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Jaime Gama
23 de Agosto de 2017
INTRODUÇÃO
José Milhazes
João Domingues
CAPÍTULO I
ESLAVÓFILOS
Uma causa moral deve ser também realizada por via moral, sem a ajuda
de uma força externa, coerciva. Existe apenas uma via bem digna para o
homem, a via da convicção livre, a via da paz, a via que nos foi aberta pelo
Salvador Divino e seguida pelos Seus Apóstolos. Essa via de verdade
interna poderia ser sentida de forma confusa pelos povos pagãos… Sob a
influência da fé no acto heróico moral, elevado ao nível de tarefa histórica
de uma sociedade, forma-se um modo de vida original, um carácter pacífico
e simples; e, claro, se é possível encontrar nalgum lugar semelhante forma
moral de vida… esse lugar são as tribos domésticas, na sua maioria, tribos
eslavas. Mas será possível semelhante modo de vida na Terra?
Existe outra via, pelos vistos mais cómoda e simples; a estrutura externa é
transferida para fora e a liberdade espiritual é compreendida apenas como
organização, ordem (tarefa); as bases, os princípios da vida são
compreendidos como regras e prescrições. Tudo é formulado. Esta é a via
da verdade não interna, mas externa, não da consciência, mas da lei forçada.
Mas semelhante via tem um sem número de desvantagens. Antes de tudo, a
fórmula, seja ela qual for, não pode abarcar a vida; depois, ao ser imposta a
partir do exterior e sendo forçada, ela perde a sua principal força, a força da
convicção interna e do seu livre reconhecimento; dando assim ao homem a
possibilidade de se apoiar na lei, armado com a força coerciva, ela faz
adormecer o espírito humano que se inclina para a preguiça, acalmando-o
facilmente e sem qualquer tipo de esforço com o cumprimento das
exigências formais impostas e livrando-o da necessidade da actividade
moral interna e do renascimento interno. Esta é a via da verdade exterior, a
via do Estado. Por essa via avançou a humanidade ocidental.
Na Rússia, a história encontra os Eslavos do Norte sob o domínio dos
Varegues, os do Sul sob o domínio do Czar. Os Eslavos do Norte
expulsaram os Varegues e, talvez, devido ao seu domínio, tenha surgido a
inimizade entre eles e conflitos de uns com os outros.
Esses eram os principais obstáculos e a Terra, a fim de se salvar a si
própria, a sua vida terrestre, decide recorrer à defesa do Estado. Mas é
preciso assinalar que os Eslavos não formam o Estado, eles chamam-no:
eles não escolhem o príncipe do seu seio, mas procuram-no para além do
mar; dessa forma, eles não misturam a Terra com o Estado, recorrendo ao
último como necessidade de conservação da primeira. O Estado, a
organização estatal não se tornou o objectivo dos seus anseios, porque eles
se afastavam a si próprios ou a vida comunitária do Estado, e para proteger
a primeira chamaram o segundo.
Nenhuma outra história começou assim. Se discutiam sobre o tempo da
existência desse facto, então aqui está a força no seu sentido;
reconhecimentos individuais mais tardios confirmam essa ideia.
O chamamento foi voluntário. A Terra e o Estado não se misturaram, mas
fizeram separados uma união de um com o outro. No chamamento
voluntário encontravam-se já as relações da Terra e do Estado: a confiança
mútua de ambas as partes. Não a vituperação nem a inimizade, como
aconteceu com outros povos, devido à conquista, mas a paz devido ao
reconhecimento voluntário.
Assim começa a história da Rússia. Duas forças estão na sua base, dois
motores e condições em toda a história da Rússia: a Terra e o Estado…
OCIDENTALISTAS
No nosso país, durante muito tempo, olhava-se para a obra de Pedro não
historicamente, ou com respeito reverencial face a ele, ou com reprovação.
Os poetas permitiram-se cantar: «Ele é o teu Deus, ele foi o teu Deus,
Rússia.» Semelhante ponto de vista dominou também em discursos mais
calmos, não poéticos; era uma expressão por todos empregue a de que
Pedro tirou a Rússia da inexistência para a existência. Eu considerei
semelhante ponto de vista não histórico porque, aqui, a obra de uma
personagem histórica foi separada da actividade histórica de todo um povo;
na vida do povo foi introduzida uma força sobrenatural que agia a seu bel-
prazer, enquanto o povo era condenado a uma atitude completamente
passiva para com ela; a vida multissecular e a actividade do povo até Pedro
foram consideradas inexistentes; a Rússia e o povo russo não existiam até
Pedro, ele criou a Rússia, ele tirou-a da inexistência para a existência. As
pessoas que não simpatizavam com a obra de Pedro, no lugar de combater o
ponto de vista citado, puxaram para o lado contrário; os extremos
encontraram-se e foi preciso novamente abandonar a História. Segundo o
novo ponto de vista, a Rússia antes de Pedro não só não era inexistente, mas
gozava de uma existência correcta e superior, tudo estava bem, era moral,
puro e santo; mas eis que aparece Pedro que destruiu o movimento correcto
da vida russa, destruiu o seu sistema popular, livre, espezinhou as tradições
e costumes populares, provocou a discórdia entre as camadas altas e baixas
da população. Infectou a sociedade com costumes estrangeiros, construiu o
Estado segundo um modelo estranho, obrigou os Russos a perderem a
consciência de si, o seu espírito de povo. Novamente a divindade,
novamente a força sobrenatural. Novamente desaparece a história do povo,
que se desenvolve em conformidade com as leis conhecidas, sob a
influência de condições particulares que distinguem a vida de um povo da
de outro.
Claro que ambos os pontos de vista, aparentemente contrários, mas, no
essencial, igualmente não históricos, não podem aguentar-se com o reforço
da ciência, quando observações mais atentas da vida histórica dos povos
deveriam levar à negação de semelhantes fenómenos sobrenaturais nesta
vida, quando se constatou que qualquer fenómeno, por muito grande que
seja, por muito que mude, aparentemente, a organização e a imagem do
povo, é indispensavelmente o resultado do desenvolvimento anterior da
vida do povo…
Os povos que vivem à parte, que não gostam de se aproximar de outros
povos, de viver com eles uma vida comum, esses povos são menos
desenvolvidos, eles vivem, se assim se pode dizer, num meio rural, aldeão.
O mais forte desenvolvimento regista-se entre os povos que estão em
contacto permanente entre si; esses povos são os euro-cristãos. Mas claro
que para que esse contacto desse fruto, foi necessário que um povo se
encontrasse, comunicasse com outro povo ou povos, com os quais pudesse
estabelecer uma troca de ideias, experiência, dos quais pudesse receber
algo, com os quais pudesse aprender. A passagem do povo de uma idade
para outra, ou seja, o início de um forte movimento intelectual dentro dele
começa quando um povo se encontra com outro povo mais desenvolvido,
mais culto, e se a diferença no nível de desenvolvimento, no nível de
educação entre eles é muito grande, claro que entre eles se estabelece uma
relação de mestres com discípulo; esta lei não pode ser ladeada. Por
exemplo, os Romanos, povo que tentou conquistar todo o mundo então
conhecido, ao encontrarem-se com os Gregos, povo que vivia o seu declínio
histórico, curvaram-se perante eles e entregaram-se à ciência e, através da
ciência grega, entraram na segunda idade da sua existência histórica. Mas
há um exemplo mais próximo de nós, com a nossa idade, o dos novos povos
euro-cristãos da Europa Ocidental. Estes realizaram a sua transição de uma
idade para a outra nos séculos XV e XVI também através da ciência, da
ciência alheia, através da descoberta e estudo das obras do pensamento
greco-romano antigo. Em conformidade com a lei comum, foram buscar a
ciência aos Gregos e Romanos e não queriam ouvir falar de mais nada além
de Gregos e Romanos. Ao servirem fielmente o seu novo princípio,
olhavam de forma hostil para a idade que tinham vivido, para a sua história
antiga, para os princípios que aí dominavam, para o sentimento e
consequências desse domínio. Eles contrapunham a sua nova vida,
embelezada para si pelo desenvolvimento de um pensamento antigo,
diferente da sua vida anterior, como a existência face à inexistência.
