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Capítulo 4

As Relações Internacionais
da União Europeia

O objetivo do capítulo é apresentar um estudo das relações internacionais da União


Europeia, com ênfase nas parcerias tradicionais do bloco, analisando seu conteúdo e
desenvolvimentos recentes. Na Seção 4.1, “Os Estados Unidos e a OTAN: Parceria,
Autonomia ou Dependência?”, são avaliadas as perspectivas das relações transatlânticas.
Em 4.2 o tema é “A Política Europeia de Vizinhança”, e em 4.3, “O Continente Africano”, são
apresentadas as dimensões econômicas e estratégicas das relações União Europeia-África,
com o desafio turco sendo abordado em 4.4, “A Turquia”. As complexas interações com
a Rússia, caracterizadas por tendências de cooperação e conflito, com importantes
transformações no pós-Guerra Fria são o tema de 4.5, “A Rússia”.

Historicamente, os temas de política externa, defesa e segurança são alguns dos


mais controversos do processo de integração europeu. Ao longo das primeiras décadas
da construção do bloco, isso levou a inúmeros avanços e recuos nos projetos, até a con-
solidação da União Europeia a partir dos anos 1990, quando objetivos mais ambiciosos
e novos mecanismos foram introduzidos neste campo de debate. Neste contexto, do
Tratado de Maastricht (1992) ao Tratado de Lisboa (2009), as relações internacionais
da União Europeia sofreram significativas transformações.
Desde a criação do Pilar II da Política Externa e Segurança Comum em Maas-
tricht, até o estabelecimento da Política Externa e de Segurança Comum e da Política
Comum de Segurança e Defesa (PESC/PCSD), somado ao cargo Alto Representante da
União para Negócios Estrangeiros e Política de Segurança e a estruturação do Serviço
Europeu de Ação Externa e do Comitê Militar, observou-se um adensamento dos es-
forços europeus no sentido de prover maior unidade a sua ação externa.
Esse adensamento permitiu prover “uma face” e “um interlocutor europeu” na
arena internacional, elevando as perspectivas de uma visão estratégica comum, per-
mitindo maior projeção de poder e protagonismo em arenas tradicionais do interesse
nacional do Estado como segurança e defesa. Todavia, esse protagonismo deteria
teor substancialmente diferente do norte-americano, focado no desenvolvimento do
poder brando e de atuações em áreas de ajuda econômica, estabilidade e promoção
da paz.
O papel da União Europeia como “poder civil global” seria reforçado por esta nova
via, que iria se agregar às já existentes posições comuns no setor econômico, ambiental
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e de direitos humanos. No âmbito das organizações internacionais governamentais,


a União Europeia ressalta a relevância do multilateralismo para a construção de
uma agenda internacional positiva de governança. Segundo Keukeleire e Bruninckx
(2011), isso reflete a prioridade do “multilateralismo efetivo” conforme definido pela
Comissão Europeia.
Em termos contemporâneos, a União Europeia tem se destacado pela defesa
do conceito de “responsabilidade de proteger” desenvolvido pelas Nações Unidas,
aplicando-o em suas ações missões globais e regionais. O conceito define a neces-
sidade de que situações de tragédia e calamidade humanitária, desrespeito aos direitos
humanos em geral sejam objeto de intervenção da comunidade internacional visando
a proteção de civis. Atuações como as europeias em missões de paz e reconstrução
nos Balcãs, no continente africano e seu apoio à intervenção na Líbia de 2011 são
alguns dos exemplos que se enquadram nestas situações (como analisado nos itens em
sequência). Essas missões possuem caráter civil e militar e ocorrem tanto no âmbito
das Nações Unidas, em cooperação com outros países, como de forma individual do
bloco, com agendas e iniciativas próprias.
Além disso, como visto no Capítulo 3, a política de alargamento da União Europeia
à Cortina de Ferro e a discussão de novas expansões na segunda década do século XXI
podem ser avaliadas como iniciativas de política externa. A evolução da Europa dos “6”
para a Europa dos “28” implica a construção de um modelo político, social e econômico
específico que, a despeito de suas limitações estratégicas e crises cíclicas, não pode
ser desconsiderado com um processo de transformação geopolítica e geoeconômica
de um continente que foi marcado pelas guerras.
A União Europeia também desenvolve importantes parcerias estratégicas com
­países emergentes e blocos econômicos. Dentre os países e blocos contemplados
com essas parcerias inserem-se as nações pertencentes aos BRICS (ver Capítulo 5), com
as quais a União Europeia procura reforçar laços bilaterais, assim como multilaterais,
estabelecendo estruturas de cooperação abrangentes políticas, sociais e econômicas,
assim como seu entorno regional.
Nesse âmbito, inserem-se os “Acordos de Parceria e Cooperação” (PCAs) na agenda
regional (Rússia, Leste Europeu, Sul do Cáucuso e Ásia Central) que, de acordo com
o sítio da União Europeia, foram essenciais para a elaboração da Política Europeia
de Vizinhança, abrindo o caminho para a ampliação e adensamento de parceiras. Na
arena global, devem ser destacados os termos de cooperação e acordos-quadro com
o Brasil e o Mercosul. No que se refere ao conjunto das parcerias estratégicas da
União Europeia em termos globais, Gratius indica que

As Parcerias Estratégicas podem ser divididas em três grupos: parceiros


históricos do Ocidente (Canadá, Japão e Estados Unidos), parceiros com
valores semelhantes (México e Coreia do Sul) e rivais em potencial (o fórum
dos BRICS). Em termos de poder, tamanho, interdependência econômica e
importantes dentre os 10 privilegiados da UE. As parcerias estratégicas es-
tabelecidas bilateralmente pela UE com Brasil, China, Rússia, Índia e África
do Sul são as mais complexas em termos de objetivos comuns, interesses e
estratégias globais. (GRATIUS, 2013, p. 148-149)
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Essa atuação “civil” não exclui, atualmente, operações militares de combate ao


terrorismo e a segurança cibernética (ou de combate à pirataria como a Ocean Shield),
mas demonstra o enfoque diferenciado que a Europa deseja imprimir em suas rela-
ções internacionais. Nesse âmbito, a integração é um recurso de poder e projeção
de influência, pois, como indica Laatikainen (2013, p. 478) “Em um panorama de
interdependência, a União Europeia pode tornar-se mais bem-sucedida no século XXI
porque já dispõe dos mecanismos para lidar com a interdependência.”1
Essa transformação, ainda, fez parte de um processo de consolidação de um modo
de vida ocidental em termos regionais e globais (tanto em parceria, como em desacordo
com os Estados Unidos), que fortaleceu o chamado “núcleo transatlântico” vis-à-vis o
arranjo soviético na Guerra Fria e em contraposição ao Oriente asiático, representado
por China e Japão como polos de poder, ao lado da Índia, África do Sul e Brasil, hoje
definidos como “emergentes” (que inclui também a Rússia).
Além das agendas de possível expansão, no âmbito continental, o estabelecimento
de relações mais próximas com os vizinhos não pertencentes ao bloco tem sido sig-
nificativamente discutido, via acordos bilaterais e no quadro mais amplo de políticas
específicas como a de Vizinhança. Em termos globais, a consolidação de parcerias
estratégicas com terceiros países e blocos avança como marco da estruturação de uma
ação mundial. Na arena multilateral, em negociações comerciais, políticas e sociais,
a União Europeia parece consolidar-se com uma posição única, buscando um diálogo
próprio nesses organismos, além de posições baseadas no poder brando.
Em 2012, a concessão do Prêmio Nobel da Paz à União Europeia pareceu validar
essas iniciativas, tornando-se simbólico dos avanços obtidos pelos Estados-membros
na construção da integração e de uma estrutura de paz e respeito aos valores mútuos
nas últimas décadas. Tais avanços servem também de inspiração para outras sociedades
que desejam construir espaços regionais similares, como indicam a consolidação de
uma imagem externa do bloco como ator internacional. Dessa forma,
o comitê norueguês do Nobel decidiu que o Prêmio Nobel da Paz de 2012 deve
ser atribuído à União Europeia (UE). A União e seus fundadores têm con-
tribuído a mais de seis décadas para a promoção da paz e da reconciliação,
da democracia e dos direitos humanos na Europa (...). O papel estabilizador
desempenhado pela UE ajudou a transformar a maior parte da Europa, de um
continente em guerra, para um continente de paz. O trabalho da UE representa
a “fraternidade entre as nações” (...).2

Entretanto, essa visão positiva esconde ainda diversas limitações da ação externa
da União Europeia, sejam relacionadas à crise econômica, como à interação com
os Estados Unidos e a OTAN no continente. Isso não significa afirmar que a União
Europeia não avançou em termos de política externa e de segurança, ou que seu papel

1. Tradução da autora.
2. Announcement. Nobel Peace Prize, 2102. Disponível em http://nobelpeaceprize.org/en_GB/laureates/
laureates-2012/announce-2012/. Acesso em 23 de agosto de 2013. Segundo informações da União Europeia,
o valor do prêmio foi destinado a projetos educacionais de crianças atingidas por conflitos. Disponível em
http://europa.eu/about-eu/basic-information/eu-nobel/. Acesso em 16 de junho de 2013.
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internacional seja irrelevante, mas sim destacar os constrangimentos que se impõem


à sua projeção de poder em determinados setores. Nesse sentido, compreende-se
projeção de poder como um conceito amplo que envolve mecanismos militares, sociais,
políticos, culturais, não exclusivo do campo estratégico.
Essa realidade se expressa de maneira complexa: afinal ainda que continue sendo
vista como modelo de integração a ser seguido, a União Europeia expõe deficiências
no campo de poder, e rachas entre suas nações, seja referente ao uso da força, como
em associação (ou conflito) com os norte-americanos. Além disso, permanecem
choques entre as políticas nacionais dos Estados e as comuns da União, nesta arena
estratégica, enquanto a unidade tende a predominar com mais frequência na visão
econômico-comercial, direitos humanos e meio ambiente.
Prevalece uma assimetria entre as arenas de atuação europeias no cenário global,
que reproduz dilemas conhecidos de sua história: o sucesso econômico nem sempre
se estende ao político-estratégico. Entretanto, neste cenário dual, o campo políti-
co-estratégico apresenta sinais de autonomia, derivados das pressões unilaterais dos
norte-americanos na era Bush filho (2001/2008), dos desafios globais gerados pelo
crescimento dos BRICS e do entorno continental que parece demandar, cada vez mais,
respostas europeias, para problemas europeus (e não só respostas “ocidentais” e/ou
“transatlânticas”). E, nesse sentido, o capítulo dará ênfase a estas iniciativas e respostas
europeias, e não às individuais de seus Estados-membros.

