Você está na página 1de 423

Ficha Técnica

Título original: Antologia do Pensamento Geopolítico e Filosófico Russo


(Século IX – Século XXI)
Autor: João Domingues e José Milhazes
Capa: Rui Rosa
Fotografias do interior: Direitos reservados
Organização e tradução: José Milhazes e João Domingues
Revisão: Marta Jacinto
Paginação: Paulo Sousa
ISBN: 9789722063753

Publicações Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2017, José Milhazes, João Domingues e Publicações Dom Quixote


Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.dquixote.leya.com
www.leya.pt

Este livro segue a grafia anterior ao novo Acordo Ortográfico de 1990


Os autores deste livro agradecem ao Sr. Alexandre Soares dos Santos, sem
cujo o apoio esta obra não poderia ser publicada.

Um agradecimento a Liina Milhazes


pela constante colaboração na preparação deste livro.
PREFÁCIO

A questão russa permanece actual.


Várias décadas volvidas sobre o proclamado fim da Guerra Fria, não se
vislumbra uma relação estável entre a Rússia e o Ocidente. Contrariamente
ao que se passou com o Japão e a Alemanha, no final da II Guerra Mundial,
o anunciado termo da Guerra Fria não se traduziu num apaziguamento entre
vencedores e vencidos, nem na constituição de um modelo de
relacionamento susceptível de gerar confiança mútua. Muitos dos elementos
componentes e dos aliados da União Soviética seguiram ou estão a seguir o
seu caminho no sentido de uma institucionalização política, de uma reforma
económica e de uma nova inserção no sistema internacional. Porém, a
Rússia, seu núcleo central, apesar dos impulsos que, em certos momentos,
pareceu dar a essa mudança, acabou por auto-isolar-se na sociedade
internacional, por bloquear as reformas que todos aguardavam, por não
fazer crescer a sua economia e por repor os mecanismos do confronto
militar com parte significativa dos seus vizinhos, hipotecando o seu futuro a
esse caminho sem horizonte.
Pode argumentar-se que faltou ao Ocidente o golpe de asa para conduzir
estrategicamente esse objectivo de cooptar a Rússia. A NATO e a União
Europeia acabaram paralisadas pela hesitação dos seus parceiros mais
significativos e os Estados Unidos, salvo em curtos momentos, não
impulsionaram uma verdadeira parceria estratégica com a Rússia, trazendo-
a para o sistema internacional, pelo contrário acabaram por deixá-la
entregue à reconstituição de velhas fórmulas apenas ajustadas a uma
diferente conjuntura e a uma menor capacidade para gerar poder no plano
externo.
A compreensão da Rússia é algo que motiva alguns dos espíritos mais
exigentes quanto à percepção da situação mundial. Porém, as vicissitudes
vividas pelo país desde Outubro de 1917, bem como as que se seguiram ao
final da Guerra Fria, têm feito antepor um quadro de análise
preferencialmente político àquilo que merecia ser abordado numa
perspectiva mais diversificada e serena. Em muitos casos, a politização do
conhecimento acabou por ser inibidora do próprio estudo, não apenas da
Rússia, mas da realidade do mundo eslavo em que a mesma se funda. No
caso português, a incipiência desse tipo de pesquisa está bem à vista de
todos.
Pense-se o que se pensar sobre a forma como ruiu o Pacto de Varsóvia e,
em seguida, a União Soviética, bem como sobre o rumo que tomou a Rússia
na era pós-comunista, em especial nos dias de hoje, nada de rigoroso poderá
ser dito que não tenha por fundamento uma exaustiva fundamentação
geográfica e histórica. Ou seja, entender a Rússia de hoje não é possível
sem compreender a Rússia de sempre.
Muitos privilegiarão, nas origens do Estado russo, a deriva da expansão
eslava para Leste, a partir do seu berço no Dniepre, a Rússia de Kiev,
Novgorod e a Moscóvia, o enfrentamento defensivo e ofensivo com
invasores e rivais, e as progressões em todos os azimutes a que a força
espiritual de conversão ao cristianismo, e à sua versão ortodoxa, vem
potenciar ao sentido da formação de um vasto império de contiguidade
continental sob a liderança dos czares. A Norte, a Ocidente, a Sul e a Leste,
diversos e muitos são os inimigos e raros os aliados. É uma das mais
gigantescas tarefas geopolíticas de toda a humanidade, no sentido da
ocupação e controlo de um imenso espaço, conduzida com valores próprios
e assegurada por um articulado poder de delimitação de fronteiras até onde
pode chegar a sua influência no confronto com outros modelos imperiais.
O que é a perspectiva dos que se enfrentaram com a Rússia no seu
projecto de progressivo controlo territorial está abundantemente
testemunhado. O que é a súmula das posições russas sobre o seu próprio
percurso encontra também abundantes elementos de prova, sejam eles de
natureza militar, diplomática ou histórica. Alargar essa perspectiva às
dimensões culturais, literárias e religiosas, numa antologia de síntese sobre
o espírito e a ambição russas é o propósito desta colectânea crítica, e bem
ilustrada, a que se abalançaram José Milhazes e João Domingues. Os traços
de continuidade de pensamento entre o período anterior a 1917, a época
soviética e a etapa posterior à queda do comunismo demonstram como, por
vezes, as grandes distanciações doutrinais, por motivos ideológicos, não
escondem a força e o peso dos arquétipos comuns, enraizados nas mesmas
fontes, mas com outras semânticas.
Prevaleceram e prevalecem na Rússia factores que favorecem a
perspectiva autoritária, nacionalista e ortodoxa sobre a visão liberal
democrata da Europa Ocidental e dos Estados Unidos da América,
estruturando tendências para a formação de um isolacionismo de grande
espaço com acentuada coerência geopolítica. Lidar com a Rússia no
desconhecimento dessa realidade profunda é aventurar-se num terreno de
enorme incerteza. Esta antologia, necessária em língua portuguesa, tem o
mérito de nos ensinar a ver a Rússia com mais nitidez, quer quanto aos seus
objectivos, mesmo quando reduzidos a uma dimensão mais confrontacional,
com as vizinhanças difíceis, quer quanto ao seu espírito de fundo, esse sim
no terreno insondável de grandeza que é o da alma russa, pese embora a
nebulosa dos seus períodos de obscuridade, incerteza e, até, confusão.
Como leitor, estou profundamente agradecido.

Jaime Gama
23 de Agosto de 2017
INTRODUÇÃO

A Antologia do Pensamento Geopolítico e Filosófico Russo foi pensada


para dar ao leitor uma imagem multifacetada das teorias e das práticas que
orientaram o Império Russo, a URSS e a Federação da Rússia nas várias
fases do seu desenvolvimento, bem como para ajudar a compreender mais
profundamente o que levou e leva os dirigentes do maior país do mundo a
agirem de uma ou de outra forma, tanto no interior do país como no campo
da política externa, por via da sua interacção com os povos e culturas
vizinhos.
Não obstante a Rússia ter vivido longos períodos – mais precisamente a
maior parte da sua existência – em regimes de pensamento único, isso não
impedia a discussão dos seus destinos, aberta ou clandestinamente, no
interior do país ou no estrangeiro, sobre as vias do desenvolvimento
político, económico, social, ideológico, etc.
Estamos conscientes de que se trata de uma tarefa impossível tentar reunir
num só livro textos de pensadores russos que espelhem de forma completa e
cabal as suas reflexões sobre problemas fulcrais do passado e do presente
do seu país, acerca da relação da Rússia com o mundo, sobre a correlação
entre o desejo de assimilar os valores espirituais e culturais universais e a
vontade natural de manter a sua identidade nacional e histórica. Afinal,
estamos perante um país com quase mil anos de uma história muito intensa.
Porém, fizemos uma selecção com vista a desenhar um quadro variado e
multicolor desse pensamento não só porque ele, directa ou indirectamente,
está presente na vida intelectual e política internacional mas também, e
principalmente, porque este problema merece particular atenção em
períodos de crise, de viragem na vida da sociedade russa, quando surge a
necessidade de proceder a transformações radicais das estruturas
económicas, sociais, políticas e ideológicas, quando se coloca a questão da
via de desenvolvimento do país. E a Rússia encontra-se hoje num desses
períodos fulcrais de procura do seu lugar no mundo.
Isto é tanto mais importante quanto se atravessa um momento no qual
todo o mundo se encontra numa fase de transição e a Rússia, em concreto,
pretende desempenhar um papel fulcral nas transformações de âmbito
internacional. Tendo em conta as dimensões do próprio país e a sua situação
geográfica entre a Europa e a Ásia, os dirigentes russos há muito que
tentam reivindicar para si o estatuto de um dos pólos do desenvolvimento
mundial, tendo-o conseguido entre o fim da Segunda Guerra Mundial
(1945) e o termo da União Soviética. Presentemente, defendendo um
mundo multipolar, pretendem que o seu país seja um dos novos pólos de
atracção, um dos jogadores decisivos no complexo xadrez internacional.
Para alcançar esse objectivo, os actuais governantes russos procuram
respostas a muitas perguntas olhando para o passado. Esse singular facto,
por si só, dá particular relevância, se quisermos compreender a sua maneira
de pensar, ao estudo das várias escolas filosóficas e geopolíticas da Rússia.
Este estudo, no entanto, enfrentou alguns obstáculos, sendo de sublinhar
o modo como se formaram as camadas sociais, cujos representantes
estiveram envolvidos na discussão dos citados problemas, a excessiva
concentração polémica das diferentes visões, as particularidades da forma
de pensamento dos participantes na disputa, a influência de concepções
oficiais impostas a partir de cima, etc.
Tudo isso levou à formação de estereótipos bastante inflexíveis de
pensamento, cujos traços mais característicos são a tendência para a
simplificação do problema e para tentativas de resolvê-lo no quadro de um
esquema previamente estabelecido, construído em disposições apriorísticas.
Nuns casos, trata-se da tese da unidade do czar e do povo como principal
particularidade da história russa (presentemente isto manifesta-se na
máxima «A Rússia é Putin»); noutros casos, de concepções predefinidas de
progresso e da reacção a ele e, noutros ainda, trata-se da avaliação das
relações entre a Rússia, por um lado, e a Europa e a Ásia, por outro, que
advém da teoria da luta de classes, da tomada em conta das perspectivas da
revolução mundial.
É de salientar que a discussão destes problemas não se ficou, nem fica,
pelos gabinetes universitários, pelos salões de eslavófilos e ocidentalistas,
pelos paços dos mosteiros, mas continua no centro das atenções da opinião
pública, reflectindo-se nas disputas sobre a política interna e externa da
Rússia, dependendo a intensidade da discussão do período que o país
atravessa.
Aqui é necessário assinalar uma particularidade importante. Ao contrário
da China e do Japão medievais, a Rússia nunca se isolou face aos seus
vizinhos e ao mundo externo em geral, mantendo contactos mais ou menos
intensos com a Europa e com a Ásia, dependendo do estado das relações
com os Estados de um ou de outro continente.
Em geral, é necessário constatar que as relações com a Europa sempre
foram mais intensas, salvo, talvez, durante o período de ocupação tártaro-
mongol, mas conflituosas na maior parte do tempo. Se o confronto com o
Oriente era cada vez menor à medida que desapareciam os antigos
adversários, este mantém-se até hoje com maior ou menor intensidade com
o Ocidente, atingindo níveis perigosos. Claro que a existência de um Estado
gigante como é o russo, com pretensões a desempenhar um papel por vezes
superior ao seu poderio económico nos assuntos europeus, causa
preocupação nos países do continente europeu. Mas alguns analistas russos
consideram que isso se deve a preconceitos provocados pela ignorância, a
ideias deformadas sobre os objectivos da política externa do Estado russo
sobre o carácter, o mundo espiritual e o nível cultural dos povos que o
povoam.
Todavia, a política externa dos dirigentes russos parece confirmar esses
receios, nomeadamente no antigo espaço soviético. Por isso, não se pode
afirmar que foram encontradas todas as respostas que surgem na discussão
sobre o lugar da Rússia entre o Ocidente e o Oriente. A humanidade não se
tornou mais humana e segura. As velhas contradições foram substituídas
por novas e o futuro é incerto.
Por fim, cabe realçar a diversidade técnica com a qual foi necessário
trabalhar. Abarcámos estilos de escrita tão diversos como aqueles que eram
regra no primeiro século do ano 1000 d. C. e os que actualmente são
vigentes. Sempre que possível procurou-se a fonte mais fidedigna dos
autores, traduzindo directamente da língua russa e francesa. Pese o
«pensamento de época», procurou-se, sem deturpar as ideias dos autores,
conferir um corpo lógico e fluido aos pensamentos manifestados, de modo a
não comprometer a linha do tempo nem as inevitáveis mutações nas
diversas linhas de pensamento.
Esta publicação, não sendo exaustiva nem pretendendo sê-lo, visa ajudar
a compreender o pensamento russo tanto no passado como no presente, bem
como os motivos, sejam eles de ordem política, cultural, étnica ou religiosa,
que levam os actuais dirigentes russos a tomarem umas ou outras decisões
estratégicas.
Naturalmente, e perante um tão longo período de tempo e um largo leque
de pensadores, alguns dos leitores poderão não estar de acordo com a nossa
selecção, considerando que deveríamos ter escolhido outros pensadores ou
outros textos. Estarão, ipso facto, no seu direito.

José Milhazes
João Domingues
CAPÍTULO I

A ORIGEM DO PENSAMENTO RUSSO

O aparecimento de fontes escritas que nos permitem estudar o início do


pensamento russo está ligado à conversão da Rus de Kiev ao Cristianismo,
em 988.
Isto não significa, porém, que os povos que antes habitavam o Extremo
Leste da Europa vivessem na escuridão cultural total. O facto é que as
primeiras fontes escritas que chegaram até nós datam precisamente do
período em que os príncipes de Kiev optaram pela religião oficial do
Império Bizantino: o Cristianismo Ortodoxo.
Entre essas primeiras obras está A Crónica dos Anos Passados, atribuída
a Nestor, monge do Mosteiro de Petcherski, em Kiev. A cópia mais antiga é
datada do início do século XII, mas, segundo os especialistas, estes anais
podem ser uma colectânea que reúne textos escritos anteriormente. O autor
desta obra pretende responder a várias perguntas colocadas no início: «Qual
a origem da terra russa, quem foi o primeiro a reinar em Kiev e como
nasceu a terra russa?»
Nestor, tal como os cronistas medievais do mundo cristão, encontra as
raízes dos Eslavos na Bíblia, mais precisamente em Jafé, um dos três filhos
de Noé, mas concentra a sua principal atenção na escolha da religião por
parte do príncipe Vladimir (980-1015), nas razões que o levaram a optar
pelo Cristianismo de Bizâncio. O seu baptismo abriu a porta à união da
dinastia dos Rurique com a casa imperial bizantina através do casamento de
Vladimir com a princesa Ana, irmã de Vassili II, imperador de Bizâncio.

Nome: Nestor, o Cronista

Data e local de nascimento e de morte: 1056, Kiev, Principado de Kiev-


1114, Kiev, Principado de Kiev.

Breve resenha biográfica: Monge no Mosteiro de Kiev-Petchersk, é


considerado um dos primeiros cronistas russos e foi canonizado pela Igreja
Ortodoxa. Os seus dados biográficos são extremamente escassos. Ter-se-á
dedicado à vida monástica aos 17 anos e quando chegou ao mosteiro já
seria homem de alguma erudição. Foi um dos primeiros pensadores a
desenvolver a ideia da providência cristã, bem como o princípio da feroz
oposição do princípio espiritual e material e um acérrimo defensor do
ascetismo e da não-ganância na vida monástica.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: A obra


mais relevante de Nestor, escrita entre 1112 e 1113, é A Crónica dos Anos
Passados, que tem por objectivo explicar o «nascimento» da Rússia,
integrando-a na história mundial e na história da salvação da humanidade.
Segundo Nestor, a história da Rússia, que é apresentada através do prisma
religioso, é uma luta entre o bem e o mal, do bem eterno da alma humana
contra a tentação demoníaca das forças do mal.
Para elaborar as crónicas, Nestor recorre a inúmeras fontes históricas,
nomeadamente crónicas anteriores, lendas, registos do mosteiro, crónicas
bizantinas, colectâneas de História, relatos de mercadores, guerreiros e
viajantes. O mérito de Nestor reside no facto de ter compilado, processado e
escrito um documento que reúne os mais importantes momentos dos
primórdios da história russa, destacando-se acontecimentos como o
Baptismo da Rus, a criação do alfabeto cirílico por São Cirilo e São
Metódio, os primeiros metropolitas da Igreja Ortodoxa, bem como a
fundação do Mosteiro de Kiev-Petchersk e os seus primeiros habitantes.
Contudo, A Crónica dos Anos Passados não é exclusivamente história
religiosa ou civil, mas sim a história do povo russo, da nação, uma reflexão
acerca da consciência russa, sobre a percepção do mundo pelos Russos,
acerca do destino e da compreensão do mundo dos homens daqueles
tempos. Não se trata, assim, apenas de uma enumeração de acontecimentos
marcantes ou da descrição do quotidiano, mas sim de reflexões sobre o
lugar de um jovem povo russo no mundo, levantando questões como: De
onde vimos? O que nos torna belos? O que nos distingue de outros povos?
É a estas questões que Nestor tenta dar resposta na sua obra.
A Crónica dos Anos Passados

Ano de 6494 (985). E os Búlgaros de fé muçulmana chegaram e


disseram: «Tu, Príncipe, és sábio e sensato, mas não conheces a lei. Crê na
nossa lei e curva-te perante Maomé.» E Vladimir perguntou: «Qual é a
vossa fé?» Eles responderam: «Cremos em Deus e Maomé assim nos
ensina: fazer a circuncisão, não comer porco, não beber vinho, mas depois
da morte pode fornicar-se as mulheres. Maomé dará a cada um 70 belas
esposas e escolherá uma entre elas, a mais bela, e colocará nela a beleza de
todas; e essa será a sua esposa. Aqui deverá entregar-se a toda a fornicação.
Quem for desgraçado neste mundo também o será noutro», e disseram
outras mentiras que até dá vergonha escrevê-las. Vladimir escutou-os, já
que ele próprio gostava de mulheres e de todo o tipo de fornicação. Por
isso, escutou-os com gosto. Mas cá está o que lhe desagradou: a circuncisão
e a abstinência face à carne de porco, e sobre a bebida, pelo contrário, foi o
que disse: «Na Rus existe a alegria de beber e não podemos existir sem
isso.» Os estrangeiros de Roma chegaram depois e disseram: «Chegamos
enviados pelo Papa», e dirigiram-se a Vladimir: «O Papa diz-te assim: “A
tua terra é como a nossa, mas a vossa fé não se parece com o nosso credo,
pois a nossa fé é a luz. Nós imploramos a Deus, que criou o céu e a terra, as
estrelas e a Lua, e a tudo que respira. Mas os vossos deuses são
simplesmente madeira”.» Vladimir questionou-os: «Em que consiste o
vosso mandamento?» E eles responderam: «Mensagem pela força: “se
alguém bebe ou come, tudo é por glória de Deus”, como disse o nosso
mestre Paulo.» E disse Vladimir aos estrangeiros: «Voltem para o sítio de
onde vieram, pois os nossos pais não aprovariam isso.» Tendo ouvido isso,
vieram os judeus de Khazar e disseram: «Ouvimos dizer que os Búlgaros e
os cristãos tentaram, cada um, ensinar-te a sua fé. Os cristãos crêem naquele
que nós crucificámos e nós acreditamos no Deus único de Abraão, Isaac e
Jacob.» E Vladimir perguntou: «Que lei é a vossa?» Eles responderam:
«Circuncisão, não comer carne de porco nem de coelho e cumprir o
sábado.» E ele perguntou: «Onde é a vossa terra?» Eles responderam: «Em
Jerusalém.» E ele perguntou: «É exactamente aí?» E eles responderam:
«Zangou-se Deus com os nossos pais e disseminou-nos por diferentes
países devido aos nossos pecados e deu a nossa terra aos cristãos.» Perante
isso, disse Vladimir: «Como podeis ensinar a outros, se vós próprios fostes
renegados por Deus e disseminados? Se Deus vos amasse a vós e à vossa
lei, não teriam sido disseminados por terras alheias. Ou também nos
desejam isso?»
Depois, os Gregos enviaram um filósofo a Vladimir que dizia assim:
«Ouvimos dizer que os Búlgaros chegaram e incitaram-te a aceitar a sua fé.
A sua fé profana, o céu e a terra, e eles são malditos acima de todas as
pessoas, assemelham-se aos habitantes de Sodoma e Gomorra, sobre quem
Deus atirou uma pedra ardente e os afogou. Também a eles os aguarda o dia
da sua ruína, quando vier Deus e julgar todos os povos e destruir todos os
que cometerem ilegalidades e os que fazem mal. Ao se lavarem vertem a
mesma água para a boca, com ela esfregam a barba e pensam em Maomé.
Também as suas mulheres fazem a mesma imundice, mas ainda maior…»
Tendo ouvido isso, Vladimir cuspiu para a terra e disse: «Esse assunto é
impuro.» O filósofo disse: «Ouvimos também que vieram até vós desde
Roma e ensinaram a sua fé. A sua fé distingue-se um pouco da nossa:
servem com o pão ázimo, ou seja, com a hóstia, não como Deus mandou.
Ele ensinou os apóstolos, havendo tomado o pão, o seguinte: “Este é o meu
corpo partido para vós…”. Da mesma forma, tomou o cálice e disse: “Este é
o meu sangue do Novo Testamento. Os que não fazem isso não crêem
correctamente”.» Pois disse Vladimir: «Os Judeus vieram a mim e disseram
que os Alemães e os Gregos crêem naquele que eles crucificaram.» O
filósofo respondeu: «Em verdade cremos naquele…, os seus profetas
predisseram que nasceria Deus e outros que será crucificado e sepultado,
mas ao terceiro dia ressuscitará e ascenderá aos céus. A uns profetas
espancavam e a outros matavam. Quando se cumpriram as suas profecias,
quando Ele desceu à terra, Ele foi crucificado e acabou por ressuscitar e
ascendeu aos céus. Deus esperou pelo seu arrependimento durante 46 anos,
mas não se arrependeram, e enviou contra eles os Romanos; e destruíram as
suas cidades e eles próprios dispersaram-se por outras terras, onde também
vivem em escravidão.» Vladimir perguntou: «Porque desceu Deus à terra e
aceitou tal sofrimento?» O filósofo respondeu: «Se quiseres ouvir, contar-
te-ei, por ordem e desde o início, porque desceu Deus à terra.» Vladimir
disse: «Gostaria de ouvir.» E o filósofo começou a dizer assim: «No
princípio, no primeiro dia, Deus criou o céu e a terra. Ao segundo dia, criou
a terra entre as águas. No mesmo dia, dividiram-se as águas, sendo que
metade ficou na terra e outra desceu para debaixo da terra. Ao terceiro dia,
criou o mar, os rios, as nascentes e as sementes. Ao quarto, o Sol, a Lua e as
estrelas, e Deus adornou o céu. O primeiro anjo, o ancião da hierarquia
angelical, viu tudo isso e pensou: “Descerei à terra e me apoderarei dela, e
serei semelhante a Deus, e colocarei o meu trono nas nuvens do norte.” E
no mesmo instante foi expulso dos céus e atrás dele caíram todos os que
seguiam as suas ordens, o décimo nível da hierarquia angelical. O inimigo
tinha nome, Satã, e Deus colocou o ancião Miguel no seu lugar. Satanás, ao
ter-se enganado na sua intenção e tendo perdido a glória da sua primazia,
denominou-se inimigo de Deus. Depois, ao quinto dia, Deus criou as
baleias, os peixes, os répteis e os pássaros. Ao sexto dia, Deus criou o gado
bovino e ovino, os répteis terrestres e criou também o homem. Ao sétimo
dia, ou seja, no sábado, Deus descansou da sua obra. E Deus colocou o
paraíso no Oriente, no Éden, e introduziu nele o homem que criou e ao qual
mandou comer frutos de todas as árvores e não comer os de uma árvore, a
do conhecimento do bem e do mal. E Adão estava no paraíso, viu a Deus e
glorificou-o quando os anjos o glorificaram. E deu sono a Adão, e Adão
dormiu. E Deus tirou uma costela de Adão e criou-lhe uma esposa, e
introduziu-a no paraíso onde estava Adão, e Adão disse: “Está aqui o osso
do meu osso e a carne da minha carne. Ela se chamará mulher.” E Adão deu
o nome ao gado e aos pássaros, às feras e aos répteis, e, inclusivamente, deu
o nome aos próprios anjos. E Deus submeteu a Adão as feras e o gado, e
possuía-os a todos e todos o escutavam. O Diabo, ao ver como Deus honra
o homem, começou a invejá-lo, transformou-se em serpente, chegou-se
junto de Eva e disse-lhe: “Porque não comes da árvore que está no meio do
paraíso?” E a mulher disse à serpente: “Deus disse: Não comais, se
comerdes morrereis de morte.” E a serpente disse à mulher: “Não morrerão
de morte, pois Deus sabe que no dia em que comerem desta árvore os
vossos olhos se abrirão e serão como Deus, tendo conhecido o bem e o
mal.” E a mulher viu que a árvore era comestível, retirou um fruto e comeu
um fruto e o deu ao seu marido, e comeram ambos, e abriram-se os seus
olhos e compreenderam que estavam nus e costuraram roupas de folhas. E
Deus disse: “Maldita seja a terra pelas tuas acções e terás tristezas todos os
dias da tua vida.” E Deus, o Senhor, disse: “Quando esfregarem as mãos e
comerem da árvore da vida, viverão eternamente.” E Senhor Deus expulsou
Adão do paraíso. E ele instalou-se frente ao paraíso, a chorar e a trabalhar a
terra, e Satanás alegrou-se com a maldição da terra. Essa é a nossa primeira
queda e o preço amargo que pagámos, a queda da vida angelical. Adão
gerou Caim e Abel. Caim era lavrador e Abel era pastor. E Caim trazia os
frutos da terra em sacrifício a Deus e Deus não aceitou as suas dádivas.
Abel trouxe um cordeiro primogénito e Deus aceitou as dádivas de Abel.
Satanás entrou em Caim e começou a incitá-lo a matar Abel. E Caim disse a
Abel: “Vamos ao campo.” E Abel obedeceu-lhe, e quando saíram Caim
lançou-se contra Abel e quis matá-lo, mas não sabia como fazê-lo. E
Satanás disse-lhe: “Toma uma pedra e golpeia-o.” Ele agarrou numa pedra e
matou Abel. E Deus disse a Caim: “Onde está o teu irmão?” Ele respondeu:
“Por acaso sou o guardião do meu irmão?” E Deus disse: “O sangue do teu
irmão clama por mim, irás gemer e tremer até ao final da tua vida.” Adão e
Eva choraram e o Diabo alegrou-se, dizendo: “A quem Deus honrou,
obriguei eu a separar-se de Deus e agora atraí para ele a desgraça.” E
choraram por Abel durante 30 anos, e não se reduziu a pó o seu corpo, e
não souberam sepultá-lo. E por ordem de Deus vieram a voar dois pássaros.
Um deles morreu. Outro cavou um buraco e colocou o morto nele e o
sepultou. Tendo visto isso, Adão e Eva cavaram um buraco, nele puseram
Abel e sepultaram-no, chorando. Quando Adão tinha 230 anos gerou Set e
duas filhas, a uma tomou-a Caim e a outra Set e a partir daí começaram as
pessoas a procriar e a multiplicar-se pela terra. E não conheceram a quem os
criou, fornicaram e cometeram todo o tipo de impurezas, e assassinatos, e
inveja, e viviam as pessoas como gado. Somente um, Noé, foi justo no seio
da raça humana. E ele gerou três filhos: Sem, Cam e Jafet. E Deus disse:
“Não permanecerá o meu espírito entre as gentes”; e mais: “Destruirei o
que criei, do ser humano ao gado.” E o Senhor disse a Noé: “Constrói uma
arca com o comprimento de 300 cúbitos, uma largura de 80 e uma altura de
30.” Os Egípcios chamam os cúbitos de sazhen. Noé construiu a sua arca
durante cem anos, e quando Noé informou as pessoas de que haveria um
dilúvio, riram-se dele. Quando acabou a arca, o Senhor disse a Noé: “Entra
nela tu, a tua mulher, os teus filhos, as tuas noras, e mete nela um casal de
todas as feras, e de todos os pássaros, e de todos os répteis.” E Noé meteu
quem Deus mandou. E Deus enviou o dilúvio à terra, afogou-se tudo que
era vivo, e a arca navegava na água. Quando a água baixou, Noé, os seus
filhos e a sua mulher saíram. Por eles se povoou a terra. E houve muita
gente, e falavam numa língua e diziam uns aos outros: “Vamos construir
uma torre até ao céu.” Começaram a construir e Nemrod era o seu ancião. E
Deus disse: “Multiplicaram-se as pessoas e os seus projetos são
presunçosos.”. E Deus desceu e dividiu a sua fala em 72 línguas. Só a
língua de Adão não foi tirada a Heber; só ele ficou afastado do seu louco
intento e disse assim: “Se Deus tivesse ordenado às pessoas construir uma
torre até ao céu, então o próprio Deus o teria ordenado através da sua
palavra, da mesma forma que Ele criou o céu, a terra, e tudo que é visível e
invisível.” Por isso não se alterou a sua língua; os Hebreus descenderam
dele. Foi assim que as pessoas se dividiram em 71 línguas e se dispersaram
por todos os países, e cada país adoptou a sua moral. Seguindo os
ensinamentos do diabo, fizeram sacrifícios a bosques, aos prados e rios e
não conheciam Deus. Desde Adão ao dilúvio passaram 2242 anos, e desde
o dilúvio à divisão das gentes passaram 529 anos. Depois, o diabo levou as
pessoas a um desvio maior e começaram a construir ídolos: uns de madeira,
outros de cobre, os terceiros de mármore, e alguns de ouro e prata.
Imploravam-lhes e levavam-lhes os seus filhos e as suas filhas, e os
sacrificavam perante eles e foi profanada toda a terra. Sarug foi o primeiro
que começou a fazer ídolos, ele criou-os em homenagem aos mortos: a
alguns antigos reis, ou a pessoas valentes e magos e às mulheres adúlteras.
Sarug gerou Teraj. Teraj gerou três filhos: Abraão, Najor e Harán. Teraj
fazia ídolos, tendo aprendido isso com o seu pai. Abraão, ao se aperceber da
verdade, olhou para o céu e viu as estrelas e o céu e disse: “É verdadeiro
esse Deus que criou o céu e a terra, mas o meu pai engana as pessoas.” E
Abraão disse: “Vou pôr à prova os deuses do meu pai.” E dirigiu-se ao seu
pai: “Pai! Porque enganas as pessoas fazendo deuses de madeira? Este é o
Deus que criou o céu e a terra.” Abraão, agarrando no fogo, queimou os
ídolos do templo. Harán, irmão de Abraão, vendo isso, e venerando os
ídolos, quis retirá-los, mas ardeu ele nesse mesmo instante e morreu antes
do seu pai. Antes disso, um filho não morria antes do pai, mas sim o pai
antes do filho. E desde então os filhos começaram a morrer antes dos pais.
Deus amava Abraão e disse-lhe: “Sai da casa do teu pai para a terra que te
mostrarei e farei de ti um grande povo e te louvarão as gerações de gentes.”
E Abraão agiu como Deus lhe mandou. E Abraão levou o seu sobrinho Lot.
Lot era também seu cunhado e sobrinho, já que Abraão tomou para si Sara,
filha do seu irmão Harán. E Abraão chegou à terra de Canaã, e junto de um
carvalho alto Deus disse a Abraão: “Darei essa terra à tua descendência.” E
Abraão adorou Deus.
Abraão tinha 75 anos quando saiu de Jaran. Sara era estéril e padecia de
infertilidade. E Sara disse a Abraão: “Entra para junto da minha escrava.” E
Sara tomou a Agar e entregou-a ao seu marido. E Abraão entrou para junto
de Agar. Agar concebeu e pariu um filho e Abraão chamou-o Ismael.
Abraão tinha 86 anos quando Ismael nasceu. Depois Sara concebeu e pariu
um filho e chamou-o Isaac. E Deus ordenou a Abraão que realizasse a
circuncisão do adolescente e fez-se ao oitavo dia. Deus amava Abraão e a
sua tribo e chamou-a de seu povo, e ao chamá-la de seu povo separou-o dos
outros. E Isaac chegou à idade da puberdade, e Abraão viveu 175 anos e
morreu e foi sepultado. Quando Isaac tinha 60 anos concebeu dois filhos:
Esau e Jacob. Isaac era mentiroso e Jacob justo. Jacob trabalhou para o seu
tio durante sete anos, conseguindo a sua filha mais nova, e Labão, seu tio,
não lha deu tendo dito assim: “Fica com a mais velha.” E deu-lhe Lea, a
mais velha, e quanto à outra disse-lhe: “Trabalha mais sete anos.” Ele
trabalhou mais sete anos por Raquel, e assim tomou para si as duas irmãs e
teve com elas oito filhos: Ruben, Simão, Levi, Judá, Isacar, Zabulão, José e
Benjamim, e das duas escravas: Dan, Neftali, Gad e Aser. E os Hebreus
descenderam deles. Jacob, quando tinha 130 anos, dirigiu-se para o Egipto
com toda a sua família, totalizando 75 pessoas. Ele viveu 17 anos no Egipto
e morreu, a sua descendência viveu na escravatura 400 anos. Passados estes
anos, os Judeus reforçaram-se e multiplicaram-se, mas os Egípcios
oprimiram-nos como escravos. Naquele tempo nasceu entre os Hebreus
Moisés, e os magos disseram ao rei egípcio: “Nasceu um menino entre os
Judeus que arruinará o Egipto.” E nesse mesmo instante o rei ordenou que
fossem atirados ao rio todos os meninos hebreus que nasceram. A mãe de
Moisés, assustada com esse aniquilamento, pegou no menino, colocou-o
numa cesta e levando-a colocou-a à beira do rio. Então Termuti, filha do
Faraó, chegou para se banhar e viu o menino que chorava, pegou nele, teve
pena dele e deu-lhe o nome de Moisés e criou-o. O menino era bonito e,
quando fez os quatro anos, a filha do Faraó levou-o ao seu pai. O Faraó ao
ver o menino sentiu amor por ele. Moisés agarrando-se ao pescoço do rei
deixou cair a coroa e pisou-a. Um mago, tendo visto isso, disse ao rei: “Oh
rei, destrói esse menino, se não o destruíres ele destruirá todo o Egipto.” O
rei não só não lhe prestou atenção, como ordenou não matarem os meninos
judeus. Moisés fez-se homem e tornou-se num grande homem na casa do
Faraó. Quando o Egipto teve outro rei, os nobres começaram a invejar
Moisés. Moisés, ao matar um egípcio que ofendeu um judeu, fugiu do
Egipto e chegou à terra de Madian, e quando ia pelo deserto, soube do anjo
Gabriel a génese deste mundo, do primeiro homem e do que aconteceu
depois do dilúvio, e da mistura de línguas e quem quantos anos viveu e do
movimento das estrelas e do seu número, e do tamanho da terra e todo o
tipo de sabedoria. Depois Deus apareceu a Moisés em forma de espinheiro
em chamas e disse-lhe: “Eu vi a desgraça do meu povo no Egipto e desci
para libertá-los dos Egípcios e tirá-los desta terra. Vai ter com o Faraó e diz-
lhe: ‘Deixa partir Israel para que durante três dias levem a cabo uma
cerimónia em homenagem a Deus. Se não te escutar o rei egípcio, então
derrotá-lo-ei com todos os meus milagres’.” Quando Moisés chegou, o
Faraó não o ouviu e Deus lançou sobre ele dez pragas: primeiro os rios
ensanguentados, em segundo lugar os sapos, em terceiro os mosquitos, em
quarto os piolhos e as moscas, em quinto a peste do gado, em sexto
abcessos, em sétimo o granizo, em oitavo as lagostas, em nono a escuridão
durante três dias e em décimo a peste nas pessoas. Deus enviou-lhes dez
pragas porque durante dez meses afogaram meninos judeus. Quando a peste
começou no Egipto, o Faraó disse a Moisés e a seu irmão Aarão: “Saiam o
quanto antes!” Moisés, tendo reunido os Judeus, partiu do Egipto. E Deus
conduziu-o através do deserto, até ao Mar Vermelho, e uma coluna de fogo
de noite, e uma de fumo durante o dia iam à sua frente. O Faraó ao ouvir
que as pessoas fugiam foi atrás deles e encurralou-os no mar. Quando os
Judeus viram isso gritaram a Moisés: “Porque nos conduziste para a
morte?” E Moisés chamou a Deus e o Senhor disse: “O que me imploras?
Bate com o bastão no mar.” E Moisés assim fez e abriram-se as águas em
duas e os filhos de Israel entraram no mar. Tendo visto isso, o Faraó correu
atrás deles. Os filhos de Israel atravessaram o mar por terra. E quando
saíram para a costa, fechou-se o mar sobre o Faraó e os seus militares. E
Deus amava Israel e eles foram desde o mar três dias pelo deserto e
chegaram a Mara. A água era amarga aqui e as pessoas começaram a
murmurar contra Deus e o Senhor mostrou uma madeira a Moisés e ele
colocou-a na água e tornou-se mais agradável a água. Depois murmuraram
novamente contra Moisés e Aarão: “Estávamos melhor no Egipto, onde
comíamos carne, cebola e pão até nos fartarmos.” E o Senhor disse a
Moisés: “Ouvi o murmúrio dos filhos de Israel”, e deu-lhes o maná. Depois
deu-lhes a Lei no monte Sinai. Quando Moisés subiu ao monte para ir ter
com Deus, as pessoas derramaram uma cabeça de bezerro e adoraram-na
como a um Deus. E Moisés matou 3000 dessas pessoas. E depois as pessoas
murmuraram novamente contra Moisés e Aarão porque não havia água. E
Deus disse a Moisés: “Golpeia com o ferro na pedra.” E Moisés respondeu:
“E se não der água?” E Deus zangou-se com Moisés porque não enalteceu o
Senhor e ele não entrou na terra prometida por causa do murmúrio das
pessoas, porém levou-os ao monte Pasga e mostrou-lhes a terra prometida.
E Moisés morreu aqui na montanha. E José, filho de Nun, tomou o poder.
Ele entrou na terra prometida, combateu uma tribo cananeia e estabeleceu
no seu lugar os filhos de Israel. Quando José morreu, ficou no lugar dele o
juiz Judá; e havia outros 14 juízes. Naquele tempo, os Judeus esqueceram
Deus que os tirou do Egipto e começaram a servir o diabo. E Deus zangou-
se e entregou-os aos forasteiros para serem pilhados. Quando começaram a
arrepender-se, Deus perdoou-os; e quando os libertou, novamente se
desviaram e começaram a servir demónios. Depois Elias, o sacerdote, foi
juiz, e depois o profeta Samuel. E as gentes disseram a Samuel: “Dá-nos um
rei.” E Deus zangou-se com Israel e deu-lhes o rei Saul. Porém, Saul não
quis submeter-se à lei de Deus e o Senhor escolheu David e colocou-o
como rei de Israel, e David agradou a Deus. A este David, Deus prometeu
que Deus nascerá na sua tribo. Ele foi o primeiro a profetizar a encarnação
de Deus, dizendo: “De um ventre te gerarei antes da estrela da manhã.”
Assim ele profetizou 40 anos e morreu. A seguir a ele profetizou seu filho
Salomão, que construiu o templo de Deus e o chamou de Santo dos Santos.
E ele foi sábio. Mas no final pecou; reinou 40 anos e morreu. Após
Salomão reinou o seu filho Roboam. Nos seus tempos o reino judeu
dividiu-se em dois: um era Jerusalém e outro Samária; ele fez dois bezerros
de ouro e colocou um numa colina em Belém e outro em Dana, tendo dito:
“Cá estão os teus deuses Israel!” E o povo adorava-os e esqueceu-se de
Deus. Assim, também em Jerusalém se esqueceram de Deus e começaram a
adorar Baal, ou seja, ao deus da guerra, por outras palavras a Aares. E
esqueceram o Deus dos seus pais. E Deus começou a enviar-lhes profetas.
Os profetas começaram a acusá-los de excessos e da sua servidão a ídolos.
E eles, os acusados, começaram a maltratar os profetas. Deus encolerizou-
se com Israel e disse: “Repudio-os, e chamarei a outra gente que me será
obediente. Se pecarem também, não me lembrarei dos seus excessos.” E
começou a enviar profetas, dizendo-lhes: “Profetizem sobre o repúdio dos
Judeus e o reconhecimento de novos povos.”
Oseas foi o primeiro que começou a vaticinar: “Acabarei com a casa de
Israel…Partirei o arco de Israel… Não terei mais compaixão da casa de
Israel. De forma alguma a perdoarei”, disse o Senhor. “E serão vagabundos
entre nações.” Jeremias disse: “Mesmo que se levantem Moisés e Samuel,
não terei piedade deles.” E o mesmo Jeremias disse: “Assim disse o Senhor:
Eu jurei pelo meu glorioso nome, de que o meu nome não será proferido
por lábios judeus.” Ezequiel disse: “Assim fala o Senhor Adonais: Eu vos
espalharei, e o resto que de vós sobrar disseminarei aos quatro ventos… Já
que profanaste o meu santuário com todos os teus atos detestáveis e todas as
vossas abominações; Eu te desprezarei e o meu olho não perdoará.”
Malaquias disse: “Assim fala Senhor: Já não tenho benevolência
convosco… Já que do Oriente ao Ocidente se glorifica o meu nome entre
povos, e em todo o lado lançam incenso em meu nome bem como a
sacrifícios de animais puros, é assim tão grande o meu nome entre povos.
Por isso serão dispersados entre todos os povos.” O grande Isaías disse:
“Assim fala o Senhor: Colocarei a minha mão sobre ti, te levarei e trarei e
te dispersarei e não te voltarei a reunir.” E esse profeta disse mais: “Sinto
ódio face às vossas festas e ao começo dos vossos meses e não aceito os
vossos sábados.” O profeta Amos disse: “Escutem a palavra do Senhor:
Farei o luto por vós. A casa de Israel caiu e não se levantará mais.”
Malaquias disse: “Assim fala o Senhor: Vos enviarei uma maldição e
amaldiçoarei as vossas bênçãos… e as destruirei e não estarão convosco.” E
os profetas vaticinaram muito sobre o seu repúdio.
Além disso, Deus ordenou aos profetas que vaticinassem sobre a
predestinação do seu lugar a outros povos. E Isaías começou a gritar,
dizendo assim: “De mim procede a lei e o meu juízo é a luz dos povos. A
minha verdade chegará rápido e se elevará… e no meu músculo confiam os
povos.” Jeremias disse: “O Senhor disse assim: Farei com a casa de Judá
um novo convénio… Dando-lhes leis segundo o seu entendimento, e as
escreverei nos seus corações, e serei Deus deles, e eles serão o meu povo.”
Isaías disse: “O que foi já passou e erguerei o novo. Antes de o erigir, ele
foi-vos revelado. Cantem ao Senhor um novo cantar.” “Aos meus escravos
será dado um novo nome e serão benditos por toda a terra.” “A minha casa
se chamará a casa de oração de todos os povos.” Esse mesmo profeta,
Isaías, disse: “O Senhor despirá o seu santo braço perante os olhos de todos
os povos e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus.”
David disse: “Louvem ao Senhor todos os povos. Louvem todos os povos.”
Deus amou assim a nova gente e revelou que Ele mesmo descerá até eles,
aparecerá como pessoa em carne e redimirá, através do seu sofrimento, o
pecado de Adão. E começaram a vaticinar sobre a encarnação de Deus, e
em primeiro foi David: “O Senhor disse ao meu Senhor: Senta-te à minha
direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés.”. E ainda
mais: “O Senhor disse-me: Tu és meu filho. Gerei-te hoje.” Isaías disse:
“Nem embaixador, nem mensageiro, será o próprio Deus, chegando, que
nos salvará.” E mais: “Nascerá uma criança, sobre cujos ombros recairá a
soberania, e se chamará o Conselheiro maravilhoso, Deus forte, Pai eterno,
Príncipe da paz, para que o seu domínio cresça e para que não acabe a paz
sobre o trono de David. O seu poder é grande e o seu mundo não tem fim.”
E mais: “Uma virgem o conceberá no seu ventre e lhe darão no nome de
Emanuel.” Miqueias disse: “Tu, Belém, casa de Eufrates, por acaso não és
tu grande entre milhares de judeus? De ti, pois, sairá esse que deve ser
soberano de Israel e cuja origem será de dias antigos. Então, ele vai
entregar-se, o tempo não gera aqueles que geram, e depois retornará a seus
irmãos que caíram, aos filhos de Israel.” Jeremias disse: “Esse é o nosso
Deus e nenhum outro é comparável a Ele. Ele encontrou todos os caminhos
da sabedoria e os mostrou ao seu servo Jacob… Depois disso Ele apareceu
na terra, vivo entre as gentes.” E mais: “Ele é um homem que sabe que Ele
é Deus? Já que morre como homem.” Zacarias disse: “Não obedeceram ao
meu filho e eu não os escutarei”, disse o Senhor. E Oseas disse: “Assim
disse o Senhor: A minha carne é a deles.”
Vaticinaram também os seus sofrimentos, falando como disse Isaías:
“Piedade à sua alma! Ao seguirem o conselho mau, disseram ‘atemos o
justo’.” E esse profeta disse mais: “Assim disse o Senhor: Eu não me
oponho nem não falarei contra. Entreguei a minha espinha dorsal para
ferirem, e o meu rosto para esbofetearem, e não virei a minha cara de
insultos e cuspo.” Jeremias disse: “Venham, colocaremos madeira na sua
comida e afastaremos a sua vida da terra.” Moisés disse sobre a sua
crucificação: “Vereis a vossa vida a passar frente aos olhos.” E David disse:
“Porque se rebelam os povos?” Isaías disse: “Ele era como a ovelha levada
para o holocausto.” Esdrás disse: “Bendito seja Deus que estende as suas
mãos e salva Jerusalém.”
E David disse sobre a ressurreição: “Levanta-te Deus, julga a terra, já que
Tu herdaste todos os povos.” E mais: “E o Senhor despertou como se fosse
de um sonho.” E mais: “Levantar-se-á Deus e se dispersarão os seus
inimigos.” E mais: “Levantar-se-á o Eterno, oh Deus, levanta a tua mão!”
Isaías disse: “Os que entraram no país da sombra mortal, a luz começará a
brilhar sobre vós.” Zacarias disse: “E tu libertaste os teus presos do fosso
em que não havia água em nome do pacto de sangue.”
E tanto profetizaram sobre Ele e tudo se cumpriu.»
Vladimir perguntou: «Quando se concretizou isso? E concretizou-se
tudo? Ou só agora se cumpre isso?» O filósofo respondeu-lhe: «Tudo isso
cumpriu-se quando Deus encarnou. Como já disse, quando os Judeus
maltratavam os profetas e os seus reis transgrediam as leis, Deus entregou-
os à rapina e foram feitos prisioneiros na Assíria pelos seus pecados e
estiveram aí escravizados durante 70 anos. E depois regressaram à sua terra
e não tinham rei, e os bispos governaram sobre eles até chegar o forasteiro
Herodes, que começou a governar sobre eles.» «Durante o governo deste
último, no ano de 5500, Gabriel foi enviado a Nazaré à Virgem Maria, que
tinha nascido na geração de David, e disse-lhe: “Salvé, cheia de graça, o
Senhor está contigo!” E, destas palavras, ela concebeu no ventre a Palavra
de Deus, e gerou um filho e chamou-o Jesus. E os magos chegaram do
Oriente a Jerusalém dizendo: “Onde nasceu o rei dos Judeus? Vimos a sua
estrela no Oriente e viemos adorá-lo.” O rei Herodes, ao ter ouvido isso,
ficou perturbado, e toda a Jerusalém com ele, chamou os bibliófilos e os
anciãos e perguntou-lhes: “Onde nasceu Cristo?” Eles responderam: “Em
Belém de Judá.” Herodes, tendo ouvido isso, enviou homens ao deserto
instruindo: “Mata todos os meninos até aos dois anos.” Eles partiram e
mataram os meninos. Mas Maria, assustada, escondeu o menino. Depois,
José com Maria pegaram no menino e fugiram para o Egipto, onde
permaneceram até à morte de Herodes. No Egipto, um anjo apareceu a José
e disse: “Levanta-te, toma o menino e a sua mãe e vai à terra de Israel.” E
tendo regressado, instalou-se na terra de Nazaré. Quando Jesus cresceu e
tinha 30 anos começou a fazer milagres e a vaticinar o reino celeste. E
elegeu 12 e os chamou seus discípulos, e começou a fazer grandes milagres:
ressuscitar mortos, limpar os leprosos, curar os coxos, recuperar a vista aos
cegos, e outros milagres grandiosos que os profetas anteriores tinham
vaticinado sobre ele, dizendo: “Aquele curou as nossas enfermidades e
tomou para si as nossas doenças.” E foi baptizado no rio Jordão por João,
mostrando a renovação a novas pessoas. Quando se baptizou, os céus
abriram-se e o Espírito desceu em forma de pomba e a voz disse: “Esse é o
meu filho amado, em quem deposito a minha benevolência.” E enviava os
seus discípulos para anunciarem o reino celeste e o arrependimento para o
perdão dos seus pecados. E começou a cumprir a profecia e a anunciar
como deve sofrer o Filho do Homem, ser crucificado e ressuscitar ao
terceiro dia. Quando Ele ensinava na igreja, os bispos e os bibliófilos
enchiam-se de inveja e queriam matá-lo, e tendo-O prendido, conduziram-
No ao governador Pilatos. Pilatos, sabendo que O tinham conduzido a si
sem culpa quis deixá-lo partir. Eles dirigiram-se a si: “Se deixas este partir,
é porque não és amigo de César.” Então, Pilatos ordenou que O
crucificassem. Eles, tomando Jesus, conduziram-No ao cadafalso e lá O
crucificaram. Uma sombra estendeu-se por toda a terra, da hora sexta até à
nona, e na nona hora Jesus expirou. O véu da igreja rasgou-se em dois e
levantaram-se muitos mortos, aos quais ordenou entrar no paraíso.
Retiraram-No da cruz, colocaram-No no sepulcro, e os Judeus selaram a sua
sepultura e colocaram-lhe guarda, dizendo: “Não vão os discípulos
roubarem-no.” Ele ressuscitou ao terceiro dia. Tendo ressuscitado por entre
os mortos, apareceu aos discípulos e disse: “Ide a todas as terras e ensinai a
todos os povos, baptizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.”
Ele permaneceu com eles durante 40 dias, chegando a eles após a Sua
ressurreição. Após 40 dias, disse para irem ao Monte das Oliveiras e aqui
Apareceu-lhes e Abençoou-os, dizendo: “Fiquem na cidade de Jerusalém,
até Vos trazer a mensagem do meu pai.” E, tendo dito isso, ascendeu aos
céus. Eles adoraram-No. E regressaram a Jerusalém e ficaram sempre na
igreja. Passado 50 dias, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. E
quando receberam a permissão do Espírito Santo, dispersaram-se pelo
mundo ensinando e baptizando com água.
Vladimir perguntou: «Porque nasceu de uma mulher, foi crucificado num
madeiro e baptizou-se com água?» O filósofo respondeu: «Cá está a
explicação. No princípio o género humano pecou através de uma mulher: o
diabo seduziu Adão com Eva, e ficou sem o paraíso, assim Deus vingou-se
também do diabo: através da mulher foi a primeira vitória do diabo, Adão
foi expulso do paraíso por causa da sua mulher; assim, Deus encarnou
através de uma mulher e ordenou aos fiéis que entrassem no paraíso. E foi
crucificado num madeiro porque Adão comeu da árvore e por causa dela foi
expulso do paraíso. Deus aceitou no madeiro os sofrimentos para que
através do madeiro o diabo fosse vencido e os justos se salvassem pela
árvore da vida. E a renovação com a água realizou-se porque em tempos de
Noé, quando se multiplicaram os pecados entre as gentes, Deus provocou o
dilúvio na terra e afogou as pessoas com água; por isso Deus disse também:
“Eu destruí as pessoas com a água, pelos seus pecados, assim limparei
também agora os pecados das pessoas com a água, a água da renovação”; já
que os Judeus se limparam também da perfídia moral egípcia no mar, já que
a água foi a primeira a ser criada, pois foi dito: O Espírito Divino voou
sobre as águas. Por isso, os cristãos continuam a batizar-se com água e
espírito. A primeira transfiguração foi também com água, quando Gedeão
deu o protótipo da seguinte forma: quando um anjo chegou, ordenando que
fosse contra os madianitas, ele, colocando-o à prova, dirigiu-se a Deus, e
tendo colocado um novelo de lã na eira disse: “Se houver orvalho por toda a
terra e a lã estiver seca, então…” E assim foi. Esse foi o protótipo de que
todos os outros países estavam antes, sem orvalho, e os Judeus eram o
novelo, depois caiu orvalho sobre todos os outros países, e que é o santo
batismo, e os Judeus ficaram sem orvalho. E os profetas vaticinaram que a
renovação seria feita através da água. Quando os apóstolos ensinaram pelo
mundo a crer em Deus, nós, os Gregos, aceitamos os seus ensinamentos. O
universo crê nos seus ensinamentos. Deus estabeleceu também o único dia
em que, descendo dos céus, julgará os vivos e os mortos, e dará a cada um
segundo os seus actos: aos justos o reino celestial, de uma beleza
inenarrável, alegria sem fim e a imortalidade eterna; aos pecadores, o
tormento ígneo, vermes que nunca dormem e suplício sem fim. Tais
sofrimentos serão para os que não crêem no nosso Deus Jesus Cristo: se
martirizarão no fogo aqueles que não se baptizarem.»
Tendo dito isso, o filósofo mostrou a Vladimir o véu no qual estava o
assento de julgamento do Senhor, ordenando para a direita os justos, com a
alegria de irem para o paraíso, e para a esquerda os pecadores, a
caminharem para o tormento. Vladimir, tendo suspirado, disse: «Bom para
aqueles que vão para a direita, desgraça daqueles que estão à esquerda.» O
filósofo disse: «Se queres ir para a direita, com os justos, então baptiza-te.»
Isso ficou gravado no coração de Vladimir e ele disse: «Esperarei um
pouco», desejando conhecer todos os credos. E Vladimir deu-lhe muitos
presentes e deixou-o partir com grandes honras.
Ano 6495 (987), Vladimir chamou os seus nobres e os anciãos das
cidades e disse-lhes: «Os Búlgaros vieram e disseram-me: “Aceita a nossa
lei.” Depois vieram os Alemães e gabaram a sua lei. Depois deles chegaram
os Judeus. E, de seguida, chegaram os Gregos, injuriando todas as leis e
elogiando a sua, e falaram muito, desde o princípio do mundo e do génesis
deste mundo. Eles falaram de forma sábia e é maravilhoso escutá-los, e
qualquer um terá gosto em ouvi-los. Eles também fazem relatos do outro
mundo: dizem, se alguém passar para a nossa fé, esse, após a morte, de
novo se levantará e não morrerá por toda a eternidade; se seguires outra lei,
arderás no fogo no outro mundo. O que aconselham? O que respondem?» E
os nobres e anciãos disseram: «Sabe, Príncipe, ninguém injuria o que é seu
e só elogia. Se queres conhecer tudo, tens homens na tua terra: envia-os, e
ficarás a saber como serve cada um e com serve a Deus.» E ao príncipe e a
todos agradou o seu discurso. Escolheram homens famosos e inteligentes
em número de dez e disseram-lhes: «Ide primeiro aos Búlgaros e
experimentai a sua fé.» Eles partiram, e chegando lá viram os seus
detestáveis actos e a adoração nas mesquitas e regressaram à sua terra. E
Vladimir disse: «Ide agora aos Alemães, vejam lá tudo e, a partir daí, ide à
terra grega.» Eles chegaram aos Alemães, viram o seu serviço eclesiástico e
depois chegaram a Bizâncio e apresentaram-se ao imperador. O Imperador
perguntou-lhes: «Porque vieram?» Eles contaram-lhe tudo. Tendo ouvido
isso, o imperador alegrou-se e nesse dia rendeu-lhes grandes honras. No dia
seguinte mandou um mensageiro ao patriarca, dizendo assim: «Os Russos
chegaram para conhecer a nossa fé. Prepara a igreja e o clero e tu mesmo
coloca as vestes sagradas para que eles vejam a glória do nosso Deus.»
Tendo ouvido isso, o patriarca ordenou o clero para que fizesse um serviço
festivo, seguindo o costume e organizando as canções e os coros. Ele foi
com os Russos à igreja e colocou-os no melhor lugar, tendo-lhes mostrado a
beleza da igreja, o canto e o serviço dos bispos, a proximidade dos diáconos
e tendo narrado sobre o serviço do seu Deus. Eles estavam maravilhados.
Admiraram-se e elogiaram o seu serviço. E os imperadores Basílio e
Constantino chamaram-nos e disseram: «Ide para a vossa terra.» E
deixaram-nos partir, com muitos presentes e honras. Eles regressaram à sua
terra. O príncipe chamou os seus nobres e anciãos, e Vladimir disse: «Os
homens que enviámos chegaram. Escutaremos tudo o que lhes aconteceu.»
E dirigiu-se aos recém-chegados: «Falem perante o séquito.» Eles disseram:
«Fomos à Bulgária. Vimos como rezam no templo, ou seja, na mesquita.
Estão em pé sem cinto. Tendo feito uma vénia, sentam-se e olham para um
lado e para outro, como loucos. E não têm alegria, só tristeza e grande
fedor. Não é boa a sua lei. E chegámos aos Alemães e vimos nos seus
templos um serviço diferente, mas não vimos beleza alguma. E logo
chegámos à terra dos Gregos e nos conduziram ao lugar onde servem a
Deus, e não sabíamos se estávamos no céu ou na terra, já que não existe na
terra espectáculo de tal beleza que nem sabemos bem como narrá-lo.
Apenas sabemos que aí estava Deus connosco e que o serviço era melhor do
que em qualquer outro país. Nós não podemos esquecer aquela beleza, já
que qualquer pessoa que goste de doce, não tomará depois o amargo.
Assim, também nós não podemos mais ficar aqui.» Os nobres disseram: «Se
a lei grega fosse má, a tua avó Olga não a teria aceitado, e ela era a mais
sábia entre as pessoas.» E Vladimir perguntou: «Onde aceitamos o
baptismo?» E eles disseram: «Onde te apetecer.»
E quando passou um ano, ano 6496 (988), Vladimir foi com o seu
exército até Querson, cidade grega, e os habitantes fecharam-se na cidade.
E Vladimir permaneceu do lado da cidade onde estava o cais, à distância de
voo de uma flecha ficou da cidade, e guerrearam firmemente do lado da
cidade. Vladimir cercou a cidade. As pessoas começaram a morrer na
cidade e Vladimir disse aos cidadãos: «Se não se renderem, ficarei aqui três
anos.» Eles não lhe obedeceram. Vladimir, tendo preparado um exército,
ordenou que elevassem terras junto das muralhas da cidade. Enquanto as
elevavam, os habitantes de Querson, escavando debaixo da muralha, da
cidade, roubavam a terra e levavam-na para a cidade e vertiam-na para o
meio dela. Os militares vertiam cada vez mais e Vladimir permanecia no
cerco. E aqui, um homem de Querson, de seu nome Atanásio, atirou uma
flecha, tendo escrito nela «Cava e corta a água, que vem dos poços pelas
tubagens atrás de ti desde o Oriente.» Vladimir, tendo ouvido isso, olhou
para o céu e disse: «Se isso se concretizar, eu me baptizarei!» E nesse
momento ordenou que cavassem as tubagens e cortou a água. As pessoas
começaram a morrer de sede e renderam-se. Vladimir entrou na cidade com
os seus homens e mandou que se dissesse aos imperadores Basílio e
Constantino o seguinte: «Tomei a vossa famosa cidade. Tendo ouvido que
tendes uma irmã donzela, se não ma derdes, farei o mesmo à vossa capital
que fiz a essa cidade.» E, tendo ouvido isso, os imperadores enviaram tal
notícia: «Não corresponde à tradição cristã entregar as suas mulheres aos
pagãos. Se te baptizares então a receberás, e aceitarás o reino celestial e
serás nosso correligionário. Se não fizeres isso, não te poderemos entregar a
nossa irmã.» Vladimir, tendo ouvido isso, disse aos enviados dos
imperadores: «Digam assim aos vossos imperadores: eu baptizo-me já que
experimentei a vossa lei e ela é-me querida, assim como a liturgia da qual
me falaram os homens por mim enviados.» E os imperadores mostraram-se
contentes ao ouvir isso, e convenceram a sua irmã, de nome Anna, e
mandaram um mensageiro a Vladimir: «Baptiza-te e então te enviaremos a
nossa irmã.» Vladimir respondeu: «Venham com a vossa irmã e baptizem-
me.» E os imperadores obedeceram e enviaram a sua irmã, os dignatários e
os presbíteros. Ela não queria ir, dizendo: «Vou como uma prisioneira, mais
valia morrer já aqui.» E os seus irmãos disseram-lhe: «É possível que
através de ti, Deus dirija a terra russa ao arrependimento e que sejas capaz
de livrar as terras gregas de uma horrível guerra. Por acaso viste quanto mal
fez aos Gregos a Rus? Se não fores agora, farão o mesmo novamente.» E
obrigaram-na a ir. Ela subiu ao barco, despediu-se dos que lhe eram
próximos chorando, e partiu através do mar. E chegou a Querson, e saiu a
população de Querson ao seu encontro com grande reverência, e
conduziram-na à cidade e instalaram-na num salão. Vladimir, que estava
doente dos olhos, naquela altura, por obra e providência divina, não via
nada, e lamentava-se fortemente e não sabia o que fazer. E a imperatriz
mandou dizer-lhe: «Se queres livrar-te dessa doença, então baptiza-te o
quanto antes; se não te baptizares, não poderás livrar-te da tua
enfermidade.» O bispo de Querson baptizou Vladimir com pompas
imperiais e, quando lhe colocou a mão, ele recuperou imediatamente a
vista. Vladimir, ao sentir a sua cura repentina, glorificou a Deus: «Agora
conheci o verdadeiro Deus.» Muitos dos que assistiam, ao verem isso,
baptizaram-se. Ele baptizou-se na igreja de São Basílio, e fica essa igreja no
meio da cidade, onde se reúne a população de Querson para o mercado; a
câmara de Vladimir fica no fundo da igreja até aos dias de hoje, e a câmara
da imperatriz fica atrás do altar. Após o baptismo levaram a Czarina e
celebraram o matrimónio. Os que não conhecem a verdade dizem que
Vladimir baptizou-se em Kiev. Outros dizem que foi em Vasilievo, e outros
contarão outra versão.

Obras da Literatura Russa Antiga M. 1978, pp. 99-127.


