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Pedro Bandeira
Há muitos anos sou um apaixonado pela peça de teatro Otelo, que o inglês
William Shakespeare escreveu há mais de quatrocentos anos. E adoro também Dom
Casmurro, que o brasileiro Machado de Assis publicou há cem anos, inspirando-se na
trama de Otelo. E de que tratam Otelo e Dom Casmurro? Tratam do ciúme. Do ciúme! Por
isso, usando de novo a mesma trama de Shakespeare e até mesmo incluindo trechos de
Otelo e de Dom Casmurro, retomei o tema do ciúme, desta vez fazendo-o corroer a alma
de uma jovem estudante brasileira.
No final do livro, identificados por números, você encontrará os tais trechos de
Otelo e de Dom Casmurro que foram adaptados à linguagem de hoje e espalhados ao
longo do texto.
Depois, que tal aproveitar a ocasião para ler os próprios Otelo e Dom Casmurro?
Hein?
Pedro Bandeira
Sumário
1. Por que você não me quis?
2. As ondas do verde mar
3. Entorpecida pela dor
4. Fazendo sangrar a mistura
5. Do jeito que ele é
6. Eu sempre estarei por perto
7. Animal de duas costas
8. Uma pessoa muito sórdida
9. Aumentando a dose de veneno
10. Como se fosse uma irmã
11. A gente vai fazer o seguinte...
12. Ela está fora do time
13. Olhos ciganos
14. Nunca mais quero te ver
15. Estoque de maldade
16. A dor e o sofrimento
17. Lamentar uma dor passada
A hora da verdade
Para Iara, a viagem a Ribeirão Preto tinha significado nova tortura, mais algumas
horas dentro de um ônibus, tendo de testemunhar a continuação dos agarramentos entre
Desmond e Adele, tal como no retorno da excursão ao pico do Jaraguá. Agora, depois da
vitória, não havia satisfação em sua alma. Só a expectativa de mais horas sob o mesmo
tormento.
— Vamos lá, meninas! — chamava a treinadora Maria Helena, batendo palmas.
— A diretoria do Anhanguera ofereceu um lanche pra gente. Só temos quarenta minutos
até a saída do ônibus. Não se percam por aí, hein? Em meia hora quero todas aqui na
frente do ginásio com suas mochilas, prontas para a partida.
João Massa saía carregando uma rede cheia de bolas. Quase esbarrou em Adele
e fez aquela cara de gozação já conhecida de todos:
— Como é, cafezinho? É bom não esfriar, porque o seu leite já está vindo aí!
Depois da surra que Iara havia dado no colega malcriado, o professor de
Educação Física dos rapazes era o único que ousava fazer piadas com a cor de Adele.
Mas naquele momento a menina nem parecia ouvi-lo, com os olhos postos bem atrás do
gigantesco treinador, que em anos distantes já havia jogado na Seleção.
Da saída do vestiário masculino, Desmond vinha abraçado ao garoto Miltão, que
ria feliz, como criança que tivesse passado uma tarde no parque de diversões.
O rapaz logo avistou Adele e em um instante estavam nos braços um do outro.
— Oi, campeã!
— Eu te amo, campeão!
Iara pegou um sanduíche da bandeja que havia sido deixada numa mesa da
entrada do ginásio e afastou-se.
Roberta segurava um refrigerante, isolada de todos. Iara percebeu que o olhar da
colega perdia-se no vazio, na certa tentando sonhar consigo mesma em quadra, alvo dos
aplausos da torcida. Mas Roberta era agora apenas a levantadora reserva.
"Está tristinha, boneca?", pensava Iara, olhando de longe. "Então somos duas...
Será que qualquer um pode ler as emoções no meu rosto como eu posso ler no da
Roberta? Não! Não posso deixar que ninguém saiba o que eu sinto. Meu ódio é somente
meu!"
Encostada do lado de fora de uma das colunas de concreto da entrada do
ginásio, Iara aproximou o sanduíche da boca. Deteve-se. No meio do pão de fôrma, lá
estavam juntas uma fatia fina de rosbife, marrom como a pele de Adele, e outra de queijo,
amarelo como os cabelos de Desmond.
"Adele e Desmond... Juntos..."
Uma rodela de tomate completava o conjunto. Com as pontas dos dedos, Iara
esfregou o tomate sobre o rosbife e o queijo, fazendo sangrar a mistura.
Uma lágrima quente escorria-lhe pela face, quando Iara fechou os dentes
furiosamente no sanduíche.
Na hora de embarcar no ônibus que levaria os jogadores do Queiroz de volta a
São Paulo, Iara escolheu a poltrona logo atrás de onde já estavam Desmond e Adele e ali
sentou-se sozinha.
Apesar do cansaço, a saída do ônibus começou com balbúrdia, cantoria,
batucada e alegria pelas duas vitórias. Eles saíam como vencedores e tinham o que
comemorar.
— Bola pró alto, bola no chão! O Queiroz é campeão!
— E aí, Taka? — brincava Caca, sabendo que o colega havia recebido um
convite para treinar num clube profissional. — Já desistiu da engenharia? Vai viver de
vôlei, japonês?
— O vôlei também é engenharia, Caca... E eu não sou japonês. Sou mais
brasileiro que você, sabia?
Risadas, risadas, risadas...
— Essa a gente já papou! O Anhangüera já era!
— Vai virar Anhanguera Ah, ah!
— Ainda não acabou, pessoal — informou João Massa. — Acabei de saber que o
Cultura Múndi também se classificou hoje. No masculino e no feminino, como a gente. A
guerra final vai ser contra eles!
— Quer dizer então que a grande final vai ser em Santos? Boa! Vamos pegar
uma praia, pessoal!
— O Cultura Múndi? Puxa, eles não são de brincadeira...
— Olha o Miltão! Já ferrou no sono, o bebezinho!
— Ei, Leo. Vê se o Miltão dorme chupando o dedo! Ah, ah!
— Deixem o menino em paz, pessoal! — vinha lá da frente a voz de dona Maria
Helena. — Que tal todo mundo tentar dormir? A viagem vai ser longa e ninguém tem
dispensa das aulas amanhã...
Aos poucos, a excitação foi diminuindo e o balanço do ônibus começou a
embalar os jovens exaustos.
No escuro, alguém se aproximava para invadir a idéia fixa de Iara. Era Emílio e
sentava-se a seu lado.
— Oi, fofinha. Que tal os dois atacantes que mais marcaram pontos hoje
passarem juntos as próximas horas?
Iara via a brancura dos dentes de Emílio brilhando intermitentemente na medida
da passagem dos postes de iluminação da cidade que o ônibus começava a deixar para
trás.
— Ah, Emílio... Estou cansada...
— Então que tal a gente descansar juntos?
— Você não está com jeito de querer descanso, Emílio... O rapaz pegou a mão
de
Iara e falou, sério:
— Eu gosto de você, fofinha. Você sabe quanto eu gosto de você...
Iara encarou o rapaz, com um tipo diferente de seriedade. Uma expressão quase
de repulsa:
— O que você está precisando é de alguém que levante alguma coisa aí de você.
Esse não é o meu jogo. Eu só sei cortar. A Adele está ocupada, mas por que
você não vai procurar a Roberta? Ela é a levantadora reserva...
Emílio suspirou profundamente:
— Iara, Iara... Por que esse cinismo? O que eu fiz pra você?
— Você não fez nada, Emílio, nem vai fazer. Olha, desculpe, mas eu estou
cansada mesmo. Não estou a fim de ficar com ninguém.
O rapaz fez uma pausa mínima, desviando os olhos de Iara, e continuou:
— Sabe, fofinha? Você me fez lembrar um conto que uma professora de
Português mandou a gente ler na sétima série. Chama-se "Serespaperconfi". Você já leu?
Iara nada disse.
— Um conto diferente... É um jogo de palavras com os verbos de ligação: ser,
estar, parecer, permanecer, continuar e... ficar... — completou o rapaz, enfatizando a
última palavra.
— Olha, aqui, Emílio, nessa hora, tudo o que eu não estava precisando era de
uma aula de Gramática...
Emílio fez que não ouviu:
— No conto, tem uma garota que não quer ficar com um cara. Ela está a fim dele
de verdade e quer viver todos os verbos de ligação com o cara e não apenas ficar com
ele...
Iara mudou um pouco de tática, amansando a voz:
— Emílio, por favor. Eu não estou querendo nenhuma ligação agora. Não quero
ser coisa nenhuma, nem estar, nem parecer, nem permanecer, nem continuar e muito
menos ficar. Tenho prova de Geometria amanhã e me matei na quadra. As garotas do
Anhangüera não deram moleza. Este ônibus tem mais de quarenta lugares e nós somos
apenas vinte e seis, contando com o João Massa e com a dona Maria Helena. Deixa eu
me esticar nesta poltrona, deixa? Amanhã a gente conversa melhor, está bem?
O rapaz não discutiu. Levantou-se, obediente, e baixou o rosto para a menina,
procurando um beijo. Iara ofereceu-lhe a face e forçou um sorriso.
— Boa noite, fofinha...
— E pare de me chamar de fofinha que eu não sou almofada!
Ouvindo a retirada do rapaz, Iara afofou a mochila no apoio de braço do lado da
janela e encolheu-se, tentando deitar-se do melhor jeito possível na poltrona dupla.
No tecido da mochila, esfregou o rosto com raiva, para apagar o beijo de Emílio,
que mais uma vez havia suspirado desolado, ao afastar-se.
"Pelo jeito esse daí vai passar a noite suspirando... Boboca!"
Já haviam alcançado a estrada e as luzes da cidade afastavam-se,
acompanhando o cansaço de todos, que já começava a arrefecer o entusiasmo. Aos
poucos, somente um cochicho daqui e dali rivalizava com o ronronar monótono do motor.
Desconfortavelmente deitada, Iara mantinha os olhos abertos, fixos no pequeno
intervalo entre os dois encostos das poltronas à sua frente. No escuro, mal dava para
perceber pequenos trechos do namoro que se desenrolava entre Adele e Desmond.
