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A CRISE DA IDADE PENAL

Kléber Oliveira Veloso1

Este ensaio procura fomentar alguns aspectos concernentes à fixação da


imputabilidade penal da pessoa aos 16 anos de idade. Ele é, antes de mais nada, um exercício
de formulação de ideias e de questionamentos, sem pretender indexar premissas, mas pontuar
questões fáticas. A intenção é produzir discussões, formulando mais perguntas que respostas
prontas e acabadas. Um balanço parcial será oferecido ao leitor, da sua real disposição. Eis a
sinalização da abordagem.

Não se desconhece, nessa linha de raciocínio, que a responsabilidade penal do


adolescente é um problema da civilização moderna e pós moderna a que não se emprestou,
ainda, no país, a devida atenção, em especial no âmbito do seu mosaico legiferante. Vive-se
num sistema globalizante que a tudo e a todos alcança, num vertiginoso processo de
mudanças, alterando os complexos quadros da informação, do social, da política e, pela lógica
posterius, do Direito Penal. Por meio de incontornável consequência é sob a égide deste último
que a afirmação social se institui.

É sempre bom lembrar que o Direito Penal, consorte indissociável das relações
sociais, faz o homem desfrutar do arbítrio, da palavra, do poder, da moral, da ética, dos valores,
dos princípios, enfim, da subsunção à norma. Surge, em consequência, a complexidade
existencial das condutas ilícitas, de modo que ele se torna o protagonista destinado a
enquadrá-las, metrificando essas assimetrias de forma pretendidamente eficaz. O Direito Penal
não é, como se propala, direito de ultima ratio, mas de prima ratio. Se se fizer um estudo
comparado dos códigos penais do mundo, perceber-se-á o caráter pedagógico em todos eles,
pois encerram mandamentos como: não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho...

Cumpre registrar que a própria lei, a começar pela Constituição, é contraditória,


pois a idade para se tomar decisão na esfera civil é uma e, na esfera penal, é outra. E não se
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É professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal do Curso de Graduação em Direito, na UFGO -
Campus Goiás. Pós-Doutor em Direito e Membro Fundador da Academia Goianiense de Letras. É membro da
Comissão de Avaliadores da MEC/SESu/INEP para avaliação, autorização, supervisão, credenciamento e
reconhecimento dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito nas IES públicas e privadas.
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pode argumentar que uma seja menos ou mais importante que a outra, pois a lógica linear é a
mesma para ambas. E mais, por razões de topologia, ou de topografia legislativa, a idade penal
foi veiculada na Constituição, mas é norma materialmente ordinária e não formalmente
constitucional, como fizeram os constituintes de 1988. Aliás, mais um, dos muitos equívocos.
De saída, não há qualquer impedimento constitucional para se propor uma emenda supressiva
ou modificativa do art. 228, a exemplo das várias que tramitam no Congresso Nacional a
respeito da temática.

Vê-se, nesse passo, que existe, porém, uma distância incalculável entre o prisma
civil e o espectro penal do ECA. Não é possível, ainda, por aqui, legislar sem preferências e
sem concepções míticas de ordem subjetivo-objetiva. A impressão que se tem é que as
censuras do ECA são eficientes, é o que parece a primeira vista. Ocorre, porém, que para
qualquer ato infracional praticado por adolescente (crime ou contravenção penal), a única
medida sócio educativa que restringe a liberdade é a internação. E ainda, o prazo máximo
dessa medida é sempre o mesmo: três anos. Se o adolescente praticar um estupro, um
latrocínio ou um homicídio, a medida será sempre a mesma, isto é, cumprirá 3 anos de medida
sócio educativa ou se atingir 21 anos, o que chegar primeiro. Daí o motivo da sua banalização.
O ECA, na parte referente às censuras infracionais, está marcado com o selo da artificialidade.

Destaque-se que, em 2009, o adolescente com a idade entre 14 e 16 anos


encontra-se maduro, percebe o seu corpo apto, desfruta de um razoável nível de compreensão
e procura participar e interagir no seu processo vital, mas é incapacitado pela legislação. A sua
cidadania é postergada por uma concepção legal que só lhe confere liberdade jurídica em
alguns aspectos, noutros, não.

Esclareça-se, por pertinente e a propósito, que não se propõe reduzir a idade


penal para arrefecer o percentual de violência, até porque os crimes praticados por
adolescentes no Brasil gravita a órbita de 10%. De igual modo, não se objetiva, com a medida,
a ampliação da lógica repressiva do capitalismo contemporâneo. Muito menos pela maior
intimidação do Código Penal em relação ao ECA. A medida é proposta por uma questão
elementar de isonomia, isto é, pelo fato de alguém com 16 anos de idade ter consciência,
amadurecimento, do ilícito que pratica! E mais, a redução da idade penal, contrariamente do
que muitos pensam é, antes de tudo, um problema penal, não que ela não seja uma questão
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psicológica, filosófica, sociológica etc, mas o fato é que a conduta, o dolo e a execução são,
forçosamente, levados ao Direito Penal.