Aturdidos pelas poderosas influências novas, olhando mal para a idade por
eles vivida, perderam a tal ponto interesse para com essa idade que não
viram nela a sua história antiga, cujos resultados souberam viver em si, na
sua nova história, por muito que lhes tentassem renunciar com os nomes de
Platão, Aristóteles e Cícero. Para eles, a história antiga era principalmente a
história de Gregos e Romanos, aos quais, enquanto seus mestres, pais
espirituais que os fizeram ressuscitar para uma nova vida, colaram
directamente a sua nova, enquanto apresentaram a sua própria história
antiga como algo estranho, de difícil compreensão, pouco claro, nem uma
coisa, nem outra, média, daí o nome de Idade Média, história dos séculos
médios.
Assim se deu a passagem de uma idade para outra, da história antiga para
a moderna, para os povos da Europa Ocidental, para os povos das tribos
romana e germânica. Mas chegou a nossa vez, do povo da Europa Oriental,
do povo eslavo. A nossa transição da história antiga para a moderna, da
idade onde impera o sentimento para a ideia onde domina a ideia, ocorreu
em finais do século XVII e início do século XVIII. Relativamente a esta
transição vemos uma diferença entre nós e os nossos irmãos europeus, uma
diferença de dois séculos…
O povo russo, enquanto povo eslavo, pertence à mesma grande tribo
ariana, à tribo querida da História, tal como outros povos europeus, antigos
e novos, e, à semelhança deles, tem a capacidade hereditária de forte
desenvolvimento histórico. Tal como os povos europeus novos, o povo
russo tem também outra condição interna substancial que define a sua
imagem espiritual: o Cristianismo; por conseguinte, as condições ou meios
internos são iguais, bem como a fraqueza interna e, por isso, não podemos
presumir atrasos. Mas quando olhamos para as condições externas, vemos
uma diferença extrema, um desfavorecimento do nosso lado que salta à
vista, que explica plenamente o atraso do desenvolvimento.
São conhecidas as condições favoráveis para o desenvolvimento histórico
que os povos europeus encontram nas formas geográficas da sua parte do
continente: as relações mar-terra favoráveis ao desenvolvimento industrial e
comercial; divisão, favorável à rapidez do desenvolvimento histórico, em
Estados pequenos, bem defendidos, divisão, e não isolamento provocado,
noutras regiões da Terra, por estepes e montanhas demasiadamente altas,
clima suave, etc. Mas todas essas condições favoráveis estão concentradas
na parte ocidental da Europa, nós não as temos na enorme planície oriental,
que sente falta de mar e proximidade das estepes. Por conseguinte, as
causas do atraso do desenvolvimento nas condições externas desfavoráveis
são claras para nós à primeira vista. Também à primeira vista impressiona a
imensidão do Estado russo; mas a imensidão do Estado tem grande
significado em certas condições, se a população for homogénea, se o seu
número for suficiente em comparação com a imensidão e se o povo for
instruído; claro que, em iguais condições entre dois Estados, é mais forte o
maior; mas se não se registarem essas condições, a imensidão de um Estado
não só não lhe dá força em comparação com um pequeno Estado que possui
todas essas condições, mas constitui também o principal obstáculo ao
desenvolvimento do povo. Na história do nosso povo, isso é tanto mais
sensível porque a Rússia nasceu como um imenso Estado e com uma
população comparativamente minúscula. Claro que a vida comum, a
actividade comum no povo só pode ser forte quando a população se
concentrar em áreas que não dificultem a comunicação frequente, quando
existem muitos lugares próximos uns dos outros onde se concentra
numerosa população, lugares chamados cidades nas quais, como já vimos, o
desenvolvimento ocorre mais depressa do que entre a população rural, que
vive em pequenos grupos a distâncias um dos outros.
Também no século XVII, na véspera da época da transformação, a Rússia
apresentava-nos, num enorme espaço, um pequeno número de cidades com
uma quantidade surpreendentemente minúscula de população industrial:
essas cidades não passavam de grandes vilas muradas, fortalezas que
tinham mais importância militar do que industrial e comercial; estavam a
grandes distâncias umas das outras e eram extremamente difíceis as
comunicações, principalmente na Primavera e Outono. Desse modo, a
Rússia, na sua história antiga, era um país primordialmente rural, agrícola, e
semelhantes países são obrigatoriamente pobres e desenvolvem-se de forma
extremamente lenta. Mas, além dessa condição desfavorável, vemos outras.
A Rússia é um enorme Estado continental, não defendido por fronteiras
naturais, aberto a Leste, a Sul e a Ocidente. O Estado russo baseou-se num
país que antes dele a História não conhecia, num país onde dominavam
hordas selvagens, nómadas, num país que era um amplo caminho aberto às
pragas de Deus, aos povos selvagens da Ásia Central que tentavam pilhar a
Europa. Baseado nesse país, o Estado russo estava desde o início condenado
a fazer constantemente o trabalho sujo, a permanente luta difícil e esgotante
contra os habitantes das estepes… Só em finais do século XVII, no fim da
nossa história antiga, o Estado russo conseguiu libertar-se do envio de
oferendas constantes e obrigatórias, ou seja, simplesmente tributos, ao Cã
da Crimeia. Mas mal a Rússia começou a saber lidar com o Oriente, no
Ocidente apareceram inimigos mais perigosos quanto aos seus meios. A
nossa martirizada Moscovo, fundada no meio do solo russo e reunidora de
territórios, teve de se defender de dois lados, do Ocidente e do Oriente,
proteger-se do latinismo e do Islão, recorrendo a velhos termos, e devia
sofrer desgraças dos dois lados: ardia por causa dos Tártaros, ardia por
causa dos Polacos. Por isso, um povo pobre, disperso por territórios
imensos, teve de, constantemente, com um esforço inimaginável, reunir as
suas forças, dar o último kopek [centavo], ganho com grande esforço, para
se livrar dos inimigos que o ameaçavam de todos os lados, para conservar o
principal bem, a independência nacional. Pobre em meios, o país rural e
agrícola devia manter constantemente um grande número de tropas.
Quem desconhece que a formação e manutenção de tropas é uma questão
importante, vital, para cada um, principalmente para um Estado
continental?
O aparecimento de tropas regulares é um sinal claro de viragem
económica na vida do povo, de desenvolvimento industrial e comercial, de
aparecimento de bens móveis, de dinheiro junto da propriedade imóvel. A
terra é um sinal que coincide de forma natural e indispensável com outros
sinais: com a libertação da classe agrária, com o aparecimento do trabalho
assalariado livre no lugar do obrigatório, servil. A cidade, depois de se
enriquecer, liberta o campo, porque no organismo do povo todos os órgãos
se encontram em estreita ligação, o reforço ou o enfraquecimento de um
reflecte-se no reforço ou enfraquecimento de outro.
Assim aconteceu no Ocidente. Olhemos para o Oriente. As leis de
desenvolvimento são as mesmas lá e cá, a diferença advém de condições
mais ou menos favoráveis, que aceleram ou travam o desenvolvimento. No
Oriente, na nossa Rússia, temos um Estado pobre, agrícola, sem
desenvolvimento da cidade, sem forte movimento industrial e comercial,
com um Estado enorme, mas com pouca população, um Estado que devia
constantemente manter uma luta dura contra os vizinhos, luta não ofensiva
mas defensiva, sendo que não se defendia o bem-estar material (os nossos
antepassados não estavam mimados!), mas a independência do país, a
liberdade dos habitantes, porque se as tropas russas não chegassem a tempo
às margens do Oka para vigiar o tártaro, se o deixassem passar nalgum
lugar, os mercados muçulmanos orientais enchiam-se de escravos russos.