4.1 OS ESTADOS UNIDOS E A OTAN: PARCERIA, AUTONOMIA


OU DEPENDÊNCIA?3
Como visto ao longo dos capítulos anteriores, a construção da União Europeia não
pode ser descolada da trajetória das relações transatlânticas, isto é, entre os Estados
Unidos e a Europa Ocidental a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Nos capí-
tulos anteriores, desde a criação do bloco europeu em 1957, foram trazidas inúmeras
discussões sobre o peso norte-americano na evolução da integração, seja como sua
catalisadora, como fonte de contenção. A unidade ocidental, em termos políticos,
sociais e estratégicos, consolidou-se nesse período, tornando-se representativa de um
núcleo euro-americano para a condução das relações internacionais. No pós-Guerra
Fria, isso foi representativo das hipóteses do “Ocidente contra o resto”, e da premissa
da universalização do liberalismo político-econômico.4
Ao mesmo tempo, emergiram também tendências europeias de autonomia política
e valorativa, diante dos norte-americanos em temas bi e multilaterais. Na orientação da
política externa e de defesa do bloco, estas tendências espelham debates conhecidos

3. Com o auxílio de Marcela Franzoni, graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP). Mais especificamente, para a visão norte-americana do relacionamento ver “Os
Estados Unidos e o Século XXI” (PECEQUILO, 2013), especificamente o Capítulo 3 “O Eixo Europa-Ásia:
As Parcerias Tradicionais”. Nesse capítulo, a trajetória do relacionamento Europa-Estados Unidos é dividida
em três fases: parceria (1989/2000), divergências (2001/2004), acomodação (2005/2012).
4. Correspondentes, como analisado no Capítulo 2, às teses de Samuel Huntington de Choque das Civili-
zações e de Francis Fukuyama de fim da história.
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da integração, dividida entre uma vocação europeia e uma atlântica, que complementa
as demais oposições existentes sobre o alargamento e aprofundamento, o intergover-
namentalismo e a supranacionalidade.
Em resumo, a relação Estados Unidos-União Europeia permanece dual, oscilando
entre a parceria, a autonomia e a dependência, sintetizada na expressão de Todd (2002),
associação e dissociação entre os dois modelos ocidentais. Assim como Todd (2002),
Wallerstein (2006) e La Gorce (2006) expressam essa mesma dinâmica, relativizando a
possibilidade de um descolamento pleno entre os dois sistemas. Para Todd, isso resulta
da incapacidade europeia de escolher entre as alternativas, o que impede o bloco de
explorar outras vias.
Desta forma, o objetivo deste item é retomar algumas destas discussões a partir da
criação da União Europeia em 1992, assim como apontar algumas novas tendências
do intercâmbio nas arenas políticas, estratégicas, culturais e econômicas. Ainda que
se procure evitar o excesso de repetições de temas já vistos em capítulos anteriores,
é inevitável voltar a certos debates, principalmente no que se refere aos Balcãs, às
Guerras do Afeganistão e do Iraque, e a relação entre a OTAN e os esforços europeus
para a construção de uma política externa, de segurança e defesa comum.
Examinando esta evolução de temas, no que se refere à dimensão estratégica, o foco
das discussões permaneceu sobre a OTAN, englobando temas como sua permanência
no cenário pós-soviético e sua revisão de missão e alargamento. O tópico envolve
atuações de projeção de poder em operações de paz, intervenções bélicas regionais e
globais, assim como associações com os mecanismos de segurança e defesa comum
europeias em processo de construção.
Na década de 1990, a preservação da aliança atlântica, mesmo na ausência do
inimigo soviético no pós-1989, e a incorporação das nações do Leste na organização
foi consolidada. Para os Estados Unidos, isso permitiu a manutenção de sua presença
regional europeia, preservando a sua projeção de poder neste espaço geopolítico e
geoeconômico. Para a Europa Ocidental, significou tanto a parceria como a depen-
dência dos norte-americanos, como comprovado pelas crises dos Balcãs.5
Os anos 1990 foram de descongelamento da política balcânica, com a desmontagem
da antiga Iugoslávia por meio de dois conflitos sangrentos, a Guerra da Iugoslávia
(1992/1995) e a Guerra de Kosovo (1999), como visto nos capítulos anteriores. A des-
peito da entrada da Croácia na União Europeia em 2013, e da candidatura das demais
ex-nações da Iugoslávia à expansão, não se pode perder de vista o olhar crítico sobre
a região, que viveu há pouco mais de 20 anos tragédias humanitárias comparáveis às da
Segunda Guerra Mundial. A ocupação dos Balcãs pelo Ocidente representou o controle
de importante rota de passagem europeia, assim como de pressão sobre a Rússia (e de
sua aliança com a Sérvia).
Em retrospecto, a atuação da União Europeia nos Balcãs não pode ser descolada das
ações norte-americanas, em particular as militares e operações de paz e de estabilização
posteriores. Especificamente, deve-se mencionar no âmbito das Nações Unidas as
seguintes missões:6 a UNPROFOR (United Nations Protection Force, 1992/1995), a

5. Em escala global, como visto no Capítulo 2, a Europa Ocidental apoiou a Guerra do Iraque (1990/1991).
6. Optou-se por deixar os nomes das missões em inglês para preservar o seu sentido original.
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IFOR (International Impementation Force, 1995/1996), a UNCRO (United Nations


Confidence Restauration, 1995/1996), a UNPREDEP (United Nations Preventive
Deployment Force, 1995) e a UNMOP (United Nations Mission of Observers in
Prevlaka, 1996/2006). Atualmente, encontra-se em andamento a UNMIK (United
Nations Interim Administration Mission in Kosovo) iniciada em Kosovo no ano de
1999. A UNMIK tem como objetivo auxiliar a construção do Estado de Kosovo,
atualmente reconhecido pelos Estados Unidos e algumas nações europeias, apesar
da forte oposição da Rússia à constituição desse Estado em parte do território sérvio.
No âmbito da OTAN, foram estabelecidas a SFOR (Stabilization Force 1996/2004)
e a KFOR (Kosovo Force, estabelecida em 1999 e em andamento, com o objetivo
de preparar as forças autônomas kosovares para tarefas de polícia). Também nesse
quadro de cooperação OTAN/UE nos Balcãs destaca-se a Operação Concórdia na
Antiga República Iugoslava da Macedônia encerrada em 2003 (e substituída pela
Operação Proxima, da União Europeia, além da EUPAT, European Policy Advisory
Team). Essa Operação foi a primeira no âmbito do acordo Berlim Mais entre a União
Europeia e a OTAN, de compartilhamento de instrumentos militares, para auxílio nas
ações da União. Deve-se destacar que esses esforços conjuntos passaram a compor
a “Abordagem Conjugada para os Balcãs OTAN/UE”. A abordagem tem como
objetivo prover assistência às nações dos Balcãs em termos civis e militares, assim
como para a sua transição política, econômica e estratégica em andamento.
No que se refere a missões individuais nos Balcãs, destacam-se: a missão militar
Althea e a missão civil EUPM (European Union Police Mission, encerrada em 2011),
na Bósnia-Herzegovina, conduzida pela EUFOR7 (European Forces) que tem caráter
estabilizador e de auxílio para a consolidação do país ainda sofrendo os efeitos do
pós-guerra e a missão civil EULEX (European Union Rule of Law Mission), estabe-
lecida em 2008, que tem como objetivo oficial o auxílio jurídico à transição kosovar
e sua constituição como Estados dentro da regra da lei. No âmbito europeu, esses
esforços encontram-se no âmbito de uma perspectiva estratégica mais abrangente de
estabilização política econômica (Processo de Estabilização e Associação da União
Europeia) da região, visto que os países que emergiram a partir da ex-Iugoslávia são
Estados candidatos ou candidatos potenciais ao bloco.
Além dessas questões referentes aos Balcãs, a partir de 1999, o alargamento da
OTAN imprimiu um componente eurasiano neste quadro, que, a partir de 2001, es-
tendeu-se ainda mais à Ásia Central, vide a operação militar no Afeganistão detonada
pela GWT de Bush filho. Esse processo também foi acompanhado pelos comandos
militares norte-americanos na Ásia Central (USCENTCOM), e da Guerra do Iraque
(2003/2011). O estrangulamento da ex-União Soviética e a ocupação do vácuo de
poder centro-asiático gerado pelo desengajamento de Moscou aliaram-se a avanços
econômico-comerciais das companhias energéticas neste espaço.
Tal avanço é definido como “Diplomacia dos Dutos”, iniciativa norte-americana
e europeia que visa a penetração da antiga zona de influência soviética na Ásia Cen-
tral, por meio de acordos de exploração conjunta de recursos energéticos como pe-

7. Para a listagem das missões de paz, civis e militares da União Europeia ver http://eeas.europa.eu/csdp/
missions-and-operations/index_en.htm. Acesso em 30 de julho de 2013.
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tróleo e gás com os novos Estados independentes pós-URSS (como o Azerbaijão).


Adicionalmente, visa garantir um acesso facilitado a recursos energéticos, hoje também
almejados pela China e a Índia (isto é, a diplomacia dos dutos é uma contenção “tripla”,
da Rússia como fornecedora e da China e da Índia como consumidoras, ver (Amineh
e Houwling, 2005). No caso, essa diplomacia também é definida como “Grande
Jogo II”, pois reproduz as disputas do século XIX entre as nações europeias (França
e Grã-Bretanha) e a então Rússia imperial pelo controle da Ásia Central, que ficou
conhecida como “Grande Jogo”.
A essa exploração conjunta soma-se a construção de rotas de passagem, oleodutos e
gasodutos, alternativos ao sistema russo, quebrando a dependência europeia desse país
(e também o quase monopólio russo no setor). O objetivo é garantir o fornecimento
direto dos recursos, sem passar pela Rússia (ver 4.5), o que a enfraquece política
e economicamente. A diplomacia dos dutos prevê rotas europeias alternativas de
acesso aos recursos no Mar do Norte (Noruega) já explorados e em novas regiões
pós-alargamento como as nações bálticas e no Leste Europeu, assim como no Norte
da África. Esses corredores são denominados pela União Europeia, respectivamente,
como “Corredor Norte-Ocidental da Noruega”, “Corredor Sul-Ocidente da Argélia”,
enquanto as conexões com a Rússia “Corredor Norte-Leste da Rússia”.
As Guerras do Afeganistão e do Iraque são o componente militar do processo.
Porém, como já discutido no Capítulo 3, a Guerra do Iraque, que levou à destituição
de Saddam Hussein do poder, diferente de 1991, não foi apoiada por diversas nações
da União Europeia. O “racha” incentivou a elaboração de uma estratégia da União
Europeia no campo externo, a ESE, como visto, e que tem sido base das discussões
da PCSD desde então (incluindo seus avanços e suas limitações)
Na oportunidade, autores como Todd (2002) chegaram a sugerir que a União
Europeia tinha a chance de dissociar-se dos Estados Unidos com a consolidação da
aliança com a Rússia, com base no Eixo da Paz Paris-Berlim-Moscou (e, paralelamente,
pressionar a Grã-Bretanha, que sempre “trabalhara contra” o aprofundamento da União
Europeia). Todd acreditava que o eixo poderia servir como um embrião de uma parceria
estratégica com a Rússia sustentada em trocas comerciais (energia russa e tecnologia
europeia seriam os principais vetores da relação bilateral) e em fatores estratégicos,
com a Rússia auxiliando a Europa na constituição de sua autonomia no setor.
Esse segundo elemento, o estratégico, revelou-se o mais frágil na construção desta
hipótese, visto que nem Rússia e nem Europa conseguiram aproveitar o momento
para a construção de um sistema de confiança e eliminação de tensões mútuas, que
se focam na expansão da OTAN e nas críticas ocidentais ao regime russo. Apesar da
intensificação do comércio nos últimos anos (principalmente pelo consumo europeu de
recursos energéticos russos), essa desconfiança política permanece elevada (ver 4.5).
Com isso, não houve fortalecimento de laços de forma mais abrangente, e que também
foi interrompido pelo fim do clima negativo entre os dois lados do atlântico.
No segundo mandato de Bush filho, a partir de janeiro de 2005, a substituição de
Powell por Condolleeza Rice no Departamento de Estado trouxe um novo padrão diplo-
mático ao governo republicano. A despeito de ter apoiado as ações neoconservadoras
como Assessora de Segurança Nacional, cargo que ocupou no primeiro mandato de
Bush filho, Rice promoveu a reconciliação dos Estados Unidos com seus principais
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aliados. A defesa do multilateralismo, o abandono da agressividade, a adesão à di-