Não se perca de vista que ser criança, ser adolescente e ser adulto não são fases
que ocorrem linearmente, de forma estanque e claramente definidas. Após as atuais
revoluções, o limiar destas três fases se tornou mais tênue, exatamente porque se tornou
socializada a informação. A demarcação das faixas etárias é convencionada. Assim, a idade da
pessoa não revela exatamente o que ela é ou deveria ser. Daí o porquê dos andragogos,
antropólogos, biólogos, filósofos, pedagogos, psicólogos e sociólogos, não conseguirem um
consenso em metrificar o período da infância e da adolescência.

Assinale, por outra verve que, no Brasil, há legislações que decolam e outras não.
Algumas leis de cunho penal inserem-se entre as segundas, pois naufragam num viés de
expansão numa ponta e de retração noutra. É o caso do ECA ao combater os atos infracionais
e os desvios de conduta dos adolescentes. Os fatores criminógenos que regem o crime
praticado pelo maior de dezoito anos, também regem aqueles praticados por adolescentes. A
vida do adolescente não é, como muitos imaginam, um momento preparatório. Ela está
acontecendo agora, de fato, como a vida adulta! E mais, a multiplicidade de escolha dos
adolescentes cinge-se da piedade solidária ao cinismo criminoso.

Em reforço à lógica desta proposição, atente-se para a literalidade da desculpa


normalmente produzida para justificar a moratória penal relativa aos adolescentes, eis que
preguiçosa e setorial. Preguiçosa porque sempre se deixa para depois enfrentar uma questão
de singular importância. E setorial porque o adolescente daqui a pouco será “maior”, saindo
desse “limbo”, mas novos adolescentes ocuparão o seu lugar!

Nessa perspectiva é importante observar que o nível de sedimentação legal,


cívica e moral, do Direito Penal no país ainda dista algumas léguas da sua real topografia. Isso
para lembrar que há culturas com padrões de sedimentação desse direito bem mais elevados
que os do Brasil. Os adolescentes podem viajar, residir em repúblicas, estudar noutros estados
e no exterior, contrair matrimônio, separar e divorciar, ter filhos, ficar, emancipar, votar etc. Não
há mais espaço para a ingenuidade dos jovens, pois que mais afetos às inovações.

Foi nesse espaço de discordâncias e de repensar de ideias que, pretendendo


oferecer um “basta” ao estado de “impunidade branca”, surge a necessidade de se reduzir a
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idade penal. Existe uma parceria entre adolescência e delinquência, porque o adolescente, por
não ser reconhecido dentro do pacto social, terá que ser reconhecido fora ou contra ele. No
Estado de Direito, a ampla liberdade das pessoas, e aqui se inclui a dos adolescentes, não
pode ser confundida com a liberdade de delinquir. A noção de limite é fundamental em todos os
aspectos, em especial nos penais. Realizar mentalmente um gesto consiste em antecipar as
suas consequências, seja ele qual for. O adolescente infrator de hoje não espera a idade adulta
para praticar crime. A par disso, é bom não dessaber que a imputabilidade penal é a regra, e a
inimputabilidade penal é a exceção!

Como é de primeiríssima intuição, a moderna idade penal no Brasil ainda não


sinaliza um resguardo aceitável, pois se encontra emaranhada num cipoal de incertezas
jurídicas de variados matizes. É singular o paradoxo existencial entre as diversas idades: civil,
penal, eleitoral e trabalhista e o seu efetivo cumprimento, mais especificamente na produção
das desigualdades em suas inúmeras verves. À guisa de esclarecimento, o adolescente
infrator, ao atingir 18 anos, ele o faz como primário e de bons antecedentes. Nenhum crime por
ele praticado na adolescência, por mais horroroso que seja, é considerado após a sua
maioridade, se vem a praticar novo delito. Isso pode ser comparado ao espírito mercadológico
da adoção plena, onde a criança é destituída de qualquer traço de sua história anterior para ser
entregue limpa a uma nova família.