Um Estado pobre, pouco povoado, deve precisamente manter um grande
exército para defender as fronteiras que se estendem por longas distâncias e
estão abertas. Claro que aqui deparamo-nos com um fenómeno comum aos
Estados agrários: o estrato social militar, as tropas são mantidas à custa da
camada não armada. Um Estado pobre, mas que é obrigado a manter um
exército numeroso sem ter dinheiro, devido ao subdesenvolvimento da
indústria e do comércio, distribui terras entre os que prestam serviço militar,
mas a terra para os proprietários não tem valor sem agricultores,
trabalhadores, e há falta destes. A mão-de-obra é cara, há uma luta
constante por trabalhadores entre os donos das terras que são atraídos pelos
donos de terras que possuem latifúndios; os mosteiros atraem com grandes
vantagens os trabalhadores dos agricultores mais pobres, dos pequenos
latifundiários que não podem dar condições vantajosas, e o agricultor pobre,
não tendo trabalhadores, fica privado de alimentar com a agricultura a sua
família, fica impossibilitado de prestar serviço militar, de se apresentar, ao
primeiro pedido do Estado, na forma devida, a cavalo, com um certo
número de pessoas e bem armado… O que fazer nesta situação? A principal
necessidade do Estado é ter tropas prontas, mas o guerreiro recusa-se a
prestar serviço, não participa nas campanhas porque não tem meios de
sobrevivência, não tem com que se armar, tem terra, mas não tem
trabalhadores. E o único meio de satisfazer essa principal necessidade do
país foi encontrado na redução dos camponeses à servidão, para que eles
não saíssem das terras dos latifundiários pobres, não fossem atraídos pelos
ricos, para que o senhor tivesse sempre trabalhadores na sua terra, tivesse
sempre meios para estar pronto a participar nas campanhas.
Durante muito tempo, os estrangeiros, e os Russos a seguir a eles, ficaram
espantados e zombariam deste fenómeno: como é que aconteceu que, ao
mesmo tempo em que na Europa Ocidental a servidão da gleba desaparecia,
ela era introduzida na Rússia? Hoje, a ciência mostra-nos claramente como
isso aconteceu: na Europa Ocidental, graças à sua situação favorável,
aumentou a actividade industrial e comercial, a unilateralidade na vida
económica, o domínio da propriedade imóvel, as terras desapareceram,
perto delas apareceu propriedade móvel, dinheiro, aumentou a população, a
cidade enriqueceu e libertou o campo; mas, no Oriente, formou-se um
Estado em condições mais desfavoráveis, com uma enorme área e pouca
população, que precisa de numerosas tropas, obrigado a ser militar, embora
nada agressivo, sem quaisquer desejos de conquista, que tem em vista
apenas a defesa constante da sua independência e da liberdade da sua
população; um Estado pobre, agrícola, e, logo que as relações nele entre
partes da população começaram a ser determinadas pelas necessidades
principais da vida do povo e do Estado, ele apresentou um fenómeno
conhecido em semelhantes Estados: a parte armada da população é
alimentada directamente à custa dos desarmados, possui terra onde o
homem desarmado é um trabalhador servo. E será que em todos os Estados
da Europa a servidão entre a população agrícola desapareceu de repente e
há muito? Nos Estados da Europa Central, ela continuou até ao presente
século e a causa disso esteve na vagarosidade do desenvolvimento
económico.
Mas para explicar o fenómeno através da comparação, não nos devemos
limitar apenas à Europa; à Europa está ligada outra parte da Terra,
descoberta pelos povos europeus-cristãos, ocupada por eles, com a
implementação, daí advinda, de uma vida comum com a Europa: a
América. No século XVI, esse país estava em condições económicas
principais iguais ao Oriente da Europa, à Rússia: um país enorme, que
necessita terrivelmente de mão-de-obra. E que fazem nele os europeus
ocidentais que tanto se gabam da libertação rápida da população rural nos
seus países? Organizaram aí a escravidão da população rural em dimensões
amplas e horrorosas através do transporte de escravos negros de África,
acalmando a sua consciência civilizacional com a sabedoria astuciosa de
que os negros não são pessoas como os brancos, que não tiveram origem
em Adão.
A redução dos camponeses à servidão foi um grito de desespero do
Estado que se encontrava numa situação económica sem saída… Durante
muito tempo, toda a atenção do homem russo esteve virada para o Oriente,
para o mundo das estepes, dos bárbaros predadores, dos povos nómadas,
não cristãos, que se encontravam num nível mais baixo de desenvolvimento
do que o povo russo. O homem russo tinha consciência da sua brusca
diferença em relação a esses povos e, encontrando-se na idade em que o
sentimento prevalece, teve consciência da sua brusca diferença em relação
ao bárbaro das estepes na religião; não russo e tártaro, mas cristão ou
muçulmano, ou pagão, eram essas as noções que vinham à frente. Aqui
passava uma clara fronteira moral entre o povo russo e o mundo asiático.
Mas no Ocidente os povos são outros, povos com outro carácter. E aqui,
sublinhe-se, a diferença religiosa passou para primeiro plano, isto é, a
diferença de crença, cristão ortodoxo ou simplesmente cristão, cristão no
fundamental, e latino (romano), luterano, calvinista; lá, no Ocidente, a
diferença de fé levou ao aparecimento de uma clara fronteira moral do povo
russo, é por isso que dizemos que a Ortodoxia esteve na base do povo russo,
conservou a sua individualidade espiritual e política. Sob a sua bandeira, a
Rússia Oriental ergueu-se e reuniu-se para não permitir que o trono de
Moscovo fosse ocupado por um latino, por um rei polaco ou pelo seu filho;
sob a sua bandeira, a Rússia Ocidental defendeu a sua independência na luta
contra a Polónia. Nós dissemos que a Rússia está mal defendida pela
natureza, está aberta a Ocidente, Sul e Ocidente, é de fácil acesso a ataques
inimigos; mas a falta de forças nas fronteiras físicas é substituída pelo povo
russo por fronteiras espirituais, pela diferença espiritual a Oriente e a Sul,
pela crença a Ocidente; nessas fronteiras manteve-se forte o povo russo e
conservou a sua particularidade e independência.
Depois, claro que o homem russo prestou atenção a outros traços de
semelhança e de divergência entre os seus vizinhos, entre os povos com
quem mantinha relações, e, em conformidade com esses traços, começou
também a definir as suas atitudes para com eles. O homem russo notou, por
exemplo, a semelhança e a diferença tribal e pôs os Polacos-lituanos num
lugar à parte, os Alemães, ou seja, todos os povos europeus ocidentais de
origem não-eslava, pôs à parte. Notou igualmente a diferença entre o
homem oriental e o ocidental, o asiático e o europeu-ocidental, a rudeza do
primeiro, a mestria, a instrução do segundo. Em comparação com a sua
própria pobreza, o homem russo ficou particularmente surpreendido com a
riqueza do estrangeiro ultramarino, do inglês, do holandês, do hamburguês,
do liubequiano, riqueza e arte (iniciativa empresarial): o estrangeiro
ultramarino traz as mercadorias necessárias, mas que o homem russo não
sabe produzir, os estrangeiros ultramarinos têm muito dinheiro e, além
disso, sabem realizar os seus negócios, sabem fazê-los em conjunto, sabem
chegar a acordo e apostar no seu, enquanto os Russos fazem comércio
separadamente, não sabem chegar a acordo, ajudar-se uns aos outros e, por
isso, perdem sempre frente aos estrangeiros, não podem competir com eles,
tal como eles próprios referem. Os estrangeiros trazem produtos caros, que
não se cultivam nos seus países, cultivam-se muito longe, para lá do
oceano; mas os estrangeiros navegam nos seus barcos por todos os mares,
atracam em todas as terras, compram barato, vendem caro e obtêm grandes
capitais. O russo olha com atenção para os estrangeiros, para os mais ricos
de entre eles, os mais habilidosos, e vê que os estrangeiros mais ricos e
hábeis são os ribeirinhos, os que têm mais barcos, navegam e comerceiam
em todos os mares. Daí a noção para o homem russo de que o mar é uma
força que dá riqueza, daí o desejo apaixonado, a inclinação para o mar, para,
através dele, ficar um povo tão rico e habilidoso como os povos ribeirinhos.
Desse modo, a riqueza e a mestria dos estrangeiros ultramarinos,
contrapostas à própria pobreza e subdesenvolvimento, despertaram num
povo historicamente forte, isto é, capaz de se desenvolver, o desejo de sair
da sua situação difícil, lamentável, moderar a unilateralidade da vida agrária
com o desenvolvimento da indústria e do comércio, com os meios
assinalados, cuja eficácia era evidente; daí o movimento do Oriente para o
Ocidente, da Ásia para a Europa, da estepe para o mar. E esse movimento
começou imediatamente após os bárbaros orientais terem enfraquecido, os
Russos dominaram-nos, puderam respirar com mais calma, olhar para o
lado e notar a citada diferença entre si e os povos ribeirinhos, porque um
grande povo histórico não pode ficar estagnado; e se a Rússia antiga nos
parece estagnada, essa estagnação é relativa, é apenas a morosidade do
movimento em esferas conhecidas devido aos poderosos obstáculos que o
povo teve de enfrentar.
