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Texto de divulgação científica publicado em 2018 no Blog do Sporum, extensão

do PET Biologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Cinquenta Tons do Sexo: Quando o binário dá lugar ao amplo


espectro sexual

Bruno Tavares

“A ideia de dois sexos é simplista. Biólogos agora acham que há um maior espectro
que esse”.

As categorias de macho (XY) e fêmea (XX), antes encaradas enquanto bem


definidas e opostas, estão sendo colocadas à prova. Isso porque estudos recentes
tornaram cada vez mais complexas as relações entre essas categorias. E, esses estudos
aumentam ano a ano, principalmente pelo advento das tecnologias do DNA, e da
modernização das técnicas moleculares, as quais possibilitam maior acesso e análises
dos genomas. A seguir, exponho alguns estudos realizados nos últimos anos, que
mostraram o quão complexa é a categoria do sexo, e como a biologia pode (e deve!)
contribuir para seu entendimento.

“Colcha de retalhos” celular

A ideia de que todas as células de um indivíduo do sexo masculino são XY, e


todas as do sexo feminino são XX, agora divide espaço com uma visão dos indivíduos
enquanto verdadeiras “colchas de retalhos” quanto ao sexo de suas células. Isso quer
dizer que algumas pessoas do sexo masculino podem ter células no seu corpo que
possuem cromossomos XX, enquanto alguns indivíduos do sexo feminino podem ter
populações celulares que contenham cromossomos XY. Essa situação pode acontecer
devido a diferentes processos como o mosaicismo, o quimerismo e o microquimerismo.

No mosaicismo (figura 1) o indivíduo se desenvolve de um único zigoto, mas


acaba havendo divisão desigual dos cromossomos sexuais, formando um mosaico, ou
seja, num mesmo organismo, células com diferentes sexos. Por exemplo, um zigoto XY
pode desenvolver um organismo com populações celulares diferentes, compostas de XY
ou até X. Ao fim do desenvolvimento, se a maioria das células desse indivíduo for
composta por apenas um X, esse indivíduo será do sexo feminino e terá uma condição
chamada Síndrome de Turner. Contudo, se a maioria das células contiver os cromossomos
XY, será formado um indivíduo do sexo masculino.

O quimerismo (figura 1) ocorre quando dois zigotos se fundem no útero.


Assim, se um deles tiver o par de cromossomos XY e o outro XX, haverá populações
celulares dos dois cariótipos no indivíduo. Em um artigo publicado em 2011, o
geneticista Paul James e colaboradores relataram o caso de uma mulher de 46 anos que
possuía grande parte do seu corpo composto por células com cromossomos XY. Esse
caso se trata de uma forma de quimerismo, onde a paciente não sofreu nenhum prejuízo
quanto à fertilidade, uma vez que estava grávida do quarto filho no momento do
diagnóstico.

Figura 1. Representação do Quimerismo e Mosaicismo.


Uma variação do quimerismo, chamada microquimerismo (figura 2), ocorre
quando células-tronco do feto ultrapassam a placenta, chegando ao corpo materno, e o
contrário também ocorre. Em uma revisão publicada na revista Nature em 2015, Claire
Ainsworth afirma que os trabalhos que mostraram esse processo desestabilizaram a
divisão dos sexos, uma vez que pessoas do sexo masculino podem carregar células de
suas mães, e pessoas do sexo feminino que geraram indivíduos do sexo masculino,
podem “hospedar” suas células. E o mais interessante é que já foi evidenciado que essas
células se integram e são funcionais nos “tecidos do hospedeiro”.

Figura 2. Microquimerismo na gravidez. Células-tronco


do feto passam para o corpo materno, e vice-versa.

Para além do binário: as várias facetas do sexo


Ainda na mesma revisão, Ainsworth relata que a
categoria do sexo está sendo redefinida. No lugar de um
binarismo simplista formado apenas por macho e fêmea,
agora se fala em um amplo espectro do sexo. A autora
relata que os estudos das Desordens do Desenvolvimento
Sexual (DSD), expuseram esse amplo espectro, através do
relato de uma diversidade para além das categorias bem
definidas de macho e fêmea.
As relações do sexo se mostram cada vez mais
complexas, uma vez que são relatados cada vez mais
casos de discordância entre sexo cromossômico e sexo
gonadal/anatômico. Essas condições intersexuais, também
chamadas DSD, como relatado anteriormente, são desafiadoras para os médicos e
familiares da criança que, na maioria das vezes escolhem se ela vai ser criada como um
menino ou como uma menina. Uma revisão sobre as DSD, publicada em 2014,
evidenciou que essas condições são encontradas em um a cada 100 nascimentos,
expondo que essas variações são mais comuns do que se supunha até então.
Desse modo, a figura 3 representa o amplo espectro sexual derivado das
diversas pesquisas sobre as DSD. Com certeza, essas descobertas não se assentam muito
bem em um mundo binário e supostamente bem definido, dividido em machos e fêmeas.
Figura 3. Espectro Sexual. Representação do espectro sexual, com fêmea e macho típicos nos polos e as
nuances entre essas categorias. As complexas relações entre o sexo cromossômico, gonadal e genital são
evidenciadas, sendo responsáveis pela formação das diversas categorias intermediárias do sexo. Adaptado
de Brito, 2015.

Outra reflexão interessante trazida pela autora Claire Ainsworth, refere-se ao


fato de que os sistemas legais acabam se ancorando nessas categorias do sexo, partindo
do pressuposto que elas são distintas e bem delineadas. Desse modo, aqueles que por
alguma razão não se enquadram nessas dicotomias, podem ter seus direitos legais
influenciados, uma vez que esses sistemas legais se apoiam no sexo que é atribuído no
nascimento.
Termino, com um comentário de John Achermann, da University College
London’s Institute of Child Health, que resume muito bem as ideias aqui apresentadas:
“Eu penso que há maior diversidade entre macho e fêmea, e há certamente uma área de
sobreposição onde algumas pessoas não podem facilmente se definir dentro de uma
estrutura binária”.

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