CAPÍTULO II

MOSCOVO – TERCEIRA ROMA

O processo da desintegração feudal da Rus de Kiev coincidiu com a


invasão e a subjugação dos seus territórios pelas hordas tártaro-mongóis,
que se estendeu entre 1237 e 1480. À medida que os príncipes de Moscovo
se iam libertando do jugo tártaro-mongol, afirmavam o seu poder em
territórios cada vez mais amplos. A Batalha de Kulikov (1380), onde as
tropas russas conseguiram uma grande vitória, é considerada o início do
processo de libertação e de centralização do Estado a que veio a chamar-se
Moscóvia. Estes processos são impulsionados fortemente por Ivan III, o
Grande (1440-1505), e o seu filho Vassili III (1505-1533). Porém, não
podemos também deixar de salientar a figura de Vassili II, o Cego (1420-
1440), pai de Ivan III. Quando, em 1439, é assinada a União de Florença,
que previa a integração da Igreja Ortodoxa na Católica Romana e a sua
submissão ao Papa, Isidoro, grego que ocupava a cadeira de Metropolita de
Moscovo, apoiou essa decisão, mas, quando chegou à Rússia, foi afastado
do cargo pelo grão-príncipe Vassili II e substituído por um metropolita
russo.
Em 1453, cai Bizâncio às mãos dos Turcos e os senhores de Moscovo
tentam chamar a si o centro da Ortodoxia universal. Em finais de 1472, Ivan
III tenta reforçar o seu poder interno e externo através do casamento com
Sofia (Zoia) Paleóloga, sobrinha do último imperador bizantino, passando a
intitular-se «Senhor e Grão-Príncipe de Toda a Rússia» e com pretensões a
ser aceite como «Czar» (César). É precisamente no reinado deste Czar
(1462-1505) que aparecem as primeiras bases ideológicas da doutrina
«Moscovo-Terceira Roma». Em 1492, Zossima, Metropolita de Moscovo,
chama a esta cidade a «nova Constantinopla» e a Ivan III o «novo Czar de
Constantinopla».
Vassili III não só continua a política de centralização do pai, como se
tenta afirmar dentro e fora do país, chamando a si novos títulos. Passou a
chamar-se «Czar e Senhor de Toda a Rus pela graça de Deus». Um tratado
assinado em 1514 com Maximiliano I, o Imperador do Sacro Império
Romano, chama-lhe «Imperador». Mas são as cartas do monge Filofei,
escritos que lançam a base ideológica da doutrina «Moscovo – Terceira
Roma», que atribuem à Rússia e aos seus czares o papel messiânico de
herdeiros dos imperadores romanos e bizantinos. Ele compara-o mesmo ao
imperador Constantino, o Grande: «Não violes, Czar, o testamento dos
antepassados: Constantino, o Grande, São Vladimir, Iaroslav, o Grande, por
Deus escolhidos, e outros santos da mesma raiz do que tu.»
Nome: Filofei de Pskov

Data e local de nascimento e de morte: 1465, Pskov, República


Independente de Pskov-1542, Pskov, Principado de Moscovo

Breve resenha biográfica: Monge no mosteiro de Elizarovo, em Pskov,


foi pensador, escritor e um dos fundadores da ideologia de Estado da
monarquia russa. Os dados biográficos acerca de Filofei são extremamente
escassos, tendo chegado aos dias hoje as cartas que escreveu ao príncipe
Vassili III e ao czar Ivan IV. O trabalho de Filofei é notável pelo facto de ter
reunido e sistematizando diversos pensamentos filosóficos, teológicos e
políticos disseminados na antiga Rus.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: A obra


mais relevante de Filofei é Moscovo – Terceira Roma, um tratado místico e
messiânico que reúne ensinamentos acerca da monarquia e Ortodoxia.
Paralelamente, é destacado o papel cimeiro de Moscovo e do Estado russo
no mundo cristão após a queda de Constantinopla, enquanto guardiã do
verdadeiro Cristianismo. Filofei analisa as razões de queda dos dois
primeiros impérios. Assim, a Primeira Roma caiu devido à
transgressão/pecado, a Segunda Roma (Constantinopla) tombou perante o
domínio muçulmano, Moscovo será a Terceira Roma e Quarta Roma não
existirá. No decurso da História, os reinos cristãos têm caído devido à sua
decadência moral e espiritual; assim, o futuro passa pela fusão num único
reino russo, sendo que o Czar da Rússia será o único monarca dos cristãos.
O Reino Russo será o último reino mundano, após o qual chegará o eterno
Reino de Cristo.
O povo russo aceitou a missão da Terceira Roma tendo por base não o
nacionalismo, mas a fé na Ortodoxia e a convicção da santidade da Rússia,
pois tudo o que acontece na vida das pessoas e dos povos deve-se
exclusivamente à vontade divina. É por acção de Deus que os czares
ascendem ao trono e obtêm a sua grandeza.
A obra deste monge está marcada por uma profunda crítica à Astrologia,
em voga na sua época para determinar o futuro dos povos, defendendo que
todos os acontecimentos se devem, exclusivamente, à providência divina.
No plano político, a obra de Filofei é, não raras vezes, interpretada como
sendo uma afirmação de independência e de soberania dos czares e de
Moscovo face à Roma papal.
Cartas do ancião Filofei

Carta sobre os dias e as horas más (finais de 1523-início de 1524)


Ao Grão-Duque e Senhor [Vassili III] e ao diácono senhor Mikhail
Grigorievitch, do teu pobre peregrino, o velho Filofei ora a Deus e diz.
Meu senhor, enviaste-me um documento onde está escrito que eu devo
interpretar as tuas palavras. Mas tu, meu senhor, sabes que eu sou um
homem do campo, estudei apenas as letras, mas não conheço os
subterfúgios pagãos, não li astrólogos, não conversei com filósofos sábios;
aprendo apenas com os livros da Lei Sagrada e, se for possível purificar a
minha alma dos pecados, peço isso a Deus Misericordioso, ao Senhor
Nosso Jesus Cristo, à Virgem Mãe de Deus e a todos os santos que
agradaram a Deus, para que me livre do castigo eterno. E sobre o que tu
escreveste a propósito da numeração dos anos, que nos livros do Génesis,
nos escritos por Moisés, sobre os «Seis Dias», sobre a criação do mundo, o
cronógrafo, depois de excluir os primeiros cinco dias, começou com o
primeiro de Adão e até hoje; os católicos, porém, depois de excluírem todos
esses anos passados, começam a contar os anos a partir do nascimento de
Cristo; mas, não obstante, não há qualquer diferença entre essas contagens.
Porque o apóstolo diz: «O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo
homem, o Senhor, é do Céu.» E a seguir afirma: «O primeiro homem,
Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante.»
E em que meditam os filósofos: há dois anos, o solar e o lunar; o solar
tem 365 dias, o lunar tem 354; daqui se conclui que o ano solar tem mais 11
dias, mas não se vê em que tempo ocorre o eclipse solar ou lunar. Quem se
dedica mais profundamente a isso e conta as partes das horas pelo «Seis
Asas», encontrará a que horas será o eclipse da Lua e do Sol; porém, nessa
obra, os esforços são grandes, mas os resultados são poucos.
E o que se escreveu sobre as estrelas em movimento, elas pressagiam o
dilúvio, quando chegarem ao fim todas as cidades, reinados e países do
Universo, juntamente com tudo o que há de vivo na Terra, porque a
Escritura Sagrada fala claramente disso: «O Espírito Santo renova qualquer
criatura», voltando ao anterior, pois ele é igual ao Pai e à Palavra, mas isso
não se deve às estrelas.
Os símbolos do Zodíaco são 12, os planetas são sete, não têm sentidos,
não estão vivos, trata-se apenas de fogo não material. No primeiro dia, ela
foi criada por Deus, quando Ele disse: «Faça-se luz», e a luz não é mais do
que fogo. E quando quis separar a luz da escuridão, ordenou a esse fogo que
desaparecesse, e fez-se escuridão. Assim Deus separou a luz da escuridão e
Ele chamou dia à luz e noite à escuridão, e por isso a noite não é mais do
que a ausência de luz. No segundo dia, Ele criou o Céu; no terceiro dia, a
Terra, os mares, as árvores, a erva, as sementes, e colocou metade da água
no Céu. E, por isso, quando desejou criar os astros, no quarto dia, do
mesmo fogo a que chamara luz, criou dois grandes astros: o astro maior
para iluminar o dia, ou seja o Sol, e o astro menor, para iluminar a noite, ou
seja, a Lua, bem como as estrelas, como um sábio ourives que dividiu parte
do ouro para vasos e parte para moedas. E nomeou 12 estrelas, a que
chamamos Zodíaco, que são os caminhos para o Sol e a Lua. E o Sol
movimenta-se numa parte do Zodíaco durante 13 dias e cinco horas, depois
passa para outra parte do Zodíaco e assim em 12 constelações do Zodíaco,
passando de uma para outra, forma um ano. A Lua, porém, forma-se em 15
dias, porque se ficasse cheia durante um dia, isso seria mau para os dois
astros e provocaria eclipses frequentes. A Lua atravessa cada um dos 12
signos do Zodíaco em 29 dias, meio-dia, meia-hora e um quinto da hora.
Mas no que respeita aos sete planetas e 12 estrelas do Zodíaco, às
restantes estrelas, horas más, nascimento do homem sob uma determinada
estrela, numa hora má ou boa, que define o destino, a riqueza ou a pobreza,
que origina as virtudes ou vícios, uma vida longa ou morte breve, tudo isso
são blasfémias e fábulas. Os primeiros a escreverem isso foram os Caldeus,
que, loucos, construíram uma torre e depois de chegarem ao cimo ficaram
encantados pelas estrelas. Mas Deus, vendo a sua loucura, a sua intenção,
dispersou-os, destruiu a obra e rejeitou os seus escritos. Os Gregos
herdaram deles esses escritos, deram os nomes de deuses a esses planetas e
às restantes estrelas, afastaram-se do Criador e adoravam o que tinham
criado; o Profeta David falou assim desses: «Diz o louco para consigo
mesmo: Deus não existe. Todos se têm corrompido e degenerado.» Depois
dos Gregos, os hereges pegaram e plantaram joio amargo entre o trigo da fé
cristã ortodoxa, seduzindo as pessoas pouco inteligentes que acreditam nos
dias e horas maus. E não se arrependem disso, considerando isso a verdade,
mas, no dia do Juízo Final, irão pagar e serão condenados com os hereges
porque transformaram a luz em escuridão e a verdade em falsidade. Se
Deus tivesse criado os dias e horas maus, para que é que Ele faz sofrer os
pecadores? Pois Deus seria culpado de ter criado o homem mau.
O homem bom sabe que o príncipe nasce do czar, e um nobre de um
nobre, e mesmo que não alcance por um pouco a glória e a honra paternal,
não será lavrador, e os czares não dão as mãos das filhas aos lavradores, e
eles não pegam nas filhas destes para os seus filhos, tudo isso é dirigido
pelo destino invisível de Deus omnipotente.
Quanto ao movimento das estrelas, do Sol e da Lua, que Vossa Alteza
saiba que não são esses astros que se movimentam, que são insensíveis,
mortos e não vêem nada (porque o fogo imaterial nada vê, nada sabe), mas
forças angélicas invisíveis. Testemunha disso foi o apóstolo Paulo, vaso por
Deus escolhido que, mesmo sem chegar ao terceiro céu, tendo estado no
meio desses astros, viu aí essas mesmas forças angélicas, como trabalham
sem descanso para o homem: umas transportam o Sol, outras a Lua, outras
as estrelas, umas enviam pelo ar ventos, nuvens, raios, outras levam água da
terra numa nuvem, e são anjos que dão de beber à terra para que produza
frutos, para a Primavera e o Verão, o Outono e o Inverno. Por isso, o Senhor
mostrou ao apóstolo o serviço permanente realizado pelos anjos em prol do
homem, para o ensinar a ir constantemente pregar em prol da salvação do
homem, sem preguiça; o apóstolo, vendo visões indescritíveis, escreve nas
suas cartas: «Não são todos eles espíritos encarregados de um ministério,
enviados ao serviço daqueles que hão-de herdar a salvação?». E diz
novamente que: «também ela será libertada da escravidão da corrupção,
para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus». Compreendes, caro,
que as criaturas chamadas de anjos são uma criação de Deus, que a
libertação dos anjos é compreendida como o fim do seu serviço no último
dia?
No que respeita à destruição de reinos e países, isso não ocorre devido às
estrelas, mas é obra de Deus que tudo dá; o profeta Isaías disse sobre isso:
«Se fordes dóceis e obedientes, provareis os melhores frutos da terra; se
recusardes e vos revoltardes, provareis a espada. É a boca do Senhor que o
declara.» E os apóstolos perguntaram novamente: «Senhor, é porventura
agora que ides instaurar o reino de Israel?» Mas Jesus respondeu-lhes: «Não
vos pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou em
seu poder.» Compreende, pois, por amor de Deus, a que estrela estão
ligados os reinos cristãos, actualmente espezinhados pelos infiéis, como diz
o profeta: «Quem então entregou Israel aos depredadores? (Não é o Senhor
contra quem pecamos?» Há 90 anos que o reino grego foi destruído e não se
recompôs; e isso aconteceu devido aos nossos pecados, porque eles traíram
a fé grega ortodoxa pelo Catolicismo. E não fiques espantado, eleito de
Deus, quando os católicos dizem: «o nosso reino romano é indestrutível e,
se a nossa fé não fosse a verdadeira, Deus não se preocuparia connosco».
Não devemos ceder às tentações deles, pois eles são realmente hereges, pelo
seu desejo de se afastarem da fé cristã ortodoxa, principalmente devido ao
serviço com pão ázimo. Estiveram unidos connosco 770 anos, afastaram-se
da fé verdadeira há 735 anos, caíram na heresia de Apolinário, foram
tentados pelo rei Carlos [Magno] e pelo papa Formoso. Falam do pão ázimo
supostamente devido à pureza e à ausência de paixões, mas mentem,
escondendo o diabo dentro de si. Apolinário, com a sua falsa doutrina,
ordenou realizar o serviço com pão ázimo, porque, segundo dizem, não
aceitou o fruto humano da Virgem Mãe, o Nosso Senhor Jesus Cristo, mas
com um fruto celestial pronto, precisamente um tubo, depois de atravessar o
ventre virgem, não tomou a forma humana, mas em vez da alma nele habita
o Espírito Santo; eis como seduzem as almas delicadas e instáveis.
Infelizmente, trata-se de uma sedução lastimável e um afastamento do Deus
vivo! Porque se o Salvador não tomou a essência humana, então o fruto do
pecador Adão e todas as pessoas dele nascidas não tomou a forma divina, e
se Deus não se tornou em alma humana, então, agora, as almas humanas
estão atormentadas nas profundezas do inferno.
Quem não tremerá, quem não chorará por tal sedução e pecado; no
orgulho da loucura sua seguiu a doutrina herética também a multidão de
judeus que matou Deus, que durante a crucificação de Cristo foram
cúmplices daqueles sobre os quais o evangelista escreve: «Depois,
trançaram uma coroa de espinhos, meteram-lha na cabeça e puseram-lhe na
mão uma vara. Dobrando os joelhos diante dele, diziam com escárnio:
“Salvé, rei dos Judeus!”» Tal como os soldados do procurador, eram servos
de Pilatos, mas como Pilatos era romano, da cidade de Ponta no Império
Romano, também hoje, durante a oração, os católicos não baixam a cabeça,
mas apenas dobram o joelho. Desses, David, tendo sido iluminado pelo
Espírito Santo, disse literalmente em nome de Cristo: «“não me abandoneis
ao riso dos insensatos». E, embora os muros, as torres e os edifícios de três
andares da grande Roma não tenham sido tomados, as suas almas foram
tomadas pelo diabo devido ao pão com ázimo. Embora os netos de Hagar
tenham conquistado o reino grego, não prejudicaram a fé e não obrigaram
os Gregos a renunciar a ela, mas o reino romano é indestrutível, porque
Deus entrou no território romano.
Eis o que diz o nosso mistério cristão sobre a Sagrada Eucaristia. Os
discípulos rodearam Jesus e perguntaram: «Onde queres que a [Páscoa]
preparemos?» Ele respondeu-lhes: «Ao entrardes na cidade, encontrareis
um homem carregando uma bilha de água; segui-o até à casa em que ele
entrar, e direis ao dono da casa: “O Mestre pergunta-te: Onde está a sala em
que comerei a Páscoa com os meus discípulos?”» O dono da casa era
Zebedeu, pai de João Evangelista, a quem Cristo ordenara preparar duas
Páscoas: uma, segundo a Lei de Moisés com pão ázimo, outra, secreta, para
a qual fazem pão com fermento. Por isso se chama última (secreta) ceia,
porque os Judeus entre as 11 e as 14 não têm pão com fermento em casa. E,
primeiro, eles celebraram a Páscoa legal, como era costume, pão ázimo e
cordeiro com mostarda, em pé, de cinto apertado e apoiados em varas, com
as cabeças cobertas. Depois disso, sentou-se, ensinou-os a evitar dar ordens,
depois falou da traição e, após isso, depois de verter água numa bacia,
começou a lavar os pés aos discípulos, dando-lhes o exemplo do santo
batismo. Depois, sentou-se de novo e ordenou colocar apenas pão e vinho,
começou a pronunciar palavras tristes, levantando o olhar divino para o céu:
«Pai, é chegada a hora. Glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique;
e para que, pelo poder que lhe conferiste sobre todas as criaturas, ele dê a
vida eterna a todos aqueles que lhe entregaste. Ora, a vida eterna consiste
em que conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que
enviaste. Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer.
Agora, Pai, glorifica-me junto de ti, concedendo-me a glória que tive junto
de ti, antes que o mundo fosse criado.» E disse novamente aos discípulos:
«Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse
dará muito fruto.» E depois de elevar novamente os olhos, disse: «Santifica-
os pela verdade. A Tua palavra é a verdade. Como Tu me enviaste ao
mundo, também eu os enviei ao mundo. Santifico-me por eles para que
também eles sejam santificados pela verdade. Não rogo somente por eles,
mas também por aqueles que por sua palavra hão-de crer em mim. Para que
todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que
também eles estejam em nós e o mundo creia que Tu me enviaste.»
Compreende aqui de forma ambígua: quando se reza por estes, depois de ter
aprendido os seus segredos sagrados, pede para ensinar bispos e sacerdotes
a fazerem entrar no sagrado banquete; onde há ordem na liturgia, até o
servo pode realizar a acção sagrada. E depois de tomar o pão nas suas mãos
sagradas e puras, levantou-o, mostrando a Deus Pai, agradecendo, partiu-o,
deu aos seus discípulos e apóstolos santos, dizendo: «Tomai, comei, isto é o
meu corpo.» Depois de comer, pegou no cálice de vinho e, depois de o
misturar com água quente, deu aos discípulos, dizendo: «Bebei dele todos;
Porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado
por muitos, para remissão dos pecados.» E não só deu aos discípulos, mas
ele próprio comeu e bebeu com eles. Depois, disse novamente: «Desejei
muito comer convosco esta Páscoa, antes que padeça; Porque vos digo que
não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus.»
E, depois disso, «tendo cantado o hino, saíram para o Monte das
Oliveiras».
Vês agora, amante de Cristo, qual o mistério da consagração, a origem da
hóstia divina, pois o próprio Jesus os abençoou e ensinou a exercerem o
sacerdócio? Olha, meu caro, como bebeu o vinho, depois de misturar com
água, também na cruz, do seu corpo divino corriam duas fontes: sangue e
água. Compreende, por amor de Deus, que, em 30 anos da sua vida, todos
os anos, o Salvador comia a Páscoa do Antigo Testamento e nunca disse:
«Desejei muito comer convosco esta Páscoa», e só com esta nova e santa
ceia ele garantiu a nossa salvação.
Sendo assim, e depois de pôr fim o que foi dito, digamos algumas
palavras sobre o actual reinado glorioso do Nosso Senhor mais iluminado e
mais poderoso que, em toda a Terra, é o único czar dos cristãos e o
soberano de todos os tronos divinos, da Santa Igreja Apostólica Universal
que nasceu no lugar da de Roma e de Constantinopla e que existe na cidade
por Deus salva de Moscovo, a igreja da santa e gloriosa Assunção da
Virgem Mãe de Deus, que só ela no universo reluz com maior beleza do que
o Sol. Fica a saber, abençoado por Deus e por Cristo, que todos os reinos
cristãos chegaram ao fim e juntaram-se num único reino do Nosso Senhor,
segundo os livros dos profetas, o reino romano: porque duas Romas caíram,
a terceira está de pé e a quarta não virá.
Numerosas vezes também o apóstolo Paulo recorda Roma nas cartas, diz-
se nas profecias: «Roma é todo o mundo.» Porque na igreja cristã já se
realizou a palavra do bem-aventurado David: «Eis o meu descanso
eternamente, aqui irei viver tal como desejei eu.» Mas segundo o grande
teólogo: «E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do Sol,
tendo a Lua debaixo dos seus pés.
E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz.
E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que
tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas.
E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as
sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para
que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho. E foram dadas à mulher duas asas
de grande águia, para que voasse para o deserto... E a serpente lançou da
sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para que pela corrente a
fizesse arrebatar.» A infidelidade é chamada a água; vês, eleito de Deus,
como todos os reinados cristãos foram afogados pelos infiéis e só o senhor
do nosso reino está sob a bênção de Cristo. Deve o reinante dirigi-lo com
todo o cuidado e olhando para Deus, sem depositar confiança no ouro e na
riqueza passageira, mas tendo esperança em tudo o que Deus dá. E como já
disse, as estrelas não ajudam em nada, nem mais, nem menos. Pois o
apóstolo supremo Pedro disse na carta: «Mas amados, não ignoreis uma
coisa, que um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia.
O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia;
mas é magnânimo para connosco, não querendo que alguns se percam,
senão que todos venham a arrepender-se».
Vês, amado de Deus, que nas mãos dele está a respiração de todos os
seres, porque diz: «Ainda mais uma vez abalarei não só a terra, mas
também o som». E visto que os apóstolos ainda não estavam prontos, não
ordenou utilizar super-forças: o evangelista escreve no seu «Apocalipse»:
«Nos últimos tempos, ao salvares-te, salva a tua alma, não morreremos a
segunda morte, nas chamas de fogo», mas dirijamos ao omnipotente Deus
salvador, com orações sinceras e muitas lágrimas, que tenha piedade de nós,
que afaste a sua ira de nós, tenha piedade de nós, e nos permita ouvir a sua
voz doce, bem-aventurada e divina: «Venham, abençoados, herdai o reino
preparado para vós do meu Pai antes da criação do mundo.»
Vive, salva-te e vive em Cristo.

Mensagem ao Grão-Duque Vassili sobre a correção do símbolo


cristão e sobre o pecado de sodomia
Aquele que pelo supremo e pelo omnipotente, pelo que tudo domina, pela
mão direita de Deus, pela qual os czares reinam e os grandes se tornam
famosos e os poderosos proclamam a tua justiça, senhor mais sábio e mais
poderoso, Grão-Duque, Czar cristão ortodoxo e dono de todos, que seguras
as rédeas dos santos tronos, da Igreja apostólica unida universal da Virgem
Mãe de Deus, da sua Assunção pura e gloriosa, quem resplandeceu no lugar
do senhor de Roma e Constantinopla, pois a Igreja da velha Roma caiu
devido à heresia de Apolinário, a segunda Roma, a cidade de
Constantinopla, as portas dos templos foram destruídas pelos Hagarenos
com axes e machados e esta, agora, é a terceira, a nova Roma, o teu
soberano reino, que a santa Igreja apostólica unificadora brilha mais em
todos os cantos do universo na fé cristã ortodoxa sob o céu. Pois fique a
saber todo-poderoso, piedoso Czar, que todos os reinos ortodoxos da fé
cristã se encontraram no teu reino único: és o único Czar dos cristãos em
toda a Terra.
Tens por dever, Czar, guardar isso com o temor a Deus, ao Deus que te
deu isso, não esperando ouro, riqueza e fama: tudo isso se reúne aqui e aqui,
na terra, fica. Lembre-se, Czar, do justo, que, de ceptro na mão e coroa real
na cabeça, disse: «Não dêem o coração à riqueza que flui»; e o sábio
Salomão disse: «Não se reconhece a riqueza e o ouro no tesouro, mas
quando ajuda os pobres»; o apóstolo Paulo, seguindo-os, afirmou: «Porque
o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males.» Timóteo 1.6:10,
não ordena renunciar, mas não depositar esperanças e muito menos o
coração nele, mas ter esperança em Deus que tudo dá. Pois toda a tua fé e
amor para com Deus é para com a sagrada Igreja de Deus; e ainda, Czar,
respeita dois mandamentos.
Mais precisamente: no teu reino há pessoas que não se protegem
corretamente com o símbolo da santa cruz, sob os quais o apóstolo Paulo,
que anteviu isso, disse: «Porque muitos há, dos quais muitas vezes vos
disse, e agora também digo, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo,
cujo fim é a perdição.»
Segundo: enche os santos templos de bispos, que a Igreja Sagrada de
Deus no teu reino não se sinta viúva! Não violes, Czar, o testamento dos
antepassados: Constantino, o Grande, São Vladimir, Iaroslav, o Grande, por
Deus escolhidos, e outros santos da mesma raiz do que tu. Czar, não
ofendas os santos das igrejas de Deus e dos mosteiros honestos, oferecidos
a Deus como herança, bênçãos eternas em memória das descendências
seguintes, o que foi rigorosamente proibido pelo Quinto Concílio.
O terceiro mandamento escrevo e digo chorando para que tu arranques
pela raiz, no teu reino ortodoxo, o joio amargo, de que ainda hoje
testemunha a chama venenosa do fogo escaldante nas praças de Sodoma,
sobre as quais o profeta Isaías falou em lágrimas: «Ouvi a palavra do
Senhor, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo
de Gomorra.
De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o Senhor? Já
estou farto dos holocaustos... o incenso é para mim abominação, e as luas
novas, e os sábados, e a convocação das assembleias.» Isaías 1.10-13. Por
isso, piedoso Czar, o profeta não disse isso aos sodomitas que já morreram,
mas aos vivos que fazem más acções. Pois está escrito: «O que trai a mulher
destrói a carne, mas o que comete o pecado de sodomia mata o fruto do seu
ventre.» Deus criou o homem e a família para a procriação de filhos, mas
nós próprios matamos a nossa família e oferecemos-lhe como vítima ao
diabo. E essa abominação não existe só entre os leigos, mas no meio de
outros sobre os quais me calo, mas o que lê compreende.
Infelizmente para mim, o misericordioso, que durante tanto tempo
suporta, não nos julga! Tudo o que eu escrevi, chorando muito e
amarguradamente, e eu próprio, maldito, cheio de pecados, mas receio
também ficar calado, tal como o escravo que escondeu o seu talento.
Pois eu sou pecador indigno em tudo, ignorante na sabedoria, mas a muda
jumenta de Balaão ensinava e o animal aconselhava o profeta, por isso tu,
Czar piedoso, não aches inútil o que eu ouse escrever a Vossa Alteza. E,
hoje, peço-te e suplico-te novamente: aceita por amor de Deus tudo o que
acima escrevi, pois todos os reinos cristãos se juntarão no teu reino, depois
disso esperamos um reino que não terá fim.
Isto escrevi-te porque te amo e apelo e suplico a graça de Deus para que
substituas a avareza pela generosidade e a não-caridade pela misericórdia.
Conforta os que choram e gritam dia e noite, livra os humilhados das mãos
dos humilhadores. «Cuidado», disse o Senhor, «para não desprezarem um
só destes pequeninos! Pois eu digo que os anjos deles nos céus estão sempre
vendo a face de meu Pai celeste.» «Bem-aventurado é aquele que atende ao
pobre; o Senhor o livrará no dia do mal.» O Senhor protege-o, ressuscita-o,
apazigua-o na Terra e não o entrega nas mãos do inimigo, que o Senhor te
proteja. E se puseres em boa ordem o teu reino, serás o filho da luz também
para os habitantes de Jerusalém montanhoso e, como já te escrevi acima,
volto a dizer: conserva e compreende, bendito Czar, que todos os reinos
cristãos se encontraram num só teu, que a segunda Roma caiu, a terceira
está de pé, uma quarta não haverá. Segundo a palavra do grande teólogo, o
teu reino cristão não será substituído por outro e tornar-se-ão realidade para
a igreja cristã as palavras do abençoado David: «Este é o meu repouso para
sempre; aqui habitarei, pois o desejei.»
Santo Hipólito disse: «Quando virmos que Roma estiver cercada por
tropas persas e os Persas com os Citas nos atacarem, então
compreenderemos, sem dúvida, que é o Anticristo.» Que Deus com paz,
amor, longos anos de vida e saúde, com orações à Virgem Mãe de Deus aos
santos milagrosos e a todos os santos, proteja o teu reino soberano!

Biblioteca da Literatura da Rus antiga. Cartas do Ancião Filofei.


Tomo 9 (Final do século XV – primeira metade do século XVI).
Academia Russa das Ciências.
(http://lib.pushkinskijdom.ru/Default.aspx?tabid=5105).
Consultado em 07/01/2017.
CAPÍTULO III

ESLAVÓFILOS

As reformas do czar Pedro I (1682-1725), com vista a «europeizar»


(modernizar) o seu país, dividiram definitivamente a sociedade russa. A luta
em torno delas começou ainda durante a sua realização e teve como
símbolo máximo o assassinato do príncipe herdeiro Alexei, a mando do pai
(1718). O primeiro reuniu à sua volta a velha nobreza russa que se opunha à
«europeização».
No século XIX, essa discussão materializou-se nos debates entre
ocidentalistas e eslavófilos. Pode-se dizer que o eslavofilismo, enquanto
corrente do pensamento político e da filosofia, se estruturou como reacção à
publicação por Piotr Chaadaev das Cartas Filosóficas, que tiveram uma
ampla repercussão social, principalmente devido ao violento ataque de que
o pensador foi alvo por parte do czar Nicolau I.
Profundo conhecedor da Europa, onde combateu durante as guerras
napoleónicas e viveu vários anos, Chaadaev faz uma crítica devastadora à
situação no seu país: «…Posicionados entre duas das principais partes do
mundo: Oriente e Ocidente, apoiando-se com um ombro na China e outro
na Alemanha, deveríamos fundir em nós os dois grandes princípios da
natureza espiritual – a imaginação e a razão – e combinar, na nossa
civilização, a História do mundo inteiro. Mas tal papel não foi determinado
para nós pela providência… Solitários no mundo, não demos nada ao
mundo, nada lhe enviamos. Não introduzimos nenhuma ideia na massa de
ideias da humanidade, não contribuímos para o progresso da razão
humana… Um dos traços mais deploráveis da nossa civilização é que ainda
estamos a descobrir verdades já assumidas pelos outros povos… A razão é
que nunca marchamos junto com os outros povos. Não pertencemos a
nenhuma das grandes famílias da raça humana. Colocados como que fora
do tempo, a educação geral do género humano não nos alcançou…»
A publicação da primeira carta, em 1836, provocou um verdadeiro
escândalo na sociedade russa e, segundo a expressão de outro ocidentalista,
Alexandre Herzen, «soou como um tiro numa noite escura».
Após a sua leitura, Nicolau I descarregou a sua fúria primeiramente no
papel: «Depois de ler o artigo, encontro nele apenas um conteúdo: uma
mistura de atrevimento absurdo, digno de um louco.» E a seguir, naqueles
que permitiram a publicação de tal heresia: a revista Teleskop, onde foi
publicada a «Carta», foi encerrada, o realizador exilado, o censor despedido
e Chaadaev considerado louco, tendo sido isolado em casa e guardado pela
polícia, para que «mais nada ouse escrever».
Mas esta decisão do Czar aumentou ainda mais a curiosidade da
sociedade intelectual russa pelos escritos de Piotr Chaadaev. Segundo
Apollon Grigoriev, um dos criadores de um dos ramos da eslavofilia, o
pochvennichestvo (retorno à terra mãe), a obra de Chaadaev foi «a luva
lançada que dividiu de uma vez por todas dois campos de pensadores e
escritores que, até então, se não estavam ligados, pelo menos não estavam
separados. Pela primeira vez, colocou a questão de forma não abstrata sobre
a importância do nosso povo, da sua identidade e particularidades, que até
então dormia pacificamente, não tinha sido abordada e levantada por
ninguém.»
A partir dos anos 40 do século XIX, na discussão sobre as relações da
Rússia e da Europa, soa com cada vez maior intensidade o tema da divisão
da sociedade russa, que começou com as reformas de Pedro, o Grande,
continuou a aprofundar-se durante todo o século XIX e, segundo a opinião
de numerosos historiadores e pensadores, foi uma das premissas mais
importantes dos cataclismos revolucionários que abalaram a Rússia no
início do século XX.
O problema da divisão social está presente nos escritos dos eslavófilos e
adquire neles uma forma bastante completa. A formação das ideias
eslavófilas decorre no período de maior desnacionalização das camadas
mais privilegiadas da sociedade russa e das formas de governo, coincidindo
com os anos de ascensão do movimento de libertação nacional e das
revoluções na Europa.
Frequentemente, no Ocidente, a luta entre ocidentalistas e eslavófilos é
descrita de forma demasiadamente simplista e esquemática, como uma
disputa entre progressistas e reaccionários, mas a realidade era bem mais
complexa. Vários eslavófilos lutaram pela emancipação dos servos russos,
quase todos eles eram a favor da liberdade de imprensa e os seus jornais e
revistas eram vítimas de forte censura devido às suas críticas políticas. Em
ambos os campos havia intelectuais de peso, que deixaram um forte rasto
não só na cultura russa, mas também mundial.
Educados nas tradições da cultura europeia, influenciados
consideravelmente pela filosofia alemã, os eslavófilos não negavam os
êxitos da civilização europeia. Porém, consideravam que ela tinha entrado
numa profunda crise espiritual, que se revelava na perda do verdadeiro
sentimento religioso e das referências morais. Pedro, o Grande, segundo
eles, não copiou da Europa apenas os êxitos no campo da ciência e da
técnica, mas também valores e hábitos que destruíram a unidade da
sociedade russa existente até às reformas, criou uma ameaça aos princípios
«originais» da vida do povo, cujas raízes iam até às profundezas da história
russa. Para os eslavófilos, esses pilares consistiam nas particularidades da
formação do poder na Rus, cuja fonte, ao contrário da Europa, não foi a
conquista, mas o chamamento voluntário dos seus dirigentes.
Os eslavófilos depositavam particular importância no papel que a Igreja
Ortodoxa tinha na sociedade russa. O facto de esta educar o povo num
espírito de profunda religiosidade, de amor e de compaixão (ao contrário do
culto da propriedade e do lucro no Ocidente) e de abençoar a união do
monarca autocrata com os seus súbditos eram a garantia de um futuro
glorioso para a Rússia.
Estes consideravam que o principal perigo para a Rússia era não só a
decomposição das camadas privilegiadas da sociedade, mas também as
possibilidades do transplante para o solo russo das contradições sociais que
dilaceravam os países europeus. Receavam particularmente a proletarização
do campesinato, que podia levar à divisão da sociedade até ao confronto
directo entre as suas partes.
Os eslavófilos procuravam aliados naturais noutros povos eslavos
(principalmente nos que professavam a Ortodoxia) para a luta contra a
expansão intelectual e espiritual do Ocidente, o que alimentava as suas
ideias de união de todos os Eslavos, de criação de confederações de Estados
eslavos, etc.
É de salientar que não havia unanimidade entre os eslavófilos quanto a
esta última ideia. Fiodor Dostoievski, por exemplo, era um seu acérrimo
adversário: «Quero dizer uma palavrinha muito particular sobre os Eslavos,
que gostaria de dizer há muito. A Rússia nunca terá, e nunca teve ainda,
odiadores, invejosos, caluniadores e até inimigos abertos como todas essas
tribos eslavas; logo que a Rússia as liberta, a Europa concorda em
reconhecê-la os libertadas! E não me contradigam, não me contestem, não
me digam que eu exagero e que eu odeio os Eslavos!
Eu, pelo contrário, gosto muito dos Eslavos, mas não irei defendê-los
porque sei que tudo será precisamente como eu digo, e não é pelo alegado
baixo e desagradecido carácter dos Eslavos, pois, nesse sentido, o seu
carácter é igual ao de todos, mas precisamente porque semelhantes coisas
na Terra não acontecem de outra maneira.»
Na concepção dos eslavófilos manifesta-se também a primeira redacção
do aspecto oriental do nosso problema. Neles revelou-se no destaque
vincado da fonte oriental, ou seja, bizantina, da Ortodoxia russa e, por
paradoxal que pareça, na ideia da luta contra o Oriente na pessoa do
Império Otomano, pela libertação dos povos cristãos por ele oprimidos e
pela imposição da cruz nos templos da antiga capital da Ortodoxia:
Constantinopla.
Além de Fiodor Dostoievski, entre os seguidores desta corrente há que
salientar Aleksei Khomiakov, os irmãos Aksakov, os irmãos Kireevski, Iúri
Samarin, etc. Mais tarde, irão destacar-se os «eslavófilos moderados» ou
potchvenniki, entre os quais estão nomes como Nikolai Danilevski,
Konstantin Leontiev e outros.
Nome: Khomiakov, Aleksei

Data e local de nascimento e de morte: 13 de Maio de 1804, Moscovo,


Império Russo-05 de Outubro de 1860, Riazan, Império Russo

Breve resenha biográfica: Poeta, pintor, teólogo e filósofo russo.


Nascido numa família nobre, tendo no seu percurso educativo sido
conferido especial atenção ao ensino de línguas, nomeadamente Francês,
Alemão, Inglês e Latim. Obteve o grau de Doutor em Ciências Matemáticas
e Físicas, em 1822, na Universidade de Moscovo. De acordo com relatos da
época, ao longo da sua vida, este pensador teria dominado entre 20 e 30
línguas estrangeiras. Entre 1822 e 1825, Khomiakov cumpriu serviço
militar, após o qual partiu em viagem para a Europa, onde visitou a França,
a Itália, a Suíça e a Áustria. Em 1828, regressa à pátria para combater na
Guerra Russo-Turca e, após o seu término, dedica-se à exploração das suas
propriedades agrícolas. Faleceu depois de ter contraído cólera, ao tratar
agricultores durante a epidemia.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Um dos
fundadores do pensamento eslavófilo, o seu estudo centrou-se na relação
entre as culturas russa e europeia. O seu pensamento filosófico baseia-se no
conceito de providencialismo, considerando que a História é um processo
de revelação da grandeza de espírito na vida colectiva da humanidade e que
cada povo, durante a sua evolução, exprime uma ou outra faceta do
absoluto. Assim, a história do povo constituía um processo de revelação da
sua ideia inicial na vida comunitária, pois cada povo era detentor da sua
substância especial. Esta abordagem levava à busca de um destino colectivo
de cada povo, bem como um aturado estudo do seu modo de vida. A título
de exemplo, será de referir a atenção conferida à organização agrícola da
sociedade russa. Segundo Khomiakov, apenas a Ortodoxia conserva o
verdadeiro ideal da vida eclesiástica através da relação harmoniosa entre a
unidade e a liberdade, realizando assim o ideal central da Igreja, a de
Comunidade Espiritual. Por oposição, no Catolicismo e protestantismo o
princípio de Comunidade Espiritual foi violado. No primeiro caso, em
detrimento da unidade, no segundo, sacrificado pela liberdade. Em ambas
as religiões, o afastamento da tradição de Comunidade Espiritual levou à
supremacia do racionalismo que é contrário ao espírito da Igreja. De acordo
com Aleksei Khomiakov, o Ocidente não conseguiu resolver as questões
espirituais da humanidade, pois focou-se na competição e desvalorizou a
cooperação. Assim, o socialismo e o capitalismo reflectiam, em partes
iguais, a decadência ocidental. Para este pensador russo apenas a monarquia
era um sistema político aceitável na Rússia.
Opinião dos estrangeiros sobre a Rússia (1845)

Na Europa começaram a falar e escrever muito sobre a Rússia. Isso não


surpreende: no nosso país falam e escrevem tanto sobre a Europa que os
Europeus, por uma questão de boa educação, deveriam ocupar-se da
Rússia… E quanta estupidez e ignorância há nisso! Que confusão nos
conceitos e até nas palavras, que mentira descarada, que rancor aberto!
Surge involuntariamente o sentimento de decepção, coloca-se uma pergunta
sem querer: em que se baseia semelhante rancor, porque o merecemos?
Recordas como salvámos alguém da morte inevitável; como levantámos,
reforçámos o outro, escravizado; como salvámos da vingança um terceiro,
depois de vencer, etc. A nossa decepção é aceitável; mas esta rapidamente é
substituída por outro sentimento melhor: verdadeira e sincera tristeza. Em
nós vive o desejo de compaixão humana; em nós fala constantemente a
participação calorosa no destino do nosso irmão estrangeiro, tanto nos seus
sofrimentos, como nos seus êxitos; tanto nas suas esperanças, como na sua
glória. Mas nós nunca recebemos resposta a essa compaixão e a esse desejo
amigável; nem uma vez uma palavra de amor e irmandade, quase nunca
palavras de verdade e objectividade. Apenas uma resposta: escárnio e
insulto; sempre um sentimento: mistura de medo com desprezo. Não será
isso que um homem espera do outro.
É difícil explicar esses sentimentos hostis nos povos ocidentais, que
desenvolveram dentro de si tantas sementes de bondade e levaram tão longe
a humanidade na via da cultura racional. A Europa demonstrou mais de
uma vez compaixão até por tribos selvagens, que lhe eram completamente
alheias e não estavam a ela ligadas por qualquer laço de parentesco
sanguíneo ou espiritual. Claro que nessa compaixão se manifestou algum
desprezo, algum orgulho aristocrático do sangue ou, melhor dizendo, da
pele; claro que o europeu, que fala eternamente da humanidade, nunca
chegou realmente à ideia do homem; mas, não obstante, embora raramente,
revelou compaixão e alguma capacidade de amar. É estranho que só a
Rússia parece ter o privilégio de despertar os piores sentimentos do coração
europeu. Parece que temos sangue indo-europeu, tal como os nossos
vizinhos ocidentais, pele indo-europeia (e a pele, como é sabido, é um
assunto de grande importância, que muda completamente todas as relações
morais entre as pessoas), língua indo-europeia, e que língua! A mais pura e
quase a mais linda; mas, não obstante, não somos irmãos dos nossos
vizinhos.
É evidente que a antipatia dos outros povos em relação a nós se baseia em
duas razões: na profunda tomada de consciência das diferenças em todos os
princípios do desenvolvimento espiritual e social da Rússia e da Europa e a
decepção involuntária perante esta força independente, que exigiu e
adquiriu todos os direitos de igualdade na sociedade dos povos europeus.
Eles não podem recusar-nos os nossos direitos, pois somos demasiadamente
fortes para isso, mas também não podem reconhecer os nossos direitos
como merecidos, porque qualquer educação e qualquer princípio espiritual,
que não esteja completamente pleno do amor humano, têm o seu orgulho e
a sua exclusividade. Por isso, não podemos esperar pleno amor e
irmandade, mas deveríamos esperar respeito…
Passaram muitos séculos e a vida histórica da Rússia não se desenvolveu
sem glória, não obstante as experiências difíceis e sofrimentos
multisseculares. Alargaram-se amplamente as fronteiras do Estado, que já
então era o maior no mundo. Viviam nele o saber e a força de espírito que
só eles foram capazes de aguentar golpes tão fortes e uma luta tão longa;
mas nas preocupações da vida combativa e atribulada, no isolamento
involuntário da comunidade dos outros povos, a Rússia atrasou-se dos seus
irmãos ocidentais no desenvolvimento dos conhecimentos materiais, no
aperfeiçoamento da ciência e da arte. Entretanto, a sede de conhecimento há
muito que se fazia sentir e a ciência respondeu ao apelo de um grande génio
que mudou o destino do Estado. De toda a parte começaram a vir para o
nosso país numerosos cientistas estrangeiros com todas as diversas
invenções do Ocidente. Numerosos russos foram entregues ao ensino dos
novos mestres e, claro está, devido ao intelecto russo, eles aprendiam com
bastante facilidade, mas a ciência não ganhou raízes profundas. Estudavam
com os estrangeiros pessoas que pertenciam às classes da nobreza e da
burguesia; outras preocupações, outros hábitos, hereditários e genéticos,
desviavam-nos da via para onde tinham sido chamados pelas novas
necessidades do Estado. Na ciência viam apenas um dever seu e um pouco
de utilidade pública. Das longínquas costas do Mar do Norte, do seio de
camponeses-pescadores saiu o novo inventor [Mikhail Lomonossov]. Muito
teve de suportar ele na vida em nome da ciência, muito sofreu, mas a força
do seu espírito venceu. Ele gostava da ciência em prol da própria ciência e
conquistou-a para a Rússia. Os nossos êxitos foram rápidos, aprendíamos
avidamente qualquer descoberta, qualquer conhecimento, qualquer ideia e,
por muito orgulhoso que seja o Ocidente, pode não ter vergonha dos seus
alunos. Mas nós também adquirimos o direito ao próprio pensamento, mas,
se adquirimos, pouco o utilizámos. A nossa credulidade de aluno absorve
tudo, repete tudo, copia tudo sem ver o que pertence ao conhecimento
positivo, à suposição, à verdade universal humana e à corrente local,
sempre meio falsa, do pensamento; mas não nos devem julgar duramente
por este erro. Há uma atracção involuntária, quase irresistível, nesse rico e
grande mundo do conhecimento ocidental. Não se pode exigir uma análise
rigorosa do povo, nos primeiros minutos do seu contacto com o mistério da
ciência. Os primeiros transformadores não podiam evitar erros. O grande
génio Lomonossov sujeitou-se à influência das suas nulidades
contemporâneas na poesia alemã. Tendo compreendido a sequência rígida e,
por assim dizer, a escravidão da ciência (que conhece apenas o que existe),
não compreendeu a liberdade artística, que não assimila mas cria, e por isso
as nossas artes seguiram pela via da imitação servil. Nos povos que se
desenvolvem com originalidade, a riqueza do conteúdo antecipa o
aperfeiçoamento da forma. No nosso país aconteceu tudo ao contrário. O
conteúdo da nossa poesia é enfadonho, mas, quanto à beleza da forma
externa, está ao nível das mais ricas literaturas e não fica atrás de nenhuma.
O segredo desse fenómeno exclusivo é bastante simples. No nosso país, a
liberdade de pensamento esteve acorrentada à paixão pela imitação,
enquanto a forma exterior da poesia (a língua) foi elaborada por séculos de
vida russa original. A língua da literatura, a língua da chamada sociedade
(ou seja, a língua da cidade) pertence pouco ao povo. Ela foi fruto da
educação citadina e daí advém um certo laxismo e lentidão de todas as
línguas europeias. Há pouco mais de meio século, em França, não havia
ainda quase nenhum bairro (exceptuando os arredores de Paris) onde se
falasse francês. Todo o Estado era uma união de pronúncias selvagens e
desorganizadas que não têm que ver com a língua literária. Mas a língua
francesa, criação das cidades, pode não ser enfadonha para exprimir ideias,
é sem dúvida rica para expressar pequenas necessidades quotidianas e
sociais, tem dentro de si o carácter de uma impotência miserável quando
quer expressar a diversidade viva da natureza. Nascida dentro dos muros
das cidades, apenas sabia através de boatos a imensidão dos campos, a
dimensão do mundo de Deus, a simplicidade viva e corajosa do homem
rural. Actualmente começaram, se assim se pode dizer, a levá-la para fora
da cidade e a mostrar-lhe aldeias e campos, bosques e toda a beleza
terrestre. Nisto consiste uma particularidade insuficientemente notada das
letras dos escritores franceses nossos contemporâneos, mas é impossível dar
vida a uma língua morta. Os males da língua francesa pertencem mais ou
menos a todas as línguas da Europa. Apenas a Rússia constitui um
fenómeno raro de um grande povo que fala a língua da sua literatura, ou
fala, talvez, melhor do que a sua literatura. A pobreza do conteúdo foi dada
pela nossa instrução injectada; a beleza maravilhosa da forma foi dada pela
vida do povo. A crítica de arte não se deve esquecer disto.
A direcção que nos foi dada há quase século e meio continua hoje.
Aceitando tudo indiscriminadamente, reconhecendo amavelmente como
instrução qualquer fenómeno do mundo ocidental, todo o novo sistema e
toda a nova matiz de sistema, toda a moda e matiz de moda, todo o fruto do
lazer dos filósofos alemães e dos alfaiates franceses, toda a mudança no
pensamento ou na vida quotidiana, nós ainda nunca ousámos perguntar de
forma educada, pelo menos timidamente, pelo menos com semidúvida, ao
Ocidente: será tudo verdade o que ele diz? Será tudo maravilhoso aquilo
que faz? Dia-a-dia, na sua agitação permanente, ele chama ao seu
pensamento mentira, substituindo uma velha mentira, possivelmente, por
uma nova, e uma velha pouca vergonha, possivelmente, por uma nova. E,
durante todas estas mudanças, nós com eles condenamos o passado,
elogiamos o presente e esperamos dele uma nova sentença para alterar
novamente os nossos pensamentos. Nós aceitamos tudo com igual fé, sem
compreender as diferenças entre ciências positivas, como, por exemplo, a
Matemática ou o estudo da natureza das coisas, e ciências especulativas.
Por exemplo, acreditamos simplesmente que o processo de pensamento
filosófico se realizou na Alemanha de forma completamente sequente,
embora a primazia do sujeito em relação ao objecto em Schelling se
baseasse num erro na história da terminologia filosófica, e nenhuma força
humana ligará a Fenomenologia de Hegel com a sua Lógica. Nós
acreditamos que a estatística tem alguma importância separadamente da
História, que a economia política existe sozinha, separada de motivos
puramente morais, e que, por fim, a ciência do Direito, ciência de que tanto
se orgulha a Europa, que está tão aperfeiçoada, tão elaborada, que se
encontra em bases tão firmes e inabaláveis, tem realmente direito a chamar-
se ciência, base real, conteúdo real… Como é sabido, o russo assimila a
ciência de boa vontade, mas acredita também na sua razão natural.
A ciência deve alargar o campo do conhecimento humano, enriquecê-lo
com os seus dados e conclusões, mas deve ter em conta que ela tem muito e
muito a aprender com a vida. A ciência é tão enfadonha sem vida, como a
vida é sem ela, talvez mais enfadonha… Antes de tudo, é preciso saber, isto
é, amar, a vida que queremos enriquecer com a ciência. Esta vida, cheia de
força de tradição e de fé, criou a gigante Rússia antes de a ciência
estrangeira ter vindo dourar a sua cúpula. Esta vida conserva muitos
tesouros não só para nós, mas talvez também para muitos, se não para todos
os povos.
À medida que as altas camadas da sociedade, afastando-se das condições
do desenvolvimento histórico, mergulhavam mais e mais na educação vinda
do estrangeiro, à medida que a sua separação se tornava cada vez mais
evidente, a actividade intelectual enfraquecia nas camadas baixas. Para
estas não há ciência abstracta, conhecimento abstracto, para elas só é
possível a educação geral da vida, e esta educação geral que se revela
apenas na circulação constante do pensamento (tal como a circulação no
corpo humano), torna-se impossível com a bifurcação na constituição
mental da sociedade. Entre as camadas superiores revela-se o
conhecimento, mas um conhecimento completamente afastado da vida;
entre as baixas há a vida, que nunca subirá até consciência. Não havia lugar
para a verdadeira arte, viva, livremente criada e não copiada, pois nela
existe a combinação da vida e do conhecimento, imagem da vida que se
autoconhece. Era impossível o emprego: a ciência, embora unilateral, não
podia renunciar ao seu orgulho. Porque ela se sentia o melhor fruto do
grande Ocidente, a vida não podia renunciar à sua perseverança, pois sentia
que criava a grande Rússia. Ambos os princípios continuaram a ser estéreis
na sua unilateralidade doentia… Mais, a ciência, talvez na sua forma
subordinada da experiência e da observação, é novamente apenas fruto do
desejo do espírito humano de conhecer, fruto da vida, que parcialmente
amadureceu, por conseguinte, em ambos os casos, ela exige a vida como
base. No nosso país, ela não foi fruto da nossa vida local, histórica. Por
outro lado, ao ser transportada para a Rússia e o nosso solo, ela afastou-se
das suas raízes ocidentais e da vida que a originou.
No nosso país, a instrução e a sociedade que a aceitou continuam a ter
esse aspecto: ambas transportavam em si um carácter colonial, um carácter
de orfandade sem vida, onde todas as melhores exigências da alma cedem
lugar involuntariamente à autosatisfação e ao calculismo egoístas.

Khomiakov, A.S. Obras. M. 1914, pp. 22-23, 32-35


Nome: Aksakov, Konstantin

Data e local de nascimento e de morte: 10 de Abril de 1817,


Orenburgo, Império Russo-19 de Dezembro de 1860, Zaquintos, Grécia

Breve resenha biográfica: Historiador, linguista, editor, poeta e crítico


literário. Filho do escritor Serguei Aksakov, também os seus irmãos Ivan e
Vera seguiram a carreira literária, sendo os três irmãos considerados uns dos
fundadores do pensamento eslavófilo. Em 1835, Konstantin Aksakov
formou-se em Literatura e Línguas, na Universidade de Moscovo.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo:


Segundo Aksakov, a história da Rússia é diferente, na sua essência, da
história de outros países europeus. O seu pensamento tem por base a
oposição de duas forças motrizes da História, nomeadamente as pessoas
(terra) e o Estado (Governo). Na Europa Ocidental, estas duas forças
misturaram-se de forma ilícita, as pessoas queriam tomar o poder e da luta
resultou a ordem constitucional. Pelo contrário, na Rússia, o povo e o
Estado coexistiam de forma pacífica (o poder da governação residia no
Czar, a força da opinião, no povo) até às reformas de Pedro I, quando a
nobreza e os intelectuais se separaram do povo e o Estado começou a
apropriar-se da terra. Aksakov identificava a terra e o povo enquanto
comunidade, e era esta a ideia que servia de fundação a todo o sistema
social russo. Neste quadro, apenas uma forma de organização social
patriarcal, baseada na Ortodoxia, poderá avalizar a ausência de classes e
contradições, garantindo a unidade do Czar, da Nação e da Igreja. A
civilização ocidental é racional, a «verdade interior» do Cristianismo está
sujeita à coerção externa, à regulamentação por parte do Estado. Já os
Eslavos conservaram o verdadeiro Cristianismo e a correspondente
organização da vida em comunidade – a concretização da união moral das
pessoas –, não formando o Estado mas evocando-o voluntariamente. A
comunidade e o Estado coexistem, tendo por base a concordância mútua e a
divisão de funções, como «duas forças aliadas». O Estado não deve
interferir na agricultura, na indústria, no comércio, nos aspectos ideológicos
e morais da vida. Segundo Aksakov, o povo russo não é estatal e é a isso
que se devem os «séculos silenciosos na Rússia». O equilíbrio de poder foi
quebrado por Pedro I, que se tornou o primeiro monarca a deformar o
relacionamento entre o Estado e as pessoas. Aksakov apresentou a
Alexandre II a obra Nota sobre a situação interna da Rússia, na qual
acusava o Governo de opressão da liberdade moral da população e de
despotismo, levando à degradação moral da nação.
Dos princípios fundamentais da História da Rússia (cerca de 1849)

Uma causa moral deve ser também realizada por via moral, sem a ajuda
de uma força externa, coerciva. Existe apenas uma via bem digna para o
homem, a via da convicção livre, a via da paz, a via que nos foi aberta pelo
Salvador Divino e seguida pelos Seus Apóstolos. Essa via de verdade
interna poderia ser sentida de forma confusa pelos povos pagãos… Sob a
influência da fé no acto heróico moral, elevado ao nível de tarefa histórica
de uma sociedade, forma-se um modo de vida original, um carácter pacífico
e simples; e, claro, se é possível encontrar nalgum lugar semelhante forma
moral de vida… esse lugar são as tribos domésticas, na sua maioria, tribos
eslavas. Mas será possível semelhante modo de vida na Terra?
Existe outra via, pelos vistos mais cómoda e simples; a estrutura externa é
transferida para fora e a liberdade espiritual é compreendida apenas como
organização, ordem (tarefa); as bases, os princípios da vida são
compreendidos como regras e prescrições. Tudo é formulado. Esta é a via
da verdade não interna, mas externa, não da consciência, mas da lei forçada.
Mas semelhante via tem um sem número de desvantagens. Antes de tudo, a
fórmula, seja ela qual for, não pode abarcar a vida; depois, ao ser imposta a
partir do exterior e sendo forçada, ela perde a sua principal força, a força da
convicção interna e do seu livre reconhecimento; dando assim ao homem a
possibilidade de se apoiar na lei, armado com a força coerciva, ela faz
adormecer o espírito humano que se inclina para a preguiça, acalmando-o
facilmente e sem qualquer tipo de esforço com o cumprimento das
exigências formais impostas e livrando-o da necessidade da actividade
moral interna e do renascimento interno. Esta é a via da verdade exterior, a
via do Estado. Por essa via avançou a humanidade ocidental.
Na Rússia, a história encontra os Eslavos do Norte sob o domínio dos
Varegues, os do Sul sob o domínio do Czar. Os Eslavos do Norte
expulsaram os Varegues e, talvez, devido ao seu domínio, tenha surgido a
inimizade entre eles e conflitos de uns com os outros.
Esses eram os principais obstáculos e a Terra, a fim de se salvar a si
própria, a sua vida terrestre, decide recorrer à defesa do Estado. Mas é
preciso assinalar que os Eslavos não formam o Estado, eles chamam-no:
eles não escolhem o príncipe do seu seio, mas procuram-no para além do
mar; dessa forma, eles não misturam a Terra com o Estado, recorrendo ao
último como necessidade de conservação da primeira. O Estado, a
organização estatal não se tornou o objectivo dos seus anseios, porque eles
se afastavam a si próprios ou a vida comunitária do Estado, e para proteger
a primeira chamaram o segundo.
Nenhuma outra história começou assim. Se discutiam sobre o tempo da
existência desse facto, então aqui está a força no seu sentido;
reconhecimentos individuais mais tardios confirmam essa ideia.
O chamamento foi voluntário. A Terra e o Estado não se misturaram, mas
fizeram separados uma união de um com o outro. No chamamento
voluntário encontravam-se já as relações da Terra e do Estado: a confiança
mútua de ambas as partes. Não a vituperação nem a inimizade, como
aconteceu com outros povos, devido à conquista, mas a paz devido ao
reconhecimento voluntário.
Assim começa a história da Rússia. Duas forças estão na sua base, dois
motores e condições em toda a história da Rússia: a Terra e o Estado…

Sobre o mesmo tema (cerca de 1850)

A Rússia é uma terra completamente original, em nada semelhante aos


Estados e países europeus. Enganar-se-ão muito os que tentarem adaptar a
ela as ideias europeias e julgá-la com base nela.
Quão interessante e importante foi a via original da Rússia antes da sua
sedução (pelo menos parcialmente) para a via ocidental e até copiar o
Ocidente! Quão curiosas são as circunstâncias e consequências dessa
sedução e, finalmente, quão interessante e importante é o estado actual da
Rússia devido à viragem anterior, é a sua actual atitude para com o
Ocidente!
A história da nossa terra natal é tão original que se distingue desde o
primeiro minuto. Aí, mesmo no início, separaram-se as vias russa e
europeia-ocidental até ao minuto em que elas se encontraram de forma
estranha e violenta, quando a Rússia fez uma estranha ligação, abandonou a
via pátria e aproximou-se do Ocidente…
Todos os Estados europeus baseiam-se na conquista. A inimizade está na
sua origem. Aí, o poder era hostil, impôs-se de forma armada e violenta
entre os povos subjugados… O Estado russo, pelo contrário, foi fundado
não pela conquista, mas pelo reconhecimento voluntário do poder. Por isso
não a inimizade, mas a paz e a concórdia são o seu início… Desse modo, o
sentimento escravo de submissão esteve na base do Estado ocidental; o
sentimento livre do que reconhece, de forma consciente e voluntária, esteve
na base do Estado russo. O escravo revolta-se contra o poder que ele não
compreende, que lhe foi imposto contra a sua vontade e que o não
compreende. O homem livre não se levanta contra o poder que ele
compreende e reconhece voluntariamente.
Resumindo, na base do Estado ocidental estão a violência, a escravidão e
a inimizade. Na base do Estado russo estão a voluntariedade, a liberdade e a
paz. Essas bases constituem uma diferença importante e decisiva entre a
Rus e a Europa Ocidental e determinam a História de uma e outra.
Vias completamente diferentes… até ao ponto de nunca se poderem
encontrar e os povos que as seguem jamais chegarão a acordo nas suas
visões… essas vias tornaram-se ainda mais diferentes quando a mais
importante questão para a humanidade se juntou a elas: a questão da Fé. A
bênção cobriu a Rus. A fé ortodoxa foi por ela aceite. O Ocidente avançou
pelo caminho do Catolicismo… se não nos enganamos, podemos dizer que,
por mérito, foram dadas as vias verdadeira e falsa da fé: a primeira foi para
a Rus e a segunda para o Ocidente…
Da história russa

A história da Rússia é totalmente diferente da europeia ocidental e de


qualquer outra história. Não a compreenderam até ao presente porque
queriam colocá-la em quadros históricos feitos, copiados do Ocidente, e
quiseram-na enfiar à força neles porque pretendiam ensinar-lhe e não
aprender com ele; resumindo, porque se esqueceram da raiz popular e
perderam a visão russa original… Havia patriotas à maneira ocidental,
desejavam ver na história da Rússia todos os heróis ocidentais, todos os
gloriosos feitos, e eles pintaram a história da Rússia com cores estrangeiras.
Claro que a coisa não teve êxito e a história ficou ainda mais feia…
A história da Rússia, em comparação com a história do Ocidente da
Europa, distingue-se por uma simplicidade tal que leva ao desespero os que
não estão habituados a artimanhas teatrais.
O povo russo não gosta de se pôr em poses bonitas; na sua história não
encontrarão uma única frase, qualquer efeito bonito, qualquer traje vistoso,
como os quais vos surpreende e atrai a história do Ocidente, o indivíduo na
história da Rússia não desempenha um grande papel; o indivíduo precisa de
orgulho, mas nós não possuímos orgulho e toda a sua beleza sedutora…
Não é por falta de forças e de espírito, não é por falta de coragem que surge
fenómeno tão humilde! Quando o povo russo foi obrigado pelas
circunstâncias a revelar as suas forças, mostrou-as de tal forma que povos
orgulhosos e conhecidos pela coragem, combatentes ousados da
humanidade, se transformaram em pó perante ele, humilde, mas que, no
momento da vitória, tem piedade. A humildade, no verdadeiro sentido da
palavra, é uma força do espírito incomparavelmente maior e superior a
qualquer valentia orgulhosa, destemida… Mas o povo russo também não se
deixou cair noutro orgulho, no orgulho da humildade, no orgulho da fé, isto
é, não se orgulhou pelo facto de ter fé. Não, trata-se de um povo cristão no
verdadeiro sentido da palavra, que sente constantemente a sua natureza
pecadora… Pois é, não pensem que considerei a história da Rússia a
história de um povo santo… Não, claro que é um povo pecador (não pode
haver um povo sem pecado), mas, como cristão, cai e arrepende-se
constantemente, não se orgulhando dos seus pecados, que não têm
precisamente as brilhantes facetas vãs, a glória, a grandeza e o orgulho
terrestre de outros povos que já não mostram a via cristã… Actualmente, a
comparação da Terra Russa com o Ocidente é necessária: 1) Porque os
adoradores do Ocidente e os desacreditadores da vida russa apontam para
ela e provocam-nos obrigatoriamente a fazer o mesmo; 2) Porque no nosso
país, presentemente, domina o ponto de vista ocidental face à vida e à
História, por isso é preciso mostrar a separação entre a vida russa e a
ocidental, a sua diferença; 3) Finalmente, porque a Rússia foi sujeita a uma
influência tão forte do Ocidente que parte da Terra Russa, precisamente as
camadas sociais que se consideram progressistas, que gozam de vantagens,
de poder e de riqueza, enveredou pela via ocidental; porque o Ocidente
entrou também na Rússia, encontra-se também nela, se não degenerando,
pelo menos deformando os Russos, levando-os atrás de si, transformando-
os em copiadores miseráveis dele e da sua falsidade, afastando-os da sua
originalidade, dos seus santos princípios natais…
Os terríveis crimes do Ocidente, a sua superação de qualquer nível de
selvajaria, a traição, todas as abominações constituem talvez o contrário da
parte negra da história da Rússia. Na história da Rússia encontramos
crimes, mas eles não têm a natureza terrível, desumana que coloca o
homem entre os animais, como um novo tipo perfeito seu, o que faz
destacar as acções sangrentas do Ocidente… Há quedas, defeitos, mas eles
não estão privados de carácter humano, e se encontramos vilania, a
impressão por ela provocada mostra como o sentimento humano está vivo
na Rússia…
O Ocidente está todo minado pela mentira interna, pela frase e pelo
efeito, ele está constantemente preocupado com a pose bonita, de retrato. O
retrato é tudo para ele. Enquanto era jovem, o retrato era bom e bonito só
por si… Mas quando a sua juventude passou, quando desapareceram as
forças efervescentes da vida e restou apenas o retrato, uma frase mesmo
sem o fervor da juventude, então isso tornou-se altamente mesquinho, ou
mesmo uma cena abominável… Tédio e indiferença, falta de energia em
todos os derramamentos de sangue e agitações. Os sonhos marasmáticos do
Ocidente, sonhos privados da sua única verdade, da fervura do sangue
jovem… que o aqueceram durante tanto tempo, tiveram nele um efeito de
meio irritadiço e fizeram entrar o seu organismo enfraquecido num
movimento mecânico…
De uma terra forte, forte acima de tudo pela fé e pela vida interior, pela
humildade e tranquilidade, Pedro quis formar um poderio e glória
terrestres… arrancar a Rus das fontes pátrias da sua vida… empurrar a Rus
para a via do Ocidente… via falsa e perigosa. Pedro submeteu a Rússia à
influência do Ocidente; a imitação do Ocidente de todos conhecida chegava
ao cúmulo. A Rússia assimilava tudo do Ocidente, a começar do início e a
acabar nos resultados, da forma de pensar até à língua e ao corte do
vestuário… Mas, graças a Deus, nem toda a Rússia, mas apenas parte
enveredou por esse caminho. Apenas parte da Rússia abandonou o caminho
da humildade e, por conseguinte, da fé, pelo menos nos actos. Mas essa
parte é forte e rica, dela depende uma outra parte que não traiu a fé e a terra
natal… Graças a Deus que no seio da parte que traiu a terra natal nasceu a
ideia de que é preciso voltar às raízes da terra natal, que a via do Ocidente é
falsa, que é vergonhoso copiá-lo, que o russo tem de ser russo, avançar pela
via russa, pela via da fé, da humildade, da vida interior, é preciso restituir o
próprio modo de vida, em todos os seus pormenores, nos princípios dessas
bases, e, por conseguinte, é preciso libertarmo-nos completamente do
Ocidente, tanto dos princípios, como dos seus rumos, modo de vida,
línguas, vestuário, usos, costumes, precisamente dessa luz e secularização
que entraram em nós, resumindo, de tudo o que tem o selo do seu espírito, o
que advém como mais pequeno resultado da sua direcção!

Aksakov, Konstantin Sergueevitch. M., 1861. V.1.


