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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Flávia Regina Guedes Ribeiro

CONSTRUÇÕES ARGUMENTATIVAS SOBRE RISCOS NA


GESTAÇÃO: JUSTIFICATIVAS MÉDICAS PARA INDICAÇÃO
TERAPEUTICA DO ABORTO

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Flávia Regina Guedes Ribeiro

CONSTRUÇÕES ARGUMENTATIVAS SOBRE RISCOS NA


GESTAÇÃO: JUSTIFICATIVAS MÉDICAS PARA INDICAÇÃO
TERAPEUTICA DO ABORTO

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Psicologia Social, sob a
orientação da Profª Drª Mary Jane Paris Spink.

SÃO PAULO
2011
Banca examinadora

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Dedicatória

Aos participantes desta pesquisa, pelos


momentos de inspiração e reflexão e
pelo compromisso ético com o qual
exercem o cuidado à saúde da mulher.
Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, à pessoa sem a qual esse projeto não seria concretizado:
minha querida orientadora Mary Jane que, ao longo desses quase seis anos de convivência,
mais que orientadora se tornou orientadora-mãe, amiga, companheira, conselheira...
obrigada Mary Jane, por ensinar e estar sempre presente. Com meu carinho e admiração.
À Maria Auxiliadora... as palavras de agradecimentos por sua participação na minha
vida acadêmica já ficaram redundantes, nesta folha só me resta reafirmar o orgulho de ter
sido sua aluna e de lhe ter por perto nessa longa caminhada.
Ao professor José Ricardo Ayres, pelas importantes contribuições no exame de
qualificação e pela simpatia e gentileza com que acolheu este trabalho.
À professora Maria José Rosado-Nunes, por ter emprestado seu empenho aguerrido
na luta pela legalização do aborto para ajudar na elaboração desta pesquisa, não só no
exame de qualificação, mas principalmente pelo exemplo de dedicação e compromisso com
a emancipação e empoderamento das mulheres.
Aos professores e professoras do Programa de Estudos Pós-Graduado em
Psicologia Social da PUCSP, em especial, à Cristina Vincentin e à Fúlvia Rosemberg.
Aos amigos no Núcleo Práticas Discursivas e Produção de Sentidos, especialmente
à Milena, Jacque, Vanda e Serginho.
À Marlene, pelo carinho e presteza com que sempre nos ajuda com os
procedimentos administrativos do programa e pela torcida, expressa em seus gestos, de
que “tudo dará certo”!
Às ativistas das Católicas pelo Direito de Decidir: Dulce Xavier e Rosângela Talib,
pelas conversas esclarecedoras e pela troca de material.
Ao meu pai e à minha irmã, por tudo...
Ao Jeferson, pelo presente do amor cotidiano e pelo presente da vida: a espera de
Francisco, nosso filho.
Às minhas queridas amigas de labuta: Augusta, Cássia, Carol e Fernanda, por
compartilhar o dia-a-dia do trabalho docente e torná-lo divertido e alegre.
À Carla e à Regimeire, por me receberem sempre, por serem minhas amigas e por
serem mulheres guerreiras, admiráveis em suas conquistas e sonhos.
Às amigas de sempre Nida e Déia, pela alegria de nossos encontros e pela energia
fraterna de nossas ausências.
Ao CNPq e à CAPES pela concessão de bolsas de estudos que permitiu a realização
desta tese.
Resumo

Esta tese tem como objetivo entender como as noções de risco são usadas por médicos/as
obstetras para referendar a prática do aborto por risco de vida da gestante. Argumentamos
que, na impossibilidade de precisão matemática da avaliação e cálculo do risco na
gestação, aspectos subjetivos, como as crenças morais e religiosas, os valores culturais e
as experiências de vida, entram em cena para formular a noção de risco. Para tanto,
procuramos analisar os argumentos presentificados no discurso médico para a construção
da noção de risco e das concepções de aborto associado ao diagnóstico de risco. Os
caminhos teóricos percorrido fundam-se na noção foucaultiana de biopolítica para articular a
compreensão do aborto como um objeto de controle governamental e a linguagem dos
riscos como estratégia de efetivação desse controle. Como procedimento metodológico,
adotamos a perspectiva do campo tema para orientar a utilização de entrevistas como
conversas, baseada na abordagem das Práticas Discursivas, o que norteou a realização de
cinco entrevistas semi-estruturadas com médicos/as do serviço de aborto legal da cidade de
São Paulo. A análise das entrevistas se debruçou sobre os argumentos apresentados
pelos/as médicos/as, que realizam abortos por risco de vida da gestante, acerca de como o
risco é concebido nas gestações em que o aborto é uma possibilidade de manter/salvar a
vida ou a saúde da gestante. Para ir da discussão teórica até a consecução da análise do
material empírico seguimos o seguinte percurso: apresentamos inicialmente os aportes
teóricos que fundam a racionalidade política baseada na biologia dos corpos e a concepção
do aborto como objeto de controle governamental; em seguida, buscamos a apreensão do
conceito de risco no campo da Saúde e na Clínica Obstétrica; o passo seguinte foi fazermos
uma descrição dos procedimentos metodológicos assumidos para organização das
informações a serem analisadas e interpretadas a partir da Abordagem Argumentativa e, por
fim, apresentamos a análise das construções argumentativas sobre risco na gestação e
aborto por risco de vida da gestante. A identificação e descrição dos elementos que
constituem a organização argumentativa dos discursos médicos apontaram que: o conceito
de risco indica a relação entre fenômenos individuais e coletivos, expresso na linguagem
matemática das probabilidades; a análise do risco é determinada pelas biografias pessoais e
profissionais de cada médico; as desordens emocionais e os sofrimentos psíquicos
decorrentes de uma gestação com diagnóstico de risco constituem-se em fatores de risco
para a gestante; a definição e a avaliação do risco na gestação são determinadas pelo
exercício do poder disciplinar médico; a crença moral do médico acerca da legalidade do
aborto nem sempre condiz com a sua prática clínica e esta é determinada pelo seu
posicionamento frente à moralidade do aborto; a experiência pessoal, relacionada com a
vivência do aborto por alguém próximo ao médico, ou profissional, relacionada com o
cotidiano dos serviços que propiciam o contato com mulheres que desejam abortar,
sensibilizam os médicos para a compreensão do aborto como uma escolha autônoma da
gestante.

Palavras - chave: Risco; Gestação; Aborto; Argumentação; Psicologia Social


Abstract

This thesis aims to understand how notions of risk are used by obstetricians to endorse the
practice of abortion on risk of mother's life. We argue that the impossibility of mathematical
precision of the assessment and calculation of risk during pregnancy, subjective aspects
such as moral and religious beliefs, cultural values and life experiences come into play in
formulating the notion of risk. To this end, we analyze the arguments made present in
medical discourse to construct the notion of risk and concepts associated with the diagnosis
of miscarriage risk. The theoretical path traveled is based on the Foucauldian notion of
biopolitics to articulate an understanding of abortion as an object of government control and
the language of risk as a strategy for achieve this control. As a methodological procedure, we
adopt the perspective of the subject field to guide the use of interviews and conversations,
based on the approach of discursive practices, which guided the completion of five semi-
structured interviews with doctors in the legal abortion of São Paulo. The analysis of
interviews has focused on the arguments presented by doctors who perform abortions on
pregnant woman's risk of life, about how risk is conceived in pregnancies where abortion is a
possibility to keep or save the life or health of pregnant women. To go from the theoretical
discussion to the achievement of the empirical analysis we follow the following route: first we
present the theoretical contributions that underlie political rationality based on the biology of
conception and abortion bodies as objects of government control, then seek the arrest of
concept of risk in the field of Health and Obstetric Clinic, the next step was to make a
description of methodological procedures undertaken to organize the information to be
analyzed and interpreted from the Argumentative Approach and finally present an analysis of
the argumentative construction of risk during pregnancy and risk of abortion for pregnant
woman's life. The identification and description of the elements that constitute the
organization of argumentative medical discourse noted that: the concept of risk indicates the
relationship between individual and collective phenomena, expressed in mathematical
language of probability, risk analysis is determined by personal and professional biographies
of each medical, emotional disorders and mental suffering resulting from a pregnancy with a
diagnosis of risk is in risk factors for pregnant women, the definition and assessment of risk
during pregnancy are determined by the exercise of disciplinary doctor, the doctor's moral
belief about the legality of abortion is not always consistent with his clinical practice and this
is determined by its positioning to the morality of abortion, personal experience, related to the
experience of someone close to abortion on medical or professional related to the daily lives
of services that provide contact with women who want abortions, bring the doctors to the
understanding of abortion as a pregnant woman's autonomous choice. .
.

Keywords: Risk; Pregnancy; Abortion; Argumentation; Social Psychology.


SUMÁRIO

Introdução 02

Capítulo 1 - A analítica foucaultiana sobre o governo da vida: contribuições 08


conceituais para a formulação do objeto de pesquisa
1.1. A bipolítica de Michel Foucault 08
1.2. Releitura da biopolítica foucaultiana: uma reflexão sobre aborto 15
como objeto de governo

Capítulo 2 - Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde 21


2.1. Linguagens dos riscos 21
2.1.1. Abordagens técnico-científicas sobre risco 22
2.1.2. Abordagens socioculturais sobre risco 24
2.1.3. Enredamento entre linguagens dos riscos e linguagens sociais 26
2.2. Gestão dos riscos na sociedade contemporânea 31
2.3. A formalização do risco pela epidemiologia 34
2.4. A “molecularização” dos riscos 42
2.5. Risco no discurso técnico da Clínica 46

Capítulo 3 - Risco na clínica obstétrica: entendendo risco na gestação 55


3.1. Abordagem de risco na obstetrícia 55
3.2. Aborto por risco de vida da gestante 58
Capítulo 4 – Considerações metodológicas: os passos da pesquisa 69
4.1. Para entender campo-tema 69
4.2. Procedimentos para inserção no território do campo-tema: 71
preparação e realização das entrevistas
4.3. Procedimentos para elaboração dos tópicos das entrevistas 78
4.4. A definição do método de análise: estudo da argumentação 80
4.5. Procedimentos para análise das entrevistas 84
Capítulo 5 - Construções argumentativas sobre risco na gestação 86
Capítulo 6 - Construções argumentativas sobre aborto por risco de vida da gestante 118

Capítulo 7 - Últimas reflexões 146

Referências 158
Anexo CD
Anexo A - Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa
Apêndices CD
Apêndice A - Carta de Apresentação da Pesquisa
Apêndice B - Termo de Consentimento Livre e esclarecido
Apêndice C – Transcrição das entrevistas
INTRODUÇÃO

Esta tese resulta de um interesse particular pelo tema do aborto1 induzido ou


voluntário. Durante o Mestrado, realizamos uma pesquisa sobre as controvérsias morais
acerca do tema (RIBEIRO, 2008), o que suscitou o desejo de continuarmos investigando
essa temática, agora norteada por questões que ficaram em aberto. O desenvolvimento da
pesquisa que será apresentada é marcado por uma posição política de defesa do livre
direito de escolha da mulher pelo aborto e, conseqüentemente, da
legalização/descriminalização dessa prática. O estudo está fundado em uma visão de
sociedade que entende que os processos governamentais coercitivos, aqui traduzidos na
noção foucaultiana de governamentalidade (Cf FOUCAULT, 1988), geradores de
desigualdade e injustiças sociais, constituem o principal meio de produção e manutenção
das relações opressoras entre ricos e pobres e especialmente, entre homens e mulheres,
estabelecendo e mantendo relações desiguais de gênero2.
O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, no artigo 128, exclui a punição para
o aborto pós-estupro realizado por médico/a quando há consentimento da gestante.
Segundo a lei, não se pune aborto praticado por médico/a3: a) se não há outro meio de
salvar a vida da gestante; b) se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido do
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (HUNGRIA,
1955).
A despeito dos referidos permissivos terem sido incorporados à legislação desde
1940, apenas na década de 1980 foram realizados, oficialmente, os primeiros atendimentos
no serviço público de saúde brasileiro. Os casos de anomalia fetal incompatível com a vida,
apesar de não estarem contemplados nos permissivos da lei, também têm sido atendidos
nos serviços de saúde, por meio de autorização judicial.
O serviço pioneiro de atendimento ao abortamento previsto em lei foi implantado no
Hospital Municipal Dr. Arthur Saboya, de São Paulo, em 1989. Na etapa inicial de
implantação, os serviços se centraram na interrupção da gravidez. Entretanto, com o

1
A palavra aborto origina-se do latim aboriri e significa “separação do sítio adequado” (SALOMÃO, 1994). Esse
termo refere-se ao produto da concepção eliminado da cavidade uterina ou abortado, enquanto o termo
abortamento, mais amplamente aceito na área médica, diz respeito ao processo de ameaça à gravidez que pode
culminar ou não na perda gestacional. Apesar desse esforço de distinção entre aborto e abortamento, a palavra
‘aborto’ é usada freqüentemente como sinônimo de abortamento. Dado o caráter generalizado do uso desses
dois termos como sinônimos não faremos aqui uso diferenciado dos mesmos. Utilizaremos tanto aborto como
abortamento para nos referir à interrupção da gravidez.
2
Gênero é entendido aqui como a relação da dominação do masculino sobre o feminino, no privilegiamento da
produção e administração de riquezas sobre a produção da vida (IZQUIERDO, 1991, 1998; ROSEMBERG,
2001).
3
A partir desse momento, usaremos, de modo geral, o genérico masculino para não tornar o texto pesado. Vez
por outra voltaremos a esta fórmula, para sinalizar que não perdemos de vista a participação da linguagem na
sustentação de relações de dominação, especialmente quando se trata do tema aborto, marcado por relações
assimétricas de gênero.
2
cotidiano da assistência, o foco do atendimento foi deslocado para a atenção à violência
sexual, ampliando e diversificando a abrangência das ações de saúde (SOARES, 2003).
O surgimento desse tipo de assistência médica no Brasil foi impulsionado por alguns
fatores. O primeiro deles foi a atuação do movimento feminista que durante anos tem
discutido o abortamento no contexto dos Direitos Reprodutivos (CORRÊA, 1999),
reivindicando o direito da mulher de decidir sobre a interrupção da gravidez e que o Estado
se responsabilizasse pela assistência aos casos de abortamento permitidos na lei. Outro
fator, incluído na argumentação feminista, foi a realização da Conferência Internacional de
População e Desenvolvimento (CIPD), no Cairo, em 1994, e da Conferência Mundial sobre a
Mulher (CMM), em Pequim, 1995, que consolidaram os conceitos de direitos reprodutivos e
direitos sexuais. O parágrafo 8.25 do relatório da CIPD diz que “nos casos em que o aborto
não é contrário a lei, sua prática deve ser realizada em condições adequadas” (ARAÚJO,
1999, p. 57). Os países signatários desta Conferência se comprometeram a garantir a
assistência ao abortamento nos casos previstos em lei e em melhorar a qualidade da
assistência ao abortamento em geral.
A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) também teve
importante papel na formulação e implantação dos serviços de assistência ao aborto legal.
Ela se comprometeu com a garantia do direito à interrupção da gestação dentro do marco
legal e vem desenvolvendo, dentre outras ações, o Fórum Inter-profissional sobre o
Atendimento Integral à Mulher Vítima de Violência Sexual, cuja primeira versão aconteceu
em parceria com o Centro de Pesquisa e Controle das Doenças Materno-Infantis de
Campinas (CEMICAMP, 1997). O envolvimento da FEBRASGO tem contribuído,
principalmente, para a sensibilização e adesão dos médicos obstetras.
Por fim, a iniciativa do Ministério da Saúde (BRASIL, 1999), em adotar a Norma
Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra
Mulheres e Adolescentes foi fundamental para legitimar o atendimento ao aborto legal. A
Norma Técnica além de orientar sobre os procedimentos favoreceu a aceitação e garantia
da segurança dos profissionais de saúde na prática do abortamento previsto em lei.
Apesar desses fatores favoráveis, os diversos contextos políticos, influenciados pela
moral católica vigente, criaram obstáculos à implantação da assistência ao aborto legal e
aos agravos resultantes da violência sexual nos estados brasileiros. Uma das dificuldades
para a implantação dos serviços de atendimento ao aborto previsto em lei tem sido a de
identificar profissionais de saúde disponíveis para atuar neste campo.

3
No que tange ao permissivo referente aos casos de gravidez resultante de estupro4,
a assistência às mulheres, como uma ação de saúde, trouxe para o cotidiano dos serviços
temas como o abortamento, a violência sexual e doméstica e as relações de gênero, que se
configuram como de difícil compreensão para os profissionais. Dentre outros motivos, o
despreparo para lidar com estas questões está relacionado com a falta de capacitação e do
conseqüente domínio de instrumental teórico e prático para tratar dos agravos resultantes
da violência sexual, uma vez que este tema não faz parte da formação acadêmica dos
profissionais de saúde, junto à concepção de que esta não é uma problemática pertinente
ao setor saúde (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA, 1999).
Em seu estudo sobre o discurso dos profissionais de saúde acerca dos cuidados às
mulheres que sofrem violência, Pedrosa (2003) constatou que as práticas de assistência à
saúde dessas mulheres circunscrevem a ausência, na formação profissional, de discussões
sobre saúde e violência e outros aspectos a elas associados, como gênero, raça/etnia e o
contexto psicossocial das usuárias. Tal ausência se ratifica nas dificuldades encontradas na
prática profissional e é somente por meio da experiência que estes profissionais vão criando
estratégias para lidar com a violência no dia-a-dia das instituições de saúde. Por outro lado,
quando a notificação do cuidado está mais atrelada às tecnologias e às materialidades que
norteiam as práticas, ela obscurece a percepção das necessidades individuais das mulheres
em situação de violência e não gera ações propositivas voltadas para a autonomia das
mulheres e transformação das relações (PEDROSA, 2010).
Segundo Soares (2003), ao inverso do que acontece com a violência sexual, o tema
do abortamento faz parte do repertório de assuntos relacionados à vivência reprodutiva e
está contemplado na formação acadêmica dos profissionais da área médica e de
enfermagem. Todavia, a abordagem é influenciada por aspectos morais e religiosos que
trazem dificuldades para a compreensão do tema. De uma forma geral, a assistência é
norteada pela concepção de que o abortamento é um crime, sem referência aos direitos
reprodutivos ou às questões sociais que derivam da problemática da clandestinidade.
A interrupção da gravidez por risco de vida no primeiro trimestre da gravidez
encontra mais aceitação entre os médicos (AGUIRRE; URBINA, 1997). O mesmo não
acontece quando a interrupção é decorrente de estupro. De acordo com Faúndes et al
(2004), na prática diária, o aborto por risco de vida da gestante, foco desta Tese, é uma
raridade. Alguns especialistas defendem que não há mais condições prévias à gestação que
justifiquem o aborto. Tal afirmação pode ser contestada pela verificação de que uma

4
Estamos usando estupro e violência sexual como sendo sinônimos uma vez que foge ao escopo desse projeto
a problematização e discussão das particularidades desses termos.
4
importante proporção das mortes maternas é indireta5 e, portanto, resulta de condições
diagnosticáveis no início da gravidez. O fato é que o médico é o único juiz que decide
quanto acima do “normal” é o risco que a mulher deve correr para que se autorize a
interrupção da gravidez, e, em geral, supõe-se que esse risco deve ser muitíssimo elevado
para justificar o aborto. Ou seja, o poder médico interdita ou referenda a prática do
abortamento, facilitando ou criando impedimentos de acordo com o caso apresentado.
Conforme afirmações dos autores, a própria mulher não é consultada sobre quanto maior
risco ela está disposta a correr para ter esse filho.
Ao consultar a literatura que trata da gestação de risco, observamos que os estudos
brasileiros sobre o assunto têm uma abordagem específica associada a um tipo de risco,
não havendo uniformidade no tratamento do problema. O conceito de risco gravídico surge
para identificar graus de vulnerabilidade nos períodos de gestação, parto, puerpério e vida
da criança em seu primeiro ano (CESAR, 1998). Na assistência pré-natal, a gestação de
alto-risco diz respeito às alterações relacionadas tanto à mãe como ao feto (RESENDE,
1998).
Para o Ministério da Saúde (1995), a avaliação de risco não é tarefa fácil, uma vez
que o conceito de risco associa-se a possibilidades e ao encadeamento entre um fator de
risco e um dano nem sempre explicitado. O risco gravídico vem sendo objeto de discussão
no âmbito das políticas públicas em saúde e no campo das recomendações de
procedimentos técnicos. Segundo o Ministério da Saúde:

O conceito de risco é fundamentalmente probabilístico e o


encadeamento que associa um fator de risco a um dano nem
sempre está explicado. Em alguns [casos], por exemplo, o dano
"morte fetal" deriva claramente de um fator, porém em outros, a
relação é muito mais difícil de estabelecer por desconhecimento do
fator ou fatores intervenientes ou pela dificuldade em definir o peso
individual de cada um deles, quando o problema é multifatorial. Os
primeiros sistemas de avaliação do risco foram elaborados com base
na observação e experiência dos seus autores, e só recentemente
tem sido submetidos a avaliações, persistindo ainda dúvidas sobre
sua qualidade como discriminador (BRASIL, 1998, pág. 21, grifos do
autor).

Gomes et al (2001) realizaram uma análise dos artigos científicos da área da


Ginecologia/Obstetrícia buscando os sentidos que envolvem a expressão gravidez de alto
risco. Ao investigar os fatores de risco gestacional, os autores constaram que, do conjunto

5
Mortes obstétricas indiretas são aquelas resultantes de doenças existentes antes da gravidez ou de doenças
que se desenvolveram durante a gravidez, não devidas a causas obstétricas diretas, mas que foram agravadas
pelos efeitos fisiológicos da gravidez (OMS, 1994).

5
dos artigos selecionados, foram encontrados um total de 68 fatores de risco, sendo os mais
freqüentes: hipertensão arterial crônica, diabetes mellitus, cardiopatia, obesidade e
crescimento intra-interino retardado. Os resultados analisados pelos autores,
predominantemente voltados à intercorrências clínicas, indicam a ausência de estudos
qualitativos, o que pode corroborar a idéia reducionista no trato dos fatores de risco de
caráter social, que são de ordem mais complexa e menos precisa do que os fenômenos
propriamente clínicos.
Os autores também observaram que, em geral, os artigos analisados não trabalham
o conceito de gravidez de alto-risco, mas apresentam fatores que podem indicar um
desfecho que compromete a gravidez, caracterizados como marcadores que visam à
predição de morbi-mortalidade futura. Dessa forma, durante a gestação, a mulher está
sujeita a condições especiais consideradas inerentes ao estado gravídico que acarretam
mudanças nos processos metabólicos, que, se medidas, podem determinar o estado fetal.
Seguindo essa lógica, toda gestação traz em si mesma risco para a gestante ou para o feto.
Gomes et al (2001) assinalam que a idéia de probabilidade, associada à noção de
risco, permite diferentes leituras e coexistem sentidos que vão desde o pólo objetivo,
racional, preciso e mensurável, até o pólo intuitivo, subjetivo, vago e não mensurável.
Todavia, nesse vasto espectro, nota-se a presença da incerteza. Ao se analisar os fatores
de risco, pode-se, de uma forma indireta, chegar ao conceito de gravidez de alto-risco.
Entretanto, é possível perceber uma redução do conceito, uma vez que a idéia de fator de
risco se associa mais a aspectos fisio-patológico, não abrangendo, necessariamente, outras
dimensões do conceito de gravidez de alto risco.
O Ministério da Saúde também vem conceituando os fatores geradores de risco
numa amplitude maior do que a concebida pelos artigos estudados por Gomes et al (2001),
classificando tais fatores em quatro grandes grupos: características individuais e condições
sócio-demográficas desfavoráveis; história reprodutiva anterior à gestação atual; doenças
obstétricas na gestação atual; e as intercorrências clínicas. A ausência de assistência pré-
natal, por si mesma, é um fator de risco para a gestante e o recém-nascido (BRASIL, 2000).
Na análise feita por Gomes et al (2001) nos artigos que abordam fatores de risco,
foram identificados cinco sentidos atribuídos à gravidez de alto-risco: complicação,
alteração, anormal, evolução desfavorável, pejorativo. Sentidos estes que, segundo os
autores, podem ser traduzidos por situações que se afastam de um padrão previsível do
processo gravídico, que fisiologicamente é considerado como uma etapa habitual. A
diversidade dos sentidos atribuídos à gravidez de alto-risco pode estar relacionada com a
variedade de significados da palavra risco, que assume diferentes acepções e, em
conseqüência disso, acarreta ambigüidades (CASTIEL, 1999).

6
Em um estudo sobre conhecimento, opinião e conduta de ginecologistas e obstetras
brasileiros sobre o aborto induzido, Faúndes et al (2004) constataram que 90% dos médicos
são favoráveis ao aborto nos casos de gestação de risco, e 60% o justificam como um risco
cinco vezes, ou menos, que o “normal”, e 80% quando esse risco é 20 vezes, ou menos,
que o “normal”. O argumento dos autores é, que se considerarmos que a mortalidade
materna em grandes áreas do Brasil está em torno de 60 por 100.000 nascidos vivos, um
risco 20 vezes maior corresponde a uma letalidade de (0,6 x 20) 12/1000 ou 1,2%. Isto
contrasta com a opinião de alguns especialistas que julgam que esse seria um risco muito
pequeno para justificar a interrupção da gravidez. Parafraseando os autores, resta saber se
a mulher grávida está disposta a correr esse risco ou se, considerando as diversas
situações de sua vida, julga que seria melhor evitá-lo.
Nosso interesse sobre o tema do aborto em casos de gestação de risco gira em
torno da seguinte questão: que noções de risco são usadas por médicos obstetras para
referendar a prática do aborto por risco de vida da gestante? Essa pergunta se desdobra
nos seguintes objetivos específicos: identificar as noções de risco presentificadas nos
argumentos médicos sobre gestação de risco; interpretar os argumentos usados para
fundamentar a decisão pelo aborto ou manutenção da gestação; e analisar a construção
discursiva da justificativa médica para o diagnóstico de gestação de risco com indicação
terapêutica de aborto.
No esforço de alcançar os objetivos acima descritos estruturamos a tese da seguinte
maneira: no primeiro capítulo apresentamos os aportes teóricos que fundam a racionalidade
política baseada na biologia dos corpos, a biopolíca e suas leituras contemporâneas; no
segundo capítulo discutimos o conceito de risco no campo da saúde; no terceiro tratamos da
abordagem do risco na Clínica Obstétrica; o quarto capítulo é uma descrição dos
procedimentos metodológicos assumidos para organização das informações a serem
analisadas e interpretadas; o quinto e o sexto capítulos apresentam a análise das
construções argumentativas sobre risco na gestação e aborto por risco de vida da gestante,
respectivamente. Por fim, no ultimo capítulo, são apresentadas as últimas considerações
sobre o estudo realizado.

7
Capítulo 1

A analítica foucaultiana sobre o governo da vida: contribuições conceituais


para a formulação do objeto de pesquisa

Contemporaneamente, a vida, a saúde e a luta política pelos direitos a elas


relacionados, incluindo a legalização do aborto no Brasil, emergem na maior parte dos
debates sobre proteção da cidadania em diversas áreas multidisciplinares de investigação
em ciências sociais e humanas, assumindo uma relevância visivelmente crescente
(ANGÊLA FILIPE, 2010). Este campo de produção de conhecimento pode atravessar os
debates internos e externos aos domínios do saber sobre biomedicina e sociedade, ciência
e democracia, conhecimento e poder, e cruza uma diversidade de contribuições
disciplinares, teóricas, metodológicas e temáticas que convergem nos estudos sobre o
domínio da saúde nas ciências sociais e humanas.
Inserindo-se nesta perspectiva, propomos discutir o conceito foucaultiano de
biopoder/biopolítica e sua aplicabilidade na empreitada proposta nesta tese: entender como
as estratégias argumentativas pautadas no poder médico que referendam o aborto em
casos de gestação de risco são configuradas a partir das linguagens dos riscos (M. J.
SPINK; MENEGON, 2004; ADAM; VAN LOON, 2000). Para tanto, organizamos o capítulo
em duas partes: a primeira discute a noção de biopolítica em sua gênese foucaultiana e a
segunda apresenta uma releitura deste conceito na perspectiva dos estudos
contemporâneos sobre governo da vida.

1.1. A bipolítica de Michel Foucault

As formulações teóricas que nos ajudam a compreender os dispositivos disciplinares


usados para referendar o aborto em casos de risco de vida da gestante são fundadas no

8
conceito foucaultiano de bioplítica e este será usado para discutir as estratégias de poder6
sobre o governo da vida e da morte. Não é nossa intenção fazer uso exaustivo das
complexas definições sobre poder que Foucault desenvolve ao longo de suas obras, por
isso nos deteremos, mais especificamente, em alguns aspectos que circunscrevem o direito
de viver e de morrer em seus livros “Historia da Sexualidade I” (1988) e “Em defesa da
Sociedade” (1999).
Arán e Peixoto Júnior (2007) afirmam que o conceito de biopolítica foi enunciado pela
primeira vez por Foucault numa conferência que ele ministrou em 1974 na Universidade
Estadual de Rio de Janeiro. A palestra foi publicada em 1977 com o nome de “O nascimento
da medicina social” (FOUCAULT, 1979). Segundo os autores, nesse texto Foucault aponta
um deslocamento significativo nas estratégias de poder, apresentando a idéia de que o
controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou
pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no
corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista (FOUCAULT, 1979). Contudo, é
no quinto capítulo da “Vontade de saber” que Foucault esclarece e aborda detidamente o
conceito de biopoder por oposição ao direito de morte que caracterizaria o poder do
soberano. Essa temática foi retomada no curso do Collège de France dos anos 1975 e
1976, “Em defesa da Sociedade”, dedicado à problemática da guerra de raças e das suas
relações com o biopoder; no curso dos anos 1977-1978, “Segurança, território e população”
e no curso dos anos 1978-1979, dedicado ao nascimento da biopolítica.
Segundo Foucault (1988), as noções de poder soberano e biopoder foram usadas
durante séculos para legitimar uma determinada posição frente a um sujeito ou população,
posição esta que sempre implicava vida e morte. O autor usa o termo poder soberano para
referir-se ao direito de vida e de morte, o que significa, na teoria clássica da soberania, que
o soberano pode fazer morrer e deixar viver. Em “Vigiar e Punir”, Foucault abordou o tema
em termos de economia da punição no suplício: “Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe
toda a economia do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 35). O direito de punir com a morte se
colocava como fundamental para o exercício da soberania clássica. Mas o que seria ter o
poder de vida e de morte? Em suas palavras: “a vida e a morte dos súditos só se tornam
direitos pelo efeito da vontade soberana” (1999, p. 286). A legitimação do poder soberano é

6
Foucault compreende poder: “primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio
onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes
as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de forças encontram umas nas outras, formando
cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim as estratégias
em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na
formulação da lei, nas hegemonias sociais” (História da Sexualidade I: a vontade de saber. 2001. 14 ed., Rio de
Janeiro, Graal, p. 88-89).

9
justificada pelo direito de morte; é por poder matar que o soberano domina seus súditos e
exerce direito sobre suas vidas.
O autor afirma que, na soberania política, o soberano ter o poder de vida e de morte
implica dizer que ele pode tanto fazer morrer quanto deixar viver; que nada nessa relação é
natural, uma vez que é estabelecida pelo direito do soberano de governar a vida e a morte
das pessoas. Não há nessa relação a escolha pela vida, e aí se pode encontrar a
contradição, ou o paradoxo, como nomeia Foucault, no exercício do poder soberano, pois,
se o soberano tem o direito de vida e de morte, o desequilíbrio entre fazer morrer e deixar
viver é fundamental. Ou seja, a prática do direito de vida e de morte não se exerce de
maneira equilibrada; ao contrário, o soberano possui o poder sobre a vida por ter antes o
direito de exercer o poder sobre a morte.
É porque o soberano pode matar que ele tem o poder sobre a vida, e, assim, o
exercício soberano coloca-se a partir do direito de fazer morrer ou deixar viver. Foucault
descreve o poder soberano nos seguintes termos:

Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder


soberano fora o direito de vida e morte. Sem dúvida, ele derivava
formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família
romano o direito de “dispor” da vida de seus filhos e de seus
escravos; podia retirar-lhe a vida, já que a tinha “dado”. O direito de
vida e morte, como é formulado nos teóricos clássicos, é uma forma
bem atenuada desse poder. Entre soberano e súditos, já não se
admite que seja exercido em termos absolutos e de modo
incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se
encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito
de réplica [...] De qualquer modo, o direito de vida e morte, sob esta
forma moderna, relativa e limitada, como também sob sua forma
antiga e absoluta, é um direito assimétrico. O soberano só exerce, no
caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou
contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem
condições de exigir. O direito que é formulado como “de vida e
morte” é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver [...].
O poder era, antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do
tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio
de se apoderar da vida para suprimi-la. (FOUCAULT, 1988, p. 147-
148).

Esse tipo de direito sobre a vida e morte das pessoas, segundo Foucault (1999),
pertence à Idade Média, e é apenas no século XIX que se instala uma nova forma de
exercer esse direito. Trata-se de uma transformação que conste não exatamente em
substituir, mas em completar esse velho direito soberano de fazer morrer e deixar viver,
penetrando-lhe e ao mesmo tempo modificando-lhe. O novo direito que se instala inverte a

10
lógica do fazer morrer e deixar viver do direito clássico; agora, trata-se de fazer viver e
deixar morrer. O autor assim explica essa transformação:

Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver


foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte.
Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte,
marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam. A
preocupação que se tem em esquivar a morte está menos ligada a
uma nova angustia que, por acaso, a torne insuportável para as
nossas sociedades, do que ao fato de os procedimentos do poder
não cansarem de se afastar dela. Com a passagem de um mundo
para o outro, a morte era a substituição de uma soberania terrestre
por uma outra, singularmente mais poderosa; o fausto que a
acompanha era da ordem do cerimonial político. Agora é sobre a vida
e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus
pontos de fixação; a morte é o limite, o momento que lhe escapa; ela
se torna o ponto mais secreto da existência, o mais “privado” [...]
(FOUCAULT, 1988, p. 150-151, grifos do autor).

Para Foucault (1999), essa inversão é fruto das transformações do direito político.
Ele assinala que, desde que as sociedades se organizaram em termos de contratos sociais,
os súditos delegam poderes ao soberano porque querem que esse lhes proteja a vida. Na
noção de contrato social tem-se o direito da preservação da vida como um dos direitos
fundamentais. O perigo e a necessidade são os motivos que justificam a existência de um
soberano; é para poder viver que se institui um soberano.
As articulações entre esses diferentes direitos sobre a vida e morte, na visão de
Foucault, propõem pensar como a vida ganha cada vez mais importância no campo da
política. O caminho que o autor percorre não segue a Teoria Política, mas os mecanismos,
as técnicas e as tecnologias de poder utilizadas num dado momento histórico. Ao trabalhar a
questão do poder, Foucault não privilegia a abordagem jurídica institucional, mas procura
analisar a forma com que o poder penetra nos corpos e produz subjetividades. Por esse
motivo, suas investigações voltam-se fundamentalmente para as técnicas políticas e as
tecnologias do “eu”. Essas técnicas são novas formas de exercer o direito sobre a vida e
morte e são construídas nos séculos XVII e XVIII.
Foucault analisou os mecanismos, as técnicas e as tecnologias de poder que
intervêm diretamente no corpo das pessoas. A essa tecnologia disciplinar se soma outra
que, durante o século XVII, vai ser direcionada não ao “homem-corpo”, mas ao “homem-
espécie”. Essa nova tecnologia disciplinar “tenta reger a multiplicidade dos homens na
medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem
ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1999, p. 289). O
direito de fazer viver que caracteriza o biopoder se baseia nessas duas técnicas específicas,

11
cujo surgimento marca a passagem de uma anátomo-política do corpo para uma biopolítica
da vida. O autor deu o nome de biopolítica da espécie humana a essa nova forma política,
significando que, depois de ter poder sobre a pessoa, este também é exercido sobre o
grupo, a população, e diz respeito, entre outras coisas, aos controles de natalidade e
mortalidade. Em síntese, essa nova tecnologia não se resume às pessoas como corpo; ela
se dirige aos fenômenos mais globais, mais gerais, e vai afetar os processos relacionados à
vida.
Dito de outra forma, a antiga potência da morte que simboliza o poder soberano é
agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da
vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das diversas disciplinas -
escolas, colégios, casernas, ateliês, etc., aparecimento, também, no terreno das práticas
políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde
pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para
obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Gera-se, desse modo, a era de
um “biopoder”. No século XVIII, as duas direções em que se desenvolve ainda aparecem
nitidamente separadas. Do lado da disciplina, as instituições como o Exército ou a escola; as
reflexões sobre a tática, a educação e a ordem da sociedade. Do lado das regulações de
população está a demografia, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, e a
tabulação das riquezas e de sua circulação, isto é, das vidas com sua duração provável.
Esse biopoder, segundo Foucault (1988), foi elemento indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada
dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de
população aos processos econômicos. Com o surgimento do capitalismo foram necessários
métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto
torná-las mais difíceis de sujeitar. Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento dos grandes
aparelhos de Estado, como as instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de
produção, os rudimentos da anátomo e da biopolítica, inventados no século XVIII - como
técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições
bem diversas -, agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças
que estão em ação em tais processos e os sustentam. Operaram, também, como fatores de
segregação e de hierarquização social agindo sobre as forças respectivas tanto de uns
como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia. O ajustamento
da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos
à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte,
tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos.

12
O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas
forças foram indispensáveis naquele momento histórico. Assim, Foucault (1988) defende
que deveríamos falar de “biopolítica” para designar o que faz com que a vida e seus
mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de
transformação da vida humana.
A biopolitica diz respeito à natalidade, a mortalidade, as incapacidades biológicas, os
efeitos do meio, e é aí que se constitui o saber sobre os corpos, é onde se define o campo
de intervenção do poder sobre a população. Na arena biopolitica, a população é tratada
como problema político, científico, biológico e de poder. Em outras palavras, a biopolítica
fornece mecanismos de providência em torno de eventos aleatórios que são inerentes a
uma coletividade, a uma população de seres humanos, buscando níveis globais de
equilíbrio. O biopoder constitui-se como uma espécie de poder regulamentador que intervém
para fazer viver, controlando possíveis acidentes, para aumentar o tempo de vida e retardar
a morte. Nesse âmbito, a morte passa a ser, cada vez mais, domínio da vida privada,
particular. Foucault (1988) afirma que o surgimento da biopolítica acontece como se o
poder, que antes tinha como modalidade a soberania, tivesse ficado inoperante para reger o
corpo econômico e político de uma sociedade em face de uma explosão demográfica e do
surgimento da industrialização. Estamos diante de um poder que se incumbiu tanto do
corpo quanto da vida.
Foucault (1999) assinala ainda que, de uma forma geral, a “norma” é o elemento que
vai circular entre o disciplinar e o regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao
corpo e à população; que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os
acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica. A norma é o que pode tanto se
aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer
regulamentar. A sociedade de normalização não é uma espécie de sociedade disciplinar
generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo
o espaço; ela é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a
norma da disciplina e a norma da regulamentação. Desse modo, afirmar que o poder, no
século XIX, incumbiu-se da vida significa que ele conseguiu contemplar toda a superfície
que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das
tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra.
Para Foucault (1999) a emergência do biopoder inseriu o racismo nos mecanismos
do Estado moderno. Isto é,

[...] foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo


fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos e que faz
com que quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo

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momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo. (p.
303).

Na concepção de Foucault o racismo é, primeiramente, o meio de introduzir nesse


domínio biopolítico da vida de que o poder se incumbiu uma cisão entre o que deve viver e o
que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento, a distinção, a
hierarquia e a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como
inferiores vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se
encarregou; uma maneira de defasar, no interior da população uns grupos em relação aos
outros. Em outras palavras, de estabelecer uma censura que será do tipo biológico no
interior de um domínio considerado como sendo precisamente biológico. Isso vai permitir ao
poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a
espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão,
precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no
interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder. A segunda função do racismo
será desempenhar o papel de permitir uma relação positiva do tipo guerreiro – “se você quer
viver é preciso que o outro morra” - de uma maneira que é inteiramente nova e que é,
exatamente, compatível com o exercício do biopoder.
O racismo vai permitir estabelecer, entre a vida de um e a morte do outro, uma
ligação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas uma correlação do
tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os
indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá à espécie, mais eu – não
como indivíduo, mas como espécie – viverei, mais forte, mais vigoroso serei, mais poderei
proliferar” (FOUCAULT, 1999, p.304). A morte do outro, nessa lógica, não seria
simplesmente a minha vida, na medida em que seria a minha segurança pessoal; a morte
do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que
vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura.
Portanto, não se trata de uma ligação de natureza militar, guerreira ou política, mas
de correlação biológica. E, se esse mecanismo pode atuar é porque os inimigos que se trata
de suprimir não são os adversários no sentido político do termo; são os perigos, externos ou
internos, em relação à população e para a população. Em outras palavras, tirar a vida, o
imperativo da morte, só é admissível, no sistema de biopoder, se tenta não a vitória sobre os
adversários, mas a eliminação do perigo biológico e o fortalecimento, diretamente ligado a
essa eliminação, da própria espécie ou da raça. Para Foucault, a raça, o racismo é a
condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização; quando se
concebe uma sociedade de normalização e se estabelece um poder que é um biopoder, o
racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém. A função

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assassina do Estado só pode ser assegurada se o próprio Estado funcionar no modo do
biopoder, ou seja, pelo racismo.
Desse modo, a importância dada ao racismo no exercício do biopoder se deve ao
fato de que ele cumpre a condição para que se possa desempenhar o direito de matar. Para
ser exercido o poder de normalização que desempenha o velho direito soberano de matar
ele atravessa o racismo. E, inversamente, para um poder de soberania, ou seja, um poder
que tem direito de vida e de morte funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com
a tecnologia da normalização, ele também tem de passar pelo racismo. Aqui, “tirar a vida”
não é significado por Foucault como simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o
que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco
de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.
Para sintetizar o que foi dito até aqui, este “fazer viver” que caracteriza o biopoder se
baseia em duas tecnologias específicas. A primeira, delas, criada nos séculos XVII e XVIII,
consiste em técnicas essencialmente centradas no corpo individual, caracterizada por
procedimentos que asseguram a sua distribuição espacial e a organização de sua
visibilidade (técnicas de racionalização e de economia destinadas a aumentar sua força útil).
O conjunto dessas técnicas compunha uma determinada disciplina. No decorrer do século
XVIII, surgiu outra tecnologia de poder que não exclui a primeira, mas que, além de integrar
o corpo, se dirige essencialmente à gestão da vida (nascimentos, mortalidade, saúde e
longevidade). Assim, de uma anatomo-política do corpo passou-se a uma biopolítica da
vida; a partir desta hipótese, Foucault insere a biopolítica numa relação problemática entre
vida e história, ou vida e política.

1.2. Releitura da biopolítica foucaultiana: uma reflexão sobre aborto como objeto
de governo

Numa tentativa de atualização da concepção foucaultina, Rabinow e Rose (2006),


advogam que o conceito de biopoder serve para trazer à tona um campo constituído por
tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da
existência humana e das coletividades ou populações compostas por seres humanos.
Sobre a diferenciação entre os termos biopolítica e biopoder, estes autores afirmam
que Foucault é de algum modo impreciso em seu uso dos termos no campo do biopoder de
modo que podemos usar o termo biopolítica para abarcar todas as estratégias específicas e
contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e
mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de
intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes. Atualmente, nos trabalhos que

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abordam esta temática, o termo biopoder é mais comumente empregado para se referir à
geração de energia do material biológico renovável; e o termo biopolítica tem sido usado por
defensores de causas ambientais e ecológicas. Rabinow e Rose propõem que o conceito de
biopoder designa um plano de atualidade que deve incluir, no mínimo, os seguintes
elementos (RABINOW, 1994; 1996; 1999; ROSE, 2001; 2006; RABINOW; ROSE, 2006):

• Um ou mais discursos de verdade sobre o caráter ‘vital’ dos seres humanos, e um


conjunto de autoridades consideradas competentes para falar aquela verdade. Estes
discursos de verdade não podem ser ‘biológicos’ no sentido contemporâneo da
disciplina; por exemplo, eles podem hibridizar os estilos biológicos e demográficos ou
mesmo sociológico de pensamento, como nas relações contemporâneas de
genômica e risco, unificadas na nova linguagem de suscetibilidade. No debate sobre
a moralidade do aborto voluntário os discursos de verdade se apóiam em dois
campos: a ciência (mais especificamente a biomedicina) e a religião. Esses
discursos têm como alvo o corpo da mulher grávida e versam sobre o caráter vital da
vida que merece ser vivida, a da mulher ou a do feto.
• Estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte,
inicialmente endereçadas a populações que poderiam ou não ser territorializadas em
termos de nação, sociedade ou comunidades pré-dadas, mas que também poderiam
ser especificadas em termos de coletividades biossociais emergentes, algumas
vezes especificadas em termos de categorias de raça, etnicidade, gênero ou religião.
Uma categoria de gênero específica, a mulher, é alvo de estratégias de biocontrole
quando se fala em reprodução e sexualidade, especialmente quando se trata de
aborto. Entretanto, dentro desta categoria há um grupo de mulheres mais vulnerável
às estratégias de controle dos seus corpos: as negras, pobres e desassistidas
socialmente.
• Modos de subjetivação por meio dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si
próprios, sob certas formas de autoridade, em relação a discursos de verdade, por
meio de práticas do self, em nome de sua própria vida ou saúde, de sua família ou
de alguma outra coletividade, ou inclusive em nome da vida ou saúde da população
como um todo. Por exemplo, os modos como os serviços de saúde prestam
assistências a gestantes se efetiva como uma estratégia de intervenção biopolítica
sobre seus corpos e os profissionais de saúde, sobretudo os médicos, são as
autoridades capazes de decidir se devem manter a gestação ou interrompê-la.

16
A biopolítica e o biopoder são tomados como fatores que incidem sobre a escolha pelo
aborto. A subordinação da medicina científica ao desenvolvimento capitalista como a
primeira forma de intervenção do Estado sobre o indivíduo encontra- se bem fundamentada,
e ocorreu por meio da socialização do corpo, transformando-o em corpo social, o qual
representa o controle da sociedade sobre os indivíduos (FOUCAULT, 1988). O capitalismo
transformou o corpo em unidade biopolítica, e a Medicina foi o meio pelo qual a biopolítica
passou a exercer o controle sobre o corpo das pessoas. Esse poder apreendido pelo
Estado, por intermédio da Medicina, designada instância capaz de exercer tal controle sobre
o corpo e a sexualidade, cunhou o aborto como objeto da biopolitica.
Discutimos anteriormente como Foucault apresenta o início do pensamento sobre a
biopolítica que, por um lado, pode ser uma prática do Estado que serve, por exemplo, para o
controle de indicadores de saúde, importantes para se pensar as políticas públicas de saúde
(SCHRAMM, 2006), como a natalidade. Por outro lado, esse dispositivo pode objetivar o
domínio reprodutivo da população, induzindo às mulheres à necessidade (quase obrigação)
de usar métodos contraceptivos, quando o interesse político está focado no controle da
natalidade, ou ao contrário, desestimular o uso desses métodos como também proibir o
aborto em sociedades que necessitam crescer demograficamente, conforme ocorreu em
civilizações da Antiguidade e, recentemente, em alguns países da Europa após a Segunda
Guerra Mundial, onde a lei passou a não mais permitir o aborto (SCHOR; ALVARENGA,
1994).
Devemos considerar também, além do exercício do poder médico, a influência de fatores
decorrentes da moral religiosa. O isolamento moral que a sociedade imputa às mulheres
que abortam decorre de classificação estereotipada que provém da moral religiosa e está
associada ao controle biopolítico do corpo pela Medicina e pelo Estado. Esse é outro fator
relacionado às altas incidências de complicações e morte por aborto induzido, pois
impulsiona a mulher a realizar o procedimento às escondidas, para assegurar sua
privacidade e fugir do julgamento do senso moral da sociedade (FARFÁN, 2006).
Segundo Anscombe (2005), a norma moral não matar, relacionada ao dever, possui
exceções como na legítima defesa, na guerra, em campos de concentração – quando matar
ou mentir para salvar a vida de inocentes pode ser uma ação justa. E uma gravidez
indesejada não seria um estado de exceção na vida da mulher? Entretanto, a biopolítica
reduz o ser humano a um corpo biológico sem as características históricas, culturais e sem
seus direitos (= de bíos à zoé), isto é, a vida nua, o homo sacer (AGAMBE, 2002). Com o
argumento de que a gravidez é sagrada, baseado no princípio da sacralidade da vida, a
biopolítica se contrapõe ao aborto, não se importando com os motivos que norteiam a
vontade da mulher de interromper a gravidez (KOTTOW ,2005).

