JONATHAN D.

SPENCE

EM BUSCA DA
CHINA MODERNA
Quatro séculos de história
Tradução:
TOMÁS ROSA BUENO
e PEDRO MAIA SOARES
frequentemente sem fundamento. A guerra da Coreia contribuiu para a amplitude
das campanhas, pois criou novas oportunidades de emprego e consecução para fir-
mas do Norte da China (daí a avaliação mais dura de Tianjin em relação à de Xan-
gai), ainda que isso trouxesse para o governo despesas novas e imensas. Às vezes
o governo chegava a emprestar aos capitalistas dinheiro para que pagassem as multas,
levando a um processo complexo de subserviência e endividamento.
O principal objetivo das campanhas era garantir o controle governamental so-
bre as organizações de trabalhadores e acabar com os modos independentes de ope-
ração de capitalistas e burocratas. Em forte contraste com a campanha de Repres-
são aos Contra-revolucionários, poucas das vítimas dos Três e Cinco Anti foram
mortas. Quase todas ficaram aterrorizadas ou humilhadas — ou ambos —, e mui-
tas tiveram de não apenas pagar as multas como também devolver todo o dinheiro
que tinham embolsado ou deixado de pagar; alguns tiveram suas propriedades con-
fiscadas e foram mandados para acampamentos de trabalho.
As técnicas de pressão de grupo empregadas nesses movimentos não acaba-
ram com a campanha de abril. Ao contrário, as reuniões de empregados e patrões
tornaram-se parte regular da maioria dos negócios e as pressões dos trabalhadores
e quadros do partido impediam que os patrões dirigissem seus negócios à maneira
deles. Realizaram-se exames meticulosos de estatuto de classe em todo o país e os
moradores das cidades foram classificados com a mesma precisão utilizada para
os trabalhadores rurais em Xunwu e nos programas posteriores de reforma agrá-
ria. Entre as sessenta novas categorias em que a "classe" foi dividida, era possível
encontrar rótulos como "trabalhador de empresa", "trabalhador artesão", "tra-
balhador de riquixá puxado por bicicleta", "ocioso", "indigente urbano", "men-
digo", "dono de loja pequena", "empregado de escritório" e assim por diante.
Além disso, todo um novo grupo de ativistas fora agora identificado pelo Estado.
Somente em Xangai, 40 mil trabalhadores que tinham demonstrado eficiência nas
lutas dos Cinco Anti foram admitidos em novos organismos de propaganda, pron-
tos para servir ao Estado quando necessário, o mesmo acontecendo em outras ci-
dades. No final de 1952, a direção do PCC sentia-se confiante para aumentar as
fileiras de militantes do partido para 6 milhões. Mesmo aqueles que nunca tinham
visto uma unidade guerrilheira ou experimentado a vida no campo sentiam agora
pelo menos um gostinho da revolução.
512
20
PLANEJANDO A NOVA SOCIEDADE
o PRIMEIRO PLANO QUINQUENAL
Com a primeira fase da reforma agrária completa, a base económica da bur-
guesia quebrada e a guerra da Coreia terminada, em 1953 o PCC estava livre para
criar um plano integrado para o desenvolvimento económico da nação. O modelo
adotado foi o da União Soviética, onde, acreditava-se, a produção industrial con-
trolada pelo Estado numa seqiiência de planos quinquenais fora responsável pela
transformação do país em potência mundial na década de 1930, com capacidade
para suportar e repelir o ataque maciço das forças alemãs na Segunda Guerra Mun-
dial. Essa vitória, por seu turno, permitiu a expansão da influência da U R S S na Eu-
ropa no final da guerra, apesar dos esforços em contrário dos Estados Unidos.
Por que exatamente os chineses escolheram o modelo soviético, cujo funcio-
namento específico pouco conheciam, é uma questão que permanece difícil de res-
ponder. Talvez esse modelo parecesse a única escolha lógica depois do fracasso da
reforma ocidgntaHzante do Guomindang e depois que a guerra da Coreia e as cam-
panhas de massa contra os estrangeiros deixaram a China ainda mais isolada das
potências ocidentais. A utilização do modelo soviético foi certamente uma manei-
ra de enfatizar a natureza anticapitalista e antiimperialista do novo Estado chinês.
E o PCC, tendo tomado o poder num violento confronto revolucionário, precisava
de algum modelo para exercê-lo ao partir para a construção do socialismo em um
país pobre.
A fim de preparar-se para a tarefa de reconstrução da economia, os dirigentes
chineses estabeleceram padrões de recrutamento para a burocracia e escalas de pa-
gamento, introduziram procedimentos administrativos regulares e organizaram o
povo da China de acordo com as unidades locais em que trabalhavam {danweí),
a fim de aumentar a eficiência do controle e da doutrinação social. Em 1954, du-
rante discussões difíceis nos mais altos escalões políticos, a estrutura do governo
foi reorganizada para acabar com as seis regiões político-militares básicas nas quais
o país fora dividido em 1949. O exército foi colocado sob a direção de um novo
Ministério da Defesa, subordinado ao Conselho de Estado de Pequim. Para a im-
plementação das decisões do partido, a China avançou para um sistema fortemen-
te centralizado, no qual os secretários provinciais do partido supervisionavam a
disseminação das ordens do Comité Central através de uma elaborada cadeia de
escritórios partidários subprovinciais. O país seria agora administrado através de
513
21 províncias,* cinco regiões autónomas (Xinjiang, Tibete, Mongólia Interior, Ning- Primeiro Plano QUinqUenal, 1953-7^
xia e Guangxi) e duas municipalidades — Pequim e Xangai.** Abaixo dessas uni-
dades havia aproximadamente 2200 governos de condados que, por sua vez, super- 1957
visionavam cerca de 1 milhão de agências do PCC em vilas, aldeias, unidades do 1952 1957 1957 Porcentagem
exército, fábricas, minas e escolas. Indicador {unidade) Dados Plano Real do plano
Interligado a essas mudanças básicas na organização política estava o primei- Valor bruto da produção (em
ro grande expurgo a ocorrer no PCC desde a fundação da República Popular. O milhões de yuans de 1952)
expurgo aconteceu entre o final de 1953 e o início de 1954, e as duas principais Indústria (excluindo
vítimas foram Gao Gang e Rao Shushi, comissários políticos respectivamente das artesanias) 27 010 53 560 65 020 121.4
regiões da Manchúria e de Xangai. Ambos eram membros da importante Comis- Setor produtor 10 730 24 303 34 330 141.0
são de Planejamento do Estado, que estava então revisando a direção futura do Maquinaria 1 404 3 470 6 177 178.0
país. Embora tivessem sido duas das figuras mais poderosas da China, não foram Produtos químicos 864 2 271 4 291 188.9
dadas razões precisas para a queda deles, além das acusações vagas de que tinham Setor produtor menos
tentado criar "reinos independentes", ou seguido políticas económicas "erradas". maquinaria e químicos 8 462 18 562 23 862 128,5
Parece que os dois homens tentaram arrancar poder de Zhou Enlai e Liu Shaoqi Jução física
para ocuparem as posições número 2 e 3 abaixo de Mao. Tinham discutido a estra- Carvão (Mtm) 68,50 113.00 130,00 115,0
Óleo cru (mtm) 436 2012 1 458 72,5
tégia económica, criticando a cautela de Zhou e Liu, e aparentemente atiçaram as Lingotes de aço (Mtm) 1.35 4,12 5,35 129.8
chamas do ressentimento entre outros quadros veteranos que achavam que sua de- Cimento (Mim) 2^ 6.00 6.86 114.3
dicação revolucionária não fora adequadamente recompensada. Mas os dois fo- Energia elétrica (bilhões
ram muito longe em suas maquinações, e, numa reunião de dezembro de 1953 do de kWh) 7^ 15,90 19,34 121.6
Politburo em que Gao estava presente, Mao afirmou que havia agora "duas sedes Motores de combustão
em Pequim. A primeira, chefiada por mim, provocou um vento aberto e acendeu interna (milhares de hp) 27,6 260.2 609,0 234,2
um fogo aberto. A segunda, chefiada por outros, provocou um vento sinistro e Turbinas hidrelétricas (kW) 6 664 7p 500 74 900 94.2
acendeu um fogo sinistro; estava agindo na clandestinidade".' Depois de fazer es- Geradores (milhares de kW) 29.7 227.0 312,2 137.5
sas acusações vagas, Mao não foi visto em público durante três meses, suposta- Motores elétricos (milhares
mente "de férias", deixando para Liu Shaoqi o comando da investigação sobre de kW) 639 1048 l 455 138,8
a unidade partidária que levou à exclusão de Gao e Rao. Deng Xiaoping, na quali- Transformadores
(milhares de kWa) l 167 2 610 3 500 134,1
dade de secretário-geral do PCC, anunciou mais tarde que Gao Gang tinha "come- Ferramentas de máquina
tido a traição definitiva" — o suicídio. Nada se disse sobre o destino de Rao Shushi. (unidades) 13 734 12 720 28 000 220.1
Apesar dessas crises no próprio centro da estrutura de poder do partido, o Pri- Locomotivas (unidades) 20 200 167 83.5
meiro Plano Quinquenal obteve um aumento extraordinário da produção indus- Vagões de carga (unidades) 5 792 8 500 7 300 85.9
trial de um amplo setor de bens (ver quadro na página 511). Navios mercantes (milhares de
O plano foi feito para cobrir os anos de 1953 a 1957, embora os detalhes exa- toneladas de peso bruto) 21.5 179,1 54,0 30,2
tos tenham sido divulgados apenas em 1955, devido ao debate interno prolongado Caminhões (unidades) 0 4 000 7 500 187,5
sobre maneiras de proceder. A maioria de seus objetivos já tinha sido alcançada Bicicletas (milhares de
unidades) 80 555 1 174 211.5
no final de 1956. Ainda que os dados de produção de 1952 sejam considerados ar- Soda cáustica (mtm) 79 154 198 128.6
tificialmente baixos, devido aos longos períodos de interrupção provocados pela Carbonato de sódio (mtm) 192 476 506 106.3
guerra contra o Japão, a guerra civil e a primeira fase de compressão comunista, Sulfato de amõnio (mtm) 181 504 631 125,2
o plano foi uma reahzação formidável. Nitrato de amónio (mtm) 7 44 120 272.7
Esse foi o período de colaboração mais íntima entre China e União Soviética. Pneus de automóveis
Milhares de assessores técnicos soviéticos ajudaram na construção de fábricas, pla- (milhares de conjuntos) 417 760 873 114,9
Ácido sulfúrico (mtm) 149 402 632 157.2
(*) Taiwan era listada como a 22*.. Inseticida "666" (ton.) 600 70 000 61 000 87,1
(**) Tianjin tomou-st mais tarde uma terceira municipalidade. Nota: Mtm = miltiôcs dc toneladas métricas; mtm = milhares de toneladas piétricas.