Obras Históricas, p. 2-4, 7-9, 17-24.
CAPÍTULO IV

OCIDENTALISTAS

Ao contrário dos eslavófilos, os ocidentalistas não duvidavam de que as


reformas de Pedro, o Grande, tinham um carácter positivo, vendo nelas
uma resposta às exigências do desenvolvimento histórico da Rússia. Eles
consideravam mesmo que, devido a causas objectivas, o país enveredou
pela via das reformas demasiadamente tarde, que elas foram realizadas de
forma inconsequente, não chegaram a toda a sociedade e eram travadas pela
resistência séria dos círculos conservadores. A maioria dos ocidentalistas
via também as causas do movimento lento da Rússia rumo aos cumes da
civilização europeia na especificidade russa, que, nas suas concepções, era
completamente diferente daquela que aparecia nas obras dos seus
adversários ideológicos. Nomeadamente, a história russa não tinha
quaisquer particularidades originais: teve conquistas, passou pelo
feudalismo, a comunidade rural (obschina) não é propriedade exclusiva dos
povos eslavos, mas constitui um resquício do período inicial no
desenvolvimento das reações agrárias em toda a Europa, etc. Por outras
palavras, o Estado russo avançou pelas mesmas vias que os restantes povos
europeus, mas atrasou-se deles por uma fatal convergência de
circunstâncias. Eles sublinhavam particularmente a influência funesta do
dogmatismo, da inclinação para o ascetismo e para a intolerância do
Cristianismo bizantino e as consequências do jugo tártaro-mongol. Por
conseguinte, a tarefa consistia em ultrapassar, na medida do possível, os
factores negativos que dificultavam o avanço do progresso. Tanto os
ocidentalistas liberais como os radicais viam o estabelecimento na Europa
de uma nova ordem com todas as suas vantagens e insuficiências. A
diferença nas suas atitudes face às perspectivas do desenvolvimento de
processos semelhantes na Rússia consistia em que os primeiros,
reconhecendo a inexistência no país das condições necessárias para a
implementação das relações burguesas, defendiam mudanças políticas e
sociais na vida do país que contribuíssem para a criação dessas posições,
enquanto os outros defendiam que, frequentemente, a cultura do direito e as
instituições representativas no Ocidente escondem no seu seio novas
contradições, ainda mais agudas, que a Rússia deveria evitar.
Entre os primeiros seguidores de Chaadaev, é de citar os nomes dos
ocidentalistas Vissarion Belinski (um dos primeiros intelectuais russos que
não saiu do seio da burguesia), Timofei Granovski, Serguei Soloviov,
Vassili Kliutchevskii, Vladimir Soloviov, Lev Tolstoi, etc.
Os dois grupos lutaram no sentido de influenciar a política interna e
externa da Rússia e os diferentes czares procuravam o equilíbrio entre as
duas linhas, sem se deixar prender por nenhuma delas.
Nome: Chaadaev, Piotr

Data e local de nascimento e de morte: 07 de Junho de 1794, Moscovo,


Império Russo-26 de Abril de 1856, Moscovo, Império Russo

Breve resenha biográfica: Filósofo russo, nascido numa família nobre,


cedo ficou órfão, tendo sido criado pelos tios. Em 1808 entrou na
Universidade de Moscovo, onde estudou até 1811, tendo abandonado os
estudos para se alistar nas Forças Armadas e combater o exército
napoleónico. Militar condecorado, em 1821, Chaadaev abandonou o
exército para se juntar ao Movimento Dezembrista, movimento com cujo
pensamento se familiarizou durante os tempos da Universidade, não tendo,
contudo, desenvolvido qualquer actividade no âmbito do mesmo. Assim,
entre 1923 e 1926, levou a cabo uma viagem pela Europa, tendo visitado
países como o Reino Unido, França, Suíça, Itália e Alemanha. Após
regressar à Rússia, e de uma breve detenção de 40 dias por pertencer ao
Movimento Dezembrista, Chaadaev instalou-se em Moscovo, onde levou a
cabo uma activa vida social, tendo feito bom uso dos eventos nos quais
participava para divulgar o seu pensamento. Terminou os seus dias
declarado louco pelo Estado devido ao conteúdo crítico da sua obra face ao
modus vivendi dos seus conterrâneos, tendo sido a sua obra proibida no
Império Russo.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Parte


significativa do pensamento de Piotr Chaadaev foi transmitida através de
cartas filosóficas a conhecidos que eram, não raras vezes, discutidas em
tertúlias da alta classe russa. O seu pensamento, que o próprio classificava
como Filosofia Cristã, focava-se na busca do homem pela Liberdade
Suprema e a Grande Unidade, considerando que toda a História seria o
caminho para a concretização do Reino dos Céus na Terra. Chaadaev
considerava que a Rússia herdara a sua religião e a cultura do Império
Bizantino, não sendo, consequentemente, nem um país ocidental, nem
oriental, e ficando assim fora da história da civilização. Ao isolacionismo e
à Ortodoxia estatal, o filósofo contrapunha o Catolicismo com o seu ideal
de unificação e supranacionalidade e ao qual atribuía o sucesso do Ocidente
em áreas como Cultura, Ciência, Direito e Economia. O forte criticismo à
Rússia valeu-lhe, à época, a ira do imperador Nicolau I e a declaração de
loucura.
Cartas Filosóficas (1828-1831)

Nós, vindos ao mundo como crianças ilegítimas, sem herança, sem


ligação aos homens que nos precederam na terra, não temos nos nossos
corações quaisquer ensinamentos anteriores à nossa própria existência. É
preciso que cada qual tente reatar, por si mesmo, o fio partido na família.
Aquilo que é o hábito, o instinto nos outros povos, precisamos de o meter
nas nossas cabeças à martelada. As nossas memórias não vão para além do
dia de ontem; somos, digamos, estrangeiros para nós próprios. Percorremos
o tempo de forma tão singular que, à medida que avançamos, a véspera
apaga-se-nos irreparavelmente.
É uma consequência natural de uma cultura feita de importação e de
imitação. Não existe, em nós, um desenvolvimento interno, um progresso
natural; as novas ideias varrem as antigas porque as outras não têm origem
nestas e nem nos caem do céu. Se considerarmos apenas as ideias
construídas, o traço indelével que um progressivo movimento de ideias
grava nos espíritos e que neles produz a sua força não marca as nossas
inteligências. Crescemos, mas não amadurecemos; avançamos, mas de
forma oblíqua, ou seja, naquela linha que não nos leva ao destino. Somos
como aquelas crianças às quais nunca lhes foi pedido que cogitassem por si
mesmas; quando homens não possuem nada deles, toda a sua sabedoria está
à superfície do seu ser, toda a alma está ausente de si mesmo. Eis,
precisamente, a nossa situação. Os povos são tão seres morais como os
indivíduos. Os séculos educam-nos, como os anos educam as pessoas. De
certa maneira, podemos dizer que somos um povo de excepção. Somos
daquelas nações que não parecem fazer parte integrante do género humano,
mas que existem apenas para dar uma espécie de grande lição ao mundo. O
ensinamento que estamos destinados a transmitir não estará, certamente,
perdido; mas quando nos encontraremos novamente no meio da
humanidade e quantas mais desgraças teremos de suportar para
concretizarmos o nosso destino?
Os povos da Europa têm uma fisionomia comum, um ar de família. Pese
embora a divisão geral destes povos num ramo latino e teutónico,
meridional e setentrional, existe claramente um elo comum que os une a
todos num mesmo feixe, bem visível para todos os que aprofundaram a sua
história geral. É sabido que, ainda há muito pouco tempo, toda a Europa se
denominava por cristandade e que esta palavra tinha o seu lugar no direito
público. Para além deste carácter geral, cada um dos seus povos tem um
carácter próprio, mas tudo isso não é mais do que História e tradição. Isso
constitui o património hereditário de ideias destes povos.
Cada indivíduo recebe a sua parte da herança comum, acumula na sua
vida, sem cansaço, sem trabalho, as noções esparsas presentes na sociedade
e utiliza-as em seu proveito. Tracem um paralelo com aquilo que se faz na
nossa terra e tirem as vossas ilações; quais são as ideias elementares que
podemos retirar do dia-a-dia para depois as aplicarmos de uma forma ou de
outra na gestão da vida? E reparem que não se trata aqui nem de estudo nem
de leitura, de nada literário ou de científico, mas simplesmente do contacto
de inteligências; destas ideias que se apoderam da criança no berço, que a
envolvem no meio dos seus jogos, que a sua mãe lhe bafeja nos seus
carinhos; que, sob a forma de sentimentos diversos, penetram no tutano dos
seus ossos com o ar que inspira, e que já constituíram o ser moral antes que
nasça para o mundo e para a sociedade. Quereis saber que ideias são essas?
São as ideias de dever, de justiça, de direito, de ordem. Elas resultam dos
mesmos acontecimentos que constituíram a sociedade; são elementos
integrantes do mundo social destes países.
Eis a atmosfera do Ocidente. É mais do que mera história, é mais do que
psicologia, é a fisiologia do homem da Europa. O que tendes para meter no
lugar disto em nossa casa? Não sei se podemos deduzir, daquilo que
acabámos de dizer, alguma coisa perfeitamente absoluta e daí partir para um
qualquer princípio rigoroso; mas é possível ver claramente a forma como
esta estranha situação de um povo que não pode ligar o seu pensamento a
qualquer sequência de ideias progressivamente desenvolvidas na sociedade
e decorrendo lentamente umas a partir das outras, que não tomou parte do
movimento geral do espírito humano a não ser através de uma imitação
cega, superficial, frequentemente desajeitada, das outras nações, possa
influenciar decisivamente sobre o espírito de cada indivíduo desse povo.
Constatareis, assim, que nos falta a todos um certo aprumo, um certo
método no espírito, uma certa lógica. O silogismo do Ocidente é-nos
desconhecido. Existe algo mais para além da frivolidade nas nossas
melhores mentes. As melhores ideias, por falta de ligação ou de sequência,
ofuscamentos estéreis, paralisam-se nos nossos cérebros. Está na natureza
do homem perder-se quando não encontra meio de se ligar ao que o precede
e ao que o sucede. Qualquer consistência, portanto, toda a certeza lhe
escapa.
Não o guiando o sentimento da duração permanente, encontra-se
desorientado no mundo. Há seres destes perdidos em todos os países; no
nosso é o traço dominante. Não é esta ligeireza que apontávamos antes aos
Franceses, e que de todo o modo não passava de uma maneira fácil de
conceber as coisas, que não excluía nem a profundidade, nem a amplitude
no espírito, e que colocou graça e charme infinito no comércio; é a
negligência de uma vida sem experiência e sem previsão, que não se refere
a nada mais do que a uma existência efémera do indivíduo separado do seu
meio, que não se interessa nem pela honra nem pelo progresso de uma
qualquer comunidade de ideias e de interesses, nem mesmo por esta
herança desta família com todos os seus regulamentos e perspetivas, que
definem a vida pública e privada, tendo por base a memória do passado e a
apreensão face ao futuro. Não existe nas nossas cabeças absolutamente nada
global; tudo é individual e tudo é flutuante e incompleto. Há mesmo, penso
eu, no nosso olhar algo estranhamente vago, frio, incerto, que se assemelha
um pouco à fisionomia dos povos situados no estrato mais baixo da escala
social. Em países estrangeiros, sobretudo no Sul, onde as pessoas são tão
animadas e tão expressivas, frequentemente quando comparava os rostos
dos meus compatriotas com aqueles dos indígenas, ficava espantado com a
falta de expressividade dos nossos rostos. Estrangeiros atribuíam-nos mérito
de uma espécie de temeridade irrequieta, que se nota especialmente nas
classes sociais mais baixas; mas tendo a possibilidade de observarem
apenas traços isolados do carácter nacional, não conseguiam julgar o todo.
Eles não viram que o mesmo princípio que nos torna, por vezes, tão
ousados, também nos torna incapazes de profundidade e perseverança; eles
não viram que o que nos torna tão indiferentes aos acasos da vida, também
nos torna assim face a todo o bem, a todo o mal, a toda a verdade, a toda a
mentira, e isso é precisamente o que nos rouba todos os poderosos motivos
que conduzem os homens para os caminhos do aperfeiçoamento; eles não
viram que é justamente essa audácia preguiçosa que faz que, connosco, as
próprias classes superiores, por muito que custe a admitir, não estejam
livres de defeitos que, aliás, não se encontram senão nestas últimas; eles
não viram por fim que, se temos algumas das virtudes dos povos jovens e
pouco avançados da civilização, não temos nenhumas daquelas dos povos
maduros e beneficiários de uma alta cultura. Obviamente que não quero
com isto dizer que só há defeitos entre nós e virtudes entre os povos da
Europa, Deus nos livre! O que digo é que, para julgar povos, é o espírito
geral que marca a sua existência que é preciso estudar, porque é esse
espírito, apenas, que os pode conduzir a um estado moral mais perfeito e em
direção a um desenvolvimento indefinido, e não este ou aquele traço da sua
personalidade.
As massas estão sujeitas a certas forças situadas no topo da sociedade.
Elas não pensam por si mesmas; há entre elas uma série de pensadores que
pensam por elas, que dão impulso à inteligência colectiva da nação e fazem-
na funcionar. Uma pequena parte pensa, o resto sente, em suma assim se
forma o movimento colectivo. Exceptuando para algumas raças idiotas que
mantiveram da natureza humana nada mais do que a aparência, isso é
verdade para todos os povos da terra. Os povos primitivos da Europa, os
Celtas, os Escandinavos, os Alemães, tinham os seus druidas, os seus
poetas, os seus bardos, que eram importantes pensadores à sua maneira.
Vejam estes povos do Norte da América, que a civilização material dos
Estados Unidos está tão entretida a destruir: existem, entre eles, homens
admiráveis de profundidade. E eu pergunto, onde estão os nossos sábios,
onde estão os nossos pensadores? Quem de nós alguma vez pensou, quem
de nós pensa actualmente? E, porém, situados entre as duas grandes
divisões do mundo, entre o Oriente e o Ocidente, com um cotovelo sobre a
China e outro sobre a Alemanha, deveríamos reunir em nós os dois grandes
princípios da natureza inteligente, a imaginação e a razão, e juntarmos na
nossa civilização as histórias de todo o globo. Não é este o papel que a
Providência nos atribuiu. Longe disso, ela parece não se ter preocupado
minimamente com o nosso destino. Ao suspender, relativamente a nós, a
sua acção benfeitora sobre o espírito dos homens, ela entregou-nos a nós
próprios, não quis ter nada a ver connosco, não quis ensinar-nos nada. A
experiência dos tempos não vale nada para nós; os tempos e as gerações
desapareceram sem prosperar. Dir-se-ia, olhando para nós, que a lei geral da
humanidade foi revogada para nós.
Solitários no mundo, nada demos ao mundo, nada aprendemos dele;
nunca concorremos com uma única ideia para a turba das ideias humanas;
nunca contribuímos em nada para o progresso do espírito humano, e tudo
aquilo que recolhemos deste progresso, desfigurámos. Nada, desde o
primeiro instante da nossa existência social, emanou de nós para o bem
comum da humanidade, nem um pensamento útil germinou no solo estéril
da nossa pátria; nem uma grande verdade se precipitou dentre nós; não nos
demos ao trabalho de nada imaginar nós mesmos e, de tudo aquilo que os
outros imaginaram, nada mais tomámos do que as aparências ilusórias e o
luxo inútil. Coisa rara! Mesmo no mundo da ciência que tudo abarca, a
nossa história a nada se liga, nada explica, nada demonstra. Se as hordas
bárbaras que perturbam o mundo não tivessem atravessado o país que
habitamos antes de se precipitarem para o Ocidente, mal teríamos um
capítulo para fornecer à história universal. Para darem por nós, tivemos que
nos alastrar desde o estreito de Bering até ao Oder. Uma vez, um grande
homem quis civilizar-nos e, para nos dar um prenúncio das luzes, lançou-
nos o manto da civilização; nós apanhámos o manto mas não tocámos na
civilização. Uma outra vez, um outro grande príncipe, associando-nos à sua
missão gloriosa, tornou-nos vitoriosos de uma ponta da Europa à outra;
retornados desta marcha triunfal, através dos países mais civilizados do
mundo, só trouxemos connosco ideias estúpidas e enganos mortais, cuja
consequência foram sofrimentos imensos e que nos fizeram regredir meio
século. Temos qualquer coisa no sangue que afasta todo o verdadeiro
progresso. Enfim, só vivemos para servir de uma espécie de grande lição às
distantes posteridades que tiverem inteligência; actualmente, o que quer que
digamos, somos uma lacuna na ordem intelectual.
Não me canso de admirar este vazio e esta solidão espantosa da nossa
existência social. Há aqui, certamente, uma porção de um destino
inconcebível, mas há aqui, também, sem dúvida, a parte do homem como
em tudo o que acontece no mundo moral. Interroguemos de novo a História:
é ela que explica os povos. Enquanto do seio da luta entre a barbárie
enérgica dos povos do Norte e o elevado pensamento religioso se elevava o
edifício da civilização moderna, o que fazíamos nós? Empurrados por um
fado fatal, íamos procurar na miserável Bizâncio, objecto do profundo
desprezo destes povos, o código moral que devia nortear a nossa educação.
Algum tempo antes, um espírito ambicioso tinha retirado esta família à
fraternidade universal; e nós recebemos esta ideia de uma maneira
destorcida em forma de paixão humana. O princípio revigorante da unidade
tudo animava, então, na Europa. Tudo emanava dali e tudo para lá
convergia. Todo o movimento intelectual destes tempos não pretendia senão
constituir a unidade do pensamento humano, e todo o impulso provinha
desta necessidade imparável de se chegar a uma ideia universal, que é o
génio dos tempos modernos. Estranhos a este princípio maravilhoso,
tornávamo-nos a presa da conquista. E quando, libertos do domínio
estrangeiro, poderíamos, se não tivéssemos sido separados da família
comum, tirar proveito das ideias eclodidas durante este tempo entre os
nossos irmãos do Ocidente, foi numa servidão ainda mais dura, santificada
pela nossa libertação, que caímos.
Que luzes tão intensas jorravam então na Europa, das aparentes trevas
que a tinham soterrado! A maior parte dos conhecimentos dos quais se
orgulha hoje o espírito humano tinham sido já pressagiadas nas mentes; o
carácter da nova sociedade havia já sido definido e, debruçando-se sobre a
antiguidade pagã, o mundo cristão tinha encontrado as formas do belo que
ainda lhe faltavam. Relegados no nosso cisma, nada daquilo que se passava
na Europa chegava a nós. Não tínhamos nada que ver com a grande
empreitada mundial.
As qualidades eminentes com as quais a religião tinha dotado os povos
modernos e que, aos olhos de uma saudável razão, os elevam tão acima dos
povos antigos quanto estes se elevavam dos Hotentotes e dos Lapões; estas
forças novas, que ela tinha enriquecido com inteligência humana; estes
costumes, cuja submissão a uma autoridade desarmada os tinha tornado tão
calmos quanto antes tinham sido brutais; nada disso tinha sucedido
connosco. Mesmo apesar de usarmos nomes cristãos, quando o
Cristianismo fazia avanços majestosos na via que lhe tinha sido delineada
pelo seu divino fundador, arrastando gerações com ele, nós estávamos
estáticos.
À medida que o mundo inteiro se reedificava, nada se edificava na nossa
casa; persistíamos encolhidos nos nossos tugúrios de madeira e de palha.
Em resumo, os novos destinos da humanidade não se cumpriam em nós.
Apesar de cristãos, o fruto do Cristianismo não amadurecia para nós.
Pergunto-vos, não será absurdo supor, como geralmente costumamos fazer,
que este progresso dos povos europeus, tão lentamente cumprido por uma
acção tanto directa como evidente de uma força moral única, é passível de
ser apropriado por nós de uma assentada só e sem nos darmos ao trabalho
de perguntar como é que se faz?
Mas então, dir-me-ão, não somos nós cristãos, e seríamos nós incapazes
de ser civilizados, a não ser à maneira europeia? Sem dúvida que somos
cristãos; mas os Abissínios não o são também? Certamente que se pode ser
civilizado fora da Europa: não se é no Japão e até mesmo mais do que na
Rússia, fazendo fé num dos nossos compatriotas? Acreditais que será o
Cristianismo dos Abissínios e a civilização dos Japoneses que trarão esta
ordem de coisas das quais vos falei há pouco, e que é a meta derradeira da
espécie humana? Credes que serão estas absurdas aberrações que farão
descer o céu sobre a terra?
A nossa civilização exótica empurrou-nos de tal forma para a Europa que,
apesar de não partilharmos as suas ideias, não temos outra linguagem para
além da sua; e é essa mesma linguagem que temos para utilizar. Se o
pequeno número de faculdades mentais, de tradições, de recordações que
possuímos, se nada no nosso passado nos liga a povo algum da terra, se,
com efeito, não pertencemos a nenhum sistema moral do universo, apesar
de tudo, com as nossas bitolas sociais, estamos ligados ao mundo ocidental.
Este elo, assaz frágil na verdade, que nos une menos intimamente à
Europa do que julgamos, que não nos desperta em todos os aspectos do
nosso ser o grande movimento que advém, faz reféns, todavia, todos os
nossos destinos futuros dos da sociedade europeia. Desse modo, quanto
mais procurarmos mesclarmo-nos com ela, melhor estaremos. Vivemos até
agora sós; o que aprendemos com os outros permaneceu fora de nós como
uma simples decoração, sem penetrar na profundidade das nossas almas;
hoje as forças da sociedade soberana cresceram de tal forma, o seu efeito
sobre o resto da raça humana ganhou tanto em extensão, que em breve
seremos levados pelo turbilhão universal, corpo e alma.
Isso é certo, seguramente não saberíamos ficar muito mais tempo no
nosso deserto. Façamos, portanto, tudo o que pudermos para preparar os
caminhos para os nossos netos. Não podendo deixar-lhes aquilo que não
tivemos: crenças, uma razão construída pelo tempo, uma personalidade de
traços fortes, opiniões desenvolvidas ao longo de uma longa vida
intelectual, animada, activa, fecunda em resultados, deixemos-lhes pelo
menos algumas ideias que, mesmo que não as tenhamos encontrado nós
próprios, transmitidas de geração em geração, terão, todavia, algo de
elemento tradicional, e por isso mesmo adquirirão uma certa força, uma
certa capacidade de produção a mais do que aquela que é atribuída ao nosso
pensamento. Teremos prestado um serviço à posteridade e não teremos
passado inutilmente sobre a terra.

Chaadaev, P. Obras e cartas escolhidas. M. 1991,


pp. 28-35, 132-133.
Nome: Soloviov, Serguei

Data e local de nascimento e de morte: 17 de Maio de 1820, Moscovo,


Império Russo-16 de Outubro de 1879, Moscovo, Império Russo

Breve resenha biográfica: Historiador e professor universitário. Filho de


sacerdote, a sua educação teve uma orientação profundamente religiosa. Os
estudos superiores de Soloviov tiveram lugar na Faculdade de Filosofia da
Universidade de Moscovo, tendo sentido especial curiosidade face à
história da Rússia, nas suas vertentes religiosa, jurídica, etnográfica, política
e literária. Após terminar os estudos, viajou pela Europa, visitando Berlim,
Heidelberg, Paris, Praga, entre outras cidades, leccionando língua russa a
filhos de nobres. Depois de regressar à Rússia foi professor universitário de
História, tendo chegado a Reitor da Universidade de Moscovo.
Paralelamente, leccionou História da Rússia à família imperial russa. Um
dos pais da historiografia russa moderna, a sua obra-mestra é a História da
Rússia, em 29 volumes.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: De
acordo com Soloviev, a natureza foi generosa com a Europa Ocidental e
desfavorável à Europa Oriental. Assim, no primeiro caso, ela foi favorável
ao desenvolvimento civilizacional, no segundo impediu-o. Segundo ele, nos
tempos primordiais da actual Rússia, o núcleo social não era a família, mas
a tribo e o país nasceu quando diversas tribos se uniram, tendo para tal
convidado um príncipe estrangeiro, num processo descrito como moroso
atendendo à imensidão geográfica do país. Fruto dessa contingência, o povo
russo aderiu muito mais tarde à civilização greco-romana do que os seus
congéneres europeus. Esse atraso, aliado à vizinhança com povos nómadas
da Ásia (com quem se via obrigado a guerrear), reflectiu-se também na
emergência tardia da Rússia na arena internacional. Uma das questões sobre
a qual Soloviov reflectiu foi em que medida a chegada de um novo líder
influiu na vida quotidiana das tribos e, por outro lado, de que maneira
determinou o tipo de relacionamento que os súbditos tinham com os
dirigentes. E aqui é destacada a forte influência do quotidiano sobre a forma
de poder exercida. Nesta formação de nacionalidade é também destacada a
conversão ao Cristianismo bizantino e a sua influência sobre o sistema
jurídico.
Na época contemporânea, a Rússia, ao aperceber-se das limitações do
relacionamento meramente comercial com a Europa, começou a buscar a
compreensão espiritual e moral, e assim essa procura do outro levou a um
maior autoconhecimento.
Aulas públicas sobre Pedro, o Grande (1872)

No nosso país, durante muito tempo, olhava-se para a obra de Pedro não
historicamente, ou com respeito reverencial face a ele, ou com reprovação.
Os poetas permitiram-se cantar: «Ele é o teu Deus, ele foi o teu Deus,
Rússia.» Semelhante ponto de vista dominou também em discursos mais
calmos, não poéticos; era uma expressão por todos empregue a de que
Pedro tirou a Rússia da inexistência para a existência. Eu considerei
semelhante ponto de vista não histórico porque, aqui, a obra de uma
personagem histórica foi separada da actividade histórica de todo um povo;
na vida do povo foi introduzida uma força sobrenatural que agia a seu bel-
prazer, enquanto o povo era condenado a uma atitude completamente
passiva para com ela; a vida multissecular e a actividade do povo até Pedro
foram consideradas inexistentes; a Rússia e o povo russo não existiam até
Pedro, ele criou a Rússia, ele tirou-a da inexistência para a existência. As
pessoas que não simpatizavam com a obra de Pedro, no lugar de combater o
ponto de vista citado, puxaram para o lado contrário; os extremos
encontraram-se e foi preciso novamente abandonar a História. Segundo o
novo ponto de vista, a Rússia antes de Pedro não só não era inexistente, mas
gozava de uma existência correcta e superior, tudo estava bem, era moral,
puro e santo; mas eis que aparece Pedro que destruiu o movimento correcto
da vida russa, destruiu o seu sistema popular, livre, espezinhou as tradições
e costumes populares, provocou a discórdia entre as camadas altas e baixas
da população. Infectou a sociedade com costumes estrangeiros, construiu o
Estado segundo um modelo estranho, obrigou os Russos a perderem a
consciência de si, o seu espírito de povo. Novamente a divindade,
novamente a força sobrenatural. Novamente desaparece a história do povo,
que se desenvolve em conformidade com as leis conhecidas, sob a
influência de condições particulares que distinguem a vida de um povo da
de outro.
Claro que ambos os pontos de vista, aparentemente contrários, mas, no
essencial, igualmente não históricos, não podem aguentar-se com o reforço
da ciência, quando observações mais atentas da vida histórica dos povos
deveriam levar à negação de semelhantes fenómenos sobrenaturais nesta
vida, quando se constatou que qualquer fenómeno, por muito grande que
seja, por muito que mude, aparentemente, a organização e a imagem do
povo, é indispensavelmente o resultado do desenvolvimento anterior da
vida do povo…
Os povos que vivem à parte, que não gostam de se aproximar de outros
povos, de viver com eles uma vida comum, esses povos são menos
desenvolvidos, eles vivem, se assim se pode dizer, num meio rural, aldeão.
O mais forte desenvolvimento regista-se entre os povos que estão em
contacto permanente entre si; esses povos são os euro-cristãos. Mas claro
que para que esse contacto desse fruto, foi necessário que um povo se
encontrasse, comunicasse com outro povo ou povos, com os quais pudesse
estabelecer uma troca de ideias, experiência, dos quais pudesse receber
algo, com os quais pudesse aprender. A passagem do povo de uma idade
para outra, ou seja, o início de um forte movimento intelectual dentro dele
começa quando um povo se encontra com outro povo mais desenvolvido,
mais culto, e se a diferença no nível de desenvolvimento, no nível de
educação entre eles é muito grande, claro que entre eles se estabelece uma
relação de mestres com discípulo; esta lei não pode ser ladeada. Por
exemplo, os Romanos, povo que tentou conquistar todo o mundo então
conhecido, ao encontrarem-se com os Gregos, povo que vivia o seu declínio
histórico, curvaram-se perante eles e entregaram-se à ciência e, através da
ciência grega, entraram na segunda idade da sua existência histórica. Mas
há um exemplo mais próximo de nós, com a nossa idade, o dos novos povos
euro-cristãos da Europa Ocidental. Estes realizaram a sua transição de uma
idade para a outra nos séculos XV e XVI também através da ciência, da
ciência alheia, através da descoberta e estudo das obras do pensamento
greco-romano antigo. Em conformidade com a lei comum, foram buscar a
ciência aos Gregos e Romanos e não queriam ouvir falar de mais nada além
de Gregos e Romanos. Ao servirem fielmente o seu novo princípio,
olhavam de forma hostil para a idade que tinham vivido, para a sua história
antiga, para os princípios que aí dominavam, para o sentimento e
consequências desse domínio. Eles contrapunham a sua nova vida,
embelezada para si pelo desenvolvimento de um pensamento antigo,
diferente da sua vida anterior, como a existência face à inexistência.
Aturdidos pelas poderosas influências novas, olhando mal para a idade por
eles vivida, perderam a tal ponto interesse para com essa idade que não
viram nela a sua história antiga, cujos resultados souberam viver em si, na
sua nova história, por muito que lhes tentassem renunciar com os nomes de
Platão, Aristóteles e Cícero. Para eles, a história antiga era principalmente a
história de Gregos e Romanos, aos quais, enquanto seus mestres, pais
espirituais que os fizeram ressuscitar para uma nova vida, colaram
directamente a sua nova, enquanto apresentaram a sua própria história
antiga como algo estranho, de difícil compreensão, pouco claro, nem uma
coisa, nem outra, média, daí o nome de Idade Média, história dos séculos
médios.
Assim se deu a passagem de uma idade para outra, da história antiga para
a moderna, para os povos da Europa Ocidental, para os povos das tribos
romana e germânica. Mas chegou a nossa vez, do povo da Europa Oriental,
do povo eslavo. A nossa transição da história antiga para a moderna, da
idade onde impera o sentimento para a ideia onde domina a ideia, ocorreu
em finais do século XVII e início do século XVIII. Relativamente a esta
transição vemos uma diferença entre nós e os nossos irmãos europeus, uma
diferença de dois séculos…
O povo russo, enquanto povo eslavo, pertence à mesma grande tribo
ariana, à tribo querida da História, tal como outros povos europeus, antigos
e novos, e, à semelhança deles, tem a capacidade hereditária de forte
desenvolvimento histórico. Tal como os povos europeus novos, o povo
russo tem também outra condição interna substancial que define a sua
imagem espiritual: o Cristianismo; por conseguinte, as condições ou meios
internos são iguais, bem como a fraqueza interna e, por isso, não podemos
presumir atrasos. Mas quando olhamos para as condições externas, vemos
uma diferença extrema, um desfavorecimento do nosso lado que salta à
vista, que explica plenamente o atraso do desenvolvimento.
São conhecidas as condições favoráveis para o desenvolvimento histórico
que os povos europeus encontram nas formas geográficas da sua parte do
continente: as relações mar-terra favoráveis ao desenvolvimento industrial e
comercial; divisão, favorável à rapidez do desenvolvimento histórico, em
Estados pequenos, bem defendidos, divisão, e não isolamento provocado,
noutras regiões da Terra, por estepes e montanhas demasiadamente altas,
clima suave, etc. Mas todas essas condições favoráveis estão concentradas
na parte ocidental da Europa, nós não as temos na enorme planície oriental,
que sente falta de mar e proximidade das estepes. Por conseguinte, as
causas do atraso do desenvolvimento nas condições externas desfavoráveis
são claras para nós à primeira vista. Também à primeira vista impressiona a
imensidão do Estado russo; mas a imensidão do Estado tem grande
significado em certas condições, se a população for homogénea, se o seu
número for suficiente em comparação com a imensidão e se o povo for
instruído; claro que, em iguais condições entre dois Estados, é mais forte o
maior; mas se não se registarem essas condições, a imensidão de um Estado
não só não lhe dá força em comparação com um pequeno Estado que possui
todas essas condições, mas constitui também o principal obstáculo ao
desenvolvimento do povo. Na história do nosso povo, isso é tanto mais
sensível porque a Rússia nasceu como um imenso Estado e com uma
população comparativamente minúscula. Claro que a vida comum, a
actividade comum no povo só pode ser forte quando a população se
concentrar em áreas que não dificultem a comunicação frequente, quando
existem muitos lugares próximos uns dos outros onde se concentra
numerosa população, lugares chamados cidades nas quais, como já vimos, o
desenvolvimento ocorre mais depressa do que entre a população rural, que
vive em pequenos grupos a distâncias um dos outros.
Também no século XVII, na véspera da época da transformação, a Rússia
apresentava-nos, num enorme espaço, um pequeno número de cidades com
uma quantidade surpreendentemente minúscula de população industrial:
essas cidades não passavam de grandes vilas muradas, fortalezas que
tinham mais importância militar do que industrial e comercial; estavam a
grandes distâncias umas das outras e eram extremamente difíceis as
comunicações, principalmente na Primavera e Outono. Desse modo, a
Rússia, na sua história antiga, era um país primordialmente rural, agrícola, e
semelhantes países são obrigatoriamente pobres e desenvolvem-se de forma
extremamente lenta. Mas, além dessa condição desfavorável, vemos outras.
A Rússia é um enorme Estado continental, não defendido por fronteiras
naturais, aberto a Leste, a Sul e a Ocidente. O Estado russo baseou-se num
país que antes dele a História não conhecia, num país onde dominavam
hordas selvagens, nómadas, num país que era um amplo caminho aberto às
pragas de Deus, aos povos selvagens da Ásia Central que tentavam pilhar a
Europa. Baseado nesse país, o Estado russo estava desde o início condenado
a fazer constantemente o trabalho sujo, a permanente luta difícil e esgotante
contra os habitantes das estepes… Só em finais do século XVII, no fim da
nossa história antiga, o Estado russo conseguiu libertar-se do envio de
oferendas constantes e obrigatórias, ou seja, simplesmente tributos, ao Cã
da Crimeia. Mas mal a Rússia começou a saber lidar com o Oriente, no
Ocidente apareceram inimigos mais perigosos quanto aos seus meios. A
nossa martirizada Moscovo, fundada no meio do solo russo e reunidora de
territórios, teve de se defender de dois lados, do Ocidente e do Oriente,
proteger-se do latinismo e do Islão, recorrendo a velhos termos, e devia
sofrer desgraças dos dois lados: ardia por causa dos Tártaros, ardia por
causa dos Polacos. Por isso, um povo pobre, disperso por territórios
imensos, teve de, constantemente, com um esforço inimaginável, reunir as
suas forças, dar o último kopek [centavo], ganho com grande esforço, para
se livrar dos inimigos que o ameaçavam de todos os lados, para conservar o
principal bem, a independência nacional. Pobre em meios, o país rural e
agrícola devia manter constantemente um grande número de tropas.
Quem desconhece que a formação e manutenção de tropas é uma questão
importante, vital, para cada um, principalmente para um Estado
continental?
O aparecimento de tropas regulares é um sinal claro de viragem
económica na vida do povo, de desenvolvimento industrial e comercial, de
aparecimento de bens móveis, de dinheiro junto da propriedade imóvel. A
terra é um sinal que coincide de forma natural e indispensável com outros
sinais: com a libertação da classe agrária, com o aparecimento do trabalho
assalariado livre no lugar do obrigatório, servil. A cidade, depois de se
enriquecer, liberta o campo, porque no organismo do povo todos os órgãos
se encontram em estreita ligação, o reforço ou o enfraquecimento de um
reflecte-se no reforço ou enfraquecimento de outro.
Assim aconteceu no Ocidente. Olhemos para o Oriente. As leis de
desenvolvimento são as mesmas lá e cá, a diferença advém de condições
mais ou menos favoráveis, que aceleram ou travam o desenvolvimento. No
Oriente, na nossa Rússia, temos um Estado pobre, agrícola, sem
desenvolvimento da cidade, sem forte movimento industrial e comercial,
com um Estado enorme, mas com pouca população, um Estado que devia
constantemente manter uma luta dura contra os vizinhos, luta não ofensiva
mas defensiva, sendo que não se defendia o bem-estar material (os nossos
antepassados não estavam mimados!), mas a independência do país, a
liberdade dos habitantes, porque se as tropas russas não chegassem a tempo
às margens do Oka para vigiar o tártaro, se o deixassem passar nalgum
lugar, os mercados muçulmanos orientais enchiam-se de escravos russos.
Um Estado pobre, pouco povoado, deve precisamente manter um grande
exército para defender as fronteiras que se estendem por longas distâncias e
estão abertas. Claro que aqui deparamo-nos com um fenómeno comum aos
Estados agrários: o estrato social militar, as tropas são mantidas à custa da
camada não armada. Um Estado pobre, mas que é obrigado a manter um
exército numeroso sem ter dinheiro, devido ao subdesenvolvimento da
indústria e do comércio, distribui terras entre os que prestam serviço militar,
mas a terra para os proprietários não tem valor sem agricultores,
trabalhadores, e há falta destes. A mão-de-obra é cara, há uma luta
constante por trabalhadores entre os donos das terras que são atraídos pelos
donos de terras que possuem latifúndios; os mosteiros atraem com grandes
vantagens os trabalhadores dos agricultores mais pobres, dos pequenos
latifundiários que não podem dar condições vantajosas, e o agricultor pobre,
não tendo trabalhadores, fica privado de alimentar com a agricultura a sua
família, fica impossibilitado de prestar serviço militar, de se apresentar, ao
primeiro pedido do Estado, na forma devida, a cavalo, com um certo
número de pessoas e bem armado… O que fazer nesta situação? A principal
necessidade do Estado é ter tropas prontas, mas o guerreiro recusa-se a
prestar serviço, não participa nas campanhas porque não tem meios de
sobrevivência, não tem com que se armar, tem terra, mas não tem
trabalhadores. E o único meio de satisfazer essa principal necessidade do
país foi encontrado na redução dos camponeses à servidão, para que eles
não saíssem das terras dos latifundiários pobres, não fossem atraídos pelos
ricos, para que o senhor tivesse sempre trabalhadores na sua terra, tivesse
sempre meios para estar pronto a participar nas campanhas.
Durante muito tempo, os estrangeiros, e os Russos a seguir a eles, ficaram
espantados e zombariam deste fenómeno: como é que aconteceu que, ao
mesmo tempo em que na Europa Ocidental a servidão da gleba desaparecia,
ela era introduzida na Rússia? Hoje, a ciência mostra-nos claramente como
isso aconteceu: na Europa Ocidental, graças à sua situação favorável,
aumentou a actividade industrial e comercial, a unilateralidade na vida
económica, o domínio da propriedade imóvel, as terras desapareceram,
perto delas apareceu propriedade móvel, dinheiro, aumentou a população, a
cidade enriqueceu e libertou o campo; mas, no Oriente, formou-se um
Estado em condições mais desfavoráveis, com uma enorme área e pouca
população, que precisa de numerosas tropas, obrigado a ser militar, embora
nada agressivo, sem quaisquer desejos de conquista, que tem em vista
apenas a defesa constante da sua independência e da liberdade da sua
população; um Estado pobre, agrícola, e, logo que as relações nele entre
partes da população começaram a ser determinadas pelas necessidades
principais da vida do povo e do Estado, ele apresentou um fenómeno
conhecido em semelhantes Estados: a parte armada da população é
alimentada directamente à custa dos desarmados, possui terra onde o
homem desarmado é um trabalhador servo. E será que em todos os Estados
da Europa a servidão entre a população agrícola desapareceu de repente e
há muito? Nos Estados da Europa Central, ela continuou até ao presente
século e a causa disso esteve na vagarosidade do desenvolvimento
económico.
Mas para explicar o fenómeno através da comparação, não nos devemos
limitar apenas à Europa; à Europa está ligada outra parte da Terra,
descoberta pelos povos europeus-cristãos, ocupada por eles, com a
implementação, daí advinda, de uma vida comum com a Europa: a
América. No século XVI, esse país estava em condições económicas
principais iguais ao Oriente da Europa, à Rússia: um país enorme, que
necessita terrivelmente de mão-de-obra. E que fazem nele os europeus
ocidentais que tanto se gabam da libertação rápida da população rural nos
seus países? Organizaram aí a escravidão da população rural em dimensões
amplas e horrorosas através do transporte de escravos negros de África,
acalmando a sua consciência civilizacional com a sabedoria astuciosa de
que os negros não são pessoas como os brancos, que não tiveram origem
em Adão.
A redução dos camponeses à servidão foi um grito de desespero do
Estado que se encontrava numa situação económica sem saída… Durante
muito tempo, toda a atenção do homem russo esteve virada para o Oriente,
para o mundo das estepes, dos bárbaros predadores, dos povos nómadas,
não cristãos, que se encontravam num nível mais baixo de desenvolvimento
do que o povo russo. O homem russo tinha consciência da sua brusca
diferença em relação a esses povos e, encontrando-se na idade em que o
sentimento prevalece, teve consciência da sua brusca diferença em relação
ao bárbaro das estepes na religião; não russo e tártaro, mas cristão ou
muçulmano, ou pagão, eram essas as noções que vinham à frente. Aqui
passava uma clara fronteira moral entre o povo russo e o mundo asiático.
Mas no Ocidente os povos são outros, povos com outro carácter. E aqui,
sublinhe-se, a diferença religiosa passou para primeiro plano, isto é, a
diferença de crença, cristão ortodoxo ou simplesmente cristão, cristão no
fundamental, e latino (romano), luterano, calvinista; lá, no Ocidente, a
diferença de fé levou ao aparecimento de uma clara fronteira moral do povo
russo, é por isso que dizemos que a Ortodoxia esteve na base do povo russo,
conservou a sua individualidade espiritual e política. Sob a sua bandeira, a
Rússia Oriental ergueu-se e reuniu-se para não permitir que o trono de
Moscovo fosse ocupado por um latino, por um rei polaco ou pelo seu filho;
sob a sua bandeira, a Rússia Ocidental defendeu a sua independência na luta
contra a Polónia. Nós dissemos que a Rússia está mal defendida pela
natureza, está aberta a Ocidente, Sul e Ocidente, é de fácil acesso a ataques
inimigos; mas a falta de forças nas fronteiras físicas é substituída pelo povo
russo por fronteiras espirituais, pela diferença espiritual a Oriente e a Sul,
pela crença a Ocidente; nessas fronteiras manteve-se forte o povo russo e
conservou a sua particularidade e independência.
Depois, claro que o homem russo prestou atenção a outros traços de
semelhança e de divergência entre os seus vizinhos, entre os povos com
quem mantinha relações, e, em conformidade com esses traços, começou
também a definir as suas atitudes para com eles. O homem russo notou, por
exemplo, a semelhança e a diferença tribal e pôs os Polacos-lituanos num
lugar à parte, os Alemães, ou seja, todos os povos europeus ocidentais de
origem não-eslava, pôs à parte. Notou igualmente a diferença entre o
homem oriental e o ocidental, o asiático e o europeu-ocidental, a rudeza do
primeiro, a mestria, a instrução do segundo. Em comparação com a sua
própria pobreza, o homem russo ficou particularmente surpreendido com a
riqueza do estrangeiro ultramarino, do inglês, do holandês, do hamburguês,
do liubequiano, riqueza e arte (iniciativa empresarial): o estrangeiro
ultramarino traz as mercadorias necessárias, mas que o homem russo não
sabe produzir, os estrangeiros ultramarinos têm muito dinheiro e, além
disso, sabem realizar os seus negócios, sabem fazê-los em conjunto, sabem
chegar a acordo e apostar no seu, enquanto os Russos fazem comércio
separadamente, não sabem chegar a acordo, ajudar-se uns aos outros e, por
isso, perdem sempre frente aos estrangeiros, não podem competir com eles,
tal como eles próprios referem. Os estrangeiros trazem produtos caros, que
não se cultivam nos seus países, cultivam-se muito longe, para lá do
oceano; mas os estrangeiros navegam nos seus barcos por todos os mares,
atracam em todas as terras, compram barato, vendem caro e obtêm grandes
capitais. O russo olha com atenção para os estrangeiros, para os mais ricos
de entre eles, os mais habilidosos, e vê que os estrangeiros mais ricos e
hábeis são os ribeirinhos, os que têm mais barcos, navegam e comerceiam
em todos os mares. Daí a noção para o homem russo de que o mar é uma
força que dá riqueza, daí o desejo apaixonado, a inclinação para o mar, para,
através dele, ficar um povo tão rico e habilidoso como os povos ribeirinhos.
Desse modo, a riqueza e a mestria dos estrangeiros ultramarinos,
contrapostas à própria pobreza e subdesenvolvimento, despertaram num
povo historicamente forte, isto é, capaz de se desenvolver, o desejo de sair
da sua situação difícil, lamentável, moderar a unilateralidade da vida agrária
com o desenvolvimento da indústria e do comércio, com os meios
assinalados, cuja eficácia era evidente; daí o movimento do Oriente para o
Ocidente, da Ásia para a Europa, da estepe para o mar. E esse movimento
começou imediatamente após os bárbaros orientais terem enfraquecido, os
Russos dominaram-nos, puderam respirar com mais calma, olhar para o
lado e notar a citada diferença entre si e os povos ribeirinhos, porque um
grande povo histórico não pode ficar estagnado; e se a Rússia antiga nos
parece estagnada, essa estagnação é relativa, é apenas a morosidade do
movimento em esferas conhecidas devido aos poderosos obstáculos que o
povo teve de enfrentar.
Logo que os cãs tártaros deixaram de se aproximar de Moscovo e de fazer
reféns os seus príncipes, o filho de um príncipe que esteve como refém em
Kazan, Ivan III, estabeleceu contactos com a Europa Ocidental e chamou
artesãos locais para construir templos, palácios e torres no seu Kremlin.
Ivan IV, seu neto, logo que dominou os tártaros orientais com a tomada de
Kazan e Astracã, virou imediatamente o seu olhar para o Ocidente; queria
obrigatoriamente chegar ao mar ansiado. Afastado dele pelos esforços
conjuntos de Polacos e Suecos, Ivan IV estava pronto a entregar todo o
comércio russo nas mãos dos Ingleses apenas para que estes o ajudassem a
conseguir pelo menos um porto no mar Báltico; o czar Aleksei
Mikhailovitch faz a proposta ingénua ao duque da Curlândia de lhe
autorizar a construção de navios russos nos seus portos. Isto mostra da
melhor forma o movimento e a sua direcção, como a ideia do mar se tornou
dominante, irreversível. Desse modo, os Russos já se movimentavam e a
nova via foi definida, o movimento começa a partir dos séculos XV e XVI,
simultaneamente, como resultado do movimento dos povos europeus-
ocidentais, com a sua transição de uma idade para outra; mas no nosso país,
no Oriente, esse processo avançava de forma extremamente lenta devido a
terríveis obstáculos.
A Polónia e a Suécia cortavam o caminho, escondiam o mar, era
impossível abrir caminho com as massas não organizadas como eram as
tropas russas, que necessitavam de uma transformação radical para terem
êxito. No Ocidente, o caminho está cortado e o Oriente, o Oriente das
estepes, faz os últimos esforços para manter o seu troféu, a sua prisioneira:
a Rússia. Ao mesmo tempo que o czar Ivan IV concentrava a sua atenção
no Ocidente, o Cã da Crimeia aproximou-se e queimou Moscovo, queimou-
a de tal forma que nunca mais recuperou depois disso. Logo após de,
durante o reinado do czar Boris, terem decidido a questão de que seria
melhor enviar os seus russos estudar para o estrangeiro do que chamar
mestres estrangeiros para a Rússia, logo que foi tomada essa decisão, as
estepes agitaram-se, vieram daí cossacos com impostores e realizaram a
obra de destruição, de nivelamento, ou seja, não deixaram pedra sobre
pedra, melhor do que os Tártaros. A Rússia teve de descansar durante muito
tempo, recuperar depois da «visita» desses pregadores do protesto…
Espero que do que foi dito tenha ficado claro sobre em que deviam
consistir os traços substanciais da chamada transformação, isto é, a
passagem natural e necessária do povo de uma idade para a outra. O povo
pobre tomou consciência da sua pobreza e das suas causas através da
comparação entre si e os povos ricos e esforçou-se por adquirir os meios
aos quais os povos ultramarinos deviam a sua riqueza. Por conseguinte, as
coisas tiveram de começar pela transformação económica, o Estado agrário
devia reduzir a unilateralidade da sua actividade económica através do
movimento industrial e comercial, tendo sido para isso necessário, antes de
tudo, arranjar um cantinho no mar Mediterrâneo do Norte (Báltico-
Alemão), através do qual chegava a vida comercial, industrial e histórica da
Europa, afastando-se das costas do mar Mediterrâneo do Sul. Aqui realizou-
se a lei geral segundo a qual o movimento avançava também no Ocidente.
O movimento que preparou a transição dos povos europeus ocidentais de
uma idade para a outra, da história antiga para a moderna, começou com a
mudança na sua vida económica através do aumento da actividade
industrial, comercial e marítima. Por onde normalmente começa a
exposição da história moderna? Pela descoberta de novos países e de novas
vias marítimas, sendo essas descobertas precedidas pela ascensão da cidade,
pela sua prosperidade extrema em Itália, neste país de cidades ricas, fortes,
poderosas: as repúblicas. As costas do mar Mediterrâneo Báltico-Alemão
começam a competir com as costas do mar Mediterrâneo Meridional: aí
desenvolvem-se cidades hanseáticas e holandesas, noutros países europeus
ocidentais, a diferente nível, sob a influência de diversas condições, repete-
se o mesmo fenómeno, o dinheiro, a propriedade mobiliária compete com a
terra, propriedade imobiliária, o ouro disputa com a espada. Antes as
dinastias apoiavam-se na espada, mas passaram a apoiar-se directamente no
dinheiro; os ricos mercadores Medici fundaram uma dinastia em Florença.
O desenvolvimento industrial e comercial conduz ao desenvolvimento
intelectual através do alargamento da esfera de observação, através da
intensificação da vida internacional. Aqui, o movimento científico é
indispensável e nós vemos que, na era dos grandes descobrimentos
geográficos, na época do aumento da actividade comercial e industrial, nos
países que mais se distinguiram por essa actividade, é intenso o trabalho do
pensamento com as obras deixadas pelo mundo greco-romano antigo, à
influência dos quais se sujeitaram os povos europeus ocidentais e, sob essa
influência, ocorreu a transição da história antiga para a nova, da idade do
sentimento para a idade do pensamento. Simplesmente falando, entregaram-
se os estudos a Gregos e Romanos, fizeram a escola sob a sua direcção, e
esta escola deixou, durante muito tempo, pode dizer-se para sempre, marcas
profundas, tais como as marcas que a escola deixa em cada pessoa capaz de
engolir e digerir o alimento espiritual. Nesta escola greco-romana, aquando
da excitação do pensamento através dela, os povos europeus ocidentais
debruçaram-se, antes de tudo, sobre a questão e a análise das relações que
foram o resultado do princípio que dominava na sua história antiga do
sentimento, do sentimento religioso, e, como consequência dessa análise, o
levantar do voo do pensamento como resultado do sentimento, como
consequência do choque de dois princípios, que divide entre si a história
dos povos, como consequência do pensamento e do sentimento, foi o
movimento protestante religioso que se alargou a toda a Europa Ocidental e
que provocou em toda a parte uma longa e sangrenta luta.
E também na Rússia a transição da história antiga para a nova realizou-se
segundo as leis gerais da vida do povo, mas com certas particularidades,
devido à diferença de condições em que decorreu a vida do nosso e dos
povos europeus ocidentais. No Ocidente, o conhecido movimento
económico começou há muito e avançou devagar, o que não lhe concedia a
importância de novidade, que chama particularmente a atenção que dá o
domínio ao fenómeno; o movimento mais forte e que surpreendeu pela sua
novidade foi o movimento no campo do pensamento, no campo da ciência e
da literatura, que imediatamente transitou para o campo religioso, para o
campo das relações da Igreja e da Igreja-Estado. Aqui o novo, protestando
contra o velho, contrapondo-se a ele, provocou necessariamente a luta e
uma luta mais forte, a luta religiosa, que dividiu a Europa em dois campos
adversários. Esta luta passou para primeiro plano, fazendo todos os outros
interesses passar para segundo. Na Rússia, na época da transformação, isto
é, da passagem do povo da sua história antiga para a nova, o movimento
económico continuou em primeiro plano.
Devido às condições desfavoráveis acima citadas, o nosso movimento
económico foi atrasado, mas o movimento da vida do Estado e do povo não
parou, porque se tornava cada vez mais clara a consciência da necessidade
de fazer enveredar o país por uma nova via, tornava-se cada vez mais clara
a consciência dos meios para a sua realização, e logo que a consciência se
tornou definitivamente clara, o povo teve, de súbito, de entrar de rompante
pela nova via, porque a discórdia entre a consciência de como deve ser e a
realidade só é possível numa pessoa ou num povo inteiro se a vontade for
extremamente fraca, se existir senilidade, mas o povo russo não se
encontrava nessa situação na época descrita. A reviravolta económica,
enquanto satisfação da principal exigência popular, passou para primeiro
plano e, como se realizou de súbito, fez-se sentir de forma mais forte; no
organismo do Estado não se pode mexer num órgão sem, ao mesmo tempo,
mexer noutros, e eis a causa de, juntamente com a transformação
económica, terem lugar muitas outras, mas estas consequências
encontravam-se numa situação oficial em relação à primeira. Não nos
podemos esquecer de que a Rússia realizou a sua transição da história
antiga para a moderna dois séculos após os países europeus ocidentais, por
conseguinte, entre esses povos, em cuja sociedade o povo russo entrou, já
muito tinha mudado.
Na realidade, o movimento religioso aí tinha-se acalmado e, no primeiro
plano, colocava-se também a questão económica. Recordamos que, no
Ocidente, essa época era a época de Luís XIV, que deu a França o papel
dirigente na Europa Ocidental, mas, no final do seu reinado, a França
perdeu a importância predominante. Isso aconteceu porque, inicialmente,
Colbert, famoso ministro de Luís, realizou o movimento económico, a
transição económica em França, que deu ao rei grandes meios financeiros,
mas, depois, Luís deu-se ao luxo de esgotá-los. De que ideia partiu Colbert?
As potências marítimas, Holanda e Inglaterra, enriqueceram graças a um
forte movimento industrial e comercial; para dar à França a possibilidade de
enriquecer tal como a Inglaterra e a Holanda, era necessário torná-la uma
potência marítima, despertando nela um forte movimento industrial e
comercial, o que foi feito. Aqui, por conseguinte, Colbert partiu do facto
que ocorreu aos olhos de todos, da comparação da situação das potências
marítimas com a situação das continentais, da compreensão correcta das
causas da diferença nessa situação, pois era difícil não compreender. Do
mesmo facto, da mesma comparação, partiu também a Rússia, o movimento
fundamental da época de transformação foi o mesmo movimento de
Colbert, o mesmo desejo de introduzir num Estado agrário pobre a
actividade industrial e comercial, dar-lhe o mar, pô-lo em contacto com a
actividade marítima dos Estados ricos, dar-lhe a possibilidade de partilhar
dos seus enormes proveitos. Como já vimos, este movimento é tão natural e
necessário que aqui não se pode falar de qualquer cópia ou imitação. A
França com Colbert à cabeça e a Rússia com Pedro, o Grande à frente
agiram da mesma forma, por igual motivação, segundo a qual dois homens,
um na Europa, outro na Ásia, para se aquecerem, saem para o Sol e, com
vista a evitar uma insolação, procuram uma sombra. A Rússia, depois de
realizar a viragem económica e de se aproximar da Europa Ocidental,
encontrou-a não numa guerra religiosa, completamente estranha e inútil
para a Rússia, mas numa guerra pelo enriquecimento.
Mas se na nossa transformação se destacou tanto a faceta económica,
seria extremamente imprudente não prestar atenção também a outros
aspectos que o fenómeno analisado deveria ter em conformidade com a lei
geral indispensável. Vimos que na Europa Ocidental, durante a transição
dos povos de uma idade para a outra, a ideia despertada pelo contacto com
as obras do pensamento antigo, da filosofia antiga, abordou com pergunta e
análise os resultados do sentimento dominante na sua história antiga, o
sentimento religioso, de onde teve origem um forte movimento religioso,
uma forte luta religiosa que dividiu a Europa em dois campos adversários:
Catolicismo e protestantismo. Vimos que parte dos povos europeus
ocidentais conserva e defende afincadamente as velhas crenças, as formas
arcaicas de organização da Igreja e afirma-se nisto os extremos do novo
princípio, os extremos do movimento da ideia, o seu movimento de
decomposição, de negação. Depois de ser colocada a questão dos abusos da
Igreja latina, logo a seguir nascem correntes que tentam destruir não só a
organização religiosa, mas também social. A ideia desenfreada no seu
movimento vai de Lutero até Müntzer e deste até aos anabatistas.
Semelhante extremismo provocou uma reacção da parte do Catolicismo
que, por sua vez, chegou ao extremo ao dar origem à ordem dos jesuítas.

Soloviov, S.M. Obras Escolhidas, M., 1872, pp. 45, 50.57, 62-67.
Nome: Kliuchevski, Vassili

Data e local de nascimento e de morte: 28 de Janeiro de 1841, Penza,


Império Russo-25 de Maio de 1911, Moscovo, Império Russo

Breve resenha biográfica: Historiador, chegou a presidir à Sociedade


Imperial de História e Antiguidades Russas, na Universidade de Moscovo.
Filho de um modesto sacerdote que faleceu quando Vassili tinha apenas
nove anos, a formação inicial deste historiador russo foi efetuada em
instituições de ensino religiosas. Em 1861 foi estudar História na
Universidade de Moscovo, onde fez o seu percurso profissional. Foi casado
com Anisa Borodina, com quem teve um filho.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Os


estudos de Kliuchevski centraram-se na história da vida espiritual da
sociedade russa em geral e de algumas figuras destacadas da mesma, entre
os quais, Pushkin e Pedro, o Grande. O historiador defende um
entendimento subjetivo da história russa, afastando-se de revisionismos,
críticas ou polémicas com outros historiadores. Vassili Kliuchevski baseia o
seu estudo em factos, que selecciona não pelo seu valor histórico real, mas
sim pelo seu valor metodológico.
Na opinião de Kliuchevski, o factor mais marcante da história russa é o
processo de colonização, sendo que este provoca os principais
acontecimentos. Assim, a área colonizada alargava-se em conformidade
com o crescimento do seu território, levando o país a cair e a erguer-se,
dinâmica secular que se manteve até ao período contemporâneo do
historiador. Assim, a história russa dividia-se em quatro períodos. O
primeiro período ia do século VIII ao XIII, quando a população russa se
concentrava, sobretudo, na região central e superior do rio Dniepre. Nesta
fase, o país estava politicamente dividido entre diversas cidades e no plano
económico dominava o comércio externo. A segunda fase ia do século XIII a
meados do século XV, quando a maioria da população passou a habitar entre
o Alto Volga e o rio Oka. O país continuava dividido, mas entre
principados, sendo que a base da economia residia na produção agrícola. O
terceiro período, entre a segunda metade do século XV e os anos 20 do
século XVII, marca a colonização pelos Russos dos territórios do Don e do
Volga central e a unificação da Rússia. No plano económico, é nesta fase
que começa a redução do campesinato à servidão. O quarto período, que se
estende até meados do século XIX, é o de expansão do país e da formação do
Império Russo, em que o poder é suportado pela nobreza e pela estrutura
castrense. No plano económico, além da produção agrícola que segue o
modelo da servidão, é acrescentada a produção industrial.
Influência ocidental na Rússia depois de Pedro (1890-1891)

A vida da sociedade russa no século XVIII tornou-se mais complexa do


que anteriormente. Nem todas as suas molas, com as suas finas ligações,
são visíveis à primeira vista; por isso, o desenrolar desta vida parece ao
observador superficial caprichoso e inesperado. Esse desenrolar parece-lhe
caprichoso porque é incompreensível para ele, parece-lhe inesperado
porque era difícil prevê-lo. O que é que complicou tanto a vida russa desse
século?
As reformas iniciadas pelos antecessores de Pedro e continuadas por ele.
Essas reformas foram parcialmente realizadas sob a influência da Europa
Ocidental e levadas a cabo por pessoas dessa mesma Europa. A partir de
então, a sociedade russa viveu sob a influência de origem estrangeira, nas
condições da sua própria vida e segundo as ordens da natureza do seu país.
A partir do século XVII, essa sociedade começou a ser influenciada pela
cultura estrangeira, rica em experiências e conhecimentos. Essa influência
de fora encontrou-se com os costumes locais e entrou em luta contra eles,
preocupando os Russos, confundindo os seus conceitos e hábitos,
complicando-lhes a vida, incutindo nesta um movimento intenso e desigual.
Ao complicar a vida russa com a entrada de novos conceitos e interesses, ao
provocar agitação no intelecto, a influência estrangeira já no século XVII,
com a sua luta contra os costumes locais seculares, provocou uma
consequência que ainda confundiu mais essa vida. Até ao século XVII, a
sociedade russa caracterizava-se pela integridade da sua constituição moral.
O boiardo e o servo não compreendiam de forma igualmente clara as coisas,
conheciam com diferente rigor o seu catecismo da vida; mas eles iam beber
a sua compreensão às mesmas fontes, repetiam o mesmo catecismo e, por
isso, compreendiam-se muito bem um ao outro, constituíam uma massa
moral homogénea, se assim me é permitido expressar. A influência
ocidental destruiu essa integridade. Ela não penetrou profundamente no
povo, mas nas classes superiores da sociedade, pela sua situação mais
abertas às influências externas, ela começou gradualmente a ser dominante.
Tal como racha o vidro que é aquecido de forma desigual nas suas
diferentes partes, assim a sociedade russa se dividiu devido à penetração
diferente da influência ocidental em todas as suas camadas. A cisão que
ocorreu na Igreja russa, no século XVII, foi o reflexo religioso dessa
bifurcação moral provocada pela influência ocidental na sociedade russa.
Então, passaram a estar frente a frente duas visões do mundo, duas ordens
adversárias de conceitos e sentimentos. Dois campos. Permanecendo no
seio da Igreja Ortodoxa, as classes dirigentes da sociedade começaram a
olhar com indiferença para o passado nacional, em nome do qual lutava a
cisão, e, desse modo, entregavam-se mais facilmente à influência
estrangeira. Os velhos crentes, expulsos para fora da Igreja, começaram a
odiar ainda mais as inovações importadas, acusando-as de estragar a Igreja
Ortodoxa Russa antiga, nacional e santa. A indiferença de uns e o ódio de
outros passaram a fazer parte da constituição espiritual da sociedade russa,
como novas molas que complicaram o movimento social que puxava as
pessoas para lados diferentes.
Por outro lado, no mesmo sentido agia a política externa do Estado da
Moscóvia. A reunificação da Rússia Pequena e a união com a Polónia no
século XVII, as guerras e conquistas de Pedro, o Grande, colocaram a Rússia
em novas relações externas, empurraram-na para o turbilhão internacional
da Europa Ocidental, deram-lhe novos amigos e inimigos. A Rússia tornou-
se um membro orgânico da família popular europeia e, de observadora
indiferente dos movimentos europeus ocidentais, transformou-se num
participante activo, embora, por vezes, involuntário e indesejável. Essa
participação impôs novas preocupações à diplomacia russa, introduzia
novas impressões na sociedade russa, originava novos interesses nela.
Ambas essas mudanças fizeram com que se tornasse impossível viver e agir
como se vivia e agia antes. Antes, tudo era feito segundo a tradição,
segundo o testamento dos pais e avós, segundo os hábitos deles herdados.
Tudo isso, pelo menos para as classes superiores da sociedade, não servia,
não podia ser aplicado no novo estado de coisas. Tornou-se indispensável
apostar nas novas condições, inventar outros meios, olhar atentamente para
os novos amigos e inimigos, e isso assustava o pensamento que não estava
habituado a cálculos complexos, dificultava o passo firme e enérgico. Como
na vida privada, o instinto e o hábito são mais consequentes do que a razão
hesitante, também na vida do povo a acção segundo a tradição é mais firme
do que as acções calculadas, a política da memória mais consequente do
que a política das considerações. Resumindo, a vida da sociedade russa no
século XVIII parece mais caprichosa do que a anterior, porque se tornaram
mais imperceptíveis para a nossa observação os seus motivos e mais
diversificados os seus interesses.
Uma mola, a influência da Europa Ocidental, sentia-se, ora de forma
encoberta, ora aberta, em todas as condições que tornavam mais complexa
essa vida. Após a época de Pedro, ela aumentou. Muito se discutiu sobre ela
na sociedade russa do século XVII; porém, então, ela ocupava mais o
pensamento e pouco mexia na vida. Ela era tomada às gotas, fazendo-se
caretas à tomada de cada dose e olhando com desconfiança para o seu
efeito, principalmente para o efeito religioso-moral. Enquanto se copiava do
Ocidente inovações técnicas, industriais e militares, a sociedade, a
contragosto, aceitava a influência ocidental. Mas quando essa influência
começou a chegar às ideias e costumes, levantou-se contra ela uma forte
agitação e, na véspera da coroação de Pedro, os seus adversários
começaram a cantar vitória. A Academia Eslavo-Grego-Latina, fundada
durante o reinado da czarina Sofia, foi posta ao serviço da defesa da
tradição nacional e da Ortodoxia contra todos os estrangeiros, não só
católicos ou protestantes alemães, mas também contra gregos ortodoxos. Ao
morrer, em 1690, o patriarca Ioakhim implorava, no seu testamento, aos
jovens czares irmãos [Pedro I e o seu irmão Ivan], que retirassem os oficiais
estrangeiros do comando das tropas russas.
Durante o reinado de Pedro, surgiu como por si só uma relação bastante
indefinida em relação à Europa Ocidental. Pondo de lado discussões e
dúvidas sobre se seria perigoso ou não aproximar-se dela, ele, no lugar das
assimilações tímidas dos seus antecessores, começou a colher sofregamente
os frutos práticos da cultura europeia, as inovações militares, comerciais e
industriais, a atrair mestres capazes de ensinar tudo isso aos ignorantes
russos, a construir escolas para fixar na Rússia os conhecimentos
necessários para tudo isso. Mas ao absorver a tecnologia europeia, ele
estava bastante indiferente face à vida e às pessoas da Europa Ocidental.
Para ele, a Europa era uma fábrica e oficina modelo, enquanto considerava
estranhos para a Rússia os conceitos, os sentimentos, as relações sociais e
políticas das pessoas, com base nas quais trabalhava essa fábrica. Tendo
visitado várias vezes fábricas importantes de Inglaterra, apenas entrou uma
vez no Parlamento. Ele não pensava muito sobre a questão de que a Rússia
não inventou todos esses milagres técnicos, mas sim a Europa Ocidental.
Na verdade, explicava isso de forma muito simples: a Europa Ocidental
aprendeu antes de nós as ciências do mundo antigo e, por conseguinte,
ultrapassou-nos; nós vamos ultrapassá-la quando, por sua vez, aprendermos
essas ciências. Apenas uma vez, em 1713, a bordo de um navio acabado de
sair dos estaleiros de Petersburgo, num dos minutos felizes em que ele,
satisfeito com os êxitos dos seus esforços, gostava de pôr de parte as
insignificâncias quotidianas agitadas e lançar em redor um amplo olhar para
explicar aos que o rodeavam o sentido dessa tarefa, Pedro disse aos velhos
boiardos que não apoiavam a sua causa, apontando para a nova capital,
armada, marinheiros, mestres estrangeiros: «Irmãos, podiam sonhar com
isto há 30 anos? Dizem os historiadores que as ciências que nasceram na
Grécia, expandiram-se pela Itália, França, Alemanha, que estavam
mergulhadas na mesma ignorância em que nos encontramos nós. Agora,
chegou a nossa vez: se vocês me apoiarem, talvez vivamos até ao dia em
que ultrapassaremos os países instruídos.»
Isto é, Pedro dava a resposta mais simples e inocente a essa pergunta, à
semelhança de como são resolvidas as dificuldades quotidianas por pessoas
bem-dispostas, para quê falar da submissão da Rússia à Europa Ocidental?
Tratava-se apenas de não perder o seu lugar na fila. As ciências da Grécia
passaram pela Europa Ocidental e passarão pelo nosso país se nos
prepararmos para as receber. Elas são hóspedes universais, pertencem tanto
a nós como à Europa, apenas pertenceram primeiro a ela do que a nós.
Pedro preocupou-se com a introdução do IIuminismo na Rússia, mas, não
o considerando propriedade exclusiva da Europa Ocidental; pelos vistos,
pensava que a Rússia estava ligada a essa Europa pela necessidade
temporária de tecnologia naval militar e industrial, que então florescia lá,
mas, quando satisfeita a necessidade, essa ligação se romperia. Pelo menos
a tradição oral conservou as palavras pronunciadas por Pedro a certa altura
e que manifestavam semelhante ponto de vista face à Europa Ocidental:
«Precisaremos da Europa ainda durante umas décadas e, depois, poderemos
virar-lhe as costas.»
Pelos vistos, as pessoas que rodeavam Pedro e o ajudavam nos seus
empreendimentos compartilhavam o seu ponto de vista. Mas a sociedade
russa, em silêncio, estava perplexa, não compreendendo claramente os
objectivos da reforma, e as massas populares, de tempos a tempos,
protestavam abertamente contra ela, sentido apenas o peso que ela colocava
sobre si. Atiravam as culpas para cima dos estrangeiros que rodeavam
Pedro e viam na influência ocidental ou intrigas alemãs, ou a acção de uma
força maléfica: do Anticristo. Mas a influência ocidental continuou a fazer
sentir-se depois de Pedro, apenas a atitude da sociedade russa mudou para
com ela; alguns planos tecnológicos e outros de Pedro não foram
realizados, muitas iniciativas dele não ganharam raízes e foram esquecidas
depois dele. Mas ao mesmo tempo que enfraquecia na vida estatal e
económica, a cultura ocidental penetrava na vida social, nos costumes,
conceitos e hábitos da convivência, incutindo nesta as comodidades e
adornos ocidentais, pegando-se a ele como o pó a uma roda. As
assimilações que exigiam trabalho e conhecimento deixaram de ser feitas,
mas continuou a agradável mistura. Durante o reinado de Pedro e dos seus
antecessores, nós chamámos a cultura ocidental porque precisávamos dela,
queríamos assimilá-la. Daí o pensamento anterior sobre o que se pode
assimilar dela e o que não foi substituído pela decisão de assimilar tudo o
que era agradável.
Desse modo, depois de Pedro, a influência ocidental tornou-se mais forte
e ampla, agia sobre a nossa sociedade não apenas com conhecimentos
técnicos e comodidades quotidianas, mas também com os conceitos, gostos
e paixões que ela trazia. Passaram décadas e a sociedade russa não pensava
em virar as costas à Europa Ocidental.
Essa influência foi a questão capital da nossa vida a partir de finais do
século XVII. No nosso país, muitos se debruçaram sobre ela, analisando a
sua origem, ponderavam as suas consequências. Algumas destas
consequências merecem especial atenção.
Durante os 200 anos da nossa aproximação com a Europa Ocidental, a
classe da sociedade russa educada pela sua influência atravessou várias
crises estranhas. Em geral, essa classe comporta-se com calma, não tendo
de si mesma uma consideração alta, estuda lendo livrinhos europeus,
lamenta o seu atraso e, embora ame a sua pátria, não gosta de falar dela.
Mas, de tempos a tempos, é atingida por uma onda; subitamente, fecha os
seus manuais e, depois de levantar alto a cabeça, começa a pensar que nós
não estamos nada atrasados, mas seguimos o nosso caminho, que a Rússia
vai sozinha e a Europa também e que podemos viver sem as suas ciências e
artes, com os nossos meios primitivos. Esta onda de patriotismo e de
saudade pela originalidade apodera-se da nossa sociedade de forma tão
forte que nós, que somos normalmente adeptos incondicionais da Europa,
começamos a sentir uma certa exasperação contra tudo o que é europeu e
deixamo-nos mergulhar numa fé inconsciente nas forças infinitas do nosso
povo. Que crises são estas: explosões de orgulho nacional, esmagado pela
disposição melancólica do nosso pensamento e que procura saída desse
estado oprimido, ou minutos de iluminação, quando a consciência nacional,
ao elevar-se, abarca amplamente a vida do povo e infiltra-se nas maiores
profundezas do espírito do povo? Semelhantes paradoxismos caprichosos
obrigam a pensar que na nossa atitude face à civilização europeia ocidental
há um grande equívoco. Se a sociedade que se encontra sob uma influência
cultural exterior, a derruba depois de tomar consciência da sua nocividade
ou inutilidade, esse fenómeno é compreensível: a sociedade age conforme
compreende o assunto. Mas as nossas revoltas contra a influência europeia
ocidental estão privadas de carácter prático; trata-se mais de uma polémica
académica do que de luta prática, mais de tratados sobre a originalidade
nacional do que tentativas de actividade original.
Ao revoltarmo-nos contra essa influência, não tentamos nem esconder as
suas vias, nem substituir pela própria actividade os frutos de uma cultura
estranha. Comportamo-nos como os jogadores que dizem mal das cartas no
intervalo entre duas partidas. Além disso, a influência do Ocidente em nós
advém de forma completamente natural da sua supremacia sobre nós nas
ciências e nas artes, nas comodidades quotidianas, e por fim, na experiência
histórica: o Ocidente viveu transformações sociais pelas quais nós não
passámos, mas cujas consequências podem ser também úteis em
considerações quotidianas. No Ocidente sabem mais do que nós e até para
nós podem fazer muito melhor do que nós próprios. Desse modo, o
Ocidente é para nós uma escola, uma loja de artigos úteis e uma espécie de
curso de lições históricas. Porque não gozarmos de todas essas felicidades e
se, porém, sentirmos por vezes de forma confusa que essas assimilações não
são inócuas, deve procurar-se a causa não nos benefícios assimilados, mas
no facto de não os assimilarmos de forma totalmente correcta.
Sendo assim, a questão não está na própria influência, mas no sentido que
ela recebe no nosso país, não no que ela nos traz, mas no que e como a
assimilamos.
Algumas consequências da influência ocidental mostram que a questão
reside precisamente na forma como é assimilada e não no seu conteúdo.
Essa influência ocorreu porque foi necessária a ajuda da Europa Ocidental
para a consecução bem-sucedida dos nossos objectivos nacionais. Visto que
essa influência visava servir os objectivos do bem do povo, a sua realização
e apoio deviam ser um dever de todo aquele que tem consciência e sente as
necessidades e as vantagens do seu povo. Quem mais ama a sua pátria, mais
afincadamente deve transmitir essa influência. Todo o patriota devia tornar-
se ocidentalista e o ocidentalismo devia tornar-se apenas uma das
manifestações do patriotismo. Por outro lado, os patriotas russos, quanto
mais patriotas eram, mais deviam dar valor à Europa Ocidental enquanto
vizinha útil da sua pátria, porque o reconhecimento pela ajuda é não apenas
um dever moral, mas também um impulso espontâneo de toda a pessoa
honesta e toda a sociedade não estragada. E então? Saiu tudo ao contrário.
Desde o primeiro minuto da sua acção que a influência ocidental começou a
destruir em nós o sentimento natural de apego à pátria. Quanto mais a
influência ocidental penetrava na nossa sociedade, tanto mais
frequentemente apareciam nela pessoas que perdiam o faro do pátrio, que
olhavam para ele com uma indiferença desdenhosa, ou até com asco. E, ao
contrário, aqueles em quem batia mais forte o coração pela pátria olhavam
de forma mais desconfiada, irritada ou altiva para a Europa Ocidental. No
nosso país, a influência ocidental transformou-se, de forma inconcebível e
inesperada, de meio cultural em sintoma patológico, em fonte de emoções
doentias. Ao tornarem-se mais complicadas e ao mudarem, essas correntes
antagónicas, que inicialmente foram apenas passatempos do pensamento,
transformaram-se com o tempo em doenças crónicas, hábitos nocivos da
nossa consciência. O que era um ocidentalista russo? Normalmente, era um
homem muito excitado e desorientado, que sabe onde nasceu e não
compreende qual é o povo a que pertence, onde fica a sua pátria. Tendo
aprendido a zangar-se entre si conceitos tão próximos como pátria e
nacionalidade, ele, sem dar conta disso, entrou no círculo das noções
impossíveis, dividiu o mundo em duas metades: na humanidade e na
Rússia. A pátria é um fantasma desagradável, da qual se tentam esquivar
através dos meios da civilização…
A influência ocidental detecta-se claramente em numerosos fenómenos da
nossa vida do século XVIII. Para compreender esses fenómenos, é necessário
esclarecer a atitude de cada um face à cultura europeia que nos é apontada
pela História. Para nós, a cultura ocidental não é sequer objecto de escolha:
ela é-nos imposta com a força da necessidade física. Não se trata de luz, da
qual nos podemos esconder, mas de ar que respiramos sem disso dar conta.
Mas também no ar nem tudo é saudável, por isso é preciso saber respirá-lo,
estudar a sua composição química e a temperatura. Não iremos descobrir a
circulação do sangue porque ela já foi descoberta por Harvey, não iremos
procurar bactérias porque elas já foram descobertas por Pasteur. Mas
depende de nós, da nossa vontade e compreensão, utilizar a descoberta de
Pasteur para curar os doentes ou apenas para conservar o vinho, estudar
fisiologia ou física para, apoiando-se nos naturalistas ocidentais, provar que
Deus não existe ou para tornar a nossa vida melhor do que no Ocidente.