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Na discussão da moral do aborto perpassada pela biopolítica e o controle do corpo
social, percebe-se um conflito para caracterizar a mulher que deseja abortar: ela é agente
ou sujeito moral? Essa determinação é fundamental para a avaliação bioética da temática.
Ao ser qualificada como responsável por estar grávida, a mulher é enquadrada como
agente, ou seja, ela agiu contra seus desejos ao se deixar engravidar, pois não usou
métodos para evitar que isso ocorresse. Entretanto, essa análise pode (e deve) ser
questionada pelo seguinte argumento: a interação entre responsabilidade e liberdade de
escolha e o efetivo acesso aos dispositivos de informação e métodos de planejamento
familiar são determinados pelo ordenamento jurídico.
Mesmo quando a gravidez é desejada/planejada e a decisão pelo aborto por risco de
vida se coloca como uma opção, esta decisão não cabe à mulher, pois quem vai decidir
sobre o quanto de risco ela pode ou deve correr é o médico que gerencia sua vida.
De acordo com Ângela Filipe (2010), na última década, o conceito de biopolítica tem sido
atualizado por autores diversos e em terrenos distintos, como o antropólogo Paul Rabinow
com a noção de biosocialidade (1996). Outros autores revisitaram os conceitos seminais de
Foucault para descrever as reconfigurações que mediam diversas modalidades de cidadania
a partir das concepções de vida, de biológico e/ou de saúde e doença, consagrando um
novo espaço conceitual – o de biocidadania. Segundo a autora, este conceito dispõe de uma
enorme diversidade de especificações e contribuições teóricas, advindas de autores como
Adriana Petryna7; Charles Briggs e Clara Martini-Briggs8; Deborah Heath9, Rayna Rapp10 e
João Biehl11.
Outros autores, dentre eles Nikolas Rose, exploram noções como a de política da
vida em si mesma (life itself), lançando como desafio considerar a forma como as questões
de biologia e biomedicina, e os seus pressupostos, influenciam e moldam os atuais projetos
de cidadania num mundo globalizado e onde o foco não se resume a estratégias definidas
“a partir de cima” (ROSE, 2006, p. 132-133).
A metáfora “a partir de cima” refere-se à forma como nos posicionamos diante de
duas polaridades distintas, à medida que abordamos o eixo do biopoder e da biopolítica ou o
7
PETRYNA, Adriana. Life Exposed: Biological Citizens after Chernobyl (In-formation). New Jersey: Princeton
University Press, 2002.
PETRYNA, Adriana; Kleinman, Arthur, “The pharmaceutical nexus”, in Petryna et al. (eds.), Global
Pharmaceuticals: Ethics, markets, practices. London: Duke UniversityPress, 2006.
8
BRIGGS, Charles; MARTINI-BRIGGS, Clara. Stories in the Time of Cholera: Racial profiling during a medical
nightmare”. Berkeley: University of California Press, 2003.
BRIGGS, Charles, “Communicability, Racial Discourse, and Disease”, Annual Review of Anthropology, 34, 269–
91, 2005.
9
HEATH, Deborah et al. “Genetic Citizenship” in David Nugent e Joan Vincent (eds.), A companion to the
Anthropology of the Politics. Oxford: Blackwell Publishing,152-167, 2004.
10
RAPP, Rayna, “Cell life and death, Child life and death: genomic horizons, genetic diseases, family stories”, in
Sarah Franklin e Margaret Lock (eds.), Remaking Lifeand Death: Toward an anthropology of the biosciences.
Santa Fe: School of American Research Press,129-164, 2003.
11
Biehl, João, Will to Live: AIDS therapies and the politics of survival. Princeton: Princeton University Press,
2007.
18
eixo das lutas em torno da saúde. De acordo com Ângela Filipe (2010), na constituição e
nascimento desses dois eixos parece configurar-se, grosso modo, um projeto “de cima para
baixo” do governo da vida e um projeto “de baixo para cima” da luta em torno da própria
vida, interferindo em diferentes modos na conformação do panorama contemporâneo da
saúde. Os debates contemporâneos sobre saúde, (bio)medicina, cidadania e política
surgem, de um lado, marcados por um conjunto de reflexões em torno das transformações
que se operam no campo da (bio)medicina e do poder, de outro, por um outro grupo de
considerações sobre redefinições introduzidas por atores coletivos. Contudo, algumas das
mais visíveis transformações que se operam no panorama da saúde desenvolvem-se em
ambos os projetos e poderiam incorporar ambas as linhas de reflexão.
Esta tese, por sua vez, situa-se num investimento “de cima para baixo”, ao eleger
como objeto de estudo o governo sobre a vida mediada pelo discurso médico. O movimento
“de baixo para cima” é mais um esforço pessoal da autora da Tese - tendo em vista seu
posicionamento político em defesa do amplo e livre direito da mulher de decidir pelo aborto -
e menos uma empreitada científica, posto que não é exatamente a luta pelo livre acesso ao
aborto o alvo da investigação proposta.
Como vimos na primeira parte deste capítulo, na análise original de Michel Foucault
(1988), o biopoder torna-se parte de uma tecnologia bipolar que levou o Estado moderno a
assumir a administração dos corpos – a anatomopolítica – e a gestão da vida e das
populações – a biopolítica. As importantes formulações desenvolvidas por Foucault têm sido
atualizadas por uma série de autores e autoras das ciências sociais e humanas que
desenvolvem teorizações sobre o político, a ciência e a medicina. É da intersecção destas
áreas de conhecimento que surgem os debates mais instigantes sobre biopoder e biopolítica
e, consequentemente, sobre a forma como se define e legitima contemporaneamente o que
é saúde, biologia, política, cidadania e como se (co)produzem os processos que lhes são
inerentes (ÂNGELA FILIPE, 2010).
Seguindo a tradição de pesquisas do Núcleo de Prática Discursivas e Produção de
Sentidos da PUCSP, onde esta tese se insere, nosso interesse pela biopolítica é focalizado
na conexão entre risco e governamentalidade (M. J. SPINK, 2007a, 2007b, 2010). Trata‐se
de uma abordagem sobre o cálculo de risco como estratégia de governo que implica o
entrelaçamento entre a emergência de uma prática (a de registros, de natalidade e
morbidade, entre outros), e de uma certa tecnologia – o cálculo de probabilidade – que, em
conjunção, dão visibilidade ao conjunto denominado população, e de uma ciência de
governo que tem a população como alvo (M. J. SPINK, 2010).

19
O conceito de governamentalidade foi desenvolvido por Foucault em várias obras,
sobretudo em seu texto homônimo da aula proferida no Collège de France em 1º de
fevereiro de 1978 (FOUCAULT, 1995). Para o autor, governamentalidade

[...] é o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e


reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante
específica e complexa de poder que tem por alvo a população, por forma
principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos
essenciais os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 1995, p. 292).

Na teorização foucaultina, o governo é concebido como a fusão das atividades de


cada um de nós, cabendo à Psicologia Social uma relevante contribuição na compreensão
dos sentidos dos riscos na vida cotidiana. Trazendo essa proposta para o enquadre da
psicologia discursiva que se desenha no âmbito do movimento construcionista, o foco se
desloca das estratégias regradas para as formas de falar sobre riscos em diferentes
instâncias da vida cotidiana (M. J. SPINK, MENEGON, 2004).
Como vimos no início deste capítulo, o foco da biopolítica eram os fenômenos que
diziam respeito à natalidade e à morbidade presentes na forma de endemias e que
possibilitavam a configuração de uma Medicina que teria por função a higiene e a saúde
pública. Portanto, dependeria de análises de séries que possibilitariam cálculos, previsões e
estimativas e, consequentemente, políticas direcionadas ao conjunto da população, embora
necessariamente articuladas com as formas disciplinares. Risco e governamentalidade
tornaram‐se, assim, intrinsecamente relacionados, e cálculos de risco passaram a ser
elementos centrais das tecnologias administrativas. Em síntese, as estratégias biopolíticas
têm por principal fundamento o cálculo e gerenciamento de riscos, tema que abordaremos
no próximo capítulo.

20
Capítulo 2
Risco na sociedade contemporânea: o contexto da Saúde

Este capítulo tem por objetivo discutir o uso das linguagens de risco no campo da
Saúde e está organizado de modo a seguir a seguinte linha argumentativa: apresentação da
concepção da linguagem dos riscos; discussão dos modos de gestão dos riscos na
sociedade contemporânea; abordagem do risco na Epidemiologia; considerações sobre o
processo de “molecularização” dos riscos; e, por último, apontamentos sobre formalização
do risco no campo da clínica. Dentro da organização desta tese, o presente capítulo tem a
função de oferecer elementos conceituais e teóricos para a interpretação dos usos das
noções de risco empregadas pelos médicos obstetras na avaliação do risco na gestação e
sua decorrente indicação pelo aborto ou manutenção da gestação.

2.1. Linguagens dos riscos

A comunicação de riscos, no formato clínico do “diagnóstico de risco”, associado ao


emprego de tecnologias na área da saúde é um elemento importante na decisão pela
manutenção ou interrupção legal da gestação. Esse aspecto relaciona dois âmbitos: o que
pode ser vislumbrado como risco à saúde da gestante, do ponto de vista clínico; e o que se
concebe como direito ao aborto nos casos em que a gestante “está em risco”.
As variadas concepções sobre risco, formatadas a partir da modernidade tardia,
estão tradicionalmente associadas ao controle de acontecimentos vindouros, quase sempre
indesejáveis, por meio de cálculos probabilísticos. A recomendação de comunicar os riscos
envolvidos em procedimentos de cuidado em saúde origina-se de campo de saberes formais

21
(Medicina, Enfermagem, Psicologia, etc.). Este fato nos faz inferir que os modos de
identificar, avaliar e comunicar riscos estejam vinculados a conceitos de análise técnica de
riscos, que integram o conjunto tradicional da linguagem dos riscos (M. J. SPINK;
MENEGON, 2004; MENEGON, 2006).
Propomo-nos a buscar compreender a importância que a noção de risco exerce na
indicação terapêutica para interrupção legal da gestação, e, conseqüentemente, entrever a
sustentação conceitual para a análise dos argumentos sobre risco na gestação. Para tanto,
focalizamos a consideração da linguagem dos riscos como uma dimensão das linguagens
sociais -, argumentando que uma linguagem social constitui-se com a permanência e a
constância de alguns elementos, como conjuntos de repertórios interpretativos12 que se
tornam prototípicos.
No campo discursivo da vida social cotidiana (ALMEIDA-FILHO, 1992), não há
consenso sobre o que seja risco, nem muito menos uma uniformidade conceitual, mas o
mesmo não acontece com a gênese histórica que propiciou a emergência de práticas
discursivas e a posterior permanência discursiva de alguns de suas concepções, pois
determinadas condições da modernidade propiciaram a formatação de discursos sobre risco
(BERNSTEIN, 1997; WYNNE, 2001; M. J. SPINK, 2001). Ou seja, a linguagem dos riscos
tem como matriz conceitual os aparatos intelectuais, culturais e materiais, próprios da
modernidade que propiciaram a formação de uma linguagem social para falar da aspiração
de controle de riscos, num jogo entre eventos passados e projeções futuras.
Há divergência sobre uma série de possíveis datas para a emergência do “estudo
científico de risco” e de sua profissionalização. Mas seja qual for o marco, a expansão da
análise de riscos ocorre a partir da Segunda Guerra Mundial, apresentando três áreas inter-
relacionadas: avaliação de risco, percepção de risco e gerenciamento de risco (M. J. SPINK,
2000a; 2001). Brian Wynne (2001) refere-se ao resultado dessa expansão, argumentando
que, pelo menos na última metade do século XX, as sociedades ocidentais ficaram
subordinadas ou até mesmo definidas por dois mitos gêmeos: o determinismo e o controle.
Embora não seja objetivo deste trabalho traçar a trajetória das abordagens que
contribuíram para a formalização e a expansão da linguagem dos riscos, mesmo porque
esse campo é bastante complexo e repleto de estudos e de perspectivas divergentes,
sintetizamos, a seguir, algumas abordagens técnico-científicas e socioculturais sobre riscos.
Para essa empreitada, seguiremos o caminho já traçado por Vera Menegon (2006),
pesquisadora do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da PUCSP,

12
Repertórios interpretativos são o conjunto de termos, lugares comuns e descrições utilizadas em construções
gramaticais e estilísticas. Constituem os dispositivos lingüísticos que utilizamos para construir versões dos
eventos, ações e outros fenômenos que estão a nossa volta que estão presentes em uma variedade de
produções lingüísticas e atuam como substrato para uma argumentação (POTTER; WETHERELL, 1987).
22
adotando a classificação de abordagens sobre risco proposta por Ortwin Renn (1992) e
Deborah Lupton (1999).

2.1.1. Abordagens técnico-científicas sobre risco

A classificação de Renn (1992) diferencia sete vertentes de abordagens de risco: 1)


atuarial; 2) toxicológica e epidemiológica; 3) das engenharias; 4) econômica, com
comparações entre risco e beneficio; 5) psicológica, com análise psicométrica; 6) teoria
cultural de risco; e 7) teorias sociais de risco. O autor considera as três primeiras como
abordagens técnicas de risco; a quarta e a quinta, como abordagens intermediárias; e a
sexta e sétima, como socioculturais. Ele afirma que as sete abordagens compartilham um
elemento: a distinção entre realidade e possibilidade. Se essa distinção for aceita, o termo
risco “denota a possibilidade de ocorrência” de um efeito adverso como resultado de
eventos naturais ou da atividade humana. Isso implica que os humanos fazem conexões
causais entre ações ou eventos e seus efeitos, buscando controlar efeitos indesejáveis, seja
evitando-os ou, pelo menos, mitigando-os.
As três primeiras perspectivas (atuarial, toxicológica e epidemiológica e das
engenharias), agrupadas por Renn (1992) sob o título de “analises técnicas de risco”,
buscam antecipar o potencial de dano físico para os seres humanos ou ao ecossistema.
Essas perspectivas calculam a média de ocorrência dos eventos indesejáveis num dado
espaço e tempo, usando freqüências relativas (observadas ou modeladas) como um meio
de especificar as probabilidades de ocorrência.
O autor reconhece e reafirma o valor social dessas abordagens técnicas de risco,
mas se alinha ao coro de críticas vindas do campo das ciências sociais, considerando que a
definição de efeitos indesejáveis restringe-se a danos físicos causados aos seres humanos
e aos ecossistemas, excluindo das análises os impactos sociais e culturais. Ele argumenta
que “as análises técnicas são compreendidas como espelho da relação entre observação e
realidade, e não consideram que as causas dos danos e a magnitude das conseqüências
sejam ambas mediadas por experiência e interações sociais” (1992, p. 61).
Apesar de não a incluir no grupo técnico, Renn (1992) classifica a perspectiva
econômica como estando mais próxima a esse grupo. A abordagem da Economia baseia-se
em cálculos probabilísticos e em efeitos sociais indesejáveis. A determinação desses
efeitos, entretanto, toma como base utilidades individuais. Nessa abordagem, desloca-se o
foco da previsão de danos para a previsão de utilidade. Os efeitos são compreendidos como
ganhos ou perdas reais, mas em contraste com as três primeiras abordagens técnicas, a
probabilidade é concebida como freqüência relativa e como produto da força das crenças.

23
O que está em cena é o grau de satisfação ou de descontentamento associado a
uma possível ação ou transação. Nas três primeiras abordagens - que o autor classifica
como técnicas - é totalmente irrelevante se um dano é significado como prazeroso ou
catastrófico. Na abordagem da economia, ocorre o contrário: a relevância está na satisfação
subjetiva perante potenciais conseqüências e não numa lista predeterminada de efeitos
indesejáveis. Nessa perspectiva, o denominador comum “satisfação pessoal” permitiria a
comparação direta entre riscos e benefícios, com base em um leque de opções.
O autor ressalta, ainda, a utilidade dessa abordagem e sua contribuição para as
políticas de risco, principalmente por incluir na definição de eventos indesejáveis aspectos
não físicos de possíveis riscos. Discute, todavia, algumas críticas feitas a essa abordagem:
afirma que o conceito de risco da economia é um parâmetro lógico e coerente, desde que
utilizado em situações em que a tomada de decisões seja individual e as conseqüências da
decisão fiquem restritas à pessoa que decide. Entretanto, tal condição raramente ocorre,
pois a maioria das decisões sobre risco tem caráter coletivo, o que necessitaria uma
agregação de utilidades, embora a mensuração desse bem-estar continue a ser um
problema; muitas transações e relações entre pessoas implicam imposição de riscos para
terceiros, os quais podem não ser beneficiados, ou ser beneficiados apenas marginalmente.
No que se refere à perspectiva psicológica, que se baseia no método psicométrico, o
autor ressalta seu papel na compreensão da percepção de riscos por parte das pessoas,
nas estratégias de comunicação sobre riscos, na percepção da noção de probabilidades e
dos valores e preocupações do público. Aponta que os estudos dessa vertente contribuem
para a compreensão de respostas a situações de risco, ampliando a compreensão das
instâncias de julgamento subjetivo e fornecendo subsídios para políticas públicas.
Entretanto, enfatiza que sua aplicabilidade é limitada.
Classificações ou categorizações são sempre versões parciais de realidades
discursivas variadas, o que implica diferenças e divergências entre classificadores. Lupton
(1999), por exemplo, tomando como parâmetro o fato de as noções de dano ou perigo
serem objetivadas por meio de cálculos de probabilidade, classifica as perspectivas atuarial,
estatística, epidemiológica (e toxicológica), engenharias, incluindo as abordagens da
Economia e da Psicologia, sob a rubrica “abordagens técnico-científicas”.

2.1.2. Abordagens socioculturais sobre risco

Considerando as diferentes tendências teóricas, as abordagens da área de ciências


sociais têm em comum a crítica à hegemonia exercida pelas análises quantitativas e
técnicas sobre risco, sobretudo por ignorarem que as causas dos danos e a magnitude das

24
conseqüências são socialmente construídas. Ao classificar as perspectivas socioculturais,
Renn (1992) separa as perspectivas culturais das sociológicas.
A perspectiva cultural de risco tem nos trabalhos da antropóloga Mary Douglas uma
das principais críticas vindas das ciências sociais às análises técnicas sobre risco. Esses
estudos deram as bases para a chamada teoria cultural dos riscos, tendo como marco a
publicação do livro Purity and Danger (DOUGLAS, 1966). Obviamente, outros trabalhos de
outros autores da Antropologia e da Sociologia Cultural também estabeleceram os
parâmetros para a abordagem cultural dos riscos. Renn (1992) afirma que essa perspectiva
propõe que padrões culturais são estruturantes e determinam a percepção de riscos e
benefícios.
Sem descartar o mérito da teoria cultural dos riscos, Renn critica o que chama de
imperialismo, ou determinismo cultural, nas explicações e na percepção do que seja risco.
Porém, o autor reconhece que as perspectivas sociológicas e antropológicas sobre risco
compartilham a noção de que “os seres humanos não percebem o mundo com os olhos
primitivos, mas por lentes filtradas por sentidos sociais e culturais transmitidos por meio de
processos de socialização, incluindo família, amigos, chefias e colegas de trabalho” (RENN,
1992, p. 67).
No que se refere às teorias sociais sobre risco, Renn (1992) sustemta que, de um
lado, as ciências sociais apresentarem uma “colcha de retalhos” de conceitos, focando
diferentes aspectos e circunstancias que envolvem situações de risco, por outro lado,
enriquecem sobremaneira a compreensão desse campo. Mas ele sugere que tal
fragmentação tem seu preço: dificulta a utilização dessas abordagens em políticas públicas
sobre risco e abre possibilidade para “vieses ideológicos”.
Lupton (1999), em sua classificação das abordagens sobre risco, considera que há
três perspectivas socioculturais: 1) a perspectiva cultural-simbólica, capitaneada pela
antropóloga Mary Douglas (1992) e seus seguidores; 2) a perspectiva da sociedade de
risco, liderada pelos sociólogos Ulrich Beck (1993; 2000) e Antony Giddens (1997; 1998); 3)
a perspectiva da governamentalidade, constituída por teóricos que têm como ponto de
partida os escritos de Michel Foucault.
Segundo a autora, a perspectiva cultural-simbólica tem como interesse as maneiras
pelas quais as noções de risco são usadas para estabelecer e manter limites conceituais
entre self e o Outro, com interesse particular em compreender como o corpo humano é
usado simbólica e metaforicamente em práticas discursivas sobre risco. Para Lupton, essa
abordagem
Enfatiza que os julgamentos sobre risco são políticos e estéticos,
construídos por meio de padrões culturais de entendimento que estão
implicados com noções sobre corpo e sobre a importância de estabelecer a
manter limites conceituais. Fornece uma perspectiva sobre risco que institui
25
um importante contraponto ao foco individualista na perspectiva realista
(1999, p. 56).

Por sua vez, os sociólogos que adotam a perspectiva da sociedade de risco estão
predominantemente interessados nos processos macrossociais. Buscam compreender
características de ordenamento social de sociedades da modernidade tardia, tendo como
eixo as noções de risco, sua produção industrial e tecnológica, as maneiras de lidar com
essa permeabilidade da linguagem dos riscos em todas as esferas sociais e individuais.
Essa abordagem discute processos que incluem a modernização reflexiva ou tardia, a crítica
às conseqüências da modernidade e aos processos de individualização, e reconhece a
quebra de valores e normas tradicionais. O foco da gestão de riscos está na distribuição
social dos riscos, assumindo dimensões locais e globais.
Os teóricos da governamentalidade partem das reflexões de Foucault, ainda
bastante seminais, presentes, principalmente, no texto A governamentalidade (1995), e na
trilogolia Em defesa da Sociedade (1999), Segurança, Território, População (2008) e
Nascimento da biopolítica (2008), assim como na formulação da proposta de autoformação
ética no que concerne a situações que agregam riscos e sua gestão em contextos de
pesquisa, disciplina e regulação de populações. Buscam compreender como os conceitos
de risco engendram normas particulares de comportamento usadas para encorajar
indivíduos a se engajarem voluntariamente em formas de autocontrole em resposta a essas
normas. Dentre os autores desta prespectiva podemos mencionar: François Ewald (1991),
Robert Castel (1991), Pat O´Malley (2000a; 2000b) Mary Jane Spink (2000a; 2000b, 2001,
2007a, 2007b, 2010) e Nicolas Rose (1999; 2001). De acordo com Lupton:

Na perspectiva foucaultiana, os discursos e as estratégias sobre riscos são


maneiras de ordenamento social e do mundo material, viabilizadas por meio
de métodos de racionalização e de cálculo, num esforço de controlar a
descoberta e a incerteza. São essas estratégias e esses discursos que dão
vida ao próprio risco, que selecionam certos fenômenos como “arriscados”,
portanto, devendo ser gerenciados pelas instituições ou pelos indivíduos.
(1999, p. 102).

Além desses três grupos majoritários, a autora menciona pesquisadores cujas


abordagens dão o estatuto de conhecimento ao saber leigo, dentre eles Scot Lash (2000) e
Brian Wynne (1980;1996). Este último argumenta que o distanciamento entre conhecimento
sobre risco do especialista e do leigo, na arena de desenvolvimento tecnológico ambiental,
deve-se muito mais ao fato de o especialista desconsiderar o saber sobre riscos produzidos
por leigos como conhecimento situado e legítimo.

2.1.3. Enredamento entre linguagens dos riscos e linguagens sociais

26
Para elucidar o entrelaçamento da linguagem dos riscos com diferentes esferas sociais,
listamos algumas categorias de risco identificadas por Lupton (1999), que, segundo a
autora, atualmente parecem predominar nos ordenamentos sociais, sobretudo nas culturas
ocidentais, são eles:
1. riscos ambientais (poluição, radiação, produtos químicos, enchentes, incêndios,
rodovias perigosas, etc.);
2. riscos associados ao estilo de vida (os representados pelo consumo de
determinados alimentos e drogas, engajamento em atividades sexuais, maneiras de
dirigir, estresse, entretenimento, etc.);
3. riscos médicos (aqueles relacionados com experiências médicas ou tratamentos –
por exemplo, drogas terapêuticas, cirurgias, parto, tecnologias reprodutivas, testes
diagnósticos);
4. riscos interpessoais (envolvendo relacionamentos íntimos, interações sociais, amor,
sexualidade, papéis de gênero, amizades, casamento, paternidade);
5. riscos econômicos (desemprego, subemprego, endividamento, investimento,
falência, perda de propriedades);
6. riscos de criminalidade (participantes e vítimas em potencial de atividades ilegais).

Segundo M. J. Spink (2001), os conceitos formais de risco, os técnicos-científicos,


dependem de cálculos abstratos, baseados na presumível identidade entre o possível e o
provável. A tarefa de definir o que constitui um risco se torna inevitavelmente uma tarefa que
passa pela esfera de valores sociais. Essa controvérsia sobre o que sejam os riscos, ou
como abordá-los, não diminui a importância do papel que a noção de risco passou a exercer
em nossas organizações sociais a partir da modernidade. Sua formalização em conceitos, a
profissionalização de uso nas abordagens técnicas ou socioculturais, continua
desempenhando papel importante no planejamento e na execução de estratégias de
governo em diferentes arenas – economia, saúde, administração, esporte, política -,
alcançando a vida de cada um de nós.
No campo da saúde, a Epidemiologia foi porta de entrada para a formalização de um
discurso hegemônico sobre risco, tornando-se oconceito fundamental na própria construção
da Epidemiologia como campo disciplinar. É nesse campo que se formula a abordagem
técnico-científica da Epidemiologia e Toxicologia.
Castiel (1999) afirma que a idéia de probabilidade que funda o risco epidemiológico
pode ser entendida de duas maneiras: uma que reporta à incerteza não mensurável,
compreendida como intuitiva, subjetiva, vaga, ligada a algum grau de crença; outra que

27
pressupõe a incerteza mensurável, postulando ser objetiva, racional, precisável mediante
técnicas probabilísticas. A abordagem dos fatores de risco toma como referencia a segunda
forma, isto é, “marcadores que visam à predição de morbi-mortalidade futura” (CASTIEL,
1999, p. 41).
A linguagem dos riscos é uma forma presente de descrever o futuro, com o
pressuposto de que é possível decidir sobre qual é o futuro desejável. Sobre essa relação
entre presente e futuro Castiel (1999, p.21) afirma: O conceito de risco homogeneíza as
contradições no presente ao estabelecer que só é possível administrar o risco (o futuro) de
modo racional, ou seja, através da consideração criteriosa da probabilidade de ganhos e
perdas, conforme decisões tomadas.
Como mencionado anteriormente, Lupton (1999) enumera os riscos cotidianos de
cada um de nós: riscos ambientais, de estilo de vida, tratamentos médicos, interpessoais,
econômicos e criminalidade. Essa diversidade de situações de risco resulta e, ao mesmo
tempo, produz um refinamento nas abordagens destinadas a lidar com esses riscos, assim
como nas técnicas utilizadas para acessar riscos conhecidos ou procurar outros ainda
desconhecidos. O manejo e a “descoberta” de novos riscos engendram maneiras diferentes
de posicionar as pessoas em relação a riscos variados (M. J. SPINK, 2007b; MENEGON,
2006).
As pesquisadoras australianas Anne Kavanagh e Doroty Broom (1998), ao discutirem
esses riscos, entrelaçam riscos e responsabilidade, propondo que seja feita distinção entre:
1. riscos ambientais (os advindos da natureza, como sol, terremoto, etc.), e os
produzidos pela humanidade: poluição, produtos tóxicos, lixo nuclear, etc.);
2. riscos causados pelo estilo de vida das pessoas (cigarros, exercícios, dietas, etc.);
3. riscos corporificados (embodie risks), relacionados com a detecção e o diagnóstico
de doenças associadas a fatores genéticos.
Para essas autoras, esse refinamento leva à definição de níveis de responsabilidade e
de ações, os quais deslizam em um continuum entre as esferas do coletivo e do individual.
Vale apontar, ainda, que a discussão sobre risco corporificado é recente, distinguido-se das
outras categorias por localizar o risco no próprio corpo. A noção de risco corporificado
remete a uma ameaça que vem do corpo, definido quem a pessoa é, em lugar do que ela
faz ou fazem a ela: o próprio corpo encerra algo que pode ser ameaçador ou desabonador
(KAVANAGH; BROOM, 1998).
Numa abordagem bastante próxima, Regina Kenen (1996) introduz outro elemento: o
grau de controle que pode ser exercido pela pessoa – que está em risco, é colocada em
risco, tem um risco ou é um risco. Discute as diversas situações que compreendem riscos
segundo duas grandes categorias – os riscos ambientais e os riscos biológicos.

28
No caso dos riscos ambientais, independentemente do grau de controle (alto ou baixo)
que pode ser exercido pela pessoa, as soluções não passam por mãos médicas, a não ser
que, como conseqüência, apresentem um quadro de doença grave ou crônica. Já para os
riscos considerados prioritariamente biológicos, a subdivisão é feita em virtude do grau de
controle que teoricamente a pessoa possa exercer:
1. Alto controle – o estilo de vida pode ajudar na prevenção de determinadas doenças.
Para detectar a condição da saúde em risco é necessário, porém, submeter-se a
testes diagnósticos médicos e a exames laboratoriais (nível de colesterol, taxas
hormonais, osteoporose, tipos de câncer ainda não vinculados à genética, entre
outros).
2. Baixo controle – ser portador(a) de um problema genético ou pertencer a uma família
que tem um desses problemas. Até o momento, não se pode modificar a estrutura
genética, mas com o diagnostico precoce pode-se tomar decisões, tais como não
engravidar, decidir por aborto seletivo, promover mudanças no estilo de vida ou,
ainda, decidir por cirurgias profiláticas.
Comparando com a classificação apontada por Kavanagh e Broom, (1998), os riscos
biológicos passíveis de maior controle entrariam no grupo daqueles causados pelo estilo de
vida das pessoas (cigarro, exercícios, dietas, etc.). Em contraste, no grupo de baixo controle
entrariam o que as autoras chamam de riscos corporificados (embodied risks).
Para Kenen (1996), os avanços das técnicas de diagnóstico aumentam a probabilidade
de um maior número de pessoas se tornarem portadoras “da condição de saúde em risco”
(at-risk heath status), além de abrirem as portas para a eugenia da normalidade (eugenics of
normalcy). Segundo a autora, o grande problema com os mapeamentos genéticos é que
todas as pessoas possuem genes recessivos que podem ser considerados danosos à
saúde. Kenen (1996) aponta também outros aspectos decorrentes da oferta de tecnologias
de diagnóstico, uma vez que essas práticas podem:
1. tornar-se um princípio organizador de comportamento social e individual – por
exemplo, praticar sexo seguro, estabelecer lugares próprios para fumantes, manter-
se em boa forma física, etc.;
2. desenvolver uma relação simbiótica com a tecnologia de diagnostico – quanto mais
aceitam a condição de saúde em risco, mais as pessoas se tornam predispostas a
aceitar um teste diagnóstico para ter acesso aos seus riscos;
3. ampliar o campo de trabalho da Medicina – por exemplo, angiogramas, exame
preventivo para câncer de próstata, teste genético para detectar câncer de mama na
família, etc.

29
Com a oferta de tecnologias para visualização diagnóstica, ampliam-se as possibilidades
de detectar riscos. Para quem recebe o diagnóstico, a importância dessa visualização está
no grau de gravidade atribuída ao risco e ao controle possível de ser exercido por quem tem
o risco. Nesse caso, os níveis de controle devem ser entendidos num continuum entre baixo
e alto grau de controle.
Inserida nessa temática sobre graus de controle e posicionamento de pessoa diante do
risco, tomando como ponto de partida os repertórios indicadores dessa condição, M. J.
Spink (2000a) analisa como a linguagem dos riscos na biomedicina posiciona as pessoas.
Na análise da autora, grosso modo, as pessoas podem ser vistas como estando em risco (at
risk) ou correndo risco (risk taking, risk behavior). Essas posições de pessoa decorrem da
própria definição dos riscos e, sobretudo, dos postulados sobre grau de controle pessoal na
exposição aos riscos.
Ser posicionado numa escala de risco como “estando em risco” ou “correndo riscos”
decorre de processos de avaliação (e entram aqui as tecnologias de diagnósticos) que
frequentemente constituem o primeiro passo do processo de intervenção. Há riscos sobre os
quais as pessoas têm menor grau de controle, sejam eles externos (como nos riscos
provenientes de produtos tóxicos, de degradação ambiental ou dos processos de exclusão
social), sejam internos (como os riscos derivados da constituição orgânica ou genética de
cada um de nós, que podem ser caracterizados como riscos corporificados). Decorre dessas
avaliações o posicionamento de “estar em risco”. Mas há também riscos que estão
associados ao estilo de vida. Estes, teoricamente, seriam passíveis de maior controle, dadas
as condições de informação e motivação para mudanças de comportamento. É nesse
cenário que emerge o discurso sobre correr riscos.
Em uma cultura em que a linguagem dos riscos permeia as mais variadas esferas
sociais, existem situações menos drásticas em que se aplica a decisão de correr riscos. Na
área materno-infantil, por exemplo, segundo Alvarenga (1984), a noção de risco como
inerente à gravidez foi incorporada à agenda de cuidados a serem tomados durante a
gravidez na década de 1950. Nesse caso, o simples fato de decidir engravidar significa
correr os riscos envolvidos na gestação e no parto. Neste campo, a metáfora correr riscos
aproxima-se, de um lado, de desafios pressupostos em outras áreas, como na Economia,
com sua racionalidade de equilíbrio entre risco e benefícios, tendo a satisfação pessoal
como balizador; por outro lado, pode se aproximar dos desafios propostos no campo da
aventura (risco aventura).
Lupton (1999) faz uma reflexão sobre diferenças de gênero em relação à metáfora
“correr riscos” no campo do esporte, afirmando que a mulher não é incentivada
culturalmente a correr riscos implicados em situações de aventura. No entanto, correr riscos

30
em circunstâncias consideradas como parte da condição de ser mulher, como a
maternidade, é algo culturalmente aceito e até mesmo incentivado. Nessa perspectiva, levar
adiante uma gravidez de alto risco, ou vencer todas as adversidades e frustrações presentes
nas tentativas de engravidar, pode ser compreendido como um ato heróico ou dadivoso.

2.2. Gestão dos riscos na sociedade contemporânea

De acordo com M. J. Spink (2000a), risco é uma noção fundamentalmente moderna


e faz alusão a uma reorientação sobre as relações das pessoas com os eventos vindouros,
tornando-os passíveis de gerenciamento e não mais os deixando à mercê do acaso. Não
significa que não houvesse experiências de perigo antes da época moderna, ou que não
fosse valorizada a ousadia em contextos históricos diversos. A novidade da era moderna é a
ressignificação desses perigos numa perspectiva de domesticação do futuro.
Para a autora, risco incorpora duas dimensões: a primeira refere-se à identidade
entre o possível e o provável, pressupõe alguma forma de apreender a regularidade dos
fenômenos; a segunda diz respeito ao domínio dos valores, pressupõe colocar em jogo algo
que é valorizado. Desse modo, a incorporação da noção de risco como um dos aspectos
fundamentais da subjetividade moderna surge como decorrência das transformações sociais
e tecnológicas.
No que se refere às transformações sociais, os contornos da sociedade de risco são
definidos a partir de duas orientações. A primeira concerne à progressiva laicização da
sociedade; e a segunda está associada às transformações nas relações econômicas e
sociais que são resumidamente contempladas no que veio a ser chamado de capitalismo
comercial. A perda da hegemonia da Igreja Católica e a ascensão do protestantismo nos
países do norte da Europa favoreceram uma forma de racionalidade condizente com a
formatação da revolução científica. Por outro lado, a abertura do comércio favoreceu o
desenvolvimento de novas estruturas políticas, incluindo aí a noção de soberania dos
territórios nacionais que levou à emergência dos Estados-Nação. Quanto às transformações
tecnológicas, é a emergência da teoria da probabilidade o fator mais proeminente para a
formatação do conceito moderno de risco (M. J. SPINK, 2000a).
Outro aspecto que precisa ser enfatizado é que a emergência da concepção
moderna de risco sustenta-se num movimento mais geral de crença na racionalidade
humana. Esse eixo marca as relações sociais sobre risco por longos séculos. Um exemplo
típico dessa nova racionalidade é a mentalidade securitária, pois os cálculos sobre risco têm

31
papel fundamental na formatação da moderna valorização da segurança. Não é por acaso,
portanto, que o desenvolvimento das instituições seguradoras está colado à postura atuaria
de coletar dados populacionais a ao cálculo de probabilidades em função das regularidades
assim evidenciadas. A história desses desenvolvimentos incorpora dois âmbitos: de um
lado, há uma onda de interesse pelas estatísticas populacionais que abrange toda a Europa:
as tabelas de mortalidade e morbidade tornam-se potentes instrumentos para os biopoderes
(Cf. FOUCAULT, 1988); as estatísticas populacionais passam a possibilitar o fortalecimento
das técnicas de governo. Contudo, por outro lado, são os imperativos comerciais, de
definição das perdas e ganhos no comércio de além mar que dão impulso à tecnologia dos
seguros (M. J. SPINK, 2000a).
Historicamente, o risco, em sua definição probabilística, referia-se à possibilidade de
ganhos ou perdas. Hoje em dia risco perdeu a conotação positiva, nas sociedades
modernas risco substitui o efeito forense do “pecado”, embora com diferenças consideráveis
decorrentes do crescente individualismo: enquanto a retórica do pecado ou do tabu era
usada para a proteção da comunidade por sua vulnerabilidade diante da má conduta de
indivíduos, a retórica do risco protege o indivíduo, por ser ele vulnerável à má conduta da
comunidade (DOUGLAS, 1992).
M. J. Spink e Menegon (2004) argumentam que desde que os riscos puderam ser
pensados na perspectiva da gestão, formataram-se certas constâncias discursivas que nos
permitem falar da existência de uma linguagem dos riscos. Para Barbara Adam e Joost Van
Loon (2000) a linguagem dos riscos está tradicionalmente relacionada à esfera econômica
das trocas e das apólices de seguros, ao mundo médico na relação entre profissionais da
saúde e seus pacientes, e aos esportes radicais nos quais as pessoas “arriscam” suas vidas
por outros. Nessas circunstâncias tradicionais de risco, as pessoas calculam o risco
potencial de certas ações e tomam decisões fazendo escolhas a partir de suas avaliações.
Riscos específicos são concebidos e relacionados às pessoas, às famílias e às nações, no
que se refere ao bem-estar físico, mental, social e/ou econômico. A linguagem dos riscos é
social. A percepção de risco implica uma relação particular com um futuro desconhecido,
cuja probabilidade de ocorrer pode, todavia, ser calculada tomando como base
acontecimentos passados: uma resposta sociocultural calculada em antecipação a
acontecimentos vindouros.
A reflexão de Adam e Van Loon (2000) focaliza o ordenamento do risco na
modernidade tardia13, sendo os riscos mais desordenados e menos propensos ao cálculo.
Assim, argumentam a favor da necessidade de mudar o gênero prevalente que articula

13
A expressão “modernidade tardia” é adotada por alguns autores, como Antony Giddens, Ulrich Beck e Scott
Lash, para referir-se a sociedade atual como redesenho da modernidade clássica, não se confundindo, portanto,
com a expressão “pós-modernidade”.
32
riscos e perigos com base no cálculo (que obedece uma lógica binária), para outro gênero
mais relacionado com a reflexão que leve em conta os sentidos que são atribuídos a riscos
em diferentes contextos.
Filiamo-nos à proposta de M. J. Spink e Menegon (2004), fundada na teoria
linguística de Bakhtin (1979/2006), que sustenta que jamais apagamos as vozes que falam a
partir de outras linguagens sociais, por mais inadequadas que possam vir a ser. As autoras
consideram que a linguagem dos riscos que se configura no decorrer dos séculos, desde
que risco se tornou objeto de gestão, se expressa de formas variadas quando usada em
contextos distintos, por exemplo, no âmbito das três tradições discursivas propostas por M.
J. Spink (2001): o governo de coletivos (nas questões de saúde, tecnologia, ambiente), a
disciplinarização dos corpos e a aventura14.
A primeira tradição relaciona-se ao crescente imperativo de governar populações, a
partir da modernidade clássica. Referenda, desse modo, medidas coletivas, destinadas a
gerenciar relações espaciais. Nessa tradição discursiva a metáfora mais utilizada para
posicionar as pessoas com relação aos riscos é “estar em risco” (M. J. SPINK, 2000a; 2001;
M. J. SPINK; MENEGON, 2004).
A segunda tradição funda processos de disciplinarização da vida privada das
pessoas, o próprio corpo é alvo de controle, sendo a educação sua estratégia central (C.f.
FOUCAULT, 1995). A disciplinarização das pessoas contempla duas etapas: na primeira, a
disciplina do corpo está na higiene, vinculada ao movimento higienista do final do século XIX
e à moral da prevenção: higiene pessoal, higiene do lar e higiene moral; a segunda
acontece no decorrer do século XX, com o aumento da expectativa de vida, por causa do
controle de doenças infecciosas e da melhoria das condições sociais, as doenças crônicas
tornam-se preocupações centrais da saúde pública, os conhecimentos médicos,
progressivamente, definem novos padrões de controle. Uma pessoa devidamente informada
é responsável pelo autogerenciamento de sua saúde, o estilo de vida como forma de
autocontrole é a face mais célebre dessa reorganização. É nessa esfera emerge uma das
mais preponderantes metáforas sobre os comportamentos diante de riscos: “correr riscos”,
no que se alude à prevenção, a lógica é evitar os riscos (M. J. SPINK, 2000a, 2001; M. J.
SPINK; MENEGON, 2004)
A terceira tradição, que vincula os campos da Economia e dos Esportes, assume o
legado da positividade da aventura apresentando especificidades discursivas quanto à

14
A partir de 2008, a autora sistematiza a tradição das linguagens dos riscos da seguinte forma: risco-perigo,
aquele de difícil cálculo, em que os casos são quase sempre imprevisíveis, independem da vontade do agente;
risco-probabilidade, trabalhado pelos epidemiologistas, pelos analistas de riscos financeiros, entre outros; e
risco-aventura, que são os jogos de vertigem (isto é, que possibilitam a fusão entre a ação e a consciência,
gerando a sensação que os adeptos dessas atividades denominam de adrenalina). (Ver, por exemplo, SPINK,
Mary Jane P. et al. Usos do glossário do risco em revistas: contrastando "tempo" e "públicos". Psicol. Reflex. Crit.
[online]. 2008, vol.21, n.1, pp. 1-10)
33
lógica da governamentalidade. Um conjunto de repertórios sobre risco, que escapa à
governamentalidade, explicita conotações que fazem do “correr riscos” uma prática
imperativa para alcançar determinados ganhos. Tal perspectiva é reinterpretada na
modernidade pela Economia. “Correr riscos”, monitorado por taxas probabilísticas, é o
elemento intrínseco desse domínio. Alguns dos repertórios próprios da aventura tornaram-se
parte integral da Economia, imprimindo singularidades na abordagem de riscos nesse
campo de saber: coragem, adrenalina, medo e até mesmo o risco de falência ou de síncope
cardíaca (M. J. SPINK, 2000a; 2001; M. J. SPINK; MENEGON, 2004).
Ao longo dos processos de socialização herdamos tensões decorrentes da maneira
como certas constâncias discursivas sobre risco foram formatadas na sociedade industrial
ou sociedade moderna: 1) tensão entre uma perspectiva coletiva de gerenciamento de risco
– apoiada na legislação – e uma perspectiva mais individualista de introjeção da disciplina;
2) tensão entre as visões de leigos e de especialistas - os especialistas mais apoiados na
quantificação dos mais riscos enquanto os leigos lançam mão da informação disponível; 3)
tensão entre o imperativo da prevenção dos riscos e a percepção de que correr risco ajuda a
formar o caráter ou a liberar a criatividade (M. J. SPINK, 2000a; M. J. SPINK; MENEGON,
2004). Essas tensões e diferenças emergem nos distintos gêneros de fala15 utilizados em
campos variados. Embora preservando a idéia de controle baseado em cálculos, a
linguagem dos riscos assume conotações singulares e usos específicos, sendo permeada
pelos gêneros de fala típicos das práticas discursivas nas diferentes arenas de atividades.
Nas próximas seções deste capítulo abordaremos a linguagem dos riscos no âmbito da
saúde, focalizando o discurso epidemiológico e clínico.

2.3. A formalização do risco pela epidemiologia

O conceito de risco, na Saúde Coletiva, compõe uma estratégia fundamental de


biocontrole que se atualiza em discursos sobre a promoção da saúde. Trata-se de tema
recorrente, tanto na perspectiva prescritiva ou como na vertente crítica, de denúncia do
crescente uso da linguagem dos riscos como governamentalidade (Cf. FOUCAULT, 1979),
mas que sempre toma o risco como perda, como algo a ser evitado (M. J. SPINK, 2007b).
Judith Green (1997) argumenta que esse processo é paralelo ao que Ian Hacking
(1990) denominou de “domação da chance”, que envolve o paulatino desenvolvimento da
teoria da probabilidade, da estatística e da Epidemiologia, e que possibilita uma forma muito
específica de gerenciamento de risco na área da Saúde: a análise dos fatores de risco. Para

15
Gêneros de fala (ou gêneros do discurso) é um conceito bakhtiniano usado para sustentar que cada esfera de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo estes denominados gêneros
do discurso (BAKHTIN, 1979/2006)
34
M. J. Spink (2007b), não é de se admirar que o domínio dos “acidentes” tenha sido central a
essa estratégia, pois eles são provas cabais de que certos riscos não foram adequadamente
gerenciados e, paralelamente, constituem o teste último do gerenciamento de riscos como
estratégia de governo de populações.
Robert Castel (1991) também reflete sobre essa transição para um sistema de
vigilância em saúde, que se fundamenta na análise de fatores de risco, mais compatível com
as necessidades da sociedade de capitalismo avançado. Segundo o autor, essas
estratégias dissolveram a noção de sujeito (ou de indivíduos concretos), substituindo-a por
uma combinação de fatores (os fatores de risco); uma transição, portanto, da clínica do
sujeito para uma clínica epidemiológica – um sistema de expertise multifatorial que suplanta
a antiga relação entre paciente e médico. Um modelo que substitui a vigilância
individualizada do panaption foucaultiano (Cf. FOUCAULT, 1987) pelo sistema de vigilância
informatizada que propicia a detecção sistemática dos problemas de saúde e doença que
assolam a população (M. J. SPINK, 2007b).
Seguramente, essa transição só foi possível em virtude do desenvolvimento técnico-
teórico da Epidemiologia, campo que, como tantos outros domínios de saber, tem uma
história externa e outra interna. A história externa tem suas raízes nos primeiros esforços de
sistematização das estatísticas de morbidade mortalidade que deram origem à abordagem
epidemiológica associada com o movimento sanitário do final do século XVIII e início do
século XIX. Já a história interna tem por foco a emergência da representação matemática de
risco, corporificada no conceito emergente de taxas (AYRES, 2008).
O uso do termo “risco” surge na linguagem epidemiológica no início do século XX e,
com o conseqüente desenvolvimento da Epidemiologia, risco neste campo equivale ao
efeito, probabilidade de ocorrência de uma patologia em uma população determinada,
expresso através do indicador paradigmático de incidência (AYRES, 2008; ALMEIDA
FILHO; CASTIEL; AYRES, 2009).
A constituição da Epidemiologia é entendida como o processo pelo qual um olhar
científico começou a se formar a partir da busca do conhecimento das relações entre os
fenômenos de saúde e doença e os modos como os grupos e indivíduos humanos
organizavam socialmente seus modos de viver. Ayres (2008) desenvolveu uma cronologia
sobre como esse interesse científico se desenvolveu na Epidemiologia, até atingir seu
conceito mais formalizado, e o mais utilizado nas práticas de saúde contemporânea, o
conceito epidemiológico de risco, que abarca três etapas: Epidemiologia da constituição
(1872-1929); Epidemiologia da exposição (1930-1945); e Epidemiologia do risco (1945 - aos
dias atuais).

35
A Epidemiologia da constituição, ainda fundamentada nas estatísticas sanitárias,
tinha por foco a regularidade dos fenômenos epidêmicos tomados como expressão dos
determinantes sociais e geográficos da insalubridade. Nesse período o termo risco começa
a surgir no jargão epidemiológico, mas nesse momento ele é usado apenas como um
adjetivo, indicando domicílios, bairros, cidades, populações, etc.
No segundo período, da Epidemiologia da exposição, assume uma posição mais
próxima à das ciências biomédicas, ocupando um lugar intermediário entre as ciências
voltadas aos processos patológicos, no nível orgânico, e aquelas que focalizam os aspectos
coletivos dos fenômenos da saúde e doença. O risco torna-se, então, um conceito analítico,
focado nas suscetibilidades individuais adotadas como determinantes do curso epidêmico
de doenças infecciosas, e deixa de ser referido como uma condição que se dá no nível da
população, passando a indicar uma relação entre fenômenos individuais e coletivos; risco
passa a ser expresso na linguagem matemática das probabilidades.
Finalmente, na Epidemiologia do risco, a epidemiologia passa a ser primordialmente
uma disciplina observacional. Essa nova formulação tem como marco a Segunda Guerra
Mundial e, como conseqüência, vários fatores que se fizeram presentes nas sociedades
ocidentais no período pós-guerra reforçaram novos desenvolvimentos na teoria e nos
métodos da Epidemiologia, entre eles: o impacto das ideologias preventivistas e securitárias
no período logo após a guerra; a aceleração do quantitativismo em todas as ciências e a
emergência das doenças crônicas como principal causa de morbidade e mortalidade.
Ao longo do seu processo de constituição histórica, o risco epidemiológico adquiriu
duas características epistemológicas que o colocam numa posição paradoxal. De um lado,
seu caráter pragmático e probabilístico o deixa em condições de expandir de forma
potencialmente ilimitada a investigação acerca da associação causal entre quaisquer
eventos de interesse prático para a saúde. E a Epidemiologia tem ocupado este espaço,
tornando-se um saber essencial para as práticas de saúde contemporâneas, com
contribuições nas áreas de pesquisa clínica, no planejamento, gestão e avaliação de
serviços, na vigilância da saúde, em sreenings, nas práticas de prevenção e promoção da
saúde (AYRES; CALAZANS; SALETTI FILHO; FRANÇA JÚNIOR, 2006).
Por outro lado, a vinculação com a validação biomédica e a natureza matemática de
seus procedimentos e inferências criam obstáculos à investigação epidemiológica no que se
refere à objetivação das dimensões propriamente sociais do processo saúde-doença, tanto
em sua gênese como nas implicações para a intervenção. Essa característica traz tensões e
muitas vezes interdições ao originário e fundamental debate entre Epidemiologia e Saúde
Coletiva.