plomacia transformacional (de mudança via pacífica e não militar), e o reconhecimento
das demais potências globais (das tradicionais às emergentes) permitiu que fossem
aparadas arestas. Ou seja, não se consolidou o divórcio transatlântico. Dessa forma,
o relacionamento voltou a transcorrer em ritmo “normal” entre 2005 a 2008. E, no
caso, a partir de 2007/2008, ambos, Estados Unidos e União Europeia, entraram em
processo de crise econômica.
Em 2008, a possibilidade de ascensão de Barack Obama ao poder imprimiu um
elemento diferenciado nas relações Estados Unidos-Europa. Ainda que a reconciliação
com Bush filho já tivesse sido realizada a partir do segundo mandato e da relativização
do unilateralismo norte-americano, a perspectiva de uma nova administração de caráter,
teoricamente, mais cooperativo era vista como uma oportunidade de aumentar a
visibilidade europeia (lembrando que o racha não impediu acordos de fortalecimento
da associação OTAN/UE como visto).
Tal visibilidade surgia como essencial devido à crise econômica em andamento
no bloco, e os questionamentos associados ao Tratado Constitucional e o Tratado
de Lisboa. Nesse contexto, foi apresentada “Uma Carta de Bruxelas ao Próximo
Presidente dos Estados Unidos da América” pelo presidente da Comissão Europeia
João Barroso, no qual se destaca o “papel civil europeu” e sua relevância como ator
global. Adicionalmente, a questão era dupla: chamar a atenção dos Estados Unidos,
mas também reafirmar a posição europeia nas relações internacionais diante da ex-
pansão dos emergentes. Em trecho já bastante conhecido desta carta afirma-se que
é com a percepção de nossa profunda interdependência que decidi escrever
uma carta para o próximo presidente dos EUA. Uma carta que explica quão
radicalmente diferente a Europa está hoje (...) a UE é um ator global (...) Isso
se deve ao nosso peso na economia mundial, no comércio, nas finanças globais,
assim como nosso papel em organizações internacionais, na administração
da segurança mundial e na ajuda ao desenvolvimento (...) Nestes tempos de
incerteza, a UE precisa dos EUA e, sim, os EUA precisam da UE mais do que
nunca (...) O impacto estratégico de nossa parceria, tão positivo no passado,
começará a se dissipar caso não tenhamos sucesso em complementá-la com
novas políticas de engajamento que atraiam o mundo na busca de renova-
das parcerias e estratégias multilaterais efetivas (...) Com isto em mente, Sr.
Presidente, acho que o senhor deve concordar que existirão muitos arquivos
esperando em sua mesa quando chegar à Casa Branca, mas aquele marcado
“Relações com a UE” merece ser deixado mais próximo (...) Em minha visão,
chegou a hora de se começar a pensar em uma “Agenda Atlântica para a
Globalização”. (BARROSO, 2008)

Essa “Agenda Atlântica para a Globalização” é apenas uma reafirmação da tradi-


cional parceria que, nos dois mandatos de Barack Obama (2009 em diante), manteve
seus padrões estratégicos e econômicos. O principal ponto de divergência entre os
Estados Unidos e a União Europeia (ou pelo menos parte dela, como visto), a Guerra
do Iraque, foi encerrada por Obama em 2011. Para 2014 prevê-se o encerramento da
Guerra do Afeganistão, amparada pelas tropas da OTAN.
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As operações no Afeganistão são conduzidas pela ISAF (International Security


Assistance Force),8 da qual participam, por meio de envio de tropas, os membros da
OTAN e nações aliadas, que apoiaram esta operação como Austrália, Nova Zelândia,
Azerbaijão, dentre outros. Ainda que os efetivos majoritariamente sejam norte-america-
nos (cerca de 60.000 soldados de 87.000 mil), a União Europeia tem atuado diretamente
em diversas frentes no país: como contribuinte de fundos multilaterais de contribuição
para a reconstrução do Afeganistão, com o envio de soldados e com uma missão de
auxílio patrocinada pelo bloco, a EUPOL Afghanistan (EU Police Mission in Afghanis-
tan). Estabelecida em 2007, e em andamento, a EUPOL auxilia no preparo das forças
policiais afegãs para a futura retirada das tropas estrangeiras, apoio ao governo afegão
na condução da política local e o cumprimento da lei.
Missão similar vem sendo desenvolvida no Iraque desde 2011 pela EUJUSTLEX
(European Union Integrated Rule of Law Mission for Iraq). Apesar da oposição à
Guerra do Iraque no período inicial, a partir de 2005, como visto, a reaproximação
promovida por Rice levou à diminuição de conflitos. Com isso, a União Europeia
passou a atuar de forma mais direta na região, incluindo a exploração de petróleo,
em 2011, com o fim da guerra novas atuações vêm sendo desenvolvidas como esta
da EUJUSTLEX. Como no Afeganistão e em Kosovo, a missão europeia é de caráter
civil com foco na transição do sistema político do Iraque, com auxílio no setor jurídico
(elaboração, aplicação e julgamento) visando o fortalecimento da autonomia do país
e de seu regime democrático no médio e longo prazo.9
Por fim, no campo estratégico-militar, a relação União Europeia-Estados Unidos/
OTAN teve mais um episódio bélico em 2011, com a intervenção na Líbia, realizada
com o aval das Nações Unidas. A deposição do General Muammar Khadaffi do poder
ocorreu com base na “responsabilidade de proteger” os civis líbios, iniciando-se, depois
da queda, um lento (e violento) processo de transição no país. As transformações na
Líbia foram relacionadas aos eventos da Primavera Árabe.
Na dimensão econômico-comercial, apenas em 2012 encontra-se uma movimenta-
ção um pouco mais diferenciada: o lançamento da “Parceria Transatlântica em Comér-
cio e Investimento”, visando solidificar a parceria econômica entre os Estados Unidos
e a União Europeia. No contexto da crise econômica das principais economias do
Ocidente, a (TPPI) surge como uma forma de dinamizar as economias norte-americana
e europeia e para sinalizar às nações emergentes, em particular a China, que o núcleo
atlântico mantém-se sólido. Com isso, o TPPI oferece um elemento de contenção a
este avanço da competição internacional, como política e estrategicamente delimita
espaços de atuação mais claros para os competidores por mercados globais.
Na arena multilateral, adicionalmente, o TPPI coloca em xeque as negociações
multilaterais da Organização Mundial de Comércio, especificamente a Rodada Doha
iniciada em 2001. A despeito de ambos os lados negarem que o arranjo seja excludente
a estas negociações, desde a ascensão das coalizões de emergentes como o G20

8. Disponível em http://www.isaf.nato.int/. Acesso em 30 de julho de 2013.


9. A União Europeia, ao lado dos Estados Unidos, as Nações Unidas e a Rússia compõem o Quarteto de
Madri, para as negociações de paz do Oriente Médio. Nesta região, também são realizadas operações e
missões do bloco, analisadas em 4.2.
118 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

comercial e o aumento de contenciosos com estas nações, estando aí incluído o Brasil


(como será analisado mais adiante), existem movimentações no sentido de “trocar” o
multi pelo bilateralismo.
Dessa forma, as negociações bilaterais, principalmente de zonas de livre comércio
que aprofundem relações de interdependência já existentes (e não envolvam grandes
concessões dos países desenvolvidos) têm sido a estratégia preferencial nos últimos
anos. Pode-se sugerir que mais do que complementar as negociações da OMC, o
arranjo, caso bem-sucedido, colocará pressões sobre esta dinâmica multilateral, como
fortalecerá a aliança negociadora entre os Estados Unidos e a União Europeia.
Para os Estados Unidos, a abertura das conversações do TPPI em 2011 é um
pilar adicional deste processo de contenção dos avanços da China (e demais BRICS)
no sistema internacional. Na Ásia, a iniciativa correspondente ao TPPI é a Parceria
Transpacífica (TPP), que envolve ampla agenda comercial e estratégica (incluindo o
reposicionamento de tropas estadunidenses na região do Pacífico). Basicamente, para
os Estados Unidos, definem-se como prioridades do TPPI,
a maior abertura dos mercados europeus, aumentando os US$ 458 bilhões em
bens e serviços privados que os Estados Unidos exportaram para a UE em 2012,
nosso maior mercado de exportação; Fortalecer os investimentos baseados em
regras (...); Os Estados Unidos e a UE já detêm um total aproximado de quase
US$ 3.7 trilhões de investimento em suas economias mútuas (dados de 2011);
Eliminar todas as tarifas em comércio; Enfrentar barreiras não tarifárias
custosas “atrás das fronteiras” que impedem o fluxo de bens, incluindo bens
agrícolas; Melhorar o acesso de mercado no comércio de serviços; Reduzir de
forma significativa as diferenças de custo em regulamentações e padrões para
promover maior compatibilização, transparência e cooperação, enquanto são
mantidos altos níveis de saúde, segurança e proteção ambiental; Desenvolver
regras, princípios e novos modos de cooperação em questões de preocupação
global, incluindo a propriedade individual e disciplinas de mercado relativas
a empreendimentos estatais e a localização de barreiras discriminatórias ao
comércio; Promover a competitividade global de negócios de pequeno e médio
porte.10

Para a União Europeia, a definição de prioridades é a mesma, ressaltando a im-


portância da eliminação das barreiras comerciais à entrada de produtos europeus no
mercado norte-americano, incluindo o setor agrícola. Além disso, ressalta o incremento
da competitividade mútua e a construção de uma estrutura mais sólida para avançar
parceria já tão relevante. Segundo a Comissão Europeia,
a decisão de iniciar negociações derivou, em grande parte, da continuidade da
crise econômica e do travamento das negociações multilaterais de comércio na
Organização Mundial de Comércio – a chamada Agenda de Desenvolvimento
Doha. Adicionalmente, a reforma da Política Agrícola da UE e os altos preços

10. Disponível em TPPI Fact Sheet, http://www.ustr.gov/about-us/press-office/fact-sheets/2013/june/wh-ttip.


Acesso em 23 de agosto de 2013.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 119

das commodities significam que ambos os lados estão preparados para discutir
a agricultura e a negociar a abertura de mercados. Um acordo de comércio e
investimento entre as duas maiores economias do mundo representa a opor-
tunidade para aumentar o crescimento e os empregos em ambos os lados do
Atlântico (...) Embora as tarifas entre a UE e os EUA já sejam baixas (uma
média de 4%), o tamanho combinado das economias (...) e o comércio entre
elas significa que o desaparecimento das tarifas será positivo para os empregos
e o crescimento. A área nas quais estas negociações podem significar ganhos
concretos para os negócios, criar empregos e trazer preços melhores aos con-
sumidores e pela eliminação de regras e regulamentações desnecessárias – as
chamadas barreiras não tarifárias. (…)11