Logo que os cãs tártaros deixaram de se aproximar de Moscovo e de fazer
reféns os seus príncipes, o filho de um príncipe que esteve como refém em
Kazan, Ivan III, estabeleceu contactos com a Europa Ocidental e chamou
artesãos locais para construir templos, palácios e torres no seu Kremlin.
Ivan IV, seu neto, logo que dominou os tártaros orientais com a tomada de
Kazan e Astracã, virou imediatamente o seu olhar para o Ocidente; queria
obrigatoriamente chegar ao mar ansiado. Afastado dele pelos esforços
conjuntos de Polacos e Suecos, Ivan IV estava pronto a entregar todo o
comércio russo nas mãos dos Ingleses apenas para que estes o ajudassem a
conseguir pelo menos um porto no mar Báltico; o czar Aleksei
Mikhailovitch faz a proposta ingénua ao duque da Curlândia de lhe
autorizar a construção de navios russos nos seus portos. Isto mostra da
melhor forma o movimento e a sua direcção, como a ideia do mar se tornou
dominante, irreversível. Desse modo, os Russos já se movimentavam e a
nova via foi definida, o movimento começa a partir dos séculos XV e XVI,
simultaneamente, como resultado do movimento dos povos europeus-
ocidentais, com a sua transição de uma idade para outra; mas no nosso país,
no Oriente, esse processo avançava de forma extremamente lenta devido a
terríveis obstáculos.
A Polónia e a Suécia cortavam o caminho, escondiam o mar, era
impossível abrir caminho com as massas não organizadas como eram as
tropas russas, que necessitavam de uma transformação radical para terem
êxito. No Ocidente, o caminho está cortado e o Oriente, o Oriente das
estepes, faz os últimos esforços para manter o seu troféu, a sua prisioneira:
a Rússia. Ao mesmo tempo que o czar Ivan IV concentrava a sua atenção
no Ocidente, o Cã da Crimeia aproximou-se e queimou Moscovo, queimou-
a de tal forma que nunca mais recuperou depois disso. Logo após de,
durante o reinado do czar Boris, terem decidido a questão de que seria
melhor enviar os seus russos estudar para o estrangeiro do que chamar
mestres estrangeiros para a Rússia, logo que foi tomada essa decisão, as
estepes agitaram-se, vieram daí cossacos com impostores e realizaram a
obra de destruição, de nivelamento, ou seja, não deixaram pedra sobre
pedra, melhor do que os Tártaros. A Rússia teve de descansar durante muito
tempo, recuperar depois da «visita» desses pregadores do protesto…
Espero que do que foi dito tenha ficado claro sobre em que deviam
consistir os traços substanciais da chamada transformação, isto é, a
passagem natural e necessária do povo de uma idade para a outra. O povo
pobre tomou consciência da sua pobreza e das suas causas através da
comparação entre si e os povos ricos e esforçou-se por adquirir os meios
aos quais os povos ultramarinos deviam a sua riqueza. Por conseguinte, as
coisas tiveram de começar pela transformação económica, o Estado agrário
devia reduzir a unilateralidade da sua actividade económica através do
movimento industrial e comercial, tendo sido para isso necessário, antes de
tudo, arranjar um cantinho no mar Mediterrâneo do Norte (Báltico-
Alemão), através do qual chegava a vida comercial, industrial e histórica da
Europa, afastando-se das costas do mar Mediterrâneo do Sul. Aqui realizou-
se a lei geral segundo a qual o movimento avançava também no Ocidente.
O movimento que preparou a transição dos povos europeus ocidentais de
uma idade para a outra, da história antiga para a moderna, começou com a
mudança na sua vida económica através do aumento da actividade
industrial, comercial e marítima. Por onde normalmente começa a
exposição da história moderna? Pela descoberta de novos países e de novas
vias marítimas, sendo essas descobertas precedidas pela ascensão da cidade,
pela sua prosperidade extrema em Itália, neste país de cidades ricas, fortes,
poderosas: as repúblicas. As costas do mar Mediterrâneo Báltico-Alemão
começam a competir com as costas do mar Mediterrâneo Meridional: aí
desenvolvem-se cidades hanseáticas e holandesas, noutros países europeus
ocidentais, a diferente nível, sob a influência de diversas condições, repete-
se o mesmo fenómeno, o dinheiro, a propriedade mobiliária compete com a
terra, propriedade imobiliária, o ouro disputa com a espada. Antes as
dinastias apoiavam-se na espada, mas passaram a apoiar-se directamente no
dinheiro; os ricos mercadores Medici fundaram uma dinastia em Florença.
O desenvolvimento industrial e comercial conduz ao desenvolvimento
intelectual através do alargamento da esfera de observação, através da
intensificação da vida internacional. Aqui, o movimento científico é
indispensável e nós vemos que, na era dos grandes descobrimentos
geográficos, na época do aumento da actividade comercial e industrial, nos
países que mais se distinguiram por essa actividade, é intenso o trabalho do
pensamento com as obras deixadas pelo mundo greco-romano antigo, à
influência dos quais se sujeitaram os povos europeus ocidentais e, sob essa
influência, ocorreu a transição da história antiga para a nova, da idade do
sentimento para a idade do pensamento. Simplesmente falando, entregaram-
se os estudos a Gregos e Romanos, fizeram a escola sob a sua direcção, e
esta escola deixou, durante muito tempo, pode dizer-se para sempre, marcas
profundas, tais como as marcas que a escola deixa em cada pessoa capaz de
engolir e digerir o alimento espiritual. Nesta escola greco-romana, aquando
da excitação do pensamento através dela, os povos europeus ocidentais
debruçaram-se, antes de tudo, sobre a questão e a análise das relações que
foram o resultado do princípio que dominava na sua história antiga do
sentimento, do sentimento religioso, e, como consequência dessa análise, o
levantar do voo do pensamento como resultado do sentimento, como
consequência do choque de dois princípios, que divide entre si a história
dos povos, como consequência do pensamento e do sentimento, foi o
movimento protestante religioso que se alargou a toda a Europa Ocidental e
que provocou em toda a parte uma longa e sangrenta luta.
E também na Rússia a transição da história antiga para a nova realizou-se
segundo as leis gerais da vida do povo, mas com certas particularidades,
devido à diferença de condições em que decorreu a vida do nosso e dos
povos europeus ocidentais. No Ocidente, o conhecido movimento
económico começou há muito e avançou devagar, o que não lhe concedia a
importância de novidade, que chama particularmente a atenção que dá o
domínio ao fenómeno; o movimento mais forte e que surpreendeu pela sua
novidade foi o movimento no campo do pensamento, no campo da ciência e
da literatura, que imediatamente transitou para o campo religioso, para o
campo das relações da Igreja e da Igreja-Estado. Aqui o novo, protestando
contra o velho, contrapondo-se a ele, provocou necessariamente a luta e
uma luta mais forte, a luta religiosa, que dividiu a Europa em dois campos
adversários. Esta luta passou para primeiro plano, fazendo todos os outros
interesses passar para segundo. Na Rússia, na época da transformação, isto
é, da passagem do povo da sua história antiga para a nova, o movimento
económico continuou em primeiro plano.
Devido às condições desfavoráveis acima citadas, o nosso movimento
económico foi atrasado, mas o movimento da vida do Estado e do povo não
parou, porque se tornava cada vez mais clara a consciência da necessidade
de fazer enveredar o país por uma nova via, tornava-se cada vez mais clara
a consciência dos meios para a sua realização, e logo que a consciência se
tornou definitivamente clara, o povo teve, de súbito, de entrar de rompante
pela nova via, porque a discórdia entre a consciência de como deve ser e a
realidade só é possível numa pessoa ou num povo inteiro se a vontade for
extremamente fraca, se existir senilidade, mas o povo russo não se
encontrava nessa situação na época descrita. A reviravolta económica,
enquanto satisfação da principal exigência popular, passou para primeiro
plano e, como se realizou de súbito, fez-se sentir de forma mais forte; no
organismo do Estado não se pode mexer num órgão sem, ao mesmo tempo,
mexer noutros, e eis a causa de, juntamente com a transformação
económica, terem lugar muitas outras, mas estas consequências
encontravam-se numa situação oficial em relação à primeira. Não nos
podemos esquecer de que a Rússia realizou a sua transição da história
antiga para a moderna dois séculos após os países europeus ocidentais, por
conseguinte, entre esses povos, em cuja sociedade o povo russo entrou, já
muito tinha mudado.
