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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Bruno Motta Monteiro

O Orientalismo nas telas da globalização:


império, guerra e representação no cinema hollywoodiano

Rio de Janeiro
2021
Bruno Motta Monteiro

O Orientalismo nas telas da globalização:


império, guerra e representação no cinema hollywoodiano

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para a obtenção do título de mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cecília Loreto Mariz

Rio de Janeiro
2021
Bruno Motta Monteiro

O Orientalismo nas telas da globalização:


império, guerra e representação no cinema hollywoodiano

Dissertação apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre, ao


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovado em 28 de maio de 2021.


Banca Examinadora:

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cecília Loreto Mariz (Orientadora)
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UERJ

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Josefina Gabriel Sant’Anna
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UERJ

_______________________________________________
Prof. Dr. Valter Sinder
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UERJ

_______________________________________________
Prof. Dr. Isaac Harillo Jerez
Instituto Federal do Pará

Rio de Janeiro
2021
DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado às minhas avós Carmen (in memoriam), educadora exemplar e uma
inspiração para mim, e Célia, uma mulher de enorme coração e muita gentileza, e a meu avô
Pedro, que mesmo que hoje ele tenha dificuldade de se lembrar, eu certamente nunca esquecerei
de todo o carinho e apoio que ele me propiciou.
AGRADECIMENTOS

Todo o caminho percorrido até aqui não seria possível sem o apoio de meus pais, Renata
e Antonio, que me permitiram a possibilidade de seguir estudando e galgando minha jornada
na academia, assim, meu principal agradecimento não poderia deixar de ser para estes dois que
sempre estiveram ao meu lado me apoiando e incentivando através dos momentos mais escuros
e difíceis, mas também celebrando as conquistas ao longo da jornada. Além de meus pais, não
posso deixar de agradecer a meu irmão Bernardo que sempre esteve ao meu lado.
Agradeço também imensamente a minha querida orientadora, Professora Cecília Mariz
por ter aceitado me orientar no mestrado, especialmente neste projeto que foge um pouco de
sua área de especialidade, mas que ela nunca deixou de estar ao meu lado e me guiar. Se hoje
posso me considerar um bom pesquisador é por causa dela, que mais que orientadora considero
uma amiga.
Aos inestimáveis membros da banca avaliadora eu expresso a minha gratidão pelo aceite
do convite para fazer parte deste momento de minha vida acadêmica. Ao Professor Valter
Sinder, que também fez parte de minha banca de qualificação e ofereceu grandes contribuições
para a realização desta dissertação. À Professora Maria Josefina, querida Masé, que se tornou
uma amiga neste último ano e ofereceu seu tempo para ler minha dissertação e me ajudou em
diversos pontos quando eu estava estagnado. E ao Professor Isaac Jerez, que muito mais que
membro desta banca é um grande amigo de anos, companheiro de inúmeros debates e conversas
calorosas sobre os mais diversos assuntos, companheiro que sempre me incentivou e ofereceu
seu conhecimento. Se não fosse por ele eu jamais teria trilhado esta jornada.
Gostaria de estender estes agradecimentos também à minha terapeuta Dinorah Gama,
cuja ajuda muito mais do que apenas profissional me deu forças para atravessar períodos de
extrema ansiedade que prejudicavam não apenas a realização deste trabalho, mas minha vida
de forma geral, especialmente neste último ano e meio de pandemia. Agradeço também a meus
amigos e amigas de quem acabei me afastando momentaneamente e com quem tive que cancelar
compromissos em função da minha dedicação à realização desta pesquisa.
Por fim, mas não menos importante, agradeço imensamente à minha namorada Vera
Chaves, uma mulher maravilhosamente carinhosa e companheira. Mulher que conheci no mês
que entrei para o PPCIS e que esteve comigo por todos esses anos, passando por altos e baixos,
sempre me incentivando e apoiando. Mulher que me inspira todos os dias e a quem admiro
demais.
A ignorância leva ao medo, o medo leva ao ódio, e o ódio leva à violência. Essa é a equação.
Ibn Rushd (1126-1198)
RESUMO

MONTEIRO, Bruno Motta. O orientalismo nas telas da globalização: império, guerra e


representação no cinema hollywoodiano. 2021. 126 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2021.

Na contemporaneidade, o cinema se apresenta, para muitos, como o principal


meio de contato com o “outro” de culturas distantes. Embora compartilhe esse papel com
outras mídias, o cinema, especialmente o de Hollywood, se destaca pelo seu amplo
alcance. Indivíduos de todo o mundo em algum momento têm contato com esse cinema
de grandes orçamentos e circulação produzidos pelos estúdios hollywoodianos. Quase
todos assistem aos mesmos filmes, sendo assim apresentados às mesmas imagens e
narrativas provenientes de uma mesma origem e sob o mesmo viés. Em um contexto
marcado pelo que já foi incorretamente chamado de “choque de civilizações”, é relevante
analisar as representações de árabes/muçulmanos fabricadas por essa mídia. Através da
análise de dois filmes hollywoodianos do gênero dos war movies, este trabalho apontou
que os mesmos tropos e estereótipos presentes em obras literárias desde, pelo menos, o
século XVIII, acerca do oriental árabe e/ou muçulmano e sua terra, continuam a ser
mobilizados com frequência ainda que atualizados para os determinados contextos.
Observou também como a temática da guerra acaba por reforçar estes tropos sobre o
“outro”, uma vez que a narrativa compele a identificação do espectador com as
protagonistas e a guerra mobiliza o conflito. Concluiu-se que o filme da indústria
hollywoodiana continua a perpetuar noções equivocadas sobre o Oriente e o oriental,
contribuindo para legitimar a postura imperialista do Ocidente em relação ao resto do
mundo.

Palavras-chave: orientalismo; cinema; representação; imperialismo; guerra


ABSTRACT

MONTEIRO, Bruno Motta. Orientalism on the screens of globalization: empire, war and
representation on Hollywood cinema. 2021. 126 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2021.

In contemporary times, cinema presents itself, for many, as the main way of
contact with the “other” from distant cultures. Although it shares this role with other kind
media, cinema, especially that of Hollywood, stands out for its broad reach. People from
all over the world have at some point in theirs lives, contact with this big budget and great
circulation cinema produced by Hollywood studios. Almost everyone watches the same
films, so they are presented with the same images and narratives from the same source
and under the same bias. In a context marked by what has been incorrectly called the
"clash of civilizations", it is relevant to analyze the representations of Arabs/Muslims
manufactured by this media. Through the analysis of two Hollywood films in the genre
of war movies, this work points out that the same tropes and stereotypes present in literary
works since at least the 18th century, concerning the Arab and/or Muslim Oriental and
their land, continue to be frequently mobilized even if updated for the given contexts. It
also observes how the theme of war ends up reinforcing these tropes over the “other”,
since the narrative compels the identification of the spectator with the protagonists and
war mobilizes the conflict. It is concluded that the film of the Hollywood industry
continues to perpetuate misconceptions about the East and its inhabitants, contributing to
legitimize the imperialist stance of the West in relation to the rest of the world.

Keywords: orientalism; cinema; representation; imperialism; war


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mullah Razzan enxuga as lágrimas da criança. A mão suja é posta em contraste
com a pele da menina como se seu toque levasse estas crianças rumo ao obscurantismo
por ele representado. ................................................................................................... 75
Figura 2 – Um guerrilheiro pré-adolescente bate continência para o Capitão Nelson antes
da batalha de Bescham. ............................................................................................... 83
Figura 3 – Pat Essex (Austin Hérbert) entrega capsulas de munição usada para uma
criança após a batalha de Bescham. ............................................................................. 84
Figura 4 – Milo ensina Najeeb a falar "Motherfucker". ................................................ 85
Figura 5 – Milo protege Najeeb do impacto das explosões. ......................................... 93
Figura 6 – Ferido, Milo ergue Najeeb em seus braços em um esforço heroico para salvar
a criança...................................................................................................................... 94
Figura 7 – Em diversos momentos durante o filme, as ruas de Bagdá são apresentadas
tomadas por lixo e detritos, completamente abandonadas. ......................................... 100
Figura 8 – Plano aberto e elevado a fim de demonstrando a imensidão e desolação da
paisagem na qual os heróis se encontram. Nenhuma forma de vida é avistada, somente o
veículo militar ocidental é visto desbravando o deserto estéril. .................................. 103
Figura 9 – Extrato da abertura do filme Fort Apache (John Ford, 1948), no qual os mesmo
motivos e tropos do deserto e da desolação da terra do “outro” é representado. Da mesma
forma que em The Hurt Locker, os heróis que chegam a este cenário inóspito se deparam
com a violência do Outro (indígenas, neste caso) e são representados como a luz de vida
e civilidade em meio às trevas da selvageria. ............................................................. 103
Figura 10 – Enquadramento com a utilização de um zoom intenso, simulando a visão a
partir da mira telescópica do rifle de precisão. ........................................................... 107
Figura 11 – Apenas a arma do guerrilheiro oriental é enfocada no quadro, resumindo sua
presença apenas à ameaça que ela suscita. ................................................................. 109
Figura 12 – Em foco agora estão os alvos da arma à espreita: os soldados ocidentais
dentro dos círculos em vermelho. .............................................................................. 109
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 REPRESENTAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CINEMA ........................................ 15
1.1 Comunicação e representação ............................................................................ 15
1.2 O mundo e a tela.................................................................................................. 21
1.3 O Orientalismo clássico ....................................................................................... 24
1.3.1 A fase recente do Orientalismo ........................................................................... 28
1.4 Sobre a globalização ............................................................................................ 35
1.5 Sobre o cinema como objeto de estudo ............................................................... 39
1.5.1 O hipercinema .................................................................................................. 39
1.6 A representação do oriental no cinema contemporâneo .................................... 41
1.6.1 O Ocidente sitiado e sua representação ............................................................... 41
1.6.1.1 O 11/9 e a latência do século XXI.................................................................... 42
1.6.1.2 Um cerco de séculos ........................................................................................ 47
1.6.1.3 Hollywood e a narrativa do terrorismo ............................................................. 51
2 O “BOM E VELHO” PATRIOTISMO À AMERICANA DE 12 STRONG ........ 55
2.1 Parte I: Em defesa da pátria ferida .................................................................... 60
2.1.1 Patriotismo semper fidelis .................................................................................. 64
2.1.2 Do cowboy ao soldado de elite............................................................................ 69
2.2 Parte II: O outro ................................................................................................. 73
2.2.2 O mau, a criança e o herói .................................................................................. 74
2.2.2.1 O Mau ............................................................................................................. 74
2.2.2.2 A criança ......................................................................................................... 80
2.2.2.3 O Herói ........................................................................................................... 85
2.3 Parte III: O confronto final e a primazia do herói ............................................. 91
3 THE HURT LOCKER: O TERROR DA GUERRA AO TERROR ...................... 95
3.1 “Shithole countries” ............................................................................................. 98
3.2 “Em que nós estamos atirando? / Eu não sei!” ................................................ 104
3.3 Guerra autotélica .............................................................................................. 110
3.3.1 Velocidade autotélica ....................................................................................... 111
3.3.2 Violência autotélica .......................................................................................... 112
3.3.3 James e a autotelia da guerra ............................................................................ 113
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 122
11

INTRODUÇÃO

O imperialismo deixa para trás germes de


podridão que devemos detectar e remover
clinicamente de nossa terra e também de
nossas mentes.
Frantz Fanon (1925-1961

Inspirado pelas obras e pensamento do intelectual palestino Edward Said (1935-


2003), este trabalho investiga a maneira como o oriental árabe e muçulmano é
representado no cinema hollywoodiano de grande circulação, tanto nos aspectos estéticos
quanto em aspectos da narrativa construída em torno desta figura. Através de uma análise
da representação da experiência da alteridade presente na narrativa cinematográfica, irei
me aprofundar nos processos de construção de estereótipos presentes em duas obras do
gênero dos filmes de guerra (war films) de grandes estúdios de Hollywood: 12 Strong
(Nicolai Fuglsig, 2018) e The Hurt Locker (Katherine Bigelow, 2008). Além de eu me
debruçar sobre à realização desta análise representacional, pretendo também apontar
como a construção das narrativas e imagens orientalistas no cinema não é apenas uma
coletânea inocente de imagens estereotipadas e reduzidas que compõem uma história de
ficção, mas que possuem uma íntima relação com o Império, no caso, o estadunidense.
Em Cultura e Imperialismo (1993), Said faz um profundo estudo da relação entre
a cultura e o império através da análise de algumas obras de literatura do século XIX e de
primórdios do século XX. O autor não afirma que os escritores fossem, necessariamente,
movidos pela ideologia, mas aponta que estes estão profundamente conectados à história
de suas sociedades, sendo moldados por ela e por suas experiências sociais (SAID, 2011,
p. 24). Hoje, a relação persiste, por mais que os produtores e diretores de cinema
argumentem que seus longas-metragens são meras obras de ficção, existe ainda uma
íntima relação com toda a sombra de uma herança cultural de obras imperialistas passadas
que hoje “comprimem o cérebro dos vivos”, como disse Marx em O 18 de Brumário de
Luís Bonaparte. Neste sentido o que me proponho neste trabalho é dar, de certa forma,
sequência ao que Said iniciou – sem, obviamente, a pretensão de atingir todo o primor de
erudição que este intelectual depositava em suas obras. Digo isso seguindo as próprias
palavras deste pensador que tanto admiro, cuja “esperança é que os leitores e críticos deste
livro (Cultura e Imperialismo) o utilizem para aprofundar linhas de pesquisa e
12

argumentação sobre a experiência histórica do imperialismo aqui esboçadas” (SAID,


2011, p. 25).
Em função da natureza do meu objeto de pesquisa, filmes, é necessária a utilização
de um arcabouço metodológico que se adeque às especificidades suscitadas por tal objeto.
Neste sentido, me debrucei sobre uma literatura interdisciplinar que bebe, principalmente,
dos campos da teoria fílmica, da análise literária e dos cultural studies. Dentre a vasta
coletânea de obras existentes, meu principal referencial metodológico é extraído das obras
do teórico da comunicação Robert Stam. Em um artigo de 1983 publicado na revista
Screen, Stam, em coautoria com Louise Spence faz importantes apontamentos quanto à
metodologia de análise da representação do colonialismo e racismo em filmes. Em
primeiro lugar, os autores apontam como sendo crucial a análise do filme sob uma
perspectiva contextual, ou seja, questões relativas à indústria do cinema e seus processos
de produção, distribuição e exibição, que variam de obra para obra. Um filme
vanguardista tunisiano embebido na filosofia sufi como Bab’Aziz (Nacer Khemir, 2005),
por exemplo, não pode ser lido com os mesmos critérios que um filme da indústria
hollywoodiana de cinema. Ainda, Stam e Spence indicam a necessidade de também ler o
filme de maneira textual e intertextual. Textual, pois o filme deve ser entendido como um
texto que carrega sentidos, discursos e intenções. Intertextual, pois o filme existe em um
universo de muitos outros textos com os quais ele constrói uma relação. Por fim, os
autores ressaltam a importância de identificar a maneira pela qual o filme “fala”, ou seja,
sua composição, enquadramento, escala, som, música, e o que diz respeito ao enredo e as
personagens. Assim, é preciso observar quais personagens são considerados como
“sujeitos falantes” ou como “objetos falados”1. Para isso,
Questões de escala e duração das imagens, por exemplo, estão intrinsecamente
relacionadas com o respeito para com uma personagem e à potencial simpatia,
compreensão e identificação dos espectadores. Quais personagens são
mostrados em close-ups e quais são relegados ao segundo plano? Uma
personagem parece e age ou simplesmente está lá para ser olhado e atuado ao
redor? Com quem é permitida a intimidade da audiência?2 (STAM; SPENCE,
1983, p. 17).

A fim de responder estas questões, necessitei, evidentemente, assistir aos filmes


que me servem como objeto de pesquisa. Para tanto, estipulei uma metodologia para

1
No original: “Speaking subjects” e “Spoken objects”.
2
No original: Questions of image scale and duration, for example, are intricately related to the respect
afforded a character and the potential for audience sympathy, understanding and identification. Which
characters are afforded close-ups and which are relegated to the background? Does a character look and
act, or merely appear, to be looked at and acted upon? With whom is the audience permitted intimacy?
13

assistir estes filmes que me permitisse melhor analisá-los. Em um primeiro momento


assisti cada filme em sua integridade e sem interrupções, sem parar para fazer maiores
observações em detalhes. O que busquei neste momento foi ter a experiência mais
próxima o possível do espectador casual. Posteriormente, parti para um visionamento
mais atento de cada filme, reassisti a cada um, porém parando para fazer anotações sobre
momentos que me chamavam a atenção e mereciam ser observados posteriormente com
mais aprofundamento. Realizei esse procedimento por duas vezes com cada filme. Em
um terceiro momento, não mais assisti à totalidade dos filmes, mas sim apenas as
sequencias que destaquei na etapa anterior, realizando novas anotações agora levando em
conta a bibliografia pesquisada. Por fim, ao longo da redação dos capítulos 2 e 3, sempre
que precisava me referenciar ao filme ou me aprofundar numa análise, eu assistia e
reassistia as sequências analisadas.
Dividi este trabalho em três capítulos. No primeiro, apresento o amplo arsenal
teórico e conceitual pesquisado para a elaboração desta pesquisa. Devido aos meus
objetos, filmes de cinema, fazerem parte do reino da comunicação, me presto a fazer um
resgate da relação entra a comunicação e a representação, passando por alguns conceitos
utilizados nos estudos da literatura para então introduzir alguns questionamentos
conceituais acerca do estudo sobre cinema. Trago também outros dois conceitos de grande
importância para o desenvolvimento do trabalho: globalização e, o mais central dos que
utilizo, orientalismo. Sobre a globalização, trago este debate pois escolhi o cinema como
objeto de análise uma vez que, como apontam Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009, p.
301), “nenhuma outra arte possui uma força de penetração comparável: de todas as
máquinas de sonhar inventadas pelo gênio humano, o cinema não é apenas a mais
engenhosa, mais provavelmente a de maior performance”. Já o conceito de orientalismo
de Edward Said (2007), por sua vez, é central no debate que me proponho, desta forma,
dedico diversas páginas para apresentar esse conceito em sua origem e como ele se
manifesta na contemporaneidade. Neste sentido, e articulando com meu objeto, faço uma
breve exposição da representação do oriental no cinema, trazendo um questionamento
quanto ao impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001 na mentalidade estadunidense
e, por consequência, na forma como isso se expressou nos filmes pós-2001.
No segundo capítulo me dedico à análise do filme 12 Strong, na qual levanto
questionamentos quanto à abordagem do patriotismo exacerbado encarnado na
personagem principal, traçando um paralelo entre os valores e motivos mobilizados pelos
antigos filmes de western e os atuais war films. Posteriormente, trago uma análise sobre
14

a representação e a interrelação de três estereótipos presentes no filme, encarnados nas


personagens principais estadunidenses, no vilão da trama e em personagens secundárias
adolescentes a partir da metáfora dos “Selvagens-Vítimas-Salvadores” (MUTUA, 2001).
Por fim, ao terceiro capítulo realizo a análise de The Hurt Locker, o mais
prestigiado filme de guerra do século XXI. Ainda trabalhando sobre questões acerca de
determinados estereótipos, analiso neste filme a representação do espaço oriental,
comumente associado com o deserto estéril e pouco desenvolvido, mas ao mesmo tempo
ameaçador e opressor. Em seguida, partindo desta noção do “outro” e de seu espaço como
uma ameaça, retomo uma discussão iniciada no primeiro capítulo para analisar a sensação
experimentada pelo Ocidente de que, do Oriente, sempre há algo a sua espreita.
É importante apontar que existem infinitas análises que poderiam ser realizadas e
inseridas neste trabalho, ainda, informo ao leitor que mais considerações quanto à
metodologia estão diluídas ao longo dos três capítulos.
15

1 REPRESENTAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CINEMA

Isolado de tudo exceto do passado que lhe é


criado pelo polêmico orientalista, o árabe
está acorrentado a um destino que o fixa e o
condena a uma série de reações.
Edward Said (1935-2003)

1.1 Comunicação e representação

“Então disse Deus, façamos o homem à nossa imagem3”, está escrito no livro
bíblico do Gênesis, o mito da criação das tradições religiosas abraâmicas. Muito já foi
debatido por teólogos e filósofos a respeito do verdadeiro sentido desta passagem, no
entanto, em uma perspectiva socioantropológica, a qual interessa a mim, o que esta frase
bíblica evoca é que, desde os tempos primevos da criação narrados no livro do Gênesis,
os seres humanos foram representados e constituídos em sua imagem por um agente
externo. Neste caso, o Criador. Não obstante, tendo tal relato sido narrado por mãos
humanas, evoca-se a necessidade dos povos de criarem representações e narrativas a seu
próprio respeito. Além do mito de criação judaico-cristão existem, obviamente, uma
infinidade de outras cosmogonias nas quais são relatadas o surgimento do mundo, deuses
e homens. Ainda, em primitivas gravuras rupestres espalhadas por todos os continentes
encontramos representações de cenas de caça e da vida cotidiana das sociedades daquele
tempo. A prática da representação, então, fez parte desse cotidiano e continua fazendo até
a atualidade. Porém, não estando sozinhos no mundo, os povos não representam somente
os seus, mas criam também as representações dos “outros”, diferentes de si, com quem
coabitam o espaço das mais diversas maneiras ao longo do tempo.
Em cada sociedade e a cada momento histórico, encontramos práticas
representacionais específicas que refletem os aspectos éticos e morais desta sociedade,
seus valores e crenças, de determinado período. Ainda, tais práticas de representação
estão condicionadas às técnicas disponíveis para essas sociedades, uma vez que “cada
período é portador de um sentido, partilhado pelo espaço e pela sociedade, representativo
da forma como a história realiza as promessas da técnica” (SANTOS, 2014, p. 171). No
mesmo sentido, Raymond Williams (2011, p. 69) aponta que, tanto como produtos e

3
1 Gen 26.
16

meios de produção, os meios de comunicação são diretamente condicionados pelo


desenvolvimento histórico, uma vez que eles têm “uma produção histórica específica, que
é sempre mais ou menos diretamente relacionada às fases históricas gerais da capacidade
produtiva e técnica”.
Ao falarmos em “técnica”, no entanto, não remete somente àquelas relacionadas
aos meios de produção ou a instrumentos, essas dizem respeito apenas a uma família de
técnicas dentre muitas outras. Aquela que importa para esta análise é a família das
técnicas de informação, a qual, obviamente, não pode existir desvinculada de técnicas de
produção (científica, industrial etc.), uma vez que todas as técnicas existem em
consonância umas com as outras. Afinal, são necessários meios para produzir a
informação que será transmitida. Se durante a Idade Média europeia, por exemplo, a
transmissão da informação, e meio de realização das representações, era expresso por via
de textos acompanhados por gravuras, existiam técnicas especificas para as partes
artísticas e de caligrafia, assim como técnicas simbólicas de mediação. Nessas pinturas
medievais, anteriores ao desenvolvimento da técnica da perspectiva, o tamanho das
figuras representadas nas iluminuras, tapeçarias, relevos etc. correspondia ao seu
prestígio na sociedade: nobres e integrantes do clero eram grandes, plebeus eram
pequenos (SHOHAT; STAM, 2014, p. 208).
Naquele momento, a escrita, de forma geral, não era uma forma de comunicação
amplamente difundida. O domínio dessa técnica – acompanhada de sua técnica de
decodificação: a leitura – era restrito aos setores hierárquicos mais elevados da sociedade
medieval, ou seja, o clero e a nobreza. Quase a totalidade dos textos medievais eram
escritos em latim e tinham caráter religioso. Na consciência da sociedade da Europa
medieval, as representações da vida se davam através do visual e eram costuradas ao
tecido social através da moral religiosa de pertencimento à cristandade, uma vasta
comunidade religiosa que englobava toda a Europa e parte da Ásia. O idioma sagrado, o
latim, era de uso exclusivo do clero, que servia como mediador entre o divino e o
mundano, a representação da realidade estava sob a guarda daqueles que detinham o
controle sobre as técnicas de representação, neste caso, o idioma da liturgia sagrada.
Como aponta Benedict Anderson (2008, p. 52),
17

estamos diante de um mundo onde a representação da realidade imaginada era


maciçamente visual e auditiva. A cristandade assumia a sua forma universal
mediante uma miríade de especificidades e particularidades: este relevo;
aquele vitral; este sermão; aquela parábola; esta peça de moral; aquela relíquia.
Se o clero transeuropeu letrado em latim era um elemento essencial na
estruturação do imaginário cristão, igualmente vital era a transmissão dessas
concepções para as massas iletradas, por meio de criações visuais e auditivas,
sempre pessoais e particulares.

Durante bastante tempo, no Ocidente, a realidade imaginada foi quase que totalmente do
campo do visual ou do auditivo, mensagens transmitidas com códigos bem objetivos,
como no caso mencionado anteriormente, dos nobres e clero serem retratados maiores
que os plebeus em representações visuais. Estas técnicas representacionais permaneceram
imutadas por séculos até o surgimento de novas técnicas que permitiram que o domínio
da produção escrita não mais ficasse restrito à Igreja Católica por meio de seus eruditos
e monges copistas. É com o surgimento da prensa mecânica no Ocidente, no século XV,
e do capitalismo impresso associado a essa técnica – cujo auge fora atingido durante o
século XVIII –, que documentos escritos passaram a se tornar mais difundidos e variados,
descolando-se da hegemonia eclesiástica e dos textos sagrados.
Com o advento do capitalismo impresso, fora possível disseminar a palavra escrita
para fora dos domínios da comunidade religiosa, o desenvolvimento da imprensa como
mercadoria fora um elemento chave para o surgimento das novas ideias sobre a
simultaneidade dos acontecimentos que favoreceram a formação de um imaginário em
comum a cerca de um grupo étnico. Para se ter uma noção do impacto dessa nova técnica,
em apenas um século – entre 1500 e 1600 – desde o surgimento da prensa mecânica no
Ocidente, a quantidade de livros impressos na Europa atingira um volume aproximado
entre 150 e 200 milhões de exemplares (ANDERSON, 2008, p. 66). Em sua fase inicial,
as camadas mais abastadas da burguesia urbana comercial passaram a ter acesso, a
disseminar escritos relacionados com a vida cotidiana e a representar a vida popular e
mundana através da palavra impressa, permitindo a produção de projetos de afinidades
étnicas sem que fosse preciso a comunicação face-à-face, e até mesmo indireta, entre as
pessoas e grupos (APPADURAI, 1997, p. 28). Esse processo alterou a forma com que as
pessoas percebiam o tempo. Na noção medieval de simultaneidade, passado e futuro
existem em um presente instantâneo, em que eventos do passado, geralmente bíblico, são
um prenúncio de eventos futuros; e eventos do presente são a confirmação de eventos do
passado. Na atual concepção de simultaneidade, no entanto, existe “uma ideia de ‘tempo
18

vazio e homogêneo’, em que a simultaneidade é [...] marcada não pela prefiguração e pela
realização, mas sim pela coincidência temporal, e medida pelo relógio e pelo calendário”
(ANDERSON, 2008, p. 54). Dessa transformação, duas formas de criação imaginária
marcaram o período e floresceram a primeira vez pela Europa durante o século XVIII: o
jornal e o romance. Formas estas que propiciaram uma transformação da técnica de
representar a sociedade. Por sua vez, o capitalismo editorial permitiu que cada vez mais
pessoas passassem a pensar sobre si mesmas e a se relacionar com os “outros” de maneiras
radicalmente novas através dessas novas técnicas representacionais, formando novas
bases para aquilo que Benedict Anderson chama de comunidades imaginadas, mais
especificamente para a concepção de nação (ANDERSON, 2008, p. 55; 70).
Apesar de, inicialmente, grande parte desses livros impressos mecanicamente
ainda serem bíblias ou em latim – os quais eram consumidos pela parcela letrada da
Europa –, este não era um idioma amplamente conhecido e utilizado, e, dada a lógica do
capitalismo, mesmo que ainda em sua fase embrionária, estando saturado o mercado em
latim para a elite, era o momento de se voltar para atender às massas monoglotas. Deste
modo, o mercado editorial se voltara para publicações feitas nos idiomas vernaculares
dos países, o que ganhou impulso e proeminência graças à Reforma Protestante, com a
impressão de bíblias traduzidas, e pela adoção desses idiomas como a língua oficial da
administração de seus respectivos Estados. Deste modo, a “convergência do capitalismo
e da tecnologia de imprensa sobre a fatal diversidade da linguagem humana criou a
possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008, p. 82),
cuja imaginação era disseminada através de meios que possuem uma linguagem
específica própria, o jornal e o romance, os quais, como mencionado anteriormente,
marcaram este período de desenvolvimento do capitalismo impresso e transformaram a
forma das sociedades representarem a si mesmas e ao mundo.
Observemos, inicialmente, o romance. A estrutura narrativa básica das novelas da
época claramente apresenta os eventos de seu enredo em uma concepção de “tempo vazio
e homogêneo”. Benedict Anderson (2008, pp. 55-56) nos apresenta um exemplo desse
tipo de narrativa: existem quatro personagens (A, B, C e D) das quais duas (A e D) não
se conhecem e sequer se encontram durante a sequência dos eventos narrados, mas são
conectadas uma à outra por meio de outra personagem (C) da trama que conhece e
convive com ambas. Isso leva ao seguinte questionamento: o que realmente liga essas
duas personagens que nunca se encontraram e nem se conhecem? Em primeiro lugar, A
e D pertencem a uma sociedade, seja essa qual for, que é uma entidade sociológica de
19

uma realidade sólida e estável que seria possível que seus membros (A e D) se cruzassem
na rua sem nunca se conhecerem, mas ainda assim mantendo ligações entre si. Uma
segunda concepção liga as personagens A e D: a onisciência do leitor. Apenas esses, como
um deus, são capazes de observar ao mesmo tempo todas as ações realizadas pelas quatro
personagens. Ações que são realizadas simultaneamente no relógio e no calendário, no
entanto, por indivíduos que não necessariamente se conhecem.
Analisando também o jornal como um produto cultural, é impressionante notar
que este, apesar de sua pressuposta intenção de simplesmente descrever fatos que
aconteceram, também possui um caráter bastante ficcional. Ainda sob a luz de Anderson
(2008, pp. 65-68), ao observarmos qualquer jornal de grande circulação percebermos uma
pletora de notícias sobre os mais diversos assuntos relatando acontecimentos decorridos
por todo o mundo. Mas porque esses fatos são apresentados de tal maneira e o que os
liga? Evidentemente, a maioria desses acontecimentos descritos acontecem sem que um
tenha relação ou interferência no outro, sem que os agentes sociais em cada circunstância
se conheçam ou saibam o que o outro está fazendo, no entanto, a arbitrariedade na escolha
de que matérias serão veiculadas uma ao lado da outra mostra que o vínculo entre elas é
imaginado. Vínculo este que deriva de duas fontes. A primeira é simplesmente a
coincidência cronológica, ou seja, o tempo do relógio e do calendário, representando o
avanço contínuo do tempo vazio e o homogêneo, de um tempo através do qual o mundo
caminha sempre para a frente. Se por alguma razão determinada notícia – casos de
xenofobia na França, por exemplo – parar de ser veiculada por alguns meses, os leitores
do jornal não acharão simplesmente que não existem mais xenófobos ou que todos os
imigrantes foram embora da França, apenas que, em algum lugar, o personagem “casos
de xenofobia na França” aguarda pelo seu retorno à narrativa. A segunda fonte do vínculo
imaginário entre os fatos descritos em um jornal deriva do fato de este, como uma forma
de livro, estar relacionado ao mercado. Uma “forma extrema” de livro, publicado e
esgotado no dia de sua publicação, cuja obsolescência logo no dia seguinte cria uma
cerimônia de massa diária: o consumo. O consumo de fatos arranjados arbitrariamente
que levam à produção simultânea de um imaginário coletivo entre os consumidores destes
“jornais-como-ficção”.
É certo que estas profundas transformações ocorridas a partir do surgimento do
capitalismo impresso foram apenas modestas, ainda que extremamente importantes,
precursoras dos processos que atualmente observamos (APPADURAI, 1997, p. 28). Na
contemporaneidade, o jornal e o romance seguem existindo como artefatos culturais que
20

continuam moldando o imaginário coletivo, reforçando e reciclando determinadas


imagens. O segundo, talvez, tenha uma menor influência do que já teve no passado, apesar
de, ainda, aqueles romances considerados como clássicos que marcaram época,
permanecerem fortes como uma fonte de significação e imaginação para uma sociedade.
No entanto, os esquemas narrativos desenvolvidos através da elaboração dos romances
modernos ultrapassam as páginas da ficção – como já apontado em relação ao jornal –
para outras esferas da produção cultural. Desde a segunda metade do século XIX os
avanços tecnológicos nos campos da informação e do transporte foram tamanhos que
fizeram os meios impressos parecerem obsoletos e facilmente substituíveis, da mesma
forma que estes mesmos fizeram no passado com as técnicas anteriores. O surgimento do
telégrafo, do automóvel, do avião, do telefone, do gravador de som, da câmera
fotográfica, da câmera filmadora, do computador, entre tantas outras invenções, fez com
que as sociedades entrassem em uma nova condição de interação com seus membros e
membros de outras sociedades, favorecendo tanto o contato entre membros de uma
comunidade quanto com o “outro” (APPADURAI, 1997, p. 29).
É nesse sentido que Marshall McLuhan (1973; 1989 apud IANNI, 2007, pp. 16-
17) fala da globalização através da metáfora da “aldeia global”, uma “comunidade
mundial, concretizada com as realizações e as possibilidades de comunicação, informação
e fabulação abertas pela eletrônica [na qual está] em curso a harmonização e a
homogeneização progressiva” (IANNI, 2007, p. 16). A análise de McLuhan é importante
para pensarmos em como a informação e o entretenimento passaram a ser fabricados e
vendidos em escala mundial como mercadoria ao lado dos tradicionais produtos
manufaturados. Se no passado os lares eram inundados com bens de consumo duráveis,
“hoje invadimos culturas inteira com pacotes de informações, entretenimentos e ideias.
Em vista da instantaneidade dos novos meios de imagem e de som, até o jornal é lento”
(MCLUHAN, 1973, pp. 564-565, apud IANNI, 2007, pp. 16-17). É importante, porém,
apontar que McLuhan superestimava em muito o aspecto comunitário das mídias
eletrônicas, ao enfatizar um caminho na direção de uma “harmonização e
homogeneização progressiva”, no entanto, a metáfora da “aldeia global” é um tanto
contraditória para se falar da globalização, uma vez que uma aldeia implica em um único
centro, enquanto um globo possui infinitos centros (FARINELLI, 2012, p. 133). Assim,
ao nos remetermos a esta metáfora é preciso que sempre tenhamos em mente que as
mídias eletrônicas criam comunidades sem um “senso de lugar”, o que leva à alienação,
21

distância psicológica entre indivíduos e grupos e a fantasias (e pesadelos) de proximidade


com o “outro” (APPADURAI, 1997, p. 29).
Ainda assim, mesmo já tendo se passado mais de 50 anos desde que McLuhan
propôs esta metáfora analítica, e tendo sido, talvez, muito otimista ao desenvolvê-la, ela
ainda consegue se fazer atual e viva, uma vez que os processos iniciados com a revolução
eletrônica ganharam cada vez mais força e hoje se fazem muito mais presente do que há
50 anos atrás. A imagem segue predominante como forma de comunicação, informação
e fabulação. As mídias eletrônicas não somente favorecem a fabricação de imagens, mas
jogam também com as palavras como imagem – observemos todas as técnicas e arsenal
propagandistas, por exemplo –, a palavra impressa dos jornais e dos romances é
substituída pelo aparelho de televisão, pela tela do cinema, dos computadores e dos
telefones pessoais (IANNI, 2007, p. 17).