36
Na Epidemiologia, há três formulações básicas de risco: absoluto, relativo e
atribuível. É importante, aqui, fazer dois comentários. Em primeiro lugar, é comum dizer-se
que a taxa expressa o risco. Segundo Last (1989), isto é pertinente caso seja aplicado às
situações apresentadas, no sentido mais restrito de taxa, ou seja, como quocientes que
representem mudanças no decorrer do tempo. Além disso, o conceito taxa também é
polissêmico, mesmo no interior da Epidemiologia. Dessa forma, para ele, nas situações a
seguir taxa não expressa risco:
1) quando sinônimo de quociente, referindo-se a proporções. Por exemplo: taxa de
prevalência; e
2) quando quociente que representa mudanças relativas (reais ou potenciais) em
duas quantidades (numerador e denominador). Por exemplo: taxa de colesterol no sangue.
No entanto, estas distinções não são consensuais. Outros epidemiologistas
diferenciam claramente "taxa de incidência" e "risco de adoecer", tanto em termos
conceituais como nos métodos de estimação. A primeira estaria referida ao potencial
instantâneo de mudança na situação de saúde (casos novos) por unidade de tempo. O
segundo se definiria como "a probabilidade de que um indivíduo sem doença desenvolva-a
no decorrer de um período especificado de tempo, desde que o indivíduo não morra por
outra causa durante tal período" (KLEINBAUM et al, 1982, p. 99). Sendo probabilidade
condicional, varia de zero a um e não possui unidades de medida.
As discordâncias permanecem nas tentativas de distinguir entre os enfoques
individual/coletivo do risco e suas correspondentes estimativas. Desse modo, haveria
métodos que encaram risco como medida (teórica) de probabilidade individual de ocorrência
de agravo "A" — os atuariais; e aqueles que dimensionam a "força de morbidade" em
populações — razões de densidade de incidência (CZERESNIA; ALBUQUERQUE, 1995).
Em segundo lugar, como não é possível observar simultaneamente o efeito da
exposição e não-exposição no mesmo indivíduo (idem, ibidem), o dispositivo estatístico-
epidemiológico opera com grupos populacionais baseado no pressuposto de que a
diversidade dos indivíduos distribuir-se-á de modo homogêneo nas amostras devidamente
selecionadas. Os cálculos produzem taxas médias que refletem, portanto, valores referentes
aos agregados (efeitos causais médios). Se, porventura, quisermos representar a unidade
através do quociente relativo à quantidade observada pelo mesmo valor, é evidente que
esta não representa nenhum "indivíduo", que, assim, se torna uma abstração. Portanto, o
risco é um achado relativo à dimensão agregada. Sua validade para o nível individual dá
margem a erros lógicos. Estas questões são estudadas na Epidemiologia e na Sociologia
sob a rubrica das falácias ecológicas, de dois tipos, conforme a operação: atomística ou

37
agregativa (SUSSER, 1998): o que é válido para o nível agregado pode não o ser para o
nível do indivíduo, ou vice-versa.
Epidemiologistas, em geral, não costumam colocar em questão aspectos que
problematizam a construção dos conhecimentos sobre o(s) risco(s), em especial sob o ponto
de vista de suas pretensões preditivas (ALMEIDA-FILHO, 1992). Nesse sentido, Hayes
(1991) faz uma exaustiva análise de limitações implícitas nesta abordagem. Para ele, é
essencial estar-se atento a determinados tópicos:
1) Regularidade dos efeitos empíricos: não podem haver alterações nas relações
entre os marcadores de risco e os eventos de interesse. Como os mecanismos causadores
dos agravos, na maioria das vezes, são desconhecidos, estes não devem variar de modo
inesperado. Trata-se, em suma, da metáfora da caixa-preta. Aliás, a dita "Epidemiologia dos
fatores de risco" também é chamada de "Epidemiologia da caixa-preta" (PEARCE;
CRAWFORD-BROWN, 1990). Em outras palavras, é essencial a estabilidade das condições
de "existência" do objeto para que o sujeito investigador o apreenda com fidedignidade: nem
o objeto de estudo pode variar em suas características, atributos, propriedades, nem suas
inter-relações com o meio circundante, em termos espaço-temporais.
2) Definição do estatuto dos fatores de risco específicos: é fundamental saber
claramente se o fator é determinante ou predisponente em relação àqueles tão-somente
contribuintes ou incidentalmente associados. E isto não costuma ser facilmente discernível
em muitas situações, especialmente naquelas que envolvem a participação de aspectos
ditos psicogênicos, ou, então, na controvérsia causada por estudos onde não se observaram
efeitos da hipercolesterolemia na eclosão de doenças cardiovasculares em mulheres
(ALMEIDA-FILHO, 1992).
3) Fatores de risco pertencentes a níveis de organização distintos — social versus
natural: há dificuldades para estabelecer precisamente os mecanismos e mediações entre
variáveis consideradas sociais (desemprego, analfabetismo, pobreza, etc.) e aquelas ditas
biológicas (idade, estado imunológico, características genéticas), apesar de, em certos
casos, aparentemente não parecer haver dúvidas quanto às relações entre elas (como
miséria e mortalidade por causas perinatais).
4) Período de tempo considerado válido para a predição: é problemático lidar com
exposições incididas em épocas transcorridas há longo tempo (mais de 15, vinte anos por
exemplo) e/ou em quantidades reduzidas, no decorrer de longos intervalos cronológicos, de
modo que não se torna possível garantir a relação causal no caso de ocorrência do agravo.
Isto é especialmente relevante em exposições ocupacionais que não chegam a gerar danos
imediatos, só ocorrendo, eventualmente, após muitos anos (HAYES, 1991).

38
Uma das importantes críticas feitas ao enfoque quantitativista do risco consiste no
fato de instituir uma entidade, que possuiria uma 'existência' autônoma, objetivável,
independente dos complexos contextos sócio-culturais nos quais as pessoas se encontram.
Em outras palavras, o risco adquire um estatuto ontológico, que acompanha, de certa forma,
aquele produzido pelo discurso biomédico para as doenças, mas, possuidor de
características próprias, ou seja, atributos de virtualidade, 'fantasmáticos'. Pois, a existência
dos riscos pode ser invisível, uma vez que, nem sempre, é perceptível por seus
sinais/sintomas — objetos dos tradicionais instrumentos da semiologia médica. Muitas
vezes, são necessários sofisticados exames laboratoriais para ‘localizar' este risco a ser,
capaz de se desenvolver de modo silencioso e traiçoeiro e tornar-se presente de modo
ameaçador. Se, por um lado, a retórica do risco pode servir de veículo para reforçar
conteúdos morais e conservadores (LUPTON, 1993), por outro, redimensiona o papel da
configuração espaço-temporal na compreensão do adoecer: 1) a Biomedicina incorpora
como sua tarefa a localização e identificação nos sadios seus possíveis riscos (oriundos de
modalidades de exposição ambiental e/ou de suscetibilidades biológicas, mediante técnicas
diagnosticas cada vez mais refinadas; 2) surge uma infindável rede de riscos em que
comportamentos, sinais, sintomas e doenças podem confluir para se tornar fatores de risco
para outras afecções (p. ex., hipertensão arterial como risco para doenças cardíacas); e 3) o
eixo temporal assume maior importância nos modelos explicativos dos processos de
adoecer (ARMSTRONG, 1995).
Vemos, então, surgir no discurso e na intervenção biomédica uma nova condição
medicalizável: o estado de saúde sob risco (KENEN, 1996), que traz importantes
implicações: a) como substrato gerador de preceitos comportamentais voltados para a
promoção e prevenção à saúde, em última análise, base do projeto de estender a
longevidade humana ao máximo possível; b) no estabelecimento de laços com a produção
tecnológica biomédica; c) na ampliação das tarefas da clínica médica — em outros termos, o
surgimento de uma vigilância médica, como sugere Armstrong (idem); d) na criação de
demanda por novos produtos, serviços e especialistas voltados para a prevenção dos
múltiplos riscos; e e) no reforço do poder e prestígio dos profissionais responsáveis por
atividades dirigidas a novas técnicas/programas de controle ou à pesquisa de fatores de
risco (KENEN, 1996).
Outra crítica, de cunho metodológico apontada por Castiel (1996), reside no fato de
abordarem-se complexos fenômenos interativos (biológicos/psicológicos/sociais), através de
técnicas lineares para estimação do risco, insuficientes para abranger a alta complexidade
do fenômeno humano. Um dos encaminhamentos decorrentes da aceitação desta
constatação é o desenvolvimento de procedimentos não-lineares para a modelagem

39
matemática de sistemas dinâmicos. Nesta ótica, é preciso ter em mente que, a rigor, tais
modelos são estatísticos. Consiste, basicamente, em representações abstratas constituídas
por elementos com significados e interdependências no interior de estados de flutuação e
variabilidade. Sua função primordial é estabelecer ordenações para interpretar as relações
entre objetos que foram matematizados. Ainda não se conseguiu modelar satisfatoriamente
o comportamento dos indivíduos, a relação entre a freqüência de uma ameaça à saúde e a
respectiva percepção, a dinâmica das decisões institucionais (conforme as relações de
poder envolvidas) e as intermediações que interferem nos processos de produção de
conhecimento (LEVINS, 1994).
As percepções de risco são distintas conforme aspectos sócio-culturais que incluem
idade, gênero, renda, grupo social, ocupação, interesses, valores, conseqüências pessoais,
etc. E isto não pode ser negligenciado pelas autoridades sanitárias em suas intervenções
epidemiológicas em saúde ambiental, cujas ações, muitas vezes, tardam em ocorrer. Pois,
em geral, a atenção dos epidemiologistas está dirigida mais à significância estatística, o que,
eventualmente, pode comprometer a "significância em termos de saúde pública", indicada
por taxas de morbidade importantes nos locais poluídos, independentemente de serem
"esperadas" ou não (BROWN, 1995), ou pela impossibilidade de garantir a não ocorrência
de eventos cuja latência é prolongada (CASTIEL, 1996).
Em síntese, risco em Epidemiologia equivale a efeito, probabilidade de ocorrência de
patologia em uma dada população, expresso pelo indicador paradigmático de incidência.
Esta formulação se deve a Olin Miettinen, autor de um trabalho controverso, audacioso (no
seu tempo), denominado Epidemiologia teórica. Nele se encontra a primeira referência
explícita na literatura anglo-saxônica à questão do estabelecimento do objeto na disciplina,
elaborada da seguinte forma: “a relação de uma medida da ocorrência a um determinante,
ou uma série de determinantes, é denominada de relação ou função da ocorrência. Tais
relações são, em geral, o objeto de investigação da Epidemiologia” (MIETTINEN, 1985, p.
6). Esta proposta é metodologicamente fundada em princípios de rigor e coerência interna,
propiciando uma conexão lógica entre seus princípios e aplicações imediatas às técnicas de
análise epidemiológica mais usada modernamente.
A proposição de risco como conceito fundamental do campo científico da
Epidemiologia, como dito anteriormente, repousa sobre três pressupostos básicos: o
primeiro é a identidade entre o possível e o provável, ou seja, que a possibilidade de um
evento pode ser reconhecida na sua probabilidade de ocorrência. Essa probabilidade se
constitui como unidimensional, variável e, por extensão, quantificável. Dessa forma, o
conceito de risco traz na raiz uma proposta de quantificação dos eventos da saúde/doença
(MACMAHON; PUGH, 1970; LILIENFELD, 1976).

40
O segundo pressuposto consiste na introdução de um princípio de homogeneidade
na natureza da morbidade, ou seja, as particularidades dos eventos se retraem perante uma
dimensão unificadora, resultando em uma unidade dos elementos de análise propiciada pelo
conceito de risco. As diferenças expressas na singularidade dos processos concretos
saúde-doença desaparecem no conceito unidimensional de risco e suas propriedades,
permitindo aproximações e apropriações próprias do discurso científico epidemiológico
(ALMEIDA-FILHO, 2000). As incidências de distintos eventos de saúde ou doença,
indicadores dos respectivos riscos, entendidos como probabilidades de ocorrência, são
postas em um mesmo registro.
Em terceiro lugar, destaca-se o pressuposto da recorrência dos eventos em série,
implicando a expectativa de estabilidade dos padrões de ocorrência seriada dos fatos
epidemiológicos. Através desse pressuposto, pode-se então justificar a aplicação do
conceito de risco em modelos de prevenção, propondo-se o conhecimento dos seus
determinantes para intervir no seu processo, buscando-se a prevenção do risco
(MACMAHON; PUGH, 1970).
Tais pressupostos revelam claramente o caráter indutivista da Epidemiologia (BUCK,
1975; SUSSER; SUSSER, 1996), dadas a fundamentalidade e a natureza das expectativas
generalizadoras embutidas no conceito. Desta forma, o risco é produzido no campo da
Epidemiologia pela observação sistemática e disciplinada de uma série de eventos. Como
conceito, o risco opera pela via da predição, com base no terceiro pressuposto (ALMEIDA-
FILHO, 2007).
Refletindo sobre o caráter da predição no discurso epidemiológico, Almeida-Filho
(2007) constatou basicamente dois sentidos distintos, que concedem ao conceito de risco a
ambigüidade que é própria do projeto da Epidemiologia como campo discursivo científico.
Por um lado, é possível a predição no tempo, componente propriamente antecipatório do
conceito de risco. Quando enunciamos o risco de ocorrência de uma doença “D” em uma
dada população, empregamos uma série sucessiva de observações pregressas
(mensurações tomadas, na melhor das hipóteses, em uma série temporal padronizada),
para fazer uma predição do passado (por suposto conhecido) para o momento presente ou
mesmo para o futuro, aplicada à população objeto daquela série de observações. Temos
aqui o emprego do risco como preditor temporal, ou “preditor verdadeiro” (ALMEIDA-FILHO,
2007).
Por outro lado, na Epidemiologia observa-se também o uso do componente indutivo
do risco para instrumentalizar pseudopredições, ou predições no espaço. Neste segundo
caso, em vez de uma mesma população em momentos distintos no tempo, extrapola-se
uma série finita de observações em populações estudadas para populações não

41
observadas. Isso quer dizer que, a partir do conhecimento da incidência da doença “D” em
um conjunto de populações conhecidas, pretende-se “predizer”, com o auxílio de testes
estatísticos, intervalos de confiança, média de incidências, ou qualquer outro quantificador
matemático, qual será o risco da doença “D” na população em geral, ou em grupos
populacionais não incluídos na série observada. Trata-se, nesse caso, do emprego do risco
como um pseudopreditor, ou “preditor horizontal” (ALMEIDA-FILHO, 2007).
Essa ambigüidade é a principal característica do uso epidemiológico do conceito de
risco: um preditor simultaneamente temporal e espacial, ou, mais rigorosamente, como
preditor e pseudopreditor. Esse conceito de risco permite o rompimento dos limites
temporais e dos limites geográficos do processo de produção do dado, dotando o
conhecimento epidemiológico de propriedades generalizadoras nem sempre legitimadas
pela lógica que o consubstancia.
No discurso epidemiológico, o risco se situa para além e para fora do sujeito, é
localizado no âmbito da população, produzido ou atribuído no âmbito dos coletivos
humanos. Risco é, enfim, uma propriedade das populações e a sua referência legítima será
exclusivamente coletiva (HAYES, 1991). Nos primórdios da constituição da Epidemiologia
como ciência, havia uma proposta implícita de conceituação do “risco absoluto” - daí a
derivação da idéia de “risco relativo” (LILIENFELD, 1976). Apesar de equivocadamente
tomado como expressão individual em alguns manuais (JENICEK; CLEROUX, 1985), o risco
absoluto sempre teve como referência fundamental o coletivo populacional (ALMEIDA-
FILHO, 2007).
Sinteticamente, risco epidemiológico pode ser definido como a probabilidade de
ocorrência de um determinado evento relacionado à saúde, estimado a partir do que ocorreu
no passado recente. Assim, calcula-se o risco quantificando o número de vezes que o
evento ocorreu dividido pelo número potencial de eventos que poderiam ter acontecido.
Desta forma, por exemplo, o risco de morte numa determinada população – ou grupo de
pessoas – é o número de óbitos ocorridos no período anterior dividido pelo número de
pessoas existentes nesta população naquele período, já que qualquer um ou todos
poderiam potencialmente ter morrido. Para Castiel (2001), risco pode ser objetivado e
delimitado em termos de possíveis causas, além de ser quantificado através de operações
estatísticas, estabelecendo assim nexos, associações e correlações. Considera-se fator de
risco toda característica ou circunstância que está relacionada com o aumento da
probabilidade de ocorrência de um evento.

2.4. A “molecularização” dos riscos

42
Com o avanço das técnicas da Biologia Molecular, em geral, e das manipulações
genéticas, em particular, o campo dos conhecimentos em saúde tem passado por profundas
transformações (CASTIEL, 1994). Chega-se a postular, inclusive, a emergência de uma
'nova genética', definida como "um corpo de conhecimentos e procedimentos baseados na
tecnologia do ADN recombinante que cria informação sobre os gens que os indivíduos e as
famílias portam" (RICHARDS, 1993, p. 567).
Expande-se, também, o conhecimento sobre as próprias doenças genéticas. É
possível, mediante o uso de marcadores específicos, a testagem preditiva para determinar
os portadores de genes defeituosos, tanto dominantes como recessivos, responsáveis por
tais doenças, e também por enfermidades crônico-degenerativas, como alguns tipos de
câncer. Além disso, já se começa a cogitar a possibilidade de, mediante terapêuticas das
células da linha germinal (germ-line therapy), aplicarem-se vacinações genéticas nas futuras
crianças para evitar enfermidades crônicas não-transmissíveis, como câncer, doença
coronariana e assim por diante (TANNSJÕ, 1993).
Dentro deste quadro, tem recebido destaque dos meios de comunicação de massa
os avanços da genética molecular na detecção de doenças, em especial moléstias
cardiovasculares e neoplasias. Nesse sentido, em todas estas circunstâncias, destaca-se o
conceito de risco. Assim, temos doenças cujas determinações, sejam genéticas, sejam
epigenéticas16 são bem demarcadas. Nestes casos, o modelo de risco desenvolvido pela
Epidemiologia moderna alcançaria alto grau de eficácia: o fato de determinados indivíduos
portarem determinados genes ou receberem-nos do pai ou da mãe delimita com precisão
satisfatória a probabilidade de desenvolverem tal ou qual enfermidade. Isto é, há condições
de fechamento do sistema em jogo que permite a aplicação bem-sucedida do referido
modelo (CASTIEL, 1996).
Há outras doenças cujas configurações genéticas em termos moleculares não
admitem uma clara identificação — é o caso das desordens poligênicas ou naquelas em que
as interações socioambientais tenham peso. Aqui, as relações de risco podem não ser
percebidas com os mesmos graus satisfatórios de precisão. Ainda assim, tem havido grande
produção de trabalhos que procuram estabelecer relações entre exposições-agravos,
independentemente das contingências de fechamento (e previsibilidade) dos fenômenos
(CASTIEL, 1996).
Entretanto, é indiscutível a importância dos avanços das técnicas da Biologia
molecular na apreensão dos elementos genéticos e na etiopatogenia de muitas
enfermidades e distúrbios. Externamente à produção científica das afirmações de risco
baseadas na genética, é importante, como foi mencionado, levar em conta os discursos

16
O conceito de epigênese se refere à distinção entre o que é definido a partir de informação exclusivamente
contida no genoma e o que é determinado a partir de uma possível interação genes ambiente (CASTIEL, 1996).
43
sociais relativos à idéia de hereditariedade e como esta pode ser responsabilizada pela
gênese e desencadeamento de um grande número de condições e agravos à saúde. A
importância deste aspecto se deve ao fato de estar relacionada a padrões de conduta que
conduzam a situações tanto de exposição como de proteção (CASTIEL, 1996).
Para Castiel (1996), risco é mais do que um conceito interdisciplinar: precisamos nos
preparar para cada vez mais compreendê-lo e construí-lo como um conceito indisciplinado.
Almeida-Filho (2007) identificou e avaliou os pressupostos filosóficos das seguintes formas
de apresentação do conceito: a) “risco” como perigo latente ou oculto no discurso social
comum; b) “risco individual” como conceito da Clínica; c) “risco populacional” como conceito
epidemiológico senso estrito; d) “risco rstrutural”, nos campos da Saúde
Ambiental/Ocupacional.
Considerando a necessidade de atualização do conceito de risco e a incorporação da
dimensão contingente dos processos de ocorrência de problemas de saúde em populações
humanas, Almeida-Filho (2007) propõe, ainda, incorporar mais uma definição à lista dos
conceitos de risco relacionados acima: e) “risco contingencial”, operador do recém-
constituído campo de práticas da Promoção da Saúde.
A idéia de um campo geral de práticas chamado de Promoção da Saúde, contendo
tanto a Prevenção quanto a Proteção e a Promoção (senso estrito) da saúde individual e
coletiva, supõe um repertório social de ações preventivas de morbidade (riscos, doenças
etc.), protetoras e fomentadoras da salubridade, que de certo modo contribui para a redução
dos sofrimentos causados por problemas de saúde-doença na comunidade. Isso determina
uma integração teórica e filosófica da rede de conceitos correlatos à saúde (vida, risco,
doença, cuidado) ao conjunto de práticas discursivas e operacionais dos novos campos de
saberes e de práticas que cada vez com mais intensidade e freqüência se formam em torno
do objeto Saúde. Com esse objetivo, os conceitos de Risco e as práticas que lhe
correspondem no campo da Saúde podem ser reunidos em três grupos (ALMEIDA-FILHO,
2007):
1. risco como indicador de causalidade (ou resíduo da probabilidade). Trata-se de
reconhecer e reafirmar sua base indutiva e freqüentista. Esse conceito particular de risco
subsidia modelos de prevenção de doenças ou eventos mórbidos, com as seguintes
variantes: (a) modelos de prevenção individual (conceito clínico de risco); (b) modelos de
prevenção populacional.
2. risco como perigo estruturado. Tal conceito subsidia largamente modelos de
intervenção nos campos da Saúde Ambiental e Ocupacional (OPAS, 1976). Nesse caso, é
preciso explorar sua base dedutiva, descritiva e estrutural.

44
3. risco como emergência. Trata-se, nesse caso, de explicitar a base filosófica da
contingência, articulada como processos de emergência em modelos de complexidade. Este
conceito subsidia modelos de: a) Promoção da Saúde; b) Vigilância em Saúde.

De forma simplificada, podemos dizer que a constituição do conceito de risco


epidemiológico e o método incorporado pela pesquisa médica acabam por definir estilos de
vida, produzindo significados que orientam o comportamento; articula-se, assim, a uma
forma de vigilância do indivíduo – pulverizada, internalizada e menos visível – traduzida no
autocontrole e implementada pelo biopoder.
Reiterando o que já afirmamos anteriormente, a idéia de risco consolidou-se com a
modernidade, associada ao pensamento probabilístico e à idéia de cálculo. Uma das
características da transição para a modernidade tardia é a revisão contínua a partir de novas
informações ou conhecimentos de uma grande parte dos aspectos da vida social. Estas
idéias, de certa forma, também estão presentes nas formulações de Bauman (2001). Ele
defende o ponto de vista de que há a passagem de uma modernidade denominada “sólida”
para uma modernidade “líquida”. Os padrões, códigos e regras ganharam mobilidade e
inconstância, ou seja, tornaram- se maleáveis e, à semelhança dos fluidos, não mantém a
forma durante muito tempo. Os processos de desregulamentação, de liberalização, de
flexibilização das normas, exacerbam – e paradoxalmente também limitam – de forma
inédita as opções dos indivíduos e sociedades.
Esse efeito não foi alcançado via ditadura, subordinação ou opressão, mas ocorre,
ao contrário, em virtude do “derretimento radical dos grilhões” (BAUMAN, 2001, p. 11) que
limitavam as liberdades individuais. A liquefação dos padrões – que antes garantiam a
regularidade e os limites éticos – amplia infinitamente as possibilidades. Esse movimento
transfere ao indivíduo a responsabilidade exclusiva pelo seu destino. O que deve ser feito já
não está mais definido a priori. Cabe a cada um escolher o que fazer de sua vida. Os
problemas socialmente produzidos agora requerem soluções individuais (LUIZ; COHN,
2006).
São os cálculos epidemiológicos que informam sobre quais são os fatores de risco: a
comida gordurosa, as tentações ricas em colesterol, a fumaça de cigarro. Portanto, as
informações epidemiológicas comunicam quais são as portas que devem ser obstruídas à
entrada da morte. Em termos metafóricos, podemos dizer que a Medicina, apoiada pelo
método epidemiológico, é o alquimista que possui a pedra filosofal. Ela sustenta possuir o
poder de transformar a incerteza em auto-segurança, é a autoridade que aprova (ou
desaprova) a forma como cada indivíduo deve viver, uma forma que constantemente derrete
e se transforma em novas formas igualmente líquidas, transitórias (LUIZ; COHN, 2006).

45
A “era da genética” traz novas mudanças de foco das estratégias regulatórias que
vão levar à substituição do discurso sobre grupos de risco pelo das suscetibilidades
individuais (ROSE, 2001). Na modalidade de suscetibilidade genética, o risco biomédico
torna-se progressivamente individualizado e clínico (M. J. SPINK, 2007a).
A crescente molecularização da saúde, baseada em vigilância continuada de
indicadores (clínicos e genéticos) por todos nós, é conseqüência de fatores diversos, entre
eles o próprio avanço da tecnologia médica e a tendência neoliberal à minimização das
funções do Estado. Mas aponta igualmente para mudanças na forma como o Estado se
posiciona perante a saúde: nas palavras de Rose (2001, p. 6), a biopolítica se transforma
em bioeconomia:

Hoje, porém, o argumento para o interesse político na saúde da população


já não se coloca mais em termos das conseqüências da falta de saúde
(unfitness) da população como um todo orgânico para a luta entre nações.
Ao invés disso, é colocado em termos econômicos – os custos da doença
(ill-health) em termos de dias perdidos de trabalho ou aumento das
contribuições previdenciárias – ou em termos morais – o imperativo de
reduzir as desigualdades em saúde.

Em suma, o Estado perde sua função pastoral– forma de poder voltada ao bem-estar
do rebanho como um todo (Cf. FOUCAULT, 1999). Ou melhor, a função pastoral deixa de
ser unidirecional (do pastor para o rebanho) para tornar-se relacional (com a conseqüente
imposição da comunicação sobre riscos e dos consentimentos informados). Retém a
responsabilidade adquirida nos séculos XVIII e XIX pelas condições gerais de saúde da
população (controle da qualidade dos alimentos, saneamento, controle das epidemias), mas
procura livrar-se das responsabilidades adquiridas no início do século XX, ou seja, as de
assegurar os indivíduos diante das doenças e acidentes. Vê-se, portanto, como aponta
Rose (2001), uma intensificação das estratégias preventivas, relacionada, por exemplo, com
o “estilo de vida”, lado-a-lado ao fortalecimento da indústria de seguros (de vida, de saúde) e
das obrigações de cada um de nós pela manutenção da saúde. “Todo cidadão deve agora
tornar-se um parceiro ativo na busca da saúde, aceitando sua responsabilidade por
assegurar seu bem-estar” (ROSE, 2001, p. 6).

2.5. Risco no discurso técnico da Clínica

Acompanhando a mudança conceitual do risco epidemiológico, a disciplina foi


gradualmente prescindindo do conceito de meio, que se tornou cada vez mais um elemento
residual no discurso epidemiológico. Concomitantemente, a quantificação e os recursos
matemáticos não passaram apenas a conferir consistência interna aos estudos; na

46
Epidemiologia do risco, eles são a própria fonte de identidade das construções utilizadas
nos estudos. Outro movimento em torno dos estudos epidemiológicos de risco inicia-se a
partir da década de 1980, a partir de uma corrente de pensamento denominada
Epidemiologia Clínica. Seus teóricos salientam as inter-relações da Clínica com a
Epidemiologia, buscando uma nova forma de prática médica (SCHMIDT, 1999; FLETCHER,
1996). Com o aprofundamento das dificuldades para controlar os custos da assistência
médica, valorizou-se a importância da efetividade da abordagem individual:

[...] a tensão entre a demanda por atendimento e os recursos para provê-lo


ampliaram a necessidade de informações mais qualificadas sobre a
efetividade clínica no estabelecimento de prioridades de saúde. [...]
Variações no atendimento observadas entre os clínicos e entre várias
regiões, não explicadas por necessidades dos pacientes e não
acompanhadas por diferenças paralelas nos desfechos, levantam a questão
de quais são as práticas clínicas de maior utilidade. (FLETCHER, 1996, p.
9).

Os pressupostos da Epidemiologia Clínica podem ser assim resumidos: (i) as


decisões clínicas são permeadas por incertezas, e medidas são adotadas sem o
conhecimento real de seu impacto; (ii) a experiência clínica e os conhecimentos sobre os
mecanismos das doenças e das intervenções são importantes, mas insuficientes para o
raciocínio clínico; (iii) é necessário encontrar evidências em pesquisas planejadas para
reduzir as incertezas nas decisões, cujos resultados devem ser integrados aos
conhecimentos acumulados sobre os mecanismos de doenças e as experiências clínicas
pessoais; (iv) os valores atribuídos aos riscos, benefícios e custos das intervenções devem
ser ponderados (LUIZ; COHN, 2006).
Desta forma, métodos e técnicas da Epidemiologia, dentre eles o cálculo de risco,
são aplicados a questões tais como: acurácia dos métodos diagnósticos, fatores associados
ao risco de doença, prognósticos, tratamentos, medidas de prevenção, etiologia e custos.
(LUIZ; COHN, 2006).
Colocando-se como interface da Epidemiologia e da Clínica, a Epidemiologia Clínica
vem recebendo críticas de ambas as partes. É freqüente a sua rejeição por parte dos
clínicos, principalmente por supostamente desvalorizar sua experiência pessoal – e por
conseqüência sua competência – pessoal e por desacreditar certezas cultivadas durante
anos de prática. Além disso, ao problematizar os custos da assistência, é acusada de
articular-se ao movimento das grandes empresas médicas buscando reduzir gastos com
prejuízo da qualidade no atendimento. As objeções mais elaboradas à vertente da
Epidemiologia Clínica, no entanto, são encontradas no próprio campo da Epidemiologia.
Almeida-Filho (1992) e Barata (1996) apontam que a Epidemiologia Clínica aparece
como uma releitura da Epidemiologia, como uma proposta de superação dos impasses da
47
Clínica e da Epidemiologia, tentando adequá-la, assim, aos imperativos da abordagem
clínica individual, obscurecendo o caráter social, próprio da disciplina. Admite-se, portanto,
na Epidemiologia Clínica que os indivíduos manifestariam a média dos atributos de uma
população, ou seja, seus riscos e fatores de risco:

Ao reduzir a investigação epidemiológica aos estudos de eficácia de


procedimentos diagnósticos e terapêuticos aplicados a grupos de pacientes,
constituídos com base apenas no fato de serem portadores de doença, a
Epidemiologia Clínica opera sua redução mais significativa na realidade,
excluindo do campo médico os estudos em que o caráter social do processo
saúde/doença possa ser evidenciado. (BARATA, 1996, p. 559).

Somente após a sistematização da noção de doença (século XVIII e XIX) é que a


Epidemiologia pôde vir a se constituir enquanto disciplina científica, dado que o seu objeto
se estrutura por referência ao saber clínico (ALMEIDA-FILHO, 1992). Portanto, desde o
início, é importante acentuar o caráter subsidiário da Epidemiologia em relação ao saber
clínico. Segundo Gonçalves (1990), a complementaridade entre estes dois campos de
conhecimento encontra-se garantida pela univocidade do conceito de doença que
representa, ao nível do saber, a integração das práticas clínicas e de Saúde Pública. A fonte
da heterogeneidade fundamental que permite a construção do objeto de conhecimento na
Epidemiologia encontra-se na diferenciação potencial entre pessoas doentes e sadias, o que
é possibilitado pela abordagem clínica de indivíduos membros da população.
A Clínica e a Epidemiologia encontram-se vinculadas epistemologicamente. Ambas
tratam de corpos sociais: enquanto a Clínica trata do sujeito considerado em suas
particularidades, o caso, o um, a Epidemiologia aborda o coletivo, busca a generalidade, o
grupo de casos, o todos. A atuação individualizada da prática clínica não deixa de ser uma
intervenção sobre corpos sociais, através de “encontros singulares”, na medida em que trata
de sujeitos, em contextos sócio-históricos. A Epidemiologia, mesmo no seu enfoque mais
tradicional que reforça o biologicismo da Clínica ao reduzir o social ao mero conjunto de
indivíduos (GONÇALVES, 1990), também trata de corpos social e historicamente definidos,
neste caso corpos sociais coletivos. (ALMEIDA FILHO, 1992).
A mais marcante expressão deste laço pode ser encontrada na fonte do
determinante do objeto da Clínica, localizável o campo epidemiológico, e na definição do
objeto epidemiológico, subordinado ao campo da Clínica. Como sabemos, esta
subordinação se revela desde a constituição do próprio objeto epidemiológico (doentes em
populações), dado que a identificação dos doentes é produzida, em última instância, pela
abordagem clínica (ALMEIDA FILHO, 1992).

48
Metodologicamente, a Clínica e a Epidemiologia interagem. Em primeiro lugar,
servem-se mutuamente como fontes de problemas científicos, de moldes explicativos e de
hipóteses de pesquisa. Em segundo lugar, os instrumentos de investigação epidemiológica
são construídos, quase sempre, a partir de padrões oriundos da observação clínica. Ao
mesmo tempo, a validade e a confiabilidade dos procedimentos diagnósticos da Clínica têm
sido testadas por meio da metodologia epidemiológica. Neste aspecto específico, será
sempre instrutivo rever a origem da nosologia e os fundamentos dos exames ditos
complementares, no começo da Clínica (ALMEIDA-FILHO, 1992).
Desenhos de pesquisa originalmente desenvolvidos para a investigação clínica, vêm
sendo aperfeiçoados, cada vez mais, pela Epidemiologia, momento em que são ampliados e
aplicados em populações. Tais avanços são quase que prontamente devolvidos à Clínica,
que os tem absorvido com sucesso no processo de configuração de uma “metodologia de
investigação clínica” (ALMEIDA-FILHO, 1992).
Tal “dependência metodológica” tem se tornado tão visível que departamentos
clínicos não reconhecem a Epidemiologia na sua formação integral (principalmente por
questões ideológicas, quiçá sinalizando uma luta ferrenha por espaço institucional) e
passam a desenvolver a chamada “Epidemiologia Clínica”. Para Almeida-Filho (1992), esta
proposta nada mais é que a aplicação da metodologia epidemiológica a questões
particulares da pesquisa clínica, principalmente porque a Epidemiologia tem se mostrado
como principal responsável pelo desenvolvimento de técnicas de análise (heurística e
estatística) aplicáveis às especificidades da ocorrência de doença em grupos populacionais.
A forma pela qual a Epidemiologia constrói seu objeto de conhecimento, que
equivale ao seu particular modo de produção de conhecimento, não pode ser subsumido
pelo discurso clínico. Nem vice-versa: a Epidemiologia não é a “clínica das populações”,
tanto quanto a Clínica nunca se tornará “a epidemiologia dos indivíduos” (ALMEIDA FILHO,
1992, p. 77). Em outras palavras, não obstante as complexas relações dialéticas entre esses
campos de conhecimento, como vimos acima, as suas formas privilegiadas de aproximação
aos objetivos da saúde-doença não podem ser reduzidos uma à outra. Apesar do
reconhecimento de que a Epidemiologia é filha e herdeira da Clínica, como diz Gonçalves
(1990), ambas as disciplinas cultivam atualmente um desenvolvimento prático e conceitual
autônomo. Numa linguagem metafórica poderíamos dizer que seriam de uma mesma
linhagem, e governam reinos visinhos, com intenso intercambio, porém separados por
fronteiras bastante precisas e razoavelmente bem delimitadas. Portanto, guarda-se a cada
uma o seu objeto.
O conceito de risco cada vez mais prevalece no discurso clínico contemporâneo,
especialmente no contexto de um movimento ideológico que se autodesigna por meio desse

49
intrigante oximoro (LAST, 1989): “epidemiologia clinica”. Para abordar tal questão
criticamente, é necessário privilegiar o aspecto técnico, aplicado e utilitário do conceito de
risco. De fato, este emprego do conceito resultada de uma tradução “alterada” do conceito
epidemiológico original (ALMEIDA-FILHO, 1992).
Primeiramente, o conceito de risco se integra ao discurso da Clínica como uma
solução técnica para a questão fundamental do campo: a incerteza no processo de tomada
de decisões (KASSIRER, 1976; VOGT, 1987). A incorporação do componente probabilidade
do conceito de risco pretende preencher tal demanda, trazendo, além disto, uma série de
vantagens ou ganhos secundários, associados à carga de ambigüidades já presentes no
conceito. Em primeiro lugar, há uma pretensão de assim reduzir (e no horizonte prevenir) a
ação dos elementos subjetivos ou intuitivos no “raciocínio clínico” (SCHWARTZ; GRIFFIN,
1986). Este projeto contra-subjetivo integra-se em uma trajetória a que a Clínica tem se
imposto recentemente, buscando se construir como uma prática exclusivamente técnica,
desumanizada, imparcial e neutra (BENCH, 1989). Então, o conceito de risco se encaixa
como uma luva no processo de despersonalização da Clínica. Porém, na transplantação do
conceito, a Clínica interpreta o risco como aplicável ao seu objeto técnico, que não tem um
caráter coletivo, que não se refere a populações (a não ser remotamente) e sim ao individuo
no singular (FLETCHER et al, 1982; LEDERMANN, 1986; HUNTER, 1989).
Em síntese, o conceito clínico de risco não pretende se basear na aplicação direta de
um raciocínio estatístico de probabilidades, ou pelo menos em uma forma de raciocínio
fundada no resíduo da probabilidade estatística, como na Epidemiologia. Nesta passagem,
ou transferência de campo, ocorre também uma modificação de sentido, do conceito de
risco como essencialmente coletivo para uma concepção do risco individual (GIFFORD,
1986).
Risco no discurso da Clínica se produz a partir de duas fontes: por um lado, reduzido
sem mediações (transformado) do risco epidemiológico, e por outro lado, deduzido de uma
determinada experiência clínica. No primeiro caso, o conceito de risco é tomado com base
na expectativa de que a observação de séries finitas de populações, além de propiciar
inferências temporais e pseudo-predições espaciais, poderia ainda legitimar predições sobre
membros individuais e singulares daquelas e de outras populações (FEINSTEIN, 1983;
HORWITZ, 1987). Nota-se que o processo lógico é completamente distinto das inferências
típicas do chamado raciocínio epidemiológico. Não mais uma extrapolação fundada na
expectativa da existência de regularidades e identidades entre diferentes populações no
tempo e no espaço, e sim uma pretensão à “intrapolação”, através da admissão plena do
pressuposto de que os membros individuais manifestariam a média dos atributos de uma
dada população (risco e fatores de risco). Poderíamos até dizer que se trata da falácia

50
ecológica ao contrário, o que naturalmente significa cair em outro engano. Tal pressuposto é
dificilmente defensável dentro da lógica da prática tecnológica da própria Clínica, na medida
em que implica uma contradição fundamental com o princípio da singularidade do caso
clínico (MURPHY, 1965; BLACK, 1968; CLAVREUL, 1983).
A segunda fonte do conceito clínico de risco encontra-se no registro histórico da
experiência clínica. Esta fonte de informação sobre o risco pode ser oriunda da vivencia do
próprio clínico enquanto agente de uma prática individual (GONÇALVES, 1990), mas
também pode ser resultante de uma compilação, ou série de observações realizadas por
diversos sujeitos, sistematizada ou compartilhada pelos mecanismos convencionais de
transmissão da chamada “casuística” (JOSEN; TOULMIN, 1988; HUNTER, 1989). Constitui-
se, então, a contradição própria do conceito de risco no discurso clínico: um conceito
construído e sustentado a partir de fontes subjetivas, porém com pretensões de maior
objetividade (ALMEIDA-FILHO, 1992).
No caso do uso tecnológico do conceito de risco, Almeida-Filho (1992) assinala uma
ambigüidade que, apesar de não ser específica do discurso clínico, parece ainda mais
marcante, dados os seus efeitos discursivos e práticos da expressão “sob risco”, derivada
do inglês at risk (GRUNDY, 1975), que implica novamente na fusão de sentidos entre fator
de risco e risco propriamente dito. Assim, portar um dado fator de risco, ou pertencer a um
“grupo de risco”, ou seja, estar “sob risco”, terá o mesmo efeito de qualquer sinal clínico na
prática propedêutica. Em outras palavras, pertencer a (ou ser oriundo de) certo segmentos
da população, ou ser portador de certas diferenças, idiossincrasias ou heterogeneidade,
transformam aqueles predicados do paciente em potencial em sinais de interesse
diagnóstico ou prognóstico (ALEXANDER, 1988; GIFFORD, 1986). Além de sinais, pode-se
falar também em sintomas porque algumas destas expressões podem ser manifestadas
pelo próprio paciente objeto da intervenção clínica. A atribuição de um estatuto de
sinal/sintoma clínico ao estado de “sob-risco” termina por configurar um verdadeiro processo
de reificação, transformando um efeito de discurso (aplicação de um conceito sobre um
corpo ou sobre um sujeito) em uma “entidade clínica”, tomada, para todos os efeitos, como
uma coisa em si (GIFFORD, 1986).
O paralelo com a Epidemiologia pode ser instrutivo: como já assinalamos,
rigorosamente falando, a nenhum epidemiologista é permitido pensar o risco como uma
coisa que tem uma ocorrência independente das populações, que existe em si. Entretanto,
na produção de um discurso clínico sobre um determinado paciente, o fato de ele ser
proveniente de uma área endêmica, ou ter certo “estilo-de-vida”, ou determinadas
preferências sexuais, constituem configurações descritivas do estado de “sob- risco”
daquele caso clínico (GRUNDY, 1975). Tais configurações passam a ser entificadas no

51
mesmo conjunto complexo e heterogêneo de sinais, sintomas, códigos e referencias que
passam a compor um quadro diagnóstico global, potencialmente identificáveis com
“precision & insight” (MURPHY, 1990). Quer dizer, o perfil de risco dos sujeitos passa a ser
incorporado ao processo de identificação de doença, processo diagnostico regulado pelo
discurso da propedêutica clínica. No passo seguinte do processo o risco passa a ser um
objeto de diagnostico em si, com o mesmo estatuto epistemológico dos outros objetos
semblantes da Clínica (CLAVREUL, 1983), de modo que se diagnostica fatores de risco
como se fossem doença (ALMEIDA-FILHO, 1992).
É interessante observar que aqui se fecha todo um ciclo de inconsistências: o sentido
do risco se transfere para o seu determinante, que enquanto fator de risco passa a ser
reconhecido como um sinal/sintoma, que por sua vez torna-se uma entidade clínica,
incorporada a um perfil patológico específico. No final do percurso, talvez pela inércia do
processo de construção dos discursos em sua essência lingüística, aparentemente cumpre-
se o ciclo com risco terminado por denotar doença (ALMEIDA-FILHO, 1992).
Almeida-Filho (1992) considera que se trata de um ciclo de inconsistências porque
todo esse percurso semântico implica uma série de transformações dos significados do
conceito original, praticamente condensando todas as ambigüidades referidas ao conceito
em pauta, para finalizar com uma sutil alteração do sentido inicial do conceito. Trata-se de
um ciclo apenas na aparência, porque de fato o conceito original de risco se constrói no
discurso epidemiológico em oposição ao (e justamente para superá-lo) conceito ontológico e
entificado de doença da Clínica (CANGUILHEM, 1966/2007; GONÇALVES, 1990), portanto,
inútil para a abordagem matematizada do objeto epidemiológico.
Porém, este complexo processo lingüístico, conceitual e praxiológico ainda não se
conclui nesta etapa. Dado que o estado de “sob risco” é incorporado à problemática clínica,
não se trata apenas do diagnóstico da patologia, mas também de como diagnosticar o risco
nos sujeitos. Ora, como a prática clínica é eminentemente tecnológica, no sentido estrito de
techné (CASTORIADIS, 1987), repousa necessariamente em uma proposta de intervenção,
pois não se pode parar na mera constatação do risco. Afinal de contas, a Clínica não se
satisfaz com um saber sobre as doenças, e sim tem como projeto histórico tratá-las
(CASSEL, 1978; CLAVREUL, 1983). É preciso determinar uma intervenção sobre esse novo
objeto ampliado, criando-se, além de uma propedêutica dos riscos, uma “terapêutica dos
riscos”. Afinal a questão da prevenção deixa de ser uma problemática coletiva, como
construção do modelo epidemiológico da prevenção dos riscos (AROUCA, 1975), e passa
se constituir em um problema individual, trazendo a possibilidade da prevenção dos riscos
individuais, intervindo, alterando e evidentemente tratando, em ultima instância, os

52
traços/marcas/atributos caracterizados como sendo potencialmente fatores de risco para a
saúde dos sujeitos singulares (ALEXANDER, 1988).
Diversos autores, ao reconhecerem a configuração do conceito de risco e os estudos
etiológicos como elemento central na estruturação da epidemiologia, buscam também
ressaltar outras dimensões da disciplina. Para Castellanos (1998), a Epidemiologia, mais
que o estudo da saúde e da doença em populações, deve ocupar-se do estudo dos
fenômenos de saúde-doença de populações. O autor ao se referir aos estudos ecológicos,
identifica dois tipos de abordagem: a que toma a população como unidade de análise e
como universo de estudo, e aquela em que os riscos individuais são definidos a partir dos
valores médios de um grupo. Este último tipo de abordagem apresenta pouca potência para
validar hipóteses de risco ou preditoras. A Epidemiologia contorna esse problema
procurando reduzir ao máximo possível a variação individual entre os grupos em estudo,
permitindo o estabelecimento de correlações, controlando as variáveis e processos
coletivos, restringindo o seu alcance na compreensão do processo saúde/doença do ponto
de vista social e coletivo.
Ainda nessa linha, Goldbaum (1990) constata a tendência de os estudos
epidemiológicos procurarem estabelecer relações entre a ocorrência de doenças e o estilo
de vida de indivíduos, identificando hábitos nocivos à saúde, como fumo, álcool, obesidade,
entre outros. Esse tipo de abordagem acaba por promover práticas exclusivamente
individuais, recobertas de suposta intervenção coletiva. O estilo de vida é transformado em
variáveis isoladas e quantificado de forma a facilitar a intervenção através da promoção de
programas de controle que visam somente à mudança do comportamento individual com
relação à exposição aos fatores de risco.
Goldbaum (1990), no entanto, reconhece a importante contribuição que esses
estudos têm trazido para o controle das doenças; sua ressalva refere-se ao processo de
transposição dos resultados para a formulação de propostas de intervenção, que não deve
ser restrito ao comportamento individual, mas articulado a outros elementos explicativos,
antes de ser traduzido em ações. Aponta que os estudos, quando restritos a esse enfoque,
limitam a abrangência da disciplina.
Contrapondo-se à tendência da Epidemiologia em restringir sua atuação aos estudos
etiológicos e aos cálculos de risco, Castellanos (1994) busca enfatizar outras áreas de
atuação da disciplina. Ao sistematizar sua perspectiva, identifica os estudos causais ou
explicativos, com sua ênfase no cálculo de risco, como uma dentre quatro aplicações da
disciplina. As demais áreas são: estudos da situação de saúde; vigilância epidemiológica e
avaliação de serviços, programas e tecnologias de saúde. De acordo com a literatura sobre
o tema, a discussão sobre risco na Clinica ganha força na década de 1990.

53
Por enfatizar as associações entre fatores e efeitos, as funções de ocorrência nos
estudos etiológicos, o método epidemiológico passa a ser incorporado pelos estudos nas
demais áreas da Medicina, sendo freqüentes as análises de associações nos mais diversos
tipos de estudos médicos. Assim, a etiologia de uma determinada doença que se insere em
seu campo específico da Medicina – por exemplo, as doenças cardíacas, objeto de pesquisa
na área da Cardiologia – tem suas relações causais abordadas valendo-se de instrumentos
da Epidemiologia, com especial ênfase nos estudos de risco. Neste exemplo, o tabagismo, o
estresse, os altos níveis de colesterol sérico, o sedentarismo, constituem fatores de risco
para as doenças cardíacas identificadas por meio da metodologia epidemiológica (LUIZ;
COHN, 2006)
A disciplina, assim, amplia sua atuação junto às demais especialidades médicas,
mas o preço dessa inserção é a cristalização do enfoque exclusivamente fisiopatológico do
processo saúde-doença, alijando de suas preocupações as dimensões políticas,
econômicas e sociais do adoecimento, ou seja, ignorando a manifestação social das
doenças como objeto de sua preocupação. As práticas em saúde baseadas nessa
concepção, que é também política, expressam-se como medidas que buscam a mudança de
hábitos e comportamentos, já que a ênfase recai sobre a dimensão individual do
adoecimento. Essa concepção se opõe à idéia de saúde como direito (LUIZ, 2005) e abstrai,
dessa forma, a necessidade de mudanças estruturais que implicariam em alterações mais
profundas, podendo mesmo requerer nova dinâmica na distribuição de recursos sociais e de
poder (LUIZ; COHN, 2006).
No próximo capítulo abordaremos o modo como o conceito de risco clínico é
incorporado na Clínica Obstétrica e seus conseqüentes efeitos na avaliação do risco
gestacional com indicação terapêutica de aborto.

