ascendente.
- Eu não quero nem ver – falava Daiane tapando os olhos com as mãos,
mas separando os dedos na sequência.
Ao chegar no topo do pilar, o jovem interrompeu a pressão e colocou a
carta sobre a mesa, afastando-se e levando a senhorita Schmidt consigo.
- Será que agora vai? – Ferdinand não conseguiu ficar sem falar nada.
Para o fim da aflição dele e dos demais, algo começou a acontecer.
Não demorou muito. Diante dos olhos de todos, a magia começara.
O envelope elevou-se. Lentamente flutuava, deixando-os boquiabertos
e de olhos arregalados.
Aos poucos a carta começou a se desmaterializar. Inicialmente pelo
selo, espalhando por toda sua extensão.
À medida que se desintegrava, seus pequenos pedaços, minúsculos,
pareciam ser levados pelo vento e subiam em uma mesma direção, até
desaparecerem integralmente poucos metros acima deles, antes mesmo de
alcançar o teto da casa.
Estupefatos por presenciarem tal ocorrido, não encontravam palavras
para descreverem os sentimentos latentes, pois a lógica conhecida por todos
havia sido quebrada, despedaçada e desta vez, foi ao vivo.
Assim que conseguiram sair do estado de choque em que, pasmados se
encontravam, começaram a enaltecer o ocorrido, demonstrando toda
perplexidade e admiração em suas expressões.
120

- Minha mãe do céu! – bradou Suzan de forma contida, quase que


sussurrando para si mesmo.
- Só acredito porque estou vendo. Que caiam por terra os Tomé’s! –
esbravejou Ferdinand.
- E eu com medo de andar em quadriciclos! – comentou Ana sorrindo e
olhando para o parceiro – Confesso, agora é que estou assustada.
- Velho amigo, obrigado por me apresentar este mundo. – Disse
Rudolph dando um tapinha nas costas de Wilson, que respondeu com um sorriso
aberto, mas também com certa surpresa.
- Não tem de quê meu camarada, não tem de quê.
- Papai Noel, coelhinho da páscoa, fada do dente, me perdoem por não
ter acreditado! – exclamou Daiane fazendo gestos com os braços parecendo se
benzer.
Vislumbrados e demonstrando seu apreço com surpresa, como se a
situação envolvesse algo místico, surreal, todos se sentaram e pareciam ainda
não acreditar.
É possível que os olhos nos tenham enganado? Pensavam.
Enquanto isso, August incrivelmente compenetrado e sempre racional,
buscava uma teoria científica para aquilo. Frio e calculista, como Alexandre, o
Grande, comandando seu exército em batalha, sem reações físicas diante do que
presenciara. Não podia se dar ao luxo de perder o chão outra vez.

Após alguns minutos, apenas observando as reações alheias, com o


olhar perdido é verdade, August esboçou um sorriso – primeira reação desde
que pressionara o selo – parecia ter encontrado o que procurava. Assim sendo,
manteve-se de pé e tomou a palavra outra vez, aproveitando-se do silêncio
contemplativo.
- “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. –
Conseguiu atrair os olhares dos demais. – Nada melhor para começar um
raciocínio e chamar a atenção, do que uma das célebres frases de Antoine
Laurent, brilhante químico francês do século das luzes.
- Espere, mas… devido aos anos que trabalho aqui, já ouvi esta frase
algumas vezes, e ela pertence a Lavoisier, não? – perguntou Daiane.
Próximo a ela, inclinando-se um pouco em sua direção, Ferdinand
respondeu baixinho, mas não ao ponto dos outros não escutarem:
121

- Antoine Laurent são os dois primeiros nomes de Lavoisier.


- Ah! Então desculpem. Pode continuar seu raciocínio. – Completou
Daiane olhando e gesticulando para August um pouco acanhada, mas só um
pouco.
- Certo, não sou físico teórico, nem expert nas ciências que estudam a
origem e forma do universo, nada disso, apenas li materiais a respeito no meu
tempo livre por achar muito interessante o assunto e assisti a alguns
documentários – deu de ombros. – Sem entrar na questão das equações ou
apresentar provas concretas, afinal toda a teoria que lhes apresentarei agora é
hipotética, devido a ninguém nunca ter observado ou provado que um evento
como este presenciado aqui de fato existisse, acredito que eu possa dar uma
explicação, um tanto quanto leiga é verdade, mas satisfatória, até porque vou
concorrer com Harry Potter para explicar isso, então, a minha hipótese deve ser
um pouco mais convincente. – Argumentou.
- Quem é Harry Potter? – perguntou Ferdinand.
August sorriu ao se dar conta que a referência não fazia nenhum sentido
para as pessoas que ainda estão a anos do lançamento deste best-seller.
- Harry Potter é um personagem famoso em nosso tempo, um bruxo. Ele
fez uma referência, uma piada. – Respondeu Ana ainda com o sorriso no rosto
depois de ter apreciado a comparação feita pelo parceiro.
- Então por favor, agracie-nos com uma perspectiva que não seja divina,
pois nada além do místico me vem à cabeça neste momento e tenho certeza que
a maioria aqui também pensa assim. – comentou Ferdinand sendo apoiado por
Daiane com um sinal de “joia” feito com os dois polegares.
- Tudo bem, vamos lá então – começou August, e após observar toda a
sala continuou. – Durante muitos anos, cientistas do mundo todo tentaram
elaborar e provar a existência de uma Teoria de Tudo, uma que conseguisse
conciliar a Relatividade Geral, responsável pelo macrocosmo e a Mecânica
Quântica que abrange o misterioso microcosmo.
Sobrancelhas arqueadas.
- Espere um pouco August – interrompeu seu avô. – Mesmo sendo uma
explicação um tanto quanto leiga, como você afirmou, creio que precisará ser
um pouco mais didático se quiser que entendamos, até porque estamos trinta
anos atrás de você nessa área.
- Certo, vou começar de novo. No início do século XX, mais perto de
vocês do que de mim – brincou –, duas teorias que explicavam o universo foram
publicadas: a teoria da Relatividade Geral de Einstein, generalização da teoria
da gravitação de Newton, ou seja, uma teoria que explica o espaço a nível dos
122

astros e planetas, o Macrocosmo; e a teoria da Mecânica Quântica, cujo a área


de estudo abrange um universo extremamente pequeno, com sistemas físicos de
dimensões próximas ou abaixo da escala atômica, tais como prótons, nêutrons,
átomos, moléculas, o Microcosmo, um mundo tão pequeno, que nem mesmo o
mais avançado microscópio do mundo consegue enxergar.
- Agora sim, parece que o nó górdio aos poucos será desfeito. –
Interrompeu brevemente seu avô.
- O problema que fez Einstein dedicar seus últimos anos a tentar resolvê-
lo, foi o fato de que as duas teorias não se encaixam quando aplicadas fora dos
seus domínios, assim, era preciso unificá-las para entender o universo por
completo – gesticulou juntando as mãos. – Foi para este fim que surgiu a Teoria
das Cordas, onde os blocos fundamentais da formação de todo o cosmos, são
objetos extensos unidimensionais, semelhantes a cordas que vibram a todo
instante e são ainda menores que os prótons, nêutrons e elétrons de um átomo,
sendo praticamente impossível visualizá-las com a tecnologia existente, mesmo
em 2016. – Explicou August segurando uma pequena e fina fita vermelha
utilizada para marcar páginas de um livro que havia pegado na prateleira.
- Então essa tal “Teoria das Cordas” seria uma "Teoria de Tudo"? –
perguntou Suzan.
- “Uma” não, “a” – respondeu August. – Se provada tem tudo para ser,
pois ela conseguiu abranger todas as forças que governam o universo, unindo a
gravidade, o eletromagnetismo, a energia nuclear fraca e forte. Uma única
equação primordial.
Mesmo não conseguindo entender tudo o que o jovem dizia, todos
pareciam estar entendendo a essência da explicação.
- Todavia, essa teoria é vista como utópica, quase uma filosofia. Ainda
a chamam de o unicórnio da física teórica.
Risos.
- Então acho que vou ficar com o tal senhor Potter – brincou o Sr.
Holister.
- Não se precipite cavaleiro medieval, ainda pode fazer sentido –
continuava August. – Tal postura aumentou entre os acadêmicos da área,
principalmente, quando teóricos das cordas apareceram com cinco diferentes
teorias, envolvendo as tais cordas, causando até um certo desânimo entre os
próprios integrantes dessa comunidade científica. Não era possível existir cinco
explicações para o mesmo universo, alguém tinha que estar errado.
- De fato, cinco é demasiado. – Acrescentou Rudolph.
123

- Com toda certeza – continuou August. – Então, em meio a este mar de


dúvidas, eis que a esperança ressurge em 1995, quando o físico e matemático
americano Edward Witten, apresenta ao mundo em sua palestra na chamada
Segunda Revolução das Cordas, um encontro entre cientistas da área, a teoria
que unificava todas as outras cinco que foram apresentadas antes, conhecida
como Teoria M.
- Ela é a teoria de tudo? – perguntou Suzan.
- Ainda não se pode confirmar.
- E do que se trata? – indagou o Sr. Dunkeld.
- Essa teoria trouxe a pauta, que além das cordas vibrantes, o universo
também é composto por pequenas membranas e flui entre onze dimensões, as
quais não possui importância imediata, e ainda bem, pois eu não saberia explicar
além disso – nem disfarçou o sorriso.
- Como assim onze dimensões? Isso é meio maluco demais não? –
indagou Daiane incrédula. – Nem sei se conheço uma! – arregalou os olhos.
- Conhece sim, relaxa – interveio Ferdinand. – Mas aqui, o que uma
carta desaparecendo diante dos nossos olhos tem a ver com lucidez? – retrucou
ele em voz baixa novamente, se inclinando na direção dela.
- É, pensando por este lado... tudo bem, é verdade. Pode continuar. –
Concordou Daiane.
- Pois é, as únicas que posso exemplificar para vocês, são as únicas que
podemos chamar de palpáveis, que são: altura, largura, profundidade e a quarta
dimensão, o tempo.
- Então temos três dimensões espaciais e um temporal? – Ferdinand
trocava em miúdos.
- É isso mesmo.
- E onde entram as outras 7?
- Como eu disse a vocês, essa uma resposta que eu não tenho. Não faço
a menor ideia de como apresentar uma realidade em onze dimensões.
- Caramba! Onze dimensões, isto é fantástico! – exclamou Ana
praticamente pensado alto.
- Sem dúvida é uma teoria espetacular, que pode revolucionar o campo
da física e todo nosso conhecimento sobre o cosmos – reiterou August. – Mas
enfim, vamos deixar as dimensões de lado, pois gostaria de chamar atenção de
vocês para um aspecto peculiar desta teoria: as membranas.
- Membranas? – Indagou Daiane mais afastada para ver se havia
entendido direito.
124

- Isso mesmo. Também conhecidas apenas por branas, essas películas


formam toda a estrutura da matéria, inclusive a de tempo-espaço, ao lado das
cordas, que por sua vez podem ser fechadas, como círculos, ou com pontas
soltas, mas fundamentalmente pequenas cordas vibrantes – pegou a fita
vermelha e uniu suas extremidades. – Para Einstein o universo é maleável, pode
esticar e dobrar, porém nunca se rasgar, o que seria essencial para a formação
um Wormhole – um buraco de minhoca. – Todavia, a mecânica quântica pode
revelar que Einstein nem sempre esteve certo, pois a nível atômico, o universo
é caótico e muitos cientistas acreditam que pequenos rasgos sejam possíveis e
mais, frequentes.
- Rasgos? – Foi a vez de Ferdinand tirar a dúvida.
- Isso aí, rasgos, ou pequenos buracos ou furos se preferir. O que impede
esses microscópicos rasgos de aumentarem e se tornarem uma catástrofe, são
justamente as cordas, porque a medida que se movimentam, arrastam um tubo,
uma espécie de bolha cobrindo as fissuras, aparecendo e sumindo
arbitrariamente.
- Então de acordo com essa explicação, as pessoas responsáveis por
desenvolver os selos descobriram uma tecnologia capaz de criar rasgos ou
fissuras na estrutura espaço-tempo, possibilitando as cartas atravessá-los antes
que se fechem? – perguntou Ana envolvida com o assunto.
- Ou talvez, apenas descobriram um jeito de os expandir antes que sejam
fechados. Porém, a tecnologia é bem mais complexa do que podemos imaginar,
pois além de criar seu próprio buraco de minhoca ou aumentá-lo por assim dizer,
o selo deve conter uma espécie de substância para o estabilizar, chamada matéria
exótica, cuja existência sequer foi provada, sem falar na capacidade de
interpretar e direcionar precisamente o lugar e o tempo para o qual as cartas
devem se dirigir, algo que aí sim fica para a magia, porque eu não tenho a menor
ideia de como isso foi possível.
- Nossa, eu preciso descansar! – disse Ferdinand apoiando a cabeça no
sofá.
- Isso explicaria, de forma superficial, como vocês vieram parar aqui
depois daquela catástrofe e sua mãe e Munin ficaram para trás. – Comentou o
Sr. Dunkeld.
Os jovens lhe direcionaram a atenção.
- Simplesmente por não terem tido tempo de atravessar a ponte ou
buraco antes que se fechasse, ou talvez não tivesse a tal matéria...
- Exótica. – Completou August.
125

- Isso – confirmou, continuando raciocínio em seguida – ... em


quantidade suficiente para todos.
- Bom, eu não havia pensado nisso ainda, mas pode ser, quem sabe. É a
única explicação menos fantástica que temos até o momento. – Concordou
August.
- Mas então… por que eu cheguei horas depois de você se estávamos
juntos? – indagou Ana.
- Poderíamos partir da premissa de que dois corpos não ocupam o
mesmo lugar no espaço, porém essa, com certeza, também é uma das perguntas
que desconheço a resposta exata no momento. – Admitiu August.
- Bom, acho que chega de perguntas e respostas por hoje, não é? –
interveio o Sr. Holister. – Melhor irmos dormir, pois já é bem tarde e devemos
apagar as luzes rápido para não sermos descobertos pela inquisição. – Continuou
ele com o chamado sorriso de orelha a orelha, provocando risos em August e
em seu avô.
Wilson virando-se para subir as escadas disse:
- Essa foi boa velho amigo! Desejo uma ótima noite a todos e… August,
dê uma parada no meu quarto antes de ir se deitar se puder – pediu.
O jovem concordou com a cabeça.
- Nem sei mais quantas vezes ele já fez essa piada da inquisição. –
Murmurou Daiane.
Todos se cumprimentaram com desejos de boa noite, menos Ferdinand
já no sono REM, ali mesmo no sofá.
- Ali de quem o Frank puxou o gosto de dormir no sofá – falou August
arrancando risadas de Ana.
Recolheram-se e aos poucos se dirigiram a seus respectivos aposentos,
com exceção de Ana, que pelas contas que fizera, ficou sem lugar, afinal todos
os quartos já estavam ocupados e agora, a sala também.
Vendo a expressão perdida da parceira, August tomou partido da
situação e indagou o Sr. Holister:
- O senhor já possui aqueles colchonetes utilizados na barraca de
camping que encontrei no sótão?
- Tenho sim, inclusive já estão lá. Mas, ainda fica faltando o quarto?
- Sem problema, eu durmo nos colchonetes no chão do meu futuro
quarto, visto que o atual ocupante dele já se ajeitou – brincou apontando com a
cabeça para o sofá – e Ana fica com a cama. Tudo bem pra você? – perguntou
virando-se para ela, que apesar de surpresa e bastante tímida, concordou.
126

- Então, que assim seja! – Rudolph não perdia nenhuma oportunidade


de mandar uma frase de efeito.
Antes de ir para o quarto, August passou nos aposentos de seu avô,
como ele havia pedido.
Bateu, entrou e se deparou com ele tirando algumas roupas da mala.
Assim que avistou o neto, o Sr. Dunkeld parou sua atividade e se
colocou praticamente em posição anatômica de frente para ele, com os braços
quase formando um ângulo reto em relação ao corpo.
- Eu lhe devo um abraço de verdade, não sei se consegui ou se cheguei
a dizer isso a você no futuro, mas estou muito orgulhoso da pessoa que se tornou.
August nem pensou duas vezes, que saudade estava daquele abraço.
- Obrigado vovô! O senhor disse sim, várias vezes. – Intensificou o
abraço.
- Lamento muito ter te deixado um fardo tão pesado e lamento mais
ainda pelo Huginin.
Se abraçaram por um longo período, com August chegando a deixar
uma ou duas lágrimas escorrerem por sua face.

Capítulo 28

Após algum tempo, não muito, August despediu-se de seu avô e foi para
o seu futuro/presente quarto.
- Pode entrar! – respondeu Ana após ouvir as batidas do jovem na porta.
Entrou.
A jovem ainda terminava de ajeitar sua cama, mas já havia arrumado a
de August.
Quando ele a viu, vestida em um belo e de certa forma, não tão
comportado pijama azul, antes usado pela mãe de Frank, pois o calor já se fazia
presente mesmo com a hora avançada, ficou estático, literalmente de boca aberta
por um momento, parecia encantado e ao mesmo tempo distante.
Ainda ligeiramente encurvada, ajeitando o lençol, Ana somente virou a
cabeça, e observando a expressão de August disse serena e risonha.
- O que foi? Não vai me dizer que deseja mesmo sentir o gosto dos
mosquitos dos anos 80?
Ele rapidamente se recompôs.
127

- Obrigado por ter arrumado minha cama, vou escovar os dentes e me


trocar – falava desviando o olhar. – Caso volte e já esteja dormindo... boa noite
Ana.
Ela se endireitou e sorriu.
- Boa noite August.

De volta à cozinha, Rudolph e Wilson conversavam em voz baixa, quase


sussurrando.
- Deve ter sido isso, exatamente isso que aconteceu com o selo do
pergaminho no Egito.
- É. Deve ter acabado a tal matéria exótica, pois eu o apertei de todas as
maneiras imagináveis para tentar ativá-lo, mesmo sem saber que era ele o
responsável, e não consegui. – Wilson fez uma expressão triste.
- Mas agora sabendo o movimento, talvez seja possível.
Wilson parou um instante, pensativo.
- Nossa! Depois de tantos anos...
- Deixa de bobeira! Você ainda o tem?
- Não, ficou com Arthur, junto com a carta.
- Ele ficou com os dois? – Rudolph não se lembrava.
- Não, ficou apenas com um ora – fez uma expressão travessa ao se
lembrar do dia em que eles saíram da agência carregando o pergaminho que hoje
encontrava-se escondido dentro do espelho.
- É – Rudolph o acompanhou na pitoresca viagem ao passado. – Agora
lembrei que você trocou o selo.
- Não podia deixar Arthur saber daquela carta, a primeira, a que...
Fizeram uma pausa. Alguém parecia se aproximar.
Alarme falso.
- Não pretende contar a ele sobre o LHC? – indagou Holister.
- Contar o que? Não temos certeza de nada.
Rudolph balançou a cabeça verticalmente. Compreendia.
- Lawrence é o menino, certo?
- É sim. Pelo visto é ele quem comanda as coisas agora, ou melhor, vai
comandar no futuro.
- E, pelo visto terá uma administração bem mais agitada que a do pai,
não é?
- Por incrível que pareça. – Wilson coçou a cabeça. – Precisamos dar
logo um fim nisso RH. Essa história já foi longe demais.
128

- Ele continua procurando-a?


Wilson expirou em desagrado.
- Continua sim, mas o que ele busca mesmo é um jeito de trazer a esposa
de volta.
- Mas a Mary morreu – Rudolph era puro olho. – Isso não tem volta.
- Exato. – Wilson foi até a geladeira pegar um pouco de água. – Ele está
atrás da Linda porque imagina que ela tenha ou seja, a resposta.
Rudolph respirou fundo.
- Neste caso, você sabe que ele não vai parar até encontrá-la e pelo visto,
o filho também pensa assim. – Sua expressão seguia carregada.
- Então teremos que pará-los. – Engoliu seco mesmo depois de tomar o
copo todo. – Não posso Rud... não posso arriscar perder mais ninguém.
Rudolph colocou a mão sobre o ombro de Wilson, trazendo a mente o
começo de tudo.
- Quem diria meu camarada, que se tratava mesmo de salvar o mundo,
não é? – Tentou descontrair, arrancando um discreto sorriso do amigo.
129

De volta ao trabalho
18 de setembro de 1984

Com a incidência dos primeiros raios solares e a propagação da luz pela


casa, todos pularam da cama de repente, porém, não com o intuito de fazerem
exercício ou apreciarem o belo amanhecer, nem mesmo para efetuarem as
rotineiras atividades domésticas. O motivo que desencadeou o abrupto
despertar, foi porque algo mais se propagava pela casa.
- Mas que barulho é este? O que está acontecendo? – exclamou
Ferdinand, que por estar dormindo na sala, fora um dos mais atingidos pelo
ruído, enquanto se dirigia ao pé da escada no lado esquerdo da copa, local de
onde parecia se originar a desordem.
Quando lá chegou, se deparou com Daiane tocando um instrumento de
sopro na direção dos quartos, com certeza, com o objetivo de acordar a todos
nos moldes de soldados em guerra.
Era uma barulheira só.
Talvez não seja o método ideal, mas não se pode questionar a eficácia.
Todos se levantaram sem sequer olhar no espelho e foram ver o motivo da
algazarra.
Missão cumprida.
- O que é isso Daiane? Ficou maluca? – perguntou Suzan com os demais
à volta.
Daiane parou, enfim, de tocar a marcha e começou a se explicar, bom,
tentou se explicar:
- Há tempos eu desejava colocar em prática o que aprendi frequentando
as aulas ao lado do menino Frank – foi falando na maior animação. – E, que
melhor momento eu encontraria para utilizar esta bela corneta militar, idêntica
as usadas pelos soldados britânicos e portugueses no início do século XIX para
comandar a infantaria ligeira – ela realmente prestara atenção nas aulas – do que
dar a vocês a notícia de que a carta mágica desaparecida diante dos nossos olhos
ontem, está de volta, lá em cima da mesa?
Ao escutarem a notícia, esqueceram a irritação sentida para com Daiane
e instantaneamente correram para lá.
- Eu só não tive coragem de tocar nela – Acrescentou sem a menor
vergonha.
130

- Essa era sim, sem a menor dúvida, uma boa ocasião. – Comentou
sorrindo o Sr. Dunkeld ao passar calmamente pela governanta.
Puseram-se em volta da mesa. Todos pareciam consentir novamente que
August era quem deveria abrir e ler o conteúdo da carta. E, assim ele o fez.
Que tenha dado certo! Pedia Ana em seu interior.
August abriu o envelope também de papiro, com o selo DJED afixado
e retirou a carta.
Bastou apenas uma passada de olho para identificar que se tratava da
mesma carta que enviaram, porém a desejada resposta conferia traços inéditos
ao objeto e pela expressão de satisfação de August, todos perceberam logo que
o plano havia funcionado.
O jovem ergueu o braço e antes de fazer qualquer comentário, começou
a ler a resposta.
- “Com as esperanças renovadas após saber da chegada dos viajantes, é
hora de colocarmos o plano em prática, pois na minha concepção, vocês são os
mais qualificados e confiáveis para executá-la, visto que outras tentativas, com
outras pessoas, ainda não obtiveram sucesso. Estamos correndo contra o tempo
e vocês são a única chance de evitar a completa destruição, de tudo o que
conhecem e mais. Como sabem não posso me prolongar, seria arriscado, então
precisarão confiar em mim e só me responderem quando realmente tiverem
necessidade, ou quando obtiverem resultado nas buscas.”
- Legal, teremos buscas! – disse Ana super empolgada, interrompendo
a leitura e atraindo os olhares de todos. – Me desculpem pessoal, foi uma
descarga de euforia. Não sei porque ainda não consigo controlá-las. Por favor,
continue August.
O parceiro não conseguiu segurar o riso disfarçado ao continuar.
- “Todos os selos conhecidos por vocês foram enviados ao passado por
engano, ou melhor, foi uma sabotagem feita por um grupo de pessoas, as quais
não aceitaram o uso da tecnologia para, no dizer deles, controlar o tempo, então
se infiltraram no laboratório e durante meses enviaram os selos já produzidos
para o passado através de cartas. A maior parte foi de selos DJED, já testados
com sucesso, porém enviaram também seis selos ainda em fase de estudo,
protótipos, correspondentes a quatro selos ESCARAVELHO e dois selos
UDJAT. São esses que procurarão. Devido a problemas com a única tecnologia
capaz de produzir estes selos e o fato deles não estarem em nossa realidade, mas
na de vocês, fizeram com que eu os procurasse. Portanto peço empenho, pois
todo o futuro, próximo e distante, está em vossas mãos. Com os poucos restauros
concretizados em nosso sistema até o momento, consegui apenas identificar dois
131

possíveis locais para onde essas cartas teriam sido enviadas. Não faço ideia de
qual tenha sido o objetivo, se é que existe um, talvez possam até estar em branco
ou terem sido separadas dos selos, com estes sendo utilizados para outras
finalidades, se não tiverem sido destruídos, é claro. Contudo, o lugar e tempo de
destino delas são os seguintes: Roma 1939 e Lisboa 1502. Lhes desejo sorte.
LHC”.
- É… – suspirou o Sr. Holister – De fato vocês não estão aqui por acaso.
A tal coisa espacial está vindo pra cá.
- Podemos confiar nesse tal LHC? – perguntou Suzan – Nem sabemos
quem ele é.
- A questão nem é confiar ou não, mas sim, qual outra opção temos além
dessa, afinal não quero e não posso ficar neste tempo, preciso descobrir o que
aconteceu com as pessoas e com o lugar de onde vim – respondeu August
respirando fundo. – Quero salvar esta realidade e voltar para a minha.
- Mas vocês têm uma opção! Pelo menos na questão de voltar para casa
– disse Daiane atraindo a atenção de todos novamente. – Basta tentarem ativar
o tal selo do pergaminho que o senhor Holister tem e torcer para a abertura de
uma porta que os leve de volta. A mesma que os trouxe para cá. – Encolheu os
ombros após receber tantos olhares surpresos.
- Sim, é uma opção, mas já falamos sobre ela ontem. Deixar nosso
destino por conta do acaso, não faz meu estilo. Por mais difícil que seja acreditar
nessa história descrita aqui na carta, será preciso efetuarmos as buscas para
tirarmos a prova, isso se vocês toparem, é claro – fez uma pausa procurando
algo para tentar uma descontração. – Caso digam sim, vamos nos juntar a
Emmanuel Kant e seu empirismo nessa.
Com o último argumento, August pareceu ter despertado o interesse de
praticamente todos eles, menos Daiane.
- O que é esse tal empirismo?
- É uma doutrina segundo a qual todo conhecimento provém unicamente
da experiência, ou seja, é preciso viver para saber. – Respondeu o Sr. Dunkeld
muito bem humorado como sempre.
- Então tá! Estou com vocês!
- Maravilha! – Bradou August satisfeito. – Então, vamos ao
planejamento!
- Eu tenho uma ideia melhor – interveio seu avô, fazendo-os rir antes
mesmo de concluir a fala. – Vamos ao café da manhã, porque estou cheio de
fome.
132

- Acho que você tomou o meu lugar nessa parceiro – comentou Ana
risonha se lembrando de ocasiões parecidas.
- Acho que sim – August entendeu.

Capítulo 30

Durante outra agradável refeição, a conversa fluía. August detinha a


palavra.
- Então, para começarmos, antes de discutirmos sobre as pistas
fornecidas pelo nosso remetente do futuro, é preciso planejar como
conseguiremos pegar a carta da prisão Mamertina, onde se encontra um lacre
Escaravelho, não citado pelo LHC, imagino eu, por se remeter a anos antes das
datas em destaque. Mesmo assim, já serão dois de seis.
- Por que dois? – Perguntou Ferdinand.
- Temos o pergaminho.
- Ah é, verdade.
- Êêêêh! – Daiane deu-lhe um tapinha na testa.
Os demais se divertiam com as interações dos dois.
- Mas, e quanto a nossos amigos e seus olhos eletrônicos lá dentro? –
perguntou Ana.
- Será que eles já estão à postos? – Indagou August.
- Melhor não arriscar. Aqui nos anos 80, já se encontram bons
apetrechos para esse tipo de vigilância. – Acrescentou o Sr. Holister.
- É verdade, precisamos fazer isso na certeza de que os agentes da
Guardiões do Tempo não irão nos encontrar, ou melhor, nos descobrir. –
Concordou August em tom de preocupação.
- Isso não será problema! Tenho uns favores para cobrar em Roma. –
Disse o Sr. Dunkeld olhando para seu velho companheiro de trincheira e
perguntando – Pronto para abandonar a aposentadoria parceiro?
- Com certeza! – disse eufórico, sem pensar duas vezes – Desde a
primeira vez que Ferdinand me chamou de Jaque ao me pedir para fazer um
favor, estou pronto para voltar!
Ferdinand abriu um largo sorriso.
- Como assim “Jaque”? Não entendi. – perguntou Ana em meio a
gargalhadas dos demais, com exceção de August, que também não sabia nada a
respeito do assunto.
133

Rudolph, também sorrindo ao se lembrar da referência, tentou explicar.


- Jaque é uma espécie de introdução de um pedido, um argumento para
que eu faça algo.
Nada. Ambos continuavam sem entender.
- De forma completa, a frase seria: “Já que não está fazendo nada…”, aí
completam a frase com um pedido, entenderam?
Caindo na gargalhada Ana tentou responder.
- Sim… muito boa mesmo! “Já que não faz nada” – repetiu e continuou
a gargalhar.
- Então está decidido, vamos à cidade que não se fez num dia! –
exclamou Wilson animado.
- É isso aí! – confirmou Daiane também animada.
- Receio que não poderei acompanhar vocês, pois viajo hoje para casa.
Alguém precisa trabalhar por aqui, não é? – falou Ferdinand ainda sorrindo e
olhando para seu pai. – Mas espero que me mantenham informado a respeito do
progresso, hein!
- Também serei mais útil se ficar e esperar para enviar ou receber
possíveis mensagens do LHC, e Daiane me faz companhia, não faz? – perguntou
Suzan para Daiane, que com uma mudança drástica de expressão, de empolgada
para desanimada, respondeu:
- Fazer o que não é? – recebeu um olhar fulminante da patroa –
Brincadeira, fico com muito prazer – acrescentou rapidinho.
- Agora sim, movimentemos as economias e preparemos as malas, pois
vamos à cidade onde meninos mamam em lobas! – exclamou mais uma vez o
animado avô de August.
- Você pode fazer isso o dia todo não é? – perguntou retoricamente
Rudolph com um sorriso debochado, enquanto se retirava da mesa.
- Com certeza! Precisa ouvir as que eu tenho sobre Atenas. – respondeu,
também rindo e subindo para preparar as malas.

Wilson passou poucos minutos sozinho no quarto. Rudoph bateu e pediu


para entrar, ao que parece, tinha outro assunto particular a tratar.
- Por que não responde a carta agora e conta para os jovens toda a
verdade?
- Já conversamos sobre isso.
134

- Porém você se esquivou do assunto e agora sabemos de verdade como


enviá-la.
Wilson respirou fundo e passou os dedos entre o ralo cabelo grisalho.
- Já se passaram tantos anos... faz tanto tempo que estamos nessas
buscas que nunca levaram a lugar nenhum – refletia.
- Deram um senhor resultado agora, não acha?
- Sim... – outra inspiração – você tem razão.
- Onde tenho razão?
- Em tudo. Assim que ajudarmos esses jovens a voltarem para o tempo
deles, eu respondo a carta perguntando se quem nos responde é quem pensamos
que é e conto tudo ao meu neto.
- Tudo mesmo? O começo dessa história de cartas falsas e mágicas, o
paradeiro da avó...
- Tudo. Tem minha palavra.
- Ótimo! Uma última aventura então?
- Última nada, quem você acha que vai me ajudar a conseguir outro selo
caso este que estamos usando dê problema?
Rudolph abriu um sorrisão.
- Mas, se este ficar sem a tal matéria exótica, somente selos escaravelhos
vão para o futuro sem serem respostas.
- Aí recorreremos à Guardiões. Arthur deve ter algum lá. – Ignorou a
expressão assustada do amigo. – Podemos utilizar o pergaminho como moeda
de troca. – Sorriu maliciosamente.
- Bom, neste caso, espero profundamente que este selo aqui segure as
pontas. – Entrou na brincadeira, que o fez recordar de um fato importante. – Se
bem que, o outro UDJAT está com eles, não temos como fugir disso.
- Ô droga, é verdade – lamentou o amigo. – Mas, deixemos este por
último, se de tudo conseguirmos os outros selos, vamos atrás de Arthur.
Rudolph assentiu.

Em uma enorme praça bem no centro da cidade, rodeada por prédios de


arquitetura esquisita, uma multidão encontrava-se ordenada em filas, as quais
seguiam rumo a pontos específicos do lugar, de dentro para fora.
Uma suave música ecoava pelos alto-falantes espalhados por ali.
Música clássica.
Em determinados lugares nas extremidades da praça, inclusive no
começo de cada fila, pessoas uniformizadas com casacos dourados controlavam
135

o movimento e pareciam distribuir algo. Para garantir a segurança, agentes


vestidos de preto, com todo um arsenal tecnológico, efetuavam a ronda nos
pontos mais movimentados.
- Checagem de controle – falava um dos agentes de preto por um ponto
eletrônico. – Tudo certo aí?
- Setor Lago, certo.
- Setor Floresta, certo.
- Setor Céu baixo, certo.
- Setor Centro, certo.
- Ótimo, que continue assim. Mantenham as posições que darei uma
volta pelas filas.
As filas continuavam a andar enquanto a música, oriunda dos alto-
falantes, foi ficando cada vez mais baixa, até dar lugar a uma voz mecanizada.
- Dia do recadastramento obrigatório. Todos devem renovar seus
dados. Tenham em mãos o cartão DOC, que precisa estar atualizado de acordo
com as checagens trimestrais...
- E aí, como está o movimento? – Perguntou o capitão a uma mulher de
casaco dourado entregando pequenas bolsas em formato quase cilíndrico às
pessoas da fila.
- Está como esperado. Tranquilo.
- Bom, – falava enquanto mantinha o olhar na multidão – tranquilo é
bom.
- Qual é o seu nome? – Perguntou a moça a um jovem, agora, primeiro
da fila.
- Aquila... – disse vacilante. Seu foco estava em outro lugar.
- Como?
O jovem sacudiu-se, pareceu despertar de um transe.
- Desculpe, é Erick. Eu me chamo Erick.
O capitão, que já se afastava daquele ponto, retornou para acompanhar
o processo de recadastramento do jovem, sussurrando algo pelo ponto
eletrônico.
- Me dê sua mão Erick. – pediu a mulher.
O rapaz hesitou, mas ao ver o agente o observando, assentiu.
Colocando a mão do rapaz sobre uma máquina portátil de leitura
biométrica, quase uma mini copiadora, a moça de casaco dourado, continuou o
processo.
- Agora, olhe para a luz – ergueu um aparelho, estilo óculos virtual,
porém mais plano, que fez correr um laser verde e fino por todo o rosto do rapaz.
136

A temperatura por ali era sempre agradável, mesmo assim o jovem


lutava para não “bater o queixo”.
- Seu cartão ID, por favor.
Tirando um cartão fino arredondado, com o diâmetro pouco maior que
uma bola de pingue-pongue, de um bolso quase imperceptível na altura do peito,
o rapaz o entregou.
A mulher colocou o cartão em outra máquina de leitura de algo.
- Tudo certo Erick. Aqui está seu kit-DOC e seus DEX já foram...
O jovem nem esperou a moça terminar de falar. Pegou rápido a bolsa
que ela lhe oferecera e saiu a passos acelerados dali.
- Que garoto mais apressado – comentou com o capitão. – Deixou para
trás o seu cartão ID.
- Como ele disse mesmo que se chamava – interrompeu o capitão após
receber alguma informação.
- Erick.
- Não, antes disso.
- Hum... – tentava se lembrar – Aqui..
- Aquila – completou.
- Isso. O que tem?
- Nada. Deixa que eu devolvo o cartão ID dele. – Saiu a passos largos,
mas sem exageros para não causar exaltações.
Droga, droga! Aquila é uma constelação! Como deixei essa passar?
Começava a acelerar os passos a medida que se distanciava da praça.
- Atenção pessoal! Temos um possível CT aqui, estou em perseguição.
Solicito dois e três do setor Céu baixo. Saiam devagar e sigam sentido a Avalon
Arena.

Capítulo 31

Como só viajariam na manhã seguinte, aproveitaram o resto do dia para


debaterem sobre o plano e elaborar hipóteses sobre possíveis locais onde a carta
enviada para o ano de 1939 pudesse estar, afinal, já se encontrariam em Roma
mesmo, então, que a busca tivesse início por lá. As ausências na conversa
ficaram por conta de Suzan e Daiane que haviam saído.
- É praticamente um tiro no escuro, mas acredito que para encontrarmos
os lacres ou selos, é preciso partirmos da premissa que possuem algo incomum,
137

pois foram enviados pelo mesmo grupo de pessoas, as quais tiveram o trabalho
de se infiltrar e enviar as cartas pouco a pouco, deixando a entender que os
destinos não foram escolhidos ao acaso, tinham um objetivo afinal, caso
contrário, poderiam tê-las destruído, concordam? – argumentava o Sr. Holister
– É bem provável que possuíam algo mais em mente, além de apenas sabotar o
projeto.
- Tem toda razão – concordou o Sr. Dunkeld e completou – E, acho que
para descobrirmos o motivo, é preciso descobrirmos primeiro qual tipo de grupo
eram e quais ideais defendiam. Não podemos, de nenhuma maneira, como eu
posso dizer… generalizar.
- E também podemos partir da premissa que eles ainda não sabem como
as interferências funcionam, ou... – August fez uma pausa buscando o foco de
Ana.
A jovem continuava em seus devaneios. Foi preciso um estalar de dedos
de Ferdinand para trazê-la à realidade.
- O que? – Estava mesmo voando.
- August disse que o pessoal do futuro responsável por sabotar o tal
projeto das cartas, provavelmente ainda não sabe como lhe dar com as
interferências.
- Ou sabem e o fizeram justamente para mudar algo. – Mesmo sem ter
ouvido uma palavra do que os outros discutiam, Ana entrou nos trilhos
rapidinho. – Se os destinos das cartas enviadas tiverem algum objetivo
correlacionado, talvez eles saibam exatamente o que as interferências causam.
Neste caso, é preciso descobrirmos o que esse grupo quer, ou queria, não sei,
para tentarmos limitar os possíveis locais onde as cartas podem estar.
Com exceção de August, já acostumado com o brilhantismo da parceira,
os demais precisaram de alguns segundos para deixarem de admirar a
inteligência e o raciocínio rápido da jovem ruiva viajante do tempo.
- Sem dúvida aquela visita foi importante – sussurrou Rudolph sorrindo
para Wilson.
- Certo, neste caso vamos enumerar as cartas que conhecemos e seus
respectivos assuntos – August dava sequência – talvez encontremos um padrão
ou um objetivo específico por trás de cada uma, ou um objetivo geral por trás
de todas em conjunto.
- A primeira carta que tivemos contato foi a que estava com seus pais,
não foi? – Indagou Ana.
- Foi. O assunto abordado nela era as Cruzadas, especificamente a
chamada “Cruzada das crianças”.
138

Holister deu uma olhadela para o amigo ao escutar o assunto referido


por August.
- Esta foi a primeira que tivemos contato, mas eles já tinham uma com
a CRONOS quando me contaram a história.
- E, sabe do que se trata? – Indagou Wilson.
- Não, infelizmente não perguntei.
- Ok, então a segunda – Ana gesticulava – fica sendo mesmo a que
estava com meu avô.
- O dono da empreiteira Schmidt, não é? – Indagou Rudolph sem tirar
os olhos de Wilson.
- Sim, ele mesmo. Dono da antiga empreiteira Schmidt. – Confirmou a
jovem sorrindo. – Ela remetia-se ao período de dominação romana. Um soldado,
combatendo na Grã-Bretanha, teve uma espécie de epifania moral e queria voltar
para casa.
O avô de August observava atento o desenrolar da conversa,
especialmente o que os jovens viajantes do tempo falavam. Sabia exatamente o
porquê de ser o alvo dos olhares de seu velho amigo, mesmo assim seguia sem
grandes mudanças na expressão e na postura.
- A terceira nós não vimos, – Ana prosseguia – mas conhecemos uma
testemunha que a teve em suas mãos.
- É, estava no Brasil, tio Munin a rastreou. – Acrescentou August
olhando para o avô.
- E falava sobre o que? – Perguntas eram a marca da interação do Sr.
Dunkeld naquele momento.
- War of straw – Guerra de Canudos.
August respondeu com um sorriso travesso, esperando alguma
manifestação da parte de seu avô. Ela não veio.
- O senhor não se lembra?
- Na verdade meu neto, nem sei se conheço – sorriu. – Quando você
comentou sobre essa guerra e a tal brincadeira que fez com que você entendesse
a tal carta que deixarei, fiquei boiando, da mesma forma que agora – ampliou o
sorriso, ainda mais sem graça.
- Estamos no passado August, ele ainda não brincou de canudinhos com
você – brincou Ana.
August chegou a gargalhar.
- É verdade! Desculpe vovô, tem hora que esqueço que o senhor é o avô
que eu não conheci. – Demorou a desfazer o sorriso antes de continuar. – O
conteúdo da carta foi escrito na época de uma guerra civil ocorrida no Brasil
139

chamada Guerra de Canudos e se tratava da conversa de um padre com um


guerrilheiro.
- E falavam sobre o que? – Wilson não sabia mesmo nada sobre a tal
War of Straw.
- Em resumo, que foi o que a senhora, acho que irmã do guerrilheiro nos
passou, o padre incitava o conflito, dizia que Deus estava com eles e que não
deviam temer as tropas do rei.
- E os tais revoltosos venceram? – Perguntou seu avô com os olhos
arregalados.
Rudolph franziu a testa enquanto encarava o velho amigo. Ele é um
profissional.
- Não mesmo – respondia August. – Até impuseram algumas baixas às
forças locais, mas quando as tropas da coroa chegaram, trazendo um arsenal
pesado, eles foram massacrados.
- Nossa! Que história!
Rudolph não aguentou.
- BO, agora que me lembrei, preciso pegar as malas lá no galpão, você
me dá uma mão?
- Agora? – Wilson abriu os braços e espalmou as mãos.
- Sim, sim. Vamos de uma vez antes que escureça. – Holister já estava
de pé.
- Deixa que eu te ajudo senhor Holister – ofereceu August se colocando
de pé e olhando para seu fornecedor de roupa neste tempo. – Meu amigo
Ferdinand e eu damos conta de carregar umas malinhas, não é mesmo?
- Claro – respondeu de forma tão lenta que quase não teve fôlego para
concluir a palavra.
Com muita dificuldade, Rudolph conseguiu fazer um sinal para Wilson
perceber.
- Não meu neto, deixa comigo. Estou mesmo precisando me
movimentar.
- Isso é verdade – August concordou sorrindo.
- Você fica aí com a Ana e enumerem as cartas que conhecem para
adiantar as coisas.
O jovem assentiu.
140

Capítulo 32

- Por que você está mentindo?


- Mentindo? Eu?
- Pode parar Wiiiiiiilson – alongou a pronuncia do nome em forma de
provocação. – Não estou entendendo porque você não quer contar a eles tudo o
que sabe.
Dunkeld foi até a porta aberta do espaçoso cômodo e arrumava o cabelo
enquanto olhava em direção a casa.
- Não sei Holi, não sei mesmo – inspirou profundamente ao avistar os
jovens viajantes do tempo através da janela. – Preciso ver onde isso vai dar.
Tudo indica que fui o responsável por envolver todos nessa bagunça. Começo a
pensar que fui apenas um peão.
- Isso não faz sentido BO. Você não prevê o futuro e não desenvolveu
nenhuma tecnologia, não pode ter criado uma coisa do espaço que engole
mundos.
- Não, não posso. Mas – outra inspiração – posso ter ajudado de alguma
forma a pessoa que fez isso e ainda coloquei a sua família e a minha em perigo.
Rudolph chegou próximo ao amigo e colocou a mão sobre seu ombro.
- Você fez exatamente o que devia ter feito. Seus motivos eram nobres
e sou prova disso. Além do mais, entrei nessa porque quis, você não me obrigou
a nada e sigo sem arrependimentos – espalmou as mãos.
Wilson balançou levemente a cabeça.
- Você tem razão, mesmo assim...
- Mesmo assim nada. Esquece o que pode ser ou ter sido, ou o que
aconteceu ou iria acontecer. – Entrou na frente dele e o encarou. – Preciso de
você concentrado aqui. Desconheço algo que você não possa fazer quando se
empenha por completo.
- Não sei se...
- BO – tornou a interromper – vamos mandar esses jovens para casa e
depois, só depois, talvez até com a ajuda deles, vamos atrás das respostas para
as suas perguntas. E aí, pronto para voar de novo? – Estendeu a mão.
Wilson agora expirou.
- Sempre meu amigo, sempre. – Cumprimentou-o.
- E quanto às cartas? Vamos revelar todas?
Dunkeld pensou antes de responder.
141

- Vamos falar só das que eu forjei, se de tudo não forem suficientes,


falamos das cartas que encontramos pela Guardiões.
- De acordo.

- Essas aí são todas as que conhecemos?


- São sim. – Respondeu August olhando para uma folha de papel.
- Certo, então vamos esperar que eles conheçam mais, porque essa lista
está bem fraquinha – brincou Ana e prosseguiu. – Mas, aqui, por que o senhor
Holister chama seu avô de BO?
- Sei lá, deve ser algum apelido oriundo de experiências de quando
trabalhavam juntos. – Devolveu o sorriso. – Ambos parecem gostar muito de
pregar peças.
- Ah isso sim, sem dúvida.
- E aí viajantes do tempo, a lista rendeu? – Indagou o Sr. Dunkeld ao
chegar junto com Rudolph e avistar a folha em cima da mesa.
- Na verdade, nem tanto assim – Ana deu de ombros. – Esperamos que
os senhores possam incrementá-la.
- Deixe-me ver – pediu o Sr. Dunkeld.
- Onde está Ferdinand? – Indagou Rudolph.
- Foi arrumar as malas. Disse que está quase na hora de ir – respondeu
August.
- Bom, achei uma lista considerável, mas podemos aumentar isso, não
podemos? – Wilson olhou para o amigo lhe mostrando o papel.

Carta 1 – Cruzada das crianças


Carta 2 – Soldado romano
Carta 3 – Guerra de Canudos
Carta 4* – História do pombo
Carta 5 – Paulo, Aquenáton e o outro cara
Carta 6 – Pergaminho

- Ah, podemos aumentar isso aí com certeza.


142

- Só para registro, o asterisco na carta quatro é porque não a vimos, mas


sabemos que ela existe, certo? – August encarou seu avô.
Considerando que a carta se tratava justamente da situação que levou a
família do jovem a entrar nessa história, era imprescindível que a pessoa
responsável por colocar todos os que August conhece nessa bagunça, soubesse
de sua existência.
- Sim sim, essa aí está com a gente a muito tempo. – Olhou para Holister,
confirmando como seriam as coisas dali para frente.
- A carta número seis vocês podem riscar. – Acrescentou Rudolph.
- Por que? – Perguntou Ana prontamente.
- O pergaminho que possuo é um exemplo claro de quando o selo é
reutilizado. Ele possui marcas de fixação que não são as originais. Depois eu
lhes mostro.
- Faz sentido também se você levar em conta que é o único pergaminho
em meio a um monte de papiros. – Completou o Sr. Dunkeld.
Os jovens assentiram. August pegou a caneta e riscou a carta seis.
- Agora, me emprestem esse papel aí de novo, deixe-me ver o que dá
pra fazer. – Pediu Wilson colocando a folha em cima da mesa à vista dele e
entregando a caneta a seu antigo companheiro de busca. – Sua letra é bem
melhor que a minha.
- Sem dúvida – brincou ele pegando a caneta e já começando a escrever.

Carta 1 – Cruzada das crianças


Carta 2 – Soldado romano
Carta 3 – Guerra de Canudos
Carta 4* – História do pombo
Carta 5 – Paulo, Aquenáton e o outro cara
Carta 6 – Pergaminho
Carta 6 – Incentivo à União Ibérica
Carta 7 – A fé no Império Bizantino
Carta 8 – Napoleão o escolhido
Carta 9 – O Tratado de Utrecht
143

- Então, esqueci de alguma?