514 515
 ncjamento industrial, desenvolvimento de energia hidrelétrica, extensão da rede fer- Distribuição de capital fixo investido pelo Estado, 1952-7*
roviária e até na arquitelura urbana, onde suas estruturas maciças não se harmoni-
zavam com a paisagem urbana chinesa. A técnica soviética para crescimento in- Setor económico 1952 1955 1957
dustrial rápido resumia-se em cinco elementos: ênfase na necessidade de crescimento Indústria 38,8% 46,2% 52.3%
alto durante todo o período do plano; concentração na indústria pesada como fa-
tor de crescimento significativo; insistência em altas taxas de poupança e investi- Construção 2.1% 3,9% 3.3%
mento para tornar esse crescimento possível; transformação institucional na agri- Pesquisa de recursos naturais 1,6% 3,2% 2,2%
cultura; e um preconceito a favor de métodos capital-intensivos. Em todos esses Agricultura, silvicultura, águas
elementos a China seguiu seus mentores soviéticos. Os chineses acrescentaram tam- e meteorologia 13,8% 6.7% 8,6%
Transportes e comunicações 17,5% 19.0% 15.0%
bém uma política rigorosa de "acumulação primitiva" que forçava o campesinato Comércio 2,8% 3,7% 2,7%
a vender mais de um quarto de sua produção total de grãos ao Estado, por preços Cultura, educação e pesquisa 6.4% 6.3% 6.7%
extremamente baixos. Essa política deixou os camponeses no nível de subsistência, Saúde e bem-estar público 1.3% 1.1% 0,9%
enquanto permitia ao governo garantir suprimentos de alimentos nas cidades e man- Serviços públicos urbanos 3,9% 2,4% 2.8%
ter os salários baixos. Administração governamental 0,4% 1.5% 1,3%
O governo tinha preparado a economia para o Plano Quinquenal com o con- Outros 11.4% 6.9% 4,2%
trole da inflação, conseguido em 1952, apesar das pressões pela produção militar Total em porcentagem 100,0% 100.0% 100.0%
provocadas pela guerra da Coreia. O uso da nova moeda renminbi foi implemen- Total em milhões de yuans 4 360 9 300 13 830
tado em todo o país, processo completado quando foi recolhido, em março de 1951,
o dinheiro separado que vinha circulando na Manchúria. O Estado conseguiu um
orçamento equilibrado eom o controle violento dos gastos governamentais e a reor- censo demográfico chinês com métodos comparativamente modernos.* Os dados
ganização do sistema tributário para aumentar os impostos sobre os habitantes das do censo mostraram que a população da China tinha crescido bem mais que 100
cidades. Particularmente notável foi a redução na porcentagem do orçamento alo- milhões desde o período dos Qing e atingia agora 582,6 milhões; em 1957, a popu-
cada para a própria administração governamental e a redução efetiva de gastos lação já era de 646,5 milhões.
militares (ver quadro a seguir). O outro lado dessa moeda foi o baixo nível de inves- O governo enfrentou os déficits orçamentários sem imprimir mais dinheiro —
timento em saúde pública e bem-estar social nessa fase de crescimento industrial como fizera o Guomindang — nem pedir grandes quantias para credores podero-
rápido, como mostra a tabela da página 515. Apesar desse investimento pequeno, sos, mas com a venda de títulos do governo e o estímulo a "contribuições" promo-
com o fmal das guerras terríveis que tinham dilacerado a China por tanto tempo vidas por campanhas patrióticas. Uma vez que se mantinha uma oferta baixa de
e a adoção de medidas básicas de higiene e controle de doenças e pestes — tanto bens de consumo, a poupança era ainda mais estimulada. O Banco da China tam-
por meios voluntários como por campanhas de massa —, a população do país bém conseguiu baixar tremendamente os juros, fortalecendo a fé na economia. Os
expandiu-se rapidamente, crescendo enormemente em todas as províncias, exceto juros bancários, entre lO^o e 80% ao ano em dezembro de 1949, caíram para 18%
Guangxi. Sabe-se disso com alguma certeza, pois em 1953 realizou-se o primeiro em 1950 e 3 % em 1951. Para reforçar ainda mais a confiança, os salários pagos
aos trabalhadores e os depósitos de poupança recebidos em bancos estatais tinham
como base os valores de uma "cesta de produtos" — uma cesta básica que incluía
alimentos, roupa, carvão e óleo de cozinha. O custo dessa cesta era anunciado em
Distribuição das despesas do orçamento do governo, 1950-7 todas as grandes cidades a cada sete ou dez dias, e quem tirasse dinheiro da pou-
pança recebia o equivalente em dinheiro das unidades de cesta de produtos que ha-
Categoria das despesas 1950 1952 1957 via depositado originalmente, mais os juros acumulados. O aumento dos preços
Construção económica 25.5% 45,5% 51,4% no varejo foi contido entre 1,5% e 2% ao ano entre 1952 e 1957.
Gastos sociais, culturais e educacionais 11.1% 13,6% 16,0% Evidentemente, algumas coisas não andaram tão fáceis durante esse estágio
Defesa nacional 41.5% 26,0% 19.0% do desenvolvimento do país. Muitos do contingente enormemente ampliado de ope-
Administração governamental 19.3% 10.3% 7,8% rários urbanos eram analfabetos e despreparados para o trabalho fabril, tal como
Outros 2,6% 4,7% 5,8%
Total em porcentagem 100,0% 100,0% 100.0% (*) Alguns demógrafos dizem que os números de 1953 podem ler sido subestimados entre 5 ^ e
Total em milhões de yuans 6810 16 790 29 020 15%, o que tornaria o crescimento subsequente menos dramático.

516 517
aconcccera no primeiro esforço de crescimento industrial, sob a égide estrangeira, em 1956 eram consideravelmente mais altos do que os dos moradores da cidade
na década de 1920. Equipamentos modernos e caros eram estragados por causa de em 1930 (ver pabCIâ^ seguir). Mas o povo de Xangai ainda eslava longe de viver
erros simples como não instalá-los em local plano ou fazê-los funcionar sem lubrificá- com c^Míforto. i
los. Uma vez que a quantidade era prioritária, havia pouca atenção para a qualida- 0 lado industriar do Primeiro Plano Quinquenal estava, dada a natureza da
de ou para o apelo de mercado dos bens; faltava variedade e imaginação à produ- econí^ia chinesjrintimamente ligado aos desenvolvimentos agrícolas. Com efei-
ção. O problema do controle de qualidade foi adequadamente resumido por um to, a maíÕrta'3os recursos necessários á indústria tinha de ser extraído do setor agrí-
artigo de jornal de 1955, sobre um certo gerente sénior que mandou seu inspetor, cola; uma parte desse investimento vinha na forma de impostos e poupanças, mas
Li, aprovar produtos inferiores ao padrão para que a companhia atingisse suas co- o grosso vinha do cumprimento das cotas de aquisição do governo a preços artifi-
tas. Quando Li iradamente se negou a cumprir a determinação, o gerente promoveu-o cialmente baixos. Depois que os primeiros movimentos de reforma agrária tinham
a assistente de gerente. A partir de então, Li intimidou seus ex-colegas inspetores quebrado os lerratenentes, o Estado começou metodicamente a agrupar os campo-
a aprovar produtos sem qualidade, uma vez que era ele agora que devia cumprir neses em formas de trabalho cooperativo. O primeiro estágio era estimulá-los a se
as cotas. unir em grupos de ajuda mútua, com base na consciência social desenvolvida na
Os planejadores estatais da China ignoravam muitas vezes os procedimentos reforma agrária, mostrando o aumento de produtividade que poderia ser obtido
básicos, e o próprio processo de planejamento era prejudicado por numerosos er- com a reunião de certas quantidades de mão-de-obra, ferramentas e animais de tra-
ros, engarrafamentos de produção e desacordos entre os ministérios das indústrias, ção. Esses grupos eram compostos normalmente de seis ou sete famílias; ao excluir
em Pequim, e os produtores nas diversas localidades. Ameaçados por prazos de os camponeses ricos, e até os médios, eles deixavam clara a natureza ambígua e
produção de cotas, muitos gerentes foram estimulados a formar estoques não ofi-
ciais de mercadorias. Ademais, havia um mínimo de cooperação entre as indús- Consumo anual per capita. Xangai. 1929-30 e 7956'
trias e uma concorrência feroz por suprimentos de emergência e serviços de conser- {em catties, exceto guando indicado)
to. A tensão com as firmas privadas, no entanto, alivíou-se com o crescimento do
envolvimento parcial do Estado nas empresas privadas. Essa tendência atravessou Produto 1929-30 1956 % de aumento
a campanha dos Cinco Anti e o Primeiro Plano Quinquenal, até que no final de Arroz 240.17 270,74 12,5
1955 a nacionalização da indústria privada aboliu todas as empresas totalmente par- Farinha de trigo 15,70 15.68 3.4
ticulares, deixando a China com apenas duas formas de organização industrial: a Carne suína 9,78 16.21 65.7
controlada completamente pelo Estado e a mista estatal-privada. Carne bovina e ovina 1,89 2.29 21,2
A complexidade da tarefa governamental de tentar coordenar todos os níveis Frango, pato 0,76 2,70 255.3
da produção, suprimento e distribuição fica bem clara com os novos ministérios Peixes, moluscos 10.17 27.39 169.3
que eram constantemente acrescentados à lista inicial de 1949. Em 1955, por exem- Ovos 1.85 7,02 379.5
plo, criaram-se quatro ministérios para administrar suprimentos agrícolas, carvão, Verduras e legumes 159.57 193,50 21.2
energia elétrica e indústrias petroleiras. Boa parte do pessoal dos ministérios mais Óleo vegetal 12,58 10.20 -18,9
técnicos — os de energia elétrica e petróleo — tinha sido treinada na União Soviéti- óleo animal 0.47 0.71 73,2
Açúcar 2.40 4,17 73,8
ca e, mais tarde, iria ler uma influência extraordinária no governo e no partido. Cigarros (20) 24.21 32.36 33.7
Em 1956, não menos que nove novos ministérios foram criados para administrar Bebidas alcoólicas 13,43 6.46 -51,9
produtos aquáticos, indústrias de materiais de construção, indústrias químicas, in- Chá 0.55 0,15 -72,3
dústrias metalúrgicas, equipamentos de energia, fazendas estatais e reclamações de Tecidos de algodão (m^) 6,43 14.00 117.7
terras, indústria madeireira, construção urbana e serviços urbanos. Querosene 19,17 0.40 -91,9
Para os trabalhadores urbanos, os aumentos na produção trouxeram benefí- Carvão mineral e vegetal 43,14 228,17 428,9
cios materiais e um pouco de segurança de emprego, mas ao custo da mobilidade Ervas combustíveis 247.77 78.24 -67.8
pessoal. Era difícil mudar dos empregos designados e havia controles rígidos sobre Sapatos de couro (par) 0,17 0,27 58,8
as idas às cidades de moradores do campo. Através de suas próprias organizações Sapatos de borracha (par) 0,10 0,51 410,0
Meias (par) 1.26 2,08 65.0
sindicais e aparelhos partidários, o governo controlava os operários com muito mais Espaço de moradia (m^) 3.22 4,78 48,5
eficácia do que o Guomindang jamais conseguira. Uma comparação cuidadosa do
consumo anual de alimentos das famílias de Xangai mostra que os padrões de vida Unidade: 1 caiiy = 0.5 quilo

518 519
potencialmente perigosa desses membros abastados de suas aldeias. Para enfatizar dcias rurais tradicionais e exigiam mais administradores de tempo integral e repre-
ainda mais esse ponto, a mesma escala meticulosa de estatuto de classe que estava sentantes do partido. Em 1956, essa mudança estava em andamento e as cooperati-
sendo seguida nas cidades foi então aplicada no campo. Os ensaios de Mao sobre vas de estágio mais baixo começaram a diminuir em número, enquanto crescia o
as classes na sociedade chinesa tiveram ampla circulação, uma vez que a maioria das de estágio mais alto (ver quadro a seguir). Ao mesmo tempo, o governo dimi-
das pessoas do campo ignorava a terminologia, e deu-se atenção especial às rela- nuiu sua ênfase nos grupos de ajuda mútua, que cessaram então de representar um
ções de classe "semifeudais" no campo que Mao discutia. As experiências de re- fator significativo na vida rural.