Preparação da nobreza para o papel de condutora da influência


ocidental (1897)

Quando se fala da acção da influência externa, antes de tudo é necessário


saber como é que a sociedade sobre qual ela age olha para essa influência,
se a sociedade provoca essa influência ao procurar fora prosperidade que
ela não tem e não pode criar, ou se ela é feita através de alguma força que
pretende impor à sociedade prosperidade que ela não conhece e não
procura. A influência estrangeira penetra por diferentes vias e reage de
forma diferente, dependendo da atitude para com ela da sociedade que está
sujeita à sua acção. Quando a influência é provocada pela própria
sociedade, esta assimila-a de forma imperceptível, organicamente, com
todos os seus poros, como a planta absorve o orvalho ou o ar. Mas quando
uma cultura estrangeira é imposta à sociedade que não sente necessidade
dela, é necessário um transmissor mecânico, que através de meios artificiais
a inculque e a introduza nessa sociedade. Se se recordarem de como é que a
maior parte da sociedade russa no século XVII olhava para a Europa
Ocidental, com que preocupações e medos recebeu ela as primeiras
inovações alemãs, compreenderemos que foi necessário inculcar a cultura
ocidental, que para isso foi necessário um transmissor particular: o Estado
armado com poder e meios de influência na sociedade, ou uma classe
influente da própria sociedade.
Quem podia ser o transmissor no nosso país? No seio da sociedade russa,
havia um estrato social que já durante muitos séculos servira de arma da
poderosa influência estrangeira: o clero, que, através de meios religiosos,
introduzia na sociedade russa a cultura grega oriental. Esse estrato, ao servir
a Igreja, exercia uma acção considerável, serviços impossíveis de avaliar à
cultura e à sociedade russas, elaborava meios, motivados pelas tarefas da
Igreja, de influência nas cabeças e nos costumes, educava o povo dentro de
certos interesses e conceitos. Mas precisamente porque servia a Igreja e
aprendeu as formas de acção que estavam de acordo com as suas tarefas, o
clero não servia para ser condutor da influência ocidental, que devia servir
as necessidades do Estado, exigia modos específicos, outra preparação. Ele
nem sequer simpatizava com essa nova influência que não vinha do mundo
ortodoxo e ameaçava destruir os próprios conceitos e costumes que tinha
ensinado durante tanto tempo e que protegia no seio do povo do contacto
estranho. Estes conceitos e costumes formaram um certo modelo moral,
onde o estrato que o construiu ocupou uma certa posição com determinada
importância social…
No seio da sociedade russa havia outra classe que, pela sua situação, era
mais útil para a tarefa necessária. Na velha Rus, ela chamava-se «homens
de serviço»; no reinado de Pedro, a legislação deu-lhe um nome duplo,
polaco e russo: szlachta ou dvorianstva1. Este estrato era muito pouco
numeroso e não estava melhor preparado do que o clero para introduzir
qualquer influência cultural. Era, no fundo, um estrato militar que
considerava ser seu dever defender a pátria dos inimigos externos, mas que
não estava habituada a educar o povo, a elaborar e realizar na sociedade
quaisquer ideias e interesses de ordem superior (semelhantes àqueles com
que o clero trabalhava). No desenvolvimento intelectual e moral, ele não
estava acima da restante massa do povo e, na sua maioria, não ficava atrás
dela na antipatia para com o Ocidente herético. Mas a camada mais alta da
baixa nobreza, pela sua situação no Estado e na sociedade, assimilou
hábitos e conceitos que podiam servir para a nova causa… De entre os
numerosos «homens de serviço» provinciais, dispersos pelas regiões do
Estado da Moscóvia, destacava-se a baixa nobreza da capital, que,
normalmente, vivia na cidade de Moscovo e nas quintas e latifúndios dos
arredores e tinham títulos como intendentes, solicitadores, pequenos nobres
e habitantes de Moscovo. Ela era constituída por «famílias de serviço»
aristocráticas e completada constantemente por membros da baixa nobreza
provincial, que faziam carreira devido aos seus serviços, capacidades,
actividades económicas, etc…
Para onde não foram enviados, o que não foram obrigados a estudar os
baixos nobres russos no reino de Pedro! Eram enviados aos montes para
Londres, Paris, Amesterdão, Veneza; estudavam Navegação, Filosofia,
Matemática, Medicina…
Assim se preparou a baixa nobreza russa para o papel de condutora da
influência europeia ocidental na sua pátria. Depois de Pedro, o dever de
estudar da baixa nobreza tornou-se mais leve, pelo menos as exigências do
Governo nesse sentido eram mais condescendentes. A baixa nobreza
utilizou isso para se livrar do peso da nova ciência estranha e virou as
costas ao Ocidente?
Longe disso, longe de toda essa camada social ter feito isso. A alta
nobreza já se tinha ligado ao Ocidente por diferentes linhas que eram
difíceis romper. A actividade de Pedro envolveu a Rússia em complexas
relações diplomáticas com a Europa Ocidental e a classe superior da
sociedade, que constituía o Governo, teve de, por obrigação, manter essas
relações e, juntamente com elas, os seus laços culturais com a Europa
Ocidental. A constituição etnográfica da classe governamental puxava-a no
mesmo sentido. No reinado de Pedro, no círculo governamental restava
pouca antiga aristocracia moscovita…
Nessa classe entraram muito mais pessoas da média e até da mais baixa
nobreza… Ao lado desses novos servidores apareciam, em importantes
postos, muitos estrangeiros, que Pedro nomeou para altos cargos pelos seus
serviços ou capacidades…
Os forasteiros não se inclinavam para romper os laços da sua nova pátria
com o Ocidente natal. Por fim, as sementes da instrução lançadas na classe
de homens de serviço russos não lhe permitiam afastar-se do Ocidente
culto. Pedro queria fazer da baixa nobreza russa a condutora da tecnologia
militar e industrial da Europa Ocidental, enviava magotes de jovens nobres
para o estrangeiro a fim de estudar navegação, artilharia, engenharia e
muitas outras artes. Depois de Pedro, viu-se que essas ciências técnicas
eram bem assimiladas pela baixa nobreza, mas a permanência dos nobres
russos que as estudavam no exterior não passava sem deixar marcas: ao
verem-se no estrangeiro, olhavam para os costumes e ordem locais e
assimilavam alguma coisa. O ensino obrigatório, caseiro e estrangeiro, não
dava à baixa nobreza uma reserva significativa de conhecimentos
científicos; mas ele ensinou aos nobres o processo de estudo e despertou, de
forma imperceptível e inconsciente, o apetite para o conhecimento.
Raramente o nobre aprendia tudo o que devia estudar no estrangeiro, mas,
pelo menos, habituava-se a estudar alguma coisa, frequentemente aprendia
aquilo para o qual não tinha sido enviado…
No final do reinado de Catarina II, nas cabeças e costumes da sociedade
culta russa encontravam-se influências e sensações diversas e de diversos
tempos. Alguma coisa ainda se escondia, como lixo não limpo do dia
anterior, histórias desvanecidas, usos e crenças que se tinham mantido da
vida russa antiga. Os velhos viviam de conceitos e conhecimentos
fortemente introduzidos pela reforma de Pedro ou aprendidos à pressa na
escola primária das sucessoras do reformador. Nas cabeças mais jovens
estavam vivas as impressões de alegria ou de sentimento, de bailes ou
teatros da época de Elizabete e começaram a aparecer ideias racionalistas,
moralistas dos livres-pensadores, aprendidas com o perceptor ou o
professor do colégio militar, ou lidas nalgum livro francês recente. Essas
ideias que vagueiam tiveram uma importância especialmente grande: elas
não só erravam pelas cabeças, mas provocavam também fermentação,
graças à qual a mistura caótica de conceitos, de sentimentos e de hábitos,
que se acumularam nas mentes russas, começou a dividir-se e a cristalizar-
se, formando determinadas opiniões e convicções. Então, os traços de
silhueta, as imagens confusas sem rosto começaram a transformar-se numa
fisionomia com traços determinados e compreensíveis, dos costumes
começaram a formar-se caracteres. Essas fisionomias eram muito diversas e
a sua diversidade devia-se ao facto de, em cada uma delas, os traços
culturais se juntarem numa selecção especial…
Os resultados da influência ocidental são uma pesada impressão de jogo
fútil, de diversão. Isso aconteceu porque precisávamos da influência
ocidental para uma tarefa essencial, mas, no século XVIII, ela viu-se num
meio que vivia do trabalho alheio e que tinha ficado sem ocupação, por isso
foi obrigada a preencher o tempo livre com jogos e diversões. E isto é
natural: quem vive do trabalho alheio, termina inevitavelmente a ter de
viver só com a ajuda do próprio trabalho. Mas as experiências das pessoas
do século passado deram-nos uma lição útil: a instrução só é benéfica
quando conduz à compreensão da realidade que nos rodeia, ao serviço da
sociedade em que nos movemos.

Kliuchevski, V.O., Obras Não Publicadas. M., 1883,


pp. 13-21, 24-25, 110-112.
1 Inicialmente, estas palavras significavam a baixa nobreza.
Nome: Soloviov, Vladimir

Data e local de nascimento e de morte: 28 de Janeiro de 1853,


Moscovo, Império Russo-13 de Agosto de 1900, Uzkoe, Império Russo

Breve resenha biográfica: Editor, poeta, tradutor, crítico literário e


pensador místico. Filho do historiador Serguei Soloviov e de Poliksena
Vladimirovna, da linhagem dos Romanov. Após completar o ensino no
Liceu N.º 5 de Moscovo, ingressou na área de Ciências Exactas, na
Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo. Ainda na
juventude, teve experiências místicas e dedicou-se ao espiritismo. Em 1871,
mudou-se para Londres, para trabalhar no Museu Britânico e estudar
Filosofia indiana e pensamento medieval, tendo também aprofundado os
conhecimentos na área do espiritismo e tendo-se dedicado ao estudo da
Cabala. As suas buscas no estudo do espiritismo levaram Soloviov ainda a
França, Itália e Egipto. Após anos de jejuns e trabalho intenso, o organismo
de Vladimir Soloviov colapsou, levando à sua morte prematura.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: O
pensamento de Vladimir Soloviov centra-se na necessidade de unificação
do Oriente e do Ocidente europeu, através da reunificação das Igrejas, no
qual a aliança entre o Papa de Roma e o Czar da Rússia criariam a base
legal para uma gestão dos homens seguindo a vontade divina. A ideia de
uma unidade universal de Soloviov pressupunha a subordinação da
Ortodoxia ao Catolicismo, atendendo à ausência de uma consciência
nacional ortodoxa. Assim, uma livre união voluntária destes dois ramos do
Cristianismo permitiria o nascimento de uma teocracia livre, sendo que para
tal o povo russo teria que tomar o caminho da abnegação e assumir o
primado do Papa enquanto líder da Igreja universal.
Este pensador russo recusava o materialismo das ideias revolucionárias e
democráticas e opunha-lhes uma compreensão intuitiva e imaginativa do
mundo que tem por base o esforço moral individual. Soloviov considerava
que a ética tinha uma base religiosa, ou seja, o homem, enquanto um ser
moral, se submetesse livremente a sua vontade ao «bem absoluto», ou seja a
Deus, teria como objectivo a construção de um reino divino para a
humanidade. Neste quadro, as revoluções, o socialismo e o ateísmo seriam
incompatíveis com os ideais morais e espirituais da humanidade.
Apesar da religiosidade, Soloviov não considerava que esta se opunha à
razão; pelo contrário, defendia que se tratava de realidades complementares.
Era um veemente crítico da pena de morte e da opressão religiosa,
defendendo convictamente a liberdade de consciência.
A Ideia Russa (1888)

Já sem falar das numerosas traduções que familiarizaram a Europa com


obras exemplares da nossa literatura, vemos agora, principalmente em
França, que conhecidos escritores, que colocaram como seu objectivo pôr o
público europeu em contacto com a Rússia, executam essa tarefa muito
melhor do que talvez um russo conseguisse…
Graças a esses escritores e a muitos outros, a parte culta do público
europeu deve conhecer o suficiente sobre a Rússia em tudo o que diz
respeito às numerosas facetas da sua existência real. Mas esse
conhecimento dos assuntos russos deixa sempre aberta uma questão de
outra ordem, bastante encoberta por poderosos preconceitos, a questão que
também na própria Rússia teve, na maioria das vezes, apenas soluções
ridículas. Inútil aos olhos de alguns, demasiadamente ousada segundo
outros, essa questão, na realidade, é a mais importante de todas para os
Russos, e também fora da Rússia ela não pode ser considerada supérflua por
qualquer pessoa que pense com seriedade. Eu tenho em vista a questão do
sentido da existência da Rússia na História universal.
Quando vês como esse enorme império entrou, com melhor ou menor
brilho, durante dois séculos, no palco mundial; quando vês como ele, em
muitas questões secundárias, absorveu a civilização europeia, repelindo-a
insistentemente no que respeita a outras mais importantes, conservando
desse modo a originalidade, que, embora sendo puramente negativa, não
está privada, contudo, da sua grandeza original; quando vês este grande
facto histórico, perguntas-te a ti próprio: que sentido ele esconde atrás de si
ou nos revela; qual o princípio ideal que dá alma a esse enorme corpo, que
nova palavra este novo povo irá dizer à humanidade; o que pretende ele
fazer na história do mundo? Procuraremos conselhos nas verdades eternas
da religião. Porque a ideia de nação não é o que ela pensa sobre si no
tempo, mas o que Deus pensa dela na eternidade.
Quando penso nos raios de luz proféticos do grande futuro que iluminou
os primeiros passos da nossa história, quando recordo o acto nobre e sábio
de abnegação nacional que criou, há mais de mil anos, o Estado russo, na
época em que os nossos antepassados, vendo a insuficiência de elementos
locais para a organização da ordem social, por livre vontade e por
pensamento maturo, chamaram para o governo príncipes escandinavos,
dizendo-lhes palavras memoráveis: «A nossa terra é grande e fértil, mas não
há ordem nela, venham reinar e dominar-nos.» E depois do estabelecimento
tão original da ordem material, não foi menos impressionante o
estabelecimento do Cristianismo e a monumental imagem de São Vladimir,
adorador persistente e fanático de ídolos, que, sentindo-se não satisfeito
com o paganismo e uma necessidade interior de uma religião verdadeira,
meditou e aconselhou-se muito antes de tomar essa última decisão, mas,
após tornar-se cristão, desejou sê-lo na realidade e não só se entregou a
obras de caridade, tratando de doentes e pobres, mas demonstrou maior
abertura ao espírito evangélico do que os bispos gregos que o baptizaram;
porque esses bispos só através de refinados argumentos conseguiram
convencer esse príncipe, outrora tão sanguíneo, da necessidade do emprego
da pena de morte para ladrões e assassinos: «Temo o pecado», disse ele aos
seus pais espirituais. E depois, quando a seguir a este «Sol Belo» – assim
chamou a poesia popular ao primeiro príncipe cristão -, quando depois
desse Sol Belo que iluminou o início da nossa história, se seguiram séculos
de trevas e convulsões; quando depois de uma série de calamidades, atirado
para os frios bosques do Nordeste, ensombrado pela escravidão e pela
necessidade de um trabalho difícil num terreno ingrato, afastado do mundo
civilizado, dificilmente acessível até para os embaixadores do chefe do
Cristianismo, o povo russo deixou-se afundar numa barbaridade dura,
sublinhada por um orgulho nacional ignorante e tonto; quando, após
esquecer o verdadeiro Cristianismo de São Vladimir, a piedade moscovita
começou a teimar nas disputas absurdas sobre insignificâncias rituais e
quando milhares de pessoas eram atiradas para as fogueiras por demasiado
apego aos erros tipográficos nos velhos livros religiosos, de súbito, nesse
caos de barbaridade e desgraças, levanta-se a imagem de Pedro, o Grande,
colossal e única no seu género. Pondo de lado o nacionalismo cego de
Moscovo, incutido de patriotismo iluminado que via as verdadeiras
necessidades do seu povo, ele não parou perante nada a fim de trazer,
embora à força, para a Rússia a civilização que ela desprezava, mas da qual
necessitava; ele não só chamou essa poderosa civilização enquanto
poderoso protector, mas foi ter com ela como um servidor obediente e um
discípulo aplicado e, não obstante as grandes falhas no seu carácter
enquanto pessoa, ele será até ao fim um exemplo digno de admiração de
fidelidade ao dever e de valentia cívica. E, ao recordar tudo isto, dizer a nós
próprios: quão grande e maravilhosa deve ser, na sua realização final, a
causa nacional que tem antecessores tais, e quão alto deverá colocar o seu
objectivo, se não quiser cair, o país que, na época da sua barbárie,
representantes seus como São Vladimir ou Pedro, o Grande? Mas a
verdadeira grandeza da Rússia é letra morta para os nossos pseudo-patriotas
que tencionam impor ao povo russo a missão histórica à sua imagem e nos
limites da sua compreensão. Se lhe dermos ouvidos, a nossa causa nacional
consiste na coisa mais fácil deste mundo e depende só e apenas da força, da
força das armas. Acabar com o moribundo Império Otomano, depois
destruir a monarquia dos Habsburgo, colocando no lugar dessas duas
potências um monte de pequenos reinos nacionais independentes que
esperam essa hora vitoriosa da sua libertação definitiva para se lançarem
uns contra os outros. Realmente, valeu a pena a Rússia sofrer e lutar durante
mil anos, tornar-se cristã com São Vladimir e europeia com Pedro, o
Grande, ocupando, aliás, constantemente um lugar original entre o Oriente
e o Ocidente, e tudo isso para, no fim de contas, se transformar num
instrumento da «grande ideia» sérvia e «grande ideia» búlgara!
Mas dir-nos-ão que não é disso que se trata. O verdadeiro objectivo da
nossa política nacional é Constantinopla. Pelos vistos, já deixaram de ter em
linha de conta os Gregos, mas eles possuem também a sua «grande ideia»
do pan-helenismo. Mas mais importante seria saber com quê, em nome de
quê nós entraremos em Constantinopla? O que podemos levar para lá além
da ideia pagã do Estado absoluto, dos princípios do césar-papismo,
copiados por nós junto dos Gregos e que já conduziram à morte de
Bizâncio? Na história do mundo, há acontecimentos misteriosos, mas não
os há absurdos. Não! Não será esta Rússia, como hoje a conhecemos, a
Rússia que traiu as suas melhores recordações, as lições de Vladimir e de
Pedro, o Grande, a Rússia arrebatada pelo nacionalismo cego e o
obscurantismo desenfreado, não será ela que irá conquistar a outrora
Segunda Roma e pôr fim à fatal questão oriental. Se graças aos nossos
erros, essa questão não pode ser resolvida em prol da nossa maior glória, ela
será resolvida em prol da nossa maior humilhação. Se a Rússia insistir na
via do obscurantismo opressor, por onde hoje enveredou novamente, o lugar
no Oriente será ocupado por outra força nacional, significativamente menos
dotada, mas bem mais sólida. Os Búlgaros, ainda ontem tão simpáticos para
nós e por nós protegidos, são, hoje, revoltosos desprezíveis aos nossos
olhos, e, amanhã, serão os nossos adversários vencedores e senhores da
antiga Bizâncio.
Contudo, não se deve exagerar estes receios pessimistas. A Rússia ainda
não renunciou ao sentido da sua existência, não virou as costas à fé e ao
amor da sua primeira juventude. Ainda pode renunciar a essa política de
egoísmo e de estupidificação nacional, que conduz inevitavelmente ao
falhanço da nossa missão histórica. O produto falsificado, chamado opinião
pública, fabricado e vendido ao desbarato pela imprensa oportunista, ainda
não sufocou dentro de nós a consciência nacional, que saberá encontrar uma
expressão mais verdadeira para a verdadeira ideia russa. Não é preciso ir
muito longe: ela está aqui, perto, a verdadeira ideia russa testemunhada pelo
carácter religioso do povo, transformada e assinalada por importantíssimos
acontecimentos e pelas maiores individualidades da nossa história. E se isto
não basta, há um testemunho maior e verdadeiro: a revelação da Palavra de
Deus. Não quero dizer que nessa Palavra se possa encontrar algo sobre a
Rússia; pelo contrário, o seu silêncio mostra-nos o verdadeiro caminho. Se
o único povo com quem a Providência se preocupou especialmente foi o
povo israelita, se o sentido da existência deste povo único não residia nele
próprio, mas na preparação por ele da revelação cristã, e se, finalmente, no
Novo Testamento, já não se trata de uma nacionalidade separada e até se
sublinha claramente que nenhum antagonismo nacional deve ter mais lugar,
não se deve deduzir de tudo isso que, no pensamento inicial de Deus, as
nações não existem fora da sua unidade orgânica e viva, fora da
humanidade?
O povo russo é um povo cristão, e, por conseguinte, para conhecer a
verdadeira ideia russa não se pode perguntar o que é que a Rússia fará por si
e para si, mas o que ela deve fazer em nome do princípio cristão que ela
reconhece e para o bem da cristandade universal à qual supostamente
pertence. Ela deve, para cumprir verdadeiramente a sua missão, entrar de
coração e de alma na vida comum do mundo cristão e empregar todas as
suas forças nacionais com vista a realizar, em concórdia com os outros
povos, essa unidade perfeita e universal do género humano, cuja base
inalterável nos é dada na Igreja de Cristo. Mas o espírito do egoísmo
nacional não se deixa sacrificar tão facilmente. Ele encontrou entre nós uma
forma de se afirmar sem renegar abertamente o carácter religioso inerente à
nacionalidade russa. Não só admite que o povo russo é um povo cristão,
mas proclama com ênfase que ele é o povo cristão por excelência e que a
Igreja é a verdadeira base da nossa vida nacional; mas tudo isso apenas para
afirmar que a Igreja existe somente no nosso país, que temos o monopólio
da fé e da vida cristã. Desse modo, a Igreja, que é, na verdade, a rocha
inabalável da unidade e da solidariedade universais, torna-se para a Rússia
o paládio de um particularismo nacional estreito e, frequentemente, até
mesmo o instrumento passivo de uma política egoísta e odiosa.
A nossa religião, visto que se manifesta na fé do povo e no culto divino, é
perfeitamente ortodoxa. A Igreja Russa, porque conserva a verdade da fé, a
perpetuidade da sucessão apostólica e a validade dos sacramentos, participa,
quanto à essência, na unidade da Igreja Universal, fundada por Cristo. E se,
infelizmente, essa unidade existe entre nós apenas num estado latente e não
se torna uma realidade viva, a culpa disso são as correntes seculares que
prendem o corpo da nossa Igreja a um cadáver imundo, que a sufoca com a
sua decomposição…
Não foi no Ocidente, mas em Bizâncio que o pecado original do
particularismo nacionalista e do absolutismo césar-papista introduziu, pela
primeira vez, a morte no corpo social de Cristo. E o sucessor responsável de
Bizâncio é o Império Russo. E, hoje, a Rússia é o único país da Cristandade
onde o Estado nacional afirma sem reservas o seu absolutismo exclusivo, ao
fazer da Igreja um atributo da nacionalidade e um instrumento passivo do
Governo secular, onde essa supressão da autoridade divina não é sequer
compensada (dentro do possível) pela liberdade do espírito humano.
O segundo membro da Trindade social, o Estado ou o poder secular,
constitui, pela sua posição intermediária entre os outros dois, o meio
principal para apoiar ou para destruir a integridade do corpo universal.
Reconhecendo o princípio da unidade e da solidariedade representado pela
Igreja e reduzindo, em nome dessa solidariedade, a uma justa medida todas
as desigualdades produzidas pela acção livre das forças particulares, o
Estado é um poderoso instrumento de verdadeira organização social.
Fechando-se, ao contrário, num absolutismo isolado e egoísta, o Estado
perde a verdadeira base inabalável e a sanção infalível da sua acção social,
e deixa a sociedade universal sem defesa contra «o mistério da iniquidade».
Graças às suas condições históricas, a Rússia apresenta-nos o
desenvolvimento mais completo, a expressão mais pura e mais poderosa do
Estado nacional absoluto, rejeitando a unidade da Igreja e suprimindo a
liberdade religiosa. Se fôssemos um povo pagão, seria bem possível
cristalizar-nos definitivamente num tal estado. Mas o povo russo é cristão
do fundo da sua alma e o desenvolvimento excessivo que conheceu entre
ele o princípio anti-cristão do Estado absoluto não passa do reverso de um
princípio verdadeiro: o do Estado cristão, da realeza de Cristo. Este é o
segundo princípio da Trindade social e, para o manifestar com verdade e
justiça, a Rússia deve, antes de tudo, colocá-lo no lugar que lhe pertence,
reconhecê-lo e afirmá-lo não como o único princípio da nossa existência
nacional isolada, mas como o segundo dos três agentes principais da vida
social universal com que devemos ser solidários. A Rússia cristã, imitando
o próprio Cristo, deve submeter o poder do Estado (a realeza do Filho) à
autoridade da Igreja Universal (o sacerdócio do Pai) e dar uma parte à
liberdade social (acção do Espírito). O Império Russo, isolado no seu
absolutismo, não passa de uma ameaça de lutas e de guerras sem fim; se
quiser servir e proteger a Igreja Universal e a organização social, acolhê-las
sob o seu manto, trará para a família dos povos a paz e a bênção.
«Não é bom para um homem estar sozinho.» O mesmo se pode dizer em
relação a uma nação. Há 900 anos fomos baptizados por São Vladimir em
nome da Trindade fecunda e não em nome da unidade estéril. A ideia russa
não pode consistir na renegação do nosso baptismo. A ideia russa, o dever
histórico da Rússia exige de nós o reconhecimento da nossa ligação
indissolúvel com a família universal de Cristo e a aplicação de todas as
nossas faculdades nacionais, de todo o poder do nosso império à realização
completa da Trindade social, onde cada uma das três unidades orgânicas
principais, a Igreja, o Estado e a Sociedade, é absolutamente livre e
soberana, não se separando das outras, absorbendo-as ou destruindo-as, mas
afirmando a sua solidariedade absoluta com elas. Restaurar na terra esta
imagem fiel da Trindade divina, eis a ideia russa. E se esta ideia não tem
nada de exclusivo e de particularista, se ela não passa de um novo aspecto
da própria ideia cristã, se para cumprir esta missão não precisamos de agir
contra as outras nações, mas com elas e por elas, esta é a grande prova de
que a ideia é verdadeira. Porque a Verdade não é mais do que a forma do
Bem, e o Bem não conhece a inveja.

Soloviov, Vladimir. A Ideia Russa. M., 1911,


pp. 2-3, 12-17, 20-21, 48-51.
Nome: Danilevski, Nikolai

Data e local de nascimento e de morte: 10 de Dezembro de 1822,


Oberets, Império Russo-19 de Novembro de 1885, Tbilisi, Império Russo

Breve resenha biográfica: Sociólogo, cientista cultural, escritor,


estudioso da Geopolítica e naturalista. Filho do general Jacob Danilevski,
frequentou o prestigiado Liceu de Tsarskoe Selo. Formou-se na Faculdade
de Ciências Naturais da Universidade de São Petersburgo. Levou a cabo
diversas expedições, subordinadas a estudos naturalistas, que influenciaram
grandemente os seus escritos científicos dedicados à crítica ao darwinismo.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo:


Inspirado nas ciências naturais, Danilevski desenvolveu a teoria de acordo
com a qual a humanidade divide-se em subtipos histórico-culturais
(civilizações) que, à semelhança de organismos vivos, estavam em
permanente conflito uns com os outros e com o meio-ambiente e que se
constituem na forma mais complexa de organização social. Tal como
organismos vivos, as civilizações passam pela fase do nascimento,
florescimento e morte. O início de um subtipo histórico-cultural não advém
de outro subtipo, apesar das diferentes civilizações se influenciarem. Cada
civilização revela-se em quatro esferas: religiosa, cultural, política e
socioeconómica. A harmonia entre estes quatro aspectos contribui para uma
maior ou menor perfeição da referida civilização. A História resulta da
alteração de civilizações que vão retirando o espaço umas às outras,
fazendo o seu percurso desde o estado «etnográfico» ao nível estatal e
civilizado. De acordo com Danilevski, este desenvolvimento cultural só é
possível existindo independência política.
Segundo este autor, não existe uma cultura mundial. Tendo identificado
dez subtipos culturais dominantes, dedicou-se particularmente ao estudo das
civilizações europeias romano-germânicas e à civilização eslava. Nikolai
Danilevski considerava que a civilização eslava, encabeçada pela Rússia,
iria sobrepor-se à europeia, em fase de declínio, sendo que a Europa não só
era estranha à Rússia, mas inclusivamente, na maioria dos casos, tinha
interesses conflituantes. O objectivo dos Russos deve passar pela negação
absoluta de qualquer sentimento humano face aos estrangeiros,
desenvolvendo, inclusivamente, um sentimento de profundo ódio contra os
mesmos, enquanto base para a construção de uma federação eslava que terá
Constantinopla enquanto capital.
Rússia e Europa (1869)

Ouvimos difamações, conhecemos as ofensas


Dos jornais de cabeças mil,
Fruto de traições e invejas.
A nossa Rus não tem amigos!

«Olhe para o mapa» – disse-me um estrangeiro –, «será que podemos não


sentir que a Rússia nos oprime com a sua massa, que nem uma nuvem
carregada, como um pesadelo ameaçador?» Sim, a pressão do heartland
realmente existe, mas na realidade onde fica, como e quando se manifesta?
A França de Luís XIV e de Napoleão, a Espanha de Carlos V e de Filipe II,
a Áustria de Fernando II, realmente gravitavam sobre a Europa, ameaçavam
destruir o desenvolvimento independente e livre de vários dos seus povos, e
muito lhe custou livrar-se de tal pressão. Mas existe algo similar na história
passada da Rússia? É verdade que, não raras vezes, se imiscuiu nos destinos
da Europa. Mas que motivos tinha para esse envolvimento? Nos anos de
1799, 1805 e 1807, as Forças Armadas russas combateram, com diferentes
graus de sucesso, não por interesses russos, mas sim europeus. Por causa
desses mesmos interesses, que lhe eram alheios, ela chamou a si a
tempestade do ano décimo-segundo; quando varreu da face da terra um
exército de meio milhão de homens e só com isso, pelos vistos, muito fez
pela liberdade da Europa, ela não ficou por aí, não obstante isso lhe ser
vantajoso – essa era, em 1813, a opinião de Kutuzov e de todo o chamado
partido russo –, lutou dois anos pela Alemanha e pela Europa, acabando a
luta com a derrota de Napoleão, salvando assim a França da vingança da
Europa, tal como salvara a Europa da opressão da França. Passados 35
anos, ela, novamente, quase contrariando os seus interesses, salvou a
Áustria da desintegração total, considerada, de forma justa ou não, pedra
angular do sistema político dos Estados europeus. Que gratidão recebeu
tanto das lideranças como dos povos da Europa? Todos sabem bem, mas
não é isso que está em causa. Cá está tudo com que celebrizou, até agora, a
acção da Rússia nas questões da Europa, excluindo unicamente o
envolvimento infundado na Guerra dos Sete Anos. Mas essas lições de
História não convencem ninguém. A Rússia – não se cansam de gritar em
todas as direções – é um Estado conquistador colossal, que alarga de forma
ilimitada as suas fronteiras e que, consequentemente, ameaça a paz e a
independência da Europa. Essa é uma das acusações. A outra consiste em
que a Rússia representa algo semelhante a um Ahriman2 político, uma força
tenebrosa, inimiga do progresso e da liberdade. Existe justiça nisso?
Primeiramente, vamos olhar para a agressividade da Rússia. Claro que a
Rússia não é pequena, mas a maior parte do seu espaço foi ocupada pelo
povo russo pelo povoamento pacífico e não pela conquista estatal. A parte
que calhou ao povo russo constitui uma área bastante natural – tão natural,
como por exemplo a França, mas em dimensões gigantes – fortemente
marcada, por todos os lados (com algumas excepções a Ocidente) por mares
e montanhas… Nunca a execução por um povo da sua acção histórica lhe
custou tão poucas lágrimas e sangue. Ele aguentou muitas inverdades e
opressão por parte de Tártaros e Polacos, Suecos e cruzados, mas não
oprimiu ninguém, se não chamarmos opressão à resposta a ataques injustos
e reivindicações. O edifício nacional por ele erguido não se baseia em
ossadas de povos violados. Ou ocupou os espaços vazios, ou uniu-se pela
via histórica, pela assimilação não violenta com tribos como as Chude, Ves,
Meria ou os atuais Komi, Mari, Morda3, que não tinham na sua génese nem
um embrião de vida histórica, nem aspiravam a ela; ou que, por fim, tomou
sob seu abrigo e proteção de povos que, cercados por inimigos, já tinham
perdido a sua independência nacional ou não eram capazes de a continuar a
manter, como os Arménios e Georgianos. A conquista teve nisso um papel
insignificante, como é fácil de compreender se observamos como a Rússia
obteve as suas fronteiras do Ocidente e do Sul, chamadas na Europa de
conquistas da incessantemente avarenta Rússia…
As conquistas da Rússia incluem os diferentes trechos que assim podem
ser denominados, limitando-se à região do Turquestão4, os cumes do
montanhoso Cáucaso, cinco ou seis regiões da Transcaucásia e, se
quisermos, ainda a península da Crimeia. Mas se olharmos para a questão
com consciência e justiça pura, nenhuma região da Rússia pode ser
considerada conquista no sentido pejorativo, antinacional e, por isso, em
termos odiosos para a humanidade. Será que muitos Estados podem falar
assim de si? A Inglaterra conquistou, mesmo ao seu lado, o Estado celta – e
como conquistou! – tirando ao povo o direito de propriedade da sua terra
pátria, através da fome obrigou-o a mudar-se para a América, e à distância
de quase meio globo terrestre conquistou os reinos e povos da Índia,
contabilizados em quase 200 milhões de almas; tirou Gibraltar à Espanha, o
Canadá à França, o Cabo da Boa Esperança à Holanda, etc. Terras
inabitadas ou habitadas por tribos selvagens pré-históricas, na quantidade
de pelo menos 300 000 milhas que não considero conquistadas. A França
tirou à Alemanha a Alsácia, a Lotaríngia, o Franco-Condado; à Itália tirou
Córsega e Nice; no ultramar conquistou a Argélia. E quanto conquistou e
quanto lhe foi retirado! A Prússia arredondou e uniu os seus membros
espalhados à conta da Polónia, relativamente aos quais não tinha nenhum
direito. A Áustria pouco ou quase nada retirou com recurso à espada, mas a
sua própria existência é um crime contra o Direito dos povos. Em tempos
idos, a Espanha dominava a Holanda, grande parte da Itália, conquistou e
destruiu civilizações inteiras na América…
Assim, a constituição do Estado russo, as guerras que levou a cabo, os
objectivos que perseguiu e, ainda mais, as boas oportunidades que tantas
vezes se repetiram e que não pensava aproveitar, tudo demonstra que a
Rússia não é uma potência ambiciosa e conquistadora que, no período mais
recente da sua história, na maioria das vezes, sacrificou as suas vantagens
mais evidentes, os mais justos e legítimos interesses europeus, muitas vezes
considerando que era seu dever agir não como organismo autónomo
(encerrando o seu fim, encontrando em si justificações suficientes para os
seus objectivos e acções), mas como uma força ao serviço. De onde e por
que razão, pergunto, vem a desconfiança, a injustiça, o ódio face à Rússia
por parte dos governos e opiniões públicas da Europa?
Abordarei outra acusação capital contra a Rússia. A Rússia enquanto
redutora da luz e da liberdade, força tenebrosamente escura, Ahriman
político, como acima referi. O famoso Rotteck formulou a ideia (que,
infelizmente, não posso citar à letra porque não tenho à mão a sua História)
de que qualquer prosperidade da Rússia, qualquer desenvolvimento das
suas forças internas, o aumento do seu bem-estar e poderio são uma
desgraça social, uma infelicidade para toda a humanidade. Esta opinião de
Rotteck é apenas uma demonstração da opinião pública da Europa. E tudo
isso baseia-se novamente na mesma base arenosa que as ambições e o
espírito de conquista da Rússia. Independentemente da forma de governo da
Rússia, sejam quais forem os defeitos da administração russa, do sistema
judicial russo, do sistema fiscal russo, etc., considero que ninguém terá nada
que ver com isso até ao momento em que ela tentar impingir isso a outros.
Se tudo isso é assim tão mau, pior para ela e melhor para os seus inimigos e
para os que lhe desejam mal. A diferença de princípios políticos não pode
servir de óbice à amizade de governos e povos. Não era a Inglaterra uma
constante amiga da Áustria, não obstante o constitucionalismo de uma e
absolutismo da outra? Não gozam o Governo e povo russo de simpatia da
América e vice-versa? Só a intrusão maliciosa da Rússia na política interna
de países estrangeiros, a opressão através da qual obstaria ao
desenvolvimento da Europa, podem colocá-la sob crítica justa e provocar
indignação. Vamos então ver porque mereceu a Rússia, que culpa tem
perante a Europa? Até à Revolução Francesa, nem podemos falar de tal
ingerência, de tal pressão, pois entre os princípios políticos do continente
europeu e da Rússia não existia qualquer distinção visível. Pelo contrário, a
governação da Catarina, em termos de justiça, era tida como uma das mais
avançadas, progressistas, como se diz actualmente. É verdade que, no final
do seu reinado, Catarina tinha por objectivo armar-se contra a revolução, o
que aliás foi feito pelo seu herdeiro. Mas se a Revolução Francesa deve ser
considerada a tocha da liberdade, então toda a Europa se apressou a apagar
e encharcar essa tocha, e na sua dianteira ia a constitucional e livre
Inglaterra. A participação da Rússia nessa acção conjunta foi de curta
duração e insignificante. Aliás, as vitórias de Suvorov foram então
aplaudidas por toda a Europa. É claro que as guerras contra Napoleão não
foram, nem eram consideradas guerras contra a liberdade. Essas guerras
acabaram e se a derrotada França recebeu naquele momento uma forma de
governo livre, então deve-o ao imperador Alexandre. Durante as guerras
pela independência, muitos Estados prometeram aos seus súbditos
constituições, mas ninguém cumpriu a sua palavra, excepção feita,
novamente, pelo imperador Alexandre face à Polónia…
Mas se nos quisermos enfurecer por recomendações e influências
recíprocas, dadas por uns governos a outros governos, então é claro que a
Rússia teria tanto (se não mais) direito para desgostar da Áustria, bem como
de outras casas reais germânicas, tal como a Alemanha face à Rússia. Não
se poderá atribuir a Metternich a alteração de pensamento que se deu no
imperador Alexandre após 1822? Não terá sido essa influência do
desagrado de Kapodístrias, do sentimento de inimizade, adoptado face à
Grécia e em geral em relação à política nacional e, por fim, não foi essa
influência a razão de toda a alteração de direcção na educação da sociedade
na época de Shiskov e Magnitski? E depois, não foi para agradar à Áustria
que se considerou qualquer ajuda a Eslavos quase como crime nacional
russo? Deixemos a opinião pública europeia, se ela quiser ser justa, atribuir
a má influência russa sobre questões germânicas à sua verdadeira fonte, ou
seja, aos governantes alemães e especialmente aos austríacos. Não, não são
as acções de Kotzebue e demais similares (aliás de natureza bastante
inocente) de intrusão do Governo russo em questões europeias que
explicam o ódio que se sente na Europa face à Rússia. Só o próprio
assassinato de Kotzebue, e sobretudo a compaixão que causou, só isso pode
ser explicado por esse ódio. Já a sua razão de ser tem raízes mais profundas.
Aliás, podemos apresentar provas concretas, incontestáveis, de que não é
na intromissão antiliberal da Rússia nos assuntos alheios que tem início e
reside o sentimento de ódio da Europa … Já há 13 anos que o Governo
russo alterou por completo o seu sistema, consumou um acto de liberalismo
tão elevado que, em consciência, em relação a ele utiliza-se essa palavra
enxovalhada; a nobreza russa demonstrou altruísmo e generosidade, e as
massas russas revelaram uma moderação e um pacifismo ilimitados. Desde
então, o Governo continuou a trabalhar nos mesmos moldes. Uma reforma
liberal seguiu-se à outra. Não demonstrava qualquer pressão sobre questões
estrangeiras. Isto até é pouco, pois utiliza a sua influência a favor de tudo o
que é liberal. Tanto o Governo como a sociedade tinham uma simpatia mais
sincera face à questão dos Estados do Norte do que a maioria da Europa. A
Rússia foi uma das primeiras a reconhecer o Reino de Itália e até, diz-se,
usou a sua influência para impedir a Alemanha de apoiar a causa injusta. E
então a Europa mudou, que seja num fio de cabelo, a sua postura face à
Rússia? Sim, ela tinha muita compaixão em relação à causa dos
camponeses enquanto acreditou que empurrava a Rússia para tumultos sem
fim; tal como a Inglaterra tinha empatia pela libertação dos negros
americanos. Vimos, da sua parte, muito amor e compaixão face às questões
polacas. Os enforcadores, esfaqueadores e incendiários tornam-se heróis se
as suas acções forem dirigidas contra a Rússia. Os defensores das causas
nacionais ficam em silêncio se em causa estiver a defesa da nacionalidade
russa, oprimida até mais não em regiões ocidentais – é mesmo assim. Aliás,
tal como na questão dos Bósnios, Búlgaros, Sérvios e Montenegrinos. A
generosa e, ao mesmo tempo, válida fórmula para apaziguar a Polónia
através da concessão de terras aos camponeses polacos teve uma avaliação
imparcial? Ou talvez o método inglês de pacificação da Irlanda através da
expulsão pela fome seja preferível do ponto de vista humanitário?
Está ainda na moda, pelos nossos lados, atribuir tudo ao desconhecimento
da Europa, à sua falta de conhecimento face à Rússia. A nossa imprensa
está silenciosa, ou pelo menos até há pouco esteve calada, enquanto os
inimigos nos difamam. Através de quê terá a pobre Europa acesso à
verdade? Ela está enublada, confusa. Risum teneanis, amici5, ou como se
diz em russo, é de fazer rir as galinhas, meus amigos. Porque será que a
Europa que tudo sabe, desde o sânscrito até as línguas índias, desde as leis
de movimento de complexos sistemas constelares até à construção de
organismos microscópicos, só desconhece a Rússia? Será que se trata de
uma qualquer Greiz, Schleiz ou Lobenstein6, que não merece que a ela
preste a sua preciosa atenção? São ridículas as justificações desta sábia que
nem cobra Europa – o seu desconhecimento, ingenuidade e credulidade,
como se de uma estudante se tratasse. A Europa não sabe porque não quer
saber, ou, melhor dizendo, sabe da maneira que quer saber, ou seja, tal
como corresponde às suas preconceituosas opiniões, desejos, orgulho, ódio
e desprezo. São ridículos os cuidados que se tem com os estrangeiros com o
objectivo de lhes mostrar o rosto da Rússia e através deles iluminar e
obrigar a ver a perdida e cega opinião pública da Europa. Porque não
satisfazer a curiosidade das boas pessoas! Mas não devemos aliar a isso os
nossos sonhos. Não vale a pena tirar o espinho àquele que tem olhos e não
vê, não vale a pena tratar da surdez àquele que tem orelhas e não ouve. A
elucidação da opinião pública através de livros, revistas, panfletos e
palavras pode ser muito útil nesse sentido como em todos os outros, só que
não para a Europa, mas para nós, Russos, que estamos habituados a olhar
para nós próprios através de olhos alheios, para os nossos conterrâneos.
Para a Europa tratar-se-á de trabalho vão: ela própria, sem a nossa ajuda,
saberá aquilo que quiser saber, se quiser saber.
O problema é que a Europa não nos reconhece como sendo parte de si. Vê
na Rússia e nos Eslavos algo que lhe é estranho e, paralelamente, algo que
não lhe pode servir como simples material do qual ela poderia extrair as
suas vantagens, como extrai da China, da Índia, de África, de grande parte
da América, etc. – material que se poderia moldar e trabalhar à sua maneira
e à sua imagem, como antes pensavam, como especialmente desejavam os
Alemães, que não obstante o seu afamado cosmopolitismo, apenas vêem a
salvação do mundo na una e salvadora civilização germânica. A Europa vê,
por isso, na Rus e nos Eslavos não só um princípio estranho, mas também
adversário. Por mais que a camada exterior seja porosa e suave, arejada e
transformada em argila, a Europa compreende ou, sendo mais específico,
sente instintivamente, que por baixo dessa camada exterior está um núcleo
forte e duro, que não se pode desfazer, quebrar ou diluir, que,
consequentemente, não poderá ser assimilado, transformado em seu sangue
e carne, que tem a força e a vontade de viver a sua independência, o seu
modo de vida. Orgulhosa e justamente orgulhosa com os seus feitos, à
Europa é difícil, para não dizer impossível, ultrapassar isso. Assim, para
impedir de todas as formas, se não com a cruz então com o gládio,7 se não a
bem, então a mal, não se pode deixar esse núcleo tornar-se ainda mais forte
e crescer, lançar profundas e longas raízes. Não será já tarde, não terá já
sido perdida a oportunidade? Ainda devemos pensar sobre a imparcialidade
e a justiça? Para um fim sagrado não serão todos os meios válidos? Não é
isso que pregam os jesuítas e os seguidores de Mazzini – a velha e a nova
Europa? Sejam Schleswig e Holstein dinamarqueses ou alemães, não
deixam de ser europeus; haverá uma pequena alteração na balança política,
mas valerá a pena pensar sobre isso? O poderio da Europa não irá sofrer por
causa disso, a opinião pública não tem muito com que se preocupar, é
preciso serem tolerantes uns para com os outros. Balancem os pesos para o
lado de Atenas ou Esparta, não será a mesma Grécia a governar? Mas como
permitir o desenvolvimento da influência de um mundo estranho, inimigo e
bárbaro, mesmo que ela se desenvolva para um espaço que, segundo as leis
de Deus e dos homens, pertence a este mundo? Não permitir que isso
aconteça é a causa comum de tudo o que se sente Europa. Aqui até
podemos aceitar o turco como aliado e dar-lhe a medalha da civilização. Cá
está a única explicação satisfatória para o uso de dois pesos e duas medidas
que a Europa usa para medir e pesar quando se trata da Rússia (não só
russos, mas de eslavos em geral), e quando se trata de outros países e povos.
Para essa injustiça, para essa antipatia da Europa para com a Rússia – para o
que a comparação do ano de 1864 ao de 1854 é apenas um de muitos
exemplos –, por mais que procuremos, não encontraremos justificações nas
acções da Rússia, não encontraremos explicação ou resposta com base em
factos. Aqui nem sequer existe nada de racional através do que a Europa
poderia responder a si mesma de forma imparcial. A origem do fenómeno
reside mais fundo. Está nas profundezas das simpatias e das antipatias
tribais que formam uma espécie de instinto histórico dos povos, que os guia
(além de, embora contra a sua vontade e consciência) para o seu objectivo
invisível; ou, em geral e grosso modo, a História não se desenvolve segundo
a vontade humana, apesar de esta poder desenhar alguns padrões… Mas é
um sentimento inconsciente, trata-se de um instinto histórico que obriga a
Europa a não gostar da Rússia. Onde cabe aqui a imparcialidade no olhar –
da qual não está privada nem a Europa nem, especialmente, a Alemanha,
quando se trata de povos estranhos? Todo o modo de vida russo e eslavo
parece ser-lhe merecedor de desprezo e o seu desenraizamento constitui um
dever sagrado e a verdadeira tarefa da civilização do Gemeiner Russe,
Bartrusse8, termos que merecem um enorme desprezo na língua dos
Europeus e especialmente na alemã. O russo, aos seus olhos, só poderá
ambicionar à dignidade humana apenas quando perder o seu aspecto
nacional. Leiam as opiniões dos viajantes que gozam de grande
popularidade no estrangeiro: verão neles simpatia face aos Samoiedos,
Coriacos, Iacutes, Tártaros, ou quaisquer outros, excepção feita ao povo
russo; vejam como se comportam os capatazes estrangeiros face aos
camponeses russos; reparem na postura dos marinheiros que vêm à Rússia
face aos estivadores e a quaisquer cambistas; leiam artigos sobre a Rússia
em jornais europeus que refletem as opiniões e os desejos da parte erudita
do público; por fim, sigam a atitude dos governos europeus face à Rússia.
Verão que em todas essas esferas diversificadas impera o mesmo espírito de
desagrado, tomando a forma, dependendo da ocasião, de desconfiança,
malevolência, ódio ou desprezo. Fenómeno de todas as esferas da vida,
desde as relações políticas até às relações quotidianas, disseminado em
todas as camadas sociais, não tendo qualquer base factual, pode infiltrar-se
apenas na consciência instintiva colectiva da raiz da discórdia que tem a sua
génese nos objectivos e história inicial das tribos. Resumindo, a explicação
satisfatória para essa injustiça política e para o desagrado da opinião pública
pode residir apenas em que a Europa reconhece na Rússia e nos Eslavos
algo que lhe é estranho, e não só estranho, mas também inimigo. Para o
observador imparcial trata-se de um facto incontestável. A questão reside
apenas na existência de fundamento e de justiça, nesse olhar em parte
consciente e nesse sentimento instintivo inconsciente ou se consistem num
preconceito temporário e incompreensão que deveriam desaparecer sem
deixar marca…
Quando os limites dos continentes ficaram bem conhecidos, realmente
confirmou-se a separação da África da Europa e da Ásia. Já a separação
entre a Ásia e a Europa é inexistente, mas tal é a força do hábito, tal é o
respeito face a conceitos há muito enraizados que, para não os violar,
começaram a procurar vários traçados de fronteira em vez de recusar a
inexistente divisão.
Assim, fará a Rússia parte da Europa? Eu já respondi a essa questão. É
como preferirem, talvez faça parte, talvez não faça parte, talvez pertença
parcialmente, tal como cada um achar melhor. Na verdade, no sentido que
estamos a analisar agora, não existe qualquer Europa, existe a península
ocidental da Ásia, que no início distinguia-se dela de forma menos
acentuada do que as restantes penínsulas asiáticas, mas na extremidade
tornou-se cada vez mais separada e desmembrada.
Não será que a palavra-chave «Europa» é uma palavra sem significado
particular, é um som vazio sem um conteúdo concreto? Oh, mas claro que
não! O seu significado vale por si, não geograficamente, mas no aspecto
histórico-cultural e, quanto à questão de fazer parte ou não da Europa, a
geografia não tem qualquer papel. O que é a Europa nesse sentido histórico-
cultural? A resposta é bastante concreta e positiva. A Europa é um campo
da civilização germano-românica, nem mais nem menos; ou usando uma
expressão metafórica, a Europa é a própria civilização germano-românica.
Ambas as palavras são sinónimas. Mas será que só a civilização romano-
germânica coincide com a palavra Europa? Será que não se traduz mais
concretamente para «civilização universal» ou, no limite, enquanto sua luz?
Não foi nesse mesmo solo europeu que nasceram as civilizações grega e
romana? Não, o terreno destas civilizações era outro. Era a bacia do mar
Mediterrâneo, completamente independente do lugar onde se estendiam
essas antigas civilizações, para o Norte, o Sul ou o Ocidente: na costa
europeia, africana ou asiática deste mar. Dizem que Homero, que encerra
em si como num espelho toda a civilização da Grécia (que futuramente teve
oportunidade de se desenvolver), nasceu na costa do mar Egeu, localizado
na Ásia Menor. Essa costa da Ásia Menor, com as suas ilhas adjacentes, foi
durante muito tempo o principal terreno da civilização helénica. Aqui
nasceu não só a poesia épica dos Gregos, mas também a lírica, a Filosofia
(Tales de Mileto), a escultura, a História (Heródoto) e a Medicina
(Hipócrates), e daqui passaram para a costa oposta do mar. Posteriormente,
Atenas tornou-se o principal centro desta civilização, todavia finou e deu
fruto, como se diz, novamente não num país europeu, mas em Alexandria,
no Egipto. O que significa que a antiga cultura helénica, no seu
desenvolvimento, passou pelas três partes do mundo: Ásia, Europa e África,
e não constituiu pertença única da Europa. Não foi nela que começou e não
foi nela que viu o seu fim.
Gregos e Romanos, ao contraporem-se aos países por si designados
bárbaros, incluiram nesse primeiro conceito, de forma igual, os europeus,
asiáticos e africanos da costa do mar Mediterrâneo, e no segundo conceito
englobando todo o restante mundo – da mesma forma que os Germano-
românicos se contrapõem à Europa, isto é, ao palco da sua acção, aos outros
países. No sentido histórico-cultural, o que para os Germano-românicos é a
civilização, a Europa, isso era para as civilizações gregas e romanas toda a
bacia do mar Mediterrâneo e, apesar de haver países que fazem parte de
ambos, seria injusto pensar que a Europa é o terreno da civilização humana
em geral ou, pelo menos, da sua melhor parte; ela é apenas o solo da grande
civilização germano-românica, o seu sinónimo, e só quando essa civilização
se desenvolveu, a palavra «Europa» recebeu aquele sentido e significado
que actualmente é empregue.
Nesse sentido, fará a Rússia parte da Europa? Para bem ou para o mal,
feliz ou infelizmente, não, não faz parte. Ela não se alimentou através de
nenhuma daquelas raízes pelas quais a Europa sugou tanto os fluidos
divinos como nefastos directamente do solo do mundo antigo por ela
destruído. Também não se alimentou daquelas raízes que recolheram
alimento da profundeza da alma germânica. Não fez parte do Império
Romano reconstruído por Carlos Magno, que constitui uma espécie de
tronco comum, através de cuja separação se formou a árvore europeia de
muitos ramos, não fez parte daquela federação teocrática que substituiu a
monarquia de Carlos, não se uniu num corpo único através da rede
aristocrático-feudal que (tal como no tempo de Carlos e no tempo áureo dos
cavaleiros) não encerrava em si quase nada de nacional, mas representava
uma instituição europeia geral, em toda a dimensão desta palavra. Depois,
quando começou uma nova era e nasceu uma nova ordem das coisas, a
Rússia também não participou na luta com a violência feudal que levou às
garantias da forma de liberdade individual nascida desta luta; não lutou com
a opressão da falsa forma de Cristianismo (produto da mentira, orgulho e
falta de cultura, intitulado Catolicismo) e não teve necessidade daquela
forma de liberdade religiosa a que se chama protestantismo. Não conheceu
a Rússia nem a opressão, nem o efeito pedagógico da escolástica e não
criou aquela liberdade de pensamento que criou a nova ciência, não viveu
os ideais que se materializaram na arte germano-românica. Numa só
palavra, não tem nada que ver nem com o bem europeu, nem com o mal
europeu; como poderá então fazer parte da Europa? Nem a genuína
humildade, nem o genuíno orgulho permitem à Rússia considerar-se
Europa. Ela não mereceu essa honra, e se quer merecer outra, não pode
pretender aquela que não lhe pertence. Só os arrivistas, desconhecedores da
humildade e do orgulho nobre, se imiscuem no círculo que consideram
superior; as pessoas que têm noção da sua dignidade permanecem no seu
círculo, não o considerando (em situação alguma) ser humilhante, e tentam
aperfeiçoá-lo de forma a não terem inveja de ninguém e de nada.
Mas se a Rússia, dir-nos-ão, não faz parte da Europa pelo direito de
nascimento, ela faz parte dela pelo direito de adopção; ela assimilou (ou
deve, pelo menos, esforçar-se em assimilar) aquilo que a Europa
desenvolveu; fez-se (ou, pelo menos, deverá fazer-se) participante nos seus
esforços, nos seus triunfos. Quem é que a adoptou? Nós não vemos
sentimentos parentais na relação da Europa com a Rússia; a questão não
está aí, está no facto de saber se é possível tal adopção. Será possível que o
organismo, que tanto se alimentou dos seus sumos, que se estendeu com as
suas raízes no seu solo, se agarre com ventosas a um outro organismo, deixe
secar as suas raízes e de uma planta autónoma se transforme numa
estranha? Se o solo é fraco, ou seja, se lhe fazem falta elementos essenciais
para o seu pleno crescimento, ela deve ser adubada, fornecer os elementos
em falta, arar de forma profunda os elementos já existentes, para que mais e
melhor sejam apreendidos, e não se estrangeirar secando as suas raízes. Mas
sobre isso falaremos mais à frente. Veremos, talvez, quanto e de que forma
é possível essa assimilação do estranho; por agora, deixaremos as coisas
assim. Se não pelo nascimento, então pela adopção a Rússia fez-se Europa,
plantas selvagens uniram-se ao talo europeu. Que vantagem traz a união,
veremos também depois, mas por ora reconheceremos a transformação.
Nesse caso, é claro, deve ser nosso mote: Europaeus um et nihil europaei a
me alienum esse puto9.
Todos os interesses europeus devem tornar-se russos. Temos que ser
consequentes, temos que considerar os desejos europeus, as aspirações
europeias como desejos e aspirações nossas; temos que casar com eles, il
faut les épouser, como de forma bastante expressiva dizem os Franceses. É
claro que, sendo Europa, podemos não concordar num ponto ou outro em
particular com a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Itália; mas com a
Europa, ou seja, consigo mesmo, temos que estar obviamente de acordo,
temos que recusar tudo o que a Europa – toda a Europa – considera, de
forma unânime, como não estando de acordo com a sua forma e os seus
interesses. É preciso sermos conscienciosos, sermos consequentes para a
condição a que nos comprometemos.
Que papel nos atribui a Europa no teatro histórico-mundial? Ser o
representante e divulgador da civilização europeia no Oriente – cá está o
elevado papel que herdamos, papel no qual a querida Europa irá ter
compaixão de nós, cooperar com a sua bênção, com todos os desejos da sua
alma, aplaudir as nossas conquistas civilizacionais, para grande felicidade e
emoção dos nossos progressistas humanistas. Faça o favor, vá para o
Oriente! Mas, desculpe, que Oriente é este? Pensávamos começar pela
Turquia. O que há de melhor? Lá vivem os nossos irmãos de carne e
espírito, vivem na dor e no sofrimento, dos quais esperam libertação; nós
estender-lhes-emos a mão da ajuda, tal como nos obriga o dever sagrado.
«Para onde? Não se metam no que não lhes diz respeito!» – grita a Europa.
Não é o vosso Oriente, já há demasiada eslavada que não me cai no goto.
Para lá vai o nobre alemão Drang nach dem Osten10, pelo rio alemão
Danúbio. Em alguns sítios, os Alemães souberam tratar dos Eslavos e aqui,
melhor do que vocês, irão europeizá-los. Além disso, a Europa, para a qual
é tão caro o sagrado princípio das nacionalidades, achou por bem retirar aos
Alemães a Itália, não deixando, por isso, de ser Europa, verdadeira, natural,
e não adoptada ou enxertada; achou por bem autorizar retirar a Áustria aos
Alemães; é também preciso algo para confortar os pobres alemães
austríacos, acoplados com os magiares; é deixá-los europeizar esse Oriente,
vocês sigam para mais longe. Assim, nos dedicámos igualmente ao
Cáucaso, que também é Oriente. Isso enfureceu muito a mãezinha: não
toquem, gritava, nos cavaleiros, nos paladinos da liberdade; deverão vocês
tomar conta de tão nobre tribo; mas, desta vez, graças a Deus, não demos
ouvidos, esquecemos o nosso chamamento europeu. Então, na Pérsia, não
podemos dedicar-nos a espalhar sementes da civilização e do europeísmo?
Os Alemães até talvez deixassem: parece que eles não se estendem até tão
longe para lá do seu drang; mas, como é sabido, uma mão lava a outra, não
pode ser por respeito pelos Ingleses. Já tomaram a Índia; o que dizer,
fizeram bem a coisa, civilizadores de primeira, já lá estão. Não os deveis
incomodar na vizinhança, ide para longe. Mandarão para a China? Não,
não, não têm nada que se meterem lá; precisam de chá? – traremos do
cantonês quanto quiserem. A civilização europeia, como qualquer ciência,
não é dada gratuitamente; e recebe-se algum salário. A China é um país
rico, portanto, irá pagar, iremos nós próprios receber. E os sucessos, graças
a Deus, a velhota apresenta bons: fuma o ópio indiano, não precisamos cá
de vocês. Ó Deus, onde está o nosso Oriente, o que pelo nascimento temos
que civilizar? A Ásia Central é que é o vosso lugar; «cada macaco no seu
galho». Não temos forma de lá chegar, e as sobras são más. E lá está a vossa
sagrada missão histórica, eis o que diz a Europa, e os nossos europeus a
seguir a ela. Cá está o grande papel que vai de encontro aos interesses da
Europa e que temos que desempenhar, e mais nenhum. O resto foi dividido
entre aqueles que são mais limpos, como mandam dizer a Khlestakov, o
cozinheiro no Revisor11.
Durante mil anos constrói-se, regando de suor e sangue, e constitui-se um
Estado de 80 milhões (dos quais 60 são do mesmo clã e tribo; além da
China, o mundo não imaginou nem imagina outro exemplo) para se regalar
com a civilização europeia cinco ou seis milhões de maltrapilhos dos
canatos de Kokando, Bukhar e Khiva, e ainda uns dois ou três milhões de
nómadas mongóis, pois esse é o verdadeiro significado da frase sonora
sobre o alastrar da civilização às profundezas do continente asiático. Cá está
o grande desígnio, aquele papel histórico-mundial que se apresenta à Rússia
enquanto mensageira do Iluminismo europeu. Nada a dizer, um papel
invejável; será que por isso valeu a pena viver, construir um reinado,
suportar o peso do Estado, aguentar a servidão, a reforma de Pedro,
aguentar o governo de Biron e outras experiências?
Todos os acontecimentos políticos decorrentes de outros aspectos do
desenvolvimento europeu não tiveram uma relação directa com os Eslavos.
Estes não tiveram um papel concreto e activo em termos académicos na
libertação do pensamento da autoridade que os oprimia. Os resultados deste
movimento jogam e devem jogar a um maior nível a favor da politização
dos Eslavos (como aliás de todos os povos), mas não de outra forma como
os resultados que foram herdados dos Gregos e Romanos. A questão da
religião, para a esmagadora maioria dos Eslavos, não foi tocada de todo;
aqueles que foram nela, infelizmente, envolvidos, só tiveram nela um papel
passivo, foram oprimidos, encurralados, violentamente espoliados da
verdade que lhes foi inicialmente leccionada. A única participação activa
dos Eslavos na vida religiosa da Europa – o grande movimento hussita –
estava direccionada para a renúncia ao conceito europeu de religião, era a
aspiração do regresso à Ortodoxia. A participação do mundo eslavo na luta
política da Europa foi involuntária, tal como para os povos da Áustria, ou
mesmo que voluntária, baseou-se num mal-entendido como no caso da
Rússia. A tempestade da Revolução Francesa provocou (e com uma
influência determinante) uma longa participação da Rússia. Mas do ponto
de vista puramente russo ou eslavo, é apenas possível lamentar os imensos
esforços feitos pela Rússia para direcionar essa luta no sentido conhecido
que, no fundo, tinha tão pouco que ver com a Rússia como a Rebelião
Taiping na China, e não deveria ter provocado os ditos instintos e simpatias
conservadores, nem progressistas da Rússia para com uma causa para si
completamente indiferente. Resta apenas lamentar que os enormes esforços
não tenham sido (numa altura tão conveniente) dirigidos para a solução de
questões puramente eslavas, pois o Tratado de Tilsit apresentava todas as
oportunidades para isso. Claro, é assim que se apresenta a questão do ponto
de vista puramente eslavo. Claro que a ingerência da Rússia era essencial da
perspectiva histórica geral, à qual a Rússia se submeteu. Tal como a
natureza, também a história retira resultados de todas as formas por ela
criadas. À Europa cabia ainda cumprir um amplo ciclo de desenvolvimento,
a cuja justeza a preponderância de França colocou obstáculos, e a Rússia foi
chamada a libertar dela a Europa. O papel da Rússia era, aparentemente,
imperial, mas, na realidade, era apenas um papel servil. Agora a Europa,
nomeadamente a França, anuncia o princípio da nacionalidade, que não só
não possui grande significado, mas até lhe é prejudicial, e assim paga à
Rússia e aos Eslavos, desempenhando em relação a eles o papel servil e
fazendo de conta que as acções coincidem com os seus próprios interesses.
Por isso, a questão das nacionalidades (que agora começa a ocupar o
primeiro lugar na vida e acção dos povos que unem os mundos germano-
românico e eslavo) constitui a passagem mais natural para aquelas
particularidades da educação histórica que foram recebidas pela Rússia na
altura da construção do seu Estado, particularmente daquelas formas de
dependência às quais foi sujeito o povo russo na passagem da liberdade
tribal para a liberdade civil, cuja utilização começa a fazer.
O primeiro impulso, que deu início ao processo milenário de formação do
Estado russo, foi o chamamento conjunto dos Varegues pelas tribos eslavas,
espalhadas pelo território da actual Rússia. O próprio facto do chamamento,
que substituiu para a Rússia a conquista, é fundamental para a
caracterização psicológica dos Eslavos, mas, quanto ao assunto que agora
nos ocupa, não tem grande significado. Os Anglo-saxónicos também foram
chamados pelos Britânicos para os defenderem dos ataques dos Pictos e
Escoceses; com tudo isso, no entanto, a ordem das coisas, introduzida pela
primeira vez no Reino Unido, não difere significativamente daquela que foi
introduzida noutros países europeus e o chamamento, nesse caso, foi, pelas
suas consequências, equivalente à conquista. Isso também poderia ter
acontecido com os eslavos russos, se os estrangeiros, chamados para acabar
com as rebeliões internas, fossem numerosos. Mas, felizmente, a tribo à
qual se dirigiu o chamamento era pouco numerosa, o que se comprova pelo
facto de continuar a existir a possibilidade de perguntar quem eram os
Varegues. Se o seu número fosse maior, aqueles não poderiam ter-se diluído
praticamente sem deixar rasto na massa do povo eslavo, de forma a que já o
neto de Rurique tinha um nome eslavo e o seu bisneto, Vladimir,
transformou-se, na consciência do povo, num indivíduo de carácter
tipicamente eslavo. Se não tivessem ficado registos escritos sobre quem
eram os Anglos, os Saxões, os Francos ou Normandos de Guilherme, o
Conquistador, então essa questão ficaria sujeita a uma resposta
inquestionável tendo por base o estudo da língua e das instituições, nas
quais ficou marcado o carácter das nações consideradas conquistadoras. O
reduzido número de Varegues, não obstante a sua vocação, não permitiu que
introduzissem na Rússia a mesma ordem de coisas que em outros locais foi
o resultado da predominância da nacionalidade dominante sobre a
nacionalidade subordinada. Por isso, os Varegues serviram apenas de
«fermento», de «fertilizante», que espoletou o movimento estatal nas
massas eslavas, que viviam ainda uma existência etnográfica e tribal una;
mas não podiam formar as bases nem do feudalismo nem qualquer outra
forma de dependência de um povo em relação a outro. Entre o primeiro
impulso, que anunciou o sentido da forma de vida estatal aos Eslavos
russos, e as conquistas germânicas, que deram início à história europeia,
existe (se me é permitido fazer essa comparação) o mesmo tipo de relação
que entre a varíola de vacina e a varíola natural… Quando predomina, o
princípio tribal popular, tal como aconteceu na Rússia, o próprio Estado vê-
se condenado à morte através da transformação dos príncipes em pequenos
líderes tribais, sem qualquer ligação entre si; a vontade do povo seria
salvaguardada, mas as tribos não se fundiriam num povo sob a proteção de
um Estado. Para evitar isso, foi necessária uma nova forma de Estado e ela
foi dada à Rússia pelas invasões tártaras.
Além do chamamento dos Varegues, que substituiu a conquista ocidental,
(chamamento que mostrou ser demasiado fraco para incutir para sempre a
natureza estatal da vida russa), emergiu a necessidade de outro tipo de
dependência, a do tributo. Também o tributo tinha um carácter fraco
semelhante ao da vacina, à semelhança do chamamento dos Varegues.
Quando lemos descrições das invasões tártaras, parecem-nos terríveis,
arrasadoras. E assim devem ter sido para um grande número de indivíduos,
que nelas perderam a vida, a honra, a propriedade, mas para o povo,
enquanto entidade colectiva, o pagamento do tributo aos Tártaros deve ser
considerado uma forma ligeira de dependência. As invasões tártaras eram
terríveis e devastadoras, mas o jugo tártaro era leve se compararmos com
outras formas de pagamento de tributo apresentados pela História (por
exemplo, o tributo pago pelos Gregos e pelos Eslavos na Turquia). O nível
de cultura, a forma de vida dos eslavos sedentários e dos nómadas tártaros
era de tal forma distinta que não só era impossível a mistura entre ambos,
como até mesmo qualquer forma de poder dos últimos sobre os primeiros
era inviável na sua forma profunda, tendo que se manter apenas de forma
superficial. Para isso contribuíram as características geográficas que
permitiram aos nossos conquistadores manter o seu habitual e adorável
modo de vida nas estepes, para lá dos rios Don e Volga. Toda essa
tempestade passaria até talvez sem deixar marcas (sem danos ou vantagens
permanentes) se o gene que deu origem a Moscovo não soubesse adaptar-se
às circunstâncias e extrair toda a vantagem da relação entre o conquistador
e o conquistado. Ao ver a impossibilidade de contrariar a força e
compreendendo a necessidade de evitar os avassaladores ataques através do
pagamento do tributo, os conquistados tiveram que introduzir formas mais
rígidas de dependência da população face ao Estado. O tributo, o imposto,
constitui sempre, para o povo, que não compreende a necessidade de o
fazer, o emblema da dependência que lhe é imposta, a principal razão da sua
inimizade face ao poder do Estado. Ele opõe-se tanto quanto pode; é
necessária força para o obrigar a pagar. Para se proteger de tributos
excessivos, o povo exige ter uma representação, de uma forma ou de outra,
tendo a esperança de que ao partilhar os seus interesses ela não deixaria que
existissem mais cobranças a não ser as justificadas pela verdadeira
necessidade. Os príncipes de Moscovo tinham essa vantagem, a de que toda
a parte odiosa da provação era atribuída à Horda, mas a Horda constituía
aquela força que recorrendo apenas à ameaça obrigava o povo a pagar o
tributo. Moscovo era vista se não como a libertadora, então pelo menos
como aliviadora daquele peso a que sujeitava o povo àquele jugo
estrangeiro. Além da compreensão do poder do Estado (que se enraizou no
espírito dos povos eslavos), nessa intermediação dos príncipes moscovitas,
que livravam o povo do contacto directo com os Tártaros, esconde-se, sem
dúvida, aquele sentimento cheio de amor e confiança que o povo russo
guarda face aos seus senhores. Desta forma, os príncipes de Moscovo, e
posteriormente os czares, conciliaram em si todo poder que a conquista deu
aos Tártaros, deixando a cargo destes últimos aquilo que em qualquer poder
constitui um peso para o povo, principalmente para um povo ainda não
habituado à cidadania e que guardou todas as recordações da liberdade
tribal. Os senhores de Moscovo, se assim podemos dizer, desempenhavam o
papel da mãe da família, que, apesar de insistir no cumprimento da vontade
do severo pai, poupa-o da ira, o que lhe confere tanto a autoridade do poder
sobre os seus filhos como o seu amor carinhoso…
A saúde espiritual e política caracteriza o povo e o Estado russo, enquanto
na Europa, no plano espiritual, se esgotou esse estreito conceito religioso,
com o qual ela substituiu a verdade universal e atingiu as Colunas de
Hércules, das quais é preciso descer para o imenso oceano de negações e
dúvidas, ou regressar ao iluminado Oriente; já no plano político, chegou à
oposição irreconciliável entre as exigências desenvolvidas ao longo de toda
a sua existência de liberdade individual e da marca deixada pela conquista
da divisão da propriedade. Mas se olharmos para a vida russa, rapidamente
veremos que a sua saúde não é plena. É verdade que não sofre de males
orgânicos incuráveis dos quais não há outra saída além da expansão
etnográfica, mas está afectada por uma maleita bastante séria, que também
se pode tornar mortal, esgotando o organismo, privando-a das forças
produtivas. Essa doença é tanto mais terrível que (tal como a velhice dos
cães) dá um aspecto indigente ao corpo social russo, jovem e cheio de vida,
condenando-o se não à morte, a algo ainda pior: à existência estéril e
impotente.
Além das três etapas de desenvolvimento do Estado a que o povo russo
foi sujeito, na sua génese leves, e que levaram à formação e ao reforço do
Estado russo, não privando o povo de nenhuma condição necessária ao
gozo das liberdades cívicas como substituição completa da vontade tribal, a
Rússia teve ainda que se submeter a uma difícil cirurgia, conhecida pelas
reformas de Pedro. Naquela altura, a civilização europeia começou, em
medida significativa, a ter um carácter prático, na sequência do qual
diversas descobertas e invenções, feitas por si na área das ciências e
indústria, foram aplicadas ao sistema de Estado e de cidadania. A ignorante
e puramente agrária Roma, ao entrar na luta com a comercial, industrial e
incomparável pela sua erudição Cartagena, conseguiu, apenas com a ajuda
do patriotismo e da lealdade ao bem comum, vencê-la, desde o início até no
mar, elemento que até aquele momento era completamente estranho a
Roma. Eram muito simples os meios utilizados naquela época pelos Estados
nas disputas, não só em terra, mas também no mar. Mas já no início do
século XVII e até antes, a lealdade à pátria e o patriotismo deixaram
completamente de poder substituir os avanços tecnológicos que foram feitos
nos sectores da construção naval, navegação, artilharia, construção de
fortificações, etc., verdadeiras ciências, aliás, bastante complexas. Por outro
lado, as necessidades da defesa do Estado tornaram-se tão complexas que
exigiam necessariamente para o seu sucesso uma classe especial de pessoas,
inteiramente dedicadas aos objectivos militares. A manutenção dessa
numerosa classe exigia tantos recursos que o Estado não teria meios para o
seu sustento sem um reforço do desenvolvimento industrial.
Consequentemente, o principal objectivo do Estado (defesa da
nacionalidade face aos inimigos externos) já exigia uma formação técnica
específica, nível que, a partir daquela altura, especialmente a partir do
segundo quarto do século XIX, não deixou de crescer numa forte proporção.
No início do século XVIII, a Rússia tinha quase terminado a guerra
vitoriosa com os seus vizinhos orientais. A alma do povo russo, despertada
pelos acontecimentos liderados por duas pessoas memoráveis, Minin e
Khmelnitski, venceu a nobreza polaca que tinha traído as raízes populares
eslavas e que queria sujeitar o povo russo à mesma traição. Num futuro não
muito distante, era inevitável uma disputa com um ou outro povo da
Europa, que com o empreendedorismo e ambição característicos a todas as
grandes personagens históricas, tentaram sempre alargar o seu poder e
influência em todas as direcções: através do mar para o Ocidente, bem
como para o Oriente. Drang nach Osten12 não foi inventado ontem. Para
essa disputa que indubitavelmente se aproximava era necessário reforçar o
Estado russo através do empréstimo dos tesouros culturais obtidos pela
ciência e indústria ocidentais, empréstimos céleres que não se
compadeceram com adiamentos até ao momento em que a Rússia, seguindo
o natural processo lento de conhecimento baseado nas origens nativa,
conseguisse pelos próprios meios alcançar resultados práticos de
conhecimento suficientes para o Estado. Pedro reconheceu de forma clara
essa necessidade, contudo (tal como a larga maioria das figuras históricas)
não agiu segundo um plano cautelosamente delineado, mas sim com paixão
e entusiasmo. Tendo-se familiarizado com a Europa, ele, se assim se pode
dizer, apaixonou-se por ela e quis fazer, a qualquer custo, da Rússia a
Europa. Vendo os frutos que a árvore europeia dava, concluiu pela
superioridade da própria planta que os dava em comparação com a ainda
infrutífera silva russa (não dando conta da diferença de idades, não
pensando que a silva ainda não estava madura para produzir frutos) e, por
isso, quis cortá-la pela raiz e substituí-la por outra. Este tipo de substituição
é possível em objetos inanimados, formados sob a influência de uma ideia
estrangeira que lhe é estranha. Sem se deixar de viver numa casa, é possível
alterar a sua fachada, substituir cada pedra que a constitui, cada tijolo, por
outras pedras ou tijolos; mas esse tipo de alterações é impossível com
elementos vivos, formados sob a influência de uma fonte própria e original;
pode-se apenas deformá-la.
Se a Europa incutia em Pedro um amor ardente, um interesse apaixonado,
então face à Rússia ele nutria um sentimento duplo. Ele amava-a e odiava-a
ao mesmo tempo. Amava a sua força e o seu poder, que não só pressentiu,
mas dos quais já tinha consciência, amava-a enquanto arma da sua vontade
e dos seus planos, amava o material para o edifício que pensava construir à
imagem e semelhança da ideia que lhe nasceu sob a influência europeia;
odiava os fundamentos da vida russa, com todos os seus defeitos e virtudes.
Se não a odiasse com toda a paixão da sua alma, teria mais cuidado com
ela, mais atenção, mais carinho. Por isso, temos que distinguir, na acção de
Pedro, duas facetas: a sua acção estatal, as inovações militares, navais,
administrativas, industriais, e a sua acção reformadora no sentido estrito da
palavra, isto é, alterações nos hábitos, nos gostos, nas tradições e nas
formas de estar, que ele começou a operar no povo russo. A primeira acção
merece eterna gratidão, boa memória e bênção dos descendentes. Por muito
difíceis que fossem as campanhas de recrutamento aos olhos dos seus
contemporâneos (através das quais não só reforçava o exército, mas
construía e povoava o país), a introdução de um sistema financeiro
impiedoso, os monopólios, o reforço da servidão da gleba, numa só palavra,
arrear todo o povo à carruagem estatal – com tudo isso ele mereceu o
cognome de O Grande, nome do fundador da grandeza do Estado russo.
Mas através da segunda acção ele trouxe grande dano ao futuro da Rússia
(dano que levou as suas raízes a uma profundeza tal que até hoje continuam
a corroer o corpo do povo russo). Ele próprio, de forma inútil, dificultou a
sua própria acção: suscitou o descontentamento dos seus súbditos,
atormentou a sua consciência, tornou mais difícil o seu desafio, criou as
suas próprias barreiras para cuja superação teve que usar uma grande parte
daquela incrível energia que lhe foi dada e que, é claro, poderia ser utilizada
com grande proveito. Para que era necessário cortar as barbas, vestir
casacas alemãs, sujeitar as assembleias, obrigar a fumar tabaco, organizar
bebedeiras (em que até os vícios e o deboche tinham que tomar a forma
alemã), deturpar a língua, introduzir a etiqueta estrangeira na vida da corte e
dos estratos superiores da sociedade, alterar o calendário, reduzir a
liberdade espiritual? Para quê colocar as formas de vida estrangeiras no
primeiro e honroso lugar e assim carimbar tudo o que é russo como algo
baixo e mau, como se dizia naquele tempo? Será que isso reforçaria a
consciência nacional?
De uma forma ou de outra, a vida russa foi violentamente virada do
avesso e adaptada à forma estrangeira. Inicialmente, isso só foi possível
face às camadas superiores da sociedade, sobre as quais a acção do Governo
é mais forte e directa e que, aliás, em todo lado são mais suscetíveis a ceder
a tentações. Mas, aos poucos, essa deformação do modo de vida russo
começou a espalhar-se tanto extensa como intensivamente, isto é, a passar
das classes altas para os que ocupam um lugar mais modesto na hierarquia
social, e do exterior infiltrar-se na própria estrutura dos sentimentos e dos
pensamentos, sujeitos à reforma desnacionalizante. Após Pedro, vieram
reinados à frente dos quais estavam pessoas que já não nutriam face à
Rússia sentimentos duplos de amor e ódio, mas apenas o ódio, apenas o
desprezo, que é tão rico entre os Alemães face a tudo o que é eslavo, mas
sobretudo russo. Após esse período difícil, continuou por muito tempo, e
ainda continua, a indecisão entre a preferência pelo que é russo, como
Catarina, a Grande, ou pelo que é estrangeiro, como Pedro III ou Paulo.
Mas sob a influência do impulso, anunciado por Pedro, o próprio conceito
sobre o que é verdadeiramente russo deformou-se de tal forma que até nos
períodos felizes da política nacional (tanto interna como externa)
consideravam-se coisas russas aquelas que, frequentemente, não mereciam
esse nome. Ao dizer isso, não me refiro a um governo, mas a todo o espírito
social que, de tempos a tempos, alimentando-se de sentimentos patrióticos
russos, se desnacionalizou cada vez mais e mais perante a sedução europeia
e recebeu uma cor europeia, ora com preponderância francesa, ora alemã,
ora inglesa, dependendo das circunstâncias do momento e das camadas e
círculos nas quais se divide a sociedade.
Essa doença – que já há século e meio contagia a Rússia, alastra-se e
ganha raízes e só há pouco tempo começou a mostrar alguns sinais de alívio
– pode ser chamada civilizadamente de armar-se em europeu; e a questão
fundamental, de cuja solução depende todo o futuro, todo o destino não só
da Rússia mas de todos os Eslavos, consiste em saber se esta doença é tão
benigna como a imposição do conceito de Estado por tribos estrangeiras aos
eslavos russos, os tributos tártaros, a forma russa de feudalismo; será essa
doença uma vacina que, sujeitando o organismo a uma revolução benéfica,
a cura sem deixar um rasto nocivo e irremediável que põe em causa a base
da vitalidade do povo? Primeiro, iremos analisar os sintomas dessa doença,
pelo menos os mais importantes, e só depois olharemos à volta para ver se
não existe remédio para a mesma ou se já foi dada a machadada à sua raiz.
Todas as formas de se armar em europeu em que é tão rica a vida russa
podem ser divididas nas seguintes três categorias:
1. A deturpação da vida do povo e a substituição das suas formas por
formas estranhas e estrangeiras; a deformação e a substituição que, tendo
origem no exterior, não podiam deixar de penetrar na mais interior
organização das ideias e da vida das camadas superiores da sociedade, e
penetrar de forma cada vez mais profunda.
2. A cópia de diversas instituições estrangeiras e a sua transplantação para
o solo russo seguindo a máxima de que uma coisa que é boa num lugar deve
sê-lo em todo lado.
3. A análise das relações e questões, tanto internas como estrangeiras, da
vida russa através de uma perspetiva estrangeira e europeia; olhando-as
através dos óculos europeus, ou seja, através de lentes polidas sob a
inclinação do ângulo europeu e aqui, frequentemente, o que nos deve
parecer a luz mais brilhante rodeada de raios é, na realidade, escuridão e
trevas, e vice-versa…
Ao mudar o modo de vida do povo, perdemos a originalidade na
indústria. Temos acaloradas discussões sobre a liberdade do mercado e a
proteção da indústria. Sou um apologista completamente convicto desta
segunda teoria, pois a originalidade política, cultural, industrial constituem
o ideal de cada povo histórico; e onde é inalcançável a originalidade, deve
ser mantida, pelo menos, a independência. Com tudo isto, não podemos
deixar de concordar com o facto de que a manutenção desta independência
através de todo o tipo de meios artificiais é um fenómeno triste; e não seria
necessário recorrer a esses meios artificiais se as reformas da existência,
cujas necessidades devem ser, a propósito, garantidas pela indústria,
tivessem mantido a sua independência… Mas quando a indústria perde esse
carácter através da deformação da existência à imagem estrangeira, então
nada mais resta do que proteger, pelo menos, a sua independência, através
da proteção.
Em consequência da alteração do modo de vida, o povo russo dividiu-se
em duas camadas que, à primeira vista, se distinguem uma da outra pela sua
aparência. A camada mais baixa permaneceu russa, a superior fez-se
europeia: europeia ao ponto de ser difícil distingui-la do original. Mas a
camada superior, mais rica e erudita, exerce sempre um efeito de atracção
sobre a mais baixa, que tem sempre o objectivo de se fundir com ela e
imitá-la o mais possível. Por isso, no entender do povo, forma-se de
maneira involuntária a ideia de que o seu russo (seu pela sua natureza) é
algo pior, algo mais baixo. Penso que qualquer um já ouviu expressões em
que o epíteto russo era aliado à ideia de inferioridade, de algo pior: o
cavalinho russo, a ovelha russa, a galinha russa, a comida russa, a canção
russa, o conto russo, a roupa russa, etc. Tudo a que é atribuída essa
denominação de russo é considerado como sendo útil apenas para o povo
simples, não sendo merecedor da atenção das pessoas mais ricas ou
educadas. Será que um conceito desta natureza não leva à humilhação do
espírito nacional, ao esmagamento do sentimento de dignidade nacional?
Entretanto, esta auto-humilhação tem raízes evidentes naquela circunstância
de que tudo o que sai (pela educação, riqueza, estatuto social) das massas
enfeita-se de estrangeiro.
Mas a humilhação do espírito nacional, resultante da bifurcação do povo
no seu aspecto externo constitui, talvez, um mal menor do que a
desconfiança inata no povo, que manteve as suas formas de vida originais
face àquela parte que os traiu…
Não pertencendo à Europa, a Rússia, apenas pelas suas dimensões,
constitui já uma anomalia no mundo germano-romano-europeu, e o natural
crescimento da sua população deve reforçar, cada vez mais, essa anomalia.
Apenas com a sua existência, a Rússia já viola o sistema de equilíbrio
europeu. Nenhum Estado pode ter a coragem de combater sozinho a Rússia,
como demonstra a Guerra do Oriente, quando quatro Estados, também com
a ajuda da Áustria, que teve uma posição, em mais de metade, inimiga
contra a Rússia, nas condições mais desfavoráveis para nós e mais
favoráveis para eles, tiveram que gastar um ano inteiro apenas para
cercarem uma fortificação de Primorie e isso sem a presença do lado russo
de um qualquer Frederico, Suvorov ou Napoleão, mas simplesmente devido
aos enormes meios da Rússia e ao espírito invencível dos seus defensores.
É impossível não ter consciência de que a Rússia é demasiado grande e
poderosa para ser apenas uma das grandes potências europeias; e se há já 70
anos consegue desempenhar esse papel é porque se contorce, se encolhe,
contém os seus objectivos naturais, desviando-se da concretização dos seus
destinos. E essa sua diminuição continua numa crescente progressão, tendo
em conta o desenvolvimento natural das forças, pois, pela natureza da
questão, a força expansiva da Rússia é bastante maior do que a dos Estados
europeus, e a sua desadequação face às exigências da política de equilíbrios
deverá tornar-se cada vez mais evidente…
Mas perante a vizinhança com a Europa, perante a linha fronteiriça com a
Europa ao longo de milhares de milhas, a concretização da separação da
Rússia face à Europa é impensável; esse tipo de separação não foi sequer
possível manter pela China e pelo Japão, que estão apartados da Europa à
distância do diâmetro do globo terrestre. Ela deve relacionar-se com ela de
qualquer forma. Se não devem e não podem ser relações íntimas, familiares
com a Europa enquanto membro da família europeia, no seio da qual, como
nos demonstra a longa experiência, não é recebida, exigindo a impossível
renúncia aos seus direitos evidentes, sensatos interesses, simpatias naturais
e deveres sagrados; se, por outro lado, ela não quer ficar na situação de
subalternidade face à Europa, ajustando-se aos seus desejos, cumprindo
todas essas exigências humilhantes, não lhe resta mais nada a não ser
cumprir o seu papel verdadeiro, etnográfico e histórico e servir de
contrapeso não face a este ou aquele Estado europeu, mas face a toda a
Europa, na sua totalidade e unidade.
Mas para isso, independentemente da dimensão e do poder da Rússia, ela
continua a ser demasiado fraca. Deve reduzir as forças do lado inimigo,
retirando da lista dos inimigos aqueles que são seus inimigos contra a
vontade, trazendo-os para o seu lado como amigos. O destino da Rússia é
um destino feliz: para aumentar o seu poder não deve conquistar, não deve
oprimir, como todos os representantes do poder que viveram até agora no
nosso planeta – Macedónia, Roma, Árabes, Mongóis, Estados do mundo
romano-germânico –, mas sim libertar e reconstruir. E nessa fantástica e
quase única coincidência de motivos morais e deveres com o proveito e a
necessidade política não se pode deixar de ver a garantia dos seus grandes
destinos; isto se o nosso mundo não for uma simples cadeia de
coincidências, mas sim o reflexo da sabedoria divina, da verdade e
bondade.
Não nos devemos iludir. A inimizade da Europa é demasiado evidente,
ela reside não nas casuais combinações de política europeia, no orgulho de
um ou de outro estadista, mas nos seus interesses fundamentais. As suas
contas internas não estão terminadas. Os rebentos da luta interna
desenvolveram-se nela precisamente há pouco tempo, mas é bastante
possível que sejam os últimos: através da sua solução ou até de um longo
apaziguamento, a Europa irá virar-se contra a Rússia com todas as suas
forças e pensamentos, considerando-a o seu natural e inato inimigo. Se a
Rússia não compreender a sua vocação, irá sofrer o destino de tudo o que é
velho, excessivo, inútil. Mergulhando aos poucos na diminuição do seu
papel histórico, terá que baixar a cabeça perante as exigências da Europa…
Sendo estranha ao mundo europeu pela sua organização interna; sendo,
além disso, demasiado forte e poderosa para ser um dos membros da família
europeia, para ser uma das potências europeias, a Rússia só pode ocupar o
lugar digno que ela e os Eslavos merecem na História se dirigir um sistema
político especial, independente de Estados e se servir de contrapeso à
Europa na sua totalidade e na sua unidade. Aqui estão as vantagens, os
proveitos de uma união eslava em relação à Rússia.