Vistos do ângulo que for, os testemunhos coligidos nas diversas obras que tratam do
assunto ilustram o fato de que, aos 14 anos de idade, a pessoa já pode ser responsabilizada
por seus atos. Alguns teóricos multidisciplinares como Adler, Piaget, Vygotsky e Wallon, para
citar alguns, ao verificar como os fatores sociais comparecem para explicar o desenvolvimento
intelectual, hauriram conclusões bem mais incisivas, de modo que a chegada ao estágio final da
construção das operações cognitivas complexas ocorre nas proximidades dos 12 ou 13 anos de
idade. Baseada em todas essas premissas, a proposta aqui veiculada cinge-se à redução da
idade penal aos 16 anos e, para alguns crimes, aos 14 anos de idade. É necessária a ruptura
que assume um prisma, muitas vezes, explosivo, mesmo que para isso tenha que romper (pré)
conceitos.
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Nesses exórdios, vê-se, sobremais, que a temática fomenta a relevância


acadêmico penal. E aqui se arrisca a fazer algumas interrogações que, certamente, valerão
uma ou mais reações dos leitores, mas melhor assim:

 Como adolescentes podem, deliberadamente, planejar delitos crueis?

 É possível que não tenham a menor ideia do que estão fazendo?

 Exige-se do adolescente algum conceito exegético, ex professo, do que seja crime? Há


alguma dificuldade em entender, de forma elementar, o que é proibido e o que é permitido?

 Se punir o adolescente com as penas do Código Penal vai lhe causar rebeldia, o que
dizer da generosidade das medidas sócio educativas do ECA?

 Até que ponto responsabilizar o adolescente infrator pelo ECA reflete a realidade
brasileira?

 A Constituição, ao conferir ao adolescente a capacidade eleitoral ativa, o faz por exigir


responsabilidade para decidir os rumos do país ou para repetir o rodízio eleitoral e a expansão
dos políticos?

Essas interrogações se impõem, se precipitam e saltam aos lábios de qualquer um,


pois confundem as pessoas, esmagam as instituições e estreitam os horizontes em termos de
legítimas perspectivas.

Patentear-se-á convinhável asserir que, com os avanços sociais, a ênfase, além de


prevenir o crime, está muito mais em reprimir de forma célere, basta reler o clássico de
Beccaria. A criança e o adolescente devem ser tratados como pessoa em desenvolvimento,
mas isso não os permite estar acima da lei.

Noutras palavras, a miséria, a pobreza, ou mesmo as várias dificuldades sociais não


autorizam ninguém, maior ou menor, a praticar crime, salvo as exceções agasalhadas em lei. A
dor, o prejuízo causado, os danos morais e psíquicos causados pelo crime praticado pelo
adolescente são os mesmos causados pelos maiores de 18 anos. O adolescente do novo
milênio não é mais aquele ingênuo dos meados do século XX. Atualmente, o acesso à
informação é quase compulsivo. Novas tecnologias fazem parte do dia-a-dia dos jovens, a
exemplo do telefone celular, de MP3, internet, Ipod, correio eletrônico, MSN, rádio, TV
aberta/fechada, de modo que é impossível estar ilhado, alheio aos acontecimentos reais.
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Está na hora, aliás já passou da hora, de se reduzir a idade penal, e não faze-la é
algo visto como uma clivagem no corpo social. O Direito Penal não pode ficar a reboque das
transformações sociais. A sua pós modernidade tem, em função das amarras que lhe são
peculiares, dificuldade de assimilar aquilo que é novo, pois lhe é estranho, mas em doses
homeopáticas isso ocorrerá. O Direito Penal foi e, de certo modo, ainda é um grande
desconhecido e representa, nesse “finca pé”, abrigo desigual na República brasileira. Daí um
Código Penal e um ECA extremamente generosos com a variada criminalidade. Se há um lugar
onde adolescente pode “brincar” de ser rebelde, sem levar o troco, é no Brasil.
Percepção de um ponto singular reside na delicada “trip” do Direito Penal, pois é
necessário definir claramente as questões a serem enfrentadas, sem paixões, sob pena de
menoscabar o Direito de Beccaria. Está-se em 2009, não em 1940, de modo que reduzir a
idade penal tornou-se necessário, pois não há mais como se opor à irresistível lógica dos
acontecimentos e dos avanços sociais. Não é sem motivo que o clamor popular enseja a
ablação de posturas legais alheias à realidade jurídico penal.
Ao fim e ao cabo, não se pode continuar tratando o adolescente como criança. A lei
penal deve corresponder à realidade temporal e geográfica onde incide, pois ela é construída
por intermédio de padrões. A redução da idade penal não deve ser entendida como uma
descoberta súbita, mas como uma multiplicidade de processos que a marejam. Quando a
pessoa é doente mental, a sociedade não lhe resguarda expectativas de papéis, mas quando
se é saudável mentalmente, incide a teoria dos papéis e isso é algo que não se pode
escotomizar! A responsabilidade penal dos adolescentes, como já se escreveu, não é ponte
carroçável para resolver a delinquência juvenil, mas é um dos vários referenciais para introduzi-
la aos padrões aceitáveis.
Destaque-se que a nova idade penal englobará, na verdade, uma outra “economia
política” da imputabilidade penal, pois ela não tem um único traço de aferição, mas vários a
mãos de semear!

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