"Sussurros... tlec, tlec... estalidos de beijocas... Mais sussurros... O que será que
esses dois estão dizendo? "Ai, ai, ai, te amo, Adele"... "Ai, ai, ai, te amo, Desmond"...
Cretinos!"
Ela queria estar naquela poltrona, envolta por aqueles braços, sentindo aquele
calor, recebendo aqueles beijos... As lágrimas voltaram a rolar, abundantes.
"Que ódio! Eu não quero chorar, não posso chorar. Não por causa desses dois!"
Pescando uma palavra aqui, outra ali, Iara foi conseguindo retirar algum sentido
do diálogo apaixonado que se entremeava entre os beijos:
— Está com sono, amor?
— Hum... Eu não queria dormir, pra ficar mais tempo com você... Mas, ao mesmo
tempo, estou louca para pegar no sono, só pra ter um sonho lindo... um sonho com você...
— Pois fique sabendo que meu sonho vai ser ainda mais lindo, Adele. Porque vai
ser com você...
"Mais tlec, tlec... cuspe com cuspe!"
— Desmond... olha aqui... Eu sempre uso essa medalha, você já notou?
— É claro que sim...
— É a minha primeira medalha ganha no vôlei. Eu estava no infantil. É o meu
troféu. Pegue. Ela agora é sua. Quero que você a use para sempre...
— Oh, Adele...
"A medalhinha! Maldita! Ela deu a medalhinha pra ele. Ah, eu preciso dar um jeito
de... O que eu vou fazer? O que eu posso fazer para que essa metida sinta a mesma dor
que eu estou sentindo? Oh, eu queria que esse safado se metesse com outra para que
essa Adele descobrisse o que é bom pra tosse! Espera aí: e se eu conseguir envolver o
Desmond com outra? Boa! Mas com quem? É claro, tem a Cássia! Tem de ser ela! Todos
os garotos acham aquela cê-dê-efe a mais gostosa da classe. É uma cretina, uma puxa-
saco e a mais fácil de embrulhar que eu conheço. Anda toda feliz com o lugar de capita da
equipe. Humpf!"
Encolheu-se, apertou os braços em torno de si, como se quisesse abraçar a si
mesma.
"Ah, eu nunca vou esquecer daquela tarde... Dona Maria Helena, oferecendo o
lugar de capita pra Adele e ela, toda cheia de nobrezas, dizendo que agradecia, mas que
não era justo, que o posto de capita devia ir para alguém mais antigo no time. E a mais
antiga era justo a bestalhona da Cássia! Além disso, tenho certeza de que a bobona
também está caída pelo Desmond, ah, isso ela está! Pensando bem, acho que não vai ser
difícil... Eu só precisava encontrar alguém pra me ajudar, não posso fazer tudo sozinha..."
Para fechar seu plano, resolveu aproveitar a primeira decisão da treinadora, que
desbancara a antiga levantadora do time e dera seu lugar para a nova jogadora que
acabava de matricular-se no Carlos Queiroz Telles. E a coitada da Roberta tinha ficado
sem nada. Sem o lugar de levantadora titular e sem o posto de capita. A alma da garota
agora era um campo fértil para Iara semear urtigas:
"A Roberta! "Eu queria que essa negra quebrasse a perna!", não foi isso que
você resmungou, Roberta? Não é você que anda com cara de trouxa invejando as vitórias
de Adele, enquanto você fica esquentando o banco de reservas? Ah, ah, então você está
prontinha pra me ajudar a esmagar esse rosbife! É isso! Vou destruir essa paixão babaca
dos dois. Ah, e o Desmond vai voltar pra mim, vai descobrir que é aqui, do meu lado, que
ele tem de se amarrar! Ai, Desmond..."
Os ruídos do namoro apaixonado que se desenrolava à sua frente alimentavam
ainda mais sua dor e faziam crescer o ódio:
"Vingança! Ah, como um veneno, essa idéia me corrói as entranhas. É por isso
que nada, nada, acalmará minha alma, até o dia em que eu conseguir dar o troco: é
traição por traição. Vou transformar esse amor em ódio e a ponte que leva o amor ao ódio
é o ciúme! Tenho de despertar dentro da alma de Adele o câncer do ciúme, até que ela
perca a razão. Se ela engolir a isca, essa Cássia estará na minha mão, para o uso que eu
quiser. É aí, é aí que eu farei a minha cama, muito bem feitinha, até que Desmond volte a
deitar-se nela!"
Procurava fechar-se dentro de si mesma e não ouvir os ruídos de amor das
poltronas à sua frente.
"Enquanto isso, preciso fazer com que Adele goste ainda mais de mim e me
agradeça... Ah, ah! Ela vai me agradecer exatamente porque eu vou fazer com que ela
represente o papel de uma perfeita, de uma grandissíssima burra. Depois, é só roubar a
certeza que ela tem do amor de Desmond e levá-la à loucura!
Todo o plano já está na minha cabeça. Ai, é tudo tão confuso... Mas o que é mau
torna-se bom com o uso!"
Alheios à dor que provocavam no coração de Iara, Desmond e Adele tocavam-se,
trocavam risadinhas excitadas, pesquisavam-se, conheciam-se...
"Hum, mas que namorinho mais besta! Vamos, pega a mãozinha dela, pega... E
aí?
Cochichos no ouvido? Muito bem... sorrizinhos para a negra... Ah, eu vou te
pegar, Adele, eu vou te pegar... Olha só: agora são beijinhos nos dedos machucados pelo
jogo? Mas que beijos, sim senhora! Mas que paixão, hein? O quê? Mais beijinhos nos
dedos? Pena que esses dedinhos não te sirvam de supositório!"
Aos poucos, o cansaço venceu e Iara mergulhou no sono, imergindo em seus
pesadelos de vingança.
— Ai, Iara, estou morrendo de sono! Cheguei em casa só depois das duas da
madrugada... E mal consegui dormir, pensando na partida de ontem...
— Eu também, Adele. Eu também mal consegui dormir...
A manhã de segunda-feira começava febril, primeiro com os colegas querendo
saber detalhes das duas vitórias sobre o temível Colégio Anhangüera e depois com o
imenso risco que representava enfrentar uma prova de Geometria cansados como
estavam os jogadores do segundo ano. E daquela classe faziam parte Iara, Adele, Cássia,
Leo, Roberta e mais três reservas: Tomás, Malu e Lorena. Todo mundo alegre com as
vitórias e exausto pela noite mal dormida.
De braços dados, Iara e Adele subiam as escadas comentando os perigos
daquela prova. O professor Valongo, de Geometria, era o mais severo do corpo docente e
verdadeiro terror para todo o Colégio Carlos Queiroz Telles.
— Pra mim, acho que está tudo bem, Adele. Estudei bastante, na sexta e no
sábado, antes da viagem. Essas fórmulas malucas já estão na ponta da língua...
Adele sorriu marota, apertando o corpo contra o da amiga e confessando uma
malandragem:
— Eu também estudei e acho que está tudo decorado, Iara. Mas, por via das
dúvidas, não quis confiar na ponta da minha língua e anotei as fórmulas com letra miúda
num papelzinho, que está bem aqui, na bainha da camiseta...
"Uma cola? Ela vai colar na prova? Hum... preciso dar um jeito de tirar vantagem
disso..."
— Uma cola, Adele? Boa idéia... Se eu precisar, você me empresta?
— É claro que empresto. Você é a minha melhor amiga, não é? E além disso
nossas carteiras ficam praticamente coladas uma na outra. O Valongo nem vai perceber.
— Então, tá. Se eu fizer com os dedos o sinal que você faz para a jogada de dois
tempos, é que preciso da cola. E você me passa quando o Valongo não estiver olhando.
— Confie em mim. Do jeito que eu sempre confiei em você.
— É claro, querida. Nenhuma de nós é capaz de deixar a outra na mão, não é?
— Eu te adoro, Iara!
— Eu te adoro, Adele!
Misturaram-se ao empurra-empurra da entrada em classe e já estavam sentadas
quando o professor Valongo chegou.
Como toda a classe esperava, tratava-se de uma prova duríssima, cheia de
armadilhas, como sempre eram as provas daquele professor. Iara conseguia lembrar-se
bem das fórmulas e na certa conseguiria uma nota bem razoável. Roberta cabeceava
com a lapiseira na mão, morta de sono.
"Pelo jeito, o Valongo vai satisfazer o seu sadismo ao corrigir em vermelho a
prova da Roberta..."
Olhou de lado. Adele fazia os cálculos normalmente, sem demonstrar qualquer
aflição. Parecia estar se lembrando de tudo. Não precisaria recorrer à cola.
"É agora..."
Com os dedos, fez discretamente o sinal de "dois tempos". Adele percebeu e
tirou um papelzinho dobrado da bainha da manga da camiseta. Valongo caminhava
lentamente entre as carteiras, de olho nos alunos. Passou pelo corredor entre as duas
amigas e continuou. Num gesto rápido, Adele estendeu o braço e passou a cola para Iara.
"É agora..."
Fingindo nervosismo, Iara pegou o papel desajeitadamente e deixou-o cair no
chão.
Na mesma hora, fez um pequeno ruído de surpresa, muito baixo, mas o
suficiente para ser ouvido pelo professor.
— Ahn...
— Que foi?
Valongo voltava-se, com a cara fechada. No chão, no espaço entre as duas
carteiras, lá estava o papelzinho.
— Hum? O que é isso, hein? A faxineira não varreu essa sala, é?
O professor abaixou-se e pegou o papel. Desdobrou-o e exibiu aquele sorriso
sádico com que brindava qualquer aluno em dificuldades.
— Ora, ora, ora! Então temos aqui um belíssimo resumo da matéria! Mas que
trabalho bem-feito! Vamos lá, de quem é esta cola tão caprichada? E então? Quero
cumprimentar o autor da façanha...