forma agrária do Soviete de Jiangxi, de Yan'an e do período de guerra civil foram
analisadas. Os terratenentes ganharam uma variedade de designações — '*escondi- Participação de famílias camponesas em diferentes tipos
dos", "falidos", "esclarecidos", "chineses do exterior", "despóticos" —, e os de unidades de propriedade, 1950-6''
camponeses médios foram subdivididos em "velhos", "novos" e "prósperos". À
medida que a discussão se aprofundava, os grupos de ajuda mútua que, de início, Cooperativas de produtores
se desfaziam depois de cada estação de colheita passaram gradualmente a funcio- * Grupos de ajuda agrícolas
nar o ano inteiro. Ano mútua Estágio mais baixo Estágio mais alto
Em 1952 e 1953, o governo experimentou reunir os camponeses de grupos de 10,7'% * *
ajuda mútua em unidades cooperativas de trinta a cinquenta famílias. Terra e mão- 1950
de-obra formaram um fundo comum nessas cooperativas, embora cada família con- 1951 19,2<Po «
•*
servasse o título de propriedade dos lotes com que contribuía. Essa consolidação 1952 39,9% 0,1
ganhou terras extras para a cooperativa, com a abolição das faixas que separavam 1953 39,3'% 0,2 *
1954 58.30^0 1,9 «

a miríade de pequenos lotes em que as posses dos camponeses estavam divididas 1955
tradicionalmente, levou a algumas melhoras na produtividade dos trabalhadores Final do outono 50,7(?o 14.2 0,03
ao eliminar as viagens cansativas entre lotes, e, em alguns casos, permitiu o uso Fim do ano 32,7'% 63.3 4.00
de técnicas mecanizadas na lavoura. No Tmal de cada ano, depois que as cotas de 1956
aquisição do governo tinham sido cumpridas e algum dinheiro colocado de lado Fim de janeiro 19.7o?o 49,6 30.70
para investimento na cooperativa, o saldo era dividido entre uma "fração de ter- Fim de julho 29.0 63,40
ra", baseada na extensão de terra com que cada família contribuía para a coopera- Fim do ano i,m
3.7o?o 8.5 87,80
tiva, e uma "fração de trabalho", baseada na quantidade diária de trabalho que 1957 0 *
93.50
cada família realizava. Tratava-se de um arranjo apenas semi-soei ali st a, pois os
camponeses mais ricos, ao contribuir com mais terra, ganhavam também uma re- Nota: ' = porcentagem desprezível.
compensa maior; por isso, eram chamadas de "cooperativas de estágio mais baixo". Todavia, os camponeses ainda detinham tecnicamente o título das terras que
A mudança para a organização em cooperativas envolveu decisões extrema- contribuíam para as cooperativas e tinham permissão para manter lotes particula-
mente complicadas, não só sobre estatutos de classe e métodos de trabalho como res para uso próprio, o que lhes ajudava a preservar o sentimento de propriedade
também sobre o tamanho ideal dos lotes para plantios específicos, a amplitude ou individual e lhes dava espaço para suas capacidades empreendedoras. Esses lotes
exequibilidade da mecanização e o exercício da autoridade dentro das cooperati- não deveriam ter mais de 5 % da terra de determinada cooperativa de estágio mais
vas. Os ritmos das campanhas rurais tinha de ser integrado com os movimentos alto, mas eram cultivados com grande fervor, pois o produto deles poderia ser ven-
de massa nas áreas urbanas, de tal forma que o país todo não entrasse em tumulto dido em mercados rurais pelos próprios produtores, que podiam assim complementar
ao mesmo tempo. No final de 1955, no entanto, depois de amplas campanhas de a renda que recebiam do trabalho com que contribuíam para a cooperativa. Os cam-
propaganda e experiências cuidadosas em algumas áreas, o Estado começou a re- poneses usavam geralmente os lotes para plantar legumes, que podiam ser vendi-
duzir gradualmente a fração da terra e aumentar a porcentagem que ia para a fra- dos por um preço muito maior que o dos grãos. Em 1956, de 20"% a 30% da renda
ção do trabalho. Para persuadir os camponeses médios e ricos das vantagens disso, agrícola vinha desses lotes particulares e 83<% de todos os porcos da China eram
o governo negou-lhes créditos e outras facilidades, a fim de que eles vissem um alimentados com forragem comprada com essa renda extra, suplementada com restos
ganho económico na contribuição a essas "cooperativas de estágio mais alto", nas
quais o trabalho realizado se tornara o único critério de remuneração. Essas novas de verduras. A mesma combinação de alimentos era utilizada para criar galinhas.
cooperativas foram organizadas em escala muito maior, incluindo amiúde duzen- Os animais, por sua vez, produziam um adubo valioso para as frutas e legumes
tas a trezentas famílias. Elas ultrapassavam assim o tamanho da maioria das al- cultivados nesses lotes privados.

520 521
 o surto resultante de produção privada começou a alarmar Mao Zedong e ou-
tros membros do governo, que temiam a volta do sistema tradicional de duas ou
três classes no campo, no qual uma nova geração de camponeses enriquecidos po-
deria surgir à custa dos menos capazes, ou afortunados, ou implacáveis compa-
nheiros. Em 1956 e 1957, os camponeses estavam comendo melhor do que no início
da década e seu consumo per capita de grãos era mais alto do que o dos trabalha-
dores urbanos. Ao mesmo tempo, à distância percebe-se que aves e suínos criados
em lotes privados eram parte importante dos frangos, patos, ovos e carne de porco
disponíveis, traço marcante da cesta de consumo mais gorda do operário indus-
trial. Havia um paradoxo em andamento, e a forma como o governo reagiu ao cres-
cente sucesso da produção privada teria importância crucial para o próximo está-
gio da história da República Popular.
A POLÍTICA EXTERNA E AS MINORIAS NACIONAIS
No início e meados da dinastia Qing, a China buscara perpetuar a imagem de
que a corte de Pequim era o centro cultural das nações vizinhas e dos mares do
Sul, que suas virtudes atraíam os de longe para sua órbita. O poder do imperador
chinês irradiava-se para fora, manifestando-se na Influência de artefatos culturais
como as obras de Confúcio, o calendário e o sistema de escrita chineses. O ofereci-
mento de "presentes tributários" das nações mais respeitosas confirmava essa ima-
gem, que a China reforçava ocasionalmente despachando embaixadas para super-
visionar uma investidura real ou explorar oportunidades de comércio, embora essas
missões fossem de duração curta e, em geral, comandadas por funcionários de se-
gundo escalão. No entanto, quaisquer pretensões universais que o sistema pudesse
ter estavam sempre limitadas pela dificuldade de controlar as tribos nómades e os
povos muçulmanos do Norte e Oeste do país e foram completamente destruídas
pelas incursões dos europeus depois de seus primeiros e poucos anos de deferência.
Na década de 1950, um dos objetivos centrais dos dirigentes chineses era res-
tabelecer o prestígio internacional que caíra para quase zero no período de Yuan
Shikai e os senhores guerreiros e durante os últimos anos de governo do Guomin-
dang. Como Churchill advertira, o desempenho da China na Segunda Guerra Mun-
dial não estava à altura do estatuto de grande potência que os Aliados lhe tinham
atribuído em palavras. A guerra da Coreia complicou ainda mais o status interna-
cional do país. fixando os Estados Unidos numa posição de hostilidade que, por
sua vez, garantiu que Taiwan ficaria fora do controle da RPC, e a RPC fora da ONU.
Apesar disso, o prestígio internacional da China cresceu rapidamente na déca-
da de 1950, ao mesmo tempo que o Primeiro Plano Quinquenal era implementado.
Foi um período de otimismo para o país e, ao apresentar a RPC como um membro
novo porém responsável da comunidade mundial, os líderes chineses modificaram
o sentimento de extremismo gerado por sua política interna. O arquiteto dessa no-
va política externa foi Zhou Enlai, que detinha os postos de premie do Conselho
de Estado e ministro do Exterior e podia coordenar todas as decisões com a lide-
522
rança máxima através de sua posição de membro do comité permanente do Polit-
buro. Revolucionário comunista experimentado e veterano negociador em Chong-
qing durante a Segunda Guerra, Zhou Enlai tinha uma presença notável como di-
plomata que vinha em parte de seu passado próspero, em parte de seus anos de
juventude na França, além de sua flexibilidade na busca de seus objetivos. De iní-
cio, ele se concentrou nas relações com a índia e desenvolveu uma cálida amizade
com o líder indiano Jawaharlal Nehru. Zhou conseguiu persuadir o governo da ín-
dia a aceitar a ocupação do Tibete e funcionários indianos serviram de intermediá-
rios entre China e Estados Unidos durante muitas fases difíceis das negociações
do armistício da Coreia.
A morte de Stalin em março de 1953, que levou a União Soviética a modificar
algumas de suas posturas belicosas, também romp>eu o impasse das negociações sobre
a guerra da Coreia e acabou com a ameaça colocada por Eisenhower, de que pode-
ria utilizar armas nucleares para acabar com a luta de uma vez por todas. Zhou
Enlai compareceu aos funerais de Stalin em Moscou — Mao Zedong decidiu não
ir, talvez porque nenhum líder soviético tivesse até então feito uma visita cerimo-
nial à China — e foi tratado com considerável respeito pelas autoridades soviéti-
cas. Teve permissão para ficar com os novos dirigentes da URSS — Nikita Khrus-
chev, Georgi Malenkov e Lavrenti Beria —, em vez de com o grupo de dignitários
"estrangeiros", e caminhou junto com os três logo atrás da carruagem que levava
o esquife de Stalin. Esses encontros frutificaram no final de 1954, quando o pró-
prio Khruschev foi a Pequim participar das comemorações do quinto aniversário
da República Popular.
Antes e depois da visita a Moscou, Zhou vinha trabalhando para estreitar as
relações com outros Estados comunistas nas fronteiras da China, acompanhando
a política soviética de promover a solidariedade entre as fileiras socialistas. No fi-
nal de 1952, ele assinou um acordo cultural e económico com a República Popular
da Mongólia,* bem como um acordo formal com Kim II Sung para ajudar na re-
construção da economia da Coreia do Norte. A China também forjou laços com
os insurgentes do Vietnã. construindo o sistema de transportes rodoviário e ferro-
viário da província de Guangxi com o objetivo de mandar suprimentos para Ho
Chi Minh, então envolvido nos últimos estágios de sua luta de independência con-
tra os franceses. Esses fornecimentos contrapunham-se ao apoio que os franceses
vinham recebendo dos Estados Unidos e ajudaram as forças de Ho Chi Minh a
sobreviver à sua prolongada e custosa guerra. Enquanto a União Soviética come-
çava a mostrar maior flexibilidade em relação aos países neutros, Zhou aumentava
os laços com a índia e mantinha conversas amigáveis com o primeiro-ministro U
Nu, da Birmânia,** tudo sob o novo slogan da "Coexistência Pacífica".
(*) Esse acordo significava também um reconhecimento de facto da independência da Mongòliu
Exterior (ou seja, a República Popular da Mongólia) e, ponamo, da perda de um território que csiivcni
mais ou menos sob o controle dos Qing.
(**) Desde 1989 rebaiizada União da Mlanma.
523
 A primeira grande mudança na visibilidade diplomática da China ocorreu quan-
do Zhou Enlai foi a Genebra, Suíça, em abril de 1954, para participar das reuniões
convocadas para resolver a guerra franco-vietnamita. Zhou manteve uma delicada
linha entre as demandas e contrapropostas de soviéticos, franceses, americanos e
norte-vietnamitas, e sua paciência e sagacidade ajudaram as potências a aplainar
as dificuldades. Pelo acordo firmado, o Vietminh comunista obteve independência
para seu Estado no Vietnã do Norte e os partidos prometeram realizar eleições nu-
ma data futura (não mais de dois anos depois) para criar um governo de coalizão
de um Estado vietnamita unido. Em troca, apesar do medo de que isso fosse ceder
demais à pressão chinesa, o Vietminh parava com suas atividades subversivas no
Sul e retirava suas forças do Laos e do Camboja, que formariam regimes indepen-
,-dentes.