Na realidade, o movimento religioso aí tinha-se acalmado e, no primeiro
plano, colocava-se também a questão económica. Recordamos que, no
Ocidente, essa época era a época de Luís XIV, que deu a França o papel
dirigente na Europa Ocidental, mas, no final do seu reinado, a França
perdeu a importância predominante. Isso aconteceu porque, inicialmente,
Colbert, famoso ministro de Luís, realizou o movimento económico, a
transição económica em França, que deu ao rei grandes meios financeiros,
mas, depois, Luís deu-se ao luxo de esgotá-los. De que ideia partiu Colbert?
As potências marítimas, Holanda e Inglaterra, enriqueceram graças a um
forte movimento industrial e comercial; para dar à França a possibilidade de
enriquecer tal como a Inglaterra e a Holanda, era necessário torná-la uma
potência marítima, despertando nela um forte movimento industrial e
comercial, o que foi feito. Aqui, por conseguinte, Colbert partiu do facto
que ocorreu aos olhos de todos, da comparação da situação das potências
marítimas com a situação das continentais, da compreensão correcta das
causas da diferença nessa situação, pois era difícil não compreender. Do
mesmo facto, da mesma comparação, partiu também a Rússia, o movimento
fundamental da época de transformação foi o mesmo movimento de
Colbert, o mesmo desejo de introduzir num Estado agrário pobre a
actividade industrial e comercial, dar-lhe o mar, pô-lo em contacto com a
actividade marítima dos Estados ricos, dar-lhe a possibilidade de partilhar
dos seus enormes proveitos. Como já vimos, este movimento é tão natural e
necessário que aqui não se pode falar de qualquer cópia ou imitação. A
França com Colbert à cabeça e a Rússia com Pedro, o Grande à frente
agiram da mesma forma, por igual motivação, segundo a qual dois homens,
um na Europa, outro na Ásia, para se aquecerem, saem para o Sol e, com
vista a evitar uma insolação, procuram uma sombra. A Rússia, depois de
realizar a viragem económica e de se aproximar da Europa Ocidental,
encontrou-a não numa guerra religiosa, completamente estranha e inútil
para a Rússia, mas numa guerra pelo enriquecimento.
Mas se na nossa transformação se destacou tanto a faceta económica,
seria extremamente imprudente não prestar atenção também a outros
aspectos que o fenómeno analisado deveria ter em conformidade com a lei
geral indispensável. Vimos que na Europa Ocidental, durante a transição
dos povos de uma idade para a outra, a ideia despertada pelo contacto com
as obras do pensamento antigo, da filosofia antiga, abordou com pergunta e
análise os resultados do sentimento dominante na sua história antiga, o
sentimento religioso, de onde teve origem um forte movimento religioso,
uma forte luta religiosa que dividiu a Europa em dois campos adversários:
Catolicismo e protestantismo. Vimos que parte dos povos europeus
ocidentais conserva e defende afincadamente as velhas crenças, as formas
arcaicas de organização da Igreja e afirma-se nisto os extremos do novo
princípio, os extremos do movimento da ideia, o seu movimento de
decomposição, de negação. Depois de ser colocada a questão dos abusos da
Igreja latina, logo a seguir nascem correntes que tentam destruir não só a
organização religiosa, mas também social. A ideia desenfreada no seu
movimento vai de Lutero até Müntzer e deste até aos anabatistas.
Semelhante extremismo provocou uma reacção da parte do Catolicismo
que, por sua vez, chegou ao extremo ao dar origem à ordem dos jesuítas.
Soloviov, S.M. Obras Escolhidas, M., 1872, pp. 45, 50.57, 62-67.
Nome: Kliuchevski, Vassili
Danilevski, N. Rússia e Europa. M., 1991, p. 23-25, 39, 44-45, 48-53, 58-
63, 254-258, 263-268, 274-275, 400-402.
2 Nome grego de espíritos malignos dos sistemas religiosos do Irão e do
Médio Oriente.
3 Tribos de origem fino-húngara.
4 Região do Império Russo na Ásia Central, sensivelmente na região da
actual Orenburgo.
5 «Conseguem aguentar o riso, amigos?» (latim).
6 Cidades alemãs.
7 «Com o pilão», no russo original (N. T.)
8 «Mau russo, russo barbudo» (alemão).
9 «Sou europeu e nada europeu me é estranho» (latim).
10 «Investida sobre o Oriente» (alemão).
11 Peça de teatro do escritor e dramaturgo russo Nikolai Gogol.
12 «Investida para o Oriente» (alemão).
Nome: Dostoievski, Fiodor
POPULISMO, ANARQUIA
E SOCIALISMO RUSSOS
Herzen, A.I. Obras. V. 30. M., 1955. V.7 Pp. 148-159, 170-175, 182-183,
198-199, 231-232, 240-243.
16 Nobreza que não podia transmitir esse privilégio aos seus descendentes.
Nome: Chernichevskii, Nikolai
PENSAMENTO MARXISTA
A difusão das ideias marxistas na Rússia deixou uma marca profunda nas
discussões em torno do problema da relação daquele país com a Europa e a
Ásia. E não porque trouxesse alguma coisa de totalmente novo, pois elas
enquadram-se perfeitamente no ponto de vista ocidentalista. Todavia, se
antes nenhum dos participantes da discussão podia fugir à definição da sua
posição do poder imperial russo, a partir de Novembro de 1917, quando os
bolcheviques tomaram o poder através de um levantamento armado,
ninguém conseguia passar ao lado da interpretação marxista do problema,
devido à sua natureza agora integrante da ideologia dominante no país. O
sistema de ideias de Marx, assimilado pelos seus seguidores russos (muitas
vezes de forma linear e vulgar), possuía algumas qualidades que
contribuíam para o aumento rápido da sua popularidade em determinadas
camadas sociais, principalmente entre a intelectualidade. A aparente clareza
e perfeição lógica da concepção, que explica o desenvolvimento da
sociedade humana através da acção de certas leis eternas, cujo
conhecimento permite, numa base supostamente científica, prever a
direcção, as etapas e os objectivos finais desse desenvolvimento, a absoluta
confiança dos seus seguidores em que a doutrina criada por Karl Marx e
Friedrich Engels contém a receita pronta das transformações sociais, válida
em qualquer parte do planeta, chamaram a atenção dos representantes de
diferentes correntes e convicções ideológicas.
Os marxistas russos não tinham a mínima dúvida de que existe apenas
uma civilização comum a todos e que todos os povos do mundo devem
atravessar níveis de desenvolvimento definidos. Todos os que não
pensavam assim eram «reaccionários».
Se os marxistas se distinguiam dos populistas por, ao contrário deles,
terem a convicção da inevitabilidade de a Rússia ter de passar pela fase
capitalista no seu desenvolvimento, os primeiros diferenciavam-se dos
liberais pela atitude face ao próprio capitalismo. Estes últimos viam nele a
fase suprema do progresso da humanidade, enquanto os marxistas o
consideram apenas uma fase intermediária, após a qual seria inevitável a
transição para o socialismo e o comunismo.
Nas duas primeiras décadas do século XX, realizou-se uma viragem na
discussão do problema. Se no século anterior as atenções se concentravam
nas revoluções europeias, agora analisava-se o factor da revolução russa, os
seus resultados, a afirmação no antigo Império Russo de um sistema social
e político sem análogos na História. Era necessário olhar de forma diferente
para as relações entre a Rússia, por um lado, e a Europa e Ásia, por outro.
Menos mudanças se notaram nas posições dos liberais e dos marxistas-
bolcheviques. Para os primeiros, os bolcheviques estragaram tudo ao
romper o processo natural de avanço para o capitalismo de tipo ocidental,
enquanto que, para os segundos, o esquema tradicional começava a
determinar a política prática. Discutia-se, por exemplo, os problemas da
correlação da revolução russa e da revolução mundial, as questões da
unidade de acção com o proletariado europeu na luta contra a política dos
círculos dirigentes do Ocidente, a avaliação do significado da Revolução de
Outubro como novo ponto de partida na História da humanidade, etc.