Foi como se um vento gelado, austral, tivesse percorrido a sala de aula. Os
alunos ficaram em suspenso e o vôo de um mosquito poderia ser ouvido.
O vento gelado parecia ter atingido principalmente Adele. Seus lábios
começaram a abrir-se, sabendo que teria de entregar-se, pois, se ninguém se acusasse,
Valongo daria zero para todos os alunos das duas fileiras.
— É minha, professor... A cola é minha. Desculpe...
A boca de Adele abriu-se mais ainda: quem acabara de falar tinha sido Iara,
entregando-se em seu lugar, assumindo o zero na prova por ela, salvando seu pescoço!
O sorriso sádico de Valongo escancarava-se agora. Ele parecia feliz ao
extravasar seu cinismo:
— Muito bem, Iara. Parabéns pela cola. Pode me entregar a prova, por favor.
Como prêmio, você pode sair mais cedo da sala com a vantagem de ficar sabendo antes
dos outros qual será sua nota. Mais uma vez, parabéns...
Iara era um pouco mais alta que o professor. Levantou-se e encarou-o com a
expressão mais inocente do mundo:
— Desculpe, professor.
Sem voltar a cabeça, percebeu que os olhos de Adele estavam cheios d'água. De
surpresa e gratidão. "Deu certo!"
Altiva, saiu da sala de aula.
Faltavam ainda uns dez minutos para o sinal e Iara treinava saques sozinha na
quadra do colégio, quando Adele chegou correndo, depois de ter entregue a prova de
Geometria.
Parou a dois passos de distância e as duas se encararam. Adele olhava com
olhos de lágrimas para o sorriso tranqüilo da amiga.
Num repente, uma jogou-se na direção da outra, num abraço apertado, intenso,
agradecido.
— Iara, você é demais! Eu nunca ia imaginar que...
— Você não precisa imaginar nada. Minha média não está má em Geometria.
Esse zerinho não vai ser uma catástrofe. Você precisava mais de nota do que eu.
— Mesmo assim! Olhe, eu nem sei o que dizer... eu...
— Não precisa dizer nada, minha amiga. Eu não falei que você sempre podia
confiar em mim? E, depois, a culpa foi minha. Nem sei como fui deixar cair a cola bem
nas barbas do Valongo.
Adele bateu duas vezes uma bola no chão e levantou-a, como se estivesse
servindo numa partida de vôlei, como se procurasse oferecer um presente em retribuição
ao imenso sacrifício que a amiga tinha acabado de fazer por ela. Iara pulou e cortou forte,
com força, com raiva, agressiva, e a bola bateu no alambrado, com estrondo.
Rindo e brincando, uma tomou o braço da outra e sentaram-se numa mureta ao
lado da quadra.
— Não precisa contar pra ninguém a história da cola, Adele. Isso fica entre nós.
— Ah, isso não, Iara! Daí todo mundo vai ficar achando que você teve culpa, que
a cola era sua. E eu não...
— Tudo bem, Adele — cortou Iara. — Estou pouco ligando para o que os outros
pensem ou deixem de pensar. Ninguém tem nada com a minha vida.
Adele não conseguia aceitar tanta generosidade da amiga:
— Mas, desse jeito, a turma vai pensar que você é uma coisa que você não é...
— A gente é do jeito que a gente faz com que a gente seja, Adele. Minha alma é
um jardim e a minha vontade é o jardineiro! Eu sou o que minha vontade quer que eu
seja!
Adele enlaçou o braço de Iara, encostou a cabeça em seu ombro e suspirou
profundamente, feliz com a força e a amizade daquela colega que não hesitava em
sacrificar-se por ela.
— Suspiros? — sorriu Iara. — Acho que um suspiro fundo como esse estava
reservado para outra pessoa, não estava?
Olhando longe, para os lados do portão de saída para o pátio, sem nada fixar, só
à espera do sinal para o recreio, quando seu namorado por ali apareceria, Adele abriu o
coração para sua amiga tão querida e a quem ela tanto devia:
— O Desmond é especial, Iara. Amadurecido que só vendo! Muito mais homem
do que eu sou mulher... Quando eu estou longe dele, as horas levam sete vezes mais
tempo pra passar...
— Então é bom o Desmond aparecer logo, senão, quando ele chegar, vai
encontrar uma velhinha coroca ao lado de uma garota novinha e gostosa como eu!
— Ah, Iara! Você é demais!
— Demais são esses ingleses. Na verdade não são de todo maus, apesar
daqueles olhos de água que são o diabo! Você já reparou nos olhos do Desmond? São
como os de um cigano, dissimulados, como quem olha de lado, querendo esconder
alguma coisa...
Adele apenas sorriu com a brincadeira e continuou:
— Que gosta de mim, isso ele não esconde, Iara. O Desmond é demais mesmo.
Sabe? Eu não esperava encontrar tão cedo alguém de quem eu pudesse dizer
que "é o homem da minha vida". Essa frase sempre me pareceu uma coisa velha, fala
exagerada de novela barata. É claro que, desde que me senti mulher, eu sonhava com
um príncipe encantado, com alguém especial, que um dia surgiria na minha vida e me
levaria para sempre, na garupa de seu cavalo branco...
— Ou, no mínimo, no banco do carona de uma Ferrari conversível branca... —
brincou Iara.
Como se não tivesse sido interrompida, Adele procurava desenhar com palavras
a imagem idealizada de seu amor pelo rapaz:
— Mas agora... Agora eu descobri que nem sabia sonhar direito: o Desmond é
muito mais do que minha pobre imaginação poderia ter criado. Ele é... Ora, mas o que eu
estou dizendo? Você sabe como é o Desmond! Vocês namoraram no ano passado, antes
de eu me transferir para o Queiroz, não foi?
Iara deu de ombros, sem encarar a amiga:
— Você sabe que foi. Um namoro breve, quase nada, muito pouco... Não podia
durar muito, do jeito que é o Desmond...
— Do jeito que ele é? De que jeito ele é?
Iara levantou o queixo de Adele, olhando-a carinhosamente nos olhos:
— O que é isso, menina? Você acha que, como amiga, eu seria capaz de fingir
um sentimento que eu não tivesse de verdade? Desmond é do jeito que você falou: ma-
ra-vi-lho-so...
Adele afastou-se um pouco, sorrindo, como se a colega tivesse proposto uma
brincadeira, mas com um leve e ressabiado franzir de sobrancelhas:
— Pois você não parece achar nada disso dele, dizendo que "o namoro não
podia durar muito, do jeito que o Desmond é". Ah, vai, fala, Iara. Se você é minha amiga,
me diga: como foi o namoro de vocês dois?
O sinal tocou naquele momento. Iara levantou-se, olhando com tranqüilidade
para Adele:
— Foi o que todo mundo sabe. O Desmond é danado quando vê mulher...
— Como assim?
— Nada, Adele. É que ele vivia falando aquelas palavras bonitas dele, mas eu
soube que ele não estava nem aí pra essa história velha, essa tal de "fidelidade". Por
isso, mandei ele andar...
Naquele momento, quem observasse a expressão de Iara também haveria de
achar errada a engenharia humana que teria criado apenas as pernas como alternativa de
fuga. Para fugir, bastariam certas expressões do olhar.
Adele também estava de pé, agora claramente preocupada:
— O que você está dizendo?
— Nada mesmo, Adele. As pessoas mudam. Quando a gente namorou, acho que
ele ainda era muito criança, estava começando a descobrir que existe mulher no mundo.
Pode ter mudado muito, do ano passado para cá. Me diga: você pode confiar no
Desmond?
— É claro que eu posso confiar nele, Iara. Aposto a minha vida nisso!
A zoeira dos estudantes que desciam para o recreio explodiu no portão do pátio.
Iara colocou as duas mãos nos ombros da colega e sorriu:
— É claro que pode! As coisas mudam. Nem precisa ficar de olho, Adele. Só
porque ele traiu uma vez, isso não quer dizer que venha a trair de novo...
— Se atos como esse seu, Cássia, começam a ser cometidos livremente, sem
punição, é o bom nome do nosso time e do próprio Colégio Carlos Queiroz Telles que vai
acabar sendo manchado.
Na manhã de sexta-feira, dona Maria Helena não aceitou a intermediação nem
da diretoria do colégio, nem dos pais de Cássia. O próprio João Massa teve de ficar à
parte, sem voz ativa na decisão da professora.
E a decisão foi drástica: Cássia perdia seu lugar no time.
— Parece incrível que jovens como você, Cássia, metam pela boca um inimigo
que lhes rouba a razão, o raciocínio, a vergonha! Eu não posso entender por que os
jovens aceitam meter-se com álcool e drogas, transformando a si mesmos em
verdadeiros animais. E isso tudo com prazer, rindo e brincando!
Na quadra principal do colégio, de pé, na frente da professora, com todo o time
feminino sentado em volta, Cássia tinha a expressão de um trapo. Pálida como papel,
seus lábios tremiam e lágrimas mudas brotavam sem parar dos olhos vermelhos, que
haviam chorado durante toda a noite e ainda conseguiam encontrar reservas salgadas
para demonstrar sofrimento e humilhação.
Depois de ter vomitado, de ter passado mal a noite toda, sua cabeça ainda girava
pelo efeito da aguardente vagabunda que Iara trouxera. Mas a menina não tinha aberto a
boca para denunciar quem havia trazido a bebida. Considerou-se a única culpada e não
quis piorar tudo, envolvendo Iara, Roberta e Neusinha em sua desgraça.
— Você fica fora da final, Cássia — encerrava dona Maria Helena. — Não ficará
nem no banco. Não irá com o grupo para Santos. O posto de capitã fica com Adele.
E a posição de titular no meio da defesa fica com Malu. Para a reserva da Malu,
vou promover a Norminha, da oitava...
O tempo todo Iara sabia que a decisão só poderia ter sido mesmo aquela. Desde
o começo, Roberta não tivera a menor chance de recuperar seu lugar no time, pois era
levantadora, e não defensora como Cássia ou Malu. Mas fez a mais convincente
expressão de surpresa quando recebeu o olhar pânico de Roberta, ao ouvir a nova
escalação do sexteto titular.