K' " ^ F ^ m um dos primeiros encontros de Genebra, Zhou Enlai viu-se na mesma sala
lytom o secretário de Estado de Eisenhower, o aniicomunista radical John Foster
f Dulles. Em um confronto que logo ficou famoso, Zhou estendeu a mão para Dulles,
mas o americano deu as costas grosseiramente e saiu da sala resmungando as pala-
vras "Não posso". Ao dar de ombros diante desse comportamento, Zhou deliciou
os presentes e transformou em pequena vitória um momento de possível humilha-
ção. Com o mesmo aplomb ele enfrentou a insistência de Dulles para que o delega-
do chinês não presidisse nenhuma sessão e aumentou a impressão de urbanidade
e nexibilidade ao almoçar com Charlie Chaplin, que vivia na Suíça depois de ler
^ e n t r a d o na lista negra dos Estados Unidos por suas convicções políticas.
De importância política ainda maior foi, todavia, a participação proeminente
de Zhou Enlai na conferência de Bandung, realizada na Indonésia em 1955. Por
trás da convocação dessa conferência estava uma intricada teia de relações interna-
cionais. Mais impressionados pelo poder de fogo considerável e estratégia de in-
surgência eficiente que levaram à vitória do Vietminh em Dlen Bien Phu do que
com as declarações sobre coexistência pacífica de Zhou Enlai, vários países antico-
munistas tinham formado uma nova aliança. Tratava-se do assim chamado acor-
do da S E A T O (Organização do Tratado do Sudeste asiático), assinado em Manila,
em setembro de 1954, por Estados Unidos, Inglaterra, França, Austrália, Nova Ze-
lândia, Filipinas, Paquistão e Tailândia. O objetivo da S E A T O era criar uma alian-
ça internacional para deter as revoltas comunistas no Sudeste asiático. Os países
membros preocupavam-se particularmente com o Laos e o Camboja, embora tam-
bém temessem as ameaças comunistas ao Vietnã do Sul e às Filipinas. As potências
da S E A T O não mantinham uma força permanente, mas prometiam ajudar-se mu-
tuamente com suas forças convencionais. A organização tinha sua sede em Bang-
coc, Tailândia, e escritórios subordinados encarregados de relações públicas, segu-
rança da área, negócios culturais e algumas áreas de colaboração económica.
Zhou Enlai queixou-se vociferante que enquanto a China estava trabalhando
para " a paz mundial e o progresso da humanidade", os "círculos agressivos" dos
Estados Unidos estavam ajudando os nacionalistas de Taiwan e planejando rearmar
o Japão. A China reagiu energicamente no outono de 1954, iniciando um bombar-
deio constante das ilhas próximas da cosia de Fujian que ainda abrigavam guarni-
ções do Guomindang e mandando um avião de reconhecimento sobrevoar Tai-
524
pei. Por seu turno, Taiwan fez numerosos ataques aéreos ao continente, usando
modelos avançados de caças-bombardeiros americanos. Os Estados Unidos assi-
naram então um tratado de defesa mútua com Taiwan em dezembro de 1954.
Em resposta a essa elevação de tensão na área, os cinco países conhecidos co-
mo as potências de Colombo — índia, Birmânia, Indonésia, Paquistão (membro
também da S E A T O ) e Ceilão (Sri Lanka) — convidaram a China para participar
de uma conferência na primavera de 1955 em Bandung, Indonésia, que reuniu de-
legados de 29 nações asiáticas e africanas. Zhou, como chefe da delegação chinesa,
deu habilidosamente à conferência um caráter neutralista que fez os Estados Uni-
dos parecerem a maior ameaça à estabilidade da região. Com o apoio de Nehru,
Gamai Abdel Nasser, Sukarno e outros, os delegados da conferência apresentaram
declarações fortes em favor da paz na região, da abolição das armas nucleares, do
princípio de representação universal na ONU e da redução de armas. Particularmente
eficaz para a assembleia foi a observação de Zhou de que " a população da Ásia
jamais esquecerá que a primeira bomba atómica explodiu em solo asiático".
Uma importante questão secundária em Bandung foi o esforço chinês para re-
solver os problemas criados com o grande número de chineses que viviam nos paí-
ses do Sudeste asiático. O dinheiro que esses chineses mandavam para suas famí-
lias constituía uma fonte importante de moeda estrangeira, e a última coisa que
a China desejava era enfraquecer a lealdade desses cidadãos no exterior para com
sua terra natal. Por outro lado, as grandes comunidades de chineses em países co-
mo a Indonésia (onde eram mais de 3 milhões), Malásia, Vietnã e Filipinas e sua
posição dominante em muitas operações de varejo e outros negócios eram conside-
radas por suas nações hóspedes como ameaças em potencial à segurança nacional.
Era na Malásia que essa ameaça parecia mais séria. O Partido Comunista Ma-
laio vinha tentando desde 1948 destruir o governo colonial britânico dali com ata-
ques terroristas a fazendeiros, policiais e seus associados e com a criação de "áreas
liberadas" no campo, como os chineses tinham feito durante a resistência ao Ja-
pão. Como o Partido Comunista Malaio era mais de 90% chinês, era fácil imaginá-lo
como sendo manipulado de Pequim e ignorar a recusa da maioria dos chineses da
Malásia e de Cingapura de entrar para o partido ou ajudá-lo. Em outras regiões
de grande colonização chinesa onde as forças comunistas locais, embora espalha-
das, eram fortes, tais como as Filipinas e a Indonésia, os chineses compunham apenas
uma minoria dos partidos comunistas e amiúde enfrentavam a discriminação inci-
tada pelo impulso nacionalista desses movimentos insurrecionais.
Uma anomalia curiosa nesse padrão de subversão comunista chinesa temida
era a ameaça que significavam os milhares de soldados do Guomindang que, der-
rotados pelos comunistas em 1949, tinham recuado para a Tailândia ou os Estados
shan do Norte da Birmânia. Quando este país obteve a independência da Inglater-
ra, em 1948, o general do Guomindang Li Mi estabeleceu um regime shan inde-
pendente para seu Exército de Salvação Nacional Aniicomunista. Esse exército era
parcialmente financiado com fundos e assessores fornecidos pelos Estados Unidos,
embora a maior parle de seu dinheiro viesse da produção e distribuição de papou-
las (ópio). Mais de 7 mil desses soldados foram repatriados para Taiwan em 1953;
525
 mas na época das negociações de Bandung, 7 mil deles ainda estavam ocultos na
fronteira entre Birmânia e Laos e outros milhares no Norte da Tailândia.
A posição tradicional da China era que os chineses no exterior continuavam
a ser cidadãos e deviam obediência em última instância ao Estado chinês, agora
à República Popular. Mas à luz desses temores de subversão chinesa e depois de
negociações prolongadas conduzidas em geral pelo embaixador da China na Indo-
nésia, em 1955, o governo chinês assinou seu primeiro acordo de dupla nacionali-
dade, pelo qual autorizava os chineses a escolher, no prazo de dois anos, a nacio-
nalidade chinesa ou do país em que viviam. Na verdade, o acordo só foi ratificado
como tratado formal em 1957 e a promessa de harmonia foi interrompida em 1959,
quando a Indonésia decidiu fechar muitos negócios e escolas de chineses e ignorar
a disseminação de incidentes antichineses.
Mas essas dificuldades estavam no futuro e não mancharam a imagem de Zhou
em Bandung de um negociador flexível e aberto. Zhou demonstrou também gran-
de sutileza em relação à crise de Taiwan e das ilhas próximas. Quando ficou claro
que os americanos — e talvez os ingleses — garantiriam a existência independente
de Taiwan se os nacionalistas abandonassem as ilhas ao largo do continente, que
constituíam um barril de pólvora em potencial, Zhou persuadiu o governo chinês
a recuar do confronto e deixar Quemoi e Matsu para Chiang Kai-shek. Em maio
de 1955, Zhou lançou uma declaração formal afirmando que a RPC iria "empenhar-
se pela liberação de Taiwan por meios pacíficos tanto quanto possível".
Embora não estivesse dentro da esfera de ação de Zhou Enlai, o problema co-
locado pelos povos minoritários dentro da China era comparável aos dos chineses
no exterior. Pelas contas chinesas, havia 54 dessas minorias nacionais, com uma
população de cerca de 30 milhões. Elas ocupavam muitas das regiões fronteiriças
estrategicamente importantes do país, tendo desempenhado para os Qing o papel
de anteparo entre os chineses Han e os habitantes de outras terras. O PCC tinha
recrutado ativamente entre essas minorias e o segundo irmão de Mao Zedong fora
morto em Xinjiang quando operava entre os muçulmanos da região. Entre as mi-
norias que tinham se tornado membros proeminentes do partido antes de 1949 es-
tavam mongóis, bais (do Sudoeste da China), coreanos da Manchúria, uigures e
hui (muçulmanos) do extremo Oeste, e alguns tibetanos que tinham participado
da Longa Marcha e permanecido em Yan'an.'
Os militantes chineses Han enviados para trabalhar politicamente nessas re-
giões, onde os membros do partido da minoria local eram poucos para serem efica-
zes, tiveram alguma experiência de viajar para um país estrangeiro e dos primeiros
estágios de reforma agrária nas áreas de guerrilha. As equipes de trabalho procura-
vam chefes locais receptivos e, se possível, alguém que falasse chinês. Elas então
assumiam algum projeto muito necessário para a localidade, tal como a drenagem
de pântanos para controlar a malária, ou a construção de pequenas obras de irri-
gação. Os costumes locais eram cuidadosamente observados — uma equipe não
conseguiu nada até se dar conta de que vinha sentando do lado direito da fogueira,
quando o costume local ditava que se devia sentar sempre à esquerda —, assim
como as proibições alimentares. De dia, os membros das equipes de trabalho reali-
526
zavam as tarefas entediantes e rotineiras da vida no campo — pegar água em bal-
des, talvez, ou juntar lenha. À noite, encenavam peças simples sobre as ideias de
exploração de classe, não hesitando em retratar o vilão como um funcionário chi-
nês Han que tinha de ser derrubado pelas forças revolucionárias. À medida que
ganhavam conhecimento da sociedade local, os militantes centravam seus esforços
em classes verdadeiramente exploradas, como a desprezada casta dos ferreiros no
Tibete, que eram mal representados nos conselhos populares da região.
As equipes de trabalho encontraram uma desconfiança profunda de parte dos
povos minoritários. "Uma pedra não faz um bom travesseiro, nem um chinês Han,
um amigo", dizia um ditado local. "Se a gente ler, nosso estômago vai doer, nossa
plantação não vai crescer e nossas mulheres ficarão estéreis", dizia outro. Ainda
em 1957, um dono de escravos da minoria yi do Sudoeste era delegado de sua re-
gião ao Congresso Nacional do Povo. Nómades partiam silenciosamente à noite,
coisa que os militantes deixados sós descobriam espantados de manhã. Alguns ti-
betanos que colaboraram com os chineses Han em projetos de construção de estra-
das foram mortos ou mutilados por seus companheiros de aldeia. Os problemas
na área muçulmana de Gansu no início da década de 1950 lembravam o que ocor-
rera durante as grandes rebeliões de 1870. Os hui foram proibidos de entrar em
certas cidades, tinham acesso a poucos postos na milícia local e foram até alveja-
dos por colonos chineses.
Contudo, apesar das tensões, confusões e hostilidade aberta, o PCC avançava
lentamente no recrutamento e treinamento partidário nessas regiões. A admissão
do primeiro grupo de tibetanos nas fileiras do partido (depois daqueles que tinham
participado da Longa Marcha) foi orgulhosamente anunciada no verão de 1956.