Ou seja, existem espaços para que se maximizem as oportunidades mútuas, pois,


mesmo na atual situação, quando a eurozona está se recuperando da crise
econômica, o comércio com a Europa pode oferecer enormes possibilidades
para nosso parceiros norte-americanos. A EU é a maior economia do mundo:
seus 500 milhões de cidadãos possuem uma renda per capita média de €25,000.
Isso também significa que a UE é o maior mercado do mundo. É o maior
importador de bens e serviços, tem a maior carteira de investimentos no exterior
e é a maior receptora de investimentos de firmas estrangeiras. A UE é a maior
investidora nos EUA (em 2011), o segundo maior destino de exportação dos
bens norte-americanos (em 2012) e o maior Mercado para a exportação de
bens de serviço norte-americanos (em 2010).12

Apesar desses posicionamentos e declarações, e do início das negociações secretas


em 2013 (justificadas pela necessidade da confidencialidade diplomática em assuntos
sensíveis, mas, que a cada decisão tomada, será informada à população europeia),
deve-se lembrar que esta não é a primeira tentativa de estabelecer uma parceria similar
entre os Estados Unidos e a União Europeia. De 1991 a 1994, simultâneas às negocia-
ções do Acordo de Livre Comércio da América do Norte entre os Estados Unidos, o
Canadá e o México (NAFTA) também foram conduzidas conversações sobre a pos-
sibilidade de constituição de uma Área de Livre Comércio Transatlântica (TAFTA).
Depois que o NAFTA entrou em vigor, as conversações sobre o TAFTA esvazia-
ram-se em pouco tempo, sem que isso tenha quebrado as fortes relações econômico-co-
merciais entre os Estados Unidos e as nações europeias. Como citado, as alianças nas
negociações multilaterais dos organismos comerciais e financeiros continuaram sendo
construídas, apesar de eventuais conflitos pontuais de interesse, formando uma frente
de países desenvolvidos do Norte contra o Sul. Assim, essa frente pode ser percebida
no âmbito da OMC e do G20 financeiro.
Independente do resultado do TPPI, dificilmente serão observadas quebras neste
campo. Igualmente, não devem ocorrer quebra nestes setores por conta das divergências

11. Tradução da autora. “In focus - TPPI”. Disponível em http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/


questions-and-answers/. Acesso em 23 de agosto de 2013.
12. Tradução da Autora. Disponível em http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/questions-and-
answers/. Acesso em 23 de agosto de 2013.
120 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

nas arenas de direitos humanos e meio ambiente, nas quais a União Europeia sempre
procurou diferenciar-se dos Estados Unidos como um bloco de vanguarda. Como citado,
esse “vanguardismo” é parte essencial da imagem da União como poder civil global, que
procura colocar maior relevância nestes temas do que nos estratégicos, defendendo a
necessidade de uma reavaliação de posturas da parte norte-americana (voltando, portanto,
à oposição entre um mundo kantiano e idealista e a realidade hobbesiana realista).
Na arena estratégica tendem a se repetir as tensões tradicionais entre a autonomia
e a dependência do bloco diante dos Estados Unidos, tanto da parte europeia quanto
norte-americana. Nesse campo, os europeus encontram-se, como visto ao longo deste e dos
demais capítulos, divididos: enquanto os defensores da linha “atlântica” mantêm-se como
defensores da presença continental dos Estados Unidos (principalmente o Reino Unido e os
novos membros da OTAN), os europeístas defendem a diminuição dessa dependência es-
tratégica e expressam críticas ao unilateralismo norte-americano. Mas, mesmo nesta arena,
existe uma outra divisão: os que defendem o desenvolvimento de mecanismos próprios de
defesa que permitam este descolamento Estados Unidos/OTAN – União Europeia, e os que
advogam uma ação de cunho estritamente pacifista europeia nas relações internacionais.
Por sua vez, do lado norte-americano, continuam sendo expressas insatisfações com
relação à ausência de projeção de poder europeia regional e global. Para analistas como
Brzezinski (2012), essa inércia estratégica tende a tornar a União Europeia um ator
irrelevante nas relações internacionais e como parceiro dos Estados Unidos. Regional-
mente, para o autor, isso implica custos político-econômicos para os norte-americanos
com a OTAN e, globalmente, ônus também estratégicos à medida que enfraquece a
capacidade ocidental de conter a ascensão das nações asiáticas. Segundo Brzezinski
(2012), no cenário contemporâneo, o ocidente deve ser compreendido por uma pers-
pectiva expandida, que inclua, além dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, a
Turquia e a Rússia. A não inclusão de ambos, em sua visão, nas estruturas europeias
(principalmente a da Turquia, membro da OTAN desde a década de 1950), somente
fragiliza estas perspectivas e demonstra a falta de visão de longo prazo europeia.
A tendência, em meio a estas críticas e reticências de ambos os lados, entretanto, é
a da continuidade da acomodação, alternada com alguns momentos de “divórcio” que
não devem ser exacerbados como em 2002/2003. Em síntese, o intercâmbio entre a
União Europeia e os Estados Unidos mantém-se como um dos mais sólidos das relações
internacionais contemporâneas, sustentado não só na dependência estratégica europeia
dos norte-americanos, mas também em um sistema de valores e interesses comuns na
política e na economia, representativas do “Ocidente”. E de um “Ocidente” que se sente
ameaçado pela ascensão do “resto”, seja em seu entorno próximo, como na arena global.

4.2 A POLÍTICA EUROPEIA DE VIZINHANÇA13


A ampliação das fronteiras da União Europeia, como analisado no Capítulo 3, pro-
moveu uma redefinição dos limites do bloco e o seu deslocamento para as zonas orientais
europeias, trazendo novas fontes de pressão e desafios para os Estados-membros.

13. Com o auxílio de Clarissa Forner, graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP).
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 121

As relações com a Rússia, as antigas repúblicas soviéticas, da Europa à Ásia Central,


inserem-se neste quadro de desaparecimento dos limites físicos (e simbólicos) da antiga
Cortina de Ferro. Ainda que permaneçam “fora” da Europa, a proximidade física e
contígua da região Europa-Ásia (Eurásia) torna estas localidades vizinhas do bloco, per-
tencentes a sua agenda “do Leste”.14
Ocorre, do ponto de vista geopolítico e geoeconômico, um alargamento das relações
internacionais na região próxima, que se somou aos desafios já presentes na agenda
externa da União Europeia. Tais desafios correspondem, igualmente, à área dos Balcãs
(na qual se inserem Albânia, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Antiga República Iugos-
lava da Macedônia, Kosovo, Montenegro e Sérvia) e à Turquia (que solicitou sua
entrada em 1987, com a abertura de negociações em 2005 após ser aceita candidata
em 1999), nas quais se encontram países candidatos ao bloco – Turquia, Montenegro,
Sérvia, Antiga República Iugoslava da Macedônia – e candidatos potenciais – Albânia,
Bósnia-Herzegovina e Kosovo. A Islândia é outra nação candidata ao alargamento
(negociações iniciadas em 2010), enquanto a Croácia tornou-se o primeiro membro
balcânico da União em Julho de 2013.
Estendem-se também aos desafios africanos e mediterrâneos, assim como aos do
Oriente Médio, que englobam zonas de antigas colônias europeias. Nessas zonas, a
partir dos processos de independência afro-asiáticos dos anos 1950 e 1960 padrões
diferenciados de relacionamento e influência foram estruturados, por meio de acordos
de livre comércio e cooperação bilateral. Essa agenda ao “Sul” da União Europeia é
ainda composta de elementos sociais e culturais, que envolvem temas sociais, es-
tratégicos e culturais, relacionados a movimentos migratórios e de regimes políticos.
Dentre as diversas iniciativas europeias que se inserem nas relações com seu
entorno, algumas já possuem desenvolvimentos prévios como os intercâmbios com o
continente africano, o Mediterrâneo, os Balcãs e a Turquia. A partir das discussões do
Tratado Constitucional (2004) e o Tratado de Lisboa (2009) existiram atualizações e
desenvolvimentos renovados nestes processos, com destaque para a Política Europeia
de Vizinhança e seus acordos complementares, analisados na sequência. No caso dos
Balcãs, apesar do forte caráter regional aplicado a estas relações, e a ações individuais
da União Europeia neste entorno, existe significativa dependência dos Estados Unidos/
OTAN no tema como visto.
As origens da Política Europeia de Vizinhança remetem aos Acordos de Parceria
e Cooperação (PCAs) iniciados na década de 1990 que visavam o estabelecimento
de um arcabouço institucionalizado de cooperação da União Europeia com a Rússia,
o Leste Europeu o Sul do Cáucaso e Ásia Central, tendo como membros: Armênia,
Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Rússia, Ucrânia, Uzbequistão e
Tadjiquistão. Tais nações e regiões são estratégicas em diversos aspectos: desde a
importância de sua estabilidade política e econômica, até seu papel como mercados
para o comércio europeu, como pela sua atuação no mercado de energia (petróleo e
gás), como fornecedores e rotas de passagem de oleodutos e gasodutos.

14. Por opção política, como já discutido, Noruega, Suíça, Andorra, Mônaco, San Marino e Lichenstein são
outras nações “fora” da União Europeia. O Vaticano também não é parte da União.
122 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

No caso do Leste Europeu, os países foram incorporados diretamente à União


Europeia como visto, enquanto os demais se mantiveram como não membros, mas
nações próximas e relevantes para o interesse europeu. A iniciativa da PEV foi lançada
em 2004 tendo como objetivo reajustar a política externa da União Europeia a suas
novas fronteiras pós-Tratado de Nice (2003). A Europa dos “25” da oportunidade
representava um salto qualitativo no continente, eliminando barreiras internas aos
membros do bloco. Todavia, a inclusão desses novos membros mudava a lógica (e
posição geográfica) das fronteiras europeias tanto ao Leste quanto ao Sul. Da Rússia
às antigas repúblicas soviéticas até a Ásia Central pelo Leste e, ao Sul, as realidades
africanas/mediterrâneas, associadas ao Oriente Médio, o cenário geopolítico encon-
trava-se em mutação, demandando posicionamentos diferenciados da União Europeia.
A PEV, com isso, buscava realizar esse ajuste “fronteiriço” como atualizar as
parcerias já existentes, tendo como foco um escopo limitado de países (16 no total)
avaliados como os “vizinhos mais próximos da União Europeia”. Em resumo:
A Política Europeia de Vizinhança (PEV) foi desenvolvida em 2004 como o ob-
jetivo de prevenir o surgimento de novas linhas divisórias entre a UE ampliada
e os seus vizinhos, e, pelo contrário, fortalecer a prosperidade, a estabilidade
e a segurança de todos. Ela é baseada nos valores da democracia, da regra da
lei, do respeito aos direitos humanos. A estrutura da PEV é proposta para 16
dos vizinhos mais próximos da UE – Argélia, Armênia, Azerbaijão, Belarus,
Egito, Geórgia, Israel, Jordânia, Líbano, Líbia, Moldávia, Marrocos, Palestina,
Síria, Tunísia e Ucrânia. A PEV é central na política bilateral entre a UE e cada
país parceiro. Ela é enriquecida e complementada por iniciativas regionais e
multilaterais de cooperação: a Parceria do Leste (lançada em Praga em Maio
de 2009), a Parceria Euro-Mediterrânea (EUROMED, anteriormente conhecida
como Processo de Barcelona e relançada em Paris em Julho de 2008) e a
Sinergia do Mar Negro (lançada em Kiev em fevereiro de 2008). (ENP, s/a, s/p)15