54
Capítulo 3

Risco na clínica obstétrica: entendendo risco na gestação

O presente capítulo tem a finalidade de circunscrever os fundamentos para a


avaliação do risco na gestação (ou risco gravídico). Para a consecução desta proposta o
capítulo está organizado em duas partes: a primeira trata da abordagem do risco na Clínica
Obstétrica e a segunda discute o aborto por risco de vida da gestante a partir das premissas
do Causal Salud17. Semelhante ao capítulo anterior, a discussão conceitual trazida visa
sustentar as interpretações sobre os usos do risco na gestação e no aborto por risco de vida
da gestante.

3.1. Abordagem de risco na obstetrícia

Como discutido no capítulo anterior, o conceito de risco na Epidemiologia designa


chances probabilísticas de suscetibilidade atribuíveis a um indivíduo qualquer pertencente a
grupos populacionais particularizados, delimitados em função da exposição a agentes de
interesse técnico ou cientifico (AYRES, 2008). Nesse processo, a expressão “estar em
risco”, característica das noções de suscetibilidade das técnicas de gerenciamento da
população no século XIX, perde sua importância. Essa construção lingüística oblitera-se
lentamente da literatura epidemiológica, muito embora tenha sido incorporada no
vocabulário de outras disciplinas, entre elas a Psicologia. Em substituição, a expressão
dominante passa a ser “dado x, o risco é y”, ou “o risco de x é y” (M. J. SPINK, 2007a).
Segundo Ayres (2008), o risco deixa de ser um indicador de infortúnio e torna-se uma
expressão formal e probabilística do comportamento de freqüências de determinados

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“Causal Salud” é um documento produzido pela Federação Latino-Americana de Sociedades de Obstetrícia e
Ginecologia (FLASOG), em parceria com algumas organizações feministas, que visa normatizar a prática da
assistência a interrupção legal da gestação em casos de gravidez de risco e estabelece parâmetros para a
proteção do direito da mulher em optar pelo aborto nos casos em que sinta sua saúde ou bem-estar ameaçados.
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eventos de saúde quando inquiridos a respeito de associações particulares; decorre daí a
possibilidade de falar em “riscos relativos”.
Desse modo, emerge no cenário epidemiológico o enquadre dos fatores de risco e
das intervenções baseadas na “Abordagem dos Riscos” (“Risk Approach”). Essa perspectiva
teve por objetivo a organização seletiva de serviços de saúde e foi introduzida pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) no final da década de 1970, no contexto do
Programa de Atenção Materno-Infantil (M. J. SPINK, 2007a).
A lógica que sustenta a “Abordagem de Risco” se funda na seguinte premissa: sabe-
se, por experiência, que algumas pessoas, mais que outras, são mais suscetíveis a, ou são
mais frequentemente afetadas por morbidades específicas do que outras. Pessoas com
características comuns às daquelas que experimentam a morbidade de interesse são
consideradas como estando em maior risco do que as que não possuem tais características.
Essas características são denominadas fatores ou marcadores de risco (HAYES, 1991).
A “Abordagem de Risco” permitiu a migração do conceito de risco para a Clínica
Obstétrica, sendo formalizada pelo documento da OMS (1978), intitulado “Risk approach for
maternal and child health care: a managerial strategy to improve the coverage and quality of
maternal and child health/family planning services based on the measurement of individual
and community risk”. Nesse documento o desenvolvimento da “Abordagem de Risco” é
apresentado como possibilidade de melhoria da saúde materna e infantil por parte de uma
força-tarefa da OMS, entendido como resultado da constante busca por métodos
promissores no cuidado em saúde. É assim definido:

O “risk approach” pode ser considerado como uma ferramenta de manejo


para distribuição flexível e racional dos recursos existentes nas medidas dos
riscos individuais e coletivos, e para o desenvolvimento de estratégias locais
determinando o conteúdo apropriado do planejamento do cuidado à saúde
materna e infantil/familiar. Algo inerente nessa abordagem é a utilização
máxima de todos os recursos, incluindo alguns recursos humanos que não
são convencionalmente incluídos em tais cuidados à saúde – parteiras,
professores, grupos de mulheres, trabalhadores rurais, por exemplo. Ele
também permite e promove autoconfiança para o cuidado em saúde na
comunidade e na família, particularmente da mãe para a criança pequena.
Apesar de a abordagem ter importante potencial para a boa qualidade e
cobertura do cuidado à saúde em países em desenvolvimento, ele é
também útil para regiões desenvolvidas (OMS, 1978, p. V, tradução nossa).

A OMS (1978) afirma que o conceito e a metodologia da “Abordagem de Risco” são


mais adequados para as necessidades de planejamento do cuidado à saúde materna e
infantil/familiar, principalmente como parte do cuidado primário à saúde. Segundo os
assinalamentos postos no documento, há necessidade de buscar caminhos para fazer o uso
otimizado dos recursos existentes para o beneficio da maioria da população, que se

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encontra em situação de vulnerabilidade social e dificuldade de acesso a programas de
saúde de qualidade.
Na Clínica Obstétrica, o termo “risco” significa que a presença de uma ou mais
característica ou fator aumenta a probabilidade de conseqüências adversas. O risco
constitui uma medida da probabilidade estatística de que no futuro surja um acontecimento
não desejado, denominado “dano”. Com relação à gestação, definem-se danos possíveis
segundo o resultado perinatal: mortes (aborto, natimorto, neomorto precoce ou tardio) e
problemas de saúde (recém-natos de maior risco: pré-termo, baixo peso ao nascer,
malformados e síndromes genéticas) (LUZ; REIS; DA COSTA, 2000). Há fatores de risco
que, em estudos epidemiológicos, mostram-se mais importantes que outros na
determinação de um dano específico, por exemplo, idade materna avançada determinando
a síndrome de Down.
Segundo Luz, Reis e da Costa (2000), há três formas, na Obstetrícia, pelas quais
determinado fator de risco se associa à conseqüência indesejável ou dano:

1. Forma causal, desencadeante do processo patológico; podem ser citadas a má


nutrição materna e o baixo peso do concepto ao nascer.
2. Forma favorecedora, onde há clara conexão entre o fator e o dano, ainda que o fator
não seja a causa direta, por exemplo, intervalo interpartal e baixo peso ao nascer.
3. Fator preditivo ou marcador, quando a associação se faz através de múltiplos elos,
de forma não claramente identificável, às vezes, evidenciada por meio apenas de
associações estatísticas, sendo, então, denominado o fator de preditivo ou marcador.
A gravidez em adolescentes, e conseqüentes resultados perinatais indesejáveis, é
exemplo dessa associação.

Segundo os autores, pode-se sistematizar as inúmeras variáveis descritas como


associadas à morbidade e à mortalidade perinatais em cinco grupos: GRUPO I, gestações
de maior risco fetal possíveis de serem identificadas na primeira consulta pré-natal sem
necessidade de exames complementares; GRUPO II, gestações de maior risco fetal nem
sempre identificáveis na primeira consulta pré-natal; GRUPO III, gestações de maior risco
fetal devido a doenças gravídicas; GRUPO IV, gestações de maior risco fetal devido a
doenças intecorrentes à gravidez; GRUPO V, gestações de maior risco fetal devido a
condições do parto e anomalias do cordão umbilical.
Sobre as utilidades do conceito de risco em Obstetrícia, Luz, Reis e da Costa (2000)
assinalam que elas podem ser as seguintes: 1) aconselhamento do risco individual: os
fatores de risco são usados para predizer a ocorrência de doença. A melhor informação
disponível para predizer doença em um indivíduo é a experiência prévia com um grande

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número de pessoas com um fator de risco semelhante; 2) estudo da causalidade: o fato de
um fator de risco predizer doença não significa que cause doença. Um fator de risco que
não é causa de doença é chamado de marcador; 3) prevenção: se um fator de risco é
também a causa de uma doença, sua remoção pode ser usada para prevenir a doença,
mesmo que não se saiba o mecanismo pelo qual a doença se manifesta; 4) planejamento da
saúde – administração de serviços de saúde. A assistência à mulher grávida está
organizada por níveis que são definidos pelo risco a que as pacientes estão expostas e pela
complexidade de atenção necessária.
A respeito dos níveis de cuidado a gestante a partir da avaliação do risco, a política de
assistência é organizada assim: 1) Atenção primária – Cuidados Básicos de Saúde:
conforme os preceitos da OMS (1978), a atenção primária visa à remoção de fatores de
risco e à promoção de saúde. É realizada em unidade de cuidados básicos de saúde
geralmente perto do domicílio. A assistência pré-natal seria a atividade básica juntamente
com o planejamento familiar. A avaliação de risco, que permite organizar a assistência, deve
ser feita através de marcadores; 2) Atenção Secundária, nível de assistência em que é
realizado diagnóstico precoce de doenças e assistência a pequenos problemas de saúde,
que visa ao diagnóstico e ao tratamento de pequenos problemas da gravidez. A assistência
ao parto em gestantes de baixo risco é enquadrada aqui; 3) Atenção terciária, esse nível de
cuidado objetiva a assistência às complicações da gravidez, tanto no que diz respeito a
assistência pré-natal da paciente com doenças intercorrentes e próprias, quanto à
assistência ao parto e ao recém-nascido nas gestações de alto-risco. Há a necessidade de
equipamento caro e pessoal altamente treinado. A avaliação do risco nesse nível também
ajuda a organizar a assistência e deve ser feita através de fatores causais (LUZ; REIS; DA
COSTA, 2000).

3.2. Aborto por risco de vida da gestante

Juntamente com a gestação decorrente de estupro, os casos onde a vida da


gestante está em risco compõem os permissivos legais para o aborto e são igualmente
aceitos pelo Código de Ética Médica. Para discutir os aspectos do aborto por risco de vida
da gestante, ou aborto terapêutico, nos apoiaremos no Causal Salud (VÉLEZ; DURÁN,
2010), documento produzido pela Federação Latino-Americana de Sociedades de
Obstetrícia e Ginecologia (FLASOG).
O Causal Salud considera que a interrupção legal da gravidez, por risco de vida da
gestante, não requer a constatação de uma doença; basta que o estado de bem-estar, que
consiste no direito à saúde, seja minimizado ou prejudicado pela manutenção da gestação.

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De acordo com este documento, a avaliação da presença de fatores de risco deverá ser
expressa em um diagnóstico apresentado à mulher, respeitando seu direito à informação,
com exposição das consequências do prosseguimento da gravidez. Para tal, o/a profissional
utilizará as técnicas necessárias para constatar a presença de risco para a saúde, inclusive,
se a mulher necessitar, de consulta com especialistas e exames.
Ao contrário da vertente mais tradicional sobre abordagem de risco em Obstetrícia,
apresentada na primeira seção deste capítulo, o conceito de risco no Causal Salud não se
refere à configuração de um “dano”, mas à sua possível ocorrência. Portanto, basta a
presença de um ou de vários fatores de risco, para considerar o risco como existente e,
como consequencia, a possibilidade que a saúde seja afetada em qualquer de suas
dimensões. Por conseguinte, a interrupção legal da gravidez, por motivos de saúde, é uma
alternativa de enfrentamento do risco.
As avaliações da exposição ao risco associadas à gravidez, sob a ótica das diversas
dimensões da saúde, assim como a possibilidade de interrupção legal da gestação, como
alternativa frente ao risco, reconhecem o direito à autonomia da mulher e sua capacidade de
decidir acerca do risco ou da possibilidade de ter sua saúde afetada. Assim, são as
mulheres que consideram o que seria aceitável, optando pela manutenção ou interrupção da
gravidez de acordo com suas circunstâncias particulares.
Como já reiterado anteriormente, o risco em saúde geralmente é definido como a
probabilidade de que se produza um resultado adverso ou um fator que aumenta essa
possibilidade. Esta definição alude à eventualidade de ocorrer o “dano”. Portanto, o
estabelecimento do risco para a realização do aborto procura prevenir danos à saúde e à
vida da mulher, associados à continuidade da gestação, o que não implica em sua
concretização nem na existência de risco iminente de morte ou dano para a saúde. Em
outras palavras, pode existir risco de vida, de adoecimento, de deterioração da saúde ou de
afetação do bem-estar que, por sua vez, pode ser físico, mental ou social.
É necessário entender essas aproximações frente a cada caso avaliado para
compreender o que significa risco para a mulher e o quanto de risco ela está disposta a
enfrentar. As estatísticas (taxas ou percentagens de ocorrência) não podem ser argumento
para negar o serviço, pois, embora possam ser úteis, não refletem uma “realidade absoluta”,
nem significam que a mulher não enfrente qualquer risco. Na interrupção legal da gestação
com base no Causal Salud um sistema de medição do risco deve ser capaz de indagar
acerca do montante de qualidade de vida ou do número de anos de vida saudável (por
exemplo, afetação do bem-estar por incapacidade ou doença) que uma mulher perderia pela
manutenção de uma gravidez que pode afetá-la. Isso se daria a partir do parâmetro do bem-

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estar, entendido como a melhor situação possível em que estariam as mulheres se fosse
eliminados tais riscos.
Outro aspecto importante na consideração do risco é que os distintos fatores a ele
concernentes não atuam de maneira isolada. Sua presença depende tanto de causas
imediatas ou recentes quanto de outras “remotas” ou indiretas, que fazem com que uma
determinada situação ou condição se transforme em fator de risco para uma pessoa. Por
exemplo, a condição de multípara como fator de risco não deriva apenas disso, mas
também de uma possível cadeia de determinantes sociais (maternidade como destino e
único projeto de vida), econômicos (condições de pobreza e precariedade, pelo número
elevado de filhos) e culturais (incapacidade da mulher para negociar algum método de
anticoncepção) que a provocam. Na avaliação do risco, sob a perspectiva do Causal Salud,
a identificação de fatores de risco mostra, portanto, como as diferentes dimensões da saúde
interagem na vida de uma pessoa, para produzir determinados resultados em saúde.
A presença de certos fatores de risco obedece tanto a padrões individuais quanto a
circunstâncias sociais, além de combinações específicas de exposição ao risco. Por isso,
devem ser levados em conta fatores individuais, ambientais, estruturais e sociais, capazes
de afetar segmentos mais amplos da população.
Acrescente-se a isso o fato de que alguns fatores de risco geram impactos variados
em diferentes etapas da vida de uma pessoa, pelo menos em dois sentidos. De um lado, a
exposição a fatores de risco, como a pobreza, gera efeitos acumulados que, depois de
amplos períodos, podem acarretar impactos mais críticos. A exposição a ambientes sociais
desvantajosos vai se acumulando ao longo da vida e aumenta o risco de doença e morte.
Por outro lado, um determinado risco pode ter efeitos diferentes, dependendo do momento
da vida de uma pessoa: por exemplo, para uma adolescente, sair do sistema educacional
provoca um efeito distinto do que seria no caso de uma mulher adulta, que esteja
estudando. No entanto, o fator determinante deve ser a percepção individual da própria
pessoa, construída e vivenciada por ela.
Para identificar a presença do risco e o alcance de seu impacto, é preciso levar em
conta: (a) como a continuação da gravidez, em cada caso concreto, afeta a saúde da mulher
no que diz respeito à perda de bem-estar, de qualidade de vida e anos de vida saudável; (b)
que os riscos para a saúde das mulheres são complexos e implicam na consideração de
diversos fatores (de vulnerabilidade, de precipitação e de consolidação), assim como
também combinam diferentes dimensões da saúde; (c) que o impacto destes depende de
combinações individuais de diferentes exposições a diversos riscos, que ocorrem na vida de
cada mulher, além dos fatores que afetam amplos segmentos de população, como os
ambientais; (d) que os riscos geram resultados distintos, de acordo com o ciclo de vida e os

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efeitos acumulados das exposições aos mesmos; e (e) que as mulheres que requerem uma
interrupção legal da gravidez usualmente não se dirigem aos serviços para solicitar a
interrupção, pois não necessariamente possuem informação sobre possíveis danos à sua
saúde.
Os diagnósticos individualizados dos riscos, associados à gravidez, representam
uma oportunidade prática e acessível para levar em conta várias circunstâncias, como a
idade, a pobreza, as situações de violência e a falta de acesso a serviços de saúde
reprodutiva, entre outras, que afetam diretamente a saúde das mulheres. Tais condições
devem ser consideradas pelos profissionais de saúde na avaliação do risco.
O Causal Salud insiste na importância crucial da explicação dos riscos, por parte do
profissional de saúde, para as mulheres que requerem uma interrupção legal da gravidez
por razões de saúde, de maneira a consolidar sua percepção individual acerca do risco e
seus níveis de aceitabilidade, segundo suas expectativas e circunstâncias peculiares. Pois,
acredita-se ser fundamental que a informação seja completa, clara, verdadeira e adequada:
modos diferentes de apresentar a informação condicionam avaliações e decisões diferentes,
e nem sempre favorecem decisões autônomas das mulheres.
Para fins de análise da compreensão do risco ou possibilidade de afetação das
dimensões da saúde, o Causal Salud considera as dimensões física, mental e social da
saúde e adota a sistematização ilustrada no quadro abaixo:

Quadro 1 – Fatores de risco de acordo com o Causal Salud


Fatores de risco Descrição
São aqueles que predispõem ao surgimento de
Fatores de vulnerabilidade um risco ou de afetação da saúde da mulher.
Podem ser físicos, mentais/emocionais ou
sociais.
São aqueles que podem desencadear a
Fatores de precipitação emergência de um risco ou afetar a saúde da
mulher. Podem ser físicos, mentais/emocionais
ou sociais.
São situações de caráter irreversível, crônico ou
Fatores de consolidação que podem gerar consequências na saúde, de
forma crônica ou em longo prazo. Podem
também ser físicos, mentais/emocionais ou
sociais.

Dimensão física da saúde

Quando se trata de salvar a vida ou preservar a saúde das mulheres, menciona-se


comumente o aborto terapêutico. Em sua acepção mais ampla, o aborto terapêutico pode

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ser realizado para: 1) salvar a vida da mulher, 2) preservar a saúde da mulher em suas
dimensões física, mental e social, 3) interromper uma gestação que pode ser completada
com o nascimento de um feto com malformações incompatíveis com a vida, ou associados a
uma elevada morbidade por malformações genéticas ou congênitas graves, entre outras.
A consideração do risco ou da possibilidade de afetação da saúde é um elemento
central para prevenir a doença e o dano. A habilidade para definir a situação é complexa,
pela natureza subjetiva das decisões associadas à morbidade e mortalidade potencial nas
mulheres grávidas, com exceção de situações agudas e críticas. Uma variedade de
condições médicas tem a potencialidade de afetar a saúde das mulheres grávidas e causar
complicações, capazes de ameaçar sua vida. Portanto, as mulheres que desejam realizar
uma interrupção da gravidez por razões de saúde, podem ser identificadas em qualquer
momento gestacional. Em geral, a gravidez de alto risco é aquela em que a mulher, o feto
ou o recém-nascido têm ou podem chegar a ter um risco de morbidade ou mortalidade maior
que o risco médio da população, seja antes, durante ou depois do parto. Por esta razão, a
decisão sobre a interrupção legal da gravidez deve ser tomada individualmente com cada
paciente. A seguir são apresentados os fatores que devem ser levados em conta para a
determinação do risco ou afetação da saúde, em sua dimensão física, conforme o Causal
Salud:
Fatores de vulnerabilidade: fatores físicos que podem condicionar o surgimento de
algum transtorno da saúde, como: doenças genéticas crônicas; malformações físicas;
doenças da infância ou do período anterior à gravidez; história familiar ou qualquer
característica que predisponha a mulher a sofrer doenças que afetem sua integridade física;
tratamento inadequado de doenças prévias, maus hábitos alimentares ou estilos de vida
não-saudáveis ou arriscados, ente outros.

Fatores de precipitação: mudanças fisiológicas que ocorrem durante a gestação em


seu curso normal que podem agravar um processo patológico na mulher. Além disso, a
própria gravidez pode ser um fator de precipitação de uma doença. São fatores de
precipitação: complicações médicas da gravidez, por provocar efeitos adversos sobre a
saúde da mulher; necessidade de interromper um tratamento médico para uma doença que
estava sob controle ou sendo tratada, pois esta situação condiciona a deterioração da saúde
da mulher; aquisição de certas doenças durante a gravidez que, em outra situação, não
seriam arriscadas; exposição a infecções transmissíveis, a situações de maus-tratos ou
violência sexual ou física. Ocasionalmente, no momento do parto pode surgir o fator que
precipita o risco para a saúde. Diante da iminência de risco de morbidade-mortalidade
médica ou psiquiátrica, em termos gerais, a continuação da gravidez representa maior risco
que sua interrupção.
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Fatores de consolidação: configuram-se quando a manutenção da gestação é
incompatível com o tratamento efetivo, adequado ou razoável de uma doença concomitante
à gravidez, com possibilidade de produzir efeitos crônicos para a saúde das mulheres.
Dentre estes fatores podem ser mencionados o acesso tardio à interrupção da gravidez e a
violência de gênero, que abrange a violência sexual e produz efeitos crônicos na saúde.
A partir da análise dos fatores descritos, apresentam-se as seguintes categorias
operativas para interrupção da gravidez por risco para a saúde física das mulheres:
• Doenças adquiridas ou da infância, antes ou durante a gestação.
• Doenças genéticas e enfermidades crônicas que afetam, de modo geral, a saúde.
• Doenças suscetíveis de agravamento ou que, de fato, se agravam com a gravidez,
em decorrência das mudanças fisiológicas produzidas durante a gestação normal
(aumento do risco de acordo com o maior tempo de gravidez ou aumento da
possibilidade do risco).
• Complicações médicas da gestação, que podem gerar ou agravar uma doença
preexistente ou se constituir como uma ameaça para a saúde e o bem-estar.
• Doenças que não podem receber tratamento adequado com a gravidez e que,
portanto, aumentam o risco de afetar a saúde das mulheres.
• Patologias que poderiam ser desencadeadas com o parto.
• Doenças que implicam em maior vulnerabilidade física, mental e social.
• Situações que afetem a integridade física, por violência.
• Efeitos físicos sobre a saúde da mulher, por malformação fetal.

Dimensão mental da saúde

A saúde mental é uma dimensão da saúde que foi amplamente reconhecida no


cenário internacional dos direitos humanos e na legislação acerca da saúde na maioria dos
países da América-Latina. O dano à saúde mental acontece em diversos graus e não
implica necessariamente existência de incapacidade absoluta ou de “doença mental” severa
ou crônica. O alcance do conceito de “transtorno mental” no Causal Salud foi ampliado para
incluir a dor psicológica ou o sofrimento mental associado à perda da integridade pessoal e
da auto-estima causada, por exemplo, pela gravidez que é fruto de estupro ou de incesto, ou
quando o feto sofre graves malformações. No âmbito da saúde mental temos os seguintes
fatores de risco:
Fatores de vulnerabilidade: para estabelecer o possível dano à saúde mental na
possibilidade de uma interrupção legal da gestação devem ser analisados diversos fatores,
por exemplo, a maior vulnerabilidade à “doença mental”. O impacto combinado entre o

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gênero e as más condições sócio-econômicas pode ser um determinante crítico do
sofrimento psíquico. Há, pelo menos, três causas associadas à alta prevalência deste tipo
de “doença” nas mulheres, que devem ser consideradas como riscos de dano à saúde
mental:
• interação entre fatores biológicos e vulnerabilidade social, como ocorre na
depressão pós-parto;
• os papéis de gênero (perda de autonomia e controle da própria vida; uma situação
financeira precária, associada a eventos incontroláveis, como doença ou morte de
filhos e maridos, trabalho inseguro. Todas estas situações condicionam maior risco
de “doença mental” ou sofrimento emocional intenso);
• a violência apoiada em gênero e sua forte relação com a “doença mental”. Os
problemas mais freqüentes vivenciados pelas mulheres que sofreram abuso sexual
são a depressão, a ansiedade, o estresse pós-traumático, a insônia e o uso abusivo
de álcool. Em comparação com as que não foram vitimizadas, as mulheres vítimas
de violência são mais propensas a necessitar tratamento psiquiátrico e a apresentar
tentativas de suicídio.
• a herança genética, indicada pela história clínica pessoal e familiar da mulher;
• experiências de abuso ou abandono na infância;
• múltiplas mudanças de escola ou de residência;
• relação de “transtorno mental” com doenças genéticas;
• patologias cromossômicas, genéticas e multifatoriais;
• doenças auto-imunes.

Além de tudo isso, o padecimento de uma “doença mental” torna as mulheres mais
vulneráveis a sofrer violência sexual, ao abuso de álcool ou de drogas e, portanto, a
gravidezes não desejadas, com os riscos que isto implica. Isto não significa prejulgar a
capacidade das mulheres com “transtornos mentais” graves para decidir sobre a
manutenção de uma gravidez, mas considera-se que este fato constitui um fator de risco a
ser levado em consideração.

Fatores de precipitação: há uma série de situações pessoais que podem condicionar


o surgimento de um dano à saúde mental, tais como:
• sofrimento pela morte de um ente querido;
• término de uma relação íntima significativa;
• perda do emprego;
• a própria gravidez não desejada e as circunstâncias que a circunscrevem;

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• doenças que, durante a gestação, podem apresentar um agravamento dos
sintomas, produzindo auto e/ou hetero agressividade;
• impossibilidade ou negação da interrupção da gravidez (que pode ser um fator
capaz de precipitar outros “transtornos”);
• “transtorno por estresse pós-traumático”.

Este último é um estado de sofrimento psíquico que pode ser causado, por exemplo,
ao ter recebido a informação de um diagnóstico drámatico (como nos casos de malformação
fetal), ter sido torturada, abusada física, psicológica ou sexualmente, ter vivido em situação
de conflito armado ou ser obrigada a manter uma gravidez não desejada. Em geral,
qualquer situação em que a gestante perceba que sua vida está em risco.

Fatores de consolidação: podem ser os mesmos de vulnerabilidade. Por isso, as


condições relacionadas com a situação social e cultural da mulher são relevantes, para a
consolidação de uma “doença” ou “transtorno mental”. Estes casos se encontram em
situação de vulnerabilidade, passível de propiciar sofrimento emocional intenso:
• pessoas em extrema pobreza;
• mulheres crianças e adolescentes cuja criação foi traumática;
• mulheres adultas, crianças ou adolescentes que tiveram experiências violentas,
foram expulsas, refugiadas ou que vêm de contextos de guerra.

A partir destes dados, o Causal Salud apresenta as seguintes categorias operativas


para interrupção da gravidez por risco à saúde mental da mulher:

• “Doença mental” grave ou crônica;


• Risco ou presença de qualquer “transtorno mental” resultante ou agravado pela
gestação (pela interação entre os processos hormonais, o sistema imunológico e os
neurotransmissores). A interação entre os fatores biológicos e a vulnerabilidade
social;
• Herança genética indicada pela história psiquiátrica pessoal ou familiar;
• Histórico de comprometimento severo da saúde mental da mulher no pós-parto;
• Gravidez não desejada e a consequente angústia sentida pela mulher;
• Risco futuro de resultados adversos para a saúde mental;
• Idéias suicidas;
• Continuação forçada da gravidez ou a angústia, dor ou dano psicológico
concomitante com esta situação;

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• Problemas com o companheiro, apoio social inadequado, situação financeira
precária;
• “Depressão” ou “transtorno de ansiedade” nas mulheres adultas e adolescentes;
• “Estresse pós-traumático”;
• Sofrimento psíquico por diagnóstico de uma doença;
• Sofrimento psíquico por diagnóstico catastrófico de malformação fetal;
• Gestações precoces ou tardias, segundo o projeto de vida individual;
• Dano profundo à percepção de bem-estar;
• Papéis de gênero que afetem a autonomia e gerem subordinação;
• Exposição à violência de gênero, inclusive violência sexual;
Dimensão social da saúde

Em um sentido amplo, os determinantes sociais da saúde são todos os fatores


relacionados com o “estar bem” e com o projeto de vida de uma pessoa: educação,
ocupação, benefícios trabalhistas para facilitar o exercício da maternidade e da paternidade,
condições para que o casal seja co-responsável, número de filhos desejados, etc. A
interrupção ou a manutenção de uma gravidez que represente risco para a saúde de uma
mulher tem profundo impacto na definição de seu projeto de vida e seu bem-estar. São
fatores de risco na dimensão social da saúde:

Fatores de vulnerabilidade: o contexto social no qual as mulheres vivem determina


seu bem-estar e sua saúde. Além disso, este contexto pode ser um fator passível de agravar
patologias físicas ou mentais. Em um país com altas taxas de desemprego e situações de
discriminação da mulher no âmbito trabalhista (por exemplo, salários inferiores ou acesso
difícil a certos postos de trabalho, impossibilidade de recorrer a mecanismos para exigir que
o homem assuma sua responsabilidade alimentícia, carência de creches ou de licença em
período de lactação, desamparo às mães solteiras), o prosseguimento de uma gravidez
pode reduzir ou comprometer o bem-estar das mulheres ou, ainda, agravar diversas
condições de saúde física e mental. Por exemplo, no caso de mulheres rurais, indígenas,
afro-descendentes, que vivem com HIV-Aids, migrantes, em situação de deficiência,
privadas de liberdade, a discriminação é ainda mais intensa, quando maiores riscos à
saúde. Um aspecto importante da dimensão social da saúde consiste nos determinantes
estruturais referentes a todos os componentes da posição socioeconômica, que afetam as
conseqüências para a saúde. As pessoas alcançam uma posição de acordo com sua classe
social, status ocupacional, nível educacional e de salários.

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Os fatores de vulnerabilidade podem estar associados aos determinantes sociais
estruturais da saúde, tais como: salário nulo, baixo ou insuficiente; baixos níveis de
educação ou educação em processo (por exemplo, a vulnerabilidade de uma adolescente
que fica grávida sem ter concluído o ensino médio é maior, pois é provável que interrompa o
processo educacional e, em longo prazo, a desigualdade se aprofunde); nível sócio-
econômico baixo; número alto de filhos; ausência de cônjuge.
Os danos à saúde relacionados com a educação e com a manutenção de uma
gravidez ocorrem, pelo menos, a partir de dois pressupostos: (a) quando a continuidade da
gestação em mulheres com baixos níveis educacionais se constitui em risco para seu bem-
estar, pois é provável que suas oportunidades para ter acesso a trabalhos bem
remunerados se reduzam, mantendo níveis de pobreza ao longo de sua vida; (b) quando a
continuação da gravidez implica no abandono do sistema educacional pelas mulheres ou
reduz suas expectativas em relação à educação (não receber educação superior por ter que
começar a trabalhar, por exemplo). Ao avaliar esses pressupostos como condicionantes de
risco é imprescindível examinar o projeto de vida almejado por cada mulher, já que o bem-
estar pode ser afetado em decorrência da escolha entre a manutenção da gravidez e a
suspensão ou postergação da educação.

Fatores de precipitação: As circunstâncias materiais, os fatores biológicos ou


comportamentais, as condições psicossociais e a falta de acesso a um sistema de saúde
são fatores que podem se configurar como risco para a saúde (fatores intermediários).
As circunstâncias materiais definem o ambiente físico e, dependendo de sua
qualidade, implicam bem-estar ou geram riscos: a moradia; consumo potencial (por
exemplo, comida saudável e roupa adequada para o inverno); os ambientes físicos do
trabalho e da vizinhança.
Essas circunstâncias, quando negativas, representam um fator de risco para a
manutenção da gravidez. Por exemplo, em más condições da moradia as pessoas vivem em
aglomeração e carecem de serviços públicos ou água potável. O ambiente social ou as
circunstâncias psicossociais abrangem os fatores geradores de estresse no âmbito
psicossocial (como eventos negativos na vida ou trabalho estressante); as circunstâncias
angustiantes de vida (dívidas); e a ausência de suporte social. Entre os fatores biológicos e
comportamentais, encontramos o tabagismo, a dieta deficiente, o consumo de álcool e a
falta de exercício físico.
Por fim, não estar filiada ou ter um acesso limitado a um sistema de saúde gera
riscos associados à continuação da gravidez. Nos casos, por exemplo, em que as mulheres
não têm acesso ao pré-natal ou carecem de recursos para acessar serviços seguros, tanto

67
no caso de complicações da gravidez e/ou do parto, como no caso de uma interrupção legal
da gravidez.

Fatores de consolidação: A manutenção da gravidez pode perpetuar ou agravar as


condições que afetam o bem-estar das mulheres. Entre os fatores sociais passíveis de
agravar o dano à saúde constam: a desigualdade de gênero como determinante do estado
de saúde; a pobreza crônica; o aumento do número de filhos; ser responsável pelo cuidado
de filhos com malformações ou com incapacidades, ou de pessoas doentes no lar; as
sequelas decorrentes da continuação forçada de uma gravidez que impedem a mulher de
conseguir um trabalho digno ou de prosseguir com o processo educacional; a falta de co-
responsabilidade do cônjuge, no caso de sua existência, ou sua ausência.
A partir destas considerações, as seguintes categorias operativas para interrupção
da gravidez por risco à saúde, sob sua dimensão social, são enumeradas pelo Causal
Salud:
• a exclusão social ou marginalidade por expulsão, conflito armado, migração,
condição rural, racial/étnica (indígenas, afro-descendentes) ou de saúde;
• a discriminação de gênero no acesso ao poder e aos recursos para tomar decisões;
• a violência com base no gênero;
• a vulnerabilidade por aspectos sociais (condições crônicas de pobreza), com dano
às dimensões física e mental da saúde; ou estresse por condições sociais ou
materiais precárias ou de marginalidade;
• a baixa escolaridade ou necessidade de interromper os estudos, por gravidez não
prevista;
• a impossibilidade de tomar conta dos filhos, por atividade de trabalho, inclusive
trabalho não remunerado e o cuidado no lar;
• a ausência de políticas integrais de atenção à mulher na gestação e após o parto;
• a impossibilidade de manter o vínculo trabalhista, o desemprego, o emprego
informal ou de risco para a saúde;
• a maternidade satisfeita (alcançou o número desejado de filhos);
• gestações durante a adolescência;
• o dano ao bem-estar das mulheres, a partir do que cada uma considere como “estar
bem”, inclusive a afetação do projeto de vida, por gravidez não prevista ou desejada;
• o dano à saúde dos filhos já nascidos;
• os hábitos que podem constituir-se em fatores de risco;
• a precariedade socioeconômica;
• a ausência de redes sociais de apoio;

68
• a falta de co-responsabilidade ou ausência do cônjuge;
• as mães solteiras sem apoio social.

Capítulo 4

Considerações metodológicas: os passos da pesquisa

Neste capítulo apresentaremos os procedimentos metodológicos utilizados para ter


acesso às informações necessárias à análise empírica proposta nesta pesquisa. Iniciamos
expondo a abordagem teórica-metodológica adotada a respeito da concepção de pesquisa
de campo na perspectiva das práticas discursivas e em seguida discorremos sobre o
processo de seleção e realização das entrevistas com os/as profissionais médicos. Ao final
do capítulo é apresentada a abordagem analítica escolhida para a interpretação das
entrevistas realizadas.

4.1. Para entender campo-tema

Para pensar a noção de campo na pesquisa em Psicologia Social nos vinculamos ao


trabalho de Peter Spink (2003), segundo o qual o campo não é um lugar específico,
delineado, separado e distante, uma vez que estamos sempre potencialmente em múltiplos
campos. O autor considera que podemos variar em relação à nossa centralidade no campo,
mas as matrizes do campo estão sempre presentes; sempre temos acesso – pelo menos de
maneira subordinada e tática – a uma parte das conversas e ações que o produzem e
reproduzem. Nas suas palavras:

É esta potencialidade de movimento do pesquisador ou pesquisadora, ou de


qualquer pessoa como parte do campo, que mostra não somente as
possibilidades, mas também as restrições de acesso aos espaços chaves
de argumentação e debate. Campo, entendido como campo-tema, não é um

69
universo “distante”, “separado”, “não relacionado”, “um universo empírico”
ou um “lugar para fazer observações”. Todas estas expressões não
somente naturalizam, mas também escondem o campo; distanciando os
pesquisadores das questões do dia a dia. Podemos, sim, negociar acesso
às partes mais densas do campo e em consequência ter um senso de estar
mais presente na sua processualidade. Mas isso não quer dizer que não
estamos no campo em outros momentos; uma posição periférica pode ser
periférica, mas continua sendo uma posição (p. 28).

O campo-tema, entendido como complexo de redes de sentidos que se


interconectam, é um espaço criado, herdado ou incorporado pelo pesquisador/a e negociado
na medida em que este/a busca se inserir nas suas teias de ação. Contudo, isso não
significa que é um espaço criado voluntariamente; ele é debatido e negociado. Dito de outra
forma, ele é arguido dentro de um processo que também tem lugar e tempo. Ainda que
herdemos um campo-tema ou se usarmos termos que presumimos como legítimos,
continuamos a negociá-lo por meio dos argumentos sobre a sua importância como tópico.
Desse modo, campo é o argumento no qual estamos inseridos; argumento este que
têm múltiplas faces e materialidades, que acontecem em lugares diversos. Segundo P.
Spink (2003), entramos nesses lugares quando passamos a fazer parte do conflito de
saberes e sobre opções de desenvolvimento e não quando entramos, por exemplo, na
comunidade ou na instituição; a comunidade é somente uma parte da territorialidade do
campo-tema.
O campo é concebido como o método e não como um lugar; o foco está na
compreensão da construção de sentidos no espaço de vida do indivíduo, grupo, instituição
ou comunidade. Campo é o campo do tema, o campo-tema; não é o lugar onde o tema pode
ser visto, mas são as redes de causalidade intersubjetiva que se interconectam em vozes,
lugares e momentos diferentes que não são necessariamente conhecidos uns dos outros.
Não se trata, portanto, de um palco harmonioso onde cada um se expressa
organizadamente; ao contrário, é um tumulto conflituoso de argumentos parciais, de
artefatos e materialidades (P. SPINK, 2003).
Nesta perspectiva, consideramos que quando fazemos o que nós chamamos de
pesquisa de campo, nós não estamos “indo” ao campo. Nós já estamos no campo, porque já
estamos no tema. O que procuramos fazer é nos localizar psicossocialmente e
territorialmente mais próximo dos artefatos e lugares mais densos das múltiplas interseções
e interfaces críticas do campo-tema onde as práticas discursivas se confrontam e, ao se
confrontarem, se tornam mais reconhecíveis (LONG, 2001). Para tal tarefa, não há métodos
bons ou ruins; há simplesmente modos de estar no campo-tema, de tal forma que método
nada mais é do que a descrição do “como”, “onde” e “o que” (P. SPINK, 2003).

70
Confluente com os argumentos de P. Spink (2003), afirmamos que não há dados nas
nossas investigações porque não há fatos empíricos esperando passiva e
independentemente para serem interpretados. Converter o agir do outro em “dados” é
desqualificar sua presença, por isso não consideramos que haja dados, mas que há,
todavia, pedaços ou fragmentos de conversas: conversas no presente, conversas no
passado; conversas presentes nas materialidades; conversas que já se tornaram eventos,
artefatos e instituições; conversas ainda em formação; e, o mais importante, conversas
sobre conversas. “Não há múltiplas formas de coleta de dados e, sim, múltiplas maneiras de
conversar com socialidades e materialidades em que buscamos entrecruzá-las, juntando os
fragmentos para ampliar as vozes, argumentos e possibilidades presentes” (P. SPINK, 2003,
p. 37).

4.2. Procedimentos para inserção no território do campo-tema: preparação e


realização das entrevistas

A inserção territorial no campo

Inicialmente o projeto de pesquisa desta tese foi apresentado ao Comitê de Ética em


Pesquisa (CEP) da PUCSP, seguindo as exigências da Resolução Conselho Nacional de
Saúde no 196/96, para apreciação e avaliação do cumprimento dos requisitos éticos da
pesquisa com seres humanos. O projeto foi aprovado, em novembro de 2009, sob o número
de protocolo 327/200918.
Para a consecução do objetivo desta pesquisa, - identificar as noções de risco
presentificadas nos argumentos médicos sobre gestação de risco para referendar o aborto
em gestações de risco -, o principal instrumento de aproximação às práticas discursivas foi a
entrevista na perspectiva das conversas no cotidiano (M. J. SPINK, 2000b). Conforme a
linha de pesquisa na qual este projeto se insere, do Núcleo de Práticas Discursivas e
Produção de Sentidos (NPDPS), que se enquadra na perspectiva da pesquisa qualitativa, a
entrevista é entendida como um espaço de conversação dialógico.
As entrevistas foram usadas para mapear e compreender o modo como os/as
informantes apreendem e usam a noção de risco. Constituiu-se como o ponto de entrada
para introduzirmos esquemas interpretativos na compreensão dos argumentos dos/as
médicos/as em termos mais conceituais e abstratos. Desse modo, a entrevista foi usada
com o objetivo de fornecer as informações básicas para o desenvolvimento e a
compreensão das relações entre as informações dos entrevistados e o tema estudado.
Pretendeu-se com a escolha pelo método de entrevista uma compreensão detalhada das
18
O parecer do CEP encontra-se no Anexo A.
71
argumentações presentificados nos discursos dos/as médicos/as no contexto social
específico da assistência médica a gestante de risco.
O território dos serviços de assistência ao aborto legal era, para mim, desconhecido.
Fazia-se necessária uma familiarização com o sistema de atendimento e com os discursos
médicos sobre o tema. Além da consulta a literatura, estabeleci uma estratégia de imersão
que visou um primeiro contato com os artefatos sociais – conceitos, temas, histórias etc. -,
visando um caminho mais acessível a esse território. Assim, visitei o Hospital Universitário
Alberto Antunes, vinculado a Universidade Federal de Alagoas (HUPAA-UFAL), por ser uma
instituição que já conhecia e tinha acesso facilitado.
No dia 04 de fevereiro de 2009 realizei uma vista ao HUPAA-UFAL, que foi
previamente agendada por uma amiga que trabalha na Instituição como psicóloga, Nidyanne
Porfírio, colega que atua no setor de Recursos Humanos do referido hospital. Durante a
visita conversei com duas médicas obstetras que trabalhavam na maternidade do HUPAA-
UFAL, sendo uma delas responsável pelo setor da maternidade e a outra, chefe do serviço.
Nesse encontro, entreguei a Carta de Apresentação à chefe do serviço, que já se
encontrava na sala de atendimento, onde me recebeu, e expliquei-lhe os objetivos da
pesquisa e a razão da visita. Em seguida, a médica responsável pelo setor de maternidade
chegou e eu repeti as explicações. A partir de então, elas relataram alguns casos de
gestação de risco, tanto para a gestante como para o feto, mas enfatizaram que tais casos
eram raros e de baixa ocorrência. Entretanto, elas descreveram um caso de gestante de feto
com acrania que tinha acabado de receber alta do hospital e que estava sendo atendida
pelo setor ambulatorial. Nesse caso, a gestante optou por levar a termo a gestação, pois, de
acordo com os relatos das médicas: ela é muito religiosa, é evangélica, e acha que o crânio
ainda vai se desenvolver, que Deus vai colocar o cérebro até o neném nascer. No começo
ela achava que o feto não tinha cabeça, que não ia formar a cabeça, mas aí depois que ela
viu a ultra-som, que a gente explicou pra ela e ela viu que tinha o rostinho, ela acha que o
crânio vai se desenvolver também, ela tem fé que o feto forme o crânio e por mais que a
gente explique não tem quem tire da cabeça dela.
As médicas também fizeram referência a um caso de gestante de anencéfalo que
conseguiu, com impressionante rapidez, a autorização para a realização do aborto e a
equipe do HUPAA-UFAL realizou o procedimento. Relataram também alguns casos de
gestantes com cardiopatias graves, que corriam risco de vida, e que nesses casos a equipe
realiza a interrupção sem precisar de autorização da justiça. Explicaram que, nos casos de
malformação, o diagnóstico não é de risco de vida da gestante, mas do feto, e que nesses
casos elas ajudam a gestante a conseguir a autorização explicitando no laudo sintomas
como pressão alta e etc., associados à malformação, e dão ênfase aos traumas psicológicos

72
que a gestação pode acarretar esse aspecto é que vem primeiro, é o principal, depois a
gente bota os outros (sic).
Relataram, também, que não há registros dessas gestantes no serviço de
maternidade do hospital, mas que poderíamos procurar os casos nos livros de prontuários.
As médicas me orientaram a solicitar ao Comitê de Ética do hospital permissão para realizar
a pesquisa e também me orientaram a procurar a Maternidade Escola Santa Mônica, que é
estadual. Uma das médicas mencionou que procurou saber se havia sido realizado algum
aborto por estupro, tanto no HUPAA-UFAL como na Maternidade Santa Mônica, e que as
pessoas lhe disseram que nunca havia sido realizado ao menos um.
O estado de Alagoas não tem uma tradição de atendimento às gestantes de risco.
Como vimos nos relatos das médicas do HUPAA-UFAL, às gestantes que desejam ou
precisam fazer o aborto nos casos de estupro ainda não têm a assistência que lhes é
garantida legalmente e nos casos de aborto por risco de vida da gestante o serviço ainda é
pouco sistematizado. Optamos, então, por realizar a pesquisa na cidade de São Paulo-SP,
onde há serviços de aborto legal considerados de referência e por ser a cidade onde residia
à época da realização do estudo.
Para a aproximação ao território dos serviços de aborto legal em São Paulo adotei
algumas estratégias que dessem conta de me inserir nos espaços de discussão sobre as
questões relacionadas à descriminalização do aborto, uma vez que o aborto por risco de
vida da gestante constitui um dos permissivos legais, foco deste estudo. Desse modo, a
partir de um contato por e-mail com o Dr. Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos
sobre o Aborto (GEA), em São Paulo-SP, comecei a participar das reuniões e debates sobre
o tema.
O GEA é uma entidade multidisciplinar, criada em Junho de 2007, que reúne
médicos, juristas, antropólogos, movimentos de mulheres, psicólogas, biólogos e outros
profissionais. Não é uma Organização Não Governamental (ONG) e não tem verbas
próprias. Seu foco é capilarizar a discussão do tema aborto sob o prisma da Saúde Pública
e retirá-lo da esfera do crime.19
A partir da inserção nesse grupo, pude fazer contato com médicos/as membros desta
organização ou indicados/as por eles/as. O primeiro médico que conversei sobre a pesquisa
foi o próprio Dr. Thomaz Gollop, com o objetivo de conseguir o consentimento para
participar das reuniões do GEA. Para fins de participação como entrevistado/a, conversei
inicialmente, logo ao final da primeira reunião, com o Dr. Cristião Rosas, que solicitamente
aceitou conceder uma entrevista e indicou o Dr. Osmar Colás como um possível
colaborador, que posteriormente também consentiu participar da pesquisa. Em outras

19
Informação retirada do website do grupo http://www.ipas.org.br/gea/. Acesso em 05/2010.
73
reuniões, expliquei a pesquisa ao Dr. Jefferson Drezett e voltei a conversar com o Dr.
Thomas Gollop, desta vez com o intuito de tê-lo como informante do estudo, ambos
aceitaram o convite.
Encontrei algumas dificuldades em contatar mulheres médicas. Entre os membros do
GEA não havia nenhuma que trabalhasse em serviços de aborto legal. Conversei,
informalmente, com alguns dos médicos entrevistados sobre a presença de mulheres
médicas nos serviços de aborto e eles afirmaram serem os homens maioria. Então, solicitei
que me indicasse o contato de médicas que eles sabiam trabalharem em tais serviços. O Dr.
Jefferson Drezett intermediou o contato com duas médicas do serviço de aborto legal do
Hospital Pérola Byington e apenas uma delas, Drª Joselene Breda, aceitou conceder a
entrevista. As outras médicas indicadas pelos demais entrevistados não tinham
disponibilidade de horário ou não foi possível realizar o contato. Obtive, assim, cinco
entrevistas, sendo quatro com médicos e apenas uma com médica.
Todas as entrevistas com os/as médicos/as foram guiadas por um roteiro que
procurou estimulá-los/as a falar sobre concepções, experiências e reflexões sobre risco na
gestação e seus efeitos na indicação do aborto por risco de vida da gestante. Consideramos
que com a quantidade de entrevistas realizadas dispúnhamos de material suficientemente
rico para consecução de uma análise discursiva para os propósitos que traçamos, mas sem,
obviamente, pretender esgotar as interpretações possíveis do tema.