No ano seguinte, a revista Soíidariedade das Nacionalidades saudava o partido por
ter atingido seu objetivo de 400 mil membros de todas as áreas de minorias (o total
de membros era então de 12 720 000), além de outros 600 mil na Liga da Juventu-
de Comunista. Para a direção da RPC, o progresso na integração das regiões fron-
teiriças do país, havia tanto tempo perturbadas, parecia tão encorajador quanto
o êxito no estabelecimento de laços com os países vizinhos.
A REFORMA DO EXÉRCITO
O Exército de Libertação Popular (ELP) atuou com bravura na guerra da Co-
reia, mas sofreu terrivelmente. As baixas chinesas foram calculadas entre 700 e 900
mil. O serviço médico foi insuficiente, a comida, escassa, e até as roupas eram ina-
dequadas para o inverno coreano. Noticiou-se que quase 90% dos soldados chine-
ses sofreram de ulcerações provocadas pelo frio, nas campanhas de inverno. As
armas constituíam uma salada de materiais de origem americana, japonesa, russa
e alemã — os quatro tipos usados amiúde no mesmo regimento — e a maioria dos
homens da infantaria recebia oitenta balas, ou menos. Somente em 1951, quando
a União Soviética forneceu bombardeiros Mig, é que a China conseguiu alguma
paridade no ar. Mas jamais teve qualquer força naval efetiva para contrabalançar
o formidável poderio marítimo dos Estados Unidos.
527
 Antes mesmo do armistício de 1953 e do retorno das tropas para casa, a China Orçamento militar da China. 1950-60^
começou uma ampla reorganização militar, numa tentativa de criar um exército
profissional que pudesse competir com outros no mundo tecnológico moderno. Peng Porcentagem das
Dehuai, o comandante das forças chinesas na Coreia que depois foi nomeado mi- Milhões de yuans despesas orçamentárias
nistro da Defesa, acreditava que a melhor esperança para reconstruir o ELP estava 1950 2827 41,53
em seguir o exemplo da U R S S e desenvolver forças convencionais bem armadas, em 1951 5061 42,52
vez de se basear no tipo de estratégia de guerrilhas que servira tão bem a Mao nas 48,00
décadas de 1930 e 1940. Essa decisão foi aceita pelo resto da direção comunista 1952 4371 26,04
e, em 1953, Mao pedia "uma torrente de aprendizado da União Soviética em esca- 1953 5681 26,43
la nacional", ainda que os soviéticos tivessem se mostrado, na melhor das hipóte- 6176 28,00
ses, amigos relutantes nos primeiros estágios do conflito coreano. A linguagem usada 1954 5814 23,60
no manual de treinamento do E L P mostrava uma modificação pragmática em re- 1955 6500 24,30
lação ao menosprezo anterior de Mao aos imperialistas americanos, apesar das suas 22,10
bombas atómicas, classificados como "tigres de papel". 1956 6177 19,91
1957 5509 19,24
O exército americano é politicamente uma organização militar reacionária dos im- 5523 18.85
perialistas e é, basicamente, um "tigre de papel". Mas é um exército com equipa- 1958 5000 15.12
mento e poder de luta modernizados. Em treinamento e equipamento é muito dife- 1959 5800 11.20
rente daquele das tropas nacionalistas reacionárias [i. e., do Guomindang]. Para 1960 5826 8,30
destruir completamente tais tropas inimigas é necessário montar um exército de
defesa nacional forte e modernizado e oficiais responsáveis devem dar um entendi- duas ou mais províncias —, a nova organização permitia um controle central mui-
mento correio e completo do exército americano a cada soldado do E L P . * to mais eficaz. Começou a surgir o perfil de um exército profissional, em especial
Uma decisão crucial que os dirigentes partidários logo tomaram foi que o ELP com a criação de armas técnicas, como a unidade de engenharia, as unidades ferro-
deveria diminuir seus efetivos e concentrar-se em montar uma força bem treinada viárias e de sinalização e a unidade " A B C " , assim chamada por sua tentativa de
que pudesse ser adequadamente aparelhada e suprida. Isso era uma coisa que Chiang dominar as técnicas de guerra antiatõmica, antibiológica e antiquímica. Os chine-
Kai-shek jamais conseguira em seus exércitos, apesar das tentativas de vários de ses acreditavam que os Estados Unidos poderiam usar todas ou alguma dessas for-
seus assessores americanos. Ainda durante a guerra da Coreia, o ELP começou a mas de luta se houvesse um ataque total à China. Coordenadas a esses comandos
desmobilizar grande ntjmero de soldados dentro da China, assim que se encontra- regionais estavam também as Forças de Segurança Piíblica do E L P , sob o coman-
va emprego para eles nas cidades ou em suas regiões natais. Em 1953, o tamanho do de um veterano do Exército Vermelho formidavelmente eficaz que mais tarde
do exército já diminuíra de seu pico de 5 milhões, em 1950, para 3,5 milhões, tendo se tornou chefe do Estado-maior do ELP.
desmobilizado perto de 3 milhões e recrutado 1,5 milhão de novos soldados para Ao integrar cuidadosamente suas necessidades às prioridades industriais do Pla-
suas fileiras. Em 1956, esse mimero caiu para 2,75 milhões e no ano seguinte pa- no Qiiinqíienal, o exército recebeu uma gama ampla de modernas armas de infan-
ra 2,5 milhões. Apesar dessa desmobilização, o orçamento militar do país perma- taria, como rifles, metralhadoras, morteiros, lançadores de foguetes e artilharia
neceu constante e só declinou significativamente em termos percentuais quando o média. Mas, devido ao custo envolvido, o ELP continuou mal equipado em arti-
orçamento nacional começou a se expandir enormemente com o Primeiro Plano lharia autopropulsora, veículos de transporte militar, equipamento pesado de en-
Quinqiienal. genharia e tanques. A qualidade dos oficiais melhorou quando as academias mili-
Os expurgos de Rao Shushi e Gao Gang em 1954 significaram provavelmente tares de Pequim, Nanquim e Dalian começaram a treinar uma nova geração nas
que um niímero significativo de dirigentes da China achava que se tinha atribuído técnicas de guerra moderna. Um número significativo de oficiais chineses também
poder demais às seis administrações regionais em que o país fora subdividido nos foi mandado para treinamento avançado na escola de oficiais de Kiev, na União
primeiros anos da RPC. Em 1954, essa estrutura foi abolida e as forças armadas Soviética.
redivididas em treze comandos regionais, sob a direção do quartel-general do ELP, Um fluxo adequado de pessoal para o exército foi garantido por uma lei de
que se reportava à recém-instiluída Comissão de Assuntos Militares (da qual Mao alistamento, promulgada oficialmente em 1955, após dois anos de experiência. To-
Zedong era presidente) e ao Ministério da Defesa, chefiado por Peng Dehuai. Em- dos os homens capazes entre dezoito e vinte anos tinham de se alistar, exceto os
bora ainda compreendesse unidades grandes — uma região militar típica abrangia criminosos e aqueles "privados de seus direitos políticos". As autoridades locais
528 529
escolhiam então aqueles destinados ao serviço militar de acordo com um sistema
nacional de cotas planejado para fornecer cerca de 800 mil recrutas por ano. Os
filhos únicos e os estudantes secundários e universitários podiam conseguir isen-
ção, mas a maioria dos recrutados, sobretudo os de regiões rurais pobres, ficava
feliz com o serviço militar, pois era uma chance de fazer uma carreira ascendente
e adquirir habilidades especiais. O enorme contingente de alistados não recruta-
dos, junto com os que tinham servido os três anos regulamentares, entravam para
unidades de reserva. O PCC mantinha um fluxo de propaganda sobre o glorioso
serviço à nação que o alistamento no E L P tornava possível e divulgava relatos en-
tusiasmados destinados a mostrar como as condições de agora eram diferentes das
do tempo do Guomindang. Todavia, a vida militar ainda era dura e comuns as quei-
xas sobre as dificuldades e as injustiças dentro do sistema militar.
Devido ao tempo necessário para adquirir os conhecimentos técnicos, o servi-
ço na aeronáutica durava quatro anos e na marinha cinco. Ambas as armas, consi-
deradas essenciais para a defesa da república após as experiências da China na Co-
reia, tiveram de ser montadas a partir de uma base fraca, uma vez que a maioria
do material deixado pela guerra contra os japoneses caíra nas mãos dos nacionalis-
tas. Por sorte, o vice-diretor do departamento de treinamento da força aérea era
um ex-capitão do Guomindang que, em 1946, passara para o lado comunista com
seu bombardeiro B-24 americano. Outros oficiais importantes eram aqueles a que
os soviéticos deram permissão para tomar aviões japoneses na Manchúria, em 1945.
Depois de uma cautela inicial, em 1951 a U R S S passou a colocar à disposição da
China um grande número de caças a jato Mig 15, bem como um pequeno número
de jatos-bombardeiros leves. Mas, preocupados em não dar à China qualquer chance
de uma escalada na guerra, os soviéticos não forneceram bombardeiros médios ou
pesados de longo alcance, que poderiam ser usados para atacar alvos mais distan-
tes. A partir de 1954, a força aérea concentrou seus esforços em construir uma rede
de campos de aviação ao longo da costa próxima a Taiwan e parecia claro que o
objetivo desse investimento era acelerar a recaptura da ilha. Mas a força aérea não
foi utilizada para suplementar o bombardeio das ilhas de Quemoi e Matsu, como
que reconhecendo que tais atos poderiam provocar uma reação perigosa dos Esta-
dos Unidos.
A partir de 1955, os soviéticos permitiram que os chineses fabricassem, sob
licença, na Manchúria, os mais avançados Mig 17. Os chineses não fizeram nenhu-
ma tentativa de desenhar novos aviões, aparentemente porque não tinham equipe
de pesquisa nem capacidade para criá-los. O peso do atraso tecnológico diminuiu
no verão de 1955, quando o especialista em foguetes H. S. Tsien teve finalmente
permissão para deixar os Estados Unidos, onde ficara detido cinco anos pelo De-
partamento de Imigração, através de procedimentos de legalidade duvidosa. Sob
a direção de Tsien, a China começou a reunir uma equipe para desenvolver seu
próprio programa de foguetes e míssil balístico. Ao mesmo tempo, outros físicos
nucleares chineses estavam trabalhando, em parte independentemente, em parte em
colaboração com cientistas soviéticos no instituto de pesquisa nuclear de Dubna,
530
perto de Moscou, para montar o arsenal nuclear da China; os líderes soviéticos pro-
metiam fornecer um protótipo de bomba atómica em data futura.
Os especialistas em autofortalecimento dos Qing consideravam o desenvolvi-
mento de uma marinha moderna o ponto central da defesa da China contra as po-
tências estrangeiras e do sucesso do programa de reformas do país; na RPC, isso
não era mais considerado prioritário. A pequena marinha do país centrou suas ener-
gias na aquisição e manutenção de barcos de patrulha costeira rápidos, cujo objeti-
vo principal era supostamente impedir a ação de unidades de assalto de Taiwan
na costa Leste do país, ou evitar o contrabando e a saída ilegal de desertores. A
União Soviética também colocou à disposição alguns submarinos anteriores à Se-
gunda Guerra Mundial. Em 1955, quando abandonaram finalmente Lúshun, co-
mo tinham prometido fazer, os soviéticos deixaram também alguns navios, inclu-
sive dois contratorpedeiros e cinco submarinos de modelo mais recente, dos quais
dois tinham capacidade de longo alcance. Mas estava claro que, por algum tempo,
a marinha chinesa não iria figurar com proeminência no cenário mundial.