Na primeira oportunidade que teve para procurar Iara sozinha, Roberta não teve
tempo de abrir a boca e reclamar do desastroso resultado do plano da amiga. Iara
levantou a mão, fazendo-a calar-se e procurando acalmá-la:
— Fique fria, Roberta. As coisas estão indo do jeito que eu planejei. Agora só
falta o próximo peixe em nossa rede: vamos fisgar uma traíra negra...
Logo as duas estavam rodeadas pelas outras jogadoras do grupo, todas
excitadas, nervosas, umas falando em injustiça, outras sem conseguir entender como é
que uma garota certinha como a Cássia podia ter se embriagado daquele jeito.
— Conheço a Cassinha há anos, meninas — Iara balançava a cabeça,
demonstrando-se arrasada com tudo o que havia acontecido. — Coitada da Cassinha,
coitadinha dela! Isso é problema de família, sabem? Uma desgraça... Ela tem até um tio
internado, com problemas de bebida... Isso é coisa de família...
— Alcoólatra? Será que a Cássia é uma alcoólatra?
— Claro que não! Isso leva tempo. Mas, por favor, não espalhem nada mais,
nenhum comentário, nenhuma fofoca que possa piorar o drama da Cássia. Vocês sabem
como eu adoro a Cassinha. Não há o que eu não fizesse na vida para livrá-la desse
maldito vício...
— Coitada da Cássia... — lamentava Lorena, chorando pela amiga.
Magda tentava ver a coisa por um lado menos grave:
— Foi uma sorte danada a Neusinha estar com frio e ter vestido a jaqueta, não
foi?
Iara tocou delicadamente o rosto da colega e sorriu, com tristeza.
— Quando a Cássia bebe, menina, ela perde a cabeça mesmo, perde a cabeça...
— Por sorte essa violência dela acabou só com um corte de nada na Neusinha...
— continuou Magda. — Não precisou nem levar ponto...
Sandra ainda não entendia como Cássia podia esconder tantos problemas numa
aparência tão adequada, tão de acordo com o que os adultos esperavam dela:
— Quem podia imaginar uma coisa dessas, hein? Só você mesma, Iara, que
conhece a Cássia há tanto tempo... Mas que idéia a dela, trazer uma garrafa de pinga
para a escola!
— Não foi? — completou Iara. — Por sorte eu estava lá... Se eu não apartasse
as duas... Não sei não...
Naquele momento, Roberta estava mais pálida que a própria Cássia.
— Iara, tenho de falar com você!
A menina levantou os olhos, fixando o olhar preocupado de Emílio, parado na sua
frente, bloqueando-lhe a passagem.
— Tem de falar comigo? Por quê? Eu não tenho de falar com você...
Emílio não aceitou a agressão:
— Alguma coisa muito errada está acontecendo, fofinha. Muito torta mesmo. O
que há? Tenho observado você nos últimos dias e...
— Observado?! — cortou Iara, com desdém. — Pois trate de ficar de olho em
quem quiser ser olhada por você. Eu não!
— Iara, eu vi quando você...
— Quando eu o quê? Ora, vê se me esquece!
Contornou o corpo de Emílio e deixou-o para trás. Ao longe, sentada na terra,
debaixo da velha jabuticabeira que ficava atrás dos alambrados das quadras, Iara viu uma
solitária e desolada Cássia. Pelo jeito, a menina não encontraria forças para entrar em
aula.
"Ela agora está no ponto. Vamos ao próximo capítulo, querida Cássia..."
Iara deu a volta nos alambrados e ajoelhou-se ao lado da colega. Sem uma
palavra, abraçou-a apertado, intensamente. Cássia desabou num choro sofrido, entregue,
sem censuras.
— Ai, Iara! Por que é que eu fui fazer uma coisa dessas?
— Shhh... querida... shhh... Pode desabafar, comigo você pode desabafar tudo o
que quiser...
— Perdi tudo, Iara, perdi tudo!
— Não, Cassinha, todo mundo conhece você, e logo todos vão descobrir que o
que aconteceu foi um acidente idiota. Você sempre foi a aluna mais querida do Queiroz.
Sua reputação é...
Cássia enterrou o rosto nas mãos:
— Reputação! Reputação! A minha está perdida! Isso fazia parte de mim, agora
estou vazia, como um cadáver. Minha reputação, Iara, minha reputação!
— Calma, isso não é nada. Você está inteirinha, como sempre foi. Um ferimento
no corpo dói mais do que na reputação. Essa história de nome, de honra, de reputação,
não vale nada. O que significa isso de reputação? O mundo anda cheio de gente que
ganha uma ótima reputação sem merecer e de gente que a perde sem motivo, como
você. Isso é a vida, Cássia...
— Ai, Iara! Todo mundo agora vai me olhar diferente... Que vergonha! Eu preferia
que um ladrão tivesse roubado toda a minha mesada. Pelo menos, se eu ficasse sem
dinheiro, o ladrão poderia ficar com ele e gastar como entendesse. Mas, quando alguém
rouba o meu nome, eu fico totalmente pobre, mas o ladrão não enriquece com isso...
— Ricos e pobres, Cássia? A gente tem de valorizar é o que a gente tem. Um
pobre que está contente com o pouco que possui é muito mais rico que o rico que vive na
paranóia de perder o que tem... E você tem muito, querida, muito... Todas nós gostamos
de você, todas nós estamos do seu lado. Isso é o que vale, isso é o que você tem. Faça
como o pobre, que vive feliz valorizando o que tem!
— Ah, Iara! Se eu não tivesse uma amiga como você...
Iara acariciava delicadamente os cabelos de Cássia, como se ninasse um bebê
na hora de dormir:
— Esqueça. É que você perdeu o controle. Eu só queria que a gente tomasse um
gole, um golinho só... mas você abusou, perdeu a cabeça...
— Por que você foi trazer aquela bebida horrível, Iara?
— Para um golinho só, Cássia. Não foi o que eu disse: "Um golinho só"? Lembra-
se? Mas você abusou, querida, perdeu o controle...
— A culpa é minha, é minha! Ai, a bebida! Se a bebida não tivesse nome, era só
chamá-la de demônio!
— Calma, calma... É preciso saber lidar com a bebida...
— Eu não sei lidar com mais nada, Iara, com mais nada...
Iara tocou a ponta do queixo da amiga com o indicador e levantou seu rosto:
— Olhe, Cassinha, isso tudo vai passar. Só que a gente não tem tempo para
esperar que as coisas esfriem. Nós precisamos de você em quadra amanhã à noite.
— Isso é impossível, Iara, impossível...
— Nada disso! Eu sei o jeito de você recuperar tudo. Dona Maria Helena é uma
ótima pessoa. No coração dela não tem lugar pra raiva, nem pra ódio. Ela sabe perdoar.
Deixe que eu vou falar com ela.
— Ela não vai querer conversa, Iara...
— Talvez não, mas tem uma pessoa que a dona Maria Helena ouviria melhor. É a
Adele. Duvido que ela não faça uma coisa que a Adele pedir. E você não sabe como a
Adele tem jeito com as palavras, menina, você nem calcula!
— É mesmo? Mas será que a Adele vai aceitar fazer isso por mim?
— Aí depende. Depende de quem pedir esse favor a ela. O caminho é o
Desmond, Cássia, é o Desmond! Você está cansada de saber como a Adele é
apaixonada pelo Desmond, não é? Você acha que ela negaria qualquer coisa que ele
pedisse?
O pátio esvaziava-se e os alunos voltavam às classes, tangidos pela campainha
estridente.
Uma aula de Geografia arrastou-se inteirinha, até que batesse o sinal para o
intervalo. Com o canto do olho, Iara viu Cássia sair apressada da sala. Seguindo seu
conselho, a pobre menina iria à procura de Desmond. Era preciso reter um pouco Adele
na classe, para não estragar o plano:
— Ai, menina! Estou arrasada com tudo o que está acontecendo. Estive agora
mesmo falando com o Leo e...
Iara conseguiu prolongar o curto diálogo por mais dois minutos e desceu junto
com Adele. Chegaram ao pátio e, ao fundo, encostados em uma parede, lá estavam
Cássia e Desmond. O rapaz ouvia, preocupado, e Cássia falava com insistência, agarrada
em seu braço.
— Olha só, Adele... — comentou Iara, com o ar mais cândido do mundo. — Acho
superlegal essa amizade do Desmond com a Cássia...
— Hum?
— Está vendo? Logo que alguma coisa de ruim acontece com ela, é com o
Desmond que ela vai desabafar. Superbonita essa amizade...
Os olhos de Adele estavam abertos, mudos, e seu lábio tremeu levemente.
Do outro lado do pátio, Desmond tocava a cabeça de Cássia, com carinho, e
seus lábios se abriam, respondendo com imensa ternura ao que acabava de ouvir. Logo,
Cássia separava-se de Desmond e sumia para o fundo do galpão do recreio.
— Hum? — fez Iara, muito baixo. — A boneca vai fugir de novo?
Adele teve um sobressalto:
— Fugir?
Desmond esticava o olhar e encontrava a namorada ao lado de Iara, perto da
cantina.
Veio vindo, com um ar preocupado.
— Oi, amor!
Adele aceitou o beijinho na face e nada disse.
— Oi, Desmond — brincou Iara. — Quer que eu vá tomar um sorvete, quer?
O rapaz tocou-lhe o braço:
— Não, nada disso, Iara. Eu preciso pedir uma coisa a Adele e é até bom que
você ouça...
— Pedir uma coisa? — estranhou Adele. — O que é que você quer me pedir?
Desmond pegava Adele pelos ombros e falava, com uma voz de veludo:
— É a Cássia, querida. O que aconteceu com ela foi uma tragédia
incompreensível. A Cássia nunca fez nada de errado na vida e isso vai acabar com ela...