Danilevski, N. Rússia e Europa. M., 1991, p. 23-25, 39, 44-45, 48-53, 58-
63, 254-258, 263-268, 274-275, 400-402.
2 Nome grego de espíritos malignos dos sistemas religiosos do Irão e do
Médio Oriente.
3 Tribos de origem fino-húngara.
4 Região do Império Russo na Ásia Central, sensivelmente na região da
actual Orenburgo.
5 «Conseguem aguentar o riso, amigos?» (latim).
6 Cidades alemãs.
7 «Com o pilão», no russo original (N. T.)
8 «Mau russo, russo barbudo» (alemão).
9 «Sou europeu e nada europeu me é estranho» (latim).
10 «Investida sobre o Oriente» (alemão).
11 Peça de teatro do escritor e dramaturgo russo Nikolai Gogol.
12 «Investida para o Oriente» (alemão).
Nome: Dostoievski, Fiodor

Data e local de nascimento e de morte: 11 de Novembro de 1821,


Moscovo, Império Russo-09 de Fevereiro de 1881, São Petersburgo,
Império Russo

Breve resenha biográfica: Escritor e filósofo. Segundo de oito filhos,


Fiodor Dostoievski, não obstante descender de uma linhagem antiga, teve
uma infância humilde, já que o seu pai era médico no hospital para os
socialmente desfavorecidos. Mesmo enfrentando dificuldades financeiras, a
família de Dostoievski deu uma boa educação aos filhos, tendo estes
recebido, inclusivamente, lições de Latim e Francês. Aos 16 anos, Fiodor e
o seu irmão mais velho, Mikhail, seguiram a escolha do pai – ambos
contrariados e com vontade de seguirem a carreira literária – e foram
estudar Engenharia. A sua actividade revolucionária valeu-lhe uma
condenação à morte, pena posteriormente reduzida ao exílio. No plano
pessoal, foi casado em duas núpcias, tendo tido quatro filhos do segundo
casamento. A sua vida ficou marcada pelo vício do jogo e, em 1881, faleceu
de tuberculose.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: O
pensamento geopolítico de Dostoievski, inspirando-se na sua própria
experiência de viajar pela Europa, parte da predominância da vontade da
intelligentsia russa em renascer europeia. O europeísmo exacerbado durante
o reinado de Pedro I levou a Rússia, erroneamente, a tentar europeizar-se,
assustando a Europa que via nela uma força estranha que se tentava
aculturar. Quanto mais os Russos renegavam a sua nacionalidade, mais a
Europa os desprezava. A vontade dos Russos em construírem uma
irmandade mundial era vista pela Europa como um ataque à sua civilização.
Assim, quando as ideias socialistas abalarem os velhos princípios europeus,
baseados na primazia do Papa e no conceito de Estado-nação, a Rússia
poderá reunir-se com a civilização europeia à qual pertence. No que
concerne à questão oriental, Dostoievski apoia a ideia da tomada de
Constantinopla e da união da Ortodoxia sob o poder de um czar. Após o
regresso da Rússia às suas origens e adquirida uma nova força no Oriente, o
país regressará à Europa, julgá-la-á e destruirá a supremacia ocidental,
garantindo assim a paz mundial. Contudo, este intento estaria a ser
dificultado pelos eslavos ocidentais que tentavam integrar-se na Europa,
rejeitando, para tal, a Rússia. Encarando a relação da Rússia com outros
povos eslavos enquanto diferendo familiar, Dostoievski considerava que a
Rússia deveria assumir a sua superioridade e não se diluir nos Eslavos. As
ideias políticas de Dostoievski evoluíram desde o socialismo, na juventude,
até ao conservadorismo religioso e monárquico, no final da vida.
Diário do Escritor (1873)

… Há ideias não ditas, ideias latentes e só apenas fortemente sentidas;


muitas dessas ideias estão como que fundidas com a alma humana. Elas
existem num povo, na humanidade tomada como um todo. Enquanto essas
ideias estiverem apenas inconscientemente na vida do povo e só apenas se
sentirem forte e correctamente, o povo poderá viver uma intensa vida. Toda
a ideia da sua vida reside nos desejos de explicar a si próprio essas ideias
ocultas. Quanto mais o povo as guarda firmemente, tanto menos é capaz de
mudar o sentimento original, tanto menos se inclina para a aceitação de
diferentes e falsas interpretações dessas ideias, tanto mais é forte, firme,
feliz. Entre as ideias escondidas no povo russo – ideias do povo russo – está
o chamar infelicidade aos crimes e infelizes aos criminosos.
Esta é uma ideia puramente russa. Não se encontra em qualquer outro
povo europeu. No Ocidente, ela é apenas proclamada por filósofos e
comentadores. O nosso povo, porém, proclamou-a muito antes dos seus
filósofos e comentadores. Mas daqui não resulta que ele não possa ter sido
enganado pelo desenvolvimento falso dessa ideia pelo comentador,
temporariamente, pelo menos discretamente. O sentido definitivo e a última
palavra pertencem sempre, sem dúvida, a ele, mas temporariamente pode
ser de outro modo.
Resumindo, ao pronunciar a palavra «infelizes», o povo parece querer
dizer «infeliz»: «Vós pecastes e estais a sofrer; mas nós também somos
pecadores.» Se estivéssemos no vosso lugar, talvez tivéssemos feito pior. Se
nós fossemos melhores, talvez vós não estivésseis nas prisões. Ao
cumprirem a pena pelos vossos crimes, vós chamais a vós próprios o peso
da criminalidade geral. Rezem por nós como nós rezamos por vós. E, por
enquanto «infelizes», recebam as nossas pequenas esmolas, damo-las para
que saibam que nos recordamos de vós e não rompemos os laços fraternais
convosco.
Concordai que não há nada mais fácil do que empregar a teoria do
«meio» relativamente a semelhante opinião. «A sociedade é má, por isso
somos maus; mas somos ricos, temos meios, só escapámos por acaso àquilo
que vós tivestes de enfrentar. Se tivéssemos de enfrentar, faríamos a mesma
coisa que vós. Quem é o culpado? O meio é o culpado? Sendo assim, só há
a organização abominável, mas não existem crimes.»
Nesta conclusão sufística está contido o truque de que falei.
Não, o povo não nega os crimes e sabe que o criminoso é culpado. O
povo sabe apenas que ele próprio é culpado juntamente com cada
criminoso. Mas, ao acusar-se, ele prova desse modo que não acredita no
«meio»; acredita, pelo contrário, que o meio depende completamente dele,
do seu permanente arrependimento e auto-aperfeiçoamento. Energia,
trabalho e luta – eis o que transforma o meio. Só com trabalho e luta se
consegue a originalidade e o sentido de dignidade própria. «Se
conseguirmos isso, será melhor e o meio será melhor.» Eis o que pensa, sem
o exprimir claramente, o povo russo sobre a infelicidade do criminoso.
Imaginem que, agora, se o próprio criminoso, ao ouvir o povo dizer que
ele é «infeliz», se considerar a si próprio infeliz e não criminoso. Então, o
povo afastar-se-á dessa pseudo-interpretação e chamar-lhe-á traição da
verdade e da fé do povo…
Penso que a necessidade espiritual principal, fundamental, do povo russo
é a necessidade de sofrimento, permanente e insaciável, em toda a parte e
em tudo. Parece que ele foi infectado há muitos séculos pela sede de
sofrimento. A linha do sofrimento atravessa toda a sua história, não apenas
devido a infelicidades e desgraças externas, mas tem a fonte no próprio
coração do povo. Mesmo na felicidade, o povo russo tem obrigatoriamente
parte de sofrimento, de outro modo a felicidade para ele não é completa.
Nunca, mesmo nos minutos mais solenes da sua história, tem um ar
orgulhoso e solene, mas apenas um ar emocionado até ao sofrimento; ele
lamenta e atribui a glória à vontade do Senhor. O povo russo tem uma
espécie de prazer com o sofrimento. Tanto no povo em geral, como em
diferentes tipos, mas apenas em geral. Analisemos, por exemplo, os
numerosos tipos de patife russo. Aqui não se trata apenas de um deboche
exagerado, que, por vezes, surpreende pela ousadia dos seus limites e
abominações da queda da alma humana. Este patife é, antes de tudo, o
próprio sofredor. No homem russo não há, mesmo num tonto, satisfação
própria ingenuamente vitoriosa. Tomemos um borrachão russo e, por
exemplo, um borrachão alemão: o russo é mais sujo do que o alemão, mas o
bêbado alemão é indiscutivelmente mais tonto e cómico. Os Alemães são,
no fundamental, um povo satisfeito e orgulhoso de si mesmo. Num alemão
embriagado, esses traços populares fundamentais adquirem as proporções
da cerveja bebida. O alemão bêbado é, sem dúvida, um homem feliz e
nunca chora; ele canta canções auto-elogiosas e tem orgulho de si. O
bêbado russo gosta de dar de beber à dor e de chorar. Se se faz de fanfarrão,
não festeja, mas apenas provoca algazarra. Lembra-se sempre de qualquer
ofensa e censura o seu ofensor, esteja ele presente ou não. Ele manifesta
arrogância como se fosse quase um general, pragueja azedamente se não
acreditam nele e, para persuadir, no fim de contas chama sempre a
«guarda». Mas ele é assim tão desagradável e chama a «guarda» porque,
nas profundezas da sua alma bêbada, talvez esteja convencido de que não é
«general» nenhum, mas apenas um porco borrachão e desce abaixo de
qualquer besta. Isto tanto num exemplo microscópico como num macro. O
maior patife, mesmo o mais bonito pela sua arrogância e pecados tão
elegantes que é até imitado por tontos, acaba por sentir através de um faro
qualquer, nas profundezas da sua alma patife, que, no fim de contas, não
passa de um canalha e nada mais. Fica descontente consigo, no seu coração
aumenta a censura e vinga-se dela nos que o rodeiam; fica furioso e atira-se
a todos, e aqui chega ao extremo, lutando com o sofrimento que se
acumulou minuto a minuto no seu coração. Mas, ao mesmo tempo,
deleitando-se com ele. Se é capaz de se levantar da sua humilhação, é
terrível vingar-se a si próprio da queda passada, mais doloroso do que
lançar para os outros, no inferno da desgraça, os seus sofrimentos secretos
da própria insatisfação consigo…
… Precisamos de nos tornar, custe que custar e o mais rápido possível,
uma grande potência europeia. Suponhamos que somos uma grande
potência; mas quero apenas dizer que isso fica-nos muito caro, muito mais
caro do que às outras grandes potências, e isso é um mau sinal. Por isso,
não parece natural. Apresso-me, porém, a fazer uma observação: eu julgo
apenas do ponto de vista ocidentalista e, desse ponto de vista, realmente sai-
me assim. Outra coisa é o ponto de vista nacional e, se assim se pode dizer,
um pouco eslavófilo; aqui, como é sabido, há fé numas forças internas e
originais do povo, em algumas raízes populares, completamente pessoais e
originais, inerentes ao nosso povo, que o salvam e o mantêm…
Nós, por enquanto, apenas nos agarramos à nossa altura de grande
potência, tentando com todas as forças fazer com que os nossos vizinhos
não notem isso tão cedo. Nisto pode extremamente ajudar-nos a ignorância
europeia total sobre tudo o que respeita à Rússia. Pelo menos até agora essa
ignorância não foi posta em causa, circunstância que não merece qualquer
lamentação nossa; pelo contrário, ser-nos-á muito desvantajoso se os nossos
vizinhos olharem para nós mais de perto e de forma mais breve. A nossa
grande força residia no facto de eles não compreenderem nada sobre nós até
agora. Mas o facto é que, infelizmente, parece que também eles nos
começam a compreender melhor do que antes, e isso é muito perigoso.
O enorme vizinho estuda-nos vigilantemente e parece que já vê muito
profundamente. Sem entrar em pormenores, analisai pelo menos as coisas
mais evidentes, que nos saltam à vista. Olhai para o nosso espaço e as
nossas fronteiras (habitadas por outras nacionalidades e estrangeiros que, de
ano para ano, reforçam cada vez mais a individualidade dos seus próprios
elementos estranhos e, em parte, vizinhos estrangeiros), olhai e imaginai:
em quantos pontos somos estrategicamente vulneráveis? É verdade que
temos de ter muito mais tropas do que os nossos vizinhos para defender
tudo isto (mas trata-se da minha opinião enquanto civil). Olhai novamente
para o facto de, hoje, se combater não tanto com armas quanto com o
intelecto e concordai que esta última circunstância é particularmente
desfavorável para nós.
Agora, quase a cada dez anos, mudam-se as armas, até mais
frequentemente. Dentro de 15 anos talvez já irão disparar não com
espingardas, mas com um raio qualquer, com a corrente eléctrica de uma
máquina que tudo queima. Digam o que podemos nós inventar neste campo
para guardar como surpresa para os nossos vizinhos? O que acontecerá se,
dentro de 15 anos, cada grande potência possuir, secretamente e como
reserva, uma surpresa para qualquer caso? Infelizmente, nós podemos
apenas copiar e comprar armas aos outros e o máximo que sabemos é
consertá-las. A fim de inventar essas máquinas é preciso uma ciência
própria e não comprada, sua e não encomendada, com raízes e livre. Nós
ainda não possuímos semelhante ciência e nem sequer adquirida. Olhai
também para os nossos caminhos-de-ferro, imaginai os nossos espaços e a
nossa pobreza; comparai os nossos capitais com os capitais de outras
grandes potências e pensai: quanto nos custa a nossa rede ferroviária,
necessária para sermos uma grande potência? E notai: nesses países, as
redes foram construídas há muito tempo e lentamente, enquanto nós
devemos chegar ao nível deles e ter pressa; lá as distâncias são pequenas,
enquanto no nosso país são como as do oceano Pacífico. Já agora sentimos
dolorosamente quanto nos custou apenas o início da nova rede, o que
significou o desvio difícil de capitais para um lado, em prejuízo da nossa
pobre agricultura e de qualquer outra indústria. Aqui não se trata tanto da
quantia de dinheiro quanto do nível do esforço da nação. Em qualquer dos
casos, não haverá fim se contarmos ponto a ponto as nossas necessidades e
a nossa miséria. Analisai, por exemplo, a educação, ou seja, a ciência, e
vejam como precisamos de alcançar os outros neste sentido. Segundo a
minha pobre opinião, na educação nós devemos gastar anualmente pelo
menos tanto quanto nas tropas, se quisermos alcançar alguma das grandes
potências, tendo em conta que já se perdeu muito tempo, que não temos
semelhantes quantias de dinheiro e que, no fim de contas, tudo isso será
apenas um empurrão, e não uma tarefa normal; ou seja, um choque e não
educação…
Podeis, por exemplo, construir escolas, mas não conseguireis agora fazer
professores. O professor é uma coisa delicada; um professor do povo,
nacional, é formado durante séculos, baseia-se nas tradições, numa
experiência infinita. Mas suponhamos que haja dinheiro para fazer não só
professores, mas até cientistas. E depois? Não conseguirão fazer pessoas.
Que interessa ser cientista se não entende das coisas? Um pedagogo, por
exemplo, estuda e irá ensinar muito bem pedagogia, mas ele, não obstante,
não se torna pedagogo. As pessoas, as pessoas são o principal. As pessoas
valem mais do que até o dinheiro. Não se pode comprar pessoas em
mercado algum e nem com todo o dinheiro, porque elas não se vendem,
nem se compram, mas são feitas durante séculos; e os séculos precisam de
tempo, dos 25 ou 30 aninhos, mesmo no nosso país, onde os séculos já não
valem nada. O homem das ideias e da ciência é independente, o homem
independentemente activo é formado apenas pela longa vida independente
do país, pelo trabalho secular incansável deste. Resumindo, é formado por
toda a vida histórica do país. Mas, nos últimos dois séculos, a nossa vida
histórica não foi totalmente independente. É de todo impossível acelerar
artificialmente os momentos históricos necessários e constantes da vida do
povo. Nós vimos o exemplo em nós mesmos e ele continua até hoje; ainda
há dois séculos, quisemos ter pressa e alcançar todos, mas, no lugar disso,
ficámos parados. Os nossos ocidentalistas são aquelas pessoas que hoje
gritam a plenos pulmões, com um extremo regozijo maldoso e vitória, que
nós não temos nem alma, nem bom senso, nem paciência, nem jeito; que só
nos podemos arrastar atrás da Europa, imitá-la servilmente em tudo e, sob a
custódia europeia, é criminoso até pensar na nossa própria independência.
E, amanhã, se apenas pronunciarem algo sobre a vossa dúvida em relação à
força incondicionalmente curativa da viragem que teve lugar há dois
séculos no nosso país, eles imediatamente gritarão em coro que todos os
nossos sonhos sobre a independência do povo são apenas kvas, kvas, kvas13
e que nós, há dois séculos, nos transformámos de uma multidão de bárbaros
em europeus, instruidíssimos e felicíssimos, que devemos recordar isso até
à hora da morte com gratidão.
Mas deixemos de parte os ocidentalistas e suponhamos que se pode fazer
tudo com dinheiro, até comprar tempo, até reproduzir a originalidade da
vida a vapor; pergunta-se: onde arranjar semelhante dinheiro? Quase
metade do actual orçamento é pago pelo vodca, ou seja, pelo actual
alcoolismo e depravação do povo, ou seja, por todo o futuro do povo. Nós,
por assim dizer, pagamos com o nosso futuro o nosso gigantesco orçamento
de grande potência europeia. Atacamos a árvore pela própria raiz para
colher mais rapidamente os frutos. E quem queria isso? Isso aconteceu
inconscientemente, por si só, pelo rigoroso andar histórico dos
acontecimentos. Libertado pela eloquente palavra do monarca, o nosso
povo, inexperiente na nova vida e sem experiência de vida autónoma,
começa a dar os seus primeiros passos no novo caminho – uma viragem
enorme e extraordinária, quase súbita, quase nunca vista na História pela
sua dimensão e pelo seu carácter. Estes primeiros passos, próprios do
gigante libertado na nova via, exigiam grande cuidado, extrema atenção;
mas o que encontrou o nosso povo ao dar os primeiros passos? A fraqueza
das camadas altas da população, o alienamento secular da nossa
intelectualidade em relação a ele (e isto é o principal) e, para terminar, o
vodca e o jid14. O povo começou a festejar e a beber, inicialmente de alegria
e, depois, por hábito…
Eis o orçamento de grande potência de que precisamos. Pergunto: quem
irá pagar dentro de 15 anos se a actual ordem se mantiver? O trabalho, a
indústria? Porque o orçamento correcto é mantido apenas pelo trabalho e a
indústria. Mas que trabalho se cria com essas tabernas? Os capitais
verdadeiros, limpos, só surgem no país com base no seu bem-estar laboral
geral, de outro modo apenas podem formar-se capitais de kulaks15 e jids.
Assim será se as coisas continuarem da mesma forma, se o próprio povo
não tomar consciência; e a intelectualidade não o ajuda. Se não tomar
consciência, todo ele, completamente, dentro do mais curto espaço de
tempo, se verá nas mãos de todos os jids possíveis e, então, nenhuma
comunidade rural o salvará: haverá apenas pobres solidários que
empenharam e hipotecaram tudo, e jids e kulaks irão pagar por eles para o
orçamento. Aparecerão burguesitos vis, depravadíssimos e um número
infinito de escravos pobres reduzidos por eles a essa condição. Eis o
quadro! Os jidinhos irão beber o sangue do povo e alimentar-se da
depravação e da humilhação do povo, mas como serão eles a pagar para o
orçamento, ter-se-á de os apoiar.

Dostoevski, F.M. Obras Completas. Leninegrado, 1980. V. 21,


pp. 17-18, 36-37, 91-93
13 Bebida típica russa fermentada e não alcoólica.
14 Palavra que significa judeu, mas, normalmente, tem conotação
pejorativa.
15 Camponês rico.
CAPÍTULO V

POPULISMO, ANARQUIA
E SOCIALISMO RUSSOS

O quadro do pensamento ideológico na Rússia do século XIX ficaria


incompleto sem os narodniki (populistas). A ideologia do
«narodnitchestvo» (populismo) baseava-se no princípio da originalidade da
via de desenvolvimento da Rússia para o socialismo, ladeando o
capitalismo. O fraco desenvolvimento do capitalismo e a existência da
comunidade rural constituíram as bases objectivas do aparecimento dessa
ideia no país.
As bases deste «socialismo russo» foram formuladas por Alexandre
Herzen, em meados do século XIX. Ocidentalista convicto, a derrota das
revoluções de 1848-1849 nos países da Europa Ocidental provocou nele
uma revisão profunda das suas convicções, nomeadamente uma
desconfiança face às doutrinas socialistas europeias. Depois de comparar os
destinos da Rússia e do Ocidente, Herzen concluiu que o socialismo se
devia afirmar inicialmente na Rússia, sendo a comunidade fundiária
camponesa a sua principal célula. Para Herzen, a propriedade colectiva da
terra pelos camponeses e a autogestão local eram a base da construção da
sociedade socialista.
A ideia do socialismo camponês de Herzen foi desenvolvida por Nikolai
Chernichevskii. Mas, ao contrário do primeiro, Chernichevskii olhava de
outra forma para a comunidade rural. Para ele, a comunidade era um
instituto patriarcal da vida russa, que visava, inicialmente, cumprir o papel
de «forma de camaradagem de produção» ao lado da produção capitalista.
Depois, ela suplanta a economia capitalista e afirma definitivamente a
produção e o consumo colectivos. Após isso, a comunidade desaparece
como forma de união produtiva.
Ao analisar o populismo, não podemos passar ao lado de Mikhail
Bakunin, um dos pais do anarquismo. Ele estava convencido de que as
relações capitalistas se consolidavam na Europa e de que o capitalismo nada
trazia de bom ao povo russo. Para ele, os dirigentes europeus eram aliados
do czarismo russo na luta contra o movimento revolucionário na Rússia.
Bakunin coloca como tarefa principal da revolução social a destruição dos
Estados históricos centralizados, a sua substituição por uma federação livre
de comunidades que não reconhecem as leis escritas, esta organizada
segundo o princípio comunista.
O modelo socialista de Bakunin passou a chamar-se anarco-colectivismo.
Nesse sistema social, tal como no marxismo, o principal papel pertencia aos
operários e camponeses. Os meios de produção eram colectivos. Porém, ao
contrário de Karl Marx, Bakunin negava a ditadura do proletariado,
considerando-a uma ameaça a toda a causa de revolução social e uma
premissa do regresso ao autoritarismo.
Nome: Herzen, Alexandre

Data e local de nascimento e de morte: 6 de Abril de 1812, Moscovo,


Império Russo-21 de Janeiro de 1870, Paris, França

Breve resenha biográfica: Filho de um rico comerciante russo e de uma


jovem alemã, como os seus pais não tinham a relação oficializada, o seu
progenitor inventou um apelido para si que nasceu da conjugação das
palavras alemãs «coração» (herz) e «filho» (sohn) formando Herzen, ou
seja «filho do coração».
Durante a sua infância, Alexandre Herzen foi criado num ambiente
tradicionalmente nobre, educado por tutores alemães e franceses, tendo
aprendido as línguas de ambos na perfeição. Posteriormente, ingressou na
Universidade de Moscovo para estudar Matemática e Física. No tempo dos
estudos superiores, influenciado pela Revolução Francesa e pelo
Movimento Dezembrista, exacerbou-se o seu interesse pelas lutas pela
liberdade. A partir da década de 1830, serviu na administração pública;
contudo, foi exilado por diversas vezes devido a ideias subversivas. Por
fim, emigrou para França, para a Suíça, e para o Reino Unido para seguir
ideias republicanas, tendo acabado por falecer, de pneumonia, em Paris.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: As


obras escritas por Herzen no estrangeiro estão marcadas pela visão crítica à
burguesia da Europa ocidental, aos seus valores morais e princípios de
organização social, bem como por uma visão mística e idealizada da
religiosidade e do atraso social russo.
Com uma visão materialista-dialética e claramente socialista da História,
Herzen acreditava que a supremacia religiosa alemã seria substituíra pela
eslava e que, consequentemente, o derrube da burguesia pelo povo teria
origem na Rússia. Herzen defendia que o Ocidente tinha apodrecido e que o
futuro da humanidade passava pela organização social em comuna e pela
Rússia. A tribo russa era virgem, fresca e cheia de energia. Os Eslavos
tinham enquanto objectivo a unidade, contudo, como a centralização é
contrária ao seu espírito, iriam optar por um modelo federativo.
Apesar de tolerante em termos religiosos, Herzen acreditava na primazia
da Ortodoxia face ao Catolicismo e ao Protestantismo. Já em relação à
democracia, acreditava tratar-se de um regime benéfico apenas para a
esquerda radical, que ao alcançar o seu objectivo proibia tudo o que era
contrário ao seu ideário.
Do desenvolvimento das ideias revolucionárias na Rússia (1850)

Não profetizamos nada, mas também não pensamos que os destinos da


humanidade estejam pregados à Europa Ocidental. Se a Europa não se
conseguir levantar através da transformação social, então outros países se
transformarão; há entre eles alguns que já estão prontos para esse
movimento, outros preparam-se para ele. Um deles é conhecido: Estados
Unidos da América; outro, cheio de forças, mas, ao mesmo tempo, de
selvajaria, é pouco ou mal conhecido.
Toda a Europa, em todos os lugares, nos parlamentos e nos clubes, nas
ruas e nos jornais, repetia o grito do Krakrhler de Berlim: «Vêm aí os
Russos, vêm aí os Russos!» E, na realidade, eles não só vêm, como
chegaram, graças à Casa de Habsburgo, e talvez ainda avancem mais,
graças à Casa dos Hohenzollern. Ninguém sabe muito ao certo quem são
esses russos, esses bárbaros, esses cossacos. A Europa conhece esse povo
apenas da luta de que ele saiu vencedor, César conhecia os Gauleses melhor
do que a actual Europa conhece a Rússia. Por enquanto ela acreditava em si,
por enquanto o futuro lhe parecia apenas a continuação do seu
desenvolvimento, ela podia não se preocupar com outros povos; agora, a
situação das coisas mudou fortemente. Esta ignorância altiva da Europa não
lhe fica bem.
E sempre que ela começar a censurar os Russos por eles serem escravos,
estes terão o direito de perguntar: «E vós sois livres?»
Sinceramente falando, o século XVIII prestou à Rússia uma atenção mais
profunda e séria do que o XIX, talvez porque ele tivesse menos medo dela.
Pessoas como Miller, Schlosser, Ewers e Levesque, dedicaram parte da
sua vida ao estudo da história da Rússia com o emprego dos mesmos
métodos científicos que Pallas e Gmelin utilizaram no campo da Física.
Filósofos e publicistas, pelo seu lado, observavam com curiosidade um
exemplo raro de governo simultaneamente despótico e revolucionário. Eles
viram que a coroa criada por Pedro I pouco tinha a ver com as coroas
feudais e tradicionais da Europa.
Ambas as divisões da Polónia foram a primeira desonra que manchou a
Rússia. A Europa não compreendeu toda a importância desse
acontecimento, porque então tinha outras preocupações. Ela presenciava,
respirando com dificuldade, os grandes acontecimentos com que a
Revolução Francesa se manifestava já. Claro que a imperatriz russa
[Catarina II] estendeu à reacção a sua mão manchada pelo sangue polaco.
Ofereceu à reacção a espada de Suvorov, o feroz carniceiro de Praga. A
expedição de Paulo na Suíça e Itália estava totalmente privada de sentido e
apenas virou a opinião pública contra a Rússia.
A época louca das guerras absurdas, à qual os Franceses continuam a
chamar o período da sua glória, terminou com a invasão da Rússia por eles;
tratou-se de um erro do génio, tal como a expedição no Egipto. Bonaparte
pretendeu mostrar ser o universo por cima de um monte de cadáveres. À
gabarolice das pirâmides ele quis acrescentar a gabarolice de Moscovo e do
Kremlin. Mas desta vez teve azar; levantou contra si um povo que pegou
decididamente em armas, perseguiu-o através de toda a Europa e chegou a
Paris.
O destino dessa parte do mundo esteve, durante alguns meses, nas mãos
do imperador Alexandre, mas ele não soube aproveitar-se nem da sua
vitória, nem da sua situação. Ele pôs a Rússia sob o mesmo estandarte que a
Áustria, como se entre esse império podre e moribundo e o jovem Estado
que acabava de aparecer em todo o seu brilho existisse algo de comum,
como se o mais activo representante do mundo eslavo pudesse ter os
mesmos interesses que o mais desenfreado opressor dos Eslavos.
Com essa união monstruosa com a reacção europeia, a Rússia, que pouco
tempo antes se tinha elevado com as suas vitórias, humilhou-se aos olhos de
todas as pessoas pensantes. Elas abanavam tristemente a cabeça ao ver
como esse país, que tinha revelado a sua força pela primeira vez, estendeu
de imediato a mão e propôs ajuda a tudo retrógrado e conservador, a
despeito dos seus próprios interesses…
Vilipendiem quanto quiserem e cubram de censuras a autocracia de São
Petersburgo e a triste constância da nossa resignação, mas vilipendiem
também o despotismo em toda a parte e discernem-no, independentemente
da forma em que se revele. O erro óptico, com a ajuda do qual à escravidão
se dá uma aparência de liberdade, dissipou-se.
Repito uma vez mais: se é terrível viver na Rússia, é também tão terrível
viver na Europa…
A cada dia que passa, a Europa torna-se cada vez mais semelhante a
Petersburgo, há até países mais parecidos com Petersburgo do que a própria
Rússia…
A história da Rússia não é outra coisa senão a história do
desenvolvimento embrionário do Estado eslavo; até agora, a Rússia apenas
se organizava. É preciso olhar para todo o passado deste país desde o século
IX como uma via para um futuro desconhecido, que começa a alvorecer
perante ele.
Só 1812 dá início à verdadeira história da Rússia; tudo o que aconteceu
até aí foi apenas um prefácio.
As forças fundamentais do povo russo nunca foram verdadeiramente
concentradas no seu próprio desenvolvimento, como teve lugar entre os
povos germano-românicos.
A Rússia do século IX era um Estado de outra ordem completamente
diferente da dos Estados do Ocidente. A população, na sua maioria,
pertencia a uma raça única, dispersa por um território bastante amplo e
pouco povoado. Aqui não havia a diferença que se nota em toda a parte
entre as tribos conquistadoras e conquistadas. As fracas e infelizes tribos de
finlandeses, dispersas e literalmente perdidas entre os Eslavos, vegetaram
fora de qualquer movimento: ou na submissão resignada, ou na selvajaria
da sua independência, não tendo qualquer importância para a história da
Rússia. Os Normandos (Varegues), que deram à Rússia uma dinastia de
príncipes que a reinou sem intervalo até ao fim do século XVI, foram mais
organizadores do que conquistadores. Chamados pelos habitantes de
Novgorod, eles tomaram o poder e, pouco tempo depois, alargaram-no até
Kiev.
Algumas gerações depois, os príncipes varegues e os seus guerreiros
perderam os seus traços nacionais e misturaram-se com os Eslavos,
transmitindo-lhes, no entanto, o desejo de actividade e incutindo nova vida
em todos os campos desse Estado que se tinha acabado de estruturar.
No carácter eslavo há algo de feminino; esta raça inteligente, forte,
prendada com diferentes capacidades, tem falta de iniciativas e de energia.
Parece que a natureza eslava tem falta de algo para se despertar a si própria,
como que espera um empurrão de fora. Para ela é sempre difícil dar o
primeiro passo, mas o mais pequeno empurrão põe em acção uma força
capaz de um desenvolvimento extraordinário. O papel dos Normandos é
semelhante àquele que Pedro, o Grande, desempenhou com a ajuda da
civilização ocidental…
Mas se o Estado russo foi substancialmente diferente de outros Estados
da Europa, isso permite supor que ele estava abaixo deles até ao século XIV.
Nesses tempos, o povo russo era mais livre do que os povos do Ocidente
feudal. Por outro lado, esse Estado eslavo também não se assemelhava aos
Estados asiáticos vizinhos. Se nele havia alguns elementos orientais,
prevalecia, todavia, o carácter europeu. A língua eslava pertence
indiscutivelmente às línguas indo-europeias e não às indo-asiáticas; além
disso, os Eslavos eram também alheios aos movimentos súbitos que
despertam o fanatismo de toda a população e essa indiferença contribui para
uma ou outra forma da vida social conservar-se durante longos séculos,
passando de geração em geração. Embora entre os povos eslavos o
sentimento de independência pessoal esteja tão pouco desenvolvido como
entre os povos do Oriente, é preciso assinalar a seguinte diferença entre
eles: a personalidade do eslavo foi completamente absorvida pela tribo ou
pelo Estado, na vida dos quais ele participava apenas de forma passiva.
À vista da Europa, a Rússia era um país asiático, mas à vista da Ásia, era
um país europeu. Esta duplicidade correspondia totalmente ao seu carácter e
ao seu destino, que, além de tudo, consiste em tornar-se numa grande
hospedaria de civilizações entre a Europa e a Ásia.
Mesmo até na religião se sente essa influência dupla. O Cristianismo é
uma religião europeia, é a religião do Ocidente; ao aceitá-la, a Rússia
afastou-se da Ásia, mas o Cristianismo por ela optado era oriental, veio de
Bizâncio.
O carácter dos eslavos russos é muito semelhante ao carácter de todos os
outros povos eslavos, a começar pelos Ilírios e Montenegrinos e terminando
nos Polacos, contra os quais os Russos mantiveram um combate tão longo.
O traço mais distintivo dos eslavos russos (sem contar com a influência
estrangeira a que foram sujeitas diferentes tribos eslavas) foi o constante
desejo obstinado de se tornar um Estado independente forte. Esta
plasticidade social falta, em menor ou maior grau, a outros povos eslavos,
mesmo aos Polacos. O desejo de organizar e alargar o Estado surge ainda
durante a época dos primeiros príncipes em Kiev; mil anos depois, revelou-
se em Nicolau [Nicolau I]. Esse sentimento é visível também na ideia
insistente de tomar Bizâncio e também no fervor com que se levantou todo
o povo (em 1612 e em 1812) em defesa da sua independência nacional.
Aqui tem importância o instinto ou o espírito herdado dos Normandos? Ou
talvez uma coisa e outra? Mas nisto reside o facto incontestável de que a
Rússia foi a única, entre todos os países eslavos, que se transformou num
Estado organizado, forte. A influência estrangeira até contribuiu, de uma
forma ou de outra, para esse desenvolvimento, facilitando a centralização e
concedendo ao Governo meios de que não dispunha.
Depois do elemento normando, o bizantino foi o primeiro elemento
estrangeiro que se misturou à nacionalidade russa. Enquanto os
descendentes de Sviatoslav alimentavam o sonho de conquistar a Roma do
Oriente, esta Roma iniciou e levou até ao fim a sua submissão espiritual. A
conversão da Rússia à Ortodoxia é um dos acontecimentos importantes
cujas inúmeras consequências, fazendo-se sentir durante séculos, mudaram
o rosto de todo o mundo. Se isso não tivesse acontecido, não há dúvida de
que, meio ou um século depois, o Catolicismo se infiltraria na Rússia e a
transformaria numa segunda Croácia ou em segundas terras Checas.
A influência adquirida na Rússia foi uma enorme vitória para o
moribundo Império Bizantino e para a Igreja bizantina humilhada pela sua
concorrente. Compreendendo isso muito bem, o clero de Constantinopla,
com a perfídia que lhe é própria, rodeou os príncipes de monges e pôs-se à
cabeça da hierarquia espiritual. Desse modo, o herdeiro, defensor e
vingador por tudo o que a Igreja grega sofreu no passado ou sofrerá no
futuro foi encontrado não na pessoa da Anatólia ou da Antioquia, mas na
pessoa do povo cujo país se estendia do mar Negro ao Branco.
A Ortodoxia grega estabeleceu laços inseparáveis entre a Rússia e
Constantinopla; ela reforçou a inclinação natural dos eslavos russos para
essa cidade e preparou, com a sua vitória religiosa, a vitória futura sobre a
capital oriental do único povo poderoso que pratica a Ortodoxia grega.
Quando Maomé II entrou como vencedor em Constantinopla, a Igreja
caiu aos pés dos príncipes russos e, a partir de então, não deixou de lhes
apontar para o crescente no cimo do Templo de Santa Sofia…
Pouco tempo depois, à influência bizantina juntou-se outra, ainda mais
estranha ao espírito ocidental: a influência mongol. Os Tártaros
atravessaram a Rússia tal como uma nuvem de gafanhotos, tal como um
tufão que destruiu tudo o que encontrava pela frente. Pilharam cidades,
queimaram aldeias, roubavam-se uns aos outros e, depois de todos esses
horrores, desapareciam para lá do mar Cáspio, enviando daí, de tempos a
tempos, as suas hordas ferozes para recordar o seu domínio aos povos
subjugados. Mas os nómadas vencedores não mexeram na organização
interna do Estado, na sua administração e governo. Eles não só concederam
à população a liberdade de professar a fé grega, mas limitaram o seu poder
sobre os príncipes russos à exigência de reconhecimento do poderio tártaro,
de ida aos khans para serem investidos e de pagamento do tributo acordado.
Não obstante, o jugo mongol desferiu um terrível golpe no país: o prejuízo
material depois de várias razias levou ao esgotamento total do povo e este
curvou-se sob o pesado jugo da miséria. As pessoas fugiam das aldeias,
vagueavam pelas florestas, nenhum dos habitantes se sentia em segurança;
aos impostos acrescentava-se o pagamento do tributo e, se ocorria o mais
pequeno atraso, vinham os colectores de impostos, que tinham poderes
ilimitados, e milhares de tártaros e calmucos. Foi precisamente nessa época
infeliz, que durou cerca de dois séculos, que a Rússia se deixou ultrapassar
pela Europa. Entre o povo perseguido, pilhado, constantemente
amedrontado, surgiram traços como a astúcia e a obediência, inerentes a
todos os oprimidos. A sociedade desanimou…
Pedro I não era nem um czar oriental, nem um dinasta; era um déspota
semelhante ao Comité de Salvação Social, um déspota pela sua situação e
em nome da grande ideia que afirmou a sua superioridade indiscutível sobre
todos os que o cercavam… ele sonhava com uma enorme Rússia, com um
Estado gigante, que se estendesse das mais longínquas profundezas da Ásia,
e em ser senhor de Constantinopla e dos destinos da Europa…
A revolução realizada por Pedro I dividiu a Rússia em duas partes. De um
lado ficaram os camponeses livres e as comunidades dos senhores, os
camponeses sujeitos a trabalhos obrigatórios e burgueses, ou seja, a velha
Rússia -– conservadora, comunitarista, tradicional, rigidamente ortodoxa ou
cismática, invariavelmente religiosa, que vestia trajes nacionais e que nada
aceitava da civilização europeia. Como no caso das revoluções triunfantes,
o Governo olhava para essa parte da nação como para um ajuntamento de
descontentes, quase como para revoltosos. Encontrando-se em desgraça,
numa situação indefinida, fora da lei, ela foi entregue à vontade da outra
parte da nação. A nova Rússia passou a ser constituída pela nobreza criada
por Pedro I, por todos os descendentes dos boiardos, por todos os
funcionários públicos civis e, finalmente, pelo exército. Foi impressionante
a rapidez com que essas classes se libertaram dos seus hábitos… Todo o
movimento intelectual e político concentrou-se apenas na nobreza. À
excepção do episódio de Pugatchov e do despertar político do povo em
1812, a história da Rússia não passa da história do Governo e da nobreza
russos. Se se comparar a nobreza russa à omnipotente aristocracia inglesa
ou à pobre aristocracia alemã, jamais se conseguirá explicar o que se passa
na Rússia…
A civilização difundiu-se muito rapidamente nas camadas superiores da
nobreza, mas era completamente estrangeira e o único traço nacional nela
existente foi a conhecida rudeza, que coexistia estranhamente com formas
da cortesia francesa. Na corte falavam apenas francês, imitavam Versalhes.
O tom era dado pela imperatriz [Catarina II], ela correspondia-se com
Voltaire, passava serões com Diderot e comentava Montesquieu; as ideias
dos enciclopedistas penetravam na sociedade de São Petersburgo. Quase
todos os velhotes dessa época que conhecemos eram voltairianos ou
materialistas, se não franco-maçons. Esta filosofia penetrava nos Russos
com facilidade porque a sobriedade e a ironia eram próprias do seu
intelecto. O terreno conquistado na Rússia pela civilização perdeu-se para a
Igreja. A Ortodoxia grega só domina a alma do eslavo se encontrar nela a
ignorância. À medida que nela penetra luz, a fé apaga-se, o fetichismo
externo cede lugar à total indiferença. O bom senso e o intelecto prático do
homem russo refutam a compatibilidade do pensamento claro com o
misticismo. O russo é capaz de ser crente até à beatice, mas se nunca
meditar sobre a religião não pode tornar-se racionalista, pois a libertação da
ignorância significa para ele a libertação da religião. As tendências
místicas, por nós descobertas nos franco-maçons, eram, na realidade,
apenas um meio de dificultar o êxito da difusão do epicurismo duro. No que
respeita ao misticismo da época do imperador Alexandre, ele foi originado
pela franco-maçonaria e pela influência alemã, que não tinham um
fundamento real, ele era uma moda para alguns e a vitória do espírito para
outros. Após 1825, deixaram de pensar nele. O reforço da disciplina
religiosa com a ajuda da polícia na época do imperador Nicolau não atesta a
favor da religiosidade das classes civilizadas.
Em certa medida, a influência das ideias filosóficas do século XVIII foram
funestas em São Petersburgo. Em França, os enciclopedistas, ao libertarem
o homem de velhos preconceitos, incutiam-lhe motivações morais mais
altas, faziam dele um revolucionário. Na Rússia, porém, a filosofia
voltairiana, ao romper com os últimos nós que prendiam à natureza semi-
selvagem, não substituía por nada as velhas crenças e deveres morais
comuns. Equipou o russo com todas as armas da dialéctica e da ironia,
capazes de justificar aos seus olhos a própria dependência servil em relação
ao imperador e a dependência esclavagista dos servos em relação a ele
próprio. Os neófitos da civilização lançaram-se com avidez sobre os
prazeres da carne. Eles compreenderam muito bem o apelo ao epicurismo,
mas até às suas almas não chegavam os sons solenes do sino que convocava
as pessoas para o grande renascimento.
Entre a nobreza e o povo havia uma turba de funcionários da nobreza
pessoal16, classe vendida e privada de qualquer dignidade humana. Ladrões,
torturadores, bufos, borrachões e viciados em jogos de cartas, foram e
continuam a ser a encarnação mais evidente do servilismo no império. Esta
classe foi originada pela brusca reforma dos tribunais no reinado de Pedro
I…
Para o povo, que está privado da liberdade social, a literatura é a única
tribuna, do alto da qual ele obriga a ouvir o grito da sua indignação e da sua
consciência.
Em qualquer sociedade, a influência da literatura adquire dimensões há
muito tempo perdidas por outros países da Europa…
Desde a época de Pedro I que muito se falou das capacidades dos Russos
em imitar, que os levam até ao ridículo. Vários cientistas alemães
afirmavam que os Eslavos estão absolutamente privados de originalidade,
que a sua qualidade distintiva é apenas a imitação. Os Eslavos têm
realmente uma grande elasticidade: depois de saírem da sua exclusividade
patriótica, não encontram mais barreiras insuperáveis na via da
compreensão de outras nacionalidades. A ciência alemã, que não vai além
do Reno, e a poesia inglesa, que piora ao atravessar Pas-de-Calais, já há
muito adquiriram o direito de cidadania entre os Eslavos. Além disso, é
preciso acrescentar que, na base da imitação dos Eslavos há algo original,
algo que, embora se deixe penetrar pela influência externa, conserva, não
obstante, o seu próprio carácter…
A hora da reacção contra a reforma de Pedro I chegou não só para o
Governo, que renunciou ao seu próprio princípio e que abjurou à civilização
ocidental, em nome da qual Pedro I espezinhou a nacionalidade, mas
também para as pessoas que o Governo afastou do povo sob o pretexto da
civilização e começou a enforcá-las quando elas se tornaram civilizadas.
Claro que o regresso à ideia nacional levantou uma questão, cujo
aparecimento, por si só, já era uma reacção ao período de São Petersburgo.
Não será necessário procurar uma saída da triste situação para nós criada na
aproximação ao povo que nós, sem o conhecer, desprezamos? Não será
necessário voltar ao sistema social que melhor corresponda ao carácter
eslavo e abandonar a vida da civilização estrangeira forçada? Esta questão é
importante e actual. Mas logo que foi colocada, surgiu um grupo de pessoas
que, tendo respondido a ela de forma positiva, criou um sistema exclusivo,
transformando-o não só numa doutrina, mas também numa religião. A
lógica da reacção é tão impetuosa como a lógica das revoluções.
A maior ilusão dos eslavófilos consiste em que eles viram a resposta na
própria questão e confundiram a possibilidade com a realidade. Estes
pressentiram que o seu caminho levaria a grandes verdades e deveria mudar
o nosso ponto de vista face aos acontecimentos actuais. Mas em vez de
avançarem e trabalharem, limitaram-se a esse pressentimento. Desse modo,
ao deturparem os factos, deturparam a sua própria compreensão. A sua
opinião já não era livre, eles já não viam as dificuldades, parecia-lhes que
tudo estava decidido, que tudo estava terminado. Não se preocupavam com
a verdade, mas com a busca de refutações para os seus adversários.
À polémica misturaram-se paixões. Os eslavófilos exaltados atiraram-se
com raiva contra todo o período de Petersburgo, contra tudo o que fez
Pedro, o Grande, e, finalmente, contra tudo que foi europeizado, civilizado.
Pode-se compreender e justificar semelhante entusiasmo enquanto
oposição, mas, infelizmente, a oposição foi longe demais e viu-se, de forma
incompreensível para ela, do lado do Governo, ao arrepio dos seus próprios
anseios de liberdade…
Parecia-lhes que uma das causas mais importantes da escravatura em que
vivia a Rússia era a falta de independência pessoal; daí a falta total de
respeito para com o homem por parte do Governo e a ausência de oposição
da parte dos indivíduos; daí o cinismo do poder e a longa paciência do
povo. O futuro da Rússia traz dentro de si um grande perigo para a Europa e
infelicidades para ela própria se o direito privado não tiver fundamentos
libertadores. Mais um século de despotismo como aquele que actualmente
existe e todas as boas qualidades do povo russo desaparecerão.
Felizmente, a Rússia ocupou uma posição muito particular nesta questão
do indivíduo.
Para o homem do Ocidente, a escravidão moral é uma das maiores
desgraças que contribuem para a escravidão, o empobrecimento das massas
e a impotência das revoluções; não se trata de falta de sentido de indivíduo,
mas da falta de clarividência nesse sentido, deturpado – e ele foi deturpado
– pelos acontecimentos históricos precedentes que limitam a liberdade
individual. Os povos da Europa incutiram tanta alma nas revoluções
passadas, derramaram tanto sangue que as revoluções estão-lhes sempre na
memória e a pessoa não pode dar um passo sem tropeçar nas suas
memórias, nos seus forais, obrigatórios e reconhecidos por ele em maior ou
menor grau; todas as questões já estavam meio resolvidas; os motivos, as
relações das pessoas entre si, o dever, a moral, o crime, tudo estava
definido, não por uma qualquer força suprema mas, em parte, com a
concórdia geral das pessoas. Daí advém que o homem, no lugar de
conservar a sua liberdade de acção, pode apenas submeter-se ou revoltar-se.
Estas normas indiscutíveis, estes conceitos prontos atravessam o oceano e
são introduzidos na lei fundamental de uma qualquer república acabada de
se formar; elas sobrevivem ao rei guilhotinado [Luís XVI] e passam
calmamente a ocupar lugar nas bancadas dos jacobinos e na Convenção.
Durante muito tempo, essa grande quantidade de meias-verdades e meias-
superstições foram aceites como bases firmes e absolutas da vida social,
como conclusões indiscutíveis, não sujeitas a dúvidas.
Na realidade, cada uma delas constituiu um verdadeiro progresso, uma
vitória para a sua época. Mas de todo o seu conjunto foram levantadas, a
pouco e pouco, as paredes da nova prisão. No início do nosso século, as
pessoas pensantes notaram isso, mas viram também toda a espessura dessas
paredes e compreenderam quais os esforços a desenvolver para derrubá-las.
A Rússia encontra-se numa situação completamente diferente. As paredes
da sua prisão são de madeira; levantadas à força crua, elas tremem ao
primeiro golpe. Parte do povo, que renegou juntamente com Pedro I a todo
o seu passado, mostrou que força de negação ela possui; a outra parte, que
continuou alheia à situação actual, sujeitou-se, mas não aceitou o novo
regime que lhe parecia um campo prisional temporário. Submete-se porque
tem medo, mas não acredita.
Era evidente que nem a Europa Ocidental nem a Rússia actual podiam
avançar pelo seu caminho sem porem completamente de lado as formas
morais e políticas da sua vida. Mas a Europa era demasiadamente rica para
sacrificar grande riqueza em prol de uma esperança qualquer.
A situação em que se encontrava a Rússia, em comparação com o seu
passado e com o passado da Europa, era completamente nova e parecia
bastante favorável ao desenvolvimento da independência individual. No
lugar de utilizar isso, permitiram o aparecimento de uma doutrina que
privou a Rússia da única vantagem que a História lhe deixou de herança.
Odiando como nós a presente Rússia, os eslavófilos quiseram copiar do
passado vias semelhantes às que travam o movimento do europeu. Os
mesmos misturaram a ideia do indivíduo livre com a ideia do egoísmo
cerrado; compreenderam-na como ideia europeia, ocidental e, para nos
misturar com os adoradores cegos do Iluminismo ocidental, desenhavam-
nos constantemente um terrível quadro da degradação europeia, do
marasmo dos povos, da impotência das revoluções e da terrível crise fatal
que se aproximava. Tudo isso estava certo, mas eles esqueceram-se de
lembrar os nomes daqueles onde foram buscar essas verdades.
A Europa não ficou à espera nem da poesia de Khomiakov, nem da prosa
dos redactores do Moskvitianin para compreender que estava na véspera do
cataclismo: renascimento ou desintegração definitiva. A tomada de
consciência da decadência da sociedade actual pertence ao socialismo e
claro que nem Saint-Simon, nem Fourier, nem este novo Sansão que abalou,
a partir das profundezas da sua prisão, o conhecimento europeu [Proudhon],
foram beber as suas terríveis sentenças em relação à Europa aos escritos de
Shafarik, Kollár ou Mickiewicz. O saint-simonismo tornou-se conhecido na
Rússia dez anos antes de se começar a falar dos eslavófilos…
É fácil criticar a Reforma e a revolução ao ler a sua história, mas a
Europa ditou e escreveu-as com o seu próprio sangue. Nesses grandes
combates, ao protestar em nome da liberdade de pensamento e do direito
dos homens, ela elevou-se a um nível tão alto de convicções que talvez não
tenha forças para as realizar. Nós, porém, estamos mais livres do passado, o
que constitui uma grande vantagem, mas obriga-nos a ser mais humildes.
Essa bondade é demasiado negativa para merecer elogios, apenas os ultra-
românticos elevam a inexistência de vícios ao nível das boas acções. Nós
estamos livres do passado, porque o nosso passado está vazio, é pobre e
limitado. É impossível gostar de coisas como o czarismo de Moscovo ou o
período imperial de Petersburgo. Elas podem ser explicadas, pode-se
encontrar nelas rebentos de outro futuro, mas é preciso livrar-se delas como
de camadas. Ao censurar a Europa por não ter sabido criar as suas próprias
instituições, os eslavófilos não só não falam de como irão resolver a grande
contradição entre a liberdade do indivíduo e o Estado, como até evitaram
entrar em pormenores sobre a organização política eslava que apregoavam
sem fim. Aqui limitaram-se ao período de Kiev e apegaram-se à
comunidade rural. Mas o período de Kiev não impediu a chegada do
período de Moscovo e da perda de liberdades. A comunidade não salvou o
campesinato da redução à servidão; longe da ideia de negar a importância
da comunidade, nós receamos por ela, porque, no fundo, não há nada mais
resistente sem a liberdade do indivíduo. A Europa, que não conheceu essa
comunidade ou perdeu-a nas peripécias dos séculos passados,
compreendeu-a, mas a Rússia, que a possui há mil anos, não a compreendeu
enquanto a Europa não lhe veio dizer que tesouro ela tem guardado no seu
seio. A comunidade eslava começou a ser apreciada quando se começou a
difundir o socialismo. Nós desafiamos os eslavófilos, que provem o
contrário.
A Europa não resolveu as contradições entre o indivíduo e o Estado, mas
levantou essa questão. A Rússia aborda o problema do lado contrário, mas
também não o resolveu. A nossa igualdade começa quando se nos coloca
essa questão. Temos mais esperanças porque estamos apenas a começar,
mas a esperança é apenas esperança porque pode não se realizar.