O crescimento geral do profissionalismo em todos os setores do E L P teve um
impacto profundo na sociedade chinesa e no próprio PCC. Particularmente pertur-
bador era o problema do ressurgimento do elitismo. No campo e nas cidades, as
demoradas e amiúde violentas campanhas contra os terratenentes e os capitalistas
tinham reafirmado os valores de igualdade e trabalho cooperativo. Mas no exérci-
to, onde nos tempos das guerrilhas as decisões deveriam ser supostamente tomadas
depois de uma discussão em grupo, e a mobilização ideológica era tão importante
quanto a tática militar, todos os passos tomados na metade da década de 1950 pa-
reciam ir na direção oposta. Os últimos traços da velha camaradagem desaparece-
ram quando catorze graduações exatas de oficiais foram introduzidas em 1955, junto
com insígnias e uniformes que distinguiam os oficiais dos soldados rasos. As esca-
las de pagamento tornaram-se bastante diferenciadas, com um tenente ganhando
dez vezes mais que um praça, e um coronel, perto de três vezes mais que um tenen-
te. Instrução mais alta e capacidades científicas podiam levar rapidamente à escola
de estado-maior e a promoções para escalões mais elevados.
Mas o que era ainda mais sério: a combinação de status alto com a mentali-
dade de soldado longe de casa conduziu a uma variedade de abusos que, tomados
cumulativamente, mostravam um afastamento dos padrões de solidariedade com
a população local dos quais o Exército Vermelho tinha dependido para sobreviver
nas regiões onde desenvolveu suas atividades guerrilheiras. Os novos soldados do
E L P estavam começando a agir como os nacionalistas, ou até mesmo como os do
tempo dos Qing. Nas palavras cautelosas do chefe do departamento político do ELP,
no verão de 1955, alguns oficiais não sentiam agora "necessidade da tradição de
unanimidade entre homens do exército e civis, nem de apoio do governo e amor
do povo".'** Na prática, isso significava que estavam requisitando terras, vivendo
com luxo, ignorando a segurança nas estradas em seus veículos do exército e sc
apropriando de casas particulares sem permissão (cerca de 72 400 residências, se-
gundo uma estimativa). Os oficiais mandavam os filhos para a escola em veículos
militares e usavam de sua posição para reservar entradas de teatro e cinema para
531
suas famílias. Uma vez que seus salários eram relativamente altos, começaram a
ter cada vez mais dependentes — esposas, filhos, parentes das mulheres — vivendo
com eles. Em 1956, havia 330 mil dependentes morando com oficiais; em 1957,
já eram 780 mil, com o aumento correspondente na demanda por moradia, escola,
alimentos e serviços médicos. Tornou-se comum também a prática de abusar das
mulheres das comunidades locais, como fica claro no relatório de um oficial vete-
rano e muito condecorado do Exército Vermelho que estava investigando as acusa-
ções de má conduta do E L P . Escreveu ele preocupado, em 1957:
Os oficiais de algumas unidades buscam esposas demais em uma área, para insa-
tisfação da população local. Sugeriu-se que os oficiais deveriam observar os três
pontos seguintes ao procurar esposas. Primeiro, não devem procurar esposas nas
escolas. Segundo, não devem usar dinheiro ou outros bens materiais para obter
esposas. Terceiro, não devem interferir no casamento dos outros."
Em resposta a esses e outros abusos, o PCC tentou controlar os oficiais des-
viados fazendo-os envolver-se e a suas unidades no dia-a-dia da vida de produção
e trabalho do campo. Esperava-se que contribuíssem com força física e tecnologia,
especialmente na transição de cooperativas de baixo nível para alto nível. Um có-
digo elaborado de vinte mudanças de comportamento foi estabelecido pelo depar-
tamento político do ELP e promulgado para todas as unidades em fevereiro de 1956.
Não é difícil imaginar como alguns oficiais, servindo no que esperavam ser uma
carreira de ehte, tecnologicamente avançada, reagiram às diretivas, entre as quais
estavam as seguintes: todos os dependentes de oficiais deveriam ser persuadidos
a participar dos trabalhos das cooperativas; equipes de trabalho de oficiais e solda-
dos deveriam ser colocadas sob o comando de comités locais do partido para aju-
dar no trabalho agrícola e deveriam contribuir com cinco a sete dias de trabalho
gratuito por ano para os projetos locais; nos feriados, deveriam participar com os
camponeses na caça às "quatro pestes" — ratos, pardais, moscas e mosquitos; to-
do o excremento humano do E L P deveria ser coletado e dado às cooperativas lo-
cais como adubo; cada cinquenta membros do exército deveriam criar um porco
em conjunto; todos os soldados deveriam aprender a pronúncia padrão do chinês
(chamada usualmente de "mandarim" no Ocidente) e ajudar nas escolas primárias
e noturnas; as oficinas militares deveriam ficar à disposição das comunidades cam-
ponesas para o conserto de suas ferramentas; as unidades de sinalização deveriam
permitir que seus equipamentos e balizas fossem usados para expandir as redes de
comunicação regionais.
Em muitas áreas, o cumprimento meticuloso dessas normas aumentou com
certeza o apoio do povo à presença do ELP e levou ao alívio de antigas dificulda-
des. Mas em certos círculos do exército, elas provocariam antipatias profundas e
até solapariam a obediência ao partido. Uma das citações mais famosas de Mao
Zedong, muito em voga no Ocidente para provar a natureza belicosa de seu pensa-
mento, era que " o poder político provém do cano de uma arma". Se assim fosse,
ela pareceria confirmar — em um nível, pelo menos — que Mao era uma espécie
de herdeiro dos senhores guerreiros e dos generais do Guomindang que tinham lu-
532
tado tanto tempo sobre o corpo debilitado da China. Mas o que Mao disse, na ver-
dade, foi: " O poder político provém do cano de uma arma. Nosso princípio é que
o partido comanda a arma e jamais deverá se permitir que a arma comande o par-
tido".'^ À medida que os oficiais e até mesmo soldados começaram a ganhar no-
vas habilidades técnicas que os quadros comunistas ainda não dominavam, era pre-
ciso enfrentar as tensões entre exército e partido. Não estava claro para que lado
a balança penderia. . wA-y^f f. • , j
AS CEM FLORES . . .
Durante os primeiros anos da República Popular, os intelectuais da China ba-
talharam para encontrar uma posição satisfatória sob o novo regime. A substância
e os métodos do conhecimento tradicional chinês tinham sido completamente ata-
cados pela geração de críticos sociais do Quatro de Maio; quando mais não seja,
o clima intelectual que se seguiu foi ainda mais complexo, uma vez que camadas
de disciplinas e conceitos ocidentais modernos passaram a conviver ao lado das ideias
tradicionais, sem substituí-las efetivamente. A educação permaneceu um processo
lento e custoso e a maioria dos intelectuais continuou a vir de famílias que tinham
ganho ou herdado dinheiro de propriedades rurais ou negócios. Os que ocupavam
cargos da burocracia governamental, ou trabalhavam nas áreas do ensino e do di-
reito, tinham inevitavelmente tido contatos amplos ou sido empregados do Guo-
mindang. Quem estava na universidade ou nas profissões científicas e médicas ti-
nha amiúde obtido seu diploma no exterior, ou estudado com ocidentais na China.
Uma vez que tais passados eram agora considerados "feudais", "reacioná-
rios", "vendidos" ou "capitalistas", cabia aos intelectuais demonstrar lealdade
ao PCC. A maioria estava disposta a esse esforço para ajudar o regime, pois tinha
se fartado das ineficiências da velha China e perdido qualquer esperança de que
o Guomindang pudesse trazer mudanças construtivas e duradouras. A promessa
do PCC de que até os funcionários nacionalistas poderiam ficar em seus empregos
fora tranquilizadora. Não só a maioria da elite intelectual chinesa deixou de fugir
para Taiwan ou para o Ocidente, como figuras famosas que viviam no exterior re-
tornaram ao país no final de 1949 e em 1950 para ajudar na criação da nova or-
dem. Entre elas estavam cientistas e economistas, ao lado de membros do corpo
diplomático que tinham servido ao Guomindang nos vários consulados e embaixa-
das da China. Mesmo aqueles que tinham visto os defeitos tanto dos nacionalistas
como dos comunistas foram levados a voltar por patriotismo e por perceber opor-
tunidades novas. Lao She, autor de Riquixá e País dos gaios — que vivia em Nova
York desde 1946 e era famoso em todos os Estados Unidos, onde Riquixá fora um
best-seUer — voltou para casa em 1950, apesar das advertências de seus amigos de
que poderia achar a vida na China difícil.*
(•) A edição em inglês de Riquixá recebeu um final romântico e feliz de seu tradutor, sem a permis-
são de Lao She. O original chinês terminava com uma visão pessimista do futuro.
533
 Em 1950 e 1951, milhares de intelectuais chineses de todas as idades frequen-
taram "cursos" de seis a oito meses de duração em "faculdades revolucionárias".
Esses cursos, realizados em universidades preexistentes ou em locais de cidades es-
pecialmente designadas, constituíam uma tentativa de conduzir seus alunos a uma
compreensão verdadeira de suas formações de classe e da natureza protegida de
suas vidas até então. Além de ouvir palestras de quadros veteranos do PCC sobre
a natureza da revolução e ser apresentados ao pensamento de Mao Zedong e às
obras básicas de Marx, Engels, Lenin e Stalin, eles se encontravam com pequenos
grupos de outros intelectuais em sessões conjuntas de discussão e autocrítica e pre-
paravam "autobiografias", nas quais analisavam os erros do passado, seus e de
seus pais. Essa última exigência provocou crises profundas em muitos que haviam
crescido acreditando nos princípios rígidos de devoção filial da tradição confucia-
na e, em geral, o processo submeteu os intelectuais a uma severa tensão mental.
À medida que o processo avançava, eles passavam de uma apreciação entusias-
mada da solidariedade de grupo compartilhada para um período de intenso isola-
mento e culpa, seguido de medo e insegurança, para chegar a uma "resolução"
final, na qual reconheciam e expressavam sua gratidão ao PCC por tornar-lhes pos-
sível uma vida nova.
A confissão de onze páginas de um distinto professor de filosofia que estuda-
ra na Universidade de Harvard antes de retornar e assumir seu posto na China ofe-
rece um bom exemplo do resultado final. O professor começava criticando a vida
de conforto que levara com sua "família de terratenentes burocráticos", continua-
va analisando a "crosta de egoísmo" que o envolvia, para condenar seu interesse
na filosofia burguesa decadente e seu desejo de permanecer acima da política, e
por fim saudava seu sentimento de um novo objetivo na vida concedido a ele pelo
Partido Comunista e pelos "milagres" do Exército de Libertação Popular.'^ O alu-
no mais distinto desse processo — em termos de posição anterior — foi Puyi, o
ex-imperador Qing e ex-governante de Manchukuo. Devolvido à China pelas auto-
ridades soviéticas que o capturaram em 1945, ele foi submetido a um "remodela-
mento" em Harbin e começou a rascunhar sua primeira confissão completa em
1952.* É impossível dizer se tais confissões eram sinceras ou não. O partido rejei-
tava as autocríticas que considerava insinceras ou autocensuradas, mas o uso da
ironia era sempre difícil de captar.
Os intelectuais, tal como outros membros da sociedade, participaram das cam-
panhas dos Três e Cinco Anti. Lutando para provar sua fidelidade ao novo regi-
me, eles também se apresentaram como voluntários às equipes de reforma agrária
e trabalharam para promover as orientações do partido. Numerosas revistas, os
departamentos de propaganda do governo, as escolas e a indústria cinematográfi-
ca ofereciam a eles vários tipos de emprego. Cautela era a palavra básica enquanto
estudavam as mudanças dos ventos políticos nos órgãos oficiais do partido e exa-
(•) Devido à complexidade de suas experiências, Puyi só foi libenado definiiivamente pelos comu-
nistas em 1959. Em 1960, foi designado para um emprego numa oficina de consertos mecânicos de um
jardim botânico de Pequim. Puyi morreu de câncer, em 1967.