1.2 O mundo e a tela

É, então, nessa perspectiva de cada vez maior relevância das mídias eletrônicas,
da prevalência da imagem e do som como forma predominante de comunicação, que o
artefato cultural que me interessa para o desenvolvimento deste trabalho é o cinema, uma
vez que este seja hoje, muito possivelmente, o mais difundido e consumido produto
cultural. A tela do cinema se transforma no meio através do qual o mundo passa a ser
representado na era da globalização, e, a partir desta tela, a imagem passa para telas
menores e portáteis, mais individuais.
A indústria cinematográfica, sobretudo a partir de Hollywood, “globaliza” os
filmes, levando-os a todos os países, e, em cada país, a todas as camadas
sociais, pois, tal como os discos e a televisão, os filmes são acessíveis a todos,
não exigindo, para sua fruição, formação intelectual especializada de tipo
nenhum (VARGAS LLOSA, 2013, p. 24).

Não ter uma “formação intelectual especializada”, no entanto, não significa dizer que o
cinema seja um produto destinado para o consumo de uma parcela da sociedade que não
seria considerada uma elite intelectual, ou que o cinema em si não seria “alta cultura”. O
fato de os filmes não exigirem de seu público uma formação intelectual é indicativo de
que esta mídia é muito mais facilmente acessada por, virtualmente, todas as pessoas. Os
filmes, por exemplo, não exigem que seus espectadores saibam ler, como o é necessário
para que se possa compreender e apreciar um romance. Mesmo que seja um filme com
legendas, a maioria dos filmes hollywoodianos recebe dublagens em uma infinidade de
22

idiomas, e mesmo aqueles que não recebem, os símbolos e motivos mobilizados por estas
produções são de fácil compreensão e objetividade. Talvez apenas isso já fosse o
suficiente para tornar o filme um artefato cultural muito mais fácil de ser assimilado do
que outros.
No entanto, existem ainda outros elementos particulares ao cinema que atuam
neste sentido de facilitar sua assimilação pelos espectadores. A narrativa cinematográfica
clássica hollywoodiana, por exemplo, constitui um importante fator nesse processo. Este
modelo de narração possui uma estrutura muito bem definida, com personagens
igualmente definidos que agem em prol da resolução de alguma situação problema
evidente ou buscam atingir objetivos específicos.
Nessa sua busca os personagens entram em conflitos com outros personagens
ou com circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota
decisiva, a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução dos
objetivos (BORDWELL, 2005, p. 279).

Por mais que a linguagem cinematográfica seja uma herdeira das tradições narrativas do
teatro e da literatura, suas personagens possuem características que são únicas da narração
cinematográfica. Segundo nos mostra David Bordwell (2005, p. 279), na narração
clássica4, a fábula5 é construída tendo a causalidade como princípio unificador, cuja
principal agente causal é a personagem, dotada de traços, qualidades e comportamentos
consistentes e sempre evidentes. De modo geral, a personagem mais “especificada” é a
protagonista, sendo esta a principal agente causal e objeto de identificação do público.
Estes são os aspectos do chamado syuzhet6 que mais caracterizam a narração clássica. Em
função disso, o modo narrativo clássico pode ser considerado como aquilo que, na nossa
cultura ocidental, se chama de história canônica, cujos aspectos em destaque são a
percepção das personagens como agentes de causa e efeito e a definição da ação como a
busca de um objetivo. Neste sentido, no desenrolar do syuzhet, o filme clássico se atém
ao formato padrão canônico, ou seja: um estado inicial de coisas que, uma vez perturbado,
deverá ser reestabelecido. O estilo da narração clássica, então, com todas estas normas
faz dele, não uma fórmula específica, mas sim um conjunto de alternativas que são mais

4
A partir deste ponto, quando me referir à “narração clássica” estarei sempre me remetendo àquela do
cinema hollywoodiano.
5
“Fábula: Termo do formalismo russo para os eventos narrativos em sequência cronológica causal. (Por
vezes traduzido como ‘história’)” (BORDWELL, 2005, p. 278).
6
“Syuzhet: Termo do formalismo russo que designa a apresentação sistêmica da fábula no texto (Por vezes
traduzido como ‘trama’)” (BORDWELL, 2005, p. 278). Pronunciado como “Siu-jêt” [sʲʊˈʐɛt].
23

ou menos prováveis de acontecer. Estes fatores tornam o filme clássico mais facilmente
assimilável para o espectador, como apontado anteriormente, uma vez que este raramente
sentirá dificuldade em compreender os elementos do estilo clássico, pois sempre será
orientado, pela narração, no tempo e no espaço.
É evidente que tais “normas” do syuzhet e dos elementos do estilo clássico se
transformam ao longo do tempo, mas seus princípios de construção centrado na
casualidade e na motivação da protagonista por objetivos e prazos finais, persistem desde
1917. Esta estabilidade e unidade na narração hollywoodiana são o que nos permite
defini-las como clássica, no sentido artístico em que o classicismo sempre foi
caracterizado pela obediência a normas extrínsecas (BORDWELL, 2005, pp. 294-295).
O espectador do filme clássico, obviamente não é um agente passivo diante da
estabilidade dos processos do syuzhet, ele realiza operações cognitivas que, mesmo sendo
habituais e familiares, são dotadas de agência. A questão é que este espectador, ao assistir
a um filme clássico, está muito bem-preparado para esta forma de narrativa canônica.
O espectador conhece os personagens e as funções do estilo mais prováveis.
Possui internalizadas as normas cênicas de exposição e desenvolvimento da
linha casual anterior etc. Conhece ainda as formas pertinentes de motivação do
que é apresentado. A motivação “realística”, no modo clássico, consiste em
estabelecer conexões com o senso comum. (“Um homem como esse iria
naturalmente...”) (BORDWELL, 2005, p. 295).

Desse modo, o espectador constrói as suas próprias hipóteses ao longo do filme, as quais
tendem a ser muito prováveis, sendo validadas ou não no decorrer da fábula, produzindo
assim o suspense quanto a um resultado futuro dentro do syuzhet. O que a narração
clássica faz, então, é administrar o ritmo da apreciação do filme, exigindo que o
espectador elabore o syuzhet e o sistema do estilo clássico ao construir ele mesmo uma
fábula denotativa unívoca e integral (BORDWELL, 2005, pp. 296; 298).
Como abordado anteriormente, na contemporaneidade existe um predomínio da
imagem e do som sobre a palavra escrita, sendo o cinema uma das expressões – se não a
principal – desse cenário. A tela se tornou a nova janela para o mundo e um modo de
viver a vida, nunca antes tivemos tantas telas a nossa disposição e cada vez mais surgem
novas telas e novas formas de conexão entre essas telas. E o que são todas essas telas se
não a multiplicação da tela original, a tela branca do cinema (LIPOVETSKY; SERROY,
2009, p. 255). Assim, ao assistirmos tal proliferação de telas, assistimos também à
proliferação do cinema. Inicialmente ocupando a tela da televisão, depois dos
computadores, aparecendo em telas portáteis em aviões e carros, e, em tempos recentes,
24

na tela portátil dos telefones celulares. Neste último caso sendo potencializado pelo
avançar da tecnologia de transmissão de dados da Internet, que com serviços de
streaming7, como o YouTube, a Netflix (e similares) ou filmes adquiridos ilegalmente pela
Internet, permite que possamos ter a experiência do filme nas palmas das mãos.
O cinema hoje se apresenta, para muitos, como o principal meio de contato com
o “outro”. Poderíamos argumentar, porém, que, na verdade, este papel cabe a todas as
formas de mídias eletrônicas e isso não estaria errado. No entanto, o cinema, dentre estas
várias mídias, parece ser aquele com o maior alcance. Indivíduos de todo o mundo, pobres
ou abastados, em algum momento, tem contato com esta mídia, em especial com aquele
cinema de grandes orçamentos e circulação produzidos pelos estúdios de Hollywood. Na
era da globalização, raros são aqueles que, de alguma forma, não tiveram acesso sequer
uma vez com alguma televisão. Quase todos estes indivíduos assistem a essas mesmas
produções – seja em uma sala de cinema, na televisão, ou qualquer outra tela –, sendo
assim apresentados às mesmas imagens e narrativas provenientes de uma mesma origem
e sob o mesmo viés.

1.3 O Orientalismo clássico

Em linhas gerais, Said (2007, p. 27-29) define o conceito de Orientalismo como


um modo de abordar o Oriente – no entanto não de um Oriente que é geralmente associado
ao Extremo Oriente (como a China ou ao Japão) no Brasil, mas de um Oriente que tem o
longo histórico de contato cultural e político com a Europa, o que hoje chamamos de
Oriente Médio – fundamentado no lugar especial que o Oriente se encontra na experiência
ocidental europeia.
Este Oriente não está apenas geograficamente muito próximo da Europa, mas
também foi o local de origem de suas civilizações – o que pode soar estranho, mas é
importante lembrar que um dos mais importantes pilares morais da civilização ocidental
é o cristianismo, o qual remonta seu surgimento à tradição oriental do judaísmo e cuja
figura central, Jesus Cristo, nasceu no Oriente Médio –, um rival cultural e sua fonte mais
frequente e profunda de imagens do “outro”, sendo este último aspecto fundamental para
a definição do que a própria Europa, ou Ocidente. É a partir dessas imagens e experiências

7
Também chamado de “transmissão contínua” ou “fluxo de mídia”, é um sistema de transmissão de dados
que, através da Internet, reproduz em tempo real a informação, a qual, então, não necessita ser armazenada
localmente.
25

contrastantes que a Europa molda grande parte de sua identidade. É importante, no


entanto, ressaltar que nenhum desses aspectos fazem parte apenas de uma dimensão
imaginativa, mas são também, e principalmente, parte da cultura material do Ocidente,
sendo expresso tanto em termos culturais como ideológicos. Desta forma,
tomando o final do século XVIII como ponto de partida aproximado, o
Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a
lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito,
descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o
Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente (SAID, 2007, p. 29).

Neste sentido que assume como um discurso, o Orientalismo pode ser compreendido
como uma disciplina sistemática através da qual a intelectualidade e cultura europeia,
desde o final da época iluminista, passou a manipular e produzir o que é o Oriente política,
sociológica, ideológica e imaginativamente. A partir deste processo a cultura da Europa
passou a ganhar uma força pautada na sua contraposição ao oriental, tendo este como uma
espécie de subalterno de sua cultura.
Os discursos, de acordo com Stuart Hall (2016, p. 26),
definem o que é ou não adequado em nosso enunciado sobre um determinado
tema ou área de atividade social, bem como em nossas práticas associadas a tal
área ou tema. As formações discursivas definem ainda que tipo de
conhecimento é considerado útil, relevante e “verdadeiro” em seu contexto;
definem que gênero de indivíduos ou “sujeitos” personificam essas
características.

Assim, o Orientalismo, então, nos remete a uma espécie de sistema de representação do


Oriente e do oriental através da elaboração de um discurso, que, por sua vez, sendo um
elemento da linguagem, tem como função a transmissão de significados, símbolos e
sentidos que acabaram por se tornar uma parte essencial da própria cultura europeia na
medida em que este sistema de significação do “outro” oriental, tida como “verdadeira”
e irredutível, era contraposta à própria autoimagem dos europeus, ajudando a consolidá-
la.
Um dos mecanismos utilizados no interior deste sistema de representação é aquele
relacionado à “estereotipagem”, uma prática representacional bastante utilizada naquilo
que Hall (2016) chama de “o espetáculo do ‘outro’”. No discurso orientalista, a
estereotipagem sempre fez parte de seu arsenal de recursos ao construir os saberes sobre
o oriental, afinal, estereotipar consiste em pegar os tipos que utilizamos para
classificarmos as pessoas ou grupos de pessoas e reduzi-los a umas poucas características
simples, de fácil percepção, assimilação e memória para então exagerá-los e, por fim,
26

condensá-los na figura em questão. Processo através do qual se essencializa, fixa e


naturaliza a diferença, demarcando onde termina o “eu normal” e começa o “outro
diferente” (HALL, 2016, p. 191).
Na relação do Ocidente com o Oriente, as práticas de estereotipagem se perpetuam
desde os primeiros contatos do europeu com o oriental, como já mencionado previamente
a respeito das imagens e narrativas construídas a respeito do profeta muçulmano e de seu
credo. Naquele momento, no entanto, o estereótipo não era criado a partir de
características facilmente assimiláveis que seriam possíveis de identificar no islam8 ou
nos árabes, mas era baseado em um viés teológico que denunciava características
facilmente memoráveis sobre tudo aquilo que o Ocidente temia e não era capaz de digerir
no interior de sua própria sociedade, “o ódio e o medo, que são negações absolutas da
mensagem de amor de Jesus, também representam profundas feridas na integridade da
cristandade ocidental” (ARMSTRONG, 2002, p. 37). Porém, a prática representacional
essencialmente característica da estereotipagem surge com o Orientalismo acadêmico, a
partir do século XVIII, com as suas tentativas de explicar este Oriente, seus povos,
costumes, instituições etc. para os ocidentais europeus. E, como ressalta Said (2007, p.
89), quando um orientalista viajava para o local que era o objeto de seus estudos, era
sempre acompanhado de “máximas abstratas e inabaláveis”, estereótipos, portanto, sobre
esta sociedade que era a especialidade de sua erudição. Raros eram aqueles orientalistas
que não buscavam comprovar a validade de suas verdades preconcebidas, “aplicando-as,
sem grandes sucessos, a nativos que não as compreendiam – degenerados, portanto”.
Assim, é a partir deste ponto na História – final do século XVIII e alvorecer do
século XIX – que o Orientalismo se converte naquela instituição ocidental “autorizada a
lidar” com o Oriente, como já descrita anteriormente. Deste momento, cujos efeitos
epistemológicos reverberam até a hoje na consciência ocidental, então, é possível dizer
que começa o espetáculo do “outro” oriental. Ao longo do século XIX, uma avassaladora
quantidade de romances e novelas foram redigidas por escritores europeus entusiastas do
Oriente, como Victor Hugo, Goethe, Nerval, Flaubert, entre tantos outros, o que,
inclusive, nos permite falar de um gênero literário estritamente orientalista – da mesma

8
“A grafia Islã, habitualmente utilizada no Brasil […] contraria todo e qualquer princípio da boa transcrição
fonética. Na realidade, a palavra em sua origem tem praticamente três sílabas, is-la-me. Qualquer neófito
em matéria de fonética não ignora que, em islam, o m final não funciona como uma simples nasalização
da vogal anterior (caso do n), mas verdadeiramente como um novo fonema”. Ver nota do tradutor em: LE
GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 118. Em função desta explicação, decidi utilizar a grafia Islam ao longo do trabalho.
27

forma como podemos falar de um estilo de pintura propriamente orientalista. Nesta fase
do Orientalismo, ainda que a dimensão erudita e acadêmica tenha uma considerável
expressão, a segunda dimensão que Edward Said identifica, aquela relacionada ao sentido
imaginativo, é a que mais ganha força neste momento.
O Orientalismo age como uma instituição de autoridade, uma autoridade que é
irradiada, disseminada, persuasiva e instrumental que estabelece e fixa conceitos e valores
a respeito do Oriente e seu nativo no imaginário ocidental (SAID, 2007, p. 49), ou seja,
estereotipa. Essas ideias, então, ao passo que são tidas como verdadeiras, transmitem e
perpetuam um conhecimento a respeito do Oriente, que tem como utilidade última a sua
dominação a partir dos mecanismos da representação. Ilustrando com a frase de Marx em
O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “eles não podem representar a si mesmos, devem
ser representados”, Said (2007, pp. 51-52) ressalta que “a exterioridade da representação
é sempre regida por alguma versão do truísmo de que, se o Oriente pudesse representar a
si mesmo, ele o faria; como não pode, a representação cumpre a tarefa para o Ocidente”.
Nessa perspectiva, a questão da exterioridade do Orientalismo é crucial, uma vez
que este é estabelecido e evidenciado através dela. O orientalista “faz o Oriente falar”,
descreve-o e revela seus “segredos” para o receptor de suas obras, não há uma
preocupação em ir além desta primeira causa exterior e superficial. Assim, a partir da
exterioridade característica da prática orientalista, a representação é produzida fundada
em acepções rasas das quais florescem os estereótipos, que, como um ciclo, fazem girar
a roda da simplificação e essencialização do “outro”. O Oriente é transformado e reduzido
a figuras familiares e, geralmente, ameaçadoras ou sedutoras, o que, como descrito por
Stuart Hall e mencionado anteriormente, se caracteriza como a prática da estereotipagem.
As características do oriental são reduzidas, trazidas para uma realidade próxima e
palpável daqueles que consomem a produção orientalista, e então transformadas em um
símbolo de todo o Oriente (SAID, 2007, p. 51). Nos textos, imagens e narrativas
orientalistas do século XIX, XX e XXI encontramos, cada qual pertinente a seu contexto
histórico da relação Ocidente-Oriente, uma gama extremamente variada de símbolos
sobre o Oriente, representando os valores, medos, intenções e fascinações do ocidental
para com este “lugar distante e misterioso”.
Cabe aqui, então, falar brevemente da importância dos símbolos para as sociedades
que os produzem. De acordo com Clifford Geertz (2004; 2008), partindo de Weber, a
cultura pode ser entendida como uma teia de significados tecida pelos grupos sociais nas
quais o próprio homem está amarrado. Nesta teia, o ser humano, a fim de dotar o mundo
28

social de sentido, se utiliza de um complexo sistema de significações socialmente


disponíveis para esta tarefa – a linguagem, a arte, a tecnologia, as imagens, representações
etc. – ou seja, os símbolos. Assim, a cultura existe como um sistema simbólico que opera
as relações internas dos elementos que, assim como os homens, estão amarrados nessa
mesma teia de significados. Desta forma, os elementos simbólicos, ao dar sentido para a
experiência da realidade vivida por um grupo social, moldam a forma com que estes
perpetuam sua cultura e se relacionam com ela e com a cultura do “outro”. Este “outro”,
inclusive, pode, ele próprio, tornar-se um símbolo de algo que uma cultura acredita ser
repugnante ou vil, exemplos são o que não falta para esta relação de alteridade. No caso
da relação Ocidente-Oriente, o oriental essencializado torna-se um símbolo, para o
Ocidente, de um suposto Oriente que fora inventado e transformado em espetáculo pelos
orientalistas através de seus ensaios acadêmicos, novelas literárias, pinturas e projetos
arquitetônicos e, claro, mais recentemente, pelo cinema.
Através da produção destes símbolos essencializados do Oriente, o que resulta a
partir deste processo é uma prática de violência simbólica que persiste através do tempo,
na medida em que, sendo dominados pelas forças (militar, acadêmica, cultural, simbólica)
ocidentais, o oriental passa a incorporar e a perpetuar as categorias ocidentais criadas
sobre si e nunca utilizadas por eles. A essencialização do oriental feita a partir do século
XIX tinha como presunção a inferioridade daquele Oriente islâmico e atuava como um
mecanismo de controle do colonialismo imperial, o que servia para perpetuar a dominação
europeia nas colônias ao incutir aquelas representações estereotipadas do “outro” no
imaginário ocidental.

1.3.1 A fase recente do Orientalismo

Após a exposição do conceito de Orientalismo, se faz necessário uma observação


mais aprofundada sobre este em sua fase mais atual, uma vez que esta é marcada por
particularidades. Quanto a isso, o próprio Said oferece um ponto de partida, no entanto,
sua obra Orientalismo é datada de 1978, e mesmo que ainda bastante atual, não poderia
refletir sobre importantíssimos eventos posteriores a sua data de publicação na relação
Ocidente-Oriente, sobre os quais tratamos a seguir.
Como marco temporal que delimita a passagem do período clássico do
Orientalismo para a sua fase mais recente temos o final da Segunda Guerra Mundial e
29

suas consequências diretas. No que diz respeito ao Orientalismo, o grande


enfraquecimento das potências imperiais europeias – Reino Unido e a França –, a
transferência do poderio geopolítico desses países para os Estados Unidos e a criação do
Estado de Israel implicaram em uma nova e diferente posição da figura do muçulmano
árabe na cultura estadunidense. Tanto a imagem popular quanto as representações
acadêmicas do árabe parecem se assentar de forma muito rápida na cultura estadunidense
através de transformações e reduções tendenciosas.
Até 1973, durante os vários conflitos árabe-israelenses, e sucessivas derrotas dos
árabes, este era retratado como grosseiramente primitivo – mantos, turbantes, sandálias –
, um nômade do deserto acompanhado de seu camelo, assim como a caricatura de um
derrotado e incompetente. Porém, com a Guerra do Yom Kippur e o boicote da venda de
petróleo, ambos em 1973, esta caricatura migra bruscamente para a representação do
sheik vilanesco e ganancioso. Quando o árabe chama a atenção do Ocidente, ele o faz
com negatividade, é visto como um empecilho, um eterno inimigo para o Ocidente e,
desde 1948, para Israel. O árabe é concebido como uma sombra dos judeus, sua história
lhes é retirada (ou dada, o que não faz diferença). Além disso, com as maiores jazidas de
petróleo em seus territórios, os árabes são também fornecedores de petróleo para o
Ocidente, o que torna a região e seu habitante o centro de disputas de poder geopolítico.
Com o boicote de 1973, o Ocidente passa a questionar as “qualificações morais do árabe
para possuir reservas de petróleo”, deixando o “mundo civilizado” refém de suas
barganhas. Questionamentos que, frequentemente, levam à sugestão da execução de
manobras bélicas na região (SAID, 2007, pp. 380-383).
Ainda, a academia estadunidense também fora inundada por vários ditos
especialistas sobre o mundo árabe, fazendo surgir um novo Orientalismo, seja de uma
escola “dura” ou “suave”, no que diz respeito à manutenção da metodologia clássica dos
orientalistas do século anterior. No entanto, não importa o quão diluído seja esse novo
Orientalismo, o que se verifica na academia dos Estados Unidos é a persistência, em sua
forma mais pura, dos principais dogmas orientalistas, ou seja,
a diferença absoluta e sistemática entre o Ocidente, que é racional,
desenvolvido, humanitário, superior, e o Oriente, que é aberrante, não
desenvolvido, inferior. Outro dogma é que as abstrações sobre o Oriente,
particularmente as baseadas em textos que representam uma civilização
oriental “clássica”, são sempre preferíveis a evidências diretas tiradas das
modernas realidades orientais. Um terceiro dogma é que o oriente é eterno,
uniforme e incapaz de se definir, portanto, supõe-se ser inevitável e até
cientificamente “objetivo” um vocabulário altamente generalizado e
sistemático para descrever o Oriente de um ponto de vista ocidental. Um quarto
30

dogma é que o Oriente é no fundo algo a ser temido (o Perigo Amarelo, as


hordas mongóis, etc.) ou controlado (pela pacificação, por pesquisa e
desenvolvimento, pela ocupação cabal sempre que possível (SAID, 2007, pp.
401-402).

Da mesma forma que na Era dos Impérios, o conhecimento acerca do Oriente e do oriental
serve a ideais de dominação, no entanto, considerando as transformações no capitalismo
para sua fase atual do capital financeiro e as novas configurações políticas a nível global,
a produção de conhecimento orientalista serve não apenas para a conquista territorial, mas
também para a conquista de novos mercados consumidores e da dominação econômica
de países os quais são os possuidores das maiores reservas de petróleo do mundo.
A presença de vastas e volumosas jazidas de petróleo no Oriente Médio e todo o
dinheiro que circula no entorno desta comodity, aponta Said (2007, p. 429), é também
uma das razões pelas quais o Orientalismo se espalhou pelos Estados Unidos, uma vez o
Oriente passa a se tornar estrategicamente importante para a manutenção de diversas
economias ocidentais. O Orientalismo sempre anda de mãos dadas com o imperialismo,
tenha este a forma que tiver, utilizando-se das estratégias que forem. Em um mundo de
relações globais dinâmicas e variadas entre os vários Estados, desde a segunda metade do
século XX países do Oriente Médio têm se tornado uma espécie de satélite intelectual,
político, econômico e cultural dos Estados Unidos, relação que para Said (2007, p. 429-
431) não é algo a ser lamentado per se, porém, o que é lamentável é a forma específica
de como esta relação satélite fora construída.
Para explicar esta relação, Said parte do argumento sobre a dominação intelectual
ao afirmar que a direção do sistema universitário dos países árabes é herdada, ou imposta,
das antigas potências imperiais que se apossaram dessas terras no passado. As
independências desses estados árabes do jugo colonial geraram novas circunstâncias que
tornaram desoladora a realidade desses centros de estudos. Diante disso, os poucos
estudantes que se destacam são encorajados a darem continuidade a seus estudos na
Europa e, principalmente, nos Estados Unidos. Para este pensador,
o resultado previsível de tudo isso é que os estudantes orientais (e os
professores orientais) ainda querem vir sentar-se aos pés dos orientalistas
americanos, e mais tarde repetir a seus públicos locais os clichês que tenho
caracterizado como dogmas orientalistas. Esse sistema de reprodução torna
inevitável que o erudito oriental use seu treinamento americano para se sentir
superior a seu próprio povo por ser capaz de “controlar” o sistema orientalista
[…] (SAID, 2007, p. 431).

Apesar desse cenário desolador descrito por Said em Orientalismo, anos mais tarde, ao
escrever Cultura e Imperialismo (1993), o autor já apresenta um quadro mais favorável
31

quanto a eruditos orientais e ocidentais que se dedicam a uma proposta acadêmica anti-
orientalista e anti-imperialista em instituições ocidentais historicamente conservadoras.
Uma revolução acadêmica, de fato. Este movimento se inicia na década de 1980 e ganha
força nos anos 1990, tratando não apenas de transformar os estudos relativos ao Oriente
Médio, como também aqueles sobre, América Latina, África e Índia, acabando, assim,
com o monopólio do conhecimento e discurso produzidos nesses centros de estudos por
eruditos e políticos eurocentristas (SAID, 2011, pp. 401-403).
No entanto, apesar da relevância desse modelo de colonização intelectual, por
assim dizer, Said (2007, pp. 431-432) aponta que o principal fator contribuinte para o
triunfo do Orientalismo é o consumismo no Oriente. Como já indicado, o petróleo, em
sua maior parte extraído no Oriente Médio e Norte da África, é um produto de extrema
importância na economia mundial, principalmente para as ocidentais e, mais ainda, para
a dos Estados Unidos. Neste sentido, não apenas as grandes companhias petrolíferas são
controladas pela economia estadunidense, como a renda gerada pelo petróleo árabe não
fica em seus locais de origem, mas sim nos Estados Unidos. Desta forma, os árabes ricos
com o dinheiro do petróleo são transformados em importantes clientes para as
exportações estadunidenses. Uma relação evidentemente unilateral, na medida em que o
que sai dos países árabes são apenas petróleo e mão de obra barata, enquanto o que chega
de importação para estes países vindo dos Estados Unidos são uma infinidade de produtos
tanto materiais quanto ideológicos.
Diante disso, verifica-se uma grande sorte de consequências, das quais a profunda
padronização do gosto na região, impulsionada por imagens da cultura oriental fornecida
pela mídia estadunidense e consumida por espectadores árabes. Estes últimos, por sua
vez, entram em um paradoxo ao considerar-se um árabe aos moldes do que foi
representado por Hollywood. Vemos isso quando árabes ricos de países cujas economias
são extremamente atreladas ao capital financeiro dos Estados Unidos – como a Arábia
Saudita ou os Emirados Árabes Unidos – se vestem como se saídos de um filme ou de
uma pintura orientalista. Além do mais, continua Said (2007, p. 432), a presença da
economia de mercado ocidental nestes países produziu uma classe intelectual e política
cuja formação é voltada para a satisfação dos interesses e necessidades desse mercado.

Tudo considerado, se há uma aquiescência intelectual nas imagens e doutrinas


do Orientalismo, há também um reforço muito poderoso dessas ideias no
intercâmbio econômico, político e social: o Oriente moderno, em suma,
participa da sua própria orientalização (SAID, 2007, p. 433).
32

No cenário contemporâneo da relação entre o Ocidente e o Oriente, acrescentamos


também um novo fator: o terrorismo. Evidentemente, fundamentalismos, sejam da
natureza que forem, não são uma novidade nas sociedades, muito menos ações que
buscam instaurar o pânico e o caos contra um inimigo, essa é uma tática bélica antiga. No
entanto, quando, hoje, falamos de terrorismo, falamos de uma forma de violência política
muito específica. No momento atual, segundo aponta o historiador Eric Hobsbawm
(2007, pp. 131-132), o terrorismo pode ser descrito como uma forma de violência política
que não precisa, necessariamente, de qualquer forma de apoio popular para poder passar
a mensagem que seus perpetradores pretendem, o alcance da televisão, a partir da segunda
metade do século XX, e, hoje, dos veículos de informação da internet, permitiu com que
houvesse uma visibilidade maior para determinados atos de violência política. Se antes
disso, dirigentes políticos eram os principais alvos dessas ações, hoje, qualquer episódio
que chame mais atenção pela sua escala destrutiva é preferido pelos grupos terroristas.
Principalmente desde 2001, com o atentado ao World Trade Centre em Nova Iorque, esses
grupos perceberam que o assassinato em massa é o ato que mais chama atenção desses
veículos de informação. É também importante destacar que, após os atentados de 2001, o
terrorismo parece ter se tornado global impulsionando ações como as do governo de
George W. Bush como a invasão do Afeganistão, em 2001, e depois do Iraque, em 2003,
que, por sua vez instigam novamente ações de grupos como o al-Qaeda, que atua de forma
transnacional, com células por diversos países e que não precisam, necessariamente, de
apoio popular.
Mas o terrorismo de base fundamentalista islâmica não surgiu simplesmente como
um mero ódio ao ocidente e aos valores ocidentais como a narrativa orientalista nos tenta
fazer crer. Em primeiro lugar é importante lembrar que durante séculos a agenda imperial
do Ocidente influenciou na vida de milhares de pessoas no Oriente Médio, depondo e
erguendo governantes, alterando limites políticos, destruindo qualquer referencial de
identidades coletivas para os povos dessa região, deslocando etnias inteiras etc. Assim,
não é surpreendente que essas sociedades entrem em uma crise moral e social. E, quando
dessas crises, como identificou Geertz (2004) no Marrocos e na Indonésia, é muito
comum que a religião se torne um meio através do qual uma sociedade possa construir
sua identidade coletiva, claro que, cada uma a sua maneira, mesmo que seja a mesma
religião – como no caso do estudo de Geertz.
33

A força motriz dessa metamorfose social e cultural ainda longe de se completar


é em geral atribuída ao impacto ocidental, ao abalo das fundações da cultura
tradicional da Ásia e da África pelo dinamismo da Europa industrial. Isso é
claro, não está errado; mas a energia desse estímulo externo foi convertida, não
só na Indonésia e no Marrocos, mas onde quer que tenha sido sentida, em
mudanças internas: mudanças nas formas de atividade econômica; na
organização política; nas bases da estratificação social; nos valores morais e
nas ideologias; na vida familiar, na educação; e, talvez mais criticamente, nas
mudanças na percepção do sentido das possibilidades da vida, das noções
daquilo pelo qual se pode trabalhar ou mesmo esperar no mundo (GEERTZ,
2004, p. 34).

Geertz não atribui essas transformações exclusivamente ao contato com culturas


europeias, ele nos aponta que é uma minoria aquelas que tiveram um contato
verdadeiramente íntimo com a Europa. No entanto, depois do que já foi exposto, é
possível afirmar que os árabes foram, talvez, o povo que mais teve contato íntimo com
ou europeus. E as maquinações imperiais em territórios árabes impactaram
profundamente a estrutura do tecido social desses povos, permitindo o a ascensão de
vertentes religiosas ultra ortodoxas, as quais não são exclusivas do Islam.
Mas porque surgiram essas vertentes em meio ao Islam, religião a qual, em sua
época de ouro, era considerada moderada se comparada com o cristianismo medieval
europeu? Como já apontado, a intervenção ocidental na Ásia, África e América Latina
ocasionou mudanças que foram sentidas de forma muito profunda no interior dessas
sociedades. O impacto destas transformações culminou nas lutas anti-imperialistas e por
independência durante a segunda metade do século XX, para os casos das nações da Ásia
e da África. Lutas as quais assumiram um caráter extremamente nacionalista, e, no caso
dos países do “mundo árabe”, ou seja, Oriente Médio e Norte da África, com uma
agregação ao redor da fé islâmica como fonte de contraponto ao Ocidente cristão.
Bebendo de fontes ultraconservadoras dos séculos anteriores, como o wahabismo e os
escritos de ‘Abd al-Rahman al-Jabarti da época da invasão napoleônica ao Egito,
sua experiência gerou um antiocidentalismo profundamente arraigado, tema
persistente na história egípcia, árabe, islâmica e terceiro-mundista; também
podemos encontrar em Jabarti as sementes do reformismo islâmico que, tal
como foi promulgado posteriormente pelo grande clérigo e reformador azhar
Muhammad ‘Abdu e seu notável contemporâneo Jamal al-Din al-Afghani,
discutia se mais valia que o islamismo se modernizasse para concorrer com o
Ocidente ou se ele devia voltar a suas raízes em Meca para melhor combater o
Ocidente; além disso, Jabarti está falando num momento inicial da história da
imensa onda de consciência nacional que culminou na independência egípcia,
na teoria e práticas nasseristas e nos movimentos contemporâneos do chamado
fundamentalismo islâmico (SAID, 2011, p. 78, grifo no original).
34

Nestas lutas pela independência o que mais prontamente se apresentou a esses povos foi
justamente a tradição, a identidade nacional ou religiosa e o patriotismo, tal apelo fora tão
amplamente disseminado e incorporado pela população de forma bastante assombrosa,
até mesmo assustadora, como aponta Said (2011, p. 497).
Quanto a isso, a investigação de Geertz (2004) nas transformações religiosas no
Marrocos e na Indonésia apontam para o mesmo sentido, especialmente no Marrocos,
onde houve um reavivamento, que ele chama de “escrituralista”, durante o período de luta
contra a França, principalmente após o exílio do popular e muito querido Sultão
Mohammad V. Havia uma dupla percepção da figura do sultão, o de uma autoridade
espiritual, dono de uma sacralidade popularmente imbuída, e o de uma autoridade política
como líder escolhido da comunidade islâmica. O que houve no Marrocos fora uma
mistura de uma crescente identidade nacional e de um reavivamento das escrituras como
forma de resistência a uma modernidade ocidental imposta pelo poder colonial. O que se
percebe a partir desses episódios é que o apego a valores ortodoxos islâmicos fora, de
certa forma, resultado da intervenção ocidental no “mundo islâmico”, alguns crentes
daquela religião tão apresentada pelos orientalistas, clássicos e modernos, como sendo
inerentemente violenta e naturalmente odiosa contra os “infiéis” passam a incorporar em
seus comportamentos um discurso que não é originalmente um discurso característico
desse grupo social no que diz respeito a sua própria percepção.
A experiência ocidental no Oriente produziu, então, identidades coletivas que
passariam a se perceber dentro de categorias ocidentais em função de, por séculos, terem
sido submetidos a políticas racistas e à dominação. Como já apontado, a tradição e a
ultraortodoxia se apresentam como saídas fáceis em momentos de crise moral e social,
quando as identidades são deslocadas e, muitas vezes, perdem o sentido. O que se
identifica hoje, no que diz respeito ao terror produzido por grupos fundamentalistas
islâmicos, tem, também, mas não só apenas, raízes na postura imperialista do Ocidente
em relação ao Oriente. Pensar, então, não somente a contemporânea relação Oriente-
Ocidente passa por refletir acerca do papel da religião islâmica dentro dessa relação, seja
ela como a fonte primal de contato do europeu cristão medieval com o oriental ou como
uma contemporânea forma de resistência antiocidental, seja através de suas vertentes
ultraconservadoras e fundamentalistas ou não.
É obviamente importante apontar os efeitos nefastos do fundamentalismo
religioso que floresceu no Oriente Médio, tanto, e principalmente, para as populações
destes países assim como para o Ocidente. No entanto seria desonesto caracterizar esse
35

comportamento de violência e brutalidade como sendo fruto de uma “mente oriental”


como afirmam muitos acadêmicos e políticos orientalistas. Assim como também seria
desonesto afirmar que a experiência ocidental no Oriente não tem a sua parcela de
responsabilidade no florescimento do fundamentalismo religioso islâmico. Como aponta
Tariq Ali (2005, p. 406), o importante é questionar não sobre pessoas como Osama bin
Laden ou sobre a al-Qaeda, mas sobre o porquê “uma camada educada de sauditas,
egípcios e argelinos gravitam em direção ao terrorismo individual e porque, como
indivíduos, estão preparados para morrer no processo”. Ali prossegue apontando que o
quadro verdadeiro de Osama bin Laden está no Reino da Arábia Saudita e no Egito, os
dois principais aliados estadunidenses no Oriente Médio, aparte de Israel, mas que pouco
é questionado sobre as posturas fundamentalistas deste primeiro. Como também não é
falado sobre a religião oficial do Estado e da família al-Saud, o wahabismo,
que não é uma versão comum do islamismo sunita ou xiita e sim, como
argumentei, uma corrente particularmente virulenta e ultra puritana. Esta é a
religião da família real saudita, da burocracia estatal, do exército e da força
aérea e, claro, de Osama bin Laden (ALI, 2005, p. 407).