Contexto de produção das entrevistas

Antes de iniciar as entrevistas, solicitamos que cada o/a entrevistado/a lesse a Carta
de Apresentação da Pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido20, e em
seguida o assinasse, caso houvesse acordo com os termos do estudo. Evidentemente, o
anonimato é garantido por tal termo, por isso perguntamos verbalmente sobre esse item,
questionando os/as informantes sobre como gostariam de serem tratados quando
mencionados na tese, se por iniciais ou por nomes fictícios. Entretanto, todos os/as
entrevistados/as manifestaram o desejo de terem seus nomes publicados na tese da forma
como o assinam, seja por considerarem que seus discursos já são públicos, ou por
desejarem que seus argumentos se tornem visíveis, o que foi respeitado, conforme postura
ética assumida nesta pesquisa.
Nos momentos anteriores ao início das entrevistas aproveitávamos para explicar
mais detalhadamente os objetivos da pesquisa e relatar que ela derivou do interesse

20
A Carta de Apresentação da Pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido encontram-se nos
Apêndices A e B, respectivamente.
74
decorrente da pesquisa de Mestrado21, sobre aborto de fetos anencefálicos. Essa conversa
inicial, sobre gestação de anencéfalos, direcionou, não propositalmente, o enfoque que dois
dos médicos entrevistados deram ao seu discurso. Tanto o Dr. Cristião como o Dr. Thomaz,
incorporaram em suas narrativas a discussão sobre o caso específico da anencefalia fetal.
Outro fato que reverberou nas falas de alguns dos informantes foi um episódio de
gestação de risco, decorrente de violência sexual, que repercutiu na mídia nacional durante
o primeiro trimestre de 2009. Tratava-se do caso de uma criança de nove anos de idade, do
interior de Pernambuco, violentada sexualmente pelo padrasto, e que ficou grávida de
gêmeos. Ao realizar o aborto legal -, pois o caso se enquadrava nos dois permissivos do
Código Penal, estupro e risco para a gestante -, os médicos responsáveis pelo
procedimento foram publicamente excomungados pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom
José Cardoso Sobrinho, que se posicionou contra a realização do aborto por considerá-lo
homicídio, atitude que gerou uma forte comoção pública. Na ocasião da realização das
entrevistas o episódio era atual e pauta de muitas das discussões que envolviam a
descriminalização do aborto. Os médicos Dr. Cristião e Dr. Thomaz abordaram “o aborto da
menina de Alagoinhas22”, como era referido na mídia, em seus relatos.

Conhecendo os participantes da pesquisa

Cristião Fernando Rosas

Dr. Cristião Rosas foi o primeiro dos quatro homens médicos entrevistados. É
ginecologista e obstetra, membro do GEA, médico do serviço de aborto legal da
Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, e também atua em
consultório particular. Trabalhou no Hospital Artur Ribeiro De Saboya (Jabaquara), pioneiro
na implantação do serviço de aborto legal, episódio da sua biografia que influenciou a sua
atuação no campo profissional. Este informante me recebeu no seu consultório particular,
por volta das 18h30min do dia 19 de março de 2009. A entrevista durou 48min 36s.
Simpático e solicito, a forma acolhedora com que me recebeu deixou-me à vontade para
iniciar a conversa pois eu estava um tanto apreensiva com a idéia de entrevistar alguém,
tanto pela minha pouca experiência com o método, como pelas minhas características

21
RIBEIRO, F.R.G. Os sentidos da vida na controvérsia moral sobre abortamento induzido: o caso da
anencefalia. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). PUC-SP: São Paulo, 2008.
22
Algumas matérias sobre o tema podem ser encontradas em:
Folha de S. Paulo - Excomunhão: Arcebispo de PE é homenageado por "defesa da vida" - 16/04/2009.
Disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1604200922.htm. Acesso em maio de 2009.
Folha de S. Paulo - Mãe de menina que abortou é indiciada - 28/03/2009. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2803200927.htm. Acesso em maio de 2009.

75
pessoais que denunciavam timidez e embaraço. Iniciei a entrevista falando sobre o meu
interesse pelo tema e relatando a minha pesquisa de Mestrado, cujo tema foi aborto por
anencefalia fetal, o que ocasionalmente fez com que o entrevistado mencionasse casos que
envolvesse a gestação de anencéfalos durante a entrevista.
Senti o ambiente onde a entrevista foi realizada como calmo e reservado. Tivemos
algumas interferências quando o telefone fixo do consultório tocou, fato que não chegou a
interferir no fluxo da entrevista, pois o Dr. Cristião não atendeu a nenhuma das chamadas. O
diálogo foi dinâmico e interativo, eu fiquei bastante satisfeita quando anunciei o final da
entrevista ao meu interlocutor e ele referiu: As perguntas eram essas? Mas você me
perguntou uma coisa só. Interpretei essa manifestação como um sinal de que a entrevista foi
conduzida de modo espontâneo, e que o fluxo da fala não tinha sido interrompido à medida
que eu apresentava novos tópicos.

Thomaz Rafael Gollop

Dr. Thomaz foi o segundo entrevistado. Médico ginecologista e obstetra,


coordenador do GEA, atua com ênfase em medicina fetal e genética médica. Este
informante possui uma clínica particular, atua em hospitais particulares e é professor
associado da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Apesar de não trabalhar em serviços de
aborto legal de referencia, o consideramos um informante importante, pois se apresenta
politicamente como um dos porta-vozes da posição médica favorável à legalização do
aborto, com atividades políticas relevantes para a inserção do tema em foros de discussão
no âmbito civil e jurídico.
O entrevistado me recebeu solicitamente em sua clínica particular no final da tarde
do dia 31 de março de 2009. A entrevista teve uma duração média de 44min 50s. Essa
entrevista teve duas peculiaridades, a primeira delas é que o Dr. Thomaz foi o representante
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na audiência pública do
Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a autorização da antecipação terapêutica do parto
em casos de anencefalia fetal, em agosto de 2008, fato que associado à minha fala sobre a
pesquisa de Mestrado, suscitou o direcionamento da entrevista para o tema específico do
aborto por anomalia fetal. A outra particularidade é que a entrevista foi interrompida três
vezes para que o Dr. Thomaz atendesse telefonemas, o que pode ter prejudicado o fluxo
narrativo durante o diálogo. Entretanto, o material discursivo assim produzido foi útil para os
fins de análise aqui propostos, uma vez que apresenta conteúdos sobre a constituição
cotidiana da noção de risco na gestação, como veremos adiante.

76
Outro detalhe peculiar nessa entrevista com o Dr. Thomaz foi o fato de eu lhe
parecer jovem ter sido incluído na conversa. Por algumas vezes, durante os seus relatos,
ele questionava sobre a minha idade ou ano em que nasci para situar historicamente os
fatos narrados: (...) e eu na década de 1970, você nasceu em que ano?.

Jefferson Drezett

O terceiro entrevistado foi o Dr. Jefferson Drezett, ginecologista e obstetra, membro


do GEA, que atua no serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington. No relato
autobiográfico sobre a trajetória profissional que o levou a trabalhar com o tema da
descriminalização do aborto ele enfocou a importância de seus professores e mestres
O Dr. Jefferson me recebeu solicita e atenciosamente em uma sala do Hospital
Pérola Byington no final da manhã do dia 1º de abril de 2009. A entrevista durou 37min 27s,
teve a implicação de ter sido realizada no local de trabalho do entrevistado, pois,
inicialmente, este me pareceu com um pouco de pressa, e tinha me alertado que precisaria
dar alta a algumas pacientes, mas à medida que a conversa fluía senti o informante mais à
vontade e a entrevista fluiu com ricos relatos autobiográficos e de casos gestação de risco

Osmar Ribeiro Colás

Colega de trabalho do Dr. Cristião Rosas na Maternidade Escola de Vila Nova


Cachoeirinha, o Dr. Osmar foi o quarto entrevistado. Tem uma longa carreira profissional na
área de ginecologista e obstetrícia e assim como os entrevistados anteriores se posiciona
politicamente a favor do livre direito de escolha da mulher pelo aborto. Seu relato foi focado
nas experiências de atendimento às mulheres com gestação de risco e, diferente
entrevistados anteriores, não se deteve em aspectos autobiográficos para justificar a sua
atuação no campo da assistência ao aborto legal.
O Dr. Osmar me recebeu no final da manhã do dia 12 de maio de 2009, em sua sala
na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), na Escola Paulista de Medicina. A
entrevista durou 40min 46s, sem interferências e em ambiente tranqüilo. O entrevistado foi
bastante solicito e parecia satisfeito em poder contribuir com a pesquisa. Sua explanação
sobre o tema teve um caráter didático, com muitas analogias e metáforas.

Joselene Breda

77
A única mulher médica entrevistada foi a Drª Joselene Breda, colega de trabalho do
Dr. Jefferson no serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington é especialista em
ginecologia e obstetrícia.
A Drª Joselene me recebeu gentilmente no seu consultório particular no final da tarde
do dia 17 de junho de 2009. A entrevista durou 43min 45s, fomos interrompidas apenas por
sua atendente que nos trouxe café e água, episódio que não interferiu na dinâmica da
entrevista, pois esta se manteve focada no que estava sendo relatado.
Durante esta entrevista eu aproveite para questionar a informante sobre como ela
sentia as diferenças de gênero no serviço da assistência ao aborto legal; como era para ela,
sendo mulher, realizar abortos. A médica me respondeu fazendo uma reflexão sobre a sua
vivência e a experiência de suas colegas nesse serviço, como veremos mais adiante.

4.3. Procedimentos para elaboração dos tópicos das entrevistas

As características apresentadas a seguir, para investigação da construção


argumentativa, forneceram os princípios metodológicos orientadores desta tese e nortearam
a elaboração dos tópicos para as entrevistas. Utilizamos um roteiro pré-definido para nos
auxiliar na exploração dos argumentos sobre risco na gestação e o utilizamos de maneira
dialógica, à medida que a entrevista fluía espontaneamente.

1º Tópico: Narrativas do cotidiano e experiência vivida

Tendo em vista a dificuldade em avaliar a gestação de risco, principalmente nos


casos em que poderia ser justificada a interrupção da gravidez, você pode me contar como
lida com essa dificuldade na sua prática profissional? Como você usa a noção de risco no
seu cotidiano?
Focalizar as experiências de uso da noção de risco na prática profissional nos
serviços de aborto legal foi uma maneira de introduzirmos a preocupação com as dinâmicas
biográficas e temporais. Pois, as narrativas de experiência (SQUIRE, 2008a, 2008b) estão
embutidas nas histórias de vida das pessoas ou biografias pessoais, que são
sequencialmente ordenadas no espaço e no tempo. Estas características dos discursos
podem ser geradas em entrevistas orientadas, semi-estruturadas e temáticas, mas
consideramos, em confluência com os argumentos de Henwood et al (2010), que as
entrevistas de estilo narrativo são particularmente eficazes para levar as pessoas a falar de

78
modo que envolvam extensões biográficas e temporais, de forma a olhar para trás, para o
passado, ligando o presente ao passado, e imaginando o que poderia acontecer no futuro,
por exemplo. Os tópicos das nossas entrevistas também foram formulados especificamente
para reforçar essa idéia de incorporação da fala sobre a gestação de risco e aborto legal nas
histórias de vida profissional dos/as informantes, incluindo suas experiências nos lugares
onde trabalham.

2º Tópico: Reflexividade gerada por meio de múltiplas perspectivas

Que tipo de literatura ou instrumento fundamenta a noção de risco usada por você
nos seus atendimentos às gestantes?
Ao optar por um método de entrevista qualitativa, entendida como conversas no
cotidiano, estávamos procurando um modo de evocar dos/as entrevistados/as suas
maneiras de contar as experiências sobre risco na gestação e seus encontros com o objeto
de risco estudado - o atendimento às gestantes de risco com conseqüente indicação de
interrupção de gestação - de maneira reflexiva. Utilizamos esta estratégia para incentivar a
reflexividade dos/as entrevistados/as sobre o efeito que a noção de risco apresenta na
prática cotidiana do exercício profissional e como são sustentados os argumentos que
justificam o uso desta noção para indicar o aborto por risco de vida da gestante.
Acreditamos que esta estratégia permitiu que nós, como analistas, pudéssemos explorar os
diversos tipos de narrativas, significados e enquadramentos, incluindo os biográficos e
locais, institucionais ou territoriais, onde os/as participantes evocam suas experiências e
encontros com o risco inteligível.

3º Tópico: Relevância da experiência e narrativas episódicas

Conte-me caso(s) onde a gestante obteve o diagnóstico de gravidez de risco e seu


desfecho.
Nossa estratégia envolveu encorajar os/as participantes a colocar as suas
percepções de gravidez de risco ou risco na gestação nos contextos dinâmicos de suas
vidas profissionais, como por exemplo, interrogando sobre questões biográficas
relacionadas à prática profissional: “há algum caso de gestação de risco que lhe foi mais
prototípico, que lhe marcou mais?”.
Ao mesmo tempo, estávamos conscientes de que podíamos incorrer em limitações
se considerássemos apenas biograficamente as narrativas apresentadas, pois não havia
como garantir que os/as informantes aprofundassem ou desenvolvessem seus relatos

79
apenas a partir de uma única questão disparadora. Por esta razão, nos esforçamos para
manter o diálogo fluído e interativo, sempre formulando questões baseadas no próprio relato
dos/as entrevistados/as.

Tópicos inseridos conforme a dinâmica da entrevista: Práticas discursivas e afeto

Como se dá a comunicação do diagnostico de gestação de risco ou de alto-risco?


Como se dá o acompanhamento da gestante? Como e em que momento é colocado a
opção pelo aborto? Você poderia me contar sua trajetória profissional?
Segundo Henwood et al (2010), dados narrativos são geralmente (embora não
exclusivamente) produzidos por meio da escrita e da fala, e assim podem ser estudadas por
suas características discursivas ou textuais e sua organização. Há poucas pesquisas sobre
sentimento ou afeto relacionados a questões como a preocupação e ansiedade relacionada
ao risco, não é uma área bem desenvolvida (HENWOOD et al 2010). Em nosso estudo,
buscamos seguir, em certa medida, a prática recomendada pela pesquisadora de risco Sally
MacGill (1987), prestando atenção à forma como os participantes falam sobre seus
sentimentos e preocupações diárias (experiências rotuladas ultimamente no campo do risco
psicométrico como afeto) bem como a identificação de certas narrativas por meio das suas
características estruturais gerais (em termos de desenvolvimento da trama, do enredo, da
caracterização dos episódios, etc.). Procuramos identificar os afetos presentificados na
prática cotidiana da assistência ao aborto por risco de vida da gestante, seja por meio do
uso explícito de adjetivos ou por meio de nossas próprias interpretações das suas
descrições implícitas. Outras características linguísticas, discursivas ou textuais específicas,
consideradas de interesse para nosso estudo, incluíram figuras de linguagem (tropos),
imagens e metáforas, comentários bem-humorados e as posições que os/as informantes
ocupam no discurso sobre suas práticas profissionais, a gestação de risco, e a prática do
aborto por risco de vida da gestante.

4.4. A definição do método de análise: estudo da argumentação

Para entender as formas argumentativas de construção da noção de risco mediada


por estratégias biopolíticas se faz necessário um enfoque discursivo, uma vez que estava
interessada na construção dos argumentos que referendam a realização do aborto legal.
Optei, então, por focalizar no discurso argumentativo tentando entender os efeitos das
narrativas, - relatos de casos clínicos e histórias sobre gestação de risco -, na formalização
discursiva sobre risco na gestação e sobre aborto por risco de vida da gestante.

80
Parti do pressuposto de que toda fala que inclui debate se desenrola ao redor de um
bloco básico: o argumento. O argumento forma a espinha dorsal da fala. Ele representa a
idéia central ou princípio no qual a fala está baseada. Além disso, é uma ferramenta de
mudança social, na medida em que pretende persuadir uma audiência (LIAKOPOULOS,
2002). A discussão sobre análise argumentativa tem como objetivo oferecer uma visão
metodológica compreensiva da análise das estruturas da argumentação, com propósito de
compreender os parâmetros que influenciam o debate sobre risco na gestação e aborto por
risco de vida da gestante.
O termo argumentação se refere a uma atividade verbal ou escrita que consiste em
uma série de afirmações com o objetivo de justificar, ou refutar, determinada opinião, e
persuadir uma audiência (VAN EEMEEN ET AL, 1997). O objetivo da análise da
argumentação é documentar a maneira como afirmações são estruturadas dentro de um
texto discursivo. A análise normalmente se centra na interação entre duas ou mais pessoas
que apresentam argumentos como parte de uma discussão ou debate, ou sobre um texto
dentro do qual a pessoa constrói um argumento.
O enfoque tradicional vê os argumentos como processo e como produto. O processo
se refere à estrutura inferencial do argumento: a série de afirmações usadas como
proposições, junto com outra série de afirmações usadas como justificativas das afirmações
anteriores. O argumento como produto se refere à maneira como esses se tornam parte de
uma atividade dentro do contexto geral do discurso. De acordo com Burleson (1992), as
características básicas de uma argumentação são:
a) A existência de uma asserção construída como proposição.
b) Uma estrutura argumentativa ao redor da defesa da proposição.
c) Um salto inferencial no movimento que vai da justificativa para a asserção.

Toulmin (1958) propõe uma analogia entre um argumento e um organismo, e caracteriza


a ambos como tendo uma estrutura anatômica fisiológica. A estrutura anatômica de um
argumento, do mesmo modo que um organismo, pode ser representada de uma forma
esquemática. A representação esquemática da estrutura do argumento é a base para sua
avaliação crítica. Neste sentido, o mérito de um argumento é julgado com fundamento na
função de suas partes inter-relacionadas, e não com fundamento em sua forma.
O argumento mais simples toma a forma de uma proposição ou de uma conclusão
precedida de fatos (dados) que o apóiam. Mas muitas vezes um qualificador dos dados é
exigido: em outras palavras, uma premissa que nós usamos para defender que os dados
são legitimamente empregados para apoiar a proposição. Esta premissa é chamada de
garantia. Garantias são fundamentais na determinação da validade do argumento, porque

81
elas justificam explicitamente o passo que se deu dos dados para a proposição, e
descrevem o processo em termos de por que esse passo pode ser dado. Uma
representação gráfica da estrutura do argumento é apresentada a seguir como uma
adaptação do modelo de Tolmin para atender os objetivos da análise proposta nesta tese.

Figura 1 – estrutura do argumento (adaptada de Tolmin, 1958)

Proposição Sustentação Dados

Garantias

Apoio

Toulmin (1958) admite que em alguns argumentos é difícil distinguir entre dados e
apoios, embora a distinção seja importante na análise do argumento. Uma maneira de
distingui-lo é considerar que em geral os dados são explícitos, enquanto que as garantias
são implícitas. Os dados são usados para legitimar a conclusão com referência explicita aos
fatos, já as garantias são usadas para legitimar o processo que vai dos dados à proposição,
e para encaminhá-la de volta para outros passos implicados nessa legitimação – passos
cuja legitimidade é pressuposta.
Diferentes tipos de garantias dão força diferente à proposição. Às vezes há
necessidade de fazer uma referência específica à força do processo que vai dos dados à
proposição, por meio de uma garantia. Essa referencia é chamada de qualificador, e toma a
forma de palavras tais como necessariamente, presumivelmente, provavelmente, etc.
O processo que vai da garantia até a proposição pode muitas vezes ser condicional.
Isto se refere a condições sob as quais a garantia não tem controle. Em tais casos,
refutações são usadas como afirmações condicionais semelhantes aos qualificadores.
Em um argumento mais complexo, há necessidade de explicar por que a garantia
usada tem poder. Nesse caso, a garantia necessita de um apoio. Normalmente, apoios são
afirmações categóricas ou fatos (tais como leis), não diferenciados dos dados que
conduzem inicialmente à proposição. A aparição de apoios para garantia depende de que
seja aceita, ou não, como não tendo problemas.
A natureza categórica dos apoios cria certas semelhanças com a parte dos dados do
argumento. A diferença entre dados e apoio é, em geral, que dados são particulares, e apoio
82
é uma premissa universal. Por exemplo, onde dados têm a ver com um referencial
diretamente relacionado com a proposição, um apoio consistirá de uma afirmação geral que
se aplicaria a muitos outros casos.
Na visão de Toulmin, a argumentação é um ato social incluindo toda atividade que
diz respeito a formular proposições, apoiá-las, fundamentá-las com razões, etc. (TOULMIN
et al, 1979). Por esta razão, ele introduz a noção de campos do argumento. Ele sugere que
alguns aspectos do argumento são basicamente os mesmos, apesar do contexto em que
eles são desenvolvidos; esses são invariantes com referencia ao campo. Por outro lado,
alguns outros aspectos diferem de contexto para contexto, e como tais são dependentes do
campo de conhecimento que cerceia o tema em debate. Cada campo possui seus próprios
critérios para desenvolver e compreender os argumentos, com a conseqüência que
discordâncias entre campos são difíceis de resolver, pois eles acontecem em diferentes
esferas.
A noção de campos de argumento, ou contextualização da argumentação, está
diretamente associada à validade formal e de tipo do argumento. Existem diferentes tipos de
argumentos e sua classificação está baseada nas diferentes qualidades de seus
componentes. A distinção mais importante é entre argumentos substanciais e analíticos. A
diferença é que o argumento analítico contém apoio para a garantia, cuja informação
autoriza, explicita ou implicitamente, a própria conclusão. Em outras palavras, uma
apreensão do argumento pressupõe uma compreensão de sua legitimidade. Neste caso, a
garantia é usada na forma tradicional de reforço do processo da lógica que vai dos dados à
proposição, mas sendo independente deles. O argumento científico, por exemplo, é do tipo
encontrado na lógica, ou matemática, onde a conclusão é necessariamente resultado das
premissas. A avaliação desses argumentos segue as regras da validade formal (TOULMIN
et al, 1979).
Toulmin, entretanto, afirmou que a validade formal não é condição necessária, nem
suficiente da solidez de um argumento. Por exemplo, em um argumento substancial a
conclusão não está necessariamente contida, ou implicada, nas premissas, porque estas e a
conclusão podem ser de diferentes tipos lógicos. Compreender a evidência e a conclusão
pode não ajudar a entender o processo, e desse modo garantias e apoios de outro tipo
lógico são usados para fechar a lacuna de compreensão. Consequentemente, o uso de
qualificadores tais como “possivelmente”, ou “com probabilidade” se torna inevitável. Um
exemplo deste argumento poderia incluir a conclusão sobre o passado, com premissas
contendo dados sobre o presente. Neste caso, a discrepância lógica entre premissas e
conclusão só pode ser preenchida pela referencia ao campo específico em que o argumento
está se desenvolvendo. De acordo com Liakopoulos (2002), as partes do argumento são:

83
Proposição: uma afirmação que contém estrutura e é apresentada como o resultado
de um argumento apoiado por fatos. Poderão existir numerosas proposições em uma
unidade de análise, mas para os fins analíticos proposto nesta tese o interesse reside na
proposição central que é parte da estrutura da argumentação. Ou seja, focalizaremos a
explicitação da proposição que consideramos fundamental para a análise da construção
argumentativa.
Dados: fatos ou evidencias que estão à disposição do criador do argumento. Os
dados pode se referir a acontecimentos passados, ou à situação, ação ou opinião atuais,
mas de qualquer modo eles se referem à informação que está relacionada com a proposição
central do argumento. Algumas vezes os dados podem ser proposições que foram validadas
em argumentos precedentes. Por exemplo, em argumentos que são gerados a partir de uma
fonte científica e podem ser o resultado (proposição) de um antigo experimento científico.
Essa concepção de “dado” conflui com a perspectiva do campo-tema descrita anteriormente,
não se trata de fatos empíricos esperando para serem interpretados, mas de fragmentos
discursivos que visibilizam as informações usadas pelo interlocutor para sustentar suas
premissas argumentativas.
Garantia: uma premissa consistindo de razões, autorizações e regras usadas para
afirmar que os dados são legitimamente utilizados a fim de apoiar a proposição. Ela é o
passo lógico que conduz à conclusão, não por meio de uma regra formal, mas pela regra da
lógica do argumento específico.
Apoio: uma premissa que é usada como um meio de ajudar a garantia no argumento.
Ele é a fonte que garante a aceitabilidade e a autenticidade da razão, ou regra a que a
garantia se refere. Semelhante no estilo aos dados, ela normalmente oferece informação
explicita.

4.5. Procedimentos para análise das entrevistas

Considerando os objetivos desta pesquisa - identificar as noções de risco


presentificadas nos argumentos médicos sobre gestação de risco; interpretar os argumentos
usados para fundamentar a decisão pelo aborto ou manutenção da gestação; e analisar a
construção discursiva da justificativa médica para o diagnóstico de gestação de risco com
indicação terapêutica de aborto -, a análise das entrevistas se dará por meio dos seguintes
passos:
1) Transcrição literal das entrevistas gravadas em áudio23, conforme convenção
ilustrada do quadro abaixo;

23
As transcrições das entrevistas estão disponíveis no Apêndice C.
84
Quadro I - Convenções para a transcrição24

Símbolo Descrição
[ O colchete aberto indica fala sobreposta. Inicia-se o colchete na sílaba onde a palavra
começa a ser sobreposta pela outra(s) fala(s).

= O sinal de igualdade ao final da fala de uma pessoa e ao início da fala de outra, indica
um transição direta entre uma fala e outra, sem pausa ou sobreposição.
negrito Usado para dar ênfase à palavra ou sílaba.
* Indica a pausa para respirar
(?) Material inaudível ou dúvidas quanto à transcrição
[ ] Informação adicional.
<< Indica quando alguém cita a fala de outra pessoa.
(( )) Indicam ações não verbais realizadas no meio das falas.
(...) Quando ao princípio ou final da fala de uma pessoa, indicam que houve uma parte
excluída da transcrição.
2) Leituras exaustivas das transcrições, procurando tornar o estranho familiar;
identificar os conteúdos importantes e elaborar questionamentos sobre o uso da
linguagem;
3) Identificação e síntese dos argumentos apresentados nas entrevistas;
4) Identificação e interpretação das partes que compõem a argumentação (proposição,
dados, garantia e apoio) 25.
5) Seleção de trechos das entrevistas que ilustrem os componentes analisados;
6) Comparação das partes dos argumentos em uma apresentação esquematizada
(quadros relacionando as partes dos argumentos);

A análise está divida em dois grandes temas: Construções argumentativas sobre risco
na gestação e Construções argumentativas sobre aborto por risco de vida da gestante, e
será apresentada nos próximos capítulos.

24
Adaptado de POTTER, J.: WETHERELL, M. Discourse and Social Psychology. Londres: Sage, pp 188-189,
1987.
25
Será realizada uma interpretação da organização argumentativa dos relatos dos participantes destacando-se
fragmentos das entrevistas. Um mesmo fragmento poderá ser usado para ilustrar a construção de diferentes
argumentos, uma vez que durante as entrevistas os tópicos foram apresentados em diferentes momentos e
estamos considerando a polissemia do discurso.
85
Capítulo 5

Construções argumentativas sobre risco na gestação

Este capítulo apresenta a análise dos argumentos sobre risco na gestação. São
discutidos as proposições, as refutações, os dados, as garantias e os apoios que constituem
cada tipo de argumento. Ao final da análise de cada argumento um quadro sintetiza os
principais elementos identificados na construção argumentativa.

Argumento I: O risco epidemiológico na gestação

A organização argumentativa para problematizar a dimensão probabilística do risco


durante a gestação visou, nas falas dos participantes, enfatizar a dimensão preditiva e
probabilística, temporal e espacial, deste tipo de risco.

Proposição: O conceito de risco indica a relação entre fenômenos individuais e


coletivos, expresso na linguagem matemática das probabilidades.

Esta proposição baseia-se na premissa epidemiológica de que a análise quantitativa


do risco é baseada em estudos probabilísticos que, por sua vez, são interpretados de
diferentes formas e situa o risco para além e para fora do corpo da gestante, sendo
localizado no âmbito da população, produzido ou atribuído no domínio dos coletivos
86
humanos. A defesa argumentativa, porém, recai sobre a consideração dos modos
particulares dos médicos em efetivar e interpretar esses cálculos. Essa argumentação,
algumas vezes, foi organizada em torno da comparação entre as práticas de serviços em
saúde diferente daquela em que o entrevistado estava inserido. Como ilustra o trecho a
seguir:

A questão de avaliação de risco para gente ela não é feita com aquilo que
normalmente é feito na maioria dos serviços de saúde, que é verificar um
percentual de morte e dizer se esse percentual, no nosso entender, ele é
alto ou ele é baixo, se ele justifica ou não justifica uma interrupção. E aí, a
melhor maneira de entender, o que a gente está explicando, é fazer um
comparativo do que significa isso em termos práticos. (Jefferson Drezett).

Para sustentar a proposição, recorre-se a alusão da especificidade do serviço de


aborto legal: se ele [o risco] justifica ou não uma interrupção, para explicar a particularidade
da interpretação do cálculo de risco. A ênfase, empregada com hipérbole, na dificuldade de
exatidão do cálculo de risco também foi usada na defesa da tese sobre a dissonância nas
suas formas de interpretação:

Bom, é essa a questão de risco de vida da gestação é uma história bem


complexa, por quê? Porque ela tem uma gama muito grande de
interpretações (...). (Osmar Colás).

Aspectos subjetivos, relacionados à história de vida de cada gestante, também são


apresentados para atestar a particularidade de cada caso na avaliação do risco. A
proposição é apresentada a partir da organização argumentativa em torno de um esquema
do tipo “pergunta e resposta”, colocando o interlocutor (a pesquisadora) no lugar hipotético
de gestante de risco:

Eu pergunto para você, qual seria uma estatística que uma família, uma
pessoa correria o risco? Um por cento? Meio por cento? Dez por cento?
Qual é o risco? Ninguém tem essa resposta essa é que é a grande
realidade. Quanto vale para você o seu risco de vida em troca da do seu
filho? E quanto vale para o seu marido? E quanto vale para a sua família
perder você em troca de um novo filho? (...). (Osmar Colás).

Esse mesmo esquema é usado para atestar o argumento empiricista sobre a


facticidade do cálculo do risco como conceito analítico e suas diferentes possibilidades de
interpretação:
87
(...) Então, se * a gente sabe que de cada mil gestações, uma mulher morre
no nosso país, cada mil crianças que nasce uma morre, em cada cem mil,
cem, um por mil (...): 0,1% no Norte, de cada criança que nasce viva 0,1%
das mães morrem. É muito grande isso aí. E eu pergunto para você, qual
seria o seu risco? Eu colocaria para você, se eu falasse você tem 1% de
chance de morrer na sua gravidez, ou seria 10% o teu ponto de corte? Ou
50%, ou 0,1% ? (Osmar Colás).

Argumentou-se que alguns médicos definem o risco na gestação a partir da


gravidade da patologia que a gestante apresenta. Esse argumento configurou a contestação
da premissa que advoga pela dimensão coletiva e populacional do risco, em detrimento de
uma análise clínica e individualizada da patologia da gestante, e é apresentada organizando
o discurso em torno de um caso hipotético de gestação de risco. A contestação é colocada
para explicar a razão pela qual, outros serviços de saúde, diferente dos serviços de
referencia de aborto legal, associam risco à patologia da gestante e não à taxa de
mortalidade materna:

Se uma mulher, por exemplo, tiver uma doença cardíaca onde ela teve 95%
de chance de não morrer e tem 5% de chances de risco de morte, muitos
médicos diriam assim: <<não há motivo para interromper a gestação porque
há 95% de chance de ela não morrer. Então não há razão que justifique a
interrupção dessa gestação>>. A gente entende isso de uma maneira
completamente diferente. 5%, são cinco casos em cem, são cinqüenta
casos em mil, são quinhentos casos em 10 mil, são cinco mil casos em cem
mil. Quando a gente avalia mortalidade materna a gente não faz por
percentual. A gente faz com base no número de mulheres mortas, com base
em cem mil nascimentos vivos. Essa é a razão de se entender uma
mortalidade materna. (Jefferson Drezett).

Uso de dados:

1) Literatura sobre mortalidade materna

A literatura médica sobre mortalidade materna é usada como dado para informar a
respeito dos aspectos empiristas e científicos que fundamentam o cálculo do risco. As
tabelas de mortalidade e morbidade são apresentadas como importante instrumento de
biopoder na mensuração e avaliação do risco. A estratégia biopolitica de fundamentar a
avaliação do risco em tabelas referenda a prática médica, ou seja, aufere confiabilidade a
avaliação. Este dado é usado para embasar a argumentação central que sustenta a

88
proposição de defesa dos aspectos particulares de cada gestante relacionados com
aspectos populacionais mais gerais, como nos trechos a seguir:

Primeiro, existem tabelas, existem já protocolos que definem gestante de


baixo e alto risco, médio e alto risco. Isso deveria ser de certa forma, um
pouco mais é * aplicado na prática pelos médicos, mas não são usados
esses protocolos de maneira muito formal. É muito uma percepção do
próprio médico, eu vejo mais ou menos assim, com relação a determinadas
patologias e os potencias riscos de agravo durante a gestação é que vai
focar mais a atenção dele em relação à determinada paciente com
contraponto de outras, que também, eventualmente, tenham risco. (Cristião
Rosas).

Se nós imaginarmos que num país como o nosso, o Brasil, em cada 100 mil
nascidos vivos, morrem uma média de 25 a 100 gestantes dependendo da
região que você se encontra, nos teríamos aí um número X de risco de
morte da mãe por cada nascimento, o risco relativo. 100 mil nascimentos,
no Brasil, morrem entre 25 e 100 dependendo da região, em São Paulo, em
Santa Catarina que é a menor mortalidade por morte materna, 25, no Norte
acima de 100, tem regiões que é acima de 100 até, uma média de 25 a 100
mortes maternas a cada 100 mil crianças que nascem. Bom, ou seja, grosso
modo, lá em cima nós teríamos em cada mil crianças que nascem uma
morte materna * lá no Norte, por exemplo. (Osmar Colás).

2) Manuais do Ministério da Saúde sobre assistência pré-natal e aborto

As publicações normativas do Ministério da Saúde também são usadas como dados


para apresentar fatos e evidencias que ofereçam validade e legitimidade ao modo de avaliar
risco considerando as informações do governo. Aqui os biopoderes estão presentes no
controle do corpo doente que corre perigo por conta da gestação:

Ministério da Saúde ele tem, naquele manual do pré-natal (...) assim,


gestação de risco, e as orientações e as recomendações para se encaixar o
potencial risco dessa paciente, é então, primiparidade muito precoce, parto
muito tardio, intervalo interpartal muito próximo, qualquer patologia que tem
evolução desfavorável na gravidez, diabetes, enfim, uma série de
condições. (Cristião Rosas).

Garantia: Os cálculos probabilísticos devem ser considerados relacionando às


características individuais e particulares de cada gestante.
Esta garantia é usada para oferecer racionalidade à premissa central e afirmar a
legitimidade dos dados apresentados. A lógica segue o seguinte raciocínio: risco é um
conceito analítico, que focaliza as suscetibilidades individuais como determinantes do curso
epidêmico de determinadas patologias cuja capacidade mórbida é determinada a nível

89
populacional. Tal garantia surge nas entrevistas para explicar a comunicação do risco à
gestante:

Então, se tenta falar com a paciente, pelo menos eu, assim <<olha, de cada
tantas pacientes, você vai ter * tantas acontece isso, mas 80 e 100 não
acontece, mas 20 acontece>> (...). (Cristião Rosas).

E para explicar a importância de compartilhar a avaliação do risco com a própria


gestante:

Então, se * a gente sabe que de cada mil gestações, uma mulher morre no
nosso país, cada mil crianças que nasce uma morre, em cada cem mil, cem,
um por mil (...): 0,1% no Norte, de cada criança que nasce viva 0,1% das
mães morrem. É muito grande isso aí. E eu pergunto para você, qual seria o
seu risco? Eu colocaria para você, se eu falasse você tem 1% de chance de
morrer na sua gravidez, ou seria 10% o teu ponto de corte? Ou 50%, ou
0,1% ? (Osmar Colás).

Apoio: A relação entre a taxa de mortalidade materna e a patologia é mais assertiva


no cálculo do risco do que o percentual de risco apresentado pelo quadro clínico da
gestante.
O apoio é usado na construção do argumento central para auxiliar a garantia e
auferir credibilidade e autenticidade ao raciocínio silogístico ao qual a garantia se refere. Ou
seja, o apoio oferece informação explicita sobre a defesa argumentativa a favor do estatuto
da relação entre mortalidade e quadro patológico na avaliação do risco:

Então, se eu utilizar por base cem mil significa que ela tem o risco de cinco
mil em cem mil. Se a gente utilizasse como base uma mortalidade materna
de cinquenta por cem mil, poderia ser até maior do que isso, cinqüenta por
cem mil significa que essa mulher tem um risco cem vezes maior de morrer
por ter uma doença * cardiopatia se fosse comparada com a mesma mulher
que esta * a mulher brasileira, que não tem esse tipo de cardiopatia.
Portanto, o risco cem vezes maior de morrer não é um risco
desconsiderado. É aqueles cinco por cento que parecia um número
pequeno que não deveria ser um número que causasse preocupação e que
não haveria indicação de interrupção de gravidez, quando a gente olha que
essa mulher tem uma chance cem vezes maior de morrer nessas
circunstancias, a gente entende que está absolutamente justificado a
interrupção da gestação, baseado no risco de morte cem vezes maior que
essa mulher tem. (Jefferson Drezett).

Quadro II - Argumento I: O risco epidemiológico na gestação

90
Proposição Sustentação

O conceito de risco indica a relação Dados 1) Manuais do Ministério da Saúde sobre


entre fenômenos individuais e assistência pré-natal e aborto
coletivos, expresso na linguagem 2) Literatura sobre mortalidade materna
matemática das probabilidades.
Garantia Os cálculos probabilísticos devem ser
considerados relacionando as características
individuais e particulares de cada gestante.
Apoio A taxa de mortalidade materna é mais
assertiva no cálculo do risco do que o
percentual de risco apresentado pelo quadro
clínico da gestante.

Argumento II: O risco clínico na gestação associado à patologia da gestante

Neste argumento, o perfil de risco das gestantes é incorporado ao processo de


identificação da(s) doença(s) que ela apresenta. O diagnóstico de risco é regulado pelo
discurso da propedêutica clínica, ou seja, o risco é objeto de diagnóstico em si (ALMEIDA
FILHO, 1992).

Proposição: A avaliação do risco baseia-se no fato de as gestantes serem portadoras de


doenças.
Esta assertiva sinaliza para a utilização do conceito clínico de risco sem se basear na
aplicação direta de um raciocínio fundado na probabilidade estatística, como acontece no
risco epidemiológico. Ou seja, o argumento é construído em torno da concepção de risco
individual. A proposição é apresentada para defender o caráter multidisciplinar da avaliação
do risco na gestação: a avaliação do risco deve ser realizada pelo médico especialista na
patologia apresentada pela gestante. Os participantes posicionam os especialistas não-
obstetras como atores responsáveis pela confiabilidade da avaliação do risco e se auto -
posicionam nos limites da prática obstétrica que os impossibilitam de avaliar com presteza o
risco associado a patologias não-obstétricas:

Normalmente, as questões que envolvam risco de vida elas não são


necessariamente só obstétricas. Há condições que são obstétricas, claro.
Há situações que é da obstetrícia e aí é o obstetra que cabe definir esse
risco. Mas as questões que envolvem, por exemplo, participação da
91
neurologia, da cardiologia, da endocrinologia, ou seja, de outras áreas da
medicina, muito especificas, é evidente que não cabe ao ginecologista, não
é que não cabe, não há nem condições de poder ter conhecimento o
suficiente daquela situação para poder definir que risco é esse, que
tamanho de risco a gente está lidando. Então, todas às vezes a gente tem
situações dessa natureza, a gente busca pelo parecer de um especialista
daquela área (...). (Jefferson Drezett).

No entanto, a investigação e a análise do risco clínico na gestação não são


reduzidas à eficácia de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, incluindo também os
aspectos emocionais, sociais e culturais na compreensão do processo saúde-doença:

(...) A gente encontra nas nossas vidas, mulheres que têm uma cardiopatia
grave, que a gente diz assim << a senhora tem 10, 15, 20 por cento de
chance de morrer se levar a sua gestação a termo>> e a mulher diz assim
<< Doutor, não faz mal, eu prefiro morrer, mas eu quero ter esse filho>> E
se você perguntar para família dela, para o marido dela <<eu não quero
perder minha mulher, eu não quero nem um por cento de risco>> E os filhos
que ela tem também não querem esse risco. Então, você percebe que
dependendo de quem está fazendo essa avaliação, e do interesse * se o
interesse pessoal dela * às vezes a mulher é uma suicida em potencial em
prol de uma gravidez. Como também quando ela não quer mais uma
gravidez ela também é uma suicida em potencial, haja vista os instrumentos
que muitas mulheres usam para poder provocar o auto-aborto. (Osmar
Colás).

Na construção dessa proposição, casos fictícios também são apresentados para


organizar o argumento, com a finalidade de atestar quadros clínicos preexistentes à
condição de gestação que requerem a atuação de médicos não-obstetras. O objetivo é
justiçar a existência da necessidade da escolha por um tratamento muitas vezes
incompatível com a gestação ou pela escolha da interrupção em virtude do risco decorrente
da patologia:

(...) E às vezes pode ser que não, por exemplo, o ginecologista nunca
pensou nessa possibilidade, encaminhou ela para fazer um exame,
encaminhou ela para um profissional da área que ela apresentou o
problema, por exemplo, * e eu estou falando de uma série de patologias que
acabam ocorrendo durante a gestação, e existe aquela paciente que tinha
uma patologia, já estava severa e acaba por engravidar. Vamos pensar, por
exemplo, numa paciente que esteja quase oxigênio dependente ou
esperando um transplante. Como é que grávida vai se submeter a um
transplante? Você entendeu? Porque aconteceu de ela engravidar e ela
está numa fila por um transplante. Não toma droga nenhuma porque no

92
caso dela ela não tem um câncer, ela está esperando por um transplante
pulmonar, por exemplo. (Joselene Breda).

Uso de dados:

1) Relatos de casos clínicos que atestam o risco decorrente da patologia da


gestante.
Esses dados são inseridos no argumento para evidenciar fatos que expressem as
experiências clínicas individuais dos participantes, e estas, por sua vez, são integradas aos
conhecimentos acumulados sobre os mecanismos de doenças que colocam em risco a vida
ou a saúde da gestante. Os casos clínicos, apresentados como dados, explicitam o objeto
da clínica: a gestante considerada em suas particularidades. Os participantes diferenciaram
risco de vida e risco à saúde. Risco de vida diz respeito à possibilidade de morrer em
decorrência da patologia, caso a gestação não fosse interrompida. Como nos trechos
abaixo:

(...) de repente chega uma paciente que tinha tido uma patologia grave
durante a sua gestação, já tinha tido uma coagulopatia, já tinha tido uma
trombocitopenia grave, tinha uma insuficiência renal já importante instalada
em evolução, e a própria paciente solicitou a interrupção porque ela achava
que * falaram para ela que ela podia perder o rim durante a gravidez (...).
(Cristião Rosas)

(...) cardiopata, eu acho que é o mais comum *. Aquelas cardiopatias


funcionais * cianóticas, funcional grau IV que * tivemos um caso que tinha,
inclusive, hipertensão pulmonar, a paciente, então, o quadro cardio-
respiratório já logo no início da gestação muito complicada, muito difícil (...).
(Cristião Rosas)

E risco à saúde, quando a patologia não necessariamente levaria a morte da


gestante, mas impediria o seu tratamento:

(...) era um caso de câncer de mama, ela tinha que realizar a interrupção e
ela foi extremamente esclarecida sobre a circunstância real. Ela ponderou a
decisão. (...). Eu me recordo bem desse caso de câncer de mama porque
não era obrigatório que ela morresse, mas a gente sabia que isso iria ter um
agravante no prognóstico dela imenso. Mesmo assim ela optou,
conversando com o marido, em manter a gestação até o final, em manter a
gravidez e que se ela morresse o marido continuaria cuidando dos dois
filhos que ela já tinha e desse terceiro que ficaria, mas ela não teve

93
coragem de interromper a gestação e resolveu correr o risco até o final.
(Jefferson Drezett).

(...) agora que eu estou falando eu me lembrei de um caso que eu atendi,


de uma paciente * eu queria tanto lembrar o nome dela * ela não possuía o
pré-natal comigo, ela era uma paciente tão séria, tão sério o caso dela, ela
tinha uma artrite reumatóide. A artrite reumatóide é uma das doenças que
pode * dependendo de como ela está, tem três casos assim, essa foi um
(...). Então ela estava no sistema público e veio consultar comigo, mas,
assim, a doença dela, o ideal para quem tem uma artrite reumatóide é
engravidar quando a doença está numa fase * que a gente fala, que está
em silêncio, que está sob controle, ela não está tomando medicamento
forte, essa paciente engravidou no auge de uma crise, tomando doses
altíssimas de corticóide, quer dizer, já pode alterar o desenvolvimento ósseo
do bebê, enfim, estava tomando merticoten, estava tomando * artrite
reumatóide a gente usa umas drogas muito parecidas com quimioterápico,
totalmente contra-indicada durante a gestação. Você vê, ela chegou aqui
para mim com dezenove semanas, quase vinte, porque depende muito
disso também, da equipe que está acompanhando, dependendo dos
colegas ninguém vai indicar, ninguém vai levantar a possibilidade, a não ser
que seja um caso muito clássico, igual eu estou lhe falando, entendeu?
Melanoma, um tumor cerebral. Agora, artrite reumatóide? Essa paciente
estava em risco, com gestação de altíssimo risco, ela não ia conseguir
levar esse bebê até o final, entendeu? Aí, em algum momento, ela não veio
mais aí a outra falou <<olha, não doutora, complicou ela teve que internar,
parece que o bebezinho nasceu e não chegou nem a vinte e seis semanas,
deve ter ficado na UTI, sabe? Iria precisar *>> Bom, nasceu com alguns
transtornos, entendeu? Mas seria de risco de vida para ela? Não, o risco
maior era fetal, ela, tudo bem, era dor e tudo o mais, mas artrite
reumatóide, acho que não iria complicar muito mais, não. Iria se ferrar
inteira, porque teria que aumentar a dose de corticóide, enfim. Mas ninguém
levantou essa possibilidade, nesse caso. (Joselene Breda).

2) Relatos de casos fictícios também foram apresentados para oferecer informações


relacionadas à proposição central (risco associado à patologia). A construção argumentativa
visou colocar a disposição da interlocutora (a pesquisadora) as experiências da prática
médica dos entrevistados criando narrativas ficcionais baseadas em casos vividos pelos
profissionais:

(...) Então vamos voltar ao câncer que é um assunto que me é mais * que é
da minha rotina. Então, uma paciente jovem, por exemplo, de 23 anos e
descobre um nódulo já de dois para três centímetros, o que faz toda
diferença no tratamento, etc. E aí faz uma biopsia e você percebe é um
tumor extremamente agressivo, e que ela teria que fazer já, partir para uma
mastectomia e uma quimioterapia, sendo essa quimioterapia incompatível
com o quadro gestacional dela, bom * a entrada precoce do tratamento vai

94
fazer toda a diferença para sobrevida dela, então, você pode comentar isso
com ela (...). (Joselene Breda).

Por exemplo, eu estou aqui com uma paciente e a gente vê * vamos vê uma
outra coisa, para gente não ficar nos mesmo exemplos, com um tumor
renal, primeira gestação, veio fazer o exame de urina 1, deu uma alteração
importante no exame de urina, a gestação é inicial, aí a gente vai fazer uma
investigação, pedimos um ultra-som de vias urinárias, ela nunca * isso é
fictício, esse fato, * fez o ultra-som de vias urinárias, o ultra-som renal e veio
uma imagem sugestiva de tumor em um dos pólos renais, já grande, muito
bem! Encaminho para um urologista, um oncologista, ela vai lá e ele, em
virtude do tipo de imagem ele sugere uma biopsia no mesmo momento,
tudo isso pode ser feito na vigência da gestação. Ela é submetida à biopsia
e, por exemplo, observou-se que é um tumor extremamente agressivo, seria
necessário uma conduta imediata. (Joselene Breda).

Garantia: Um conjunto de razões, autorizações, procedimentos e regras foram


usados pelos participantes da pesquisa para afirmar a legitimidades dos dados (relatos
clínicos). Essa garantia, muitas vezes foi apresentada como a necessidade do parecer ou do
laudo médico de especialistas que atestassem o risco causado pela patologia da gestante:

(...) E esse parecer para gente é fundamental, porque o ginecologista não


pode dizer que determinada cardiopatia necessariamente durante a
gestação vai produzir fatores de risco, embora os ginecologistas, por
exemplo, trabalhem com cardiopatia em gravidez, diabete em gravidez,
insuficiência renal em gravidez. Mas a gente acha desejável dentro do plano
regular dessa paciente que haja pelo menos um especialista naquela área,
e aqui em São Paulo não haveria motivo para ser diferente, há
possibilidades de conseguir esse parecer (...). (Jefferson Drezett).

O parecer é apresentado como o principal personagem na trama clínica dos


procedimentos para a avaliação do risco e consequente indicação de aborto:

(...) De toda forma, é importante, se for possível obter desse especialista


que não vai realizar o abortamento ou outro médico que vai realizá-lo, até,
se possível, que há risco de vida e que há indicação de abortamento. Se a
gente pode obter também esse esclarecimento de que há esse risco de
abortamento também é muito útil para os nossos pareceres. Mas, uma vez
tendo pelo menos um parecer de um especialista da área a gente ainda
acredita ser interessante ter um segundo parecer, demonstrando que dois
pareceres diferentes, de duas pessoas diferentes, ou de duas instituições
diferentes são concordantes nesse sentido. Poderia buscar ter um terceiro,
um quarto ou um quinto, mas poderia ser questionado, poderia ser colocado
95
em dúvida que um único parecer não fosse suficiente para esclarecer essa
situação. Então a gente busca sempre um segundo parecer (...). (Jefferson
Drezett).