— Nunca fez nada de errado, é, Desmond? — balbuciou Adele, trêmula, ao ver
confirmadas suas suspeitas.
— Isso mesmo, meu amor. Dona Maria Helena precisa perdoá-la e devolver o
lugar dela no time. A Cássia tem de estar em Santos, jogando a final contra o Cultura
Múndi...
— Tem, é? E o que eu tenho com isso?
— Você é a verdadeira líder do time, Adele. Dona Maria Helena ouve tudo o que
você diz. Tenho certeza de que, se você pedir, ela vai dar outra chance à Cássia. Por
favor, Adele...
Adele parecia diferente, com uma expressão que nenhum dos colegas do
Queiroz tinha visto antes.
Encarou o namorado séria, como se tentasse ler algo que o rosto do rapaz
poderia estar escondendo:
— Está bem, Desmond. Vou pensar nisso.
— Pensar, Adele? — insistiu Desmond. — Não há tempo a perder. Hoje é sexta.
A gente viaja para Santos amanhã, depois do almoço. Só temos o treino de hoje à tarde.
Se você não conseguir mudar o pensamento de dona Maria Helena ainda hoje, a Cássia
não vai cons...
Adele ergueu a mão, interrompendo com dureza:
— Já disse que vou pensar, Desmond. Agora, por favor, me dê licença, que eu
tenho de falar com Iara sobre um problema.
— Um problema? Que problema?
— Matemática, Desmond. Sobre um problema de Matemática...
— Calminha, Adele. Eu disse: controle-se! Ele vai chegar já, já. Não adianta ficar
de ouvido em pé cada vez que ouve o ronco de uma moto. Em dias de viagem, você sabe
que o Desmond vem de carona com o pai. Calma. Logo, logo ele vai chegar, todo
cheirosinho e...
— Cheirosinho! — aparteou Adele, lembrando-se da tarde anterior. — Todo
perfumado, como ele vem pra dar em cima da Cássia, não é?
— Esse seu ciúme já está dando nos nervos, Adele! Está bem: então ele virá
todo fedido, mas tenho certeza de que, desta vez, ele não vai esquecer a medalhinha em
cima da pia! Fique tranqüila, que tudo vai acabar bem.
O ônibus que levaria os dois times para a disputa das partidas finais em Santos
estava encostado na frente do Colégio Carlos Queiroz Telles. Quase todos os rapazes e
moças já tinham chegado e começavam a embarcar, brincando sem parar e carregando
suas mochilas. Iara e Adele permaneciam na calçada, à espera. Iara não largava a mão
da amiga, apertando-a para dar-lhe confiança.
Um carrão escuro, importado, encostava logo atrás do ônibus. As duas meninas
o reconheceram na mesma hora: o carro do pai de Desmond.
Da porta do passageiro, descia o garoto, com os longos cabelos loiros recém-
lavados e presos por uma faixa elástica branca. A tarde de maio estava um pouco fria, e o
rapaz vestia um agasalho de náilon. Sorriu para as duas meninas que acompanhavam
cada movimento de sua chegada como se fossem duas devotas assistindo a uma
aparição do papa. Mas era um sorriso fraco, meio inseguro, muito distante da risada
franca a que elas estavam acostumadas.
Adele desvencilhou-se da mão de Iara e caminhou firme para Desmond. Ele
abria os braços para recebê-la e ela chegava, com as palmas das mãos estendidas para
a frente, em busca do peito do namorado. Tocou-o, apalpou-o por dentro do agasalho,
procurando e só encontrando a pele morna e os primeiros pêlos loiros que já começavam
a enfeitar o peito de Desmond.
Seus lindos olhos ergueram-se para o rapaz. Nada disse e tudo dizia com aquele
olhar. Eram olhos já úmidos, repletos de decepção. Eram olhos que perdiam a última
esperança.
Desmond sentiu na própria pele a ansiedade da pesquisa. O toque da menina
que ele adorava desta vez parecia mais agressão que carinho. Triste, falou a verdade:
— Você está procurando a medalha, não é? Bom, não adianta mentir: eu não
consigo encontrar a medalha que você me deu. Desculpe, meu amor, eu queria esse
presente amarrado ao meu pescoço por todos os anos que me restam para viver, eu daria
qualquer coisa para...
Adele ergueu a mão direita, quase tocando os lábios do garoto:
— Não precisa dar mais nada, Desmond. Está bem, eu compreendo. Só peço um
favor: arranje outra companhia para a viagem, está bem?
— Adele, não! — a voz de Desmond implorava. — Se você me ama, tenho
certeza que pode me perdoar. Você sabe que a medalha era o que mais me importava
neste mundo. Eu dormia com ela, eu...
— Não precisa explicar nada, Desmond — dizia a menina, controlando-se,
falando baixo, pausadamente, no tom da resignação. Ela era negra, não era? Como podia
ter sonhado com a posse de um garoto como aquele? — Pode deixar que eu compreendo
tudo o que você quiser que eu compreenda. Eu só quero que você me deixe sozinha, está
bem?
Ao lado do ônibus, Cássia chegava com uma grande mochila às costas. Iara
chamou-a:
— Oi, Cassinha! Me empresta o batom?
— Claro, Iara — respondeu a menina, torcendo um ombro para oferecer a
mochila à amiga. — Olha, pega aí. Está no zíper de fora...
Adele voltava lentamente na direção de Iara, deixando Desmond para trás, com
os braços caídos, em desânimo. Iara abria o zíper da bolsinha externa da mochila de
Cássia. Desastradamente, sua mão saía derrubando parte do conteúdo na calçada.
Junto com um pequeno estojo de maquiagem, uma escova de cabelo e alguns
tabletes de chiclete, caía uma correntinha dourada, com uma medalha em forma de bola
de vôlei.
— O que é isso?
Iara abaixava-se e erguia-se em seguida, com a correntinha entre os dedos,
balançando como um pêndulo.
— O quê...? — a boca de Adele abria-se em espanto e assim ela voltou-se para
Desmond.
Quase embarcando no ônibus, Emílio assistia à cena. Suas sobrancelhas
franziam-se e seus dentes apertavam-se, num esforço de compreensão.
— A medalha! — exclamava Desmond. — Onde estava? Onde você encontrou
essa medalha, Iara?
Dessa vez a voz de Adele transformou-se. Trazia dureza, raiva, decepção,
desespero:
— Você sabe muito bem onde ela estava, Desmond. Nesse momento, eu preciso
de tudo, menos de cinismo!
— Mas o que está acontecendo? Adele! Iara! O que está acontecendo? Eu não
entendo!
Adele quase arrancou a corrente com a medalha da mão de Iara.
— Eu entendo, Desmond. Pode ficar sossegado que eu não vou fazer nenhum
escândalo. Só te digo uma coisa: nunca mais quero te ver!
O ônibus arrastava-se lentamente, tentando superar o trânsito congestionado de
São Paulo, difícil até para um começo de tarde de sábado. Alheios ao drama que envolvia
alguns deles, os rapazes e as moças riam, brincavam e cantavam, preparando-se com
alegria para a guerra esportiva que pretendiam vencer logo mais à noite.
Adele e Iara ocuparam as poltronas da frente, as que ficavam atrás do motorista.
O rosto de Adele não trazia nenhuma expressão, revelando o vazio. Estava estática,
mirando a placa de acrílico que isolava o motorista como se ali houvesse uma tela de
televisão. De seus olhos, lágrimas escorriam mudas, ininterruptas...
Iara não largava a mão da amiga e também nada dizia. Dizer o quê? Nada mais
havia a dizer, nada mais havia a fazer. Tudo tinha dado certo. Agora Desmond estava livre
como uma lebre num campo sem raposas e Iara era o caçador que já havia preparado a
armadilha.
Um pouco voltada para Adele, ninguém, nem mesmo os dois professores que
ocupavam as poltronas ao lado, podia ver o breve, leve, misterioso sorriso que suavizava
seu rosto.
"Bem, uma coisa eu ainda tenho de fazer... A mais importante. A mais gostosa!
Ganhar de novo o Desmond para mim. Ah, hoje é exatamente 12 de maio! Eu
ganhei você, Desmond, há um ano justinho. Por isso hoje é o melhor dia para retomar
você de volta para mim!"
Tinha vontade de levantar-se e correr para o fundo do ônibus, atirando-se sobre
o corpo adorado do rapaz. Mas para que a pressa? Se tinha agido com cuidado até ali,
um pouco mais de tranqüilidade não faria mal nenhum.
"Este é o momento. Agora você está frágil, pronto para que eu preencha o vazio
que você acha que está sentindo, meu Desmond. Sei que Adele vai me odiar para
sempre... Mas o que eu posso fazer? Para se conseguir violetas mais perfumadas, o
único jeito é usar estrume de porco..."
Já estavam na interligação da Rodovia dos Imigrantes com a Anchieta, prontos
para descer a Serra do Mar, quando Iara levantou-se. Beijou o rosto de Adele e caminhou
pelo corredor, para a parte de trás do ônibus.
"Tenho de ir devagar, humilde como uma violeta... Lá está ele... Desmond..."
Passou pelas poltronas onde estavam juntos Cássia e Emílio. À sua passagem, o
rapaz a olhou com uma expressão dura, inquisidora. Pegou seu braço e levantou-se:
— Iara, você não quis me ouvir aquela hora, mas eu preciso falar com você. O
que você estava fazendo quando...
Iara sacudiu o braço, como se andasse por uma floresta e um cipó incômodo
impedisse sua caminhada. Nem olhou de lado. Para ela, era como se não houvesse mais
ninguém naquele ônibus, como se ela mesma fosse um pequeno alfinete sendo atraído
pelo imã que se sentava na última poltrona.
— Ei, Iara! — chamou Caca, brincando, como sempre. — Por que você está tão
embonecada? Você pensa que as garotas do Cultura Múndi são todas sapatonas e vão
desmaiar de paixão vendo você na quadra? É assim que vocês pretendem ganhar hoje,
é?