534
minavam os decretos do ministro da Cultura, o ex-romancista Mao Dun, que fize-
ra lanto para expor as misérias sociais da década de 1930 e retornara de Hongcong
em 1949. A necessidade de um pensamento "correto" foi-lhes deixada clara por
uma campanha que o PCC lançou oficialmente em 1951 contra um filme altamente
elogiado no ano anterior, sobre Wu Xun, um participante do movimento de auto-
fortalecimento dos Qing. Wu Xun saíra de uma vida de mendigo para tornar-se
terratenente e utilizara seu dinheiro e contatos influentes para ajudar a fundar es-
colas e educar os muito pobres, a fim de que eles, por seu turno, pudessem ajudar
a nação. Mas os teóricos do PCC observaram que esse tipo de ação reformista dc-
sestimulava a revolução. Grupos de estudo de todo o país receberam ordens de ata-
car o filme, e seu roteirista e diretor teve de se retratar em público.
Para os intelectuais chineses, a tática requerida para progredir, ou mesmo so-
breviver, era aderir à linha geral do partido sobre arte, tal como definida por Mao
Zedong durante a Campanha de Retificação de Yan'an, em 1942, considerada ain-
da como a instrução básica sobre o assunto. Mas uma escritora como Ding Ling,
com seus erros do passado perdoados e promovida então a um cargo de responsa-
bilidade, podia ainda dizer que o partido não devia ser seguido servilmente, pois
"um escritor não é como uma criança que não pode deixar sua mãe, ele deve ser
independente". Sua concepção teve aceitação de facto do PCC, pois em 1953 ela
foi descrita por uma revista oficial como uma mulher "que jamais se afastou um
milímetro do caminho tomado pelo partido".''*
Durante o período inicial do Primeiro Plano Quinquenal, Mao Zedong come-
çou a perceber que os intelectuais — escritores, assim como cientistas e engenhei-
ros — de todas as crenças políticas seriam necessários para que houvesse um surto
de produtividade na China. Essa gente criativa não poderia ser aterrorizada por
campanhas como a deflagrada contra o filme sobre Wu Xun, ou então o país iria
sofrer as consequências. Comunicou-se aos militantes que estavam errados ao "con-
siderar a capacidade de captar o marxismo-leninismo como critério único para fun-
damentar seus juízos". Os intelectuais que "são capazes de trabalhar honestamen-
te e de conhecer seu trabalho" deviam ser encorajados.'*
Todavia, quando levavam longe demais a lógica dessas observações, os escri-
tores se defrontavam com oposição feroz. O autor e editor Hu Feng, que era mem-
bro do partido, da direção da união de escritores e do Congresso Nacional Popu-
lar, escreveu que o tipo de controle exercido pelo partido sobre a cultura "exauria"
as pessoas, de tal forma que elas não conseguiam mais pensar direito. O uso que
o PCC fazia do marxismo para julgar as obras de arte era "sociologia grosseira"
e "sem base na realidade"; "essa arma é assustadora porque pode sufocar os ver-
dadeiros sentimentos de criatividade e arte".'^
Em 1955, Hu Feng lornou-se ele mesmo o alvo de uma ampla campanha de
críticas e foi demitido de todos os seus postos. À medida que a campanha se inten-
sificava e se disseminava para grupos de luta de todo o país, as acusações contra
Hu Feng ficaram mais sérias. Acusado primeiramente de desvio ideológico, foi de-
pois acusado de ser contra-revolucionário e imperialista e, por fim, considerado
agente do serviço secreto do Guomindang e comandante de um movimento secreto
535
 anticomunisla. Apesar de sua insensatez, as acusações contra Hu Feng lornaram-
se o centro de incontáveis reuniões para aprofundamento da consciência política;
essas sessões realizaram-se propositadamente enquanto a campanha de reforma agrá-
ria estava sendo aparelhada para a mudança das cooperativas de baixo nível para
as de alto nível, em 1955-6. Dessa forma, a caça no campo ao "hu fengismo" lornou-
se uma forma de detectar se alguém ousava se opor abertamente ao papel do parti-
do na aceleração da reforma agrária à custa das iniciativas privadas. Hu escreveu
três autocríticas extensas que o PCC rejeitou por inadequadas. Ele foi julgado em
segredo, supostamente acusado de atividades contra-revolucionárias — e senten-
ciado à prisão. Hu ficaria na prisão, com um curto hiato de liberdade, até 1979.
Surgiu então uma situação curiosa, na qual a liderança da China ficou encar-
niçadamente dividida sobre como tratar seus intelectuais desmoralizados. Do am-
plo espectro de posições sobre a questão, duas visões antípodas se destacaram. Uma
favorecia a continuidade da aliança do PCC com os intelectuais, argumentando que
eles eram absolutamente necessários para o cumprimento do Plano Qiiinqíienal e
na transição para a agricultura coletivizada, e que se podia confiar, em liltima ins-
tância, na fidelidade deles, mesmo que criticassem o partido. A outra mantinha
que a unidade do PCC era fundamental e que o partido conduzira a revolução e
não podia agora ser criticado de fora sem efeitos fatais sobre sua eficácia e seu moral.
Os que apoiavam a cooperação com os intelectuais foram reforçados pelos even-
tos na União Soviética, onde parecia estar ocorrendo um degelo após as denúncias
que Khruschev fizera em 1956 dos atos tirânicos de Stalin. Alguns defensores do
compromisso também alimentavam a esperança de que as autoridades de Taiwan,
ainda comandadas por Chiang Kai-shek, pudessem contemplar uma eventual reu-
nificação pacífica com a China se a antiga burguesia chinesa fosse bem tratada.
Aqueles que prezavam a unidade partidária acima de tudo foram reforçados em
seus temores pelos ataques contra Stalin na União Soviética, acreditando que eles
teriam efeitos danosos sobre a lealdade e disciplina partidária naquele país. Entre
os membros mais antigos do Politburo do PCC que eram a favor de afrouxar o con-
trole sobre os intelectuais, mesmo que isso significasse permitir as críticas ao parti-
do, estavam Mao Zedong, Zhou Enlai, o planejador económico Chen Yun, o recém-
designado secretário-geral do partido Deng Xiaoping e o general Lin Biao. Entre
os que insistiam na disciplina partidária mais rígida e que não havia mais necessi-
dade de uma aliança com os remanescentes da burguesia estavam dois veteranos,
membros do comité permanente do Politburo, Liu Shaoqi e o comandante-em-chefe
do ELP Zhu De, bem como o general Peng Dehuai e Peng Zhen, veterano inflexí-
vel do partido, então prefeito de Pequim.
O tortuoso curso do que veio a se chamar de movimento das Cem Flores emergiu
lentamente dessas divisões políticas. A decisão de deflagrar o movimento fazia parte
da tentativa dos dirigentes da RPC de compreender o significado dos ataques se-
cretos de Khruschev à memória de Stalin, feitos em janeiro e fevereiro de 1956,
no vigésimo congresso do Partido Comunista soviético, ao qual compareceram Deng
Xiaoping e Zhu De. Era um momento em que muitos achavam que as coisas iam
bem na China, sentimento expresso em um afrouxamento dos códigos cinzentos
536
de vestir, em uma breve primavera de blusas floridas e saias com fendas, e até da
realização de um desfile de modas oficialmente aprovado. A declaração de Khrus-
chev de que as duas grandes potências não estavam predestinadas à guerra fortale-
ceu também as ideias expostas em Bandung por Zhou Enlai sobre a importância
da coexistência pacífica.
Mao Zedong fez dois discursos importantes sobre essas questões na primavera
de 1956. Em abril, falou da necessidade de relações calorosas entre membros e não-
membros do partido — especialmente daqueles que tinham sido oponentes do Guo-
mindang em várias outras organizações democráticas — com o objetivo de evitar
"contradições" entre o povo. Ele também instou os membros do PCC a levar em
consideração qualquer ideia "razoável" expressa pelos de fora do Partido, dar mais
atenção às necessidades das minorias da China e até a estudar mais sobre o Oci-
dente e aprender línguas estrangeiras. Em um discurso pronunciado em 2 de maio,
numa sessão fechada de dirigentes partidários, Mao desenvolveu a ideia de "dei-
xar uma centenas de flores florescerem" no campo da cultura, e "uma centena
de escolas de pensamento se digladiarem" no campo da ciência.'^
Esses discursos da primavera de 1956 não foram publicados pela imprensa e
seguiu-se uma calmaria, enquanto os dirigentes partidários continuavam a ruminá-los
em particular. Mao estava excitado com o sucesso em geral de suas políticas, como
podemos julgar por um poema triunfante que escreveu no verão de 1956, depois
que nadou longamente por três vezes no Yangzi para registrar sua boa saúde —
estava então com 62 anos. Mas no outono as coisas começaram a andar mal, quan-
do a tentativa de impor a agricultura cooperativa levou ao caos e declínio da pro-
dução, consequência de má administração e de ordens contraditórias. Estava claro
que ia ser difícil repetir o crescimento rápido do período do Primeiro Plano Quin-
quenal e avultavam as dificuldades com que se defrontavam os dirigentes do país.
No oitavo congresso do PCC, em setembro de 1956 — o primeiro realizado depois
da expulsão dos nacionalistas, nove anos antes — os planos mais dramáticos de
Mao para o crescimento económico mais rápido foram engavetados em favor de
controles de planejamento mais fortes. E do novo texto da constituição do partido
foram eliminadas todas as referências à importância do pensamento de Mao, co-
mo talvez fosse inevitável depois dos ataques soviéticos ao culto à personalidade
de Stalin.
Ao explicar essa decisão, Liu Shaoqi foi citado como tendo dito que "se al-
guém está sempre repetindo algo de tal forma que o povo se acostuma a ouvir a
mesma coisa, isso não serve para nada". Declarações de Mao de que poderia "se
retirar para a frente secundária" pareciam implicar que ele estava em busca de uma
sucessão pacífica para sua liderança, teoria reforçada pela introdução na constitui-
ção de um cargo novo — presidente honorário do Comité Central. O teor geral
do congresso se opunha à assim chamada política de frente unida e favorecia a dis-
ciplina e controle partidário mais rígidos. Os dirigentes chineses estavam também
preocupados com os tumultos políticos ocorridos na Polónia naquele mês de ju-
nho, preocupação aumentada em outubro de 1956 com o levante dos húngaros contra
a União Soviética. Ao mesmo tempo, grandes manifestações ocorriam no Tibete
em protesto contra a presença de tropas chinesas em solo tibetano.
537
 As disputas intelectuais e políticas continuaram em 1957. A linha-dura do par-
tido, que incluía o prefeito Peng Zhen, conquistou o controle dos principais jor-
nais e revistas oficiais publicados em Pequim, com o resultado que Mao passou
a encontrar dificuldades para divulgar suas ideias naquela cidade. Assim, ele de
vez em quando utilizava Xangai como base mais receptiva para divulgar suas posi-
ções. Em janeiro de 1957, Mao permitiu que seus poemas fossem publicados em
conjunto pela primeira vez. Ao fazê-lo, ele se posicionava a favor da variedade de
formas, como que pleiteando que os princípios das Cem Flores não fossem aban-
donados. No mês seguinte, fez um cauteloso discurso, "Sobre o manejo correto
da contradição junto ao povo", no qual vinha trabalhando havia um ano. Tratava-se
de sua tentativa de analisar a situação corrente da China à luz dos ataques de Khrus-
chev a Stalin e da revolução húngara, em particular a dificuldade de decidir se a
revolta ocorrera devido ao afrouxamento demasiado dos controles ou, ao contrá-
rio, porque a repressão fora excessiva.