Apesar do protagonismo do parecer, não é o seu autor que realiza o procedimento


do aborto. As diferentes funções executadas pelos profissionais médicos - nesse processo
que vai desde a avaliação do risco até a interrupção da gestação -, são elementos usados
como dados e descritos conforme uma hierarquia de importância entre saberes e fazeres: o
médico especialista produz o parecer, mas quem faz a interrupção é o obstetra:

(...) por exemplo, quem seria um que também teria que assumir a
responsabilidade, e assinar o nome dele e solicitar, tal procedimento, então,
por exemplo, se nós vamos precisar de um especialista do lócus em que
paciente tem problema, então, se é alguém, então, provavelmente é um
urologista, que é um tumor renal, é um câncer, um oncologista e o
ginecologista que está acompanhando ela, que pode não fazer, a maioria
não vai fazer, muito bem, aí indica para um serviço de referência e chega
nessas três indicações. (Joselene Breda).

Relatos de casos fictícios também são usados como garantia para expressar os
procedimentos clínicos adequados em situações de gestação de risco:

Esse capítulo que nós estamos discutindo ele é multidisciplinar, é


multidisciplinar, multiprofissional. É * não caberá nunca a um único indivíduo
tomar toda a decisão. Já parte de dois, é o médico que identifica o problema
e a sua paciente, então, você identificando o problema, você vai dividindo,
com pelo menos, mais dois profissionais, entendeu? Para que? Para
verificar o problema, porque muitas vezes, vamos supor, tumor cerebral.
Você está grávida, estava andando de metrô e teve um desmaio, você vai
investigar uma área cerebral, uma alteração cerebral, muito bem!
Repetimos em um mês, sugeriram repetir em 15 ou 20 dias, repetimos
<<nossa, a lesão é expansiva, cresceu tanto, sugestivo de lesão maligna>>
Aí, provavelmente, bom, é no cérebro, o ginecologista não tem essa
competência, encaminha para o neuro, aí o neuro é que vai definir << é
necessário a biopsia, levando em consideração essa imagem que a gente
pode ter adquirido, por exemplo, numa ressonância magnética>> Muito
bem, <<é preciso fazer a biopsia agora? Não dá para ser depois?>>
<<Não, tem que ser, essa imagem é sugestiva de uma lesão maligna e tal
>> Muito bem, é o neuroquímico, aí vai para o neurocirurgião, aí três
profissionais já foram. (Joselene Breda).

96
Apoio: O argumento que sugere a análise da história de vida, dos aspectos sociais,
culturais e econômicos de cada gestante, de modo particular, é usado para explicar o modo
de diagnosticar risco na clínica obstétrica:

(...) E muitas, pela gravidez também são* aumentam o risco, a gente cansa
de ver paciente com doenças graves, e a gente diz <<se a senhora não
interromper a gravidez, a senhora pode morrer>> e ela opta <<Doutor, eu
posso morrer, mas eu quero levar essa gravidez até o fim>> A gente
respeita essa direito dela, mas se nós fossemos perguntar, se ela estivesse,
por exemplo, inconsciente e nós fossemos perguntar para o marido, talvez o
marido não quisesse. E para os filhos, então? <<eu não quero perder a
minha mãe de jeito nenhum em troca de um novo irmão>> E para os pais
dela? E para a sociedade que isso significa? Uma mulher largar filhos,
soltos. (Osmar Colás).

Quadro III - Argumento II: O risco clínico na gestação associado à patologia da gestante

Proposição Sustentação

A avaliação do risco baseia-se no Dado Relatos de casos clínicos que atestam o


fato de as gestantes serem risco decorrente da patologia da gestante.
portadoras de doenças.

Garantia Conjunto de razões, autorizações,


procedimentos e regras nomeadas como
pareceres e procedimentos clínicos.
Apoio A análise da história de vida, dos aspectos
sociais, culturais e econômicos de cada
gestante, de modo particular, estão
presentes no modo de diagnosticas risco na
clínica obstétrica.

Argumento III: O risco clínico na gestação associado à patologia do feto

Na construção deste argumento é o perfil de risco do feto que está em questão. Do


mesmo modo que no risco clínico associado à patologia da gestante, o risco é incorporado
ao processo de identificação da(s) doença(s) que o feto apresenta.
97
Proposição: Doenças manifestadas pelo feto não indicam, de forma direta, risco para
a gestante. O risco decorrente de patologias fetais, sobretudo da anencefalia26, é um risco
secundário, decorrente da situação clínica do feto e o risco para a gestante constitui-se
retoricamente, como um modo de defender o direito de não levar a gestação a termo. Ou
seja, os elementos da caracterização do risco para a gestante de um feto portador de
alguma patologia são apresentados de forma retórica para o convencimento de que, mesmo
sendo o feto que esteja doente, é a gestante que corre risco. O uso retórico do risco para a
gestante nestes casos justifica-se pela não legalização do aborto em casos de patologias
fetais.
Esta proposição é apresentada a partir de relatos de casos clínicos que exemplificam
a identificação e a análise do risco nos casos de patologia fetal:

(...) por exemplo, você faz um exame morfológico no primeiro trimestre de


gestação, pronto, deu alguma alteração, o morfológico não invalida, um
ultra-som, deu uma alteração, então você parte para o segundo passo, você
informa para paciente <<olha, a gente tem parâmetros que são avaliados *
nos exames, um dos parâmetros veio muito diferente daquele que é normal,
o seu bebê pode ser anormal, porém, diante dessa alteração nós temos
uma segunda possibilidade>> <<qual é doutora?>> <<Fazer um exame
invasivo, onde a gente vai colher a célula da tua * da loja placentária e aí
nos vamos investigar o cariótipo desse bebê para ver se ele tem problema
ou não>>. E aí ela vai lá, faz e traz o resultado, por exemplo, de uma
síndrome que é incompatível com a vida, você está entendendo?
Legalmente ela não pode interromper essa gestação, porque o risco é fetal.
Então, legalmente ela tem que continuar com essa gestação, mesmo
sabendo que essa gestação não vai resultar num bebê normal e que vá
continuar vivo, porque tem patologias que não são * mas a lei não permite
que se discuta a possibilidade do aborto, entendeu? (Joselene Breda).

A contestação de que a patologia do feto não justificaria a interrupção da gestação


por risco de vida da gestante é apresentada como exceção à premissa da defesa
argumentativa que considera o quadro de patologia do feto como um quadro clínico de risco
para a gestante. A argumentação organiza e nomeia os atores sociais que divergem da
premissa que está sendo apresentada. Essa divergência é entendida como um
desdobramento da posição contrária ao aborto:

26
A anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural diagnosticável nas primeiras semanas de
gestação. Por diversas razões, o tubo neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto (DINIZ, 2007). O
líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo o desenvolvimento dos hemisférios
cerebrais
98
Alguns detratores dessa possibilidade, principalmente a Igreja [católica],
que, aliás, só a Igreja, não existe mais nenhuma outra entidade que não a
Igreja, ou que não as entidades que estejam ligadas a Igreja, que queiram
justificar, que sejam contra essa possibilidade de interrupção. Existem
médicos, por exemplo, que são contra o aborto, por princípios pessoais, não
ligados à religião, porque eles são contra e acabou. Acham que a mulher
deve ter o filho e pronto, acabou e tal. Tudo bem! Talvez uma falta de
vivencia com esse tipo de paciente, mas a Igreja, com certeza, está ligada
nessa situação do risco de vida pelo anencéfalo, e quais seriam os dois
argumentos que a Igreja quer quebrar para poder impedir essas
autorizações? (Osmar Colás).

A contestação também é apresentada contrapondo as evidências de possibilidade de


vida de fetos anencefálicos, oferecida pelos atores de posição contrária à tese do risco para
a gestante nestes casos:

O primeiro seria ir contra o fato de que o anencéfalo tenha chance. E você


já viu dentro do seu estudo, com certeza, alguns casos, um ou outro, muito
raro, de diagnóstico de anencéfalo que foi feito e depois o neném não
morreu e ainda durou dois anos, durou dois anos e morreu do mesmo jeito.
Aí eles falam << está vendo? O neném nasceu e ainda durou dois anos>>
Então, você pode imaginar, naqueles dois anos como é que foi a vida
daquele casal. Mas eles ainda querem dizer que pode haver esse erro de
diagnóstico. Poder pode, mas cada dia é mais difícil, hoje em dia os
aparelhos de ultra-som são cada vez melhores e é mais difícil ter esse risco.
Mas ainda poderia, então talvez, a anencefalia não seria tão completa
assim, podia ser um anencéfalo que tivesse uma partezinha do cérebro, que
permitisse que aquele neném vivesse, sei lá, um ano, dois anos. Isso não é
vida. Mas para eles é. E o segundo argumento que eles querem quebrar é o
aumento de risco materno da gravidez, de complicações, da mulher que tem
mais atonia, que tem mais hemorragia, outra mais descolamento de
placenta, tem mais risco de eclampsia, tem mais transfusão uterina. Tudo
isso é fato, é estatística, aumenta o risco relativo disso tudo. (Osmar Colás).

Uso de dados:

1) As pesquisas científicas atestam que as gestações de fetos com malformação, como


a anencefalia, trazem risco para a gestante.
As informações científicas são usadas para impor os fatos e as evidencias que
atestam o risco para a gestante em caso de anencefalia:

(...) o que existe de estudos em relação ao risco na anencefalia é * 50%


delas cursam com polidraminio, que é uma patologia que de fato traz
consequências para o prognóstico e a forma como evoluciona essa gravidez
em termos de atribulações de complicações, ruptura de bolsa,
descolamento de placenta. Outra questão em relação a essa consequência
99
da hiperdistensão do útero são as síndromes hipertensivas, a doença
hipertensiva da gravidez que é muito mais prevalente na anencefalia.
(Cristião Rosas).

2) Relatos de casos clínicos que evidenciam o drama vivido por mulheres com
gestação de fetos com alguma patologia grave também são usados como dados.
Na construção do argumento, há uma preocupação em diferenciar o risco para o feto
do risco para a gestante e da participação da gestante na avaliação deste risco:

Por exemplo, eu tive um caso de uma boliviana, uma paciente, que o bebê
estava em sofrimento fetal grave, precisava fazer uma cesárea e ela, * da
cultura indígena dela da Bolívia, não queria que fizesse cesárea nenhuma
<< no, no, no voy a hacer cesariano>> E aí? Como? Você vai amarrar,
algemar, botar ela na mesa, fazer uma anestesia para fazer uma cesárea
nessa mulher? Olha o embaraço, e aí não é uma questão de risco da mãe,
mas é de risco do bebê. (Cristião Rosas).

3) A evolução clínica do quadro de gestação de fetos anencefálicos é prototípica dos


efeitos nocivos à saúde e à vida da gestante em função da patologia do feto.
Esse dado é apresentado na construção retórica das conseqüências da anencefalia
no corpo da mulher:

E uma gravidez com anencefalia, por exemplo. * A anencefalia por si só, o


fato de o feto ser anencéfalo, significa uma gravidez anormal; essa gravidez
anormal é acompanhada de um evoluir de uma gravidez onde, de
complicações durante a evolução da gravidez leva, acontece, onde uma
gravidez normal não teria. Por exemplo, nos sabemos que a paciente com
anencefalia, a anencefalia atrai a pré-eclampsia, que é uma síndrome
hipertensiva, que é a primeira causa de morte materna no mundo; ou seja, a
anencefalia aumenta esse risco, nós sabemos que a anencefalia aumenta o
risco de polidraminio, que é uma hiper-extensão uterina, e o polidraminio
aumenta o risco de ruptura uterina, de descolamento prematuro de
placenta, de atonia uterina. Então, todas essas complicações gravídicas
aumentam o risco da mulher. Então, foi baseado nas complicações da
gravidez do anencéfalo que se interrompe a gestação, já que o anencéfalo
não tem prognóstico. (Osmar Colás).

4) A história das autorizações judiciais para aborto de fetos anencefálicos.


Os dados históricos sobre os primeiros alvarás judiciais que autorizaram a
interrupção de fetos anencefálicos são uados para organizar a retórica que justifica o

100
permissivo legal do aborto por anencefalia como sendo enquadrado na não-criminalização
do aborto por risco de vida da gestante:

(...) essa história dos riscos na anencefalia, ela tem um princípio. No final
dos anos 1980 e no começo dos anos 1990, quando foram dados os
primeiros alvarás judiciários para interrupção de gravidez, muitos juízes
faziam uma analogia entre a solicitação do alvará na anencefalia como uma
abertura por risco materno que, na verdade, é uma analogia inadequada.
Porque * na anencefalia o risco pode existir, mas ele não é sistemático
(Thomaz Gollop).

5) A legislação sobre o aborto voluntário.


O Código Penal é usado como fonte de informação para a possibilidade de interpretação
da gestação de anencéfalo como gestação de risco:

Agora, eu acho que seria interessante você colocar dá onde surgiu esse
foco no risco materno. E surgiu por conta de muitos juízes que se apoiavam
no Código Penal vigente para dá os alvarás. Isso é completamente furado,
porque risco de vida materna, esse então, é completamente teórico. Está
bem, a mulher pode ter uma atonia, pode uma * mas isso tem em qualquer
gravidez. (Thomaz Gollop).

Garantia: A morte inevitável do feto anencefálico justifica o aborto por risco de vida
da gestante.
Esta garantia é usada para dar legitimidade aos dados apresentados: todos eles
indicam que o feto anencefálico vai morrer em algum momento, seja dentro ou fora do útero
materno:

(...) da percepção geral que os médicos têm também, que é do risco fetal,
esse feto, além de ser inviável, extra-uterina, depois do nascimento, a
maioria deles morre intra-útero, 25%, mas eles têm deformidades orgânicas,
órgãos com defeitos, malformações importante cardíaca, de suprarenal, de
uma série de sistemas que até do ponto de vista para viabilizar um
transplante depois desse bebê para um outro bebê fica difícil, porque são *
órgãos com gênese muito complicada, muito fraca, muito defeituosa.
(Cristião Rosas).

Apoio: O feto anencefálico inevitavelmente vai morrer, resta-se salvaguardar a vida e


a saúde da gestante. O apoio à proposição é apresentado afirmando-se que a vida do feto
não está mais em questão, já que a morte é premente:

101
(...) quando eu vejo uma mãe de feto anencéfalo eu logo vejo a questão do
risco para mãe, não estou nem considerando mais esse feto. (Cristião
Rosas).

Embora os riscos para a gestante sejam apresentados a partir de uma construção


argumentativa fundada em uma retórica de convencimento, de defesa da tese de que a
anencefalia do feto não levaria à morte da gestante, mas agravaria seu estado de saúde, os
riscos para a vida da gestante são enfaticamente presentificados:

É * eles não são desprezíveis [os riscos], a mulher pode ter polidraminio, a
mulher pode ter atonia do útero, ela pode ter dificuldade, e com freqüência
tem, na liberação dos ombros, enfim, tem uma série de coisas que podem
acontecer, mas o cerne da questão é * e eu sublinhei isso muito na minha
fala, o cerne da questão é, primeiro, o anencéfalo é um natimorto cerebral,
segundo, manter a gravidez tem riscos, mas eles não são sistemáticos.
(Thomaz Gollop).

Quadro IV - Argumento III: O risco clínico na gestação associado à patologia do feto

Proposição Sustentação

Doenças manifestadas pelo feto não Dados 1) As pesquisas científicas atestam que
indicam, de forma direta, risco para as gestações de fetos com má formação
a gestante. O risco decorrente de trazem risco para a gestante.
patologias fetais é um risco 2) Relatos de casos clínicos que
secundário, decorrente da situação evidenciam o drama vivido por mulheres com
clínica do feto e o risco para a gestação de fetos com alguma patologia
gestante constitui-se retoricamente, grave também são usados como dados.
como um modo de defender o direito 3) A evolução clínica do quadro de
de não levar a gestação a termo. gestação de fetos anencefálicos é prototípica
dos efeitos nocivos a saúde e a vida da
gestante em função da patologia do feto.
4) A história das autorizações judiciais
para aborto de fetos anencefálicos.
5) A legislação sobre o aborto
voluntário.
Garantia A morte inevitável do feto anencefálico
justifica o aborto por risco de vida da
gestante.
Apoio O feto anencefálico inevitavelmente vai
morrer, resta-se salvaguardar a vida e a
saúde da gestante.

102
Argumento IV: O risco gestacional pautado pelos valores morais dos médicos

A definição de risco corrente em um grupo específico remete à esfera dos valores


morais: risco é sempre definido na esfera moral (M. J. SPINK, 2000). Na construção desse
argumento, a noção de risco é usada com enfoque na dimensão moral do/a médico/a, e,
portanto, pessoal.

Proposição: A análise do risco é determinada pelas biografias pessoais e profissionais de


cada médico.
Esta afirmação é apresentada como resultado da argumentação sobre a influência
de aspectos morais e ideológicos, relacionados à liberalização do aborto induzido ou
voluntário, na indicação terapêutica da interrupção da gestação por risco de vida da
gestante. A premissa é explicitada da seguinte forma:

(...) Mas essa defesa desse risco é muito individual e é muito variável em
termos daquilo que cada um tem como percepção ou de sensibilidade em
relação à questão do aborto. (Cristião Rosas).

Em função do caráter pouco objetivo que atravessa a avaliação do risco, defende-se


a participação da própria gestante nesta avaliação:

(...) Não é ainda uma percepção clara dos médicos qual é o limite desse
risco, que esse risco, mesmo que não seja para ele tão importante, deveria
ser uma decisão da pessoa. (Cristião Rosas).

Um dos entrevistados nomeia os aspectos morais envolvidos na avaliação do risco


na gestação e os efeitos que tais aspectos têm para a indicação ou não da interrupção. A
vivência pessoal do aborto e a crença sobre a sacralidade da vida humana são os dois
elementos mais enfatizados na explicação sobre as subjetividades presentes na avaliação
do risco:

(...) Essa situação * é assim, é o tal negocio quando você coloca na sua
decisão, e é muito difícil você tirar, essa elaboração que às vezes vem das
entranhas: quando começa a vida, quando começa a vida humana *. A
experiência de vida que cada um tem sobre ela. É diferente você falar sobre
aborto para um médico ou uma médica que teve muito próximo de si, uma
filha, uma namorada, diante de uma gestação indesejada, num momento

103
crítico da vida e que passou pela experiência do aborto; e é diferente você
falar para um médico antigo e que não conversa sobre isso, católico, mais
ou menos praticante, nem sempre, mas muito preso com aqueles
pensamentos aquele * não é? E ele vai, então, ter valores diferentes, aí
para refletir, e às vezes essa percepção que vem de dentro é o que pega na
valia dos riscos para o paciente. (Cristião Rosas).

Outro elemento inserido na argumentação diz respeito ao exercício da maternidade.


A maternidade presumida/compulsória é colocada como um impedimento moral para a
indicação do aborto por risco de vida da gestante. Este argumento é apresentado
comparando-se a experiência do aborto por estupro, onde o desejo de ser mãe não estaria
presente, e o aborto por risco de vida, em que a maternidade já estaria premente. Na
construção desse argumento a voz de outro médico, divergente da posição do entrevistado,
é trazida para dar factibilidade ao evento narrado:

(...) embora eu ache que se fosse um direito dela <<se não há outro meio
de salvar a vida da gestante>> * é muito forte ainda para alguns médicos,
embora, até de certa forma progressistas * nessa questão. Isso que é
interessante, por exemplo, aceitam até, a interrupção da gestação, no caso
de estupro. Um deles até participou comigo, recentemente, num
atendimento de uma interrupção por estupro; * entretanto, esse caso que eu
te falei da insuficiência renal, dessa patologia que ela tinha, ele foi muito
resistente em relação a valorizar esse risco para essa mulher. (Cristião
Rosas).

O desagrado em ser o agente que interrompe a possível maternidade também é


expresso:
(...) e eu vou te falar assim, uma coisa que você não perguntou, mas eu te
digo <<ah, e quando atende?>> Eu acho péssimo, quando chega risco
materno, eu odeio (...). Mas, você gosta? Não, ninguém vai falar que gosta,
duvido, tenho certeza absoluta, nem aqui. (Joselene Breda).

Uso de dados:

1) Relatos de casos clínicos que atestam a divergência entre médicos na avaliação


do risco com indicação de interrupção da gestação. Esses dados são apresentados para
argumentar sobre as diferentes formas de se entender risco na gestação e suas dimensões
subjetivas, principalmente quando inclui a subjetividade da própria gestante quando diverge
dos valores e crenças dos médicos:

104
(...) São situações tão pessoais que provocam coisas tão diferentes daquilo
que é uma graduação de risco, numa graduação técnica, que o médico que
está cuidando da situação tem que saber respeitar, porque eu me lembro
que nessa oportunidade, esse é um caso muito antigo, teve alguns médicos
que se sentiram muito incomodados com a decisão de continuar, muito
incomodados. Não conseguiram entender que ela entendia o risco e
mesmo entendendo o risco ela resolveu manter. (Jefferson Drezett).

2) As crenças religiosas e a incapacidade de separar Igreja e Estado são


características da autonomia da prática médica na avaliação dos riscos. Esse dado é usado
para apoiar a proposição central trazendo vozes de médicos com posicionamentos
diferentes sobre a gestão da vida: a vida governada por um poder místico, Deus; e a vida
governada pelo poder médico e suscetível aos biopoderes:

É muito importante você perceber que há os princípios éticos, morais e


religiosos do médico. Embora nos estejamos num país laico, a gente não
devia levar em conta a religião, mas isso está embutido, por que você é
formatado assim. Então, muitos médicos têm valores diferentes sobre risco,
você vai encontrar médicos que acham que mesmo que a mulher tenha
menos de 50% de chance de morrer ele diz << Deus é que quis>>. E você
vai encontrar médicos que acham que ele pode interferir na lei de Deus. É
um direito pessoal de cada médico pensar. (Osmar Colás).

Garantias:

1) Ser favorável ao livre direito de optar pelo aborto é uma postura médica que
garante a assertividade na avaliação do risco e na interrupção da gestação. Esta assertiva é
apresentada com a nomeação das posturas e posicionamentos dos participantes como, por
exemplo, liberal e simpática:

(...) Entretanto, assim, eu acho que eu já sou mais liberal, tenho uma
percepção que ninguém merece ou deve sofrer uma coerção de não decidir
ter um agravo à saúde. (Cristião Rosas).

Então, você percebe que está noção de risco * tem uma ampla maneira de
ser vista, dependendo de quem, dependendo do ponto de vista,
dependendo de uma série de crenças, valores, princípios e um monte de
outras coisas. Bom, eu como médico, e como uma pessoa que sou
simpática ao direito da mulher de interromper a gestação, eu vejo sempre
assim: qualquer situação de risco maior do que o normal, para mim, é
interpretado, seria interpretado como a possibilidade ou direito daquela
mulher de optar. (Osmar Colás).

105
Por exemplo, uma diabética pode ter todos esses riscos, mas é um feto que
tem prognóstico, então ninguém vai interromper a gestação, antecipar
antes*. Agora, por outro lado, se uma mãe diabética até o terceiro mês de
gravidez, ela fala << eu não quero correr esse risco>> eu, que sou liberal
em relação ao aborto, acho que ela deveria ter esse direito. (Osmar Colás).

Os efeitos dessa postura são evidenciados no argumento de defesa do direito da


gestante em participar e decidir sobre a o quanto de risco ela deseja correr:

(...) Dá para gente quantificar isso? Cada pessoa tem o seu nível, cada
pessoa tem a sua auto-valoração, dentro da família, dentro do contexto que
ela vive, não é verdade? Então, a princípio, eu costumo dizer, qualquer risco
a mais que uma paciente tenha, é o direito dela, seria um direito dela
solicitar a possibilidade de não correr esse risco, ou seja, de interromper a
gestação. Lembrando que uma interrupção de gestação também corre risco.
(Osmar Colás).

2) A garantia de que a decisão da gestante é soberana em relação à opinião dos


médicos pretende apoiar à anterior: a decisão da gestante sobrepuja as opiniões e decisões
médicas que a contrariem:

(...) porque normalmente, mais uma vez eu te falo, o caso tem que sempre
está muito bem documentado, porque não cabe ao médico que vai fazer *
eu não vou fazer uma auditoria para os meus colegas, mas eu diante * e
nem colocar meus colegas*, geralmente a patologia, não é uma patologia
que você conhece vou me informar a respeito daquilo para que fique claro,
porque eu acho que tem que ficar claro para cabeça do profissional. Eu não
vou colocar uma paciente na mesa, para fazer uma interrupção se eu não
tiver tranqüila com as minhas convicções, porque se ela está ali é porque
ela optou e ela assinou e solicitou e isso já deveria bastar, como nós temos
uma lei restritiva e * vinculando à só essas duas possibilidades, o fator
interrupção, a possibilidade de interrupção*, muito bem, então a exigência
da assinatura, histórico e anamnese de três profissionais solicitando, vamos
ver se bate tudo. Batendo, não vejo que deva ter mais questionamentos, se
não seria infligir a lei, colocar cinco profissionais ou seis profissionais,
entendeu? E, às vezes pode ser passível de discussão, que é o que eu te
falei. (Joselene Breda).

Apoios:

106
1) A ciência é pouco eficaz na precisão da avaliação de risco, por isso as crenças
religiosas e morais ganham espaço na decisão pela interrupção da gestação como
decorrência do risco.

(...) isto é física, a Medicina Quântica está aí para explicar, como isso se
relaciona nós ainda não temos conhecimento, então de forma que essa
história de alma é muito nebulosa, sob o ponto de vista científico. Mas sob
o ponto de vista de crença é quase que universal, uma crença universal,
como era antes em relação aos médicos, médico não podia tratar de
doentes porque Deus não queria se Deus pôs a doença em você, você tinha
que morrer, porque que vou ir contra Deus? As verdades vão sendo
dinâmicas, à medida que se científica, que vai se cientificando, como é que
se fala? Cientificando mais, se torna cientifico cada vez mais, você vai
olhando os fenômenos com ciência aí você vai entendo sob um ponto de
vista diferente do simples mágico, divino, não é verdade? Então, esses
riscos todos são muito pessoais, a maneira de interpretar. (Osmar Colás).

2) Os dados científicos e probabilísticos (estatísticas), mesmo não sendo


absolutamente assertivos, devem ser usados como fonte de informação para auxiliar as
gestantes na decisão em manter ou interromper a gestação:

Também o risco é um direito que ela deveria ter, <<ah, se eu tenho um risco
de 1% a mais de morrer, eu não quero correr esse risco>> para quem
trabalha com grupo * você imagina pessoas que fazem pré-natal de alto-
risco, que trabalham só com hipertensas, se eles sabem que aumentou em
1% o risco daquela mulher, de cada 100 mulheres uma mais vai morrer,
será que vale a pena ele ter esse risco aumentado? Ele faz o pré-natal e ele
vê <<ah, eu soube que a mulher morreu por ter uma complicação assim>> e
aí? Você percebe? Então, essas estatísticas têm que ser apresentada para
as pessoas e é um direito à autonomia de decidir. (Osmar Colás).

Quadro V - Argumento IV: O risco gestacional pautado nos valores morais dos médicos

Proposição Sustentação

A análise do risco é determinada Dados 1) Relatos de casos clínicos que


pelas biografias pessoais e atestam a divergência entre médicos
profissionais de cada médico. na avaliação do risco com indicação
de interrupção da gestação.
2) As crenças religiosas e incapacidade
de separar Igreja e Estado são
características da autonomia da
prática médica na avaliação dos
riscos

107
Garantias 1) Ser favorável ao livre direito de optar
pelo aborto é uma postura médica
que garante a assertividade na
avaliação do risco e na interrupção
da gestação.
2) A decisão da gestante é soberana
em relação à opinião dos médicos.
Apoio 1) A ciência é pouco eficaz na precisão
da avaliação de risco, por isso as
crenças religiosas e morais ganham
espaço na decisão pela interrupção
da gestação.
2) Os dados científicos e probabilísticos
(estatísticas), mesmo não sendo
absolutamente assertivos, devem ser
usados como fonte de informação
para auxiliar as gestantes na decisão
em manter ou interromper a
gestação.

Argumento V: O risco psicológico

Nesta argumentação o risco é relacionado ao sofrimento mental/emocional da


gestante.

Proposição: As desordens emocionais e os sofrimentos psíquicos decorrentes de


uma gestação com diagnóstico de risco constituem-se, eles mesmos, em fatores de risco.
Uma das formas de nomear o sofrimento emocional como um fator de risco para a
gestante é a alusão à maternidade frustrada pelo diagnostico de risco, configurado no
dilema da escolha entre a própria vida e a vida do feto:

(...) Agora, geralmente, risco de vida para mulher, risco de morte materna,
normalmente a gente está falando de um quadro clássico de uma mulher
que sonhou com aquilo, que * a partir do momento que se vê grávida,
imagina, ela é capaz de entregar a vida para salvaguardar a do filho.
(Joselene Breda).

108
Outra forma de nomear esse sofrimento é denominá-lo como tortura, especialmente
nos casos de malformação fetal. O argumento é apresentado como uma facticidade, sem
possibilidade de questionamentos ou dúvidas:

(...) de fato, a maioria dos fetos e embriões anencefálicos morrem intra-


útero, de fato, uma percentagem razoável tem polidraminio. Enfim, existem
complicações obstétricas, mas eu acho que o cerne da questão está em
dois pilares: na inviabilidade do feto anencefálico, e na tortura que poderá
ocorrer da mãe ter que manter uma gravidez de um feto totalmente
inviável. (Thomaz Gollop).

Uso de dados:

1) O risco psicológico é potencializado pelo risco físico. Esse dado é apresentado


para oferecer legitimidade à proposição central (risco psicológico), tem o objetivo de atestar
a evidencia do caráter psicológico do risco a partir da autoridade de documentos da área
médica que oferecem informações sobre os efeitos emocionais da gestação de risco. O
dado faz composição com o argumento sobre o direito da gestante de decidir
autonomamente sobre a manutenção ou a interrupção da gestação:

Existe um estudo, um trabalho muito interessante, muito bonito, aliás, feito


pelo pessoal da Comissão de Cidadania e Reprodução da Flasog,
Federação Latino-Americana [de Sociedades] de Obstetrícia e Ginecologia.
Chama-se Causas de Saúde para Interrupção da Gravidez. Está em
espanhol e é o primeiro documento que eu conheço que além da questão *
mais formal do risco organicista, que nós médicos somos mais formados,
acrescenta uma outra questão que é o mental, psicológico, potencializado
por aqueles riscos que, se não forem resolvidos, por exemplo, com uma
interrupção, vai ser agravado. Dá muito valor a essa condição individual da
mulher, da percepção dela, da vida dela, o corpo é dela, afinal. (Cristião
Rosas).

2) Relatos de casos internacionais que narram histórias de gestante em sofrimento


emocional também são usados como dados:

(...) quando o Peru teve um caso de uma menina, adolescente, com um


anencéfalo que queria fazer a interrupção da gravidez pelos riscos
potenciais de saúde, e ela bateu de porta em porta, sistema de saúde, o

109
Ministério da Saúde não conseguiu resolver o problema, entrou num
problema psicológico muito grave, entraram na justiça contra ela. (Cristião
Rosas).

3) Relatos de casos clínicos atestam que o sofrimento gerado pela não


consideração, por parte dos médicos, da opinião da gestante na avaliação do seu próprio
risco também é um agravante para o estado emocional dela. Esse dado é usado para
compor a premissa central assinalando o argumento de defesa do direito da mulher de
decidir sobre o aborto:

(...) esse caso que eu te falei da insuficiência renal, dessa patologia que ela
tinha, ele foi muito resistente em relação a valorizar esse risco para essa
mulher, e ela estava flagrantemente em sofrimento mental, chorando, sabe?
Você via que ela estava angustiada, desesperada. Tivemos que chamar a
equipe de Saúde Mental, Psicologia, para acompanhá-la. (Cristião Rosas).

4) A relação fantasiosa com o feto ou o vínculo imagético com o feto doente ou


malformado também é um dado apresentado como evidencia do risco psicológico para a
gestante:

(...) havia uma idéia, no Brasil, preconcebida, como também é preconcebida


a idéia de que toda a interrupção acaba psicologicamente com a mulher, de
que as mulheres não queriam ver os fetos mal formados, e existia um
trabalho de uma psicóloga que trabalhava nos anos 1970, 1980, na
Universidade de Rotterdam, na Holanda, no serviço de Medicina Fetal, cujo
nome é Petra Frets. E essa mulher trabalhou muito na área da Psicologia e
o diagnóstico pré-natal. E os trabalhos nessa década, que estão todos
publicados, se você entrar hoje você vai achar tonelada de coisas dela, ela
dizia que isso era um erro. Achei um argumento muito interessante, que a
mulher quando sabe que o filho tem alguma deformidade, ela sempre
imagina, ou com freqüência imagina que o mostro é muito maior do que ele
é na verdade, e isso cria uma ansiedade absurda. Por outro lado, por
melhor que seja o vínculo da paciente com o médico, sempre pode ter a
dúvida <<será que isso existia mesmo?>> Especialmente hoje, na época do
ultra-som, em que as pessoas vêem a cabecinha, vêem a mãozinha, etc. e
tal, elas não entendem anomalias. * Mesmo na anencefalia, que está lá o
globo ocular elas não conseguem entender isso, então é extremamente
importante você mostrar, você dizer <<olha, era mesmo anencefálico, era
mesmo, isso ou aquilo>> E que mostrar não deveria ser uma imposição,
mas era algo a ser perguntado para a mulher. E você sabe que, depois do
começo dos anos 1980, foi impressionante observar que raramente uma
mulher pedia para não ver. (Thomaz Gollop).

110
Garantia: Os exames clínicos, sobretudo o ultra-som, são instrumentos da prática
obstétrica importantes na minimização dos riscos emocionais.
Essa garantia é usada para afirmar que os dados são usados de modo cuidadoso e
racional no apoio a proposição central. A narrativa sobre procedimentos e casos clínicos é
apresentada para explicitar a lógica da argumentação: o risco emocional é vivenciado como
a perda da maternidade já elaborada e frustrada pela condição do risco gestacional:

Quantas vezes a paciente está aqui, já que o exame deu positivo, vamos
fazer o primeiro ultra-som, só depois desse ultra-som é que eu faço festa
com ela, eu seguro, dou os parabéns e tudo, mas vamos ver, aquele ultra-
som, o primeiro ultra-som carimba, vai lá, vê o coraçãozinho batendo, ela
vai fazer o ultra-som, o colega pega lá o ovo embrionário, não tem bebê aí.
Aí, o serviço médico, muitas vezes, ele nem liga, você está entendendo?
Então, tem uma pessoa aqui que eu vou falar <<olha, já era para estar com
9 semanas, tem um ovo aqui que já está involuindo, não tem mais * não tem
nem consulta, pronto. E aí se eu estou aqui no consultório, já falo <<pede
para ela vir aqui que eu converso com ela >> para falar tem alguma coisa
errada, para não estressá-la <<olha, infelizmente essa gravidez não é *>>
ela sofre, é um luto, parece até que ela perdeu alguém que já está
convivendo com ela há anos, e era um ovinho, ela curtiu aquilo durante
pouco tempo, foi o tempo que ela identificou o atraso, que ela fez o exame
de gravidez. Daí ela foi fazer o ultra-som e não tem, não tem bebê, está
entendendo? Você imagina todo esse castelo e aí você descobre uma
doença, ou uma paciente doente. (Joselene Breda).

Apoio: O risco fetal tem conseqüências importantes na dinâmica emocional da


gestante e pode ser interpretado como risco de vida para a gestante.
A aceitabilidade da premissa central é atestada pelo relato da evidencia jurídica do
uso do risco materno como decorrência do risco fetal, nos casos de anencefalia:

Porque ele [o juiz] não fazia a menor questão de fazer essa analogia e ele
entendia que aquilo era uma demanda do casal, gerada em cima do
sofrimento. E uma coisa que pouca gente considera é o seguinte: os
envolvimentos emocionais dos casais em questões que dizem respeito à
interrupção ou à decisão de interromper a gravidez são de base
completamente diferente conforme a motivação que leva à interrupção.
(Thomaz Gollop).

Quadro VI - Argumento V: O risco psicológico

Proposição Sustentação
111
As desordens emocionais e os Dados 1) O risco psicológico é potencializado
sofrimentos psíquicos decorrentes pelo risco físico.
de uma gestação com diagnóstico 2) Relatos de casos internacionais que
de risco constituem-se, eles narram histórias de gestante em sofrimento
mesmos, em fatores de risco. emocional.
3) Relatos de casos clínicos atestam
que o sofrimento gerado pela não
consideração da opinião da gestante na
avaliação do seu próprio risco também é um
agravante para o estado emocional dela.
4) A relação fantasiosa com o feto ou o
vínculo imagético com o feto doente ou mal
formado é uma evidencia do risco
psicológico para a gestante
Garantia Os exames clínicos, sobretudo o ultra-som,
são instrumentos da prática obstétrica
importantes na minimização dos riscos
emocionais.
Apoio O risco fetal tem conseqüências importantes
na dinâmica emocional da gestante e pode
ser interpretado como risco de vida para a
gestante.

Argumento VI: O risco gestacional pautado no exercício do poder médico

Na construção deste argumento a avaliação do risco é definida pela autoridade


médica.

Proposição: A definição e a avaliação do risco na gestação são determinadas pelo


exercício do poder disciplinar médico. Na construção dessa proposição, a biopolítica surge
como a expressão do poder médico sobre a vida da gestante.
A crença na Ciência tende a levar o médico, que a ela adere, a assumir uma posição
de onipotência diante do risco ou da patologia da gestante e, por conseguinte, diante da
própria gestante. Essa passa a ser vista como devendo necessariamente submeter-se a sua
tutela, de modo, por vezes, incondicional. Algo da ordem de uma abdicação temporária –
enquanto for ‘sua paciente’ – de sua autonomia, de seu poder de reflexão sobre si mesmo,
de decisão sobre si, de conhecimento intuitivo e, sobretudo, vivencial de si mesmo
(MARTINS, 2004).

112
É esta crença na “verdade científica” que faz com que o médico acredite que pode,
ou mesmo deve, se dar ao direito de invadir a autonomia do indivíduo para lhe impor a
“verdade”. Ou, ao menos, o discurso da “verdade científica” é o que lhe serve de álibi para o
exercício de poder sobre o outro. De um modo ou de outro, este poder é exercido como se
fosse de direito, necessário e inevitável. Segundo a doutrina da “verdade científica”, o
médico passa a ser um guardião da verdade que deve ser imposta ao paciente que perde
todos os seus direitos, e deve ter seu defeito corrigido por aquele que supostamente “sabe”
a verdade sobre o seu corpo (MARTINS, 2004).
Essa proposição é apresentada como sendo uma prática médica do outro, do colega
que não apreendeu a importância de considerar a individualidade da gestante, quando ela é
sua paciente. A construção argumentativa versa sobre o questionamento da legitimidade
dessa prática:

Nós médicos temos uma formação que nós somos autônomos para decidir
para o paciente, e nós podemos fazer isso e fazer aquilo, só que isso é tão
hipertrofiado que é um viés na formação do médico, é um equivoco na
formação, que ele interpreta essa autonomia do médico como * quase como
uma posição de vida, ele está acima de tudo e de todos, inclusive do direito
do seu paciente de decidir (...). Quem falou que ele tem essa autonomia
para desrespeitar a autonomia reprodutiva da paciente? (Cristião Rosas).

Na construção dessa proposição, o argumento de defesa de que apesar de ser o


médico quem avalia o risco não é ele quem decide o quanto de risco uma gestante pode
correr, também é apresentado:

(...) A segunda questão que a gente usa aqui além de tentar desfazer essa
armadilha, vamos dizer assim, de percentual simples, é a gente entender
que não é o médico que pode dizer qual é o risco que alguém pode ou não
pode correr. A gente não entende que nós enquanto médicos * tenhamos o
direito de impor àquela mulher qual é o risco que ela possa correr. Portanto,
seja ele qual for a proporção por conta de risco, essa mulher tem que ser
esclarecida em termos de comparação da mulher grávida que não tem a
mesma doença e ela é que tem que decidir. Se esse número, se esse risco
é para ela tolerável ou não. Pode ser que um risco duas vezes maior, para
ela, possa ser perfeitamente tolerável, afinal de contas a gravidez não é
uma gravidez necessariamente indesejável. Poderia ser uma gravidez que
ela gostaria de manter, de levar em frente. (Jefferson Drezett).

Uso de dados: A cientificidade é uma garantia de que o poder médico vai ser
exercido sem interferências da moral médica individual.

113
Esse dado se refere à legitimidade do uso dos conhecimentos e tecnologias
científicas para proteger a gestante do abuso de poder médico:

(...) Não a sua opinião, a opinião daquele especialista embora eu respeite


enormemente não é o que nós estamos buscando. Não se busca opinião
nesses procedimentos; o que se busca são elementos técnicos, evidencias
científicas que definem qual é a margem de mortalidade conhecida pra
essas circunstâncias. Essa margem de mortalidade é que vai ser discutida
com a mulher com o profissional daqui. (Jefferson Drezett).

Garantias:

1) O Código de ética profissional do médico abona o exercício do poder disciplinar


médico.

(...) eu percebo que às vezes esse exagero da autonomia que o médico


tem, porque está no Código de Ética isso, nenhuma disposição estatutária
pode restringir a autonomia do médico de decidir *, estatutária ou
regimental, de hospital, de serviço, restringir a autonomia do médico em
decidir o que é melhor para o seu paciente, só que ele extrapola, a
autonomia é um direito do médico, entretanto, autonomia não está acima de
princípios fundamentais da Medicina e da Bioética. (Cristião Rosas).

2) A voz e a decisão da gestante podem ser trazidas para a avaliação do risco


oferecendo a ela informações sobre esse risco.

(...) E é essa mulher que vai dizer <<não, esse risco não é um risco que eu
acho possível de eu morrer>>, ou seja, há um compartilhamento dessa
decisão, a palavra compartilhamento deve ser muito cuidadosamente
entendida. É um compartilhar de uma decisão onde a gente não pode
colocar apenas sobre a decisão da mulher, sem nenhum tipo de informação
consistente para que ela escolha e ao mesmo tempo não pode o médico
fazer essa escolha sem a participação dessa mulher. Esse compartilhar de
decisão é colocar mais esclarecidamente possível quais são os riscos
envolvidos, o que pode ser feito e inclusive comparar com quais são os
riscos que a gente tem de interromper essa gestação. (Jefferson Drezett).

3) A forma de nomear a atuação médica como sugestão na indicação terapêutica


pela interrupção ou manutenção da gestação também é apresentada como um dado:

114
Então, eu acho que isso aí vai numa velocidade tão grande que se eu disser
para você que tem alguma coisa fechada em torno disso, não. Tem coisa
que de repente poderia ser definitiva << não, não dá para tratar>>, ela
estando gestante, só se tomarmos uma providencia nesse sentido e se ela
desejar, e não, um ano, dois anos, cinco anos depois você já não indicaria
mais uma interrupção, por quê? Porque já tem hoje drogas que são
possíveis de você usar durante a gestação que você não faria * não
precisaria partir para uma conduta tão drástica como essa. E é uma
conduta drástica; eu acho que é uma conduta que ninguém gostaria de
tomar. Ninguém gosta de indicar, você está entendendo? Eu acho que
cabe ao ginecologista, eu prefiro usar o termo sugerir, entendeu? Sugerir.
Só, só, termina aí o que você tem que fazer. (Joselene Breda).

Apoio: A opinião pessoal do médico que avalia o risco sobre a legalidade ou


moralidade do aborto deve ser rechaçada a fim de preservar a autonomia da gestante e
garantir a aceitabilidade da avaliação.

Eu não posso ter um parecer incompleto, impreciso, inconsistente, vago ou


um parecer que reflita uma opinião do especialista, muito menos um parecer
que reflita ((riso)) a opinião do especialista daquela área sobre abortamento.
Não é esta a questão. (Jefferson Drezett).

Quadro VII - Argumento VI: O risco gestacional pautado no exercício do poder médico

Proposição Sustentação

A definição e a avaliação do risco na Dado A cientificidade é uma garantia de que o


gestação são determinadas pelo poder médico vai ser exercido sem
exercício do poder disciplinar interferências da moralidade médica
médico. individual.
Garantias 1) O Código de ética profissional do
médico abona o exercício do poder
disciplinar médico.
2) A voz e a decisão da gestante
podem ser trazidas para a avaliação do risco
oferecendo a ela informações sobre este
risco.
3) Nomeação da atuação médica como
sugestão na indicação terapêutica pela
interrupção ou manutenção da gestação
115
Apoio A opinião pessoal do médico que avalia o
risco sobre a legalidade ou moralidade do
aborto deve ser rechaçada a fim de
preservar a autonomia da gestante e garantir
a aceitabilidade da avaliação.

Resumindo, na análise das construções argumentativas sobre risco na gestação, o


argumento sobre risco epidemiológico na gestação teve como proposição central a
formulação de que o conceito de risco indica a relação entre fenômenos individuais e
coletivos, expresso na linguagem matemática das probabilidades. Os dados para
sustentação de tal proposição baseou-se na utilização da literatura sobre mortalidade
materna e nos Manuais do Ministério da Saúde sobre assistência pré-natal e aborto. Teve
como garantia a assertiva de que os cálculos probabilísticos devem ser considerados
relacionando às características individuais e particulares de cada gestante e, como apoio, a
defesa de que a relação entre a taxa de mortalidade materna e a patologia é mais assertiva
no cálculo do risco do que o percentual de risco apresentado pelo quadro clínico da
gestante.
As premissas sobre o risco clínico na gestação associado à patologia da gestante
teve como proposição central a consideração da avaliação do risco baseada no fato de as
gestantes serem portadoras de doenças. Os dados utilizados fundamentaram-se em relatos
de casos clínicos que atestam o risco decorrente da patologia da gestante e em relatos de
casos fictícios. A garantia foi apresentada como um conjunto de razões, autorizações,
procedimentos e regras usadas para afirmar a legitimidades dos dados (relatos clínicos) e,
como apoio, foi usado o argumento que sugere a análise da história de vida, dos aspectos
sociais, culturais e econômicos de cada gestante, de modo particular, para explicar o modo
de diagnosticar risco na clínica obstétrica.
O argumento a respeito do risco clínico na gestação associado à patologia do feto
teve como proposição central a afirmativa de que doenças manifestadas pelo feto não
indicam, de forma direta, risco para a gestante. Os dados foram usados de modo a sustentar
informações sobre: pesquisas científicas que atestam que as gestações de fetos com
malformação, como a anencefalia, trazem risco para a gestante; casos clínicos que
evidenciam o drama vivido por mulheres com gestação de fetos com alguma patologia
grave; a evolução clínica do quadro de gestação de fetos anencefálicos como sendo
prototípica dos efeitos nocivos à saúde e à vida da gestante em função da patologia do feto;
a história das autorizações judiciais para aborto de fetos anencefálicos e; a legislação sobre
o aborto voluntário. Como garantia, defendeu-se que a morte inevitável do feto anencefálico

116
justifica o aborto por risco de vida da gestante e o apoio fundamentou-se no fato de que o
feto anencefálico inevitavelmente vai morrer, restando-se salvaguardar a vida e a saúde da
gestante.
Na análise do argumento o risco gestacional pautado pelos valores morais dos
médicos, a premissa central defendeu a assertiva de que a análise do risco é determinada
pelas biografias pessoais e profissionais de cada médico. Os dados usados como
sustentação foram: relatos de casos clínicos que atestam a divergência entre médicos na
avaliação do risco com indicação de interrupção da gestação e as crenças religiosas e; a
incapacidade de separar Igreja e Estado como características da autonomia da prática
médica na avaliação dos riscos. As garantias apresentadas diziam respeito às seguintes
informações: ser favorável ao livre direito de optar pelo aborto é uma postura médica que
garante a assertividade na avaliação do risco e na interrupção da gestação e; a decisão da
gestante sobrepuja as opiniões e decisões médicas que a contrariem. Os apoios
consideraram que: a ciência é pouco eficaz na precisão da avaliação de risco, por isso as
crenças religiosas e morais ganham espaço na decisão pela interrupção da gestação como
decorrência do risco e; os dados científicos e probabilísticos (estatísticas), mesmo não
sendo absolutamente assertivos, devem ser usados como fonte de informação para auxiliar
as gestantes na decisão de manter ou interromper a gestação.
As premissas sobre o risco psicológico teve como proposição a consideração de que
as desordens emocionais e os sofrimentos psíquicos decorrentes de uma gestação com
diagnóstico de risco constituem-se, eles mesmos, em fatores de risco. Os dados utilizados
foram: o risco psicológico é potencializado pelo risco físico; relatos de casos internacionais
que narram histórias de gestante em sofrimento emocional; relatos de casos clínicos que
atestam que o sofrimento gerado pela não consideração, por parte dos médicos, da opinião
da gestante na avaliação do seu próprio risco também é um agravante para o estado
emocional dela e; a relação fantasiosa com o feto ou o vínculo imagético com o feto doente
ou malformado. A garantia fundou-se na premissa de que os exames clínicos, sobretudo o
ultra-som, são instrumentos da prática obstétrica importantes na minimização dos riscos
emocionais. Como apoio, defendeu-se a tese de que o risco fetal tem conseqüências
importantes na dinâmica emocional da gestante e pode ser interpretado como risco de vida.
No argumento sobre o risco gestacional pautado no exercício do poder disciplinar
médico a proposição fundou-se na premissa de que a definição e a avaliação do risco na
gestação são determinadas pelo exercício do poder disciplinar médico, usando como dado o
fato de a cientificidade ser uma garantia de que o poder médico vai ser exercido sem
interferências da moral médica individual. Como garantia, foram apresentados: o Código de
ética profissional do médico; a voz e a decisão da gestante que podem ser trazidas para a

117
avaliação do risco oferecendo a ela informações sobre esse risco e; a forma de nomear a
atuação médica como sugestão na indicação terapêutica pela interrupção ou manutenção
da gestação. Como apoio, foi apresentado a tese de que a opinião pessoal do médico que
avalia o risco sobre a legalidade ou moralidade do aborto deve ser rechaçada a fim de
preservar a autonomia da gestante e garantir a aceitabilidade da avaliação.