Estes objetivos foram revisados e complementados em 2011, reafirmando o com-


promisso europeu com a agenda de cooperação a despeito da crise econômica. Para
muitos Estados-membros e parte da sociedade, que hoje questiona o “ideal Europa”,
as iniciativas externas de ajuda da União têm colocado peso adicional sobre as nações,
sem que exista respaldo similar de política intrabloco. Nesse sentido, não se questionam
somente as políticas de ajuda, mas também as ações europeias no Afeganistão. En-
tretanto, as prioridades da PEV foram mantidas, como estendidas, assim considera-se
que estes esforços devem
(…) intensificar o foco na promoção de democracias profundas e sustentáveis,
acompanhada pelo desenvolvimento econômico, inclusive. Uma democracia
profunda e sustentável supõe, particularmente, eleições justas e livres, liberdade
de expressão, de assembleia e associação, independência jurídica, luta contra a
corrupção e o controle democrático das forças armadas. A UE também destaca

15. Tradução da autora. Disponível em http://eeas.europa.eu/enp/about-us/index_en.htm. Acesso em 30


de julho de 2013.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 123

o papel da sociedade civil para a construção desta democracia profunda e sus-


tentável. A UE apresentou o princípio do “mais por mais”, segundo o qual a UE
tem desenvolvido parcerias fortalecidas com aqueles vizinhos que apresentam
maiores progressos em direção à reforma democrática.16

Essa revisão, adicionalmente, responde aos desafios da Primavera Árabe e se esten-


de a problemas relacionados aos processos de paz no Oriente Médio, nos quais a União
Europeia encontra-se envolvida em caráter bilateral (a partir do pilar mediterrâneo)
e multilateral (Quarteto de Madri, ao lado dos Estados Unidos, as Nações Unidas e a
Rússia). A seguir, essas questões são examinadas em maior detalhamento, avaliando
as ramificações da política de vizinhança: a Parceria Euro-Mediterrânea, a Sinergia
do Mar Negro e a Parceria do Leste (em algumas dessas parcerias incluem-se nações
que não estão previstas originalmente na PEV, mas que são essenciais para os projetos
como, por exemplo, a Rússia). Especificamente, a Sinergia do Mar Negro e a Parceria
do Leste têm um componente estratégico significativo, de avanço na região da Ásia
Central e do Cáucaso. Igualmente, serão abordados temas correlatos associados aos
países incluídos nessas dimensões da PEV, como o processo de paz no Oriente Médio
e a Primavera Árabe.
A) A Parceria Euro-Mediterrânea (EUROMED)17
Criada em 2008 como União do Mediterrâneo, a parceria entre a União Europeia
e os países do Mediterrâneo originou-se em 1995, com o Processo de Barcelona
examinado no Capítulo 2. O “relançamento” do processo de Barcelona tinha como
objetivo adaptar os arranjos anteriores à nova realidade ampliada da União Europeia,
com a reavaliação e atualização dos mecanismos anteriores aplicados às nações
deste espaço mediterrâneo, com extensão a países africanos e do Oriente Médio. Até
agosto de 2013, os membros são: as 28 nações da União Europeia, Albânia, Argélia,
Bósnia-Herzegovina, Croácia, Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Mauritânia, Marrocos,
Mônaco, Montenegro, a Autoridade Palestina, a Síria, a Tunísia e a Turquia.18
Em termos de prioridades, retomam-se os temas já abordados de reforço da gover-
nança e da liberdade estabelecidos pelo Processo de Barcelona, com foco na questão
do desenvolvimento econômico, ajuda e promoção dos direitos humanos. Questões
ambientais referentes à preservação do Mediterrâneo e do entorno, somadas à pesca e
navegação regionais encontram-se nesta pauta. Adicionalmente, encontram-se previstas
negociações para a facilitação e regulamentação da mobilidade entre a União Europeia
e estas nações, associadas à elaboração de tratados comerciais bilaterais entre a União
Europeia e países-membros específicos (Marrocos, Turquia, Egito e Argélia).
Como rapidamente mencionado alguns dos países pertencentes a este âmbito de
parceria como Tunísia e Egito (além da Síria), por um lado, e Israel e a Autoridade
Palestina de outro, encontram-se no núcleo de processos em andamento, a Primavera

16. Tradução da autora. Disponível em http://eeas.europa.eu/enp/about-us/index_en.htm. Acesso em 30


de julho de 2013.
17. Com o auxílio de Clarissa Forner, graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP), para todos os itens.
18. Disponível em http://www.eeas.europa.eu/euromed/index_en.htm. Acesso em 20 de agosto de 2013.
124 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

Árabe e o processo de paz do Oriente Médio. Mas quais as respostas europeias a esses
eventos? E, somados aos parceiros do Mediterrâneo, como a União Europeia tem lidado
com questões de nações não enquadradas nestes projetos de cooperação como o Irã?19
A.1) O Oriente Médio e o Processo de Paz Israel-Palestina20
Apesar de não restrita ao Oriente Médio, estendendo-se aos Balcãs e ao Norte
da África, além de territórios europeus, a EUROMED possui uma inserção bastante
intensa na região devido à inclusão de Israel e Palestina entre seus membros. No caso
do processo de paz Israel-Palestina, a União Europeia apoia a constituição dos dois
Estados em coexistência, reconhecendo o direito dos dois povos, judeu e palestino,
à soberania de seu território. Para isso, o bloco tem atuado por meio de duas vias:
uma multilateral, com a União Europeia agindo em associação com outras nações e
organismos envolvidos nas negociações, e uma bilateral, da União Europeia com Israel
e Palestina, por meio de parcerias econômicas e missões civis.
Em termos de atuação multilateral, desde 2002 a União Europeia faz parte do
Quarteto de Madri, composto, além dela, pelos Estados Unidos, a Rússia e as Nações
Unidas. Criado como uma tentativa de retomar os processos de paz no contexto da
GWT de George W. Bush filho, o Quarteto inicialmente defendeu a implementação
do “Mapa da Estrada” (Road Map). Proposta do governo norte-americano, o mapa
visava reestabelecer a legitimidade e credibilidade das negociações, a despeito do
alinhamento entre os governos conservadores de Israel (Ariel Sharon) e dos Estados
Unidos, reafirmando o objetivo de construção dos dois Estados, Israel e Palestina.
O mapa também tentava restabelecer propósitos e objetivos já implementados
como nos Acordos de Oslo I e II dos anos 1990, envolvendo os Estados Unidos do
Presidente Bill Clinton (as negociações e processo inicial de implementação estiveram
sob a responsabilidade do Presidente Bush pai), a Palestina de Yasser Arafat e Israel
de Ytzak Rabin. Baseados na fórmula “Terra pela Paz”, com a devolução de territórios
aos palestinos em troca do reconhecimento do Estado de Israel, os Acordos de Oslo
levaram à criação da Autoridade Nacional Palestina (ANP) como embrião do novo
Estado Palestino, mas foram interrompidos devido ao assassinato de Ytzak Rabin em
1995. Na oportunidade, os Acordos de Oslo I e II foram considerados revolucionários,
pois deram início à real formação do Estado Palestino, sofrendo uma rápida des-
montagem após 2001 com o governo conservador de Ariel Sharon em Israel, a qual a
comunidade internacional, incluindo a União Europeia assistiu.21
Na última década, as conquistas do Quarteto de Madri, seja na forma do “Mapa
da Estrada”, ou iniciativas posteriores como a de desenvolvimento do Oriente Médio
e Norte da África, foram pouco significativas. As negociações continuam travadas,
destacando-se problemas recorrentes de violência nos entornos israelense e palestino,
de construção de assentamentos judaicos em territórios em disputa, dentre outros pro-
blemas conhecidos. Apesar da condenação da comunidade internacional destes atos

19. A atuação no Iraque e nos Balcãs foi analisada nos Capítulos 2 e 3, e na Seção 4.1 deste capítulo.
20. Para as questões do Oriente Médio recomenda-se a leitura de Visentini (2014).
21. Em Pecequilo (2013), as negociações são examinadas do ponto de vista dos Estados Unidos.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 125

israelenses, e de pressões para a retomada de negociações, não existe uma transposição


da retórica à prática para a mudança da situação local.
Em 2012, a aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas (mesmo sem o
apoio dos Estados Unidos) de que a Palestina se tornasse um país observador não mem-
bro também não trouxe grandes modificações na dinâmica dessas relações. No ano
seguinte, em 2013, o novo Secretário de Estado norte-americano John Kerry chegou
a anunciar a retomada do processo, mas, igualmente, sem repercussões concretas. In-
clusive, a corrente estagnação do processo de paz é considerada um dos componentes,
dentre muitos, que funcionou para impulsionar a Primavera Árabe.
Na arena multilateral, em termos mais abrangentes do processo de paz, não podem
ser encontrados pontos de avanço da posição europeia, que permanece alinhada à
dinâmica dos interesses norte-americanos. Paradoxalmente, isso não impede que alguns
países do bloco critiquem essas posições, em particular a tolerância com Israel, exis-
tindo ações da União Europeia no sentido de exibir uma posição conjunta.
No que se refere à atuação do bloco, a União Europeia tem manifestado sua
preocupação com o “Processo de Paz do Oriente Médio” (MEPP), e a sua estagnação
devido à instabilidade gerada pela não resolução de questões pendentes e a violência
recorrente. Neste campo, existe uma dimensão mais prática nesta atuação do bloco.
No caso de Israel, o Plano de Ação 2013 da União Europeia para o país,22 que indicava
como metas para Israel:
continuar os esforços para refrear a violência no território de ocupação
palestina e trazer todos os responsáveis por essa violência à justiça; Regu-
larizar os procedimentos legais para apátridas, conforme as determinações
da Convenção de 1958 sobre o Status de Apátrida; Ratificar o segundo e o
terceiro protocolo da Convenção da ONU de 2003 sobre Crime Organizado
Transnacional e produção e tráfico ilícitos de armas de fogo e munição; As-
sinar e ratificar a Convenção regional de regras preferenciais da União para
o Mediterrâneo.23

A tradução dessas medidas em ações reais de mudança em Israel é mínima, per-


manecendo situações de tensão. Pode-se indicar, nesse sentido, que as medidas eu-
ropeias nos Territórios Palestinos, sustentada em missões civis no âmbito da PESC/
PCSD, focadas em problemas cotidianos da ANP em sua relação com Israel e cons-
trução do futuro Estado Palestino demonstram-se mais efetivas. No caso, encontram-se
em andamento duas operações de caráter civil: a EUPOL COPPS (European Union
Police Mission in Palestinian Terrritories), com o objetivo de auxiliar na formação de
policiais palestinos e da estrutura de segurança autônoma dos territórios, e a EUBAM
Rafah (EU Border Assistance Mission at Rafah Crossing Point).