Apesar dos problemas da China, Mao foi positivo em seu discurso. "Jamais
nosso país esteve tão unido como hoje", disse ele. "Agora vemos diante de nós um
futuro ainda mais brilhante. Os dias de desunião nacional e tumulto que o povo de-
testava foram-se para sempre."'* Lido para um público convidado de 1800 delega-
dos comunistas e não comunistas à Conferência Suprema de Estado, o discurso en-
cheu os intelectuais não comunistas presentes de novas esperanças. Contudo, ele não
foi publicado e Liu Shaoqi não compareceu ao encontro em que foi apresentado.
Os intelectuais de toda a China observavam estupefatos a luta no escuro em Pequim,
não ousando se manifestar enquanto não recebessem sinais mais claros.
Mao tinha usado toda a sua influência para manter em andamento a campa-
nha das Cem Flores. "Não estou estimulando o povo a promover distúrbios; não
estou realizando conferências incentivadoras de agitações", disse ele aos que o apoia-
vam em Hangzhou, resumindo supostamente as acusações que os linhas-duras do
partido estavam fazendo contra ele. Somente no final de abril de 1957, depois de
meses de pressão contra Peng Zhen em Pequim e andanças de secretários do parti-
do pelo país, é que o peso da imprensa e de outros órgãos de propaganda passou
para o lado da campanha. Estava agora envolta na retórica de um movimento de
retificação total, no qual os intelectuais eram estimulados a se manifestar contra
os abusos dentro do partido. A campanha se dirigia ao "burocratismo, sectarismo
e subjetivismo" do próprio PCC, numa repetição deliberada da Campanha de Re-
tificação de 1942 em Yan'an, contra vícios semelhantes. A linguagem da diretriz
da campanha, no entanto, tentava assegurar os militantes de que seriam tratados
com gentileza. Essa seria uma campanha pela unidade que juntaria todos no pro-
gresso comum. Seria, nas palavras de Mao,
um movimento de educação ideológica levado a cabo com seriedade, contudo tão
suave quanto uma brisa ou uma chuva leve. Deve ser uma campanha de crítica e
autocrítica realizada em extensão adequada. As reuniões devem se limitar a encon-
tros de discussão ou reuniões de grupo de pequeno tamanho. Devem-se usar mais
falas francas entre camaradas, na forma de conversações, isto é, troca de opiniões
entre indivíduos, e não se devem realizar grandes reuniões de crítica ou "luta"."
538
Convencidos de que a permissão para manifestar suas queixas contra o PCC
era agora oficial, os intelectuais reagiram com entusiasmo durante um período de
cinco semanas, de 1? de maio a 7 de junho de 1957. Em fóruns fechados assistidos
por delegados do partido, na imprensa controlada pelo Estado, em artigos de re-
vista, em cartazes colados nas paredes das universidades e em comícios nas ruas,
as pessoas começaram a se manifestar. Mao e outros altos funcionários tentaram
conduzir o processo, concentrando-se em questões como a introdução de um pou-
co de trabalho físico construtivo para os quadros do partido, a fim de mantê-los
em contato com as massas, ou permitindo que questões económicas fossem discu-
tidas antes de as decisões serem tomadas. Mas as críticas públicas logo ampliaram
o âmbito do diálogo. Protestava-se contra o controle do PCC sobre os intelectuais,
a rudeza das campanhas de massa anteriores, como a dos contra-revolucionários,
a imitação servil dos modelos soviéticos, o baixo padrão de vida na China, a pros-
crição de literatura estrangeira, a corrupção económica de quadros do PCC, e o la-
to de que "membros do partido gozam de muitos privilégios que os tornam uma
raça à parte". As campanhas de massa anteriores foram chamadas de "uma viola-
ção séria dos direitos humanos" por um professor de contabilidade de Hankou,
que acrescentava: "Isso é tirania! Isso é malevolência!". O sistema eleitoral de ra-
tificação de chapas do partido era uma farsa. "Hoje não sabemos nem mesmo a
altura ou tamanho da pessoa que elegemos, sem falar em seu caráter ou competên-
cia. Tornamo-nos simplesmente máquinas de depositar votos."^^
"Parece haver uma pressão invisível que compele as pessoas a não falar na-
da", observava um professor de Shaanxi ao descrever a vida normativa sob o PCC.
"Não é verdade que todos os camponeses querem conscientemente entrar para as
cooperativas", dizia um mestre-escola de Mukden. "Na verdade, a maioria deles
é obrigada a entrar." Outro professor da Manchúria escreveu que a administração
de sua universidade estava "absolutamente empestada de príncipes feudais e char-
latães fedorentos". Um antigo amigo de Lu Xun escreveu que havia mais liber-
dade de expressão para escritores em Chongqing, no tempo de Chiang Kai-shek,
do que na Pequim atual. " O Partido Comunista está no limite de suas forças",
diziam supostamente ex-terratenentes de Henan. "Chegou o momento de nossa
libertação."^'
No centro da Universidade de Pequim, os estudantes criaram o que chama-
ram de "Muro Democrático" e cobriram-no com cartazes criticando o PCC. Nesse
local, no final de maio, uma jovem mulher de outra universidade dirigiu-se aos es-
tudantes defendendo Hu Feng, fulminando a campanha de Yan'an pelas restrições
que impusera à produção poética e literária e exortando-os a coordenar seu movi-
mento de protesto com as ações que já estavam acontecendo no Noroeste, em Nan-
quim e Wuhan. Na verdade, os protestos já estavam ocorrendo em muitas outras
cidades e logo, de Chengdu a Qingdao, chegavam notícias de grupos de estudantes
excitados promovendo distúrbios, espancando quadros do PCC, saqueando arqui-
vos, convocando outras faculdades e escolas secundárias a se unirem em greves de
simpatia e exigindo uma nova política educacional. Desde o Movimento Quatro
de Maio, em 1919, não acontecia um protesto político e cultural dessas dimensões.
539
 Alguns dos eruditos mais famosos da China começaram a publicar artigos dc
franqueza espantosa. Fei Xiaotong, um sociólogo pioneiro cujos ensaios e livros
sobre a China rural e o sistema tradicional de nobreza tinham ficado famosos nas
décadas de 1930 e 1940, estava entre os mais francos. Em junho de 1957, publicou
um relato sobre sua visita de retorno no início daquele^ano à aldeia de Kaixian-
^n^j^uma parte remota de Jiangsu, onde fizera importante pesquisa de campo
na década de 1930. Fei apontava numerosos problemas que ainda existiam na área,
inclusive atos de planejamento irracionais, descaso pelas indústrias locais, fracas-
so em criar animais adequados ao meio ambiente e negligência total em relação
à educação das crianças. A inferência de Fei era que na metade da década de 1950
muitos aspectos da vida em Kaixiangong não estavam melhores do que vinte anos
antes. Em várias passagens, sua apreensão em relação à política maoísta aparecia
através de circunlóquios:
Duvidar da superioridade da coletivização é incorreto. Mas reconhecer a superiori-
dade da coletivização e, ao mesmo tempo, acreditar que ela resolve todos os pro-
blemas é, em minha opinião, também incorreto. Um caminho é tão incorreto quanto
o outro. Se pensarmos de maneira simplificada demais, estaremos em perigo maior
de erro. Desculpem-me se insisto nisso: espero poder impedir que o leitor tome uma
ou duas de minhas frases isoladas para afirmar que estou sendo negativista."
Os secretários do partido de pelo menos nove províncias da China jamais ti-
nham apoiado a Carppanha de Retificação e muitos outros participavam claramente
com relutância. A reação deles começou em junho, com o apoio de gente de Pe-
quim que sempre se opusera à campanha, mas que fora temporariamente suplanta-
da por Mao. Percebendo que a maré estavaj/iratido contra ele, Mao passoii-.se^ra
o lado dos linhas-duras, alterando o texto de "Sobre o manejo correto da_c^tra-
dição junto ao povo". Na versão revista, publicada e amplamente divulgada, as
promeFidas liberdades iatelectuais deveriam ser usadas apenas se contribuíssem para
o fortalecimento do socialismo. Parecia então que o discurso constituía uma censu-
ra aos intelectuais, em vez de um estímulo à crítica, como Mao pretendia original-
mente que fosse. Em julho, um ataque intensivo de propaganda contra os críticos
do partido foi montado em todos os principais jornais do país, e o PCC anunciou
o início de uma "campanha antidireitista". No início de agosto, Peng Zhen acusou
os críticos do partido de se comportarem como "os 'heróis' anticomunistas e con-
tra-revolucionários Chiang Kai-shek e Wang Jingwei" durante 1927; deveria o PCC
em 1957, perguntava retoricamente, comportar-se como Chen Duxiu, o líder parti-
dário, se comportara naqueles dias negros dos massacres de Xangai e Wuhan e,
"com 'grande magnanimidade' 'perdoar' os crimes anticomunistas, anti populares,
contra-revolucionários [...] e sofrer as investidas furiosas dos direitistas burgue-
ses?". Sua resposta estava predeterminada: ''Definitivamente, não podemos"."
Ao chegar o final do ano, mais de 300 mil intelectuais já tinharnsido acusados
de "direitistas", rótulo que arruinava efetivamente suas carreiras na China. Mui-
tos foram mandados para acampamentos de trabalho ou para a cadeia, outros
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para o Interior, não apenas para experimentar a vida junto à terra por um ano,
mas no que constituía essencialmente um exílio punitivo que poderia ser perpétuo.
Nesse grupo estava Ding Ling, esquecidos seu prémio Stalin e suas fidelidades rea-
firmadas, banida para uma fazenda de fronteira de Heilongjiang. Toda uma gera-
ção de ativistas partidários jovens e brilhantes foi punida da mesma forma, da qual
faziam parte alguns dos melhores cientistas sociais, economistas e cientistas da China,
tais como o astrofísico Fang Lizhi e o jornalista Liu Binyan. Muitas dessas pessoas
tinham pertencido à Liga da Juventude Comunista nos primeiros dias da revolu-
ção, quando ela estava sob a orientação inspiradora de Hu Yaobang, um dos pro-
tegidos de Deng Xiaoping. Agora eles estavam abandonados.
Fei Xiaotong apresentou uma confissão pública abjeta ao Congresso Nacional
do Povo, que ainda fazia ocasionalmente sessóes formais, mantendo supostamente
viva alguma forma de participação democrática em escala nacional. Fei repudiou
seu relato sobre Kaixiangong e confessou que estivera "duvidando e se opondo aos
objetivos do socialismo", tinha "incitado à piora das relações entre o partido e
os camponeses", e "até planejado usar esses materiais para escrever outra peça
de propaganda para estrangeiros".^"* Fei perdeu seus vários postos honoríficos, foi
rotulado de "direilista" e proibido de ensinar, publicar ou realizar pesquisas sobre
a sociedade chinesa. Ainda assim, teve mais sorte do que muitos outros professo-
res e estudantes que foram levados ao suicídio pela pressão incessante das sessões
de contenda públicas. Três líderes estudantis da Primeira Escola Média de Han-
yang, que tinham deflagrado um protesto violento contra a administração comu-
nista de sua escola, foram processados e fuzilados; segundo a agência de notícias
Nova China, as execuções foram realizadas no início do novo ano letivo, na pre-
sença de 10 mil pessoas, muitas delas presumivelmente colegas dos estudantes. O
florescimento das Cem Flores acabara com uma vingança, deixando a China em
suspenso para uma nova era de aguda luta revolucionária.
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