Capítulo 6

Construções argumentativas sobre aborto por risco de vida da gestante

Este capítulo apresenta a análise dos argumentos sobre aborto induzido ou


voluntário, especialmente, dos argumentos sobre aborto por risco de vida da gestante. De
modo semelhante ao apresentado no capítulo anterior, aqui são discutidas as proposições,
os dados, as garantias e os apoios que constituem cada tipo de argumento. Ao final da
análise um quadro sintetiza os principais elementos identificados na construção de cada
argumento.

Argumento I: Aborto é um direito da mulher

118
Na formulação deste argumento o aborto é considerado como o exercício pleno da
autonomia de escolha reprodutiva da mulher.

Proposição: A escolha pelo aborto ou pela manutenção da gestação deve ser feita
pela gestante. A construção dessa proposição visa problematizar o exercício biopolítico do
saber/poder médico sobre o corpo da mulher grávida. Afirma-se o direito da mulher de
governar seu próprio corpo. O médico é posicionado como aquele que fornece as
informações e, portanto, instrumentaliza a gestante para a decisão. O argumento se funda
da noção de que o médico é apenas um dos personagens que auxiliam a gestante a
ponderar sobre a possibilidade de aborto:

(...) e aí uma coisa interessante da a gente lembrar: a decisão final sempre


é da mulher, não pode ser diferente isso. Não há sentido que o médico fique
com a responsabilidade de decidir ou não decidir pelo abortamento. Claro
que ele compartilha essa responsabilidade técnica, mas ele não pode dar o
parecer final. O parecer final é sempre da mulher e a mulher às vezes,
mesmo conhecendo o serviço, ela vai buscar ou não ajuda em pessoas que
ela confia. Então ela vai discutir isso com o esposo; ela pode discutir isso
com os próprios filhos que ela já tenha, os mais velhos; ela pode discutir
com os pais, com seus melhores amigos, com seu orientador religioso. Eu
já vi isso aqui no hospital, ou seja, ela vai buscar construir a decisão final
dela não só sobre as informações técnicas que a gente dá. Isso também é
um outro equivoco, imaginar que é só com o médico que se é tratado. Isso é
tratado dentro do âmbito pessoal dela e às vezes mesmo com toda
informação, com todo grau de risco que ela corre, ela opta por manter a
gestação. (Jefferson Drezett).

A decisão por “correr risco” é a metáfora que designa a escolha por manter a
gestação, situada no âmbito dos direitos, sendo considerada com o mesmo valor moral que
a escolha pelo aborto:

Um abortamento nessas circunstancias é algo que pode ser recomendado,


mas não é algo que ela tenha a obrigação de fazer e correr esse risco é
realmente uma decisão final dela, ela tem direito de correr. Pode ser até que
não aconteça nada que tudo dê certo, mas aí é ela que tem que decidir se
pode correr esse risco ou não. (Jefferson Drezett).

A proposição é sintetizada com o uso de ditos populares que fazem referência a


função materna: “o bojo é de quem o carrega”, usado como recurso lingüístico para
expressar a autonomia da mulher na sua escolha reprodutiva:

119
Ou seja, a equipe tem que estar consciente de que aquilo é o melhor a ser
feito em beneficio daquela mulher, ela desejou. Sempre, sempre, entendeu?
O bojo é de quem o carrega, é de quem assina por aquilo, então, é a
mulher, sempre a mulher. (Joselene Breda).

Uso de dados:

1) Os ginecologistas começam a dar importância à posição da gestante quanto a sua


escolha reprodutiva.
Este dado é apresentado como base para o argumento de defesa do direito da
gestante de escolher sobre a sua reprodução. Atesta-se, a partir da experiência pessoal,
que os ginecologistas, de um modo geral, estão mais atentos a esse direito:

Então já surge, embora minoria, mas uma percepção dos ginecologistas


que essa questão deve ser discutida pela mulher (...). (Cristião Rosas).

2) Diálogos fictícios, criados para reproduzir durante a entrevista a relação médico-


paciente, também são usados como dado para falar sobre a condução dos casos clínicos de
gestação de risco com indicação terapêutica de aborto:

(...) eu acho que a paciente tem o direito. Se você chega para uma paciente
que é hipertensa, ou que é diabética e fala para ela, ela pergunta << Doutor,
qual é o meu risco de morrer?>> <<Olha, a senhora é uma diabética,
importante, a senhora tem um risco um pouco maior de complicações que a
gravidez, vamos chamar * de uma morte materna, é maior.>>(...) <<Ah,
Doutor, mas então eu não quero levar a minha gestação a diante>> É essa
a situação, eu particularmente acho que ela deveria ter esse direito. (Osmar
Colás).

(...) como essa é uma decisão que é dura de entender para quem não
trabalha com essa questão; como essa é uma decisão da paciente, então,
por exemplo, ela traz avaliação técnica de três profissionais, e ela, por livre
espontânea vontade assina um documento e solicita a interrupção, eu
nunca vou deixar de fazer essa pergunta <<você está tranqüila com essa
opção que você está fazendo? Ficou claro para você, com relação às suas
possibilidades?>> <<Não doutora, eu acho que é o melhor para mim, não
tenho a mínima condição de ter esse filho aqui comigo, porque afinal de
contas eu tenho a minha vida>>. Eu já ouvi isso, entendeu? Porque,
também, pensando que você depois, se eu chegar a ter não sou eu quem
vai cuidar, enfim, ela falou assim <<não, eu tenho que ter egoísmo,
talvez>>, alguma coisa nesse sentido, entendeu? Então eu acho que nunca
* você tem que conversar com a paciente. (Joselene Breda).

120
3) Os conceitos analíticos de autonomia e heteronomia também são usados para
sustentar a tese do direito de escolha da gestante. O argumento se funda no discurso
empiricista, visando oferecer um caráter científico ao discurso e dar o estatuto de falso
dilema moral ao conflito sobre a moralidade do aborto:

(...) a autonomia é o seu direito de resolver sobre o seu feto, e a


heteronomia é o direito que os outros têm de dizer para tirar e que você tem
direito ou não de tirar. E está também é uma questão filosófica, é a mesma
coisa de a gente discutir qual é o teu time, que time você gosta, você
percebe? Então, quando a gente entra nesse tipo de discussão nós temos
que permitir, sem crítica, a gente tem que ser democrata o suficiente pra
permitir o direito de a pessoa ter uma posição diferente da sua. (Osmar
Colás).

Garantias:

1) O acesso à informação é o principal elemento de assertividade na decisão pelo


aborto ou pela manutenção da gestação. Essa garantia oferece a razão lógica pela qual se
deve considerar e respeitar o direito da gestante na avaliação da sua própria condição de
risco:

(...) eu acho que direito a saúde é o direito a informação muito clara e essa
decisão é individual. Não tem jeito, não somos nós médicos, não é a
Medicina, não é o Direito, não é a Igreja, que tem que decidir, cada um tem
que decidir plenamente, com capacidade de decisão. E para ter capacidade
de decisão tem que ser maior de idade, tem que ter inteligência suficiente,
ser um cidadão, e precisa ter informação; ele nunca vai decidir certamente
se ele não tiver informação. (Cristião Rosas).

2) A dimensão social do risco à saúde da gestante também é apresentado como uma


garantia para sustentar a proposição central. O argumento é apresentado nomeando esta
dimensão como “sistema de crenças, valores e princípios”. Na narrativa, diálogos fictícios
entre médico e paciente são introduzidos para oferecer facticidade ao relato:

Como eu acho que ela deveria ter o direito até social se ela quiser, mas não
estou falando de doença, do ponto de vista de doença mais ainda, <<ah eu
sou hipertensa crônica, eu não quero piorar ainda mais a minha doença, eu
não quero correr o risco, eu já tenho um filho, eu não quero o risco de largar
meu filho sozinho>> não é um direito dela? Eu particularmente, no meu

121
sistema de crenças, valores e princípios, me faz olhar por esse lado, me faz
aceitar essa possibilidade. Existem pessoas com sistema de crenças,
valores e princípios que não aceitam essa possibilidade, respeita-se. Agora,
nós devemos respeitar o valor dos outros para impô-los às mulheres ou
devemos valorizar o sistema de crenças, valores e princípios da
interessada, que é a mulher, para tomar alguma conduta, acho que esta é a
questão, não é? (Osmar Colás)

Apoio: Impor à gestante a opinião médica sobre a manutenção da gestação ou sua


interrupção, invariavelmente, acarreta maiores riscos para a mulher, principalmente se ela
for menor de idade e incapaz, legalmente, de decidir com autonomia. Este apoio é
apresentado na forma de narrativa sobre uma experiência de debate a respeito do tema,
onde o relato de um caso clínico em que prevaleceu a decisão médica teria prejudicado o
bem-estar da gestante. O argumento se concretiza na formulação de um questionamento:
“será que ela merecia isso?”, visando expressar o sentimento de alteridade do entrevistado
em relação à gestante:

(...) eu ouvi uma discussão interessante que foi * <<mas nasceu, não sei
onde, uma menina lá no Sul que fizeram uma cesárea com 11 anos>> quer
dizer, com 8 meses, 7 meses e meio, 8 meses, quer dizer, você veja, já
anteciparam uma cesárea eletiva, mas de um mês antes da data, porque já
não tinha mais condição de levar adiante, quer dizer, chegaram no extremo
do risco para essa menina de 11 anos, será que ela merecia isso? (Cristião
Rosas).

A retórica argumentativa, no formato de questionamento reflexivo, também aparece


na apresentação de situações hipotéticas, mas que fazem parte do cotidiano do trabalho dos
participantes, para apoiar a tese central de defesa do direito de livre escolha da gestante:

Será que uma mulher com câncer avançado de mama quer manter uma
gravidez que foi gerada numa condição em que o diagnóstico não existia?
(Thomaz Gollop).

Quadro VIII – Argumento I: Aborto é um direito da mulher

Proposição Sustentação

A escolha pelo aborto ou pela Dados 1) Os ginecologistas começam a dar


manutenção da gestação deve ser importância à posição da gestante quanto a
feita pela gestante. sua escolha reprodutiva.
2) Relatos fictícios de diálogos entre

122
médico e paciente refletem a condução dos
casos de gestação de risco
3) Os conceitos analíticos de autonomia
e heteronomia quando aplicados na análise
do risco sustentam a tese do direito de
escolha da gestante
Garantias 1) O acesso à informação é o principal
elemento de assertividade na decisão pelo
aborto ou pela manutenção da gestação.
2) A dimensão social do risco à saúde
da gestante deve ser considerada na
avaliação do quadro clínico de risco da
gestante.
Apoio Impor à gestante a opinião médica sobre a
manutenção da gestação ou sua interrupção,
invariavelmente, acarreta maiores riscos
para a mulher.

Argumento II: Aborto não é crime

Nesta construção argumentativa o aborto é pensado na dimensão jurídica, sendo


consideradas as interpretações dos incisos do Código Penal que permitem a sua realização.

Proposição: A legislação sobre o aborto voluntário é passível de interpretações


subjetivas. Essa proposição é apresentada como resultado da análise do Código Penal a
respeito da legalidade do aborto. Como estrutura da argumentação, essa proposição visa
justificar a defesa do caráter legal e não-criminalizado do aborto quando a vida da gestante
está em risco. A anencefalia do feto é trazida como caso prototípico em que se aplica a
possibilidade de interpretações diversas:

Por exemplo, infelizmente, o nosso Código Penal ele está mal escrito,
também foi de 1940. Então, se lá diz assim <<quando não há outra maneira
de salvar a vida da gestante>> Ou seja, muitos médicos interpretam assim
<< só quando a mulher está em coma>>. Outros interpretam assim <<se
essa mulher tem 60% de chance de morrer, eu vou antecipar>> Mas isso
não é de acordo com a lei, rigidamente. Mas a lei já criou flexibilizações. E
os juízes, quando eles estão dando a autorização para interromper o [feto]
anencéfalo, na realidade eles não estão dando para o anencéfalo; eles
estão flexibilizando o risco de vida materna, diminuindo aquela rigidez que
está no Código. Eu acho que é isso que se deve colocar. (Osmar Colás).

Uso de dados:

123
1) Os debates entre a área médica e a área jurídica acerca da legalidade do aborto
por risco de vida da gestante atestam a amplitude de interpretações da letra da lei sobre o
tema. Este dado é apresentado com recortes narrativos das falas dos interlocutores da área
jurídica:

Outro dia eu estava num debate com colegas e tinha um juiz que estava
também no debate. A maioria era médico, e aí o questionamento dele era
exatamente << mas, qual é o risco para eu autorizar uma gestação, porque
a lei fala: se não há outro meio de salvar a vida da mãe >>. (Cristião
Rosas).

E aí o juiz falava assim, <<olha, quando você tem uma legislação que é
restritiva, e dentro da restrição da lei há um parágrafo, um inciso, por
exemplo, o código penal do 124, 125, 126, 127 é crime o aborto, mas tem
um parágrafo, 128, que permite em dois incisos. Esses dois incisos de
liberalização devem ser entendidos de uma maneira bem ampliada de
proteção a saúde, como é o caso>>>>. (Cristião Rosas).

2) A prática médica de avaliação do risco com indicação terapêutica de aborto faz


fronteira com a prática jurídica. O saber/fazer médico é oposto pelo saber/fazer jurídico que
não dá conta de entender o risco no âmbito da saúde, mas lhe compete avaliar o permissivo
para a realização do aborto. Esse embate é explicado por meio do uso de narrativas de
diálogos fictícios que simulam a relação entre estes dois campos de saber no exercício
biopolítico sobre o controle dos corpos das gestantes, governando sobre quem pode abortar
e sob quais circunstâncias:

Até porque a lei ela confunde mesmo * e se você * e o médico é uma


profissão muito prática, embora ele até entenda esse direito ele fala <<cara,
se eu for denunciar, eu não estou recebendo nada a mais para isso, aí vai
cair na mão de um promotor que não conhece direito isso, vai cair na mão
de um juiz que é da Opus Dei, como está cheio por aí>> e ele vai << sim,
mas não era para salvar a vida e tal pá pá pá>>. (Cristião Rosas).

3) Do ponto de vista do critério médico para atestar o risco na gestação, a


anencefalia se enquadraria nesse âmbito, tendo em visto o quadro clínico que ela
desencadeia no corpo da gestante. Entretanto, do ponto de vista jurídico quem corre risco
durante uma gestação de anencéfalo é o feto e não a gestante. A aproximação entre estes
dois extremos – risco fetal e risco materno – é feito pela alegação retórica de que a vida da
gestante corre risco:

124
Quando você solicita uma interrupção de gestação por risco de vida
materno, você * o anencéfalo está justificando com o aumento de risco de
vida materno, então, teoricamente eu não deveria está pedindo a
autorização por causa do anencéfalo (...). Mas a gente junta as duas coisas,
porque uma gravidez que não tem futuro, uma gravidez que não tem futuro,
em prol de um aumento de risco materno, mas na realidade o risco materno
é que fez ele autorizar, você está entendendo? (Osmar Colás).

Garantia: Não se pode dissociar risco materno de risco fetal. Quando está em pauta
o aspecto legal do aborto por risco de vida da gestante, risco materno e risco fetal devem
ser tratados como sinônimos, pois esta estratégia de gestão do risco oferece a possibilidade
da autorização legal do aborto:

Você imagina que se eu fizesse a mesma coisa com uma hipertensão, a


mãe é hipertensa. Então eu quero solicitar a interrupção, mas o feto tem
chance, o juiz não vai autorizar, então, na realidade o que fazem os juízes
tomarem essa decisão acertada é o fato de aquele feto não ter chance
nenhuma (...). (Osmar Colás.)

Apoio: Os médicos precisam informar aos profissionais da área jurídica os riscos e


os quadros clínicos das mulheres que recorrem ao aborto. Este apoio oferece informação
para a construção do argumento que defende o trabalho em conjunto entre juízes e
médicos:

Porque eu não posso obrigar um juiz a compreender síndromes complexas


e nada disso. Então, via de regra, a gente mandava literatura em português
para o juiz, e o mesmo nós fazemos em todas as anomalias diagnosticadas
para as mulheres ou para os casais. (Thomaz Gollop).

Quadro VIII – Argumento II: Aborto não é crime

Proposição Sustentação

A legislação sobre o aborto Dados 1) Os debates entre a área médica e a


voluntário é passível de área jurídica acerca da legalidade do aborto
interpretações subjetivas. por risco de vida da gestante atestam a
amplitude de interpretações da letra da lei
sobre o tema.
2) A prática médica de avaliação do
risco com indicação terapêutica de aborto faz
fronteira com a prática jurídica.
3) Do ponto de vista do critério médico
para atestar o risco na gestação, a
anencefalia se enquadraria nesse âmbito,
125
tendo em visto o quadro clínico que ela
desencadeia no corpo da gestante.
Garantia Não se pode dissociar risco materno de risco
fetal.
Apoio Os médicos precisam informar aos
profissionais da área jurídica os riscos e os
quadros clínicos das mulheres que recorrem
ao aborto.

Argumento III: Aborto é um procedimento clínico

Na construção deste argumento é considerado o âmbito técnico dos métodos e


procedimentos para o abortamento como uma intervenção médica.

Proposição: O aborto (abortamento) é um procedimento médico que requer uma


série de protocolos que devem ser seguidos para assegurar a saúde da mulher e a ética do
médico que o realiza. Essa proposição é apresentada listando-se os procedimentos
burocráticos e protocolares que garantam a escolha segura e livre de dúvidas por parte da
gestante e que transpareça a ética médica na condução do procedimento:

Quando a gente vê que não há outro meio de salvar a vida da mulher,


salvar a vida da mulher e garantir salvar a vida da mulher, só pode ser feito
se a gravidez não existir. Por isso que a gente também entende que estas
gestações que não vão morrer em dez minutos, quinze minutos ou uma
hora, elas também são passíveis de interrupção. É claro, não é provável,
iminente. Nesse caso, como não há um risco iminente, há tempo sim de um
consentimento livre esclarecido ser feito. Essa mulher buscar ciência da sua
situação ou dar ciência de que conhece a sua situação e opta pelo
abortamento e nos solicita e nos autoriza a realizar essa interrupção.
(Jefferson Drezett).

Uso de dados:

1) A indicação da interrupção precisa ser corroborada por médicos especialistas.


Esse dado é apresentado para auxiliar na formulação do argumento de garantia do exercício
ético da profissão médica:

126
Nesse risco potencial que se sugere uma interrupção da gravidez, sim. Aí,
normalmente, é compartilhado com mais médicos e normalmente existem
recomendações, inclusive, no próprio parecer (...). E a recomendação é
que, além do médico ginecologista, o obstetra tenha pelo menos um outro
da especialidade que é o fator de risco: o nefrologista se é uma patologia
renal, uma cardiologista se é * enfim, que possa estar também assinando o
potencial risco de agravo de vida dessa mulher corre na gestação,
indicando a interrupção. (Cristião Rosas).

2) Antecipação terapêutica do parto e aborto terapêutico são procedimentos


diferentes. A construção desse dado para compor o argumento é feita descrevendo-se os
casos onde cada procedimento pode ser aplicado e sua diferenciação:

A gente * primeiro que existe um tempo. É lógico que existem algumas


patologias * se você vai fazer * qual é a diferença entre aborto e
antecipação do parto? Isso também é uma grande questão. Por exemplo, às
vezes nós temos pacientes que tem uma doença tão grave, tão grave, que
ela está no sexto mês de gravidez e a gente deveria antecipar esse parto,
tirar esse neném muito prematuro, para salvar a vida dessa gestante. Só
que eu pego esse neném muito prematuro, de seis meses e dou para o
pediatra, e o pediatra tenta fazê-lo sobreviver. Isto se chama antecipação do
parto. Muitos chamam de interrupção da gestação, é interrupção da
evolução da gestação; mas é antecipação, tira o neném antes e dou para o
berçário. Quer dizer, eu tenho a intenção de tentar fazer esse neném
sobreviver. Uma outra situação, é o aborto terapêutico, ou seja, aborto é
retirar um feto que não tem condição nenhuma de sobreviver, portanto é
interromper a vida desse feto, a possibilidade de vida, então aborto
terapêutico. E aí, existe uma outra grande discussão, para muitos médicos e
eu particularmente me sinto confortável dentro dessa situação onde a
gravidez, primariamente, deve ser interrompida até 12 semanas, porque até
12 semanas o feto não tem sistema neurológico central suficiente para
dizer assim <<tem vida>> .(Osmar Colás).

3) Na indicação terapêutica do aborto outros profissionais não-médicos são


acionados para acompanhar a gestante:

Olha, geralmente a gente trabalha com essas paciente em equipe


multiprofissional. Somos de serviço público, então essas paciente passam,
por exemplo, aqui na casa, a gente lida mais com estupro, mas tem a
medicina fetal, que trabalha com os [fetos] mal formados. Mas independente
disso, em todas, nas duas situações a equipe é a mesma. Equipe que
passa por psicóloga, por assistente social, tem a enfermeira que conversa
também. Então, e os médicos, então, no mínimo a pessoa, a paciente, é
vista por quatro profissionais diferentes que discutem cada um dentro da
sua área, alguns elementos. (Osmar Colás).

127
Tem um médico que, normalmente sou eu, que atendo; tem uma equipe
que faz o ultra-som e faz a coleta de exame que, normalmente, hoje em dia
é comigo. Eu passo o resultado e quando o resultado é desfavorável eu
encaminho e sugiro a entrada da [psicóloga] Daniela Pedroso [...] que
atende os casos pra mim aqui. (Thomaz Gollop).

Garantias:

1) A indicação terapêutica do aborto não é uma decisão de um único médico, o


trabalho em equipe é fundamental na busca pela saúde e bem-estar da gestante. Essa
garantia é colocada para apoiar a proposição central na lógica do tratamento do aborto
como um procedimento clínico. Registros em prontuários, reuniões com equipes médicas, a
atuação de profissionais não-médicos e informações dadas às gestantes são enumeradas
como passos de um procedimento:

Nessa situação, documenta-se muito fortemente * a gravidade da patologia


no prontuário. Pelo menos no nosso hospital a gente, os chefes junto com
os residentes colocam que foi discutido em equipe com o Dr. Fulano, Dr.
Fulano e Dr. Fulano, que foi uma decisão coletiva, que a paciente foi
informada, orientada, esclarecida sobre esses riscos. Quando é uma menor
tem que chamar a mãe, o responsável legal, ou quando há dúvida sobre
essa capacidade da pessoa de decidir, porque às vezes a pessoa não está
compreendendo o risco. (Cristião Rosas).

(...) mas ela optando pelo abortamento o que é que a gente procede do
ponto de vista interno: nessas circunstâncias a gente acha interessante ter
um termo de consentimento dessa mulher porque não são casos de risco de
morte iminente. (Jefferson Drezett).

E depois há um termo de aprovação interno. Que é uma situação um pouco


diferente. Um termo de aprovação interno onde o medico, o psicólogo, o
assistente social, o diretor do hospital, todos estão cientes, estão aprovando
a realização do abortamento. No mais, os documentos que a gente utiliza
são documentos comuns que são exigidos pela Secretaria do Estado da
Saúde, são os habituais para todo e qualquer procedimento, nesse caso
não deixa de entrar dentro das rotinas. E é claro, dentro dessa
documentação, do prontuário, vão ter todos os exames possíveis e
pertinentes. Vai ficar ali registrado formalmente em prontuário. O parecer da
Psicologia da instituição, o parecer do Serviço Social da instituição, o
parecer do médico da instituição, ou seja, tudo isso é feito da maneira
documentada da melhor forma possível. (Jefferson Drezett).

128
2) Relatos sobre a relação médico-paciente no processo de comunicação de risco e
indicação do aborto também é usado como garantia na construção do argumento do aborto
como um procedimento clínico:

Eu falo para ela que existe a possibilidade, que existe um processo, que ela
pode solicitar e aí ela vai ter que passar por todo um processo, um processo
* legal, de documentos: tem que fazer um laudo, tem que fazer um laudo
realizado por pelo menos dois médicos, ou até mais, três, quer dizer, um
especialista em ultra-som, mais um obstetra, se ela tem uma doença clínica
associada, mais um clínico. Então, no mínimo dois médicos são
obrigatórios, um especialista da área que está indicando e mais o obstetra
(...). No mínimo esses dois para fazer o laudo, anexar os exames e
encaminhar para o juiz, isso no caso do feto malformado, no caso de risco
de vida não precisa tudo isso. O risco de vida materno, a mãe * você explica
para ela, ela faz uma solicitação, porque já está no Código Penal, então eu
não preciso, eu interrompo a gestação, anoto no prontuário e acabou.
(Osmar Colás).

3) O tratamento médico do aborto como um procedimento é diferente quando se trata


do serviço particular. Na realidade de uma clínica particular, que atende um segmento social
privilegiado economicamente, os procedimentos seguem outra lógica: há uma espécie de
“proteção” do médico que acompanha o caso quando esta já é sua paciente, em que ele se
responsabiliza pela condução do caso. Quando a gestante não é sua paciente de pré-natal
faz-se os encaminhamentos para outros serviços. Essa garantia é apresentada usando
narrativas que refletem o diálogo entre os médicos e os serviços e as estratégias para fazer
a gestante lograr a autonomia da escolha pelo aborto sem ser criminalizada:

Quando as pacientes são minhas de pré-natal eu assumo [o aborto], mas


quando elas não são minhas nós temos duas alternativas. É uma situação
que permite uma interrupção legal, eu encaminho, oriento o advogado, faço
todo o tramite para a pessoa poder tranquilamente acionar o judiciário, e
falo com o médico ou médica que está atendendo <<olha, fulana tem um
bebê assim e assado e nós vamos pedir um alvará judicial, você quer
atender?>> Hoje em dia um bom número atende, quando não atendem vai
para o serviço de aborto legal (...). (Thomaz Gollop).

Apoios:

1) A indicação terapêutica do aborto é realizada ao longo de um processo que


envolve a construção coletiva da avaliação do quadro clínico da gestante. Essa
argumentação é construída para fundamentar a garantia de que a indicação de aborto não é
uma decisão médica individual.
129
Essa pessoa é tratada desde o primeiro momento que ela chega na
instituição da maneira mais aberta possível. Como o caso está chegando eu
não tenho nenhuma condição de dizer se ele será ou não será provável. Há
uma série de questões a serem vistas, há reuniões para decidir por isso.
Veja bem, tudo isso é para garantir a melhor qualidade possível para o
atendimento a essa mulher, além de cumprir, evidentemente, o
ordenamento jurídico. Mas a melhor qualidade de atenção possível não
pode ser definida no momento da primeira consulta. Isso vai se construindo
no decorrer dessas consultas e isso é avisado para essa mulher desde o
primeiro momento que ela chega. Nós vamos verificar e checar, nós vamos
avaliar tudo que é possível para ser feito o máximo possível, e se realmente
se constatar que há um risco de morte, que há um risco para a vida da
senhora e a senhora optar pela interrupção da gestação nós vamos
empreender a essa interrupção de gestação. (Jefferson Drezett).

2) O termo de consentimento é um documento que assegura a proteção ética do


médico e da própria gestante quanto ao risco que se corre, tanto quando se decide pelo
aborto quanto se decide pela manutenção da gestação, principalmente quando a decisão
diverge da avaliação médica. A gestão do risco, nesse âmbito, se insere na margem da
transgressão da orientação médica como meio de garantir a escolha por correr risco, por
parte da gestante, e desresponsabilização/desculpabilização do médico frente a essa
decisão:

Existe um termo de não aprovação. Isso é nos casos onde, alguns poucos
casos, onde a gente não aprova o procedimento por alguma razão, digamos
que a gente não tenha encontrado justificativa técnica * quando o risco é
vago, inconsistente, não é condizente com os dados descritos pela literatura
médica. Então nesses casos a gente toma cuidado de colocar, pelo menos
colocar esse termo ou aprovação e justificar esse termo. Porque
eventualmente se a mulher discordar dessa colocação profissional e de
alguma maneira requerer * isso consta nos motivos porque não foi
interrompido. Um outro termo que a gente também usa e iria me
esquecendo de dizer, é no caso da mulher, durante o procedimento, onde a
gente encontra um risco muito alto e elevado, um risco que realmente
justifique a interrupção * dela * dizer não, eu mudei de idéia, eu conversei,
por exemplo, com o meu orientador religioso, minha referencia religiosa e
decidi que não vou realizar a interrupção. Nesse caso, igualmente, a gente
pede que ela assine um termo que ela estava ciente, esclarecida. Esse
termo inclusive é especifico, não é um termo pré *; claro o formato dele já é
pré-codificado, mas todo o formato com todos os quesitos esclarecendo o
risco é colocado nominalmente, colocado numericamente e ela assina.
Mesmo conhecendo todos esses riscos, mesmo conhecendo as
conseqüências possíveis e optando por não interromper essa gestação.
Isso a gente também acha bastante importante porque não é para torturar a
130
mulher a fazer, é porque se no final das contas acontecer algo realmente
grave e a família, por exemplo, requerer porque o hospital não realizou essa
interrupção então tem documentado dizendo que a gente respeitou o direito
de escolha daquela mulher e esse direito de escolha foi extremamente
esclarecido; era ciência dela e a opção dela para não interromper a
gestação foi documentada num termo específico para isso. Esse é um outro
cuidado que a gente toma que também é importante documentar a
autorização e também que documente que ela não vai realizar uma
interrupção, no caso, a vida dela corre risco. (Jefferson Drezett).

Quadro XI – Argumento III: Aborto é um procedimento clínico

Proposição Sustentação

O aborto é um procedimento médico Dados 1) A indicação da interrupção precisa ser


que requer uma série de protocolos corroborada por médicos especialistas.
que devem ser seguidos para 2) Antecipação terapêutica do parto e
assegurar a saúde da mulher e a aborto terapêutico são procedimentos
ética do médico que o realiza. diferentes
3) Na indicação terapêutica do aborto
outros profissionais não-médicos são
acionados para acompanhar a gestante
Garantias 1) A indicação terapêutica do aborto não é
uma decisão de um único médico, o
trabalho em equipe é fundamental na
busca pela saúde e bem-estar da
gestante.
2) Relatos sobre a relação médico-
paciente no processo de comunicação
de risco.
3) O tratamento médico do aborto como
um procedimento é diferente quando se
trata do serviço particular.
Apoios 1) A indicação terapêutica do aborto é
realizada ao longo de um processo que
envolve a construção coletiva da
avaliação do quadro clínico da
gestante.
2) O termo de consentimento é um
documento que assegura a proteção
ética do médico e da própria gestante
quanto ao risco que se corre

Argumento IV: Aborto é o desfecho da gestação de risco

131
Na construção deste argumento o aborto é apresentado como o desenlace de uma
trama narrativa sobre gestação de risco.

Proposição: Complicações na gestação e no estado de saúde da gestante podem


levar ao aborto induzido, por risco de vida da gestante. Essa proposição é apresentada para
afirmar a condição do aborto como um procedimento terapêutico para salvar a vida da
gestante:

Tendo isso posto, tendo isso claro, que existe indicação, que existe risco de
morte de fato e há indicação de interrupção da gestação, o processo é
discutir com essa mulher. Nessa discussão, evidentemente nós não
estamos falando *, discutir alguma coisa depois dessa mulher ter recebido a
atenção do Serviço Social, atenção da Psicologia e ter recebido atenção
médica do ponto de vista ginecológico, quer dizer, como é que está o
quadro de gestação dela. Isso é importante porque, conforme os dados
gestacionais, nós vamos usar uma ou outra técnica de interrupção de
gestação e isso pode envolver procedimentos diferentes e cuidados
diferentes do processo do abortamento. (Jefferson Drezett).

Uso de dados:

1) A precisão na avaliação do risco é importante para a assistência à saúde da


mulher grávida que vai abortar. Esse dado é apresentado a partir da narrativa de um caso
clínico de uma gestante que teve o risco diagnosticado de maneira precisa:

O último caso que nós fizemos no ano passado era, se tratava de uma
diabética grave, já com dano na função renal, com dano da visão, numa
situação realmente muito delicada de saúde (...). Ela já chegou para gente,
nesse caso a gente conseguiu orientar antes até da chegada, ela já chegou
com dois pareceres de duas instituições muito respeitadas, de dois
endocrinologistas sendo absolutamente claros em todo relatório da doença
dela, o risco de morte, o claro risco de morte e inclusive os dois pareceres
dizendo que havia indicação da interrupção da gestação. Então, era
realmente muito importante que isso fosse colocado para essa mulher, e
isso considerando que ela já chegou com os pareceres prontos, agilizou os
tramites internos, esclarecimentos internos, e ela já chegou muito bem
esclarecida do risco muito alto que ela tinha de morte. (Jefferson Drezett).

2) O diagnóstico precoce de risco e consequente indicação terapêutica do aborto


minimizam as possibilidades de complicação do quadro clínico da gestante e o

132
procedimento pode ser feito com maior segurança. Novamente, a narrativa de um caso de
gestação de risco é usada para somar ao argumento informações sobre a conduta médica
no trato com a relação entre risco e aborto:

O outro caso que nós tivemos foi de uma moça muito jovem, dezenove
aninhos de idade com uma cardiopatia extremamente severa, de Minas
Gerais, do estado de Minas, de um outro estado. Uma cardiopatia muito
severa, que veio de lá com um relatório *, a gente via nas entrelinhas do
relatório um temor imenso dos médicos, de uma importante instituição de
Minas, a respeito do risco de morte dessa mulher e isso tudo foi
corroborado, foi chancelado aqui pelo instituto (?) que colocou uma situação
de risco gravíssimo de morte. Era uma gestação muito inicial, a gente fez
uma interrupção de dois minutos, três minutos levamos pra fazer a
interrupção, rápido, fez o pós-operatório na nossa UTI, a gente tem uma UTI
pra oferecer pra esses casos assistência depois da cirurgia sem nenhum
tipo de problema. (Jefferson Drezett).

Esse mesmo dado é apresentado num relato mais detalhada e fixado numa
sequencia narrativa particular e específica sobre a relação médico-paciente. A narrativa é
focada no conhecimento e interesse do médico pelo contexto social, econômico e afetivo da
vida da gestante:

Eu tive a mais recente, uma paciente que eu recebi, eu não posso dizer o
nome, logicamente, mas que eu recebi e que ela é de * Angola. E essa
moça tinha uma doença hematológica grave, grave, porque ela tinha uma
anemia * uma anemia falciforme, uma forma chamada forma major (?),
muito grave. Essa menina tinha 19 anos, mas ela já tinha mais de trezentas
transfusões de sangue. Ela começou a manifestar as crises dela de anemia
falciforme grave desde a infância. O pai dela, muito rico lá em Angola, dono
de uma cadeia lá, parece que de super mercado, do comércio, mandou ela,
desde cedo, morar na Inglaterra. E na Inglaterra, ela morava lá na Inglaterra
e era tratada lá na Inglaterra. Num determinado momento ela começou a ter
crise de falcização, lá na Inglaterra eles não conseguiram mais controlar, aí
ela foi para um centro grande não * minto * perdão, essa menina não morou
na Inglaterra, morou em Portugal, ficou morando em Portugal, quando num
determinado momento eles não conseguiram controlar, ela foi para
Inglaterra. Na Inglaterra não conseguiram controlar a anemia falciforme
dela, ela foi para Cuba, chegou a Cuba foi uma grande decepção, porque
ela foi atrás de uma propaganda fajuta, chegou a Cuba foi uma decepção,
piorou e veio parar no Brasil. E aqui no Brasil ela foi ao serviço da
Beneficência Portuguesa e nesse serviço eles conseguiram controlar a
falcização dela. Aí ela estava morando aqui, bem e tal. E ela já tinha um
namorado, desde Angola, que era brasileiro, e terminou engravidando, e o
desespero bateu porque o risco dessa paciente de falcizacão na gravidez é
muito grande. A anemia falciforme na gravidez por si só, mesmo a anemia
menos grave já é arriscado; essa moça tinha um altíssimo risco. Aí o
pessoal da Beneficência Portuguesa me encaminhou para * solicitando a
133
interrupção da gestação, sabendo que mesmo com a interrupção da
gestação essa paciente iria ter uma crise de falcização. Essa paciente foi
comigo, eu constatei tudo fiz a internação dela no Hospital São Paulo, fiz *
anotei no relatório, fiz todo um relatório de risco. Falei, apresentei à família,
discuti com ela, houve um consenso, quer dizer, houve um consentimento e
nós fizemos a interrupção na Escola Paulista de Medicina. E a interrupção
foi rápida, tranqüila. Fiz com a técnica de aspiração, que foi muito rápida, a
paciente internou, foi feito muito rápido, e ela tinha, como o grupo que
estava acompanhando ela era da Beneficência Portuguesa, o grupo pediu
que, após interromper, já a levasse pra Beneficência porque eles tinham
certeza que ela iria fazer uma crise de falcização grave. E foi verdade, eu fiz
a interrupção e quando foi duas a três horas depois ela já começou com
dores articulares. Mas ela foi removida para Beneficência por intenção dela,
por pedido dos médicos e dela mesma e deu continuidade, e trataram e
tudo bem, ela evoluiu bem, e sem problema. Mas é uma paciente que não
deve engravidar, o risco de gravidez para ela é muito alto, muito, muito alto.
Então, esse foi um dos últimos casos que eu tive, foi uma anemia falciforme
grave, que ela veio com a solicitação da equipe da hematologia da
Beneficência Portuguesa, e eu fiz a interrupção, e um processo simples, por
quê? Porque como é legal eu informei, fiz uma carta para Diretoria do
Hospital, a Diretoria Clínica, comunicando o caso; escrevi no prontuário,
internei e fiz o procedimento sem problema nenhum. (Osmar Colás).

3) Na rotina do serviço particular de assistência à gestação de risco, o aborto por


risco de vida da gestante não se justifica apenas quando a gestante corre perigo. O
diagnóstico de uma síndrome complexa do feto também entra na formulação do risco com
indicação de aborto. Este dado é organizado por meio de uma narrativa generalizada de
casos de gestação de fetos com síndrome de Down27:

E aí nós mudamos a orientação, a gente discute a gravidade do caso,


permite que a mulher chore, que pergunte e hoje a gente tem a consciência
de que o trauma é de tal ordem de grandeza que você muitas vezes precisa
esperar sedimentar o diagnóstico para daí elas começarem a pensar no que
vão fazer. Entendeu? Isso vem automaticamente, você fala para uma mãe
que o diagnóstico deu Síndrome de Down, ela sabe o que é Síndrome de
Down e ela vai começar a pensar o que ela vai fazer. Aí muitas vezes não é
necessário você chegar para ela e perguntar <<como é, você vai
interromper ou vai manter?>> Não precisa, porque no momento que ela
vem procurar um diagnóstico e ela sabe que ela tem um risco maior do que
uma menina de 20 anos, ela sabe que, hipoteticamente, poderá vir um

27
Síndrome de Down ou Trissomia do cromossoma 21 é um distúrbio genético causado pela presença de um
cromossomo 21 extra, total ou parcialmente. A síndrome é caracterizada por uma combinação de diferenças
maiores e menores na estrutura corporal. Geralmente a está associada a algumas dificuldades de habilidade
cognitiva e desenvolvimento físico, assim como de aparência facial. A síndrome de Down é geralmente
identificada no nascimento, mas pode ser diagnosticada após o primeiro trimestre da gestação através de exame
ultra-som. Pessoas com síndrome de Down podem ter uma habilidade cognitiva abaixo da média, geralmente
variando de retardo mental leve a moderado. Esta síndrome não é classificada como malformação fetal
incompatível com a vida.

134
diagnóstico desfavorável. Então isso, mais ou menos claramente, é uma
coisa que está em questão. Então, não precisa forçar muito. (Thomaz
Gollop).

4) O risco ocasionado pela malformação fetal também pode resultar em aborto.


Mesmo não se enquadrando no permissivo legal que garante o direito ao aborto no caso de
risco de vida materno, a gestação de feto com malformação pode ser interrompida com base
nesse permissivo, desde que a argumentação médica e jurídica ateste o risco para a
gestante. Esse dado é articulado argumentativamente num relato de um caso pioneiro de
autorização de aborto de feto anencefálico. A riqueza de detalhes e de personagens é
usada para garantir a veracidade da narrativa:

(...) a Kátia Correia, que é um exemplo muito gritante, era uma moça, na
época, com vinte e poucos anos, e que foi uma parceira nossa de enorme
valor, porque nós chegamos para ela na época e falamos <<olha Kátia,
nunca foi pedido alvará em São Paulo, e tem alto-risco de ele não ser
concedido, e se ele não for concedido você não vai poder interromper essa
gravidez, porque quem colocar a mão em você vai para cadeia porque está
afrontando uma decisão judicial>> E ela topou essa parada, e na época a
Silvia Pimentel, que você conheceu, nos indicou uma advogada que
patrocinou essa causa, que por sinal é católica também, muito católica, não
pouco católica, muito católica. E essa advogada, na época, que hoje
também e desembargadora, me fez uma sabatina monumental no escritório
dela, muito para saber o quão firme eu estava nessa decisão e para me
dizer muito claramente que se não fosse deferido isso poderia representar
um grave problema e eu me lembro que eu suava em bicas, porque eu tinha
a dimensão de que era uma coisa grande, mas não tinha essa dimensão
dos riscos de uma não concessão porque para mim, vinte anos mais jovem,
era tão óbvio que isso tinha que ser concedido. E eu só vim amadurecer
anos depois que nada nessa área é obvio. E aí foi concedido, ela foi muito
bem atendida e uns dois ou três anos depois engravidou de novo de um
novo anencéfalo, e interrompeu de novo, aí ela se separou e há uns dois
anos atrás ela voltou com um novo marido, já na beira dos 40 anos
querendo saber o que eu achava de ela engravidar de novo. (Thomaz
Gollop).

Garantia: A interrupção da gestação como decorrência do risco de vida para a


gestante precisa ser um procedimento seguro, pois é importante que a saúde reprodutiva da
gestante seja salvaguardada após o procedimento. Tal garantia é construída por meio de
relatos que refletem o diálogo entre médico e paciente na condução de casos de indicação
de aborto:

135
Se eu der um diagnóstico para ela, muito bem, o que eu tenho que fazer? A
pergunta da paciente <<está bom, eu tenho esse tumor, eu tenho essa
doença, estou grávida, como é que eu posso fazer?>>. Bom, o tratamento
tem que ser imediato << ah, eu vou ter que operar?>> <<É, o ideal seria
ressecar o tumor, por exemplo, e entrar automaticamente com a
quimioterapia>> << Está bom, mas isso não vai fazer mal para o meu
bebê?>> <<Aí é que está! Nós não vamos poder fazer quimioterapia você
estando grávida, porque vai causar transtorno, é incompatível com o teu
quadro>> << e se eu não fizer>> << você pode morrer, porque a evolução
desse quadro se dá geralmente em dois à seis meses, e você está com
diagnóstico, por exemplo, de gestação inicial>>. Entendeu? Aí você começa
a sensibilizar. Qual seria a sua * qual as possibilidades que nós temos? Aí
você pergunta para ela <<quais as possibilidades? Você ressecar o tumor, e
entrar automaticamente com o tratamento, porque antes disso você
precisaria interromper, não dá para tomarmos as três atitudes num único
momento>>. Aí, normalmente, vem uma questão << mas se eu fizer isso
depois eu vou poder ter filho?>> Entendeu? Ela quer saber com relação a
fertilidade dela, como é que vai ficar quer dizer, então são coisas que vem
tudo junto. (Joselene Breda).

Apoio: A gestante de risco que procura o serviço de aborto legal, geralmente, já tem
em mente a possibilidade de ser submetida ao aborto. Este apoio é apresentado para ajudar
a construir a aceitabilidade da razão pela qual o aborto induzido pode ser configurado como
o desfecho da gestação de risco:

Mas quem nos busca, já nos busca solicitando, averiguando a possibilidade


de interromper essa gestação. Isso nem sempre resulta num abortamento
porque nem sempre a informação que é transmitida para o paciente denota
ou esclarece a real gravidade da situação. Às vezes, a situação é muito
mais grave do que aquela mulher está imaginando. E ela está até com uma
noção muito vaga do risco que ela corre. Por outras vezes aquilo que é
colocado como risco, e a gente já viu isso acontecer com um médico, não
configura risco que exija ou que coloque essa mulher sob alguma pressão
para realizar o abortamento, às vezes o risco é tão baixo e tão insignificante
que há um equivoco da percepção do médico que a encaminhou. (Jefferson
Drezett).

Quadro X – Argumento IV: Aborto é o desfecho da gestação de risco

Proposição Sustentação

Complicações na gestação e no Dados 1) A precisão na avaliação do risco é


estado de saúde da gestante podem importante para a assistência à saúde da

136
levar ao aborto voluntário. mulher grávida que vai abortar.
2) O diagnóstico precoce de risco e
consequente indicação terapêutica do aborto
minimizam as possibilidades de complicação do
quadro clínico da gestante e o procedimento
pode ser feito com maior segurança.
3) Na rotina do serviço particular de
assistência à gestação de risco, o aborto por
risco de vida da gestante não se justifica
apenas quando a gestante corre perigo
4) O risco ocasionado pela malformação
fetal também pode resultar em aborto
Garantia A interrupção da gestação como decorrência do
risco de vida para a gestante precisa ser um
procedimento seguro, pois é importante que a
saúde reprodutiva da gestante seja
salvaguardada após o procedimento.
Apoio A gestante de risco que procura o serviço de
aborto legal, geralmente, já tem em mente a
possibilidade de ser submetida ao aborto.

Argumento V: Aborto pautado pelos valores morais dos médicos

Neste argumento, a posição sobre o aborto é fundada em crenças morais e valores


éticos que embasam a opinião e a atitude médica frente a legalidade da sua prática.

Proposição: A crença moral do médico acerca da legalidade do aborto nem sempre


condiz com a sua prática clínica.
Esta afirmativa, posta como proposição, visa organizar o argumento de defesa da
influência das crenças morais dos médicos na prática do aborto, ou seja, o fato de o médico
acreditar na legalidade do aborto por risco de vida da gestante não quer dizer que ele
realizará o procedimento:

Mas ainda não é significativo da maioria dos médicos e mesmo aqueles que
têm para si, que acharam que deveria ser legalizado e despenalizado
nessas circunstancias e que deveria ser oferecido no serviço público de
saúde, é * uma coisa é ele achar que é direito a outra coisa é ele sentar no
banquinho e fazer o aborto. (Cristião Rosas).

Uso de dados:

137
1) O parecer do diagnóstico de risco com indicação de aborto não deve transparecer
a crença moral do médico sobre o procedimento. Esse dado é usado como informação para
atestar a necessidade de haver uma espécie de neutralidade moral entre o que deve ser
indicado como intervenção terapêutica para salvar a vida da gestante e a crença moral do
médico sobre o aborto:

(...) evidentemente que o parecer não é uma opinião necessariamente sobre


a interrupção, porque podem prevalecer opiniões de caráter religioso, de
caráter pessoal. Mas que a gente busca conhecer de que risco nós estamos
falando e se a gente tem ou não documentado em literatura qual é a
mortalidade que envolve aquela determinada situação clínica, aquela
determinada situação que a mulher vive. (Jefferson Drezett).

O mesmo vale para o médico que vai realizar o procedimento do aborto:

Eu acho que quem trabalha com isso, a gente tem que saber ser ouvinte
atento e saber segurar as próprias convicções, as próprias ideologias,
cultura e religião; é a minha não é a dela. É o seguinte: eu estou aqui, se ela
quiser decidir, muito bem, eu estou aqui, eu vou atender, a minha postura é
essa. (Joselene Breda).

2) Há, na classe médica, preconceito e descriminação contra os médicos que


realizam aborto voluntário. A posição majoritária de condenação moral do aborto
desencadeia comportamentos depreciativos direcionados aos médicos que defendem a
realização do aborto como uma prática moralmente correta:

O negócio é o seguinte, como os médicos são preconceituosos, no grosso,


se eu atendesse tudo aqui, eles iriam chamar isso aqui de clínica de aborto,
e dizer que eu estou ganhando dinheiro em cima desses casos, e dizem
mesmo eu não fazendo. (Thomaz Gollop).

Garantia

A prática médica vai de encontro às crenças da Igreja Católica, o que gera disputas
sobre o estatuto de verdade defendido por cada uma dessas instituições. Na elaboração
dessa garantia, defende-se a ilegitimidade do espaço das crenças religiosas na
consideração da vida que merece ser vivida, configurando a rivalidade entre o exercício do
biopoder médico e o exercício do biopoder da Igreja:

138
Houve época da Igreja [católica] aonde os médicos eram combatidos, por
quê? Porque os médicos interferiam na lei divina. A Igreja não gostava dos
que usavam procedimentos que iam contra os princípios da lei de Deus, ou
seja, se uma paciente, se uma pessoa tinha que morrer porque a lei de
Deus queria se o médico interviesse naquilo estaria alterando a lei de Deus.
E aí eu pergunto para você, essa competição médico versus Deus, será que
ela deve existir, será que ela deve ser levada em conta? Se ela for levada
em conta, você vai diminuir a sua possibilidade de salvar vidas de mulheres,
se ela não for levada em conta você vai ampliar a sua possibilidade de
salvar vida de mulheres. (Osmar Colás).

Apoios:

1) A concepção de vida e do início da vida não é passível de ser corroborada por


estudos científicos e, portanto, é plural. Esse apoio é construído para ajudar na construção
de factibilidade da garantia do argumento central (o aborto é pautado pela moral do médico).
É formulada a partir do uso de metáforas e analogias que visam contestar a crença em um
governo de ordem divina sobre a vida:

Hoje você sabe que o conceito de vida é neurológico, não é verdade?