É importante assinalar o «tema oriental» na teoria bolchevique. Depois de
ter falhado o ateamento de revoluções na Europa, o renascimento da Ásia, a
organização de ajuda prática aos movimentos revolucionários e de
libertação nacional nesse continente são alvo das atenções de Vladimir
Lenine, José Estaline, Lev Trotski e outros dirigentes soviéticos.
Na ideologia bolchevique, o eurocentrismo prevalecia na relação da
URSS com a Europa e a Ásia, embora mantivesse uma política cada vez
mais activa na região asiática e noutras regiões do mundo. O
desenvolvimento dessa relação pode ser dividido em dois períodos. O
primeiro, entre 1917 e os anos 30, pode ser considerado revolucionário-
ocidentalista quando, sob a bandeira do internacionalismo, tinha lugar uma
luta cruel contra todos os que, real ou alegadamente, defendiam as tradições
históricas (se elas não tivessem contornos revolucionários) e idealizavam o
«maldito passado». Quaisquer desvios nesse sentido eram considerados
como uma manifestação de «nacionalismo burguês» e de «chauvinismo de
grande potência». O segundo começou a destacar-se na segunda metade dos
anos 40 e pode ser caracterizado como «revolucionário de grande
potência», quando o passado da Rússia foi parcialmente reabilitado
enquanto história de uma potência que teve a União Soviética como
herdeira. Os anseios da sua direcção na política externa precisavam de ser
historicamente fundamentados, no quadro daquilo que na política da URSS
era apresentado como a realização de tarefas que nunca se tinham colocado
perante a Rússia czarista. Semelhante interpretação visava também
combater as teorias então correntes no Ocidente que explicavam a
agressividade da política externa soviética, pelo facto de ela ter raízes nos
anseios expansionistas da autocracia czarista. O lugar do Estado e da
sociedade soviética no mundo reflectiu-se na seguinte fórmula: a URSS é a
vanguarda da humanidade progressista, a continuadora de tudo o que a
humanidade fez de melhor, o bastião das forças revolucionárias na luta
contra o imperialismo ocidental, que se encontra em fase de desintegração.
Nome: Plekhanov, Gueorgui
A guerra com a Alemanha fascista não pode ser considerada uma guerra
normal. Não se trata apenas de uma guerra entre dois exércitos. Trata-se
também da grande guerra de todo o povo soviético contra as tropas fascistas
alemãs. O objectivo desta guerra patriótica nacional contra os opressores
fascistas não passa só pela liquidação da ameaça que se abate sobre o nosso
país, mas também pela ajuda a todos os povos da Europa que gemem sob o
jugo do fascismo germânico. Nesta guerra de libertação, não estaremos sós.
Nesta grande guerra, teremos aliados leais entre os povos da Europa e da
América, entre os quais até o povo alemão escravizado pelo jugo hitleriano.
A nossa guerra pela liberdade da nossa pátria irá fundir-se com a luta dos
povos da Europa e da América pela sua independência, pelas liberdades
democráticas. Será uma frente única de povos que se erguem pela liberdade,
contra a subjugação e as ameaças de escravização por parte do exército
fascista de Hitler. Nesse sentido, a intervenção histórica de Winston
Churchill, primeiro-ministro britânico, sobre a ajuda à União Soviética e a
declaração do Governo dos EUA sobre a prontidão em dar apoio ao nosso
país, que podem causar nos corações dos povos da União Soviética apenas
o sentimento de gratidão, são bastante claras e ilustrativas.
CONVERGÊNCIA DE SISTEMAS
OU NOVAS DIVERGÊNCIAS?
A Quarta Teoria Política não nos pode ser dada por si só. Ela pode surgir
ou pode não surgir. A discordância é a premissa do seu aparecimento. A
discordância com o pós-liberalismo enquanto prática universal, com a
globalização, com o pós-modernismo, com o «fim da história», com o
status quo, com o desenvolvimento inerte dos princípios civilizacionais
fundamentais no início do século XXI.
O status quo e a inércia não pressupõem quaisquer teorias políticas. O
mundo global deve ser dirigido só por leis económicas e pela moral
universal dos «direitos humanos». Todas as soluções políticas são
substituídas por técnicas. A técnica e a tecnologia substituem todo o resto (o
filósofo francês Alain de Benoist chama a isso la gouvernance). O lugar dos
políticos que tomam decisões históricas é ocupado por gestores e
tecnólogos, que optimizam a logística da gestão. A massa das pessoas é
equiparada a uma massa única de objectos individuais. Por isso, a realidade
pós-liberal (mais precisamente, a virtualidade, que põe cada vez mais de
lado a realidade) conduz directamente ao desaparecimento total da política.
Podem retorquir: os liberais «mentem» quando falam do «fim da
ideologia» (nisto consistiu a minha polémica com o filósofo A. Zinoviev);
«na realidade», eles continuam fiéis à sua ideologia e apenas negam o
direito à existência a todas as restantes. Isso não é bem assim. Quando o
liberalismo se transforma de princípio ideológico em único conteúdo da
existência social e tecnológica existente, isso já não é «ideologia», isso é
um facto da vida, uma ordem «objectiva» das coisas que não é
simplesmente difícil de contestar, mas é absurda. Na época do pós-
modernismo, o liberalismo passa da esfera do sujeito para a esfera do
objecto. Numa perspectiva futura, isso levará à substituição completa da
realidade pela virtualidade.
A Quarta Teoria Política é pensada como alternativa ao pós-liberalismo,
não como uma construção ideológica em relação a outra construção
ideológica, mas sim como uma ideia que se contrapõe à matéria; como uma
possibilidade que entra em conflito com a realidade; como um ataque não
existente lançado contra um já existente.
Além disso, a Quarta Teoria Política não pode ser uma continuação nem
da Segunda Teoria Política, nem da Terceira. O fim do fascismo, tal como o
fim do comunismo, não foi simplesmente um equívoco ocasional, mas uma
expressão totalmente clara da lógica da História. Aqueles lançaram um
desafio ao espírito do Modernismo (o fascismo quase abertamente, o
comunismo de forma disfarçada – ver análise do período soviético como
uma edição «escatológica» da sociedade tradicional em M. Agurski25 ou S.
Kara-Murza26 e perderam.
Significa que a luta contra a metamorfose pós-modernista do liberalismo
sob a forma de pós-modernismo e de globalismo deve ser qualitativamente
diferente, baseando-se em novos princípios e propondo novas estratégicas.
Não obstante, o ponto de partida desta ideologia – possível, mas não
garantido, não fatal, não predeterminado, mas decorrente da vontade livre
do homem, do seu espírito, e não de processos históricos impessoais – é
precisamente a negação da própria essência do pós-modernismo.
Todavia, esta essência (tal como a descoberta do fundo antes pouco claro
do próprio modernismo, que realizou de forma tão completa o seu conteúdo
que esgotou as possibilidades internas e passou ao regime de reciclagem
irónica de etapas anteriores) é algo completamente novo, antes
desconhecida e apenas intuitiva e fragmentariamente adivinhada nas etapas
anteriores da história ideológica e da luta ideológica.
A Quarta Teoria Política tem que ver com uma nova degeneração do
velho inimigo. Ela contesta o liberalismo, tal como a Segunda e Terceira
teorias políticas do passado, mas contesta-o numa nova situação. A
novidade fundamental dessa situação consiste em que só o liberalismo, das
três grandes ideologias políticas, venceu o direito à herança do espírito do
modernismo e recebeu o direito de formar o «fim da história» na base das
suas premissas.
Teoricamente, o fim da história poderia ter sido outro: o «reich
planetário» (no caso da vitória dos nazis), o «comunismo mundial» (se os
comunistas tivessem tido razão). Mas o «fim da história» mostrou ser
precisamente liberal (o filósofo A. Kojev27 foi um dos primeiros a adivinhar
e, depois, a sua ideia foi reproduzida por F. Fukuyama28). Mas sendo assim,
quaisquer apelos ao modernismo e às suas premissas, como fizeram, em
maior ou menor grau representantes da Segunda (em maior medida) e da
Terceira Teorias Políticas, perdem a sua relevância. Eles perderam (os
liberais ganharam) a luta pelo modernismo. Por isso, o tema do modernismo
(tal como o da modernização) pode ser retirado da ordem do dia. Começa o
combate pelo pós-modernismo.