Isso talvez se deva ao fato de que o absolutismo saudita seja de extrema importância
estratégica para os interesses dos Estados Unidos na região.

1.4 Sobre a globalização

Devido a escolha do cinema hollywoodiano por ser um produto de alcance global,


é preciso dedicar algumas páginas para se falar sobre o desenvolvimento da globalização
e seus impactos nas relações sociais. Quando falamos ou ouvimos falar sobre a
globalização e as consequências dela decorrente, o primeiro aspecto desta sobre o qual
nos remetemos, fundamentalmente, são aqueles relacionados aos eventos mais recentes
iniciados em meados do século passado e intensificados na virada para o século XXI,
principalmente a partir do intenso desenvolvimento e aprimoramento das tecnologias de
transporte e de comunicação, sendo estas últimas aquelas chamadas de mídias eletrônicas.
Em outras palavras, um fenômeno intrinsecamente relacionado com a modernidade.
Segundo argumenta o geógrafo David Harvey (2008, p. 219), a globalização, ou melhor,
nas palavras do autor, o conceito de compressão do tempo-espaço, remete a “processos
que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem
a alterar, às vezes radicalmente, o como representamos o mundo para nós mesmos”. Nesse
36

sentido, prossegue Harvey, tendo em vista os fortes indícios históricos que apontam para
uma aceleração do ritmo da vida em conjunto, com a superação de barreiras espaciais,
lidamos com um mundo cada vez mais “espremido”, no qual o espaço encolheu numa
“aldeia global” e o tempo passa a ser reduzido ao presente. Em suma, este processo nos
faz caminhar cada vez mais na direção de um “aqui e agora”.
No entanto, a globalização não é um processo que começou a se desenrolar
somente em tempos recentes. A compressão do tempo-espaço é um fenômeno que vem
se desdobrando historicamente, pelo menos, desde a Idade Média, estando intimamente
conectado ao desenvolvimento do capitalismo. Naquele momento histórico, o espaço
ocupava uma posição de relativa autonomia quanto às relações sociais existentes dentro
de fronteiras fixas e definidas, este espaço era mal compreendido e apreendido, além de
ser pautado por uma mitologia misteriosa e governada por uma autoridade superior e
extraterrena. Juntamente a essa finitude do espaço estava a circularidade do tempo,
centrada nas rotinas cotidianas e sazonais. O tempo e o espaço se encerravam neles
mesmos. É, então, a partir de um nascente capitalismo comercial que as noções feudais
de tempo e espaço começam a ser abaladas, processo este que é aprofundado durante a
Renascença, momento no qual essas noções foram profundamente transformadas no
Ocidente, as viagens a lugares distantes e a vasta produção de conhecimento advinda
destas empreitadas revelou um amplo mundo que precisou, de alguma maneira, ser
absorvido e representando, o que apresentava ser um globo finito, mensurável e
apreensível. Mas, talvez, o maior impacto renascentista à percepção do tempo e do espaço
esteja relacionado ao perspectivismo, que muito se manifestara na arte e arquitetura deste
período (HARVEY, 2008, pp. 220-221). Esta técnica também fora bastante utilizada na
cartografia, da qual, inclusive, de acordo com Franco Farinelli (2012, p. 73), o
perspectivismo teria a sua origem, uma vez que este não seria nada menos do que uma
cópia da projeção cartográfica de Ptolomeu, desenvolvida em sua Geographia.
Dessa forma, o espaço se torna palpável quando passa a ser sistemático e
compreendido em termos geométricos. Mencionando Edgerton (1976), David Harvey
(2008, p. 222) aponta que
O ponto de vista fixo dos mapas e quadros com perspectiva “é elevado e
distante, completamente fora do alcance plástico ou sensorial” […] que mesmo
assim produz “uma sensação de harmonia com a lei natural, acentuando assim
a responsabilidade moral do homem no âmbito do universo geometricamente
organizado de Deus”.
37

Esse distanciamento, então, configura uma nova forma de perceber o espaço, no qual, por
mais que o globo fosse finito, o espaço é infinito, tal como a sabedoria divina. Da mesma
forma, a percepção quanto ao tempo é transformada da temporalidade cíclica feudal para
uma concepção de flecha do tempo, ou seja, um tempo de qualidades infinitas.
Após a transformação nas noções do espaço e do tempo ocorridas durante o
renascimento europeu, identifica-se um novo momento para estas categorias com o
despertar da modernidade, em função dos efeitos transcorridos a partir da primeira
revolução industrial, no final do século XVIII. A industrialização das cidades provocou
uma profunda metamorfose no modo de vida das pessoas da época. Se num momento
anterior à intensa industrialização das cidades, o campo era tido como um lugar de forças
tenebrosas e incontroladas, e a cidade como o local da liberdade para as pessoas, após a
industrialização, segundo Araújo (2012, p. 135), apresentando o pensamento de Henri
Lefèbvre, “a cidade não é mais o lugar da liberdade como outrora. Muito pelo contrário,
a cidade industrial é uma ‘prisão do espaço-tempo’”. Isso porque, na cidade industrial
existe um controle muito rígido do tempo diário dos trabalhadores, assim como de seus
deslocamentos, sempre casa-trabalho-casa. O tempo do relógio é aquele que passa a
vigorar na cidade industrial, ditando todas as movimentações dos seus habitantes.
Ao passo em que as cidades europeias se industrializavam, evidenciava-se, cada
vez mais, que as nações do “Velho Continente” havia alcançado um elevado nível de
integração espacial que atrelava em muito os seus destinos econômicos, financeiros e
sociais (HARVEY, 2008, p. 238). O tempo cíclico do relógio é também o tempo cíclico
do capitalismo industrial que atingia sua maturidade em meados do século XIX e passa a
regulamentar a vida social. Essa fase da compressão do tempo-espaço é marcada pela
internacionalização das economias, a burguesia industrial buscava aumentar o alcance do
escoamento de seus produtos e atingir novos mercados consumidores, especialmente
aqueles de antigas colônias europeias nas Américas e das novas colônias que foram
surgindo na África e na Ásia ao logo do século XIX.
Por todo o globo terrestre, a burguesia busca satisfazer a necessidade de um
escoamento cada vez mais amplo para seus produtos. Ela precisa se implantar
e se expandir por toda a parte, estabelecer vínculos onde quer que seja. Graças
a sua exploração do mercado mundial, ela conformou de modo cosmopolita a
produção e o consumo de todos os países. […] Devido à rápida melhoria de
todos os instrumentos de produção, à comunicação imensamente facilitada, a
burguesia insere todos, até as nações mais bárbaras, no mundo civilizado. […]
Obriga, pois, todas as nações a se apropriarem do modo de produção burguês,
caso não desejem perece; força-as a abraçar a assim chamada civilização, ou
seja, a se tornarem, burguesas (MARX & ENGELS, 2012, pp. 47-48, grifo
nosso).
38

Ainda que quando o Manifesto do Partido Comunista fora publicado não existisse a noção
de globalização como hoje a concebemos, o entendimento de um processo unificador do
tempo, do espaço e das forças sociais já era observado, como apontaram Marx e Engels.
A burguesia, nada mais era – e ainda é – uma força globalizante. Hoje não mais se fala
em “abraçar a civilização”, porém, a lógica de curvar-se ao capitalismo global(izado)
impera.
Mais recentemente, a partir da segunda metade do século XX, evidencia-se uma
tendência mundial de transformação dos meios produtivos e, consequentemente, do
próprio capitalismo, que, como foi apontado, se constituiu em uma importantíssima força
globalizante. O que se identificou foi a transição de um modelo de produção e acumulação
local, aquele denominado de fordismo, para um novo modelo chamado de acumulação
flexível, também conhecido como pós-fordismo. Tal transição ocorreu em função de uma
rápida transformação e implantação de novas formas de organização da produção e de
tecnologias que acabaram por desmontar a estrutura vertical do fordismo, dirigindo-se,
então para um modelo produtivo cada vez mais indireto que acelera o tempo de giro de
muitos setores produtivos (HARVEY, 2008, p. 257). Tal aceleração, no entanto, só foi
possível graças à produção de um sistema de técnicas que tem as técnicas informacionais
em sua dianteira e como elemento conector entre todas as outras técnicas, caminhando,
assim, para uma unicidade técnica e de presença planetária (SANTOS, 2001, p. 23). Este
sistema único, desta forma, possibilitou que as mercadorias e serviços financeiros
circulassem mais rapidamente pelo mercado, o que, consequentemente, também permitiu
um mais rápido e voraz consumo de tais mercadorias e serviços (HARVEY, 2008, p.
258).
A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era possível.
Por outro lado, ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo,
permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando
a simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico.
[…] Na história da humanidade é a primeira vez que tal conjunto de técnicas
envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua presença
(SANTOS, 2001, p. 25).

Deste modo, além do mercado de bens e serviços físicos, existe também um mercado de
bens e serviços efêmeros os quais o capitalismo globalizado muito passou a explorar,
como, por exemplo, o lazer, o esporte, a música, a moda e o cinema, que, por mais que
possamos encontrar bens físicos associados a tais exemplos, falamos aqui da
comercialização de estilos de vida, muitos dos quais são pautados pela ampla circulação
de imagens a eles atreladas.
39

1.5 Sobre o cinema como objeto de estudo

Nesta seção demonstrarei a relevância da análise do filme de ficção para uma


melhor compreensão do fenômeno social que me dedico a pesquisar – a representação do
outro. O cinema se apresenta para mim como um relevante objeto de empiria uma vez
que, a partir do século XX, ele invadiu nossos esquemas de percepção, na medida em que
ele
constrói uma percepção do mundo. Não apenas segundo o papel clássico que
se atribui à arte, cuja função estética é fazer ver, através da obra, o que a
princípio não se vê da realidade. Mas, de maneira mais radical, produzindo
realidade. O que o cinema mostra não é somente um outro mundo, o do sonho
e do irreal, mas nosso mundo mesmo transformado num misto de real e
imagem-cinema. Ele produz sonho e realidade, uma realidade remodelada pelo
espírito cinema, mas de maneira nenhuma irreal. Se permite a evasão, ele
também convida a refazer os contornos do mundo. Oferece uma visão do
mundo: o que chamamos a cinevisão (LIPOVETSKY & SERROY, 2009, apud
JEREZ, 2018).

É sob esta perspectiva que buscarei abordar a análise representacional do oriental nos
filmes escolhidos, levando em consideração que esses filmes, mesmo que não nos falem
sobre verdades históricas ou retratem o mundo social com acuidade, podem nos informar
sobre como pensamos o presente e as relações sociais (JEREZ, 2018, p. 19).

1.5.1 O hipercinema

Nesse sentido, gostaria de apontar um importante conceito para pensar os filmes


em análise neste trabalho: o hipercinema. Para entender, no entanto, este conceito, é
importante traçar a sua origem. Partindo de Lipovetsky e Serroy (2009), o hiper faz parte
de uma nova modernidade, a hipermodernidade, a qual os autores caracterizam como
sendo uma nova modernidade que teria surgido a partir do início da década de 1980.
Diferente do que postulam os teóricos da pós-modernidade, segundo os quais haveria uma
superação da modernidade, para Lipovetsky e Serroy (2009, p. 49) o que ocorreu foi a
transposição para um novo patamar da modernidade, que “remete fundamentalmente a
uma outra modernidade, uma espécie de modernidade ao quadrado ou superlativa. [...] A
sociedade hipermoderna [...] é lançada a uma espiral hiperbólica, a uma escalada
paroxística nas esferas mais diversas”. O hipercinema é, então, uma das facetas através
das quais a hipermodernidade se faz presente. Da mesma forma que em outros aspectos
40

da sociedade hipermoderna, o hipercinema é caracterizado por uma “fuga para a frente”,


pelo superlativo, pela saturação, que se manifesta principalmente através do meio visual
característico do cinema, a esse elemento visual marcado pelo hiperbólico, Lipovetsky e
Serroy (2009, pp. 71-90) dão o nome de imagem-excesso.
Segundo os autores, as imagens-excesso são fruto das novas tecnologias, em
particular do digital, que abre uma nova gama de possibilidades e favorece aqueles
gêneros fílmicos mais consumidores de efeitos especiais, tornando possível “a transcrição
de imaginários cuja visualização era até então limitada por técnicas de menor
desempenho” (LIPOVETSKY & SERROY, 2009, p. 72). Ainda que nem todas as
produções adotem as tecnologias informáticas de ponta, a verdade é que, hoje, nenhum
filme é concebido sem a intervenção do digital. E isso apontam os autores em relação a
um cenário de mais de dez anos no passado. Nesta terceira década do século XXI, até
mesmo cineastas amadores ou entusiastas da arte digital têm acesso a programas de
computadores – alguns sem custo financeiro algum, inclusive – para criarem seus efeitos
especiais em sua própria casa. Junto com a profusão da imagem, a profusão do som
produz o que estes autores chamam de “cine-sensações”, as quais lançam o espectador
em um universo de estímulos múltiplos no qual
o audiovisual [...] prevalece sobre a palavra, o amplificador sobre a história, a
sensação pura sobre a compreensão. [...] O gozo sensitivo e vertiginoso é a
última palavra desse cinema do corpo extrema em que as imagens se tornam
mais reais que a natureza (LIPOVETSKY & SERROY, 2009, p. 73-74).

Um dos aspectos que gostaria de ressaltar no que diz respeito a essas cine-
sensações é a imagem-velocidade. Aqui, a hipérbole ocorre, não surpreendentemente, no
plano do tempo em que os eventos se desdobram. A velocidade é incorporada à narrativa
um como fim em si mesmo, ou seja, a velocidade pela velocidade, no sentido, que foi
apontado no parágrafo anterior, de estarrecer o espectador, levando-o em uma experiência
sensorial simultaneamente hipnótica e exaltante. A imagem-velocidade não é
exclusividade de sequências de perseguições, como poderia parecer em uma primeira
reflexão sobre o tema, mas ela está presente ao longo de toda a montagem filme do
hipercinema, o que é evidenciado pela brevidade dos planos neste cinema hipermoderno.
Vincent Amiel e Pascal Couté (2003, p. 68 apud LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 76)
apontam como “a duração média dos planos [nos filmes de Michael Bay, tomados como
ilustração do cinema americano contemporâneo] é de dois segundo, enquanto, no cinema
clássico moderno, a duração média é de quatro a seis segundos, ou mesmo mais”. Nos
war films os planos curtos, cortes rápidos e a câmera segurada em mãos (em oposição à
41

câmera estável em um tripé) são utilizados a fim de criar uma atmosfera de caos,
imergindo o espectador na tensão do cenário junto com os protagonistas.

1.6 A representação do oriental no cinema contemporâneo

Neste item realizarei um recorte de como a figura do árabe muçulmano é


representada nos filmes ocidentais, apresentando determinados padrões e estereótipos
perpetuados em praticamente todos os filmes que tenham o árabe como parte de sua
trama. Quanto a isso, Said nos oferece também um ponto de partida, muito brevemente,
em Orientalismo (2007 [1978]), mas com mais profundidade em Covering Islam (1997
[1981]). Mesmo que em Covering Islam o foco seja na mídia jornalística, ainda assim se
apresenta como um importante ponto de partida para a reflexão sobre a representação do
oriental e como ela molda nossa percepção deste povo.
Nas telas da globalização, o árabe muçulmano tem a sua imagem é quase sempre
“associad[a] com a libidinagem ou com a desonestidade sanguinária. Ele aparece como
um degenerado excessivamente sexuado, capaz de intrigas inteligentemente tortuosas, é
verdade, mas essencialmente sádicas, traiçoeiras, baixas” (SAID, 2007, p. 383). Em
suma, o árabe é sempre representado como o vilão. Não que ele nunca deva ser o vilão,
mas que o “árabe das telas”, em contraste como árabe da realidade, é sempre apresentado
como o vilão e nunca como pessoas ordinárias que vivem o seu cotidiano como qualquer
ocidental também viveria. “Em centenas de filmes, árabes ‘malvados’ espreitam na tela.
Nós os vemos atacando praticamente todos os inimigos imagináveis: americanos,
europeus, israelenses, legionários, africanos, companheiros árabes e, até mesmo – pelo
amor de Deus –, Hércules e Sansão” (SHAHEEN, 2001, tradução nossa).

1.6.1 O Ocidente sitiado e sua representação

É bastante comum que nos war films da indústria cinematográfica estadunidense


que a diferença entre “nós” e o “outro” seja retratada de forma bastante explícita, afinal,
nas narrativas do modelo clássico hollywoodiano, cujas características já foram
apresentadas previamente neste trabalho, é necessário que os heróis protagonistas sejam
de fácil identificação pelo público. Antes da Segunda Guerra Mundial, em um dos gêneros
cinematográficos mais populares nos Estados Unidos, o western, sobre o qual falamos
42

um pouco no capítulo anterior, esta cisão entre os “mocinhos” e “bandidos” estava muito
bem-marcada entre o “homem branco civilizado” e o “nativo primitivo e violento”. No
entanto, a partir da década de 1930, aponta Vugman (2006, p. 162) este gênero começa a
perder sua força e expressividade, na medida em que diversas situações históricas – a
Grande Depressão e a miséria dela decorrente, o intenso êxodo rural, o estourar da
Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica, a Guerra Fria – transformam muitos valores
da sociedade estadunidense, o que acabou por relegar o western à arena do mitológico,
na qual esse gênero não mais refletia aqueles valores tradicionais de outrora. Cada um
destes momentos históricos dos Estados Unidos exigiu que o gênero se adaptasse e se
reinventasse em um esforço para conservar a capacidade que tinha em expressar e
reafirmar a ideologia dominante. Processo este que deu origem a novas definições e
redefinições de heróis e heroínas, motivos, convenções, estilo e estrutura narrativa do
western, os quais desaguariam, mais tarde, nos war films.
A partir do final da Segunda Guerra Mundial, então, com as transformações
sociais em curso, a audiência estadunidense encontra-se saturada e desconectada do
simbolismo dos valores apresentados pela fórmula clássica do western. Os motivos do
resgate da “mulher redentora submissa” pelo cowboy não encontram mais lugar nesta
sociedade na qual há agora uma grande presença de mulheres trabalhadoras, soma-se a
isso ainda o constrangimento da perda de milhares de homens no fronte de guerra. Ambos
estes fatores contribuíram para uma remodelação tanto do herói quanto de sua missão.
Assim, é nesse contexto que, ao final da década de 1940 e início da década de 1950, que
surgem os Westerns “psicológicos”, chamados desta maneira por se concentrarem nas
neuroses do cowboy, as quais são retratadas como um fruto de seu deslocamento da
civilização e de um peso cada vez maior das expectativas de um projeto de sociedade que
cada vez mais se apresentam como contraditórios e pouco sustentáveis (VUGMAN, 2006,
p. 172).

1.6.1.1 O 11/9 e a latência do século XXI

Essa transformação dos enredos e dos protagonistas dos westerns após o final da
Segunda Guerra Mundial muito recorda o que Hans Ulrich Gumbrecht, em obras como
Produção de presença (2004) e Depois de 1945 (2013), aponta a respeito deste mesmo
momento histórico, o qual ele indica como sendo um de crise, mas não de ruptura ou
43

virada, no qual a humanidade não haveria transposto os eventos passados da Segunda


Guerra Mundial, separando este passado sombrio de um futuro diferente ainda por vir.
Assim, o passado paira como uma névoa sobre o presente, permeando nossas consciências
individuais e coletivas, inviabilizando que nós ultrapassemos este passado. De certa
maneira seria possível dizer que passado e presente coexistem ao mesmo tempo. Esse
sentimento é o que Gumbrecht definiu como latência (JEREZ, 2018, p. 139). Em sua
resenha sobre o livro Depois de 1945: latência como origem do presente, Luiza Mello
(2014) apresenta um panorama geral sobre esta noção de latência que Gumbrecht evoca
em seu pensamento e que compreende conceitos diversos que atravessam suas obras. Para
Grumbrecht, aponta a resenhista (p. 330),
dizer que alguma coisa está latente [...] não é o mesmo que dizer que esta coisa
está reprimida, oculta ou que foi esquecida. Latência não se refere a um sentido
velado, inconsciente, reprimido ou sublimado; não corresponde nem ao trauma
nem ao tabu da teoria psicanalítica freudiana. Não se pode, por conseguinte,
desvelar, liberar, trazer à consciência ou mesmo interpretar aquilo que está
latente.

Deste modo, a latência age como uma presença invisível e difusa, sendo sentida por meio
da Stimmung (JEREZ, 2018, p. 140), mais um conceito utilizado por este intelectual.
Gumbrecht (2012, pp. 3-5) parte do raciocínio de que os estudos literários correm
o risco de se tornarem estagnados caso continuem divididos entre as abordagens
desconstrucionista e a dos Estudos Culturais. Para superar este risco, o autor propõe uma
“terceira via” metodológica, na qual a palavra alemã Stimmung dá forma a sua proposta,
assim, ele sugere que os estudiosos da literatura leiam com Stimmung em mente. Qual
noção, no entanto, essa palavra de difícil tradução pretende passar? O autor prossegue
apontando que esta palavra é geralmente traduzida para o inglês como mood e climate –
em português poderíamos traduzir aproximadamente como “disposição”, “tom”, “clima”
ou “atmosfera” –, as quais, no entanto, possuem não querem dizer a mesma coisa, na
medida em que mood se refere a sentimentos que jazem no domínio do íntimo e do
privado de cada um, enquanto climate é algo objetivo que existe no entorno das pessoas
e lhes exerce influência física. Gumbrecht ainda aponta como a palavra Stimmung se
conecta com outra palavra alemã, stimmen, que se refere à voz e música, e como esta
relação de sentidos é a que mais lhe interessa. Nisso, o autor argumenta como percebemos
os sons não apenas através da audição, mas que esta é uma atividade muito mais complexa
44

que envolve todo o corpo, da mesma forma como sentimos o tempo meteorológico9, nos
engolfando por completo, produzindo um encontro físico e concreto com o nosso entorno.
Gumbrecht, porém, alerta que, por mais que a música ou tempo meteorológico possam
aparentar como meras metáforas para a Stimmung, seu ponto é que as Stimmungen, tons
ou atmosferas não podem existir de forma plenamente independente dos componentes
materiais das obras de arte. Usando das palavras de Toni Morrison, Gumbrecht aponta
que a Stimmung pode ser sentida como se fossemos “tocados desde dentro”, em uma
experiência na qual tons e atmosfera afetam tanto nosso físico quanto nossa pisque, de
forma, no entanto, que não somos capazes de explicar ou controlar tais casualidades.
Se durante o século XVIII, pensadores como Goethe e Kant entendiam a
Stimmung como sendo a condição necessária para a combinação das faculdades
emocionais e racionais do entendimento humano, favorecendo uma situação na qual
prevaleceria a harmonia e a mediação entre posições contrárias, razão e emoção,
subjetividade e objetividade seria possível (GUMBRECHT, 2012, p. 8; MELLO, 2014,
pp. 332-333), ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, essas relações
entre a Stimmung e as noções de harmonia e mediação começam a se tornar mais ténues.
Gumbrecht (2012, pp. 8-9) aponta que para Nietzseche, a Stimmung se refere à memórias
de estágios anteriores da humanidade, enquanto que para Riegl, partindo do anterior, a
Stimmung se realizaria durante o século XX como um “princípio de nostalgia” que realiza
“a materialização do desejo de ver um passado mítico realizado em um futuro também
mítico, remetendo à presença daquilo que se encontra ausente” (MELLO, 2014, p. 333).
No entanto, é após a Segunda Guerra Mundial que a Stimmung e a noção de harmonia são
completamente dissociadas, ao final do conflito, Leo Spitzer, indica Gumbrecht (2012,
pp. 9-10), conclui que a “‘harmonia’ perdera para sempre o seu lugar como um cenário
potencial para a cosmologia e existência humana”10. Desta maneira, ao perder sua
conexão com seu sentido clássico, o conceito de Stimmung passa a estar disponível para
a aplicação universal, assim

9
No original o autor utiliza a palavra weather, habitualmente traduzida como apenas “tempo”, mas, para
diferenciar do tempo cronológico, incorporei o adjetivo “meteorológico”.
10
No original: “harmony” had forever lost its place as a potential frame for cosmology and human existence.
45

não há agora nenhuma situação sem sua “própria” atmosfera ou tom, o que
significa que é possível procurar pela Stimmung característica de cada situação,
obra ou texto. Por esta razão [não é preciso se limitar] a contextos históricos
em que o desejo de mediação e harmonia tomam o centro das atenções. Pelo
contrário, Stimmung é explorada como uma categoria universal. Não há cultura
nem época que não admita a questão universal sobre atmosferas ou tons
específicos (GUMBRECHT, 2012, p. 10)11

O período que se inicia após o final da Segunda Guerra Mundial, aponta Gumbrecht, é
um desses momentos em que “uma presença indefinível ou conceitualmente intangível –
a presença do passado no presente, por exemplo – torna-se espacialmente tangível por
meio da Stimmung a ela associada” (MELLO, 2014, p. 333). Anos durante os quais as
Stimmungen afloram como efeitos de condições latentes.
Mello (2014, pp. 333-336) e Jerez (2018, pp. 140-142) apontam as três
configurações específicas – ou topoi – de Stimmung apresentadas por Gumbrecht em
Depois de 1945, são elas “sem saída” e “sem entrada”, “má fé” e “interrogatórios”, e
“descarrilamento” e “contentores”, no entanto, o que me interessa aqui é o aspecto do
descarrilamento e será neste que me aprofundarei. Neste aspecto, o tempo presente difere
em muito daquilo que foi pensado para ele “quando era ainda o futuro do passado”
(GUMBRECHT, 2014, p. 60 apud. JEREZ, 2018, p. 140). No que diz respeito à Stimmung
que se inicia ao final da Segunda Guerra Mundial, Gumbrecht aponta que os “ecos da
guerra depois de 1945 e depois de 1918 foram inversamente proporcionais à devastação
que cada uma provocou” (GUMBRECHT, 2014, p. 36 apud. MELLO, 2014, p. 333).
Após a Primeira Guerra Mundial houve um movimento em se repensar a
existência da humanidade, ao passo que após a Segunda Guerra, o que se percebeu foi um
profundo desejo de retorno a uma normalidade que se perdera sob os escombros. Ainda
que esse anseio por retornar a um normal anterior esteja aparentemente em consonância
com uma consciência histórica de superação do passado e a construção de um futuro
diferente, na medida em que esse desejo é frustrado o futuro se apresenta fechado, em
uma nova experiência do tempo na qual o passado se acumula no presente de forma
latente (MELLO, 2014, p. 334), como em solução saturada que, cada vez mais, deposita
resíduos no fundo do recipiente. Nesse sentido, Gumbrecht, indica Jerez (2018, pp. 141-
142), entende esse fechamento do futuro como um acúmulo de frustrações e restrições

11
No original: There is now no situation without its “own” atmosphere and mood, which means that one
can seek the characteristic Stimmung of every situation, work, and text. For this reason, the book at hand
is not limited to historical contexts in which the desire for mediation and harmony takes center stage. On
the contrary, Stimmung is explored as a universal category. There is no culture and no epoch that will not
admit the universal question about specific atmospheres and moods.
46

manifestadas através de diversas Stimmungen, assim como o acúmulo do passado, uma


vez que não conseguimos superá-lo. E mesmo nas poucas vezes em que o futuro é
mobilizado, o que ocorre é um retorno para as condições que possibilitaram o
descarrilamento. Neste cenário de incapacidade da superação deste passado em
específico, a Segunda Guerra Mundial, vemos a proliferação de diversos artefatos
culturais que retornam a este evento, longa-metragens em especial. Poucos anos após o
final da guerra incontáveis filmes sobre o conflito foram produzidos. Histórias diversas
sobre diferentes feitos e acontecimentos foram narradas por estes filmes, e sejam elas
reais ou apenas baseadas na realidade, elas refletem a incapacidade de se abrir as portas
desse futuro fechado, um constante reviver deste passado que persiste latente e acumulado
no presente. Nesse sentido, não é surpreendente que até hoje são lançados filmes, séries
televisivas, video-games, e tantos outros produtos culturais ambientados durante a
Segunda Guerra Mundial.
Partindo do pensamento de Gumbrecht a respeito da latência do passado no
presente e de um futuro obscurecido e fechado em função da não superação desse passado,
penso que, da mesma forma que, como apresenta este pensador, tenha emergido uma
latência associada a uma série de Stimmungen após a Segunda Guerra Mundial, no século
XXI, mais especificamente na data de onze de setembro de 2001, uma nova série de
Stimmungen emerge, numa reação muito parecida com aquela que Gumbrecht aponta
sobre o desejo de retorno a um estado anterior das coisas. Desejo este, no entanto, que se
depara com uma série de obstáculos e escurece o futuro que se pensava para os Estados
Unidos antes do atentado. Por mais que a população deste país quisesse voltar às suas
vidas anteriores, isso não era possível, pois a memória daquele fatídico dia pairava sobre
as consciências coletivas e individuais dos cidadãos estadunidenses. Não apenas, porém,
o futuro dos Estados Unidos fora obscurecido e fechado por essa sequência de
Stimmungen pós-onze-de-setembro, mas o de todo o Ocidente, afinal, na fase atual da era
da globalização, cuja principal força motriz desse é, sem dúvida, a mídia eletrônica, estes
acontecimentos nos Estados Unidos foram sentidos por todo o mundo. O Ocidente, que
sempre se apresentou imponente do alto de sua fortaleza, sofrera um terrível ataque em
uma de suas principais cidades, e isso é muito mais relevante se pensarmos em relação
apenas aos Estados Unidos, uma vez que, diferente das nações da Europa, nunca sofrera
com a possibilidade eminente de um ataque em seu território. Além do ataque japonês a
Pearl Harbor, no Havaí, em 1941, os Estados Unidos nunca haviam sofrido um outro
grande ataque em seu território, ainda mais em seu território continental, o locus de seu
47

poder, na cidade de maior representatividade simbólica dos valores políticos, econômicos


e sociais estadunidenses.
A destruição das torres do World Trade Center sacudiram a noção de estabilidade
e inviolabilidade do Ocidente perante seus opositores, se durante o século XX, nem
nazistas e comunistas – os grandes inimigos estadunidenses do século passado – foram
capazes de desferir tamanho golpe aos Estados Unidos, no alvorecer do século XXI um
novo opositor se ergue para desafiar sua soberania, um opositor que antes aparentava
apenas uma ameaça menor para os interesses estadunidenses em terras distantes agora se
interpunha como o novo grande inimigo dos valores “americanos”. Um inimigo que
representa tudo aquilo que o Ocidente considera como sua antítese, fruto de um
sentimento de cerco cujas raízes se estendem a séculos no passado, o islam. A este inimigo
fora dado também a face de Osama bin Laden, tornado pela administração de George W.
Bush como uma espécie de avatar do terrorismo e genericamente associado com o islam.

1.6.1.2 Um cerco de séculos

O sentimento de cerco que o Ocidente nutre em relação ao Oriente definitivamente


não é recente, mas faz parte de uma história que atravessa mais de um milénio. Após a
morte de Maomé, no ano de 632, os seguidores do islam passaram a se expandir para a
além das fronteiras da Arábia em direção ao Norte da África, ao Levante, à Mesopotâmia
e à Pérsia12, avançando muito rapidamente sobre o Império Persa e, principalmente, sobre
o Bizantino (PIRENNE, 2010, p. 141), uma das principais – se não a principal – forças
políticas da cristandade europeia. Ao longo dos dois séculos seguintes (VIII e IX), ainda,
os muçulmanos expandiriam seus territórios até a Europa continental, conquistando toda
a península ibérica, partes do sul da França e a ilha da Sicília (PIRENNE, 2010, p. 147-
149; SAID, 2007, p. 97). Mas como explicar o rápido avanço dessa nova força política,
social e militar? De acordo com o historiador francês Henri Pirenne (2010, p. 142), a
questão é de ordem moral, pois se comparados a outros invasores do Império
Romano/Bizantino, que

12
O Levante se refere a uma região geográfica hoje compreendida pelos Estados do Líbano, Síria, Palestina,
Jordânia e Israel; a Mesopotâmia ao atual Iraque e Kuwait, e a Pérsia ao atual Irã.
48

não [tinham] nada para se opor ao cristianismo do Império, os árabes são


exaltados por uma nova fé. Isso, e apenas isso, os torna inassimiláveis. Pois,
quanto ao resto, eles não têm, do mesmo modo que os germanos, nenhuma
prevenção contra a civilização daqueles que conquistam. Ao contrário, a
assimilam com uma rapidez espantosa. Na ciência, filiam-se à escola dos
gregos; na arte à dos gregos e dos persas.