Neurológico. Então, se você tem um cérebro funcionando você está vivo, o
cérebro de um feto de até 12, 13, 14 semanas ele não tem ainda nenhuma
área nobre funcionando, ele é só reflexo; ele não sente dor, ele não tem
emoção, ele não tem nada porque ele não tem sistema nervoso. A área
nossa, mais jovem do nosso cérebro que é a que desenvolveu o ser
humano que é o neocórtex não existe, está começando rudemente, mas ela
não tem função; é ela ainda não tem função, é só um monte de células que
no futuro vai ser. Então esse cérebro ainda não funciona, então esse feto
não sofre, não tem sentimento, não tem personalidade, não tem dor, não
tem absolutamente nada e a meu ver nem alma. Por quê? Porque essa
história de alma é um outro conceito filosófico, que assim, ela existe? A
gente não sabe, a gente quer acreditar que ela existe. Mas base científica
não tem. O que nós sabemos é que o ser humano tem uma energia por
conta dos elétrons, dos átomos que estão aí. E eu costumo brincar, dizendo
o seguinte, imagine que o ser humano, como uma lâmpada, da mesma
maneira que uma lâmpada, por isso tem aquele filamento dela, que é o
sistema nervoso dela. Se aquele filamento está funcionando, a energia
elétrica que é a mesma, que passa em todo circuito, quando passa por
aquela lâmpada ela acende. E essa mesma energia elétrica passou para
acender aquela lâmpada, passou para acender outra lâmpada que é de
outra cor, uma outra que é mais forte, uma outra que é mais fraca, uma
outra que é colorida, uma outra que tem uma forma diferente, aí vai para o
computador. Quer dizer, a mesma energia vai acendendo uma série de
corpos, mas é a mesma energia. Aí eu pergunto para você, será que essa
história de alma não é uma energia única? Que ela emite se o seu sistema

139
central está bom, te liga. Se o sistema nervoso* se ela chegar aí e não
funcionou, acabou. O corpo não está recebendo essa única energia. É uma
questão filosófica, mas o que acontece? Você vai ter que lidar com essa
questão an passant; ela não tem base científica, porque não tem Medicina
baseada em evidencia que prove que a alma existe. Mas, nós sabemos que
existe uma energia que é a energia dos nossos elétrons é óbvio. Só de você
pensar uma série de elétrons e átomos se reorganizam e emitem onda
eletromagnética, essas ondas eletromagnéticas estão sendo emitidas para
tudo, inclusive para mim, está vendo ali [aponta para a lâmpada no teto] que
aquela luz é uma onda eletromagnética, é aí o que isso significa? Eu não
sei, mas que nós temos energia temos. (Osmar Colás).

2) Tratar o caso de gestação de risco com indicação de aborto como uma


experiência técnica é uma forma de conseguir neutralizar a interferência da crença moral
sobre a realização do aborto. Esse apoio é usado para explicar os sentimentos
contraditórios que se confrontam quando o médico se depara com esses casos:

(...) eu não vou falar para você que eu fico tranqüila não. Eu resolvo, porque
isso pra mim é técnico. É a mesma coisa que você chegar para mim e falar
<< poxa você não vai fazer o parto daquela mulher, ela está parindo, ela
precisa de alguém para assistir>>. É a mesma coisa, ela chegou com quatro
cartas, está aqui, está bom, risco materno, quem vai fazer isso? Só tem eu
ali, eu vou fazer, eu vou fazer. Mas, você gosta? Não; ninguém vai falar que
gosta, duvido, tenho certeza absoluta, nem aqui [no serviço de aborto legal].
(Joselene Breda).

Quadro XI – Argumento V: Aborto pautado pelos valores morais dos médicos

Proposição Sustentação

A crença moral do médico acerca da Dados 1) O parecer do diagnóstico de risco com


legalidade do aborto nem sempre indicação de aborto não deve transparecer a
condiz com a sua prática clínica. crença moral do médico sobre o procedimento.
2) Há, na classe médica, preconceito e
descriminação contra os médicos que realizam
aborto voluntário.to
Garantia A prática médica vai de encontro às crenças da
Igreja Católica, o que gera disputas sobre o
estatuto de verdade defendido por cada uma
dessas instituições..
Apoios 1) A concepção de vida e do início da vida
não é passível de ser corroborada por estudos
140
científicos e, portanto, é plural.
2) Tratar o caso de gestação de risco com
indicação de aborto como uma experiência
técnica é uma forma de conseguir neutralizar a
interferência da crença moral sobre a realização
do aborto.

Argumento VI: Aborto como uma experiência biográfica

Na construção deste argumento, a vivência do aborto é associada a episódios


biográficos da carreira profissional dos médicos.

Proposição: A experiência pessoal, relacionada com a vivência do aborto por alguém


próximo ao médico, ou profissional, relacionada com o cotidiano dos serviços que propiciam
o contato com mulheres que desejam abortar, sensibilizam os médicos para a compreensão
do aborto como uma escolha autônoma da gestante.

Existem médicos, por exemplo, que são contra o aborto, por princípios
pessoais, não ligados à religião. Porque eles são contra e acabou. Acham
que a mulher deve ter o filho e pronto, acabou e tal. Tudo Bem! Talvez uma
falta de vivencia com esse tipo de paciente (...). (Osmar Colás)

Essa situação * é assim, é o tal negocio quando você coloca na sua


decisão, e é muito difícil você tirar, essa elaboração que às vezes vem das
entranhas, quando começa a vida, quando começa a vida humana * a
experiência de vida que cada um tem sobre ela. É diferente você falar sobre
aborto para um médico ou uma médica que teve muito próximo de si, uma
filha, uma namorada, diante de uma gestação indesejada, num momento
crítico da vida e que passou pela experiência do aborto. E é diferente você
falar para um médico antigo e que não conversa sobre isso, católico, mais
ou menos praticante, nem sempre, mas muito preso com aqueles
pensamentos aquele * não é? E ele vai, então, ter valores diferentes, aí
para refletir (...). (Cristião Rosas).

Uso de dados:

1) A experiência de médicas mulheres nos serviços de aborto legal é atravessada


pela maternidade ou pelo desejo de maternidade. Nesse dado articulam-se, em pólos
opostos, a prática médica, profissional, e o exercício da maternidade. O dado é construído
para argumentar que, para algumas profissionais, realizar abortos, mesmo que para salvar a
vida da gestante, pode ser uma expressão da negação da sua própria maternidade ou pode

141
ser vivenciado como uma punição divina caso elas próprias não consigam engravidar.
Articula-se a esse dado, também, a narrativa sobre estar grávida e ter que assistir mulheres
que vão abortar, como a configuração do conflito moral que envolve o aborto induzido ou
voluntário.

(...) porque, assim, eu já tive várias amigas que trabalhavam comigo, assim,
umas que estavam tentando engravidar e não conseguiam, abandonavam o
serviço. É intuitivo sabe, teve umas que às vezes diziam, assim, << aí, eu
não quero mais trabalhar com interrupção, porque parece>>, sabe? Como
se * estivesse sendo castigada por isso * ou então, <<ai, eu não estou
conseguindo porque eu * >> então, vai embora, você está entendendo?
Então, assim, eu vejo muito, eu separo muito porque * assim, a minha vida
inteira eu quis ser mãe, eu * durante a minha primeira gestação eu trabalhei
até o nono mês, treinando um profissional para de repente continuar o meu
trabalho, porque era uma época que não tinha profissional no serviço.
Então, eu ali quase parindo, treinando os meninos mais novos que estavam
no setor comigo para que eles pelo menos continuassem o serviço pelo
tempo que eu ia ficar fora. E eu me incomodava muito mais, às vezes, de
atender, de estar gestante, e uma paciente muitas vezes vítima de estupro,
que esteve em situação de estupro, me vê naquela situação, ou risco
materno que é muito pior. Ainda bem que durante a gestação eu não atendi
nenhum caso, mas assim, isso é triste, me incomodava muito com isso,
porque a minha a minha história não é a história delas e a minha vida não
seria completa se eu não tivesse filhos. Então, eu entendo muito bem o que
é a maternidade e entendo que a decisão, muitas vezes, de interrupção, ela
é muito difícil, tanto para quem dá quanto para quem vai decidir pelo sim,
pelo não. Mas, numa situação, por exemplo, de risco de morte materna
talvez eu fosse egoísta, e quisesse me safar, principalmente se eu pudesse
ter mais filhos. Eu nunca pensei na possibilidade de concluir uma gestação
e não ter vida para poder pelo menos ouvir o choro de um filho meu, sabe?
Eu tenho dois, tive dois trabalhando com essa profissão. Então, eu vejo
muito assim, filho para mim não é só porque juntou um óvulo com um
espermatozóide, até mesmo porque a situação está tão banalizada e está
ficando tão prático, porque hoje em dia a mulher cogita selecionar, a gente
tem até novela que está mostrando, a mulher selecionando parceiro. Eu
vejo filho muito mais como uma continuidade, sabe? É a forma que eu tenho
de ficar aqui, eu vou embora, eu não me lembro de outra vida, você lembra
de outra vida que você tenha tido? Eu não me lembro. Mas os meus filhos,
eu me vejo nos meus filhos e eu me lembro dos meus avôs e vou lembrar
sempre dos meus pais, que ainda estão vivos. E tenho certeza que meus
filhos lembrarão de mim. Então, na verdade, eu penso muito nesse sentido.
Agora, a pessoa que está ali interrompendo, eu não penso naquele produto
que está indo embora, eu penso no universo que contém aquela pessoa
que está deitada ali precisando de mim; eu penso assim, porque senão eu
não consigo trabalhar. (Joselene Breda).

142
2) A experiência em serviços de aborto legal gera nos profissionais o envolvimento
político com a questão da legalização da prática do aborto e da sua defesa como um direito
da mulher.

(...) mas o que me fascina mesmo é a questão de trabalhar com essa


questão dos direitos, de * foi o destino que me colou quando eu era médico
do Jabaquara, que foi o primeiro hospital público que deu acesso ao aborto
legal (...). E, desde então, foi um evoluir. Eu aprendi muito fazendo isso,
com esse sofrimento das mulheres e estudei bastante essa questão, tentei
conhecer outros países em relação a essa discussão. (Cristião Rosas).

Garantia: Os médicos dos serviços de aborto legal são influenciados por importantes
profissionais da área do direito reprodutivo na sua formação. Essa garantia explica a razão
pela qual pessoas que são admiradas no exercício da profissão servem como modelo para
alguns médicos que estão no serviço de aborto legal. É apresentada enumerando e
nomeando estes profissionais em diferentes episódios da formação médica:

Eu tenho vinte e dois anos de ginecologia obstetrícia, alguns anos de


prática e minha formação é pela Universidade Estadual de Campinas com o
terceiro ano de * que na época era opcional, de residência em gestação de
alto risco e perinatologia (...). Fui aluno do professor Teonilo Bastos, um de
seus últimos alunos, um dos maiores orgulhos de toda minha carreira. Fui
aluno do professor Aníbal Faundes da Unicamp, portanto, absolutamente
contaminado, positivamente contaminado, pelas visões do professor
Faúndes e fui aluno do professor José Pinoti que foi o formulador da
Secretaria de Saúde da Mulher de São Paulo e estes são os três,
seguramente, grandes mestres e que eu os escuto muito e me
influenciaram muito a minha formação dentro dessa área em relação a
abortamento, a gestação de alto risco e risco de morte para as mulheres e
também na área de violência sexual. São as pessoas que foram
fundamentais na minha formação. (Jefferson Drezzet).

Quadro XII – Argumento V: Aborto como uma experiência biográfica

Proposição Sustentação

A experiência pessoal, relacionada Dados 1) A experiência de médicas mulheres nos


com a vivência do aborto por alguém serviços de aborto legal é atravessada pela
próximo ao médico, ou profissional, maternidade ou pelo desejo de maternidade.
relacionada com o cotidiano dos 2) A experiência em serviços de aborto
serviços que propiciam o contato legal gera nos profissionais o envolvimento
com mulheres que desejam abortar, político com a questão da legalização da prática
sensibilizam os médicos para a do aborto e da sua defesa como um direito da
compreensão do aborto como uma mulher.
escolha autônoma da gestante. Garantia Os médicos dos serviços de aborto legal são
. influenciados por importantes profissionais da
área do direito reprodutivo na sua formação.

143
Em síntese, na análise das construções argumentativas sobre aborto por risco de
vida da gestante, o argumento aborto é um direito da mulher teve como proposição a
assertiva da escolha pelo aborto ou pela manutenção da gestação pela gestante. Foram
usados como dados as seguintes informações: os ginecologistas começam a dar
importância à posição da gestante quanto a sua escolha reprodutiva; diálogos fictícios,
criados para reproduzir durante a entrevista a relação médico-paciente e; os conceitos
analíticos de autonomia e heteronomia. Como garantia, foram usadas as premissas: o
acesso à informação é o principal elemento de assertividade na decisão pelo aborto ou pela
manutenção da gestação e; a consideração da dimensão social do risco à saúde da
gestante. Como apoio, sustentou-se que impor à gestante a opinião médica sobre a
manutenção da gestação ou sua interrupção, invariavelmente, acarreta maiores riscos para
a mulher, principalmente se ela for menor de idade e incapaz, legalmente, de decidir com
autonomia.
O argumento aborto não é crime teve como proposição a afirmativa de que a
legislação sobre o aborto voluntário é passível de interpretações subjetivas. Os dados
utilizados foram: os debates entre a área médica e a área jurídica acerca da legalidade do
aborto por risco de vida da gestante atestam a amplitude de interpretações da letra da lei
sobre o tema; a prática médica de avaliação do risco com indicação terapêutica de aborto
faz fronteira com a prática jurídica e; a anencefalia atenderia os critérios médicos para
caracterização do risco materno, entretanto, do ponto de vista jurídico quem corre risco
durante uma gestação de anencéfalo é o feto e não a gestante. Como garantia, apresentou-
se a tese de que não se pode dissociar risco materno de risco fetal e o apoio sustentou-se
na assertiva de que os médicos precisam informar aos profissionais da área jurídica os
riscos e os quadros clínicos das mulheres que recorrem ao aborto.
Na construção argumentativa aborto é um procedimento clínico, a proposição central
versou sobre a consideração do aborto como um procedimento médico que requer uma
série de protocolos que devem ser seguidos para assegurar a saúde da mulher e a ética do
médico que o realiza. Foram usados como dados a defesa de que: a indicação da
interrupção precisa ser corroborada por médicos especialistas; a antecipação terapêutica do
parto e aborto terapêutico são procedimentos diferentes e; na indicação terapêutica do
aborto outros profissionais não-médicos são acionados para acompanhar a gestante. As
garantias foram apresentadas segundo as seguintes afirmativas: a indicação terapêutica do
aborto não é uma decisão de um único médico, o trabalho em equipe é fundamental na
busca pela saúde e bem-estar da gestante; relatos sobre a relação médico-paciente no
144
processo de comunicação de risco e indicação do aborto atestam a legitimidade do
argumento do aborto como um procedimento clínico e; o tratamento médico do aborto como
um procedimento é diferente quando se trata do serviço particular. As garantias foram
sustentadas pelos seguintes apoios: a indicação terapêutica do aborto é realizada ao longo
de um processo que envolve a construção coletiva da avaliação do quadro clínico da
gestante e; o termo de consentimento é um documento que assegura a proteção ética do
médico e da própria gestante quanto ao risco que se corre.
Na análise do argumento aborto é o desfecho da gestação de risco, a proposição
central afirmava que complicações na gestação e no estado de saúde da gestante podem
levar ao aborto induzido, por risco de vida da gestante. Foram usados como dados as
seguintes assertivas: a precisão na avaliação do risco é importante para a assistência à
saúde da mulher grávida que vai abortar; o diagnóstico precoce de risco e consequente
indicação terapêutica do aborto minimizam as possibilidades de complicação do quadro
clínico da gestante e o procedimento pode ser feito com maior segurança; na rotina do
serviço particular de assistência à gestação de risco, o aborto por risco de vida da gestante
não se justifica apenas quando a gestante corre perigo; o risco ocasionado pela
malformação fetal também pode resultar em aborto. A garantia fundou-se na tese de que a
interrupção da gestação como decorrência do risco de vida para a gestante precisa ser um
procedimento seguro, e o apoio afirmou que a gestante de risco que procura o serviço de
aborto legal, geralmente, já tem em mente a possibilidade de ser submetida ao aborto.
No argumento aborto pautado pelos valores morais dos médicos, a proposição
central defendeu que a crença moral do médico acerca da legalidade do aborto nem sempre
condiz com a sua prática clínica. Os dados usados foram: o parecer do diagnóstico de risco
com indicação de aborto não deve transparecer a crença moral do médico sobre o
procedimento e; há, na classe médica, preconceito e descriminação contra os médicos que
realizam aborto voluntário. Como garantia, foi aprestada a defesa de que a prática médica
vai de encontro às crenças da Igreja Católica, o que gera disputas sobre o estatuto de
verdade defendido por cada uma dessas instituições. Os apoios se sustentaram nas
premissas: a concepção de vida e do início da vida não é passível de ser corroborada por
estudos científicos e, portanto, é plural e; tratar o caso de gestação de risco com indicação
de aborto como uma experiência técnica é uma forma de conseguir neutralizar a
interferência da crença moral sobre a realização do aborto.
Na análise do argumento aborto como uma experiência biográfica, a proposição
central versou sobre afirmativa de que a experiência pessoal, relacionada com a vivência do
aborto por alguém próximo ao médico, ou profissional, relacionada com o cotidiano dos
serviços que propiciam o contato com mulheres que desejam abortar, sensibilizam os

145
médicos para a compreensão do aborto como uma escolha autônoma da gestante. Foram
usados os seguintes dados: a experiência de médicas mulheres nos serviços de aborto legal
é atravessada pela maternidade ou pelo desejo de maternidade e; a experiência em
serviços de aborto legal gera nos profissionais o envolvimento político com a questão da
legalização da prática do aborto e da sua defesa como um direito da mulher. Como
garantia, afirmou-se que os médicos dos serviços de aborto legal são influenciados por
importantes profissionais da área do direito reprodutivo na sua formação.

Capítulo 7

Últimas reflexões

Esta tese buscou responder ao questionamento sobre que noções de risco são
usadas por médicos obstetras para referendar a prática do aborto por risco de vida da
gestante. Para argumentar que, na impossibilidade de precisão matemática da avaliação e
cálculo do risco na gestação, aspectos subjetivos, como as crenças morais e religiosas, os
valores culturais e as experiências de vida, entram em cena para formular a noção de risco,
procuramos analisar os argumentos presentificados no discurso médico para a construção
dessa noção e das concepções de aborto associado ao diagnóstico de risco.

146
O caminho teórico percorrido fundou-se na noção foucaultiana de biopolítica para
articular a compreensão do aborto como um objeto de controle governamental e a
linguagem dos riscos como estratégia de efetivação desse controle.
A análise empírica se debruçou sobre os argumentos apresentados pelos/as
médicos/as, que realizam abortos por risco de vida da gestante, acerca de como o risco é
concebido nas gestações em que o aborto é uma possibilidade de manter/salvar a vida ou a
saúde da gestante.
Para ir da discussão teórica até a consecução da análise do material empírico
seguimos o seguinte percurso: apresentamos inicialmente os aportes teóricos que fundam a
racionalidade política baseada na biologia dos corpos e a concepção do aborto como objeto
de controle governamental; em seguida, buscamos a apreensão do conceito de risco no
campo da Saúde e na Clínica Obstétrica; o passo seguinte foi fazer uma descrição dos
procedimentos metodológicos assumidos para organização das informações que
posteriormente seriam analisadas e interpretadas a partir da abordagem argumentativa e,
por fim, apresentamos a análise das construções argumentativas sobre risco na gestação e
aborto por risco de vida da gestante. A análise buscou identificar e descrever os elementos
que constituem a organização argumentativa, para tanto foram empregadas as seguintes
noções: proposição, afirmação que contém estrutura e é apresentada como o resultado de
um argumento apoiado por fatos; dados, fatos ou evidencias que estão à disposição do
criador do argumento; garantia, premissa que consiste de razões, autorizações e regras
usadas para afirmar que os dados são legitimamente utilizados a fim de apoiar a proposição
e; apoio, premissa que é usada como um meio de ajudar a garantia no argumento.
No discurso médico, a construção argumentativa sobre a formulação do risco na
gestação, versou sobre a problematização do risco epidemiológico; do risco clínico na
gestação associado à patologia da gestante; do risco clínico na gestação associado à
patologia do feto; do risco gestacional pautado pelos valores morais dos médicos; da
caracterização do risco psicológico; e do risco gestacional pautado no exercício do poder
médico.
A análise da construção argumentativa sobre as concepções do aborto por risco de
vida da gestante abordou os seguintes argumentos: aborto é um direito da mulher; aborto
não é crime; aborto é um procedimento clínico; aborto é o desfecho da gestação de risco;
aborto é pautado pelos valores morais dos médicos; e aborto é uma experiência biográfica
Na argumentação sobre a configuração do risco na gestação, a organização
argumentativa para afirmar a dimensão probabilística do risco durante a gestação visou
enfatizar a dimensão preditiva, probabilística, temporal e espacial deste tipo de risco. Esta
proposição teve como propósito situar o risco para além e para fora do corpo da gestante,

147
sendo localizado no âmbito da população, produzido ou atribuído no domínio dos coletivos
humanos. O conceito de risco foi usado para indicar uma relação entre fenômenos
individuais e coletivos, expresso na linguagem matemática das probabilidades. A defesa
argumentativa, porém, recaiu sobre a consideração dos modos particulares dos médicos em
efetivar e interpretar esses cálculos.
Aspectos subjetivos, relacionados à história de vida de cada gestante foram
apresentados para atestar a particularidade da avaliação do risco. A contestação foi
apresentada na assertiva: alguns médicos definem o risco na gestação a partir da gravidade
da patologia que a gestante apresenta. A refutação da premissa que advoga pela dimensão
coletiva e populacional do risco, em detrimento de uma análise clínica e individualizada da
patologia da gestante, foi apresentada organizando o discurso em torno de casos hipotéticos
de gestação de risco, teve como objetivo explicar o porquê que em outros serviços de
saúde, diferente dos serviços de referência de aborto legal, risco é associado à patologia da
gestante e não à taxa de mortalidade materna.
A literatura médica sobre mortalidade materna foi usada como dado para informar a
respeito dos aspectos empiristas e científicos que fundamentam o cálculo do risco. As
tabelas de mortalidade e morbidade foram apresentadas como importante instrumento de
biopoder na mensuração e avaliação do risco. A estratégia biopolitica de fundamentar a
avaliação do risco em tabelas referenda a prática médica, ou seja, aufere confiabilidade a
avaliação. Esse dado foi usado para embasar a argumentação central que sustenta a
proposição de defesa dos aspectos particulares de cada gestante relacionados com
aspectos populacionais mais gerais. As publicações normativas do Ministério da Saúde
também foram usadas como dados para apresentar fatos e evidencias que ofereçam
validade e legitimidade ao modo de avaliar risco considerando as informações do governo.
Nesta construção argumentativa os biopoderes estão presentes no controle do corpo doente
que corre perigo por conta da gestação.
A garantia de que os cálculos probabilísticos devem ser considerados relacionando
às características individuais e particulares de cada gestante, foi usada para oferecer
racionalidade ao argumento de formulação do risco epidemiológico e afirmar a legitimidade
dos dados apresentados. A lógica segue o seguinte raciocínio: risco é um conceito analítico,
que focaliza as suscetibilidades individuais como determinantes do curso epidêmico de
determinadas patologias cuja capacidade mórbida é determinada a nível populacional. Tal
garantia surgiu nas entrevistas para explicar a comunicação do risco à gestante e enfatizar a
importância de compartilhar a avaliação do risco com a própria gestante. A premissa que
afirma que a relação entre a taxa de mortalidade materna e a patologia é mais assertiva no
cálculo do risco do que o percentual de risco apresentado pelo quadro clínico da gestante foi

148
usada como apoio na construção do argumento central de formulação do risco
epidemiológico.
Na análise da problematização do risco clínico na gestação associado à patologia da
gestante o perfil de risco das gestantes foi incorporado ao processo de identificação da(s)
doença(s) que ela apresenta. A premissa se fundou na assertiva de que a avaliação do risco
baseia-se no fato de as gestantes serem portadoras de doenças. Esta argumentação
sinalizou para a utilização do conceito clínico de risco sem se basear na aplicação direta de
um raciocínio fundado na probabilidade estatística, como acontece no risco epidemiológico.
Ou seja, o argumento foi construído em torno da concepção de risco individual. A
proposição foi apresentada para defender o caráter multidisciplinar da avaliação do risco na
gestação: a avaliação do risco deve ser realizada pelo médico especialista na patologia
apresentada pela gestante. Os participantes posicionaram os especialistas não-obstetras
como atores responsáveis pela confiabilidade da avaliação do risco e se auto - posicionaram
nos limites da prática obstétrica que os impossibilitam de avaliar com presteza o risco
associado a patologias não-obstétricas: No entanto, a investigação e a análise do risco
clínico na gestação não foram reduzidas à eficácia de procedimentos diagnósticos e
terapêuticos, incluindo também os aspectos emocionais, sociais e culturais na compreensão
do processo saúde-doença.
Narrativas ficcionais foram apresentadas para organizar o argumento de construção
do risco clínico, com a finalidade de atestar quadros clínicos preexistentes à condição de
gestação que requer a atuação de médicos não-obstetras. O objetivo foi justiçar a existência
da necessidade da escolha por um tratamento muitas vezes incompatível com a gestação
ou pela escolha da interrupção em virtude do risco decorrente da patologia da gestante.
Essas narrativas foram inseridas no argumento para evidenciar fatos que expressem
as experiências clínicas individuais dos participantes, e estas, por sua vez, foram integradas
aos conhecimentos acumulados sobre os mecanismos de doenças que colocam em risco a
vida ou a saúde da gestante. Os casos clínicos, apresentados como dados, explicitam o
objeto da clínica: a gestante considerada em suas particularidades individuais.
Relatos de casos fictícios também foram apresentados para oferecer informações
relacionadas à proposição central relacionada ao risco associado à patologia da gestante. A
construção argumentativa visou dar visibilidade as experiências da prática médica dos
participantes criando narrativas ficcionais baseadas em casos vividos pelos profissionais.
Um conjunto de razões, autorizações, procedimentos e regras foram usados como garantia
pelos participantes para afirmar a legitimidade dos relatos clínicos. Essa garantia, muitas
vezes foi apresentada como a necessidade de parecer ou laudo médico de especialistas
que atestassem o risco causado pela patologia da gestante. Narrativas de casos fictícios

149
também foram usadas como garantia para expressar os procedimentos clínicos adequados
em situações de gestação de risco. O argumento que sugere a análise da história de vida,
dos aspectos sociais, culturais e econômicos de cada gestante, de modo particular, foi
usado para explicar o modo de diagnosticar risco na clínica obstétrica.
Na problematização do risco clínico na gestação associado à patologia do feto, foi o
perfil de risco do embrião ou feto que estava em questão. Do mesmo modo que no risco
clínico associado à patologia da gestante, o risco foi incorporado ao processo de
identificação da(s) doença(s) que o feto apresenta.
Argumentou-se que doenças manifestadas pelo feto não indicam, de forma direta,
risco para a gestante. O risco decorrente de patologias fetais, sobretudo da anencefalia, é
um risco secundário, decorrente da situação clínica do feto e o risco para a gestante
constitui-se retoricamente, como um modo de defender o direito de não levar a gestação a
termo. Ou seja, os elementos da caracterização do risco para a gestante de um feto
portador de alguma patologia foram apresentados de forma retórica para o convencimento
de que, mesmo sendo o feto o doente, é a gestante que corre risco. O uso retórico do risco
para a gestante nestes casos justifica-se pela não legalização do aborto em casos de
patologias fetais. Esta proposição foi apresentada a partir de relatos de casos clínicos que
exemplificam a identificação e a análise do risco nos casos de patologia fetal.
A refutação desta proposição consistiu na afirmativa de que a patologia do feto não
justificaria a interrupção da gestação por risco de vida da gestante. Foi apresentada como
exceção à premissa da defesa argumentativa que considera o quadro de patologia do feto
como um quadro clínico de risco para a gestante.
As informações científicas que atestam que as gestações de fetos com malformação,
como a anencefalia, trazem risco para a gestante foram usadas para impor os fatos e as
evidencias de que há risco para a gestante em caso de anencefalia. Relatos de casos
clínicos que evidenciam o drama vivido por mulheres com gestação de fetos com alguma
patologia grave também foram usados como dados. Na construção do argumento, houve
uma preocupação em diferenciar o risco para o feto do risco para a gestante e da
participação da gestante na avaliação deste risco. Como dado apresentado na construção
retórica das conseqüências da anencefalia no corpo da mulher, foi defendida a tese de que
a evolução clínica do quadro de gestação de fetos anencefálicos é prototípica dos efeitos
nocivos à saúde e à vida da gestante em função da patologia do feto.
Os dados históricos sobre os primeiros alvarás judiciais que autorizaram a
interrupção de fetos anencefálicos foram usados para organizar a retórica que justifica o
permissivo legal do aborto por anencefalia como sendo enquadrado na não-criminalização
do aborto por risco de vida da gestante e o Código Penal foi usado como fonte de

150
informação para a possibilidade de interpretação da gestação de anencéfalo como gestação
de risco.
A afirmativa de que a morte inevitável do feto anencefálico justifica o aborto por risco
de vida da gestante foi usada como garantia para dar legitimidade aos dados apresentados
que indicaram que o feto anencefálico vai morrer em algum momento, seja dentro ou fora do
útero materno. O apoio a esta afirmativa foi apresentado assegurando-se que a vida do feto
não estaria mais em questão, já que a sua morte é premente.
Embora os riscos para a gestante tenham sido apresentados a partir de uma
construção argumentativa fundada em uma retórica de convencimento, de defesa da tese de
que a anencefalia do feto não levaria à morte da gestante, mas agravaria seu estado de
saúde, os riscos para a vida da gestante foram enfaticamente presentificados.
O argumento que versou sobre o risco gestacional pautado na moral dos médicos
tratou o risco com enfoque na dimensão dos valores e crenças morais, e, portanto, pessoal.
Nessa construção argumentativa a avaliação do risco foi determinada pelas biografias
pessoais e profissionais de cada médico. Essa construção foi apresentada como resultado
da argumentação sobre a influência de aspectos morais e ideológicos, relacionados à
liberalização do aborto induzido ou voluntário, na indicação terapêutica da interrupção da
gestação por risco de vida da gestante. A vivência pessoal do aborto e a crença sobre a
sacralidade da vida humana foram os dois elementos mais enfatizados na explicação sobre
as subjetividades presentes na avaliação do risco, considerados como sendo do âmbito
privado.
Outro elemento inserido na argumentação diz respeito ao exercício da maternidade.
A maternidade presumida/compulsória foi colocada como um impedimento moral para a
indicação do aborto por risco de vida da gestante. Este argumento foi apresentado
comparando-se a experiência do aborto por estupro, onde o desejo de ser mãe não estaria
presente, e o aborto por risco de vida, em que a maternidade já estaria latente.
Relatos de casos clínicos que atestam a divergência entre médicos na avaliação do
risco com indicação de interrupção da gestação foi usado como dado para argumentar sobre
as diferentes formas de se entender risco na gestação e suas dimensões subjetivas,
principalmente quando inclui a subjetividade da própria gestante quando diverge dos valores
e crenças dos médicos. A defesa de que as crenças religiosas e a incapacidade de separar
Igreja e Estado são características da autonomia da prática médica na avaliação dos riscos
também foi usada como dado para apoiar a proposição central, trazendo vozes de médicos
com posicionamentos diferentes sobre a gestão da vida: a vida governada por um poder
místico, Deus; e a vida governada pelo poder médico e suscetível aos biopoderes.

151
A nomeação das posturas e posicionamentos dos participantes foi usada como forma
de argumentar que ser favorável ao livre direito de optar pelo aborto é uma postura médica
que garante a assertividade na avaliação do risco e na interrupção da gestação, os efeitos
dessa postura foram evidenciados na defesa do direito da gestante em participar e decidir
sobre o quanto de risco ela deseja correr. Nesta argumentação, defendeu-se que a ciência é
pouco eficaz na precisão da avaliação de risco, por isso as crenças religiosas e morais
ganham espaço na decisão pela interrupção da gestação como decorrência do risco. Por
isso, os dados científicos e probabilísticos (estatísticas), mesmo não sendo absolutamente
assertivos, devem ser usados como fonte de informação para auxiliar as gestantes na
decisão em manter ou interromper a gestação.
Na caracterização do risco psicológico, risco foi relacionado ao sofrimento
mental/emocional da gestante. A argumentação centrou-se na defesa de que as desordens
emocionais e os sofrimentos psíquicos decorrentes de uma gestação com diagnóstico de
risco constituem-se, eles mesmos, em fatores de risco. Uma das formas de nomear o
sofrimento emocional como um fator de risco para a gestante foi a alusão à maternidade
frustrada pelo diagnóstico de risco, configurado no dilema da escolha entre a própria vida e
a vida do feto. Outra forma de nomear esse sofrimento foi denominá-lo como tortura,
especialmente nos casos de malformação fetal. O argumento foi apresentado como uma
facticidade, sem possibilidade de questionamentos ou dúvidas.
A afirmativa de que risco psicológico é potencializado pelo risco físico foi
apresentada como dado para oferecer legitimidade à proposição de construção
argumentativa do risco psicológico; teve o objetivo de atestar a evidencia do caráter
psicológico do risco a partir da autoridade de documentos da área médica que oferecem
informações sobre os efeitos emocionais da gestação de risco. Esse dado fez composição
com o argumento sobre o direito da gestante de decidir autonomamente sobre a
manutenção ou a interrupção da gestação.
Relatos de casos clínicos que atestam o sofrimento gerado pela não consideração,
por parte dos médicos, da opinião da gestante na avaliação do seu próprio risco também
foram apontados como um agravante para o estado emocional dela. Esse dado foi usado
para compor a premissa central, corroborando o argumento de defesa do direito da mulher
de decidir sobre o aborto. A relação fantasiosa com o feto ou o vínculo imagético com o feto
doente ou malformado também foi um dado apresentado como evidencia do risco
psicológico para a gestante.
A garantia de que os exames clínicos, sobretudo o ultra-som, são instrumentos da
prática obstétrica importantes na minimização dos riscos emocionais foi usada para afirmar
que os dados são usados de modo cuidadoso e racional no apoio à construção

152
argumentativa do risco psicológico. A narrativa sobre procedimentos e casos clínicos foi
apresentada para explicitar a lógica da argumentação: o risco emocional é vivenciado como
a perda da maternidade já elaborada e frustrada pela condição do risco gestacional.
No risco gestacional pautado no exercício do poder médico, a avaliação do risco foi
definida pela autoridade médica. Advogou-se que a definição e a avaliação do risco na
gestação são determinadas pelo exercício do poder disciplinar médico. Na construção dessa
proposição, a biopolítica surge como a expressão do poder médico sobre a vida da
gestante. Essa proposição foi apresentada como sendo uma prática médica do outro, do
colega de profissão que não apreendeu a importância de considerar a individualidade da
gestante, quando ela é sua paciente. A construção argumentativa versou sobre o
questionamento da legitimidade dessa prática. Na conjunção dessa proposição, o
argumento de defesa de que apesar de ser o médico quem avalia o risco não é ele quem
decide o quanto de risco uma gestante pode correr também foi apresentado.
A cientificidade foi apresentada como uma garantia de que o poder médico pode ser
exercido sem interferências da moral médica individual. Essa assertiva, empregada como
dado, referiu-se à legitimidade do uso dos conhecimentos e tecnologias científicas para
proteger a gestante do abuso de poder médico. Como apoio a essa argumentação
defendeu-se que a opinião pessoal do médico que avalia o risco sobre a legalidade ou
moralidade do aborto deve ser rechaçada a fim de preservar a autonomia da gestante e
garantir a aceitabilidade da avaliação.
Na análise das construções argumentativas sobre aborto por risco de vida da
gestante, na construção da proposição de que o aborto é um direito da mulher, a decisão
pelo aborto foi considerada como o exercício pleno da autonomia da escolha reprodutiva da
gestante. Essa construção argumentativa visou problematizar o exercício biopolítico do
saber/poder médico sobre o corpo da mulher grávida. Afirmou-se o direito da mulher de
governar seu próprio corpo e a figura do médico foi posicionada como aquele que fornece as
informações e, portanto, instrumentaliza a gestante para a decisão. O argumento se fundou
da noção de que o médico é apenas um dos personagens que auxiliam a gestante a
ponderar sobre a possibilidade de aborto.
A afirmação de que os ginecologistas começam a dar importância à posição da
gestante quanto à sua escolha reprodutiva foi usada como base para o argumento de
defesa do direito da gestante de escolher sobre a sua reprodução. Atestou-se, a partir da
experiência pessoal, que os ginecologistas, de um modo geral, estão mais atentos a esse
direito. Diálogos fictícios, criados para reproduzir, durante a entrevista, a relação médico-
paciente, também foram usados como dados para oferecer informações sobre a condução
dos casos clínicos de gestação de risco com indicação terapêutica de aborto.

153
O acesso à informação foi apresentado como o principal elemento de assertividade
na decisão pelo aborto ou pela manutenção da gestação. Essa garantia ofereceu, na
construção do argumento, a razão lógica pela qual se deve considerar e respeitar o direito
da gestante na avaliação da sua própria condição de risco. A dimensão social do risco à
saúde da gestante também foi apresentada como uma garantia para sustentar a proposição
central. O argumento foi apresentado nomeando essa dimensão como “sistema de crenças,
valores e princípios”. Na narrativa, diálogos fictícios entre médico e paciente foram
introduzidos para oferecer facticidade ao relato.
Impor à gestante a opinião médica sobre a manutenção da gestação ou sua
interrupção, invariavelmente, acarreta maiores riscos para a mulher, principalmente se ela
for menor de idade e incapaz, legalmente, de decidir com autonomia. Esse foi o argumento
usado como apoio da defesa do aborto como um direito da mulher, apresentado na forma de
narrativa sobre uma experiência de debate a respeito do tema, onde o relato de um caso
clínico em que prevaleceu a decisão médica teria prejudicado o bem-estar da gestante. A
retórica de convencimento, no formato de questionamento reflexivo, também apareceu na
apresentação de situações hipotéticas, mas que fazem parte do cotidiano do trabalho dos
participantes, para apoiar a tese central de defesa do direito à livre escolha da gestante.
Na construção do argumento de que aborto não é crime, o tema foi pensado na
dimensão jurídica, sendo consideradas as interpretações dos incisos do Código Penal que
permitem a realização do aborto. Atestou-se que a legislação sobre o aborto induzido ou
voluntário é passível de interpretações subjetivas. Essa proposição foi apresentada como
resultado da análise do Código Penal a respeito da legalidade do aborto. Na estrutura da
argumentação, tal proposição visou justificar a defesa do caráter legal e não-criminalizado
do aborto quando a vida da gestante está em risco. A anencefalia do feto foi trazida como
caso prototípico em que se pode aplicar a possibilidade de interpretações diversas.
Os debates entre a área médica e a área jurídica acerca da legalidade do aborto por
risco de vida da gestante atestaram, na argumentação, a amplitude de interpretações da
letra da lei sobre o tema. Este dado foi apresentado com recortes narrativos das falas dos
interlocutores da área jurídica. Na organização do argumento, advogou-se que a prática
médica de avaliação do risco com indicação terapêutica de aborto faz fronteira com a prática
jurídica. O saber/fazer médico foi oposto pelo saber/fazer jurídico, este último não daria
conta de entender o risco no âmbito da saúde, mas seria da sua competência avaliar o
permissivo para a realização do aborto. Esse embate foi explicado por meio do uso de
narrativas de diálogos fictícios que simularam a relação entre estes dois campos de saber
no exercício biopolítico sobre o controle dos corpos das gestantes, governando sobre quem
pode abortar e sob quais circunstâncias. Do ponto de vista do critério médico para atestar o

154
risco na gestação, a anencefalia se enquadraria nesse âmbito, tendo em visto o quadro
clínico que a malformação desencadeia no corpo da gestante. Entretanto, do ponto de vista
jurídico, quem corre risco durante uma gestação de anencéfalo é o feto e não a gestante. A
aproximação entre estes dois extremos – risco fetal e risco materno – foi feita por meio da
alegação retórica de que a vida da gestante corre risco. Na composição desta
argumentação somou-se a defesa de que não se pode dissociar risco materno de risco fetal.
Quando está em pauta o aspecto legal do aborto por risco de vida da gestante, risco
materno e risco fetal devem ser tratados como sinônimos, pois esta estratégia de gestão do
risco oferece a possibilidade da autorização legal do aborto.
Na construção argumentativa do aborto como um procedimento clínico foi
considerado o âmbito técnico dos métodos e procedimentos para o abortamento como uma
intervenção médica. Apresentou-se a premissa de que o aborto é um procedimento médico
que requer uma série de protocolos que devem ser seguidos para assegurar a saúde da
mulher e a ética do médico que o realiza. Essa argumentação foi apresentada listando-se
os procedimentos burocráticos e protocolares que garantem a escolha segura e livre de
dúvidas por parte da gestante e que transpareça a ética médica na condução do
procedimento. Para corroborar este argumento, foi apresentado como dado a premissa de
que indicação da interrupção precisa ser corroborada por médicos especialistas. Este dado
foi oferecido para auxiliar na formulação do argumento de garantia do exercício ético da
profissão médica.
Para apoiar a proposição central na lógica do tratamento do aborto como um
procedimento clínico foi apresentada a garantia de que a indicação terapêutica do aborto
não é uma decisão de um único médico, o trabalho em equipe é fundamental na busca pela
saúde e bem-estar da gestante. Registros em prontuários, reuniões com equipes médicas, a
atuação de profissionais não-médicos e informações dadas às gestantes foram enumeradas
como passos do procedimento. Relatos sobre a relação médico-paciente no processo de
comunicação do risco e indicação do aborto também foram usados como garantia na
construção do argumento do aborto como um procedimento clínico. O tratamento médico do
aborto como um procedimento foi considerado diferente quando se trata do serviço
particular, pois no cotidiano de uma clínica particular, que atende um segmento social
privilegiado economicamente, os procedimentos seguem outra lógica: há uma espécie de
“proteção” do médico que acompanha o caso quando esta já é sua paciente, em que ele se
responsabiliza pela condução do caso. Essa informação, apresentada como garantia, foi
organizada por meio de narrativas que refletiam o diálogo entre os médicos e os serviços e
as estratégias para fazer a gestante lograr a autonomia da escolha pelo aborto sem ser
criminalizada.

155
Como apoio ao argumento central de caracterização do aborto como um
procedimento clínico, o termo de consentimento foi apresentado como um documento que
assegura a proteção ética do médico e da própria gestante quanto ao risco que se corre,
tanto quando se decide pelo aborto quanto se decide pela manutenção da gestação,
principalmente quando a decisão diverge da avaliação médica. A gestão do risco, nesse
âmbito, se insere na margem da transgressão da orientação médica como meio de garantir
a escolha por correr risco, por parte da gestante, e desresponsabilização/desculpabilização
do médico frente a essa decisão.
Na construção argumentativa do aborto como desfecho da gestação de risco, o
aborto foi apresentado como o desenlace de uma trama narrativa sobre gestações
malsucedidas. Argumentou-se que complicações na gestação e no estado de saúde da
gestante podem levar ao aborto voluntário. Essa proposição foi apresentada para afirmar a
condição do aborto como um procedimento terapêutico para salvar a vida da gestante.
A defesa da tese de que a precisão na avaliação do risco é importante para a
assistência à saúde da mulher grávida que vai abortar foi apresentada como dado a partir da
narrativa de um caso clínico de uma gestante que teve o risco diagnosticado de maneira
precisa, em confluência com o argumento que asseverava que o diagnóstico precoce de
risco e consequente indicação terapêutica do aborto minimizam as possibilidades de
complicação do quadro clínico da gestante e o procedimento pode ser feito com maior
segurança. Novamente as narrativas sobre casos de gestação de risco foram usadas para
somar ao argumento informações sobre a conduta médica no trato com a relação entre risco
e aborto.
Mesmo não se enquadrando no permissivo legal que garante o direito ao aborto no
caso de risco de vida materno, argumentou-se que a gestação de feto com malformação
pode ser interrompida com base nesse permissivo, desde que a argumentação médica e
jurídica ateste o risco para a gestante. Esse dado foi articulado argumentativamente num
relato de um caso pioneiro de autorização de aborto de feto anencefálico. Na formulação do
aborto como o desfecho da gestação de risco, a tese de que a gestante de risco que procura
o serviço de aborto legal, geralmente, já tem em mente a possibilidade de ser submetida ao
aborto foi usada como apoio, apresentado para ajudar a construir a aceitabilidade da razão
pela qual o aborto induzido pode ser configurado como o desfecho da gestação de risco.
A formulação argumentativa do aborto como sendo pautado pelos valores morais dos
médicos foi fundada na defesa de que crenças morais e valores éticos embasam a opinião e
a atitude médica frente à legalidade da sua prática. Advogou-se que a crença moral do
médico acerca da legalidade do aborto nem sempre condiz com a sua prática clínica. Essa
afirmativa, posta como proposição, visou organizar o argumento de defesa da influencia da

156
moralidade médica na prática do aborto: o fato de o médico acreditar na legalidade do
aborto por risco de vida da gestante não implica que ele próprio realizará o procedimento.
Como garantia para este argumentou apresentou-se a tese de que a prática médica
vai de encontro às crenças da Igreja Católica, o que gera disputas sobre o estatuto de
verdade defendido por cada uma dessas instituições. Na elaboração dessa garantia,
defendeu-se a ilegitimidade do espaço das crenças religiosas na consideração da vida que
merece ser vivida, configurando a rivalidade entre o exercício do biopoder médico e o
exercício do biopoder da Igreja. Como apoio, foi apresentada a assertiva de que a
concepção de vida e do início da vida não é passível de ser corroborada por estudos
científicos e, portanto, é plural. Esse apoio foi construído para ajudar na construção de
factibilidade da garantia do argumento de defesa do aborto como sendo pautado pela
moralidade médica.
Na construção do argumento sobre o aborto como uma experiência da história de
vida dos médicos obstetras, a vivência do aborto foi associada a episódios biográficos da
carreira profissional e da vida pessoal desses médicos. A proposição defendia que a
experiência pessoal, relacionada com a vivência do aborto por alguém próximo ao médico,
ou a experiência profissional, relacionada com o cotidiano dos serviços que propiciam o
contato com mulheres que desejam abortar, sensibilizam os médicos para a compreensão
do aborto como uma escolha autônoma da gestante.
A afirmativa de que a experiência de médicas mulheres nos serviços de aborto legal
é atravessada pela maternidade ou pelo desejo de maternidade foi apresentada como dado
que articula, em pólos opostos, a prática médica, profissional, e o exercício da maternidade
e foi construído para argumentar que, para algumas médicas, realizar abortos, mesmo que
para salvar a vida da gestante, pode ser uma expressão da negação da sua própria
maternidade ou poder ser vivenciado como uma punição divina, caso elas próprias não
consigam engravidar. Também compôs este argumento a tese: experiência em serviços de
aborto legal gera nos profissionais o envolvimento político com a questão da legalização da
prática do aborto e da sua defesa como um direito da mulher.
A análise dos argumentos sobre risco na gestação e aborto por risco de vida da
gestante nos faz refletir sobre a impossibilidade de exercer uma prática de assistência à
saúde da mulher pretensamente imparcial, fundada na neutralidade do cálculo matemático,
pois nossas crenças morais e éticas atravessam nossos saberes e fazeres. Para não
afundarmos no pântano da moralidade punitiva e repressora, que criminaliza àquelas
mulheres que decidem por interromper as suas gestações e penalizam os profissionais de
saúde que as assistem, precisamos refletir sobre a necessidade de exercemos nossa
alteridade e abdicar da prepotência de impor ao outro nossos valores. Essa é uma proposta

157
para um diálogo entre versões diferentes e opostas sobre o caráter moral do aborto que
considera a pluralidade ética como premissa para o respeito à vida e ao corpo da mulher.
Vale à pena pensarmos também sobre como lidar com o exercício do poder
disciplinar médico, pois sabemos que o médico é o único juiz que decide o quanto acima do
“normal” é o risco que a mulher deve correr para que se justifique a interrupção da gravidez,
e, em geral, supõe-se que esse risco deve ser muitíssimo elevado para justificar o aborto
(FAÚNDES et al, 2004). Talvez, quando tivermos equipes de saúde trabalhando
efetivamente no modelo interdisciplinar a dimensão assimétrica do poder médico-hospitalar
possa ser minimizada.
Esta pesquisa visou contribuir para a discussão a respeito dos aspectos morais que
referendam a legalidade e a ilegalidade do aborto induzido ou voluntário. Ao focalizar o
aborto por risco de vida da gestante, buscamos visibilizar as tensões que tornam legítimo o
aborto em alguns casos e criminalizado em outros. Afinal, porque uma mulher precisa está
em risco de vida para poder abortar? Deixamos uma lacuna importante que merece ser
retomada em estudos posteriores: a presença/ausência de mulheres médicas em serviços
de aborto legal e as questões relacionadas à maternidade, que envolvem o exercício da
prática médica dessas mulheres quando lidam com o aborto.

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