- Uau! E você ainda as colocou em ordem! – Wilson fez cara de
espantado.
- Foi uma experiência bem marcante para mim – explicou-se Rudolph
meio sem jeito.
- Mas está faltando uma. – A expressão do avô de August mudara de
repente, levando a de Rudolph a se alterar também.
Com um quase imperceptível balançar de cabeça, Dunkeld encorajou o
velho amigo a continuar. O então, anfitrião tornou a se debruçar sobre a folha
de papel.

Carta 10 – ??? (Egito)

August e Ana logo perceberam a mudança no clima.


Tudo acontece no Egito. August pensava.
- Sabem que existe, mas não sabem o conteúdo? – Ana sabia que algo
em relação aquela carta os incomodava, mesmo assim precisava da confirmação.
- Infelizmente sim – confirmou Wilson.
- E aí o que eu perdi? – Achegou-se Ferdinand com toda empolgação,
ajudando, involuntariamente, a mudar o clima.

Capítulo 33

- A lista melhorou! – Ana empolgava-se aos poucos.


- Vamos dar uma passada rápida nas informações de cada uma em busca
de algo que as interligue. – Sugeriu August.
Alternando nas explicações, Ana e August repassavam os conteúdos das
cartas citadas por eles:
- A cruzada das crianças é autoexplicativa. A carta que meus pais
encontraram em Antáquia, é basicamente a confirmação histórica de que a tal
cruzada realmente existiu.
- A carta que estava com meu avô, foi encontrada em um terreno onde
seria construído a nova Sede do Correio Real durante a Segunda Guerra e falava
sobre o desejo de um soldado em voltar para a casa.
- Espere aí – interrompeu o avô de August. – Esse soldado queria largar
o exército para evangelizar, não é?
144

Os jovens o encararam arqueando as sobrancelhas.


- Bem lembrado vovô, mas como o senhor sabe disso?
- Ora, vocês falaram enquanto contavam a história toda. –
Desconversou.
August e Ana se entreolharam.
- Não falamos não. – As sobrancelhas continuavam para cima.
- Falaram sim, vocês estavam contando tão rápido que nem devem ter
percebido – Rudolph pensou rápido. – Agora, sobre as outras três que vocês
escreveram, nós já conhecemos.
Rud sabia virar a mesa como ninguém.
- Ótimo, então vamos para as nossas. – Começou Wilson com uma
pressa nítida na fala. – O incentivo à União Ibérica era voltado a fé cristã,
destacando que Portugal e Espanha deviam se unir em nome da religião e
continuar o processo de evangelização de suas colônias. O mesmo incentivo foi
encontrado na carta direcionada ao Império Bizantino, que diferentemente do
Império Romano, se manteve de pé e firme na fé por mais um bocado de tempo.
– Fez uma pausa para olhar a folha.
- Napoleão eu sei – Holister deu sequência. – Não sabemos se a carta
chegou até ele de fato, mas o tratava como o escolhido para fazer da França a
grande potência católica da Europa. Após lê-la, confesso que ponderei acreditar
que o Bloqueio Continental a Inglaterra ocorreu por motivos religiosos e não
estratégicos.
- Caramba! Isso que eu chamo de interferência – Comentou Ana.
- Era isso, não era? – Holister perguntou ao velho amigo para confirmar.
- Exatamente. E, a carta número nove, pode ter sido a responsável por
um dos pontos abordados no Tratado de Utrecht, que colocou um ponto final na
Guerra de Sucessão Espanhola. O ponto em específico, era que a França deveria
reconhecer a legitimidade dos reis protestantes.
- Interessante. Mas, só por curiosidade, a carta estava em Utrecht? –
Interrompeu August.
Wilson olhou preocupado para Rudolph. Será que ele sabe que ela
ainda continua lá?
Só depois da pergunta do jovem que o Sr. Holister percebeu o vacilo
que dera ao se referir a carta daquela forma.
- Estava sim. – Respondeu sem medo do amanhã.
- E quem a encontrou?
O cerco continuava a se fechar, mesmo assim, ele se manteve firme.
- Foi um dos agentes da Guardiões.
145

- Hum... – August balançou a cabeça.


- Mas, por que? – Wilson ainda não estava tranquilo. Seu neto podia
muito bem estar jogando verde.
- Ah, é porque se fosse alguém da nossa família, eu faria uma piada
sobre a Bifrost – sorriu meio sem graça.
Os mais velhos ficaram aliviados, já Ana ficou curiosa.
- Eu ainda quero saber.
August sorriu antes de continuar.
- Você sabe que cada um de nós, da nossa família – estendeu o braço na
direção do avô – tem um nome oriundo da mitologia nórdica, certo?
- Sei sim, guardião da ponte do arco-íris – provocou.
- Engraçadinha – desdenhou. – Mas a piada seria por aí... a ponte é a
Bifrost e a cidade de Utrecht tem uma comemoração chamada Sol Lúmen que
através de lasers, fazem surgir sobre a cidade, uma ponte de cores, parecida com
um arco-íris, originada no alto da famosa Don Tower, a torre símbolo da cidade,
que com seus 112 metros de altura, é a mais alta da Holanda.
- Sério? Que bacana! – Ana realmente apreciou a curiosidade
apresentada pelo parceiro.
- Vocês não saem muito de casa no futuro, não é mesmo? – Provocou
Ferdinand.

- Capitão? – Uma voz feminina ofegante ecoava pelo comunicador.


- Sim. – Respondeu aos sussurros.
- Estamos na Obama Street, mantendo sentido oeste.
- Dobrem à direita na Arafat e sigam pela calçada. Estou logo adiante.
- Entendido. – Fez-se uma breve pausa na corrida ao virar a esquina. –
O que o suspeito fez capitão?
- Nada ainda. Por isso, ainda – fez questão de enfatizar – não se encontra
sob custódia.
- E como sabe que ele fará algo, ou que pertence aos Cavaleiros
Templários?
- Pelo nome.
Ouviu-se uma baforada, mais que apenas uma expiração de cansaço.
- Isso de nomes específicos é lenda urbana capitão. Com todo respeito,
o senhor nos tirou de uma tarefa importante por causa de um palpite?
Um bipe estalou nos ouvidos da agente. A linha havia sido cortada.
- Capitão está aí?
146

Surgindo das sombras por trás dos agentes, um homem robusto puxou
ambos para um raro beco, que dava nos fundos de algumas residências.
- Está duvidando do meu julgamento agente?
- Não, claro que não, mas...
- Olhe – interrompeu apontando para uma casa. – Foi ali que ele entrou.
A agente precisou se aproximar mais para ter certeza.
- Onde aquela passagem leva?
- É o que vamos descobrir.

Capítulo 34

Debruçados sobre as informações acrescidas a folha de papel que


passava de mão em mão, os cinco, pois Ferdinand ainda se encontrava com eles,
discutiam em busca de um consenso, de um padrão, de uma teoria que pudesse,
sem questionamentos, ligar todas as cartas em um único objetivo, uma Teoria
de tudo, como brincara Ana em dado momento.
- Que tal se nós tentássemos uma ligação por palavras chaves? – Sugeriu
August depois de alguns bons minutos de conversa sem nenhum horizonte
promissor.
- Boa ideia! Deixa que eu faço isso. – Ferdinand pegou a carta e a caneta.
– Como sou o único que não teve nenhuma dessas cartas nas mãos e também
por sempre ter acompanhado tudo isso meio que, de longe, sou uma opinião
livre de influências e preconceitos já estabelecidos pela experiência e vivência
de vocês, meu posicionamento será incontestavelmente, imparcial – usou todas
as palavras não usuais que conhecia.
Faz sentido.
Assentiram.
- Opa! Onde está o meu filho e o que você fez com ele? – Provocou
Rudolph.
- Aprendi muitas coisas depois que bati asas papai – rebateu com um
risinho malicioso. – Agora, vamos ver. – Voltou-se para o papel que colocou
sobre a mesa. Nem parou para pensar, foi olhando as informações e escrevendo
palavras no fim da folha.
- Se ele nos ajudar diretamente a obter alguma resposta, falará disso o
resto da vida – brincou Rudolph falando ao pé do ouvido de August e Ana.
147

- Pronto! Fiz o mais difícil, agora é com vocês! – Rodou o papel com a
ponta dos dedos.
- Hum... interessante – comentou o Sr. Dunkeld. – Isso põe as coisas em
perspectiva.

Cruzada
Soldado – evangelizar
Guerra – padre
Pombo – coroa – funcionário
Paulo – Egito – profecia
União – fé
Império – firme
Escolhido – potência
Tratado – guerra

- Até que sua letra é bonitinha – comentou Ana.


- A gente se esforça – respondeu ele meio sem graça. – Agora, sobre a
história do pombo, confesso que não lembrei de muita coisa, já a carta de Paulo,
coloquei Egito porque também não me lembro do nome do tal faraó.
- Agora sim parece com o Ferdinand que eu conheço – provocou
novamente Rudolph.
- Touché! – Ficou sem resposta desta vez.
Desde que Ferdinand virara o papel, August seguia compenetrado nele.
- Posso fazer umas mudanças? – Pediu.
- Mas é claro! Te deixei usar minha camisa do The Police cara, não tem
como demonstrar mais confiança que isso – brincou o dono da camisa citada. –
Manda bala!
- Prometo que irei devolver depois que a lavar – fora a vez de August
ficar embaraçado.
Enquanto o viajante do tempo escrevia, a porta da entrada se abriu.
- Filho, você vai perder o trem!
148

- Relaxa mãe ainda tenho... – olhou para o relógio no braço do pai –


Nossa! Tenho que correr!
- Não quer mesmo que eu te leve filho?
- Não pai, valeu! Eu pego um táxi – respondeu enquanto abraçava-o. –
Você não é mais um Jaque. – Não ia ficar sem uma última provocada. – Até
mãe, fica com Deus – beijou-a e depois a Daiane. Aos demais despediu-se com
um aceno. – Senhor Dunkeld, viajantes do tempo, foi um prazer! Passem para
me visitar antes de irem embora e levem uma listinha das empresas que farão
sucesso no futuro, estou pretendendo investir.
Sorrisos.
Suzan foi com o filho até a rua e Daiane seguiu para a cozinha
carregando algumas sacolas.
- Aí pessoal, acho que as peças começaram a se encaixar – August
trouxe os olhares para a folha outra vez.

Cruzada
Soldado – evangelizar
Guerra – padre
Pombo – coroa – funcionário
Paulo – Egito – profecia – monoteísmo
União – fé
Império – firme – fé
Escolhido – potência católica
Tratado – guerra (fim) – reis protestantes

Com os olhos vidrados nas palavras, Ana parecia querer devorar o


papel.
- Essa carta quatro não está encaixando... espera aí! Deixa-me fazer uma
coisa. – Ana fez um risco longo e escreveu na frente.
149

Pombo - coroa – funcionário – Igrejas – reformas

- Estávamos retratando ela de maneira errada. Não é a forma como


soubemos dela o importante, mas o que estava escrito, lembram? – perguntou
sem chance de resposta – A carta falava sobre reformas em uma igreja, era uma
correspondência entre um monge e alguém dentro da religião, acima dele –
concluiu com um largo sorriso. – Isso liga os pontos!
Os três ficaram em silêncio, esperavam a reposta, que só veio depois
que Daiane, ao ouvir a empolgação da moça, achegou-se correndo e perguntou:
- Liga o que?
- Religiosos!
A resposta não fez nenhum sentido para a governanta, mas para os
demais era o ponto em comum.
- Não é que faz sentido! – Rudolph olhava meio embasbacado para
Wilson.
- Faz sim, olhem para as cartas. – Ana falava como se cada uma delas
estivesse ali, bem na frente deles. – Se coloquem no lugar de quem as escreveu
e se perguntem, “por que eu escrevi essas cartas?” ou “por que enviei essas
cartas?”.
Os olhares voltaram-se para o papel e quanto mais andavam sobre ele,
mais razão davam a senhorita Schmidt.
- Eu estou perdida aqui. Vou é voltar ao trabalho e depois vocês me
explicam. – Daiane retirou-se.
- É, desde que o homem é homem, saber é poder, seja em qual tempo
for, e com certeza, com o avançar do tempo e o desenrolar da evolução e das
tecnologias, o campo das religiões tende a ver o seu saber exclusivo e
incontestável, ir por água abaixo. – Acrescentou August.
- Mexer com o tempo, pode causar mesmo uma grande instabilidade na
fé das pessoas. – Novamente, Suzan achegou-se falando.
- Então religiosos sabotaram o projeto das cartas que viajam no tempo,
mandando as tais cartas pela história? – Rudolph procurava mais
esclarecimentos.
- Acho que sim meu amigo. – A resposta veio de onde ele menos
esperava. – Quem quer que tenha enviado as cartas, tinha um objetivo claro de
influenciar o pensamento religioso, especialmente o pensamento cristão e, se me
permitem verticalizar ainda mais, católico apostólico romano.
150

Holister não conseguia disfarçar e seguia olhando para o velho amigo


de uma forma diferente.
- Mas, e a carta de Utrecht?
- Ecumenismo. – Interveio August. – Mesmo se tratando de vertentes
distintas, protestantes são cristãos e se ajudá-los contribui para por fim em uma
guerra, então, “mandemos uma carta!”
- Os motivos reais, talvez nunca saberemos, mas é fato que o conteúdo
específico das cartas, remete-se à religião e é inconcebível pensar que todos os
selos e lacres foram reutilizados para este fim – falava o Sr. Holister. – Então,
só resta darmos essa questão como respondida: foram de fato religiosos e
possivelmente católicos que enviaram as cartas.
Assentiram, com exceção de Suzan, que por não pegar todo o desenrolar
da discussão, matinha o pé atrás.
- E se eles foram usados?
- Como assim meu bem?
- Um bode expiatório, como os romanos fizeram antes de se
converterem.
- Mas, para quem? – Indagou Ana.
- Não sei, talvez empresas, governos, países que poderiam ser
prejudicados por tal tecnologia e não tivessem conseguido desenvolvê-la?
- Também faz sentido, mas não creio que seja o caso – respondeu
August. – Disputa entre países é pouco provável, pois uma tecnologia como
essa, além de muito avançada, com certeza é muito cara, e como ainda estavam
desenvolvendo protótipos, a fase portanto era inicial, ou seja, era como, mais
um investimento custoso na interminável busca pela compreensão do universo.
- Mas ainda se trata de especulação – interveio seu avô.
- Como praticamente tudo que sabemos sobre as cartas. – Argumentou
o jovem com uma expressão incerta. – Nenhum país, por mais divergências que
possam ter com os outros envolvidos, ia querer ficar fora dessa grande
conquista. Seria como o CERN. E mais, se nações rivais chegassem ao ponto de
tamanha infiltração em área inimiga, não se contentariam apenas em atrapalhar
ou destruir projetos, se apossariam dessas futuras “novas armas” para usá-las
contra seus criadores, ou como base para desenvolver as próprias, quem sabe
até melhorando-as. – Concluiu arregalando os olhos, cerrando os lábios e
abrindo os braços com as palmas das mãos para cima.
- Essa da Guerra fria futurista não existir a ponto de prejudicar tamanho
avanço científico eu até concordo, mas o que é CERN? – perguntou Rudolph.
151

- Significa Organização Europeia para Pesquisa Nuclear. Tenho um


primo que trabalha lá – interveio Wilson e não parou apenas na sigla. – Foi
fundado em 29 de setembro de 1954 por vários países europeus, entre eles a
Suíça e a França, que fazem fronteira onde este super laboratório de pesquisa se
encontra.
Ana fez seu lábio inferior se sobressair.
- Nada como um primo para fazer de alguém, com fobia da área das
exatas, saber tudo isso, não é? – brincou o RH, arrancando uma gargalhada de
seu velho amigo.
- É isso aí – concordou August e continuou – É no CERN que foi
construído, ou ainda será, já que estamos na década de 80, o Large Hadron
Colisor (Grande Colisor de Hádrons), o maior acelerador de partículas e de
maior energia para tal, existente no mundo, isso já em 2016. É nele que
conseguimos acelerar partículas a 99% da velocidade da luz, como falamos
ontem quando conversávamos sobre a viagem no tempo para o futuro –
acrescentou. – Sua construção começará em 1998, levando dez anos para ficar
pronto e doze para que a primeira colisão de prótons aconteça, ocorrendo um
incidente nesse meio tempo o fazendo ficar inativo por quatorze meses, devido
a um grande vazamento de hélio.
- Estou com Ferdinand, no futuro não existe mesmo programas para se
fazer fora de casa, não é? – Brincou Holister.
- Tem e muitos senhor Holister, mas quando a gente gosta de um
assunto, o que mais tem também, é informação disponível sobre ele – sorriu
orgulhoso. – E, tem mais... mesmo com o problema do hélio, a demora e o alto
investimento, o Grande Colisor será um auxílio fantástico para as pesquisas na
área, na verdade será o meio para que exploremos o universo sem tirar os pés
do chão, visto as conquistas e recordes já obtidos por ele, deixando o Fermilab
nos Estados Unidos, a anos luz de distância. – Completou August, com sorte de
ter conseguido terminar, pois assim que pronunciou o último vocábulo,
“distância”, foi interrompido por mais um brado de Ana:
- LHC!
Olharam para ela assustados com o grito.
- O que? – A indagação foi geral.
- São as letras escritas na carta! LHC!
- O que que tem? – Agora foi Dunkeld a perguntar.
- Pode não ser uma pessoa, mas o lugar ou algo envolvido com o
acelerador de partículas. – A empolgação da jovem trouxe Daiane de volta. –
Visto que tudo que estamos vivenciando está relacionado com o campo de
152

pesquisa ao qual o Large Hadron Colisor, “LHC”, é utilizado, também faz todo
sentido.
- Uau! Estupendo Ana! Não existem adjetivos para caracterizar seu
brilhantismo à altura. – Parabenizou-a August.
- De fato. É um grande prazer presenciar sua mente trabalhando minha
jovem – elogiou-a o Dunkeld mais velho.
A jovem senhorita Schmidt corou.
- É mesmo! É possível que o LHC seja um dos responsáveis por essa
descoberta de como “rasgar” a estrutura tempo-espaço e talvez, quem sabe,
possa nos ajudar a voltar para o nosso tempo! – Falou August animado, porém,
mudara de expressão rapidamente – Se não tivéssemos a 25 anos de sua
construção.
A decepção veio aos rostos na mesma velocidade que a satisfação.
- Desanima não meu neto! Vamos nos concentrar na busca pelos dois
selos iniciais, tenho certeza que teremos essas respostas quando os encontrarmos
e estabelecermos novamente a comunicação com o tal LHC.
Externamente, Wilson Dunkeld possuía uma expressão de alegria
contagiante, no entanto por dentro, o incômodo sentido toda vez que ouvia as
letras LHC, o perturbava.
Se eles soubessem.
- Seu avô tem razão August, agora temos por onde começar. – Ana o
animava.
- Exato. Vamos procurar algo relacionado a alguma carta, ou a um
motivo aparente em Roma no ano de 1939, que levasse os religiosos, católicos,
a tentarem mudar o passado. Fiquem à vontade para usar os livros e qualquer
outro material de pesquisa que precisarem. – Disse o Sr. Holister apontando para
toda a extensão de seu escritório.
- E, é preciso torcer para eles não terem conseguido efetuar uma
alteração pouco significativa, ou vamos em busca de outra KV55. – Comentou
August mais em tom de brincadeira do que de desânimo. Já estava sobre o efeito
Schmidt.

Capítulo 35

A conversa sobre onde os dois lacres citados pelo LHC na carta estavam
começou e o primeiro pensamento a surgir, praticamente em todos, foi o início
153

da Segunda Guerra Mundial ocorrido, oficialmente, em primeiro de setembro


de 1939, exatamente um dos anos destacados. Podemos dizer que foi um ótimo
começo, pois as hipóteses não demoraram a surgir.
- É sabido que os religiosos não são adeptos de guerras, pelo menos não
as que envolvem conquistas e imposições de ideologias que não sejam as suas
próprias, ou que não libertem suas cidades sagradas – comentava Rudolph
gesticulando. Mesmo se tratando de um assunto delicado, cujas opiniões dele e
de sua esposa divergem, sua forma de falar permanecia inalterada. – O fato é
que a Segunda Guerra desagradou a gregos e troianos, e com certeza contestar
as Leis de Nuremberg e evitar tantas mortes e tanta destruição, seria um ótimo
motivo para assim procederem, matando dois coelhos com uma cajadada só.
- Mas então, por que enviar a carta para Roma e não à Alemanha? –
questionou Ana.
- Boa pergunta. – Respondeu o Sr. Holister sem uma resposta pronta.
- Afinal, mesmo sendo um importante aliado de Hitler, não acredito que
Mussolini seria capaz de deter ou ao menos amenizar o holocausto. Além do
mais, é difícil imaginar importantes e autoritários chefes de estado, mudando de
ideia assim, de uma hora para outra em decorrência de uma simples carta, ainda
mais uma carta de procedência duvidosa.
- Tem razão, é melhor pensarmos em outro destinatário. – Concordou o
anfitrião.
- Acho que deveríamos mudar a perspectiva e procurar por assuntos
inacabados ou decisões, ações mal explicadas, justificando uma possível
“intervenção divina” – disse August efetuando o gesto de aspas com as mãos. –
Como no caso do faraó Aquenáton, por exemplo, pois assim teremos uma linha
de pensamento a seguir, eliminando um pouco as teorias complexas mais
improváveis, afinal se existe um jeito de encontrarmos essas cartas, é através de
mudanças práticas ou palpáveis em nossa realidade, tendo em mente que ela
pode já ter sido alterada pelas mesmas. – Pausou enquanto pensava. –
Precisamos verticalizar ainda mais.
- Ótima ideia, vamos procurar pontas soltas em Roma a partir de 1939.
– Concordou seu avô.
- E quanto a Mamertinum, nosso primeiro destino? – perguntou Ana,
ironizando logo em seguida – A prisão que… simplesmente teremos que invadir,
cavar e tapar um buraco na parede, sair sem sermos notados pelos Guardiões do
Tempo, os quais a monitoram 24 horas por dia, e tudo isso sem avisarmos as
autoridades.
154

- Já disse que isso não será problema, não se preocupe. Vamos nos
concentrar em aproveitar bastante a viagem e trazer dois lacres ou selos, ao invés
de um. – Tranquilizou Wilson, demonstrando muita confiança. – Eu tenho um
plano.

O local onde o capitão e sua equipe entraram estava um breu, não se via
nada para além de onde os minis holofotes acoplados em seus trajes iluminava.
- Vamos pessoal! Apressem-se! Não podemos perder o rastro! – O
capitão puxava a fila.
Pelo pouco que podiam reparar, aquela falsa parede que usaram como
porta de entrada, os levaram para uma espécie de túnel, ainda no nível da rua,
dando a impressão de passar por dentro de várias outras casas.
- Droga! Típico.
O túnel havia se dividido em dois. Agora tinham uma importante
escolha a fazer.
- Três, você segue o da direita sentido centro para ver onde vai dar –
apontava. – A dois e eu vamos por aqui. Tenho certeza que ele não se arriscaria
voltar para um lugar repleto de agentes, mesmo assim precisamos ter certeza.
Mantenha contato.
Logo que se distanciaram do agente chamado de “três”, o capitão levou
a mão ao minúsculo comunicador, quase um ponto eletrônico preso a sua camisa
na altura do pescoço, e o desligou. A agente chamada de “dois”, percebeu.
- O que está fazendo? Temos que manter...
O capitão a interrompeu só com o cessar de passos e um olhar, tão
compenetrado que a fez dar um passo atrás.
- Estimo muito sua pessoa e sua presença na equipe, sabe disso. – A voz
do homem trovejava pelo túnel. – Você é uma agente excepcional, mas se voltar
a questionar o meu julgamento, está fora! Entendeu?
A agente engoliu seco.
- Sim capitão.
- Ótimo – religou o comunicador. – Agora vamos ver o que esse Aquila
está armando.
155

O dia passou e as ideias até vieram, mas nenhuma delas se manteve de


pé após duas ou três contestações. Sendo assim, partiram para Roma antes do
amanhecer, ainda sem pistas concretas sobre o paradeiro da outra carta.
156

Entrando no clima

19 de setembro de 1984

Viagem curta e tranquila.


Chegaram animados a capital da Itália e foram ao encontro de um casal
que os esperava em um charmoso café, próximo ao Panteão no centro da cidade,
para degustarem as iguarias da culinária italiana e enfim, tramarem um plano de
fato para obter a carta da prisão Mamertina.
Entre apertadas ruas, repletas de construções antigas, com uma porta de
entrada pequena e uma fachada simples, o café Sant´Eustachio visto de longe,
mais parecia o local onde se pretendera colocar um elevador externo, bem no
andar de baixo do casarão de três andares onde se encontrava.
A medida que se achegavam próximo as mesas, posicionadas do lado
de fora, ao ar livre, August olhando para o casal que os esperava, sentados na
mesa apontada por seu avô, sentiu um frio na barriga, um frio que foi se
intensificando cada vez mais a medida que se aproximava, chegando a irradiar
para a coluna vertebral o fazendo curvar.
Seu avô aproximando-se, segurou-o pelo braço, fazendo-o parar.
- É melhor que eles não saibam quem você é, não conhecemos as
implicações que uma informação como essa poderia causar. Imagino o quanto
isso é difícil, mas já mexemos demais com o tempo, não podemos nos arriscar
mais. – Disse-lhe ao pé do ouvido.
Mesmo visivelmente abatido, August concordou.
Ana reconheceu o casal.
- Aqueles são... – olhou para o parceiro e não precisou sequer terminar
a pergunta.
- É melhor que não saibam – pediu o jovem.
Com uma expressão triste, Ana assentiu.
Cumprimentos, abraços calorosos e apresentações.
- Cris, Hug, estes são August e Ana, os mais brilhantes aspirantes a
agentes da CRONOS que temos na Inglaterra. – Dunkeld intermediou o primeiro
contato.
- Não sabia que estávamos precisando de novos agentes – comentou
Huginin em meio aos apertos de mão.
157

- Não estamos, mas eles descobriram sobre as cartas sozinhos e depois


de conhecê-los melhor, vai concordar comigo que o mais sensato a se fazer, é
tê-los do nosso lado.
Huginin franziu a testa surpreso.
- Vocês descobriram sozinhos? Adoraria saber como conseguiram.
August chegara a abrir a boca para inventar algo, mas seu avô, mesmo
sabendo que o neto seria bem capaz de se virar sozinho, não quis arriscar.
- Isso fica para uma outra ocasião – sentou-se. – Agora temos assuntos
mais importantes e longos para tratar – abriu os braços em um movimento
semicircular, induzindo-os a sentarem-se também. Era a hora de compartilhar
algumas informações, mas só algumas.
August tentando lhe dar com seus sentimentos conflitantes e Ana por
não saber o plano que o senhor Dulkend insistiu em não revelar, ficaram em
silêncio durante a maior parte da conversa, deixando os mais velhos decidirem
os próximos passos.
Que situação delicada. August encontrava-se ali, sentado e conversando
com, ninguém mais ninguém menos que, seus pais, os quais ele sequer sabe se
estão vivos em sua realidade, e não pode abraçá-los ou demonstrar o quanto está
feliz em vê-los, era preciso os ignorar de certa forma, fingir não conhecer as
pessoas que ele mais ama na vida, afinal, eles não o conhecem, pelo menos ainda
não.

Terminaram de tomar o café e seguiram direto para a prisão com o


intuito de executar o plano, que no dizer do Sr. Dunkeld “estava
esquematizado”.
As malas ficaram por conta dos senhores Holister e Dunkeld, que
decidiram não ir, pois corriam o risco de serem reconhecidos pelos agentes da
Guardiões e assim comprometer toda a operação.
- Abandonei minha aposentadoria para isso? Deixar toda ação com eles?
Grande retorno! Pelo visto me tornei um Jaque mesmo. – Lamentou Rudolph se
esforçando para parecer frustrado, mas apenas conseguindo proporcionar boas
risadas ao amigo.
158

Com cautela, o capitão e a agente dois, seguiam pelo breu do túnel


bizarro. Com as mãos puderam sentir que o material de revestimento das paredes
que os cercavam, não era lá grande coisa. Era oco e parecia incapaz de resistir a
um golpe.
- Isso aqui é o que? Divisórias de escritório? – Indagou a agente
enquanto tateava o material.
- Ainda estamos no nível da cidade e esse túnel já deve ter passado por
dentro de umas três casas. Foram espertos, não podiam chamar atenção.
Andaram sorrateiros por mais alguns minutos até que a luz incidiu em
algo sólido, poucos metros a frente deles.
- Vamos com calma, não sabemos o que tem do outro lado – ordenou o
capitão enquanto procurava por uma maçaneta ou algo do tipo.
- Capitão? – Voz pelo comunicador.
- Sim três, diga.
- Cheguei ao final do túnel e o senhor não vai acreditar aonde ele leva.
- Aposto que vou.
- Estou na casa onde vimos a carta se desintegrar bem na nossa frente.
É outra passagem secreta, o pessoal ainda não havia encontrado essa.
- Hum, sabia – olhou prepotente para a agente dois. – Não creio que ele
esteja aí, mesmo assim faça uma busca detalhada antes de encerrar.
- Certo.
- Ouviu, não ouviu? – O capitão nem esperou a resposta da agente – É
a nossa confirmação.
- Lamento ter duvidado do senhor.
- Águas passadas. Vamos nos concentrar em pegar esse cara e obter um
pouco de respostas.
Passaram mais alguns segundos tateando a parede que os impedia de
prosseguir.
- Afaste-se.
- O que vai... – Antes de conseguir terminar a frase, um estrondo ecoou.
Com um chute, o capitão abriu um buraco no revestimento do túnel.
Avançaram e agora encontravam-se dentro de um salão bem mobilhado,
talvez a sala de estar de uma casa, visto que ao se virarem, olhando para o local
de onde tinham saído, aos olhos de quem estivesse de fora, haviam saltado de
dentro da parede.
- Onde estamos? – A agente andou até uma janela.
- Estamos próximos... ah!
O capitão foi levado ao chão.
159

- O que querem aqui? Por que invadiram minha casa?


O jovem que golpeara as pernas do capitão, foi rápido o bastante para
também tirar a arma dele e agora o mantinha de costas e de joelhos sob sua mira
a um metro de distância.
Olhando para a agente que já empunhava sua arma, o capitão espalmou
as mãos e pediu calma.
- Você é um cavaleiro templário? – Foi direto ao assunto.
- O que? – O jovem fez uma expressão surpresa.
- Não banque o inocente, sabemos onde o túnel leva – o capitão matinha
a calma. – Foi por ele que você escapou da última vez, não foi?
- Mas do que é que vocês estão... – Outra frase inacabada.
Assim que percebeu o mínimo de desatenção do jovem, a agente atirou
com a arma de choque. O rapaz foi ao chão.
- Muito bem – parabenizou-a o capitão, se levantando e indo até o jovem
para o imobilizar. – É por isso que mantenho você na equi... Merda!
- O que foi?
O capitão mal havia terminado de elogiar a ação da sua agente quando
percebeu o erro.
- Três! Três! – bradava pelo comunicador. – Ele está aí! Repito: o
suspeito está aí!
Sem resposta.

Capítulo 37

Na prisão Mamertina, August, Ana e Christine entraram como turistas,


sem estarem propriamente disfarçados, apenas utilizando trajes diferentes dos
habituais.
As moças inverteram a forma de usar o cabelo e August colocou um
daqueles chapéus de aba redonda, típico de turista.
Huginin entrou depois, aproveitando a distração do único guarda, este
sim, disfarçado de vendedor de balões, aqueles mesmos, que flutuam repletos
de gás hélio. Carregava uma penca deles, extravagante e chamativa.
Andando por toda a prisão com os balões presos por barbantes, ainda
sem acreditar que havia conseguido entrar carregando aquilo, Huginin
incomodava praticamente todos ali, tanto fiéis quanto turistas, não só pelos
160

balões, mas também pela típica fala de vendedor. Ele incorporou o personagem
como um ator profissional.
- August? – Chamou Ana sussurrando após ver um movimento estranho
– Acho que isso não vai dar certo.
- Sei que está desconfortável com isso Ana, mas para não chamar
atenção, é preciso chamar atenção.
- Entendo, mas até dele? – apontou com a cabeça para o guarda que a
passos largos e com cara de poucos amigos ia na direção de Huginin.
- Agora lascou. – Fez uma careta.
O plano parecia ter ido por água a baixo, pois o guarda exigia que
Huginin se retirasse com seus balões, a ponto de começarem a discutir feio
devido a isso, espantando quase todos os visitantes e até os devotos que ali
faziam orações.
- Esses planos que a minha família faz eu vou te contar viu! – comentou
August coçando a cabeça, observando aflito o desenrolar bastante enrolado da
conversa entre o pai, bem mais novo que ele próprio, e o guarda.
Após alguns minutos, a discussão seguia intensa. O guarda negro,
robusto, com feições fortes e intimidadoras, perdeu a paciência com a postura
ofensiva de Huginin e seu italiano horrível, e partiu para cima dele a fim de
algemá-lo.
Huginin resistiu.
Vendo a situação enfrentada por seu pai, August não se conteve e foi
para cima do guarda também.
Ana desesperou-se, só não pôs-se a gritar porque Christine a impediu.
- Ainda temos um trabalho a fazer – lutava para manter a calma.
Mesmo sendo dois contra um, e o guarda não sendo mais nenhum
jovenzinho, não tiveram chance. Nenhuma das aulas de artes marciais que
August e seu pai fizeram, ambos obrigados pelo Sr. Dunkeld, os ajudou. Foram
dominados facilmente. O homem da lei era barra pesada.
Algemados, foram conduzidos ao carro do guarda da prisão, presos por
desordem e desacato.
Ana e Christine, aparentando não saberem o que fazer, perdidas e um
tanto quanto apavoradas com a situação, se retiraram pouco depois do guarda
retirar todos os visitantes, e voltaram para o hotel, enquanto o homem da lei
após pegar os balões, que flutuavam soltos desde o início da discussão, fechou
temporariamente o local. Era preciso levar os desordeiros.
161

Rumo a delegacia, o guarda parecia fazer um caminho diferente do que


Huginin estava acostumado, pois se dirigia ao centro, na direção inversa ao
caminho que, teoricamente, deveria percorrer, pelo menos se o objetivo fosse
chegar o mais rápido possível ao destino.
Pai e filho, apesar de conhecerem o rumo que estavam tomando,
diferente do dito inicialmente pelo guarda, não pareciam estar nem um pouco
alarmados.
Passando por algumas ruas menos movimentadas, quase desertas, a
tranquilidade nas expressões dos prisioneiros chamava a atenção e, assim
ficaram até o homem parar o carro em uma rua apertada, próximo a dois homens
de cabelos grisalhos.
- Ei cabeça branca! Seus rapazes estão entregues. Agora estamos quites,
certo?
- Obrigado Marco, estamos sim. – Respondeu o Sr. Dunkeld ao lado do
Sr. Holister, ambos esperando August e Huginin trazidos pelo seu velho amigo,
guarda da prisão.
Antes de ir embora, Marco perguntou:
- As meninas conseguiram?
- Conseguiram sim! – Wilson fez sinal de positivo – Mais uma vez
obrigado! – Acrescentou, desta vez acompanhado no agradecimento pelos
demais, aceito por Marco com acenos de despedida ao virar da esquina.
- Conseguimos! – exclamou August.
- Eu disse que conseguiríamos. Esquematizado, lembra? – Completou
seu avô todo pomposo.
- Nunca mais me peça para interpretar nada, ouviu? – Falou Huginin
esforçando-se para parecer indignado.
- Confessa Hug, até que você gostou de sair dessa postura toda – brincou
Rudolph cheio de entonação.
Huginin apenas deu de ombros. August fora quem apreciara bastante
ver seu pai – mesmo a versão bem mais nova dele – solto daquele jeito.
Dirigiram-se para o hotel a fim de comemorar o sucesso, de certa forma
tranquilo, na primeira empreitada.
No caminho, andando aos pares pela charmosa capital italiana, August,
pensativo como sempre, disse aos que o acompanhava:
162

- Andei pensando... o que pode motivar ou atrair a atenção de um grupo


de religiosos em Roma, independente de qual seja o tempo, desde o século IV?
– perguntou já respondendo – A Igreja, mais especificamente a Igreja Católica
Apostólica Romana, com sua sede principal bem aqui, no Vaticano, que
curiosamente, coincidentemente ou não, – cada frase trazia uma expressão facial
diferente – só foi reconhecido como estado independente na década de 1930,
estou correto?
- Está sim, mas como você bem destacou, foi na década de 30, ou seja,
anos antes da data do envio da carta que procuramos. – Respondeu seu avô.
- De acordo, – deu um passo longo e emparelhou-se com seu avô – por
isso esse fato tão marcante havia passado despercebido em nossas suposições,
porém me lembro de ter ouvido, certa vez em uma palestra na faculdade, de um
especialista em história da Igreja, que o Papa responsável pelo fim da chamada
Questão Romana, faleceu justamente no ano de 1939.
- Onde quer chegar?
- Bom, pode não haver ligação, mas se existir alguma ponta solta nessa
história – August se inclinou em direção ao seu avô, sem parar de andar e
completou baixinho – conheço muito bem uma renomada historiadora, doutora
em latim, que pode ajudar.
- Eu também. – Mesmo estando metros atrás, Huginin escutou toda a
fala do jovem.
É claro, August sabia que falavam da mesma pessoa, mas optou por
simplificar as coisas.
- Quem?
- Minha esposa. Ela ainda não é doutora nesta área ainda, mas entende
bastante do assunto.
- Sério? Ótimo então! Bem mais prático que a pessoa que eu tinha em
mente.
- Ele puxou você. – Foi a vez de Rudolph sussurrar no ouvido de Wilson.
- Na maneira como pensa rápido, não é? – Sorriu todo pomposo.
- Não, na cara lavada ao mentir.
Sorriram.

Ziguezagueando pela multidão dispersa no meio da rua, um Mercedes


Benz preto, passava lentamente em frente a prisão Mamertina.
Poucos metros depois de onde se encontrava a aglomeração de pessoas,
o carro parou. O motorista desceu em busca de informações.
163

Ao retornar, indo direto a uma das portas traseiras, pediu ao passageiro


que baixasse o vidro.
- Desculpe senhor, mas a prisão está fechada agora. Parece que tivemos
uma confusão mais cedo.
- Assim é melhor. Teremos privacidade.
- Ali! – apontou o motorista – O guarda chegou, deve liberar a entrada
agora.
- Corra lá por favor e o impeça.
Fazendo o que seu passageiro vestido de preto pediu, o motorista
conseguiu interceptar o guarda robusto, já com as mãos no cadeado.
- Preciso que mantenha a prisão fechada por mais alguns minutos, é
possível?
- Lamento amigo, mas já chamaram minha atenção por causa dessa
multidão aqui fora.
- Entendo.
- Mas, por que o interesse em mantê-la fechada? – Marco ficara curioso
com mais um possível interessado em entrar na prisão vazia.
- Precisamos entrar para verificar uma coisa.
Como imaginei.
- Você e mais quem?
- Ele – apontou para o homem vestido de preto já a caminho de onde
eles estavam.
O guarda precisou apenas de alguns segundos para o reconhecer.
- Scusate ragazzi! – Falava em italiano, em alto e bom tom. – A prisão
ficará fechada por mais alguns minutos. Peço a compreensão de todos!
- Olá Marco, como vai?
- Não tão bem quanto você meu amigo, mas a gente vai levando. –
Brincou. – Não vai adivinhar quem eu vi hoje.
- Pode dar uma dica – entrou no clima.
- Me fizeram lembrar dos nossos velhos tempos.
164

A Encíclica Oculta
Chegando ao hotel, se reuniram no quarto dos pais de August, onde Ana
e Christine já os esperavam.
Cumprimentos entre todos pelo sucesso do plano. As cartas de
possibilidade mais concreta, estavam em suas mãos: o pergaminho e, agora, a
carta de Paulo.
Bons minutos foram destinados a admiração do conteúdo da carta
escrita por um apóstolo e por um faraó, além é claro, de uma pessoa que,
paradoxalmente, pode nunca ter existido. Fato levantado novamente por August
e Ana.
Durante a fala do jovem, Christine, comentou baixinho próxima a seu
sogro.
- Este rapaz é parente de vocês, não é?
- É sim – respondeu rápido. – É um sobrinho distante. Muito parecido
com Hug, não é?
- Ainda mais parecido com o senhor. – Matinha o olhar fixo no jovem,
especialmente quando este detinha a palavra.
- E aí, quem está com fome? – Wilson tratou logo de mudar de assunto.
Um pouco mais tarde do que o horário habitual, desceram para almoçar
no restaurante do próprio hotel. Lá, o novo seguimento de raciocínio de August
foi apresentado a todos, juntamente com alguns outros detalhes da história da
carta do LHC, que haviam ficado para trás devido a pressa, com alguns ajustes
é verdade, principalmente no que diz respeito a participação do próprio casal em
tudo que acontecera no futuro e sobre o possível fim do mundo. O Sr. Dunkeld
não os queria preocupar.
- Bom, não faço a menor ideia de como esse tal LHC conseguiu uma
tecnologia que possa rastrear uma carta pelo ano, mas se for ajudar, existe um
fato interessante envolvendo a Igreja Católica em 1939, em especial um Papa. –
Introduziu Christine esperando até que todos estivessem à mesa para dar
continuidade.
- Sabia que ela não decepcionaria – disse August baixinho para seu avô.
– Ela nunca decepciona.
- Como amantes da história – introduzia –, vocês já devem saber,
pegando o assunto lá do princípio, que em 756, Pepino, o Breve, rei dos francos,
cedeu ao Papa um grande território no centro da Península Itálica, de certa forma
originando os chamados estados pontifícios...
165

- Pepino, o Breve, avô de Luís, o Piedoso. – Cochichou Ana, sorrindo


para o parceiro, que ao pegar a referência, devolveu o travesso sorriso de
imediato.
- … que terminaram quando em 1870, as tropas italianas do rei Vitor
Emanuel II, aproveitando a ausência das tropas francesas, protetoras desses
territórios, devido a uma guerra contra a Alemanha, entraram em Roma e
incorporaram as terras da Igreja ao Reino de Itália.
- Reino de Itália? – questionou Ana.
- Sim. Era assim que a Itália era conhecida. – Respondeu Christine e
continuou – No ano seguinte, o rei Vitor ofereceu uma compensação ao Papa,
na época Pio IX, para chegarem a um acordo sobre o impasse criado após a
invasão. No entanto, o chefe da Igreja recusou a proposta e declarou-se
prisioneiro do poder laico, neste caso, do estado, dando início a conhecida
Questão Romana – fez uma pausa para tomar um pouco de água. – Esse período
desconfortável e repleto de descontentamentos de ambas as partes, terminou em
1929, quando a Igreja, com o Papa Pio XI, aceitou o acordo, curiosamente, com
as mesmas condições oferecidas antes. Este acordo ficou conhecido como o
Tratado de Latrão, assinado por Benito Mussolini, então chefe do governo
italiano e o cardeal Pietro Gasparri, secretário de estado da Santa Sé, que entre
outras cláusulas, as quais a maioria já fora revogada ou descumprida atualmente,
formalizou a existência do Estado do Vaticano, permanecendo até hoje.
Os olhos de August pareciam brilhar quando sua mãe falava, um brilho
tão intenso quanto ao que eles apresentam quando a senhorita Schmidt tem a
palavra. Só que diferente.
- Pois bem, esse foi um breve contexto histórico, necessário para
entendermos o rebuliço envolvendo um discurso desaparecido deste mesmo
papa, Pio XI, no ano de sua morte. Deixem-me apenas comer um pouco, já
continuo.
- Caramba August, sua mãe entende mesmo de história da Igreja, nunca
tinha lido ou ouvido falar de um discurso desaparecido de um Papa. Isso é muito
bacana! – cochichou Ana – Será que a carta está envolvida?
August apenas levantou as sobrancelhas.
- O Papa Pio XI – continuou Christine – morreu no dia 10 de fevereiro
de 1939, em decorrência de um ataque cardíaco, porém, ele havia preparado um
discurso há meses, para ser pronunciado nos dias subsequentes a sua morte, onde
ele possivelmente denunciava a violação do Tratado de Latrão pelo governo
fascista e a perseguição racial na Alemanha.
- Caramba! Era coisa séria mesmo! – Ana sussurrou novamente.
166

- O Papa, de acordo com algumas fontes, também pretendia divulgar


uma encíclica contra o antissemitismo, no entanto, após sua morte, tais
documentos foram em boa parte destruídos ou mantidos em sigilo até vinte anos
depois, quando no pontificado do Papa João XXIII algumas partes foram
publicadas. Muitas dúvidas pairam sobre esses documentos até hoje, ficando
conhecidos como “a encíclica oculta”, não divulgada na época, porque o então
cardeal Secretário de Estado, Pacelli, desejava empreender novas e mais
tranquilas relações com a Alemanha e a Itália. Ainda assim, surgiram rumores
de que Pio XI havia recebido uma carta no início daquele ano, encorajando-o
ainda mais a fazer as críticas já pretendidas, além de seu testamento espiritual
para o mundo, também descrito na mensagem. Alguns de meus colegas
acadêmicos, dizem que esta carta, que talvez seja a nossa, estava junto aos
documentos da encíclica oculta, no entanto, ninguém pode confirmar sua
existência, pois nunca foram vistos e tais documentos não são acessíveis para
estudiosos não clericais, em função de estarem guardados nos Arquivos Secretos
do Vaticano, onde os documentos disponíveis no momento só vão até o início
do século XX, no pontificado de Leão XIII. – Concluiu.
- Os arquivos que precisamos só serão abertos ao público em 2006, pelo
Papa Bento XVI. – Comentou August com expressão abatida e em voz baixa,
de maneira que apenas Ana e seu avô dispostos ao seu lado o ouvissem.
- Então é o fim? Todo o trabalho em elaborar uma teoria que fizesse
sentido e tudo corre por entre os dedos graças a um repositório? – questionou
Ana indignada.
- Parece que sim, não há nada que possamos fazer. Invadir o Arquivo
do Vaticano seria mais do que irresponsabilidade, seria loucura. Pela primeira
vez começo a pensar em nos adaptarmos e ficarmos por aqui mesmo. –
Lamentou August desanimado, mudando imediatamente a expressão para
atônita após perceber um possível excesso em sua fala, o qual não passou
despercebido por sua mãe, que com toda certeza, lhe forneceu o gene detalhista
dela.
- Por que diz isso, vocês não são da Europa? – perguntou curiosa.
- É, sabe… acontece que esta carta também seria nosso objeto de estudo
para uma tese e… não podemos voltar de mãos abanando para o nosso lar,
entende? – explicou Ana tentando contornar a situação.
- Entendo perfeitamente. – Christine acreditou. – Querem conquistar
respeito e reconhecimento através do próprio trabalho, admiro muito isso.
- Obrigada. – Agradeceu ela aliviada.
167

- Até tenho acesso a boa parte dos Arquivos do Vaticano, pois entreguei
a eles documentos importantes que encontrei durantes minhas pesquisas
envolvendo a contrarreforma, e com isso consegui alguns privilégios, todavia,
em relação a encíclica oculta nada posso fazer. – Lamento.
Um silêncio decepcionante se fez presente, não durando muito é
verdade, pois o avô de August, após esmiuçar a última fala de Christine em sua
mente, tentou trazer a esperança de volta.
- Não desanimem! É arriscado, mas acho que tenho a solução – disse
pegando o telefone e saindo da mesa por alguns instantes, deixando a todos
curiosos.
- Lá vem... – comentou Huginin.
- Da última vez deu certo. – Afirmou August com fé em seu avô.
- Da última vez só tinha um guarda e ainda era amigo – insistiu seu
futuro pai. – Agora estamos falando da Guarda Suíça, soldados que nasceram
para ser soldados, dispostos a doarem a vida para cumprirem o seu dever.
- Mas o dever deles é proteger o papa. Não vamos atacar o papa. –
Rebateu o Sr. Holister.
- Acredite em mim, nada dentro do Vaticano escapa à Guarda Suíça.
Os jovens viajantes do tempo, trocaram olhares preocupados.
Ao retornar minutos depois, o Sr. Dunkeld começou a expor outras de
suas ideias:
- Está feito. Conversei com um ex-parceiro do RH e meu em algumas,
consideráveis, buscas antes de se tornar sacerdote, na verdade cardeal.
Um amigo cardeal que era agente? O que falta mais? Um presidente?
Pensava Ana.
- Trocando em miúdos, objetivando questionamentos posteriores –
Wilson conhecia a família que tinha – durante uma busca na América do Sul,
ocorreu um acidente onde alguns jovens acabaram morrendo e ele se culpou e
se culpa até hoje por isso. Desde então, se desligou da agência e decidiu seguir
a vocação de fazer o bem, procurando o “perdão espiritual”, nas palavras dele.
- Nobre. – Comentou August.
- Percebendo que nossa missão, aproveitando o gancho, também é nobre
e que esta carta, se existe, ninguém nunca a viu, aceitou nos ajudar, pois
concordamos que o plano não implicará mal algum a Igreja ou a terceiros.
- Mas pai, não acha que é muito risco por uma carta? Ou melhor, pela
expectativa de uma carta?
- É uma carta importante filho. Precisa acreditar em mim, o risco vale
muito a pena.
168

Huginin não conseguia ver tamanha importância, mas optou por confiar
em seu pai.
- Então vamos terminar de comer e subir, é preciso elaborarmos mais
um plano! – Bradou Rudolph no maior estilo Ana Schmidt, atraindo inclusive,
um olhar curioso da jovem ruiva.

