Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Este artigo, publicado no periódico acadêmico Estudos Históricos, recupera e coloca em diálogo
as obras de duas pensadoras importantes que foram deixadas de fora do cânone do período
clássico da sociologia: Flora Tristan e Harriet Martineau.
Um legado de Tristan e Martineau está nesse ato de pensar continuamente sobre si ao longo da
produção de uma pesquisa, conhecido nas ciências sociais como “reflexividade” — um tipo de
habilidade e de prática hoje considerado essencial para uma boa investigação sociológica, mas
que era incomum entre os autores homens considerados clássicos.
O cânone do período clássico da sociologia não conta com mulheres entre seus autores. No
entanto, ao contrário do que se costuma supor, o século 19, crucial para a formação das ciências
sociais, teve presença significativa de mulheres em diversos círculos políticos e intelectuais.
Entre elas, destacaram-se a grande intelectual pública britânica Harriet Martineau e a socialista
franco-peruana Flora Tristan. Esta pesquisa revela que o gênero, a classe social e, no caso de
Martineau, a deficiência, tiveram impactos sobre a forma de pensar, refletir e pesquisar sobre o
mundo social dessas autoras. Diferentemente de outros autores da mesma época, que eram
considerados a priori intelectuais legítimos, Martineau e Tristan precisaram justificar sua
condição atípica de intelectuais mulheres, e isso levou-as a produzir reflexões muito sofisticadas
e que permanecem contemporâneas.
Apesar das diferenças entre elas, o diálogo entre suas obras levanta perguntas como: como
gênero e classe social afetam as oportunidades de fazer pesquisa? Como isso se reflete nos
métodos e estratégias de pesquisa sociológica? Qual o lugar das experiências pessoais e da
subjetividade na pesquisa? Como evitar generalizações apressadas e controlar os próprios
valores e vieses na pesquisa, refletindo sobre si e sobre o outro ao longo do processo? Quais são
as tensões na relação entre ciência e política? Considerando que essas questões não foram
abordadas com a mesma profundidade pelos autores clássicos do século 19, a ausência dessas
autoras nos cursos de sociologia clássica causa prejuízos para o ensino das ciências sociais.
A forte presença de mulheres nos debates pioneiros que deram origem à sociologia desmente
uma longa tradição de ensino de uma sociologia clássica que se limita ao ensino dos “pais
fundadores” — Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim — e negligencia uma ampla produção
feita por mulheres. Flora Tristan e Harriet Martineau contam uma história diferente das ciências
sociais, demonstrando não apenas que as mulheres participavam ativamente da produção do
conhecimento, mas também que o que hoje chamamos de “questões de gênero” sempre esteve
presente no pensamento sociológico. Nesse sentido, o artigo tanto promove a recuperação da
produção dessas intelectuais, cujas pesquisas e abordagens seguem atuais, quanto questiona o
cânone sociológico clássico, composto unicamente por autores homens e europeus. Além disso,
ressalta as contribuições de ambas para a discussão da epistemologia das ciências sociais, isto
é, das condições de produção de conhecimento sobre o mundo social e como isso se relaciona
com gênero.
RESUMO DA PESQUISA
Hoje, nas ciências sociais, chamamos o que Tristan e Martineau fizeram de “reflexividade”, isto
é, o ato de pensar continuamente sobre si ao longo da produção de uma pesquisa — um tipo de
habilidade e de prática considerado essencial para uma boa investigação sociológica. Ao resgatar
a originalidade das ideias de ambas, o texto reforça a necessidade de revisar a história
fundacional da sociologia, para que o trabalho feito por essas mulheres chegue ao
conhecimento das novas gerações.
O artigo se dirige tanto aos ingressantes na área das ciências sociais como aos profissionais que
já atuam na área, em diferentes níveis de ensino. Ao recuperar a produção dessas intelectuais,
os novos estudantes podem iniciar os cursos de ciências sociais munidos de um referencial
teórico mais amplo e diverso, assim como os docentes na área podem conhecer e problematizar
outras matrizes do pensamento sociológico clássico. Nosso objetivo é que o artigo seja um
convite e inspiração para novas pesquisas que busquem expandir e transformar a maneira como
ensinamos sociologia, seja nas universidades ou nas escolas.
REFERÊNCIAS:
CONNELL, Raewyn. Why Is Classical Theory Classical? The American Journal of Sociology, v.
102, n. 6, p. 1511-1557, 1997. https://doi.org/10.1086/231125
HILL COLLINS, Patricia. On Book Exhibits and New Complexities: Reflections on Sociology as
Science. Contemporary Sociology, v. 27, n. 1, p. 7-11, 1998. https://doi.org/10.2307/2654698
MADOO LENGERMANN, Patricia; NIEBRUGGE-BRANTLEY, Jill. The Women Founders:
Sociology and Social Theory 1830 – 1930. Nova York: McGraw Hill, 1998.
MARTINEAU, Harriet. How to Observe Morals and Manners. Project Gutenberg, 2010.
MARTINEAU, Harriet. Society in America. Nova York: Saunders and Otley, 1837a. v. 1 e 2.
TRISTAN, Flora. Peregrinações de uma pária. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do
Sul: EDUNISC, 2000.
TRISTAN, Flora. União Operária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015.
© 2020 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a
Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia
é proibida.