Miltão ria, gargalhava, com a piada do colega.
Iara tinha levantado cedo naquela manhã. Nem almoçou. Levou horas no banho,
horas se maquiando, horas escolhendo a camiseta mais sedutora, de decote mais
cavado, e acabou se decidindo por um bustiê que deixava livre o umbigo, revelando
também boa parte dos seios, onde a menina tivera o cuidado de perfumar, primeiro
exageradamente e, depois de novo banho, com a delicadeza que ela julgou suficiente
para inebriar o garoto que ela precisava reconquistar.
Atrás dela, Emílio terminava a conversa com Cássia e ia sentar-se ao lado de
Roberta.
Desmond estava sozinho na última poltrona. Olhava pela janela, com a atenção
perdida pela sucessão de verde tropical que ladeava a estrada.
Sem uma palavra, Iara sentou-se ao lado dele, suave como uma serpente que se
aproxima da vítima, mas fofa como um gatinho que vem se aninhar no colo do dono.
Sentindo sua presença, Desmond voltou o rosto para ela. Estava coberto de
lágrimas.
— Querido! Oh, querido!
— Iara, Iara, o que aconteceu?
Aceitou o abraço da colega, enterrando o rosto em seu colo, envolvendo-se no
perfume planejado pela menina e desabando num choro triste, num choro de menino.
— Shhhh... shhhh... Desmond, meu querido... Tudo vai ficar bem. Sua Iara está
aqui. Eu sempre estive aqui, meu amor... Você vai ser feliz, Desmond, muito feliz. Eu vou
fazer de você o homem mais feliz do mundo, meu Desmond. Agora você é meu... agora
você é meu de novo...
Frágil demais, Desmond só chorava e não reagia às palavras de Iara.
À frente, Emílio trocava novamente de lugar, procurando desta vez os
professores, na parte dianteira do ônibus.
Apertando o rosto do rapaz contra os seios, acariciando ternamente os cabelos
de Desmond, consolando-o, Iara beijava o pedaço de testa que estava ao alcance de
seus lábios.
Tudo tinha dado certo, tudo estava acabado.
Iara sentia, no delicado cheiro dos cabelos de Desmond, o perfume da vitória.
Antes das duas partidas entre o Carlos Queiroz Telles e o Cultura Múndi, seriam
disputadas as decisões masculina e feminina dos terceiros e quartos lugares do
Campeonato da Liga Juvenil de Vôlei. O programa estava marcado para começar às
cinco e calculava-se que o time feminino do Queiroz só entraria em quadra lá pelas nove
da noite. Pelo jeito, a última partida, a masculina, só terminaria depois da uma e a volta
para São Paulo só aconteceria de madrugada. Mas os alunos do Queiroz não estavam
pensando no horário da volta. O que lhes interessava era como eles iriam voltar: se
eufóricos, comemorando, ou de cabeça baixa, lamentando.
Faltava pouco para as quatro da tarde quando o ônibus chegou ao imenso
Colégio Cultura Múndi, que ficava a poucos quarteirões da praia do Gonzaga. Os dois
professores sabiam que não adiantaria aceitar a oferta da diretoria do Cultura Múndi, que
reservara uma quadra ao lado do ginásio de esportes para um eventual treinamento dos
adversários. Por isso resolveram que o melhor era deixar aqueles jovens se divertirem um
pouco.
— Atenção, turma! — chamava João Massa na hora da chegada. — Antes do
jogo, vamos ter a folga que vocês esperavam: o ônibus vai levar vocês mais dois
quarteirões até a praia. Acho que um banho de mar vai ajudar a relaxar para o jogo, vocês
não acham?
— Oba! — foi a gritaria geral.
— Agora são quatro horas — continuava o professor. — Eu e Maria Helena
vamos ficar aqui, no Cultura Múndi, para combinar os últimos detalhes das finais. Podem
cair n'água, podem nadar, podem fazer o que quiserem até as seis, quando o ônibus vai
recolher todo mundo e trazer para cá. Só não abusem, tomem cuidado e nada de bola,
hein?
Isolada na última poltrona, abraçada a Desmond, flutuando num sonho de
fantasia e felicidade, Iara não percebeu que Adele, Cássia, Roberta, Neusinha e Miltão
haviam desembarcado junto com os professores.
Desmond mal falava, parecia aceitar a companhia de Iara, mas sem prestar
atenção alguma. Ela agia com paciência, procurando dar ao rapaz o tempo que ele
precisasse para se recuperar. Dali para a frente, estava decidida a agir de outro modo, a
não brigar com ele, a não demonstrar ciúmes.
"Vou grudar tanto nesse gato, que ele nem vai ter tempo de olhar pra outra!"
O ônibus estacionou na calçada da avenida em frente à praia, com um chiado de
freios.
— Vamos descer, Desmond? — convidou a menina. — Acho que um banho de
mar vai ajudar a esquecer tudo isso. Se não ajudar, aqui estou eu, pra sempre do seu
lado. Não tenho nenhuma medalhinha pra te dar como lembrança. Pra você sempre se
lembrar de mim, eu dou eu mesma...
"Para sempre! Grudada no pescoço de Desmond feito medalhinha!"
Uma bagunça generalizada, eufórica, jovem, tomava conta do grupo. Entre risos
e gozações, foi organizado um sistema para a troca de roupa dentro do ônibus.
— Deixa que eu ajudo as meninas! Deixa que eu ajudo! — provocava Caca. —
Alguém precisa de ajuda pra abrir um zíper? Pra desabotoar qualquer coisa? Deixa
comigo!
As garotas fecharam as cortininhas das janelas. Sandra segurou uma toalha e
ficou bloqueando a metade traseira do ônibus, criando um espaço reservado para a troca
de roupa das colegas.
— Fiu-fiu! Fiu-fiu! — assobiavam os rapazes, fazendo um corredor polonês na
porta do ônibus, para cada menina que descia, gloriosamente despida para nadar.
— Ué... Cadê a Adele? E a Cássia? E a Roberta? — perguntou Iara, só de
calcinha, procurando o biquini na mochila.
— Sei lá! — respondeu Marisa, começando a despir-se. — Vai ver não gostam
de praia. A Neusinha também ficou por lá. E o Miltão. Na certa o garotinho não tem
licença da mamãe pra ir à praia sem babá! Ah, ah!
Magda acrescentou:
— E ele ainda deve usar aquelas bóias de braço, ah, ah!
Todas as garotas uniam-se às brincadeiras e Iara as acompanhava, agora feliz,
aliviada, eufórica com o resultado final de suas ações. Aquele banho de mar com
Desmond vinha como um prêmio, como a coroação de alguém que agora se sentia como
uma rainha.
"Iara Regina! Um dia, a senhora Desmond Bradley! Que tal o nome Iara Bradley,
hein?"
Passou pela cortina de toalha, desta vez nas mãos de Malu que, já vestindo um
biquini mínimo, substituía Sandra para que a colega também pudesse se trocar.
Atravessou o corredor e desembarcou do ônibus. Livrou-se das gozações dos
rapazes como pôde e viu-se na calçada, recebendo no rosto a brisa salgada do mar.
— Desmond... — chamou ela, baixinho.
Seus olhos percorreram tudo em volta. Não se fixavam nem nas árvores dos
jardins, nem no mar escuro, ruidoso, nem no céu muito azul, que já começava a colorir-se
sobre as montanhas, à sua esquerda, preparando-se para o esplendoroso espetáculo do
crepúsculo santista.
— Desmond...
Em sua ansiedade, nem percebeu que Emílio também não estava mais no grupo.
De repente, o pânico:
— Desmond? Cadê o Desmond? Ei, Leo! Você viu o Desmond?
— Sei lá, vai ver já entrou n'água.
"Já? Que danadinho! Correu para a praia sem me esperar. Você vai ver uma
coisa, seu menininho! Mamãe vai ter de ensinar você a se comportar..."
Correu para a areia, sentindo o calor de várias horas de sol sob os pés
descalços.
Mas a figura alta e bronzeada de Desmond não estava à vista. Ansiosa, correu
pela areia, com o coração aos pulos.
"Danadinho..."
Foi direto para a água, desta vez gritando:
— Desmond! Desmond!
"Desmond... ai, querido...", pensava seu coração confuso. "Que brincadeira é
essa, meu amor? Você está se escondendo de mim?"
Seus pés entraram no mar e o choque térmico da água fria contra os tornozelos
fez Iara parar um pouco, tentando reconhecer alguma cabeça loira entre as dezenas de
pontinhos que salpicavam o mar.
— Desmond! Onde está você? Pára com essa brincadeira, vai!
O grupo vinha em desordem pela areia e logo alcançava a menina. Três rapazes
vieram por trás e pegaram-na no colo:
— Um caldo! Vamos dar um caldo na Iara! Vamos esfriar a Iara, pessoal!
— Me larga, Caca! Leo, pára com isso! Jonas, você vai ver uma coisa!
Os rapazes só "pararam com isso" quando chegaram um pouco mais no fundo.
Às gargalhadas, jogaram a garota para o alto e Iara esparramou-se na água.
Tossindo, levantou-se do mergulho. O nível do mar estava à altura de seus seios
e a brincadeira havia equilibrado a temperatura de sua pele com a da água. Seria uma
delícia, um bálsamo natural para o corpo e para o ânimo de qualquer pessoa, mas a
menina nem se apercebia de nada. Sua atenção estava numa ausência, num sumiço
estranho, inexplicável...
Vagou pela praia todo o tempo da folga. Andou a esmo, com o coração saltando
à boca cada vez que via uma cabeça loira. Nem lhe ocorreu que o rapaz pudesse ter
voltado ao Cultura Múndi. Aos poucos, mais nenhuma idéia, mais nenhuma hipótese lhe
ocorria. Não sabia o que fazer.
"Desmond..."