Herzen, A.I. Obras. V. 30. M., 1955. V.7 Pp. 148-159, 170-175, 182-183,
198-199, 231-232, 240-243.
16 Nobreza que não podia transmitir esse privilégio aos seus descendentes.
Nome: Chernichevskii, Nikolai

Data e local de nascimento e de morte: 24 de Julho de 1828, Saratov,


Império Russo-29 de Outubro de 1889, Saratov, Império Russo

Breve resenha biográfica: Filósofo, escritor, jornalista, pedagogo e


crítico literário. Filho de sacerdote, Nikolai Chernichevskii foi educado
num meio profundamente religioso, tendo feito os seus estudos no
Seminário de Saratov. Devido à sua paixão pela literatura, ganhou, já na
infância, a alcunha de «bibliógrafo». Sem terminar os estudos seminaristas,
em 1846, Chernichevskii foi estudar Filosofia e História na Universidade de
São Petersburgo. Foi nesses anos de formação superior que adquiriu as
ideias políticas democráticas, socialistas, materialistas e revolucionárias.
Em 1864, Nikolai Chernichevskii foi condenado a sete anos de trabalhos
forçados e exílio vitalício na Sibéria por exortar os servos da gleba à
revolta. Acabou por morrer de malária após quase 20 anos de reclusão e
trabalhos forçados.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Nikolai
Chernichevskii é um dos percursores do pensamento democrático, socialista
utópico e revolucionário russo, inspirou-se no ideário de igualdade e
trabalho do homem para o bem comum de filósofos materialistas europeus,
como os franceses Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon e
Charles Fourier e o alemão Ludwig Feuerbach.
No plano político defendia a eliminação imediata da servidão da gleba,
que deveria levar paulatinamente a uma utilização socialista dos terrenos
agrícolas. Segundo Chernichevskii, a comuna era a instituição patriarcal de
organização social russa. No seio da comuna, o trabalho seria distribuído
sob forma de camaradagem, paralelamente ao sistema capitalista que,
progressivamente, deixaria de existir. Aquando da consolidação do sistema
de produção colectiva, a comuna, enquanto núcleo de produção deixaria de
existir. Chernichevskii era um vocal crítico do consumismo exacerbado na
sociedade contemporânea. Acreditava também que as ciências sociais
tinham por base as ciências exatas e que o homem só poderia evoluir se
conhecesse as regras que regem a realidade. Manteve uma relação próxima
com Alexandre Herzen, que chegou a visitar em Londres, para discutirem o
movimento revolucionário na Rússia.
Chernichevskii aplicava as suas ideias políticas também na sua vida
privada. Numa postura progressiva para a época, considerava que as
mulheres tinham direitos iguais aos dos homens, tendo chegado a admitir
indiscrições românticas à esposa Olga, pois defendia que esta não podia ser
encarada enquanto sua propriedade.
Notas sobre revistas (1857)

Queremos dizer de que ponto de vista a forma de pensar do chamado


eslavofilismo merece se não a aprovação total, pelo menos a justificação e
até simpatia; não hesitaremos em apontar até questões sobre as quais,
segundo nos parece, os eslavófilos pensam de forma mais justa do que
muitos dos chamados ocidentalistas. Os leitores verão que não
consideramos que todos os ocidentalistas sejam infalíveis em todas as suas
opiniões; da mesma forma que não falamos de todas as pessoas sem
excepção que se dizem eslavófilos, que eles tenham algo mais importante e
melhor do que as ideias sobre a concepção russa. Na realidade, ambos os
partidos têm nas suas fileiras pessoas que quase nada têm de comum entre
si, além de um ou outro ponto de vista sobre a relação entre o nacional e a
ciência humana geral. Mas esta questão, que serve de base à divisão dos
partidos, está longe de ter, segundo a nossa opinião, a importância
abrangente que lhe atribuem; e entre as pessoas, que estão de acordo quanto
à sua solução, pode haver divergências sobre questões muito mais
importantes. Nós consideramos dignos de particular simpatia, tanto entre os
ocidentalistas, como entre os eslavófilos, apenas os que pensam justamente
sobre estas questões importantíssimas. Se, por exemplo, entre os
ocidentalistas estiverem pessoas que admiram tudo o que actualmente se faz
em França (e há pessoas dessas entre os ocidentalistas), não consideraremos
as suas opiniões dignas de particular apoio, por muito que gritem sobre a
sua simpatia para com a civilização ocidental, porque em França, tal como
em toda a parte, há muito mais mal do que bem. Por outro lado, por muito
que se enganem nas suas concepções sobre a Rus anterior a Pedro, as
pessoas que actualmente aprovam tudo o que é realmente digno de
aprovação e desejam todos os melhores que deve desejar uma pessoa culta,
merecem, no fundo, que consideremos as suas opiniões boas, porque as
aspirações reais relativamente às causas actuais são mais importantes do
que quaisquer sonhos abstractos sobre os méritos e as insuficiências do
passado longínquo. Só os eslavófilos deste último tipo dão vida e sentido ao
seu partido, por isso só sobre eles iremos falar, deixando fora do campo das
atenções as pessoas que, por insuficiência do desenvolvimento intelectual,
pelo atraso ou pelo entusiasmo por sonhos vãos, sejam insignificantes ou
prejudiciais, independentemente do que falem sobre as relações do nacional
para com o universal.
As melhores pessoas do partido eslavófilo são pessoas com ardente
fidelidade às suas convicções; só por isso já são úteis na nossa sociedade,
cuja maior falta não são alguns conceitos errados, mas a ausência de
quaisquer conceitos, não alguns entusiasmos falsos, mas a fraqueza de
quaisquer propensões intelectuais e morais. Antes de desejar que todos
sigam uma firme forma de pensar, que a algum de nós pareça a mais justa, é
necessário reconhecer a necessidade premente da sociedade russa de
despertar nela ideias e capacidades de aceitação de quaisquer convicções
sociais, quaisquer entusiasmos morais, quaisquer interesses sociais. Os
eslavófilos tentam empregar todas as forças para realizar essa tarefa e,
enquanto pessoas de convicções calorosas, exercem uma acção muito útil
para o despertar das mentes acessíveis à sua influência.
Parece que ninguém lhes nega esse direito de serem pessoas úteis para a
sociedade; mas muitos pensam que a utilidade trazida por eles para a causa
do despertar do pensamento na sociedade russa é muito superior ao dano
causado por eles com o êxito da sociedade, preenchendo o pensamento do
homem que eles despertam para a vida com um conteúdo completamente
falso, tentando dar-lhe um sentido desvirtuado.
Não querendo justificar tudo o que dizem mesmo os melhores
representantes do eslavofilismo, o homem que ama a pátria e assimila as
conclusões da ciência no Ocidente deve, porém, dizer que não tem
fundamento a negação tão generalizada de qualquer justeza no
eslavofilismo, deve reconhecer que dos elementos que fazem parte do
sistema dessa forma de pensamento, muitos são positivamente iguais às
ideias que a ciência descobriu ou às quais a experiência histórica na Europa
Ocidental levou os melhores homens…
Comecemos pelos sentimentos de inimizade para com a actual Europa de
que normalmente são acusados os eslavófilos. Claro que, se compreendida
de forma grosseira, semelhante acusação será uma calúnia completa para
eles; eles simpatizam tanto como os mais ferrenhos ocidentalistas com tudo
o que realmente há de grande e de bom na Europa Ocidental e, como é
evidente, não ficam atrás nem no respeito por pessoas como Robert Peel ou
Dickens, Stein ou Hegel, nem na sinceridade do desejo de dar conhecer,
mais de perto e de forma mais completa, aos Russos os frutos salutares do
Iluminismo ocidental. (Pedimos que não se esqueçam de que falamos dos
melhores representantes do eslavofilismo e não de pessoas entre as quais os
pecados deles contra a civilização ocidental são facilmente perdoados,
como pecados de desconhecimento.) Uma pessoa imparcial deve chamar
preconceito à opinião de que eles supostamente são inimigos do Iluminismo
europeu. Mas também é verdade, e isto eles próprios reconhecem, que não
consideram demasiado atractiva a situação da vida do povo na Europa
Ocidental. Não se pode culpá-los desse rigor. Não é por acaso que os
viajantes que vão para a Europa Ocidental à espera de encontrar aí o paraíso
terrestre, regressam desiludidos se procuram, por exemplo, em Paris, algo
mais do que os prazeres do Palais Royal e os costureiros da moda. A
maioria do povo na Europa ainda está afundada na ignorância e na miséria;
porque ela ainda não tem uma participação consciente e permanente nem
nos êxitos que fazem a vida da classe abastada de pessoas, nem nos seus
interesses intelectuais. Não se apoiando na simpatia invariável da massa
popular, a classe abastada e desenvolvida da população, colocada entre o
medo das forças vulcânicas dela e as manobras dos intriguistas, que
utilizam a rotina e a ignorância, entrega-se aos seus anseios egoístas, pela
impossibilidade de realizar o seu ideal, ou atira-se para os excessos de todo
o tipo a fim de afogar a sua solidão. Muitas das melhores pessoas na Europa
ficaram tão tristes com esse mal que renunciaram a quaisquer esperanças no
futuro; outras provam que, com o andar do tempo, o mal não diminuirá,
mas aumentará. Claro que as primeiras não têm razão e as segundas falam
verdade. Na realidade, a chaga do proletariado aumenta, até a organização
física das tribos diminui ao ponto de, falando em geral, até o crescimento
médio cair. O mais lamentável aqui é que se deve considerar que a principal
fonte da miséria e das desgraças na Europa Ocidental não é a insuficiência
de meios para o crescimento e para o melhoramento radical da vida do
povo, mas a má e injusta distribuição desses meios ou a falta de vontade de
melhorar a vida do povo por parte das pessoas que detêm nas mãos esses
meios e, por considerações mesquinhas, não os empregam na realização da
tarefa. Apresentamos apenas um caso como exemplo. Um cálculo positivo
mostra que, se em França os campos fossem cultivados com a ajuda dos
meios oferecidos pelas ciências naturais e pela mecanização, bem como
segundo o sistema apontado pela economia política (cultivo colectivo da
terra com a ajuda de máquinas modernas), a colheita mais do que
duplicaria. Porém, a França sente falta de cereais. Se o agricultor em França
gozasse dos frutos do seu trabalho viveria bem, mas vê-se em necessidades.
Ainda mais triste é a situação dos operários fabris, para os quais seria ainda
mais fácil ter abundância em tudo o necessário à vida. Mas todo o trabalho
na sociedade francesa é feito sob o jugo dos exploradores mesquinhos, que
podem ser pessoas excepcionais, mas que, como qualquer pessoa,
preocupam-se com as vantagens próprias e não com as alheias, pensam no
aumento dos seus rendimentos e não no melhoramento da vida da
população operária que deles depende. Tudo é feito segundo o sistema com
o nome maldito de l’exploitation de l’homme par l’homme. A mesma forma
de relações económicas existe em toda a restante Europa Ocidental. Este
facto foi descoberto pelas melhores pessoas da própria Europa Ocidental e
obriga-as a estarem revoltadas com a realidade que os rodeia.
Esta é também a situação da vida intelectual no Ocidente. É verdade que
a ciência obteve grandes êxitos, mas ainda influi demasiadamente pouco na
vida. A maioria não só do povo, mas até das classes instruídas, está
mergulhada ainda em conceitos selvagens, mais próprios do direito da força
do que do século da civilização. Quando as melhores pessoas na Europa
Ocidental comparam o modo de pensar da enorme maioria dos seus
concidadãos com as ideias humanistas da ciência actual, elas caem no
desespero ao verem que as verdades intelectuais e morais mais indubitáveis,
certas como axiomas de geometria, claras como a luz do dia, continuam a
ser desconhecidas ou não compreendas por ninguém, à excepção de um
punhado de poucos eleitos, ainda impotentes, pelo seu baixo número, face
aos costumes e anseios da sociedade. Citamos outra vez pelo menos um
exemplo. Com o actual desenvolvimento da ordem estatal, quando a massa
do povo vencedor já não rouba nem reduz à escravidão toda a massa do
povo vencido (como aconteceu quando os Germanos conquistaram
províncias do Império Romano), só é sensata e útil a guerra feita pelo povo
para defender as suas fronteiras. Qualquer guerra que tem por objectivo a
conquista ou o domínio de outras nações não só é imoral e desumana, mas
também não é vantajosa e é prejudicial para o povo, independentemente dos
sonoros êxitos que a acompanhe, dos supostos resultados vantajosos a que
conduza. Isto é verdadeiro como 2x2=4. Entretanto, tanto em França como
na Inglaterra, as pessoas que afirmaram isso durante a última guerra com a
Rússia foram alvo de chacota ou da indignação geral.
Os abusos, as faltas e desgraças na vida material e humana dos povos da
Europa Ocidental são um tema inesgotável. Dos milhares de parágrafos
acusatórios contra a realidade europeia-ocidental, nós abordámos, e por
leve, sem quaisquer pormenores, apenas dois ou três. Cada um dos
escritores europeus ocidentais, quando é honesto e as suas ideias estão ao
nível das ideias humanas do século, apresenta um quadro terrível da vida
actual da sua pátria. Esta triste divergência entre a realidade, por um lado, e
as necessidades e ideais do pensamento moderno, por outro, torna-se, de
ano para ano, cada vez maior na Europa Ocidental.
É surpreendente e criminoso se esta auto-acusação da Europa pelos seus
melhores filhos não encontra eco entre nós? Toda a mentira é prejudicial.
Para quê continuarmos na convicção fantástica de que a Europa Ocidental é
um paraíso terrestre quando, na realidade, a situação dos seus povos é
completamente diferente? Não são só os eslavófilos que nos tentam retirar
dessa sedução leviana; alguns, poucos, pensadores verdadeiramente sérios,
que nós tivemos e temos, apresentaram-nos as insuficiências da actividade
europeia ocidental da forma mais brusca. Mesmo quando os eslavófilos, ao
abordarem este tema, se enganam muito, tomando o bom pelo mau ou vice-
versa – esses erros particulares não dificultam a visão da justeza da ideia
geral por eles repetida, mas realmente não lhes pertence, mas sim a todas as
melhores pessoas do Ocidente, através das quais eles a conheceram –, esses
erros não dificultam a visão da justeza da ideia geral: a Europa Ocidental
está longe de ser um paraíso.
Mas quando pensamos até que ponto muitos dos chamados ocidentalistas
desconhecem ainda o que é bom e o que é mau na Europa, e que, até agora,
a muitos parece o melhor precisamente o que é o pior na Europa, devemos
reconhecer que a crítica da vida europeia, que os eslavófilos, directamente
ou através de segundos, copiam dos melhores pensadores da actualidade,
está longe de ser inútil para a limpeza dos nossos conceitos sobre a Europa.
Claro que esta crítica é misturada, ao passar pela boca dos eslavófilos, com
impurezas estranhas, por vezes hostis ao seu espírito, mas nós estamos tão
confiantes no bom senso da tribo russa, pouco inclinada para fantasias
abstractas, que essas impurezas não nos provocam preocupação alguma. O
bom senso e a noção de realidade, onde os Russos são muito fortes,
facilmente distinguem a impureza fantástica dos factos. Além disso, as
impurezas, particularmente as preferidas de muitos eslavófilos, são tiradas
por eles de entre os sentimentos que são muito antipáticos para o carácter
russo. Não é típico do homem russo nem sonhos acima das nuvens, nem
vanglória.
É pouco provável que os erros contrários ao carácter da tribo se tenham
alargado às nações. Mas se isso fosse provável, dever-se-ia dizer que os
perigos dessas impurezas para o desenvolvimento popular são menos
importantes do que as vantagens ligadas a algumas convicções firmes dos
eslavófilos, convicções que, sendo a última palavra da ciência e da
experiência europeias ocidentais, não entraram ainda na rotina intelectual
de todos os escritores ocidentais que vivem de frases rotineiras, não
receberam no nosso país o direito de cidadania entre a esmagadora maioria
dos chamados ocidentalistas que vão beber as suas opiniões às revistas e
livrinhos estrangeiros mais difundidos, como Journal des Débats, Revue
des deux Mondes, obras de Guizot, Thiers, etc.
Como exemplo, apontamos uma dessas convicções, cuja realização já se
tornou a principal tarefa histórica para os Estados que se encontram à frente
da civilização, como a França e a Inglaterra.
A garantia dos direitos jurídicos de cada indivíduo foi o conteúdo
substancial da história europeia ocidental nos últimos séculos. Não há nada
de perfeito na Terra, mas esse objectivo foi, a um nível extremamente alto,
alcançado no Ocidente. O direito de propriedade foi aí quase
exclusivamente concedido ao indivíduo e defendido com garantias firmes,
rigorosamente respeitadas. A independência jurídica e a inviolabilidade do
indivíduo estão em toda a parte consagradas por leis e costumes. Não só o
inglês, orgulhoso da sua independência pessoal, mas também o alemão e o
francês podem dizer justamente que, enquanto não violarem as leis, eles de
nada terão medo na Terra e que a propriedade privada está inacessível a
quaisquer atentados. Mas, tal como qualquer desejo unilateral, este ideal
dos direitos exclusivos do indivíduo tem as suas desvantagens que se
começaram a detectar de forma extremamente difícil, logo que ele se
aproximou da realização, com o esquecimento ou a destruição de outras
condições não menos importantes da felicidade humana que pareciam
incompatíveis com o seu emprego ilimitado na prática. De forma
igualmente difícil para o bem-estar do povo, reflectiram-se essas
consequências nocivas em ambas as grandes fontes daquele bem-estar, na
agricultura e na indústria. A competição ilimitada sacrificou os fracos aos
fortes, o trabalho ao capital. Por ocasião da transição de quase toda a Terra
para propriedade de privados, apareceram numerosas pessoas que não têm
propriedade imobiliária, dando assim origem ao proletariado. Os
proprietários de pequenos lotes em que se dividiu a terra em França não têm
possibilidade de empregar, na prática, meios fortes para melhorar os seus
terrenos e para aumentar as colheitas, porque esses meios exigem capitais e
só podem ser empregues em campos de grande dimensão. Eles estão cheios
de dívidas. Na Inglaterra, os agricultores têm capitais, mas sem capital
significativo é impossível nesse país pensar em organizar uma exploração
agrícola, e as pessoas que têm uma reserva significativa de dinheiro vivo
são sempre pouco numerosas proporcionalmente à massa do povo. Por isso,
a maioria da população rural na Inglaterra é constituída por assalariados
agrícolas, cuja situação é muito lamentável. Na indústria, todo o lucro se
concentra nas mãos do capitalista e a cada capitalista correspondem
centenas de operários: proletários, cuja existência é desgraçada. Finalmente,
a agricultura e a indústria encontram-se sob o poder da competição
ilimitada dos vários indivíduos. Quanto maiores são as envergaduras da
produção, mais barato é o valor da produção; por isso, os grandes
capitalistas esmagam os pequenos que, a pouco e pouco, lhes cedem o
lugar, passando para as fileiras dos seus assalariados e a competição entre
os operários assalariados faz descer cada vez mais o salário. Desse modo,
de um lado, em Inglaterra e em França, surgiram milhares de ricos, mas, de
outro lado, milhões de pobres. Pela fatal lei da concorrência, a riqueza dos
primeiros deve aumentar constantemente, concentrando-se num número
cada vez menor de mãos, e a situação dos pobres torna-se cada vez mais
difícil.

Chernichevskii, N.G. Textos Escolhidos. M., 1978, pp. 302-309.


Nome: Bakunin, Mikhail

Data e local de nascimento e de morte: 30 de Maio de 1814, Tver,


Império Russo-01 de Julho de 1876, Berna, Suíça

Breve resenha biográfica: Pensador, revolucionário, anarquista. Mikhail


Bakunin nasceu numa família nobre de Tver e cresceu com os seus nove
irmãos. Desde tempos da juventude, a sua formação teve lugar em
instituições de ensino militar, tendo desistido dessa carreira após doença,
em 1835, quando passou a residir em Moscovo. Foi nestes tempos que se
dedicou ao estudo aturado da Filosofia alemã, dedicando especial atenção
aos escritos de Kant, Hegel e Fichte. Em 1840, Bakunin mudou-se para
Berlim onde foi aluno de Hegel. Nessa altura, Bakunin decidiu não mais
voltar a viver na Rússia. Por ocasião da sua estadia em Paris, travou
amizade com Proudhon e Marx. Após participar, em 1849, nas revoltas de
Dresden, fugiu para a Áustria, cujas autoridades o entregaram à Rússia.
Assim, Bakunin esteve detido na sua pátria entre 1851 e 1857 e depois
exilado na Sibéria. Em 1861, Mikhail Bakunin foge da Sibéria, através do
Japão e dos EUA, para o Reino Unido. Até à sua morte, Bakunin dedicou-
se à intensa actividade revolucionária na Europa, entre outros países na
Polónia, Itália e França, contudo não participou directamente na actividade
revolucionária na Rússia.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Mikhail


Bakunin defendia que para fazer oposição estatal ou política ao domínio do
pan-germanismo, à Rússia restava apenas gerar um Estado pan-eslavo.
Contudo, trata-se de um caminho pouco proveitoso para os Eslavos que
assim ficariam sujeitos à condição de escravos perante o chicote russo. O
objectivo da revolução social passava pela destruição de Estados
historicamente centralizados e pela sua substituição por comunas federais
livres que se organizam seguindo princípios comunistas. O modelo social
proposto por Bakunin ficou conhecido pelo anarco-colectivismo. Tal como
no comunismo, nesta forma de organização social, o papel central caberia
ao proletariado e aos trabalhadores agrícolas, os meios de produção seriam
propriedade do colectivo e deveria existir uma rede de apoio social que
garantisse, por exemplo, uma educação igualitária e gratuita. Contudo, por
oposição a Karl Marx, Bakunin rejeitava a necessidade da ditadura do
proletariado, considerando, inclusivamente, que essa se poderia tornar numa
ameaça à revolução social e levar à regressão no sentido do autoritarismo.
De acordo com o Bakunin, os principais impulsionadores da revolução
eram os mais pobres dos operários e trabalhadores agrícolas e a forma mais
eficaz de propaganda eram frequentes levantamentos e protestos de pequena
dimensão, sistema que denominou propaganda através dos factos.
Estado e anarquia (1873)

Movidos pelo desejo natural de se libertarem da pesada responsabilidade


de todas as ignomínias cometidas pela Santa Aliança, os Alemães tentam
assegurar-se e assegurar os outros de que o seu instigador foi a Rússia. Não
seremos nós que defenderemos a Rússia Imperial, pois é precisamente
devido ao nosso profundo amor pelo povo russo, e porque desejamos
ardentemente o seu maior progresso e a sua liberdade mais completa, que
odiamos esse imundo Império Pan-russo de forma como nenhum alemão
poderá alguma vez odiá-lo. Contrariamente aos sociais-democratas alemães,
cuja propaganda tem por objectivo primeiro a criação de um Estado pan-
germânico, os revolucionários socialistas russos aspiram sobretudo à
abolição do nosso Estado, convencidos de que enquanto o estatismo – em
qualquer forma que exista – dominar a nossa nação, o povo permanecerá no
estado de escravo miserável. Assim, não pelo desejo de defender a política
do gabinete de São Petersburgo, mas pela verdade que é útil em qualquer
parte e sempre, respondemos o seguinte aos Alemães: É verdade que a
Rússia Imperial, na pessoa das cabeças coroadas – Alexandre I e Nicolau –,
parecia imiscuir-se, de forma bastante activa, nos assuntos internos da
Europa. Alexandre corria de um lado para outro e fazia grande barulho;
Nicolau enfurecia-se e lançava ameaças. Mas tudo acabava aí. Não fizeram
nada, não porque não quisessem fazer nada, mas porque não tinham nada
que fazer, pois os seus amigos, os Alemães, os Austríacos e os Prussianos
os tinham proibido; foi-nos concedido o honorável papel de espantalho,
enquanto os verdadeiros actores eram a Áustria e a Prússia, dirigidos e
autorizados por outros, os Bourbons de França (contra Espanha). O Império
de todas as Rússias não ultrapassou mais do que uma vez as suas funções,
principalmente em 1849, e isso, para salvar o Império Austríaco, agitado
pela insurreição húngara. Ao longo deste século, a Rússia sufocou, por duas
vezes, a revolução polaca e nessas ocasiões fê-lo com a ajuda da Prússia,
tão interessada na manutenção da escravidão polaca como a própria Rússia.
Falo, naturalmente, da Rússia Imperial. A Rússia do povo é impossível sem
a independência e a liberdade da Polónia. O Império Russo não poderia, no
fundo, desejar ter outra influência sobre a Europa, que não a mais nociva e
a mais inimiga da liberdade. Que todo o novo Governo fez uma crueldade
triunfante da opressão, cada nova supressão da revolta popular no sangue
do povo e em qualquer país foi sempre recebido com a mais calorosa
simpatia, ou dúvidas havia? Mas não é essa a questão. Trata-se de
determinar, efectivamente, o grau da sua influência e saber se ocupa, pela
sua inteligência, pelo seu poder e pelas suas riquezas, uma posição
predominante na Europa, para que a sua voz possa resolver essas questões.
Basta mergulhar na história dos últimos 60 anos, bem como na essência do
nosso Império Tártaro-germânico, para poder responder negativamente. A
Rússia está longe de ser uma potência forte, como gostam de imaginar os
nossos patriotas de carrilhão, a imaginação pueril dos pan-eslavistas
ocidentais, bem como a imaginação dos liberais servis da Europa,
enlouquecidos pelo medo e dispostos a curvarem-se perante qualquer
ditadura militar do seu próprio país ou vinda do estrangeiro, desde que os
livre do terrível perigo que advém por parte do seu próprio proletariado.
Aqueles que, sem serem influenciados pela esperança ou pelo medo,
consideram sobriamente a situação actual do Império de São Petersburgo,
sabem bem que nunca foi realizado nada e nunca será realizado nada no
Ocidente, ou contra o Ocidente, pela sua própria iniciativa, a não ser que
por provocação de uma grande potência ocidental e, nesse caso, certamente
não de outra forma que não através de aliança íntima com esta. Desde que
existe, toda a sua política consistiu principalmente em esfregar-se, de uma
maneira ou de outra, em iniciativas alheias, desde a infame partição da
Polónia, concebida, como se sabe, por Frederico II, que propôs a Catarina II
repartir também a Suécia. A Prússia foi, justamente, essa potência ocidental
que não deixou de prestar esse serviço ao Império Pan-russo. No que
concerne ao movimento revolucionário na Europa, tem feito o papel de
espantalho, nas mãos dos estadistas prussianos e, frequentemente, de
parapeito, atrás do qual escondem habilmente as suas iniciativas invasoras e
reacionárias. Mas, após um conjunto de vitórias alcançadas pelas tropas
prusso-germânicas em França, depois da derrota definitiva da hegemonia
francesa na Europa e a sua substituição pela hegemonia pan-germânica,
esse parapeito tornou-se supérfluo e, tendo o novo império realizado os
maiores sonhos do patriotismo alemão, apareceu em todo o esplendor da
sua potência de conquistador e da sua iniciativa sistematicamente
reacionária… É verdade que a Rússia não se tem levantado muito, mas,
pelo contrário, a Europa ocidental, oficial e oficiosa, burocrática e burguesa,
tem-se rebaixado bastante, de modo que a distância tem-se reduzido
consideravelmente. Qual é o francês ou o alemão que se atreve, por
exemplo, a falar da barbárie e da selvajaria russas depois dos horrores
perpetrados pelos Alemães em França, em 1870? Qual é o francês que se
atreve a falar da vilania e da venalidade dos funcionários e estadistas russos
após todo o lodo que veio à superfície e que pouco faltou para afogar o
mundo burocrático e político francês? Bem, não. Ao considerar os
Franceses e os Alemães cretinos, canalhas, ladrões, os verdugos russos não
têm nenhuma razão para corar. Do ponto de vista moral, instalou-se, em
toda a Europa oficial e oficiosa, um espírito de bestialidade ou que pelo
menos se aproxima bastante da bestialidade. Do ponto de vista do poder
político é diferente, mas também aqui, pelo menos em comparação com o
Estado francês, os nossos patriotas vermelhos podem orgulhar-se porque, a
partir do ponto de vista político, a Rússia é, sem dúvida, mais independente
do que a França e superior a ela. Bismarck corteja a Rússia e atrás de
Bismarck está a França vencida que também se tornou assídua. Toda a
questão se resume a isso: que relação existe entre a potência do Império
Pan-Russo e a potência do Império Pan-Germânico, que são certamente
preponderantes, pelo menos no continente europeu? Dois estados com a
mesma força não podem ser adjacentes, pois isso é contrário à sua essência,
que invariavelmente e necessariamente encontra a sua expressão na
dominação; mas toda a dominação nega a igualdade de forças. Uma das
forças é, inevitavelmente, obrigada a renunciar e a render-se perante a outra.
É agora uma necessidade fundamental para a Alemanha. Após uma grande
degradação política, converteu-se, no continente da Europa, num Estado
omnipotente. Pode admitir que, ao seu lado, nas suas barbas, por assim
dizer, subsista uma potência completamente independente, que ainda não
ganhou e que se atreve a igualá-la? E que potência! Uma potência russa, é o
mesmo que dizer a mais odiosa! Há poucos russos que não sabem até que
ponto a Rússia odeia os Alemães, todos os alemães e, sobretudo, os
burgueses alemães e, debaixo da sua influência – infelizmente! – o próprio
povo alemão. Odeiam e odiaram sempre os Franceses, mas esse ódio não é
nada em comparação com o que alimentam contra a Rússia. Esse ódio
forma uma das mais fortes paixões nacionais alemãs. De que modo se
formou essa paixão nacional? A sua origem é bastante honrosa. Foi o
protesto incomparavelmente mais humano, afinal de contas, da civilização
alemã contra a nossa barbárie tártara. Logo, principalmente em 1820-30,
essa paixão adquiriu o carácter de protesto de um liberalismo político mais
definido contra o despotismo político. É sabido que, nesse período, os
Alemães consideravam-se liberais e tinham fé no seu liberalismo. Odiavam
a Rússia enquanto representante do despotismo que era. É verdade que se
tivessem podido e querido ser justos, teriam, pelo menos, dividido esse ódio
em partes iguais, entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Mas isso teria sido
contrário ao seu patriotismo e por isso é que lançaram toda a
responsabilidade da política da Santa Aliança sobre a Rússia. No início da
década de 1830-40, a revolução polaca suscitou a maior das simpatias de
toda a Alemanha e a sua brutal repressão reforçou a indignação dos liberais
alemães contra a Rússia. Tudo isso era muito natural e legítimo, se bem
que, também aqui, a justiça teria exigido que uma parte dessa indignação
recaísse sobre a Prússia, que ajudou, indubitavelmente, a Rússia na sua
iniciativa repugnante de repressão dos Polacos; e ajudou, não por
generosidade, mas pelo que ditava o seu próprio interesse, pois a
emancipação do reino da Polónia e da Lituânia teria tido enquanto
consequência inevitável a subversão de toda a Polónia prussiana, matando,
desta forma, o embrião da crescente potência da monarquia prussiana. Mas
surgiu uma nova razão, na segunda metade da década de 1830-40, a favor
do ódio dos Alemães contra a Rússia, razão que conferiu a esse ódio um
carácter completamente novo, já não liberal, mas sim político-nacional; a
questão eslava estava em cima da mesa e rapidamente se constituiu, entre os
eslavos austríacos e turcos, num partido que ficou à espera da ajuda da
Rússia. Já em 1820-30, uma sociedade secreta de democratas –
principalmente da secção meridional dessa sociedade –, dirigida por Pestel,
Muraviov, Apostol, Bestujev-Riumin, formou pela primeira vez a ideia de
uma federação pan-eslavista livre. O imperador Nicolau apaixonou-se por
essa ideia, mas interpretou-a à sua maneira. Na sua mente, a Federação pan-
eslavista livre transformou-se num Estado pan-eslavista uno e autocrático e,
não é necessário dizê-lo, sob o seu punho férreo. No início das décadas de
1830-40 e 1840-50, foram enviados agentes russos de São Petersburgo e de
Moscovo a todos os territórios eslavos, aos unos oficialmente e aos
voluntários. Estes últimos pertenciam à sociedade, muito longe de ser
secreta, de eslavófilos de Moscovo. Implementou-se uma propaganda pan-
eslavista entre os eslavos do Oeste e do Sul. Apareceu um grande número
de folhetins. Estes folhetins eram em parte escritos e em parte traduzidos do
alemão, e semearam, de forma bastante séria, o espanto nas fileiras dos pan-
germanistas. Deu-se o grito de alarme entre os Alemães. A ideia de que a
Boémia, esse antigo país imperial que se encontra mesmo no coração da
Alemanha, poderia separar-se e transformar-se num país eslavo ou mesmo –
Deus nos guarde! – numa província russa, acabou com o seu apetite e o seu
sonho e, desde então, as maldições caíram sobre a Rússia. Desde então – e
até aos nossos dias – ergueu-se contra a Rússia o ódio dos Alemães. E
assumiu, actualmente, dimensões enormes. Os Russos, por seu lado, não
pouparam os Alemães; será possível que, perante relações mútuas tão
comoventes, esses dois impérios vizinhos – pan-russo e pan-germânico –
possam viver por muito tempo em paz? Tal necessidade existe para a
Rússia? Diremos de imediato que o nosso império, mais do que qualquer
outro, é um Estado militar por excelência, porque perante o objectivo de
criar, tanto quanto possível, uma força imensa, sacrificou, desde o primeiro
dia da sua existência e sacrifica até hoje, tudo o que constitui a vida e o
progresso do povo. Sendo um Estado militar, esse império não tem outra
finalidade, outra causa que justifique a sua existência, que não a conquista.
Além desse objectivo, é completamente absurdo. Assim, a conquista em
todo o lado e a qualquer preço se tornou a vida normal do nosso império. A
questão que então se coloca é a de saber para que lado será dirigida essa
força ávida de conquista. Dois caminhos abrem-se à sua frente: um é o
caminho ocidental, o outro é o caminho oriental. O caminho ocidental está
francamente dirigido contra a Alemanha. É a via pan-eslavista e, ao mesmo
tempo, a da aliança com a França contra as forças unidas da Alemanha
prussiana e do Império Austríaco, com a provável neutralidade da Inglaterra
e dos Estados Unidos. Qual desses caminhos quererá seguir o nosso império
beligerante? Diz-se que o herdeiro, pan-eslavista apaixonado, que odeia os
Alemães e é amigo abnegado dos Franceses, irá escolher o primeiro desses
caminhos; pelo contrário, o imperador reinante, amigo dos Alemães,
sobrinho amante do seu tio, opta pelo segundo caminho. Mas não se trata
aqui de direções em que os seus sentimentos se desdobram; a questão é
mais para onde poderá ir o império com uma esperança de êxito, sem correr
o risco de se quebrar? Já o novo e grande Império Germânico reduzir-se-á,
inevitavelmente, ao nível de potência secundária e dependente de si, não só
a esses dois estados, mas também, mais tarde, o nosso Império Pan-Russo
que será separado, para sempre, da Europa. Falamos, entenda-se, do
império e não do povo russo que, quando for necessário, irá encontrar e
abrir o seu caminho.
Quanto ao Império Pan-Russo, as portas da Europa estão, para si,
fechadas para sempre; as chaves destas portas são guardadas por Bismarck,
que por nada deste mundo as dará ao príncipe Gortchakov. Mas, se as portas
do Noroeste estão, para si, fechadas, para sempre, não continuarão abertas,
de forma mais segura e mais amplas, as do Sul e do Sudeste: Bukhara,
Pérsia e Afeganistão, até a Índia oriental, e, por fim, o objectivo final de
todos os desígnios e aspirações, a Constantinopla? Desde há muito que os
políticos russos, os zelosos partidários da grandeza e da glória do nosso
querido império, examinam a questão da transferência da capital do Norte
para o Sul, da fronteira austera e inóspita do mar Báltico, para as fronteiras
sempre floridas do Mar Negro e do Mediterrâneo; por outras palavras, de
São Petersburgo para Constantinopla. É um axioma universalmente
conhecido que nenhum Estado pode entrar na lista de grandes potências se
não possuir uma vasta fronteira marítima que garanta a comunicação directa
com o resto do mundo e lhe permita participar directamente no movimento
mundial material, social, político e moral. Essa verdade é tão evidente que
não há necessidade de a demonstrar. Imaginemos um Estado forte, com uma
educação de nível superior e feliz – no sentido em que é possível falar de
uma forma generalizada sobre a situação do Estado – e imaginemos que
algumas circunstâncias o separam do resto do mundo. Pode ter a certeza de
que após 50 anos – o espaço de duas gerações – tudo será estagnação: a
força debilitar-se-á, o estado cultural cairá ao nível da imbecilidade,
exalando o odor de um queijo Limburg. Toda a História e, sobretudo, a
maior parte do progresso na História deve-se aos povos costeiros. O
primeiro povo criador da civilização foi o grego: toda a Grécia se pode
considerar costeira. A Roma antiga converteu-se num Estado poderoso e
mundial a partir do dia em que se tornou num Estado marítimo. E na
História moderna, a quem devemos a ressurreição das liberdades políticas e
da palavra, a regeneração da humanidade? À Itália que, tal como a Grécia,
está quase inteiramente rodeada de costa. Quem herdou, após a Itália, o
posto da vanguarda do movimento universal? Holanda, Inglaterra, França e,
por fim, a América do Norte.

Bakunin, M.A. Gosudarstvennost i anarkhia. 1967,


pp. 9-10, 51, 54, 56, 64-66, 74-76.
Nome: Kropotkin, Piotr

Data e local de nascimento e de morte: 09 de Dezembro de 1842,


Moscovo, Império Russo-8 de Fevereiro de 1921, Dmitrov, URSS

Breve resenha biográfica: Geógrafo, historiador e revolucionário. Piotr


Kropotkin nasceu no seio de uma família nobre e abastada. Após concluir
os estudos, enveredou pela formação militar. Durante o serviço militar,
participou em diversas expedições durante as quais se dedicou ao estudo da
Geografia. Aos 24 anos, Piotr ingressou em Matemática na Faculdade de
Física e Matemática da Universidade de São Petersburgo, trabalhando,
paralelamente no Ministério do Interior. Em 1872, Kropotkin iniciou uma
viagem pela Europa, durante a qual travou conhecimento com
revolucionários russos e europeus. Ao regressar à Rússia, Piotr manteve a
actividade académica, dedicando-se também à actividade revolucionária, o
que lhe valeu a detenção em 1874. Após cumprir a pena, entre 1876 e 1917,
Kropotkin exilou-se na Europa mantendo uma intensa actividade política. À
terra pátria, o revolucionário regressa após a Revolução de Fevereiro de
1917; não obstante diversos convites, nunca aceitou cargos governamentais,
tendo falecido de pneumonia, após passar os últimos anos da sua vida numa
situação económica difícil.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No


plano político, Kropotkin considerava que o anarquismo nascia da mesma
insatisfação humana e do mesmo protesto revolucionário que o socialismo
e, por isso, o resultado da revolução deve ser a instituição de um
comunismo sem Estado. As sociedades ficariam organizadas em unidades
auto-governadas (associações, cidades, etc.) e voluntariamente reunidas em
federações, tendo por base o princípio da boa-fé. No plano económico,
deveria ser instituída a produção e a gestão colectiva de recursos. O
colectivo seria composto por indivíduos que saberiam por que e para quem
trabalham.
Enquanto cientista, Piotr Kropotkin tentou conferir uma base científica ao
anarquismo, considerando que se trata de uma filosofia universal. Assim,
defendia que havia uma só lei para todos, a da solidariedade, de cooperação
e apoio. Neste âmbito, o darwinismo seria uma luta pela sobrevivência entre
formas de organização social, sendo que dentro de cada forma reinava a
solidariedade, o motor do progresso. Para comprovar a sua tese, Kropotkin
estudou sociedades consideradas mais primitivas, como os Esquimós e
Bosquímanos, que representavam a vida em comuna, sendo passível de
réplica em unidades industriais, cidades e outras organizações sociais.
A desintegração do Estado moderno (1896)

Ao mesmo tempo que o espírito revolucionário morre nos velhos partidos


políticos da Europa Ocidental, a iniciativa privada e a actividade de grupos
autónomos, independentes, apoiam o amplo movimento anarquista, cujas
dimensões só os míopes não vêem, porque ele não actua nos palcos dos
parlamentos, mas infiltra-se cada vez mais profundamente.
Camaradas, chegou a hora de introduzir convicções anarquistas
conscientes na convulsão social anti-estatal que ocorre agora na Rússia.
Chegou a hora de aproveitar as tradições que nos deixaram os populistas
dos anos 70, não para copiá-las cegamente, mas para, utilizando as lições do
desenvolvimento passado, ir mais longe do que eles, se não na grandeza
inatingível do seu espírito de sacrifício próprio, pelo menos numa expressão
mais definida das ideias.
Há cerca de 20 anos, no movimento revolucionário russo, foi colocada a
questão da natureza do Estado e da táctica da luta que advém do seu
reconhecimento ou da sua negação. Na Rússia, tal como na Internacional,
os adversários e os apoiantes da natureza do Estado começaram a dividir-se
em dois campos: os populistas-anarquistas, que viam no próprio povo a
força que pode sozinha libertar o povo do jugo secular e refazer a vida russa
com base nos princípios da liberdade e da igualdade, e os democratas, que
acreditavam na possibilidade de libertação com a ajuda de uma gestão
representativa ou da tomada do poder pelos revolucionários…
De vez em quando, a ideia parece dormitar. Quando lhe dificultam a saída
à superfície, ela escava a terra; mas isso não se prolonga por muito tempo.
Pouco tempo depois, ela vem novamente à superfície, de forma mais forte e
viva do que antes. Olhem, realisticamente, para o socialismo em França, no
seu segundo despertar neste curto período dos últimos 25 anos. A certa
altura, a onda pareceu ter diminuído, partido, desaparecido; mas eis que ela
se levanta novamente, mais alto, mais forte e mais profundamente. O
mesmo acontecerá na Rússia.
Dizer «Estado» é o mesmo que dizer «guerra». O Estado procura ser
forte, mais forte do que os seus vizinhos, caso contrário converte-se no seu
joguete. Além disso, procura enfraquecer e empobrecer os outros estados
para lhes impor a sua lei e a sua política, e para enriquecer à sua custa. A
luta pela preponderância, que é a base da organização económica burguesa,
é também a base da organização política. Por isso, o estado de guerra é hoje
o estado normal na Europa. Guerras prusso-dinamarquesas, prusso-
austríacas, franco-prussianas, guerra do Oriente, guerra contínua no
Afeganistão. Novas guerras se preparam; Rússia, Inglaterra, Alemanha,
França, etc., estão próximas de lançarem os seus exércitos. Actualmente,
existem razões para 30 anos de guerra.
A guerra é a perdição, a crise, o aumento de impostos, o amontoamento
de dívidas. Ainda mais, cada guerra é um fracasso moral para os Estados.
Terminada a luta, as pessoas apercebem-se de que o Estado dá provas de
incapacidade, mesmo nas suas principais atribuições. Não sabem organizar
a defesa do território, até ao vitorioso fracasso. Olhemos a fermentação de
ideias que nasceu da guerra de 1871, ou mesmo na Alemanha ou em
França, ou no descontentamento geral na Rússia após a guerra do Oriente.
As guerras e os exércitos matam os Estados, aceleram a sua bancarrota
moral e económica. Mais duas ou três guerras grandes darão o golpe da
misericórdia nesses podres mecanismos…
Metade da humanidade, aquela que produz tudo com o trabalho das suas
mãos, não pode apoiar eternamente um regime que apenas foi criado para
manter submissa esta metade da humanidade. Por toda a parte, o povo
simples começa a revoltar-se contra essa violência: debaixo da Rússia
autocrática, da Constituição inglesa, da república burguesa de França e dos
Estados Unidos. Toda a história do nosso tempo não é mais do que a
história da luta do povo simples contra as classes privilegiadas apoiadas
pelo Estado. Esta luta tem lugar em toda a parte, seja qual for a forma de
regime, e constitui a principal preocupação de todos os Governos. Ela
condiciona todos os seus actos. Não são por princípios nem considerações
sobre o bem-estar do povo que se orientam agora os Governos, quando
publicam uma ou outra lei, tomam uma ou outra medida. Eles têm um
objectivo: conservar a força das classes privilegiadas, manter o seu poder,
não obstante a pressão a partir de baixo…
O bom senso das pessoas pensantes na Europa já compreende o seguinte:
«A futura revolução terá um carácter universal que não tiveram as
anteriores revoluções. Comece onde começar, ela não se limitará a um
Estado, mas alastrará a toda a Europa. Se, no passado, eram possíveis
reviravoltas locais, agora, tendo em conta a estreita ligação entre todos os
países, bem como a abundância de razões capazes de provocar a revolução
em cada um deles, isso é impensável; só se a revolução que começar em
algum lugar aguentar algum tempo. Tal como aconteceu em 1848, o fogo da
revolução saltará inevitavelmente de um país para outros e abarcará toda a
Europa, incluindo até a Inglaterra.»
Mas se, em 1848, as cidades revoltosas, Paris, Viena, Berlim, ainda
puderam acreditar numa simples mudança da forma de governo e ficaram
satisfeitas com a proclamação da república em França e as cedências
constitucionais na Alemanha e na Áustria, agora isso não se repetirá. O
operário parisiense, por exemplo, não irá esperar que o Governo, seja ele
qual for, mesmo o Governo da Comuna, o faça feliz. Deixou de acreditar no
Governo e tentará conquistar alguma coisa.
Os camponeses russos não irão ficar à espera que a assembleia agrária
lhes ofereça a terra que lhes foi retirada pelos senhores latifundiários e pelo
czar. Se eles sentirem esperança no êxito, se sentirem que, amanhã, não
aparecerão baionetas e canhões, eles próprios tentarão apoderar-se dessa
terra. Conversem a este propósito com os camponeses, olhem para os seus
pequenos levantamentos. O mesmo acontecerá em Espanha e em Itália. E se
o operário alemão acreditou durante muito tempo que tudo pode ser feito
para si através do telégrafo a partir de Berlim, desde que lá estejam
«verdadeiras pessoas», essa crença ficou fortemente abalada nos últimos
tempos, à medida que a enorme diferença nas ideias e no temperamento
revolucionário dos operários socialistas alemães e dos seus dirigentes
parlamentares se começou a notar cada vez mais. O operário perde a
confiança que tinha neles, e os seus erros, a sua impotência para resolver as
grandes questões maduras – é impossível resolver essas questões por via
parlamentar, sem revolução popular – obrigarão, dentro em breve, o
operário alemão a procurar salvação no seu próprio poder de iniciativa, no
movimento revolucionário popular…»
Jamais afirmaremos, embora, por vezes, isso seja expresso durante as
discussões, que os direitos políticos não tiveram para nós importância.
Sabemos muito bem que na Europa Ocidental, depois da liquidação da
servidão da gleba e principalmente a partir do fim do século passado, o
povo adquiriu alguns direitos, muito importantes. Os camponeses e os
operários deixaram de ser escravos sem direitos. Ninguém pode vergastar
um camponês europeu-ocidental, como continuam a vergastar até hoje na
Rússia, e os senhores nobres não olham mais para o camponês como um
animal de trabalho. O mesmo se passa com o operário urbano,
principalmente nas grandes cidades: depois de sair da oficina, considera-se
igual a um qualquer senhor. Graças às revoluções, graças ao sangue
derramado pelo povo, este adquiriu alguns direitos individuais cuja
importância não queremos menosprezar. Até o camponês russo, depois da
abolição da servidão da gleba, adquiriu alguns direitos pessoais tão valiosos
que só os poderá avaliar completamente aquele que já suportou o jugo da
servidão.
Mas há direitos e direitos e misturá-los pode só aquele que pretende
confundir os conceitos entre o povo. Há direitos que têm uma importância
real, positiva para o homem, e há direitos completamente imaginários.
Assim, por exemplo, a igualdade entre o camponês e o senhor nos seus
contactos pessoais ou a libertação dos castigos físicos são tão caros ao povo
que ele se revoltaria imediatamente se alguém tencionasse violá-los. Até os
camponeses russos, libertados há apenas 30 anos da servidão da gleba e das
vergastadas dos senhores (graças ao facto de depois da guerra de Sebastopol
terem começado a revoltar-se e a matar os seus latifundiários em toda a
parte) se revoltam desde que Alexandre Alexandrovitch [Alexandre III]
pensou devolvê-los ao poder do senhor e nomear nobres para chefes rurais a
fim de os vergastarem sem piedade.
Mas há outros direitos, por exemplo, o escrutínio universal ou a liberdade
de imprensa, para com os quais o povo na Europa Ocidental é quase
completamente indiferente, porque sente que, se esses direitos concedem
realmente à classe média meios de se defender da tutoria do Governo e dos
grandes latifundiários, eles não defendem nada o povo da classe média.
Pelo contrário, o povo sente que estes chamados direitos servem apenas de
meio para a classe média manter o seu poder sobre o povo trabalhador. Não
deviam ser chamados com o nome pomposo de direitos do povo, porque ao
povo não dão qualquer tipo de protecção; e se se continua a falar deles com
admiração é apenas porque toda a nossa forma de pensamento político e a
própria linguagem política foram criadas pelas classes dirigentes, no seu
próprio interesse.

Kropotkin, P, Desmoronamento do Estado Contemporâneo. 1903,


p. II-III, 14-16, 32-35.
CAPÍTULO VI

NAS VÉSPERAS DAS TEMPESTADES


REVOLUCIONÁRIAS

O início do século XX na Rússia ficou marcado por fortes turbulências


revolucionárias. A revolução de 1905-1907 conseguiu arrancar algumas
cedências à autocracia do czar Nicolau II: foi criado o Parlamento Russo
(Duma), o poder do imperador foi limitado, os cidadãos russos passaram a
gozar de algumas liberdades, as condições de trabalho dos operários foram
melhoradas.
Porém, a participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
agravou seriamente todas as contradições na sociedade russa, conduziu a
uma profunda crise e económica que o czar russo e os seus sucessivos
governos não souberam resolver, provocou o aumento do desemprego e da
carestia de vida, do poder de influência das forças radicais na vida política
russa. A monarquia estava condenada. Nicolau II ainda enviou tropas para
esmagar os protestos dos operários em Petrogrado, mas estes começaram a
formar destacamentos armados e os próprios soldados e oficiais começaram
a juntar-se aos revoltosos.
A 15 de Março (02 de Março de acordo com o calendário gregoriano) de
1917, Nicolau II foi forçado a abdicar. Inicialmente, abdicou do trono a
favor do filho Alexei, mas rapidamente mudou de ideia depois do conselho
dos médicos ter considerado que o herdeiro não viveria muito tempo longe
dos pais, que poderiam ser forçados ao exílio. Nicolau redigiu um novo
manifesto, nomeando o seu irmão, o grão-duque Mikhail, Imperador da
Rússia, proposta que não foi aceite por este último. No dia seguinte,
renunciou ao trono a favor do Governo Provisório.
Em finais de Fevereiro, os partidos de esquerda começaram a criar, em
Petrogrado, sovietes de operários, aos quais mais tarde aderiram também
soldados, formando uma espécie de «governo paralelo». Os bolcheviques,
dirigidos por Vladimir Lenine, foram reforçando as suas posições no seio
destas novas organizações, nomeadamente porque prometiam paz ao país,
trabalho às classes operárias, terra aos camponeses e autonomia aos
numerosos povos que constituíam o Império Russo. Como o Governo
Provisório decidiu continuar a guerra e o caos económico e social agravava-
se, as promessas dos bolcheviques caíram em solo fértil, sendo esta uma das
razões que explica a forma relativamente fácil como eles tomaram o poder
na capital do império.
Nome: Tolstoi, Lev

Data e local de nascimento e de morte: 9 de Setembro de 1828, Tula,


Império Russo-20 de Novembro de 1910, Riazan, Império Russo

Breve resenha biográfica: Escritor e pensador, o conde Tolstoi vem de


uma linhagem nobre. Tendo cedo ficado órfão de mãe e pai, Tolstoi e os
seus irmãos foram criados por diversos familiares. No que concerne à
educação, inicialmente teve tutores alemães e franceses e, no ensino
superior, tentou formar-se, sem sucesso, em Língua Árabe e em Turco, bem
como em Direito. Em 1847, Lev Tolstoi foi hospitalizado e foi então que
começou a sua carreira literária, tendo recebido reconhecimento ainda em
vida. No mesmo ano, abandonou os estudos universitários e regressou à
casa materna que, entretanto, herdara. Entre 1851 e 1856, Tolstoi serviu no
exército, tendo participado na Guerra da Crimeia, chegando inclusivamente
a ser condecorado. Após uma curta estadia em São Petersburgo, em 1857
decidiu viajar pela Europa. A partir da década de 70, Tolstoi começa a
afastar-se de uma existência materialista e passa a propagar uma forma de
estar despojada. Toda a sua vida ficou marcada pela profunda crítica à
Igreja Ortodoxa, tendo sido excomungado em 1901. Foi casado durante
meio século com Sofia Andreevna com quem teve 13 filhos.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No
plano político, Lev Tolstoi teorizou acerca de uma forma não violenta do
anarquismo que tem por base um cristianismo racionalizado. Considerando
que a obrigação é um mal, ele concluiu que seria essencial a abolição do
Estado, enquanto instrumento de imposição; contudo, esse objectivo não
deveria ser concretizado através do recurso à violência mas pela recusa
voluntária de todos os membros da sociedade face às obrigações estatais,
nomeadamente recusar a prestação do serviço militar ou o pagamento de
impostos.
No plano filosófico, o pensamento de Lev Tolstoi ficou marcado por uma
profunda crise espiritual que o levou a uma busca do sentido da vida.
Inicialmente, a procura levou-o à Ortodoxia, contudo, desiludido com a
falta de respostas, concluiu que as igrejas cristãs eram corruptas e optou por
uma forma não organizada da religião. Assim, e apesar de não reconhecer a
divindade de Cristo, Tolstoi considera que a cultura deve ter uma base
religiosa, recusando o secularismo e defendendo ainda a existência de uma
«pan-moralidade». Outra particularidade da mundividência deste pensador
passa pela procura de uma ética mística, equiparada, em termos de valor, ao
bem a que se devem subordinar todos os elementos de uma sociedade
secularizada, nomeadamente a ciência, a filosofia e a arte.
Fim de século (1905)