Ao final da refeição, todos foram se levantando e se dirigindo aos


quartos. Na mesa, por último, ficaram August e seu avô, não por coincidência,
pois antes que este se levantasse, fora contido pelo neto por meio de um discreto
sinal.
- Este seu amigo, ex-agente, fez parte da Guardiões do Tempo, certo?
- Nada escapa de você mesmo, não é?
- Não me superestime vovô, isso era óbvio.
- Poderia ser da CRONOS, não?
- Improvável, ele ainda seria um agente se assim fosse.
Seu avô assentiu e continuou, antecipando qual seria a indagação do
neto, sempre querendo saber o todo.
- Tem razão, provavelmente seria sim. Agora, antes que você me
pergunte algo mais, para o bem da missão e sucesso do plano, o resto da história,
imagino que seja esse o motivo da prosa, fica para depois, pode ser? – perguntou
o velho simpático e sorridente como sempre, recebendo de seu futuro/presente
neto, um sinal de afirmação com a cabeça.
Levantaram-se e subiram.
Passaram o resto da tarde planejando, sem a presença do cardeal amigo
do Sr. Dunkeld devido as suas obrigações, mas comprometido a agendar a visita
de Christine aos arquivos e acompanhá-la durante a busca.
Desta vez nada de mistério. O avô de August tratou de deixar logo todos
a par do que ia acontecer. Não poderiam errar, pois apesar de terem ajuda lá de
dentro, o cardeal não tem nenhuma ligação com o repositório, portanto, era
preciso seguir o plano à risca para não tornarem as coisas suspeitas.
- A consistência do plano é muito simples: – sentado, ele olhava no rosto
de cada um para ter certeza que compravam a ideia – Christine irá levar na bolsa
as ferramentas necessárias para romper as grades protegendo os arquivos
correspondentes aos papas, cujas mortes ocorreram a menos de 75 anos, tempo
mínimo estabelecido para a abertura de documentos de pontífices falecidos,
169

como já sabem. Por ser conhecida, entrará sozinha para não levantar suspeita ou
uma revista esmiuçada. Lá, o cardeal Genaro vai acompanhá-la no lugar do
arquivista, que receberá uma ligação urgente solicitando sua presença no museu
do vaticano mais distante dos arquivos, para explicações rápidas a visitantes
ilustres, pois o guia responsável por isso, infelizmente, estará com um ligeiro
desconforto abdominal, impossibilitando-o de se afastar por muito tempo do,
como se diz por aqui, bagno. – Passava as mãos na barriga. – Escolhemos o
horário indicado por Genaro, de pouco movimento e sem substituto imediato
para a função de arquivista, que inclusive já não será o responsável habitual, o
que poderia complicar o plano. Então, quando ele perceber o engano e retornar,
já teremos a carta nas mãos com certeza.
É, parece um bom plano.

Capítulo 39

Anoiteceu e uma missa estava sendo celebrada naquele momento na


Basílica de São Pedro, então, com o plano mais uma vez esquematizado,
decidiram fazer um reconhecimento melhor do local e comprar comunicadores
de longo alcance, não tão modernos e pequenos como os que August estava
acostumado, mas igualmente eficazes.
Ah o Vaticano! Menor país do mundo, uma cidade-estado dentro de
Roma, sede da Igreja Apostólica Romana e lar do seu líder espiritual, o atual
sucessor de São Pedro, o Papa.
Com uma extensão de quarenta e quatro hectares e uma população que
gira entorno de mil pessoas, sendo quase a totalidade membros da igreja, o
Vaticano possui diversos e importantes museus, o que não poderia ser diferente,
visto que a história da humanidade, especialmente o desenvolver e evoluir da
sociedade, está entrelaçada com a história da própria Igreja Católica em si, uma
influenciando diretamente o caminho da outra.
Repleta de igrejas, a soberana cidade-estado do Vaticano, também atrai
turistas não-cristãos e até agnósticos, tudo por ser detentora de uma arte,
considerada sacra, de valor incomensurável. O local mais procurado por esses
visitantes, é a Capela Cistina, situada no Palácio Apostólico, residência oficial
do Papa.
A Capela Cistina, é conhecida por sua arquitetura, inspirada no Templo
de Salomão, e conta com obras de grandes artistas da renascença, o que agrega
170

ainda mais charme e beleza a seu interior único e sua fachada inconfundível.
Michelangelo, Rafael, Perugino e Botticelli, são alguns dos nomes que se podem
encontrar nas obras espalhadas pelo lugar, praticamente todas, retratando algum
aspecto que contribuiu para a formação da religião.
Justamente no ano em que August e Ana se encontram, 1984, o Vaticano
foi declarado pela UNESCO, Patrimônio Mundial da Humanidade.
Admirando e, de certa forma, analisando minuciosamente tudo à volta,
August acompanhado apenas por Ana, parou e olhou fixamente para o chão,
parecia observar um lugar específico. Um lugar de lembranças tão marcantes,
que o fez fechar os olhos para tentar visualizar o acontecido. Estático,
concentrado. Permanecendo assim por alguns minutos.
Ana, aguardou até que ele saísse de seu mergulho interior.
- Posso saber qual o motivo de uma inspiração tão profunda quanto
aquela executada ao sairmos do carro de entregas nos arredores de Gloucester?
August sorriu ao trazer em sua mente a lembrança daquele dia.
Inesquecível!
- Olhando para este brasão, me lembrei do trágico acontecimento
ocorrido na data escrita nele – 13 de maio de 1981 – exatamente aqui. – Olhou
novamente para o chão. – Tentaram assassinar um Papa.
- Em 81?
August entendeu o porquê do questionamento.
- Na verdade não me lembrei, porque sequer havia nascido – se explicou
– mas a comoção foi tão grande por todo o mundo e os efeitos tão importantes,
principalmente na segurança aqui do Vaticano e do Papa, que parecia estar
acontecendo de novo, em todos os vídeos e reportagens que assisti sobre o fato.
– Fez uma pausa. Outra inspiração enquanto corria os olhos pelas colunas
dóricas circundando o local. – As expressões de todas aquelas pessoas chorando,
perplexas e atônitas, vão ficar na minha mente para sempre, assim como ele, o
hoje, atual Papa, visto que estamos na década de 80 – sorriu. – Eu gostava dele,
foi uma das pessoas que admirei, muito pela forma de conduzir seu pontificado
e, é claro, seu semblante mais que acolhedor, muito parecido com o do meu avô
aliás.
Ana sentiu uma grande paz naquele momento.
- É religioso, August?
Não obteve resposta de imediato, mesmo assim não perguntou
novamente. Viu pela testa franzida do parceiro que ele procurava uma resposta,
parecia querer encontrar uma resposta.
171

- Se religião for a crença em algo maior, ou em um ser sobrenatural, que


induza as pessoas a praticarem o bem, seja por amor ou até pelo medo de alguma
punição futura, guardando os preceitos morais e zelando pela boa convivência,
pode-se dizer que sim – respondia sem tirar os olhos do chão. – Não tenho
preferência, simpatizo com todas que pregam a caridade, independentemente do
comportamento de alguns de seus seguidores, afinal, não é o servo maior que o
Senhor, como diz em um dos evangelhos, não me recordo agora.
- João. – Ana o interrompeu com a resposta, já se explicando como a
possuía – Meus pais são cristãos. Frequentei muito a igreja quando era mais
nova. Mas, continue.
A jovem Schmidt também gostava muito de ouvir o parceiro falar.
- Bom, creio que eu seja uma pessoa religiosa por querer acreditar que
– fez uma pausa erguendo a cabeça e olhando em direção a Basílica – além do
que já foi ou será explicado pela ciência, existe algo mais, algo realmente bom,
que nos dê esperança e nos faça aceitar a inevitável verdade de sermos mortais
com mais facilidade nesta caminhada a qual chamamos... vida.
Ana ficou emocionada. As palavras de August, aquele lugar, a
lembrança de sua família e as incertezas sobre o futuro, a tocaram
profundamente.
- Com uma resposta dessa, de fato considero você, August Hermes, um
religioso. – Disse sorrindo e colocando a mão sobre o ombro do parceiro.
Continuaram a caminhada por mais alguns minutos e depois foram para
o hotel descansar, afinal Hélio parecia ter tido algum problema com seus cavalos
hoje, pois o dia havia sido demasiado longo.
Era hora de recarregar, o dia de amanhã prometia ser um tanto quanto
exaustivo.

Holister e Dunkeld, encontrarem-se na calada da noite para


conversarem, já estava se tornando rotina. Desta vez, não era tão na calada assim
é verdade, pois estavam no restaurante do hotel.
- Acha mesmo que Genaro pode ajudar? Ele não parecia muito bem a
última vez que o vi.
- A vida nunca foi muito boa com ele RH, mas ele saiu da Guardiões
pelo mesmo motivo que nós, então, sabemos que ele quer ajudar.
- É mas...
172

- Além do mais, você sabe que ele era obrigado a fazer tudo que fez para
ajudar a família, não sabe? – Interrompeu Dunkeld – Sempre se culpou pelo que
aconteceu.
- É, eu sei.
- Sempre efetuava os trabalhos com o menor dano possível para as
pessoas, para todos a volta – trouxe lembranças a mente. – Ele realmente se
preocupava.
- Sim, isso é verdade. Que ele sempre pensava nos outros é
inquestionável, talvez por isso tenha sentido tanto quando...
- Olha, vamos dar este voto de confiança a ele, ok? – Interrompeu
novamente. – Meu filho está vindo, vamos mudar de assunto.
Os mais velhos, encenando uma amistosa conversa entre amigos,
começaram a falar sobre o tempo, especificamente, sobre o calor, que começava
a dar sinais de que iria embora.
- Com licença pai, posso te fazer uma pergunta? – Huginin trazia uma
expressão carregada.
- Acho que preciso ir ao banheiro. – Disse Holister fazendo o
movimento de se levantar, imaginando que aquela seria uma conversa entre pai
e filho. Enganou-se.
- Não senhor Holister, tudo bem, pode ficar. É só uma dúvida. Coisa
rápida. – Tentou tirar a importância do assunto que já havia colocado na
abordagem.
O Sr. Dunkeld balançou a cabeça assentindo.
- LHC, é quem estou pensando?
O Velho não hesitou. Sabia exatamente do que seu filho estava falando,
ou melhor, de quem. Sentiu-se orgulhoso e preocupado ao mesmo tempo.
- Não meu filho, infelizmente não. – Olhou para Rudolph. – É outra
coisa.
- É Huginin. Nem é uma pessoa, é a sigla de uma máquina, um lugar,
chamado...
- CERN. – Completou Wilson.
- CERN ?
- Isso.
- O centro de pesquisa nuclear?
- Exatamente.
- E o que o CERN tem a ver com tudo isso?
- Parece que lá será o local de construção de um acelerador de partículas
cujo nome abreviado é LHC.
173

- Esse acelerador é responsável pelas cartas?


- Por todas nós ainda não sabemos, mas pela nossa em específico, é bem
possível.
- E, posso saber como vocês sabem disso?
Os velhos se entreolharam.
- Sim Hug, no momento certo.
- Hum. Certo, desculpe por incomodá-los. Boa noite. – Deu um sorriso
sem graça e se retirou.
Mesmo sabendo que seu pai sempre omitia informações, o jovem
Huginin não questionava, confiava fielmente no julgamento e nos motivos dele.
174

Carta na manga

20 de setembro de 1984

Café da manhã bem cedo e todos seguiram para a cidade-estado do


Vaticano, desta vez com cada um participando efetivamente do plano.
Agora sim, adeus aposentadoria! Rudolph sentia mesmo falta da
adrenalina dos velhos tempos.
Ana, August e os senhores Dunkeld e Holister, serão responsáveis pela
vigilância, dispostos entre a multidão de turistas pelo caminho que o arquivista
irá percorrer, com a função de atualizar a localização dele. Huginin ficará de
longe monitorando o estacionamento, próximo a entrada dos arquivos, com a
incumbência de agir se necessário. Todos utilizando comunicadores, não tão
discretos como queriam, mas bem escondidos por assim dizer, e em estado de
alerta.
- Evitem surpresas.
Christine já esperava o cardeal Genaro por alguns minutos do lado de
dentro, na recepção dos arquivos.
Um dos lugares mais cobiçados por estudiosos do mundo inteiro, o
Arquivo Secreto do Vaticano, possui cerca de 84 km de prateleiras e mais de
trinta e cinco mil volumes, entre eles documentos de administração da cidade,
processos de inquisição, livros e, o que mais interessava a Christine e aos outros,
correspondências de alguns falecidos papas.
Quando finalmente o cardeal deu as caras, aparecendo do nada no
estacionamento, Huginin informou a esposa pelo ponto eletrônico, este sim o
mais discreto possível, que ela carregava consigo praticamente dentro do
ouvido, totalmente encoberto por seu liso cabelo solto.
- Ele chegou. Acabou de passar por mim.
Todos respiraram fundo.
Vai começar.
O cardeal entrou. Os dois se cumprimentaram e ao arquivista, tudo em
inglês. Em seguida entraram nos arquivos com a desculpa de que Christine
precisava rever informações nos documentos que ela mesma tinha doado, como
se uma historiadora detalhista como ela fosse deixar passar alguma informação
nas fontes encontradas. Bom, foi o suficiente para convencerem o jovem
175

funcionário e os demais responsáveis pelo acesso aos documentos. Não podiam


negar um pedido simples desse a alguém como ela.
Com acesso pela Porta di S. Anna na Via di Porta Angelica, o caminho
até a chegada aos arquivos é digna de admiração e o lado de dentro, não deixa a
desejar.
Com uma decoração e iluminação voltadas para tons de dourado, tendo
corredores com forte brilho amarelo em suas pontas a se perder de vista, o lugar
em si já justificaria tamanha cobiça.
De forma casual, puxando conversa, Christine mantinha o ar de
normalidade a situação.
- Nossa, são muitos documentos! Até os que pertencem aos papas recém
falecidos vocês guardam aqui?
- Sim, sim, ficam mais ao fundo. – Respondeu o jovem extremamente
competente e dedicado, mas pelo visto, um pouco ingênuo.
Normalmente, os responsáveis pelo valioso e importante repositório
eram cardeais ou mesmo arcebispos, no entanto, Genaro descobriu sobre a
importante ausência deles devido a atividades internas, e isso criou a brecha que
possibilitou a oportunidade dos sonhos de Christine.
- Os documentos papais, somente são liberados para consultas setenta e
cinco anos após a morte da santidade em questão e com autorização do pontífice
atual.
Christine fez cara de surpresa.
- Deve ser complicado guardar onde estão os documentos de cada
pontificado, não?
- É, um pouco, mas os arquivos são bem organizados e com o tempo
você pega. Dê uma olhada.
O jovem arquivista começou a explicar a Christine como a disposição
dos documentos ali era feita. Cada longa estante de metal cinza-escuro
encontrava-se abarrotada de pastas grossas, muito parecidas com caixas de
papelão, ao formato daquelas que ainda hoje se podem encontrar nos escritórios,
cada uma devidamente identificada.
A conversa foi interrompida por uma chamada no telefone da recepção.
O jovem arquivista foi até lá, atendeu, trocou algumas frases em italiano
com a pessoa do outro lado da linha, desligou e voltou rapidamente até onde
estavam os visitantes.
- Por favor cardeal Genaro, terei que me ausentar por alguns instantes,
peço que acompanhe nossa convidada em sua pesquisa se não for incômodo.
176

O respeito a batina do cardeal e a simpatia da jovem e bela Christine,


fizeram com que o jovem abandonasse seu posto sem a menor desconfiança.
- Incômodo algum, Christine é nora de um velho amigo, a acompanharei
com prazer.
- Grazie mille. – Agradeceu e saiu.
- Espero que consiga, cobrei um bocado de favores para te dar essa
oportunidade. – Falou o cardeal enquanto começava a correr os olhos pelas
prateleiras.
Christine apenas balançou a cabeça, pondo-se logo a olhar para todos os
lados também.
Mesmo com os mais de oitenta quilômetros de arquivos distribuídos
pelos corredores, após a confirmação do arquivista, não foi difícil para eles
encontrarem os documentos trancados de alguns papas, entre eles Pio XI, o qual
procuravam.
Sem tempo a perder, Christine foi logo retirando as ferramentas e
rompendo, com extrema destreza, as travas que prendiam as grades em volta da
prateleira de metal, enquanto isso, recebia informações da localização do
arquivista pelo comunicador.
Apesar do certo frio que fazia no local, devido a temperatura ser
controlada para retardar o deterioramento de alguns documentos, as mãos da
historiadora suavam.
Ela só pode estar brincando! Pensava Genaro um tanto indignado ao
ver como a moça lhe dava com a situação.
Mesmo colocando as luvas, Christine, consciente da importância de tais
documentos, usava pequenas pinças indicadas para manusear tais raridades,
porém, a pressa e o nervosismo, pediam medidas emergenciais.
Guardou a pinça.
- Até que enfim! Agora posso te ajudar. – Disse Genaro também
colocando luvas.

O tempo ia passando e Christine não encontrava nada sobre a encíclica


oculta ou alguma carta com selo diferente, mesmo averiguando cada selo e lacre
minuciosamente, visando ter certeza que não colocaram outro por cima, como
bem sugeriu seu sogro.
177

Com a ajuda do cardeal, a procura seguia a passos largos, todavia, o


arquivista já havia chegado ao museu onde supostamente o chamaram.

Outra vez dentro do elevador a caminho de uma conversa nada


agradável com seu superior, o capitão, com a mesma cara de decepção, agora
possuía uma companhia diferente.
- Me desculpe mais uma vez capitão, eu vacilei.
- É, mas não foi só você. – Bufou. – Não foi a primeira vez que meu
instinto nos deixou na mão.
- Sua decisão foi lógica. Era incabível pensar que ele seguiria de volta
ao centro da cidade, ainda mais para um lugar que nós já havíamos descoberto.
- Isso me faz lembrar que... – apertou o botão do relógio preso ao seu
pulso e o levou próximo do rosto.
O agente ao seu lado calou-se.
- Sim capitão.
- Brad, me faça o favor de pedir ao pessoal da logística para, pelo amor
de Deus, colocar câmeras de vigilância na 33 da Malala. Internas e externas, eles
sabem.
Sons de digitação.
- Casa número 33 senhor?
- Isso. Me faça esse favor.
- Mas já temos câmeras operando lá, do lado de dentro e do lado de
fora.
- Mesmo?
- Sim. Foram instaladas a dois dias e seguem ativas desde então.
Pela primeira vez no dia o capitão esboçou um sorriso.
- Separe os arquivos delas e mande para mim, do início até o presente
momento. Preciso disso agora.
- Entendido.
- Obrigado Brad. – Antes de encerrar a ligação, o capitão trouxe o punho
de volta a boca – E, mais uma coisa...
Esperou a resposta para ver se o rapaz ainda se encontrava na linha. A
afirmativa veio.
- ...não comente com ninguém que eu solicitei esse material, entendido?
- Entendido senhor.
Olhando para o agente que o acompanhara no fiasco da última missão,
o capitão demonstrava satisfação em seu semblante.
178

- Agora vamos descobrir quem te atacou e se eu de fato perdi o faro.


A porta do elevador se abriu. Assustaram-se ao dar de cara com a pessoa
responsável por tudo ali.
- Bom dia senhores.
- Bom dia douto...
- Acredito que tenham vindo falar comigo.
- Como solicitado. – Respondeu o capitão e acrescentou se aproximando
– Quer ajuda?
- Não, muito obrigado. – Passando o dedo sobre uma tela no apoio do
braço, conseguiu manobrar sem dificuldades a cadeira de rodas. – Térreo.
A porta do elevador se fechou e ele começou a descer.
- Não íamos conversar? – Indagou o capitão.
- Nós vamos.
- Aqui no...
- Um acordo foi feito para reparar os danos. – Nem o deixou terminar.
– A agente Grace foi afastada por um mês, férias por assim dizer.
- Mas ela...
- E, a destruição completa da tal passagem secreta, ou túnel secreto se
preferir, já teve início.
- Mas ainda não analisamos o local. Podem ter mais saídas lá! – O
capitão alterou a voz, não conteve a indignação.
- Lamento, mas esse foi o caminho com menos pedras que encontramos.
- Descobrimos um caminho não mapeado que interligava casas debaixo
do nosso nariz e um agente meu foi atacado em um lugar sob nossa
administração! Acha mesmo que devemos ceder aos caprichos de um
jovenzinho que teve uma parede quebrada? Ele devia era agradecer por ter sido
nós a invadir e não aqueles fanáticos religiosos.
- Hum – expirou junto a fala. – Realmente ele deveria agradecer por ter
sua casa invadida no meio da noite por quem deveria zelar pela segurança de
todos e ter sido eletrocutado por armas que apenas deveriam ser usadas em
criminosos.
Esfregando o rosto com força, usando as duas mãos, o capitão
preparava-se para argumentar quando foi impedido por seu agente.
- Nós entendemos.
A porta do elevador abriu-se novamente.
- Tenho total confiança capitão, que você e sua equipe vão descobrir
quem está enviando as cartas, mas terão que partir do zero de novo. – Terminou
conduzindo a cadeira para fora do ascensor.
179

Vamos sim, mas não do zero.


A porta fechou-se.
- Centro de operações. – Tornaram a subir.

Capítulo 41

Saindo rápido de dentro do Musei Vaticani ao perceber o engano, um


tanto quanto desconfiado, o arquivista tentava ligar para alguém com um
aparelho bem avantajado.
Ai droga! Ele vai chamar a guarda!
Ana responsável por vigiar o arquivista entrando e saindo do museu,
resolveu agir.
- Ei, Ana! O que você está fazendo? – August segurou o máximo que
conseguira o tom de voz.
A jovem senhorita Schmidt, abandonando o posto, aproximou-se do
arquivista e o escutou falando com o chefe da Guarda Suíça, a guarda pessoal
do papa.
Preciso fazer algo.
Fingindo deslumbre, andando distraída, Ana esbarrou com força nele,
derrubando o telefone.
- Mil desculpas, me distraí com tanta arte e beleza! – pegou o telefone
do jovem no chão – Meu nome é Ana…bel, Anabel. Estou meio perdida aqui –
entregou-lhe o aparelho, infelizmente para ela, ainda intacto. – Notei o símbolo
papal em sua jaqueta, teria como o senhor me fornecer algumas informações? –
seguiu tentando atrasá-lo o máximo possível.
- Tem sim, sem problemas. O que precisa?
Ana, momentaneamente, tinha conseguido.
Huginin começou a apressar Christine ao ver a criatividade da jovem
decaindo.
- Cris, se apresse aí.
- Estou fazendo o que posso.
- O que está acontecendo? – Indagou Genaro.
- Nosso tempo está acabando.
180

Ana fez o que pôde, mas o arquivista acabou por encaminhá-la a um


guia e voltou a falar ao telefone.
Com os olhos em um e os ouvidos em outro, a jovem conseguiu uma
informação valiosa.
- Muito obrigado pelas informações – interrompeu o guia no meio da
fala. – Preciso muito ir ao banheiro, com licença. – Mal se virou e já pegou o
comunicador. – Pessoal, acho que ele não chamou a Guarda Suíça.
Após receber o recado um tanto incompleto do arquivista, responsável,
por hora, dos arquivos do Vaticano, o chefe do Escritório Central de Segurança,
nome dado ao antigo Corpo da Gendarmeria, órgão que cuida da segurança
como um todo, menos de sua santidade, começou a caminhar apressado em
direção aos arquivos, só para conferir, e acabara de passar por August.
- Aí pessoal, tenho uma boa e uma má notícia, qual querem primeiro?
- Para de enrolar cara, isso aqui é sério! – falou Huginin exaltado.
- A boa, com toda certeza a boa. – Respondeu seu avô de imediato.
- Ok. A boa é que Ana estava certa, o rapaz não acionou a Guarda Suíça.
- Ótimo! – disse Huginin aliviado.
- A má – continuou August – é que tem um homem de terno, com cara
de poucos amigos se dirigindo apressadamente para os arquivos.
- Gendarmeria! – exclamou Huginin e mantendo a agitação se dirigiu a
esposa:
- Saia daí Christine, acabou o tempo! A carta deve estar em outro lugar!
Saia daí agora!
Christine, ao escutar a afobação do marido, começou então a guardar os
arquivos e pediu a Genaro para se dirigir à entrada com a desculpa de ir ao
banheiro ou sei lá, algo para não ser pego, caso o chefe da Central de Segurança,
que já se aproximava do estacionamento dos funcionários, chegasse.
Assim o cardeal fez, mas não com intuito de tirar o seu da reta, mas sim
para tentar atrasá-lo e salvar a pele de Christine.
- Essa não! Vão prender um cardeal por nossa culpa! – lamentou Ana –
Nós vamos para o inferno.
Quando o encontrou na entrada, Genaro foi sereno e convincente com a
normalidade da situação.
- Bom dia Matteo. Em que posso ajudá-lo? – perguntou em italiano.
- Apenas visita rotineira, só para verificar se está tudo bem. – Andando
pela sala de recepção e olhando tudo a volta, perguntou – Onde está a mulher
que o acompanhava?
181

- Ainda não terminou a pesquisa, precisei ir ao banheiro. Sabe como


essas coisas de historiador são demoradas.
- É, sei sim.
Christine já havia acabado de guardar os documentos e lacrar as grades,
de uma forma não tão perfeita como gostaria, mas seria o suficiente para sair
dali. No entanto, para delírio de todos, falou ao comunicador:
- Tive uma ideia, vou precisar de um pouco mais de tempo.
Todos, no lugar onde estavam, arregalaram os olhos.
- Você não tem mais tempo Christine, vai acabar sendo presa! Saia logo
daí! – esbravejou seu marido.
- Desculpe meu bem, mas não teremos outra oportunidade dessa. –
Retirou o ponto.
- Não faça isso Christine! Não faça isso!
Tarde demais, ela não estava mais ouvindo.
Genaro, ao perceber que Christine ainda não havia terminado, tentou
prolongar a conversa e atrasar ainda mais o guarda, com uma tranquilidade
inabalável.
- Já esfriou hein?
- É, um pouco – respondeu esticando o pescoço com o olhar passeando
pelos corredores.
- Terei que vestir mais roupas para fazer minhas caminhadas agora.
- Se quiser suar pelo menos um pouco, terá que vestir muitas mesmo. –
Sorriu, ainda com o olhar distante.
- Uma prova disso é o nosso estacionamento, não é? O pessoal está
vindo cada vez mais de carro e esquecendo o aquecimento global e os exercícios,
não é mesmo?
- De fato, porém hoje está vazio – seguia inquieto – poucos carros e
ninguém deve chegar por agora, já que a turma da manhã está toda em serviço
desde cedo e não temos programações chamativas pra já. – Matteo acompanhava
de perto todas as atividades dentro do território do Vaticano.
O cardeal manteve a conversa o máximo possível, conseguindo entreter
o chefe da guarda por vários minutos, no entanto ele decidiu entrar, só para
conferir se estava tudo bem.
O momento ficou crítico, se entrasse agora, o oficial ia pegar Christine
cometendo uma violação gravíssima, pois a ideia que ela havia tido, consistia
em abrir documentos de outro papa, também trancados por grades, indo contra
as advertências de Huginin e ignorando a apreensão de todos lá fora.
182

Quando o chefe deu seus primeiros passos em direção aos corredores


de arquivos, ouviu-se uma explosão oriunda do estacionamento.
- Ah meu Deus! – gritou Ana que já se dirigia para lá.
Não foi uma explosão de grandes proporções, mas foi o suficiente para
que não só o chefe da antiga Gendarmeria se dirigisse imediatamente ao local,
como também boa parte da Guarda Suíça.

Capítulo 42

O pequeno dispositivo explosivo, ao que tudo indicava, parecia estar no


chão e apesar do estrondo, atingira apenas dois veículos que ali se encontravam.
Mesmo explodindo em uma área pouco movimentada, a agitação levou
bons minutos para ser contida.
- Ei, vovô! O senhor não disse nada sobre explosões para nós! – August
se aproximou assustado.
- É porque não tinha – respondeu tão surpreso quanto o neto.
- Está dizendo que essa explosão não era parte do plano? – Até Huginin
sentiu o coração voltar a disparar.
- Pelo menos não do nosso plano.
- Como assim BO? – Rudolph também se achegara, partilhando da
mesma preocupação.
Wilson ofegante, olhava em volta.
- Alguém, por algum motivo colocou aquela bomba lá e não foi nenhum
dos nossos.
- Meu Deus! – Ana com as mãos na boca, indo na direção contrária à
um pequeno grupo de turistas alarmados, aproximava-se dos demais.
A suspeita inicial foi de atentado, por isso o complexo protocolo de
segurança criado após o incidente com o atual Papa, João Paulo II, foi seguido
à risca.
Proteção ao sumo pontífice. Evacuação controlada.
Depois de muita movimentação e precauções protocolares, conseguiram
abafar o caso e tranquilizar a todos, inclusive, a versão passada para a imprensa
foi a de um pneu que estourou, e como não haviam encontrado ninguém que
presenciara a explosão e o pós estrondo foi rapidamente controlado, ficou por
isso mesmo.
183

Depois de mais de duas horas desfizeram o perímetro, só então um dos


guardas se dirigiu aos arquivos para retirar o cardeal e Christine, que já haviam
informado aos seus que estavam bem.
Todos os fiéis daquela área foram retirados, e os prédios próximos ao
estacionamento foram fechados. As demais atividades continuaram
normalmente, exceto pela presença de todo contingente de oficiais da
Gendarmeria espalhados pela cidade.

- Nossa, o que foi isso hein? Fiquei tão surpreso quanto alguns europeus
na Idade Média ao ver de perto o efeito da pólvora, há muito já usado na China
e nas armas dos árabes. – Disse Rudolph querendo enfatizar o susto, aliviar o
clima e abrir a conversa de modo mais tranquilo entre todos no quarto do hotel,
pois desde a saída do Vaticano, ninguém dissera uma só palavra.
Mesmo com o comentário, pesados segundos insistiram em manter o
silêncio.
O Sr. Dunkeld era pura reflexão, nem os cochichos com seu velho amigo
ocorreram após o incidente.
Huginin, diferente da versão mais madura conhecida por August, já
havia tomado duas xícaras de chá a fim de se acalmar e mesmo assim parecia
estar no limite.
- Christine, agora que estamos mais calmos, – respirava – você poderia
nos explicar que diabos aconteceu lá embaixo? – perguntou, começando a fala
de forma tranquila, mas exaltando-se e pronunciando a última oração de forma
lenta e nervosa, quase uma separação silábica.
- É verdade Christine, ficamos muito preocupados, você poderia ter sido
presa. – Completou o Sr. Holister de forma serena tentando contemporizar a
conversa.
- Acalmem-se, o pior já passou e eu estou bem – dizia ela do jeitinho
que August se lembrara, cativante. – Agradeço muito a preocupação e peço
desculpas por não ter seguido o plano e colocado vocês nessa situação.
Todos a encaravam e ela, por sua vez, corria os olhos em cada um
demonstrando sinceridade em suas palavras, e ao fim, fixando-os em seu
marido.
- Tudo bem Cris, apenas nos dê uma explicação.
184

Huginin ficara visivelmente mais calmo, porém o medo que sentira ao


ver sua recém-esposa em uma situação como aquela, não o deixou sair da
postura séria em que estava. Aquele abraço e aquele beijo quando se
encontraram assim que ela saiu dos arquivos, já havia deixado bem claro o
quanto ele a amava, todavia, agora na cabeça dele, era hora de ressaltar sua
indignação por ela ter se exposto a tamanho risco.
- Certo, vou explicar o que me levou a ficar além do programado e a
arriscar desse jeito, tenho certeza que vão entender.
- Duvido muito que algo vá justificar o aperto que você nos fez passar,
mas prossiga. – Caso a postura não tivesse passado a mensagem necessária, a
fala com certeza a transmitiu.
Ela sorriu, primeiro, feliz por ter alguém que a ama e cuida, e segundo,
por achar engraçado os trejeitos de Huginin quando fica nervoso.
- Quando vocês me informaram sobre a proximidade do guarda, indo
em direção aos arquivos, comecei os preparativos para sairmos, arrumando os
documentos do Papa Pio XI e fechando as grades, exatamente como o planejado.
No entanto, ao ver os documentos do Papa Pio XII trancados ao lado, me lembrei
que exatamente no ano de 1939, no início de seu pontificado, se iniciaram as
buscas pelos restos mortais de São Pedro nas catacumbas, descobertas naquele
ano embaixo da Basílica, me levando a pensar então, que tal informação poderia
ser oriunda do futuro, visto que durante tantos anos ninguém as havia
encontrado, e como já estava ali, decidi verificar os documentos dele também.
- É uma teoria maravilhosa meu bem, mas não justifica meu quase
infarto.
- Ah não? Então olhe só. – Retirou um envelope da bolsa e mostrou a
eles.
Queixos caindo.
- Incrível! Ela conseguiu! – Bradou o Sr. Holister espantado.
- É um selo ESCARAVELHO, significa que esta carta é de fato uma
das que procuramos! – Comemorou Ana se inclinando em direção ao envelope
para vê-lo melhor.
- Cristine minha nora querida, você é demais! – O lacre brilhante com o
desenho em alto-relevo de um símbolo egípcio, fez o velho Dunkeld focar em
algo fora de sua mente.
- Obrigada querido sogro. Então senhor emburrado, o que me diz? –
perguntou olhando para o marido com um enorme sorriso estampado no rosto.
Huginin não conseguiu segurar o riso de satisfação.
Agora sim! Esse é o meu pai.
185

- Bom, apesar de ter nos feito arrancar os cabelos e colocar toda a


operação e a vocação de um cardeal em risco, estou orgulhoso de você meu bem.
Parabéns! – respondeu abraçando a esposa novamente – Agora, deixe-me ver
essa preciosidade.

Capítulo 43

Alguns cumprimentos e comemorações a mais e desceram para comer,


afinal a ansiedade tinha ido embora e apesar de, mais uma vez, ter passado
bastante da hora do almoço, em Roma não faltam bons restaurantes abertos o
dia todo.
Na procura por um lugar agradável para relaxarem e reporem as
energias, August e seu avô ficaram um pouco para trás em relação ao grupo,
propositalmente é claro. August queria ouvir uma história.
- Como prometido, vou lhe contar o fato ocorrido com Genaro
responsável por sua inspiração repentina ao celibato e seu desejo de alcançar a
paz espiritual.
- Sou todo ouvidos.
- Eu, não sei como isso vai te ajudar a voltar para o seu tempo, mas...
- Diretamente não vai, no entanto gosto de conhecer as pessoas, o que
as motiva, as fazem seguir em frente.
Foi uma boa resposta, suficiente para convencer seu avô a continuar,
porém, essa era mais uma daquelas frases prontas que August usava para fugir
do real motivo que o levara até a conversa. Este, em especifico, era matar a
saudade de ouvir seu avô contando para ele mais uma história.
Ah vovô, que saudade!
- Trabalhávamos na Guardiões, e como sabe eles não são a organização
filantrópica que pensávamos, por isso saímos – respirou pesaroso. – Todavia,
186

até a decisão de nos desligarmos totalmente, participamos de muitas buscas


que... não são motivo de orgulho para nenhum de nós.
- Sem problema vovô, entendo que foram enganados. Acredito que o
motivo de vocês era nobre.
Seu avô cerrou os lábios em uma expiração.
Você nem imagina o quanto meu neto.
- Por favor, prossiga.
- Certo. Nós, não sabíamos da finalidade de todas as atividades, foi um
erro grave que cometemos e hoje vejo isso, mas na época não, e sendo assim,
apenas servimos de peões em algumas buscas.
Diminuíram muito o ritmo da caminhada e agora já estavam dezenas de
metros atrás do outros.
- Mesmo, como eu disse, sem saber o todo da situação, Genaro se culpa
até hoje por um acontecimento na Bolívia, um país na América do Sul lar de
tribos Incas na antiguidade, onde possivelmente se encontrava uma carta do
período da colonização rastreada por nós.
August chegou a parar, induzindo seu avô a fazer o mesmo. Estava
vidrado na história.
- Atuávamos em setores diferentes: eu, nas buscas e rastreios, RH no
transporte e às vezes me auxiliando nas buscas e ele na equipe de apoio,
responsável pela logística e todos os equipamentos necessários para efetuarmos
as missões.
- Bem estruturado hein?
- Bastante. A Guardiões tinha recursos inimagináveis para a época –
trouxe a mente o fundador e líder dela até hoje. – Na Bolívia, chegamos a um
impasse. O prédio antigo onde suspeitávamos ser o local onde a carta estaria,
era controlado e utilizado por traficantes, os quais não aceitaram de nenhuma
maneira nossa presença por lá, nem mesmo quando oferecemos dinheiro.
- Sério? Estranho recusarem dinheiro, não?
- Pois é. Para eles era questão de poder, estavam ali a anos e todo mundo
sabia, até as autoridades locais, porém, ninguém nunca fez nada para os tirar
dali, por isso a resistência.
- Barra pesada.
- Muito. Holi, Genaro, eu e outros dois agentes fomos embora e
relatamos a inviabilidade de outra missão, muito devido as ameaças que
sofremos.
- Sua vida foi bem agitada hein!
187

- Muito meu jovem, muito... e continua sendo – sorriu travesso,


arrancando gargalhadas de August.
- É verdade.
- Enfim, na semana seguinte, utilizando os dados que havíamos
recolhido, a Guardiões decidiu usar a força. Só ficamos sabendo pelos
noticiários. – Seu avô fechou os olhos e respirou fundo. A expressão jocosa
havia se desfeito.
- O que houve? – insistiu August, mesmo sabendo que falar sobre aquele
assunto o incomodava.
Seu avô, no entanto, não hesitou.
- Uma grande explosão ocorreu no prédio onde estivemos,
transformando-o em ruínas e matando dezoito pessoas, entre elas quatro jovens
e uma criança de apenas nove anos.
August engoliu seco.
- Mas não foram vocês, não tiveram culpa! Por que Genaro se martiriza
tanto se, sequer sabiam do ataque? – perguntou olhando para os outros ao longe,
já na entrada do restaurante.
Voltaram a andar e o Sr. Dunkeld demorou alguns passos para
responder.
- Porque ele meu futuro neto, – colocou a mão sobre o ombro de August
– é especialista em... artefatos explosivos.
August parou outra vez, agora ficando sozinho no meio da calçada. Com
o olhar perdido por um instante, pensativo, mudou drasticamente a expressão
facial de uma hora para outra, de confusa para, pode se dizer, simpática,
ligeiramente satisfeita.
- Hum! – Expirou.
Em seguida apertou o passo para apanhar seu avô e ambos se dirigiram
à mesa junto aos demais.

- Eu sempre quis saber – introduziu August dirigindo a palavra aos


senhores Dunkeld e Holister – o que motivou vocês a entrarem na agência
Guardiões de Tempo.
Os velhos se entreolharam, em seguida, pai e filho também o fizeram.
Com expressões carregadas pareciam procurar uma resposta. August percebeu
188

logo que o verdadeiro motivo, não seria revelado ali, agora, mesmo assim
insistiu.
- Não acho que foi apenas para otimizar as buscas ou por dinheiro, como
me contaram.
- E, tem razão. Não foi mesmo. – Huginin, mais uma vez não sabia o
motivo de ter que guardar segredo, mesmo assim não contrariava.
Ao responder o Sr. Dunkeld mais jovem fez a mesma expressão que o
neto fizera quando Ana o perguntara sobre o desenho na nota de dez dólares, e
a jovem percebera isso, percebera que o motivo era pessoal, algo triste e pessoal.
Assim, para tentar mudar de assunto e consequentemente o clima, que deveria
ser de festa, a jovem fingiu engasgar-se, alarmando a todos na mesa e
alcançando assim, o seu objetivo. Logo que se recompôs, trouxe novas pautas à
conversa.

Trancado em seu escritório escuro a várias horas, acompanhado por uma


dor de cabeça terrível, Arthur, o atual líder da agência Guardiões do Tempo,
encontrava-se com os antebraços sobre os olhos, deitado no maior sofá do
cômodo.
Batidas na porta.
- Se não for muito importante volte depois!
- Desculpe senhor, mas tenho que insistir. – A voz soou abafada.
Ô inferno!
Levantou com certa dificuldade e seguiu pisando macio até chegar a
porta.
- É melhor que alguém esteja morrendo, ou...
O agente nem esperou o velho terminar de falar. Entrou, ligou a TV e
inseriu uma fita no videocassete.
- Eu estou com uma baita dor de cabeça, não podemos deixar... – Desta
vez, foi o próprio Arthur que cortou sua fala ao meio. – Isso é a Mamertinum?
- É sim senhor.
- Ainda não acredito que conseguimos colocar uma câmera lá.
- Tivemos ajuda.
- É eu sei, mesmo assim pensei que morreria sem que ela me desse
resultado.
- Na verdade senhor, ela não nos deu resultado em si, pelo menos ainda
não. – O agente falava enquanto avançava o vídeo.
- Espere! O que foi isso?
189

- Foi uma confusão com um vendedor de balões sem noção mais cedo.
Mas o que quero mostrar ao senhor, foi o que veio depois que as bexigas foram
retiradas.
O vídeo avançou sem nenhum movimento por alguns segundos.
- A prisão foi fechada?
- Foi sim. Marco levou os baderneiros para a delegacia. Agora, o senhor
não vai acreditar quem entrou sozinho lá depois. – Congelou a imagem.
Na tela agora, surgira o melhor enquadramento possível para a
identificação de um homem de preto, que entrou na prisão Mamertina, olhou
rapidamente para os lados e saiu após se agachar e tocar uma das paredes em
um determinado ponto, no que parecia ser uma fresta, bem próxima ao chão.
- Quem é esse homem?
- Olhe de perto senhor.
- Não é possível. – Arthur o reconheceu.
- É sim, já verificamos. O problema é que, apesar de saber exatamente
onde procurar, ele não encontrou a carta.
Arthur seguia vidrado na tela, agora, como se sua dor de cabeça tivesse
desaparecido, trazendo um satisfatório sorriso.
- Ele encontrou sim.
190

Algo mais
Mais uma refeição agradável, característica típica daquele pequeno
grupo social, seja em qual tempo for, aliás, aspecto que deveria ser seguido pelo
menos em parte, por todos, visto o enorme prazer e bem estar que tal programa,
desfrutado em toda sua essência, proporciona.
Paralelo ao momento de descontração, conversaram sobre esportes,
demais futilidades, como todo mundo, e decidiram o que seria feito a partir dali.
Sem esquecer, é claro, do principal assunto que esteve em pauta: o conteúdo da
carta que conseguiram nos Arquivos Secretos do Vaticano.
Como brilhantemente deduziram, o conteúdo da carta tratava-se
realmente de uma mensagem para o Papa Pio XI, sem remetente, apoiando-o em
sua iminente decisão de se posicionar contra o nazismo e o fascismo, mesmo
que isso implicasse em rompimentos de relações com a Alemanha e com a
“recém amiga” Itália, além de informar sobre o cemitério encontrado abaixo da
Basílica de São Pedro, que de certo modo, é a base de fundação da própria Igreja
Católica.
Busca concluída. Vamos à próxima.
Os pais de August por ainda possuírem assuntos a tratar na Itália e por
não saberem do iminente fim do mundo, ficariam, os demais partiriam para
Lisboa à procura da outra carta.
Aproveitaram a companhia um do outro o resto da tarde e noite, e na
manhã seguinte viajaram para a terra que deixou Gonçalves Dias infeliz em sua
Canção do Exílio, porém, foi mistificada e exaltada com todo esplendor por
Camões em Os Lusíadas.

21 de setembro de 1984

Como a ociosidade não agradava a nenhum deles, durante toda a viagem


o debate sobre onde a carta poderia estar foi constante, todos se esforçando para
sempre trazerem para a discussão um fato histórico mal explicado ou misterioso,
ocorrido no ano ou próximo de 1502 e que envolvesse motivos religiosos.
Mesmo com consideráveis especificidades, ainda era uma procura
extremamente difícil. Mais uma vez, apenas reduziram um pouco o palheiro,
191

mas a agulha continuava sendo pequena, muito pequena, e talvez nem estivesse
mais lá.
Por que sempre uma agulha?
- Uma boa forma para começarmos a elaborar as hipóteses é juntar
informações do contexto histórico envolvendo a cidade de Lisboa na época, –
sugeriu August e continuou o raciocínio – assim sendo, temos como plano de
fundo as grandes navegações, culminando na descoberta do Novo Mundo e
início do processo de colonização. – Seguia sempre gesticulando. – No aspecto
religioso, podemos manter o foco total na Igreja Católica, visto que as
contestações de Lutero, base da reforma religiosa, só iriam acontecer quinze
anos mais tarde na Alemanha, confirmando cada vez mais a nossa tese, de que
o grupo responsável por tal sabotagem nesse programa envolvendo o
desenvolvimento das cartas, é de fato de cristãos, especificamente, cristãos
católicos.
- Concordo. O expansionismo da religião católica para terras de além
mar é um ótimo motivo para enviar uma mensagem de apoio ou com dicas,
quem sabe, para a tal promoção do evangelho, como eles mesmo dizem. –
Concordou Rudolph.
- Certo, então o que temos de concreto em relação a fatos possivelmente
alterados ou pretendidos pelos ativistas religiosos do futuro nesse contexto? –
perguntou Ana.
- Precisamos fazer como da última vez, pôr para fora toda e qualquer
hipótese, por mais maluca que possa ser, para tentarmos juntar peças e montar
esse quebra-cabeça, mesmo nos levando a perder tempo com tentativas errôneas.
É a melhor opção. – Acrescentou o Sr. Dunkeld.
- Certo, então, pra começar, que tal Vasco da Gama? – sugeriu Ana.
- Pouco provável – respondeu o Sr. Dunkeld, argumentando na
sequência – Nesta época ele já havia contornado a África e chegado a Índia,
fundando inclusive a colônia portuguesa de Cochim, onde foi sepultado na igreja
de São Francisco em 1524, quando fazia sua terceira visita àquele país. Só
depois seus restos mortais foram traslados para Lisboa. – O segredo das buscas
eram os detalhes, toda informação podia ser útil. – Além do mais, as viagens
desse grande navegador, chegando a se tornar vice-rei da Índia, eram puramente
de interesse comercial. Mesmo tendo, de certa forma, influenciado muitas
colônias a aderirem ao catolicismo, estabelecer uma rota de comércio
potencialmente lucrativa por aqueles mares, sempre foi seu principal objetivo.
- De fato. Os navegadores do Novo Mundo devem ser nosso foco
principal, até porque para os ativistas seria muito mais interessante estabelecer
192

contato com eles, do que com seus antecessores. – Raciocinou Ana


concordando. – E quanto ao primeiro deles, Colombo? Estudei sobre uma
possível viagem à Portugal feita por ele, antes de ir à Espanha, onde “reis
católicos” – fez o sinal de aspas com as mãos para enfatizar – financiaram sua
empreitada.
- Entendo seu raciocínio, mas – Wilson se pôs a explicar prontamente –
Colombo não se lançou ao mar para espalhar a fé predominante na Espanha,
queria apenas descobrir uma nova rota comercial para as Índias, assim como
Vasco da Gama, porém não encontrou apoio em sua terra natal, pois os italianos
já controlavam as rotas do Mar Mediterrâneo e não tinham interesse em
conseguir novas, por isso procurou auxílio com os espanhóis.
- Mas ele poderia ter recebido uma carta em Portugal o informando
sobre a existência de um novo continente, cujo os habitantes deveriam ser
catequizados, não? – insistiu ela sem dar chance de resposta dessa vez – E
mesmo que não tenha levado a questão da religião a sério, só o fato de descobrir
novas terras devia tê-lo inquietado, a ponto dele iniciar uma viagem,
praticamente, sem a menor certeza do ponto de chegada, algo que se ele tiver
feito sem tal aviso ou informação, mesmo sendo um brilhante navegador e
grande observador como era, faz dele um homem muito corajoso, onde tamanha
coragem beira a irresponsabilidade, quem dirá a loucura.
August era pura satisfação ao ouvir Ana falar. Em alguns momentos,
nem prestava atenção no que a jovem dizia, apenas apreciava o tranquilizador
tom de sua voz.
- Tudo isso faz muito sentido senhorita Schmidt, porém a informação
sobre a estadia de Colombo em Portugal é de procedência mais que duvidosa,
envolvendo piratas e naufrágios, e mesmo se tivesse ocorrido e se Colombo
tivesse planejado sua viagem lá, isso aconteceu anos antes da carta, entre 1476
e 1485, tornando o fato inviável de acordo com a data que nos foi passada. –
Argumentou o Sr. Holister.
- Mas... e se partirmos da premissa de que a data nos foi passada errada,
ou de um possível redirecionamento? – Persistiu.
- Então minha jovem, teríamos que criar hipóteses ponderando mais de
mil anos de história da Igreja. – Completou o Sr. Holister com um vasto e
acolhedor sorriso.
- Tem toda razão, essa foi uma péssima hipótese – disse Ana esfregando
os olhos e respirando fundo. – Talvez seja o cansaço – um sorriso amarelo lhe
mudara a feição. – Vou dormir um pouco, podem continuar sem mim. –
193

Completou ela abatida, encaminhando-se para um par de poltronas vazias no


fundo do avião.
Antes da jovem lá chegar, August sem se importar com os outros
passageiros gritou:
- O que acha da hipótese da Ana Bolena? Suspeita-se que ela tenha
nascido em 1503!
Ana se virou e sorriu, mais por obrigação para não constrangê-lo, depois
continuou seu caminho.
Sem entender o comentário do neto, seu avô perguntou:
- O que tem a ver Ana Bolena, ou melhor, seu nascimento na Inglaterra,
com a nossa carta de Lisboa?
- Absolutamente nada. Foi apenas uma piada para tentar levantar o astral
dela, mas parece não ter funcionado. – Respondeu preocupado olhando para
Ana, até perdê-la de vista. – Ela aparenta ser muito forte, mas tenho certeza que
sente saudade de casa e por mais que não demonstre, está insegura e com medo
do futuro.
- Quem não está meu rapaz? Quem é que não está? – comentou Rudolph
mais em tom de afirmação do que propriamente de pergunta.
- Por que não vai fazer companhia a ela? – sugeriu seu avô –
Continuamos depois.
Sem responder, dando de ombros e olhando disfarçadamente para o
fundo da aeronave, August se acomodou na poltrona, apoiou a cabeça e fechou
os olhos, enquanto as palavras proferidas por seu avô pareciam ecoar
repetitivamente em seus ouvidos. Vai fazer companhia a ela.