Foi desanimando. Já havia percorrido nem sabia quantas vezes a distância entre
o Canal Três e o Canal Dois, duas veias que transportavam as águas das chuvas desde o
centro da cidade até o mar. Estava de novo na altura da praia de onde dava para ver o
ônibus estacionado. Nenhum dos colegas estava à vista. Sentou-se na areia, abraçando
as pernas.
Dois garotões queimados de sol aproximavam-se com aquele passo
manemolente da eterna postura de caça à fêmea, de caça a qualquer fêmea. Para eles, a
meia distância, aquela jovem fêmea, com aquele corpo sensacional, quase nada coberto
pelo biquíni, parecia-lhes mais digna do que nenhuma para justificar os esforços de um
caçador. Mas, logo que ficaram mais próximos, a expressão da menina fez com que o
passo cedesse, então se transformando em passos incertos, passos de retirada.
Como numa fita de vídeo, quando se aperta a tecla que a faz voltar
aceleradamente, passavam enlouquecidos pela memória de Iara a tristeza, a desolação, a
solidão dos últimos meses, até o roldão enlouquecido em que tudo havia se transformado
na última semana, desde o jogo contra o Colégio Anhangüera.
"O que eu fiz? O que eu fiz, hein? Eu fiz tudo, tudo... Nada, de tudo o que
aconteceu, foi obra do acaso ou vontade de qualquer outra pessoa. Tudo, tudo é obra
minha... Mas que obra é essa? O que eu construí?"
O tempo do recreio na praia do Gonzaga chegava ao fim, sem que Iara tivesse
nem por um momento participado das brincadeiras junto com a turma. Cristina, uma das
reservas, tinha sido encarregada por dona Maria Helena de ficar de olho no relógio, para
garantir a volta de todos no horário estabelecido. Lá vinha ela, batendo palmas e
procurando tanger o desorganizado rebanho de rapazes e moças, que saía da água sem
parar de brincar, de se provocar, produzindo adrenalina para a disputa de logo mais.
Para Iara, parecia não haver mais nenhuma adrenalina armazenada para reagir
ao desaparecimento de Desmond. Todo seu estoque tinha sido gasto na última semana.
"Estoque de quê? Estoque de maldade?" Levantou-se lentamente e lentamente
andou até o ônibus.
"O que eu fiz, hein? Por que o Desmond desapareceu? Não estou entendendo
nada, eu não estou entendendo mais nada..."
A HORA DA VERDADE
Referências dos trechos originais de Otelo e Dom Casmurro recriados por Pedro
Bandeira
William Shakespeare, o autor de Otelo, nasceu em 1564, na pequena cidade de
Stratford-upon-Avon, perto de Londres, na Inglaterra, e morreu na mesma cidade, no dia
23 de abril de 1616. É um dos maiores autores de teatro da humanidade e suas peças
permanecem atuais até os dias de hoje, porque nelas o poeta inglês apresenta problemas
universais da alma humana, que nem o tempo e o progresso conseguem resolver. O
amor, o ciúme, a cobiça, a ambição, a inveja, a traição, a solidão, estão profundamente
discutidos em peças como Romeu e Julieta, Otelo, Hamlet, Macbeth, Júlio César e tantas
outras. Shakespeare utilizava-se de muitos temas já explorados anteriormente por outros
escritores, como fez nos famosos Romeu e Julieta e Hamlet. Se você quiser, procure nas
locadoras filmes de suas obras. Há ótimas filmagens de Hamlet, de Rei Lear, de Henrique
V, de Júlio César, de Macbeth e do romântico Romeu e Julieta. Há também uma versão
muito boa de Otelo, na qual Kenneth Branagh faz o papel de lago, enquanto Lawrence
Fishburne interpreta um ótimo Otelo.
1 Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca. (Dom Casmurro, cap.
XLV)
2 Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá a idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro,
como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-
me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos
ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo,
cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (Dom Casmurro, cap.
XXXII)
Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que se deixou
ficar quieta e muda... (Dom Casmurro, cap. XXXV)
Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu... (Dom Casmurro, cap. XXXVII)
4 É isto, vamos, é isto... Idéia só! idéia sem pernas! As outras pernas não
queriam correr nem andar. (Dom Casmurro, cap. XXXVI)
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Idéia só! idéia sem braços! Os meus
ficaram caídos e mortos. (Dom Casmurro, cap. XXXVI)
7 Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções
iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem
supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles
fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo,
outras de propósito, para desfazer o feito e refazê-lo.
Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a
sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando por mais que eu os
quisesse intermináveis (...) desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer
duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. (Dom
Casmurro, cap. XXXIII)
8 (...) como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando
os olhos para cima a fim de ver os meus. (...) Capitu fitoume uns olhos tão ternos, e a
posição os fazia tão súplices... (Dom Casmurro, cap. XLVI)
9 Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado,
que não pude ter toda a consciência dos meus atos: mas concluo que sim, porque ela
recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou
um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a
reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder
também, e, caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia
esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a
mão esquerda por baixo da cabeça dela; (...) fez um gesto inesperado, pousou a boca na
minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de
mistérios. (Dom Casmurro, cap. XXXVII)
10 Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
11 Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas não
escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu
perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços
com a ponta do lençol. (Dom Casmurro, cap. LXXV)
12 A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrálas bem,
até ver-lhe sair a vida com o sangue... (Dom Casmurro, cap. LXXV)
13 Capitu um dia notou a diferença [dos sonhos], dizendo que os dela eram mais
bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa
que sonhava... Fez-se cor de pitanga. (Dom Casmurro, cap. XII)
14 Já essa idéia só, como um veneno, me corrói as entranhas. É por isso que
nada, nada, acalmará minha alma, até o dia em que eu lhe dê o troco: é mulher por
mulher! A menos que eu consiga despertar-lhe dentro da alma o cancro do ciúme, de tal
modo que ele perca a razão. E se este pobre rafeiro de Veneza, — que eu açulo porque
parece rápido na caça, — seguir a pista, o nosso Miguel Cássio fica à minha mercê. Aí
farei a sua cama, muito bem feitinha, junto do Mouro. Tanto mais que temo que o tal de
Cássio anda com o olho em cima também do meu barrete de dormir. Em seguida, farei
que o próprio Mouro ainda me estime mais e me agradeça... precisamente porque vou
forçá-lo a fazer o papel de uma perfeita, consumadíssima cavalgadura, e lhe roubar paz e
tranqüilidade, até que fique inteiramente louco. Tudo está aqui, embora ainda confuso...
Mas o que é mau torna-se bom com o uso. (Otelo, 2- ato, cena I)
15 Pega-lhe na mão... hum, muito bem, muito bem... Anda, cochichalhe no
ouvido... Será com uma teia diáfana como essa que apanharei um moscardo do tamanho
desse Cássio... Aí... sorri para a tua bela... assim... Corteja-a bem, enquanto eu cá formo
o cortejo das tuas desgraças... Fazes bem... é assim mesmo... Mas se com tais manejos
perdes o teu posto, melhor te fora não lhe atirares tantos beijos com as mãos, como fazes
agora para te dares ares de casquilho! Que beijos, sim, senhor! Que soberba reverência!
É isso... Ó quê? Mais beijinhos com a ponta dos dedinhos! É pena que eles não te
possam servir de seringuinhas de cristel! (Otelo, 2e ato, cena I)
16 De nós mesmos depende sermos deste ou daquele feitio. O nosso corpo é
uma horta de que o nosso arbítrio é o hortelão. (Otelo, lato, cena III)
Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era
homem. (Dom Casmurro, cap. XXXI)
As horas da ausência, para quem ama, mostram-se mais enfadonhas e sete
vezes vinte e quatro horas mais longas do que as do mostrador do relógio. (Otelo, 3º ato,
cena IV)
A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe
deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. (Dom
Casmurro, cap. XXV)
20 (...) sabia bem que eu era amigo dela, e não seria capaz de fingir um
sentimento que não tivesse. (Dom Casmurro, cap. XLV)
21 Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os
dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos
bastavam ao primeiro efeito. (Dom Casmurro, cap. LXXXI)
Por sua fidelidade, respondo com a minha vida! (Otelo, 1º ato, cena III)
Abre os teus olhos, Mouro, e sê cauteloso: se ela enganou o pai, pode enganar o
esposo. (Otelo, 2ª ato, cena III)
(...) não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as
meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro
ofício, nem os cantos outra utilidade. (Dom Casmurro, cap. XII)
25 Enquanto eu, que tantas vezes, aos olhos do próprio Mouro, dei tanta prova
de mim, em Rodes, Chipre e outras terras de cristãos e de infiéis, eu cá fico a sotavento
desse perito de... cômputos! Pois é: Cássio, nos bons ventos, fica sendo seu Tenente. E
eu cá que bem me contente com ser apenas Alferes. Alferes? — Valha-me Deus! (Otelo,
1º ato, cena I)
26 Nem ele [Escobar] sabia só elogiar e pensar, sabia também calcular depressa
e bem. Era das cabeças aritméticas (...) Não se imagina a facilidade com que ele somava
ou multiplicava de cor. A divisão, que foi sempre uma das operações difíceis para mim,
era para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as
denominações dos algarismos. (...) A vocação era tal que o fazia amar os próprios sinais
das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais
conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto. (Dom Casmurro, cap. XCIV)
27 Nem todos neste mundo podem ser patrões; nem todos os patrões do mundo
devem ser bem servidos. (Otelo, 1º ato, cena I)
Hás de ver muito servidor submisso que, encantado com a própria servidão,
consome a sua vida como os asnos servem ao dono: a troco de forragem. Uma vez
velhos, dá-se-lhes a baixa. Chicote em tais honestos serviçais! Outros há que mascaram
as maneiras e a carantonha do devotamento e, simulando bem servir aos amos, servem
apenas ao seu próprio bem. Quanto mais bem fornidos a expensas dos patrões, mais lhes
fingem vassalagem. Dobram-se em reverência diante destes; mas é a si mesmos que
eles prestam culto. (Otelo, 1º ato, cena I)
29 Se tendes conhecimento disso e tudo foi feito com o vosso beneplácito, então
é certo que, há pouco, vos injuriamos temerária e impudentemente. (Otelo, 1º ato, cena I)
Agora, neste instante, agora mesmo, um velho carneiro negro está cobrindo a
vossa ovelhinha branca! (Otelo, Ia ato, cena I) O resultado é que vereis a vossa filha
coberta por um cavalo da Berberia. Quereis que os vossos netos relinchem para vos pedir
abênção? Agrada-vos uma parentela de corcéis e ginetes? (Otelo, is ato, cena I)
32 Sou quem voz vem dizer que a vossa filha e o Mouro neste momento estão
fazendo de animal de duas costas. (Otelo, l- ato, cena I)
E há quem queira ser pai! (Otelo, 1a Ato, cena I)
Duplo dever defronto aqui, meu pai. A vós vos devo vida e educação. Ambas me
fazem ver que sois aquele a quem devo respeito para sempre. Sempre a vós, como filha,
obedeci. Mas aqui está também o meu marido. E a mesma submissão perante vós a que
se sujeitou a minha mãe outrora e que ela sobrepôs à que seu pai devia, é a que ora, com
razão, julgo dever ao Mouro, meu esposo e meu senhor. (Otelo, 1a ato, cena III)
35 Aproxima-te, Mouro. Aqui te dou, de todo o coração, o que também de todo o
coração te negaria, se porventura já não fosse teu. (Otelo, Ia ato, cena III)
36 Já consumado o fato, o que convém é encará-lo da melhor maneira. (Otelo,
13 ato, cena in)
A muito homem matei, nos campos de batalha. Mas à minha consciência isso
repugna: matar premeditadamente, não! Falta-me a crueldade nos momentos em que a
devia ter. Nove ou dez vezes, estive a ponto de vará-lo aqui, abaixo das costelas. (...) Mas
ele tagarelava tanto, proferindo contra vós tantas cousas ofensivas e provocantes, que eu,
que não sou santo, tive dificuldade de conterme. (Otelo, Ia ato, cena II)
Otelo — O meu prazer iguala esta maravilhosa surpresa de te achar aqui à minha
espera! Abençoada alegria da minha alma! Se para mim agora as tempestades serão
seguidas de uma tal bonança, então rujam os ventos insofridos até que a morte acorde —
e as naus nos mares se levantem ao ápice das vagas tão altas como o Olimpo, e dessa
altura despenhem-se depois nos mais profundos abismos infernais! Morrer nesse
momento; era o supremo bem, pois tão feliz me sinto que temo de uma vez ter esgotado
todo o quinhão de bem-aventurança que o meu destino ignoto me tenha reservado!