22. Ver EUROPEAN UNION. ENP Country Progress Report 2012: Israel. In: “Memo”. Bruxelas, 20 mar
2013. Disponível em <http://ec.europa.eu/world/enp/docs/2013_enp_pack/2013_memo_israel_en.pdf>.
Acesso em 22 jun 2013
23. Tradução de Clarissa Forner de EUROPEAN UNION. ENP Country Progress Report 2012: Israel.
In: “Memo”. Bruxelas, 20 mar 2013. Disponível em <http://ec.europa.eu/world/enp/docs/2013_enp_
pack/2013_memo_israel_en.pdf>.Acesso em: 22 jun 2013
126 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

Dentre estas, a EUBAM Rafah pode ser indicada como uma das mais relevantes
no cenário Israel-Palestina no trato das populações civis palestinas: localizada no
ponto de passagem de Rafah, na Faixa de Gaza, a missão foi instituída para auxiliar
e facilitar o acesso e o movimento dos cidadãos nessa zona. Nesse sentido, a União
Europeia exerce, segundo a missão oficial da EUBAM,24 um papel de “terceira parte”
nas negociações entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina para a rota de pas-
sagem entre ambos, visando a construção de confiança entre as partes. A missão foi
recentemente estendida em 2013, assim como a da EUPOL COPPS. Adicionalmente,
a União Europeia também detém programas de ajuda em áreas como educação e temas
sociais para a ANP, associado a fundos para estabilização e reconstrução do futuro
Estado Palestino.
Dessa forma, a União Europeia exerce um papel positivo em escala micro na região,
ainda que em escala macro, sobre o processo de paz em geral, sua atuação seja menor e
mais alinhada aos Estados Unidos. Apesar da validade desses processos micro, não se
pode esquecer que sem um acordo permanente e sólido para a questão Israel-Palestina,
essas iniciativas tendem a ser tópicas, muitas vezes reativas a crises, o que prolonga a
instabilidade do sistema regional.
No que se refere a uma realidade de país não incluído na EUROMED, deve-se
mencionar o Irã. Nesse campo, a União Europeia tem se alinhado aos Estados Unidos
nas questões relativas às negociações e pressões sobre o Irã no campo nuclear. Em
2010, assim como os norte-americanos, não apoiou o Acordo Tripartite Brasil-Tur-
quia-Irã, e tem optado pela manutenção via Nações Unidas e unilaterais sobre o país.
As negociações neste setor são conduzidas no âmbito de E3 + 3 que envolve a China,
a França, a Alemanha, a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos.25 Encontram-se
na lista de sanções a proibição de comércio bilateral, incluindo a compra e venda de
petróleo. Segundo a União Europeia,
O objetivo da União Europeia permanece na obtenção de um acordo abrangen-
te, consensual e de longo termo, que poderá restituir a confiança internacional
na natureza exclusivamente pacífica do programa nuclear iraniano, respeitando
o direito legítimo do Irã no uso pacífico da energia nuclear em conformidade
com o Tratado de Não Proliferação e respeitando todas as resoluções do Conse-
lho de Segurança das Nações Unidas e do Conselho da Agência Internacional
de Energia Atômica. (EUROPEAN UNION and IRAN, 2013)26

Em 2013, a saída de Ahmedinejad do poder, com a eleição do reformista Has-


san Rouhani para a presidência trouxe novas oportunidades de negociação. Essas
negociações culminaram com o Acordo Nuclear G5 + 1, patrocinado pelos Estados

24. O detalhamento da missão e operações pode ser encontrado em http://www.eubam-rafah.eu/. Acesso


em 30 de julho de 2013.
25. Para a posição da Europa no tema ver EUROPEAN UNION. Factsheet: The European Union and
Iran. In: “Press Room”. Bruxelas, 6 jun 2013. Disponível em: <http://www.consilium.europa.eu/uedocs/
cms_Data/docs/pressdata/EN/foraff/129724.pdf>.Acesso em 1 jul 2013
26. Tradução da autora. Disponível em <http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_Data/docs/pressdata/
EN/foraff/129724.pdf>.Acesso em 1 jul 2013.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 127

Unidos e com o apoio dos membros permanentes do Conselho de Segurança das


Nações Unidas e a Alemanha. Segundo esse Acordo, o Irã é reconhecido como
potência nuclear, com direito ao desenvolvimento da tecnologia de forma pacífica,
mas se compromete a abrir mão do enriquecimento de urânio que possa levar a
fins bélicos. Além disso, o Acordo permitiu o levantamento do embargo sobre o
país, minimizando suas dificuldades econômicas, e representa um ponto de virada
no cenário estratégico regional.
A.2) A Primavera Árabe
Em 2010, a eclosão de crises sociais e políticas na Tunísia e no Egito deram início
a um processo de mudanças na região do Norte da África e no Oriente Médio, que
permanece em andamento em diversos países. No âmbito dessas mudanças, eventos
como a intervenção militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte na Líbia e
o prolongamento de crise Síria, associado a instabilidades em diversas localidades,
demonstram a existência de um cenário incerto.
Denominados de “Primavera Árabe” por suas semelhanças com a Primavera dos
Povos do século XIX e as “Primaveras” e “Revoluções de Veludo” que antecederam
a queda do Muro de Berlim, estes movimentos sociais populares tiveram como ponto
inicial incidentes na Tunísia envolvendo a repressão policial a um vendedor de rua, que
posteriormente cometeu suicídio, levando à disseminação de protestos que levaram à
queda do governo vigente do Presidente Ben Ali.
Logo na sequência, a derrubada do governo de Hosni Mubarak no Egito demons-
trou a forte dinâmica dessas revoltas populares, representativas do choque de diversas
forças políticas internas, de orientações dispares (seculares e fundamentalistas), mas
que se uniram naquela conjuntura para a derrubada dos governos vigentes. Líbia e Síria
foram os próximos países mais fortemente atingidos: na Líbia, o regime de Muammar
Kadafi caiu após uma intervenção militar da Organização do Tratado do Atlântico
Norte, enquanto a situação de Bashir Al-Assad permanece incerta até setembro de
2013. Em 2013, além disso, os protestos atingiram a Turquia, gerando hipóteses sobre
uma possível “Primavera Turca” (Seção 4.4).
As raízes da Primavera Árabe são complexas e diferentes em cada situação, ainda
que possam ser listados alguns fatores comuns: a insatisfação com os regimes polí-
ticos estabelecidos, devido à não abertura e democratização das sociedades, a crise
econômica e ausência de perspectivas para a maioria da população jovem, o baixo
desenvolvimento e diversificação das economias, a dependência dos mercados oci-
dentais para o fornecimento de bens básicos como alimentos e ajuda, as intervenções
norte-americanas no cenário geopolítico do Oriente Médio que levaram à deses-
tabilização do entorno regional de Afeganistão e Iraque e a estagnação do processo
de paz Israel-Palestina.
Esse somatório de fatores favorece o desenvolvimento de um sentimento de anti-
americanismo e antiocidentalismo na região, ao qual também contribuíram as ques-
tões relativas à exploração dos recursos energéticos regionais (petróleo e gás) e o
estabelecimento de aproximações entre os regimes locais e nações como a China.
Assim, existe um crescente sentimento local pela necessidade do reposicionamento
das nações no mundo, mas, principalmente, pela reforma de suas sociedades.
128 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

A reação ocidental a essa transformação regional tem sido, desde 2010, carac-
terizada por oscilações e indecisões no que se refere à avaliação das transições em
andamento. Embora existam manifestações dos Estados Unidos e da União Europeia
a favor da consolidação de regimes democráticos nos países imersos na Primavera,
a percepção de ameaça referente à possível consolidação de governos de caráter
fundamentalista em nações-chave como o Egito é real.
Em linhas gerais, não existem diferenças significativas entre as posições dos Es-
tados Unidos e da União Europeia no tema “Primavera Árabe”, com o bloco seguindo
as orientações norte-americanas e apoiando, inclusive, operações militares. Para a
União Europeia, porém, trata-se de um desafio direto a estruturas de parcerias já
estabelecidas, como a Parceria do Mediterrâneo em termos geopolíticos e geoeco-
nômicos. Inclusive, muitas das nações envolvidas nas crises mais significativas da
Primavera como Egito, Líbia e Síria representam importantes parceiros europeus no
setor político-energético. Essa situação é ilustrada pela avaliação realizada em 2013
pela União Europeia do processo em andamento:
Mais de dois anos se passaram desde a emergência da “Primavera Árabe”
começando com os levantes populares da Tunísia e do Egito. A situação em
praticamente todo o mundo árabe permanece altamente fluída, e importantes
diferenças emergiram entre os países e regiões envolvidos. Enquanto progressos
significativos foram realizados na promoção de reformas democráticas (por
exemplo, a convocação de eleições em consonância com padrões democráticos,
fortalecendo o papel da sociedade civil, com aumento da liberdade de expres-
são e organização), muitos obstáculos precisam ser superados para que estas
transições possam ser consolidadas com sucesso. (EUROPEAN UNION RES-
PONSE TO THE ARAB SPRING, 2013)27

No que se refere às respostas dadas a estes eventos, podem ser definidos os se-
guintes caminhos tomados pelo Ocidente em suas respostas à Primavera Árabe: a
intervenção militar, que tem como exemplo o caso líbio, a acomodação (principal-
mente com relação às petromonarquias como Iemen, Bahrein, Emirados Árabes,
Arábia Saudita), a intervenção política (Egito) e a pressão pela intervenção (Síria).
Igualmente, tanto a União Europeia quanto os Estados Unidos buscaram apresentar
planos de desenvolvimento e ajuda à região. Em 2011, os Estados Unidos lançaram
uma iniciativa para o Norte da África e o Oriente Médio, que teve resposta similar
da União Europeia no âmbito da parceria mediterrânea.
Esses planos têm objetivos duplos: ajudar a consolidação das sociedades em tran-
sição e, por outro lado, prevenir a emergência de novas tensões em países ainda não
fortemente atingidos pela Primavera, mas que tradicionalmente apresentam situações
de vulnerabilidade política. No primeiro bloco pode-se inserir a renovação da Parceria
do Mediterrâneo em 2011 no que se refere à defesa da democracia e da prosperidade
compartilhada, com a manutenção dos pacotes de ajuda em andamento.