Capítulo 45

August se levantou, tomou coragem e foi em direção a Ana, que deitada


de forma encolhida, ocupava as duas poltronas da fileira lateral. Sentou-se na
poltrona de trás, ao lado de uma senhorinha com feição acolhedora, que
percebeu a timidez e a insegurança do rapaz.
- Vai lá! Seja carinhoso e mostre a ela seus sentimentos.
Ouvindo isso, um pouco assustado até, August sentiu um impulso
elétrico irradiando por todo seu corpo, fazendo-o levantar e se aproximar de
Ana.
194

Após admirá-la dormir por alguns segundos, ergueu lentamente sua


cabeça e tronco para conseguir se sentar e apoiá-los em seu colo atlético e
pulsante. Estava quase conseguindo quando ela despertou.
Meio assustada, a jovem ergueu-se sozinha e olhou diretamente para
August. Percebendo sua intenção, ela mesma deitou sobre ele, puxando seus
braços para cobri-la, a envolvendo em um quente e aconchegante abraço. E,
assim ficaram por um bom tempo, ela dormindo e ele a admirando.
Quando a jovem finalmente despertou, August a olhava bem próximo a
seu rosto, conseguindo sentir e escutar sua respiração ao mesmo tempo. Desta
vez o olhar foi mais compenetrado e duradouro, fazendo o coração de August
acelerar ainda mais e suas mãos suarem. Foi se aproximando lentamente do
rosto dela, cada vez mais, e mais...
De repente ouviu-se uma voz estridente e mecanizada, dizendo em
português:
- Senhores passageiros, chegamos ao nosso destino. Bem vindos a
Lisboa.
Com a sequência da voz mecanizada, repetindo a frase em inglês,
August acordou e percebeu que já haviam aterrissado. Olhando para trás no
rumo de Ana, com todos os passageiros se aprontando para sair, recebeu um
simpático sorriso de uma certa velhinha com rosto familiar.

Por estar no meio da tarde, antes mesmo de aproveitarem o hotel onde


ficariam, deixando lá apenas as malas, foram convencidos por August a ir à
Belém, uma freguesia do conselho de Lisboa, provar os tradicionais e deliciosos
pastéis de nata que, no dizer dele, são uma verdadeira “obra culinária típica da
cozinha portuguesa”.
Seguiram de táxi pela extensa Praça Império, passando em frente ao
Mosteiro dos Jerônimos, que por sua extensão e fachada ao estilo manoelino, os
fez lembrar antigas muralhas de proteção das cidades.
Mais a frente, seguindo pela larga autoestrada, passaram por um
cruzamento de carros, pessoas e bondes elétricos, justamente onde o caminho
se estreita, sendo tomado por calçadas de pedras dos dois lados e mesas bastante
convidativas.
195

Como se fosse a recepção de uma pensão, com duas portas abertas no


andar de baixo de um casarão de três andares, a “Única Fábrica dos Pasteis de
Belém”, estava lotada, o que não fugia a normalidade.
A multidão quase os intimidou, mas August estava determinado.
Após alguns minutos conseguiram e agora, degustando esses famosos
pasteis debaixo das frondosas árvores da Praça Império, continuaram a conversa
sobre o paradeiro da carta.
- Agora descansada, acredito que minhas ideias serão melhores
aproveitadas daqui em diante. – Disse Ana sorrindo.
- Então seja bem-vinda, nova senhorita Schmidt. – Brincou o Sr.
Dunkeld querendo deixá-la confortável.
- Seria essa a Ana 2.0? – acrescentou August entrando na brincadeira.
- Certo, certo. Acho que mereço isso – respondeu ela se divertindo. –
Agora, como eu dizia, acredito que minhas ideias serão melhores, portanto,
respeitando a cronologia da carta, podemos excluir Pedro Álvares Cabral e a
incógnita que o acompanha a respeito da intencionalidade de sua creditada
descoberta, e até mesmo o motivo que o qualificou a se tornar Capitão-mor de
uma frota tão bem equipada, composta por treze navios, cujo o objetivo principal
era efetuar uma viagem à Índia pela rota estabelecida pelo navegador já citado,
Vasco da Gama.
- Olha ela aí! – comentou August eufórico, arrancando um sorriso da
jovem, porém, sem conseguir tirá-la do foco.
- No entanto, um escritor, antes vereador da cidade do Porto que o
acompanhou nesta viagem, ficando conhecido principalmente por redigir uma
carta ao rei da época, D. Manuel, descrevendo as belezas da nova terra, mereça
um olhar mais cuidadoso – comentava a jovem segura do que dizia. – Durante
alguns séculos, esta carta permaneceu na obscuridade, como se não existisse,
até ser divulgada no século XIX, apenas no século XIX! – enfatizou – Levando-
me a suspeitar que outras cartas escritas posteriormente por Pero Vaz de
Caminha, possam ainda estar esperando alguém as encontrar ou revelar.
- Como você sabe tudo isso? – O Sr. Dunkeld nem tentou escondeu a
surpresa.
- Digamos que sou curiosa e no futuro, como August disse, tem muito
material de estudo disponível – respondeu simpática. – Mas os detalhes, eu só
consegui decorar porque estudei a fundo o processo de colonização portuguesa.
Particularmente eu preferia a espanhola, mas o meu grupo ficou com essa, não
teve jeito.
196

- É, você é uma caixinha de surpresas – completou Wilson ainda


impressionado.
- Mas por qual motivo os ativistas religiosos escreveriam uma carta para
Pero Vaz de Caminha? – indagou seu parceiro dando sequência no assunto.
- Para que ele exaltasse a nova terra e alertasse sobre a urgente
necessidade de catequização dos nativos, tendo em vista que por essa época, as
finalidades comerciais tinham destaque. – Respondeu a jovem.
- Pela sua colocação, está sugerindo que boa parte da disseminação do
catolicismo no Brasil, religião que ainda hoje possui um número vasto de
adeptos naquele país e em toda a América, foi devido a uma das misteriosas
cartas que procuramos? – perguntou o Sr. Holister com um olhar curioso sobre
a jovem.
- Não, claro que não. Esse foi um processo envolvendo coroas e grandes
nomes da História, no entanto, a possibilidade de ter existido influência, mesmo
que apenas em Caminha, precisam concordar, é de se levar em conta.
- Vejam só o que um cérebro descansado é capaz! – foi a vez de Rudolph
brincar com Ana – Muito boa ideia senhorita Schmidt, por onde sugere que
comecemos as buscas? – perguntou olhando para os demais, se levantando e
alongando o corpo.
- Por favor, me chame de Ana – disse descontraída. – Aí está o
problema.
- Hum? – August a fez continuar.
- Eu não sei onde se guarda esse tipo de documento aqui em Portugal –
sorriu sem graça.
August e Rudolph a acompanhavam nas risadas quando Wilson tomou
a palavra.
- Mas eu sei. – Seu sorriso escancarado chegava a jogar a modéstia para
escanteio. – Mesmo com poucas possibilidades de encontrarmos tal documento
lá, dando sopa, o passo inicial seria pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
onde, no mínimo, conseguiremos mais informações.
- Maravilha! Pouca possibilidade é tudo que precisamos! – August bateu
uma palma demonstrando sua animação.
Assim, com a barriga cheia e a concordância de todos, era hora de
arregaçar as mangas novamente e voltar ao trabalho. O tempo não descansa.
197

Sozinho, sentado em uma das salas de vigilância do Centro de


Operações, o capitão assistia ao recorte do vídeo da sua fracassada última
missão pela décima quarta vez.
A transmissão seguia em câmera super lenta, quadro a quadro na parte
final do vídeo solicitado.
O garoto perseguido entrava de repente na casa e seguia para o andar de
cima, onde foi enquadrado por outra câmera. Momentos depois, o agente, que
na operação foi chamado de Três, aparece no canto da imagem e segundos
depois vai ao chão com um golpe na cabeça.
Quem é você?
- Ainda aí capitão? – O agente que aparecia caído na imagem retornara
à espaçosa sala.
- Preciso descobrir quem é esse cara. Ele entrou e saiu da casa sem entrar
no campo de captura de nenhuma câmera – olhava para uma pequena fração da
tela que ampliara a partir de pequenas janelas abertas do vídeo espalhadas pelo
monitor. – O que temos dele é só essa sombra, parcial ainda.
Passando por algumas bancadas repletas de monitores e outros
equipamentos tecnológicos, o agente aproximou-se para ver a imagem
destacada.
- Ao que tudo indica, ele conhecia todos os pontos cegos do sistema.
- Com certeza e mais, desde a confirmação que esta casa foi usada para
enviar uma carta, instalaram nela um alarme, que esse cara – chegou a apertar a
tela com o dedo – desativou.
- É capitão, neste caso só tem uma resposta lógica...
O olhar do capitão transparecia seu ódio.
- Esse jovem Aquila ou Erick, – continuou o agente – teve ajuda de
alguém daqui – olhou em volta –, daqui de dentro, de alguém que conhece o
sistema e tem acesso aos protocolos.
- É isso – levantou-se bruscamente. – Temos um infiltrado, talvez até
mais de um.
198

Presente de um grego
Através das janelas do táxi era possível observar a bela Lisboa, onde a
estrutura urbana une o clássico e o moderno em perfeita harmonia, prendendo a
atenção de quase todos, quase todos, pois mesmo sentado no banco da frente
bem ao lado do motorista que explicava, em inglês, cada curva da estrada ao
melhor estilo guia turístico, August apenas pensava naquele sonho tão real que
tivera no avião, passando os olhos na jovem Ana Schmidt várias e disfarçadas
vezes pelo retrovisor lateral.
O Arquivo Nacional da Torre do Tombo, antigamente designado por
Arquivo Geral do Reino, popularmente referido apenas como Torre do Tombo,
é uma unidade orgânica nuclear da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das
Bibliotecas que se constitui como arquivo central do Estado Português desde a
Idade Média, tendo os seus primeiros Guardas-Mores sido, também, Cronistas-
Mores do Reino.
Com mais de 600 anos, a Torre do Tombo é uma das mais antigas
instituições portuguesas ainda ativas.
Neste belo e hoje moderno prédio, poderia se encontrar a segunda e
almejada carta com o selo ESCARAVELHO citada pelo LHC, pelo menos
assim eles acreditavam. História, documentos e informações transbordavam
naquele lugar.
Com passe de estudiosos, graças ao nome Dunkeld, tiveram livre acesso
aos documentos, sendo possível assim pormenorizar a história de Portugal.
- Nossa! É muito papel! – A jovem Schmidt ficara impressionada.
Tendo a sorte novamente a favor deles – ou nem tanto, visto que o
assunto é por obrigação um conhecimento nacional – por ali se encontrava um
historiador, perito em Grandes Navegações, em especial na viagem de Cabral as
Índias em 1500, na qual, por assim dizer, descobriu o Brasil.
Homem alto, de aparência impecável. Usava óculos pretos
arredondados e trajava esporte fino, parecia pronto para dar uma palestra. E, se
aproveitaram disso.
- Com licença senhor – Ana fez a abordagem. – Poderia nos ajudar com
uma pesquisa? Não sabemos nem onde procurar.
O homem, com a função de ser uma espécie de guia turístico do lugar,
abriu um sorriso tão largo, que todos perceberam que horas seriam pouco.
199

Entre outras informações importantes que receberam, uma em


específico os deixou bastante desanimados.
Foi o mesmo que ouvimos sobre Paulo. Pensava August mantendo a
esperança.
De acordo com o historiador, não há indícios sobre cartas perdidas de
Caminha e mesmo que houvessem não seria possível encontrá-las devido as
inúmeras mudanças de local a qual os documentos foram submetidos.
Infelizmente após essas informações, restaram a eles apenas a
elaboração de novas hipóteses, intensificadas pela oportunidade de estudarem
minuciosamente as navegações portuguesas da Era dos Descobrimentos e seus
inúmeros navegantes a serviço da coroa, afinal, já estavam no local onde tudo
isso se encontrava registrado e tinham um Google ambulante para esses assuntos
junto a eles.
Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães, Afonso de Albuquerque,
Fernão de Noronha. Estudos se desenrolavam sobre esses e outros, todos
portugueses, além do italiano Américo Vespúcio, que trabalhou também a
serviço do Reino da Espanha e que apesar de não ser na realidade o descobridor
do continente, acabou sendo homenageado como tal, tendo seu nome utilizado
para nomear as terras do Novo Mundo.
A história lhes saltava aos olhos.
O historiador que os acompanhava, também responsável pelo lugar,
havia deixando-os a sós para pesquisarem à vontade, o que durou pouco. Alguns
minutos depois de sair, retornou trazendo um envelope nas mãos.
Aproximando-se de August e lhe entregando o dito pacote, disse:
- Um homem identificando-se com uma sigla, a qual já não me recordo...
– coçou a cabeça – mas está escrito aí, pediu que lhes entregasse.
O homem guarda tudo enquanto é data na cabeça de séculos atrás e
esquece uma mera sigla que escutara a poucos segundos. Pensava August
esforçando-se ao máximo para não fazer nenhuma expressão que transparecesse
tal ironia.
Um arrepio fora sentido pelo jovem. O envelope lhe era estranhamente
familiar.
Abrindo-o e analisando o conteúdo por alto, August ajeitou os óculos,
inquieto.
- Onde ele está?
200

O jovial funcionário hesitou diante do tom de voz apresentado pelo


rapaz.
- Então, onde ele está? – insistiu.
- Em um carro preto estacionado próximo à entrada. – Respondeu
desconfiado.
August tentou olhar para fora do prédio de onde estava. Nada avistou.
- Algum problema?
- Poderia chamar um táxi para nós e pedir que espere na rua lateral
pronto para sair por favor? – pediu reduzindo o tom de voz e tentando ao
máximo manter a calma, um pouco tarde para tal.
- Naturalmente, mas... sem querer me intrometer, aquele homem
representa alguma ameaça? Porque posso avisar a segurança da Torre se
preferir.
- Não, obrigado. Acredito que não será necessário. Apenas o táxi, por
favor. – Respondeu sereno, porém, sem conseguir conter o nervosismo.
O historiador/funcionário da Torre, foi na direção da entrada e fez o que
August lhe pedira.
Antes que retornasse, todos se reuniram próximo a August para saber o
motivo do clima tenso instaurado, porém, não ouviram nenhuma resposta
imediata da parte dele.
- Venham comigo rápido! Explico depois – seguiu em direção as janelas
laterais.
Ao perceber a aproximação do táxi e a ausência momentânea do
funcionário, August quebrou uma das janelas do segundo andar com um
extintor, que enrolou em seu fino casaco meia estação para diminuir o som do
impacto.
- Vamos logo, pulem!
- Você ficou maluco? – Ana arregalou os olhos – Quebrou o vidro de
um prédio patrimonial?
- É com isso que você está preocupada? – Interveio o Sr. Dunkeld – Ele
disse para pularmos!
- Por favor vovô, confie em mim! – August mantinha a expressão
carregada.
Ana lembrava perfeitamente da expressão assustada de August quando
queria pregar uma peça, e desta vez, não era. Correu e com agilidade pôs-se para
fora do prédio, puxando a fila e dando credibilidade ao que o parceiro dizia.
- Ela pulou mesmo? – O avô de August não acreditava.
201

- Largue de vez a aposentadoria BO! – Bradou Rudolph seguindo os


passos da jovem.
- Se demorar, vai levar a culpa pela janela! – Gritou August passando
pela abertura que fizera.
- Droga! Não tenho mais idade para isso!
Assim, um de cada vez, passaram pela janela e seguiram escorregando
pela vidraça inclinada do teto lateral do andar de baixo até chegarem a uns dois
metros do chão, onde saltaram. August praticamente agarrou seu avô no ar,
tentando evitar que ele se machucasse.
- Quero ver me chamarem de Jaque agora! – Bradou Rudolph fazendo
careta.
Quando todos já se encontravam fora do prédio, com os corações
acelerados devido ao drástico aumento de adrenalina desencadeado pelo que
acabaram de fazer, August completou, ainda bastante apreensivo e olhando para
os lados:
- Entrem no táxi, precisamos sair daqui agora!
Demoraram um pouco devido a uma aparente lesão sofrida pelo Sr.
Holister no tornozelo ao cair no chão, após saltar da vidraça inclinada do
primeiro andar.
O homem de feições fortes, vestindo um terno preto sob medida,
responsável por enviar o pacote a August, os viu sair e gritou para que
esperassem, no entanto, August pediu ao motorista gordinho, de bigode e boina,
para arrancar.
O cara de terno escuro, até ameaçou persegui-los a pé ensaiando uma
corrida, mas logo cessou os gritos e deduzindo que não os alcançaria dessa
forma, voltou na mesma pegada em direção ao seu carro.
Como o taxista respeitava a sinalização e o limite de velocidade, em um
piscar de olhos, o belo Kadett preto apareceu no retrovisor.
- Droga! Droga! – Gritou August.
- Para onde? – perguntou o taxista já em inglês. Informação que lhe foi
passada pelo historiador que o chamou.
- Para o lugar mais movimentado de Lisboa, mas rápido! – respondeu
August ofegante, um pouco inclinado para frente, mantendo os olhos no
retrovisor.
Com a exasperação de August e com aquele Kadett parecendo estar
seguindo-os, após efetuar exatamente os dois contornos feitos por ele, o taxista
desconfiou de algo.
- Olha, não gosto de problemas, se isso for uma dessas perseguições...
202

August pegou uma nota de 200 euros na carteira, mostrou a ele e a


colocou sobre o painel, dando duas leves batidas com o dedo indicador sobre
ela.
O taxista interrompeu a frase e até olhou por bons segundos para a nota,
mas nada aconteceu.
August fez um leve movimento com a cabeça na direção do painel e
arqueou as sobrancelhas. Virou-se para o banco de trás ao ser cutucado no
ombro por Rudolph.
O atual dono de sua futura casa lhe entregou uma cédula, bem diferente
da apresentada.
Na hora o jovem percebeu e substituiu as notas.
Pegando a nota de 10 mil escudos no painel, levantando e colocando-a
contra a luz do céu azul que transpassava o vidro frontal, pondo-a em seu bolso
na sequência, o taxista continuou:
- Se isso for uma perseguição... ele nunca vai nos alcançar! Conheço
todos os segredos rodoviários da velha Lisboa. Segurem-se! – Acelerou o carro
rumo ao Rossio, local de cartões postais e parada obrigatória para turistas, no
coração da capital.
- August, mas que diabos está acontecendo? Rudolph se machucou
devido a esta loucura! – perguntou seu avô enquanto se balançava de um lado
para o outro em decurso das curvas efetuadas em alta velocidade pelo táxi –
Acredito que já está na hora de uma explicação!
- Veja o senhor mesmo e diga se estou exagerando. – Entregou-lhe o
envelope.
Como Ana e Rudolph se encontravam ao lado de Wilson no banco de
trás, foi possível que todos vissem o conteúdo do envelope ao mesmo tempo,
mudando sincronizadamente suas expressões após analisá-lo, porém, nenhuma
delas chegou perto da demonstrada por August desde que recebera o pacote.
- Ah meu Deus! É uma carta com um selo DJED! – exclamou Ana e
brincou – Agora temos um selo reserva caso o que utilizamos para falar com o
LHC dê defeito.
- Parece ser autêntico. – Afirmou Rudolph antes de retomar a expressão
de dor. A adrenalina estava diminuindo.
- Certo, o homem sabe das cartas e talvez nos conheça – comentava seu
avô. – Mas isso não é motivo para sairmos correndo feito loucos e quebrando
janelas de um patrimônio como aquele, pelo contrário, talvez aquele historiador
saiba de algo que não sabemos e possa nos ajudar!
203

- Duvido muito vovô! – August virou o envelope destacando o verso


para que todos vissem.
Mais uma vez, em perfeita harmonia, os três passageiros sentados no
banco de trás gritaram para o motorista:
- Acelera! Acelera! Acelera!
204

Mão amiga
Depois de algumas voltas sem necessidade, só por garantia, o taxista
parou o carro.
- Consegui despistá-lo, onde querem descer?
- Em algum hospital por favor. – Respondeu Ana. – O senhor Holister
precisa de atendimento médico.
- Tudo bem senhorita Schmidt, não é necessário, foi apenas uma leve
torção, gelo e repouso bastam. – Interveio ele.
- Neste caso, pode nos deixar aqui mesmo. Ali parece ser um bom lugar
para comermos algo e despistarmos os perseguidores. – Respondeu o Sr.
Dunkeld apontando para um movimentado café na rua Garrett, no coração de
Lisboa. – Preciso lhes contar uma coisa.
- Têm certeza que não querem que eu chame a polícia? – O motorista
parecia preocupado.
- Temos sim, obrigado. Não foi nada demais.
- Vocês é que sabem – deu de ombros fechando direito a porta do lado
do carona.
Desceram, se despediram do motorista e assim que começaram a
caminhar na direção do belo estabelecimento, recebendo os primeiros raios de
iluminação artificial, na rua da estátua do escritor português Fernando Pessoa,
Ana teve a impressão de ter visto o Kadett preto mais uma vez. Por instinto
empurrou a todos no rumo da entrada de uma igreja.
Quando se deram conta, já estavam dentro da imponente construção,
uma bela igreja das tantas que ali se encontram, esta chamada Basílica dos
Mártires.
- O que houve Ana? Você o viu? – Indagou August preocupado desde o
momento em que olhara aquela sigla.
- Não tenho certeza, foi mais o reflexo – sorriu a jovem meio sem graça.
- De qualquer forma, vamos aguardar. – Sugeriu o Sr. Dunkeld. – Um
pouco de oração não nos fará mal.
Sorriram.
Ficaram ali algum tempo, se misturando entre os fiéis que acabaram de
assistir uma missa, e saiam do local calmamente.
Esperar a poeira baixar.
205

Para aproveitarem a curta e inesperada estadia ali, decidiram dar uma


volta pela nave, uma olhada superficial nas belezas da igreja, menos Rudolph,
que não demorou a achar um lugar no último banco para se sentar.
Mesmo com o movimento quase constante de turistas e fieis, o susto foi
inevitável quando alguém chegou de supetão por trás deles, interrompendo o
tour.
- Posso ajudar? – perguntou um homem em português.
Instantaneamente viraram-se preparados para correr, porém,
tranquilizaram-se ao perceberem que se tratava de um padre.
Jovem de aparência acolhedora. Cabelos castanhos, barba bem feita,
óculos e uma vestimenta inconfundível.
- Percebi que entraram junto com aquele senhor, posso ajudá-los em
algo? Ele não parece sentir-se bem. – Insistiu ele falando com sotaque lusitano.
Os Dunkeld sempre cautelosos, iam dispensar a ajuda se tivessem
entendido, mas Ana, diante de uma mão amiga no meio daquela situação difícil,
não pensou duas vezes antes aceitar.
- Ficamos muito felizes se puder ajudar, precisamos de um lugar seguro
para ficar, por pouco tempo, só para ele poder repousar e nós resolver um
assunto pendente. – Respondeu ela, para o espanto dos que a acompanhavam,
em um português bastante aceitável.
- Vocês estão fugindo da polícia, ou pretendendo cometer algum crime?
– perguntou o homem de Deus de forma inocente, mas no fundo, realmente
desconfiado.
- Não! Não, talvez eu ter expressado mal: viemos fazer um trabalho de
pesquisa aqui, – falava devagar – somos histor...
- Historiadores? – Ajudou-a.
- Isso. Mas um grupo de pessoas ruins, quer se apossar das – fez um
gesto com os dedos enquanto buscava a palavra certa – relíquias que
encontramos.
- Então por que não avisam a polícia? – insistiu o padre.
- Já avisamos e eles estão procurando o grupo, mas precisamos
trabalhar, não podemos ficar parados. Por isso, um lugar seguro seria bom, pelo
menos até tudo resolver. – Argumentou ela de forma convincente.
Os Dunkeld ainda estavam boquiabertos, tanto por assistirem Ana se
comunicar bem em outro idioma, quanto por não entenderem quase nada do que
os dois estavam falando.
206

- Ah, neste caso será um prazer ajudar, minha vocação é praticar boas
obras – respondeu o simpático presbítero com um largo sorriso. – Esperem aqui
só um momento, darei umas ligações e verei o que posso fazer.
- Muito obrigado.
August e seu avô olharam para ela bastante confusos e surpresos
também, é verdade, porém mais confusos, principalmente por não saberem
como a jovem havia respondido à abordagem do padre.
- Você fala português?
Ana balançou a cabeça para os lados.
- Hum, arranho um pouco de português e espanhol. Os dois serem
parecidos facilitou minha aprendizagem – brincou.
August voltou a arquear as sobrancelhas.
- E por que não disse antes? Poderíamos ter ganhado muito tempo na
Torre do Tombo se tivesse falado em português com o primeiro funcionário que
nos atendeu! Sem falar da nossa viagem ao Brasil.
Ana meio que deu de ombros.
- Olha só, quando percebi, seu avô já tinha chamado o historiador, aliás,
foi até melhor, porque o homem sabia tudo de grandes navegações e nos ajudou
muito, principalmente por ter explicado tudo em inglês.
- Nisso ela tem razão. – Wilson não perdia nenhuma oportunidade de
fazer uma gracinha para amenizar o clima, mesmo quando este nem precisava
ser amenizado.
- Agora, quanto ao Brasil, especificamente no lugar onde estávamos, o
sotaque era muito estranho, não quis arriscar, e... acontece que não gosto de ficar
bancando a sabichona – cerrou os lábios acanhada.
August gargalhou.
- Um pouco tarde para isso, não acha? – Provocou sem segurar os risos.
Ana fez uma careta.
- Ah Ana, você é mesmo especial!
O elogio saiu em meio as gargalhadas, mesmo assim a jovem corou.
- O que disse para o padre? Disse que estamos de saída, não é? –
perguntou o Sr. Dunkeld.
- Na verdade não. Disse que precisávamos de um lugar para ficar.
As risadas de August cessaram na hora.
Avô e neto olharam para ela perturbados, entretanto antes de
conseguirem falar algo, ela continuou:
207

- Calma, disse apenas isso, nada além disso. Somos apenas historiadores
fazendo pesquisas e... talvez estejamos em perigo. – Fez outra careta desviando
o olhar.
- Ana! Por que foi falar isso para um desconhecido?
- Ora August, nós precisamos de ajuda e o cara é um padre – começou
a frase em um tom e terminou em outro.
Os Dunkeld´s se entreolharam. Ir embora dali rápido era o que ambos
pensavam, porém, mais uma vez antes que pudessem dizer algo, foram
interrompidos. O padre retornara.
- Boas notícias! Podemos hospedar vocês em um dos lugares mais
bonitos de Lisboa, um lugar onde todo historiador ou amante de história deveria
conhecer. Tenho certeza de que vocês vão se identificar muito. Vão adorar!
Novamente olhares na direção da jovem, nem um pouco parecidos com
os de minutos atrás.
- Sorry! – Falou ela baixinho olhando para eles com um sorriso travesso
e os ombros encolhidos.

Capítulo 48

Arthur Campbell, acabara de chegar em seu casarão após sua caminhada


vespertina. Um de seus funcionários o abordou ainda na porta.
- Telefone para o senhor.
- Quem é?
- É um Sir.
- Ótimo. Atenderei no meu escritório, obrigado.
Retirando os agasalhos pelo caminho, Arthur adentrou em seu escritório
e fechou a porta.
- King Arthur – anunciou-se.
- Fala velhote! Só lembra de mim em momentos de crise, não é?
- Sir careca! Como anda sua ausência de cabelo?
- Não tem andado muito bem, só caído.
O homem do outro lado da linha arrancou boas risadas de Arthur.
- Diga que é portador de boas notícias.
- Ah sim, muito boas.
- Ótimo, então alegre-me ó bola de cristal!
Foi a vez do outro lado da linha trazer sons de riso à conversa.
208

- Eles estão aqui e já receberam a carta.


- Mas já? – nem deu chance para resposta – Isso está indo mais rápido
que pensei. Eles estão aí com você?
- Não, ainda não. Nós os perdemos em Lisboa, mas pelo desenrolar das
coisas, não vão demorar muito.
- Ótimo, ótimo. Me mantenha informado.
- É o que uma bola de cristal faz, certo? – Entrou na brincadeira.
- Com certeza meu camarada, com certeza – mais risadas. – Meu filho
já chegou aí?
- Ele sim. Chegou a dois dias. Quer falar com ele?
- Não é necessário. Já acertamos os detalhes, ele sabe o que fazer.
- Certo. Mas aqui, é verdade que agora temos outro dos nossos em voo
solo por aí?
- Voando sim, agora, sozinho eu acho difícil.
- Hipócritas ingratos.
- Fazer o que? Cada um sabe onde dói. Mas fique de olho nos lugares
que falei, logo saberemos como cortar as asas.
- Ok. Quando as coisas andarem aqui eu te retorno.
- Aguardo ansioso.
Desligando o telefone, Arthur trouxe outra vez a mente, a carta com um
lacre DJED direcionada a seu filho que ele interceptara.
“Não entregue o selo... eu mandarei alguém pegar com você... não
confie no seu pai.” Quem é você? E por que ainda não me respondeu?

Ao cair da noite, o sacerdote levou August e os demais de carro para o


Convento do Carmo.
Ficaram deslumbrados ao chegar na igreja, situada ao lado do convento,
que mesmo com a baixa visibilidade devido a noite, proporcionava uma imagem
espetacular e um tanto perturbadora.
O que aconteceu aqui?
O que todos no carro admiravam, até mesmo o padre, não era a igreja
em si, mas apenas sua nave, toda iluminada por luzes vibrantes internas e pela
luz do luar, visto que o teto fora completamente destruído pelo terremoto
seguido de vários incêndios que destruíram a cidade de Lisboa no marcante dia
1 de novembro de 1755. Nem por isso, o conjunto gótico, com toda sua grandeza
e monumentalidade, concluído em 1423, deixou de ser um ícone da história
209

portuguesa e um alento para a visão cansada do caos urbano das cidades


modernas.
Atualmente as ruínas abrigam o Museu Arqueológico do Carmo, mas
poucos sabem a respeito da parte habitável do convento, convertida em
instalações militares em 1836, abrigando hoje um grupo de seminaristas, ali
residentes por opção, para conseguirem ficar, nas palavras deles, “perto da
onipotência e grande misericórdia de Deus”, representados pela igreja em
ruínas.
Ao chegarem no dormitório, foram recebidos por duas freiras vestindo
hábitos diferentes. A mais alta utilizava um lenço cobrindo a cabeça de cor
escura, enquanto a outra, menor e mais gordinha, usava um de cor azul-claro,
quase celeste. Ambas trabalhavam ali e ajudavam a manter a ordem, estando
também próximas aos locais onde faziam caridade.
As irmãs mostraram os quartos para os convidados e saíram. Estes
agradeceram e se despediram do sacerdote que os acolhera, indo dormir após
tomarem um bom banho, vestindo roupas cedidas pelos religiosos, e jantarem,
certo de que estavam seguros e poderiam dormir tranquilos, pelo menos naquela
noite.
210

Reviravolta

22 de setembro de 1984

Com o clarear do dia, August foi surpreendido na cama onde dormia por
uma das freiras de ontem.
Opa! Seus olhos se arregalaram. Com o brusco movimento feito para o
lado, para longe da moça, August quase caiu da cama. O que é isso? Você é uma
freira!
Acordando-o abruptamente, a mulher com a respiração ofegante disse
em inglês, quase sussurrando:
- Acorde eles e venha comigo, não é seguro ficar aqui. Não estão a salvo
neste lugar. – Sua expressão não parecia com a de alguém que estava pregando
uma peça.
- O que?
August ainda arrumava os óculos quando a freira se retirou do quarto
dizendo que ia vigiar o corredor.
Sem entender nada, August se levantou sacudindo a cabeça e tentando,
por rumo, ajeitar o cabelo. Da mesma maneira que fora acordado, ele o fez com
os demais.
- Mas que diabos está acontecendo meu neto?
- Sei lá, mas a não ser que as freiras daqui saibam atuar e tenham um
senso de humor um tanto deturpado, é melhor fazermos o que ela diz.
- Será que a Guardiões nos encontrou? – Indagou Ana calçando os tênis
como nunca antes.
- Ou é isso, ou começou o Apocalipse! – Terminou de se vestir e foi
correndo para a porta atrás de mais informações. – Vamos, se apressem!
Ainda desconfiados, como era de se esperar, eles colocaram suas
próprias roupas – as mesmas do dia anterior – e também atordoados pelo
despertar instantâneo, seguiram a freira silenciosamente pelos corredores pouco
iluminados do convento, mais uma vez dando tiros no escuro, depositando a
confiança em um desconhecido.
Ela deve estar dizendo a verdade. Ela é uma freira.
Seguiram-na pelos largos corredores até chegarem nas ruínas da igreja,
exatamente onde ficava o antigo altar, lá no fundo. Ali, pararam, principalmente
por causa do Sr. Holister cujo o tornozelo inchado ainda doía, mas também
211

porque precisavam de algumas explicações para continuarem a agir como


fugitivos.
- Então, por que nos trouxe aqui? Qual é o perigo? – perguntou August
um pouco exaltado.
- Já disse, não temos tempo, é preciso chegarmos ao pátio da entrada
primeiro. Já estamos perto, lá eu lhes contarei tudo. – Respondeu a freira de pé,
olhando constantemente para os lados.
Os finos raios de sol começavam, lentamente, a invadir a construção,
atravessando-a de um lado até o outro.
Afobada e ofegante, a freira, alguns passos à frente deles, seguia em
direção a saída da igreja, inclinando-se para observar cada pilastra que passava,
tanto de um lado como do outro.
- Desculpe irmã, mas não vamos a lugar algum sem uma explicação. –
Disse Rudolph com expressão de dor e continuou – Até porque meu pé está me
matando e não tenho mais idade de ficar correndo por aí como uma gazela sem
um bom motivo.
A postura um tanto revoltada do Sr. Holister acabou por dar uma
descontraída no momento, mesmo assim, surtiu efeito.
- Tudo bem, mas vou apenas lhes dar uma visão geral, rápida, não me
interrompam. – Disse a freira andando de volta até o altar, bem próximo a eles,
com o tom de voz bastante reduzido e com o nervosismo estampado em sua
face.
Uns sentados, outros em pé, todos fixaram o olhar na freira um pouco
gordinha e agora sem o véu que compunha o seu hábito, deixando a mostra seu
cabelo curto e castanho, vagamente, lembrando o de Daiane.
Vidrados, assentiram silenciosamente.
- Eu sou uma agente infiltrada que aguardava vocês, minha missão era
exclusivamente esperar uma possível visita de vocês aqui. E não, eu não tinha
certeza que isso aconteceria, por isso temos agentes espalhados por todas as
ordens religiosas importantes aqui em Lisboa. Sabíamos que eles os levariam
para uma delas caso os capturassem.
- Mas não fomos... – interrompeu Ana.
- Eu disse sem interrupções – continuou a mulher sem deixar Ana
concluir a frase. – Há alguns meses, recebemos uma carta do futuro explicando
exatamente a situação atual que vivenciam, e que vocês são a única esperança
para evitarmos uma catástrofe, portanto era preciso protegê-los de outra
organização, cujo as bases também estão no futuro, recebendo informações da
mesma maneira que nós, agindo ainda mais discretamente e contando com uma
212

mão de obra vasta e diversificada – ela virou-se novamente para a saída e deu
alguns passos, movimentando a cabeça para os lados. – Pronto, já sabem que
estou do lado de vocês, agora vamos!
O grupo parecia não acreditar.
- Acontece que o principal você não disse. Para quem... – August cessou
sua indagação quando ouviu um barulho vindo da parte de trás da igreja, do
mesmo lugar por onde eles tinham passado para chegar ali.
Se entreolharam e ao comando da freira, ou melhor, da agente,
começaram a atravessar toda a nave da igreja, e como o caminho mais curto de
um ponto ao outro é uma reta, seguiam passando pelo meio dela, bem devagar,
objetivando desesperadamente evitar qualquer barulho.
- Acha que ela está falando a verdade? – Sussurrou Ana para August.
- Não sei nem se quero acreditar.
Já haviam alcançado a metade da distância do caminho que os levaria
para a saída, ou seja, estavam bem no meio da nave da igreja, com os arcos
ogivais acima de suas cabeças, contrastando com o céu azul, quase sem nuvens.
No entanto, surgindo no fim da igreja atrás do altar em ruínas, dois homens mal-
encarados, vestidos como seminaristas e o sacerdote que os levou para o
convento, começaram a correr na direção deles gritando para que parassem.
- Corram! – bradou a agente tentando sobrepor sua voz a dos homens
que agora os perseguiam.
De um lado, uma freira com uma história suspeita gritava para correr,
do outro, o sacerdote que os ajudara gritava para parar.
- O que faremos? – Ana ficou alguns instantes perdida, mas acabou por
seguir a escolha feita pela maioria, inspirada no instinto mais básico de
sobrevivência.
Todos se puseram a correr atrás da freira em direção a saída, até mesmo
Rudolph, mancando, seguia correndo graças a adrenalina que se espalhava por
seu corpo.
A agente, correndo na frente deles, a cerca de uns quinze metros do
portão da entrada, para eles de saída, diminuiu o ritmo, deixando ser
ultrapassada pelos demais. Em seguida pegou uma espécie de controle no bolso
lateral de seu hábito, estendeu o braço para trás e sem parar de correr apertou o
único botão que nele se encontrava.
Instantaneamente as pilastras ligadas aos arcos ogivais transversais que
antes sustentavam o teto, quando ainda havia um, única estrutura ainda de pé no
centro da construção, começaram a ruir devido a pequenas explosões sucessivas
213

em suas bases, até as mais próximas da porta, por onde eles conseguiram sair,
segundos antes de serem apanhados pelos destroços.
Essa foi por pouco. – Pensou ela com um discreto sorriso de satisfação
e alívio, sem demonstrá-lo a eles, é claro.
Quando chegaram ao pátio da entrada, logo que passaram pela bela e
imensa porta de madeira da igreja, pararam, e quase todos ofegantes colocaram
as mãos nos joelhos, se debruçando para recuperarem o fôlego.
- O que você fez? – August olhava incrédulo para a poeira subindo por
sobre a fachada da igreja.
- Confesso que dá primeira vez achei maneiro... mas agora é sério, chega
de explosões daqui pra frente! – disse Ana nervosa entre expirações e
inspirações.
- Te fiz uma pergunta: o que foi que você fez? Ficou maluca? – August
caminhava em direção a agente.
- Ainda não estamos seguros, temos que sair daqui – mais uma vez a
agente olhava freneticamente para os lados. – Venham rápido, entrem no carro.
– Completou ela pegando as chaves e entrando em um Kadett preto, igual ao
que tinham visto nos arredores da Torre do Tombo, estacionado bem ali.
- Espera aí... você é da Guardiões? – perguntou Ana se levantando logo
que batera o olho no carro.
- Não temos tempo para mais explicações, entrem logo!
- Eu que não entro aí! De jeito...
A fala de Ana foi interrompida pelo barulho de tiros, fazendo com que
ela pulasse imediatamente para dentro do carro, assim como os outros, com
Rudolph desta vez indo na frente para ter mais espaço devido sua lesão.
O Kadett arrancou de uma vez só, fazendo ruído e deixando marcas de
pneus no pátio, percorrendo os cinquenta metros iniciais em uma velocidade
incrível.
Saindo do calçamento feito de pedras claras, dispostas ali de modo
quase artesanal, chegando no asfalto, a agente fez uma curva fechada para
contornar a rotunda em direção a rua, fazendo com que Ana praticamente caísse
em cima de August, ficando sobre seu colo.
Os dois se olharam fixa e profundamente por alguns segundos, à cabeça
de August veio logo o sonho que tivera no avião. O tempo pareceu parar,
nenhum ruído, nenhum movimento, nada a volta, só os dois em um lugar
isolado, em outra realidade. Assim ficaram, um podendo sentir os batimentos
do outro, até o vidro de trás do carro ser estilhaçado por um dos tiros disparados
pelas pessoas que os perseguiam.
214

Se abaixaram instantaneamente.
Felizmente ninguém se feriu gravemente e a agente, demonstrando uma
habilidade incrível ao volante, conseguiu tirá-los dali.

Capítulo 50

Sem sinal de perseguição, com os retrovisores do carro repletos de


olhares atentos, aparentemente mais calmos, August, aproveitando o silêncio
perguntou nervoso e irônico ao mesmo tempo:
- Agora você pode, por favor, nos fornecer mais algumas respostas, só
para termos o que falar à polícia quando formos presos por destruir um
patrimônio histórico mundial e possivelmente termos matado pelo menos três
pessoas? – Aumentou o tom da voz ao final da indagação.
Sem tirar os olhos da estrada ou as mãos do volante, a agente respondeu
de forma tranquila:
- Quanto a esse incidente, podem ficar despreocupados, cobriremos
tudo.
- Mas vocês já cobriram – August abriu os braços para que a agente
visse, mesmo que pela visão periférica, sua insatisfação – com destroços!
- Se acalme garoto. Duvido muito que tenham morrido, sequer se ferido.
Eram poucos destroços e...
- Poucos? Você explodiu umas quatro colunas!
- Eram poucos destroços – o ignorou – e as bombas foram dispostas de
forma a os projetarem para frente, então se tiverem sido espertos, pararam de
correr e estão bem.
- Se? – o jovem expirou incrédulo – Vai por mim, nada fica bem quando
começa em “se”.
- August, acalme-se. – Pediu seu avô. – Não adianta nos exaltarmos
agora.
- Mas... – interrompeu a própria fala e respirou fundo ao sentir a mão de
Ana em seu ombro.
- Ótimo. Assim é melhor. – Continuou a agente. – Em relação as
respostas, esperem até chegarmos. Lá as encontrarão.
- Chegarmos, onde? – perguntou o Sr. Dunkeld.
- Isto não é esperar. Tenham paciência. – Respondeu ela ainda centrada,
mas infinitamente mais calma do que antes.
215

- Hum, o problema é que estou com fome, muita fome. Ainda não tomei,
como dizem por aqui, “meu pequeno almoço”. – Brincou o Sr. Dulkeld tentando
mudar o clima, com uma expressão de desanimado e pensando lá no fundo.
Paciência eu tenho, o que não tenho é confiança.