A rápida expansão do islam pela bacia mediterrânea transforma radicalmente as relações


políticas e sociais, tornando a região instável e caracterizada pela fragmentação dos
territórios, o que, inclusive, favoreceu o avanço islâmico, fazendo, assim, surgir um novo
mundo. O Mar Mediterrâneo, antes o ambiente e símbolo da união do Império Romano –
o Mare Nostrum – e centro da cristandade, transforma-se em uma zona limítrofe que
marca a cisão entre duas diferentes civilizações que perdura até a contemporaneidade
(PIRENNE, 2010, p. 144).
Nesse sentido, tudo aquilo que se erguia como ameaça contra a cristandade
europeia e ocidental acabou por ser encarnado no islam e em seu profeta. Antes do final
da década da morte de Maomé, os muçulmanos haviam conquistado Jerusalém e
construído duas grandes mesquitas no monte do Templo. O veloz avanço do islam dava
a impressão aos cristãos medievais de que os muçulmanos realmente pareciam estar, de
fato, controlando todo o mundo, soma-se a isso, ainda, o grande número de conversões
de cristãos para essa nova religião. Assim, o islam, para os cristãos, não representava
apenas uma ameaça política, mas também levantava a perturbadora questão teológica de
como Deus poderia conferir prosperidade e sucesso a uma fé tida como profana
(ARMSTRONG, 2002, p. 31). O mito surgido ao redor da figura de Maomé, posto como
um enganador e herege, e o islam como a heresia das heresias, estigmatizado como a
“religião da espada” durante as épocas das Cruzadas, períodos ao longo dos quais o
Ocidente encontrou sua identidade, a qual existia como o contraste do profano islam e
daqueles que professavam esta “fé herética” (ARMSTRONG, 2002, pp. 32-40). É
evidente que a atual identidade ocidental não é a mesma daquela da Idade Média, no
entanto, como aponta Umberto Eco (1987, apud ARMSTRONG, 2002, pp. 40-41), tal
identidade começou a germinar durante esse período do qual as sociedades ocidentais
contemporâneas são herdeiras diretas em uma grande sorte de aspectos. O mito
cristão/europeu a respeito do profeta islâmico perdurou e, nos séculos que se seguiram,
continuaram a permear o imaginário ocidental. Havia medo e repugnância, mas também
havia um certo fascínio com este “outro” que vêm do Leste e se apresenta como uma
ameaça à civilização ocidental.
49

A partir destes mais íntimos contatos entre o cristão ocidental e o oriente islâmico,
então, uma grande quantidade de registros concernentes emergiu destes encontros. Em
um primeiro momento, quase que a totalidade destes registros fora elaborada por eruditos
do clero europeu durante a Idade Média, o que é de grande relevância para entendermos
a modo pelo qual a representação do Oriente e do oriental se desenvolveu, pois estão
nesses primeiros relatos feito pela diminuta parcela letrada da sociedade europeia da
Idade Média. Conforme apresentado por Edward Said (2007, pp. 97-103), diante do veloz
avanço do islam, a única forma com a qual a Europa conseguiu reagir foi com medo e
uma espécie de “temor reverente”, nas palavras do autor. O interesse que os autores
monásticos cristãos possuíam nos muçulmanos e sua religião eram menos em sua
erudição e alta cultura do que em sua aparência que, como relatou um certo monge
Erchembert de Monte Cassino no século IX, referenciado por Said (2007, p. 98), remetia
a “de um enxame de abelhas, mas com mão pesada [...] devastavam tudo”. São, então, a
partir de relatos como este, que residem no cerne do imaginário ocidental, que até hoje o
islam é associado com o terror, a violência e a destruição.
Para a Europa, o islã era um trauma duradouro. Até o fim do século XVII, o
“perigo otomano” estava à espreita ao longo da Europa, representando para
toda a civilização cristã um perigo constante, e com o tempo a civilização
europeia incorporou esse perigo e seu saber, seus grandes acontecimentos,
figuras, virtudes e vícios como algo entrelaçado no tecido da vida (SAID, 2007,
p. 98).

E mesmo que uma parcela educada de europeus pudesse ter acesso e conhecer sobre a
história e cultura do Império Otomano e suas expedições à Europa, prossegue Said (2007,
p. 98-99),
o importante é que aquilo que continuava corrente sobre o islã era uma versão
necessariamente diminuída daquelas grandes forças perigosas que ele
simbolizava para a Europa. [...] A representação europeia do muçulmano, do
otomano ou do árabe era sempre um meio de controlar o Oriente temível, [o]
tema é menos o próprio Leste do que o Leste dado a conhecer, e assim menos
temível, ao público ocidental. [...] Mas ainda mais importantes são o
vocabulário e o imaginário limitados que se impõem como consequência. A
recepção do islã é um exemplo perfeito [...]. Uma restrição aos pensadores
cristãos que tentavam compreender o islã era analógica; como Cristo é a base
do credo cristão, supunha-se – de forma totalmente incorreta – que Maomé
fosse para o islã o que Cristo era para o Cristianismo. [...] O islã tornou-se uma
imagem [...] cuja função era menos representar o islã em si mesmo do que
para representá-lo para o cristão medieval (grifo nosso),

Não havia outra maneira de o ocidente representar o Oriente que não em comparação com
a sua própria experiência religiosa, este Oriente representativo, para a Europa, nada mais
era do que uma redução deste ao islam, o qual, por sua vez, “era apenas uma versão mal
50

orientada do cristianismo” (SAID, 2007, p. 100), visto assim como uma heresia cristã e
não como algo que existe independente do cristianismo – e, por consequência, do
Ocidente.
Trazendo a análise de R. W. Southern sobre a forma como o Ocidente encarava o
islam na Idade Média, Said (2007, pp. 100-103) aponta a incapacidade de qualquer
sistema de pensamento cristão europeu de prover uma explicação satisfatória sobre o
fenômeno do islam naquele tempo, Southern conclui que
É finalmente a ignorância ocidental que se torna mais refinada e complexa, e
não algum corpo de conhecimento ocidental positivo que aumenta de tamanho
e acuidade. Pois as ficções têm a sua própria lógica e a sua própria dialética.
[...] Assim o Oriente adquiriu, por assim dizer, representantes e representações
[– dos quais Maomé e o Islam são seus principais expoentes –], cada um mais
concreto, mais internamente congruente com alguma exigência ocidental do
que os precedentes. É como se, tendo estabelecido o Oriente como um local
adequado para encarnar o infinito numa forma finita, a Europa não pudesse
parar essa prática; o Oriente e o oriental, o árabe, o islâmico, o indiano, o chinês
ou o que quer que fosse, tornam-se pseudoencarnações repetitivas de algum
grande original (Cristo, a Europa, o Ocidente) que deviam estar imitando.
Apenas a fonte dessas ideias ocidentais um tanto narcisistas sobre o Oriente
mudou com o tempo, não o seu caráter. Assim encontramos a crença comum
nos séculos XII e XIII de que a Arábia estava “na orla do mundo cristão, um
asilo natural para marginais heréticos”, e que Maomé era um apóstata
astucioso, enquanto no século XX será um erudito orientalista, um especialista,
quem vai apontar que o islã não passa realmente de uma heresia ariana13 de
segunda categoria (SAID, 2007, pp. 101-102).

Assim como também durante o século XX, no domínio das artes, herdando seus
referenciais narrativos da literatura, o cinema se apresenta como mais um disseminador
dessas crenças comuns acerca do Oriente e do oriental. Na era da globalização, no império
do tudo-tela, as imagens impressionantes do cinema (não mais confinadas às tradicionais
“salas de cinema”), repletas de efeitos extravagantes, e sua narrativa de fácil assimilação
são hoje a grande janela para o mundo, e consequentemente para o Oriente. Sendo
majoritariamente produzido no Ocidente, o cinema, em especial o hollywoodiano, sobre
o qual se debruça este trabalho, é hoje o principal artefato cultural a disseminar essas
representações ancestrais.

13
A título de elucidação, o termo “ariano” aqui se refere não ao “arianismo” (aryanism, em inglês),
ideologia racista fortemente disseminada durante o regime nazista, mas sim à doutrina cristã arianista,
proposta por Arius, um presbítero do século IV, e considerada herética pela Igreja Católica. ARIANISM.
IN: ENCYCLOPAEDIA Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Arianism
51

1.6.1.3 Hollywood e a narrativa do terrorismo

Em Hollywood, até a década de 1990, o “grande vilão” dos Estados Unidos nos
war films eram frequentemente representados pelos comunistas e sua ideologia “anti-
liberdade”, nicho esse também ocupado pelos nazistas em outros filmes do gênero, como
mencionado anteriormente. No entanto, com as relações entre a União Soviética e o
Ocidente em um momento de menor tensão política, a partir de meados da década de
1980, nota-se que, mesmo com a ainda grande presença de vilões comunistas nos war
films, nota-se o incremento da presença de comunistas não russos, mais especificamente
de comunistas asiáticos, principalmente chineses e vietnamitas (um grande trauma militar
para os Estados Unidos). Filmes como Missing in Action (Joseph Zito, 1984), Rambo:
First Blood Part II (George Cosmatos, 1985), Platoon (Oliver Stone, 1986) e Full Metal
Jacket (Stanley Kubrick, 1989) são bons exemplos desse momento, em particular os dois
primeiros (que possuem enredos muito similares). Estrelando os astros dos filmes de ação
Chuck Norris e Sylvester Stallone, respectivamente, as narrativas desses longa-metragens
nada se preocupam além de apresentar a vilania dos vietnamitas que ainda mantinham
soldados estadunidenses como prisioneiros de guerra ao mesmo tempo em que os
protagonistas, ex-combatentes da Guerra do Vietnam, com suas metralhadoras
ridiculamente superdimensionadas e lança-foguetes, matam qualquer soldado vietnamita
que aparecesse em seus caminhos. Tudo isso, é claro, acompanhado de uma pletora de
efeitos especiais práticos14 de fogo e explosões.
A partir do ano de 1990, porém, ocorreu uma transformação no cenário
geopolítico internacional que, evidentemente, afetou também as representações sociais
no cinema. Em agosto daquele ano tem início a Guerra do Golfo, a qual, como já
mencionado, foi o primeiro conflito armado transmitido ao vivo para televisões do mundo
todo. A exacerbada midiatização da guerra fez surgir um novo cenário e um novo tipo de
espectador, principalmente nos Estados Unidos. O já muito estabelecido aparato de guerra
estadunidense, que molda suas instituições políticas e econômicas há anos, aponta Robert
Stam (1992, p. 103), fora absorvido pela mídia durante a Guerra do Golfo, resultando no
casamento desta com a tecnologia visual de vigilância e os propósitos do “estado
guerreiro”, promovendo, assim, uma espécie de militarização da identidade nacional. É

14
Efeitos especiais práticos são aqueles nos quais o efeito visual é realizado a partir de acessórios
implementados na localidade da filmagem. No caso de uma explosão, por exemplo, esta é criada de
modo controlado no próprio set.
52

assustador pensar que as transmissões dos bombardeios e de soldados em território


iraquiano que ocorriam em “tempo real” tenha se tornado mais uma forma de
entretenimento, competindo em audiência com partidas esportivas, e sendo anunciado
como um “evento” televisivo (CHAPMAN, 2008, p. 92). Desse cenário emerge uma
figura que fora tida como o grande vilão do Ocidente após o fim da Guerra Fria: Saddam
Hussein, ditador do Iraque e antigo aliado dos Estados Unidos na região, que, como
apontou Tariq Ali (2002, p. 393), teve o “distintivo de Hitler” pregado na lapela pela
mídia ocidental. Herdando a comparação com o líder nazista do egípcio Gamal Abdel
Nasser, que em 1956, durante a Crise do Suez, fora chamado de “Hitler do Nilo” pelos
britânicos. A comparação com Hitler não é surpreendente diante da opressão latente que
memória da Segunda Guerra Mundial exerce sobre a consciência ocidental, como
debatemos anteriormente neste capítulo.
Por conta de sua “transgressão” contra seus antigos aliados (invadir o Kuwait e
potencialmente se tornar o maior produtor de petróleo do Golfo Pérsico), Saddam Hussein
se tornou, então, a encarnação de tudo o que representa de perigo e ameaça para o
Ocidente, entrando de vez para a lista de inimigos a serem derrotados, que já incluía
outros personagens árabes da OPEP e outros associados ao islam e ao petróleo, como, por
exemplo, Qaddafi na Líbia e Khomeini no Irã. Said (2011, p. 451) faz uma comparação
interessante ao apontar como, no estourar da Guerra do Golfo (também em conflitos
posteriores, principalmente após os eventos de 11 de setembro), o império americano se
preparara, como o capitão Ahab, para se lançar em perseguição à sua Moby Dick pessoal,
um suposto mal que constantemente ameaça o Ocidente. Na retaliação estadunidense a
Saddam Hussein a mídia cumpriu sem papel em direcionar a narrativa para transformar
“notícias ruins” de massacres em “notícias boas” de vitória sobre o adversário (STAM,
1992, p. 1992), muito ficou de fora da cobertura da guerra.
Poucas eram as notícias sobre os lucros das companhias de petróleo [...]. As
razões do Iraque contra o Kuwait, ou mesmo a natureza do próprio Kuwait [...],
praticamente nem foram ouvidas. Pouco se falou e pouco se analisou da
cumplicidade e hipocrisia dos Estados do golfo, Estados Unidos, Europa e
Iraque durante a Guerra Irã-Iraque (SAID, 2011, p. 452).

O que circulava de informação provida pela mídia, que havia se enchido de


“especialistas” sobre o Oriente Médio e Islam, era um conhecimento supostamente bem-
informado sobre os árabes, segundo o qual, nas palavras de Edward Said (2011, pp. 451-
452),
53

Todos os caminhos levam ao bazar; os árabes só entendem a força; a


brutalidade e a violência fazem parte da civilização árabe; o islamismo é uma
religião intolerante, segregacionista “medieval”, fanática, cruel, contra as
mulheres. O contexto, o quadro, o arcabouço de qualquer discussão era
delimitado, na verdade petrificado, por tais ideias. Parecia uma alegria
considerável, embora inexplicável, [para o Ocidente] pensar que afinal “os
árabes”, tal como eram representados por Saddam, iam ter o que mereciam.
Iam se acertar muitas contas com vários inimigos antigos do Ocidente: os
palestinos, o nacionalismo árabe, a civilização islâmica.

Evidentemente que este efeito não se restringiu somente à mídia. Mesmo que em anos
anteriores à Guerra do Golfo encontrássemos alguns filmes anteriores com “terroristas
árabes” no papel de antagonistas – geralmente associados com o Irã após a revolução de
1979 –, a década de 1990 representou uma virada na representação do vilão principal do
Ocidente do comunista para o árabe. Em Delta Force III: The Killing Game (Sam
Firstenberg, 1991), mais um longa-metragem protagonizado pelo astro de ação Chuck
Norris, o nome de um dos vilões é justamente Anwar Hussein – interpretado por Dan
Turgeman, um ator israelense –, morto ao final do filme com um tiro entre os olhos. A
respeito deste tipo de retórica da mídia e de outros meios de comunicação como o cinema,
Said (2011, p. 450) diz que “foi como se uma intenção quase metafísica de desbaratar o
Iraque criasse vida”.
Dez anos após o final da Guerra do Golfo, o horror se abateu sob os céus de Nova
York e Washington com os atendados de 11 de setembro. Esse episódio trouxe novas
conotações à antiga e conturbada relação do Ocidente com o Oriente. Se pelo menos desde
as primeiras cruzadas havia inimigos específicos – Salah ad-Din, uma longa lista de
sultões otomanos, Gamal Abdel Nasser, Ruhollah Khomeini, Yasser Arafat, Saddam
Hussein –, agora surgia um inimigo desconhecido e sem face, realizando missões suicidas
sem mensagem clara, trazendo caos e destruição sem sentido. Em um artigo publicado
originalmente no jornal britânico The Guardian em 16 de setembro de 2001, Edward Said
(2012, p. 136-139) aponta que apesar da reação inicial do prefeito de Nova York, Rudy
Giuliani, em imediatamente falar com cautela contra o pânico e os ataques racistas e
xenofóbicos contra as comunidades árabes e muçulmanas da cidade, a narrativa da mídia
não acompanhou este raciocínio. As emissoras de televisão levaram o horror dos
atentados para dentro das casas dos cidadãos dos Estados Unidos, os comentários de
âncoras de jornais e entrevistados contribuíram para aumentar um sentimento já esperado
e previsível de perda, raiva, vulnerabilidade, e um incipiente desejo incontido de vingança
e retribuição. Ainda, prossegue Said (2012, p. 136-137), seguindo de um questionamento,
54

Além das frases prontas de dor e patriotismo, políticos e especialistas


conceituados têm dito e redito que não seremos vencidos ou desencorajados
antes que todo o terrorismo seja exterminado. Essa é uma guerra contra o
terrorismo, todos dizem, mas onde, em que frente, para que fins concretos?
Nenhuma resposta é dada, exceto a vaga sugestão de que é contra o Oriente
Médio e o Islã que “nós” nos posicionamos e que o terrorismo deve ser
destruído.

Descolando-se da complexidade da realidade, a mídia ocidental transferiu a violência para


o domínio do “outro”, apresentando-a como exógena à nossa sociedade, como fruto de
uma barbárie inerente ao “outro não-civilizado” que deseja destruir nossa civilização
Ocidental. E pouco relevante era para os mercadores de notícias que alguns dos
realizadores dos atentados de Nova York fossem jovens educados de classe média que
haviam vivido na Europa e nos Estados Unidos (ZACARIAS, 2018, p. 19). A maneira
como a mídia lidou (e ainda lida) com esses casos de terrorismo levam apenas a mais
medo e terror. No tom adotado pela mídia ocidental e pela produção cinematográfica de
Hollywood, segundo Said (2011, p. 473) a disseminação das “imagens do terrorismo e do
fundamentalismo” funcionam menos como um ato de informação do que como figuras
de um imaginário ocidental povoado por demónios estrangeiros que subordinam o
indivíduo às normas dominantes, sejam estes de sociedades pós-coloniais ou da Europa
e, principalmente, dos Estados Unidos. E é certo que devemos nos opor e sentir repulsa
de atos cruéis de violência, encararmos essas ações como aberrantes e anormalidades, no
entanto a narrativa construída pela mídia ocidental cooptou a oposição a esse anormal em
uma defesa de uma moralidade designada ocidental, a qual seria dotada de moderação e
racionalidade, enquanto a do “outro” não. No entanto, conclui Said (2011, p. 473),
ironicamente (ou hipocritamente)
longe de dotar a moralidade ocidental com a confiança e “normalidade” segura
que associamos ao privilégio e à retidão, essa dinâmica “nos” imbui com uma
defensividade e fúria farisaica que acaba vendo os “outros” como inimigos,
dispostos a destruir nossa civilização e modo de vida. Isso é um simples esboço
de como esses padrões de ortodoxia coercitiva e autoengrandecimento
reforçam ainda mais o poder da aquiescência irrefletida e da doutrina
inquestionável.
55

2 O “BOM E VELHO” PATRIOTISMO À AMERICANA DE 12 STRONG

O nacionalismo é uma ideologia de


identidade expandida e solidificada. Se você
for construir uma identidade – identidade
coletiva – com base na história, você
distorcerá essa história [...] Você vai querer
glorificá-la. Vai querer destacar todos os
lados positivos dessa história à qual se
refere; você vai querer escurecer a imagem,
da melhor maneira possível, no que diz
respeito ao Outro. O nacionalismo é uma
ideologia que sempre tem o Outro. Portanto,
é uma dupla distorção: você distorce
glorificando sua própria história e distorce
obscurecendo a do Outro15.
Eqbal Ahmad (1933-1999)

Lançado em 2018, 12 Strong é baseado no livro Horse Soldiers, de 2009, o qual


tem o longo subtítulo de “a extraordinária história de um grupo de soldados americanos
que cavalgaram para a vitória no Afeganistão”16, do jornalista estadunidense Doug
Stanton, quem também é autor de outros dois livros sobre proezas militares dos Estados
Unidos. Baseado em eventos reais, porém de forma novelizada e fazendo uso da licença
poética,
Horse Soldiers é o dramático relato de um pequeno grupo de soldados das
Forças Especiais que entraram secretamente no Afeganistão após o 11/9 e
cavalgaram contra o Taliban. Em desvantagem de quarenta para um, eles
perseguiram o inimigo através das montanhas e, após uma série de batalhas
intensas, capturaram a cidade de Mazar-i-Sharif, a qual era estrategicamente
essencial para derrotar o Taliban17.

O trecho acima foi retirado da sinopse da obra encontrada no próprio site do autor, não é
possível dizer se foi escrita pelo próprio Stanton, mas, ainda assim, é relevante apontar

15
Trecho extraído do documentário Stories my Country Told Me, de 1996, produzido pela emissora BBC.
16
No original: The extraordinary story of a band of US soldiers who rode to victory in Afghanistan.
17
No original: “Horse Soldiers is the dramatic account of a small band of Special Forces soldiers who
secretly entered Afghanistan following 9/11 and rode to war on horses against the Taliban. Outnumbered
forty to one, they pursued the enemy across mountainous terrain and, after a series of intense battles,
captured the city of Mazar-i-Sharif, which was strategically essential if they were to defeat the Taliban”.
(Retirado de http://dougstanton.com/horse-soldiers-doug-stanton/ [Acesso em 15/11/2019]).
56

que nesta sinopse não é feita nenhuma referência ao fato de que estes soldados
estadunidenses lutaram ao lado de afegãos contra o Taliban.
À época de seu lançamento o livro fora um sucesso de vendas, recebendo críticas
extremamente positivas de meios muito conceituados, como, por exemplo, a seção de
crítica literária do tradicional jornal The New York Times, na qual lemos que Horse
Soldiers “é para a aqueles que gostam de sua história militar contada pelos olhos de
soldados, sargentos e capitães heroicos” 18. Um emocionante thriller literário sobre
façanhas militares, bestseller e, ainda, baseado em eventos reais ocorridos imediatamente
após os episódios de 11 de setembro de 2001. Tudo isso somado, era certamente bastante
apelativo para o público doméstico estadunidense e constituía uma boa receita para a
realização de um atrativo filme de guerra para essa audiência.
Com o nome no Brasil traduzido para 12 Heróis, decerto, 12 Strong, diferente de
sua contraparte da literatura, não foi um filme que tenha atingido grande mérito de crítica
ou até mesmo cativado tanto o público, especialmente o internacional, tendo, por
exemplo, ficado em cartaz no Brasil por apenas seis dias e vendido menos de 20.000
ingressos19. Também nos Estados Unidos, o filme não recebera muito destaque da mídia
ou grandiosa recepção do público, não fora um sucesso de bilheteria, mas também não
foi um fracasso, com seu limitado orçamento – para os padrões hollywoodianos – de 35
milhões de dólares, 12 Strong arrecadou aproximadamente 45 milhões de dólares no
mercado doméstico e 25 milhões nas salas de cinema de fora dos Estados Unidos,
totalizando, assim, uma bilheteria mundial de cerca de 70 milhões de dólares20, o
suficiente para cobrir seus custos e dar algum lucro para seus produtores. Para além da
baixa arrecadação nas bilheterias, o filme também não tivera repercussão no circuito
especializado, tendo sido indicado apenas para três prêmios de pouca expressão e não
ganhando nenhum21.
Diante do quadro de um filme com pouca expressão, recepção e impacto na
indústria cinematográfica, o que me levou a escolher tal obra? Ora, não tenho, no presente

18
No original: “It’s for those who like their military history told through the eyes of heroic grunts, sergeants
and captains”. (Retirado de https://www.nytimes.com/2009/05/17/books/review/Barcott-t.html [Acesso
em 15/11/2019]).
19
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-181056/bilheterias/ (Acesso em 15/11/2019).
20
https://www.the-numbers.com/movie/12-Strong#tab=summary (Acesso em 15/11/2019).
21
https://www.imdb.com/title/tt1413492/awards?ref_=tt_ql_op_1 (Acesso em 15/11/2019).
57

trabalho, a pretensão de realizar uma análise do mérito artístico, autoral ou estético da


obra em questão, mas sim de discutir a representação social de indivíduos e grupos não-
ocidentais em produções do cinema de Hollywood. Para isso, não é necessário que a obra
analisada seja uma que tenha sido de grande relevância de crítica ou um sucesso de
vendas. É claro que se um filme for aclamado pela crítica e muito bem recebido pela
audiência isso será incorporado na análise em virtude de o impacto das representações
presentes em sua narrativa terem sido bem recebidas socialmente por uma audiência e
pela crítica. No entanto, não é esse o caso de 12 Strong. Decidi incorporar este filme à
pesquisa na medida em que ele foi uma tentativa de blockbuster, ao narrar uma trama que
muito mobiliza o público estadunidense e, como maior apelo de vendas, trouxe Chris
Hemsworth para o papel do protagonista, um dos atores de maior evidência atualmente
em Hollywood, em razão dos sucessos dos filmes de super-heróis da Marvel, nos quais
interpretou o personagem Thor em, pelo menos, sete longa-metragens ao longo de nove
anos. Além disso, 12 Strong é bastante representativo de um gênero fílmico muito popular
nos Estados Unidos, os war films, com suas tramas superpatrióticas permeadas por clichés
e representações rasas que são incorporadas por grande parte da audiência sem muita
reflexão.
Sendo resultado da adaptação de uma obra literária, 12 Strong configura um caso
de transtextualidade, um termo que se refere a “tudo aquilo que coloca um texto em
relação, manifesta ou velada, com outros textos”22 (GENETTE, 1982, apud STAM, 2000,
p. 207), mais especificamente o da hipertextualidade, no qual existe uma relação entre
um texto posterior, o “hipertexto”, e um texto anterior, o “hipotexto”, o qual é elaborado,
transformado, modificado ou estendido pelo primeiro. A hipertextualidade chama atenção
para as variadas operações de transformação que um texto opera em outro, seja de
atualização, concretização ou ampliação. Adaptações cinematográficas diversas de um
mesmo clássico da literatura como, por exemplo, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre
Dumas, são considerados como diferentes leituras hipertextuais de um mesmo hipotexto.
Ainda, a hipertextualidade no cinema pode operar como a transposição de não apenas um
filme singular, mas de um gênero inteiro (STAM, 2000, pp. 209-211), como pretendo
mostrar ser esse o caso de 12 Strong em relação aos war films.
Em relação seu esquema narrativo, 12 Strong pode ser enquadrado naquele que
Bordwell (2005) caracteriza como sendo próprio do cinema clássico hollywoodiano, ou

22
No original: “All that which puts one text in relation, whether manifest or secret, with other texts”.
58

seja, aquele que, como apontei de forma mais aprofundada no capítulo anterior, remete a
uma estrutura muito bem definida e possuindo personagens igualmente bem definidos. A
trama é sempre conduzida por princípios causais que conectam as sequências sempre
relacionando-as com a anterior de forma muito clara e objetiva. Quando uma sequência
se encerra, a que vem em seguida sempre irá se remeter, de alguma forma àquela que a
precedeu. Da mesma forma, as personagens que povoam a narrativa são extremamente
consistentes e dotadas de características facilmente identificáveis pelos espectadores,
sempre muito especificadas e em evidência.
Na trama do filme, a mesma do livro no qual é baseado, o espectador acompanha
a empreitada do Quinto Grupamento de Forças Especiais do exército estadunidense ao
Afeganistão, menos de um mês depois dos ataques do grupo terrorista al-Qaeda ao World
Trade Center, em Nova York, naquele trágico 11 de setembro de 2001. A missão em
questão é classificada como secreta e tem como objetivo auxiliar o General Abdul Rashid
Dostum (Navid Negahban), um dos líderes da Aliança do Norte23, a conquistar a cidade
de Mazar-i-Sharif do Taliban em uma tentativa de enfraquecer seu poderio naquele país
e atingir os terroristas da al-Qaeda, protegidos pelo Taliban na região montanhosa do
norte do Afeganistão.
No presente capítulo, realizarei uma análise representacional das personagens, da
narrativa e da trama de 12 Strong. A análise destes três aspectos, no entanto, não será feita
de forma compartimentada, com seções dedicadas a cada uma, mas sim diluídas ao longo
de todo o capítulo, uma vez que personagens, trama e narrativa não podem ser vistos
isoladamente um do outro. Assim, de forma a organizar este capítulo, decidi fragmentar
o longa-metragem em três partes que marcam momentos específicos da trama. De forma
geral, as histórias possuem um início, um meio e um fim, algumas obras fogem desse
padrão ao construir um final para a trama que, no entanto, não possui um encerramento,
mas deixam lacunas em aberto que permitem àquele que a desfruta preencha-as e se faça
questões, porém, este não é o caso do filme em questão, 12 Strong possui um início, um
meio e um fim muito bem demarcados, sendo assim, utilizei estes momentos para
conduzir a minha análise.

23
A Aliança do Norte foi um grupo militar multiétnico e religioso, assolado por rixas internas, formado em
1996 para resistir ao avanço e derrubar o controle do Taliban no Afeganistão. Retirado de:
http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/1652187.stm (Acesso em 16/11/2019).
59

Em sua primeira parte, são apresentadas as personagens e o elemento condutor da


trama, os elementos centrais da obra são delineados aqui através de determinadas escolhas
narrativas e características atribuídas à personagem principal. Ao analisar este primeiro
momento procurei dar especial atenção à construção do protagonista e suas motivações,
mas também observando a formulação da situação-problema a ser resolvida no decorrer
da trama e aos elementos narrativos que compõe essa parte, o que também inclui escolhas
da direção quanto a aspectos especificamente cinematográficos, como por exemplo, em
como as sequências são construídas, os enquadramentos, os sons, entre outros.
A segunda parte do filme se preocupa em desenvolver esta trama, é a parte mais
extensa das três em que compartimentei o longa-metragem, é o momento em que,
terminada a introdução das personagens, suas motivações e o fio condutor da trama, a
ação principal do filme se desenvolve. Dentro da trama, a segunda parte se inicia com a
chegada das personagens principais no Afeganistão e seu contato com os guerrilheiros
locais. Neste ponto do trabalho dou maior atenção para os aspectos da construção da
narrativa no que diz respeito à relação entre os protagonistas estadunidenses e o,
poderíamos assim dizer, “núcleo afegão” da Aliança do Norte. Ainda, procuro também
analisar a maneira através da qual as personagens afegãs, seu país e costumes são
representados na narrativa. Nesta sessão me encarrego de responder àquelas questões que,
como indiquei no capítulo anterior, Robert Stam e Louise Spence (1983, p. 17) apontam
como sendo de grande importância para entender quais personagens são considerados
como “sujeitos falantes” ou como “objetos falados”24, o que depende tanto de códigos
cinemáticos quanto extra-cinemáticos.
Por fim, a terceira parte é aquela referente à conclusão da trama após o ápice do
enredo com a batalha final dos heróis contra os vilões, repleta de clichés quase tão antigos
quanto o próprio cinema. Este é o momento do reencontro dos protagonistas, separados
no campo de batalha, no qual a mensagem que o filme se deseja passar é reafirmada e
explicitada para o espectador através dos vários elementos narrativos e textuais. Aqui
realizo justamente a análise destas mensagens e seus significados dentro do contexto
sociogeopolítico dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, especialmente em
sua relação com os países do chamado “Mundo Árabe”.

24
No original: “Speaking subjects” e “Spoken objects”.
60

2.1 Parte I: Em defesa da pátria ferida

Logo após a apresentação dos créditos iniciais e de uma mensagem indicando que
o filme é baseado em uma história real, este inicia com uma sequência de imagens de
noticiários de televisão acompanhadas das respectivas narrações dos jornalistas que
faziam o informe. Em ordem cronológica, a sequência inicial apresenta outros ataques
terroristas sofridos pelos Estados Unidos e seus aliados em várias partes do mundo:
fevereiro de 1993 - explosão de uma bomba no subterrâneo do World Trade Center;
agosto de 1998 - explosões de bombas nas embaixadas estadunidenses de Nairóbi
(Quênia) e Dar es Salaam (Tanzânia), al-Qaeda assume a responsabilidade; 2000 - ataque
suicida ao navio USS Cole aportado no Iêmen, al-Qaeda também assume a
responsabilidade; 9 de setembro de 2001 - Ahmad Shah Massoud, um dos fundadores e
líder da Aliança do Norte, é assassinado por membros da al-Qaeda, gerando instabilidade
na Aliança. A apresentação cronológica desses eventos reais, acompanhados de extratos
noticiários que foram de fato exibidos à época dos acontecimentos apresentados na
montagem25, é utilizada aqui para validar a mensagem anterior sobre a veracidade dos
eventos apresentados no filme. A intenção com esta montagem é aproximar os
espectadores daqueles eventos que serão narrados em breve na trama, firmando-os assim
na história de suas próprias experiências pessoais, afinal, muitos dos que assistiram ao
filme se recordam de quando viram ou leram sobre esses acontecimentos nos noticiários,
assim como das emoções que vivenciaram diante de tais acontecimentos.
Ao final desta montagem, o primeiro segmento do filme inicia com um close de
uma mão de criança desenhando em uma caixa de papelão, com um texto no canto inferior
esquerdo indicando o local e a data, 11 de setembro de 2001. Dialogando, assim, e dando
continuidade ao segmento anterior, indicando para o espectador que, da mesma forma
que aqueles extratos de noticiários, o filme ao qual estão assistindo é um relato real de
mais um ataque terrorista sofrido pelos Estados Unidos. Essa sobreposição de textos – no
sentido de que tanto os extratos de reportagens quanto o filme em si são textos – é mais
um caso de transtextualidade. Se, em sua totalidade, 12 Strong é uma obra hipertextual,
nesse segmento em específico a narrativa faz uso da intertextualidade, uma outra
modalidade da transtextualidade, na qual uma outra referência textual é citada, plagiada

25
Sabemos que os extratos jornalísticos e a voz dos repórteres que as acompanham são reais uma vez que
estão creditadas como tendo sido cortesias de diversas emissoras de televisão para a produção do longa-
metragem.
61

ou aludida no filme-texto (STAM, 2000, p. 207-208). No caso do segmento inicial de 12


Strong, fica clara a intenção do diretor em citar os informes jornalísticos para validar a
veracidade dos eventos que serão representados no decorrer da trama e firmá-la na
realidade do espectador.
O segmento continua mostrando a família de Mitch Nelson (Chris Hemsworth) se
mudando para uma casa nova, alegremente interagindo com sua esposa Jean (Elsa Pataky)
enquanto a pequena filha do casal, Maddy (Marie Wagenman), desenha nas caixas de
papelão e acompanha um desenho animado na televisão. A cena de felicidade e aparente
tranquilidade muda de tom quando a pequena Maddy muda de canal, para um plantão
jornalístico ao vivo da emissora CNN mostrando o atentado que acabara de ocorrer em
Nova York. Mais uma vez, o uso da intertextualidade, citando um noticiário real, é
utilizado para evocar uma sensação de familiaridade com a tensão experimentada pela
família Nelson ao ser informada sobre a colisão dos aviões nas torres do World Trade
Center. A tranquilidade da família “americana”, aqui simbolicamente representando toda
a população dos Estados Unidos, é interrompida pela brutalidade de um ataque
impensável e inesperado em seu território, em uma de suas cidades de maior influência
global e símbolo do modo de vida deste país.
Os momentos iniciais do filme são todos dedicados à essa operacionalização da
intertextualidade, de criar uma atmosfera familiar para o espectador, lhe relembrar e
firmar a tensão daquele 11 de setembro de 2001. No segmento posterior, vemos os
membros do Quinto Grupamento de Forças Especiais do exército estadunidense
realizando um exercício dentro de um rio, até o momento que outros membros de sua
companhia chegam ao seu encontro em veículos militares. Entendemos, pelo diálogo que
se desdobra, que os que estavam no rio aguardavam para serem levados de volta para o
quartel pelos que chegaram e que estes últimos estariam atrasados. Quando indagado por
Hal Spencer (Michael Shannon), um dos que estava no rio, sobre o atraso, o motorista,
Ben Milo (Trevante Rhodes), com um semblante sério e tenso, fica surpreso ao notar que
seus colegas não estão a par dos acontecimentos daquele dia. No corte seguinte, cinco
jatos militares voam baixo sobre o rio onde o pelotão realizava o treinamento. Enquanto
escutamos o som das turbinas diminuindo ao passo que os aviões se afastam, a câmera se
aproxima do rosto de Spencer – um homem mais velho que seus colegas de pelotão e,
entende-se, alguém com mais experiência de combate – enfatizando sua preocupação com
uma manobra atípica daqueles jatos. Um dos mais jovens ressalta a baixa altitude dos
62

aviões e pergunta se seria parte de um exercício de treinamento. Pergunta a qual Milo,


sabendo do ataque em Nova York, responde, sério, que não é nenhum exercício.
O próximo segmento abre com um extreme closeup26 de um mapa fora de foco,
na medida em que o foco é ajustado, lemos o nome da cidade afegã de Mazar-i-Sharif,
indicando, de forma breve e sutil, a centralidade deste local para a trama do filme. Em
seguida, somos apresentados a uma sala de operações militares bastante movimentada,
em um segmento repleto de cortes com a câmera fechada em diversos planos detalhe das
atividades realizadas: pessoas ao telefone; medições em mapas; documentos sendo postos
sobre mesas e folheados; eu uma mão inquieta gesticulando com um lápis. Uma
montagem elaborada para informar e enfatizar a rápida reação dos militares
estadunidenses minutos após o ataque, além disso, sua construção procura também
amplificar e sublimar o poder significador das ações apresentadas, nesse caso da rápida
reação das forças armadas e sua eficácia. Como apontado por Jean Mitry (1997, p. 130),
[...] o closeup provê uma impressão sensorial tátil dos objetos. No entanto, ao
isolá-los, transforma-os, até certo ponto, em símbolos: o objeto se torna a
representação material do conceito que ele evoca, um análogo em estado puro.
O closeup, poderíamos dizer, é mais abstrato no nível intelectual quanto mais
seu conteúdo é percebido pelos sentidos. Nada é mais concreto do que aquilo
que é mostrado, mas nada é mais abstrato do que aquilo que é implicado27.