O significado da vitória japonesa reside no facto de esta vitória ter


mostrado, da forma mais evidente, não só à derrotada Rússia mas a todo o
mundo cristão, toda a insignificância da cultura externa, de que tanto se
orgulham os povos cristãos, tendo ainda mostrado que toda essa cultura
externa, que lhes parecia ser um resultado particularmente importante de
esforços milenares da civilização cristã, é algo muito pouco importante e
tão insignificante que nenhumas particularidades espirituais supremas, que
não distinguiam o povo japonês, foram necessárias quando precisou de, em
apenas algumas décadas, assimilar toda a sabedoria científica dos povos
cristãos, incluindo a das bactérias e dos materiais explosivos, e tão bem
soube aplicar esse conhecimento para objectivos práticos que se tornaram
tão admirados pelos povos cristãos pela aplicação dos mesmos no campo e
nas artes militares, mais do que qualquer povo cristão.
Durante séculos, os povos cristãos, a pretexto da autodefesa, inventaram,
uma após a outra, formas cada vez mais eficientes de se destruírem uns aos
outros (métodos imediatamente utilizados por todos os outros inimigos) e
recorriam a esses meios para se ameaçarem mutuamente e para obterem
todo o tipo de vantagens junto dos povos não civilizados em África e na
Ásia. E é então que entre os povos não-cristãos surge um povo guerreiro,
hábil e imitador, que, ao ver a ameaça que pairava sobre si e sobre outros
povos não-cristãos, assimilou, com uma incrível facilidade e rapidez, uma
verdade simples: se te baterem com um cacete grosso e forte, é preciso
agarrar num igual ou ainda mais grosso e mais forte e bater naquele que te
está a agredir. Os Japoneses aprenderam essa lição de forma muito rápida e
fácil e, paralelamente, toda aquela técnica de guerra, juntando a isso todas
as vantagens do despotismo religioso e do patriotismo; demonstraram um
poderio militar tal que se revelou mais forte do que a mais poderosa
potência militar. A vitória dos Japoneses sobre os Russos mostrou a todas as
potências militares que o poderio militar já não está mais nas suas mãos,
mas passou ou passará brevemente para outras mãos, não-cristãs, já que
todos os povos não-cristãos da Ásia e de África, oprimidos por povos
cristãos, não terão dificuldade, à semelhança do Japão, de assimilar técnicas
de guerra de que tanto nos orgulhamos, e não só libertarem-se, mas,
inclusivamente, apagarem da face da terra todos os Estados cristãos…
Essa guerra mostrou, da forma mais evidente, que a força dos povos
cristãos não pode residir no poderio militar, contrário ao espírito cristão, e
que, se os povos cristãos querem permanecer cristãos, então os seus
esforços devem ser dirigidos não para o poderio militar, mas para algo
diferente: para um modo de vida que, tendo por base os ensinamentos
cristãos, dê um maior bem-estar às pessoas não através da violência bruta,
mas como resultado do acordo sensato e do amor.
É aqui que reside, para o mundo cristão, o grande significado da vitória
dos Japoneses…
Já para o povo russo, esta guerra, com o seu sofrimento terrível e sem
sentido, com o desperdício de esforços e vidas de milhões de pessoas,
demonstrou, além do comum a todos os povos cristãos, a contradição entre
a cristandade e a organização violenta do Estado, aquele terrível perigo em
que estes povos se encontram em permanência ao obedecerem aos seus
Governos…
Toda a revolução nasce quando a sociedade deixa de partilhar a visão do
mundo na qual se baseiam as formas existentes de vida social, quando as
contradições entre a vida, tal como ela é e tal como deve e pode ser, se torna
de tal forma evidente para a maioria das pessoas que estas passam a sentir
que a continuação da vida nesses moldes é inconcebível. A revolução
começa entre aqueles povos em que o maior número de pessoas tem
consciência dessa contradição.
No que concerne aos meios a serem utilizados nessas revoluções, esses
dependem do objectivo para o qual a revolução se dirige.
Em 1793, a consciência da contradição entre a ideia de igualdade das
pessoas e o poder despótico dos reis, do clero, dos nobres, dos funcionários
públicos, era sentida não só pelos povos que sofriam a opressão deles, mas
também pelos melhores indivíduos das classes dominantes de todo o mundo
cristão. Mas em nenhum lado essas classes dominantes foram tão sensíveis
a essa desigualdade e em nenhum outro sítio a consciência do povo estava
menos oprimida pela escravidão do que em França. E por isso, a revolução
de 1793 teve início exactamente em França. O meio de concretização da
igualdade, como é óbvio, passava, então, pela extorsão com recurso à força,
que possuíam os que detinham o poder e, por isso, os que fizeram aquela
revolução tentaram concretizar os seus objectivos com recurso à força.
No actual ano de 1905, a contradição entre a consciência da possibilidade
e da legalidade da vida livre, por um lado, e, por outro lado, da insensatez e
da calamidade, frutos da obediência a um poder coercivo que, de forma
aleatória, retira às pessoas o fruto do seu trabalho, atribuindo-o às
autoridades incapazes de limitarem a sua avidez de armamentos e que, a
qualquer momento, podem obrigar o povo a participar em guerras mortais e
sem sentido, contribuem para que essa contradição seja sentida não só pelos
povos que sofrem com essa violência, mas também pelos melhores
representantes das classes dominantes. Em lado algum essa contradição é
sentida de forma tão aguda como no seio do povo russo. Sente-se essa
contradição agora de forma especialmente aguda no povo russo também em
consequência dessa guerra estúpida e vergonhosa, na qual o povo russo foi
envolvido pelo Governo, e na sequência da manutenção entre o povo russo
do quotidiano agrícola e, sobretudo, em consequência da consciência cristã
particularmente viva deste povo.
Por isso, eu acho que a revolução de 1905, que tem por objectivo a
libertação das pessoas da violência, deve começar e já começou
precisamente na Rússia…
O povo russo teve sempre uma relação com o poder diferente da dos
povos europeus. O povo russo nunca combateu o poder e, principalmente,
nunca participou nele, não se depravou fazendo parte dele. O povo russo
olhou sempre para o poder não como um bem ao qual todo o ser humano
deve ansiar, tal como a maioria dos povos europeus (e como, infelizmente,
olham algumas pessoas estragadas do povo russo) olham para o poder, mas
olhou sempre para o poder como um mal, do qual a pessoa se deve afastar.
Por isso, a maioria do povo russo preferiu sempre mais sofrer castigos
corporais resultantes da violência do que a responsabilidade espiritual pela
participação nela. Assim, o povo russo, na sua maioria, obedecia e obedece
ao poder não porque não o pode derrubar, como querem os revolucionários
ensinar-lhe, e não participa nele não por não conseguir alcançar essa
participação, como querem os liberais ensinar-lhe, mas porque sempre, na
sua maioria, preferia e prefere submeter-se à violência do que lutar contra
ela ou participar nela. Foi isso que permitiu o estabelecimento e a
manutenção constantes da governação despótica na Rússia, ou seja, a
simples violência do forte e daquele que tem vontade de lutar com o fraco
ou com quem não tem vontade de lutar.
A lenda do chamamento dos Varegues, provavelmente, deve ter aparecido
após os Varegues terem conquistado os Eslavos e reflecte bem a atitude das
pessoas russas para com o poder mesmo antes do Cristianismo. «Nós
próprios não queremos participar nos pecados do poder. Se não consideram
que se trata de um pecado, venham e governem.» É com essa relação face
ao poder que se explica a obediência das pessoas russas ao autocrata mais
cruel e insensato, que muitas vezes nem russo é.
Assim olhava, nos tempos antigos, o povo russo para o poder e para a sua
relação com ele. Assim, na sua maioria, continua a olhar para ele
actualmente. É verdade que, tal como noutros Estados, as mesmas mentiras,
persuasões, através das quais os povos cristãos são obrigados, de forma
impercetível, não só a submeter-se, mas também a obedecer nas suas acções
contrárias ao Cristianismo, foram exercidas sobre o povo russo. Mas essas
mentiras só conquistaram as camadas superiores, estragadas, da população,
já a maioria manteve aquela visão do poder que considera que mais vale
sofrer as consequências da violência do que participar nela.
Penso que a razão de tal relação do povo russo com o poder reside no
facto de que no povo russo, mais do que noutros povos, se mantiveram os
verdadeiros ensinamentos cristãos da fraternidade, igualdade, humildade e
amor, aquele Cristianismo que faz uma brusca distinção entre a submissão à
violência e a obediência à mesma…
A situação do povo piorava cada vez mais e chegou, por fim, ao ponto de
se começar a desfazer aquele modo de vida que era tido como essencial
para uma vida cristã: o Governo não só não lhes dá essa terra, mas ao
atribuí-la aos seus serviçais e mantendo-a nas suas mãos, incute no povo o
sentimento de que deverá perder a esperança na liberdade da terra e impõe-
lhe, de acordo com o modelo europeu, a vida industrial – recorrendo a
inspectores fabris – que, aos seus olhos, é má e pecaminosa.
A principal razão da situação desgraçada do povo russo deve-se ao facto
de ter sido tirado ao povo o seu direito legítimo à terra. E é a mesma razão
que está na base da desgraça e insatisfação do povo trabalhador da Europa e
da América. A diferença está apenas no facto de a retirada das terras dos
povos europeus através do reconhecimento da legalidade da propriedade
privada fundiária ter acontecido há tanto tempo, de se terem sobreposto
tantas novas relações depois dessa injustiça, que as pessoas da Europa e da
América não vêem a verdadeira causa da sua situação e procuram-na em
todo o lado: na ausência de mercados, nas tarifas, na injustiça, no
capitalismo, em tudo menos na sua verdadeira razão: na retirada ao povo do
direito sobre a terra.
Já para o povo russo, essa injustiça principal, que ainda não foi
completamente concretizada em relação a ele, é completamente evidente.
O povo russo, ao viver na terra, vê com clareza aquilo que querem fazer
com ele e não pode aceitar isso.
As invasões e guerras inúteis e destruidoras e a retirada ao povo do direito
à terra são, na minha opinião, as causas externas mais próximas da viragem
que se aproxima de todo o mundo cristão. E essa derrocada irá iniciar-se
não num lugar qualquer, mas na Rússia, porque em lado algum, tanto como
no povo russo, se conservou de forma tão forte e pura a mundivisão cristã, e
em lado algum como na Rússia se manteve o trabalho na terra entre a
maioria do povo…
Graças às suas características e condições de vida únicas, o povo russo,
antes de outros povos do mundo cristão, teve a consciência da miséria
resultante da obediência à autoridade violenta do Estado. E nessa
consciência e vontade de se libertar da violência do poder reside, na minha
opinião, a essência da reviravolta que espera não só o povo russo, mas todos
os povos do mundo cristão.
Às pessoas que vivem em Estados que se baseiam na violência parece que
a destruição do poder trará consigo, inevitavelmente, grandes desgraças.
Mas é completamente arbitrária a afirmação de que o nível de segurança e
de bem-estar de que beneficiam as pessoas é garantido pelo poder estatal.
Nós conhecemos aquelas misérias e benefícios, se eles existem, que
afectam as pessoas que vivem numa organização estatal, mas não
conhecemos a situação em que ficariam as pessoas que abolissem o Estado.
Porém, se tivermos em conta a vida daquelas pequenas comunidades que,
por acaso, viviam e vivem fora dos grandes Estados, então essas
comunidades, beneficiando de todas as benesses da organização social, não
sofrem um centésimo das misérias que experimentam as pessoas que se
sujeitam à autoridade do Estado.
Acerca da impossibilidade de vida fora da organização estatal falam,
sobretudo, os membros das classes governantes, que beneficiam da
organização estatal. Mas perguntem àquelas pessoas que apenas carregam o
peso do poder estatal, aos agricultores, aos cem milhões de camponeses
russos, e eles dirão que apenas sentem o seu peso e não só não se sentem
servidos pelo poder do Estado, como não precisam totalmente dele.
Muitas vezes tentei, em muitos dos meus escritos, mostrar que aquilo
com que assustam as pessoas, nomeadamente de que sem a autoridade do
Estado irão governar as piores pessoas e que as melhores serão oprimidas,
que exactamente isso já há muito aconteceu e acontece em todos os
Estados, visto que em todo o lado o poder está nas mãos das piores pessoas,
que não pode ser de outra forma pois apenas as piores pessoas podem agir
com aquela astúcia, maldade e crueldade necessárias para participar no
poder. Muitas vezes, tentei mostrar que as principais desgraças das quais
padecem as pessoas, como a concentração de enormes riquezas nas mãos de
uns e a miséria da maioria, a posse da terra por aqueles que não a
trabalham, as incessantes invasões e guerras e a depravação das pessoas, só
acontecem devido ao reconhecimento da legitimidade da violência estatal.
Tentei mostrar que, para responder à pergunta sobre se a situação das
pessoas será melhor ou pior sem Governo, é preciso, primeiro, resolver a
questão sobre quem compõe o Governo. Será que o Governo é composto
por pessoas melhores ou piores do que a média? Se são pessoas melhores
do que a média, então o Governo será benéfico, se piores, então prejudicial.
O que a História mostra é que pessoas como Ivans IV, Henriques VIII,
Marates, Napoleões, Arakcheeves, Metterniches e Talleyrandes são piores
do que a média…
Das duas, uma: as pessoas são seres racionais ou irracionais? Se são seres
irracionais, então tudo só pode e deve ser resolvido entre elas pela via da
violência e não existe razão para que uns tenham direito a recorrer à
violência e outros não. Se as pessoas forem seres racionais, então as
relações entre elas não se devem basear na violência, mas sim na razão.
Pode parecer que essa conclusão seria convincente para as pessoas que se
intitulam seres racionais. Mas as pessoas que defendem a autoridade do
Estado não pensam no indivíduo, nas suas características, na sua natureza
racional; elas falam de uma certa união de pessoas, à qual atribuem um
significado sobrenatural e místico.
«O que acontecerá à Rússia, França, Grã-Bretanha e Alemanha – dizem
elas –, se as pessoas deixarem de obedecer aos Governos?»
O que acontecerá à Rússia? O que é a Rússia? Onde é que ela começa e
onde acaba? A Polónia? A região do Báltico? O Cáucaso com todos os seus
povos? Os tártaros de Kazan? A região de Fergana? O Amur? Tudo isso não
só não é Rússia, como são povos estrangeiros, desejosos de se libertarem
daquela união que se chama Rússia. O facto de esses povos serem
considerados parte da Rússia é um fenómeno ocasional, temporário, que se
deve a um conjunto de acontecimentos históricos passados, principalmente
a violência, a injustiça e a crueldade. Actualmente, porém, essa união é
mantida apenas pelo poder que se alarga a esses povos.
Na nossa memória, Nice é parte de Itália e, de repente, passou a fazer
parte de França; a Alsácia era parte de França e tornou-se Prússia; a região
de Primorsk era China e tornou-se Rússia; Sacalina era Rússia e tornou-se
Japão. Actualmente, o poder da Áustria alarga-se à Hungria, à Boémia, à
Galícia, e o poder inglês à Irlanda, ao Canadá, à Austrália, ao Egipto, etc.; o
governo russo à Polónia, à Geórgia, etc.; mas amanhã esse poder pode
acabar. O poder é a única força que une num só todas essas Rússias,
Áustrias, Grã-Bretanhas e Franças. Porém, o poder é uma criação de
pessoas que, contra a sua natureza racional e a lei da liberdade dada por
Cristo, obedecem a pessoas que lhes exigem actos maus de violência. Basta
que as pessoas reconheçam a sua liberdade, própria de seres racionais, e
deixem de cumprir acções contrárias à sua consciência e à lei, por exigência
do Governo, para que deixem de existir essas uniões artificiais que parecem
tão grandiosas, nomeadamente a Rússia, a Grã-Bretanha, a Alemanha, a
França, aquilo em nome do que as pessoas sacrificam não só a sua vida,
mas a liberdade que caracteriza os seres racionais.
Basta às pessoas deixarem de obedecer ao poder daqueles ídolos que não
existem em lado nenhum excepto na sua imaginação: Rússia una, França,
Grã-Bretanha, Estados Unidos e Áustria, e desaparecerão por si próprios
esses terríveis ídolos que agora destroem o bem-estar físico e espiritual das
pessoas.
Costuma dizer-se que a formação de grandes Estados a partir de
pequenos, que lutam constantemente entre si, substituindo com uma grande
fronteira externa as pequenas, diminuiu a luta e o derramamento de sangue.
Mas essa afirmação é completamente aleatória, pois ninguém avaliou a
quantidade de mal numa ou noutra situação. E é difícil pensar que todas as
guerras de períodos específicos na Rússia, na Burgúndia, na Flandres, na
Normandia, em França, custaram tantas vidas como as guerras de Napoleão,
de Alexandre (Alexandre I), e tantas como a guerra com o Japão que agora
acabou.
A única justificação para o aumento do Estado é a formação da
monarquia mundial, cuja existência eliminaria a possibilidade de guerra.
Mas todas as tentativas de formar tal monarquia, desde Alexandre Magno e
o Império Romano até Napoleão, nunca conseguiram alcançar o objectivo
da pacificação, mas, pelo contrário, foram causa de grandes desgraças para
os povos. Assim, a pacificação das pessoas não pode ser conseguida através
do aumento e reforço do Estado. Só pode ser conseguida pelo seu contrário,
pela destruição do Estado juntamente com o seu poder violento.

Tolstoi, L.N., Obras Completas. M.L. 1936 T. 36,


p. 236-239, 247-248.
Nome: Rozanov, Vassili

Data e local de nascimento e de morte: 2 de Maio de 1856, Kostroma,


Império Russo-5 de Fevereiro de 1919, Sergueiev Possad, URSS

Breve resenha biográfica: Filósofo religioso, editor, crítico literário,


tradutor e jornalista. Vassili Rozanov ficou órfão aos 14 anos, tendo sido
criado pelo irmão mais velho, Nikolai. Formou-se na Faculdade de História
e Filologia da Universidade de Moscovo. Entre 1882 e 1893, leccionou em
escolas secundárias, enquanto se dedicava ao estudo do pensamento
religioso e filosófico de autores russos como Dostoievski e Berdiaev. Ao
longo da sua vida manteve uma relação conflituosa com a Igreja Ortodoxa e
era um anti-semita assumido. Faleceu em 1919, mergulhado em miséria
extrema.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: O


pensamento de Vassili Rozanov é marcado pela dualidade e até por
contradições, sendo temáticas centrais de estudo o Cristianismo, o Judaísmo
e a Rússia. Estudou o paganismo enquanto foi extremamente próximo da
Igreja Ortodoxa, foi extremamente crítico da Rússia e dos Russos, bem
como elogioso a tudo o que era russo. O seu anti-semitismo convicto era
temperado com declarações de admiração face ao Judaísmo e à organização
familiar judaica.
Rozanov assumia a sua falta de curiosidade face ao estrangeiro, tendo
efetuado uma única viagem fora da Rússia a Itália. O pensador foi um
convicto crítico do Ocidente, do seu afastamento da religião e do
esgotamento da sua capacidade criadora. Assim, descreveu o percurso do
final do século XIX da Europa enquanto caminho para a vulgarização.
Paralelamente, Vassili Rozanov opõe o Cristianismo ocidental ao oriental,
descrevendo o primeiro enquanto apartado do mundo e contrário à paz. A
Ortodoxia é apresentada enquanto sendo cada vez mais luminosa e alegre.
Assim, as igrejas ocidentais são descritas como bíblicas e as orientais como
evangélicas. Ao opor o Catolicismo e a Ortododoxia, Rozanov critica a
construção familiar ocidental, considerando que lhe falta unidade e bases
morais, o que contribui decisivamente para a deterioração da vida cultural
da sociedade. Rozanov defende a proximidade à «terra» enquanto força
mundial inesgotável, fonte do género, da família, do nascimento de novas
vidas. O homem é assim um instrumento da força criadora do mundo e
parte integrante do mesmo, sendo também fonte da força vital e da saúde
espiritual.
No plano político, Rozanov foi um feroz crítico da Revolução de Outubro
de 1917, considerando que se tratava de uma tomada de poder da Rússia
por parte de Alemães e Judeus.
Em torno da «ideia russa» (1911)

Bismarck, quando estava na Embaixada de São Petersburgo, circulava na


nossa sociedade e estudava os carácteres russos, dizendo que são
«extraordinariamente femininos» e acrescentando que, «em combinação
com o elemento alemão masculino, eles poderiam dar um fantástico
material para a História». Essa mesma ideia, que não soava de forma
humilhante dita pelo Bismarck, era formulada pelo imperador Guilherme
assim: «Os Eslavos não são uma nação, são apenas matéria e solo no qual
cresce outra nação, com vocação histórica.» Tinha em mente a futura
Alemanha. Ambas as teses levantam questões sobre o «masculino» e
«feminino» na História.
«O marido é a cabeça da casa»… Sim… Mas a esposa costuma ser a
doméstica. Aquela «esposa» que, ao casar, perdeu o seu nome e, em França,
não pode dispor da sua propriedade nem do seu vencimento. Em França, tal
como na Rússia, como praticamente em toda a parte, a esposa «enche com a
sua atmosfera» toda a casa, confere-lhe beleza ou transforma-a em rude;
atrai toda a gente para a casa ou repele-a e, por fim, «governa» o próprio
marido. Como o pescoço, coloca, com os seus movimentos, a cabeça nesta
ou noutra posição, obriga a voltar para ali ou para aqui os seus olhos e, no
fundo das coisas, sussurra-lhe ideias e decisões…
Podemos dizer que o marido é a «cabeça», mas colado ao «pescoço» do
qual depende o «virar da cabeça».
Eis o que se pode responder a Guilherme e a Bismarck sobre as suas
considerações quanto ao «caráter feminino» dos Eslavos, nomeadamente
dos Russos, e sobre «o papel triste da obediência e até da escravatura» no
futuro, que eles próprios vaticinam, tendo por base a nossa «feminilidade».
Dostoevski, que muito meditou sobre o «futuro da Rússia», não falou
sobre essa fórmula por mim aqui abordada, fórmula clara e indiscutível pois
é física e, ao mesmo tempo, espiritual; mas ele inclinava-se exactamente
para aqui, apontando para a «sensibilidade mundial russa» e a sua
«capacidade de apaziguar em si as contradições da cultura europeia», que
«os Russos servem a sua vocação mundial quanto mais se apartam de si»…
O seu discurso inspirado em Pushkin e dito nesses tons é conhecido, mas é
menos conhecida a parte de «O Adolescente», nomeadamente o diálogo de
Versilov com o seu filho de uma jovem serva, onde essa ideia é expressa
com tal elegância poética, de forma tão carinhosa e profunda, e por fim,
mundialmente bela, como nunca mais o conseguiu fazer no futuro… Essas
palavras do triste viajante russo, do pobre viajante russo, que fugiu para o
estrangeiro aparentemente devido às suas dívidas, mas, no fundo, por causa
do tédio, por «não ter nada que fazer», retira uma orgulhosa conclusão:
«Deles (Europeus) eu era o único verdadeiro europeu… Pois apenas eu
tinha a consciência da nostalgia da Europa, compreendia o destino da
Europa», etc. – extraordinário. Foi nessa ideia que Dostoievski exprimiu «o
mais sagrado do sagrado» da sua alma, apontando para a missão especial da
Rússia na Europa, na cristandade e, por fim, em toda a História mundial;
nomeadamente «acabar» a sua casa, a sua construção, como a mulher
completa o apartamento do solteiro, quando entra enquanto «noiva e
esposa» do dono da casa.
A mulher é complacente e diz ao homem «toma-me»; sim, mas mal ele a
«toma», tudo se altera profundamente. «Casar é mudar» é um provérbio
com muitos séculos e sábio. Não é a esposa que perde o seu nome; apenas
nos documentos, para a polícia, os varredores de rua e o consistório. Na
realidade, o seu nome e, sobretudo, o rosto e a alma, são o marido que
perde. Raramente o seu pai e a sua mãe vivem com o marido; mas com a
«filha casada» vive muitas vezes a mãe. A esposa não só «entra na casa do
marido», ela entra com carinho e suavidade num primeiro momento, mas,
no segundo, torna-se «senhora». Mais exactamente, o marido entrega-lhe o
«domínio» de livre vontade e feliz.
Que isto ocorre da mesma forma na História podemos ver pelo facto de os
«femininos» russos não terem usufruído de um «período varegue», um
«período normando» (elemento masculino) da História, do quotidiano, da
existência, não houve, não se sentiu, não se nota. Aqueles que «a nação
feminina» chamou «para a dominar e reinar», esses normandos guerreiros
de ferro, depois de chegarem, acabaram eles próprios por entregar o poder a
alguém; sobre o seu «poder», orgulho e opressão não existe qualquer
história, eles simplesmente «instalaram-se» e começaram a «festejar e a
caçar» e a «guerrear com os nómadas». Casaram, fizeram filhos e tornaram-
se Rus: russos, hospitaleiros, ortodoxos, sem memória da sua língua, da
pátria, sem memória das suas tradições e leis. É preciso ler a História da
Conquista de Inglaterra pelos Normandos, de Augustin Thierry, para
vermos o horror que foi, quanto sangue se derramou e, sobretudo, a terrível
opressão de séculos que deformou toda a futura história inglesa. Connosco
não aconteceu nada de similar!
Se passarmos daqueles tempos remotos, que nos são tão desconhecidos,
para os séculos XVIII e XIX, quando começou novamente uma viva relação
dos Russos com o início «masculino» ocidental, veremos novamente a
repetição dessa história. Como se, superficialmente e no início, existisse a
«submissão dos Russos», mas depois inicia-se imediatamente uma absorção
interna desses dominadores, que são sugados e engolidos. A «qualidade
feminina» é evidente: cedência, suavidade. Mas ela reflete-se como força,
como posse, como domínio. Ora, não é o marido que «possui a esposa»;
isso apenas parece. Na realidade, é a esposa que «possui o marido» até o
absorver. E não é com poder, nem de forma directa, mas através dessa
misteriosa «falta de vontade própria» que encanta «o que possui vontade» e
é bruto, e assim conquista-o, com ternura e beleza. O que me é «querido»,
acreditem, tornar-se-á «lei» para mim. Foi nisso que não repararam
Bismarck e Guilherme. Até Bismarck reparou e lembrava-se de um «gentil
homem simples» que o consolou com o seu «não foi nada», quando aquele
se perdeu num bosque cerrado coberto de neve durante uma caçada; mas
será pouco provável que o homenzinho se recorde do senhor alemão que
então «resgatou» – e «graças a Deus» –, tendo por isso recebido «um
tostão» para o chá. Na vida desse homenzinho não existiu «o período de
Bismarck», mas na incrivelmente difícil biografia de Bismarck entranhou-
se o olhar russo, a maneira russa de dizer «não é nada!» quando se está
numa situação desesperada. Münnich não era um homem de ferro? E que
«influência sua» trouxe ele para a Rus? Era severo, até cruel, um
comandante; era malfalado, amaldiçoado, mas não mais do que isso. Mas já
o seu filho escrevia em russo «Acrescentos às notas do Sr. Manstein» –
escrevia como um patriota russo, como um recruta russo, como um bom
trabalhador no ilimitado campo russo. E agora existem os nobres russos
«Münnich», tal como existem os «Ivanov».
Os Russos têm a característica de se entregar completamente à influência
estranha... Tal como a noiva e a esposa ao marido… Mas quanto mais essa
«entrega» é total, limpa, desinteressada, até ao «homicídio de si mesmo»,
tanto mais forte, de forma misteriosa, ela age sobre aquele para quem foi a
«entrega». No casamento, não é a mulher descuidada que possui o marido,
mas a mais submissa, subordinada, a que se entrega «toda»… O marido fica
disposto a «morrer» pela «mulher leal» – esta é a lei da generosidade e da
coragem. Aqui acontece a sagrada ajuda mútua e essa força não foi tida em
conta pelos historiadores que consideram que o processo da História passa
pela competição de forças e interesses, competição de poderes, e apenas
isso. Olhando para trás, assinalamos: será que demos a algum pensador
russo, como por exemplo Radishev, Chaadaev ou Herzen, tanta força e
entusiasmo, tanta leitura e noites sem sono como demos a Buckle e
Spencer? E a Nietzsche dos últimos anos? O seu Zaratrustra era citado
como o poema favorito, como o conto querido e que afasta o sono; e
Pushkin nunca conheceu tal entusiasmo para com ele, como foi «a época de
Nietzsche», nos seus dias de ouro. O mesmo aconteceu um pouco antes
com Schopenhauer. Este facto é de tal forma geral e constante que nem é
possível imaginar «a imagem da sociedade russa» como ela era sob a
influência do «entusiasmo russo». Se a Rússia, de repente, começasse a ler
Pushkin, começasse a citá-lo nas esquinas, em cada edição dos jornais, em
cada revista… Não é possível descrever e imaginar! «Os Russos deixariam
de se parecer consigo mesmo», de tal forma o entusiasmo com algo
necessariamente europeu é único e «parecido consigo» nos Russos, na
Rússia… A mulher eternamente em busca do «noivo, líder e marido»…
Agora ainda não se vê qual é o resultado; disso têm saudades, por
enquanto, os eslavófilos, «quase não russos». Mas é inevitável que algo
enorme deverá surgir a partir daqui. Penso que é exactamente daqui que irá
nascer, daqui a um século, daqui a um século e meio, uma enorme
«sussurrante» influência russa sobre a cultura europeia enquanto um todo.
Sob a influência deste assustador e ininterrupto amor face a si, cheio de
abnegação, de fogo, cansada «do tédio burguês», a Europa não pode deixar
de se desviar do seu egoísmo e da aridez, da sua excessiva actividade e
pragmatismo. Aqui é impossível prever, é apenas possível apontar os
Münnich, os Dal, os Vostokov, os Grotov, o judeu-coleccionador de
cantares tradicionais russos Chein e acrescentar que os «católicos russos»,
tais como os Volkonski, os Martinov e Gagarin eram em menor número,
mas sobretudo tinham menor importância… O mais importante que daqui
retiramos: os Russos, de forma tão apaixonada se entregavam ao estranho,
que na própria «entrega» conservavam o «eu feminino», exigindo,
obrigatoriamente, ao que se entregam, doçura, amor, simplicidade, clareza;
seguramente, os Russos nunca se curvaram perante, nem se entregaram «a
algo bruto», como tal nem os Volkonski, nem os Gagarin, nem os Martinov.
Pelo contrário, quando os Europeus «se entregam ao russo», entregam-se
com o próprio coração deles, a esse «carinhoso princípio feminino», isto é,
renunciam à própria essência do princípio europeu, desse princípio de
orgulho, de conquista e de domínio. Esta diferença deve ser muito tida em
conta – os Russos, na entrega, conservam a sua alma, assimilando apenas o
corpo, as formas do outro. No Catolicismo, eles «não levantam a espada»;
ao se tornarem luteranos, não acrescentam secura e rigidez ao
protestantismo. Pelo contrário, em todo lado introduzem a suavidade, o
carinho. Já os Ocidentais são atraídos precisamente pela «feminilidade» que
existe em nós… Procuram-na em Turgueniev, em Tolstoi… Desta forma,
atrai-nos neles o que é «nosso», não encontrando no «triste quotidiano da
pátria» algo que corresponda ao ideal da alma (sempre suave, sempre
carinhosa); já para eles, a «atracção pelo russo» é sempre a alteração do
«ideal interior»… Existem «franceses arrussados», não porque junto de nós
tivessem encontrado solo para la gloire … Mas os «russos afrancesados»
nunca disseram a si mesmos: «Com um novo Napoleão, eu ou a minha
descendência poderemos chegar ao fim do mundo.» Nunca! Não existe tal
sonho!
Os Russos assimilam o corpo, mas não o espírito. Os estranhos, ao
unirem-se a nós, assimilam exactamente o espírito. Apesar de, nas palavras,
nos entusiasmarmos com o «ideário» da Europa…, isso é só aparência.
Mostrem um «russo europeizado», que se europeizou com a paixão pelo
«poder», «conquista», «pilhagem», pelo «arrancar» e o «ter», como roubar
e sacar, para que nos germanizássemos ou afrancesássemos por motivos de
movimento, conquista, criação…
Nós calçámos a bota europeia com a ideia de que ela iria apertar menos o
pé do que o «sapato caseiro». Mas os Europeus, quando tiravam a sua bota,
sabiam que iriam calçar o «sapato russo», que não aperta em lado algum,
até porque, pela sua natureza, não é calçado. Eles renunciavam; nós
queríamos ainda mais. Vera Figner tornou-se socialista quando viu como
em Kazan foi ofendido, pela administração, o seu professor preferido. Cá
está o tema russo. Eu não conheci um alemão que, ao adoptar a Ortodoxia,
pensasse: «Agora, as minhas aulas de Filosofia irão correr melhor», ou «a
minha fábrica ficará mais estável», ou «irei inventar algo mais grandioso do
que Fausto». Os temas alemães desapareceram; mas os motivos russos dos
Russos (pena, compaixão) reforçaram-se (isto é, quando se europeizam).
Pechorin, um estranho idealista dos anos 40, converteu-se ao Catolicismo.
Ele começou a «maquinar» contra os luteranos? Não, ele entrou na ordem
dos jesuítas. Não, ele fez-se «irmão da caridade» num dos hospitais
irlandeses. O «tema russo» reforçou-se.
Todo o socialismo russo, na sua base pura e ideal, na sua raiz, é feminino;
é apenas o alargamento da sua «piedade», «compaixão com os infelizes,
pobres, desfavorecidos», com «os incapazes de vencerem o mal da vida»…
O socialismo é uma ideia (marxismo) europeia e muito cruel, financeira e
prudente.
E no darwinismo o que mais atraiu os Russos foi o facto de ter «destruído
o orgulho às pessoas», obrigando-as a terem a mesma origem dos animais.
É apenas a «humildade russa». Em toda a parte, o russo, no
«ocidentalismo», conserva a sua alma; mais exactamente, o russo irrompe
das «circunstâncias russas», que para ele continuam a ser brutais e cruéis
(apesar de serem mais «femininas» comparativamente às ocidentais), e
procura no Ocidente incompreensível ou nunca antes visto, no Ocidente
hipotético, as condições ou as possibilidades para tão elevado diapasão dos
sentimentos russos, ameaçados na pátria pelo «cárcere»…
O «feminino» alivia o masculino, suga-o. O «feminino» e o «masculino»
são como «água» e «terra» ou como «água» e «pedra». Diz-se que «a água
amola a pedra», mas não se diz que «a pedra amola a água». Ela apenas a
impede no seu correr até ao destino, «atrasa-a», «trava». Em todos os casos,
o «masculino» é a força, e ela é mais fraca do que a ternura. A ternura irá
sempre vencer a força. As «invasões teutónicas» cairiam na Rus como um
pedaço de terra na água. Turvar-se-ia com ela. O «elemento russo» ficaria
por último em cima de tudo. Guilherme e Bismarck, como é óbvio, tinham
a visão de «comandantes militares» e de «chefes» em geral, mas existe,
igualmente, o ponto de vista de «súbdito». E ele é o mais importante.
Bismarck e Guilherme não deram completamente conta dele. Se tivessem
reparado nele, teriam compreendido até que ponto o «sonho de Guilherme»
é irrealizável, impossível e até ridículo. Vieram para a Rus também os
luteranos Dal, Gilferding, Sabler; infelizmente, não sei o apelido germânico
dos Vostokov. E o espantoso é que todos eles não só perderam o «seu
alemão», como, se viessem para a Rússia com essa perda, perderiam o seu
brilho. Mas não foi isso que aconteceu, aconteceu algo diferente: eles
desabrocharam, ganharam cor, mantiveram a eficiência e a regularidade das
formas, o «corpo» alemão, mas imbuindo-o do «espírito feminino» do
Oriente… Por fim, deixaram a sua religião, adoptando a nossa oriental, sem
serem forçados, obrigados, até sem «iscos». Decididamente, é impossível
imaginar que um russo, ao chegar à Alemanha, se transformasse num
«grande sargento». Ou seja, os Russos não adoptam a alma alemã, apenas a
forma. Deste modo, às palavras de Franz-Joseph de que «preferia estar de
sentinela na guarita alemã do que ser um rei eslavo», podemos responder da
seguinte forma: «Sua Alteza, quantos casos conhecemos de alemães que
preferem servir de secretário colegial na nossa terra do que na vossa de
coronel?» Como se fez isso tudo? Como aconteceu? Porque se tornou
Sabler num entusiasta da burocracia do consistório? Porque é que Dal,
funcionário num departamento em São Petersburgo e Luterano, começou a
colecionar provérbios e ditados e, por fim, «toda a fala viva russa»? Porque
andou Shein, durante toda a sua vida, por aldeias e vilas, à procura de
cânticos, de temas de canções do quotidiano, nupciais e fúnebres? Ele era
talmudista-judeu? Porque é que, em Moscovo, Gershenzon se dedica, com
grande afeição, ao restauro da velha Rus literária? «Alma feminina» e um
pouco de «calçado» (também não deve ser modelo masculino) infiltraram-
se em todo lado, sem destruir outras «formas» masculinas, o «corpo»
masculino, reforçando-o e fazendo-o florescer dessa forma. Decididamente,
eles trabalham, quanto às formas e métodos, melhor do que os Russos. Por
isso é que Sabler chegou a procurador-geral, algo que não é despiciendo.
Mas trabalham no espírito russo, para objectivos russos. Fazem, minuciosa
e completamente, o trabalho russo.

Rozanov, V.V., Crepúsculo da Revelação. M., 1990, pp. 355-360.


CAPÍTULO VII

PENSAMENTO MARXISTA

A difusão das ideias marxistas na Rússia deixou uma marca profunda nas
discussões em torno do problema da relação daquele país com a Europa e a
Ásia. E não porque trouxesse alguma coisa de totalmente novo, pois elas
enquadram-se perfeitamente no ponto de vista ocidentalista. Todavia, se
antes nenhum dos participantes da discussão podia fugir à definição da sua
posição do poder imperial russo, a partir de Novembro de 1917, quando os
bolcheviques tomaram o poder através de um levantamento armado,
ninguém conseguia passar ao lado da interpretação marxista do problema,
devido à sua natureza agora integrante da ideologia dominante no país. O
sistema de ideias de Marx, assimilado pelos seus seguidores russos (muitas
vezes de forma linear e vulgar), possuía algumas qualidades que
contribuíam para o aumento rápido da sua popularidade em determinadas
camadas sociais, principalmente entre a intelectualidade. A aparente clareza
e perfeição lógica da concepção, que explica o desenvolvimento da
sociedade humana através da acção de certas leis eternas, cujo
conhecimento permite, numa base supostamente científica, prever a
direcção, as etapas e os objectivos finais desse desenvolvimento, a absoluta
confiança dos seus seguidores em que a doutrina criada por Karl Marx e
Friedrich Engels contém a receita pronta das transformações sociais, válida
em qualquer parte do planeta, chamaram a atenção dos representantes de
diferentes correntes e convicções ideológicas.
Os marxistas russos não tinham a mínima dúvida de que existe apenas
uma civilização comum a todos e que todos os povos do mundo devem
atravessar níveis de desenvolvimento definidos. Todos os que não
pensavam assim eram «reaccionários».
Se os marxistas se distinguiam dos populistas por, ao contrário deles,
terem a convicção da inevitabilidade de a Rússia ter de passar pela fase
capitalista no seu desenvolvimento, os primeiros diferenciavam-se dos
liberais pela atitude face ao próprio capitalismo. Estes últimos viam nele a
fase suprema do progresso da humanidade, enquanto os marxistas o
consideram apenas uma fase intermediária, após a qual seria inevitável a
transição para o socialismo e o comunismo.
Nas duas primeiras décadas do século XX, realizou-se uma viragem na
discussão do problema. Se no século anterior as atenções se concentravam
nas revoluções europeias, agora analisava-se o factor da revolução russa, os
seus resultados, a afirmação no antigo Império Russo de um sistema social
e político sem análogos na História. Era necessário olhar de forma diferente
para as relações entre a Rússia, por um lado, e a Europa e Ásia, por outro.
Menos mudanças se notaram nas posições dos liberais e dos marxistas-
bolcheviques. Para os primeiros, os bolcheviques estragaram tudo ao
romper o processo natural de avanço para o capitalismo de tipo ocidental,
enquanto que, para os segundos, o esquema tradicional começava a
determinar a política prática. Discutia-se, por exemplo, os problemas da
correlação da revolução russa e da revolução mundial, as questões da
unidade de acção com o proletariado europeu na luta contra a política dos
círculos dirigentes do Ocidente, a avaliação do significado da Revolução de
Outubro como novo ponto de partida na História da humanidade, etc.
É importante assinalar o «tema oriental» na teoria bolchevique. Depois de
ter falhado o ateamento de revoluções na Europa, o renascimento da Ásia, a
organização de ajuda prática aos movimentos revolucionários e de
libertação nacional nesse continente são alvo das atenções de Vladimir
Lenine, José Estaline, Lev Trotski e outros dirigentes soviéticos.
Na ideologia bolchevique, o eurocentrismo prevalecia na relação da
URSS com a Europa e a Ásia, embora mantivesse uma política cada vez
mais activa na região asiática e noutras regiões do mundo. O
desenvolvimento dessa relação pode ser dividido em dois períodos. O
primeiro, entre 1917 e os anos 30, pode ser considerado revolucionário-
ocidentalista quando, sob a bandeira do internacionalismo, tinha lugar uma
luta cruel contra todos os que, real ou alegadamente, defendiam as tradições
históricas (se elas não tivessem contornos revolucionários) e idealizavam o
«maldito passado». Quaisquer desvios nesse sentido eram considerados
como uma manifestação de «nacionalismo burguês» e de «chauvinismo de
grande potência». O segundo começou a destacar-se na segunda metade dos
anos 40 e pode ser caracterizado como «revolucionário de grande
potência», quando o passado da Rússia foi parcialmente reabilitado
enquanto história de uma potência que teve a União Soviética como
herdeira. Os anseios da sua direcção na política externa precisavam de ser
historicamente fundamentados, no quadro daquilo que na política da URSS
era apresentado como a realização de tarefas que nunca se tinham colocado
perante a Rússia czarista. Semelhante interpretação visava também
combater as teorias então correntes no Ocidente que explicavam a
agressividade da política externa soviética, pelo facto de ela ter raízes nos
anseios expansionistas da autocracia czarista. O lugar do Estado e da
sociedade soviética no mundo reflectiu-se na seguinte fórmula: a URSS é a
vanguarda da humanidade progressista, a continuadora de tudo o que a
humanidade fez de melhor, o bastião das forças revolucionárias na luta
contra o imperialismo ocidental, que se encontra em fase de desintegração.
Nome: Plekhanov, Gueorgui

Data e local de nascimento e de morte: 11 de Dezembro de 1856,


Tambov, Império Russo-30 de Maio de 1918, Jalkala, Finlândia

Breve resenha biográfica: Filósofo e editor, considerado por Lenine o


mais relevante estudioso do marxismo. Filho de militar, toda a formação de
Plekhanov foi feita em instituições de ensino castrenses, não tendo
completado o ensino superior devido à falta de pagamento de propinas. Em
1876, aderiu à organização revolucionária Terra e Vontade, de ideologia
narodnik, linha de pensamento que defendia a aproximação das elites do
povo. Em 1879, com o fim da Terra e Vontade, fundou a organização
secreta Repartição Negra, continuando a seguir a linha ideológica narodnik.
Em 1880, emigrou para a Suíça e, em 1883, fundou a primeira organização
marxista russa, Libertação do Trabalho. Plekhanov fundou também as
primeiras organizações socialistas de expatriados russos e dirigiu diversas
publicações que propagavam a ideologia marxista. Após 37 anos no
estrangeiro, a Revolução de 1917 permite a Plekhanov o regresso à pátria.
Afastado de cargos dirigentes, Plekhanov foi crítico da Revolução de
Outubro, considerando que a Rússia ainda não estava preparada para o
socialismo. Faleceu na Finlândia, onde se encontrava em tratamento da
tuberculose de que padecia.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Tendo
por base o materialismo dialéctico de Karl Marx, Plekhanov considerava
que, no seu processo de desenvolvimento, a Rússia sempre percorreu o
mesmo caminho de outros países europeus, passando, a título de exemplo,
do feudalismo para o capitalismo. Neste quadro, opunha-se às teorias que
defendiam uma identidade russa distinta da ocidental, considerando-as
reaccionárias. Na sua obra, Plekhanov rejeitou a ideia de que
tradicionalmente a sociedade russa não teria classes, defendendo que a
história do país é resultado da luta de classes. Paralelamente, considerava
que a revolução russa se integrava na acção do movimento proletário
internacional e na construção de uma Europa democrática.
Não obstante ser o primeiro pensador marxista na Rússia, Plekhanov foi
um convicto crítico da Revolução de Outubro, considerando que o
capitalismo no país não tinha ainda atingido a maturidade necessária para
acolher uma revolução socialista. No caso concreto da Rússia, Plekhanov
defendia ainda que o proletariado não deveria enveredar pelo caminho da
guerra civil, mas, no meio do processo revolucionário, deveria tentar chegar
a um acordo com a burguesia, detentora dos meios de produção.
O socialismo e a luta política (1883)

A ideia da originalidade russa foi novamente elaborada; se antes dava


motivo a que se negasse por completo a política, agora sustenta-se que a
originalidade da vida social russa consiste precisamente em que os
problemas económicos se resolviam e devem resolver-se entre nós por meio
da intervenção estatal. O escasso conhecimento que existe na Rússia a
respeito da história económica do Ocidente contribuiu para que as «teorias»
deste género não provocassem o menor assombro. O período de
acumulação capitalista na Rússia contrapunha-se ao período da produção
capitalista no Ocidente, e a inevitável disparidade destas duas fases do
desenvolvimento da vida económica apresentava-se como prova
convincente, em primeiro lugar, da nossa originalidade e, em segundo lugar,
da conveniência do «programa de Naródnaia Volia», determinada por essa
originalidade.
Talvez seja preciso acrescentar que os nossos escritores revolucionários,
tal como a maioria dos escritores russos em geral, consideravam o
«Ocidente» do mesmo ponto de vista do menino judeu que figura no
conhecido relato de Weinberg. O pobre menino acreditava que o mundo
inteiro estava dividido em duas partes iguais: «a Rússia e o estrangeiro». Os
traços distintivos dignos de atenção eram para ele unicamente os que
existiam entre essas «metades» do globo terrestre; o «estrangeiro» parecia-
lhe um todo absolutamente uniforme. Os escritores «originais» russos só
introduziam uma inovação nesta engenhosa classificação geográfica:
subdividiam o «estrangeiro» em Oriente e Ocidente e, sem muitas
reflexões, iniciavam a comparação deste último com a nossa «grande
potência», que desempenhava o papel de uma espécie de «Império Médio».
O desenvolvimento histórico da Itália identificava-se assim com o
desenvolvimento histórico da França. Na economia política da Inglaterra
não se via diferença nenhuma da economia política da Prússia. Não se
estabelecia nenhuma distinção entra a obra de Colbert e a de Richard
Cobden; a fisionomia peculiarmente patriótica de Friedrich List perdia-se
no tropel de economistas e políticos da «Europa Ocidental», que
procuravam, segundo o conselho de Turgot, «esquecer que, no mundo,
existem Estados separados por fronteiras e organizados de diferentes
maneiras».
Da mesma forma que à noite todos os gatos são pardos, as relações
sociais dos diversos Estados do «Ocidente» perdiam qualquer diferenciação
à luz da nossa originalidade. Só é evidente que os «francos» se
«aburguesaram» há muito, enquanto os «valentes russos» conservaram a
pureza dos «primeiros homens» e, como povo eleito, marcham por um
caminho próprio até à sua salvação. Para chegar à terra prometida devem
apenas seguir firmemente por este caminho de originalidade e não se
espantarem que os programas dos socialistas russos estejam em contradição
com os princípios científicos do socialismo da Europa Ocidental e, às vezes,
com as suas próprias premissas… Mas apesar de serem claras e
inequívocas, as concepções de Marx e Engels, no entanto, deram margem a
muitas confusões no campo da teoria e da prática revolucionárias. Assim,
por exemplo, sustenta-se com frequência entre nós que as teorias do
socialismo científico são inaplicáveis na Rússia porque surgiram no terreno
das relações económicas da Europa Ocidental.
Atribui-se à doutrina de Marx a ridícula conclusão de que a Rússia deve
passar exactamente pelas mesmas fases do desenvolvimento histórico-
económico percorridas no Ocidente. Por estarem convencidos do carácter
inevitável desta conclusão – mais de um filósofo russo, não familiarizado
com Marx, nem tampouco com a história da Europa Ocidental –, lançaram-
se contra o autor de O Capital, acusando-o de sustentar concepções
esquemáticas e vulgares. Mas isto, decerto, foi o mesmo que lutar contra
moinhos de vento. Os nossos Quixotes não compreenderam que a história
das relações existentes na Europa Ocidental foi exposta por Marx somente
como base da história da produção capitalista, que nasceu e que se
desenvolveu precisamente nessa parte do mundo. As ideias filosófico-
históricas de Marx guardam exactamente a mesma relação a respeito da
Europa Ocidental moderna, como a respeito da Grécia e Roma, Índia e
Egipto. Abarcam toda a história cultural da humanidade e só resultariam
inaplicáveis na Rússia se fossem infundadas no geral.
Entende-se que o autor de O Capital, e o seu célebre amigo e colaborador
[Engels] não excluem das suas perspectivas as particularidades económicas
dos diversos países; só buscam nelas a explicação de todos os seus
movimentos político-sociais e ideológicos. O facto de que não ignoram o
significado da nossa comuna agrária é evidente se se considerar que, já em
Janeiro de 1882, pensavam na possibilidade de formular uma definida
predicação a respeito do seu destino futuro. No prefácio da nossa tradução
do Manifesto Comunista (Genebra, 1882), inclusive afirmam directamente
que a comuna russa, em certas condições, pode «transformar-se de maneira
imediata numa forma superior e comunista de propriedade agrária». Estas
circunstâncias, segundo a sua opinião, mantêm uma estreita relação com o
curso do movimento revolucionário da Europa e da Rússia.
«Se a revolução russa – afirmam – sinaliza a revolução operária no
Ocidente, de modo a que ambas se complementem entre si, a actual
propriedade agrária russa pode ser o ponto de partida do desenvolvimento
comunista» (Manifesto Comunista, VIII). É difícil que haja um só populista
que pense em negar tais condições para resolver o problema da comuna.
Dificilmente alguém poderá afirmar que o jugo do Estado moderno é
favorável ao desenvolvimento ou, ainda, que seja apenas para a
conservação da comuna agrária. É igualmente duvidoso que alguém que
compreenda o significado das relações internacionais na vida económica
das sociedades civilizadas contemporâneas, possa negar que o
desenvolvimento da comuna russa «até uma forma superior, comunista»,
guarda estreita relação com o movimento revolucionário do Ocidente.
Resulta, por conseguinte, que, segundo a concepção de Marx sobre a
Rússia, não há nada que esteja em contradição com a realidade mais
evidente, e o absurdo preconceito acerca do seu «ocidentalismo» extremado
perde todo o fundamento racional.
Plekhanov, G.V Biblioteca do Socialismo Moderno, Genebra,
Outubro de 1883, p. 1-3.

Um novo campeão da autocracia (1889)

De tudo aquilo que dissemos, o leitor concluirá, possivelmente, que não


reconhecemos quaisquer méritos da parte do nosso despotismo. Mas isso
não é bem verdade. O despotismo russo tem, certamente, méritos históricos
inegáveis, sendo o principal o de ter trazido para a Rússia a semente da sua
própria queda. É bem verdade que foi forçado a fazê-lo em razão da sua
proximidade à Europa Oriental, mas de todo o modo fê-lo e,
consequentemente, merece o nosso sincero reconhecimento.
A velha Rússia moscovita era conhecida pelo seu carácter perfeitamente
asiático. Isto teve o seu reflexo na vida económica do país, em todos os seus
campos, e em todo o sistema administrativo do Estado. Moscóvia era uma
espécie de China na Europa, em vez de na Ásia. Daí a distinção essencial de
que, enquanto a verdadeira China fez tudo o que podia para se isolar da
Europa, a nossa China moscovita tentou por todos os meios ao seu alcance,
desde o tempo de Ivan, o Terrível, abrir, pelo menos, uma pequena janela
sobre a Europa. Pedro conseguiu realizar esta grande tarefa. Ele efetuou
uma enorme mudança que impediu a Rússia de calcificar. Mas o czar Pedro
não podia fazer mais do que aquilo que lhe era permitido no âmbito das
funções de um czar. Ele introduziu um exército permanente com
equipamento europeu e europeizou o sistema de administração do Estado.
Em suma, o «czar carpinteiro» acrescentou braços europeus ao tronco
asiático da Rússia moscovita. «Numa base social que remontava quase ao
século XI, surgiu a diplomacia, um exército permanente, uma hierarquia
burocrática, indústria para satisfazer gostos luxuosos, escolas, academias»,
e coisas afins, como Rambaud descreve maravilhosamente este período da
nossa história. O poder das novas armas era de grande utilidade para a
Rússia nas suas relações internacionais, mas era desvantajosa em muitos
aspectos do quotidiano interno.
Tendo trazido a Rússia, como disse Pushkin, para o «palco», o grande
czar, colou o povo ao chão, tal foi o peso da tributação, e exerceu o
despotismo com um grau de força desconhecida até então. Toda a
instituição estatal que tivesse, ainda que levemente, refreado o poder do
czar, foi abolida; cada costume e tradição que tivessem ofendido
minimamente a sua dignidade foram esquecidos e, logo após a morte de
Pedro, as brincadeiras do leibkampantsi17 fizeram que a história do czar
russo tivesse sido por muito tempo considerada, como referiu um escritor
italiano, uma tragédia nel un lupanar18.
A «reforma» de Pedro agradou aos nossos czares e czaristas sobretudo
porque tal fortaleceu imensamente o poder da autocracia. Relativamente ao
«trabalho cultural» que Pedro iniciou, eles procuraram esquivar-se tanto
quanto foi possível e foram precisos acontecimentos perturbadores para que
os monarcas russos se lembrassem da «cultura» russa. Assim, o infeliz
resultado da Guerra da Crimeia forçou Alexandre II, como anteriormente
mencionámos, a lembrá-la. O pogrom da Crimeia revelou a terrível
distância existente entre nós e a Europa Ocidental.
Enquanto descansámos sobre os louros que tínhamos colhido durante as
guerras napoleónicas e colocámos todas as nossas esperanças na paciência
asiática dos nossos soldados e no valor das baionetas russas, os povos mais
avançados da Europa conseguiram munir-se de todos os mais recentes
avanços tecnológicos. A bem ou a mal, também tivemos que arrepiar
caminho. O Estado demandava novos fundos, novas fontes de receita. Mas
para os encontrar, a servidão, que então limitava bastante a nossa indústria,
teve de ser abolida. Alexandre II fez isso e, após 19 de Fevereiro de 1861,
podia dizer-se que o nosso despotismo tinha feito o seu melhor.
Desde o início da década de 1860, novas exigências sociais começaram a
amadurecer na Rússia e a autocracia não poderia satisfazê-las sem deixar de
ser uma autocracia. O facto era que os braços europeus, a pouco e pouco,
exerciam uma enorme influência sobre o tronco do nosso organismo social.
Este começou gradualmente a mudar de asiático para europeu. De modo a
manter as instituições que Pedro tinha introduzido na Rússia, a necessidade
era, primeiro, dinheiro, segundo, dinheiro, terceiro, dinheiro. Pelo simples
facto de espremer este dinheiro das pessoas, o Governo estava a contribuir
para o desenvolvimento da produção de mercadorias no nosso país.
Por isso, de modo a manter aquelas instituições, tinha que haver pelo
menos algum género de indústria fabril. Pedro tinha lançado as bases dessa
indústria na Rússia. Inicialmente, e em perfeita consonância com o seu
carácter originário, esta indústria estava perfeitamente subordinada e
conexa ao Estado. Foi feudalmente vinculada, como qualquer outra força
social na Rússia, para servir o Estado. Manteve-se pelo trabalho servo de
camponeses recrutados para trabalhar na indústria fabril. Todavia, fez o que
se propôs fazer, muito auxiliado pelas mesmas relações internacionais.
O êxito do desenvolvimento económico da Rússia de Pedro a Alexandre
II é melhor entendido se considerarmos que, enquanto as reformas de Pedro
requeriam que a dependência serva do campesinato se intensificasse, as de
Alexandre II seriam impraticáveis sem a abolição da mesma. Durante os 28
anos que passaram desde o dia 19 de Fevereiro de 1861, a indústria russa
avançou a passos tão largos que as suas relações com o Estado se alteraram
de forma substancial. Outrora perfeitamente subordinada ao Estado, luta
agora para subordinar o Estado a si mesma, para colocá-lo à sua disposição.
Numa das petições que praticamente todos os anos apresentavam ao
Governo, os mercadores de Nijny Novgorod, de forma algo ingénua,
apelidavam o Ministério das Finanças de o órgão da propriedade do
comércio e da indústria. Empresários que anteriormente não podiam dar um
passo sem orientações do Governo exigem agora que o Governo siga as
suas instruções.
Esses mesmos comerciantes de Nijny Novgorod expressam o modesto
desejo de que medidas capazes de influenciar o estado da nossa indústria
não devem ser adoptadas sem a aprovação dos representantes da sua
«propriedade». Assim, em matéria de desenvolvimento económico da
Rússia, o absolutismo já dera o que tinha a dar. Longe de ser necessária à
nossa indústria, a tutela estatal até lhe foi prejudicial. Não faltará muito
tempo até que a nossa «propriedade comercial e industrial», convencida
pela experiência de que a futilidade de vontades suaves é inútil, será forçada
a recordar o czarismo num tom mais severo e mais grave do que tempora
mutantur et nos mutamur in illis19.

Plekhanov, G.V., Obras Filosóficas Escolhidas, T.1. M., 1956,


p. 67-68, 71-73, 132-133, 258-259, 288-289,298-299, 409-411.
17 Contração russa de duas palavras de origem alemã (leib=corpo) e
francesa (compagnie=companhia militar), sendo uma formação militar de
elite das forças armadas imperiais russas, criada por Pedro, o Grande, que
tinha por função a defesa da família imperial. (N. T.)
18 Num prostíbulo.(N. T.)
19 Mudam-se os tempos e com eles também nós mudamos.(N. T.)
Nome: Lenine, Vladimir

Data e local de nascimento e de morte: 22 de Abril de 1870, Simbirsk,


Império Russo-21 de Janeiro de 1924, Gorki, URSS

Breve resenha biográfica: Revolucionário e activista político, Vladimir


Ilitch Ulianov, fez o seu percurso escolar em Simbirsk, tendo seguido
estudos superiores na área de Direito, na Universidade de Kazan. Em 1887,
o irmão mais velho de Lenine, Aleksandr, é fuzilado pela participação num
golpe contra o imperador Alexandre III, acontecimento que marcará a
juventude do revolucionário. A actividade política mais intensa de Lenine
terá começado em 1888, quando aderiu a um grupo marxista em Kazan. Os
anos 90 do século XIX foram dedicados ao estudo da economia e à aplicação
do marxismo à Rússia. Em 1895, Vladimir Lenine saiu da pátria e viajou
pela Europa, encontrando-se com diversos pensadores e membros do
movimento proletário internacional. Após o exílio de três anos a que foi
condenado no mesmo ano, voltou a abandonar a Rússia, tendo passado os
anos seguintes no estrangeiro. Estava na Suíça quando se deu a Revolução
de 1905, regressando à pátria em Abril de 1917, para chefiar o golpe de
estado de Outubro de 1917.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Não


obstante Lenine não só não se considerar um geopolítico, como até mesmo
encarar este ramo da ciência com alguma suspeita, muitas das suas obras
debruçam-se sobre esta temática.
No que concerne à análise efetuada por Vladimir Lenine quanto à
situação geopolítica da Rússia, ele apresenta o país enquanto elo fraco do
imperialismo. De acordo com o revolucionário, não obstante a saída da
Rússia da Primeira Guerra Mundial ter causado aparentemente grandes
perdas, era pouco provável que os seus parceiros de aliança a tivessem
tratado com justiça, caso se tivesse mantido. Neste quadro, a vitória do
bolchevismo foi o garante da unidade do território russo. Assim, o falhanço
de uma eventual intervenção estrangeira na Rússia, o crescente número de
movimentos revolucionários no Ocidente e a subsequente necessidade de
reconstrução obrigaram os países europeus a procurar compromissos com o
recém-instalado poder soviético.
Lenine, que definiu o imperialismo enquanto estado supremo do
capitalismo, foi extremamente crítico dos impérios coloniais do século XIX.
Neste contexto, as revoluções socialistas teriam origem nacional e,
posteriormente, desenvolver-se-iam para fenómenos internacionais e, por
fim, mundiais. O fim da revolução socialista seria, assim, apenas alcançado
com uma vitória planetária. Perante este cenário, o objectivo da revolução
na Rússia seria dar início a uma revolução mundial.
Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação (1914)

Na Europa Ocidental continental, a época das revoluções democrático-


burguesas abarca um período de tempo bastante determinado,
aproximadamente de 1789 a 1871. Foi exactamente esta a época dos
movimentos nacionais e da formação dos Estados nacionais. No fim desta
época, a Europa Ocidental tinha-se transformado num sistema de Estados
burgueses e, regra geral, Estados nacionalmente homogéneos. Por isso,
procurar agora o direito à autodeterminação nos programas dos socialistas
europeus ocidentais significa não compreender o á-bê-cê do marxismo.
Na Europa Oriental e na Ásia, a época das revoluções democrático-
burguesas não fez mais do que começar em 1905. As revoluções na Rússia,
na Pérsia, na Turquia, na China, as guerras nos Balcãs – eis a cadeia de
acontecimentos mundiais da nossa época no nosso «Oriente». E nesta
cadeia de acontecimentos só um cego pode deixar de ver o despertar de toda
uma série de movimentos nacionais democrático-burgueses e de aspirações
à formação de Estados nacionalmente independentes e nacionalmente
homogéneos. Precisamente porque – e só porque – a Rússia, juntamente
com os países vizinhos, atravessa essa época, é que nos é necessário o ponto
relativo ao direito das nações à autodeterminação no nosso programa. As
condições originais da Rússia em relação à questão nacional são
exactamente opostas ao que vimos na Áustria. A Rússia é um Estado com
um centro nacional único, grão-russo. Os Grão-russos ocupam um
gigantesco território contínuo e o seu número aproxima-se de 70 milhões de
pessoas. A particularidade deste Estado nacional é, em primeiro lugar, que
os «alógenos» (que constituem em conjunto a maioria da população, 57 por
cento) povoam precisamente a periferia; em segundo lugar, que a opressão
destes «alógenos» é muito mais forte do que nos Estados vizinhos (e até não
só nos europeus); em terceiro lugar, que em toda uma série de casos, as
nacionalidades oprimidas que vivem na periferia têm compatriotas seus do
outro lado da fronteira que desfrutam de maior independência nacional
(basta recordar apenas as fronteiras ocidentais e sul do Estado, os
Finlandeses, os Suecos, os Polacos, os Ucranianos, os Romenos); em quarto
lugar, que o desenvolvimento do capitalismo e o nível geral de cultura
frequentemente é superior na periferia «alógena» do que no centro do
Estado. Por fim, precisamente nos Estados asiáticos vizinhos, vemos o
início do período de revoluções burguesas e de movimentos nacionais, que
se estendem em parte às nacionalidades afins dentro das fronteiras da
Rússia. Para a Europa Oriental e para a Ásia, na época das revoluções
democrático-burguesas já iniciadas, na época do despertar e da agudização
dos movimentos nacionais, na época do surgimento de partidos proletários
independentes, a tarefa destes partidos na política nacional deve ser bilateral
– o reconhecimento do direito de todas as nações à autodeterminação, pois a
transformação democrático-burguesa ainda não terminou, pois a democracia
operária defende consequente, séria e sinceramente, não à maneira liberal,
não à maneira kokochkinista [referente a Kokochkin], a igualdade de
direitos das nações – e a aliança mais estreita e indissolúvel da luta de
classe dos proletários de todas as nações de um dado Estado em todas e
quaisquer peripécias da sua história, com todas e quaisquer modificações
das fronteiras dos diferentes Estados pela burguesia.

Lenine, V. I. Obras Completas. M. 1965-75. T. 25, p. 298-299.

Acerca do Orgulho Nacional dos Grão-Russos (1914)


Quanto se fala, se comenta e se grita agora sobre a nacionalidade, sobre a
pátria! Os ministros liberais e radicais da Inglaterra, uma infinidade de
publicistas «avançados» da França (que se encontraram plenamente de
acordo com os publicistas da reacção), um sem-número de escribas oficiais,
democratas-constitucionalistas e progressistas (incluindo alguns populistas
e «marxistas») da Rússia – todos celebram de mil modos a liberdade e a
independência da «pátria», a grandeza do princípio da independência
nacional. É impossível distinguir onde termina aqui o venal enaltecedor do
verdugo Nicolau Romanov ou dos torturadores dos negros e dos habitantes
da Índia, onde começa o filisteu medíocre que vai «na corrente» por
estupidez ou por falta de carácter. Mas nem sequer importa diferenciá-lo.
Temos diante de nós uma corrente ideológica muito ampla e muito
profunda, cujas raízes estão ligadas muito solidamente aos interesses dos
senhores latifundiários e capitalistas das nações dos Estados que são
grandes potências. Para a propaganda das ideias vantajosas para estas
classes são gastas dezenas e centenas de milhões por ano: é um grande
moinho, que recebe água de toda a parte, a começar pelo convicto
chauvinista Ménchikov e a terminar nos chauvinistas por oportunismo ou
por falta de carácter, Plekhnov e Máslov, Rubanóvitch e Smirnov,
Kropotkin e Búrtsev.
Tentemos também nós, sociais-democratas grão-russos, definir a nossa
atitude para com esta corrente ideológica. Para nós, representantes de uma
nação de uma grande potência do extremo leste da Europa e de uma boa
parte da Ásia, seria indecoroso esquecer o enorme significado da questão
nacional – particularmente num país que é chamado com razão «prisão de
povos» – num momento em que, precisamente no extremo leste da Europa e
na Ásia, o capitalismo está a despertar para a vida e para a consciência toda
uma série de «novas» nações, grandes e pequenas, num momento em que a
monarquia czarista pôs em armas milhões de grão-russos e «alógenos» para
«resolver» toda uma série de questões nacionais de acordo com os
interesses do conselho da nobreza unificada e dos Gutchkov, dos
Krestóvnikov, dos Dolgorúkov, dos Kútler, dos Róditchev.
Ser-nos-á alheio a nós, proletários grão-russos conscientes, o sentimento
de orgulho nacional? Naturalmente que não! Amamos a nossa língua e a
nossa pátria, fazemos o máximo para que as suas massas trabalhadoras,
(isto é, 9/10 da sua população) se elevem a uma vida consciente de
democratas e socialistas. Causa-nos a maior dor ver e sentir a que
violências, opressão e vexames submetem a nossa bela pátria os verdugos
czaristas, os nobres e os capitalistas. Nós orgulhamo-nos de que essas
violências tenham provocado resistência entre nós, entre os Grão-russos, de
que entre estes se tenham destacado um Radischev, os dezembristas, os
revolucionários raznotchintsi [de diferentes origens sociais que não a
nobreza] dos anos 70, de que a classe operária grã-russa tenha criado, em
1905, um poderoso partido revolucionário de massas, de que o mujique
grão-russo tenha começado ao mesmo tempo a tornar-se um democrata,
tenha começado a derrubar o padre e o latifundiário.
Estamos imbuídos pelo sentimento de orgulho nacional e precisamente
por isso odiamos particularmente o nosso passado de escravos (quando os
latifundiários nobres levavam para a guerra os mujiques para estrangular a
liberdade da Hungria, da Polónia, da Pérsia, da China) e o nosso presente de
escravos, quando os mesmos latifundiários, apoiados pelos capitalistas, nos
levam à guerra para estrangular a Polónia e a Ucrânia, para esmagar o
movimento democrático na Pérsia e na China, para reforçar o bando dos
Románov, dos Bobrínski, dos Purichkévitch, que desonram a nossa
dignidade nacional grã-russa. Ninguém é culpado de ter nascido escravo,
mas o escravo que não só evita aspirar a conquistar a sua liberdade, mas
também justifica e embeleza a sua escravidão (por exemplo, chama ao
estrangulamento da Polónia, da Ucrânia, etc., «defesa da pátria» dos Grão-
russos), tal escravo é um lacaio e um bruto que provoca um legítimo
sentimento de indignação, de desprezo e de repugnância.
Admitamos mesmo que a História decidirá a questão a favor do
capitalismo de grande potência grão-russo, contra 101 pequenas nações.
Isto não é impossível, pois toda a história do capital é uma história de
violências e de pilhagens, de sangue e de lama. E nós não somos, de modo
algum, partidários incondicionais de nações pequenas; nós somos
incondicionalmente, sendo iguais as outras condições, pela centralização e
contra o ideal filisteu de relações federativas. Todavia, mesmo em tal caso,
em primeiro lugar não nos cabe, não cabe aos democratas (sem falar já dos
socialistas), ajudar os Romanov, Bobrínski, Purichkévitch a estrangular a
Ucrânia, etc. Bismarck realizou à sua maneira, à maneira dos junkers, um
trabalho histórico progressivo, mas seria um belo «marxista» aquele que
nesta base pensasse justificar a ajuda socialista a Bismarck! E, além disso,
Bismarck ajudou o desenvolvimento económico ao unificar os alemães
dispersos que eram oprimidos por outros povos. Ao passo que o
florescimento económico e o rápido desenvolvimento da Grã-Rússia
exigem a libertação do país da violência dos Grão-russos sobre outros
povos – esta diferença é esquecida pelos nossos admiradores dos quase-
Bismarcks verdadeiramente russos.

Lenine, V.I. Obras Completas. T.26, p. 106-109.

As Tarefas Imediatas do Poder Soviético (1918)

Se tomarmos a escala das revoluções oeste-europeias, estamos agora


aproximadamente no nível alcançado em 1793 e 1871. Temos o direito
legítimo de nos orgulharmos por nos termos elevado a este nível e, num
aspecto, chegámos indubitavelmente um pouco mais longe, a saber:
decretámos e implantámos em toda a Rússia um tipo superior de Estado, o
Poder Soviético. Mas não podemos em caso algum contentarmo-nos com o
que foi conseguido, pois apenas começámos a transição para o socialismo,
mas ainda não realizámos o que é decisivo neste aspecto.
Em comparação com as nações avançadas, o russo é um mau trabalhador.
E não podia ser de outro modo sob o regime czarista e com a vitalidade dos
restos do regime de servidão. Aprender a trabalhar – esta é a tarefa que o
Poder Soviético deve colocar em toda a sua envergadura perante o povo. A
última palavra do capitalismo neste aspecto, o sistema de Taylor20 – tal
como todos os progressos do capitalismo –, reúne em si toda a refinada
crueldade da exploração burguesa e uma série de riquíssimas conquistas
científicas no campo da análise dos movimentos mecânicos no trabalho, a
supressão dos movimentos supérfluos e inábeis, a elaboração dos métodos
de trabalho mais correctos, a introdução dos melhores sistemas de registo e
controlo, etc. A República Soviética deve adoptar a todo o custo as
conquistas mais valiosas da ciência e da técnica neste domínio. A
possibilidade de realizar o socialismo é determinada precisamente pelos
nossos êxitos na combinação do Poder Soviético e da organização soviética
da administração com os últimos progressos do capitalismo. Tem de se criar
na Rússia o estudo e o ensino do sistema de Taylor, a sua experimentação e
adaptação sistemáticas. Ao mesmo tempo, caminhando para a elevação da
produtividade do trabalho, é preciso ter em conta as particularidades do
período de transição do capitalismo para o socialismo, que exigem, por um
lado, que sejam lançadas as bases da organização socialista da emulação e,
por outro lado, exigem a aplicação da coação para que a palavra de ordem
de ditadura do proletariado não seja maculada por uma prática de brandura
excessiva do Poder Soviético.

Lenine, V.I. Obras Completas. T.36, p. 175, 189-190.