A região central da cidade estava bastante movimentada. Vestidos a


caráter, grupos de pessoas transitavam numa mesma direção, cantando
animados e balançando bandeiras.
Um homem de cabelos levemente grisalhos, de boa aparência e trajando
roupas escuras ao estilo esporte fino, olhava a multidão sentado em um dos
confortáveis bancos da praça no centro da cidade.
Um jovem, andando rápido e olhando para os lados, aproximou-se
disfarçadamente e sentou em um banco próximo ao velho.
- O que está fazendo? – O homem perguntou.
- Evitando dar bandeira. – Respondeu o jovem com um tom de voz
muito inferior ao de seu interlocutor.
- Deixa de ser bobo Erick, sente-se aqui.
- Sentar aí, do seu lado?
- Mas é claro. Não quero ter que ficar gritando.
- Mas, vão nos ver – mexia freneticamente a cabeça para os lados.
- Olhe em volta garoto. A cidade inteira quer ver apenas uma coisa hoje.
O jogo.
Percorrendo o perímetro da praça com os olhos, via-se torcedores
brotarem de todos os lados caminhando eufóricos em direção ao estádio.
Levantou, trocou de banco e sentou-se ao lado do homem com quem
conversava.
- Estão como novos. – Comentou o velho olhando para o lugar onde o
jovem estava sentado antes.
- O que? Os bancos?
- Sim. Parece que foram colocados aqui hoje – olhava para os demais
espalhados pela praça. – É claro que, estar em um ambiente protegido como esse
ajudou – fez um gesto circular com os braços e olhou para cima.
- O senhor é de antes dela? – Indagou Erick apontando para o alto.
- É, eu tenho os meus janeiros – respondeu contemplativo. – Mas, me
diz aí: por que a urgência em falar comigo?
- Hum! Por que? – O jovem arregalou os olhos – Doutor, a sua última
manobra fez o capitão da LEM colocar a cavalaria toda em cima de mim.
216

- Hum, concordo que o capitão Neville tem sido uma pedra no sapato.
O jovem esboçou um sorriso.
- Qual foi a graça?
- O senhor fala de um jeito engraçado – expirou sorridente. – Devem ser
os janeiros.
- De fato. – Agora fora o homem quem sorrira.
- Mas, como eu estava dizendo, não são só os agentes da LEM que estão
atrás de mim não, tenho certeza que os Cavaleiros Templários também não
gostaram nada nada dessa história de eu me passar por um deles.
- E quem disse que você não é?
- Me deixaram entrar? – O jovem chegou a se levantar por uma fração
de segundo.
- Não, ainda não. Falta concluirmos o plano.
- Mas, tem certeza que o fato de eu já ter me passado por um de vocês
não me prejudicou?
O velho arredou para mais perto do garoto.
- Em primeiro lugar lembre-se: mesmo depois de entrar na Ordem, você
deve sempre se referir aos Cavaleiros Templários na terceira pessoa,
independente da pessoa com quem você está conversando.
- Desculpe, eu esqueci.
- Agora, sobre ter se passado por um Templário, relaxa, você não fez
isso. A única coisa que você fez foi falar o nome de um conjunto de estrelas, o
resto veio da cabeça do capitão. Além do mais, os Templários são inofensivos,
se não tem uma carta, não tem com o que se preocupar.
O jovem franziu a testa.
- Mas acontece que eu tenho uma carta! – Tirou o envelope de dentro
do casaco e o entregou ao doutor.
- Esconda isso! – Agora sim o doutor olhava preocupado para os lados
e demonstrava receio. – Ele respondeu?
- Sim. Esse é outro motivo que me fez vir aqui.
- Ótimo. Acredito que estamos quase acabando. – Afirmou o doutor
pegando o envelope e o guardando no paletó.
- É bom mesmo, porque não dá para fugir do capitão por muito tempo.
- Não será preciso.
- Como assim?
- Digamos que se você continuar se disfarçando como tem feito, passará
fora do radar do Neville. Ele tem outro alvo agora.
217

- Como assim outro alvo, explica isso direito! – Erick não sabia se ficava
satisfeito ou preocupado.
- Apenas dei a ele, mais uma vez, o que ele procurava.
- E o que era dessa vez?
O homem, que com sua jovialidade, parecia ainda não ter chegado na
casa dos 50 anos, desviou o olhar e o parou no topo de um prédio com arquitetura
estranha e interessante, o mais alto da cidade.
- Um traidor.
- Vai entregar um Templário a eles?
- Não! Já disse que os Templários não são traidores como todo mundo
diz, apenas possuem um objetivo e lutam por ele. Me identifico com isso –
brincou.
- Então quem?
- Seu cúmplice na fuga passada.
O rapaz arqueou as sobrancelhas.
- Ainda não entendi. O meu cúmplice na fuga passada foi o senhor.
- Sim, na verdade foi eu, mas aos olhos do capitão Neville, outra pessoa
fora quem elaborou o plano, alguém que ele de fato conseguiu ver.
218

Aliados?
Pouco mais de uma hora depois, August e os outros se encontravam
frente a um casarão afastado de Lisboa, sendo recebidos por homens de ternos
preto, cuja sigla GT se destacava em dourado gravada próxima ao peito de cada
um deles.
Conduzidos até o salão principal, um tanto hesitantes, com a
desconfiança inicial ainda mais presente agora, com a ausência da agente que os
tirara do convento, deram de cara com uma imensa mesa redonda no centro do
espaçoso cômodo. Em cima dela, um mais que apresentável café da manhã.
- Devemos comer? – Ana olhou para o parceiro.
Antes de respondê-la, August correu os olhos em busca da aprovação
do avô.
Nem seu olhar conseguiu ser tão rápido. Wilson já estava à mesa
servindo-se de bolo.
- Não vão comer? – Olhou fingindo inocência.
- Mas, é seguro? – August queria ter certeza.
Os mais experientes abriram um sorriso.
- É verdade que a Guardiões utiliza métodos um tanto inescrupulosos
para alcançar seus objetivos, mas envenenar comida não é um deles – respondeu
Rudolph fazendo companhia ao velho amigo. – Podem atacar.
- Se estão dizendo. – August aproximou-se da mesa e puxou uma
cadeira para Ana.
Um senhor careca, de óculos arredondados, porte físico avantajado,
branco e bem alto em relação a média de altura masculina da época, aproximou-
se de forma extravagante, batendo os sapatos no chão e abrindo os braços.
- Grandes Holister e Obrien! – cumprimentou-os de longe, fazendo sua
voz forte ecoar por todo o saguão. – É um prazer enorme revê-los! – baixou
ligeiramente as pálpebras – Nada como um dia após o outro, não?
- Ele é o Rei do Crime? – Brincou August, arrancando gargalhadas de
Ana, contidas na marra.
Os olhares de ambos os citados no cumprimento, deixaram bem claro
que o prazer não era tão grande assim, muito menos mútuo.
- Obrien? – sussurrou Ana para o Sr. Dunkeld, que respondeu rápido, e
no mesmo tom, ainda mastigando um pedaço de bolo:
- É meu nome de agente.
219

- Perdoe-me por não saber, se deveria – levou um guardanapo a boca –


mas quem é o senhor? – perguntou o Rudolph.
- Que isso RH? Sempre trabalhamos em áreas distintas, mas como pôde
esquecer do nosso grande encontro na Torre Eiffel?
Um frio percorreu o interior de Rudolph. Se lembrara.
- Você está... diferente.
O homenzarrão gargalhou.
- É, eu perdi um pouco de cabelo – brincou. – Mas, só para garantir que
não está me confundindo com ninguém, deixem-me refrescar a memória de
vocês, mais a sua – apontou para o Sr. Holister – porque tenho certeza que o
Obrien se lembra perfeitamente bem de mim – fechou um pouco os olhos outra
vez.
O pedaço de bolo que o Sr. Dunkeld acabara de comer, parecia ter
agarrado em sua garganta.
- Meu nome é Charles, no entanto, vocês devem me conhecer por outro
nome, um nome mais ao estilo da nossa organização – fez suspense.
Os jovens viajantes se olharam, era a confirmação verbal.
- Sir Galahad – completou cheio de pompa.
Os dois ex-agentes se olharam e fecharam a expressão, de forma tão
séria como August e Ana ainda não haviam visto.
Isso não é bom.
- Estou honrado em rever dois dos nossos melhores agentes,
momentaneamente desgarrados, devo acrescentar, e recebê-los em minha
humilde residência, também conhecida como Base 3SG. Vocês foram realmente
corajosos e astutos quando partiram, admiro isso – foi falando e andando em
volta da enorme mesa redonda. – Todavia, aqui estamos, não é? Juntos
novamente em prol do bem da humanidade. – Dizia em voz alta, quase que,
como se estivesse declamando um poema, parando de exibir sua eloquência
apenas porque o telefone no canto do salão havia tocado.
- Hum, esse jeito de falar... – comentava Rudolph enojado – como
esquecer.
Fazendo um gesto para aguardarem, Sir Galahad saiu para atender a
ligação em outro lugar.
- Quem é ele vovô? O senhor o conhece?
- Sim – engoliu seco. Teve que tomar um gole a mais de café para
desfazer o nó que dera em sua garganta. – Ele é um Pilar.
- Pilar? O que é um Pilar? – insistiu August.
220

- Bom meu neto, pilar é um elemento vertical da estrutura de uma


construção, que...
- Vô! – interveio – Eu sei o que é um pilar, engraçadinho, quero saber
porque ele é chamado assim.
O velho abriu um largo sorriso.
- Eu entendi, queria apenas descontrair um pouco, o clima esta meio
tenso por aqui. – Colocou a xícara de volta no pires e continuou – O motivo que
confirma o fato dele ser um Pilar, é o título de “Sir” acompanhado do nome de
um cavaleiro da Távola Redonda, tradição da agência.
- Imagino que o senhor saiba disso por já ter feito parte da agência,
certo? – perguntou Ana com uma expressão travessa.
- Sim – respondeu com a mesma expressão, alongando o vocábulo.
- Então, o senhor tem um nome de cavaleiro? – Não segurou o sorriso.
O velho expirou jocoso.
- Não, eu não.
- Ora, por que não?
- Bom, primeiro, porque nunca vi graça nesses pseudônimos e segundo,
porque eu não gosto dos mitos do Ciclo Arturiano. Não mais. – A expressão do
Sr. Dunkeld mudara novamente. Por mais que tentasse não exteriorizar seus
sentimentos, obtendo sucesso na maioria das vezes, haviam lembranças que o
dominavam completamente.
- Sério? Eu os adoro – comentou Ana perguntando na sequência – O que
faz o senhor, ao que parece, um amante da boa literatura, não gostar desta em
específico?
- É verdade vovô, o senhor nunca me apresentou tais contos, por quê? –
Por mais que quisesse obter outras informações, August aproveitava toda
oportunidade de total imersão de Ana no assunto para dar sequência a ele.
A expressão de Wilson entristeceu-se ainda mais.
- Não sei dizer ao certo, apenas não me sinto bem. Sabem quando você
escuta uma bela canção, uma que você gosta muito, e depois de escutá-la
inúmeras vezes acaba enjoando e não querendo sequer ouvir falar dela? – tentou
explicar – Pois é, eu me sinto assim em relação a esses contos – olhava para os
quadros a sua volta, que faziam referência justamente a esses mitos. – Além do
mais, parece que sempre que me lembro deles, sinto um vazio, uma sensação
ruim. Acho que enjoei bastante mesmo. – Definitivamente ele não estava nada
à vontade com aquele assunto.
Rudolph aparentava saber o motivo, pois já ia trocar de assunto quando
August, também percebendo o desconforto, perguntou:
221

- Por que o título de “Sir”? Quero dizer, qual critério é utilizado para
tal?
- Por que essa pergunta agora? – Rudolph ansiava por mudar de assunto.
- Curiosidade – August deu de ombros. – Eu já conheci um número
desnecessário de agentes da Guardiões e nenhum deles era chamado assim. Se
meu avô pôde escolher um codinome e não fez por falta de interesse, quer dizer
que ele sabe o que fazer para ganhar um, certo?
- Está pretendendo entrar para a Guardiões, August? – Rudolph seguia
tentando desconversar.
- Não, claro que não, eu apenas...
- Precisa ser um dos fundadores – interrompeu o Sr. Dunkeld dando a
resposta ao questionamento do neto.
- Como é que é? – Ana arregalou os olhos. – O senhor quis dizer
descendente dos fundadores, não é?
- Não – respondeu com naturalidade. – Charles ajudou a fundar a
Guardiões do Tempo, por isso possui esse título. Eu entrei logo depois e pela
importância que ganhei dentro da agência, poderia ter recebido também, mas
como disse, eu não quis.
- Mas a agência não foi fundada há centenas de anos? – Insistiu Ana.
- Como poderia se o fundador dela ainda está vivo? – Respondeu Wilson
com outra pergunta.
Ana parou um pouco para pensar, algo que August já se encontrava
fazendo.
Olhando meio sem entender, Rudolph tentava se comunicar com BO,
que apenas dava de ombros.
- Espera, – August espalmou uma das mãos enquanto a outra levantava
os óculos – na prisão Mamertina, Lawrence nos contou sobre a carta que
começou tudo isso, uma carta escrita pelo mesmo agente que escreveu, em nome
do apóstolo Paulo, a carta com o lacre ESCARAVELHO para o faraó
Aquenáton.
- Isso! Eu me lembro dele dizendo que possuíam uma carta que dera
origem a agência – acrescentou Ana.
- Pois é, essa carta existe mesmo. – Confirmou o Sr. Dunkeld. – Arthur
a encontrou e com o dinheiro da família dele e outros investidores interesseiros,
criou a agência Guardiões do Tempo.
- Arthur? Quer dizer o Rei Arthur? – Ana não perdia nenhuma
referência.
- É isso aí – Wilson sorriu. – Que prepotência não?
222

- Arthur é o líder e fundador da Guardiões e em nossa realidade ele,


provavelmente já havia morrido, pois Lawrence era quem comandava. Assim
sendo, qual a relação entre os dois?
Outra vez os velhos trocaram olhares. Era hora de pôr mais cartas na
mesa.
- Pai e filho.
- O que? – Ana surpreendera-se novamente.
- Nós chamamos Lawrence de Sir Lancelot e não contamos antes pelos
motivos de sempre, mas o conhecemos desde quando era só um garotinho
solitário.
Fizeram uma pausa deixando as peças se encaixarem.
- Quer dizer que a agência Guardiões do Tempo existe a muito tempo
em outra realidade, porém na nossa, ela existe a poucos anos? – Indagou August
falando devagar.
- Bom, não sei sobre essas outras possíveis realidades, mas na nossa
sim, vinte anos por aí.
Olhos arregalados.
- É, isso faz sentido – August parecia desnorteado. Sorte Ana estar ali,
pois as borboletas que iam e vinham no estômago dele, estavam bem perto de
voltar.
- Uau! – Ana expirou – Espere aí. Vamos voltar ao Pilar. – Queria
aproveitar o, literal, momento da verdade antes que o anfitrião retornasse. – Ele
representa algum perigo?
- Com certeza, mas não para nós.
Confusão nos olhares.
- Os Pilares – continuou o Sr.Dunkeld – são conhecidos por prezarem o
anonimato e sempre resolverem seus problemas a distância...
- Característica fundamental neste ramo, não é mesmo? – interrompeu
a senhorita Schimdt.
- De fato. Mas, se ainda estamos vivos, é porque eles realmente
precisam de nós. – Olhou para Rudolph.
- É, isso também faz sentido – acrescentou August trazendo à mente o
encontro com Lawrence na prisão Mamertina.
Mais perguntas estavam prestes a serem feitas, porém cessaram logo
que Charles retonara.
223

Capítulo 52

Ao retornar para junto de seus convidados, Sir Galahad chegou


retomando a fala de onde havia parado.
- Acredito que tenham algumas perguntas em mente, principalmente do
porquê estão aqui, certo? – Perguntou sem chance de resposta, até porque a
afirmação estava estampada em seus rostos. – Pois bem, estou ouvindo. – Disse
sentando-se à mesa em um lugar oposto a eles, de forma a conseguir encaixar a
todos no seu campo de visão.
- Quem são aquelas pessoas se passando por religiosos, por
que está nos ajudando, se é que está, e por que você é tão mau? – perguntou Ana
sem rodeios.
- Nossa! Corajosa e direta. Esta jovem tem atitude, gosto disso! – ergueu
um dos braços fechando a mão – Se um dia decidir se tornar uma agente, por
favor não se acanhe, é só me procurar.
Ana fez uma expressão de desinteresse ao ouvir a proposta, enquanto
Sir Galahad continuava a responder.
- Aquelas pessoas, que estavam atrás de vocês e ainda estão, são mesmo
religiosos, iguais aos que começaram tudo isso. Fazem parte de uma mesma
organização, dentro da própria Igreja, que recebia ou recebe mensagens do
futuro com instruções para impedir vocês de conseguirem os seis selos
protótipos enviados...
- Ele está indo rápido demais, não está? – perguntou o Sr. Dunkeld para
seu velho amigo com o tom de voz reduzido.
- ...são conhecidos como A Trindade, pois três pessoas receberam as
cartas e começaram a conquistar adeptos para a causa, sendo que a maioria são,
de fato, membros da Igreja, inclusive padres, freiras e seminaristas, como viram,
até mesmo bispos e cristãos de seguimentos não católicos estão envolvidos,
todos influenciados pelos três cabeças da operação, que os fizeram pensar que
esta é a única forma de proteger o tempo e impedir o ser humano de brincar de
Deus.
August lembrou-se imediatamente das palavras proferidas por
Lawrence sobre o Tâmisa.
- E, eu não sou mau – continuou Charles sorrindo – pelo contrário. Tanto
não sou mau, que para provar o oposto, ou seja, minha bondade, e que estamos
apoiando vocês – levantou-se enquanto falava, foi até uma pintura do Rei Arthur
224

tentando tirar a espada da pedra. Retirou-a e pegou dentro de um cofre que


estava atrás do quadro, uma carta, entregando-a para Ana.
É sempre atrás de um quadro.
- Aqui está. Também recebemos cartas do LHC, sabemos da catástrofe
que se avizinha e que vocês são os únicos que podem impedi-la.
Ana abriu a carta.
- É um selo ESCARAVELHO! – Exclamou ela após verificar o selo.
- De nada!
- Deixe-me ver. – Pediu o Sr. Dunkeld pegando a carta e lendo-a
silenciosamente.
- Esta carta estava em nossos arquivos e data do século IV – continuou
Sir Galahad enquanto o avô de August efetuava a leitura – possivelmente
direcionada ao Imperador Romano Constantino, que como sabemos, foi
fundamental para transformar a religião crista em uma das mais importantes e
seguidas atualmente, e só para terem certeza do quão importante é esta carta,
somente eu e Arthur sabemos sobre sua existência.
Não conseguiram esconder o espanto frente tal relíquia.
- Quer dizer que esta carta pode ter sido a responsável pelo salto, de
perseguidos a exaltados, dos seguidores do cristianismo? – perguntou a
senhorita Schmidt com aquele olhar deslumbrado de sempre.
- Por que não? – deu de ombros – Claro que a grave crise do Império
Romano foi, sem dúvida nenhuma, o principal motivo para que as pessoas
começassem a olhar com bons olhos os pregadores da salvação pessoal, porém,
esta carta pode sim ter contribuído muito se tiver chegado de fato nas mãos do
imperador. Todavia, o local onde a encontramos não nos dá certeza disso. –
Respondeu Sir Galahad com segurança e firmeza, encarando os mais velhos. –
É meus amigos, eu andei estudando.
- Então agora só restam duas cartas, ou melhor, dois selos, para termos
os seis protótipos e retomarmos a comunicação com LHC. – Concluiu August
naturalmente.
- É! – Ana estava animada – E um deles ainda está aqui em Lisboa!
- Fico feliz em saber disso. Vocês possuem alguma pista sobre uma
localização mais concreta desses que faltam? Temos recursos, pessoal,
influência, podemos ajudar. – Ofereceu Charles prontamente.
Entreolharam-se. Não estavam totalmente convencidos das intenções
dele, não só dele, mas de toda agência Guardiões do Tempo. Talvez tivessem
falado demais, ainda mais depois de terem passado por tantas experiências
desagradáveis envolvendo o nome dessa organização, não era de se esperar outra
225

atitude. Mesmo assim, August resolveu dar um voto de confiança,


principalmente por eles terem uma sede no possível local onde a carta se
encontra.
- Apenas de uma, mas estamos sem teorias no momento.
Wilson tentou de toda forma gesticular para o neto, mas a possibilidade
de resolver aquilo de uma vez por todas, fez August abandonar sua característica
postura cautelosa.
- Sabemos de seu envio para Lisboa no auge dos descobrimentos, mas
não encontramos nada em nossas pesquisas. – Respondeu ele ainda com uma
faísca de esperança de conseguir mais um aliado.
- Na verdade eu até tenho uma ideia, só não falei com vocês ainda por
falta de tempo e em parte por ter esquecido também – Wilson sorriu falando
seguidamente a August, ao que parecia, dando um voto de confiança também.
Rudolph não estava entendendo mais nada.
Primeiro ele conta sobre o Arthur e agora ele está confiando na
Guardiões! Que diabos está acontecendo?
- Então fala aí! – Ana também não via a hora de achar um jeito de voltar
para casa.
- Bom, estou com essa mesma roupa praticamente há dois dias, já que
deixamos nossas malas no hotel em Belém, e por termos usado as roupas cedidas
pelas freiras eu acabei esquecendo que guardei no bolso da minha jaqueta, duas
páginas que peguei emprestado dos arquivos da Torre do Tombo, graças ao
desespero desse aí em ir embora – tirando as folhas dobradas, olhou para August
meio que para se justificar.
- O senhor o que?
- Nessas folhas – continuou Wilson ignorando o questionamento do neto
– encontram-se escritos referentes ao navegador italiano Américo Vespúcio,
cujo o nome serviu para nomear o continente, em um episódio repleto de cartas
falsas e informações desencontradas. Dêm só uma olhada. – Completou
colocando as páginas sobre a mesa para análise de todos.
- Vovô, espera aí! O senhor roubou documentos do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo? – insistiu August, não escondendo a surpresa.
Seu avô aquiesceu, fazendo uma expressão encabulada na sequência.
- Não roubei, peguei emprestado – ressaltou – E já disse que você não
me deixou terminar de ler lá, ora. Saiu correndo feito um maluco e nos
mandando pular janelas.
- E o senhor sabe exatamente o porquê. – Interveio seu neto.
226

- Gostaria muito de ouvir essa história com riquezas de detalhes –


comentou Charles sorrindo e ironizando em seguida. – Parece fabulosa.
- E de fato é – respondeu o Sr. Dunkeld batendo a mão sobre as páginas
que jogara em cima da mesa. – Contudo, isso não é importante no momento,
gostaria que focassem nos fatos descritos aqui.
Conseguiu, enfim, chamar a atenção deles somente para o conteúdo das
páginas, não para o fato de tê-las furtado de um local considerado patrimônio
histórico cultural português.
- Este alemão de nome difícil – continuou apontando para as folhas –
Wald...
- Waldseemuller, Martin Waldseemuller.
- Obrigado August... foi o primeiro a escrever em um documento, no
ano de 1507, o nome América se referindo ao continente recém descoberto, e o
fez em homenagem ao navegante italiano, a serviço de Portugal e Espanha,
Américo Vespúcio, que teoricamente havia chegado ao continente de fato e o
reconhecido como tal, não como Colombo que se deteve inicialmente em ilhas
– puxou uma das páginas e a colocou em destaque. – No entanto, como podemos
observar neste registro, Vespúcio está no centro de uma trama envolvendo cartas
de procedência duvidosa, inclusive de possíveis viagens não executadas e outras
bagunças sem registro. Daí me ocorreu que Walds...
- Waldseemuller.
- Obrigado Ana... renomado cartógrafo da época, ao saber deste
episódio, deveria ter desfeito o engano e ele próprio batizar o novo continente
com o nome de seu real descobridor, Cristóvão Colombo, talvez chamá-lo de
Colômbia, como o país sul-americano, aliás único a homenagear este grande
navegador, não de Terra de Américo como insistiu em intitulá-lo e assim
permaneceu. Apenas, admitindo o engano e dando maior reconhecimento a
Colombo em seus trabalhos posteriores, mas aí o estrago já estava feito, não é
mesmo?
- É, estava sim – concordou Ana.
Um homem, possivelmente um agente, adentrou no salão e aproximou-
se do anfitrião.
- Raciocínio interessante meu caro BO, posso ver que não fora recrutado
à toa, porém, sou um homem muito ocupado, então, por que não pula para a
informação realmente importante? – perguntou Sir Galahad se levantando após
receber outro comunicado que alguém lhe esperava ao telefone.
O avô de August o fulminou com o olhar antes de prosseguir, fazendo
um esforço tremendo para ignorá-lo.
227

- Tendo em mente que os trabalhos de Waldss...


- Waldssemuller.
- Ah! Obrigado Holi! Mas que droga de nome difícil! – continuou o
raciocínio – Esses trabalhos foram posteriores a data de envio da carta e
posterior também a morte de Vespúcio, ou seja, a homenagem se concretizou
postumamente, portanto, é possível que ele tenha escolhido e mantido este
nome, devido a uma dessas cartas falsas ser a nossa, direcionada a Vespúcio,
exaltando sua viagem e relatos sobre o continente, principalmente a necessidade
de catequizar os nativos. Encaixando-se assim, como um possível objetivo dos
religiosos revoltosos do futuro.
- Uau! É uma bela teoria. Muito bem senhor BO! – Ana o parabenizou
da maneira sorridente de sempre.
- Mas, e sobre a informação importante? Objetividade desgarrado, use
o que aprendeu conosco! – insistiu Sir Galahad impaciente.
- Calma Charles – pronunciou o nome verdadeiro do Pilar em tom de
deboche – já lá chego. Entre outros brilhantes trabalhos cartográficos, Martin...
– parou olhando para ver se alguém o interromperia, como não aconteceu,
continuou – teve um de seus mapas-múndi do século XVI encontrado
recentemente na Alemanha por alguns bibliotecários, esquecido em uma caixa
na Universidade de Munique, onde esteve desde a Segunda Guerra Mundial.
- E como você sabe disso? – Descobrir as fontes era tão importante para
a agência Guardiões quanto os locais ou as informações de fato.
- Sou um ex-agente, mas não estou morto. Ainda... tenho os meus
contatos.
- Então, o senhor sugere que devemos ir para o país atualmente dividido
pelo muro? – perguntou Ana se lembrando do ano e do período histórico em que
se encontravam.
- Sim. Imediatamente se possível.
- Muito bem. Irei providenciar o transporte e vocês partem hoje mesmo.
– Disse Charles se retirando imediatamente do salão.
Mesmo com a notícia animadora de um possível local onde a carta possa
estar, bem fundamentado em argumentos sólidos apresentados pelo Sr.
Dunkeld, o clima não era tão eufórico como deveria ou costumava ser após este
tipo de descoberta. Sir Galahad acabou cortando todo o barato com seu humor
irônico e sua postura nada confiável.
228

Capítulo 53

Vigiados o tempo todo e sem acesso a determinados cômodos do


casarão, ficaram por ali mesmo, entre o salão principal e o belo jardim da
entrada, para onde se dirigiram a fim de respirarem um ar fresco e esticar as
pernas após o café.
Wilson dirigiu-se para outro canto do casarão com o intuito de ligar e
informar aos pais de August onde e como estavam, assim também fez Rudolph,
que de tão apaixonado, ficou quase trinta minutos falando com a esposa pelo
telefone.
No enorme e bem cuidado jardim, lar de inúmeras árvores frutíferas
tipicamente europeias, era possível encontrar: diospireiros, romãzeiras,
amoreiras e, é claro, figueiras, todas extremamente bem desenvolvidas e
podadas, dispostas de forma a valorizar suas características e não prejudicar o
desenvolvimento ou a visibilidade das flores, responsáveis pelo aspecto
agradável e peculiar do local.
August e Ana papeavam passeando pelo jardim e admirando as flores.
Um papo bem mais light do que os costumeiros tópicos que os vêm
acompanhando desde aquela conversa na casa dos Stuart´s, mesmo que vez ou
outra, as reflexões sobre a situação forçam passagem.
- Se eles nos deixaram usar o telefone, significa que estão mesmo
querendo ajudar, não acha? – Indagou August.
- Eu acho que sim. Você fez bem em contar ao Sir careca a verdade –
brincou. – Precisamos de toda ajuda possível se quisermos voltar para casa.
- Foi o que pensei, além do mais, foi o próprio LHC que contou a eles,
então, pelo menos dessa vez, acredito que estão mesmo do nosso lado.
- Gosto muito disso em você – comentou afável.
- O que?
- Sua fé nas pessoas. Apesar de você ter esse jeito analítico e criterioso,
acaba sempre acreditando na bondade das pessoas. Isso é admirável.
August silenciou-se acanhado. Ainda não conseguia entender o porquê
de ficar tão encabulado ao lado de Ana.
Ao passarem próximos a roseiras, o jovem parou, induzindo-a a fazer o
mesmo.
- O Rei Carlos II trouxe uma arte muito interessante da Pérsia
envolvendo as flores, uma espécie de floriografia – dizia sorrindo – onde as
229

flores transmitiam, através de suas diversas formas e cores, sentimentos, os


quais não poderiam ser expressados livremente na época.
Ana o escutava com atenção.
- O costume se espalhou rapidamente pela Europa, e na Inglaterra
ganhou destaque na era Vitoriana. – Abaixou, apanhou uma tulipa vermelha e
uma rosa amarela, em seguida as ofereceu para Ana, desviando o olhar, bastante
acanhado. – Além da cor das flores apresentarem os sentimentos, o modo como
elas eram recebidas indicava se o sentimento era bem quisto ou não, quero dizer,
se era recíproco.
- É mesmo?
- Sim sim. Existia, na época, uma forma específica de recebê-las.
De acordo com essa Linguagem das flores, ou ainda, Floriografia, como
às vezes é chamada, cada flor representava um sentimento e recebê-las com a
mão direita, significava que o sentimento era bem quisto, mútuo.
As rosas representavam vários sentimentos devido a sua variedade de
cores, assim como violetas, jasmins, dálias. As apanhadas por August,
significam “declaração de amor” e “amizade ou devoção”, respectivamente.
Mesmo conhecendo toda a história contada por August, ela o esperou
concluir.
- Não, não conhecia. – Respondeu recebendo as flores dada por August
com a mão direita, primeiro a tulipa, depois a rosa.
Quando August se preparava para acrescentar algo, um homem achegou
apressado à entrada do casarão, onde agora encontravam-se os mais velhos,
alarmando os jovens.
- Aquele é...
- Não pode ser. – August não acreditava. Chegou a limpar os óculos
para enxergar com nitidez.
- Mas é, com certeza é ele.
Quase correndo, os jovens foram até Dunkeld e Holister, que haviam
acabado de receber um envelope de uma pessoa bastante conhecida.
- Aquele era o Lawrence? – August nem esperou para saber se o homem
retornaria.
- Sim, era ele mesmo. – Respondeu Rudolph.
- E o que ele queria? – Indagou Ana.
- Veio dizer o que eu já sabia – Wilson tentava abrir o envelope sem
danificá-lo.
- E o que era?
Os jovens mantinham a expressão curiosa e preocupada.
230

- Que o selo ESCARAVELHO nos dado pelo Sir voz de radialista, é


falso.
- Falso? Como assim?
- Tanto o selo quanto a carta foram forjados. Acredito que dentro dele
possa ter um daqueles rastreadores avançados que só o Arthur possui.
- Não é possível! – Ana não podia acreditar, na verdade, não queria
acreditar.
- Então foi muito bem forjado, porque não notei nenhuma diferença.
Tem certeza vovô?
- Pode acreditar August – interveio Rudolph. – De cartas e selos falsos,
seu avô entende.
- É, por isso acabo de sentir um tremendo frio na espinha agora. –
Comentou o Sr. Dunkeld após verificar o conteúdo do envelope.
Juntaram-se ainda mais para ver.
- É um selo UDJAT? – Ana voltara a ficar surpresa.
- É sim.
- E, é verdadeiro?
- É, este aqui é sim. – Nem mesmo o avô de August parecia acreditar.
Seguiam imóveis, praticamente paralisados.
- Está dizendo que o Lawrence, filho do tal Rei Arthur, deu a nós um
selo UDJAT original, igual ao do pergaminho que nos trouxe aqui? – August
também estava embasbacado.
- É isso aí – confirmou seu avô. – E está sozinho.
- Sem carta?
- Exatamente.
- Só pode ser uma armação. – August realmente possuía uma enorme fé
em relação as pessoas, mas se tratando de Lawrence, esse sentimento havia se
dissipado totalmente.
- Eu acho que não. A Guardiões tinha mesmo um selo como este e o vi
uma vez na... – Rudolph fez uma pausa até conseguir a aprovação do amigo para
continuar – carta que deu origem a agência.
As revelações e os acontecimentos presenciados pelos jovens em um
intervalo tão curto de tempo, os deixaram visivelmente atordoados.
- Só não entendo porque os separaram – acrescentou Wilson. – A carta
recebida por Arthur induzindo-o a criar a agência, é o objeto mais importante
que eles possuem, mesmo que fosse para salvar o universo, ele não nos
entregaria.
231

- Quer dizer que Lawrence... – Ana fez um gesto rápido com a mão que
complementava a frase – para nos ajudar?
- É o que parece. E sua expressão preocupada e suas recomendações,
seguem o mesmo caminho.
- E qual foram?
- Escondermos o selo e darmos logo o fora daqui. – Concluiu Wilson.
Vendo um conhecido agente se aproximar, Rudolph percebeu na hora
do que se tratava.
- E, parece ser o que estamos prestes a fazer.

Capítulo 54

Encurvado em cima de um dos computadores do Centro de Operações,


um homem moreno, de cabelo baixo, trajando um uniforme preto repleto de
itens tecnológicos, teclava acelerado a procura de um arquivo.
Mas que droga! Não vou conseguir encontrar nada no meio dessa
bagunça.
Os computadores da Central de Operações, recebiam e armazenavam
dados de centenas de câmeras de vigilância espalhadas por toda cidade,
funcionando 24 horas por dia. Cada arquivo possuía a duração exata de uma
hora e era automaticamente enviado para uma pasta específica de
armazenamento, dependendo das suas especificidades.
Câmeras internas e externas, nas ruas e nos estabelecimentos, nas praças
e até nas casas. O setor responsável pela vigilância da cidade não brincava em
serviço e só quem trabalhava diretamente com a análise de dados, sabia onde
cada gravação estava.
- Milles?
Um grito ecoou pela sala escura. O homem sacou a arma por instinto
devido ao susto.
As luzes se acenderam.
- Capitão, é o senhor. – Guardou a pistola de choque. – Quase me
matou...
- O que está fazendo aqui?
232

O agente Milles percebeu o tom de desconfiança na voz do capitão e


não era para menos, ele estava sozinho em um setor que vigia toda a cidade, fora
do horário de trabalho, mexendo em um computador privado sem autorização e
com as luzes apagadas.
- Eu só precisava ver uma coisa.
- O que?
O capitão se aproximava rápido, não lhe dava tempo para pensar.
Um clique de sorte fez com que as janelas abertas na tela se fechassem.
- O que, agente Milles? O que está fazendo aqui?
Miles e o capitão Neville sempre foram amigos, desde antes de se
tornarem agentes da LEM, mas a abordagem feita naquele momento, em nada
remetia-se a tal vínculo.
O agente engoliu seco enquanto pensava em uma desculpa, qualquer
uma. Obviamente deveria ter pensado nisso antes de acreditar em um maldito
bilhete e ir parar ali atrás de um suposto vídeo comprometedor.
- Eu só...
- Erga os braços soldado! – Neville percebeu de imediato que o agente
escondia informações e sacou sua arma.
- Que isso capitão? Não precisa...
- Agente Três, erga os braços! Não vou pedir de novo!
Milles percebeu que era sério. A situação em que se encontrava,
justificava a atitude do capitão.
Item por item, Neville foi retirando o arsenal tecnológico acoplado ao
uniforme do agente.
- Capitão, eu posso explicar.
- Teve a sua chance – continuava desarmando o agente com uma mão,
apontando-lhe a arma com a outra.
- Acontece que...
Milles buscava uma forma de contar o que de fato estava fazendo ali,
mas o capitão seguia implacável.
- Agora não! Conhece os procedimentos.
O agente sentiu um frio na barriga ao perceber de quais procedimentos
o capitão se referia.
- Solicito reforço na Central de Operações. – Neville falou elevando o
braço até o peito.
- O senhor está me prendendo? – Exaltou-se.
- Agente Milles Green, você está preso por suspeita de traição. –
Algemou-o.
233

- Fala sério Nev! Você vai mesmo me prender?


- Sabe que o melhor é ficar calado. Terá sua chance de defesa como
qualquer outro.
- Qual é cara? Isso não é necessário!
Quatro agentes entraram correndo e cercaram Milles.
- Levem-no e tragam o Brad aqui, agora!

- Espere aí! Deixe-me ver se entendi – o jovem Erick, não conseguia


acreditar na eficiência do plano elaborado pelo doutor visto a simplicidade. – O
senhor mandou um bilhete para o agente que nocauteou naquele dia, dizendo
que o pessoal da Torre tinha um vídeo dele tendo um caso com aquela outra
agente que também estava no dia, a que foi suspensa, é isso?
- Você entendeu bem.
- Mas o tal vídeo não existe?
- Não.
- E os dois agentes têm mesmo um caso?
- Com certeza. Se não tivessem, o plano não funcionaria. Os vi dando
uns pegas por aí.
O jovem riu novamente com a forma de falar do doutor.
- Certo, certo. Mas até onde eu sei, “dar uns pegas” não é nenhum crime,
mesmo que eles tivessem sido dados durante o horário de trabalho. No máximo
receberiam uma advertência.
- Você tem total razão.
- Então por que ele se arriscou desse jeito para apagar um simples vídeo?
- Porque o capitão ainda é apaixonado pela Grace.
- Imagino que Grace, seja a agente que agora tem um caso com o cara
da cacetada na cabeça?
- É isso aí. Eles tiveram um longo relacionamento, mas terminaram e
seguiram em frente – expirou sorrindo. – Pelo menos ela seguiu.
- Doutor, o senhor é diabólico.
- Eu não, o amor é – respondeu satisfeito. – Mas o capitão não tem
motivos para deixá-lo preso por muito tempo, mesmo que ele opte por não dizer
a verdade, que é o que eu espero.
- Então isso foi apenas uma distração?
234

- Apenas? Essa pequena distração será a responsável por tirar o capitão


do seu pé e dará aos Templários o sossego necessário para concluírem – apontou
para a carta em seu casaco.
- Mas, e quanto a outra pessoa que também tem enviado cartas daqui?
- Esse daí é um problemão que ainda não consegui resolver, pelo menos
não diretamente.
- E por que não?
- Porque não descobri quem é.
Um imenso barulho, oriundo da arena, ecoou por toda cidade.
- Acho que foi um touchdown. – comentou o jovem.
- Não, isso com certeza foi um gol, um golaço.
235

Em cima do muro
Com as passagens pagas pela Guardiões, a mando de Sir Galahad,
acomodaram-se novamente em poltronas uma ao lado da outra no avião, desta
vez rumo a Berlim.
Wilson Dunkeld, com uma expressão bem menos carregada após ter
interrompido o contato visual com os agentes que ele com certeza havia visto a
bordo, retirando um envelope pequeno do bolso do seu belo blazer marrom,
chamou o restante do grupo para perto de si.
- Respondendo à pergunta que a senhorita Schmidt havia feito, eu insisti
para passarmos no hotel em Belém e pegar nossas coisas, porque não pretendo
voltar à Lisboa tão cedo.
Olharam sem entender.
- Mas, senhor Dunkeld, se a informação que o senhor nos apresentou
estiver correta e a carta foi realmente enviada para Alemanha tudo bem,
voltamos para Gloucester, mas se não a encontrarmos em Munique, infelizmente
teremos que voltar. – Ressaltou a jovem.
Ele sorriu abertamente, parecia extremamente satisfeito, acompanhado
no sentimento por seu velho amigo de buscas.
- Também foi por isso que sugeri a Alemanha.
- Hum? – A jovem, com razão, não entendeu.
- Berlim além de ser bela e ter uma história incrível, é um bom lugar
para passarmos um tempo despistando a Guardiões, além disso fica próxima de
Londres. É juntar útil e agradável.
- Como assim sugeriu a Alemanha? Depois de desembarcarmos em
Berlim, não vamos à Munique? – perguntou August tão confuso quanto a
parceira – Esclareça vovô, não estou entendendo.
- Diga logo Will. Posso te chamar de Will não posso? – perguntou
Rudolph brincando.
- Pode sim claro, fique à vontade. – Respondeu Wilson com os olhos
arregalados na direção do amigo e continuou – Não precisamos, ou
precisávamos ir à Munique, sequer à Alemanha.
- Não?
- Não.
- Então por que estamos indo? – insistiu August.
- Em parte, por sua causa. – Respondeu seu avô.
- Por minha causa? Como assim? O que eu fiz?
236

- Contou sobre nossa pista a um Pilar! – respondeu firme e depois


ironizou – Se eu não intervenho você com certeza o chamaria para um chá em
Gloucester.
August fez uma expressão de deboche.
- Queria apenas acabar com isso logo. Ele havia nos dado um selo e
também mantem contato com o LHC. Mesmo que o selo seja falso, acredito que
estão do nosso lado.
Os ex-agentes se olharam.
- Não se confia em um Pilar, nunca. – Interveio Rudolph. – Fazem tudo
pela agência, ou seja, tudo para si próprios.
- E quanto ao Lawrence? Vamos confiar nele?
- Nele não, mas no selo que ele nos deu, com certeza – afirmou seu avô,
certo do que dizia.
- Certo, tudo bem. Já entendi a minha parte. Acabei falando demais
mesmo, não é? – perguntou August, quase raciocinando em voz alta.
- É, falou sim. – Respondeu seu avô.
- Ok, vamos deixar isso de confiança de lado um pouco, afinal
conhecemos duas grandes e perigosas organizações envolvidas e pelo visto não
podemos confiar em nenhuma delas. Certo. Mas agora explique, por que
estamos indo embora de Portugal se ainda não temos a carta e pelo visto ela não
está na Alemanha?
- Sabe as três páginas que peguei emprestado na Torre do Tombo?
- Emprestado? – ironizou August – Sei.
- Pois é, não eram três, mas quatro. – Mostrou-lhes a carta aberta, sem
envelope, como ele próprio havia descrito para Charles, e o que é melhor, com
o selo ESCARAVELHO fixado no fim. Toda colocada no verso de um mapa-
múndi da época feito pelo cartógrafo Martin Waldssemuller.
- O senhor mentiu para Sir Galahad? – perguntou Ana espantada,
também já sabendo a resposta.
- Não completamente – desconversou o Sr. Dunkeld. – A história sobre
a carta se encaixa, apenas não disse que já a possuía. Eles não nos deixariam em
paz nunca.
- O senhor tem se saído um belo de um mentiroso, não? – acrescentou
August sorrindo.
Seu avô, sorrindo como sempre, deu de ombros.
Você nem imagina o quanto. Pensou Rudolph.
237

- Por ser boas as causas, digamos, finalidades, vou relevar – continuou


August se animando. – Agora então, vamos para casa logo enviar a carta para o
LHC! Não podemos perder tempo.
- Já cuidamos disso – Respondeu Rudolph. – Quando percebi que seu
avô não ia revelar a posse da carta para a Guardiões, decidi ligar para Suzan e
pedi a ela que respondesse ao LHC informando nosso, há de se ressaltar, imenso
progresso.
- Uau! Vocês são rápidos! – exclamou Ana eufórica – Quer dizer que só
resta uma?
- Exatamente parceira! Só nos resta encontrar mais uma carta contendo
o selo ESCARAVELHO e podemos, quem sabe, consertar tudo e voltar para
casa. – Respondeu August com o olhar esperançoso, fixo no carrinho trazido
por uma aeromoça.
Os velhos amigos olhavam para o selo e refletiam, mais Rudolph que
Wilson.
- É verdade, a primeira parte da busca está completa, vamos aguardar e
ver o que o tal LHC tem a nos dizer desta vez. – Completou o avô de August
enquanto pegava um macarrão com almôndegas, acrescentando descontraído
em seguida – Mas até lá, vamos comer e aproveitar a viagem!

Capítulo 56

Minutos depois, com os dois mais velhos dormindo e August fingindo


dormir, por estar sentado ao lado de Ana e ainda se sentindo embaraçado pelo
lance das flores, mesmo pensando que ela não havia entendido, a jovem
responsável pelo embaraço do único acordado ao seu lado, não parava de pensar
em tudo o que estava acontecendo.
Quem são essas pessoas e por que querem os selos?
Do nada, ela se levantou e assustou a todos ao seu redor, conhecidos ou
não, com um súbito grito de surpresa.
- Nossa! – percebendo que alguns dos outros passageiros olharam para
ela, chamando uma atenção indesejada, assim como daquela vez no restaurante
do Novotel no Egito, se desculpou – Desculpem, foi apenas um pesadelo, podem
voltar a fazer... o que estavam fazendo.
238

Como os três também fecharam novamente os olhos, após tomarem


também para si as palavras de Ana, ela os empurrou levemente com as mãos e
continuou, falando baixo desta vez:
- Não, pelo amor de Deus, vocês não, acordem!
- O que foi Ana, por que o desespero? – perguntou August encenando
um bocejo.
- Eu estava aqui pensando nesta tal organização...
- A Trindade?
- Sim, exato. Ela meio que confirma a nossa teoria dos religiosos serem
os responsáveis por sabotar o projeto das cartas no futuro.
- Sim. Mas você não gritou desse jeito para nos falar o óbvio, então
prossiga. – August já a conhecia bem.
- Está certo. Bom, se ela é uma espécie de agência paralela, ou que atua
dentro da Igreja, nós tivemos muita sorte em invadir a sede deles, furtar um
arquivo e sair, sem sofrermos qualquer dano ou sermos descobertos, não acham?
– perguntou sem dar chance para resposta, apenas fazendo-os pensar – Claro
que aquele atentado foi uma coincidência determinante, mesmo assim...
- Ana, você precisa saber de uma coisa sobre o atentado – interrompeu
August, que antes de terminar a frase, levou um discreto, porém forte chute no
tornozelo, de seu avô.
- Sim, o que tem ele?
Ele hesitou um pouco forçando algumas tossidas.
- Foi um ato terrorista horrível, realmente tivemos sorte de não termos
nos ferido.
Antes de Ana exigir uma explicação para aquele comentário
desnecessário que acabara de fazer, pois ela com certeza iria, August
desconversou, mudando rápido o foco da conversa.
- Mas, está querendo dizer que podem ter nos deixado levar a carta?
- Talvez. Pode ser também que não sabiam da existência dela, ou não
possuem apoiadores no Vaticano, mas sem dúvida é uma hipótese a considerar.
Podem estar nos usando da mesma maneira que o Lawrence de 2016.
- A senhorita Schmidt… quero dizer, Ana – sorriu o Sr. Holister se
esforçando para ser menos formal – tem razão, por mais difícil que seja
encontrar um motivo plausível, podemos ter tido a vida facilitada naquela
ocasião, restando a nós tentar descobrir o porquê.
- Acalmem-se senhores, vamos buscar mais informações sobre esta
organização e depois pensemos nisso, afinal tudo que sabemos até agora veio
de um Pilar e não confio nada, absolutamente nada neles – interveio o Sr.
239

Dunkeld. – Além do mais o LHC deve nos esclarecer algumas dúvidas sobre
este assunto, e já que as informações passadas por ele se confirmaram até agora,
podemos supor que ela, digo, ele, sei lá, seja de confiança, pelo menos tem dito
a verdade até aqui. – Concluiu.
- Também existe o fato de que esse grupo, ou agência chamada A
Trindade, opera na clandestinidade e atuar dentro do local mais visado da
religião não deve ser nada fácil.
- Também faz sentido – concordou August.
Ana sorriu imediatamente após o comentário de Rudolph, chamando a
atenção deles.
- O que foi Ana? Qual a graça? – perguntou August.
- Desculpem gente, não foi nada. – Respondeu ela se recompondo, ainda
deixando escapar umas poucas e contidas gargalhadas. Jaque.
Todos concordaram em deixar as teorias e discussões para depois, para
quando chegassem em casa. Assim sendo, os dois grisalhos voltaram ao mundo
ainda incompreensível, rico e cheio de sentimentos, estudado a fundo por
Sigmund Freud, enquanto August continuava desconfortável sem saber o que
dizer para a jovem ao seu lado, que lia um livro emprestado pelo Sr. Holister,
chamado The last Sherlock Holmes Story – A última história de Sherlock
Holmes –, publicado em 1978 no Reino Unido.

Após ler mais um capítulo, a bela jovem de cabelos ruivos, que mesmo
amarrados cobriam toda parte de trás do pescoço, por estar com os olhos
cansados, decidiu guardar o livro, levantando-se para ir ao banheiro.
Quando Ana abriu a bolsa, bem ao seu lado, desta vez com os olhos
abertos, August viu as flores guardadas no bolso maior e protegidas por um
plástico, de forma a serem danificadas o mínimo possível com a viagem.
Ela então, guardou delicadamente o Sherlock e se dirigiu ao fundo do
avião.
Durante a ausência de Ana, August pensava em formas de iniciar uma
conversa mais profunda, assim como no jardim na base da Guardiões, sem
envolver cartas ou buscas, nada ligado ao que estavam passando, mas a
sentimentos, gostos e sonhos que envolvessem uma vida normal.
Preciso de algo que nos aproxime mais, mas como “amigos íntimos”,
não como parceiros, afinal está difícil de esconder, o que acredito ser minha
240

Philia por ela, o que deixa explícita minha imperfeição. Pensava entre o que
sentia e o que poderia dizer.
Romântico como sempre fora, August ao pensar em sua dita
imperfeição, referia-se ao grande filósofo grego Aristóteles que dizia que “o
amor em qualquer das suas expressões, é o sentimento dos seres imperfeitos,
posto que sua função é levar o ser humano a perfeição”.
O que essa garota tem que me faz ficar assim? Parece que nunca estive
com outra mulher.
Todavia, quando Ana retornara, mesmo após toda aquela reflexão
profunda sobre o amor e a seleção de frases de efeito dispostas na ponta da
língua, ele apenas conseguiu perguntar:
- Então, ele já se encontrou com Moriarty?

Capítulo 57

Desembarcaram em Berlim ainda antes do anoitecer e para desânimo


geral, o próximo voo com quatro lugares disponíveis para Londres, só partia de
madrugada, ou seja, tinham muito tempo livre no principal território do antigo
Sacro Império Romano Germânico.
- Já que estamos aqui e não temos outra escolha além de esperar, o que
me dizem de uma pesquisa rápida? – perguntou Ana demonstrando a animação
que lhe é característica. A esperança de conseguir, pelo menos tentar, voltar para
casa, trouxera a jovem encantadoramente otimista, que August conheceu no
correio de Gloucester, de volta.
- Mas, não temos mais pistas sobre cartas. – Argumentou Rudolph.
- Mesmo assim podemos procurar.
O velho arqueou uma das sobrancelhas.
- Partimos da premissa – continuou a jovem – onde esses ativistas, pelo
menos a parte correspondente aos católicos, possuem todos os motivos do
mundo para enviar uma carta a Martin Luther – Martinho Lutero – e quem sabe
evitar a reforma religiosa, ou até provocá-la, no caso dos cristãos não católicos...
é uma ponta sem nó na história, até porque, a intenção inicial de Lutero nunca
foi a separação da Igreja, ou a criação de novas religiões, mas a melhora da
doutrina já existente, então...
- Não sei não, é um baita tiro no escuro. – Insistiu o Sr. Holister
desanimado.
241

- Pensem bem, a possibilidade inegavelmente existe e levando em


consideração que estamos descansados, principalmente vocês dois – apontou
para os veteranos da viagem – e não somos Tom Hanks em O Terminal,
podemos nos dividir e visitar, antes de fecharem, museus, bibliotecas e
memoriais que podem, quem sabe, nos levar a uma pista de uma possível última
carta com o último selo ESCARAVELHO.
- Tom Hanks no que? – O Sr. Rudolph ficou boiando.
- Você anda lendo Sherlock Holmes demais parceira. Procurar pistas de
uma carta provavelmente inexistente, é meio exagero não acha? – perguntou
August meio que puxando-a para trás.
- Pensando bem pode dar certo – interveio seu avô antes que Ana
respondesse. – Quero dizer, mesmo que não encontremos nada em relação aos
selos, seria um ótimo passatempo e uma certeza maior que realmente
despistamos a Guardiões. – Argumentou olhando para seu velho amigo, que
assentiu com um sinal de positivo com a cabeça. – Vamos dar uma volta atrás
de 95 teses por aí e nos encontramos aqui às dez. Eu vou com Holi aos museus
mais próximos e vocês vão até a ponte Weidendammer pendurar uns cadeados
– sorriu. – Brincadeira. Viram como eu pronuncio bem nomes difíceis sem
pressão?
Sorriram.
Assim, iniciaram seu rápido passeio pela Berlim Ocidental, o lado
capitalista do muro, o qual só seria derrubado em cinco anos dali a adiante.