Em seguida, em meio aos burburinhos atribulados do ambiente, escutamos em som off


(offscreen sound28), ou seja, vindos de fora do que enquadramento, ordens do Tenente-
Coronel Bowers (Rob Riggle) ao mesmo tempo em que o capitão Nelson adentra a sala
de operações. No diálogo que se segue, Nelson requisita para Bowers que ele possa
retornar para sua equipe, no entanto, recebemos a informação de que Nelson havia
retornado do Kuwait a poucas semanas e requisitou uma mudança de lotação, não tendo,
assim, mais uma equipe. Nelson ressalta que essa solicitação havia sido feita “antes que
caras começassem a voar malditos aviões para cima de prédios29”. Bowers enfatiza que

26
Closeup extremo, também chamado em português de plano detalhe, é uma escala de plano na qual apenas
um objeto estático ou parte do corpo de uma personagem está no enquadramento (MITRY, 1997;
AUMONT; MARIE, 2006).
27
No original: “[...] the closeup provides a tactile, sensuous impression of objects. However, in isolating
them, to some extent it turns them into symbols: the object becomes the living representation of the
concept which it evokes, an analogon in its pure state. The closeup may be said to be more abstract at
the intellectual level the more its content is perceived by the senses. Nothing is more concrete than what
it shows, but nothing is more abstract than what it implies”. Grifos no original.
28
“Sons simultâneos de uma fonte que se assume estar no espaço da cena, mas fora do que é visível na tela”
(BORDWEL; THOMPSON, 2008, p. 480).
29
No original: “Before guys were flying fucking planes into buildings”.
63

ele não tem mais uma equipe e que o que ele deveria fazer era trabalhar em levantar
informação sobre o Afeganistão, uma vez que já era de conhecimento que a al-Qaeda,
protegida pelo Taliban no Afeganistão, havia promovido o ataque. Reafirmando sua
vontade de voltar para sua equipe Nelson afirma que o Oriente-Médio é sua região
designada, implicitamente querendo dizer que, tendo sido um ataque executado por um
grupo radicado no Oriente-Médio, sua equipe deveria ser enviada para lá. Mais uma vez,
sendo rechaçado por Bowers, Nelson sai frustrado da sala de operações.
Sendo um exemplar da narrativa clássica do cinema hollywoodiano, o segmento
seguinte continua os eventos deixados em suspenso na anterior, neste caso, a vontade de
Nelson recuperar sua equipe, fazer com que sejam enviados para o Afeganistão e sua
decorrente frustração de quando seu pedido lhe foi negado por seu superior. Após a saída
de Nelson no final do segmento anterior, há um corte para um quadro onde vemos Spencer
de costas, com a câmera se movendo para a esquerda para enquadrar, ainda que desfocada,
uma televisão ao fundo. Durante esse plano, escutamos um plantão jornalístico, em
offscreen, informando sobre as fatalidades do atentado, neste segmento, mais uma vez, o
uso da intertextualidade, com o extrato de um noticiário televisivo da época dos ataques,
é utilizado para reafirmar a tensão, frustração e desconforto no espectador – ou qualquer
outro sentimento que este possa ter sentido durante aqueles momentos. Alternando entre
closes nas personagens da equipe de Nelson – mostrando suas expressões afetadas pela
seriedade da situação e também movimentos tensos das mãos de Milo – e tomadas da
televisão na qual está passando o plantão de notícias da CNN – que mostram o momento
em que uma das torres do World Trade Center colapsa e o prédio do Pentágono em
chamas –, este momento do segmento serve, como em outras anteriores, para continuar a
situar o espectador nas estruturas de sentimentos que o diretor busca atingir e, ainda,
apresentar a inconformidade daqueles militares com um ataque sofrido em seu próprio
território. A isso segue-se a entrada de Nelson – da esquerda para a direita, a mesma
direção para onde ele havia saído do quadro no segmento anterior, mais um elemento
bastante característico da estrutura narrativa clássica utilizado para reforçar a relação de
causalidade entre aquele segmento que acabou e o novo que se inicia (BORDWELL,
2005, p. 279-280) – em um refeitório no qual, em um plano aberto, vemos diversos
militares assistindo à televisão, dentre os quais estão os membros da equipe de Nelson,
enquanto ainda escutamos ao fundo o repórter seguindo com seu informe.
64

2.1.1 Patriotismo semper fidelis30

No diálogo que se segue entre Nelson e os outros membros de sua equipe é


demonstrado o descontentamento de um deles, Sam Diller (Michael Peña), quanto a
decisão que Nelson teria tomado de pedir transferência para poder ficar mais próximo de
sua família. Mesmo afirmando que o que fez foi por sua família, em função do
acontecimento daquele dia Nelson muda de tom e enfatiza que irá recuperar a equipe e
que conseguirá fazer com que sejam enviados para o Afeganistão para lidar com os
culpados pelo atentado terrorista. O veterano Spencer, com uma mão sobre o ombro de
Diller, buscando acalmá-lo, pergunta para Nelson sobre suas tentativas de reaver a equipe,
ao que ele responde que Bowers lhe negara os pedidos. Spencer diz então que Bowers
não lhe negaria e logo o vemos saindo do refeitório no qual a cena transcorre, indicando
que ele fora fazer o requerimento para seu superior. O segmento se encerra com uma troca
de palavras entre os membros da equipe, deixando expresso a vontade de todos de serem
enviados para o Oriente Médio para lidar com os terroristas responsáveis pelo ataque,
com a última fala sendo de Nelson afirmando que “nós estaremos nessa briga, rapazes.
Guardem minhas palavras31” e, então, se retirando. Na sequência, o próximo segmento
nos apresenta Nelson rumando para o escritório de Bowers, sendo barrado por um soldado
que o informa que o Tenente Coronel está em uma reunião privada. Nelson permanece
em silêncio e ruma para seu próprio escritório, onde, em silêncio, bastante frustrado e
visivelmente irritado chuta sua escrivaninha por não acreditar não conseguir reaver sua
equipe. Em um discurso patriota, a defesa da honra de sua nação e o abandono de
prioridades pessoais para servir ao país seriam deveres mais importante do que o
compromisso de qualquer membro desta nação com sua família. O patriotismo é um tema
recorrente em filmes estadunidenses dos mais diversos gêneros, de comédias a ficção
científica, mas se torna muito mais evidente nos war films, nos quais façanhas militares
são narradas sob uma roupagem heroica de triunfos em terras distantes ou sacrifícios
feitos por bravos soldados para defender a honra de seu país e seus habitantes de qualquer
que seja a ameaça da vez. No entanto, é importante distinguir entre o patriotismo, ou seja,
o amor de alguém por seu país, e o superpatriotismo inconsequente e contraditório da

30
Frase em latim que significa “sempre leal” e usada como lema dos fuzileiros navais dos Estados
Unidos.
31
No Original: “We’ll be in this fight, boys. You mark my words”.
65

direita estadunidense, sendo este último a expressão mais prontamente apresentada em


filmes de guerra hollywoodianos.
Robert Stam e Ella Shohat (2007, pp. 305-318), em um estudo sobre o patriotismo
nos Estados Unidos, França e Brasil, apresentam oito pontos para definir o patriotismo
de forma razoável, e apontam como o superpatriotismo da direita estadunidense falha em
atender todos esses aspectos. Não é necessário aqui falarmos de todos os pontos, no
entanto, quero chamar atenção para o sétimo e para o oitavo: “proteger a honra do país”
e a “prontidão para abandonar as prioridades pessoais e servir ao país”, respectivamente.
Estes dois pontos condensam justamente as atitudes tomadas pelo capitão Mitch Nelson
diante do atentado à Nova York, como mencionei anteriormente. Em sua resposta aos
ataques terroristas, os Estados Unidos lançaram uma grande ofensiva contra seus
perpetradores no Oriente Médio, inicialmente no Afeganistão – como nos eventos
retratados em 12 Strong –, depois encaminhando-se para a invasão do Iraque em 2003 e
sua subsequente ocupação. Em tais momentos, diversas denúncias foram feitas por
entidades internacionais no que diz respeito à violação de direitos humanos de
prisioneiros de guerra e contra civis nesses países. Tendo em vista que ser patriota
significaria proteger a honra de seu país, tais violações de legislações internacionais e
direitos humanos são, no entanto, uma mácula na honra de qualquer nação. Quanto à
prontidão em abdicar de qualquer prioridade pessoal para atender ao país em guerras, o
problema surge na medida em que princípios patrióticos entram em conflito, como este –
estar pronto para servir em guerras - com o de atender aos interesses do país. O que se
percebe nas últimas guerras nas quais os Estados Unidos se envolveram foi menos em
atender aos interesses do país, enquanto seu conjunto de cidadãos, do que perseguir
objetivos políticos das administrações. Neste sentido, a atitude de Nelson em abdicar de
uma vida com sua família em sua nova casa para atender a um suposto “chamado
patriótico para defender o país” pode até ser, na psique da personagem, atitude patriota,
porém não é apenas um capitão do exército atendendo a um chamado para defender seu
país, mas também, e principalmente, um chamado para buscar objetivos de política
externa da administração dos Estados Unidos em um modelo que Stam e Shohat chamam
de superpatriota, patriota no discurso, mas contraditório e inconsequente nas práticas. A
narrativa do filme procura criar para o espectador uma aura de altruísmo e heroísmo em
Nelson e seus companheiros de armas, os quais, sem a menor hesitação se prontificam
para serem lançados em combate em terras distantes. O foco é apenas esse, bravos homens
66

que atendem ao chamado da pátria, sem a menor reflexão do que isso efetivamente
signifique.
Esta postura muito recorda um exemplo real que ocorrera na mesma época que a
trama de 12 Strong se desenrola. Logo após o atentado de 11 de setembro, o jogador de
futebol americano Pat Tillman, do Arizona Cardinals, renunciou um contrato milionário
e se voluntariou para servir no exército. Mesmo se opondo à guerra no Iraque, Tillman
apoiava a guerra contra a al–Qaeda no Afeganistão, prontamente renunciando suas
prioridades particulares para defender a honra de seu país, ele fora inicialmente enviado
para o Iraque e, depois, para o Afeganistão, onde foi morto em combate no dia 22 de abril
de 2004. Da mesma forma que Nelson, Tillman prontamente atendeu seu chamado
patriótico sem hesitação e sua morte foi transformada em um símbolo pelos
superpatriotas. No dia 30 de abril do mesmo ano, o exército lhe concedeu postumamente
a honraria da Estrela de Prata em um anúncio que descrevia em detalhes a sua batalha
final, na qual ele teria bravamente avançando colina acima contra o inimigo, provendo
fogo de supressão para que seus companheiros avançassem, tendo então sido morto. No
entanto, investigações posteriores feitas por repórteres revelaram que a história emitida
pelo exército não passava de uma ficção e que, na verdade, Tillman foi morto
acidentalmente por “fogo amigo” (STAM; SHOHAT, 2007, p. 318). As ficções patriotas
são criadas pelos superpatriotas para promover a narrativa de que os interesses políticos
dos grupos em posição de poder são os interesses da nação, que a política oficial deve ser
apoiada sem hesitação pelos cidadãos. O gênero dos war films serve bem a esse motivo.
Histórias militares são pintadas com a aura do heroísmo para mostrar aos espectadores o
quanto seus soldados são bravos e os defendem no campo de batalha contra incontáveis
inimigos da nação e de sua moralidade. Da mesma forma, vilões também são
representados para atender às exigências geopolíticas do momento. Isso é tão relevante
que é notório o apoio do Departamento de Defesa dos Estados Unidos a diversos filmes
de guerra, tanto no provimento de indumentária, veículos e outros materiais cênicos,
treinamento dos atores quanto em consultoria em assuntos militares e orçamento.
Inclusive, 12 Strong faz parte desse rol de filmes de guerra apoiados por este
departamento governamental, o qual está listado nos créditos na seção de agradecimentos
especiais, ao lado do exército, e outras instituições militares. Desde muito cedo na história
do cinema o governo estadunidense tem noção do poder de influência política dos filmes
sobre o público, tendo, inclusive, agido como censor em certos momentos, no sentido de
67

evitar representações negativas de aliados, como, por exemplo, de britânicos em filmes


durante a Segunda Guerra Mundial (SHAHEEN, 2009).
Em sequência à cena de extrema frustração de Nelson, um corte nos leva a um
novo segmento que tem como cenário o escritório de Bowers, que está conversando com
Spencer na reunião privada anunciada pelo soldado a Nelson na cena anterior. Rasgando
seu documento de requerimento de aposentadoria, Spencer relata que não há mais nada
para submeter e que toda sua equipe tem mais experiência de combate de que todo o resto
do pelotão, para justificar essa afirmação, Spencer relata a participação de sua equipe na
Operação Tempestade do Deserto – nome dado à segunda fase da Guerra do Golfo (1990-
1991) – e na Guerra da Somália (1992-1993). O primeiro conflito é muito presente no
imaginário estadunidense uma vez que foi o primeiro conflito armado televisionado ao
vivo para os Estados Unidos, transmissões diretamente dos bombardeiros passavam em
tempo real nos aparelhos de televisão estadunidenses, as reportagens sobre cada
movimento feito pelos seus soldados em solo iraquiano eram constantes, as imagens e
matérias produzidas pelos grandes conglomerados de mídia eram controladas pela
administração estadunidense e depois eram reproduzidas por emissoras de todo o mundo,
“os americanos assistiam à guerra pela televisão com uma certeza relativamente
inquestionada de estarem vendo a realidade, enquanto o que viam era a guerra com mais
cobertura e menos noticiário da história” (SAID, 2011, p. 462).
A participação dos Estados Unidos na Guerra da Somália não foi tão midiatizada
como fora na Guerra do Golfo, apesar de esta última ter transformado profundamente a
maneira com que conflitos armados seriam reportados para o público, mas é possível
identificar mais um exemplo de intertextualidade aqui. Em um war film, é quase
impossível não relacionar a menção à Guerra da Somália com o famoso filme desse
gênero, Black Hawk Down32 (Ridley Scott, 2001), também de Jerry Bruckheimer, o
mesmo produtor de 12 Strong. Este filme – apoiado pelo Departamento de Defesa dos
Estados Unidos – inclusive, estava em produção na mesma época do atentado em Nova
York, sendo lançado, então, em dezembro do mesmo ano. O filme fora muito bem
recebido pelo público interno estadunidense e pela academia de cinema, sendo premiado
com dois Oscars dentre as quatro categorias para as quais fora indicado. No entanto,
também fora um longa-metragem cercado de controvérsias, com acusações de
representações racistas dos somalis e, justamente em função do período em que estava

32
No Brasil recebeu o nome de Falcão Negro em Perigo.
68

sendo produzido, a produção também foi acusada de alterar o roteiro original para atender
aos anseios de seus espectadores em um momento de elevados ânimos patriótico e
antiárabe33.
Ainda no diálogo entre Bowers e Spencer, o primeiro acata o pedido do segundo
e diz que providenciará um capitão para os liderar em combate, Spencer então enfatiza
que sua equipe já tem um capitão, Mitch Nelson, no entanto, Bowers é cético em relação
às competências em combate de Nelson, uma vez que este nunca estivera efetivamente
em campo de batalha, tendo liderado a equipe apenas em treinamento e que colocá-lo
nessa posição seria arruinar sua carreira. Spencer fala em defesa de Nelson afirmando
para Bowers que “se você acha que ele se alistou para ser promovido, você precisa
conhecer melhor o seu capitão, senhor”34. Essa fala de Spencer condensa tudo o que
fomos apresentados até agora sobre Mitch Nelson, um patriota pronto para abandonar
suas prioridades pessoais para servir seu país, mesmo sem experiência em combate ele
está à disposição para ser enviado a um território estrangeiro para enfrentar os inimigos
de sua pátria (ou melhor, da administração de sua pátria) sem a menor hesitação. Na
próxima cena, sentado pensativo e indignado em seu escritório, Nelson recebe a visita de
Bowers que lhe informa que ele será enviado para o Afeganistão.
As próximas três sequências são muito parecidas entre si e servem de conclusão
para a primeira parte do filme, assim identificada por mim e apresentada junto às outras
no início deste capítulo, a da ambientação espaço-temporal e a preparação da jornada dos
heróis. Em especial, esses segmentos conversam bastante com o primeiro segmento do
filme após a abertura com informes de noticiários, aquele no qual a paz e tranquilidade
da família americana é desestabilizada pelo atentado. Nesses segmentos finais da primeira
parte, vemos as cenas de despedida de Spencer, Diller e Nelson de suas respectivas
famílias. São cenas bastante simbólicas e que carregam um considerável peso emotivo,
ainda mais levando em conta que devido à histórica grande quantidade de pessoas nas
forças armadas dos Estados Unidos os espectadores criem um vínculo emocional com
essas cenas e personagens por terem elas próprias servido nas forças armadas, e até
mesmo sido enviadas para zonas de confronto, ou terem entre seus familiares e
conhecidos alguém que serviu nas forças armadas e que possa ter sido morto em combate.

33
https://www.democracynow.org/2002/2/19/as_black_hawk_down_director_ridley (Acesso em
12/12/2019).
34
No original: “If you think furthering his career is why he joined, you need to get to know your captain,
sir”.
69

Filmes dialogam a todo momento com a emoção para conectar seus protagonistas aos
espectadores. Em todas as três cenas, a interação entre os militares e suas respectivas
esposas é o principal aspecto destacado. A presença do romance heterossexual é uma
característica marcante da trama da narrativa clássica hollywoodiana, sendo, geralmente,
uma das duas linhas de enredo principais que irá, dentro de sua estrutura causal, se
resolver, quase sempre, simultaneamente à esfera da ação do filme: a resolução de uma
leva à resolução da outra (BORDWELL, 2005, pp. 280-281). No caso dos war films,
mesmo que haja um elemento de romance, este aspecto é pouco explorado e acaba
servindo, geralmente, apenas como um suporte para a narrativa de uma única trama.
Nestas sequências, a relação dos protagonistas com suas esposas, por mais que, em um
nível superficial, retrate simplesmente uma situação típica com a qual cônjuges de
militares enviados para o campo de batalha possam se deparar, em uma análise mais
profunda é possível identificar alguns motivos que acompanham o cinema estadunidense
desde o seu surgimento, em especial à herança que os war films receberam dos westerns
do início do século XX.

2.1.2 Do cowboy ao soldado de elite

Tanto war films quanto westerns podem ser considerado como sendo parte do
grande gênero fílmico de ação-aventura, ainda que alguns críticos e teóricos do gênero35
apontem os westerns e o war film como gêneros distintos – o que de fato são, pois
evidentemente que em uma análise mais minuciosa somos capazes de identificar
características particulares a cada um desses –, para facilitar a minha análise, uma vez
que não estou preocupado em discorrer acerca do debate sobre o gênero fílmico, me
utilizo da inclusão do war film entre os filmes de ação-aventura apresentada por Steve
Neale (2000, p. 46-49). Segundo Neale, o termo ação-aventura engloba uma multitude de
filmes e gêneros que compartilham entre si algumas características principais, como, por
exemplo, “a propensão para ação física espetacular; uma estrutura narrativa envolvendo
lutas, perseguições e explosões; [...] efeitos especiais e a ênfase na performance de feitos

35
É importante ressaltar que aqui me refiro aos teóricos do gênero (genre) fílmico e não aos dos estudos de
gênero (gender) e sexualidade. A confusão pode se dar uma vez que a tradução portuguesa das palavras
inglesas genre e gender é a mesma.
70

e façanhas36 atléticas”37. Sobre este grande gênero, porém, é necessário enquadrá-los


dentro de uma longa tradição. No cinema, o termo “ação-aventura” já era utilizado para
filmes do início do século XX, e, separadamente, “ação” e “aventura”, remontam aos
melodramas do século XIX e, citando Thomas Sobchack (1988, p. 9),
todos os gêneros fílmicos não-cômicos são baseados na estrutura do romance
da literatura medieval: um protagonista possui ou desenvolve habilidades
grandiosas e especiais e supera obstáculos intransponíveis em situações
extraordinárias para atingir com sucesso um objetivo, geralmente a restituição
da ordem ao mundo invocada pela narrativa. Os protagonistas confrontam
poderes humanos, naturais ou sobrenaturais, que indevidamente assumiram o
controle do mundo, e eventualmente os derrotam38.

Ainda, prossegue Neale (2000), continuando a apresentar o pensamento de Sobchack,


esses filmes costumam retratar um passado romântico ou um local remoto do presente e
dão origem a duas variações em sua estrutura narrativa. A primeira é a do herói solitário,
aquele que desbrava cantões esquecidos do mundo e lidera expedições fantásticas e
repletas de perigo, muito bem exemplificada pela personagem Indiana Jones, da
homónima série de filmes. A segunda diz respeito ao arquétipo do sobrevivente, muito
costumeira dos war films, que “foca no herói interagindo com um grupo microcósmico,
o sargento de uma patrulha, o líder de um esquadrão, a pessoa que lidera um grupo perdido
para longe do perigo e de volta à civilização”39. Exatamente o tipo de estrutura narrativa
que observamos em 12 Strong.
Mesmo que compartilhem características de estrutura narrativa com outros muitos
outros gêneros que também possam ser caracterizados como ação-aventura, a relação dos
westerns com os war films, no entanto, vai além do que se refere aos aspectos fílmicos,
de gênero e cinematográficos. Esta é uma relação na qual identifico enlaces no nível moral

36
No texto original em inglês fora usada a palavra stunt, a qual traduzi como “façanha”, no entanto, é
preciso deixar claro que, na linguagem cinematográfica, stunt se refere a manobras de grande proeza e
perigo, geralmente realizadas por um profissional específico, o dublê (stunt double). Assim, entendemos
que os filmes de ação-aventura possuem como uma de suas principais características a realização dessas
proezas perigosas.
37
No original: “a propensity for spectacular physical action, a narrative structure involving fights, chases
and explosions, [...] special effects, an enphasis in performance on athletic feats and stunts”.
38
No original: “all non-comic genre films are based on the structure of the romance of medieval literature:
a protagonist either has or develops great and special skills and overcomes insurmountable obstacles in
extraorinary situations to successfully achieve some desired goal, usually the restitution of order to the
world invoked by the narrative. The protagonists confront human, natural, or supernatural powers that
have improperly assumed control over the world and eventually defeat them”.
39
No original: “focuses on a hero interacting with a microcosmic group, the sergeant of a patrol, the leader
of a squadron, the person who leads a group of castaways out of danger and back to civilization”.
71

e de identidade nacional da sociedade estadunidense. Muitos, entre teóricos, historiadores


do cinema e cinéfilos, identificam o western como o género fílmico propriamente
estadunidense, tendo sua origem remetida à virada do século XIX para o século XX e
figurando entre os primeiros gêneros de filmes narrativos da história. Fora um gênero de
grandiosa popularidade durante a primeira metade do século XX, tendo influenciado,
inclusive, a cinematografia da indústria de diversos países. Essa influência também não
fora pequena dentro de seu próprio território, o western espalhou “seus motivos e
convenções por praticamente todos os gêneros hollywoodianos, invadindo da comédia ao
musical, do filme de gângster ao filme de terror, da ficção científica ao filme de autor”
(VUGMAN, 2006, p. 159). O western criou ao seu redor todo um imaginário, um universo
mitológico, acerca do chamado “Velho Oeste” dos Estados Unidos, composto por um
amálgama de diferentes momentos históricos e regiões deste país. Mas o que seria esse
universo? Segundo Richard Slotkin (1998, p. 5, apud VUGMAN, 2006, p. 160), os mitos
são “histórias criadas a partir da história de uma sociedade que, repetidas ao longo do
tempo, adquirem o poder de simbolizar a ideologia daquela sociedade e de dramatizar sua
consciência moral”, o que vai ao encontro da definição de mito feita por Roland Barthes
(2001, p. 131-132) segundo a qual “o mito é uma fala. [Porém,] não uma fala qualquer.
[...] o mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. [...] ele é um modo de
significação, uma forma”, à qual, no entanto, é necessário que se imponham limites
históricos, condições de funcionamento e que se reinvista nela a sociedade, mas, ainda
assim, uma forma, que, por carregar uma mensagem, não precisa ser uma fala oral, esta
forma, então, pode ser também escrita ou representativa, estando o cinema incluído nesta
última. Dessa maneira, conforme as histórias narradas pelos westerns foram sendo
contadas e recontadas, cria-se ao redor delas esta fala mítica sobre a qual Barthes se refere,
significando diversos objetos e modos de agir representados por aquelas histórias
projetadas nas telas das salas de cinema.
A mitologia do western, no entanto, não surgiu espontaneamente. Como
mencionei anteriormente, a tradição narrativa de vários gêneros de filmes pode ser traçada
àquela da literatura medieval. No caso mais específico dos westerns e seu universo
mitológico, indica Vugman (2006, p. 161), a herança mais recente vem de uma tradição
literária que surge na segunda metade do século XVII e tem como principal motivo as
“narrativas de cativeiro” que giravam em torno do rapto de uma mulher branca por
indígenas, a qual suportava passivamente a maldade desses “bárbaros não civilizados”
enquanto esperava por seu salvador masculino e branco. O resgate desta mulher
72

representa assim o resgate da moral cristã que esta mulher encarna na narrativa, ela é o
bastião de uma civilização que se vê sitiada por incontáveis ameaças, as quais mudam ao
longo do tempo, mas que sempre estão ali, como um espectro nas sombras, sempre
ameaçador. A figura mítica do homem branco também é significada por essas narrativas
como aquele que domina a guerra, a sobrevivência, conquista seus inimigos, resgata a
mulher e retorna para a civilização, num ato simbólico de que os selvagens não são
capazes de macular a moralidade cristã – ou ocidental. A violência, muitas vezes
genocida, perpetrada por este homem branco seria então plenamente justificada pela
realização deste resgate simbólico dos valores da civilização cristã, nesta sua jornada
contra o não-civilizado ele encontra a sua redenção.
Sendo parte, então, deste universo mitológico, 12 Strong apresenta os mesmos
motivos daquelas narrativas do século XVII e dos westerns do início do século XX,
adaptados, porém, ao contexto histórico e geopolítico de sua época, no entanto, os
elementos estão ali e podemos identificá-los. Por mais que não haja, em uma primeira
vista, não exista na narrativa do filma um rapto feminino por parte de vilões não-
ocidentais, existe uma forma diferente de rapto, mais sutil e velada, mas que, da mesma
forma, é representada por mulheres. O rapto presente na trama de 12 Strong é
representado pelo estado de medo e angústia das personagens em face ao atentado de 11
de setembro de 2001, que é encarnado nas figuras das esposas de Nelson, Spencer e Diller.
A família estadunidense, seus valores morais e seu “american way of life” estão sendo
feitos refém, ainda que dentro de seu próprio território, por aqueles terroristas
estrangeiros. As sequências finais desta primeira parte em que dividi o filme para a análise
incorpora esses motivos das narrativas de captura, ainda que esta captura seja simbólica,
ecoando os sentimentos que a civilização ocidental e sua moralidade estão sendo mais
uma vez ameaçados por bárbaros hostis. Ao mesmo tempo, aqueles três homens, em
especial Nelson, são possuídos pelo espírito daquela figura mítica do homem branco
heroico, que prontamente se lançará contra a ameaça do selvagem, o dominará na guerra
e retornará para a civilização como seu grande protetor.
73

2.2 Parte II: O outro

A segunda parte do filme, a qual trataremos nesta seção, inicia com uma curta
sequência aérea durante a qual um grande avião de transporte ruma em direção ao
horizonte sobre uma paisagem de montanhas e estepes de vegetação seca o sem
vegetação, evocando famoso recorrente tropo40 do deserto, da terra vazia, utilizado de
forma recorrente em filmes hollywoodianos dos mais diversos gêneros, sobre o qual
falaremos mais a diante. Retomando aquela necessidade de passar a veracidade dos
eventos retratados pelo filme, a data e o local, mais uma vez, aparecem no canto inferior
esquerdo da tela: “16 de outubro de 2001, Uzbequistão”. Mudando, em seguida, para
novas informações: “Base K2, 97 milhas ao norte da fronteira afegã”. Enquanto a segunda
mensagem informativa é mostrada na tela, uma nova sequência se inicia, naquele sentido
de sempre ser uma extensão da anterior, com uma montagem de movimentação de
helicópteros e outros veículos militares enquanto o pelotão de Nelson caminha em meio
à miscelânea bélica da base. Assim, juntamente com a sequência anterior, entendemos
que a equipe acabou de chegar nesta base para se preparar para a missão, da mesma forma,
a utilização dos aparatos militares como pano de fundo e primeiro plano pretende
transmitir a ideia de que a máquina de guerra estadunidense nunca para, está lá, naquele
Oriente distante, agindo em defesa da “terra de liberdade e lar dos valentes”41.
Após uma sequência de descontração dos integrantes da equipe recém-chegada à
base militar, encontrando outros companheiros que já estavam lá, a próxima sequência é
uma daquelas que vemos com frequência nos war films: um superior hierárquico,
geralmente de idade mais avançada, passa as instruções da missão em questão para a
personagem protagonista. É uma sequência que dá o tom para esta segunda parte do filme,
a qual chamarei de “fase preparatória” uma vez que é neste momento que os elementos
necessários para a culminação no clímax final são apresentados individualmente e em
suas relações um com os outros, como veremos adiante. Como indicado no início do
capítulo, esta é a parte mais longa do filme e é a que contêm a maior quantidade de

40
“Emprego de palavras em sentido diferente daqueles que lhes corresponde propriamente, isto é, seu
emprego em sentido figurado”. TROPO. IN: DICIONÁRIO Michaelis. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/tropo/.
41
Em referência ao trecho “O'er the land of the free and the home of the brave” do hino nacional dos
EUA.
74

representações sobre o “outro” não ocidental, nesse sentido, uma grande quantidade de
estereótipos, tropos e motivos são mobilizados durante esta segunda parte, os quais
abordaremos em detalhes nas páginas seguintes.

2.2.2 O mau, a criança e o herói

2.2.2.1 O Mau

Em uma sequência curta, o espectador é apresentado de forma mais íntima aos


antagonistas, o Taliban, em especial àquele que é considerado seu líder, Mullah Razzan,
interpretado pelo ator turco-alemão Numan Acar. A sequência começa com um close-up
em uma mulher de burca que chora assustada de joelhos no chão. O plano vai se abrindo
aos poucos, revelando a aproximação de um homem todo vestido de preto, enquanto a
câmera se move lentamente para mostrar livros no chão ao lado da mulher. Há um corte
interrompendo a movimentação da câmera e levando a atenção para um plano-detalhe
que enquadra a bota do estranho de preto chutando os livros com desprezo. Com outro
corte há um retorno para o plano interrompido, e a câmera continua a sua movimentação
para revelar a figura de vestes escuras que se aproxima de três meninas que estavam em
segundo plano. As meninas choram copiosamente na presença do homem, que agora tem
sua face revelada – turbante e barba comprida são suas características mais destacadas,
como que um simulacro genérico de Osama bin Laden. Ele fala com elas de forma
paternal, tentando acalmá-las enquanto seca as lagrimas de uma com sua mão. É
interessante notar que o quadro em que Razzan seca a lágrima de uma das meninas utiliza
um enquadramento fechado em close-up no rosto da garota, com a mão extremamente
suja do líder Taliban em sua face (figura 1). A mão suja em destaque não é por acaso,
toda a sequência é construída para gerar um sentimento de aversão do espectador para
com o antagonista, a sujeira de Razzan é contraposta às noções ocidentais de higiene, algo
presente no pensamento orientalista desde o século XIX.
Edward Said (2007, pp. 280-281) aponta que, desde seu princípio, o orientalismo
incorporou, em suas teses de atraso, degeneração e desigualdade do oriental frente ao
Ocidente, ideias de bases biológicas da desigualdade racial, evocando um “darwinismo
de segunda categoria” para se validar cientificamente. Nesta corrente racista de
pensamento, o oriental, junto com outros povos não-europeus, era assinalado como
75

“atrasado, degenerado, incivilizado e retardado” a partir de uma estrutura fundada no


determinismo biológico e na moral. O oriental era, portanto, associado a elementos
considerados como párias sociais e biológicas da sociedade ocidental, como os
delinquentes, os loucos, as mulheres, os pobres, os homossexuais, entre outros. A questão
da sujeira do oriental Razzan apresentada nesta sequência de 12 Strong vai ao encontro
dessas noções de desigualdade entre o ocidental e o “outro”, afinal, como indica Mary
Douglas (1966, p. 19), logo na frase inicial do primeiro capítulo de Pureza e Perigo,
“nossa ideia de sujeira é composta de duas coisas, cuidado com a higiene e respeito por
convenções”. Assim, sendo o oriental associado a um pária ocidental, estando fora das
convenções, a sujeira da mão de Razzan funciona como um elemento que separa o
espectador ocidental – especialmente o estadunidense –, para quem o filme fora
concebido, do vilão oriental sujo e que chuta livros, portanto, também incivilizado e
ignorante. Temos então apresentados as duas facetas orientalista do outro, a do vilão cruel
e sem escrúpulos e a do oriental incapaz e vulnerável, representado pelas crianças e pela
mulher, que precisa ser salvo. Explorarei adiante esta segunda representação de forma
mais aprofundada.