27. Tradução da autora. EUROPEAN UNION. EU's response to the Arab Spring: the state-of-play after
two year. Bruxelas, 8 fev 2013. Disponível em <http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_Data/docs/
pressdata/EN/foraff/135292.pdf>.Acesso em 22 jun 2013.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 129

Para o segundo objetivo, o da contenção de novos movimentos, foram desenvol-


vidos novos mecanismos de cooperação político-econômica: a SPRING (Support for
Partnership, Reform and Inclusive Growth, que, em português, significa “Primavera”),
a European Endowment for Democracy, dedicados, respectivamente, ao crescimento e
desenvolvimento, e o apoio à sociedade civil, e, por fim, a ampliação das negociações
de Acordos de Livre Comércio Profundos e Abrangentes (DCFTA) com o Marrocos,
o Egito, a Tunísia e a Jordânia.
No caso do SPRING, a Tunísia tem se destacado como um dos maiores beneficia-
dos, ao lado da Jordânia, do Egito e da Argélia, um dos maiores parceiros no campo
energético da União Europeia. Nesse âmbito, a Argélia tem se consolidado cada vez
mais como peça-chave na agenda energética do bloco, como componente de sua bus-
ca de novos mercados fornecedores de petróleo e gás no âmbito da diplomacia dos
dutos e do estabelecimento de novos corredores de trânsito e produção. Além disso,
permanecem as preocupações com o destino político do país, dividido entre tensões
entre grupos defensores do secularismo e do fundamentalismo islâmico.
No conjunto da Primavera Árabe, porém, três Estados merecem destaque na análise
tanto pela especificidade de cada caso (que ajuda a compreender as diferenças de ação
da União Europeia, dos Estados Unidos e da comunidade internacional em resposta aos
desafios da Primavera), como pelo seu caráter ainda indefinido: Líbia, Egito e Síria.
No caso da Líbia, até a realização da intervenção da Organização do Tratado do
Atlântico Norte em Março de 2011, as relações entre o país e a União Europeia encon-
travam-se estabilizadas. Desde a intervenção norte-americana no Afeganistão (2001)
e no Iraque (2003), o governo de Muammar Kadaffi realizara esforços no sentido de
reduzir seus conflitos com o Ocidente, buscando a acomodação como forma de evitar
maiores pressões a seu regime. Assim, a Líbia renunciara abertamente a seus programas
de armas de destruição em massa, como condenara as práticas terroristas no sistema
internacional, o que permitiu o seu engajamento relativo à ordem global.
Em termos práticos, para as relações União Europeia-Libia, isso representou
o aprofundamento das parcerias estratégicas entre as regiões, com ênfase no setor
energético de gás e petróleo. Além de fornecer esses recursos à União Europeia, a
Líbia também estabeleceu acordos de exploração com companhias ocidentais no
setor, para exploração e fornecimento de energia. A partir de 2008 foram iniciadas
conversações para o estabelecimento de um acordo-quadro entre ambos, e, em 2010, a
Líbia recebeu significativo pacote de ajuda do bloco, concretizado em um Memorando
de Entendimento.
Entretanto, em fevereiro de 2011, esta situação de aproximação mudou de forma
significativa, com a adoção da Resolução 1970 do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, que teve o apoio da União Europeia. A Resolução adotada congelava os ativos
à disposição do regime de Kadaffi no exterior e proibia viagens ao governante e mem-
bros do governo. No mês seguinte, em março de 2011, a Resolução 1973 autorizou
o uso da força contra a Líbia, realizado pelas forças da Organização do Tratado do
Atlântico Norte. A justificativa para a intervenção, que não contou com o apoio das
nações emergentes (na época membros rotativos do conselho), da Rússia e da China,
baseou-se no conceito de “responsabilidade de proteger” desenvolvido pelas Nações
Unidas, que define a necessidade de ações preventivas e reativas a abusos cometidos
130 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

contra populações civis e de direitos humanos. Segundo esse conceito, demanda-se


que a comunidade internacional atue de forma decisiva em situações de tragédias
humanitárias.
Pouco tempo depois, Kadaffi seria deposto e posteriormente morto, encerrando-se
seu regime em outubro de 2011. No ano de 2012, ainda em meio à violência (que
chegou até a incluir o assassinato de embaixador dos Estados Unidos em um atentado),
foi realizada a eleição de uma nova assembleia constituinte, mantendo-se uma situação
de indefinição e troca de governantes até setembro de 2013.
Desde a deposição de Kadaffi, a União Europeia iniciou esforços no sentido
de apoiar uma transição pacífica no país, com a consolidação dos procedimentos
democráticos e defesa dos direitos humanos. Além disso, a União Europeia, desde
2013, desenvolve uma missão na Líbia para monitoramento de fronteiras, a EUBAM
(European Border Assistance Mission). Encontram-se previstos fundos de ajuda para a
reconstrução do país e também para a estabilização de seus setores policial e judiciário,
além de amparo ao desenvolvimento econômico e à sociedade civil.
O que chamou a atenção no caso líbio, além da rapidez da escolha na solução
militar pelas Nações Unidas, derivada de pressões dos Estados Unidos e da União
Europeia, foi a mudança de posição dessas potências ocidentais frente ao regime de
Kadaffi. Como ressaltado, havia não só uma acomodação entre o Ocidente e Kadaffi,
como o estabelecimento de processos de cooperação da União Europeia, que foram
abandonados. Diversas hipóteses são colocadas para explicar essa mudança de posição
ocidental, que foi definidora para a queda do regime: a aproximação de Kadaffi com
as potências emergentes, em particular a China, no mercado energético, a compra de
armamentos pelo regime e a sua ligação com nações como Venezuela e Irã. Não cabe
aqui entrar no detalhamento dessas avaliações, visto que as mesmas encontram-se
ainda em discussão, mas apenas indicar a diferente postura diante da Líbia e de outras
nações na região, como Egito e Síria.
Comparativamente, a Síria revela-se questão tão ou mais grave de abuso de direitos
humanos e proteção aos civis do que na Líbia, mas que se desenrola, desde 2011, sem
intervenção militar direta da comunidade internacional. De 2011 a 2013 repetiram-se
condenações formais e verbais das Nações Unidas e das potências ocidentais às ações
repressivas do regime de Assad à oposição, devido à violação de direitos humanos
e violência crescente, levando à expansão da guerra civil (que tem gerado fluxos
consideráveis de refugiados à Turquia). As Nações Unidas encontram-se atuando
via UNSMIS (United Nations Supervision Mission in Syria) e, no caso da União
Europeia, o bloco cortou as iniciativas de cooperação econômica com a Síria, impondo
congelamento de ativos e embargo ao país.
A situação de inação da comunidade internacional, porém, começou a ser alterada
a partir da segunda quinzena de agosto de 2013, quando os Estados Unidos acusaram
o regime de Assad de utilizar armas químicas em repressão à oposição. Diante desse
quadro, o presidente norte-americano Barack Obama anunciou a intenção dos Es-
tados Unidos, mediante solicitação ao Congresso do país, de recorrer a ataques aéreos
limitados à Síria, para minar a capacidade de Assad. Apesar de ter conquistado o
apoio de nações como a França, tradicionais aliados como a Grã-Bretanha não irão
participar de eventual ação militar, visto que a opção da mesma não foi aprovada pelo
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 131

Legislativo. Como bloco, as manifestações da União Europeia têm-se demonstrado


genéricas, mantendo o padrão de condenação às escolhas de Assad.
Apesar da decisão da Casa Branca a favor dos ataques, a administração Obama,
em 10 de setembro de 2013 (simbolicamente às vésperas dos atentados terroristas
de 11/09), anunciou formalmente sua decisão de aguardar o resultado das propostas
da Rússia (contrária à intervenção) para que Assad entregue seu arsenal de armas
químicas à comunidade internacional, antes de encaminhar ao Senado seu pedido de
autorização para a operação militar. A situação continua pendente, envolvendo uma
nação estratégica na geopolítica do Oriente Médio, confluência de fronteiras de Israel,
Turquia, Irã, Líbano e Jordânia, e próxima a cenários de guerra e incerteza ainda em
andamento, como Iraque e Afeganistão (e, em geral, a um sistema africano e eurasiano
de vulnerabilidade).
Por fim, cabe analisar a situação do Egito, que permanece imerso em uma situação
de incerteza e instabilidade, e à qual a União Europeia tenta responder como bloco
(diferente do caso da Síria e um pouco mais similar à Líbia). País pertencente às
estruturas cooperativas da Parceria do Mediterrâneo desde a sua primeira versão na
década de 1990, o Egito é um dos maiores receptores de ajuda financeira da Europa,
para o desenvolvimento de projetos em áreas de infraestrutura (energia, transporte
e saneamento básico) e indústria. No período de 2007 a 2010, por exemplo, o Egito
recebeu cerca de 558 milhões de euros da União Europeia como parte dos inves-
timentos da Política Europeia de Vizinhança. Esses investimentos e programas de ajuda
foram direcionados ao país durante todo o governo de Hosni Mubarak (1981/2011),
apesar das correntes acusações da oposição egípcia e observadores internacionais de
que este não seria um governo democrático.
Porém, Mubarak contava com o apoio tanto dos Estados Unidos quanto da União
Europeia a seu regime, devido a seu caráter secular, que estendia garantias cons-
titucionais de igualdade aos cidadãos independente de religião, sexo e gênero.28 Esse
apoio, principalmente o norte-americano, estendia-se também ao setor militar, per-
mitindo a manutenção de um exército egípcio forte. Para o Ocidente, desde os anos
1970, quando Israel e Egito assinaram os Acordos de Paz de Camp David, com o
Egito reconhecendo Israel e existindo a devolução de terras da parte de Israel, o Es-
tado era considerado um pivô regional fundamental à estabilidade do Oriente Médio.
Com isso, era necessário preservar o país do risco de ascensão do fundamentalismo,
mesmo que para isso existisse tolerância com o governo de Mubarak e seus esforços
de contenção da ascensão do fundamentalismo no país.
Representadas pela Irmandade Muçulmana, as forças do Islã sofriam restrições a
sua atuação política no Egito, mas que não impedia o seu crescimento entre setores
populares devido à insatisfação crescente com a agenda de Mubarak. Essa insatis-
fação relacionava-se duplamente às políticas seculares implementadas pelo regime
de Mubarak, contrárias às interpretações fundamentalistas do Corão, e ao avanço da
crise social-econômica interna. Esse segundo aspecto, o da crise interna, associado às

28. Dados disponíveis em COMISSION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES. European Neighbourhood


Policy-country report: Egypt. In: “Comission Staff Working Paper”. Bruxelas, 3 fev 2005. <http://ec.europa.
eu/world/enp/pdf/country/egypt_country_report_2005_en.pdf.>. Acesso em 22 jun 2013.
132 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

acusações de corrupção contra Mubarak igualmente funcionavam como elementos de


enfraquecimento do governo mesmo diante da classe média e das Forças Armadas.
A combinação de forças levou à eclosão dos protestos na Praça Tahir, em Janeiro de
2011, que levaram à saída do governo do poder em fevereiro de 2011.
Com esta saída, o Egito passou a ser administrado por uma junta militar de tran-
sição que tinha como objetivo estabilizar o país e prepará-lo para eleições diretas ao
Legislativo e à Presidência. Entretanto, a saída de Mubarak do poder e mesmo o seu
julgamento e encarceramento por acusações de corrupção não foram suficientes para
minimizar os protestos, que continuaram até a definição de uma data para a eleição,
que ocorreu em maio de 2012.
Essas eleições foram vencidas pelo candidato da Irmandade Muçulmana por
pequena margem (cerca de 2%), e foram consideradas legítimas pela comunidade
internacional. Bastante apertada, a vitória de Mursi revelou um país dividido pela
metade, entre os partidários da Irmandade Muçulmana, e as forças seculares, situação
que manteve um cenário de instabilidade interna no país. Apesar desse reconhecimento
(vide a visita da então Secretária de Estado norte-americana ao Egito, Hillary Clinton,
e a viagem do presidente recém-eleito à União Europeia), e de reiterar seus compro-
missos no Oriente Médio, dentre os quais se incluem a não reversão de políticas para
Israel, o governo de Mursi demonstrava-se frágil devido a essa polarização doméstica.
Do lado europeu, o bloco manteve seus programas de ajuda ao novo governo,
visando a recuperação econômica, o desenvolvimento social e a consolidação da
democracia. Além dos investimentos já previstos pela Política Europeia de Vizinhança,
novos financiamentos com base no programa SPRING foram direcionados ao Egito,
como auxílio à transição política, além da continuidade de negociações para o es-
tabelecimento de uma área de livre comércio entre a União Europeia e o Egito. Outros
projetos como o de um acordo no setor de migração e mobilidade, entretanto, não
encontraram respaldo similar. Mais uma vez, os recursos recebidos pelo Egito eram
significativos, cerca de 800 milhões de euros. Entretanto, a situação estava longe de
estabilizada, permanecendo inúmeras fragmentações na política do país.
Os processos de elaboração de uma nova constituição democrática para o país e
a consolidação do governo Mursi demonstraram a continuidade das disputas internas
no Egito entre forças seculares e fundamentalistas. No poder, Mursi iniciou a im-
plementação de medidas controversas no sentido de fortalecer o poder da presidência
em moldes similares ao governo anterior. Além disso, o avanço de medidas políticas
e sociais de caráter religioso desagradaram grande parte da sociedade, que percebeu
o processo como de “islamização” do Egito. Na oportunidade, este processo foi
abertamente criticado pela comunidade internacional, estando nela incluída a União
Europeia.
Apesar dessas críticas para que evitasse o agravamento da situação e retomasse
o diálogo com a oposição Mursi não atendeu a essas demandas ou mesmo a voz das
ruas, ou seja, os quase 50% do eleitorado que nele não havia votado e que compunha
força representativa e significativa no cenário político interno. Essas forças, dentre
as quais se incluem as Forças Armadas, expressaram seu desacordo quanto a essas
políticas que, em 2013, culminaram com a eclosão de novos protestos populares
na Praça Tahir (que podem ser definidos como uma “segunda” Primavera), contra a
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 133