Com um clima de instabilidade social e vigilância as fronteiras, pouco


conseguiram sobre a pesquisa desejada e antes, bem antes das 22h, já se
encontravam no aeroporto para voarem de volta a boa e velha Inglaterra. Claro,
não antes do Sr. Dunkeld habilmente colocar o selo ESCARAVELHO falso,
possivelmente um rastreador, na bolsa de uma simpática senhora parada em um
ponto de ônibus.
- Não conseguimos encontrar nada do que já não soubéssemos, e vocês?
– perguntou o Sr. Holister.
- Nada também, o clima por aqui não está muito propício a pesquisas
acadêmicas. Vamos torcer para que a última carta, de fato, não esteja aqui, pois
teremos muito trabalho se assim proceder. – Disse August tentando conter o
sorriso fixo e espontâneo em sua face.
242

Claro que ele não seria indiscreto a ponto de perguntar, mas seu avô
percebeu o porquê daquela felicidade tão explícita.
Até que enfim!

Desta vez os lugares os deixaram dispersos no avião, com os dois mais


velhos dormindo na fileira do meio e com os jovens rindo e conversando nas
poltronas ao lado da janela, agora com August mais solto e extrovertido,
torcendo para a aeronave fazer uma curva.

23 de setembro de 1984

Ajoelhado em um genuflexório, de frente para uma parede quadrada


marrom-escuro em uma sala de escritório, quase sem nenhuma mobília, um
homem vestido de vermelho mantinha o olhar fixo em três letras pintadas de
branco bem ao centro, único detalhe daquela parte do cômodo.
Batidas na porta.
- Entre! – Disse o homem sem se levantar. – Está aberta.
- Desculpe incomodar vossa eminência, mas trago notícias importantes.
- Entre e feche a porta – pediu ainda de joelhos, sem tirar os olhos das
letras na parede.
O homem de cabelo bem aparado, de terno escuro e gravata clássica,
atendeu o pedido e aproximou-se.
- Perdemos eles em Portugal. Tudo indica que a agência citada por vossa
eminência interferiu.
- Isso não podia ter acontecido. – Respirou fundo. – Com certeza eles
vão comprometer a missão.
- Quem são eles?
- São pessoas que procuram essas cartas a anos e não possuem objetivos
nobres como os nossos.
- E o que faremos agora?
O velho levantou-se devagar.
- Agora, nós esperamos.
- Esperar? Como assim?
243

- A carta que enviei ainda não retornou, então esperamos.


- Certo. Já temos pessoal tentando localizá-los.
- Não é necessário.
- Tem certeza?
- Sim. Eu mesmo vou descobrir onde estão. – Foi até a janela e
inspirando profundamente outra vez, olhava o horizonte. – Apenas fique de
prontidão. Eu não queria, mas talvez tenhamos que intervir. Temos muito a
perder.
244

Mudança... de foco
De Berlim para Londres, de Londres para Gloucester.
Estas buscas fariam a alegria de qualquer turista adepto de belas
paisagens e aventuras, é claro.
Mesmo não sendo propriamente um turista, pelo menos nunca
apresentou características para ser classificado como tal, Rudolph Holister
aderiu algumas práticas desse tipo de viajante e chegou em casa vestindo uma
camisa escrito Keep Calm and Live in Berlim – Mantenha a calma e viva em
Berlim – além de trazer consigo, um bonequinho de porcelana do Papa João
Paulo II para presentear Suzan, adepta do catolicismo, comprado em sua breve,
porém marcante visita a Cidade do Vaticano.
Já no fim da manhã, de volta aos assuntos importantes, Suzan contou a
eles o que havia escrito na carta, na verdade contou exatamente o que escrevera
na carta, pois fez uma cópia antes de enviá-la.
A carta enviada, direcionada ao LHC pela senhora Holister, continha
todas as informações a respeito do progresso e as dúvidas manifestas,
principalmente sobre o papel das organizações envolvidas. Suzan fez um
resumo de tudo o que seu marido havia lhe falado pelo telefone e
competentemente compilou todas as informações em poucas linhas, afinal já
quase não restava espaço no papiro, utilizado várias e várias vezes.
Mesmo com o selo UDJAT sendo adquirido depois da primeira ligação
feita pelo marido, Suzan ainda escrevia quando recebeu a segunda.

Ao meio da tarde, o dia seguia normal e calmo, exceto pela presença do


furacão Frank capaz de destruir toda e qualquer espécie vegetal do jardim com
sua bola de futebol.
August e Ana haviam saído para dar uma volta, sem informar onde iam
exatamente. A jovem havia pedido ao parceiro para a acompanhar até a casa de
sua família, e não queria demonstrar esse sentimentalismo na frente dos demais.
Pegaram o carro do Sr. Holister emprestado e rapidamente estavam na
parte urbana da cidade.
Estacionaram o tipicamente inglês Triumph TR4 azul-claro na esquina
onde o avô de Ana morava e não tiveram que esperar muito.
245

Mãe!
Chegando em casa com sacolas de compra, a jovem futura mãe de Ana
Schmidt, parecia não ter levado as chaves.
- Vamos até lá.
- O que? Ficou maluco?
- Anda, venha! – August já havia saído do veículo e se distanciava.
Ana precisou correr para o apanhar.
- E vamos falar o que?
- Sei lá, a gente improvisa.
A jovem abriu a boca e arregalou os olhos, só não deu meia volta para
a situação não ficar estranha, afinal, August já havia gritado para a moça prestes
a entrar em casa.
- Ei moça! – achegou-se em uma corridinha – Nós não somos daqui e
estamos meio perdidos – coçou a parte de trás da cabeça.
A bela jovem ruiva, de óculos com armação preta, bem rústica,
aparentando não ter nem dezoito anos, virou-se para eles com uma expressão
simpática.
- Pois não, o que precisam? – Entregou as compras para a mulher que
abrira a porta.
Vovó!
- Só um minuto. – August olhou para trás e viu Ana estática, com toda
pinta que dali não sairia.
O jovem sabia que a parceira se arrependeria muito caso perdesse uma
oportunidade como aquela, então, deu um empurrãozinho.
- Ei Linda! Onde precisamos ir mesmo? – gritou para Ana e voltou-se
sorrindo, ainda sem graça, para a jovem à porta – Ela que sabe das coisas.
Ana demorou um pouco a reagir, mas segurou as emoções e foi até eles.
- Queremos ir... até a Catedral, sabe onde é? – A pergunta ainda
demorou a sair.
- Sei sim, é claro. Basta vocês seguirem...
A jovem foi falando e gesticulando, mesmo assim Ana não conseguia
focar nas informações. Estava ali, a um passo e meio da mulher que mais amava
e não sabia se a veria novamente, pelo menos não como sua mãe.
- Entenderam? – Perguntou a jovem ao concluir.
- Entendemos sim, muito obrigado! – August teve de responder.
- Precisam de mais alguma coisa? – A moça agora estranhou um pouco
a postura dos jovens.
Ana continuava imóvel.
246

- Não, agora nós chegaremos lá. – August agradeceu estendendo a mão.


– Mais uma vez muito obrigado.
Assim que cessaram o cumprimento, o jovem se virou com intenção de
ir embora, mas deteve-se ao ver a forma como Ana se despedia.
- Muito obrigado! Obrigado por tudo! – Ana abraçava a versão jovem
de sua mãe e segurava com extrema dificuldade as lágrimas.
Meio que sem entender, a jovem retribuiu com um abraço sem jeito.
- Por nada. – Olhava para August com as sobrancelhas arqueadas.
- Ela é assim mesmo, muito agradecida – tentava explicar.
Quando finalmente a soltou, Ana olhou nos olhos da moça e disse:
- Você é muito... show, vai encontrar alguém que também é… show e
formarão uma família show. – Abraçou-a novamente.
- Ok, obrigada.
August abriu os braços sem saber o que dizer frente a encarada sem jeito
da futura mãe de Ana Schmidt.

Capítulo 59

No olho do furacão, enquanto Wilson Dunkeld roncava no quarto de


hóspedes, apesar de todo o barulho que o garoto Frank fazia, Rudolph Holister
recebeu uma ligação de seu amigo Genaro, o ex-agente da Guardiões que agora
era cardeal.
- Fala meu amigo! Tudo bem?
- Estou ótimo RH, obrigado. E quanto a vocês? Todo mundo bem
também?
- Por aqui tudo às mil maravilhas.
- Ótimo, ótimo. Fico muito feliz em saber disso. Ainda estão todos aí
com você?
- Não, o filho e a nora do BO já foram embora.
- Hum, que pena. Depois do nosso último encontro, pensei que alguém
tivesse ficado meio mal e queria me retratar.
- Não, relaxa. Pessoal aqui está calejado – expirou sorrindo.
- Mesmo assim, eu gostaria de pedir desculpas por não ter avisado sobre
o explosivo. Eu mal tive tempo de colocá-lo e só usei mesmo porque não tinha
outro jeito.
247

- Sim meu amigo, sem problemas. BO e eu sacamos na hora que tinha


sido você, ainda mais quando vimos que o lugar onde a bomba explodiu estava
totalmente vazio. Mesmo assim você se arriscou.
- Nisso nós concordamos. Me arrisquei assim que aceitei fazer esse
favor para vocês – brincou.
- Touché!
- Mas tudo bem, eu sei que vocês devem estar envolvidos com alguma
coisa bem séria e fiz o que precisava para ajudar. Fico feliz que tenha dado certo.
- Ô se deu! Melhor que o esperado.
- Que bom. Mas aqui, vim até Londres participar de um Congresso e
queria lhe fazer uma visita. Você ainda se esconde por essas bandas?
Rudolph gargalhou. Por um tempo, precisou mesmo morar se
escondendo da Guardiões.
- Não, agora moro um pouco mais distante. Em Gloucester.
- Gloucester? Onde fica?
- Umas duas horas a noroeste daí.
- Nossa! É meio fora de mão para mim. Estou aqui em uma reunião, é
bate e volta.
- Que pena. Seria bom nos reunirmos outra vez para tomarmos um bom
e velho...
- Veleiro britânico – completou Genaro sorrindo do outro lado da linha.
– É, bons tempos meu amigo, bons tempos.
- Que não voltam... – acrescentou pensativo, respirando fundo – que não
voltam.
- Enfim, não vou garantir, mas se eu conseguir escapar da agenda
apertada aqui, dou um pulo aí.
- Será um prazer lhe receber. Até mais!
- Até! Que a paz do Senhor esteja sempre com você e sua família.
- Amém!

- Você está bem? – Perguntou August depois de alguns minutos parados


em silêncio dentro do carro.
- Sei lá – duas lágrimas desceram. – Acho que isso está sendo um pouco
demais.
August apertou a mão dela entre as suas.
- Eu sei, aguente só mais um pouco. Estamos quase conseguindo os
selos para...
248

- Para que August? Nem sabemos para que servem todos esses selos!
August pensou em falar, mas optou pelo silêncio.
Desabafe Ana.
- Não sabemos se vamos conseguir o último, ou qual o plano se a gente
conseguir, ou quem é o maldito LHC! – soltou a mão do parceiro e bateu com
as duas no painel do carro. – Se é uma pessoa ou um canhão de partículas!
August saiu do carro após ficar alguns minutos vendo Ana passar a mão
na cabeça, da testa à nuca, enquanto se acalmava.
- O que vai fazer? – Perguntou a jovem.
- O que deveria ter feito antes mesmo de ligar o carro. – Começou a
rodear o veículo.
Mesmo com certa dificuldade, August conseguiu retirar toda a capota
do Triumph TR4, fazendo com que o para-brisa, fosse a única estrutura existente
acima do nível do volante.
- Prenda o cabelo aí, perfeitinha Schmidt, vamos tomar um ar. – Não
achou que conseguiria arrancar um sorriso dela só com essa provocada, mas
conseguiu. Então, soltou logo outra – Mas antes eu gostaria que me explicasse
que negócio de “show” foi aquele?
- Eu fiquei sem palavras, ora! Foi só o que me veio a cabeça.
Os sorrisos estavam de volta.
- E você? Linda?
- Ah, sei lá! – gargalhou – Também foi o primeiro nome que veio.

Quando chegaram em casa, ao cair da noite, os jovens, visivelmente


mais animados do que quando saíram, se depararam com todos reunidos na sala,
menos Frank e sua mãe que já haviam ido embora.
Em torno da mesma mesa utilizada para enviar e receber a carta do LHC,
os mais velhos faziam algo bem menos misterioso e perigoso, porém, não menos
estratégico e emocionante.
- Muggins! – bradou o Sr. Dunkeld.
- Qual é?
- Nem vem com essa! Ninguém comentou sobre isso no início do jogo
– retrucou Daiane erguendo o braço. – Você pode até passar para trás o pessoal
lá na América, mas aqui não meu camarada, aqui não!
Passaram por eles apenas para os cumprimentar e se dirigiram à cozinha.
249

Ana, curiosa com a interação e algazarra proporcionada pelo tal jogo,


perguntou a August:
- Que jogo é aquele?
- Sério? Uma britânica de nascimento e criação, que não conhece
Cribbage? É difícil de achar, hein?
Ana mostrou-se indiferente.
- Acredito que não mais. Minha geração não se importa em manter
tradições ou preservar a cultura clássica do contato humano e reuniões
familiares com seus jogos e conversas... como dizem, bem ou mal, somos o
futuro! No momento, literalmente. – Completou risonha, mas não tão animada
devido a reflexão um tanto decepcionante que antecedera a piada.
- De fato. Infelizmente isso é geral – concordou. – Mas deixemos isso
de lado, vamos nos preocupar com um problema mundial por vez – brincou. –
O que acha de comermos algo enquanto te explico o jogo?
- Ótima ideia.
Pegaram alguns pedaços de bolo, chá e se sentaram em cadeiras altas,
apoiando-se no balcão feito de madeira dividindo a cozinha.
August como um cavalheiro, serviu primeiro a dama e antes mesmo de
levar algo à boca, começou a explicar.
- Cribbage é um jogo de tática e contagem, possivelmente inventado
pelo poeta inglês Sir John Suckling no início do século XVII. – Não se lembrava
ao certo da data, mas resolveu arriscar. Queria impressiona-la. – Normalmente
é jogado por duas pessoas, mas pode ocorrer variações no número de jogadores
como pode ver – olhavam para os quatro se divertindo na sala. – Seu objetivo é
marcar um número “x” de pontos, quase sempre 61 ou 121 e a forma de jogar
consiste em... – Foi explicando detalhadamente o jogo, usando de toda sua
eloquência para ganhar a atenção da jovem. Se fosse Futebol Americano, ele
explicaria o que acontece quando um punt é bloqueado e a bola sai pela lateral
da end zone, uma jogada descrita nas regras, mas que raramente acontece. Não
importava seguia inundando-a de informação, adorando prolongar a conversa.
Em determinado momento da noite, os dois já haviam se juntado aos
demais e se divertiam com o exótico jogo, ao som do rock progressivo da década
de 70 na voz de John Lennon e na flauta enlouquecida de Jethro Tull, os
preferidos de Daiane.
250

Capítulo 60

24 de setembro de 1984

Ao serem acordados por Daiane e sua corneta militar, outra vez


encontravam-se reunidos em volta da mesa no centro da sala da casa de Rudolph
Holister, futura casa de August Hermes.
Déjà vu! Foi o pensamento coletivo ao verem a conhecida carta os
esperando.
Sem perder tempo ou se preocuparem com os hábitos higiênicos
tradicionais após um despertar, assim como da outra vez, todos se aproximaram
para ouvir August lê-la.
- Ele trocou o papiro. – Comentou logo que pôs as mãos na carta
dobrada.
- O que? – Ana se aproximou para ver.
A folha de papiro, pouco menor que uma folha A4, normalmente
dobrada até ter sua extensão reduzida a quase um terço, estava limpa nas faces
que se podiam ver, diferentemente de antes.
- Parece que nosso amigo LHC sabe como remover com segurança e
reutilizar os selos – comentou Rudolph.
- Ou é outro selo DJED – acrescentou Ana.
- É, pode ser. Mas vamos a leitura, que estou ansioso aqui. – Wilson
sentou-se para amarrar os sapatos.
Com a carta nas mãos, August correu os olhos, esperando de forma
cortês, o consentimento de todos.
- OK, vamos começar de forma direta, assim como ele aqui, sem
saudações nem nada.
Maravilha, vamos nessa! Ana era pura expectativa.
Antes de começar a ler, August sentiu a necessidade de respirar. Aquela
sensação de perder o chão, a muito não sentida, não poderia ter escolhido pior
hora para retornar.
- "Antes de mais nada, gostaria de registrar minha surpresa e satisfação
com a rapidez de vocês em encontrar as cartas e que minhas esperanças em
conseguir evitar o fim foram renovadas. – Sentindo seu coração querendo
arrebentar o peito, August mantinha uma leitura pausada para não demonstrar o
quanto estava ofegante. – Realmente vocês são os únicos capazes de realizar
essa missão...
251

- Pressinto um “mas”. – Sussurrou o Sr. Dunkeld.


- ... mas o nosso tempo é mais curto do que esperávamos e o mais difícil
será encontrar o último selo...
- Não falei. Nunca vem sem um “mas”. – Novamente Wilson sussurrou.
- ... pois assim que consertamos o rastreador, descobrimos que o selo
restante, um selo ESCARAVELHO, está sendo ativado constantemente, e por
coincidência ou não, o remetente e o destinatário, são nossos contemporâneos...
- Brincou. – Comentou Ana não acreditando.
- ...divergindo apenas a localidade”. – August mal conseguia terminar
as orações.
- Isso significa que a Trindade também mantém contato com o futuro!
– Ana concluiu rápido.
- Vamos terminar de ouvir – interveio Rudolph.
- August, está tudo bem? – Perguntou seu avô.
- Sim, estou apenas um pouco cansado. Preciso sentar um instante.
- Consegue continuar lendo?
- Consigo. – Fechou os olhos, inspirou profundamente e depois de fixar
o olhar em Ana por alguns segundos, continuou – “No tempo de vocês, o país
correspondente é novamente a Itália.
- Aí a brincadeira acabou. – Interrompeu Ana outra vez, nada surpresa
desta vez.
- “Portanto, quando receberem essa carta que vos mando, não saberei ao
certo a localidade do selo derradeiro, se aí ou aqui – Apesar do mal estar,
continuava lendo. Estava focado. – Quanto as organizações envolvidas, não
revelei a participação da Guardiões pois, apesar de ter pedido ajuda a eles, nunca
confiei cegamente na agência e conhecendo Obrien e Holister, sabia que fariam
o mesmo. Já em relação a organização Trindade, não tinha informações sobre
sua existência. Por agora, acredito que sua origem e núcleo estejam em vossa
realidade, com o único propósito girando em torno de vocês, pelo visto, girando
em torno de deter vocês”. – August fez outra pausa, não devido aos incômodos
que sentia, mas às expressões preocupadas a volta.
- Pode continuar August, entendemos a gravidade da situação. – Disse
seu avô percebendo o motivo da interrupção da leitura.
- Certo. – Chegou a carta um pouco mais perto do rosto. – “Para a
segurança de todos e da própria missão, não revelarei o plano em sua totalidade
ainda, apenas o farei quando estiverem com a última chave em mãos. Aguardo
notícias. Se apressem, pois como eu disse, acredito que o nosso tempo seja curto.
LHC”.
252

- O que faremos agora? – Perguntou Daiane.


- Está praticamente confirmado, como disse a senhorita Schmidt, que
são os membros da Trindade os destinatários desta realidade, visto que a sede
principal deles fica, provavelmente, na mesma que a da religião, ou seja, na
Itália. – Acrescentou o Sr. Holister.
- Então, de volta à Itália? – Perguntou August.
- Ei pessoal! Esperem um momentinho. – Ana caminhou até o centro do
cômodo. – Só eu achei estranho o LHC saber os nomes deles dois?
Os mais velhos tornaram-se o centro dos olhares.
- Ora, você é nossa senhorita Holmes, agracie-nos com seu brilhantismo
dedutivo habitual. – Respondeu o Sr. Dunkeld com um sorriso de orelha a
orelha, meio que saindo pela tangente. – Brincadeira, minha querida. O tempo
pode estar contra nós, mas acredito que podemos retomar o passo a passo
matinal e discutiremos isso e possíveis locais de onde possa estar este último
selo durante o café.

Não havia amanhecido quando Lawrence Campbell chegou em casa


após uma curta estadia na Europa. Estranhou as luzes da entrada acessas.
Um velho de boa aparência, acabando de guardar uma carta em seu
casaco, veio recebê-lo.
- Pai! O que faz acordado? Não precisava ter levantado tão cedo.
- Precisava sim. A situação não está nada boa. – Abraçou-o.
Seu pai nunca foi de demonstrar muito afeto, por isso o jovem ficou
preocupado.
- O que aconteceu? O senhor está bem?
O velho apertou o abraço.
- Me perdoe filho.
Lawrence se afastou e o encarou.
- Perdoar? Mas, por que?
- Nossa! Por onde eu começo? – respirou fundo – Você sabe que tudo
que fiz foi para trazê-la de volta, não sabe?
- Sim pai, eu sei! E acabo de fazer o que o senhor me pediu. Logo
teremos as cartas necessárias para irmos atrás de respostas.
- Não meu filho...
- Eu sei que perdemos eles na Alemanha, mas eu tenho outro jeito de
encontrá-los.
- Sim, eu sei. Já providenciei isso.
253

- Então, qual é o problema?


- Os planos mudaram.
- Como assim?
O velho caminhou até os poucos degraus da entrada e sentou-se.
Lawrence, colocando a mochila de lado, o acompanhou, ficando de pé ao nível
do chão.
- Não pise na grama.
- Esquece a grama pai! Me fala o que está acontecendo!
- Na verdade, eu não sei bem o que está acontecendo, só sei que é algo
importante e teremos que confiar a possibilidade de trazer sua mãe de volta a
outra pessoa.
O coração do jovem disparou.
- Do que o senhor está falando? Nada é mais importante do que nós a
trazermos de volta!
- Mas ainda nem sabemos como meu filho!
Assim como o clarear do céu, o tom das vozes também foi aumentando.
- Não sabemos porque o senhor nunca quis arriscar! Com essa postura
covarde nos limitou a uma maldita caça ao tesouro sem fim! – Expirou forte
virando a cabeça. – E mesmo quando encontramos algumas moedas, ainda não
podemos gastar.
- Como vamos mexer com algo que não entendemos Lawrence? Sua
mãe não sumiu como sua tia, ela morreu!
- Não estou nem aí! Damos um jeito de voltar e mudar isso! Essa é a
maior chance que teremos para tentar trazer a mamãe de volta e não vou deixar
você desistir, seja por qualquer motivo! Muito menos acreditar numa pessoa que
nunca nem vimos!
Arthur Campbell respirou fundo e levantou-se.
- Já está feito.
- Então eu vou desfazer!
- Não, não vai! A Guardiões ainda é minha e os agentes já estão
seguindo novas ordens.
O jovem esfregou forte o rosto.
- Certo – balançava a cabeça. – Então eu farei do meu jeito. – Pôs-se a
subir os degraus, mas foi impedido por seu pai com um empurrão.
- Não, você não vai interferir.
- Ah, eu vou! – Tentou subir novamente. Outro empurrão, desta vez
mais forte.
- Não! Você não vai!
254

Com o sangue fervendo em suas veias, Lawrence deu um soco no rosto


de seu pai e quase o jogou no chão.
Os poucos segundos que Arthur demorou para se recompor, foram o
suficiente para seu filho se acalmar e se arrepender, desesperado, do que acabara
de fazer.
- Pai, por favor me perdoe! – Foi ajudá-lo. – Eu não queria fazer...
Arthur fez cessar a fala do jovem com outro abraço, levando-o aos
prantos.
- Essa é a chance pai! – chorava copiosamente – Essa pode ser a única
chance!
O velho também deixou uma lágrima escapar.
- Eu sei filho, eu sei, mas precisa confiar em mim. Vamos moldar um
novo futuro para você.

Capítulo 61

Todos haviam retornado aos seus respectivos aposentos para o passo a


passo matinal habitual antes de se reunirem para o café da manhã.
Reunidos à mesa, apenas esperando Ana para começarem as discussões
sobre o próximo passo, Wilson Dunkeld, passando geleia na torrada, perguntou
despretensiosamente a seu neto, utilizando expressões gregas de definição do
amor.
- Mas diz aí August – nem olhava para o neto –, já passamos do Ludus
para o Eros?
Rudolph deu aquele sorrisão após ouvir a pergunta, já August quase
engasgou-se com o pedaço de torrada que mastigava.
Após se recuperar, fez-se de desentendido.
- Não entendi, do que o senhor está falando?
- Ah, para! Até eu sei a que seu avô se refere. Percebi logo depois de
presenciar a intensidade daquele abraço quando ela chegou aqui – comentou a
discreta Suzan, para a surpresa de todos, fazendo com que seu marido fosse o
engasgado da vez.
- O que? – August só não deixou cair o queixo porque estava com a boca
cheia.
- Abraços que ultrapassam três segundos não mentem meu bom rapaz
– Acrescentou.
255

- Espera aí! Quer dizer que os dois já...? – perguntou Daiane


gesticulando com os braços.
- Os dois já... nada! – interveio August rapidamente, repetindo os gestos
feitos por Daiane – Ana e eu somos apenas amigos e, talvez... Philia seria a
melhor forma de definir meu sentimento em relação a ela e o dela em relação a
mim. – Concluiu olhando para seu avô.
Os que entenderam as citações gregas dos tipos de amor, sorriram. Na
verdade, apenas Daiane ficou boiando.
- Philia é o que você pensa ser, mas, mesmo não sendo especialista na
área, digo que esta expressão aí, já tinha ficado naquela tarde no “paraíso
tropical brasileiro”. – Argumentou seu avô utilizando as próprias palavras do
neto ao contar para eles a história de como chegaram ali, com aquele seu largo
sorriso habitual.
- Só pela forma como se olham já é perceptivo o quanto apreço um tem
pelo outro e não digo só na forma de consideração – acrescentou Suzan. – O
olhar também não costuma mentir.
- Sério? A senhora acha que é recíproco? – perguntou ele todo
empolgado, tentando disfarçar a mancada logo em seguida – Digo... acha que
ela sente isso por mim?
- Gafanhoto... – Daiane puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de
August – parece que você tem muito o que aprender sobre as mulheres.
August sorriu encabulado.
- E você vai me ajudar?
- Talvez. Mas, me fala sobre essa história de “ludu” e “phila” que vocês
falaram aí primeiro.
- Ludus e Philia. São formas de como os gregos, podemos dizer,
caracterizavam o amor – explicou August.
- Eram os tipos de amor que existiam?
- Isso, para eles, sim. Ludus é uma forma de amar divertida, onde a
brincadeira, a alegria e a falta de compromisso em si, se destacam. Para os
gregos, esse tipo de amor era efêmero, tipo uma paixão, e acabava evoluindo
para Eros ou Philia.
- Era o que?
- Eros.
- Não, o que disse antes. – Daiane, curiosa, queria pegar os detalhes.
- Efêmero quer dizer passageiro, rápido, que não dura muito – interveio
o Sr. Holister.
- Ah ta – voltou-se para August. – Continue.
256

August continuava envergonhado de falar sobre aquilo, principalmente


porque a conversa se originou de sua relação com Ana.
- Certo. Philia é um amor poderoso, autêntico, sincero e mutuamente
benéfico.
- Esse é o seu? Parece ser o seu – Daiane o interrompeu.
August ia confirmar, reforçando o que dissera anteriormente, mas seu
avô foi mais rápido.
- É tudo isso aí mesmo, afinal é o que você sente por um irmão ou um
amigo bem próximo.
- Ah é? – Daiane voltou a fixar o olhar em August.
- É sim.
- Então o seu é o outro, com certeza! Continua aí.
August titubeou, mas deu sequência.
- Eros é o amor que conhecemos. Romance, paixão, desejo. – Suzan,
olhando para o marido, fora quem interveio desta vez. – É o nome do cupido,
que nos atira flechas e desafia a lógica, nos deixando completamente
apaixonados.
Rudolph não se segurou. Aproximou-se de Suzan em um salto e a
beijou, aos sons de aplausos de August e seu avô, e gritos de Daiane.
- Gostei desses gregos, sabem como esquentar as coisas – brincou a
governanta. – Mas, agora vamos lá, me conte, quantas namoradas já teve?
Alguns chegaram a gargalhar com a pergunta, menos aquele a quem ela
fora destinada.
- Isto é meio pessoal, não? – August já estava achando aquele
interrogatório sobre sua vida sentimental um pouco demais. – Assim como toda
esta conversa, aliás. É melhor mudarmos de assunto e falarmos de algo com
algum fundamento.
- Não reprima seus sentimentos querido. Quer um conselho? –
perguntou Daiane retoricamente, pois se preparava para continuar a fala, porém,
antes que continuasse August a interrompeu.
- Não, não quero um conselho.
- Mas eu darei assim mesmo...
Gargalhadas ainda mais espontâneas ecoaram.
- Você precisa tomar a iniciativa – bateu com as duas mãos sobre a mesa.
– Aproveite um momento de distração, puxe-a pelo braço até junto ao seu corpo,
colada no seu corpo. Então incline-a para trás, segurando-a com apenas um dos
braços – seguia gesticulando, praticamente demonstrando fisicamente o que
falava – olhe dentro de seus olhos e se incline para beijá-la – fez até biquinho
257

ao terminar de representar. – Percorra noventa por cento do caminho e deixe ela


andar os outros dez.
Olhares surpresos. Apesar do jeitão de Daiane, ela conseguiu mesmo
criar uma cena romântica na cabeça de cada um.
- Resumindo, puxa ela e tasca um beijão! – E ela estava de volta – Foi
assim comigo e com um cabeludo que conheci em um show do Led Zeppelin
em setenta e um, quando...
- Daiane – interrompeu o Sr. Holister. – Você já nos contou essa história
do cabeludo vinte e sete vezes.
- Ah, me desculpem, sempre me empolgo quando lembro daquele
grandalhão. – Lamentou ela levantando-se da cadeira.
Quando ouviu Ana descendo pelas escadas, August disse a todos em
voz baixa:
- Gente, por favor, sem comentários, hein?
Foi necessário muito esforço para não tocarem no assunto,
principalmente após verem a expressão feita por August ao olhar para Ana e
perceber o motivo de sua demora em descer.
Uau!

Capítulo 62

Usando um belo vestido azul-claro até os joelhos, enfatizando sua


mocidade e realçando suas curvas, contrastando com seus belos cabelos ruivos,
agora soltos de forma mais rebelde, e com um batom escuro, no mesmo tom dos
cabelos, não tão intenso, porém extremamente perceptível quando usado por
alguém que sempre se apresentou com os lábios limpos, a jovem senhorita
Schmidt se pôs a mesa.
- E ainda tem dúvida. Pobre gafanhoto. – Sussurrou Daiane para ela
mesma arrumando algumas vasilhas no armário, após olhar o novo visual da
jovem e a cara embasbacada de August.
- Desculpem a demora. E então, de volta aos afrescos de Michelangelo?
– perguntou ela normalmente enquanto sentava e servia-se.
Demoraram um pouco para absorver o impacto causado pelo novo estilo
da jovem, mas depois de alguns segundos e um puxão de camisa de Suzan,
tentando evitar constrangimento a ela, Rudolph respondeu:
258

- Acredito não ser necessário outra viagem à Roma, se tivermos sorte


conseguiremos esta carta mais rápido do que pensávamos e, sem sairmos daqui.
- Como assim? – perguntou Ana.
- Podemos conseguir a carta sem sair de casa? – August reforçou o
questionamento.
- É, podemos sim. – Coçou a cabeça. – Isso é que me preocupa um
pouco.
Olhares de dúvida.
- Prossiga senhor Holister, o que tem em mente? – insistiu August.
Respirando fundo, olhando para sua esposa e depois para o amigo,
continuou:
- Recebi uma ligação de Genaro ontem, lembram dele?
- Claro! Foi o cardeal simpático que nos ajudou a conseguir a carta que
estava nos Arquivos Secretos do Vaticano. – Respondeu a senhorita Schmidt.
- E fez um certo estrago nas proximidades. – Cochichou August sorrindo
para seu avô.
- O que? – perguntou Ana ao ouvir o sussurro de August, que
desconversou:
- Não, nada não. Pode seguir senhor Holister, lembramos dele sim.
- Pois bem, ele está em Londres e quer nos fazer uma visita para...
colocar o papo em dia e tomarmos whisky.
- Isso é bom, não? Afinal ele é um amigo, não é? – só pela hesitação de
Rudoloh e seu avô em responder, August concluiu mentalmente. Parece que
não mais.
Antes de se manifestar, o Sr. Dunkeld engoliu seco, e possuía uma
expressão pesarosa.
- Já suspeitávamos dele quando Ana tocou neste assunto no avião,
porém, mesmo fazendo sentido o que ela disse, não passava de pura
especulação.
- O que foi mesmo que eu disse? – indagou a jovem meio sem graça por
não se lembrar exatamente do que estavam falando – Foram muitos aviões –
sorriu de lado.
- Sobre termos nossa aventura bem sucedida no possível centro da
Trindade, facilitada.
- Ah, sim. Continuem.
- Então – prosseguiu Wilson – agora, depois de recebermos a
informação sobre alguém trocando mensagens com um ativista do futuro na
259

própria Itália, no mesmo dia em que Genaro liga querendo fazer uma visita,
assim de uma hora para outra, praticamente confirmamos.
- Mas se ele faz parte da Trindade, por que nos ajudou? – indagou Ana
com a mesma expressão no questionamento levantado por ela no avião.
- Isso não sabemos. Sabemos apenas que essa gente não está brincando,
somos testemunhas disso, e ter dado meu endereço a ele, mesmo que tudo isso
ainda seja uma mera suspeita que eu quero confirmar, pode ter sido um erro. –
Lamentou Rudolph.
Se entreolharam receosos.
- E quando ele virá? – perguntou August preocupado com a segurança
de todos, principalmente de Ana.
- Talvez hoje, na hora do almoço.
- Hoje? – O jovem arregalou os olhos.
- Ele desconversou, mas se tiver mesmo interessado nas cartas, como
acho que está, sim, ele vem hoje. – Com pesar nos olhos, olhando para Suzan,
sua esposa, acrescentou – Inclusive eu acho melhor...
- Pode parar por aí, Rodolph Holister! – interrompeu ela. – Na alegria e
na tristeza, lembra? Pois é, todos ficaremos aqui e enfrentaremos qualquer coisa
juntos, para o bem da nossa família e... pelo visto, da humanidade.
Balançaram a cabeça positivamente. A confiança ainda estava ali, mais
presente do que nunca.
- De acordo, mas então, é preciso pensarmos em um plano rápido para
garantirmos nossa segurança e dos selos, caso nossa suspeita se confirme. –
Ressaltou o anfitrião.
- Concordo. Apesar de sempre se preocupar com a segurança de todos
a sua volta durante os trabalhos, antes e depois de se tornar um agente, Genaro
sempre foi meio instável – acrescentou o avô de August.
Todos se posicionaram a favor.
Seguiram alguns segundos de silêncio, um pouco devido as
mastigações, mas grande parte, devido aos pensamentos.
Vamos ver se desta vez, bolamos um bom plano. Pensava August se
lembrando do traumático episódio sobre Westminster Bridge.
260

Capítulo 63

Antes de saírem da mesa e planejarem algo, para o caso de receberem


alguma visita indesejada, ou que se mostrasse como tal, Rudolph e Wilson se
juntaram para contar aos demais uma história, era preciso todos saberem com o
que, ou melhor, com quem estavam lhe dando.
- Eu havia contado antes a August e agora, pela possível necessidade,
revelo a todos – começou Wilson. – Genaro fez parte da primeira equipe de
buscas da Guardiões do Tempo, propriamente dita. Trabalhava conosco e era, –
fez uma pausa – na verdade ainda é, especialista em artefatos explosivos.
Ana sacou na hora.
- No Vaticano, foi ele.
- É foi sim – confirmou Rudolph. – E não, nós não sabíamos. Ele
improvisou.
- Isso é mais uma prova de que ele faz parte da Trindade, talvez como
um dos fundadores, e nos ajudou a conseguir a carta. – Completou Ana.
- É, agora, também achamos – assentiu o anfitrião.
- Na oportunidade, eu contei a August o porquê do Genaro ter deixado
a agência e seguido a religião – olhou para o neto transferindo a ele a sequência
da explicação.
August demorou a perceber, mas os olhares curiosos de Ana, Suzan e
Daiane o fizeram acordar.
- Em linhas gerais, ele foi o responsável indireto por explosões
criminosas que mataram várias pessoas na América do Sul, incluindo jovens e
crianças inocentes.
Os olhos que estavam fixos no viajante do tempo, arregalaram-se.
- Nossa! Isso é sério! – Ana sentiu um frio na barriga.
- Genaro não aceitou a maneira como a agência estava lhe dando com
as coisas e decidiu sair, enfrentando Arthur e outros que o tentaram impedir. –
Acrescentou Rudolph. – Entrou para a igreja atrás de perdão e fazer o bem, por
isso a resistência em acreditar que ele não está do nosso lado dessa vez.
- Podem ter feito a cabeça dele – interveio August. – A história nos
mostra como a igreja sabe ser persuasiva.
- Isso é verdade, mas o que queremos mostrar a vocês, é quem ele é e o
que ele é capaz de fazer quando acredita em algo. – Alertava o Sr. Dunkeld. –
Genaro foi um dos melhores agentes, sem dúvida. Enquanto acreditou estar
fazendo a coisa certa, ele não descansava. Estudava, praticava, simulava,
261

construía... se estivermos no caminho dele realmente, confesso que tenho sérias


preocupações.
- Mas, que motivo maior ele pode ter do que salvar o mundo? – Indagou
Ana.
- Não sabemos se ele está ciente disso.
- Então quando ele chegar, a gente conta. Problema resolvido – sorriu.
O senhor Dunkeld fez uma careta.
- Receio não ser tão fácil assim.
- Por que não?
- Novamente, estamos trabalhando com possibilidades, e se alguém
tiver feito mesmo uma espécie de lavagem cerebral nele, talvez consigamos
reverter com isso, até porque temos um passado.
- O problema é se não for esse o motivo – Completou Rudolph.
Seguiram outros segundos de silêncio.
- É agora que vocês contam porque estamos tendo essa conversa, certo?
August acertou na mosca.

Era verão no hemisfério norte. Férias, viagens, curtição.


Cinco jovens se amontoavam dentro de um Chevrolet Impala azul-claro
1960, ouvindo rádio e seguindo acelerados rumo as cachoeiras, ao norte de
Altadena na Califórnia.
O céu estava límpido e o sol fazia os brotos de água, que pareciam
nascer das próprias rochas, brilharem.
Mesmo acostumados a piqueniques naquela região, o encontro desta
vez, era especial.
- Estou orgulhoso de você meu irmão! – Falou um dos dois rapazes em
italiano.
- Obrigado meu irmão. – Agradeceu meio tímido também em italiano,
tentando se desviar dos beijos que recebia na bochecha.
- Sério Genaro, não é todo dia que alguém próximo da gente consegue
um emprego como este. Você é um orgulho para nossa família! – Olhava nos
olhos do irmão enquanto segurava forte seus ombros.
- Não foi só eu, estudar na Caltech ajudou bastante.
262

- Mas isso também é mérito seu! Você é um gênio cara! – Virou-se e


olhou para as garotas se divertindo na água. Pegou duas garrafas e deu uma para
seu irmão. – Agora vamos festejar!
Embalados por The Everly Brothers e regados por muita bebida, a
festinha ganhou ritmo rapidamente.
Em algum momento do dia, a música e as águas cristalinas deixaram de
ser tão atrativas, pois, após muita insistência das meninas e de seu irmão
completamente bêbado, Genaro havia começado a confeccionar pequenos
explosivos, com os materiais que carregava no carro.
Formado em Geologia na Itália, estudante de Engenharia Química na
Caltech e trabalhando em uma empresa norte-americana da área bélica, Genaro
sempre carregava consigo materiais que, com seus conhecimentos, poderiam se
tornar uma bomba. Era o tipo de cara que levava o trabalho para casa ou, às
vezes, eram os matérias que faziam parte do trabalho de casa.
No começo, as pequenas explosões, longe de onde encontravam-se as
pessoas, estavam bem divertidas, não só para o grupo, mas para outros festeiros
que também se aventuravam por ali. O problema era que o álcool estava
trazendo as explosões cada vez mais para perto deles e das quedas d´agua.
Genaro não havia bebido tanto assim e conhecia o perigo de explosões
perto demais de cachoeiras. A cada insistência de seu irmão e das meninas, ele
relutava, mas acabava cedendo para não ser o estraga prazeres da festa.
Na última bomba confeccionada, por meio dos últimos agentes
químicos disponíveis nos materiais que possuía ali, Genaro se tornou refém de
uma brincadeira elaborada por seu irmão.
Enquanto o gênio da família preparava o último reagente, seu irmão
pegou o explosivo inacabado e o levou para a parte de baixo da rocha que parecia
cuspir uma ducha de água.
Duas das meninas começaram a dançar em volta de Genaro, enquanto a
outra pegou o último reagente. Quando ele percebeu o que seu irmão estava
prestes a fazer, já era tarde.
- Ei Genaro! – Gritou colocando a mão na queda d´agua. – Eis o homem
mandando na natureza! – Subiu em uma rocha para alcançar o explosivo.
- Não faça isso!
- Eu já fiz! – Colocando o último reagente na ponta de um longo galho
de madeira, ele alcançou a bomba caseira e desencadeou a explosão.
Alguns segundos foram necessários para a reação em cadeia acontecer
e quando a explosão começou de fato, o irmão de Genaro já havia descido da
rocha e agora corria para se afastar dos pedaços de pedras que começavam a
263

cair. Todos que acompanhavam de longe a chuva de pedras começaram a gritar,


animados com a maior quantidade de água que começara a descer.
- Viu irmão? Entramos para a história! – gritava enquanto corria.
Genaro começava a se tranquilizar, olhando para as pedras que seguiam
imóveis no alto da cachoeira, quando seu irmão escorregou e antes de cair dentro
da água, bateu a cabeça em uma das rochas.
O jovem, motivo da festa, desvencilhou-se com violência das meninas,
correu e pulou na água.
O fundo da cachoeira estava escuro e a correnteza aumentara
significativamente após a última explosão.
Além de não ser um exímio nadador, Genaro ainda tinha seus longos
cabelos lhe atrapalhando enxergar debaixo d´agua. Na superfície, as meninas
gritavam por socorro e em poucos segundos, mais seis jovens se lançaram na
água.
Foram minutos aterrorizantes. A cada avançar do ponteiro do relógio e
a cada rosto emergindo em busca de ar, o desespero aumentava, pois nenhum
deles era do jovem que caíra na água desacordado.

- O irmão dele morreu? – Ana era muito empática, sentia o desespero


das pessoas fora da água e podia imaginar o tamanho da dor de Genaro.
- Sim – respondeu o Sr. Holister tristonho.
- Depois deste acontecimento, Genaro largou tudo e voltou para Itália
onde foi recebido como culpado pela morte do irmão. – Acrescentou o Sr.
Dunkeld.
- Mas ele não teve culpa! – Ana não conteve a revolta frente a tamanha
injustiça.
- Não, ele não teve. Mesmo assim ele se calou e refugiou-se em Lamon,
uma comuna italiana na província de Belluno, afundando-se naquilo que matara
o seu irmão, na esperança de que o matasse também.
- Cachoeiras? – Daiane não entendera.
- Não. No álcool. – Respondeu August.
- É. Foi em um estado lastimável que Arthur o encontrou e recrutou para
a agência.
O clima ficou pesado, mesmo assim August percebia que tinha algo
mais.
264

- Acham que ele quer trazer o irmão de volta? Quer dizer, voltar para
antes da...
Nem precisou terminar, o balançar de cabeça de seu avô fez as peças se
encaixarem.

Capítulo 64

Sentado em um banco alto, acoplado a um extenso balcão de madeira


de um estabelecimento parecido com um típico Café europeu, só que mais
reluzente e menos fosco, um senhor degustava um líquido fumegante.
- Mais doutor? – Uma senhora do outro lado do balcão lhe perguntou
erguendo um objeto de plástico com bico.
- Por favor – apontou para a xícara. – E, sem essa de doutor Janine, já
lhe disse.
- É força do hábito.
- Esqueça os hábitos, é tempo de inovar! – Abriu os braços, na mesma
intensidade que o sorriso.
- Parece que estamos de bom humor hoje – comentou a velhinha
simpática.
- Muito, minha cara, muito! Hoje é um grande dia!
- Ah é? Quem bom. – Terminou de servi-lo. – Tem algo a ver com a
herdeira do trono?
O homem gargalhou.
- Não, desta vez não.
- Hum, então poderia me contar o porquê desse bom humor todo?
- Infelizmente ainda não, mas creio que logo. – Avistou um jovem
entrando no Café. – E se prepare, aí vem as primeiras boas notícias do dia.
- O senhor mentiu para mim! – O jovem apresentava uma expressão de
poucos amigos.
- O que?
- Disse que não conhecia o outro cara!
Antes de responder ao jovem, o homem se virou sem graça para a
mulher que lhe atendia.
- Não é o que você está pensando Janine.
- Só estou pensando que as notícias não estão com cara de serem tão
boas assim doutor – devolveu o sorriso e saiu de perto deles.
265

- Por que não disse que conhecia o outro cara que anda enviando as
cartas?
O homem olhou para os lados e se levantou.
- Aqui não. – Começou a dar passos a fim de sair do estabelecimento.
- Aqui está ótimo! – Gritava o rapaz de pé, mas sem se mover – Foi aqui
que você me colocou nesta bagunça toda e é aqui que quero sair!
O velho sequer olhou para trás, seguiu seu caminho e só parou em uma
proteção de vidro, com pouco menos de um metro e meio, servindo de mureta
de proteção para os que querem apreciar a vista dos andares inferiores de um
complexo que muito lembrava um shopping center.
Olhando para o vai e vem de pessoas lá embaixo, apoiou-se na mureta
esperando o jovem se aproximar.
- Vai abrindo o jogo doutor, eu sei que você trabalha na Torre da
Lemniscata!
- Por que acha isso? – Perguntou em tom de voz baixo, induzindo o
jovem a fazer o mesmo. Seus olhos ainda se mantinham nas pessoas abaixo.
- Porque andei te seguindo. Não sou tão idiota quanto o senhor pensa.
- Eu nunca pensei isso Erick.
- Ah nem vem com conversinha! Eu quero respostas!
O velho percebera que a conversa entre os dois começava a se tornar o
foco de outras pessoas que por ali transitavam.
- Se não reduzir seu tom de voz agora, não terá nenhuma – virou-se
encarando-o.
O jovem respirou. Uma atenção desnecessária seria ruim para ele
também.
- Certo. Então, pode começar respondendo porque não me disse que
trabalhava na Torre da Lem.
- Vamos fazer assim – o doutor apoiou o braço direito na mureta,
ficando de frente para Erick – eu te respondo se você me responder. Sem
mentiras, o que quiser saber é só perguntar, mas será uma via de mão dupla.
- Como é que é?
- Uma resposta por outra Erick – sua expressão deixou bem claro que
não estava brincando. – E para a sua primeira, sim, eu trabalho na Torre da Lem.
- Sabia! Você é o traidor que eles descobriram?
- Não – fez o gesto de negativo balançando o indicador. – É sua vez de
responder.
- Você só pode estar de brincadeira!
266

- Não, não estou e se quiser outra resposta minha, precisa responder, em


um tom de voz bem mais reduzido, como descobriu que eu trabalho na Lem?
A expressão de Erick era de visível descontentamento, mesmo assim,
era preciso entrar no jogo.
- Depois que você me deu aquele outro selo para usar, eu te segui. Sabia
que os Templários não deixariam dois selos para você fazer o que bem
entendesse, é contra os preceitos deles. Então, só poderia ter conseguido lá e
você não parece o tipo que arrisca entrar na caverna do urso e pegar um pouco
de mel.
O velho assentiu.
- E agora, o que quero saber é: você é mesmo um cavaleiro Templário?
- Essa é uma boa pergunta.
- Sem enrolação doutor, é bate e volta.
- Não, eu não sou.
- Seu desgraçado! Você me enganou! – ameaçou partir para cima dele,
mas conseguiu por pouco se conter – Toda aquela história de enviar as cartas
para conseguir os outros selos e junto com os cavaleiros impedirmos a doutora
Morgan e sua equipe era mentira!
O velho fechou novamente a cara após outra exaltação do jovem. Sua
mão, estendida na frente, fazendo um movimento lento de cima para baixo,
explicitou para o jovem o porquê da expressão. Era seu último aviso.
- Se não é um Templário, como iria fazer para garantir... merda! – O
próprio jovem interrompeu a fala ao se lembrar de que era sua vez de responder.
Foi preciso respirar fundo novamente. – Vamos, pergunte logo.
- Garoto esperto, por isso escolhi você. – Seu elogio não foi nem um
pouco bem recebido. – Como descobriu sobre o meu conhecimento da outra
pessoa enviando cartas desta realidade?
- Me poupou uma pergunta, obrigado. E, a sua eu responderei com um
enorme prazer – abriu um sorriso satisfeito. – Eu li a última carta que me
mandou enviar.
O velho cerrou os lábios. Parecia ter encontrado o que procurava.
- Ah Erick, eu te disse um milhão de vezes para não fazer isso. –
Balançava a cabeça em sinal de decepção.
- E durante muito tempo eu obedeci, mas depois que descobri que você
não tem sido honesto comigo, decidi ver onde exatamente eu tinha me metido e
quer saber de uma coisa? – perguntou retoricamente – Eu não gostei nada.
- Obrigado por devolver a pergunta.
- Espera... eu não...
267

- A carta que você enviou, onde ela está?