E aqui, à Quarta Teoria Política, abrem-se novas perspectivas. O pós-
modernismo, que está hoje a ser realizado na prática (pós-modernismo pós-
liberal), anula a lógica rígida do modernismo: depois de o objectivo ter sido
alcançado, as etapas de aproximação a ele perdem o seu significado. A
pressão do corpo ideológico torna-se menos rígida. A ditadura das ideias é
substituída pela ditadura das coisas, dos códigos de acesso (login-
password), dos códigos de barras. No tecido da realidade pós-modernista
aparecem novos buracos.
Tal como, a dada altura, a Terceira e a Segunda Teorias Políticas
(compreendidas como versão escatológica do tradicionalismo) tentaram
«domar o modernismo» na sua luta contra o liberalismo (Primeira Teoria
Política), hoje há a possibilidade de fazer algo análogo com o pós-
modernismo, utilizando precisamente esses «novos buracos».
Contra alternativas ideológicas directas, o liberalismo elaborou meios
perfeitamente actuantes em que está baseada a sua vitória. Mas é
precisamente aquela que acarreta o maior risco para o liberalismo.
É preciso apenas calcular esses novos pontos de perigo para o sistema
global mundial, decifrar os códigos de acesso para arrombar o sistema. Pelo
menos, tentar. Os acontecimentos de 11 de Setembro em Nova Iorque
demonstraram que isso é possível também tecnologicamente. A sociedade
em rede pode dar algo também aos seus adversários convictos. Em qualquer
dos casos, é necessário, em primeiro lugar, compreender o pós-modernismo
e a nova situação não menos profundamente do que Marx compreendeu a
estrutura do capitalismo industrial.
A Quarta Teoria Política deve, no pós-modernismo, ir beber a sua
«inspiração negra» na liquidação do programa do Iluminismo e no avanço
da sociedade dos simulacros, vendo nisso um estímulo para a luta e não
uma realidade fatal. Daqui podem tirar-se algumas conclusões práticas
relativamente à estrutura da Quarta Teoria Política.
Heidegger e o «acontecimento»
25 de Junho de 2003
… Penso que precisamente esta sala histórica é o melhor lugar para uma
conversa sobre os problemas do mundo actual, sobre o sistema da sua
segurança e sobre a importância do Direito Internacional.
Actualmente, estas questões passam para primeiro plano. A página da
«guerra fria» está fechada, mas enfrentamos novas dificuldades,
contradições e novas ameaças. Trata-se de conflitos inter-étnicos,
terrorismo internacional, tráfico de droga, ameaças ecológicas, epidemias
em massa, ameaça de difusão de armas de destruição massiva.
A sua dimensão aumenta ano após ano. Hoje, a globalização concentra
tudo: capitais, informação, política, mas também ameaças. E nós devemos
reagir adequadamente a esses desafios. Estou convencido de que a nossa
solidariedade é o mecanismo mais eficaz de reacção. Só a nossa coesão,
respeito e confiança mútuos nos poderão ajudar…
Estamos de acordo que, actualmente, é de primordial importância
defender não só as normas do Direito Internacional, mas também os
princípios ético-morais criados por numerosas comunidades mundiais antes
de nós.
É importante reforçar o prestígio e o papel da ONU, que continua a ser
um instrumento universal de direcção dos processos internacionais. Pode-se
afirmar sem exagero: o rosto futuro do nosso planeta irá depender da via de
manutenção da nossa segurança…
Como já afirmei, estive há vários anos na hospitaleira e maravilhosa
Escócia. Desde então, tenho as melhores recordações do carácter directo e
aberto dos Escoceses. E devo dizer que nisso há muita semelhança com o
povo do meu próprio país, com o povo da Rússia.
Talvez por isso seja fácil para nós estabelecer compreensão mútua com o
Primeiro-Ministro e com mais um conhecido escocês, que hoje ocupa um
cargo relevante nas estruturas internacionais, principalmente ligadas às
questões da segurança. Tenho em vista, antes de tudo, o senhor Robertson,
Secretário-Geral da NATO, com quem temos boas relações. Penso que, nos
últimos tempos, fizemos muito do ponto de vista do reforço dos institutos
de segurança, tendo em conta a integração da Rússia nessas estruturas.
Como sabem, criámos uma boa ponte de interacção com o Bloco do
Atlântico Norte…
Estou absolutamente de acordo consigo [resposta à necessidade de
reforçar as relações entre as igrejas do Oriente e do Ocidente]. No mundo
actual, isso é uma das direcções fundamentais da nossa interacção, porque
um dos problemas que eu referi e que nós conhecemos muito bem – refiro-
me ao terrorismo – adquire cada vez mais um carácter religioso.
Na realidade, o terrorismo não tem nada de comum com as religiões
mundiais e com as religiões em geral. Os terroristas apenas se escondem
por detrás de palavras de ordem religiosas, mas estabelecer o diálogo entre
religiões significa estabelecer o diálogo entre civilizações.
Sem dúvida que a nossa civilização europeia tem as suas raízes no
Cristianismo. A Europa deve estar aberta a todos os povos, de qualquer
crença, de qualquer cor de pele, de qualquer cultura. Mas estou
profundamente convencido de que a cultura europeia está
significativamente baseada nos valores do Cristianismo. Este é muito
diverso e tem no seu seio problemas. Conhecemo-los bem. Penso que no
Reino Unido sabem disso não menos do que eu. A nossa tarefa consiste em
unir as religiões em geral e as correntes no Cristianismo em particular.
Compreendi perfeitamente a sua alusão respeitante à aproximação de
posições da Igreja Ortodoxa russa e da Santa Sé. Garanto-lhe que as
autoridades laicas da Rússia fazem tudo para aproximar posições sobre as
questões discutíveis que restam. Conheço as intenções do Patriarca de
Moscovo e de Toda a Rússia, Alexis II, ele tem muito boas intenções e
esperamos que as relações entre a Santa Sé-Igreja Católica Romana e a
Igreja Ortodoxa russa se desenvolvam positivamente…
A Rússia não coloca perante si o objectivo de aderir à União Europeia de
forma completa. A Rússia é um país grande. Não obstante a desintegração
da União Soviética, quanto ao território, é o maior país do mundo. Uma
população de 145 milhões de pessoas.
A nossa economia encontra-se na fase de formação. Precisamos de fazer
muito para criar uma sociedade democrática moderna. Nós, no fundo,
apenas iniciámos a construção do sistema multipartidário. Este é um
processo bastante longo. Há também dificuldades meramente formais, que
vemos perante nós. Refiro-me ao reforço das fronteiras externas. Temos
perfeita consciência de que semelhante condição é indispensável numa série
de direcções da integração económica. Tudo isso exige recursos financeiros
significativos e tempo. Ao mesmo tempo, a Rússia, como eu já disse, é
parte da cultura europeia. Estou convencido de que nesta sala não há
ninguém que tenha dúvidas a este respeito. Mais, sem a Rússia, a cultura
europeia não estaria completa e, se assim é, a Rússia constitui, sem
qualquer dúvida, parte da Europa. Esta continua para lá dos Montes Urais
porque, se pegarmos nas pessoas que vivem no Extremo Oriente, elas pouco
se distinguem dos cidadãos da Rússia que vivem na parte europeia.
Em princípio, isso é um potencial muito bom do desenvolvimento futuro
da Europa, mas hoje devemos colocar perante nós objectivos reais.
Devemos, no mínimo, fazer com que na Europa não surjam novas linhas
divisórias para que as pessoas tenham possibilidade de comunicar umas
com as outras, para que as regras de Schengen não sejam interpretadas
como algo semelhante ao Muro de Berlim, que dividia a Europa ainda há
alguns anos.
Devemos fazer tudo para que a Rússia e a Europa se ajudem a
desenvolver de forma harmoniosa e estável. Existe interesse mútuo porque,
mesmo no que respeita à estrutura da economia, a Rússia e a Europa
completam-se bem. (...)