Figura 7 - Mullah Razzan enxuga as lágrimas da criança. A mão suja é posta em contraste com a pele da
menina como se seu toque levasse estas crianças rumo ao obscurantismo por ele representado.

Ainda na mesma sequência, Razzan começa a fazer diversas perguntas para as três
meninas, testando seus conhecimentos, que respondem corretamente todos os
questionamentos do homem. Em seguida ele volta sua atenção para a mulher de burca ao
mesmo tempo em que um outro homem, presumidamente o cônjuge da mulher, lhe clama
por misericórdia enquanto diversos outros homens barbudos de turbantes e com armas
em mãos assistem a cena. Agora, com o plano mais aberto para mostrar a plateia macabra,
76

um de seus membros se aproxima da mulher e lhe retira a burca com violência, expondo
a todos o seu rosto ferido e expressão de desespero. Razzan ergue então sua pistola,
apontando-a para a cabeça da mulher enquanto ela implora por sua vida. Sem dizer
nenhuma palavra, Razzan executa a mulher diante das crianças, possivelmente suas filhas,
e de seu marido, arrebatando gritos de “Allāhu akbar”, Deus é grande, de seus
companheiros do Taliban que disparam para cima com suas armas em celebração à
execução da mulher. Após um close-up no rosto sem vida da mulher, com destaque
especial para a ferida sangrenta em sua testa, o cruel carrasco se aproxima dos livros ao
lado do corpo inerte da mulher, ergue um deles em sua mão e grita em pachto 42, para a
qualquer um que consiga escutar, que “todos conhecem Sua lei divina. Nenhuma menina
com mais de oito anos de idade deve ser educada. Vocês queriam uma professora? Agora
vocês aprenderam”43.
A sequência inteira tem pouco menos do que três minutos de duração, mas evoca
reflexões importantes. A primeira delas diz respeito à sua inserção na obra
cinematográfica em questão. Como apresentado anteriormente, encontramos em 12
Strong diversas características da narrativa que remontam ao estilo clássico
hollywoodiano, dentro do qual uma das principais características é a demarcação clara
dos protagonistas e antagonistas da trama (BORDWELL, 2005; BORDWELL;
THOMPSON, 2008; COSTA, 2006). Ao invés de construir a personagem antagonista ao
longo de toda a trama, criando contornos e nuances diversos para ela, o que se encontra
neste longa-metragem é a condensação de todas as suas características em uma única
sequência para que o resto do tempo do filme possa ser destinado para os heróis e as cenas
de ação. Desta forma, o que a narrativa expressa para o espectador é que não é necessário
que se saiba nada mais sobre o vilão do que aquilo que foi apresentado nestes poucos
mais de dois minutos. Ele é cruel, sujo, incivilizado, fanático. Assim como aqueles outros
homens barbudos e de turbante que o seguem e invocam Deus quando seu líder executa
friamente uma mulher. “Como é bárbaro o oriental e sua religião”, diz o ocidental.
É evidente que o Taliban foi, e ainda é, um grupo extremamente violento e
perigoso, composto por homens cruéis e embebidos em uma doutrina religiosa fanática.
No entanto, este fanatismo, como pressupõe o orientalista, não é algo inerente ao oriental

42
Idioma amplamente falado no Afeganistão.
43
Nas legendas em inglês do original: You all know His divine law. No girl over the age of eight years is
to be educated. You wanted a teacher? Now you have learned.
77

e à religião islâmica. O Taliban – para nos atermos aos antagonistas de 12 Strong –, por
exemplo, tem seu surgimento relacionado a intrincadas relações geopolíticas que
remontam, de forma não surpreendente, às aventuras imperialistas europeias na Ásia
durante o século XIX. Conforme apresenta Tariq Ali (2005, pp. 283-301), o Afeganistão,
devido à sua geomorfologia montanhosa, nunca fora ocupado por nenhum poder colonial,
não por falta de investidas, tanto o Reino Unido quanto a Rússia czarista almejavam
incorporar este território a seus impérios e tiveram suas invasões repelidas. O resultado
disso foi que as duas nações acordaram em aceitar o Afeganistão, à época ainda uma
confederação tribal multiétnica, como um estado-tampão entre o Império Russo, ao norte,
e o Raj Britânico, ao sul, com Nova Délhi observando de perto.
Inspirado pela Revolução Russa em 1917 e pela Guerra de Independência Turca
em 1919, continua Ali, o jovem e ambicioso Emir Amanullah Khan, desgostoso com a
influência britânica, liderou uma bem-sucedida campanha militar contra os ingleses em
1919, o que lhe conferiu confiança para realizar uma série de reformas legislativas e
políticas, proclamando uma nova constituição bastante progressista para sua época.
Ainda, o Emir procurou se aproximar diplomaticamente com o governo revolucionário
da jovem União Soviética, o que deixou os britânicos em estado de alerta e decididos a
derrubar Amanullah, objetivo que foi atingido em 1929, lançando o Afeganistão em um
período de instabilidade política. Para isso, o Vice-Rei da Índia convidou Thomas Edward
Lawrence – o notório orientalista conhecido como Lawrence da Arábia – para lhe servir
de conselheiro, subornou diversos líderes tribais e, isto é muito importante, fomentou a
oposição religiosa contra o Emir.
Décadas mais tarde, no início dos anos 1970, o então Rei Zahir Shah fora deposto
por seu primo, Daud Khan, que proclamou uma república com o apoio dos comunistas
locais e ajuda financeira da União Soviética. No entanto, o Xá iraniano, aliado próximo
dos Estados Unidos, convencera Daud a se voltar contra seus aliados comunistas internos,
muito influentes nas forças armadas, o que levou a um golpe de estado em 1978, no qual
Daud fora assassinado (RUBIN, 2002, p. 75). O novo governo dos comunistas, apesar da
pequena base social na maioria rural do país, implementou um programa de reformas
focado principalmente na educação, dando continuidade ao processo de modernização
iniciado por Amanullah.
Como é frequente entre as nações imperialistas, os Estados Unidos logo passaram
a assumir o papel que outrora exercera o Reino Unido e começaram a articular contra o
governo comunista afegão. E, da mesma forma que seu predecessor europeu, a principal
78

estratégia fora a de incentivar a oposição religiosa, inclusive armando esses grupos,


levando o país a uma violenta guerra-civil que logo se tornou uma jihad44 antissoviética
quando Brejnev enviou tropas para salvar o regime de seus camaradas de Cabul. A
movimentação do Exército Vermelho servira perfeitamente para os planos
estadunidenses, aponta Tariq Ali (2005, pp. 288-289) ao trazer extratos de uma entrevista
concedidas por Zbigniew Brzezinski, chefe de segurança nacional do governo de Jimmy
Carter (1977-1981), à revista francesa Le Nouvel Observateur em 1998, na qual
Brzezinski diz que “nós não forçamos os russos a intervir, mas aumentamos a
probabilidade de que intervissem”. Depois, ao ser perguntado se ele se arrependera de, ao
apoiar os mujahedin45, ter propiciado armamento e orientação para futuros terroristas, sua
resposta vem carregada de desdém pela vida de civis no resto do mundo: “o que é mais
importante para história do mundo? O Taliban ou o colapso do império soviético?”.
Lembremos que antes do Ocidente ser alvo de atentados terroristas os primeiros a
sofrerem são os habitantes dos países nos quais esses grupos se originaram e foram
armados como oposição a regimes contrários aos Estados Unidos.
Para fazer esta oposição religiosa ser efetiva contra os soviéticos e comunistas no
Afeganistão, os Estados Unidos contou com o apoio dos serviços de inteligência da
Arábia Saudita e do Paquistão para treinar esses militantes islâmicos de diferentes
facções, lembrando que o Afeganistão é um país multiétnico com históricas rixas internas.
Ali (2005, pp. 294-295) fala ainda do papel desempenhado pelo saudita Osama bin Laden
como contato da CIA entre os mujahedin antissoviéticos, no entanto, o que me importa

44
“A palavra jihad é derivada da raiz árabe jahada, significando ‘persistir’ ou ‘se esforçar’ em direção a
algum objetivo. Nesse sentido geral, a jihad pode significar se esforçar para alcançar algo sem nenhum
valor moral particular, ou mesmo um valor negativo. [...] Assim, a jihad passou a significar no contexto
islâmico apenas uma luta virtuosa, em direção a algum fim louvável, conforme definido pela religião.
Portanto, é muitas vezes associado à frase fi sabil Allah, que significa ‘luta no caminho de Deus’. [...] Os
fundamentalistas também apelam para o Corão e às hadiths para desafiar o que consideram como
entendimentos falsos da jihad. Primeiro, eles refutam a linha mística de pensamento que enfatiza a
superioridade da jihad interior e espiritual sobre a jihad exterior, física. De acordo com eles, ao final da
revelação corânica, a jihad significava uma luta, por meio do combate, se necessário, para estabelecer a
ordem islâmica sobre todos os não-crentes. [...] Quanto à conduta apropriada da guerra atualmente, a
grande maioria dos estudiosos muçulmanos concorda que os princípios do direito internacional
humanitário são compatíveis com os ensinamentos islâmicos. Isso inclui a noção de imunidade a não-
combatentes e a proibição de formas desumanas de matar. Grupos terroristas muçulmanos, no entanto,
tentaram justificar a morte de civis por motivos islâmicos, mas seus argumentos e táticas foram
condenados pelos principais estudiosos. Finalmente, muitos muçulmanos hoje estão tentando recuperar
o amplo significado da jihad como ‘esforço’ ou ‘luta’ à parte da guerra. Cada vez mais, encontramos
referências a lutas como a ‘jihad pela alfabetização’ ou a ‘jihad pelo desenvolvimento econômico’”
(HASHMI, 2016, pp. 583-586). Tradução nossa.
45
Significa, literalmente, “alguém envolvido na jihad”.
79

trazer do que é apresentado por Ali é o papel prestado aos Estados Unidos pela agência
de inteligência paquistanesa no treinamento dos guerrilheiros que viriam a se tornar o
Taliban. Com a retirada do Exército Vermelho, em 1989, a aliança entre as várias facções
de guerrilheiros islâmicos apoiadas pelos Estados Unidos e associados se dissolveu. Ao
invés da criação de um novo governo que abrangesse a multietnicidade característica do
Afeganistão, o governo paquistanês, com anuência dos estadunidenses, elevou seu
escolhido para governar o país vizinho, levando o Afeganistão mais uma vez à guerra
civil entre grupos que se digladiavam ao mesmo tempo que lutavam contra o governo
fantoche. Ao ficar evidente que as forças do governo afegão não seriam capazes de
resistir, Islamabad46 direcionou seu apoio ao Taliban, a quem haviam treinado em escolas
religiosas desde o início da década de 1980. Órfãos da guerra contra a União Soviética, o
Taliban fora enviado para lutar contra, segundo aqueles que os enviaram, “muçulmanos
que não eram realmente muçulmanos”.
Esses garotos eram de uma geração que nunca tinha visto seu país em paz. Não
tinham lembranças de suas tribos, de seus anciões, dos vizinhos e nem da
complexa mistura que era sua pátria. Admiravam a guerra porque era a única
ocupação à qual poderiam se adaptar. Sua crença simples em um islã
messiânico e puritano era a única coisa que podiam se agarrar e que dava algum
significado à sua vida (RASHID, 1999 apud ALI, 2005, p. 293).

Assim, o que se percebe é que o Taliban e seu fanatismo religioso é somente a ponta de
uma corrente que se estende a mais de um século para o passado, cujos elos foram forjados
por complexas relações, desde as tribais internas do Afeganistão até as da geopolítica da
guerra fria.
No entanto, o que a sequência que descrevi no início dessa seção passa para o
espectador é que Razzan e seus companheiros barbudos simplesmente são assim, faz parte
de sua “mente oriental”. Da mesma forma que com obras de literatura do século XIX,
filmes como 12 Strong e tantos outros war films passados no Oriente são acompanhados
de “uma mitologia livre do Oriente, um Oriente que deriva não só das atitudes
contemporâneas e preconceitos populares, mas também [da] vaidade das nações e dos
eruditos” (SAID, 2007, p. 89), Said se refere aqui àqueles eruditos que dedicavam suas
carreiras acadêmicas a pesquisar os mistérios do Oriente e revelá-los ao ocidental
instruído. Atualmente, com as múltiplas telas das mídias eletrônicas, podemos substituir
o erudito pelo jornalista “especialista” a comentar os acontecimentos do Oriente.

46
Capital do Paquistão.
80

2.2.2.2 A criança

Em uma seção anterior abordei a noção de tropos costumeiramente presentes em


produções hollywoodianas dos mais variados gêneros fílmicos. Naquele momento me
debrucei sobre os tropos do “vazio” da terra do “outro” – o qual evoca o imaginário
orientalista do deserto – que espera para ser ocupada, e sobre o da animalização do
“outro”, o selvagem que habita esta terra vazia e destituída de civilidade. Nessa seção,
por sua vez, aprofundarei em outro tropo também bastante comum nas narrativas
colonialistas, o tropo da infantilização do “outro”. Ella Shohat e Robert Stam (2014, pp.
139-140) apontam como este tropo projeta o colonizado como se estivesse em um estágio
anterior de desenvolvimento humano individual e cultural. Este tropo tem sua origem em
um racismo de teor “científico” do século XVIII que procurava confirmar afirmações
sobre como, por exemplo, “negros adultos seriam anatomicamente e intelectualmente
idênticos a crianças brancas”. O famoso orientalista francês Ernest Renan (1891, p. 153),
por exemplo, indicam os autores, falava de uma “infância perpétua das raças não
aperfeiçoáveis”47. A partir destas afirmações racistas respaldadas por um suposto
“conhecimento científico”, a literatura da época passou a incorporar estas “verdades” em
suas narrativas. Shohat e Stam apresentam um exemplo de um romance belga de 1868 no
qual se lê que “o negro que entra em contato com brancos [...] ‘perde suas características
bárbaras e retém apenas as qualidades infantis dos habitantes das florestas’”48. Stuart Hall
(2016, p. 172) menciona a existência de um grupo de representação colonialista segundo
o qual, os “nativos felizes” seriam aqueles que
cantavam, dançavam e faziam piadas o dia todo para entreter os brancos; [...]
a preguiça, a fidelidade simples, o entretenimento tolo protagonizado por
negros (cooning), a malandragem e a infantilidade pertenciam aos negros como
raça, como espécie (grifo no original).

Na literatura, este estereótipo fora imortalizado, continua Hall (2016, p. 174), com as
representações do pickaninny, a pequena criança negra, com sua “adorável [...] inocência
sorridente nas capas dos livros Little Black Sambo49”.

47
No original: the “everlasting infancy of [the] non-perfectable races”.
48
No original: The Black who comes into contact with Whites [...] “loses his barbarian character and only
retains the childlike qualities of the inhabitants of the forest”.
49
O termo racista “Sambo” era costumeiramente utilizado para se referir a homens afro-americanos nos
Estados Unidos.
81

Este tropo de origem literária e da cultura popular persistiu e encontrou espaço


nas narrativas cinematográficas. Em um estudo sobre a história dos negros no cinema
estadunidense, Donald Bogle (1973 apud HALL, 2016, p. 177-178) identifica cinco
estereótipos – os quais também podem ser considerados tropos – que surgiram no
primeiro cinema e persistem atualmente. Um desses é o dos “malandros” (coons),
encarnados pelos pickaninnies desengonçados e bobos, “os ‘pretos’ inúteis [...] que não
servem para nada senão comer melancia, roubar galinhas, atirar lixo ou massacrar a língua
inglesa” (BOGLE, 1973, pp. 7-8 apud HALL, 2016, p. 177). Shohat e Stam (2014, p.
140) apresentam diversos exemplos de como filmes da primeira metade do século XX
infantilizavam a representação do colonizado ao, por exemplo, apresentar diálogos nos
quais personagens brancas se regeriam a homens negros adultos como “meninos”. Ainda,
os autores trazem um exemplo de fora das telas do cinema, mas emblemático quando
tratamos da (auto)representação: “‘índios’ brasileiros não podiam representar a si mesmos
em filmes devido a sua condição legal de crianças50, foi apenas em 1988 que a nova
Constituição Brasileira reconheceu os indígenas como cidadãos adultos”51. Neste sentido,
o discurso carregado pela utilização deste tropo, ao projetar esta infantilização no “outro”
colonizado de forma global, é aquele da mission civilizatrice imperialista, segundo o qual

50
“Quando foi editado o Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), revogando o Decreto 5.484/1928, fora mantido
o regime tutelar previsto no Código Civil de 1916, que tratava o silvícola como relativamente incapaz,
cessando a sua incapacidade à medida que fosse se adaptando à civilização do país, revelando a
transitoriedade com que a condição indígena era tratada na época. Protegia-se para integrar, acreditando-
se sinceramente que a integração fosse o melhor para o índio, e uma vez integrado deixaria de ser índio
e perderia os direitos inerentes a esta condição. [...] O EI expressamente dividia os indígenas em
‘isolados’, ‘em vias de integração’ e ‘integrados’, de acordo com o grau de contato que mantivessem com
a sociedade envolvente e consequente assimilação de seus hábitos, sendo certo que conferia plena
capacidade para os atos da vida civil apenas aos indígenas reconhecidamente integrados, mantendo sob
o regime tutelar os ainda não integrados (art. 7). A liberação do regime tutelar dependia de solicitação do
interessado junto ao órgão de assistência, dependendo de homologação judicial e do preenchimento dos
seguintes requisitos (art. 9): Ser maior de 21 anos, ter conhecimento da língua portuguesa, ter habilitação
para o exercício de atividade útil na comunhão nacional e razoável compreensão dos usos e costumes da
comunhão nacional. [...] A partir de 05 de outubro de 1988, quando o índio no Brasil passou a ter o direito
a ser índio, não há mais o que se falar em incapacidade civil, primeiramente em virtude do abandono do
paradigma assimilacionista em favor da garantia de reprodução física e cultural de minorias étnicas,
restando garantido aos indígenas a manutenção de seu estilo de vida tradicional sem o fantasma da
‘civilização’. Em segundo lugar por ser conferido aos silvícolas, sem qualquer exigência adicional, todos
os direitos fundamentais destinados a qualquer integrante do povo brasileiro, dentre eles a cidadania. Em
terceiro, por não ter a novel Constituição exigido qualquer representação ou assistência a fim de legitimar
os atos praticados pelos índios. E finalmente, em face do art. 232 que assegura aos índios, suas
comunidades e organizações, legitimidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses,
não exigindo representação ou assistência de quem quer que seja” (SILVA, 2014, p. 220-222).
51
No original: Brazilian “indians” were not allowed to play themselves in films because of their legal status
as children, and it was only in 1988 that the new Brazilian constitution recognized indigenous people as
adult citzens.
82

o “infante” terceiro-mundista não é capaz de lidar com os desafios da contemporaneidade


– uma vez que, nesta lógica deturpada, sua mentalidade é atrasada –, necessitando, assim,
da mão “adulta” das sociedades “avançadas” para guiá-los rumo à modernidade
(SHOHAT; STAM, 2014, p. 140).
Em 12 Strong, a infantilização do outro é utilizada exatamente no sentido de
apontar a necessidade que os países do terceiro-mundo – do Afeganistão e seu povo, no
caso deste filme – têm dessa suposta “mão que guia” para a modernidade, mas também
de uma “mão que salva” esses países de seus problemas internos. Neste sentido, é
importante ressaltar o que cada elemento no filme representa nos contornos deste tropo.
Sendo um filme de guerra, as personagens dos soldados estadunidenses carregam a carga
simbólica de representar os Estados Unidos enquanto potência militar, não apenas em
função de objetos cênicos como bandeiras do país, mas também por conta de elementos
narrativos e de enredo – o sentimento pós-11/09, a motivação patriótica de Nelson, entre
outros. Do “outro lado”, representando o impotente Afeganistão, nesta relação de tutoria,
o jovem Najeeb (Arshia Mandavi) de aproximadamente 14 ou 15 anos de idade.
Na trama, quando o pelotão estadunidense acaba se separando por não haver
cavalos para todos, o general Dostum designa alguns de seus subordinados para proteger
individualmente cada um dos soldados de Nelson que ficaram aguardando em um posto
avançado arruinado, apelidado de “o Álamo”, enquanto os outros seguiam com Dostum
rumo à Mazar-i-Sharif. Dentre os guarda-costas selecionados, Najeeb fora encarregado
de vigiar e proteger Milo. Najeeb, comprometido com a ordem de Dostum, mas sendo
apenas uma criança, segue Milo por toda parte, diferente dos outros guerrilheiros que
faziam a mesma função, mas vigiavam os soldados estadunidenses à distância. Como de
costume na narrativa clássica, em um determinado momento um dos personagens, no caso
Spencer, explica para Milo – e para o espectador – que os guerrilheiros estão ali para
protegê-los. É digno de nota apontar que, ao falar com Spencer, Milo diz que Najeeb o
segue como um “cachorrinho sem dono”52. Voltamos à questão do tropo da animalização
do outro que mencionei anteriormente, e, ainda, a qualificação como stray – que pode ser
traduzido como “perdido” –, no original, pode ser interpretada, à luz da relação que
apontei no parágrafo anterior, como se o “cãozinho perdido” chamado Afeganistão
precisasse daquela “mão que guia” do Ocidente, para fazer por ele as coisas que não
conseguiria por si só. Imediatamente após Spencer explicar para Milo que Najeeb é seu

52
No original: He follows me around like a little stray dog, bro.
83

guarda-costas designado, o soldado mais jovem oferece um doce para o garoto como
demonstração de gentileza. O doce em questão é um pirulito, o qual Najeeb parece
desconhecer. Gesticulando, Milo indica que é para se colocar na boca, Najeeb, em seu
desconhecimento, coloca o doce na boca sem retirar a embalagem plástica fazendo com
que Milo intervenha de forma a instruí-lo a retirar o invólucro. A interação de Milo com
Najeeb beira o paternalismo, o que, inclusive, provoca brincadeiras de seus companheiros
de armas, que chamam a interação de “fofa”. A relação de Najeeb e Milo é a mais
explorada entre os soldados e crianças no filme, porém não é única. Por mais que essas
outras sejam apenas sequencias de um ou dois segundos, elas estão lá como um lembrete
de que os Estados Unidos, com todo o seu poderio militar, foram para o Afeganistão para
“salvar e libertar” a população desse país que, como crianças, é incapaz de resolver
sozinho seus problemas internos. A condição de dependência do terceiro mundo é
representada aqui pelas figuras dos infantes, seja através daqueles recebem os soldados
estadunidenses com uma continência (figura 2), recolhem capsulas de munição após a
batalha (figura 3) ou, como Najeeb, que se senta junto com Milo e aprende xingamentos
em inglês com o soldado (figura 4).

Figura 8 - Um guerrilheiro pré-adolescente bate continência para o Capitão Nelson antes da batalha de
Bescham.
84

Figura 9 - Pat Essex (Austin Hérbert) entrega capsulas de munição usada para uma criança após a batalha
de Bescham.
O que podemos extrair a partir do que foi exposto nas seções 2.2.2.1 e 2.2.2.2 é
em essência o que o que queniano Makau Mutua (2001), especialista em direito
internacional, identifica como a metáfora dos “Selvagens-Vítimas-Salvadores” (SVS). A
abordagem de Mutua em seu artigo Savages, Victims and Saviors: the metaphor of human
rights – publicado na revista de direito internacional da Universidade de Harvard –, no
qual ele descreve essa metáfora, está preocupada em fazer uma crítica à perspectiva
eurocêntrica de parte da literatura sobre os direitos humanos, no entanto a metáfora nos
serve perfeitamente para falarmos sobre as relações entre os grupos de personagem em
12 Strong. Em primeiro lugar temos os “selvagens”, supostos arautos do barbarismo,
cujas “abominações [...] são apresentadas como tão cruéis e inimagináveis para
representar seu Estado como a negação da humanidade” 53 (MUTUA, 2001, p. 202). No
entanto, prossegue o jurista, a metáfora dos SVS sugere que não é o Estado que é bárbaro
per se, mas sim as suas bases culturais, as quais tornariam um Estado em um “Estado do
mal”54, o Estado seria nada mais que um receptáculo passivo para o projeto de uma cultura

53
No original: The abominations of the savage are presented as so cruel and unimaginable as to represent
their state as a negation of humanity.
54
Vale aqui lembrar da expressão “Eixo do Mal” (Axis of Evil) usada pelo ex-presidente estadunidense
George W. Bush para se referir diversas vezes ao Irã, Iraque e Coréia do Norte, Estados que supostamente
patrocinariam o terrorismo. Posteriormente, John Bolton, conselheiro de segurança nacional do governo
de George W. Bush, adicionou Cuba, Líbia e Síria ao grupo.
85

selvagem. Ou seja, uma negação completa das forças políticas, internas e externas, por
trás da complexa realidade dos países “terceiro-mundistas”.

Figura 10 - Milo ensina Najeeb a falar "Motherfucker".

Em 12 Strong, o “selvagem” da metáfora é encarnado por Razzan e sua horda de


fanáticos que aterrorizam a população afegã, a “vítima” na relação SVS. Esta dimensão
da metáfora representa não apenas quem é a vítima, mas também a própria noção do que
é ser uma vítima. A vítima seria qualquer um que teve sua dignidade e valor violado pelo
selvagem, uma figura indefesa e passiva negada pelas ações primitivas e ofensivas do
Estado/cultura do selvagem (MUTUA, 2001, p. 203). Na maior parte das representações
a vítima faz parte da mesma cultura e etnia dos selvagens, como observamos em 12 Strong
e diversas outras obras cinematográficas e literárias similares. A sequência descrita na
sessão anterior é um bom exemplo dessa relação selvagem-vítima.

2.2.2.3 O Herói

Por fim, a terceira dimensão da metáfora é a do “salvador”, o herói branco e


homem, na maior parte das vezes, que chega para trazer alento às subjugadas vítimas do
selvagem. Nas palavras de Mutua (2001, p. 204), o salvador é “o redentor, o bom anjo
que protege, vinga, civiliza, restringe e salvaguarda. O salvador é o bastião da vítima
contra a tirania”55. Ainda, o salvador é movido pela promessa da liberdade, ou seja,
liberdade da vítima de seu Estado tirânico ou de sua cultura opressora, os quais, na

55
No original: [...] the redeemer, the good angels who protects, vindicates, civilizes, restrains and
safeguards. The savior is the victim’s bulwark against tyranny.
86

narrativa colonialista, acabam se confundindo, como já mencionado. Assim, ao trazer a


liberdade, o salvador traz também a possibilidade da criação de uma sociedade melhor
com base em determinados valores particulares. O discurso não é novo, afinal, como
apontou Marx (2011, p. 25), os grandes fatos da história acontecem duas vezes, a primeira
como tragédia e a segunda como farsa. Assim, no século XVI a “missão” do salvador era
religiosa, levar a redenção àquelas almas pagãs e livrá-las do sofrimento eterno no
inferno; no século XIX o salvador levava a civilização para todos os rincões do mundo,
retirando aqueles “selvagens” da escuridão da ignorância; a partir da segunda metade do
século XX, o salvador chega para livrar os pobres do terceiro mundo da opressão tirânica
de seus governantes e levar a democracia a esses Estados corruptos. No entanto,
prossegue Mutua (2001, p. 204-205), por trás dessa narrativa de boas intenções, o
salvador é, em última instância, um conjunto de normas e práticas ocidentais com base
no pensamento e filosofia liberal, no passado, e neoliberal na contemporaneidade, o que
traz consigo heranças de um projeto colonial que colocam salvadores e vítimas em
categorias de superioridade e subordinação. Lembremo-nos do que ocorreu após a
invasão e ocupação do Iraque em 2003.
Após a fracassada tentativa dos Estados Unidos e do Reino Unido de justificar a
guerra com a acusação de que Saddam Hussein estaria investindo e ocultando armas de
destruição em massa, a justificativa passara então a ser a de levar a democracia para o
Iraque, “os povos do mundo árabe viram a Operação Liberdade do Iraque como uma
pantomima horripilante, um disfarce para a ocupação colonial à moda antiga, de estilo
europeu, construída [com base em] falsidades, cupidez e fantasias imperiais” (ALI, 2003,
p. 167). A introdução da democracia, como mencionado anteriormente, não passa de um
pretexto de controle. Em realidade, a democracia poderia trazer problemas para os
interesses estadunidenses no Iraque. Afinal, como questiona Tariq Ali (2003, p. 206): e
se o povo iraquiano pudesse ter elegido seu próprio parlamento após a queda de Saddam
Hussein e fosse escolhido um governo que mantivesse o petróleo sob controle iraquiano
e exigisse a retirada das tropas estrangeiras?
Sendo, então, os heróis de 12 Strong, os soldados estadunidenses deixam suas
famílias para, patrioticamente, se lançarem contra os perpetradores do ato terrorista em
Nova York e, de forma altruísta, “salvarem” a população afegã oprimida pelo Taliban.
Em uma sequência do filme, na base militar, enquanto aguardam a reunião de Nelson e
Spencer com seus superiores, Fred Falls (Austin Stowell) assiste a um vídeo de uma
mulher sendo apedrejada por ter engravidado sem estar casada e diz que “é isso que o
87

Taliban faz com as mulheres no Afeganistão”56 – exemplo da relação entre o selvagem e


a vítima. Incomodado com o vídeo, Diller pede para que Falls desligue, o qual responde
que isso é informação acerca do inimigo passada pelos serviços de inteligência, por sua
vez Diller replica afirmando que o vídeo em questão não é informação, mas sim
motivação e que ele já tem “duas torres cheias disso”57. Aqui podemos observar a
dimensão do patriotismo representado por Diller e sua motivação, ou seja, aquele que vai
à luta para vingar o dano feito à sua nação, da mesma forma que Nelson, como apresentei
anteriormente neste capítulo. E observamos a dimensão do salvador em Falls, sentindo
remorso pela vítima e preocupado em entender o que faz o selvagem para melhor
combatê-lo.
Coroando a dimensão do herói salvador e do espírito patriota que permeia a
indústria dos war films, há uma sequência em particular que gostaria de destacar. Sua
construção é, mais uma vez como outras tantas neste filme, transtextual, mais
especificamente intertextual – a principal modalidade de transtextualidade do filme – uma
vez que o objeto central da sequência é uma televisão na qual está passando uma
transmissão de um discurso do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush
lendo a resposta que Mitch Nelson redigiu para seus superiores quando estes perguntam
o porquê da demora do esquadrão em se mobilizar para a cidade de Mazar-i-Sharif. As
palavras da carta em questão começam sendo proferidas por Nelson, enquanto ele dita
para que seu companheiro digite, na sequência anterior após a batalha na cidade de
Bescham, há um corte que faz a transição para a sequência seguinte, passando do rosto
de Nelson para a televisão na qual agora escutamos a continuação da carta de Nelson pela
voz do presidente Bush. Outro aspecto da intertextualidade do segmento é que tanto a
carta de Nelson quanto o discurso de Bush na televisão são reais e inseridos no longa-
metragem para colar sua narrativa com a realidade e passar a sensação de que os fatos
narrados ocorreram de forma muito próxima daquilo que é representado. A carta em
questão diz o seguinte:

56
No original: This is what the Taliban does to women in Afghanistan.
57
No original: But that’s not intel, that’s motivation. And i’ve got two towers full of that.
88

Senhor, permita-me explicar a realidade no local. Eu estou aconselhando um


homem em como utilizar pessoas montadas em cavalos contra tanques T-72,
morteiros, metralhadoras. Uma tática que acredito ter se tornado obsoleta com
a invenção da metralhadora Gatling. Eles atacaram com dez cartuchos de
munição de AK-47 por homem. Com franco-atiradores com menos de cem
cartuchos, com pouca água e ainda menos comida. Nós testemunhamos a
cavalaria montada avançando a cada esporada para atacar os pontos-chave do
Taliban. Os últimos quilómetros sobre fogo de morteiro, artilharia e franco-
atiradores. Por todo lugar que passo, os civis e soldados locais estão sempre
dispostos em me dizer o quão grato estão pela vinda dos Estados Unidos, e
falam de suas esperanças por um Afeganistão melhor assim que o Taliban se
for58. (grifo nosso)

Tudo isso acompanhado de uma trilha sonora dramática feita a partir de uma
“receita” para músicas heroicas: um crescendo59 em escala menor 60 variando no mesmo
motivo musical61 e acompanhando de percussão. A música começa quando há a transição
de Nelson para a televisão na qual passa o discurso do presidente, e vai aumentando em
volume ao longo da sequência na qual as esposas e filhos dos membros do esquadrão de
personagens principais estão todos juntos na casa de uma das famílias, o momento de
confraternização da “família tradicional americana” que espera notícias de seus maridos
e pais. Porém, o que é mais importante apontar em toda essa sequência é o conteúdo da
carta de Nelson lida por Bush, especialmente a frase grifada acima. Contendo os três
sujeitos da metáfora SVS de Mutua, o “selvagem” Taliban, a “vítima” civil afegã
(representada no filme por mulheres e crianças, como observado anteriormente) e o
“salvador” Estados Unidos, a frase condensa o papel que se auto imbuiu os Estados
Unidos como “guardiões” da democracia e da liberdade no mundo, uma tarefa
supostamente altruísta para com os “menos favorecidos”. A guerra no Afeganistão deu

58
No original: Sir let me explain the reality on the ground. I’m advising a man how to employ horse-
mounted cavalry against T-72 tanks, mortars, machine guns. A tactic I think became outdated with the
invention of the Gatling gun. They’ve attacked with tem rounds of AK-47 ammunition per man. With
snipers with less than one hundred rounds, with little water and less food. We witnessed the horse cavalry
bounding from spur to spur to attack Taliban strongpoints. The last several kilometers under mortar,
artillery and sniper fire. Everywhere I go to, the civilian and local soldiers are always willing to tell me
they’re glad the USA has come, and they speak of their hopes for a better Afghanistan once the Taliban
arte gone.
59
Palavra em italiano utilizada para identificar a variação da intensidade da música através do aumento
gradual do volume.
60
Em oposição às escalas maiores, utilizadas em músicas animadas e felizes, as escalas menores são mais
dramáticas e emotivas.
61
Um motivo musical, ou tema musical, é uma sequência de notas (frase ou fraseado) que se repete ao
longo da obra com diversas variações criadas a partir desta sequência. Em bandas sonoras de filmes são
geralmente utilizados diversos motivos para diversas situações ou personagens, sendo nesse caso
chamado de leitmotiv, do alemão “motivo condutor”.
89

mais voz a essa narrativa que não estava presente em guerras anteriores com participação
estadunidense, na Guerra do Golfo (1990-1991), por exemplo, a maior preocupação da
mídia era justificar os pretextos para a invasão, da mesma forma que na Guerra da Bósnia
(1992-1995) a preocupação fora demonizar os sérvios (CHOMSKY, 1999, p. 93).
A Guerra do Afeganistão veio não apenas como uma resposta para os atentados
de 11 de setembro de 2001, mas também, de acordo com o discurso oficial e midiático
estadunidense, para libertar o povo afegão da opressão do Taliban. Essa postura, no
entanto, não veio com o reconhecimento da participação que o próprio governo dos
Estados Unidos teve nos eventos que acabaram levando ao surgimento do Taliban, os
quais mencionei anteriormente neste capítulo. Segundo relata a antropóloga palestino-
estadunidense Lila Abu-Lughod (2013, p. 29-30), logo após os atentados de 2001 ela e
outras colegas acadêmicas cujos trabalhos focam nas mulheres do Oriente Médio e do
“mundo islâmico” receberam uma grande quantidade de convites para falar em programas
de televisão e dar entrevistas para jornais. Apesar de achar gratificante poder compartilhar
seu conhecimento de mais de vinte anos de estudos e louvável o interesse repentino nas
“mulheres cobertas”62 (como se referiu George W. Bush às mulheres do Afeganistão),
Abu-Lughod conta que também sentiu um certo desconforto. Desse desconforto, a
antropóloga produziu um artigo em 2002 levantando importantes questionamentos quanto
a como os seus entrevistadores se limitavam simplesmente a questões da ordem do
cultural, como se “saber algo sobre mulheres e islam ou o significado de um ritual
religioso fosse ajudar a compreender o trágico ataque [de 11 de setembro ou] como o
Afeganistão veio a ser controlado pelo Taliban” (ABU-LUGHOD, 2013, p. 31). Nesse
sentido, o que a autora buscou compreender foi o porquê de as mulheres afegãs em suas
burcas terem se tornado símbolos a serem mobilizados na guerra contra o terrorismo.
Simbologia esta que não fora mobilizada somente no momento imediato após os
atentados de 2001, mas que continuam sendo mobilizados até hoje – vide os exemplos
que extraí do filme em análise neste capítulo – para justificar uma contínua presença
militar dos Estados Unidos em países do Oriente Médio como se fossem seus guardiões
vigilantes.
Abu-Lughod (2013, p. 32) mostra que essa mobilização de símbolos femininos
conquistou muitos ganhos políticos que se tornaram muito evidentes em um discurso feito
pela então primeira-dama dos Estados Unidos, Laura Bush, em 17 de novembro de 2001.