Desdêmona — Deus há de permitir que o nosso amor e seus prazeres todos na
medida do tempo aumentem sempre. Otelo — Que assim seja, assim seja! ó delícias do
amor! Eu não sei exprimir o meu contentamento... aperta-me a garganta... é bom
demais... (beijando-a) Que isto... e mais isto... sejam para sempre a única dissonância
entre nós dois.
lago — (à parte) Como estais afinados! Mas deixai, que, ou não me chamo lago,
ou já vou afrouxar essas cravelhas e era uma vez a bela melodia! (Otelo, 2a ato, cena I)
Aos quinze anos, há até certa graça em ameaçar muito e não executar nada.
(Dom Casmurro, cap. XVIII)
(...) o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, hão
mister de estrume de porco. (Dom Casmurro, cap. XCII)
Fora de casa, são como uma pintura; no salão, parecem campainhas; na
cozinha, gatas selvagens; se santas, injuriam; demônios, quando injuriadas; no trabalho
doméstico, ociosas; diligentes e ativas... só na cama. (...) Levantam de manhã para os
ócios do lar; de noite deitam para trabalhar. (Otelo, 2- ato, cena I)
42 [A loira], bela, clara e sutil, usa o espírito e o apura em saber como usar a sua
formosura. Se é morena, mas se de espírito não manca, há de saber fazer com que a
achem muito branca. Bela e tola, não há. Se é bela, acha um parceiro que logo a ajudará
a achar um herdeiro. Feia e tola que seja, inda assim é capaz de fazer o que a mais
bonita e esperta faz. (Otelo, 2° ato, cena I)
Se a terra pudesse ser fecundada por lágrimas de mulher, de cada gota vertida
brotaria um crocodilo. (Otelo, 4a ato, cena I)
44 Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcíssimos; assim os definiu
José Dias, depois que ele saiu. (Dom Casmurro, cap. LXXI)
45Iago — Hum, isso não me agrada... Otelo — O que foi que disseste? lago —
Nada, senhor. Isto é... não sei bem o que disse. Otelo — Não foi o Cássio, que se
despediu de Desdêmona? lago — Cássio, meu senhor? Certamente que não. Não posso
crer que se esgueirasse, como um criminoso, só por vos ver chegar. Otelo — Acho que
foi. (Otelo, 3° ato, cena III)
46 Pois se passam a ser cometidos tais atos livremente e se livres ficam eles de
sanção, julgamento ou desagravo, é o Estado então que passa a ser escravo. (Otelo, 1a
ato, cena II)
47 Parece incrível que os homens metam pela boca adentro um inimigo que lhes
rouba a razão! Como somos capazes de nos transformarmos a nós mesmos em animais,
e isso prazerosamente, sob palmas, rindo, alegres, pulando! (Otelo, 2- ato, cena III)
48 Quero bem a Miguel Cássio e que não daria eu para livrá-lo dessa desgraça!
(Otelo, 2- ato, cena III)
49 Reputação! Reputação! Reputação! A minha está perdida! O que em mim era
imortal, lá se foi!
Resta-me apenas a parte animal. Minha reputação, lago, minha reputação!
(Otelo, 2- ato, cena III)
50 Um ferimento no corpo (...) dói mais que na reputação. (Otelo, 2º ato, cena III)
51 A reputação não passa de uma vã e falsa atribuição. Tanto éadquirida sem
merecimento, como perdida sem motivo. (Otelo, 2-ato, cena III)
52 Quem furta a minha bolsa me desfalca de um pouco de dinheiro.(...) Assim
como era meu, passa a ser de outro, após ter sido de mil outros. Mas o que me subtrai o
meu bom nome defrauda-me de um bem que a ele não enriquece e a mim me torna
totalmente pobre. (Otelo, 3º ato, cena III) "
53 Rico é o pobre a quem contenta o pouco que possui, que então passa a ser
muito. Mas a opulência é hibernai pobreza para o rico que vive no constante temor de
empobrecer. (Otelo, 3 ato, cena III)
54 Ó espírito invisível do vinho: se não tens nome com que te chamem, eu te
batizo demônio! (Otelo, 2- ato, cena III)
55 Um bom vinho é um bom gênio familiar, quando com ele se sabe lidar. (Otelo,
2a ato, cena III)
56 Nós podemos dizer que essas frágeis criaturas são nossas, isso sim. Mas que
os seus apetites são nossos, isso nunca! (Otelo, 3a ato, cena III)
57 Se o emblema da virtude é a alvura, eu asseguro, Senhor, que vosso genro é
mais branco que escuro. (Otelo, 13 ato, cena III)
58 As palavras só palavras são. Nunca ouvi dizer de um triste coração que pelo
ouvido viesse a ser curado. (Otelo, 1a ato, cena III)
59 Sentença que propõe consolo ao sofredor é fácil de seguir, quando é alheia a
dor. É duro ao que já está sob uma dor intensa ter de aturar a dois, ao seu mal e à
sentença. (Otelo, 1a ato, cena III)
60 O ciúme é um monstro que a si mesmo se gera e de si mesmo nasce. (Otelo,
3a ato, cena IV)
61 Melhor é ser traído cem mil vezes que suspeitar uma só vez que o somos!
(Otelo, 3a ato, cena III)
62 Nos seus lábios jamais achava os beijos dele! (Otelo, 3a ato, cena III)
63 O ciúme é um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto de
que se alimenta. (Otelo, 3a ato, cena III)
64 Roubado que não dá pela coisa furtada é que, afinal, não foi roubado em
nada. (Otelo, 3a ato, cena III)
65 (...) se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava
dentro da outra, como a fruta dentro da casca. (Dom Casmurro, cap. CXLVIII)
66 lago — (alto) Continua agarrando-te a Desdêmona, que ela há de te satisfazer
em tudo. (Baixo)
Ah! se fosse com a Branca, a coisa ia depressa! (alto) Nunca vi uma mulher tão
doida por um homem!
Cássio — Pobre coitada! Parece mesmo que está caída por mim. lago — (baixo)
Ela anda espalhando por aí que te vais casar com ela. (alto) É verdade?
Cássio — Eu, casar-me com ela? Com uma prostituta? Por favor, não faças tão
pouco do meu juízo!
Achas que sou doido? Ah! Ah! Ah! (...) São invenções daquela tola. Como me
quer, quer iludir-se a si própria, pensando que vou cair em semelhante asneira. Mas isso
é lá por conta dela. (...) Há pouco, ela esteve aqui. Persegue-me por toda parte. Outro dia,
conversava eu na praia com uns venezianos e nisso surge a toleirona. Lança-se-me ao
pescoço assim, palavra... E toca a pendurar-se em mim, a agarrar-me, choramingando e
puxando-me... ah! ah! ah! (...) Eu preciso é deixá-la. (...) É uma fuinha. E por sinal que
perfumada! (Otelo, 4 ato, cenaI)
67 Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram
oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. (Dom Casmurro, cap. L)
68 Se na balança da nossa vida não houvesse o prato da razão para equilibrar o
outro prato das paixões, os nossos humores e a baixeza dos nossos instintos nos
levariam às mais absurdas conseqüências. (Otelo, le ato, cena III)
69(...) não se navegam corações como os outros,mares deste mundo. (Dom
Casmurro, cap. XLIX)
Amor que começa violentamente tem desfecho correspondente. (Otelo, 1a ato,
cena III)
71 Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.
(Otelo, 1a ato, cena III)