Em relação à aproximação da Europa e dos EUA. Como é que se podem
aproximar mais? A Europa e os EUA são aliados muito próximos, espero
que assim continuem. Isso é um dos elementos importantíssimos da
estabilidade no mundo actual. É verdade que existiram problemas ligados à
crise iraquiana. Temos divergências sobre algumas questões sérias, no seio
da Europa também. Mas não é isso que permitiria ou levaria o mundo ao
limiar do confronto, tal como aconteceu na Crise das Caraíbas. Graças a
Deus, esses tempos já passaram…
Todos conhecem a posição da Rússia sobre o problema iraquiano. Ela não
mudou. A meu ver, o desenrolar dos acontecimentos mostrou a sua solidez.
Hoje, é preciso falar apenas de uma coisa: é necessário superar as
divergências, pensar como sair eficazmente da situação criada, agir
coordenadamente no campo da organização das Nações Unidas. Porque,
independentemente da direcção iraquiana que seja criada no futuro, ela só
poderá apresentar-se ao mundo, exigir a sua legitimidade, o apoio da parte
da comunidade internacional, se esse processo passar através da ONU.
Outras opções colocariam em causa a confiança face à futura liderança.
Temos um bom exemplo disso, o Afeganistão. Os especialistas conhecem
bem como aí decorreu e decorre o processo de normalização da situação, de
formação dos órgãos de poder. Penso que este é um bom exemplo que pode
ser colocado na base do trabalho também na liderança iraquiana…
A Rússia não é simplesmente membro da ONU. A Rússia é um dos
fundadores dessa organização. Hoje, ela é membro permanente do Conselho
de Segurança da ONU…
O nosso país desenvolve activamente relações com a Europa, com os
países asiáticos. Isto é natural porque parte significativa da Rússia encontra-
se na Ásia. Como sabem, a Federação da Rússia tornou-se, muito
recentemente, pleno membro do G8 e eu falei-vos dos ritmos de
desenvolvimento da economia russa, de como se reforça o Estado russo,
mas compreendemos bem as nossas fraquezas.
Somos o maior país quanto ao território, muito rico em recursos minerais.
Temos outras vantagens, que consistem num nível de instrução muito alto,
que em nada fica atrás do europeu. Pode afirmar-se que esta é também uma
grande vantagem natural da Rússia. Mas também há aspectos negativos.
Não obstante os grandes ritmos, trata-se de um baixo desenvolvimento
económico, de más infraestruturas, de um baixo nível de rendimentos da
população. Há ainda outros problemas. Por isso, nós, apesar de conscientes
das nossas vantagens, não nos daremos ares de importantes nem iremos
dormir sobre as nossas riquezas naturais. Temos perfeita consciência de
que, por si só, encontrando-se no subsolo russo, eles nada significam. São
precisos recursos, capitais, uma gestão moderna. E para que o país disponha
disso, é necessário criar condições. Claro que isso exige tempo, mas iremos
avançar insistentemente por essa via, e quanto mais estável for o país, mais
sólida será a democracia na Rússia, maiores serão os seus êxitos na esfera
da economia e na esfera da integração no espaço humanitário e económico
internacional. Estamos convencidos de que um país como a Rússia ocupará
o seu lugar digno…
http://kremlin.ru/events/president/transcripts/22037
http://kremlin.ru/events/president/transcripts/24034
Para onde se dirige o mundo global no século XXI? Hoje, esta pergunta é
feita pelas pessoas com uma preocupação crescente, e eu estou entre elas.
Com o meu amigo Hans-Dietrich Genscher, que nos deixou há pouco
tempo, analisámos por mais de uma vez a questão: o que é que não correu
como era devido? A nossa geração, a geração de políticos que conseguiu
com esforços conjuntos pôr fim à «guerra fria», fez o seu trabalho. Mas
porque é que o mundo de hoje não está calmo, é injusto e militarizado?
Parecia que o fim do confronto global e as possibilidades inéditas das
novas tecnologias, antes de tudo das da informação, deveriam dar ao mundo
um novo fôlego, melhorar a vida literalmente de cada pessoa. Mas a
realidade mostrou ser outra.
Não existe uma explicação fácil para isso. Disse-o por mais de uma vez
que os políticos não estiveram à altura. Aqueles que anunciaram a «vitória
do Ocidente na “guerra fria”», os que se recusaram a construir um sistema
de segurança novo, justo, têm grandes responsabilidades na actual situação
no mundo. O triunfalismo é um mau conselheiro nos assuntos
internacionais.
Mas não se trata apenas disso. Até hoje, o novo mundo global não foi
verdadeiramente compreendido e pensado. Ele exige novas regras de
comportamento, outra moral. Contudo, os dirigentes mundiais parecem não
ter tempo para isso.
Penso que esta é a principal causa da actual «convulsão global».
Quem ganhou e quem perdeu no mundo global?
As pessoas estão preocupadas com a tensão nos assuntos internacionais,
mas estão ainda mais preocupadas com a sua situação, com as suas
perspectivas. Isso está interligado.
Até nos países mais desenvolvidos, a maioria – a classe média, que é a
base de qualquer sociedade que se desenvolve com êxito – manifesta
descontentamento com a sua vida. Os eleitores apoiam cada vez mais
frequentemente os políticos populistas, que propõem, à primeira vista,
soluções simples, mas, na realidade, perigosas.
Ao mesmo tempo, as estruturas financeiras, que não são controladas por
ninguém, rapidamente se adaptaram à globalização e tiraram vantagens
dela, criando «bolas de sabão» umas após outras e fazendo milhares de
milhões literalmente a partir do ar. Esses milhares de milhões ficam à
disposição de um grupo cada vez mais reduzido de pessoas que fogem ao
pagamento de impostos. Nos últimos dias, vimos novos exemplos disso,
mas trata-se apenas do cume do icebergue.
Para já não falar de que, num mundo global, se sentem confiantes as
estruturas do crime organizado, os traficantes de drogas e armas, os
grupelhos que enriquecem à custa de grandes correntes migratórias e,
principalmente, os terroristas.
A política mundial não encontrou, por enquanto, uma resposta eficaz para
nenhum desses problemas. Ao mesmo tempo começou uma nova etapa da
corrida aos armamentos, agrava-se a crise ecológica, aumenta a diferença
entre os países ricos e pobres, e entre os ricos e pobres no interior dos
países. São precisamente estes problemas que devem ocupar os primeiros
lugares na ordem do dia mundial. Mas não são resolvidos. Becos sem saída
em toda a parte.
Parecia haver possibilidades e mecanismos para a sua superação, tanto
aqueles que já existem há muito – antes de tudo, as organizações do sistema
da ONU –, como os novos, como por exemplo o G20, criado para a luta
contra novos desafios. É difícil encontrar alguém que considere a sua
actividade bem-sucedida. Atrasam-se sempre, ficam para trás.
É evidente a crise de liderança, tanto no âmbito internacional, como
nacional. Os políticos estão envolvidos no «apagamento de fogos», na
solução dos problemas correntes, de crises e de conflitos actuais. Não há
dúvida de que é preciso resolvê-los e, nas últimas semanas, notaram-se
alguns avanços positivos.
Tem lugar o diálogo sobre a Síria. É verdade que, por enquanto, nele
participam mais partes externas, antes de tudo os Estados Unidos e a
Rússia. Mas isso já contribuiu para um certo enfraquecimento da tensão nas
relações entre a Rússia e o Ocidente. Se esta tendência for desenvolvida,
será necessário alargá-la também a outras esferas das relações. Mas esse
será um processo longo e difícil. A confiança sofreu prejuízos
demasiadamente altos.
Não se registam progressos na solução da crise em torno da Ucrânia. Os
actuais mecanismos de regularização trabalham mal. Fica-se com a
impressão de que eles são transformados em rotina. Não se pode renunciar a
estes mecanismos (Acordos de Minsk, Quarteto da Normandia). Mas parece
ser necessário completá-los e estimular o seu trabalho. Talvez através da
discussão no Conselho de Segurança da ONU ou de outros mecanismos
com a participação da Rússia e dos Estados Unidos. Não se pode deixar a
crise ucraniana transformar-se num abcesso que prejudica a saúde da
Europa e do mundo. A Europa não pode suportar mais um «conflito
congelado». Dirijo-me directamente aos presidentes Obama e Putin (fiz isso
pela primeira vez em 2014) com o apelo de se encontrarem e discutirem
esta crise que continua.
O papel da Rússia