62
No orginal: Women of cover.
90

A autora aponta como esse discurso, por um lado, derrubou distinções importantes que
deveriam ter sido preservadas. Laura Bush constantemente transitava entre o Taliban e os
terroristas como se fossem sinônimos, como se criasse uma amalgama hifenizada:
“Taliban-e-os-terroristas”. Ainda, havia também um embaralhamento das causas
diferentes de sofrimento das mulheres afegãs: má nutrição; pobreza; políticas classistas;
saúde debilitada (circunstâncias trágicas que pré-datam a presença do Taliban no
Afeganistão); e a segregação mais recente imposta pelo Taliban no que diz respeito a
emprego, escolaridade e lazer. Por outro lado, o discurso da primeira-dama reforçou
“divisões cósmicas”63 entre, nas palavras de Laura Bush, “pessoas civilizadas ao redor do
mundo”64 e o “Taliban-e-os-terroristas, os monstros culturais que querem, como ela
coloca, ‘impor seu mundo para o resto de nós’”65 (grifo nosso). Foi um discurso elaborado
para justificar a intervenção militar e que usou as mulheres para tal, nas palavras de Laura
Bush,
Devido a nossas recentes conquistas militares em grande parte do Afeganistão,
mulheres agora não estão mais presas em suas casas. Elas podem ouvir música
e educar suas filhas sem medo de punição... a luta contra o terrorismo é também
uma luta pelo direito e dignidade das mulheres.

Palavras estas que Abu-Lughod (2013, p. 33) considera assombrosas, uma vez que
faz rememorar políticas colonialistas do século XIX que também utilizavam as mulheres
e sua dignidade para justificar a ocupação, ou seja, como apontou Gaytari Spivak (apud
ABU-LUGHOD, 2013, p. 33), “homens brancos salvando mulheres pardas de homens
pardos”. Os exemplos são múltiplos ao longo da história da ocupação colonial que
focavam em questões como o véu como símbolo da opressão (como ainda hoje é visto
pelo Ocidente), enquanto os próprios administradores coloniais, como Lorde Cromer, se
opunham ao sufrágio universal em seus próprios países. Em 2001, e ainda atualmente,
enquanto belos discursos de libertação da mulher afegã e muçulmana eram proferidos,
nenhuma política real de assistência humanitária fora elaborada para reparar a destruição
causada por um conflito armado.
Nesse sentido, conclui Lila Abu-Lughod (2013, p. 34), é preciso ter cautela
quando elementos culturais são engessados em narrativas políticas e históricas confusas.

63
No original: chasmic divides.
64
No original: civilized people throughout the world.
65
No original: the Taliban-and-the-terrorists, the cultural monsters who want to, as she put it, “impose their
world on the rest of us”.
91

Tanto no caso do discurso de Laura Bush quanto na trama de 12 Strong, a opressão feita
pelo “outro-selvagem” sobre o “outro-vítima” é mobilizada como meio de glorificar e
justificar a atuação militar Estados Unidos – não apenas como Estado, mas como uma
nação de ideais de democracia e liberdade – no Afeganistão.

2.3 Parte III: O confronto final e a primazia do herói

Como que em toda obra narrativa, há um momento em que se atinge o que é


chamado de clímax do enredo, isto é, o ápice da trama, o ponto da narrativa para qual
todos os elementos previamente apresentados convergem. No sentido da lógica narrativa
clássica do cinema hollywoodiano que, como vimos anteriormente, funciona com
princípios de causa-efeito, o clímax de um filme é o resultado, o efeito, de todos os
eventos prévios, resultando na resolução da situação problema apresentada na parte
introdutória da narrativa. Em 12 Strong, como que de costume nos war films, o clímax
envolve o conflito derradeiro entre os mocinhos e os vilões, durante o qual os heróis, que
em grande parte do conflito estão em desvantagem superam todas as adversidades e
triunfam ao final. E é exatamente desta maneira que a narrativa desta terceira parte do
filme transcorre.
Como apresentado para o espectador desde a primeira parte do filme, e ao longo
da segunda, o principal objetivo da presença do esquadrão do Capitão Nelson no
Afeganistão é de tomar a cidade de Mazar-i-Sharif do controle Taliban. No entanto, para
chegar à cidade, o esquadrão, junto com a guerrilha do General Dostum, precisa passar
pela Passagem Tiangi, um vale entre as montanhas que guarda uma rota de suprimentos
do Taliban e com grande presença armada. O primeiro desafio enfrentado por Nelson e
seus subordinados é o próprio General Dostum que, em função de sua rivalidade com
outro líder guerrilheiro afegão, não apoia o plano da ofensiva de Nelson à Passagem
Tiangi. Desta maneira, como os heróis que são, os militares estadunidenses decidem que
seguirão com seu curso de ação mesmo sendo apenas o pelotão estadunidense de doze
homens, e alguns dos homens de Dostum que permaneceram, contra cerca de quinze mil
homens do Taliban, segundo relata uma das personagens.
A batalha no vale ocorre em cinco frentes (células) diferentes, encabeçadas pelos
integrantes do esquadrão de Nelson. O conflito começa com Spencer chamando um
bombardeio sobre as máquinas de guerra do Taliban no fundo da Passagem Tiangi,
92

debilitando grande de seus combatentes. Em seguida, as outras frentes são avistadas e


recebem disparos vindos do fundo do vale, as quais também percebem a movimentação
de outros maquinários pesados de guerra sobre os quais eles não tinham informação antes.
Mais um desafio para os protagonistas. Após o bombardeio, diversos guerrilheiros
Taliban se aproximam da célula de Spencer com os braços erguidos em sinal de rendição,
até que um desses que se aproxima, em um grito de “Allāhu akbar”, detona um explosivo
em seu corpo, ferindo Spencer gravemente.
O confronto segue com muita dificuldade para os protagonistas quando o Taliban
começa a disparar foguetes contra as posições das células de Nelson e seu esquadrão.
Neste ponto é retomado mais uma vez a relação entre Milo e Najeeb. Ao surgirem
inimigos em sua posição, Milo manda Najeeb se abaixar e se proteger, apesar de o garoto
ainda cumprir com a missão que lhe fora dada por Dostum para proteger Milo. A situação
na posição dos dois se complica pois cada vez mais combatentes Taliban portando
armamentos pesados se aproximam, o que os força a solicitar por rádio um bombardeio,
mesmo com eles próprios estando muito próximos do alvo. Conforme as explosões das
bombas que caem das alturas vão se aproximando de onde estão, os soldados e seus
aliados recuam com pressa, com Milo protegendo Najeeb com seu corpo (figura 5). O
recuo apressado não é bem-sucedido, a força das últimas explosões sobre a posição do
Taliban acaba lançando todos encosta abaixo.
Após a queda, Milo é o primeiro a se levantar e logo avista Najeeb encoberto por
rocha e solo deslocado com a explosão. Acompanhado de uma trilha sonora dramática,
Milo desenterra Najeeb do entulho demonstrando grande afeição pelo garoto. Muito
ferido, Milo empenha todo seu esforço físico e mental para salvar Najeeb. Para mim este
é o momento mais emblemático em todo filme no que diz respeito à metáfora dos SVS.
Se inicialmente há um desconforto de Milo com Najeeb o seguindo para todo lugar que
ele vai, ao longo da narrativa é possível notar cada vez mais, Milo se afeiçoar ao jovem
de forma fraternal, como observado anteriormente na figura 4, em um segmento no qual
Milo ensina o menino a xingar, tal como um irmão mais velho. Nas sequências da batalha
do conflito final, observamos o ápice da relação de Milo e Najeeb, a preocupação de Milo
com o rapaz é tamanha que ele prioriza proteger e salvar o garoto apesar da dor de seus
ferimentos. Milo e Najeeb são uma alegoria para os Estados Unidos e o Afeganistão. Milo
é um homem forte, militar treinado e experiente enquanto Najeeb é uma criança frágil e
incapaz de lidar com os problemas em sua casa, que luta com um rifle obsoleto contra um
grupo fortemente armado como o Taliban. A sequência em que Milo ergue Najeeb no
93

colo (figura 6) é bastante simbólica no que diz respeito a essa relação do herói salvador
com a vítima. Milo, vestindo um uniforme das forças armadas estadunidenses simboliza
o próprio Estados Unidos que, apesar de ter sofrido com o atentado terrorista de 11 de
setembro, ainda se dispõe a ser o protetor do terceiro-mundo infantilizado na figura de
Najeeb. Nada do que é apresentado em tela é por acaso, o filme é um texto, como já
mencionado, carregado de sentidos e significados, e a forma como este texto é conduzido
(a narrativa) age para que esses significados sejam absorvidos pelo consumidor de tal
texto. Uma observação irrefletida poderia supor que Milo se preocupa com Najeeb pois
o segundo é uma criança, no entanto a representação dos acontecimentos nos textos, ainda
mais em uma obra baseada em acontecimentos reais, é carregada por um sentido histórico
que molda a maneira como esses acontecimentos são representados. Como coloca Edward
Said (2011, p. 36), “a maneira como formulamos ou representamos o passado o passado
molda nossa compreensão e nossas concepções do presente”. Eu ainda diria que isso não
se aplica apenas à representação do passado, mas também à representação do próprio
presente e de textos de fantasia e ficção.

Figura 11 - Milo protege Najeeb do impacto das explosões.


94

Figura 12 - Ferido, Milo ergue Najeeb em seus braços em um esforço heroico para salvar a criança.
95

3 THE HURT LOCKER: O TERROR DA GUERRA AO TERROR

66

Mahmoud Darwish (1941-2008)67

Diferente do filme sobre o qual tratei no capítulo anterior, The Hurt Locker é muito
possivelmente considerado o, até o momento, mais prestigioso war film do século XXI.
Sob a direção de Kathryn Bigelow e com roteiro de Mark Boal, o longa-metragem,
lançado em 2008, se tornou um grande sucesso de crítica e recepção, o que levou a
diretora a se tornar a primeira mulher a ganhar o Oscar na categoria de melhor direção. E
não foi apenas nesta categoria do principal prémio de cinema da academia estadunidense
que The Hurt Locker levou. O filme ganhou os Oscars de melhor filme, melhor roteiro,
melhor edição, melhor mixagem de som e melhor edição de som. Tendo ainda sido
nomeado nas categorias de melhor cinematografia, melhor música original e melhor ator

66
“Iraque, Iraque... Aqui os profetas estão
impotentes para pronunciar o nome do Céu. Pois quem
mata quem agora no Iraque? As vítimas são fragmentos
nas estradas e em palavras. Seus nomes, assim como seus corpos,
são como um punhado de letras desfiguradas. Aqui
os profetas se reúnem, incapazes de pronunciar o nome
do Céu e dos mortos.”

Texto original em árabe extraído de:


DARWISH, Mahmoud, Layl aleiraq tawil. IN: ______. Athar al-farasha: yawmiyyat. Beirut: Riad El-
Rayyes Books, 2008, pp. 189-191.

Tradução nossa a partir do inglês disponível em:


DARWISH, Mahmoud. Iraq’s night is long. IN: ______. A river dies of thirst: journals. Trad. COBHAM,
Catherine. New York: Archipelago Books, 2009, pp. 97-98.
67
Célebre poeta palestino considerado como o “Poeta Nacional da Palestina”.
96

principal. Esses foram apenas as categorias do Oscar. Além destes prêmios, o longa
arrebatou outras 120 premiações em festivais de cinema e outras celebrações em todo o
mundo68.
Um dos principais aspectos pelos quais The Hurt Locker fora mais elogiado pela
crítica foi em relação eu seu realismo gráfico e psicológico quanto à guerra do Iraque. O
crítico de cinema Richard Corliss (2008) em seu artigo na internacionalmente
reconhecida revista Time, chamou o longa de “um filme de guerra quase perfeito sobre
homens na guerra, homens trabalhando [, que] por meio de imagens fortes e ação violenta
diz que até mesmo o Inferno precisa de heróis” 69. No jornal The New York Times, o
crítico A. O. Scott (2009) escreve categoricamente que The Hurt Locker é o melhor filme
não-documentário já feito sobre a Guerra do Iraque, e apesar de reconhecer que a obra de
Bigelow e Boal é evasiva na crítica da guerra, para Scott, dentro de seus limites o longa
metragem é um feito notável através do qual a “Sra. Bigelow, praticando uma espécie de
realismo hiperbólico, destila a essência psicológica e as complicações morais da guerra
moderna em uma série de brilhantes e agonizantes conjuntos de peças”70.
Em The Hurt Locker acompanhamos aproximadamente o último mês da estada de
três militares estadunidenses em sua estada no Iraque após a invasão do país em 2003.
Parte da narrativa gira ao redor dessa iminência do retorno para casa, o que é demonstrado
através de textos esporádicos sobre a imagem que informam a quantidade de dias que
restam para que esses soldados sejam substituídos e possam voltar para os Estados
Unidos. Cada personagem representa uma dimensão distinta do efeito da guerra sobre
aqueles que dela fazem parte. Em um primeiro momento, somos apresentados ao Sargento
J.T. Sanborn (Anthony Mackie) e ao Especialista71 Owen Eldridge (Brian Geraghty) que
junto com o Sargento Matt Thompson (Guy Pearce) compõem um esquadrão antibombas
e participam da sequência de abertura na qual Thompson é morto por uma explosão

68
https://www.imdb.com/title/tt0887912/awards/
69
No original: [...] The Hurt Locker is a near-perfect movie about men in war, men at work. Through sturdy
imagery and violent action, it says that even Hell needs heroes.
70
No original: Ms. Bigelow, practicing a kind of hyperbolic realism, distills the psychological essence and
moral complications of modern warfare into a series of brilliant, agonizing set pieces.
71
O termo utilizado no original em inglês, “Specialist”, que aqui traduzi literalmente, não possui um relativo
nas Forças Armadas do Brasil, o mais próximo talvez seja a posição de Taifeiro, um soldado que possui
algum tipo de formação técnica anterior ou que se considera ter talento para alguma profissão, sendo
assim instruído dentro da corporação.
97

enquanto tentava desarmar uma bomba. A morte de Thompson mobiliza o enredo para a
chegada do Segundo-Sargento72 William James (Jeremy Renner) que o substitui como
comandante deste esquadrão.
Diferente de Thompson, prezado por Sanborn como um verdadeiro líder, James é
distante e visto como inconsequente, irresponsável por seus companheiros. James não
parece levar a sério a sua função, não no sentido de ser desleixado, mas de não encarar
com a seriedade devida as situações por ele enfrentadas. Como veremos em mais detalhes
na terceira parte deste capítulo, Eldridge chega a acusá-lo de estar apenas buscando
adrenalina no combate. Contrapondo com o comportamento de James, Sanborn é bastante
afeito às regras e protocolos, sendo ele que frequentemente discute com James em função
de sua atitude. O conflito entre as personalidades de James e Sanborn chega a tal ponto
que, em uma sequência na qual o esquadrão está no meio do deserto para detonar um
explosivo, quando James retorna até onde o explosivo está preparado para buscar suas
luvas que ele havia esquecido, Sanborn, com o detonador na mão, comenta com Eldridge
que “esses detonadores falham o tempo todo”. Após ambos descreverem o que
aconteceria com James caso a bomba explodisse com ele perto, Eldridge pergunta se
Sanborn está falando sério em matar James. Sanborn apenas fica em silêncio olhando para
James ao lado da bomba. Sanborn também é aquele que mais sente saudade de casa, em
uma conversa com James ele expõe suas frustrações, medos, vontade de ter um filho e ser
lembrado. Por fim, nosso terceiro protagonista, Eldridge é o mais jovem dos três e seu
arco narrativo é o mais psicologicamente denso, o qual por si só poderia ter um trabalho
inteiro dedicado. A morte de Thompson diante de seus olhos, sem nada ter podido fazer,
impactou bastante o rapaz, lhe causando situações de estresse que o paralisavam em certos
momentos do filme. Há inclusive sequências nas quais Eldridge conversa com um
psicólogo do exército que tenta lhe ajudar, no entanto o rapaz não parece muito
convencido, e tem seus pensamentos consumidos pela iminência da morte.
Diferente de como estruturei a análise de 12 Strong, não discutirei The Hurt
Locker em partes distintas. Para este filme me proponho a realizar análises de sequências
específicas que acredito serem as mais cruciais e explicativas quanto ao meu objetivo de
expor a narrativa imperialista que permeia este tipo de obra, os war films. Na primeira
série de sequências, realizarei uma análise acerca da representação do espaço da terra do
“outro” e as metáforas de atraso e subdesenvolvimento do outro levantadas por estas

72
O termo utilizado no original em inglês é “Staff Sergeant”. Não havendo uma tradução direta, optei por
utilizar o termo relativo à hierarquia militar das Forças Armadas do Brasil.
98

representações. Na segunda parte do capítulo me debruço sobre a temática do “perigo à


espreita” que há séculos acompanha a narrativa ocidental em relação ao Oriente – e não
me refiro apenas à narrativa literária ou cinematográfica, mas também à narrativa política
e social construída por estes agentes. Por fim, na terceira seção deste capítulo, me dedico
a analisar de forma mais aprofundada as motivações da personagem de Jeremy Renner
no que diz respeito à guerra, traçando um paralelo entre esta personagem e a postura
belicosa dos Estados Unidos, principalmente após os atentados de 11 de setembro.

3.1 “Shithole countries”73

Sobre um fundo completamente preto, o filme abre com uma citação do livro War
is a force that give us meaning, do jornalista Chris Hedges (2002), na qual se lê: “The
rush of battle is often a potent and lethal addiction, for war is a drug”74. Em seguida,
parte da citação se esvai, deixando em destaque apenas “for war is a drug”, ditando para
o espectador parte do que a trama pretende abordar. Com a citação na tela, uma voz-off
em árabe é ouvida, com legendas em inglês traduzindo a fala de um homem que alerta
sobre a presença de uma bomba e solicita a evacuação da área. A voz continua com os
avisos sobre uma bomba ao passo que é possível escutar um adhan ao fundo. O adhan
faz parte da vida religiosa de todo muçulmano, é o chamado à oração cantado por um
muadhin do alto dos minaretes das mesquitas, desta maneira está intimamente relacionado
ao islam. Apesar de ser usado como voz-off quando de uma sequência em uma cidade
árabe – afinal, o adhan é proclamado cinco vezes ao dia, sendo ouvido frequentemente
nas proximidades das mesquitas –, devido à sua característica musical, é comummente
utilizado em filmes passados em países árabes como parte da banda sonora, o que penso
ser o caso desta sequência de abertura de The Hurt Locker, uma vez que no decorrer da
sequência não observamos muçulmanos indo para uma mesquita ou ausentes do local,
mas continuam ali como curiosos da ação que transcorre. Apesar de não ser surpreendente
a utilização do adhan na abertura de um filme como esse, escutar o chamado islâmico à
oração enquanto uma voz em árabe fala sobre a presença de uma bomba na localidade,

73
Em referência à fala racista e xenofóbica do ex-presidente estadunidense Donald Trump. Em português:
Países de merda. Tradução nossa.
74
Em português: O calor da batalha é geralmente um vício potente e letal, pois a guerra é uma droga.
Tradução nossa.
99

permite ao espectador a realização operações de associação entre os elementos


apresentados que levam à perpetuação de concepções errôneas e intolerantes contra a fé
islâmica e seus praticantes.
Com o desaparecimento total da frase que abre o filme, somos levados a uma
imagem borrada, muito trêmula, com bastante estática e voltada para o chão. O ponto de
vista de um robô sobre esteiras que surge, brevemente, logo após um corte, sendo seguido
por uma montagem de planos curtos nos quais militares iraquianos evacuam uma área
enquanto uma legenda para a voz em árabe continua a alertar sobre uma bomba. Neste
ponto temos também a indicação com um texto sobreposto à imagem indicando que a
ação ocorre em Bagdá, capital do Iraque. Tendo essa informação de local, atentemo-nos
não para a ação principal da sequência, mas para o ambiente no qual esta se desdobra. O
incidente da presença da bomba acontece à margem de uma linha de trem que segue
paralela a uma estrada, em o que parece ser uma área periférica de saída e chegada da
cidade. Como parte do cenário vemos pequenos comércios locais, mulheres de niqab75,
animais de pastoreio perambulando pela área ao redor do trilho do trem. No local também
há bastante lixo no chão e as construções aparentam degradadas, além disso há a presença
de carcaças de carros queimados que compõe a atmosfera de abandono. Evidentemente
que toda cidade no mundo tem suas áreas mais ou menos conservadas, no entanto o que
notamos ao longo de The Hurt Locker, é que os ambientes urbanos apresentados são todos
degradados e devastados. A presença de cabras em um espaço urbano, cruzando o
caminho do robô utilizado pelos personagens estadunidenses, é uma das alegorias
utilizadas na narrativa para demarcar o limite que separa “nós” ocidentais,
tecnologicamente avançados e superiores com nossos robôs remotamente controlados, do
“outro” oriental, atrasados e pastoreando cabras no meio da cidade.
Em outra sequência, durante a primeira missão de James com seu novo esquadrão,
as personagens atendem uma chamada em uma região da cidade. Quando chegam no
local, a rua está completamente deserta e tomada por lixo e detrito, uma cena de completo
abandono (Figura 7). Podemos entender que um país sofrendo uma invasão militar não
tenha necessariamente todos os seus serviços de infraestrutura em pleno funcionamento,
no entanto, como é mostrado em outras sequências, os moradores da cidade parecem
seguir com suas atividades cotidianas apesar da invasão. A ambientação do cenário –

75
Vestimenta feminina que cobre todo o corpo, deixando apenas os olhos visíveis. Geralmente confundida
com a burqa, que também cobre todo o corpo, mas oculta os olhos.
100

desde o processo da seleção do local de filmagem até a caracterização com o lixo e detritos
nas ruas, carros queimados, cabras, e, em certos momentos, a completa ausência de
pessoas – é uma escolha deliberada da direção com fins narrativos bastante específicos.

Figura 7 - Em diversos momentos durante o filme, as ruas de Bagdá são apresentadas tomadas por lixo e
detritos, completamente abandonadas.

Em grandes produções hollywoodianas é muito comum a utilização recorrente de


certos tropos acerca das mais diversas situações, cenários e personagens, no entanto, esta
não é uma prática nova ou exclusiva de Hollywood, ou mesmo apenas do cinema. Como
apontam Shohat e Stam (2014, pp. 137-141), os tropos, metáforas e alegorias são parte
constitutiva da construção do discurso colonialista em sua busca por afirmar uma
superioridade ocidental, citando Hayden White (1978, p. 2) os autores apontam que, em
essência, o tropo pode ser definido como “‘a alma do discurso’, o mecanismo sem o qual
o discurso ‘não consegue fazer seu trabalho ou atingir seu objetivo’”76. Dentre a multitude
dos tropos imperialistas, talvez o mais antigo e persistente seja o da animalização do
Outro, baseado em uma tradição filosófica e religiosa que demarcava limites claros entre
o mundo dos homens e o dos animais. Neste sentido, “o discurso colonialista/racista
apresenta o colonizado como feras selvagens em sua libidinagem desenfreada, sua falta
de vestimenta apropriada e suas cabanas de barro que se assemelham a ninhos e tocas” 77

76
No original: “the soul of discourse”, the mechanism without wich discourse “cannot do its work or
achieve its ends.”
77
No original: Colonialist/racist discourse renders the colonized as wild beasts in their unrestrained
libidinousness, their lack of proper dress, their mud huts resembling nests and lairs.
101

(SHOHAT; STAM, 2014, p. 137), isto é, criaturas bárbaras e selvagens vagando por
terras vazias. O tropo da animalização do Outro, no entanto, não tem seus limites restritos
somente ao aspecto do corpo, através dos preceitos do darwinismo social em sua máxima
da “sobrevivência dos mais adaptados”, a bestialização é transferida para os domínios de
raça, classe e gênero, invadido sorrateiramente a mídia moderna com discursos
degradantes quanto aos mais pobres, mulheres, pessoas não-brancas, homossexuais e
povos não-ocidentais, colocando esses grupos como “não adaptados” para a
sobrevivência, sendo assim, “pobres coitados” que devem ser tutelados, ou até mesmo
exterminados (SHOHAT; STAM, 2014, p. 138).
De forma geral, os tropos narrativos reduzem o “outro” a seu corpo, excluindo sua
mente e modo de pensar, assim, segundo a lógica colonialista, se a mente e a racionalidade
estão ligadas à civilização, isto é, à Europa, o corpo pertence ao reino da natureza, ou
seja, da geografia física, do ambiente no qual aquele indivíduo e seu povo estão inseridos.
Desta forma, da mesma forma que o espaço geográfico colonizado era visto – em certa
medida ainda é – como simplesmente a fonte de matéria-prima, o discurso imperialista
coloca o colonizado como sendo indissociável dessas características geográficas. O corpo
do colonizado, assim, reflete as características da terra colonizada, Ella Shohat e Robert
Stam (2014, pp. 138-139) exemplificam esse cenário com a associação de latino-
americanos, especialmente as mulheres, com o clima quente dos trópicos, o que se
traduziria em uma sensualidade exacerbada, uma paixão voraz e grande apetite sexual.
Neste sentido de corpo e geografia do colonizado, gostaria de abordar os tropos que
identifico em The Hurt Locker: o tropo da “terra virgem”, o do “desbravamento da Terra
Incognita”, como apresentados por Shohat e Stam (2014, pp. 141-148).
Quando tratamos então sobre esta “terra virgem”, evoca-se mais uma vez aquela
associação imperialista entre a terra colonizada com o corpo do colonizado, neste caso,
de um corpo feminino – afinal o patriarcalismo e o colonialismo andam associados –,
terra virgem esta que está à mercê da penetração do colonizador, um tema muito
explorado em narrativas colonialistas, desde as literárias do século XIX, como, por
exemplo, The Perils of Certain English Prisioners (1857), de autoria conjunta de Charles
Dickens e Wilkie Collins, Montezuma’s Daughter (1893), de Henry Haggard, entre tantas
outras, e que até hoje ainda aparece com certa recorrência na literatura e também no
cinema. No caso desta última arte podemos citar como exemplo, dentre tantos, os filmes
Bird of Paradise (1932) e 1492: The Conquest of Paradise (1992), nos quais assistimos
à tomada da virgindade do colonizado sob os aspectos do corpo e da terra, cada um desses
102

filmes enfatiza mais um aspecto do que o outro, porém, ao final de tudo, como já
apontado, ambas as dimensões existem em uma amálgama das duas. Se no primeiro filme
somos apresentados à história do romance entre um marinheiro americano e uma mulher
nativa de uma ilha no Pacífico Sul, o segundo filme traz a narrativa das viagens navais de
Cristóvão Colombo e sua “descoberta” da América sob uma perspectiva que busca fazer
um revisionismo das representações da chegada dos europeus no “Novo Mundo” – ao
representar a cultura indígena com mais respeito que obras cinematográficas anteriores,
por exemplo –, mas ainda assim tornando a figura de Colombo como central e protegendo
seu legado no ocidente, sendo representado como a voz da razão, da ciência e da
modernidade, enquanto a brutalidade desencadeada contra as populações indígenas fora
fruto da perversidade da nobreza espanhola, representada na película por um nobre que
antagoniza com Colombo (SHOHAT; STAM, 2014, pp. 64-66).
E qual relação teriam as narrativas sobre a colonização da América e romances
entre homens ocidentais e mulheres nativas de terras distantes com The Hurt Locker, um
filme de guerra ambientado no Iraque do século XXI? Em primeiro lugar, é importante
ressaltar que a lógica do colonialismo e do imperialismo não perdeu força desde o século
XIX, sua época de maior proeminência – não por acaso, Eric Hobsbawm (2015) chama o
período entre 1875 e 1914 de a era dos impérios. Ademais, as mesmas metáforas e tropos
presentes nas narrativas de outrora se perpetuam nas narrativas da contemporaneidade,
trajando, no entanto, novas roupagens que, na maioria das vezes, passam desapercebidas
por grande parte do seu público consumidor uma vez que o discurso colonialista corre
agora pela subsuperfície, disfarçando-se por entre as linhas de texto e as imagens em
movimento. Em sua maioria, os planos de The Hurt Locker são fechados nas personagens,
no entanto, quando há a utilização de planos abertos, estes são utilizados para apresentar
o ambiente ao espectador, evocando o tropo da terra virgem, vasta e vazia, ou seja,
disponível para ser ocupada, tomada por areia e desprovida de qualquer civilização
(figuras 8), ou então, quando em ambientes urbanos, apresentando ao espectador uma
cidade degradada e abandonada (ver novamente a figura 7), como comentei
anteriormente. Através das análises desses tropos é possível identificar, mais uma vez, a
herança do western clássico nos war films da atualidade, a terra desolada, vazia e virgem,
pronta para a conquista pelo homem branco, do oeste da América do Norte (figura 9) é
agora substituída pelas terras igualmente desoladas, vazias e virgens do Oriente.
103

Figura 8 - Plano aberto e elevado a fim de demonstrando a imensidão e desolação da paisagem na qual os
heróis se encontram. Nenhuma forma de vida é avistada, somente o veículo militar ocidental é visto
desbravando o deserto estéril.

Figura 9 – Extrato da abertura do filme Fort Apache (John Ford, 1948), no qual os mesmo motivos e tropos
do deserto e da desolação da terra do “outro” é representado. Da mesma forma que em The Hurt Locker, os
heróis que chegam a este cenário inóspito se deparam com a violência do Outro (indígenas, neste caso) e
são representados como a luz de vida e civilidade em meio às trevas da selvageria.
104

Nesta penetração ocidental na terra do Outro e sua subsequente fecundação, em


uma analogia constantemente utilizada em narrativas sobre aventuras de ocidentais nas
terras do Outro, nas quais o espaço e o corpo de seu povo nativo somente poderão ser
trazidos à vida e civilização a partir do toque revigorante do colonizador e sua práxis
(SHOHAT; STAM, 2014, p. 141). A fertilização do espaço e das consciências do
colonizado evoca um aspecto quase-divino do homem ocidental, passando sobre ele uma
demão da tinta do heroísmo. Este herói euro-estadunidense, continuam Shohat e Stam
(2014, pp. 141-142), evocando R. B. Lewis (1959), é configurado como uma
representação de Adão antes de sua expulsão do paraíso, ou seja, um homem dotado de
grandiosas virtudes e incumbido de zelar pela criação de Deus. Em suma, a desolação do
espaço refletiria, na lógica imperialista, uma desolação da mentalidade do colonizado, o
qual, por sua vez deve ser trazido à luz pelos “arautos da civilização e da modernidade”.
O deserto, então, não é somente uma analogia para a desolação e esterilidade, é também
o ambiente aberto para a exploração e para ser tomado, seja uma conquista concreta e
palpável, como no caso de filmes como Fort Apache (John Ford, 1948), e outros westerns
similares, ou conquistado sem a necessidade de que o imperialista clame para si aquele
território, mas exerça sua influência sobre o Outro e sua terra de maneira mais sutil, como
retratado em The Hurt Locker e outros war films contemporâneos.
Como indicado, a narrativa imperialista toma não apenas o espaço geográfico
como vazio, “virgem”, pronto para ser mapeado e desvelado à civilização, mas também
as consciências de seus nativos, os quais seriam desprovidos de qualquer racionalidade e
capacidade intelectual. Espaço, mentes e corpos são colonizados pelos motores do
império. É neste cenário que a figura do “selvagem” – já muito estabelecida no imaginário
ocidental – é evocada pelas narrativas colonialistas, o que não é diferente em Robinson
Crusoe (Daniel Defoe, 1719), The Searchers (John Ford, 1956) ou The Hurt Locker.

3.2 “Em que nós estamos atirando? / Eu não sei!”