Erick até esqueceu de reclamar sobre a última pergunta que gastara sem
querer, essa ele também fazia questão de responder.
- Está aqui – retirou a carta do bolso, mostrando o lado do selo dourado
para o doutor.
Um frio na barriga fez o velho se endireitar.
- O que está fazendo? Onde está o outro?
- Eu enviei o outro e fiquei com este. Agora você me deve duas respostas
– sorriu com malícia.
- Você não sabe o que fez garoto. Me entregue este selo, ainda podemos
consertar as coisas – estendeu a mão.
O jovem esticou o braço pegando uma cadeira e a colocou entre ele e o
velho, colada na mureta.
- Não, pelo menos não sem antes eu saber tudo o que está acontecendo
aqui. – Sua expressão ficara leve de repente, percebeu que tomara para si as
rédeas da conversa.
A expressão do homem que já estava carregada, passou a ficar sombria.
Seus olhos acinzentados queriam engolir o rapaz.
- A pergunta um de dois é: qual o real motivo das cartas, já que nós dois
sabemos que você está enganando aquele cara do primeiro destino?
Foi a vez do doutor respirar para não perder o controle.
- Em primeiro lugar, eu não menti para ele.
- Claro que mentiu! Qualquer um sabe que não é possível trazer alguém
do mundo dos mortos – falou em tom de deboche.
O velho expirou com um discreto sorriso.
- Mas é possível te levar para antes desse alguém ter ido para este tal
mundo.
Erick entendeu exatamente a que o doutor estava se referindo.
- Isso é conversa.
- É, é só conversa fiada. – Assentiu expandindo o sorriso.
O jovem aquietou-se por um instante. A gíria diferente utilizada pelo
doutor, que normalmente o faria rir, o fez pensar.
- Você não é daqui, não é?
- Não, não sou. E, obrigado por gastar sua segunda pergunta. – O velho
estava novamente no controle.
Erick ficara tão espantado com a revelação que nem se deu conta de que
a sua pergunta um de dois não foi respondida.
268

- E, por gostar de você garoto, ainda lhe digo mais: não só é possível
fazer alguém viajar no tempo, como também estamos estudando uma forma de
fazer o tempo viajar sobre esse alguém.
O rapaz não entendeu muito bem a explicação, mas não estava a fim de
gastar outra de suas perguntas.
- Acredito que esteja falando sobre ficar mais jovem, mas isso é mera
especulação e nem me interessa.
- Certo, pensei que você fosse mais curioso, mas sendo assim... mais
alguém sabe sobre a nossa – balançou a cabeça a procura de uma palavra –
parceria?
- Não. – Demorou um pouco a responder, ainda pensava nas
possibilidades levantadas por seu interlocutor. Parecia não estar em si e acabou
dando a informação que o homem mais queria.
O velho percebeu que o jovem estava na lona e abriu a contagem.
- Meu interesse em você está acabando, acho bom fazer uma ótima
pergunta.
Antes de perguntar, Erick pensou por quase trinta segundos.
- Tenho só mais uma pergunta.
- Não, você tem mais, mas só devo responder mesmo a uma. O tempo
está acabando.
- Quem é – olhou dentro dos olhos do doutor – LHC?
O homem de cabelo levemente grisalho, de bom porte físico e boa
postura, exibiu o seu melhor sorriso e abriu os braços.
- Sou eu.
269

Vontade dos Homens


A hora do almoço chegou e como se tivessem marcado horário, a
campainha tocou.
Rudolph olhou pela janela.
- Ele chegou. Ajam com naturalidade, não sabemos se ele de fato faz
parte da Trindade.
Genaro chegara sozinho em um carro alugado que ficou do lado de fora
do portão, após o dono da casa habilmente alegar defeito na abertura total do
mesmo, possibilitando que apenas Genaro portando uma maleta, entrasse.
Com sua batina preta de colarinho branco, representando a morte para
o mundo e a pureza, e seus tradicionais 33 botões, lembrando a idade de Cristo
ao ser morto, o cardeal caminhava passivamente até a casa, observando com
satisfação as flores e as pequenas árvores do jardim da entrada, fazendo
movimentos longos de inspiração.
Recepção amistosa, repleta de agradecimentos pela ajuda de suma
importância em Roma.
- Ele não parece ser o vilão – cochichou Ana para August. – Pelo
contrário, é até um religioso bem simpático.
- Vamos torcer para continuar assim.
Conversa rápida na varanda e todos se puseram à mesa esperando
Daiane, auxiliada por Suzan, August e Ana servir o almoço.

Bate papo agradável e comida apetitosa, tudo corria muito bem,


normalmente bem. Começaram então, a pensar na possibilidade de estarem
errados em relação ao cardeal, até que, no meio de uma conversa, ele mudou de
assunto subitamente.
- E quanto as tais cartas que procuravam, já encontraram todas?
As suspeitas reacenderam-se após o súbito interesse dele nas cartas,
assunto que não se encontrava mais em pauta desde o bate papo na varanda.
- Nada até agora. Infelizmente só temos a que você nos ajudou a
conseguir. – Respondeu o Sr. Dunkeld com uma naturalidade invejável. Sua
expressão tranquila ao mentir, enganaria até mesmo o nariz do Pinóquio.
270

- Bom, então neste caso, serei obrigado a fazer isso... – colocou a maleta
sobre a mesa com intenção de abri-la.
Todos rapidamente se levantaram assustados, August chegou até a
derrubar a cadeira onde estava sentado devido ao arranco para se pôr de pé.
Genaro vendo aquilo mostrou-se bastante confuso.
- O que aconteceu? – retirou uma garrafa de Cutty Sark da maleta e a
colocou sobre a mesa.
Respiraram.
- Aqui se pode tomar um clássico whisky escocês? Aquele cujo nome e
o desenho no rótulo, – virou a frente da garrafa para os demais – se remete a um
veleiro britânico ancorado em Greenwich, chamado Cutty Sark, barco este, que
após riscar os mares pelo mundo, fora transformado em navio-museu, por ter
sido uma das últimas embarcações de transporte de chá, símbolo de uma era. –
Concluiu todo pomposo.
- É, confesso que você tem uma boa memória – brincou Wilson ao se
lembrar da ocasião onde o informara sobre o fato citado, quase que com essas
palavras.
- Para aliviar a tensão, concordam? – Abriu e chegou a garrafa próximo
ao rosto, inebriando-se com o aroma.
Tornaram a se sentar aliviados. Todos apresentando sorrisos amarelos,
bastantes sem graça.
Um pouco mais de conversa enquanto terminavam de almoçar. Ouviam
atentamente Genaro contar sobre a vida difícil que teve após se desligar da
agência e sobre sua vocação para trabalhar nas obras da Igreja.
Concluíram o almoço e como tudo parecia bem, se dirigiram à sala para,
enfim, degustarem o destilado, cuja fragrância já se espalhara por toda a
cozinha.
Logo que se levantou, Genaro foi até uma das janelas da cozinha e
olhando para a entrada, respirou satisfeito.
- Vocês têm uma bela casa.
- Obrigada – agradeceu Suzan.
Ao perceber que nem todos se juntariam a ele na resenha, na sala de
estar, Genaro postergou sua saída da cozinha para ficar por último, fingindo ter
dificuldade em fechar a maleta, tendo assim quase todos de costas para si, com
exceção de Daiane, que ainda retirava as louças.
Ao invés de fechá-la, ele a abriu novamente. De forma despistada,
olhava para os lados.
271

Após ter a certeza de que ninguém o vigiava, o cardeal retirou uma


pistola Walther PPK de um fundo falso que a maleta possuía, e em silêncio
apontou-a para Daiane, que apesar do enorme susto, não gritou e seguiu em
direção aos outros como Genaro indicava através de movimentos curtos, feitos
apontando o cano da arma na direção desejada.

Capítulo 66

Uns seguiam para a sala, outros em direção as escadas, no entanto


Genaro os chamou, de forma firme, fazendo com que todos se virassem e lhe
direcionassem o olhar ao mesmo tempo.
Quando viram aquele homem de batina e aparência amigável com uma
arma na mão apontada para eles, ficaram imóveis por alguns instantes. Olharam
discretamente um para o outro, apesar de já terem suspeitado, não conseguiram
esconder a surpresa e a decepção.
O silêncio acompanhou a imobilidade deles até August tomar coragem
e ironizar:
- Sério? Um cardeal usando uma arma do James Bond! Quem poderia
imaginar?
- O que? – perguntou Genaro, mas sem esperar a resposta – Deixa pra
lá, não me interessa. O que eu realmente quero, é que se acomodem nos assentos
aí na sala, todos virados para mim de forma que eu possa vê-los, enquadrados
no meu campo de visão. Alguns podem até sentar no chão – apontava com o
braço. – Nossa conversa precisa rápida. Fui informado de não ter muito tempo.
- A gente nunca tem – rebateu August.
Assim fizeram. Sentaram todos do mesmo lado, porém não no chão.
August e o Sr. Holister – com o tornozelo praticamente 100% – juntaram os
sofás de forma a acomodar todos em um único lado da sala.
- O que você quer Genaro? – perguntou Rudolph com ódio nos olhos –
O que de tão importante você quer para vir até minha casa e ameaçar a minha
família?
- Ok, direto ao ponto. Vamos pular a parte em que vocês ficam surpresos
e eu tento me explicar – andava por toda a sala enquanto falava, não abaixando
a arma nem tirando os olhos deles. – Olha só, o que eu quero é muito simples.
- É tão simples que você precisa de uma arma para conseguir. – Ana o
interrompeu sarcástica.
272

O cardeal a ignorou.
- Basta vocês me entregarem as cartas que eu sei que estão com vocês,
para eu ir embora.
- Até podemos fazer isso, sem problema, mas em consideração ao
trabalho que tivemos, merecemos pelo menos saber o porquê de você ainda
querer o “fruto do pecado” como você sempre disse, não acha? – disse o Sr.
Wilson.
- A questão é complexa BO, mas vou tentar simplificar – respondeu com
tranquilidade. – Quero apenas evitar que vocês estraguem tudo.
- Estragar? Estamos tentando consertar! Seu contato no futuro não
avisou sobre o pouco tempo restante? – perguntou Ana – Não temos mais até
2016 para consertar isso.
- Bom, eu não sei por qual motivo vocês estão reunindo esses selos, mas
eu pretendo consertar erros.
- Não pode trazê-lo de volta Genaro, sabe disso. – Wilson achou que
havia entendido.
- O que? – O cardeal realmente se mostrou confuso. Demorou alguns
instantes para compreender o que o antigo amigo de Guardiões havia falado. –
Hum, acha que estou aqui para tentar trazer meu irmão dos mortos?
- Trazer não, ir até ele. – Respondeu Ana.
Genaro novamente arqueara as sobrancelhas.
- Ir até ele? Mas do que vocês estão falando? Acham que eu busco viajar
no tempo?
- Sim. É por isso que você quer as cartas. “Consertar seus erros”. – Ana
respondeu fazendo o sinal de aspas com os dedos.
O homem de batina olhou para Rudolph e Wilson.
- É isso que vocês acham? – O silêncio serviu como resposta – Depois
de tantos anos trabalhando juntos, acham que eu colocaria um motivo tão egoísta
à frente de salvar o mundo?
Quase todos arregalaram os olhos ao mesmo tempo.
- Ei senhor reverendo! – chamou-o Daiane. – Eu não entendo muito
dessas cartas não, mas salvar o mundo é exatamente o que todos aqui estão
tentando fazer.
- Ele me avisou que diriam isso.
- Ele quem? Seu contato no futuro? Você é mesmo da Trindade, não é?
– Ana aproveitou a deixa para ir atrás de respostas.
- É, foi ele sim.
- E quem é ele? – A jovem insistiu.
273

- Alguém que abriu nossos olhos – sua expressão era de máxima


confiança.
- Pare de usar metáforas Genaro, não estou com paciência para isso –
Rudolph ainda mantinha a expressão fechada. – Seja claro!
- Você sabe que estamos prestes a sermos engolidos por um fenômeno
espacial? – August queria fazer a conversar andar.
- Sei sim.
- E sabe que esses selos são, no momento, nossa única esperança? –
Terminou com os olhos arregalados.
- Sim, é por essa esperança que estou aqui.
August abriu os braços.
- Então por que você acha que estamos em lados opostos? É exatamente
isso que queremos!
- Não, não é.
As respostas curtas e vagas do cardeal estavam fazendo com que todos
perdessem a paciência.
- Mas por que não é então? – Indagou Ana também cansada daquela
lentidão.
- Primeiro, porque eu não quero só salvar o mundo da coisa espacial, eu
quero salvar o mundo dele próprio.
- Vamos, prossiga – a jovem fazia sinal com a mão deixando a testa
franzida.
- É preciso dar as pessoas desta geração algo em que acreditar. O temor
e a gratidão.
Por mais que não fosse produtiva, a forma como o cardeal falava,
induzia à reflexão de forma quase automática.
- Você quer utilizar os selos em prol da religião. – Concluiu o Sr.
Dunkeld.
- Em prol da religião não, em prol da fé. É o que vai salvar a
humanidade.
- Então, são estes os planos da Trindade? – indagou August respondendo
na sequência. – Tirar proveito da ocasião em benefício próprio?
- Hum! – Genaro expirou descrente. Decepcionado, balançava a cabeça.
– Você veio do futuro e mesmo assim não compreende. É exatamente por isso
que precisamos agir.
- Não compreendo o que?
O cardeal fez uma expressão de falsa piedade, sua expiração foi tão forte
desta vez, que o som do ar saindo por suas narinas ecoou por todo o cômodo.
274

- A fome, a miséria, as desigualdades, a maldade, a total falta de amor


ao próximo – foi destacando alguns dos males que assolam a humanidade. –
Com o avanço tecnológico estrondoso ocorrido no futuro, todos esses problemas
deveriam diminuir com a praticidade em produzir alimentos, construir moradias,
transportar mercadorias e interligar o mundo. – Andava para os lados. Aos
poucos sua fala ia ficando acelerada. – No entanto, a ambição fechou nossos
olhos para os acontecimentos a nossa volta, daqui a alguns anos teremos um
mundo globalizado – aumentou o tom de voz ao pronunciar o último vocábulo
– como dizem, porém, somente no sentido de informações, não é? A tal
globalização acontecerá para sabermos quantos estão morrendo de fome mundo
a fora, enquanto comemos pipoca confortáveis em nossos sofás assistindo aos
noticiários.
Olhavam para ele pasmados, o homem de batina com expressão quase
sempre serena, se transformara.
- O futuro do qual fazem parte, eu sei porque eu vi – continuou olhando
para os jovens, bem mais exaltado do que quando começou a responder – é só o
prelúdio das desgraças que aguardam a humanidade, principalmente com a
escassez de recursos naturais básicos como a água, devido ao uso desregrado e
sem consciência, motivado pelo desejo de poder e riqueza de uns poucos, que
pensaram poder se igualar a Deus – fez uma pausa, tentava enxergar o céu
direcionando o olhar para a janela. – Entretanto, provocaram a ira Dele.
- Então a catástrofe chegando, ainda mais cedo do que esperávamos,
nada mais é do que a ira de Deus sobre a humanidade, como o dilúvio? –
perguntou August com total tom de ceticismo.
- Sim e não. – Respondeu com seriedade.
- Como assim?
- O descontentamento de Deus ao permitir a destruição de sua criação é
evidente, porém, não fora ele o causador do fim que se avizinha.
- Espera aí! Está dizendo que nós causamos isso? Não foi um fenômeno
astronômico como cometas ou meteoros? – indagou Suzan confusa.
- Vocês não sabem? E ainda chamam a nós de rebeldes sem causa –
ironizou Genaro esboçando um sorriso e olhando para August e Ana. – Claro,
ele não ia contar a vocês que perderam suas famílias e sua realidade, por culpa
da ambição cega do homem querendo controlar o tempo.
Arregalaram os olhos. Sabiam que uma revelação seria feita. Mais
detalhes sobre o lado de lá da moeda.
- Um acelerador de partículas, estilo ao do tempo de vocês, como é
mesmo o nome?
275

- LHC – Ana respondeu sem perceber.


- Isso, estilo ele. Foi o responsável por possibilitar o desenvolvimento
dos selos anexados as cartas e causar o tal buraco negro, ou sei lá o que, que se
aproxima. Este evento em nada tem a ver com a palavra “aleatório”. O ser
humano buscando enlouquecidamente encontrar o princípio, acabou
antecipando o fim. – Sorriu aterradoramente.
- Isso é possível August? – perguntou seu avô.
- Com a tecnologia desenvolvida em nosso tempo, 2016, é pouco
provável, mas com essa avançada, aplicada com tanto sucesso nas cartas, é
possível sim que algo tenha fugido do controle e criado, talvez, uma
singularidade, ou coisa parecida. – Respondeu ele ainda raciocinando a respeito.
- Isso significa que o nosso correspondente, foi de fato o criador dessa
catástrofe... – a senhorita Schmidt raciocinava alto.
- Não, ele não – interveio o cardeal.
- Então, a que se refere a sigla do nosso correspondente no futuro?
- Este, é o segundo motivo pelos quais vocês deveriam me entregar as
cartas.
- Você sabe quem ele é? – Insistiu Ana.
- Sei e vocês também.
LHC é uma pessoa?
A resposta, seguida da encarada que Genaro dera em cada um dos que
estiveram na Itália, fez a barriga do Sr. Dunkeld gelar.
A essa altura, Genaro nem lembrava mais que portava uma arma. As
informações que ele aos poucos revelava, deixava-os mais controláveis do que
o medo de levar um tiro.
- BO, RH – olhou para os ex-companheiros – lamento, mas vocês foram
enganados. E vocês – direcionou o olhar para os jovens viajantes do tempo agora
– vão me dar razão.
- Que isso cara, fala logo! – August começara a sentir aquelas
incômodas sensações e não estava nem um pouco a fim de prolongar isso.
- Certo, isso vai abrir os olhos de vocês – aproximou-se. – LHC é a
abreviação de um nome.
O frio na barriga do Sr. Dunkeld aumentara e a sensação de perder o
chão de August, mesmo estando sentado, também.
- Lawrence Hillebrand Campbell.
276

Capítulo 67

A revelação feita por Genaro mudara completamente a expressão de


todos, até mesmo de Daiane, que escutara a história contada pelos jovens
viajantes do tempo e desde então estava doida para dar umas boas cacetadas
neste tal de Lawrence.
- Lawrence foi para o futuro? – Perguntara Ana incrédula, olhando para
August.
- Ele foi o primeiro a se desintegrar e disse que havia usado um selo
ESCARAVELHO – August pensava enquanto falava. – Acho que, sei lá... pode
ser possível.
- E, o LHC também fez contato com a Guardiões, inclusive com o
próprio Lawrence desta realidade, por isso ele deve ter nos dado o selo.
- Alguém do futuro mandou uma carta para si mesmo no passado? –
Daiane era puro olho – Que loucura!
- Juntem as peças. Verão que digo a verdade. – A possibilidade de
conseguir os selos sem o uso de violência, fez Genaro abandonar a pressa.
- Mas, por que ele estaria mentindo? – Indagou Suzan. – Talvez tenha
mesmo a intenção de salvar o mundo.
- Talvez, mas não dá para confiar algo tão sério nas mãos da Guardiões,
muito menos deste lunático. – O sangue de August fervia quando se lembrava
do rosto de Lawrence naquela tarde na ponte Westminster.
- Foi o que eu disse – comentou Genaro e olhou para os mais velhos em
seguida – E, vocês conhecem um bom motivo para ele estar mentindo.
O foco dos olhares se alterou.
- A mãe. – Disse o avô de August esfregando a testa. – Lawrence cresceu
preso ao redemoinho criado por seu pai, cujo centro possui apenas um único e
claro objetivo.
- Trazer a esposa de volta. Foi o que motivou Arthur a criar a agência –
acrescentou Rudolph. – E isso já faz mais de vinte anos. Talvez tenha
encontrado um modo e está nos usando para juntar os selos para ele.
- Espere aí gente – interveio Ana. – Os selos, comprovadamente,
efetuam viagens através do tempo-espaço, mas não ressuscitam pessoas. Mesmo
que o Lawrence do futuro, ou seja, o LHC, quisesse trazer a mãe de volta, não
dá! – abriu os braços olhando para os lados – A única coisa que ele pode fazer
é voltar no tempo para antes da mãe dele morrer e para isso, não é preciso os
seis, nós somos provas disso – apontou para August.
277

Focaram-se em Genaro atrás de uma resposta a respeito disso, mas ela


não veio, pelo menos não do cardeal.
- Ele quer viver de novo. – August olhava para o vazio.
- O que? – Ana deu voz a dúvida de todos, inclusive do cardeal.
August demorou um pouco para responder, ainda organizava as ideias.
- Ele quer mudar a própria vida, recuperar tudo o que lhe fora tirado.
- Precisa ser mais claro gafanhoto. Está todo mundo perdido aqui –
Daiane sabia que desta vez, não era a única boiando.
- Lawrence não quer só voltar no tempo, ele quer voltar a ser criança.
- Como é que é? – Novamente Ana foi a porta voz da dúvida coletiva.
August se levantou e foi até a janela a procura do horizonte. Sentia a
visão sobrecarregada.
Alarmado, o cardeal voltou a erguer a pistola, alterando novamente os
ânimos dos demais.
- Genaro! – gritou Rudolph – Abaixe essa arma.
August, ignorando o que acontecia a sua volta, continuou o raciocínio:
- Eu não sei como ele pretende fazer, mas talvez por isso ele precise dos
seis selos... – respirava sem tirar os olhos do horizonte – talvez ele tenha
encontrado uma forma.
Ana também se levantou e foi até o parceiro, o que deixou Genaro mais
preocupado.
- Voltem para o sofá, agora! – Afastou-se do grupo sentado para
conseguir com segurança apontar a arma para os jovens.
A jovem colocou as mãos sobre os ombros de August e o virou devagar.
- August, do que você está falando?
- Eu, já li e pensei nisso várias vezes, mas não depois de me tornar um
viajante do tempo... agora, deixou de ser algo impossível, para ser apenas
improvável. – Deu passos para dentro do cômodo e trouxe Ana consigo. –
Quando viajamos para esta realidade – falava olhando para os demais, ignorando
completamente a Walther PPK apontada para eles – forçamos as nossas
moléculas, os nossos átomos, através do tempo, e isso com certeza aconteceu
com o Lawrence.
- Então vocês acham mesmo que o tal LHC é esse cara? – Indagou
Daiane.
- Sim, faz todo sentido – respondeu August. – E agora, com a tecnologia
e o conhecimento do futuro, ele deve ter descoberto uma maneira de, usando os
selos ou o material que os compõe, fazer o contrário.
278

- Forçar o tempo através de si, ao invés de forçar a si através do tempo?


– Rudolph tentava entender.
- Exato. Acredito que possa ser isso. Ele quer as duas coisas.
- Mas isso é impensável! – exclamou Ana – E digo isso por falta de uma
palavra melhor.
- Tudo – olhou fundo nos olhos da jovem – desde o dia em que te
conheci é, perfeitinha Schmidt.
A presença de Ana, ali, perto, fazia August ter confiança, esperança.
Não importa o que a vida jogasse em cima dele, com ela ao lado, nada o
impediria de seguir.
- Ótimo, tudo muito lindo e muito bem explicado. Fico feliz que tenham
encontrado uma resposta. – O cardeal abaixou novamente a pistola, acreditava
mesmo que tudo seria resolvido amigavelmente, como desejava. – Então, agora
que a verdade veio à tona, por favor me entreguem os selos para evitarmos essa
loucura que vocês disseram, salvarmos esta realidade da tal singularidade e as
futuras delas mesmas.
Desde o seu início, a conversa desenvolveu-se a favor de Genaro. Tudo
indicava que ele estava mesmo dizendo a verdade, mesmo assim o Sr. Dunkeld
não entregaria o fruto de tanto trabalho assim, sem mais provas.
- E quanto ao seu contato? Como sabemos que ele não está mentindo?
- Precisam confiar em mim BO. A pessoa que me incumbiu e me
capacitou para essa missão, é alguém que conhece o pavor de um futuro sem
Deus – Não conseguia tirar as imagens do vídeo recebido da cabeça.
- Ah entendi! Então agora vocês vão bancar Deus? – provocou Suzan.
- De maneira nenhuma, estou apenas me certificando de que, o que já
aconteceu, não aconteça novamente. – Explicou convicto no que dizia.
- Ou seja, você está interferindo na vontade de Deus. – Insistiu ela.
- Pelo contrário. Estou me certificando de que a vontade Dele prevaleça.
Essa singularidade é um alerta, uma maneira de Deus nos mostrar o quão
destrutivo podemos nos tornar se nos afastarmos de seus desígnios e os selos, se
tornarão um símbolo de esperança, uma prova da misericórdia de Deus, agindo
pelas mãos dos seus servos – ergueu a mão que não portava a pistola.
- Você não sabe qual é a vontade de Deus. É apenas mais um querendo
se elevar por meio da religião.
O cardeal respirou fundo após coçar forte a cabeça.
- Se estou bancando Deus ou não, não importa, meus motivos são nobres
e Ele sabe disso, é o bastante para mim.
279

- Muitas mortes meu caro, foram causadas por essa mesma desculpa –
Acrescentou Rudolph.
- O que vocês acreditam não me interessa. Não vou deixar que o
sofrimento de tantos perdure, em contraste com o prazer e satisfação de uns
poucos, seja nos dias atuais ou no futuro. Vou garantir que a verdade divina
jamais seja abandonada e que a salvação venha para todos, pelo amor ou pela
dor. – Destravou a arma, deixando bem claro que a intenção de antes, apenas
amedrontá-los, havia mudado.
Ao terminar a fala, o cardeal parou com o olhar perdido, estático, como
se tivesse escutado algo.
- O que foi Genaro, pensou melhor no que está prestes a fazer? –
perguntou Rudolph.
- Silêncio. – Pediu ele levando o indicador à boca.
Lentamente o cardeal se aproximou novamente da janela, olhando para
o pátio da entrada desta vez.
- Uma mulher está chegando, aparenta ser sua filha – olhou para o
anfitrião. – Vamos manter a calma e deixá-la se juntar a nós sem maiores
problemas.
- Ah, não! – cochichou Rudolph.
- O que foi? – perguntou Wilson.
- Ela não deve estar sozinha, Fran... – nem teve tempo de terminar a
frase, o jovem Frank abriu a porta subitamente, e correndo pela casa, atirava
com sua arma de água para todo lado.
Aproveitando a distração de Genaro e com receio de que ele pudesse
atirar no garoto, Rudolph, refém mais próximo do cardeal, com uma corrente
elétrica percorrendo todo seu corpo, saltou sobre ele em um único impulso e o
jogou no chão.
Ouviu-se um disparo.
Todos se levantaram e rapidamente August e seu avô, ajudaram Holister
a imobilizar e tirar a arma de Genaro. Porém, era tarde, gotas vermelhas sujavam
o carpete.
- Ah meu Deus! Chamem uma ambulância! – gritou Suzan.
280

Capítulo 68

Após os brados desesperados de Suzan, Genaro, já de pé, sob a mira da


própria arma, agora nas mãos do Sr. Dunkeld, atraiu de novo os olhares com um
grito:
- Entrem!
Antes de algum efeito prático ser provocado pelo grito do cardeal, outro
brado chamou a atenção.
- Ana!
O nome de Ana, pronunciado em um tom de desespero por August, ao
vê-la se apoiando em Suzan para ficar de pé e com uma mancha vermelha
crescente no abdômen.
Com horror nos olhos, o jovem correu para socorrê-la, pressionando o
ferimento para tentar estancar o sangramento.
Um estrondo, oriundo da entrada, pôde ser ouvido.
Uma picape Ford F1000 derrubou o portão e subia acelerada em direção
a casa.
Enquanto isso, a mãe de Frank entrava desesperada pela porta após
ouvir o barulho do disparo feito por Genaro e agora de um carro invadindo a
propriedade.
- O que está acontecendo? – Abraçou forte seu filho e o manteve em
seus braços.
Três homens armados entraram logo que o carro parou, rendendo a
todos na casa, inclusive o Sr. Dunkeld, que não teve outra escolha senão entregar
a eles a arma.
Essa arma.
Altos e com ternos azul-escuros, carregando o símbolo do antigo Corpo
da Gendarmeria no peito, representado por um broche, os homens todos de
armas em punho, pareciam mesmo dispostos a atirar.
- Como podem ver, não sou o único adepto em acabar com o sofrimento
dos menos favorecidos e alienados deste mundo desumano e fazer Deus entrar
novamente nos corações das pessoas – comentou Genaro desamarrotando a
batina. – E, se for preciso derramar um pouco de sangue para promover a
salvação da humanidade, na terra e no céu... que assim seja.
- Não importa o que você deseja promover, Ana está ferida e precisa ir
para o Hospital! – exclamou August segurando a cabeça dela com uma mão e
pressionando o ferimento com a outra, apoiando-a em seu colo.
281

- Basta me entregarem os selos e os deixarei em paz. – Repetiu enquanto


August o fulminava com um olhar fixo e ardente, cheio de raiva.
O jovem, direcionando o olhar novamente para Ana, a ouviu dizer quase
sem voz:
- August, não faça isso! Você sabe que… precisamos de mais
informações.
- Genaro, olha o que você fez! – Gritou Rudolph – Ela precisa de um
médico rápido!
- Por isso peço que se apressem – demonstrou uma sincera tristeza no
olhar.
August sabia que o plano era não entregar as cartas, seja como fosse,
mas não imaginou que a prática fosse ficar tão longe assim da teoria.
- As cartas estão dentro de um espelho no...
- August, não! – gritou seu avô tentando dissuadi-lo.
- Desculpe vovô, não temos mais tempo. – Virou-se para Genaro e
continuou – Elas estão dentro de um espelho no primeiro quarto à direita após
subirem as escadas.
Todos fizeram uma expressão de decepção após August revelar o
esconderijo das cartas, mas entenderam que ele não ia arriscar ainda mais a vida
da mulher que amava.
Um dos guardas da Gendarmeria subiu as escadas correndo para
verificar.
August continuou olhando dentro dos olhos de Ana, penetrando no
abismo escuro do redemoinho promovido pelo contraste da pupila com a íris
clara e reluzente da jovem.
- Você vai ficar bem, seja forte.
- Por que está fazendo isso Genaro? Você não é assim! – Disse Wilson
tentando dissuadi-lo.
- Não queria que fosse assim BO, não mesmo. Eu quero o mesmo que
vocês, quero tentar salvar este mundo. Precisam acreditar em mim!
- Mas a que custo? – apontou para a jovem nos braços do neto. – Você
sempre se preocupou com o caminho Genaro, não importava a finalidade, você
sempre se preocupava com a forma como iríamos chegar lá.
- Agora é diferente meu amigo, isso é muito maior do que todos nós.
O guarda retornou com as cartas nas mãos e as entregou para Genaro.
Este por sua vez, fez questão de avaliar uma por uma, selo por selo, calma e
detalhadamente, demonstrando indiferença à cena angustiante que se
desenvolvia bem a sua frente.
282

- São estas. Peço que confiem em mim. Faremos valer o esforço de


vocês e vamos salvar o mundo daquela coisa.
- Será que vão mesmo? – perguntou Suzan e completou – Quem garante
que não vai usá-los como faz com o sexto selo, em benefício próprio e não da
tal organização ou dos outros fundadores?
Genaro expirou em um sorriso contido.
- Se sua intenção é joga-los contra mim – apontou o dedo para os
guardas depois para si mesmo – foi muito boa, todavia, eles sabem de todos os
planos da Trindade, detalhadamente e por um simples motivo... – abriu os braços
– eu sou a Trindade e os próprios guardas me ajudaram a espalhar esta lenda dos
três fundadores. Isso foi ideia minha para representar a Santíssima Trindade e
conseguir mais adeptos. É o que estou falando com vocês, as pessoas anseiam
por acreditar em algo e eu vou garantir que este algo seja a verdade, pelo menos
a verdade que realmente importa.
- Você perdeu a noção meu amigo – lamentou Wilson.
- Eu lamento profundamente BO, que esta jovem tenha se tornado o
cordeiro da nossa causa – olhou para Ana contrito. – Mas, vocês e Deus são
testemunhas do disparo acidental ocorrido. Todavia, o alívio virá para ela
também. Foi por uma boa causa. – Virou-se em direção a saída após estender o
braço na direção da jovem, como se a abençoasse. – Mais uma vez peço perdão
e... Holister, Obrien, pelos velhos tempos, façam uma força para entenderem a
minha luta. – Se colocou na frente dos guardas, que o seguiram, um a um,
virados para trás com as armas ainda em punho, dando cobertura.
Antes do último deles deixar a casa, Genaro retornou e disse olhando
para Suzan:
- Ah, e se sua intenção era saber se estou em posse do sexto selo no
momento, essa foi fraca, mesmo assim agora posso revelar. Para garantir que
não confirmariam a destruição do mundo, mesmo se o meu plano falhasse,
decidimos deixá-lo no futuro, longe dos outros. Agora sim, podemos reuni-los.
Mais uma vez, perdoem-me.
Seguiram para o carro e arrancaram em alta velocidade pela rampa em
direção a saída.
Tomara que esse desgraçado cumpra o que diz e pelo menos consiga
nos salvar. Pensou Rudolph.
283

Capítulo 69

- Isso não faz o menor sentido. – Acrescentou o jovem Erick.


- LHC, é uma abreviação do meu nome, Lawrence Hillebrand Campbell
– rebateu velho. – Tem a sua resposta, se acredita ou não, é com você.
- Se você é mesmo o tal LHC, por que...
- Não – ergueu o indicador. – É a minha vez de perguntar e preciso que
me entregue essa carta para envia-la de uma vez.
- Enviar? – fez a pergunta de propósito – Eu não lhe disse, não é? –
Outra.
O velho apenas esperou.
- Eu já a enviei. Essa aqui é a resposta.
- Certo Erick, você está perto de ir para um caminho sem volta. É sua
última chance, pois farei minha última pergunta.
- Ok velho, – até a forma do jovem o tratar, após descobrir que o doutor
havia mentido para ele, mudou – faça. Vamos ver se animo responder.
O doutor olhava, ora em volta, ora para seu tecnológico relógio de pulso.
- Parece que você não tem intensão de me entregar este selo, então a
pergunta é: pretende fazer o que com ele?
- Vou entregá-lo aos Templários, aos verdadeiros Templários. Será o
meu cartão de acesso.
- Não seja ridículo Erick. Se juntar a estes rebeldes sem causa, fará de
você um foragido! Terá que viver escondido, longe de tudo e de todos.
- E em que isso é diferente da vida que levo hoje? – Sorriu irônico.
- Certo garoto, vou abrir o jogo com você.
O velho parou um instante para pensar, parecia estar indeciso sobre
contar ou não a tal verdade para o jovem, até que olhou novamente para o
relógio.
- E aí? Estou esperando.
- Tudo relacionado ao que pedi a você foi uma farsa, ou melhor, foi um
engodo.
- Como é?
- Nosso objetivo sempre foi atrair o Templário infiltrado na LEM, o
outro cara que também envia as cartas. Tudo relacionado a você não passou de
um plano que elaborei para pegarmos o traidor.
- Isso é mentira!
284

- Não, não é. Basta você pensar porque nunca foi pego e porque
conversamos livremente em público. Tudo o que fez, aliás, tudo que nós
fizemos, foi com o único objetivo de deixar o infiltrado à vontade, pensando que
tínhamos outro foco.
- E a cacetada no agente aquele dia? Você armou para ele!
- Não. Aquilo, confesso, foi uma grande ideia do capitão Neville.
Colocar a suspeita em cima do seu próprio agente, dentro da Torre e a vista de
todos, foi brilhante.
- Está dizendo que esse tempo todo – o jovem fez uma pausa – eu
trabalhei para a LEM?
- Sim. E agora que já pegaram o traidor, é só me entregar este selo e se
preparar para receber as condecorações ao meu lado. – Sorriu. – Você não fez
nada ilegal Erick, você é um herói!
Esfregando forte o rosto, o jovem demonstrava o tamanho da sua
revolta.
- Você faz parte dos que destruíram o mundo. Por causa de pessoas
como você e como a doutora Morgan que nós perdemos tudo! – Lágrimas
escorreram pela face rosada do rapaz – Amigos, família, o planeta. Vocês tiram
a nossa liberdade e querem que sejamos gratos por isso.
- Eu, mais do que ninguém Erick, gostaria que essas malditas cartas
nunca tivessem sido criadas, mas não foram elas que destruíram o...
- Sim! Foram sim! A tecnologia voltada para ambição e criada para o
homem brincar de Deus foi a responsável por toda essa merda! – Expirou com
força. – Só os Templários possuem uma causa que vale a pena lutar.
Antes de apertar um botão em seu relógio de pulso, o velho coçou a
nuca e inspirou olhando para o teto de vidro do shopping.
- Lamento que tenha me forçado a fazer isso garoto. Eu tinha grandes
planos para você.
Olhando para baixo, Erick viu uma correria se iniciar no primeiro andar.
- Pode até ter sido de mentira doutor, mas se existe uma coisa que eu
faço bem, é fugir. – Colocou um pé na cadeira e com um impulso atingiu o
doutor no peito com o outro, jogando o no chão.
- Não faça isso Erick! – Gritou o velho esticado no chão vendo o jovem
se equilibrar na mureta de material transparente.
Após o chamado de Lawrence, os agentes começaram a subir acelerados
os andares do shopping, e o doutor sabia que se chegassem no garoto, não
hesitariam em atirar.
285

- Droga! – Levantou-se e começou a correr atrás de Erick, que com


maestria, se equilibrava nos poucos centímetros que compunham a parte
superior da mureta.
Lawrence mirou e teve duas ou três oportunidades para atirar, porém
todas elas desencadeariam em uma queda de no mínimo trinta metros do garoto.
Em uma ação antecipada de muita sorte, Lawrence mirou no encontro
da mureta com a escada rolante e no salto que Erick efetuara na intenção de
passar de uma para a outra, ele atirou.
Em poucos segundos, os guardas e vários curiosos, rodearam o corpo
estendido no chão.
Lawrence largando a arma, correu até lá com o coração acelerado.
Um agente media a pulsação do jovem. Um silêncio sepulcral perdurou
por mais de um minuto.
- Está morto.
Junto com as manifestações de surpresa e lamento das pessoas a volta,
Lawrence se aproximou para ele mesmo conferir.
- Como é possível? A queda foi de um metro e meio! – Procurava
pulsação e não encontrava.
- Doutor – chamou o agente que declarou o óbito.
- Não pode ser! Acorda garoto! Acorda!
- Doutor!
Lawrence se virou.
- Ele não morreu devido a queda. – O agente mostrava a arma que
acabaram de lhe entregar.
O doutor se levantou. Seu semblante mudou de repente.
- Ah meu Deus!
- O senhor não virou a chave. Não atingiu ele com a cápsula de choque.
Lawrence foi ao chão com as mãos na cabeça e ali ficou, ajoelhado ao
lado de Erick e da enorme poça de sangue que se formava até o capitão Neville
chegar.
- Doutor?
Lawrence nem se moveu.
- Temos testemunhas e sabemos que agiu da melhor maneira possível.
Além do mais, o senhor nos ajudou a encontrar o templário que enviava as cartas
e a própria carta que faltava. Fique tranquilo, não passará do inquérito.
- Acha que estou preocupado em ser preso? – Virou-se com lágrimas
nos olhos – Eu acabei de matar uma pessoa capitão! Um garoto, um bom garoto!
286

- Entendo doutor e sei o quanto é difícil passar por isso, mas – colocou
a mão no ombro dele – os seus esforços vão salvar toda uma realidade.
287

Reforço tardio
Suzan pegava o telefone para chamar a ambulância quando tiros foram
disparados do lado de fora da casa. Ela conteve-se e completou a ligação,
enquanto os outros foram para as janelas ver o ocorrido, com exceção de August
e Ana que permaneciam sentados no carpete.
- O que foi isso?
Chegaram a tempo de presenciar os guardas perderem o controle da
F1000 na curva da última rampa, devido aos pneus estourados, provavelmente
pelos tiros, e baterem contra a quina do muro que segurava o portão com uma
violência tremenda, fazendo a picape tombar.
- Ótimo momento para uma surpresa! – exclamou o Sr. Dunkeld
animado enquanto duas pessoas entravam apressadamente na casa.
- Ah, meu Deus! Ela está bem? – perguntou uma das pessoas que havia
acabado de entrar, uma mulher.
- Viemos o mais rápido possível. – Disse o homem, também recém-
chegado.
- E como sabiam que precisávamos de ajuda? – Perguntou o Sr.
Dunkeld.
- O senhor não vai acreditar em quem nos informou. – Respondeu.
August levantou a cabeça para ver os visitantes. Seus olhos marejados,
encheram-se de esperança quando percebeu que eram seus pais.
- Por favor, me ajudem!
Sua mãe, aproximou-se rapidamente para ver se podia fazer algo.
- O sangramento está bem contido, mas a bala ainda está aqui – disse
em tom de lamento. – Precisamos retira-la rápido.
August sentiu o coração bater fora do peito.
- Consegue? – Olhou para Ana e depois para sua mãe.
Christine respirou fundo. Já havia participado de alguns cursos e tal a
pedido do próprio Sr. Dunkeld, mas nunca tinha passado por uma situação real
como aquela.
Os olhos de medo do garoto lhe deram coragem.
- Tem um kit médico aí Suzan?
- Tenho sim. Vou pegar agora! – Saiu correndo em direção a cozinha.
Mais tiros foram ouvidos, fazendo com que todos se afastassem das
janelas aos saltos.
288

Olhando pelas quinas, longe dos vidros que se partiam devido aos
projéteis, Daiane e os senhores Holister e Dunkeld, descreviam a cena para os
demais, cena esta, aparentando um verdadeiro cenário de guerra, aos moldes de
batalha nas trincheiras.
Os guardas da Gendarmeria e o cardeal Genaro, não só sobreviveram ao
acidente como haviam saído do carro e agora o utilizavam como escudo durante
a troca de tiros contra agentes da Guardiões do Tempo, que vieram juntos de
Christine e Huginin.
- Não acredito! A Guardiões está nos ajudando? – Indagou Rudolph
surpreso.
- Quando recebi a ligação, fiquei tão cético quanto você. – Respondeu
Huginin.
- Eles também fazem contato com o LHC. Deve tê-los avisado que as
coisas podiam sair do controle. – Comentou Wilson.
- Resta saber se eles vão ficar com as cartas – acrescentou Ana com
muita dificuldade.
- Não fale. Descanse.
- O que foi que ela disse August? – Perguntou seu avô.
- Que a Guardiões pode apenas estar se ajudando. Eles também querem
as cartas.
- Não desta vez! – gritou Huginin próximo a janela.
- Como assim? – indagou Rudolph.
- A ligação foi bem clara. Os agentes da Guardiões estão aqui apenas
para nos ajudar. Farão de tudo para recuperarem e protegerem os selos, depois
entregarão a nós.
- E você acreditou? – Holister seguia descrente.
- Na verdade não, mas agora não temos escolha.
Com o barulho promovido pelo tiroteio e o clima tenso dentro da casa,
o garoto Frank em nada lembrava aquele menino elétrico que costumava ser,
não saía de perto da mãe, observando tudo com olhar assustado.
A ambulância chegara, porém afugentada pelos tiros, se manteve à
distância. Enquanto isso, August lutava para manter Ana acordada.
- Ei! Olha pra mim! Nem pense que vou deixar você perder esta
adrenalina. – Dizia segurando as lágrimas tentando animá-la, porém, apenas
arrancou um breve sorriso, que se transformou em gritos estridentes quando
Christine começou a limpar a ferida para retirar o projétil.
289

Para não presenciarem o sofrimento de Ana, Suzan foi para a varanda


nos fundos da casa com sua filha e neto, objetivando também, mantê-los o mais
longe possível do tiroteio.
Na varanda, ao se deparar com o poente, percebeu que as nuvens
encobrindo o sol estavam diferentes, mais acinzentadas do que deveriam estar e
provocavam uma perda na recepção da luz maior e mais rápida que o normal. O
sol ainda era visto no céu, dentro do ângulo de visão dela, porém sua luz parecia
não chegar totalmente.

Capítulo 71

O tiroteio começou a cessar. Apenas esporádicos disparos podiam ser


ouvidos agora, propiciando o avanço dos agentes da Guardiões em direção a
picape tombada.
Os guardas da Gendarmeria escondidos atrás dela, quase sem munição,
atiravam apenas para dar cobertura a Genaro, que se arrastando para longe da
entrada da casa, tentou levantar e mancando, se esforçava para correr,
carregando sua maleta na fuga.
Rudolph o avistou ao longe.
- Não deixem ele fugir! Os selos estão na maleta!
Imediatamente Huginin repetiu a informação dada pelo anfitrião através
de um comunicador.
Os agentes, agora certos de que os selos estavam longe da picape,
começaram a atirar com mais intensidade e em um ponto específico do motor.
Inúmeros projéteis, chocando-se em um mesmo local.
A ordem de Arthur havia sido clara. Apenas a segurança das cartas
importava.
A estratégia dos agentes surtiu efeito. Os disparos constantes no motor,
fizeram com que o carro explodisse e arremessasse para longe os dois guardas
que ainda revidavam, sendo possível escutar o barulho ao longe.
- Eu disse que não queria mais saber de explosões. – Brincou Ana
tentando sorrir em meio a dor intensa.
- Huginin, o que está acontecendo? – Perguntou o Sr. Dunkeld
auxiliando a nora com Ana.
- A picape explodiu, mas nem sinal do cardeal!
- Ah merda! – Exclamou Rudolph.
290

- O que foi agora?