nova agenda. Na sequência, em julho de 2013, Mursi foi removido do poder, com base
em alegações de desrespeito à Constituição e volta do autoritarismo. Até setembro
de 2013, o Presidente Mursi continua em prisão domiciliar e se mantêm os choques
entre seus aliados e as forças contrárias a seu retorno ao poder, com elevado grau de
violência e incerteza.
De certa forma, os desafios e caminhos dos três casos aqui escolhidos para análise,
Líbia, Egito e Síria, demonstram as dificuldades políticas, sociais e econômicas as-
sociadas à transformação dessas sociedades e a consolidação de seus futuros regimes.
Se esses regimes serão democráticos, seguindo o modelo ocidental, ou se cada um
deles procurará seu caminho, é uma questão sem resposta. A forma pela qual estas
tensões sociais, que envolvem componentes religiosos e sociais, nas disputas políticas
serão (ou não resolvida) no médio ou longo prazo inserem-se nesse mesmo dilema,
colocando inúmeros desafios ao mundo e, particularmente, à União Europeia, frente
a uma vizinhança próxima geograficamente, mas nem sempre compreendida em suas
especificidades, assim,
os eventos que estão correndo no Oriente Médio e no Norte da África desde o
início da Primavera Árabe, tomaram proporções verdadeiramente históricas,
que não somente vão moldar o futuro de toda a região, mas também vão ter
repercussões muito além dos países envolvidos. A União Europeia compro-
meteu-se com apoio a longo prazo de todos os países árabes engajados em
transições democráticas e irá auxiliá-los em seus esforços para superar quais-
quer obstáculos de curto prazo que estejam enfrentando. As parcerias como
os governos que emergiram após a Primavera Árabe serão desenvolvidas com
base em suas performances. Neste contexto, a União Europeia vai continuar
engajando construtivamente novos atores políticos que emergiram com e a
partir da Primavera Árabe. A fim de ajudar a construir culturas democráticas vi-
brantes no mundo árabe, a União Europeia, vai continuar a apoiar a sociedade
civil e o trabalho de organizações não governamentais relevantes. (EUROPE
UNION RESPONSE TO THE ARAB SPRING, 2013).29

Diante destes desafios, frente à instabilidade desta “vizinhança”, a União Europeia


depara-se com desafios adicionais de suas novas (e antigas) fronteiras, cada vez mais
eurasianas.
B) A Sinergia do Mar Negro30
Estabelecida em 2008, a Sinergia do Mar Negro visa estabelecer uma parceria es-
tratégica entre a União Europeia e as nações do entorno do Mar Negro. Estas nações
incluem países-membros da União Europeia (Grécia, Bulgária e Romênia) e não

29. Tradução da autora. EUROPEAN UNION. EU's response to the Arab Spring: the state-of-play after
two year. Bruxelas, 8 fev.2013. Disponível em <http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_Data/docs/
pressdata/EN/foraff/135292.pdf>. Acesso em 22 jun 2013
30. Para o documento completo do lançamento da iniciativa ver http://ec.europa.eu/world/enp/pdf/
com07_160_en.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2013.
134 A União Europeia_Cristina Soreanu Pecequilo

membros (Ucrânia, Rússia, Moldávia, Geórgia,31 Armênia, Azerbaijão e Turquia). Os


propósitos da parceria relacionam-se aos princípios gerais da PEV, de fortalecimento da
democracia e da cooperação econômica e social, mas também a propósitos específicos
de caráter estratégico sensível.
Neste caso, incluem-se o tema energia, visto a posição geopolítica deste espaço
para rotas de passagem de oleodutos e gasodutos (acesso aos recursos energéticos
eurasianos principalmente), e os chamados “conflitos congelados” (frozen conflicts
no original). Os “conflitos congelados” envolvem inúmeras questões fronteiriças entre
as nações do Mar Negro, que incluem problemas relativos à autodeterminação dos
povos (como os conflitos na região do Azerbaijão), as disputas Rússia-Geórgia e as
tensões entre a Romênia e a Moldávia. Questões relativas à imigração, ao avanço do
fundamentalismo e o risco do terrorismo transnacional também se inserem nesta pauta.
Os “conflitos congelados” referem-se a problemas remanescentes tanto da desmon-
tagem dos impérios multinacionais (Otomano, Austro-Hungaro e Russo) nos séculos
XIX e XX e o redesenho de fronteiras, como de disputas territoriais e nacionais a eles
antecedentes. A construção da União Soviética a partir da década de 1920 e a sua queda
em 1991 levaram ao renascimento dessas questões, associadas à continuidade do temor
do revisionismo russo por parte de alguns países da ex-URSS e da antiga Cortina de
Ferro. Sem a presença soviética, vácuos de poder tornaram-se mais característicos do
entorno, que reativaram muitas dessas disputas, como chamam a atenção da comunidade
internacional (isto é, ocidente europeu e norte-americano para este entorno).
Em termos de missões europeias ativas neste campo, de fronteiras e integridade
territorial e social dos países parceiros podem ser mencionadas: a EUMM (European
Union Monitoring Mission in Georgia)32 para estabilização e normalização das relações
civis na Geórgia e a EUBAM (European Union Border Assistance Mission to Moldova
and Ukraine), que auxilia ambos os países na estruturação e controle de procedimentos
fronteiriços, assim como na definição de limites territoriais.
Com essa iniciativa, a União Europeia busca, portanto, não só o estabelecimento de
laços políticos, mas o aumento de sua projeção de poder em fronteiras sensíveis, com im-
pactos para seus interesses geopolíticos e geoeconômicos. As instabilidades nessa região
afetam os recursos energéticos consumidos pela União Europeia, como se trata de zona
sensível de interesse russo e ocidental. O avanço europeu nesse espaço pode impedir a
reativação do poder russo em zonas de influência antes pertencentes à União Soviética,
oferecendo um elemento de contenção. Adicionalmente, funciona como uma cabeça de
ponte para a penetração europeia (e norte-americana) na Ásia Central por meio de projetos
não militares. Por fim, essa iniciativa sobrepõe-se e complementa a Parceria do Leste.
C) A Parceria do Leste33
A Parceria do Leste é contemporânea à Sinergia do Mar Negro (2008), sobrepondo-se
em algumas nações e objetivos a este projeto de avanço geopolítico e geoeconômico

31. A Geórgia também está inserida na parceria do Leste.


32. Antes desta missão, a Geórgia igualmente recebeu a EUJUST THEMIS, European Union Rule of Law
Mission to Georgia, para auxiliar o país na área de questões jurídicas.
33. Disponível em http://eeas.europa.eu/eastern/index_en.htm. Acesso em 20 de agosto de 2013.
Capítulo | 4 As Relações Internacionais da União Europeia 135

europeu em novos espaços, tradicionais zonas de influência russo-soviética. Diferente da


Sinergia, porém, a parceria tem como membros nações que ainda não são membros da
União Europeia e que também não se incluem no rol dos Estados candidatos ou potenciais
candidatos. Essa situação pode ser explicada pela forte presença da influência russa em
muitos deles, como pela instabilidade político-econômica desta região. Especificamente,
estes Estados são a Armênia, Azerbaijão, Belarus, Geórgia, Moldávia e Ucrânia.
Apesar de não se incluírem formalmente nas possibilidades de uma nova ex-
pansão da União Europeia (e mesmo da OTAN no que se refere às ex-Repúblicas
soviéticas Geórgia, Belarus e Ucrânia), essas nações já possuem tanto com a OTAN
como com a UE iniciativas de cooperação. Para elas, isso significa uma diminuição
de sua dependência político-econômica de Moscou, associada a uma contenção das
ações mais estratégicas da Rússia. Tais ações estratégicas estão associadas a pres-
sões energéticas, com aumento do preço dos recursos energéticos vendidos a estas
nações (e mesmo à Europa Ocidental), e a iniciativas militares russas em territórios
soberanos (como o caso da Geórgia). Apesar de as gestões bélicas serem menos
frequentes do que as político-econômicas, elas acabam sendo mais percebidas por
sua visibilidade.
Em tal contexto, a Parceria do Leste insere-se nestas arenas político-econômicas,
uma vez que estas nações são, na prática, satélites, da União Europeia e da Rússia.
Satélites, porém, estratégicos, dada a sua posição geográfica como zona de separação
entre Ocidente e Oriente, e rotas de passagem de gasodutos e oleodutos. Assim, a
região envolve uma dinâmica de cooperação e competição entre a União Europeia e a
Rússia para fortalecer sua influência local e também detém iniciativas de cooperação
russo-europeias no campo energético (o acesso ao fornecimento de gás é um dos
componentes de maior vulnerabilidade europeia).
Mais especificamente, para a Europa Ocidental, a Parceria do Leste é também apre-
sentada às nações envolvidas como forma de estabilizar a região em termos políticos
e econômicos. Segundo dados oficiais da Parceria, no longo prazo, o reforço dessas
dimensões pode significar, para essas nações, o acesso à União Europeia como mem-
bros plenos. Temas como governança democrática, direitos humanos e negociações
referentes à mobilidade (imigração, concessão de vistos, dentre outros) são definidos
como prioritários nesta pauta.
Negociações comerciais, incluindo a formação de uma área de livre comércio
abrangente com Moldávia, Armênia e Geórgia, encontram-se em andamento, com a
expectativa de que em novembro de 2013 possam ser fechados acordos de associação
mais profundos entre o bloco europeu e estas nações. Com a Ucrânia também foram
concluídos acordos similares que deram início, em 2013, aos primeiros passos da
constituição de um acordo de livre comércio entre a União Europeia e a Ucrânia.
Portanto, assim como a Sinergia do Mar Negro, e a Parceria do Mediterrâneo, a
Parceria do Leste investe na expansão da influência europeia em seu entorno geo-
gráfico, com motivações estratégicas, políticas e econômicas. A reafirmação desses
novos espaços vis-à-vis à Rússia é um componente desta agenda, assim como a
contenção desse país e mesmo de fluxos “negativos” vindos das nações ao Leste e
ao Sul de forma geral (como a imigração e as instabilidades de sociedades em mudança
político-econômica).

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