No primeiro capítulo realizei uma breve análise quanto ao sentimento presente no


Ocidente de que haveria um perigo constante à espreita vindo do Oriente. Gostaria de
aprofundar estas reflexões a partir da análise de uma longa série de sequências de The
Hurt Locker que exemplifica muito bem a sensação que o Ocidente parece ter,
especialmente os Estados Unidos, de estarem constantemente do outro lado do cano da
105

arma do “outro” que pode disparar a qualquer momento. Primeiramente, atentemos para
a descrição das sequências em questão.
Após detonarem explosivos em algum lugar no meio do deserto – a narrativa não
deixa claro se o esquadrão estava desarmando alguma bomba ou detonando explosivos
apreendidos em um local afastado78 –, enquanto na estrada de retorno para Bagdá, James
e seus companheiros se deparam com um grupo de quatro homens armados usando
equipamento haji79. O esquadrão age com suspeita enquanto rende o líder desses homens
(Ralph Fiennes), o qual, quando lhe retiram o pano do rosto – o seu “equipamento haji”
–, revela-se ser um soldado britânico atuando como mercenário80, o qual, após
acalmarem-se os ânimos, pede ajuda com um pneu furado para o esquadrão antibombas.
Enquanto um de seus subordinados troca o pneu, o líder dos mercenários conta para James
e os outros que estavam transportando dois homens árabes procurados que eles haviam
capturado. Sobre a identidade desses prisioneiros, apenas o nome de um deles, Al-Rawi,
é mencionado na sequência enquanto o outro é simplesmente indicado como “esse aí”
(this one), fora essas informações nada mais é revelado sobre os prisioneiros. Por que
estão presos? São terroristas? Esse tipo de questionamento fica sem resposta não somente
nesta sequência, mas em todo o filme. Contra quem esses soldados que acompanhamos
no longa estão lutando? Retornarei mais adiante a esta reflexão sobre essas questões e
suas “não-respostas”.
O segmento continua com um dos mercenários tendo dificuldade em retirar o pneu
furado de seu veículo argumentando que a chave de roda é muito pequena. Eldridge
informa que acredita ter uma chave maior na traseira do humvee81 de seu esquadrão. No
que o homem retorna do veículo militar com a outra chave de roda em mãos, um disparo

78
Mais uma vez, o antigo tropo do deserto e da terra vazia é evocado. Independentemente se fosse um
explosivo sendo desarmado ou uma detonação segura em um local afastado, a narrativa orientalista leva
ao espectador a noção de que a terra do oriental é um deserto vazio e inabitado, uma “terra de ninguém”.
Afinal, por qual razão haveria um explosivo no “meio do nada” ou por que detonar um explosivo de
forma segura em um lugar tão remoto?
79
Termo racista utilizado por militares estadunidenses para se referir, inicialmente, a afegãos e iraquianos.
Posteriormente passou a ser utilizado não somente na arena militar para indicar habitantes de países
majoritariamente muçulmanos do Oriente Médio. Originalmente o termo Hajji, ou al-Hajj, é um
honorífico para um muçulmano que realizou a peregrinação (Hajj) para Meca.
80
O ator do líder, Ralph Fiennes, aparece nos créditos como “contractor team leader”. O termo contractor
se refere a um membro de uma companhia militar privada.
81
Expressão coloquial para a sigla HMMWV – High Mobility Multipurpose Wheeled Vehicle (Veículo
multifuncional de alta mobilidade sobre rodas, em português). Um veículo utilitário militar usado por
diversas forças armadas.
106

repentino o atinge nas costas, matando-o imediatamente. Explosões de morteiros ocorrem


logo em seguida enquanto o grupo de estadunidenses e britânicos busca por cobertura,
disparando suas armas na direção genérica de onde o tiro que atingiu o mercenário veio.
É neste ponto na sequência que Eldridge grita perguntando “What are we shooting at?”
para seus companheiros, ao que Sanborn responde “I don’t know!”, diálogo que escolhi
como título para esta seção do capítulo, uma vez que bem representa a falta da noção clara
de quem é o inimigo invisível que ameaça o Ocidente. O Taliban? Saddam Hussein? Al-
Qaeda? O islam? Quem espreita por trás da arma apontada para “nós”?
O caos da sequência termina quando o mercenário Chris (Barrie Rice), que atirava
freneticamente e à esmo com uma arma montada no humvee, é morto com um tiro no
pescoço. O líder mercenário pega um rifle de longo alcance para tentar eliminar seus
agressores nesta nova etapa do confronto, cada lado com seus franco-atiradores. A partir
deste momento, um silêncio contrastante com o tiroteio anterior dita o novo tom do
conflito: um “jogo” de espera e paciência de ambos os lados. Após alguns disparos
fracassados contra a construção na qual seus inimigos se ocultam, o líder mercenário,
enquanto ajeita o bipé de sua arma, acaba se expondo mais do que deveria e é atingido no
peito por um disparo que o mata na hora. Sanborn assume a arma logo no instante
seguinte, com o auxílio de James no telescópio enquanto os outros dois mercenários
sobreviventes pedem, em vão, ajuda pelo rádio.
A munição de Sanborn acaba após alguns poucos disparos, James pede para
Eldridge pegar mais cartuchos no cadáver do líder mercenário. No estilo de documentário
escolhido pela diretora, o jovem especialista funciona como um representante dos traumas
psicológicos da guerra, algo explorado em diversos momentos no filme, a personagem é
inclusive acompanhada por um psicólogo das forças armadas, o qual, em um momento
posterior do longa-metragem, morre na frente de Eldridge, explodido por uma mina
terrestre. De volta à cena em análise, o jovem soldado, muito nervoso e extremamente
desconfortável, vasculha o corpo inerte do mercenário em busca da munição que logo
encontra e entrega para James. Porém, o sangue do homem morto caiu sobre os projéteis
expostos do topo do cartucho, o que travava o funcionamento da arma. Mais uma vez
James chama por Eldrigdge, agora lhe pedindo para limpar o sangue dos projeteis com
sua própria saliva. O nervosismo do especialista aumenta, até que James desce de sua
posição para orientar o rapaz e acalmá-lo. Nesse ponto, James funciona como a “voz da
experiência” militar dos Estados Unidos para guiar uma nova geração de soldados para a
guerra assim como para proteger seus jovens da ameaça que espreita. Enquanto ajuda
107

Eldridge a limpar os projéteis, James lhe diz: “Vou te manter seguro, parceiro. Tudo
certo? Agora vamos pegar esses bastardos”82.
James retorna então paro o telescópio ao lado de Sanborn, auxiliando-o com os
disparos, que desta vez mata dois dos homens que lhes atiravam anteriormente. É
importante apontar a linguagem da câmera nesta sequência. Desde antes, quando o líder
dos mercenários estava com o rifle de longa distância, somos apresentados a uma imagem
com a utilização de um zoom intenso, borrada pela refração do calor, como que da
perspectiva da mira telescópica do rifle de precisão (figura 10), colocando o próprio
espectador no lugar do soldado que dispara a arma. Uma linguagem que remete àquela
utilizada pela mídia televisiva durante a Guerra do Golfo, com transmissões ao vivo das
câmeras dos bombardeiros que mostravam as bombas caindo e as explosões que se
seguiam. Como apontou Paul Virilio (1993, p. 180)
A fusão está feita e a confusão e perfeita, pois nada mais distingue a função da
arma da função do olho, a imagem do projétil e projétil da imagem formam
uma mistura: detecção, aquisição, perseguição e destruição, o projétil é uma
imagem, uma "assinatura" sobre uma tela, e a imagem televisiva é como um
projétil hipersônico que se propaga na velocidade da luz... (grifo no original)

Figura 10 – Enquadramento com a utilização de um zoom intenso, simulando a visão a partir da mira
telescópica do rifle de precisão.

Em seguida, Sanborn se prepara para mais um disparo, mirando no atirador ainda


dentro da construção. Após errar o primeiro tiro, Sanborn dispara novamente. Neste
momento o recurso da câmera lenta é utilizado mais uma vez, apenas um close-up da

82
No original: I'm going to keep you safe, buddy. All right? Now let's get these bastards.
108

cápsula do projétil caindo sobre a areia é mostrado, dilatando no tempo aquele momento
em que o tiro derradeiro encerra a vida do guerrilheiro que os ameaçava à distância, em
que o Ocidente triunfa sobre o terrorista oriental. Esse tempo “esticado” é o suficiente
para indicar ao espectador o destino do alvo de Sanborn, destino este confirmado por
James no quadro seguinte e depois pela “visão-da-mira-telescópica” da câmera no
próximo quadro, com o corpo do guerrilheiro pendido para fora da janela.
Com um corte, um redemoinho de areia atravessa o enquadramento e se desfaz.
Outro corte nos apresenta a James e Sanborn ainda deitados sobre o solo com a arma
ainda apontada para a construção onde estavam os atiradores. Um close-up em cada uma
das personagens nos mostra seus rostos cobertos com uma camada de poeira, indicando
a passagem do tempo. Após derrubar o guerrilheiro, ambos permaneceram ali por um
tempo indeterminado, vigilantes contra qualquer outro ataque repentino. O redemoinho
de areia muito faz lembrar o cliché da “planta-rolante”83 dos filmes de western, indicando
quietude e isolamento, frequentemente usado em sequencias de tensão, como durante um
duelo entre cowboys. Enquanto James e Sanborn vigiam o local de onde partiu o ataque,
uma arma ameaçadora surge sorrateiramente do canto do enquadramento, em seguida
revelando uma figura com o rosto coberto por um pano negro. A montagem indica que
esta figura misteriosa aponta sua arma na direção de James e seus companheiros, uma vez
que ela surge da direita do enquadramento enquanto, no quadro anterior, vemos James do
lado esquerdo. A forma como o oriental surge no enquadramento traduz a maneira como
o árabe passou a ser encarado a partir da segunda metade do século XX. como aponta
Said (2007, pp. 381-383) se anteriormente o árabe era mais amplamente representado
como o cameleiro nômade, pirata ou saqueador do deserto, excessivamente sexuado,
violento e bruto – representações bastante observadas em filmes do início do século
passado como The Sheik (George Melford, 1921) e suas sequências, A Son of the Sahara
(Edwin Carewe, 1924), The Thief of Baghdad (Ludwig Berger, 1940), entre tantos outros
–, após a Guerra do Yom-Kippur em 1973, a representação do árabe passa a apontá-lo
como mais ameaçador e traiçoeiro, ainda violento, porém dotado de um sadismo covarde,
atacando por trás e sem aviso.
Neste ponto, o espectador é apresentado ao ponto de vista desta figura que surge
sorrateira, no entanto, diferente de como antes a câmera simula a visão da mira telescópica
da arma dos ocidentais, o quadro da perspectiva do oriental e sua arma mostra o

83
Tumbleweed, no original em inglês. Tradução aproximada nossa por não haver um equivalente na
língua portuguesa.
109

guerrilheiro por trás com a ponta de sua arma em foco (Figura 11). Em seguida, com a
utilização de um zoom, a câmera se aproxima para mostrar os soldados estadunidenses e
os mercenários na direção para a qual a figura misteriosa aponta sua arma (Figura 12).
Desta maneira, o oriental é reduzido simplesmente a uma arma apontada para o oriente.
Ele não tem face, pois a tem coberta por um pano, e nem corpo, pois este sequer está no
enquadramento, apenas vemos a arma apontada para os ocidentais.

Figura 11 – Apenas a arma do guerrilheiro oriental é enfocada no quadro, resumindo sua presença apenas
à ameaça que ela suscita.

Figura 12 – Em foco agora estão os alvos da arma à espreita: os soldados ocidentais dentro dos círculos
em vermelho.
110

3.3 Guerra autotélica

“Apenas os mortos viram o final da guerra”, supostamente haveria dito Platão. Por
mais que sempre haja um lado vencedor em um determinado conflito e que o
encerramento das hostilidades entre as partes seja declarado, para aqueles que viveram o
caos e o drama da guerra, esta persiste, muitas vezes, durante toda a vida dessas pessoas,
marcando gerações inteiras, presentes e futuras. Mais uma vez somos remetidos à noção
de latência apresentada por Gumbrecht. Somente os caídos viram a guerra acabar, uma
vez que deixaram este mundo, não podendo, assim, sofrer mais os males derivados do
conflito do qual fizeram parte, tenha sido de forma voluntária ou não. O sofrimento faz
parte do mundo dos vivos, especialmente daqueles que habitam as regiões periféricas do
capitalismo, exploradas ao longo de séculos de colonialismo e moldadas pelas sequelas
do imperialismo.
Como apontei no primeiro capítulo, o hipercinema contemporâneo possui
diversos elementos que agem no sentido de criar uma profusão de sensações exacerbadas,
as quais são seu objetivo final. É nesse sentido que Lipovetsky e Serroy (2009, p. 72)
apontam que, “arrastado pela produção das imagens, pela velocidade das sequências, pelo
exagero do som, o neocinema aparece como um cinema hipertélico”. O adjetivo “télico”
tem origem na palavra grega télos (τέλος), que significa o final de algo84, na linguística,
este termo se refere a um aspecto verbal que indica um processo que ocorre até que um
objetivo, ou final, seja alcançado85. Desta maneira, ao utilizarem o termo “hipertélico”
para falarem do cinema contemporâneo, Lipovetsky e Serroy apontam para as forças
saturadoras que movem este hipercinema em direção a sua finalidade. E qual seria esta
finalidade? Através do que estes autores chamam de imagens-excesso (LIPOVETSKY;
SERROY, 2009, pp. 71-90) o objetivo desse neocinema é a estupefação do espectador,
provocar-lhe uma vertigem sensorial, ou cines-sensações, nas palavras dos autores (2009,
pp. 72-75). A exuberância de efeitos especiais se incorpora à narrativa das obras,
principalmente com a virada digital do século XXI, trazendo “à vida” o que antes era
limitado pelas técnicas anteriores. Além da imagem, o som é também um importante
elemento para a construção das cine-sensações, sons graves que reverberam por todo o

84
TÉΛΟΣ. IN: MALHADAS, Daisi; DEZOTTI, Maria Celeste; NEVES, Maria Helena (orgs.). Dicionário
grego-português (DGP): vol. 5. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. p. 116.
85
TÉLICO. IN: DICIONÁRIO Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2015. Disponível em:
https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/t%C3%A9lico/
111

corpo do espectador acompanham efeitos visuais exuberantes, “o audiovisual prevalece


aqui sobre as palavras, o amplificador sobre a história, a sensação pura sobre a
compreensão” (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 74). Por sua vez, os elementos que
constituem as imagens-excesso podem ser conceituados como autotélicos, ou seja seu
fim, sua realização, se encerra em si mesmo, eles existem para si. A velocidade, a
violência, o sexo, dentre outros exemplos, deixam de ser elementos que contribuem para
a narrativa e à produção da fábula para se tornarem dimensões que se tornam seu próprio
atrativo. A velocidade pela velocidade, o sexo pelo sexo, a violência pela violência, a
guerra pela guerra.

3.3.1 Velocidade autotélica

Pertencendo a esse cinema contemporâneo, The Hurt Locker possui muitos desses
elementos em sua narrativa, a começar pela proposta de apresentar um hiper-realismo ao
espectador. Elementos como a câmera caótica segurada em mãos, evocam a narrativa do
realismo através da velocidade em que os eventos se desenrolam, levam o espectador para
dentro da ação, como se ele próprio fosse um repórter de campo-de-batalha ou um outro
soldado, enviado para documentar e/ou acompanhar aqueles militares em ação. Da
mesma forma, talvez de maneira aparentemente contraditória, a estética da velocidade
também se manifesta com a utilização do recurso da câmera lenta, através do qual o tempo
é dilatado e esticado, não para a construção um valor dramático como costumava ser
utilizado anteriormente, mas funcionando simplesmente como uma magnificação da
velocidade, de modo que o espectador possa vivenciá-la em todos os seus detalhes
(LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 77). Na sequência de abertura do filme, na qual o
sargento Thompson morre enquanto tenta desarmar uma bomba, observamos tanto a
montagem caótica dos planos – quando Eldridge avança na direção de um homem que
segura um telefone celular, de quem suspeitava ser um terrorista com um detonador, ao
mesmo tempo em que Sanborn grita para que ele “burn him out”86 – quanto a dilatação
do tempo através da câmera lenta no momento em que a bomba é detonada, matando
Thompson, apresentando ao espectador todos os detalhes da explosão. É curioso apontar
que até mesmo nos diversos planos em câmera lenta a duração média destes é de apenas
um segundo, transitando entre um plano aberto de Thompson sendo atingido pelo impacto

86
“Queime-o”; “apague-o”, em tradução livre, ou seja, abater o alvo.
112

da explosão e planos-detalhes do ambiente ao redor que demonstram a força da explosão:


o cascalho do solo sendo levantado e a onda de choque reverberando sobre a carcaça de
um carro enferrujado. Após a série de planos em câmera lenta – e de som abafado – tudo
volta à velocidade e volume normal em um instante, nocauteando o espectador de suas
expectativas. A dilatação do tempo aqui funciona como uma magnificação da velocidade,
da explosão e para permitir que o espectador aprecie os efeitos especiais e seja absorvido
por eles.

3.3.2 Violência autotélica

Da mesma forma, a maneira como a qual a violência é apresentada no filme faz


parte da mesma lógica. Ainda sobre a sequência de abertura, a ênfase na explosão e na
morte de Thompson, o plano em câmera lenta do sargento sendo atingido pela onda de
choque, com o capacete da roupa de proteção manchado de sangue e seu corpo, voltado
para o espectador, caindo em câmera lenta sobre o cascalho. Outro exemplo, melhor ainda
que o anterior, pode ser apontado em uma sequência, a qual também mencionei em outra
seção deste capítulo, em que James, Sanborn e Eldridge encontram o cadáver de uma
criança que James pressupõe ser Beckham, o menino que vendia DVDs pirateados na
saída da base estadunidense, repleto de explosivos em seu tórax. Os closes no rosto
ensanguentado e cheio de cortes do garoto chamam atenção para a violência e brutalidade
dos inimigos contra quem lutam os estadunidenses no Iraque. Porém, o mais impactante
da sequência – de fato esta é a melhor palavra para usar, pois este é objetivo, como já
apontado – é o momento em que James usa seu canivete para soltar as costuras do tórax
do cadáver e remover o explosivo de seu interior. Mais uma vez os planos são
extremamente fechados na ação do protagonista, focando em suas mãos enquanto ele as
coloca dentro do cadáver em busca do explosivo. Após James terminar a ação há um corte
para uma nova sequência na qual o personagem de Renner aparece carregando o corpo
do menino envolto em um lençol ensanguentado. É possível entender a partir dessa
montagem que a intenção de James era propiciar um funeral adequado para a criança e
não simplesmente explodi-la junto com o prédio no qual a encontraram, que era o plano
original de James. No entanto, os segmentos nos quais os detalhes viscerais do cadáver e
da “operação” de James são colocados em evidência com os closes e planos fechados não
acrescentam em nada à narrativa, pois se o mesmo corte para James com o cadáver no
113

colo ocorresse após ele abrir seu canivete a mesma narrativa teria sido passada, o
espectador teria captado a intenção da personagem da mesma maneira. Contudo, a
utilização dessas cenas explicitamente gráficas, de uma violência “passiva” – no sentido
de não ser a apresentação da ação violenta, mas de seu resultado – sendo retratada em
todos os seus detalhes mostram “uma violência que faz parte não tanto da realidade
quanto da essência do próprio filme, donde a importância do seu tratamento formal:
descobrir a cada vez, uma nova maneira de mostrá-la num primeiro plano que aumente
seu impacto visual” (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 84-85).

3.3.3 James e a autotelia da guerra

Enfim, The Hurt Locker culmina em seu desfecho, após o retorno dos
protagonistas para os Estados Unidos, o de James em particular, com a autotelia da
própria guerra. Desta vez como um elemento constitutivo do próprio enredo,
diferentemente da velocidade e da violência como descrevi anteriormente. Afinal, é
possível encontrar a mesma utilização desses elementos em filmes de outros gêneros,
porém, a guerra como elemento basilar do enredo é bastante peculiar aos war films. Para
entendermos a autotelia da guerra encarnada em James, no entanto, é necessário analisar
algumas sequências anteriores ao desfecho e que, em realidade, constituem como uma
preparação para tal.
Com aproximadamente meia-hora para o final do filme, o esquadrão antibomba
de James é enviado para investigar uma explosão noturna na Zona Verde87, sobre a qual
Sanborn suspeita ter sido realizada por um homem-bomba. Antes de continuar a descrição
desta sequência gostaria de apontar como determinadas escolhas de direção e produção
conferem ao “outro” uma condição de irrelevância em sequências como essa. Além de
planos muito rápidos de civis locais feridos sendo carregados por soldados, e mulheres
cobertas com véus lamentando para os céus, nenhuma atenção narrativa é realizada em
relação ao sofrimento do “outro”. Nessa lógica, o homem iraquiano ensanguentado, o
militar, também iraquiano, que o acode e a mulher velada que lamenta a Allah estão
inseridos, na construção da sequência, como meros adereços para o cenário. A busca do
realismo da guerra pretendida pela direção, com sua filmagem documental e visceralidade

87
Nome dado à região administrativa de Bagdá.
114

detalhista, parece não se aplicar à realidade do “outro” oriental, justamente aquele que
mais sofreu com a guerra, mas somente aos militares ocidentais.
Voltando à descrição da sequência, após Sanborn afirmar ter sido um atendado
suicida, James levanta a possibilidade de a pessoa que detonou o explosivo não estivesse
no local, que não teria sido um homem-bomba, incutindo dúvida em seus companheiros.
Depois de descrever de maneira que inclusive remete mais uma vez àquele sentimento de
ameaça que o Ocidente sente quanto ao Oriente ao dizer que “a really good bad guy hides
out in the dark”88 e que ainda teria o prazer pervertido de assistir a explosão e aos soldados
estadunidenses resolverem a situação. Em seguida Eldridge pergunta para James se ele
gostaria de procurar esse suposto terrorista que teria acionado o explosivo à distância,
obtendo uma resposta positiva do sargento, à qual Sanborn prontamente rejeita,
afirmando que “caçar hajis” não é a função deles ali. Paranoico, James discute com
Sanborn, mais uma vez afirmando que aqueles que fizeram a explosão estariam
observando tudo e rindo da desgraça, e que ele, James, não está de acordo com isso 89.
Como no filme analisado no capítulo anterior, observamos o arquétipo do herói
superpatriota, disposto a qualquer coisa para perseguir os inimigos da nação. Ao final da
sequência, James, sendo o oficial de maior patente, ordena para que os outros o
acompanhem.
Na sequência seguinte os três protagonistas avançam até um determinado ponto
da cidade onde precisam se separar. De maneira extremamente vaga, James dá ordens
para que cada um vá por uma rua estreita até o ponto de encontro do outro lado, deixando
Sanborn confuso e receoso. Em uma montagem veloz de planos rápidos, alternando entre
as personagens, acompanhamos os três militares vasculhando as ruas em busca de
atividades suspeitas. Uma sequência elaborada para construir tensão para o que se segue,
não há trilha sonora nesse momento, o silêncio preenche o ambiente dando a sensação de
isolamento para o espectador. Silêncio esse que é repentinamente quebrado com o som
de disparos de metralhadora. A montagem agora transita entre Sanborn e James, nervosos
e retornando para o início das ruas, notando a ausência de Eldridge os dois seguem pela
rua que o mais jovem entrara, temendo que o pior tenha ocorrido com o rapaz. A tensão
aumenta quando Sanborn avista um corpo caído no beco, o qual pensa ser o de Eldridge.
Uma sutil trilha sonora começa após os dois seguirem a busca pela rua depois de

88
Uma tradução aproximada seria: um cara mau dos bons se esconde no escuro
89
No original: They are laughing at this, okay? And I’m not okay with that!
115

perceberem que o cadáver não é o de seu companheiro, não é exatamente uma música,
mas sons abstratos utilizados para intensificar a tensão apresentada pelas imagens, o que
mais chama a atenção nesse momento é uma batida rítmica similar ao pulsar de um
coração que começa logo após James e Sanborn avistarem Eldridge sendo carregado por
dois homens. Os sons graves da batida se tornam cada vez mais altos na medida em que
Sanborn e James vão se aproximando dos captores de seu companheiro. O ápice de
volume e frequência das batidas ocorre quando, depois de dispararem nos homens
carregavam o jovem soldado, os dois chegam até um Eldridge ferido com um tiro na perna
e desesperado com a situação, pensando estar na eminência de morrer. Retornando ao que
falamos sobre as cine-sensações, é importante pensar nesses elementos em conjunto
dentro de uma sala de cinema escura: uma cena escura; o silêncio seguido pelos baixos
sons incidentais; as batidas graves e ritmadas saindo dos potentes autofalantes da sala de
cinema. Isso tudo constrói um ambiente para que o espectador sinta o que as personagens
estariam sentindo. É menos a narrativa e a fábula do que a sensação.
Após essa sequência de tensão, um corte leva o espectador de volta para a base
estadunidense, onde, em uma cena curta, James aparece perturbado com o que ocorreu
com Eldridge. Após, Eldridge aparece sendo levado de maca para um helicóptero que o
levará para outra localidade de onde será enviado de volta aos Estados Unidos. Sanborn
e James vão até o colega para se despedir em uma cena que contém um diálogo
interessante que aborda determinadas características de James que corroboram para a
autotelia da guerra que ele incorpora. Enquanto tenta passar para Eldridge que ele irá ficar
bem, o jovem, extremamente irritado, responde para James dizendo “obrigado por ter
salvado a minha vida, mas a gente não precisava ter ido atrás de problemas para te dar a
porra da sua dose de adrenalina, seu merda”90. Rememorando a descrição da sequência
da investigação da explosão noturna, lembramos que James ordenou a seus subordinados
para começarem uma busca por um suspeito hipotético que haveria detonado a explosão
à distância, desconsiderando a suposição de Sanborn sobre um atentado suicida e se
engajando em uma perseguição que não competia às funções de seu esquadrão. O que, no
entanto, tanto compele James a buscar esse tipo de situação? Seria adrenalina como acusa
Eldridge?

90
No original: Thanks for saving my life, but we didn’t have to go out looking for trouble to get your
fucking adrenaline fix, you fuck!
116

Encaminhando para o final do filme, há uma sequência na qual James e Sanborn


são chamados para lidar com explosivos presos com uma jaula de metal e diversos
cadeados ao corpo de um homem iraquiano. A sequência é longa e foca no drama pessoal
de James ao lidar com a situação complicada de desarmar essa bomba ou retirá-la do
corpo do homem. Ao longo da sequência, o homem, desesperado, fala em árabe, com um
tradutor acompanhando pelo rádio, sobre sua família e que não quer morrer. Ao final,
James pede desculpas ao homem dizendo que há muitos cadeados e que não vai poder
ajudá-lo. A sequência termina com um quadro do homem orando e então explodindo em
uma nuvem de fumaça. Na próxima sequência, Sanborn e James conversam dentro de um
veículo enquanto retornam para a base. Sanborn se abre para James falando sobre seu
medo de morrer na guerra e como deseja ter um filho, e ainda inquire James a respeito de
sua frieza diante dos riscos que assume para enfrentar as situações estressantes da guerra,
especialmente as de sua função de desarmar explosivos. James reage com confusão,
dizendo não saber exatamente o que o que o leva a este estado mental, que simplesmente
não pensa sobre os riscos. Sanborn responde com a seguinte fala: “Mas você percebe que
toda vez que você coloca a roupa [antibombas], toda vez que saímos, é vida ou morte.
Você joga os dados. E lida com isso. Você reconhece isso, não é?”91. Antes de prosseguir
com a descrição da cena, gostaria de fazer uma breve observação sobre a condição do
oriental em comparação com a “loteria” que Sanborn descreve. Quando o ocidental se
aventura no Oriente, nessas terras sempre retratadas como misteriosas e violentas, a sua
sorte é lançada. Porém, no caso do oriental, os seus dados são viciados. As possibilidades
vão além de “vida e morte”, ou ele morrer em um ataque de terroristas, ou em uma
operação militar ocidental, ou sobrevive nas condições mais precárias legadas pelo
imperialismo, seja em seu país devastado pela guerra, ou como um refugiado em terras
distantes. De volta à sequência, James permanece confuso com as falas de Sanborn,
respondendo, em meio a gaguejadas, que reconhece a situação de vida ou morte descrita
por seu companheiro, mas que não sabe dizer o porquê de ele reconhecer isso. Ao final
James devolve a pergunta para Sanborn, questionando se ele saberia por que ele é do jeito
que é, recebendo uma resposta negativa. Os dois se encaram por alguns segundos em
silêncio até que a sequência termina com um corte, deixando o espectador sem respostas
sobre a mentalidade de James.

91
No original: But you realize every time you suit up, every time we go out, it’s life or death. You roll the
dice. And you deal with. You recognize that, don’t you?
117

Após o corte, vemos James de volta aos Estados Unidos fazendo compras com
sua esposa e filho em um supermercado. Mais um corte, agora James é mostrado
limpando a calha, entupida com folhas, de sua casa, realizando tarefas domésticas e
vivendo uma vida civil ordinária. Outro corte, um close-up dos olhos inquietos de James
enquanto, ao fundo, uma televisão somente com estática, caótica, como a mente de James
naquele momento. Corte. James e sua esposa estão cozinhando enquanto ele fala sobre
um recente atentado com 59 mortos em um mercado iraquiano, sua esposa escuta calada,
um tanto desagradada com o assunto. James termina dizendo que as forças armadas estão
precisando de mais técnicos em explosivos, ou seja, expressando seu desejo de retornar
para o fronte de guerra e realizar sua função, sua esposa desconversa pedindo para ele
realizar alguma tarefa na cozinha, deixando James com uma expressão triste. Na
sequência seguinte James está brincando com seu filho, enquanto a criança ri e se diverte
com os brinquedos ele começa um monólogo como se falasse com o filho, quando, em
realidade, é para si que ele dirige as palavras. Em sua fala, James reflete como ao longo
da vida as pessoas vão perdendo suas paixões: quando crianças elas amam muitas coisas,
ao passo que quando chegam na idade adulta elas amariam uma ou duas, em seu caso
James diz que há somente uma coisa que ele ama. Antes mesmo de a sequência se encerrar
com um corte, o som de um helicóptero em crescendo pode ser ouvido. Há em então um
corte para um barulhento helicóptero militar acompanhado de uma trilha sonora de
batidas graves, motivo musical comuns para a guerra, o helicóptero pousa e James sai de
seu interior junto com outros soldados, de volta ao Iraque. O filme termina com James
em sua roupa antibombas andando por uma rua, se afastando do espectador, rumo ao
desconhecido e ao perigo. Os créditos começam logo em seguida ao som de uma música
agitada, sincopada e com guitarras distorcidas representando a ação e a adrenalina da
guerra.
Nesses quinze últimos minutos é possível perceber como James funciona,
narrativamente, como uma espécie de “avatar da guerra”, em seu monólogo com o filho,
não é necessário ser expresso com palavras para deixar claro para o espectador que a
única paixão de James é a guerra. O filme constrói uma narrativa, no entanto, de James
como alguém, por mais que obcecado com sua função, pronto para encarar os riscos e
salvar vidas ao desarmar explosivos. No entanto, diante daquela incapacidade de explicar
para Sanborn o porquê de ele agir como age e sua paixão pela guerra não fazem de James
alguém motivado a salvar vidas. James vai para a guerra pois a ama. Sua motivação é a
guerra por ela mesma. Em The Hurt Locker James é a encarnação da autotelia da guerra
118

e de um Estados Unidos belicoso que inicia ou apoia conflitos sem levar em conta os
riscos e consequências, como fora com a própria Invasão do Iraque, em 2003.
119

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomar as telas era mais complicado: no


cinema, as pessoas procuravam descanso,
poesia, fábulas. É como se eles dormissem
naquelas salas escuras e tivessem belos
sonhos. Temos que saber transmitir a eles a
nossa poesia, a poesia do ideal e do dólar, a
poesia da luta pelo sucesso: aquela que
ensina que os poderosos governam e os
fracos trabalham. [...] Mas isso não basta:
também precisamos programar os sonhos
deles. Conseguir que estejam cientes de
serem cidadãos dos Estados Unidos, mesmo
em sonhos.
Ilya Ehrenburg (1891-1967)

Após todo este esforço analítico, é importante que eu deixe claro ao leitor que não
tive por objetivo a comparação entre estas obras cinematográficas. No entanto, é
inevitável que certos paralelos sejam traçados, não, porém, como tarefa comparativa entre
ambos os filmes, mas sim como um apontamento para a existência de determinadas
tendências presentes neste tipo de filme e no cinema hollywoodiano de forma geral.
Nesta perspectiva, o que mais chama a atenção são as categorias alegóricas
construídas nessas obras. Ambas as produções cinematográficas analisadas neste trabalho
mobilizaram parte da narrativa através da relação entre uma das personagens principais e
uma criança “nativa”. Como apontado ao longo dos capítulos anteriores, a utilização esse
tropo indica na direção da construção do “outro” representado em tela e que interage com
a protagonista ocidental como atrasado em relação à personagem adulta e madura no
papel principal. No caso de filmes de guerra como estes, ainda há uma conotação
paternalista, como já descrito, através da qual o “outro” nativo é narrativamente
construído como impotente e frágil. Crianças em situações de violência costumam ser
motivos narrativos utilizados para a comoção do público espectador, afinal, a violência
contra as crianças é sempre pior.
Em 12 Strong assistimos a uma criança lutando em uma guerra violenta entre
terroristas e senhores da guerra, já em The Hurt Locker, somos apresentados a uma
sequência grotesca de mutilação na qual explosivos são retirados do cadáver de uma
criança. Nenhuma criança deveria tomar parte de uma guerra como combatente, assim, a
narrativa de 12 Strong constrói uma representação de o quão despreparado e atrasado é o
120

Afeganistão, onde crianças precisam lutar contra os terroristas que tomaram seu país. Ao
longo deste filme, o que percebemos é a construção de que se não fosse pela interferência
dos Estados Unidos na guerra contra o Taliban, os afegãos não teriam a menor chance.
Com tudo o que foi demonstrado neste trabalho fica evidente a perpetuação desses tropos
de infantilização do outro a fim de fabricar uma realidade na qual os Estados Unidos
atuam como um guardião zeloso dos mais fracos. A mutilação do menino iraquiano em
The Hurt Locker atua no mesmo sentido e traz outros elementos. Em primeiro lugar, a
narrativa trabalha para demonstrar o quão depravados são os inimigos enfrentados, mais
uma vez necessitando da presença protetora do Ocidente.
Neste sentido, identifico nos filmes diversos elementos apontados por Edward
Said em sua definição do conceito de Orientalismo. Retomando a mesma citação utilizada
no primeiro capítulo,
o Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a
lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito,
descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o
Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente (SAID, 2007, p. 29).

Desta forma ao apresentar em sua narrativa uma representação enviesada do Oriente e do


oriental, esses filmes contribuem para incutir e manter um imaginário orientalista em seu
público consumidor. Afinal, o cinema é uma grande força motriz do imaginário. Como
aponta Jörg Schweinitz (2011, p. xii), antes mesmo dos expoentes da escola de Frankfurt
Adorno e Horkheimer elaborarem suas críticas à indústria cultural, outros pensadores,
durante da década de 1930, já se referiam ao cinema como uma “máquina de fantasias”
(René Fülöp-Miller) e uma “fábrica de sonhos” (Ilya Ehrenburg). Se esta força de
imaginário já era apontada antes mesmo da revolução digital do final do século XX,
atualmente, na hipermodernidade, “o cinema se caracteriza por ser uma arte global que
opera a fusão do espaço e do tempo, do olho e do verbo, do movimento e da música”
(LIPOVETSKY & SERROY, 2009, P. 302).
Longe, porém, de ser uma força meramente de evasão e fuga, continuam
Lipovetsky e Serroy (2009, p. 302-303), o cinema é historicamente um elemento
formador da consciência moderna, especialmente a estadunidense. Desde filmes como o
controverso The Birth of a Nation (D. W. Griffith, 1915) até os filmes analisados neste
trabalho, o cinema funciona um “molde unificador” de uma consciência coletiva – neste
sentido, o título do filme de Griffith cabe perfeitamente aqui como exemplo desta força
de imaginário do cinema nos Estados Unidos. Na era da globalização, no entanto,
121

Hollywood transporta essa forço para o resto do mundo, difundindo “sonhos”, valores e
visões de mundo construídas na casa do Tio Sam.
Desta forma, os produtos cinematográficos produzidos por Hollywood dispersam
esses valores e contribuem para uma dominação no sentido que Bourdieu (2012, p. 46-
47) aponta em A dominação masculina: “os dominados aplicam categorias construídas
do ponto de vista dos dominantes às relações de cominação, fazendo-as assim ser vistas
como naturais”. Os dominados, no entanto, não são somente aqueles representados em
filmes orientalistas como os que analisei neste trabalho, mas sim qualquer um do chamado
terceiro-mundo, uma vez que os esquemas teóricos-conceituais que Said descreve para o
Orientalismo podem ser transpostos, com suas devidas adaptações, para outras relações
entre as nações imperialistas e o “terceiro-mundo”. Assim, filmes como 12 Strong e The
Hurt Locker são capazes de mobilizar, por exemplo, latino-americanos para um
sentimento antiárabe ou islamofóbico, sendo assim fagocitados por uma lógica
imperialista de dominação.
122

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