- Temos companhia!
Contendo os soldados da antiga guarda Gendarmeria que ainda se
encontravam conscientes, os agentes da Guardiões, imediatamente, se puseram
a perseguir Genaro, não mais visto no campo de visão deles, nem dos que
observavam da casa, porém, antes que conseguissem sair dos limites da
propriedade, foram surpreendidos por várias viaturas policias.
O motorista da ambulância presenciou todo o tiroteio e chamou a polícia
logo que chegou.
Todos os agentes ali, ainda portando suas armas, foram rendidos e
detidos.
- Consegui tirar! – Bradou Christine aliviada. – Vamos te levar para a
ambulância Ana, você vai ficar bem.
- Ah não! – exclamou Daiane.
- O que foi? – perguntou Wilson.
- A polícia prendeu os agentes.
- E quanto a Genaro? – insistiu ele demonstrando exaltação.
- Não o estou vendo, parece ter conseguido escapar.
- Não podemos deixar aquele lunático levar os selos! – exclamou
August, apoiando a cabeça de Ana em almofadas e se levantando. – Não
podemos deixar ele se sair bem depois do que fez! Não vou deixar ele escapar!
– se dirigia à porta com a respiração bastante ofegante, até ser contido pelo braço
de seu avô, que encarando o rosto molhado do neto, o vendo se segurar para não
desabar em lágrimas, disse:
- Acalme-se filho, sei o quanto quer pegá-lo e fazê-lo pagar, mas temos
assuntos mais importantes a tratar neste momento – apontou para Ana com a
cabeça. – É melhor pedir para a ambulância subir agora.
Entrando correndo na sala, no melhor estilo de seu filho, a mãe de Frank,
com expressão pálida, os interrompeu.
- Vocês precisam ver uma coisa. Agora! – Chamou todos para fora da
casa, dirigindo-se para o pátio da entrada, próximo de alguns policiais que
subiam.

No céu, na direção do sol poente, ao invés das habituais nuvens


alaranjadas ou avermelhadas, típicas de um entardecer na bela Gloucester –
291

ainda que estivesse cedo para isso – viam-se nuvens cinzas, mais escuras do que
as precedentes de chuva, intensas como a fumaça de um vulcão em atividade,
expandindo-se rapidamente e trazendo a escuridão da noite consigo.
- Ah não! Está acontecendo. – Lamentou August que havia saído para
chamar os enfermeiros, com os olhos fixos no céu.
Correndo, o jovem retornou para dentro da casa, para junto de Ana e viu
sua mãe já terminando de fazer o curativo.
- É tarde demais, nós falhamos. – Aproximou-se da jovem – Como está
a dor?
- Suportável. Sua mãe retirou a bala. Parece não ter atingido nada muito
importante. – Respondeu ela com uma voz fraca.
- Então, só resta torcer para que Genaro faça a coisa certa – concluiu
August.
A nuvem já havia tapado completamente o sol, impedindo sua luz de
chegar à Terra, mesmo nos lugares mundo afora, onde ainda era meio do dia,
fez-se noite e a beleza de um eclipse solar surpresa encantou a todos em tais
localidades. Mal sabiam o que os aguardava.
292

Última cartada
Christine, após concluir o curativo em Ana, também saiu para ver o
fenômeno, ficando surpresa com sua magnitude. Não fazia ideia do que estava
acontecendo.
- Mas o que é isto? – perguntou pausadamente.
- Provavelmente é o fim do mundo. – Respondeu Daiane recebendo
olhares céticos de Christine e Huginin. – Sabem de uma coisa?
- O que? – disseram juntos.
- Vou antecipar um pouco o chá da tarde. – Concluiu sorrindo, seguindo
para dentro da casa.
- Pai! – Chamou Huginin.
- Sim filho. – Não tirava os olhos do céu.
- A Chris quer saber da ambulância.
- Se foi.
- Como assim se foi? – Christine aproximou-se.
- Foi junto com os policiais. As coisas devem ter ficado bem feias no
centro da cidade. – O foco do velho Dunkeld mantinha-se inalterado.
- O senhor sabe o que está acontecendo? – Indagou seu filho.
- Em partes.
- Como assim em partes?
- A parte de que isso podia acontecer nós sabíamos, agora as partes de
como e porque, não.
Filho e nora arregalaram os olhos.
- Sabiam que ia acontecer? Do que o senhor está falando? Que diabos é
isso? – Hug começou a estampar o medo em sua face ao olhar novamente para
o céu.
- É uma longa história filho. O que interessa é que... – fez uma pausa –
não a nada que possamos fazer.
Christine se pôs a frente do sogro e com as mãos em seus ombros
conseguiu atrair seu foco.
- O rapaz lá dentro disse que o Genaro pode fazer alguma coisa. O que
é?
Dunkeld olhou bem fundo nos olhos de Christine.
- Ele pode nos salvar.
- Quem é aquele vindo ali? – Indagou Rudolph aproximando-se dos três.
293

- Acho que é meu filho – expirou Wilson. – Como será que ele nos
achou?
- Eu chamei – respondeu Huginin.
Na sala, ao passar por August, que praticamente efetuava a cena que
havia descrito durante o café da manhã, Daiane parou.
- Só falta o beijo. – Sua fala saiu praticamente sem som, deixando o
entendimento apenas pela leitura labial.
August sabia que ela o estava tentando animar, então sorriu em
agradecimento.
Seguindo seu caminho em direção a cozinha, passando o olho na
mesinha de centro da sala, Daiane novamente interrompeu seus passos e foi até
ela.
- E esta carta aqui?
- Que carta? – Perguntou August.
- Esta. – Levou-a até o jovem.
A reconheceu apenas pela visão periférica.
- Deve ser a resposta do LHC. – Respondeu sem demonstrar qualquer
reação animadora.
- Mas não vi vocês a enviarem de novo.
O jovem expirou tentando se conformar.
- Enviamos informando quem poderia ser o detentor do selo restante e
pedindo uma explicação sobre como pararíamos a singularidade caso
conseguíssemos o último selo.
Daiane quase deu pulo.
- Então, o que está esperando? Mãos à obra! – acrescentou animada,
movendo o lacre desdobrando a folha. – Parece que um disquete veio jun...
- Não adianta sabermos a forma, sequer temos mais os selos. É inútil. –
Sua expressão era de fato desoladora.
- E quem disse que não? – perguntou um jovem de cabelos lisos, longos
e loiros, porte atlético, óculos escuros e jaqueta de couro preta de mangas
curtas cortadas, sobre uma bela camisa branca escrito I Love Rock ‘n Roll,
entrando na casa, seguido pelos demais.
August e até mesmo Ana, já sentada no sofá, ergueram a cabeça.
- Fiquei sabendo que estavam dando uma festa, então, decidi trazer um
presente. – Acrescentou o jovem mostrando a maleta de Genaro com os selos
dentro.
Daiane quase caiu para trás.
294

- Quem é você? E, como conseguiu pegar a maleta? – perguntou August


espantado, quase não acreditando.
Seus pais, seu avô e os demais sorriam esperançosos atrás do jovem
recém-chegado.
- Bom, eu já estava vindo pra cá porque o Huginin me chamou e logo
depois um tal de Arthur me ligou falando que o pai precisava de mim, porque
um religioso ex-agente...
- Pai? – Indagou August sem conseguir interromper o rapaz.
- Ah meu Deus! – Sussurrou Ana feliz por reconhecê-lo.
- … aí, parei em uma loja de conveniências ali perto para comprar algo
e trazer, pois não gosto de chegar de mãos abanando na casa dos outros –
gesticulava. – Então, quando retornei ao carro, distraído, trocando piscadelas
com a atendente da loja, fui abordado por um homem ferido na cabeça vestindo
uma bata e, olhem só, querendo me roubar! Eu? Imaginem! – Sorriu.
Mesmo com o mundo, literalmente, acabando lá fora, era impossível
segurar os risos com o modo de falar do rapaz.
- Um homem de batina querendo roubar meu carro alugado! – fez uma
cara de descaso – Rapidamente o rendi e parei uma viatura que passava ali. Só
então, eu lembrei que o cara das cartas era um padre, como o tal Arthur havia
dito, aí, peguei a maleta dele para dar uma conferida e entreguei o cara para a
polícia, que me atrasou um pouco fazendo algumas perguntas, mas... aqui
estamos – concluiu estendendo a mão para cumprimentar August. – A propósito,
meu nome é Munin.

Capítulo 73

A esperança voltara. Parecia que uma luz surgira em meio a uma


eternidade de trevas.
- Que ótimo! Quer dizer que não vamos morrer? – perguntou Daiane
mantendo a empolgação.
O sentimento que havia se reascendido no interior de August, foi
rapidamente contido quando a lembrança da ausência de um selo, o último, em
posse de Genaro, ou melhor, de seu contato no futuro, lhe veio a cabeça.
- Droga! Ainda falta um. – Disse quase sussurrando, decepcionado.
Pareceu que um balde de água gelada fora jogada em cima de todos os
presentes, simultaneamente.
295

- É verdade. Temos apenas cinco. – Concordou Rudolph.


- Mas, sobre o que vocês estão falando? – Indagou Huginin.
- Talvez exista um jeito de pararmos essa coisa, mas para isso é preciso
seis selos específicos e só conseguimos cinco – respondeu August.
Um silêncio repleto de frustração se fez presente.
- Mas e aquele ali! – Munin apontou para o lacre no envelope nas mãos
de Daiane – Estou com cinco aqui, mais aquele ali, seis.
- Aquele não serve – acrescentou August. – Precisa ser um específico.
- Essa é a resposta do LHC? – Perguntou o Sr. Dunkeld.
- É sim – respondeu a governanta.
- Chegou? Então leia, quem sabe é possível fazermos algo com apenas
cinco selos! – Rudolph foi quem trouxe a empolgação de volta.
- Ler? Eu?
- Sim, por favor. Leia logo! – Acenou com as mãos.
- Um momento por favor – interveio Christine. – Alguns presentes estão
um tanto quanto perdidos com essa história toda, inclusive eu. Poderiam
explicar o que é tudo isso?
- Já estive nessa situação. – Sussurrou Ana sorrindo para August. – Não
é nada agradável.
- Não temos tempo para explicar detalhadamente, – o Sr. Dunkeld
tomou a palavra – o que precisam saber no momento é que aquela coisa no céu
vai destruir a nós e possivelmente o mundo todo, e nesta carta – apontou para a
mão de Daiane, quase colocando o dedo sobre ela – vinda do futuro, pode estar
a nossa salvação, a qual inclui a utilização de seis selos específicos para tal,
porém só temos cinco. Entenderam?
- O suficiente para dizer: Daiane prossiga! – Bradou Huginin
percebendo enfim, a gravidade da situação.
A Terra tremeu logo no fim da fala do filho mais velho do Sr. Dunkeld,
desequilibrando-os e derrubando vários objetos de estantes e prateleiras da casa.
Droga! Está acontecendo rápido.
Todos arregalaram os olhos. Corações disparados.
- Isso faz parte do fim do mundo, certo? – Perguntou Munin ofegante.
August engoliu seco antes de responder.
- Faz sim.
- Certo… só queria saber mesmo.
Com expressões assustadas, aos poucos se recompuseram.
- Me deixem ler isso logo – disse Daiane abrindo a carta e raspando a
garganta antes de começar a ler. – “Caros amigos, afirmo com toda certeza, que
296

desde a divisão do trabalho nos primórdios da sociedade, uma inversão de


funções havia dado tão certo. Risos. Nós estamos de parabéns...
- Espere aí! Ele escreveu “rsrs” na carta? – perguntou Ana, que mesmo
com dificuldade para falar, não ia deixar passar um detalhe como este.
- Não, ele escreveu “risos” mesmo.
Em circunstâncias normais, brotariam gargalhadas, mas o clima estava
tenso demais para isso.
- Não entendi a tal da troca de funções. – Complementou August. – O
mundo acabando e ele aí, utilizando metáforas!
A Terra tremeu mais uma vez, com mais intensidade, obrigando a todos
a se apoiarem para manterem-se de pé e, levando Frank a correr para debaixo
da mesa e chamar sua mãe para fazer o mesmo.
Entreolharam-se ainda mais aterrorizados, sentindo o vento frio criando
correntes de ar através das janelas abertas.
- Daiane, por favor continue, sem interrupções, e no fim veremos se algo
pode ser feito. – Disse Rudolph abraçando com força a esposa.
- Certo. Continuando – outra raspada de garganta – “Agora é a parte
audaciosa do plano, sem dúvida, a única chance de salvar a realidade de vocês.
É preciso se apressarem, pois não tenho certeza de quando vão receber esta carta
e a catástrofe, acredito, já deve estar próxima”. Próxima até demais – comentou
ela fazendo uma breve interrupção na leitura.
- Vamos Daiane! – Bradou o Sr. Holister ao maior estilo Ferdinand.
- Está bem, está bem! Vou continuar: “Sem destacar os termos técnicos
por este meio, o que devem fazer, logo que o processo de desmaterialização tiver
início, é posicionar os quatro selos ESCARAVELHO em um local plano, ao ar
livre, de modo a representarem os quatro pontos cardeais, afastados uns sete
metros do centro, onde ficarão os dois selos UDJAT. Todos os selos terão de ser
ativados ao mesmo tempo, no momento crítico da destruição, quando tudo
começar a se desmaterializar, sendo sugado para o centro do Ômega. A ativação
simultânea fará com que um enorme buraco de minhoca se abra na frente da
singularidade e fique estável tempo suficiente para salvar o planeta”.
- Salvar o planeta! Gostei desse cara! – interveio Munin tentando se
animar.
- Sem interrupções filho! – Interveio o Sr. Dunkeld de forma firme,
olhando para Daiane, induzindo-a a continuar.
- “Mesmo não tendo certeza absoluta da eficácia do plano, essa é nossa
última cartada. Desejo muita sorte a vocês, na esperança de nos vermos em
breve. Os selos ESCARAVELHO são ativados com o movimento oposto em
297

relação aos selos DJED, já os UDJAT, é do centro para as extremidades. LHC”.


É isso, e veio com um disquete. – Concluiu Daiane.
Um breve silêncio acompanhou os olhares preocupados direcionados as
lâmpadas da casa, que piscavam como se estivessem em curto.
- Pelo visto nem com os seis selos é garantido, quem dirá com cinco. –
Lamentou Rudolph.
- É isso? Acabou? – Daiane não se conformava.
O desânimo era geral.
- É arriscado, mas precisamos tentar. – Disse August se levantando após
encarar Ana.
- Tem razão, afinal, o que temos a perder? – Concordou Rudolph.
- Só não entendi o tom de satisfação usado pelo LHC na carta. Muito
menos porque nos felicitou como se tivéssemos conseguido. – Ressaltou o Sr.
Dunkeld.
- Talvez a resposta que vocês procuram, seja lá qual for, esteja no tal
disquete. – Sugeriu Munin.
- Na carta, o LHC já revelou o que deve ser feito, ele sabe da nossa
urgência em agir, duvido ter algo útil, para nossa situação, contido no disquete.
Deve ser um tutorial de como ativar os selos – Argumentou August e
acrescentou – Pelo menos agora eu sei o que de fato é aquela coisa.
Novamente o silêncio, bem mais duradouro dessa vez, antecedendo
outro intenso tremor, acompanhado por rápidas quedas no fornecimento de
energia elétrica. Os picos de eletricidade eram tão fortes, que quando vinham,
pareciam consumir as lâmpadas em luz, como se elas fossem explodir.
Antes mesmo de se recomporem após mais um desequilíbrio, com
Munin decidido a ver o que tinha dentro do disquete, Ana sussurrou algo no
ouvido de August, apontando o dedo para a carta ainda nas mãos de Daiane.
August bradou eufórico imediatamente ao entender o que a jovem em
seu colo lhe falara.
- A resposta não está no disquete, é o disquete!
- Como assim August? Explique isso aí! – Pediu seu avô contagiado
pela felicidade do neto.
- Entendi, ou melhor, Ana me fez entender o que o LHC quis dizer com
"inversão de funções"! – falava animado e olhando para todos – Ele não nos
parabenizou por termos encontrado os seis selos, não apenas nós, parabenizou
também a si.
- Ainda não cheguei lá filho, estou ficando velho para estas coisas –
comentou seu avô com os olhos esbugalhados. – Poderia ser mais específico?
298

O jovem fez um sinal com a mão pedindo a Daiane que se aproximasse.


- O disquete veio do futuro junto com a carta através do tempo, correto?
– seguiu sem esperar a confirmação óbvia – O que seria impossível de ocorrer
com o selo DJED, o qual estávamos utilizando para mantermos nossa
comunicação, pois de acordo com o conhecimento que temos, ele não consegue
viajar no tempo levando objetos que não seja o próprio papiro.
Os veteranos nas buscas das cartas, conhecedores de toda a história
contada pelos viajantes do tempo, começaram a sorrir a medida que August foi
explicando.
- Me dê a carta por favor Daiane. – Ela terminou de se aproximar e
entregou-a. – Quando enviamos a carta, contando ao LHC quem tínhamos como
suspeito de possuir o último selo, ele deve ter mexido alguns pauzinhos e... –
mostrou a parte oposta da carta – conseguiu encontrá-lo com o correspondente
do Genaro na realidade dele. “Inversões de papeis”. Aqui está o selo que faltava!
– concluiu quase dando um salto, se contendo fisicamente com receio de cair
em cima de Ana.
O brilho de esperança no olhar de todos na sala, fez-se presente outra
vez.
- Bom, teremos a chance de lutar – Wilson olhava confiante para os
seus.
- Éh! – gritou Daiane chegando a rodopiar de felicidade – Não vamos
morrer hoje!
- Devagar Daiane, porque agora que temos a lança, precisamos enfrentar
o moinho de vento. – Disse Rudolph direcionando o olhar novamente para fora
da casa.
O céu já encontrava-se quase todo coberto por uma nuvem negra, cujo
o centro emitia uma luz brilhante, ofuscando as estrelas e parte dos outros
planetas parecidos com a própria Terra, que já se faziam visíveis.
Está na hora.
299

Rasgando o céu
Uma rápida conversa sobre como posicionariam os selos. A decisão foi
lógica. Cada selo precisaria estar na mão de alguém para que conseguissem
acioná-los ao mesmo tempo.
Todos se dirigiram ao pátio, na parte mais plana da entrada da casa,
próximo ao portão derrubado pelos guardas de Genaro, cujos destroços tiveram
de ser retirados para que conseguissem posicionar os selos da maneira indicada
pelo LHC.
- Vamos pessoal! Precisamos agir rápido! – Incitava August enquanto
se encaminhava para fora da casa escorando Ana junto com sua mãe.
Os tremores continuavam a se intensificar, apressando e amedrontando
ainda mais o grupo.
Sem a correria e todo o caos ocorrido em Londres, August e Ana se
mantinham mais calmos e o fato da casa do Sr. Holister ser afastada do
movimentado centro urbano, contribuiu bastante para que os demais também
contivessem os ânimos.
Munin, Huginin, Rudolph e Wilson se candidataram para ativar os selos
ESCARAVELHO nas extremidades e August, após instruir cada um deles sobre
como proceder graças as dicas de Ana, se incumbiu de ativar os dois UDJAT no
centro.
Precisa funcionar. Demonstrava confiança ao encarar cada uma das
pessoas que amava, dirigindo-se para seus postos. Pareciam estar indo para a
guerra.
Os demais se cumprimentaram, se abraçaram e o tom da conversa entre
eles era de despedida, todos receosos sobre o que os aguardava. Olhando para o
céu, o medo dentro deles crescia exponencialmente.
O barulho provocado pelo vento os impedia de escutar os estalos, como
os provocados por raios, que começavam a se intensificar dentro da
singularidade.
O fornecimento de luz encerrou-se de vez.
Com a escuridão em terra, a incomparável mistura de cores no céu ficou
ainda mais evidente.
- August depressa! Estamos ficando sem tempo!
Objetivando fazer o possível para protegê-los, imaginando que o centro
seria o local mais perigoso e que sofreria o maior impacto da força exercida pelo
rasgo na estrutura tempo-espaço em contato com a singularidade, August, com
300

a intenção de se despedir, aproximou-se de Ana sentada em um banco de jardim


ao lado de Christine.
O jovem colocou a mão na delicada face da senhorita Schmidt, porém,
antes que pudesse dizer algo, ela se antecipou.
- Você ativa um, eu o outro. Estamos nessa juntos e não será agora que
vou perder a adrenalina. – Disse estendendo a mão para conseguir apoio e ficar
de pé.
- Não Ana, por favor. Você está ferida! – tentou dissuadi-la.
- E ficarei ainda mais se algo acontecer a você. – Argumentou olhando
firmemente dentro dos olhos dele, já de pé.
Próximas aos jovens, Suzan e Daiane ao ouvirem a jovem, inclinaram-
se uma em direção a outra e disseram baixinho ao mesmo tempo:
- Uuuuuh! Beija ela garoto! – esta última frase somente Daiane falou.
- Ana...
- August.
Sentindo o afeto e a confiança transmitidos por Ana, mesmo com seu
instinto lutando contra, August cedeu e levou-a no colo até o lugar onde
ativariam os selos, no centro da “rosa dos ventos”.
- Então! Preparados? – Bradou August com firmeza.
Mesmo com a insegurança tomando conta de seus corpos, os escolhidos
para segurarem os selos mantinham-se esperançosos em seus postos,
direcionando frases de incentivo e agradecimento aos jovens no centro.
Vidrados em August, aguardavam o sinal.
Graças a luz oriunda do próprio fenômeno, se aproximando rápido, era
possível que todos se vissem com clareza.
A singularidade tudo revelava.
Enquanto aguardavam o momento de agir, observando admirados e
amedrontados aquele estrondoso fenômeno no céu, entre conversas,
pensamentos e flashbacks, o avô de August olhou para a senhorita Schmidt
ainda no colo de August, distante alguns metros e gritou:
- Ei Ana!
A jovem virou a cabeça.
- Eu não me chamo Wilson! – acenava enquanto gritava – Meu nome
verdadeiro é Balder, Balder Obrien!
Sem poder responder com o mesmo tom de voz, ela pediu a August para
fazê-lo.
- Ela mandou dizer que já sabia! – gritou ele e acrescentou por conta
própria – Mas eu não contei nada!
301

Seu avô, olhou para ele com uma expressão desconfiada.


- E eu pensando que a estava enganando. Acabei foi fazendo papel de
bobo. – Sorriu.
- A propósito meu camarada, acabei esquecendo de lhe perguntar, por
que Wilson? – indagou o Rudolph.
- Gosto do nome Wilson, não é um deus nórdico como Balder, mas
significa filho do protetor corajoso! Sentiu a intensidade? – perguntou
retoricamente, orgulhoso e cheio de pompa, arrancando um sorriso discreto e
um levantar de sobrancelhas de seu velho amigo.
- Se você está dizendo. – Rudolph sorriu dando de ombros.
Estou chegando. Aguente só mais um pouco. Pensava Balder no mais
profundo do seu interior.
No centro da “rosa dos ventos”, Ana falando baixinho, fez a mesma
pergunta a August:
- Por que mesmo do nome Wilson?
- Era o nome do meu bisavô.

Capítulo 75

A singularidade seguia se aproximando, na verdade, a Terra era que


estava indo em direção a ela, arrastada pela força gravitacional daquela enorme
depressão formada na malha do universo, assim como os outros planetas
restantes, poucos, mas ainda visíveis.
O hemisfério norte era o mais atingido, mas por todo o planeta podia-se
avistar e temer o fenômeno.
Assim que a singularidade atingiu a atmosfera da Terra, foi possível
ouvir algo se expandindo, um ruído intenso parecido com o que já ouviam do
vento incidindo fortemente no ouvido, porém mais forte, como andar de moto
em alta velocidade sem capacete. Enquanto isso, a luz branca, oriunda do centro,
tornou-se ainda mais brilhante, impossível de ser olhada diretamente.
A tensão foi aumentando e eles se entreolhavam.
Os cabelos de Munin esvoaçavam na direção oeste, a qual ele
representava. Vento esse que pôde ser sentido por todos intensamente, e
tamanha era sua força que as árvores, grandes e fortes, balançavam feito
pequenos galhos expostos, assim como o, denominado, galo dos ventos, que
302

ficava no topo da torre estilo medieval da casa do Sr. Holister, logo acima do
sótão.
Com os tremores se intensificando e a Terra parecendo não efetuar mais
os movimentos de rotação e translação, era perceptível a proximidade do
momento, quase não conseguiam se manter nas posições.
Chegou a hora.
Ana pressentiu que o derradeiro momento havia chegado.
- Me ponha no chão, consigo ficar de pé.
Assim ele fez. Encarando-a, bem próximo de sua face, perguntou com
seu inconfundível sorriso:
- Bom, eu sei boa parte do seu gosto musical, quer descobrir um pouco
mais do meu? – retirou o pequeno aparelho MP3 que sempre carregava consigo,
agora ao lado de um chaveiro da Torre Eiffel, do bolso da calça.
- Será um prazer. – Respondeu a jovem com sua habitual expressão
simpática, pegando os fones e o colocando um em seu ouvido e o outro no de
August.
- Esta é a uma das músicas que eu mais gosto. Coloquei o arquivo dela
três vezes seguidas, só para não precisar apertar o botão de repete. – Sorriu.

Capítulo 76

Começando pela copa das árvores mais altas, a desmaterialização


avançava.
Nas grandes cidades, prédios começavam a sentir os efeitos e alguns
objetos começavam a flutuar, desaparecendo no céu, causando ainda mais terror
nas pessoas.
Em Gloucester, enquanto o caos se espalhava pelo mundo, todos
olhavam atentamente para August, praticamente prendendo a respiração.
Vamos nessa!
Quando o galo dos ventos, ponto mais alto da casa do Sr. Holister, se
desmaterializou por completo, August imediatamente gritou:
- Agora! – prolongando o “a” no fim do vocábulo por mais de três
segundos, fazendo com que todos ativassem os selos que seguravam, da maneira
exata como ele havia explicado, já sem as cartas anexadas a eles.
O vento mantinha-se intenso e a desmaterialização continuava,
deixando o sótão da futura casa de August Hermes, ao relento.
303

Pressionaram os selos com toda força e esperança que possuíam,


Rudolph chegou até a fechar os olhos.
Nenhuma luz, nenhuma explosão, nenhum ruído. Nada perceptível
sucedeu a ativação dos selos.
Silêncio. Não uma total ausência de ruído, pois o Ômega já havia
invadido a atmosfera terrestre e inundava o planeta com sua sinfonia de estalos
e rajadas de ventos uivantes, mas silêncio entre aqueles que ainda tinham
esperança.
- O que houve? – Indagou Huginin.
- Fizemos errado? – Acrescentou seu irmão.
Ninguém soube responder. Até mesmo August começara a duvidar.
Não deu certo.
As expressões desoladas, diziam a verdade que nenhuma voz ousou
ecoar.
Vamos morrer.
De forma instintiva, as famílias Holister e Dunkeld se abraçaram, dois
grupos de respirações fortes e choro contido, distantes alguns metros dos jovens
viajantes do tempo.
- Me perdoe, eu falhei.
A voz de August não saiu tão forte a ponto de superar o volume máximo
do MP3, mas por estar com um dos ouvidos livre, Ana compreendeu.
- Nós falhamos. – Colocou a mão na face do parceiro.
Algumas dezenas de metros acima dos jovens, um pequeno rasgo quase
circular na estrutura tempo-espaço surgiu.
- O que é isso? – Olhavam para o alto, bem acima de suas cabeças.
O rasgo, também parecido com uma mini singularidade, foi
expandindo-se rapidamente, emitindo luz por toda sua circunferência, como se
desse para ver a estrutura do tempo-espaço se rasgando, como papel. Um show
de luzes envolvia o centro, escuro e vazio daquele micro fenômeno.
- Aí gente! Olha ali! – Daiane, abraçada ao casal Holister, filha e neto,
foi a primeira a avistar.
O rasgo que começara com alguns centímetros, agora possuía dezenas
de metros.
Uma pressão enorme era sentida a medida que o segundo fenômeno se
expandia, parecido com um pulso eletromagnético, levando todos ao chão com
sua força, como se tivessem sido empurrados, menos August e Ana que a essa
altura já haviam começado a flutuar lentamente, puxados para o centro da coisa
que eles criaram.
304

- August! – Bradou seu avô.


Os jovens se abraçaram, olharam mais uma vez dentro dos olhos um do
outro. Um olhar ainda mais compenetrado, se é que era possível, possibilitando
aos dois contemplarem a cena que acontecia a volta deles através dos olhos um
do outro, pois as íris claras e pupilas dilatadas de ambos, refletiam de forma
ainda mais espetacular aquele rasgar do céu com luzes vibrantes.
Atingindo a altura da casa, perceberam o cessar da desmaterialização.
Sorriram.
Satisfeito, de certa forma conformado, August disse:
- Parou. Talvez tenhamos conseguido.
- Sim jovem promissor, acho que conseguimos. – Uma teimosa lágrima
desceu por sua face lisa, mas não carregava consigo tristeza, não mais.
Respiraram fundo. As sensações se esvaiam. Apenas o entrelaçar dos
braços era sentido por eles.
Tem que ser agora. August tomou coragem.
- Olha lá. – Apontou a mão para o horizonte, cada vez mais belo e visível
a medida que subiam.
Quando Ana virou a cabeça procurando algo diferente na paisagem, ele
trouxe-a para mais perto de seu colo com um puxão, sentindo todo o tronco da
jovem em contato com o seu. Devagar, inclinou-a o máximo que conseguiu e a
beijou, um beijo tão intenso que o tempo pareceu parar e não percebiam mais
nada a sua volta.
Todo o caótico momento do fim do mundo, fora ignorado por eles, suas
percepções sensitivas se limitaram apenas as correntes elétricas que percorriam
seus corpos freneticamente, ao som da melodia reproduzida pelo MP3 de August
que iniciara a música preferida dele, outra vez.

“Feeling my way through the darkness


Guided by a beating heart
I can't tell where the journey will end
But I know where to start

They tell me I'm too young to understand


They say I'm caught up in a dream
Well, life will pass me by if I don't open up my eyes
Well, that's fine by me

So wake me up when it's all over


When I'm wiser and I'm older
305

All this time I was finding myself


And I didn't know I was lost”

(“Sentindo o meu caminho em meio à escuridão


Guiado pela batida de um coração
Não sei dizer onde a jornada vai acabar
Mas sei por onde começar

Dizem-me que sou muito jovem para entender


Dizem que estou preso em um sonho
Bem, a vida vai passar por mim se eu não abrir meus olhos
Bom, por mim, tudo bem

Então, acorde-me quando tudo isso acabar


Quando eu for mais sábio e mais velho
Todo este tempo eu estava procurando por mim mesmo
E não sabia que eu estava perdido”)

De longe, da terra firme, os familiares e amigos gritavam para eles


desesperados. Todavia, o beijo foi a última imagem que tiveram dos jovens.
Durante ele, seus corpos foram desaparecendo, de baixo para cima,
desfazendo-se, até restar somente os lábios unidos, depois, nada.
Inconformados, viram August e Ana se transformarem em poeira
cósmica e o buraco de minhoca que eles criaram, rasgando o céu, se expandido
a ponto de ser ele o único fenômeno visto, sobrepondo-se a singularidade e suas
luzes, provocando uma imensa escuridão que perdurou durante eternos três
minutos, trazendo um sentimento de perda infindável a eles e um caos ainda
maior para as pessoas espalhadas pelo mundo.

Capítulo 77

Em meio ao choro contido e a incredulidade, um clarão dissipando a


escuridão de fora para dentro ofuscou a todos, trazendo consigo mais um forte
pulso eletromagnético, causando a destruição de algumas vidraças e jogando a
todos no chão mais uma vez.
Um último e forte tremor ocorreu antes que conseguissem levantar.
Diferente da escuridão total, o clarão durou poucos segundos e
desapareceu tão rápido quanto surgiu.
306

- Não acabou? – Munin ergueu-se rapidamente e ajudava seu pai a fazer


o mesmo.
Quando conseguiram recobrar de vez o sentido da visão, foi possível
olhar para o céu e contemplar as estrelas novamente, todas estavam lá, em seus
devidos lugares, como uma noite de outono qualquer.
- Agora sim acabou, não é? – Munin insistiu.
- É, parece que acabou. – Respondeu Balder ainda desnorteado.
- Então conseguimos mesmo? – perguntou Daiane se animando.
- A duras penas, mas... sim – sorriu discretamente, sem sequer mostrar
os dentes – nós conseguimos – continuou Balder olhando para o céu e deixando
as lágrimas escorrerem pelo seu rosto.
- Eles foram corajosos, destemidos, únicos. Nunca esqueceremos de
vocês. – Disse Suzan visivelmente emocionada, olhando para o ponto exato
onde os jovens, simplesmente, desapareceram.
Achegaram-se mais perto uns dos outros, não sabiam bem o que fazer
agora. Os minutos foram passando e com eles vinham as inevitáveis reflexões.
- Sabem, por mais que esta não seja, nem de longe, a melhor forma de
consertar o mundo, não podemos tirar totalmente a razão de Genaro e dos
religiosos responsáveis por sabotar o programa das viagens no tempo –
comentava Balder. – Deve ser revoltante ver uma tecnologia tão avançada e com
certeza tão cara, sendo usada para este fim e não para ajudar as pessoas a
viverem dignamente. Olha só o que ela fez. – Argumentou estendendo o braço
para a destruição a sua volta e com os olhos ainda fixos no céu.
- Tem razão velho amigo, o sacrifício destes jovens não pode ser em
vão, o ser humano está precisando olhar mais para dentro do que para fora e
conhecer mais a si e o próprio planeta, do que procurar vida em outros – dizia
Rudolph também direcionando o olhar para o céu. – Eles salvaram o hoje, cabe
a nós salvar o amanhã.
- Ah, por falar em amanhã, me lembre que precisamos fazer uma visita
a um tal de senhor Cole. Ele precisa contratar uma jovem muito esperta em 2016.
– Acrescentou Balder sorrindo, ao pé do ouvido do amigo.
- Isso e muitas mais coisas, certo? – Acrescentou Rudolph da mesma
forma.
- Certíssimo. Muitas outras coisas mesmo. – Concordou o avô de
August retirando um bloquinho de anotações do bolso e fitando algumas páginas
repleto de esperança.

- Jogo dos Wolves / Anotar a data


307

- Brincadeiras: War of straw, Faraós do Egito,


Batalha das Termópilas… inventar outras
- Acordos com Cole de Gloucester e Charlie, futuro
chefe do Correio Real Britânico (pai da Anne, que
precisará terminar com August em 2016)
- Equipar e expandir a CRONOS / Sede em
Gloucester com Leroy no comando / Segurar a informação
sobre a carta do senhor Schmidt até eles voltarem de
Londres
- Fazer um fundo falso no chaveiro da Torre Eiffel
que a Linda me deu / trecho do Ciclo Arturiano / Guardar
no cofre junto com um envelope com o desenho de um
escaravelho atrás
- Carta para Munin: 8-12 ligar e 9-12 receber Hug
/ Arrumar uma senhora para mentir, para August e Ana,
sobre a carta do padre incentivando o guerrilheiro / Ainda
na carta, incentivar Hug a ir com os meninos para o Egito
- Voltar com a carta do apóstolo Paulo para
Mamertinum
- Pedir a August para se mudar para Gloucester e
guardar o pergaminho

Pegando sua inseparável caneta, também no bolso da frente da camisa,


escreveu bem no finzinho da última página:

- Torcer para que tudo que faltar aqui seja amarrado


pelo próprio tempo e que seja tudo em vão, confirmando
308

que o sacrifício feito por August e Ana valeu a pena e não


estamos presos em um maldito loop temporal.

Ali ficaram por mais alguns bons instantes, refletindo sobre tudo que
haviam presenciado, vivido.
As horas, quando se tem um bom assunto e uma boa companhia, passam
depressa, muito depressa. É o tempo mostrando que ainda é ele o responsável
por dar as cartas.
- Sabe Hug, August e Ana são bonitos nomes para crianças, não acha?
- São sim pai, – expirou sorrindo – são sim. Talvez, se um dia tivermos
um menino, eu deixe o nome Hermes como sobrenome, talvez – expandiu o
sorriso.
Tendo recolhido os selos em uma badeja, Rudolph estranhou a ausência
de um deles.
- Está faltando um selo UDJAT.
Nem foi preciso pensar muito para deduzirem seu paradeiro.
- Com certeza ele desapareceu com eles – respondeu Balder contrito.
- É – concordou o velho amigo também com muito pesar. – E, o que
faremos com estes? – Apontou para os outros cinco.
- Vamos colocá-los de volta nas cartas e entregar a CRONOS. –
Respondeu Balder.
- Pai, com toda essa gente atrás deles, acha mesmo seguro mantê-los em
um mesmo lugar? – Interveio Huginin.
- É – parou um pouco para pensar – eu acho sim. Vamos dar uma
melhorada na segurança da agência, não só na segurança.
Quase que de forma unânime, quase porque Frank, dormindo no colo
do avô não votou, decidiram tomar chá, comer algo e esperar um pouco mais
para colocar a mão na massa e começarem a reconstruir o mundo, afinal, todo
reaparecer do sol é digno de admiração.

Aliviado por ter conseguido chegar vivo ao casarão, Base 1KA da


Guardiões, após enfrentar toda aquela bagunça sobrevoando o Atlântico, um
309

homem careca, de porte físico avantajado, adentrou sem fazer barulho. Era
tarde.
Utilizando sua chave, com o intuito de não acordar ninguém, mesmo
duvidando que alguém estivesse dormindo após tudo que aconteceu, tentou ligar
a luz.
- Não está funcionando.
Uma voz ecoou pelo salão, fazendo o coração do homem disparar de
susto.
Com os olhos aos poucos se adaptando a escuridão, conseguiu ver de
onde a voz havia se originado.
Iluminado pela fraca luz do luar, um homem encontrava-se sentado no
primeiro degrau de uma escadaria, que possuía respingos vermelhos em degraus
um pouco mais acima.
O visitante foi até outro interruptor e conseguiu ligar algumas fracas
luzes amarelas embutidas no teto.
- Ah meu Deus Sir Lancelot! O que aconteceu?
O homem que antes lhe dirigira a palavra, com o rosto inchado e os
olhos vermelhos, sentado em uma poça de sangue, olhando para as marcas nos
degraus da escada, segurava um velho nos braços.
- Isso, Sir Galahad, é a recompensa por se fazer a coisa certa.

Capítulo 78

Munin, que desde quando o vira não conseguia tirar aquele disquete da
cabeça, saiu da casa correndo e foi até a mureta de madeira da varanda.
- Aí pessoal! Vocês precisam ver uma coisa!
- Ah meu Senhor, o que será agora? – Lamentava Daiane desligando o
fogão e se dirigindo para sala.
Todos os que ainda se encontravam fora da casa, também se apressaram
para descobrir o motivo da agitação.
- O que foi filho? Por que esse desespero todo? – Indagou Balder entre
uma respiração e outra.
- Vejam vocês mesmos – abriu um arquivo em vídeo no computador.
- Isso aí foi o LHC quem mandou? – Perguntou Rudolph.
Munin engoliu seco antes de confirmar.
Vários segundos foram necessários para que o arquivo carregasse.
310

Quando as imagens começaram a surgir e a desaparecer na tela, o horror


se fazia presente na expressão de cada um. Nem mesmo as interrupções e falhas
em alguns pontos, os faziam perder o foco.
- Isso é...
- É meu irmão, é sim.

Ao fim do vídeo ouviam-se as respirações ofegantes e para alguns,


sentar se fez necessário.
- Será verdade? – Indagou Huginin.
- Espero que não filho, mas precisamos fazer algo caso seja.
- No que o senhor está pensando?
Balder não respondeu de imediato.
- Eu tenho o contato de um amigo que trabalha com o secretário de
defesa. Vamos tornar isso público.
- Público BO, tem certeza? – Rudolph arregalou os olhos.
- Absoluta.
- E como explicaremos?
- Daremos um jeito.
- Para casa então? – Interveio Munin.
- Para casa. – Respondeu Balder incitando os filhos a arrumar as coisas.
Rudolph, discretamente, chamou seu antigo companheiro de buscas até
o escritório.
- Está falando sério? Vamos mesmo interferir?
- Com toda certeza – cerrou os lábios e expirou com força. – Não
podemos deixar que aquilo – apontou para o monitor – se torne o nosso futuro.
Rudolph assentiu com a cabeça.
- E, o que faremos?
- Hum, ainda não tenho um plano, mas sei exatamente por onde
começar. – Foi até o telefone.
- Está ligando para o seu contato no Departamento de Defesa
Americano?
- Não. Para Leroy.
- Sabe que ele está meio adoentado, uma história como essa pode
agravar a situação.
311

Antes de completar a ligação, Balder se aproximou ainda mais do


amigo.
- Não vamos contar, não o todo.
Rudolph fez uma careta.
- Você sabe que...
- RH, me ouça com atenção: nós dois seremos os únicos a saber, até
porque, se o que aconteceu hoje não mudar o futuro, precisamos agir rápido –
fez uma pausa. – Não estaremos lá para os ajudar.

Abrindo os olhos lentamente, sentindo dores por todo o corpo, August


viu um homem de costas, com a visão ainda turva e olhos ardendo.
- O que aconteceu? – Perguntou com dificuldade.
- Você conseguiu.
August lutava para abrir os olhos e olhar para os lados.
- Onde estou?
O Homem se virou. Seu rosto era familiar.
- Você está no Planeta M, também chamado de Terra M. – Expirou
jocoso. – Bom, pelo menos eu chamo assim.
August tentou interromper, mas não conseguiu.
- Somos o futuro máximo, o planeta mãe, o original, o começo – falava
de forma lenta e com uma enorme satisfação – a realidade da qual todas
derivaram. Estava ansioso para que acordasse. – Ofereceu-lhe um copo com
água.
- Onde está Ana? Porque estou aqui? – Gemeu ao engolir. O gosto era
estranho. – Quem é você?
- Terá todas suas respostas em breve. – Aproximou-se para recolher o
copo. – Quanto ao meu nome, muitos me chamavam de Sir Lancelot, porém,
você me conhece por outro – sorriu. – Pode me chamar de LHC e, com o perdão
do trocadilho jovem promissor, bem-vindo à MATRIZ.
312
313

Epílogo
Um jovem boa pinta, de cabelos louros e lisos na altura dos ombros,
óculos escuros e jaqueta preta, conversava amistosamente com uma atendente
de uma pequena loja de conveniências afastada do centro urbano de Gloucester.
À princípio, o objetivo era pedir informações, todavia, a resposta para a
pergunta “Onde mora um tal de Rudolph Holister?”, parecia bem complicada,
pois o papo já estendia-se por uns dez minutos.
Vindo da dispensa, outra funcionária achegou-se e interrompeu a
conversa. Com cara de poucos amigos, tudo levava a crer que ela chamaria a
atenção de sua companheira de trabalho, afinal, mesmo com o movimento sendo
quase nulo, ali não era lugar para ficar flertando. No entanto, a expressão
carregada, tinha outro motivo.
- Munin?
O jovem se virou assustado. Reconheceu a voz e, mas quem disse que o
nome lhe veio à mente.
- Munin Dunkeld! – A jovem confirmou. – Que mundo pequeno!
O rapaz até chegou a abrir a boca, mas não ia arriscar, se lembrara da
última vez que a viu.
A moça, recém chegada, percebeu logo a situação e com um gesto o
incitou a falar.
- Jeni… – parou por aí.
- Judith! – completou enraivecida – Seu cretino miserável! Por que me
deixou plantada daquele jeito?
- Bom… – até tentou pensar em uma boa desculpa, mas nenhum motivo
era bom o suficiente para levar e depois deixar uma moça sozinha dentro de um
restaurante, fugir pela janela do banheiro e ir encontrar-se com a bartender que
acabara de bater o ponto.
- Vamos! – A moça gritava – Quero ver se é tão bom de lábia para
inventar desculpas, como é para xavecar!
Mesmo com uma plateia de apenas quatro pessoas, contando com um
casal que acabara de entrar, Munin ficou constrangido e deu logo um jeito de
sair dali.
- Eu tive uma urgência – afastou-se do caixa andando para trás – igual
a que eu tenho agora… preciso ir! – Virou-se e apertou o passo em direção a
saída.
314

A moça deu a volta no balcão e seguiu insultando-o até ele entrar no


carro.
Sentando o pé, Munin andou de ré cerca de quinze metros, quando ia
fazer a manobra para entrar na estrada, sentiu um impacto na traseira. Ô merda!
Saiu logo do carro.
A moça, responsável pela saída apressada do, nas palavras dela, canalha
desprezível, viu o acidente e correu para ajudar.
- Você atropelou um padre?
Munin agachou-se para sentir a pulsação do homem de batina estirado
no chão.
- Ele está vivo! Chame logo uma ambulância!
A moça voltou correndo para dentro da loja.
Antes que os curiosos pudessem chegar, Munin se lembrou de algo dito
a ele em uma ligação, até um tanto suspeita, sobre o envolvimento de um cardeal
na busca pelas cartas e no problema que o havia levado ali. Então, com uma
maleta bem jeitosa, dando sopa a menos de um metro do seu pé, resolveu dar
uma olhada.
A ambulância com certeza, estava ali bem perto, pois chegou no local
antes mesmo da jovem que acabara de fazer a ligação e voltava para ver a
situação do atropelado.
Os socorristas chegaram e Munin contou o que havia acontecido,
enquanto eles imobilizavam o padre.
Antes de ser colocado dentro do veículo que o levaria para o hospital, o
homem acordou.
- A maleta… a maleta – falava com muita dificuldade.
Munin pareceu ser o único a entender, o que é normal visto que os
paramédicos ocupados em embarcar a vítima, já atendiam a outro chamado.
- Cuidem bem dele, acho que bateu a cabeça! Pode ser que esteja
delirando.
Fecharam rapidamente a porta de trás da ambulância, mesmo assim, o
homem deitado na maca, com os olhos arregalados, conseguiu ver o discreto
sorriso de um jovem louro que, satisfeito, arrumava seus óculos escuros.
315
316

Obras musicais utilizadas


- Wake me up (Avicii)
- Three little birds (Bob Marley)
317

Outros títulos do autor:

Mamãe, cadê o papai?


R. Douglas

Todos sabem da importância que um pai tem, não só na vida de um


filho, como em seu núcleo familiar. No entanto sabemos também, que muitos
desses pais não quiseram, ou ainda não pararam para pensar no tamanho dessa
importância frente ao desenvolvimento, formação de caráter e, principalmente,
felicidade do filho.
De maneira dinâmica e utilizando alguns aspectos históricos e literários,
deixando os anacronismos de lado, com o intuito de analisar, por suposições,
como as coisas aconteceram devido à presença ou ausência de uma figura
paterna responsável e amorosa, o livro "Mamãe, cadê o papai?", deseja envolver
mais os pais neste maravilhoso presente que é a paternidade.
Sem dúvida uma leitura destinada a qualquer público, não só aos pais
atuais ou futuros, mas também a todos pertencentes aos pilares do
relacionamento, às células da sociedade, à família.

www.instagram.com/minhaprimeiracegonha
www.instagram.com/douglas.escritor
318

À sombra dos arranha-céus - livro I


R. Douglas

Quatro jovens conduzindo suas vidas como outros quaisquer, entre


escola, família e atividades sociais, mesmo possuindo personalidades
completamente distintas, sempre estiveram ligados, de certa forma, pela
profissão de seus pais, onde pelo menos um de seus progenitores havia seguido
os rumos do direito, sendo todos respeitados advogados detentores de altos
cargos em suas respectivas empresas.
Após descobrirem que o trágico acidente ocorrido durante um
importante acordo de fusão e responsável pela morte de importantes nomes de
ambas as firmas, ocorreu devido a uma sabotagem, os atuais gestores,
encontrando-se em posições diferentes em relação as do início da negociação,
utilizam todas as armas que possuem para alcançarem seus objetivos, muitas
vezes ultrapassado os limites impostos pelo bom convívio social e até pelo
objeto de estudo deles por tanto tempo: a lei.
Com seus pais envolvidos intensamente nessa disputa, os jovens
acabam sendo pegos no fogo cruzado e em uma viagem de férias à Grécia,
acompanhados por sua professora de História, acabam presenciando e sentindo
na pele as consequências das más escolhas e da ambição dos homens de negócio.

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À sombra dos arranha-céus – livro II

O limiar dos acordos... guerra


R. Douglas

Após os inesperados e marcantes acontecimentos na viagem à Grécia,


os quatro jovens estão de volta as suas respectivas casas, no entanto, não tiveram
nem tempo de retomar as rotinas, pois as recentes experiências insistiam em se
fazer presente e assombrá-los, levando-os de volta ao local antes inspirador de
sonhos, agora, realidade de pesadelos.
Dos quatro envolvidos nessa trama de acordos, mentiras e armações,
apenas Sara não retorna de imediato, isso porque, após descobrir que seu pai
também é alvo de um julgamento naquele país por ele desconhecido, é
compelida por sua mãe a ir morar com ela nos Estados Unidos, sofrendo a
distância por não conseguir ajudar e sem saber o que acontecia.
Com as realidades das empresas completamente alteradas devido a atual
situação de seus presidentes, surgem novos interessados no acordo de fusão,
utilizando ótimas cartas para entrar com força neste jogo de interesses,
agradando a uns e desagradando a outros, acima de tudo, abrindo novos
caminhos e participando ativamente do desfecho de toda essa balbúrdia.

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”Tudo é construção mental”

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