20 Sistema de Taylor, Taylorismo ou Administração científica consiste num
modelo de administração desenvolvido pelo engenheiro norte-americano
Frederick Taylor (1856-1915). (N. T.)
Nome: Trotski, Lev

Data e local de nascimento e de morte: 7 de Novembro de 1879,


Ianovka, Império Russo-21 de Agosto de 1940, Cidade do México, México

Breve resenha biográfica: Lev Trotski nasceu numa família de


abastados agricultores de origem judaica. Os primeiros anos de escola de
Trotski foram feitos em Odessa, passando a estudar posteriormente em
Nikolaev, onde, em 1896, começou a dedicar-se activamente à política. Em
1898, o revolucionário foi preso pela primeira vez, tendo-se dedicado ao
estudo do marxismo durante os dois anos de cárcere. Em 1902, Lev Trotski
fugiu da pátria, encontrando-se com Lenine em Londres, com quem passou
a colaborar. Após viajar pela Europa, em 1905, Trotski regressa à Rússia
para participar na Revolução, o que lhe valeu a condenação ao exílio na
Sibéria e a perda de direitos cívicos, levando-o, novamente, à emigração.
Trotski tem um lugar cimeiro na organização da Revolução de Outubro de
1917, ocupando depois disso diversos cargos de destaque nos governos
bolcheviques. Contudo, a partir de 1923, com a morte de Lenine, a luta pelo
poder intensifica-se na cúpula da direcção soviética, levando ao seu exílio
no estrangeiro a partir de 1929. A 20 de Agosto, Trotski é atacado por um
agente da polícia política soviética (NKVD), acabando por sucumbir no dia
seguinte.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No


plano político, Trotski considerava-se marxista, acreditando que a
civilização passará ao comunismo pela via revolucionária e que estes
movimentos nascerão em países com economias mais desenvolvidas. Neste
quadro, Trotski desenvolveu a teoria da revolução permanente, de acordo
com a qual a revolução poderia nascer em países economicamente menos
desenvolvidos, como a Rússia. Assim, a revolução não parará na fase da
democratização das sociedades, mas continuará até à instauração do
socialismo e, no plano exterior, avançará numa guerra contra a reacção.
Estas etapas são sequenciais, sendo que a revolução começa no plano
nacional, segue para o internacional e só termina com uma vitória mundial.
Assim, as revoluções nacionais não encerram o fim, sendo apenas elos
numa corrente de acontecimentos. A revolução social renova-se
constantemente, tornando-se um movimento permanente, e é aqui que
reside a importância da Revolução Russa. Nos seus escritos, Lev Trotski
avança para a programação do processo revolucionário, subordinando a
estratégia militar à política interna e externa, defendendo que o Exército
Vermelho deve ser não só o garante do poder soviético, mas ainda apoiar a
concretização de revoluções socialistas na Europa, o que permitirá a criação
de uma República Socialista da Europa, que, em colaboração com a URSS,
estenderia a mão aos irmãos asiáticos.
Europa e América (1926)

Nós, os povos da Rússia czarista, suportámos os anos de bloqueio e de


guerra civil. Sofremos fome, miséria, epidemias, mas resistimos. Para nós,
o nosso estado de atraso foi, nessas circunstâncias, temporário e uma
superioridade nossa. A revolução foi capaz de se manter, apoiando-se na
sua retaguarda, representada pela gigante classe campesina. Esfomeada e
assolada por diversas epidemias, ela, apesar de tudo, soube resistir bem.
Mas a questão coloca-se de outra forma para a Europa industrializada e,
sobretudo, para a Inglaterra. Uma Europa fragmentada não poderia, nem
sob a ditadura do proletariado, resistir economicamente, mantendo a sua
fragmentação. A revolução proletária implica a unificação da Europa.
Actualmente, os economistas, os pacifistas, os homens de negócios e
simplesmente os charlatães burgueses falam frequentemente nos Estados
Unidos da Europa. Mas essa obra é superior às forças da burguesia
europeia, corrida pelos seus antagonismos. Só o proletariado vitorioso
poderá realizar a união da Europa. Onde quer que rebente a revolução e
qualquer que seja o ritmo do seu desenvolvimento, a união económica da
Europa é a condição prévia da sua refundação socialista. A Internacional
Comunista já o proclamou em 1923: há que correr com aqueles que
dividiram a Europa, tomar o poder para unificá-la e criar os Estados Unidos
Socialistas da Europa. A Europa revolucionária encontrará o caminho que
conduz às matérias-primas, aos produtos alimentares, o caminho para a
aldeia revolucionária. Nós fortalecemo-nos de tal forma que poderemos,
nos dias e meses mais difíceis, ajudar de alguma forma a Europa
revolucionária. Além disso, seremos para ela uma ponte para a Ásia. A
Inglaterra proletária caminhará de mão dada com os povos da Índia e
assegurará a independência deste país. Mas não se conclui daqui que
perderá a possibilidade de uma estreita colaboração económica com a Índia.
A Índia livre necessitará de ter acesso à tecnologia e cultura europeias; a
Europa necessitará de ter acesso aos produtos da Índia. Os Estados Unidos
da Europa, com a nossa União Soviética, construirão um poderoso centro de
atracção para os povos da Ásia, que procurarão estabelecer estreitas
relações económicas e políticas com a Europa proletária. Se a Inglaterra
proletária perder a Índia enquanto colónia, logo a encontrará enquanto
companheira na Federação Euroasiática de todos os países. O bloco de
países da Eurásia será inquebrável e, sobretudo, invulnerável ao poderio dos
Estados Unidos. Não desprezamos esse poder. Na nossa perspetiva
revolucionária, partimos de uma clara apreciação dos acontecimentos tal
como são. Mais ainda: consideramos que esse poderio dos Estados Unidos
(tal é a dialética) é, actualmente, a alavanca, por excelência, da revolução
europeia. Não ignoramos o facto de que, política e militarmente, esta
alavanca se virará furiosamente contra a revolução europeia quando esta
estalar. Quando a sua pele estiver em jogo, o capital americano começará a
lutar com uma energia feroz. É bem possível que tudo o que sabemos dos
livros e da nossa própria experiência acerca da luta das classes privilegiadas
para conservarem o seu domínio certamente empalidecerá perante o quadro
da violência que o capital americano fará cair sobre a Europa
revolucionária. Mas, graças à sua colaboração revolucionária com os povos
da Ásia, a Europa unificada será infinitamente mais poderosa do que os
Estados Unidos. Através da mediação da União Soviética, os trabalhadores
da Europa e da Ásia tornar-se-ão indissoluvelmente unidos. Aliado ao
Oriente sublevado, o proletariado revolucionário europeu arrancará das
mãos do capital americano o controlo da economia mundial e assentará as
bases da Federação dos países socialistas do mundo inteiro.

Trotski, L., Europa e América. M.; L. 1926, p. 75-77.


Nome: Estaline, José

Data e local de nascimento e de morte: 18 de Dezembro de 1878, Gori,


Império Russo-5 de Março de 1953, Moscovo, URSS

Breve resenha biográfica: Líder político soviético. José Estaline nasceu


numa humilde família de Gori, actual Geórgia. A formação inicial deste
líder político teve lugar num seminário ortodoxo em Tbilisi e foi nesta
altura que se interessou pelo pensamento marxista, tendo aderido a um
grupo de revolucionários exilados de Moscovo ainda em 1895. Fortemente
envolvido na actividade propagandística e com pouco tempo disponível
para os estudos, em 1899, José Estaline é expulso do seminário devido a
inúmeras faltas. Em 1904, Estaline adere ao movimento bolchevique e leva
a cabo um intenso trabalho de mobilização política em Bacu, Azerbaijão. O
líder soviético teve uma participação activa na Revolução de 1917,
começando em 1920 uma campanha activa contra alguns dos seus
correligionários para ascender à liderança do partido e do país. Os anos de
liderança de Estaline ficaram marcados, no plano económico, pela
implementação de políticas de colectivização da economia, industrialização
e construção de cidades, no plano político interno pelas violentas repressões
que resultaram em milhões de mortos, e na política externa pela vitória na
Segunda Guerra Mundial. José Estaline faleceu na sequência de um
acidente vascular-cerebral na sua residência de Verão.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No


plano das ideias políticas, José Estaline considerava que o movimento
comunista recebia a sua força vital do povo russo, ideologia que foi
reforçada durante a Segunda Guerra Mundial, fundindo o sentimento
nacionalista com o ideário comunista. Contudo, Estaline era também um
internacionalista convicto, considerando que os comunistas russos deveriam
estar na vanguarda da luta contra o tradicional chauvinismo eslavo.
No que concerne à organização da política interna, o líder soviético
designou a classe trabalhadora como «exército do partido», sendo que o
partido deveria controlar a sociedade através de um sistema de «correias de
transmissão».
A ideologia estalinista baseia-se numa concepção mecanicista do mundo
em que o mesmo pode ser alterado com recurso à razão e a processos
revolucionários que levariam à construção de uma nova realidade social que
não teria em conta nem as tradições históricas, nem o custo do referido
processo. A razão da existência do homem, segundo esta corrente
ideológica, é a luta pela reorganização social de acordo com as baias
apresentadas pelo partido e, neste quadro, uma das grandes lutas pelas
mentes do homem do estalinismo é com a religião.
Acerca do artigo de Engels «Política externa do czarismo» (1934)

… Caracterizando a política conquistadora do czarismo russo e prestando


a devida homenagem às abominações dessa política, Engels explica-a não
tanto com a «necessidade» da cúpula militar-feudal-mercadora da Rússia
em ter acesso aos mares, aos portos marítimos, em alargar o comércio
externo e dominar pontos estratégicos, quanto pelo facto de à frente da
política externa russa estar um bando alegadamente omnipotente e talentoso
de aventureiros estrangeiros que, por qualquer razão, tinham sorte sempre e
em todo o lado, que estranhamente conseguiam superar todos e quaisquer
obstáculos no caminho ao seu objectivo aventureiro, que, de forma
incrivelmente hábil, aldrabavam todos os dirigentes europeus e que
conseguiram, por fim, que a Rússia se tornasse no mais poderoso Estado no
campo militar.
Semelhante análise da questão nas palavras de Engels pode parecer mais
do que incrível, mas, infelizmente, é um facto…
Pode pensar-se que, na história da Rússia, na sua história externa, a
diplomacia era tudo, enquanto os czares, os senhores feudais, os mercadores
e outros grupos sociais não eram nada, ou quase nada.
Pode pensar-se que se à frente da política externa russa não estivessem
aventureiros estrangeiros, como Nesselrode ou Girs, mas sim aventureiros
russos, do tipo de Gortchakov e outros, a política externa da Rússia teria
seguido outro rumo.
Já nem falo do facto de a política de conquista com todas as suas
abominações e sujidade não constituir monopólio dos czares russos. Todos
sabem que a política de conquista era também característica, numa medida
não menor, talvez até maior, de reis e de diplomatas de todos os países da
Europa, inclusive de imperadores da época burguesa, como Napoleão que,
não obstante não possuir sangue real, praticou com sucesso na sua política
externa a intriga, o engano, a traição, a adulação, a bestialidade, o suborno,
o assassinato, o incêndio.
E nem podia ser de outra forma…
Não se pode deixar de reparar que, nesta definição da situação na Europa
e na enumeração das razões que conduzem à guerra mundial, é esquecido
um momento importante e que, posteriormente, teve um papel
determinante: precisamente o momento da guerra imperialista pelas
colónias, pelos mercados de escoamento, pelas fontes de matérias-primas,
que já na altura tinham grande importância, o esquecimento do papel da
Inglaterra na guerra mundial que se aproximava, o momento das
contradições entre a Alemanha e a Inglaterra, contradições que já na altura
tiveram importante significado e que, depois, desempenharam um papel
quase determinante no espoletar e no desenvolvimento da guerra mundial.
Acho que esta falha constitui a principal insuficiência no artigo de
Engels.

Stalin, I.V., Carta aos membros do Politburo. 19 de Julho de 1934.


Jornal Bolchevik, 1941, N.º 9.

Intervenção na rádio (1941)

A guerra com a Alemanha fascista não pode ser considerada uma guerra
normal. Não se trata apenas de uma guerra entre dois exércitos. Trata-se
também da grande guerra de todo o povo soviético contra as tropas fascistas
alemãs. O objectivo desta guerra patriótica nacional contra os opressores
fascistas não passa só pela liquidação da ameaça que se abate sobre o nosso
país, mas também pela ajuda a todos os povos da Europa que gemem sob o
jugo do fascismo germânico. Nesta guerra de libertação, não estaremos sós.
Nesta grande guerra, teremos aliados leais entre os povos da Europa e da
América, entre os quais até o povo alemão escravizado pelo jugo hitleriano.
A nossa guerra pela liberdade da nossa pátria irá fundir-se com a luta dos
povos da Europa e da América pela sua independência, pelas liberdades
democráticas. Será uma frente única de povos que se erguem pela liberdade,
contra a subjugação e as ameaças de escravização por parte do exército
fascista de Hitler. Nesse sentido, a intervenção histórica de Winston
Churchill, primeiro-ministro britânico, sobre a ajuda à União Soviética e a
declaração do Governo dos EUA sobre a prontidão em dar apoio ao nosso
país, que podem causar nos corações dos povos da União Soviética apenas
o sentimento de gratidão, são bastante claras e ilustrativas.

Stalin, I.V., Intervenção radiofónica «Sobre a Grande Guerra Pátria». M.,


1947, p.6.

Resposta ao correspondente do Pravda (1946)

Há dias, um dos correspondentes do Pravda dirigiu-se ao camarada


Estaline com o pedido de esclarecimento acerca de um conjunto de questões
relacionadas com o discurso do Senhor Churchill. Estaline deu os
respectivos esclarecimentos que abaixo são publicados como respostas às
perguntas do correspondente.
Pergunta: Como avalia o último discurso do Senhor Churchill, por ele
proferido nos Estados Unidos da América?
Resposta: Considero-o um acto perigoso que tem por objectivo plantar as
semente da discórdia entre os Estados aliados e dificultar a sua cooperação.
P: Podemos considerar que o discurso do Senhor Churchill prejudica a
causa da paz e da segurança?
R: Sem dúvida que sim. Fundamentalmente, o Senhor Churchill está
agora na posição dos ateadores da guerra. E o Senhor Churchill não está
sozinho, ele tem amigos, e não só na Inglaterra mas também nos Estados
Unidos da América.
É importante notar que o Senhor Churchill e os seus amigos, nesse
sentido, lembram surpreendentemente Hitler e os seus amigos. Hitler
começou por desencadear a guerra ao anunciar a sua teoria racial, referindo
que só as pessoas que falam alemão constituem uma nação de pleno valor.
O Senhor Churchill começa a atiçar a guerra também a partir de uma teoria
racial, afirmando que só as nações que falam inglês são nações de pleno
valor, chamadas a encabeçar os destinos de todo o mundo. A teoria da raça
alemã levou Hitler e os seus amigos à conclusão de que os Alemães,
enquanto a única nação de pleno valor, devem governar os outros povos. A
teoria da raça inglesa leva o Senhor Churchill e os seus amigos a
concluírem que as nações que falam inglês, as únicas de pleno valor, devem
governar os restantes povos do mundo.
No fundo, o Senhor Churchill e os seus amigos em Inglaterra e nos EUA
apresentam às nações que não falam em língua inglesa algo que se
assemelha a um ultimato: aceitem voluntariamente a nossa liderança e tudo
ficará bem, caso contrário, a guerra será inevitável.
Mas as nações derramaram sangue durante os cinco anos da cruel guerra
em nome da liberdade e independência dos seus países, e não para substituir
a liderança dos hitleres pela liderança dos churchills. Por isso, é bastante
possível que as nações que não falam inglês e constituem a esmagadora
maioria da população mundial não aceitarão ser sujeitas a uma nova
escravidão.
A tragédia do Senhor Churchill consiste no facto de ele, enquanto um
tory empedernido, não compreender esta simples e óbvia verdade.
É indubitável que o cenário do Senhor Churchill é um cenário de guerra,
um apelo de guerra contra a URSS. É também claro o facto de o cenário
traçado pelo Senhor Churchill não ser compatível com o acordo de
cooperação existente entre a Inglaterra e a URSS. É verdade que o Senhor
Churchill, com o objectivo de confundir os leitores, refere, de passagem,
que o prazo do acordo anglo-soviético de ajuda mútua e cooperação poderia
ser prolongado até 50 anos. Mas como conciliar tal afirmação do Senhor
Churchill com a sua predisposição para a guerra com a URSS e com a sua
pregação da guerra contra a URSS? É claro que estas questões não podem
ser conciliadas. E se o Senhor Churchill, que advoga a guerra com a União
Soviética, considera ser, ao mesmo tempo, possível o prolongamento do
acordo anglo-soviético até 50 anos, então isso significa que ele olha para
esse acordo como uma folha branca, que apenas lhe serve para tapar e
mascarar a sua predisposição anti-soviética. Por isso, não podemos olhar
com seriedade para as declarações falsas dos amigos do Senhor Churchill
em Inglaterra no sentido do prolongamento do prazo do acordo anglo-
soviético até 50 ou mais anos. O alargamento do prazo do acordo não faz
sentido se uma das partes viola o acordo e o transforma numa folha branca.
P: Como avalia a parte do discurso do Senhor Churchill em que ele ataca
a organização democrática dos países europeus que nos são vizinhos e onde
critica as relações de boa vizinhança que se estabeleceram entre esses
Estados e a União Soviética?
R: Essa parte do discurso do General Churchill representa uma mistura de
elementos de calúnia com elementos de grosseria e falta de tacto.
O Senhor Churchill afirma que «Varsóvia, Berlim, Praga, Viena,
Budapeste, Belgrado, Bucareste, Sófia – todas essas famosas cidades e a
sua população se encontram na esfera soviética e todas, de uma ou outra
forma, obedecem não só à influência soviética, mas, em grande medida, ao
crescente controlo de Moscovo». O Senhor Churchill qualificou tudo isso
como uma «tendência expansionista» sem limite da União Soviética.
Não é necessário grande esforço para demonstrar que o Senhor Churchill
calunia de forma grosseira e indesculpável tanto Moscovo como os
referidos Estados vizinhos da URSS.
Em primeiro lugar, é completamente absurdo falar sobre o controlo
exclusivo da URSS em Viena e Berlim, onde existem os Conselhos Aliados
de Controlo, compostos por representantes dos quatro países e onde a
URSS detém apenas um quarto dos votos. Acontece que há pessoas que não
conseguem não caluniar, mas é preciso ter a noção do limite.
Em segundo lugar, não se pode esquecer as seguintes circunstâncias. Os
Alemães atacaram a URSS através da Finlândia, Polónia, Roménia,
Bulgária, Hungria. Os Alemães puderam atacar através desses países
porque, na altura, existiam naqueles países governos que eram hostis à
União Soviética. Em consequência do ataque alemão, a União Soviética
perdeu, de forma irrecuperável, cerca de sete milhões de pessoas em
batalhas com os Alemães e também devido à ocupação alemã e do envio de
cidadãos soviéticos para campos alemães. Por outras palavras, a União
Soviética perdeu em pessoas muitas vezes mais do que a Inglaterra e os
Estados Unidos da América juntos. É possível que nalguns sítios exista a
tendência para deixar cair no esquecimento essas vítimas colossais do povo
soviético que permitiu a libertação da Europa do jugo hitleriano. Mas a
União Soviética não as pode esquecer. Pergunta-se, o que pode haver de tão
estranho no facto de a União Soviética, tendo vontade de garantir a sua
segurança em tempos futuros, tentar garantir que nesses países existam
governos que têm uma relação leal com a União Soviética? Como se pode,
sem enlouquecer, qualificar essas aspirações da União Soviética como
sendo tendências expansionistas do nosso Estado?
O Senhor Churchill afirma ainda que «o Governo polaco, que se encontra
sob o jugo dos Russos, foi encorajado a realizar atentados enormes e
injustos contra a Alemanha».
Aqui cada palavra é uma calúnia grosseira e ofensiva. A moderna Polónia
democrática é governada por pessoas excepcionais. Elas provaram na
prática que sabem defender os interesses e a honra da pátria de uma maneira
que não foram capazes os seus antecessores. Que bases tem o Senhor
Churchill para afirmar que os governantes da Polónia moderna podem
permitir que no seu país se instale o «domínio» de representantes de
quaisquer países estrangeiros? Não será que o Senhor Churchill calunia os
Russos para poder plantar as sementes da discórdia entre a Polónia e a
União Soviética?
O Senhor Churchill não está contente com o facto de a Polónia ter feito
uma viragem na sua política no sentido da amizade e da aliança com a
URSS. Houve tempos quando nas relações entre a Polónia e a URSS
prevaleciam os elementos de conflito e contradição. Essa circunstância dava
a possibilidade a estadistas do tipo do Senhor Churchill de jogar com essas
contradições, de controlar a Polónia sob o pretexto de a proteger da Rússia,
de ameaçar a Rússia com o fantasma da guerra entre ela e a Polónia e de
manter a sua posição de árbitro. Mas esse tempo ficou no passado, pois a
inimizade entre a Polónia e a Rússia deu lugar à amizade entre elas; a
Polónia, a moderna e democrática Polónia, não deseja ser mais a bola de
brincar nas mãos dos estrangeiros. Parece-me que é exactamente essa a
circunstância que irrita o Senhor Churchill e o impele para expressões
grosseiras e sem tacto contra a Polónia. Não é nada fácil: não o deixam
brincar à custa de outrem…
No que concerne aos ataques do Senhor Churchill contra a União
Soviética em relação ao alargamento das fronteiras ocidentais da Polónia à
custa dos territórios polacos anteriormente ocupados pelos Alemães, aqui,
parece-me que ele está claramente a baralhar as cartas. Como é sabido, a
decisão sobre as fronteiras ocidentais da Polónia foi tomada na Conferência
de Berlim pelas três potências, tendo por base as exigências da Polónia. A
União Soviética declarou diversas vezes que considera correctas e justas as
exigências da Polónia. É bastante possível que o Senhor Churchill não
esteja satisfeito com essa decisão. Mas porque é que o Senhor Churchill,
não poupando setas contra a posição russa nessa questão, esconde dos seus
leitores o facto de a decisão ter sido tomada unanimemente na Conferência
de Berlim e que a favor da decisão votaram não só os Russos, mas também
os Ingleses e os Americanos? Para que é que o Senhor Churchill precisou
de enganar as pessoas?
O Senhor Churchill afirma seguidamente que «os partidos comunistas,
que eram bastante insignificantes em todos esses países da Europa Oriental,
alcançaram uma força extraordinária, muito superior à sua dimensão real e
têm por objectivo instalar em todo lado o controlo absoluto; governos
policiais prevalecem em quase todos esses países até aos dias de hoje, com
excepção feita à Checoslováquia; neles não existe qualquer genuína
democracia».
Como é sabido, a Inglaterra é actualmente governada por um partido, o
Partido Trabalhista, sendo que qualquer oposição não tem o direito de
participar no Governo de Inglaterra. É a isso que o Senhor Churchill chama
verdadeira democracia. Na Polónia, Roménia, Jugoslávia, Bulgária,
Hungria governa um bloco de diversos partidos – entre quatro a seis
partidos –, sendo que a oposição, se é mais ou menos leal, tem o direito de
participar no Governo. A isso o Senhor Churchill chama totalitarismo,
tirania, policiamento. Porquê e com que base? Não esperem por uma
resposta do Senhor Churchill. Este não entende em que posição ridícula se
coloca com os seus discursos barulhentos sobre o totalitarismo, a tirania, o
policiamento.
O Senhor Churchill gostaria que a Polónia fosse governada por
Sosnkowski e Anders, a Jugoslávia por Mihailovic e Pavelic, a Roménia
pelo príncipe Stirbei e Radescu, a Hungria e a Áustria por qualquer rei da
casa de Habsburgo, etc. O Senhor Churchill quer convencer-nos de que os
senhores porteiros do fascismo podem garantir uma «verdadeira
democracia». É assim a democracia do Senhor Churchill.
O Senhor Churchill vagueia perto da verdade quando fala da crescente
influência dos partidos comunistas na Europa Oriental. Mas cumpre referir
que ele não é completamente preciso. A influência dos partidos comunistas
não cresceu só na Europa Oriental, mas em quase todos os países da
Europa, onde antes reinava o fascismo (Itália, Alemanha, Hungria,
Bulgária, Finlândia) ou onde existiu a ocupação alemã, italiana ou húngara
(França, Bélgica, Holanda, Noruega, Dinamarca, Polónia, Checoslováquia,
Jugoslávia, Grécia, União Soviética, etc.).
A crescente influência dos comunistas não pode ser considerada casual.
Trata-se de um fenómeno bem legítimo. A influência dos comunistas
cresceu porque, nos tempos difíceis do domínio do fascismo na Europa, os
comunistas foram combatentes seguros, corajosos e abnegados contra o
regime fascista, pela liberdade dos povos. O Senhor Churchill, de vez em
quando, relembra nos seus discursos «as pessoas simples das pequenas
casas», dando-lhes palmadinhas nas costas e fingindo-se seu amigo. Mas
essas pessoas não são assim tão simples como pode parecer à primeira vista.
Elas, «as pessoas simples», têm as suas opiniões, a sua política e sabem
defender-se. Foram elas, milhões de «pessoas simples», que derrotaram em
Inglaterra o Senhor Churchill e o seu partido, dando os seus votos ao
Partido Trabalhista… Foram elas, milhões de «pessoas simples», que
depois de pôr à prova os comunistas no fogo da luta contra o fascismo,
decidiram que os comunistas mereceram a confiança do povo. Assim
cresceu a influência comunista na Europa. É assim a lei do
desenvolvimento histórico.
É claro que o Senhor Churchill não gosta desse desenvolvimento dos
acontecimentos, e alarma-se, apelando à força. Mas também não gostou do
aparecimento do regime comunista na Rússia após a Primeira Guerra
Mundial. Ele também na altura tocou o alarme e organizou o ataque militar
dos «14 Estados» contra a Rússia, tendo por objectivo reverter a roda da
História. Mas a História foi mais forte do que a intervenção churchillista, e
os tiques quixotescos do Senhor Churchill levaram-no então a sofrer uma
derrota total. Não sei se o Senhor Churchill e os seus amigos conseguirão
organizar, após a Segunda Guerra Mundial, um novo ataque militar contra a
«Europa Oriental». Mas se eles conseguirem, o que é pouco provável, pois
milhões de «pessoas simples» defendem a paz, então poderemos dizer com
confiança que serão batidos, tal como foram batidos há 26 anos.
Estaline, J.V., Jornal Pravda, 14 de Março de 1946, p.1-3.
Nome: Suslov, Mikhail

Data e local de nascimento e de morte: 21 de Novembro de 1902,


Saratov, Império Russo-25 de Janeiro de 1982, Moscovo, URSS

Breve resenha biográfica: Político soviético. Nasceu numa família de


agricultores e aderiu ao Komsomol na adolescência. Em 1924, entrou no
Instituto da Economia do Povo, em Moscovo e, posteriormente, seguiu os
estudos na Academia do Partido Comunista. A partir de 1936 começou a
leccionar Economia Política em diversos estabelecimentos de Ensino
Superior seguindo, paralelamente, actividade partidária, inicialmente em
Saratov e depois nos mais altos cargos de nível nacional, chegando a
integrar o Presídio do Partido Comunista da URSS. Ocupou ainda o posto
de redator-chefe do jornal Pravda. Mikhail Suslov ficou conhecido pelo seu
modo de vida asceta, tendo ficado conhecido por algumas excentricidades,
como calçar, quase exclusivamente, os tradicionais sapatos de feltro e
borracha, «galochas», ou conduzir o carro sempre a 60 km/h e proibindo os
motoristas de abrirem os vidros para não aumentarem os consumos de
combustível.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No
plano político Mikhail Suslov assumia-se como conservador, purista do
marxismo-leninismo e estalinista convicto, anti-trotsquista e anti-maoísta,
tendo desenvolvido um intenso trabalho no sentido de combater desvios à
ideologia vigente. Este ideólogo do socialismo defendia a importância do
apoio aos movimentos operários nos países capitalistas, não limitando a
ideia de luta de classes aos movimentos de libertação nacional, em voga na
época. Em alguns discursos, Suslov, chegou a referir o «Internacional
Situacionista», defendendo que o Ocidente, com a sua riqueza de bens, já
chegou às portas da revolução. Contudo, as novas ideologias de esquerda
ocidentais sempre foram estranhas e incompreendidas por parte de Miklhail
Suslov.
No plano da política externa, durante a Segunda Guerra Mundial
defendeu que, não obstante as numerosas perdas humanas, a URSS venceria
a Alemanha devido à sua superioridade numérica, tendo advogado o
crescente envio de homens para as frentes de batalha. No final do conflito,
Suslov recentrou os seus esforços no sentido de combater o servilismo face
ao Ocidente burguês e ao cosmopolitismo. Mantendo sempre a sua postura
de «eminência parda», Mikhail Suslov terá sido uma das figuras
responsáveis pela campanha anti-semita e contra a existência do Estado de
Israel, pela repressão dos movimentos anticomunistas na Hungria, em 1956,
pela repressão da Primavera de Praga, em 1968, bem como pela entrada das
tropas russas no Afeganistão, em 1979.
Leninismo e a transformação revolucionária do mundo (1969)

Os inimigos do leninismo tentam apresentá-lo como um fenómeno


puramente «russo», negam o seu conteúdo internacional. Alguns deles
afirmam que a via de Outubro é o caminho dos países economicamente
subdesenvolvidos, que o leninismo é a interpretação específica do
marxismo relativamente às condições do subdesenvolvimento. Outros
afirmam que o caminho de desenvolvimento social da URSS é um
fenómeno meramente «europeu» e, por isso, o leninismo não se adequa aos
países da Ásia, de África e da América Latina.
Estas concepções do leninismo são falsas na sua base. O leninismo não é
nem exclusivamente «russo», nem um fenómeno especificamente
«europeu». Tendo surgido enquanto continuidade do marxismo naquele
período histórico, quando o capitalismo transitou para a sua última fase,
imperialista, o leninismo exprimiu as necessidades objetivas do
desenvolvimento social mundial.
O carácter internacional do leninismo é definido pelas seguintes
circunstâncias mais relevantes:
Primeiro, por força de um conjunto de factores históricos, a Rússia, no
início do século XX, era o lugar nodular de todas as principais contradições
do sistema imperialista mundial e a Revolução de Outubro foi um ponto de
partida e eixo do processo revolucionário universal moderno. As principais
leis do processo revolucionário mundial manifestaram-se de forma cada vez
mais forte nas ondas crescentes das três revoluções russas, que foram os
maiores acontecimentos históricos do início do século XX. Essas revoluções,
e sobretudo a Grande Revolução Socialista de Outubro que abalou o mundo
inteiro, tiveram um enorme impacto internacional. Elas tiveram uma
poderosa influência no desenvolvimento do movimento revolucionário em
todos os países.
Em segundo lugar, o carácter internacional do leninismo tem por base a
diversidade da experiência da própria Revolução de Outubro, bem como a
experiência da construção do socialismo na URSS que ocorreu após a sua
vitória. Na véspera da revolução na Rússia estavam presentes todas as mais
diversas formas sócio-económicas. Aqui existiam grandes focos de
indústria capitalista com uma classe trabalhadora formada, um sistema
agrário semifeudal nas aldeias, com um sistema colonial ou semicolonial na
Ásia Central, um subdesenvolvimento quase pré-histórico no Extremo
Norte, ou seja, organizações e modos de vida característicos de diversos
países. A Rússia pré-revolucionária, com sistemas económicos diversos e
multinacional, representava as características particulares de diversos países
de vários continentes.
Em terceiro lugar, devido à posição da própria Rússia na fronteira com
países capitalistas desenvolvidos do Ocidente e com países coloniais,
semicoloniais e dependentes do Oriente, o movimento operário russo
contactava, inevitavelmente, com os movimentos operários revolucionários
da Europa Ocidental, por um lado, e com os movimentos nacionais de
libertação dos povos colonizados, por outro. O leninismo nasceu e
desenvolveu-se como a fusão da experiência não só russa, mas do
movimento operário universal, bem como do movimento de libertação
nacional e anticolonial. Lenine, que por muitos anos se viu obrigado a viver
emigrado na Suíça, França, Inglaterra, Alemanha, Polónia e outros países,
estava estreitamente ligado aos círculos socialistas da Europa Ocidental e
participava activamente no movimento socialista internacional. Lenine
conferia muita atenção à luta anticolonial dos povos do Oriente. O
leninismo fundiu as experiências, as formas e os métodos do movimento
revolucionário e da luta de libertação nacional de todos os países.
Em quarto lugar, o leninismo não surgiu num lugar vazio, mas na base
sólida do marxismo, sendo seu desenvolvimento. Nele fundiram-se os
dados mais recentes da ciência e da cultura mundiais. Não existe nenhuma
questão fulcral, colocada por Marx e Engels, sobre a teoria e a táctica do
movimento revolucionário mundial que não tivesse sido desenvolvida no
leninismo. Lenine desenvolveu e enriqueceu o marxismo, baseando-se nos
ensinamentos fundamentais de K. Marx e F. Engels.
O leninismo é o marxismo da nova época, transformando-se
legitimamente na base ideológico-teórica do movimento comunista
internacional contemporâneo.
O contributo de Lenine para o desenvolvimento do movimento operário e
de todo o movimento revolucionário de libertação é enorme. Lenine
colocou, em toda a sua dimensão, a questão da necessidade do reforço da
coesão internacional das forças revolucionárias. Mostrou que essa
necessidade emerge da alteração da situação histórica, da entrada do
capitalismo na fase imperialista, da colocação das revoluções proletárias
como tarefas actuais inadiáveis. Quando a II Internacional foi à falência e a
sua destruição tornou-se facto, Lenine dedicou-se imediatamente à
consolidação da ala revolucionária no movimento proletário internacional,
forjando, aos poucos, aquele núcleo internacional do qual surgiu
posteriormente a Internacional Comunista.

Suslov, M.A. Leninismo e movimento revolucionário mundial. M., 1969,


p.35-37

Grande Outubro e a época contemporânea (1977)

A paz e o desanuviamento da tensão travam as acções das forças mais


desenfreadas da reacção internacional, potenciam o desenvolvimento dos
movimentos de libertação e democráticos, criam as condições ideais para o
progresso social de toda a humanidade.
O desenvolvimento contemporâneo demonstra convictamente que o
socialismo mundial está a crescer e a desenvolver-se dinamicamente. Os
trabalhadores em todos os países olham com crescente simpatia para o
socialismo real como para a concretização das suas mais profundas
aspirações e esperanças. Eles vêem justamente nele a sociedade da
verdadeira liberdade e da democracia, do real humanismo e do optimismo
social. O socialismo mundial define a orientação principal do progresso da
humanidade.
Paralelamente, o capitalismo, corrompido por contradições
irreconciliáveis, sob a pressão das forças do progresso, vai perdendo a sua
posição passo a passo, não obstante todos os esforços da burguesia no
sentido de reforçar as suas bases. Todo o edifício do capitalismo
contemporâneo foi abalado por uma profunda crise económica e político-
ideológica. A crise económica mundial dos meados dos anos 70 tornou-se a
mais profunda crise do pós-guerra.
O capitalismo mostrou a sua incapacidade de resolver um único problema
social fulcral da época contemporânea, que preocupa a humanidade. Cada
vez mais se apresenta como inimigo da liberdade, da democracia e do
progresso social. Por conseguinte, aumenta o descontentamento das classes
trabalhadoras, continua o processo de esquerdização da vida política, cresce
o potencial revolucionário no seio do movimento operário, forma-se e
alarga-se a base objetiva para a formação de grandes uniões anti-
monopolistas, reforça-se o processo de internacionalização da luta de
classes. A posição do capitalismo agrava-se devido ao aprofundamento das
contradições entre os países capitalistas desenvolvidos e os países em vias
de desenvolvimento. Todos os acontecimentos dos últimos anos são um
testemunho convincente de que o capitalismo não tem futuro e que segue
irremediavelmente para o seu fim.
Mas o capitalismo continua a possuir bastantes reservas e a burguesia
monopolista não perde a esperança de desforra. O imperialismo
internacional tenta de todas as formas possíveis impedir o futuro reforço das
posições das forças da paz, da democracia e do socialismo, «limitar» o
desanuviamento. Os maiores opositores do desanuviamento são os círculos
reacionários ligados ao complexo industrial-militar. Eles vêem no
desanuviamento, no reforço da paz, uma ameaça aos seus lucros e à
influência política na sociedade.
A reacção internacional de todos os matizes tem por objectivo activar a
luta contra o socialismo, recorrendo para isso a meios e métodos cada vez
mais sofisticados. Aquela criou uma campanha política e propagandística
sob as falsas palavras de ordem da «defesa dos direitos humanos», da
«liberdade» e da «democracia».
É de todo evidente que toda essa campanha caluniosa e ruidosa sobre os
«direitos humanos» é, na prática, uma tentativa dos defensores do
capitalismo de mascarar o seu carácter anti-democrático, de desviar a
atenção dos trabalhadores dos seus países e da comunidade internacional da
profunda crise da sociedade burguesa…
Hoje, não só para nós, marxistas-leninistas, mas para um crescente
número de pessoas simples no mundo não socialista, torna-se evidente que,
não obstante os esforços da liderança burguesa e da capacidade de os
monopólios se adaptarem à situação, o capitalismo não pode recuperar a
iniciativa histórica.
O processo revolucionário mundial cresce de forma imparável. Na
vanguarda da luta revolucionária está o movimento comunista
internacional, cuja fonte é o Grande Outubro. Tendo-se formado e reforçado
sob essa ideia, o movimento comunista mundial transformou-se na maior e
mais influente força política de massas, num importante factor do
desenvolvimento mundial.

Suslov, M.A. Marxismo-leninismo na etapa actual. M., 1980,


p. 42-43.
CAPÍTULO VIII

O EURASISMO DA EMIGRAÇÃO RUSSA

A vitória dos bolcheviques na Rússia levou a que os seus opositores


tivessem em conta as mudanças radicais realizadas no país, obrigando-os,
por exemplo, no âmbito da discussão sobre as relações da Rússia com a
Europa e a Ásia, a encontrar causas para a catástrofe que, segundo eles,
abalou a sua pátria em 1917. As ideias dos eslavófilos ganharam nova força
sob a forma do «eurasismo». Nikolai Trubetskoi faz a ponte entre as suas
correntes do pensamento russo na sua obra A Europa e a Humanidade, onde
funde o princípio eslavófilo do papel particular da Igreja Ortodoxa e a ideia,
avançada antes por Nikolai Danilevski, de formação de uma unidade russo-
muçulmana no território de dois antigos impérios (tártaro-mongol e russo).
Ao contrário do neo-eurasismo, os representantes da corrente clássica dos
anos 20 e 30 prestavam maior atenção ao factor religioso do que ao
geopolítico. Os mesmos afirmavam que no território da Eurásia se formou
um mundo religioso-cultural que se inclinava para a Ortodoxia russa,
enquanto o mundo eslavo-russo não era um todo cultural uno.
Nome: Trubetskoi, Nikolai

Data e local de nascimento e de morte: 16 de Abril de 1890, Moscovo,


Império Russo-25 de Junho de 1938, Viena, Áustria

Breve resenha biográfica: Linguista, editor e filósofo. De origem nobre,


Nikolai Trubetskoi era filho do príncipe Serguei Trubetskoi que foi reitor da
Universidade de Moscovo. Nikolai Trubetskoi interessou-se desde cedo
pela etnografia, tendo publicado o seu primeiro trabalho académico aos 15
anos. Em 1908, ingressou na Faculdade de História e Filologia da
Universidade de Moscovo e, após concluir os seus estudos e um estágio em
Leipzig, regressou à Rússia para leccionar. A partir dos anos 20 do século
XX, passou a trabalhar enquanto docente universitário em diversas cidades
europeias, tendo sido um feroz crítico do regime comunista, mas também
do nacional-socialismo. A sua crítica ao regime nazi levou à sua detenção e
ao confisco da sua obra escrita, o que lhe terá causado um ataque cardíaco
que o levaria à morte.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Nikolai
Trubetskoi olha para o povo enquanto uma «individualidade colectiva». Na
relação entre os povos, rejeita os extremos do chauvinismo e do
cosmopolitismo, considerando que a verdadeira comunicação só é possível
através da «mistura antropológica».
Trubetskoi considera que, no plano geopolítico, a URSS é uma
continuidade da monarquia mongol fundada pelo Gengis Khan. As estepes
e o clima continental formam um espaço geoclimático único que vai «do
Oceano Pacífico até a foz do Dunai», ou seja, a Eurásia. A China, a Pérsia e
a Índia não integram a Eurásia. Um espaço ecológico uno cria a necessidade
de uma unificação estatal que foi construída por Gengis Khan. A ética
eurasista baseia-se em três pilares, nomeadamente a lealdade, a dedicação e
a perseverança. Neste sistema, Trubetskoi destaca ainda a tolerância de
credo, visível na convivência de diversas religiões, como o Xamanismo, o
Budismo, o Islão e o Cristianismo. Este pensador avalia assim como
positivas as incursões mongóis sobre a Rússia, considerando que é a elas
que o país deve o seu levantamento moral e religioso, bem como a
organização estatal e fiscal e a crença na origem divina do poder real.
Trubetskoi olha de forma crítica para o reinado de Pedro, o Grande,
considerando que ele iniciou a separação entre as classes dominantes e
dominadas através de um programa de europeização, que futuramente daria
origem à revolução social de modo a fazer a Rússia tornar ao caminho do
eurasismo.
Segundo o autor, não obstante a URSS ser herdeira do reinado mongol,
não foi capaz de materializar o eurasismo, devido à ideologia comunista
que defendia uma revolução mundial.
A Europa e a humanidade (1920)

O cosmopolita nega as diferenças entre os nacionalistas. Se essas


diferenças existirem, devem ser liquidadas. A humanidade civilizada deve
ser una e ter uma só cultura. Os povos não civilizados devem compreender
essa cultura, entrar em contacto com ela e, depois de ingressar na família
dos povos civilizados, avançar juntamente com eles pela via do progresso
mundial. A civilização é o bem supremo, em nome do qual se deve
sacrificar as particularidades nacionais.
Nesta fórmula, o chauvinismo e o cosmopolitismo parecem, na realidade,
distinguir-se brutalmente um do outro. No primeiro, postula-se o
predomínio de uma cultura de uma espécie etnográfico-antropológica, no
segundo, de uma cultura acima da humanidade etnográfica.
Porém, analisemos que conteúdo os cosmopolitas europeus dão aos
termos «civilização» e «humanidade civilizada»? Por «civilização»
compreendem a cultura que os povos românicos e germânicos da Europa
criaram conjuntamente. Por povos civilizados compreendem, antes de tudo
e novamente, os Românicos e Germanos e, depois, outros povos que
assimilaram a cultura europeia.
Desse modo, vemos que a cultura que, segundo os cosmopolitas, deve
dominar no mundo, eliminando todas as restantes culturas, é a cultura de
uma determinada unidade etnográfico-antropológica como a unidade em
cujo domínio sonha o chauvinista. Aqui não há qualquer diferença de
princípio. Na realidade, a unidade nacional, etnográfico-antropológica e
linguística de cada um dos povos da Europa é apenas relativa. Cada um
destes povos é uma união de grupos étnicos diferentes, mais pequenos, que
têm as suas particularidades culturais e antropológicas dialécticas, mas
estão ligados uns aos outros por laços de parentesco e pela história comum,
que criou algo comum a todos nas reservas dos valores culturais. Desse
modo, o chauvinista, que proclama no seu povo o cume da criação e o único
portador de todas as perfeições possíveis é, na realidade, adepto de todo um
grupo de unidades étnicas. Mais, o chauvinista quer que também outros
povos se fundam com o seu povo, perdendo a sua fisionomia nacional. Em
relação a todos os representantes de outros povos que assim fizeram, que
perderam o seu rosto nacional e assimilaram a língua, a fé e a cultura do
povo dele, o chauvinista vai olhar para eles como seus, vai elogiar os
contributos para a cultura do seu povo que irão ser dados por essas pessoas;
claro que só se elas assimilaram correctamente o espírito que lhe é
simpático e souberem renunciar completamente à sua anterior psicologia
nacional. Os chauvinistas olham sempre com alguma desconfiança para os
estranhos assimilados pelo povo dominante, principalmente se a sua
comunhão for recente, mas, por princípio, nenhum chauvinista os rejeita;
sabemos até que entre os chauvinistas europeus há muitas pessoas cujos
apelidos mostram que, quanto à origem, não pertencem ao povo cujo
domínio apregoam com tanto fervor.
Se, agora, olharmos para o cosmopolita europeu, veremos que, no fundo,
não se distingue do chauvinista. A «civilização», a cultura que considera
superior e perante a qual, segundo ele, devem apagar-se todas as outras
culturas, também é uma certa reserva de valores culturais, comum a vários
povos, ligados uns aos outros por laços de parentesco e por uma história
comum. Tal como o chauvinista se abstrai das originalidades particulares
dos vários grupos étnicos que fazem parte da constituição do seu povo,
também o cosmopolita põe de lado as particularidades das culturas dos
vários povos romano-germânicos e aceita apenas o que faz parte da sua
reserva cultural comum. Reconhece, também, o valor cultural da actividade
dos não romano-germânicos que assimilaram a civilização dos romano-
germânicos, afastando de si tudo o que contradiz o espírito dessa civilização
e trocando a sua fisionomia nacional pela romano-germana comum.
Exactamente como o chauvinista que considera seus os estranhos e
estrangeiros que souberam assimilar-se completamente com o povo
dominante! Até a hostilidade que os cosmopolitas sentem em relação aos
chauvinistas e aos princípios que separam a cultura dos vários povos
romano-germânicos, até essa hostilidade tem paralelo na visão do mundo
dos chauvinistas. Precisamente os chauvinistas são sempre hostis face a
qualquer tentativa de separatismo que parta das várias partes do seu povo.
Eles tentam liquidar, passar por cima de todas as particularidades locais que
podem destruir a unidade do seu povo.
Desse modo, o paralelismo entre os chauvinistas e os cosmopolitas é
total. No fundo, trata-se de uma mesma atitude para com a cultura da
unidade etnográfico-antropológica a que um dado homem pertence. A
diferença consiste apenas em que o chauvinista pega num grupo étnico mais
estreito do que o cosmopolita; e, além disso, o chauvinista pega num grupo
não completamente uniforme, enquanto o cosmopolita, da sua parte, pega
num grupo étnico determinado.
Significa que a diferença está apenas no grau, e não no princípio.
Ao avaliarmos o cosmopolitismo europeu, é preciso ter sempre em conta
que as palavras «humanidade», «civilização universal», etc., são expressões
extremamente imprecisas e por detrás delas escondem-se conceitos
etnográficos muito definidos. A cultura europeia não é a cultura da
humanidade. Trata-se de um produto da história de um determinado grupo
étnico. As tribos germanas e celtas, que foram sujeitas a diferente dose de
influência da cultura romana e se misturaram fortemente entre si, criaram
um certo modo de vida com os elementos da sua cultura nacional e da
romana. Devido às condições etnográficas e geográficas comuns, viveram
durante muito tempo uma vida comum, no seu quotidiano e na História,
graças ao contacto constante de umas com as outras; os elementos comuns
eram tão significativos que o sentimento de unidade romano-germânica
viveu sempre inconscientemente entre si. Com o tempo, tal como entre
muitos outros povos, entre elas surgiu a vontade de estudar as fontes da sua
cultura. O choque com os monumentos da cultura romana e grega fez vir ao
cimo a ideia da civilização supranacional, mundial, ideia própria do mundo
greco-romano. Nós sabemos que essa ideia se baseava também em
princípios etnográfico-geográficos. Claro que, em Roma, por «todo o
mundo» se subentendia apenas os povos que habitavam a bacia do mar
Mediterrâneo ou virados para esse mar, que tinham elaborado, devido ao
contacto constante de uns com os outros, uma série de valores culturais
comuns e que, finalmente, se tinham unido graças à acção niveladora da
colonização grega e romana e do domínio militar romano. Seja como for, as
ideias cosmopolitas antigas tornaram-se, na Europa, a base de formação.
Tendo caído no solo fecundo do sentimento inconsciente de unidade
romano-germânica, originaram as bases teóricas do chamado
«cosmopolitismo» europeu, a que seria mais correcto chamar abertamente
chauvinismo romano-germânico comum.
Eis as bases históricas reais das teorias cosmopolitas europeias. A base
psicológica do cosmopolitismo é a mesma que a do chauvinismo. Trata-se
de uma variedade do preconceito inconsciente, da psicologia particular que
melhor seria chamar egocentrismo. A pessoa com uma psicologia
egocêntrica claramente marcada considera-se inconscientemente o centro
do universo, o corolário da criação, o melhor, o mais perfeito de todos os
seres…
A pessoa que está convencida de que é a mais inteligente de todas, a
melhor de todas e que tudo lhe corre bem, é alvo de escárnio dos que a
rodeiam e se, além disso, for agressiva, leva também merecido cascudo. As
famílias que estão ingenuamente convencidas de que todos os seus
membros são geniais, inteligentes e bonitos, são normalmente alvo de
chacota dos seus conhecidos, que contam sobre elas anedotas curiosas.
Semelhantes manifestações extremas de egocentrismo são raras e
normalmente recebem rechaço. A coisa muda quando o egocentrismo se
alarga a um mais largo grupo de pessoas. Aqui, normalmente, ocorre o
rechaço, mas é mais difícil destruir semelhante egocentrismo. Na maioria
das vezes, as coisas resolvem-se através da luta de dois grupos mais
egocêntricos, ficando o vencedor com as suas convicções…
Não se deve pôr um sinal de igualdade entre a comunhão com outra
cultura e a mistura de culturas. Regra geral, é preciso dizer que não
existindo mistura antropológica, é possível apenas a mistura de culturas. A
comunhão, pelo contrário, só é possível se existir mistura antropológica.
São exemplos disso a comunhão dos Manchurianos com a cultura da China,
dos Hicsos com a cultura do Egipto, dos Varegues e dos Turco-búlgaros
com a cultura dos Eslavos, etc.; a seguir, a comunhão dos Prussianos, dos
Polábios e Sorabos (no último caso ainda não completamente) com a
cultura dos Alemães.
Desse modo, à pergunta «Será possível a comunhão total de todo um
povo com a cultura de outro sem a mistura antropológica de ambos os
povos?», deve-se também dar uma resposta negativa…
Mas se a civilização não fica nada acima de outra, se a comunhão total
com outra cultura é impossível e se o desejo de europeização total promete
a todos os povos não germano-românicos um destino lamentável e trágico,
é evidente que é preciso lutar com todas as forças contra a europeização. E
aqui coloca-se uma questão terrível: e se a luta é impossível e se a
europeização total é uma lei mundial inevitável?
Aparentemente, muita coisa aponta para que realmente seja assim.
Quando os Europeus se encontram com algum povo não romano-
germânico, eles levam-lhe as suas mercadorias e canhões. Se o povo não
lhes oferece resistência, os Europeus conquistam-no, fazem uma colónia
sua e europeizam-no à força. Mas se o povo tenciona opor resistência, para
estar em condições de lutar contra os Europeus, ele é obrigado a adquirir
canhões e todas as inovações da tecnologia europeia. Mas para tal são
precisas, por um lado, fábricas e, por outro, o estudo das ciências europeias
aplicadas. E as fábricas são impensáveis sem o modo de vida social e
político da Europa e as ciências aplicadas são impensáveis sem as ciências
«puras». Desse modo, para lutar contra a Europa, o povo de que falamos
deve, passo-a-passo, assimilar toda a civilização romano-germânica
contemporânea e europeizar-se voluntariamente. Ou seja, a europeização
parece ser inevitável tanto num caso, como noutro.
Tudo o que foi dito pode criar a impressão de que a europeização é uma
consequência inevitável do facto de os Europeus terem tecnologia militar e
fabrico de mercadorias. Mas a tecnologia militar é consequência do
militarismo e a produção fabril é consequência do capitalismo. Mas o
militarismo e o capitalismo não são eternos. Eles nasceram historicamente
e, como predizem os socialistas europeus, deverão perecer, cedendo o lugar
ao novo sistema socialista. Conclui-se que os adversários da europeização
universal devem sonhar com o estabelecimento do sistema socialista nos
países europeus. Porém, isso não passa de um paradoxo. Os socialistas são
os europeus que mais insistem na internacional, no cosmopolitismo
militante, cuja essência já foi por nós revelada no início deste trabalho. E
isto não é por acaso. O socialismo só é possível com a europeização geral,
com o nivelamento de todas as nacionalidades do globo terrestre e com a
sua subordinação a uma cultura uniforme e a um modo de vida comum. Se
o sistema socialista se afirmasse na Europa, os Estados socialistas europeus
teriam, antes de tudo, que impor a ferro e fogo o mesmo sistema em todo o
mundo e, depois disso, vigiar para que nenhum povo mudasse esse sistema.
Por outras palavras, se por acaso se conservasse algum canto do mundo não
controlado pelo socialismo, esse «canto» seria um novo propagador do
capitalismo. Mas para se manterem na defesa do sistema socialista, os
Europeus teriam de manter a sua tecnologia militar no mesmo nível e
conservarem-se armados até aos dentes. E visto que semelhante estado
militar de parte da «humanidade» ameaça sempre a independência de outras
partes da mesma humanidade, que, não obstante todas as promessas, irão
sentir-se inconfortavelmente na vizinhança de pessoas armadas. Claro que o
estado de mundo armado irá alargar-se a todos os povos do globo terrestre;
mais, devido ao facto de todos os povos romano-germânicos se terem já há
muito habituado a utilizar na sua cultura material e na satisfação das suas
necessidades quotidianas objectos e produtos fabricados fora da Europa, o
comércio internacional, e particularmente «colonial», manter-se-á
obrigatoriamente também no sistema socialista, devendo esse comércio,
claro, ter um carácter particular devido às especificidades da economia
socialista em geral. As mercadorias de fabrico industrial continuarão a ser o
principal objecto das exportações dos países romano-germânicos. Desse
modo, ambos os estímulos de europeização hoje existentes, a tecnologia
militar e a produção fabril, conservar-se-ão também no sistema socialista. A
eles apenas se irão juntar novos estímulos sob a forma de exigência do
modo de vida socialista em todos os países, exigência inevitável porque um
Estado socialista só pode fazer comércio com outros Estados socialistas.
No que diz respeito às consequências negativas da europeização, de que
já falámos acima, elas manter-se-ão no sistema socialista tal como no
sistema capitalista…
Pedro, o Grande, no início da sua actividade, quis copiar dos
«estrangeiros» apenas a tecnologia militar e naval, mas, gradualmente,
deixou-se levar pelo processo de assimilação e aprendeu muita coisa mais
que não tinha relação directa com o objectivo fundamental. Contudo, não
deixou de ter consciência de que, mais tarde ou mais cedo, a Rússia, depois
de copiar da Europa tudo aquilo de que necessitava, devia virar as costas à
Europa e continuar a desenvolver a sua cultura livre, sem olhar
constantemente para o Ocidente. Mas Pedro morreu sem preparar
sucessores dignos. Todo o século XVIII foi para a Rússia uma imitação
macaca superficialmente indigna da Europa. No final do século, os
intelectos das cúpulas da sociedade russa já tinham absorvido os
preconceitos romano-germânicos e todo o século XIX e início do século XX
decorreram sob o signo do desejo de europeização total de todas as facetas
da vida russa, sendo que a Rússia assimilou os métodos da «evolução
galopante», de que já falei acima. Perante os nossos olhos, a mesma história
vai repetir-se no Japão que, inicialmente, copiou aos Romano-germânicos
apenas a tecnologia militar e naval, mas, a pouco e pouco, foi muito mais
longe nesse processo. Por isso, actualmente, parte significativa da sociedade
«culta» do Japão também assimilou os métodos do pensamento romano-
germânico. É verdade que a europeização do Japão até agora foi moderada
pelo saudável instinto de orgulho nacional e pelo apego às tradições
históricas, mas ninguém sabe até quando irão os Japoneses aguentar essas
posições.
Mas mesmo que se reconheça que a proposta por nós feita não teve
precedentes históricos até agora, isso não significa que essa solução seja
impossível. O problema consiste em que, até agora, a verdadeira natureza
do cosmopolitismo europeu e de outras teorias europeias baseadas em
preconceitos egocêntricos não foi revelada. Não tendo consciência de toda a
falta de fundamento da psicologia egocêntrica dos Romano-germânicos, a
intelectualidade dos povos europeizados, isto é, a parte dos povos que
assimila de forma mais completa a cultura espiritual dos Romano-
germânicos, não soube até hoje lutar contra as consequências desse aspecto
da cultura europeia e seguiu confiantemente os ideólogos romano-
germânicos, sem sentir os obstáculos submersos no seu caminho. Todo o
quadro deve mudar radicalmente logo que essa intelectualidade comece a
olhar conscientemente para a questão e aborde a civilização europeia com
uma crítica objectiva.
Desse modo, todo o centro de gravidade deve ser transferido para o
campo da psicologia da intelectualidade dos povos romano-germânicos.
Essa psicologia deve ser radicalmente transformada. A intelectualidade dos
países europeizados deve arrancar a venda colocada nos seus olhos pelos
Romano-germânicos, libertar-se do pesadelo da ideologia romano-
germânica. Deve compreender de forma completamente clara, firme e
irreversível que foi enganada até agora; que a cultura europeia não é algo
absoluto, não é a cultura de toda a humanidade, mas apenas a criação de um
grupo étnico ou etnográfico limitado e determinado de povos que não têm
uma história comum; que só para esse grupo determinado de povos que a
criaram é que a cultura é obrigatória; que ela não é mais perfeita, nem
«superior» a qualquer outra cultura criada por outro grupo etnográfico,
porque não existem culturas e povos «superiores» ou «inferiores», mas há
apenas culturas e povos mais ou menos semelhantes uns aos outros; que,
por isso, a assimilação da cultura romano-germânica por um povo que não
participou não é incondicionalmente um bem e não tem qualquer força
moral incondicional; que a assimilação completa, orgânica das culturas
romano-germânicas (como de qualquer cultura alheia em geral), a
assimilação que permite continuar a criar no espírito da mesma cultura
passo-a-passo com os povos que a criam, só é possível se se der a mistura
antropológica com os Romano-germânicos, só apenas através da
assimilação antropológica desse povo pelos Romano-germânicos; que,
nessas condições, esse povo tem de renunciar completamente à criatividade
cultural independente, viver como luz reflectida da Europa, tornar-se um
macaco que imita constantemente os Romano-germânicos; que, por isso,
esse povo irá estar sempre «atrasado» em relação aos Romano-germânicos,
isto é, assimilar e reproduzir diferentes etapas do seu desenvolvimento
cultural sempre com um certo atraso e ver-se, em relação aos «Europeus»
naturais, numa situação desvantajosa, subordinada, numa dependência
material e espiritual deles; que, desse modo, a europeização é um mal
incondicional para qualquer povo que não seja romano-germânico; que
contra esse mal se pode e, por conseguinte, se deve lutar com todas as
forças.
De tudo isso se deve tomar consciência não de forma externa, mas
interna; não só ter consciência, mas sentir, viver, sofrer. É preciso que a
verdade se apresente nua e crua, sem qualquer enfeite, sem restos do grande
logro de que deve ser limpa. É preciso que se torne clara e evidente a
impossibilidade de quaisquer compromissos: a luta é luta.
Tudo isso pressupõe, como já acima dissemos, uma reviravolta total, uma
revolução na psicologia da intelectualidade dos povos não romano-
germânicos. A principal essência dessa reviravolta consiste na tomada de
consciência do que antes parecia incondicional: o bem da «civilização»
europeia. Isso deve ser feito com um radicalismo implacável. É difícil
realizar isso, extremamente difícil, mas, ao mesmo tempo, é
incondicionalmente indispensável.
A reviravolta na consciência da intelectualidade dos povos não romano-
germânicos tornar-se-á inevitavelmente fatal para a causa da europeização
total. Pois, até agora, foi precisamente essa intelectualidade que serviu de
condutor da europeização, foi precisamente ela que, acreditando no
cosmopolitismo e no «bem da civilização» e lamentando o «atraso» e a
«inércia» do seu povo, tentou pôr esse povo em contacto com a cultura
europeia. Destruindo à força as bases da sua cultura própria, original, que se
formaram durante séculos.

Trubetskoi, N.S. A Europa e a Humanidade. Sofia, 1920, p. 2-7, 55, 71-73,


78-81.

Eurasismo: Tentativa de exposição sistemática (1926)

A Ortodoxia não é um dos muitos tipos de credos cristãos iguais.


Semelhante ponto de vista só é possível na base de um Cristianismo extra-
confissional ou supostamente supra-confissional. Mas o Cristianismo extra-
confissional é abstracto e não tem vida; e nem sequer é Cristianismo, em
nada difere da religião «universal», ou seja, do paganismo. A Ortodoxia é a
profissão suprema do Cristianismo, única pelo seu carácter pleno e
imaculado. Fora dela tudo é ou paganismo, ou heresia, ou cisma. Com isto,
porém, não se nega completamente o valor da heterodoxia. Na heterodoxia,
embora herética, no Catolicismo e no Protestantismo, existem aspectos
especiais e, na sua essência, aspectos absolutamente valiosos do
Cristianismo, que são estranhos ao povo ortodoxo, só podendo ser
revelados aos povos romano-germânicos e sendo vitalmente importantes
para eles. Porém, só renunciando à sua heresia, isto é, à permanência
orgulhosa e teimosa na sua unilateralidade e, por conseguinte, ao seu falso
isolamento, só se arrependendo, os católicos e protestantes terão forças para
descobrir plenamente o seu próprio bem, necessário a toda a Igreja de
Cristo, ou seja, para o futuro da Igreja Ortodoxa. E não se pode perder
tempo; se eles não fizerem isso, perecerão no processo de degradação
cultural já iniciado, no positivismo e na cidadania cinzenta, no estéril
espírito revolucionário e no socialismo materialista, da luta contra o que
saímos vencedores… O Ideal da Ortodoxia, na prática, principalmente no
período imperial europeizado da História russa, que continua
frequentemente a ser incompreensível, consiste não na «internacional
religiosa», mas na unidade sinfónica e orgânica, colegial de muitas
confissões, ortodoxas não no sentido de serem gregas ou russas, mas no
sentido de não serem heréticas. Semelhante unidade colegial não nega a
individualidade românica ou germânica e não as deixa fora da Igreja, como
algo inexistente. Pelo contrário, ela exige desses indivíduos a sua auto-
revelação plena e livre na Fé de Cristo e é precisamente assim que
compreende o seu regresso ao seio da Ortodoxia. Existindo, por enquanto,
apenas como russo-grega e principalmente como russa, a Ortodoxia quer
que todo o mundo se torne voluntariamente ortodoxo e que outros aspectos
sinfónico-individuais da Ortodoxia em união com o amor e a liberdade
cristãos se agreguem, de forma colegial ou sinfónica, com a russa, grega e
eslava.
Esta é, no fundo, também a atitude da Ortodoxia para com o paganismo.
O paganismo é uma potencial Ortodoxia. Claro que, no que respeita ao
nível de tomada de consciência das verdades cristãs, o paganismo está
abaixo da heterodoxia e mais longe da Ortodoxia russa. Porém, não sendo
uma renúncia consciente e teimosa da Ortodoxia e uma permanência
orgulhosa na sua separação, o paganismo rende-se de forma mais rápida e
leve aos apelos da Ortodoxia do que o mundo cristão ocidental e não olha
para a Ortodoxia com a mesma hostilidade. Enquanto Cristianismo
potencial, enquanto tomada de consciência confusa e primeira da verdade, o
paganismo, por si só, não se distingue por ser especialmente resistente. Por
outro lado, se nos concentrarmos no paganismo que é etnográfica e
geograficamente próximo da Rússia e faz parte dela, detectamos com
facilidade um certo parentesco, particularmente próximo, entre a sua forma
religiosa primária e precisamente a Ortodoxia russa. Este parentesco
permite supor que o paganismo russo e centro-asiático na sua
cristianização cria formas e aspectos da Ortodoxia mais próximos e
familiares do russo do que do europeu. O facto de «parentesco» já foi há
muito assinalado por observadores russos e estrangeiros. Para esclarecer,
apenas assinalamos a consciência mais viva e profunda do primado da
religião, isto é, da base religiosa de toda a existência, a atitude específica
para com a natureza e o mundo, sendo que a ideia ortodoxa de
transformação do mundo (e não, como no Catolicismo, a substituição de um
por outro) e no reconhecimento da justificação importante deste mundo
criado e admirado por Deus vê-se algo que o precedeu na atitude para com
o mundo entre os budistas. A isto é preciso acrescentar também a chamada
contemplação mística da Ortodoxia, que dá razão para acusações absurdas
contra ela de panteísmo, bem como a especificidade da ética religiosa que,
na Ortodoxia, avança a ideia de auto-sacrifício, de resignação e obediência
à vontade de Deus, no paganismo: a ideia de karma e de destino… O
Budismo, com a maior força no paganismo e, além disso, em tons
semelhantes à Ortodoxia, revela a ideia de expiação e, na sua teoria do
bodisatva antecipa a ideia do Deus-Homem. Mas se o Budismo, com a sua
«contemplação» e «passividade», reflecte uma das facetas da Ortodoxia, o
Islamismo activo, embora de forma não firme, expressa derrogadamente a
acção com vista à transformação do mundo, que, entre o povo russo, toma
muitas vezes a forma dolorosa de desejo de transformar catastroficamente
tudo e de tornar o mundo, rápida e totalmente, perfeito e santo…
As observações citadas são suficientes para falar de um mundo religioso-
cultural que se inclina para a Ortodoxia russa, como para o seu centro.
Nós chamamos-lhe, porque ele está fora da Igreja Ortodoxa, potencialmente
ortodoxo não no sentido em que ele quer, pode e deve ser convertido à
Ortodoxia a partir de fora e à força (o espírito da Ortodoxia recusa qualquer
«obrigado a entrar» e exige liberdade), mas no sentido em que, se ele ansiar
livremente ao auto-desenvolvimento, o seu auto-desenvolvimento livre será
o seu desenvolvimento rumo à Ortodoxia e conduzirá à criação das suas
novas formas específicas… Não propomos à heterodoxia compromissos que
para nós e para ela seriam equivalentes a apostasia, mas nós, dando valor à
sua diversidade e ao seu futuro, deixamos-lhe explicar os factos à sua
maneira, pois acreditamos que ela virá ter connosco, embora agora negue
isso, e que o diálogo no espírito do amor «cristão» mútuo ajudará o seu
autodesenvolvimento. Assim se explica a diferença em relação à Ortodoxia
russa, por um lado, e ao Cristianismo europeu, por outro, do «paganismo».
A futura e a possível Ortodoxia do nosso paganismo é-nos mais familiar e
próxima do que a heterodoxia cristã; e a missão da Ortodoxia em relação à
heterodoxia exige uma grande energia para desmascarar. Assim, no
Cristianismo ocidental, o Catolicismo romano, pelos seus anseios e,
hipoteticamente, pelo seu futuro, encontra-se mais longe de nós do que o
Protestantismo germânico, particularmente a Igreja Protestante e
principalmente o Anglicanismo, que, através da vida monástica gálica
inicial e da igreja «iro-escocesa», está organicamente ligado ao Oriente
cristão. O Catolicismo tornou-se rígido e persistente no seu erro, enquanto o
Protestantismo já atentou contra formas e normas estagnadas e, através da
«negação da negação», avançou, embora pela via de novos erros, para a
verdade, participando do espírito da liberdade religiosa. O Protestantismo
procura e quer aprender e conhecer, ao passo que o Catolicismo pensa que
encontrou a verdade absoluta e que só ele a possui, proibindo os outros de
procurar e pensar. A Ortodoxia Russa, porém, considerando-se detentora da
verdade total num dos seus aspectos, não nega outros aspectos seus
existentes e possíveis, como outras expressões da Ortodoxia, mas quer a
sua auto-revelação livre, para aproximar a sua própria plenitude na
intercomunicação cristã com eles. Aquela não se fecha em si, mas no seu
auto-desenvolvimento apela ao livre auto-desenvolvimento também dos
outros.
Por isso, a única expressão imaculada do Cristianismo é a Igreja
Ortodoxa, que atingiu a sua maior revelação na Igreja russa, que domina
entre as outras Ortodoxias e enfrentou o principal ataque do mal. A tarefa
histórica do povo russo consiste em que ele deve realizar-se na sua Igreja e
deve, desenvolvendo-se nela, ou seja, realizando e conhecendo-a através da
confissão e da auto-revelação, criar a possibilidade de auto-revelação na
Ortodoxia à «estéril igreja pagã» e ao mundo que caiu na heresia…
Empiricamente, a Igreja Ortodoxa Russa é a cultura russa que se torna
Igreja. É este objectivo e as tarefas que dele advêm que determinam a
essência da cultura russa. A Igreja russa, que é o centro da cultura russa, é o
objectivo de toda essa cultura. Ela é o verdadeiro centro de atracção de todo
o mundo potencialmente ortodoxo. E para liquidar quaisquer interpretações
racionalistas simplistas, isto é, para excluir qualquer possibilidade de
presumir um qualquer comportamento forçado de todos sob formas russas
de Ortodoxia, é melhor chamar ao sujeito da cultura que geograficamente é
determinada pelas fronteiras do Estado russo não o nome da Rússia, que
significa apenas o povo dominante e principal e, como tal, continua
plenamente, e nem o nome de Império da Rússia, que significa apenas uma
unidade estatal externa e, além disso, compreendida segundo o modelo
ocidental, embora substancial, mas outro nome novo. A tomada de
consciência de que a unidade religioso-cultural, abarcada e expressa pelo
Estado russo, é mais ampla do que a cultura russa no sentido estreito desta
palavra, deve receber um certo reforço terminológico. É preciso escolher
entre conceitos que já são utilizados: a URSS, quatro letras de pronúncia
difícil, e Eurásia.
Compreendemos a Eurásia como a individualização sinfónico-individual
especial da Igreja Ortodoxa e da cultura. A base da sua unidade e a sua
essência estão na Fé Ortodoxa, que difere da Ortodoxia grega, eslava, etc.,
não no sentido da sua negação, mas no sentido da unidade sinfónica com
elas e da complementação mútua. A Ortodoxia do mundo euroasiático,
venerada por nós como a mais alta expressão actual da Ortodoxia, deve ser
concebida como uma sinfonia ou uma unidade colegial das suas diferentes
concepções. No entanto, até agora existe, clara e realmente, apenas uma
delas; todas as restantes encontram-se num estado potencial, como
diversidades não conscientes e não reveladas e atracções específicas do
mundo euroasiático.
A unidade religiosa da Rússia-Eurásia, no sentido especial da sua
potência religiosa e no sentido da maior realização dessa potência na
Ortodoxia russa, deve expressar-se como cultura sinfónica única, onde o
papel dirigente pertence novamente à cultura propriamente russa. No
fundo, a religião cria e determina a cultura; e a cultura é uma das
manifestações da religião, e vice-versa, como repetem até agora os maus
compêndios. A unidade cultural, por sua vez, manifesta-se também como
unidade etnológica, e à etnologia do todo cultural corresponde a sua
geografia. Depois de determinar uma série dessas correspondências, pode-
se defender a tese de que como a religião cria a cultura, assim a cultura é
um tipo etnológico, e o tipo etnológico escolhe ou encontra o «seu»
território e transforma-o substancialmente à sua maneira. Porém, para nós,
nesta ligação, basta apenas avançar a importância fundamental dessa tese e
afirmar, na prática, apenas a ligação orgânica e não a ligação causal da
cultura, etnografia e geografia, a sua chamada «convergência».
Na época que iniciou juntamente com o período imperial da europeização
brusca da Rússia, a consciência nacional foi sujeita a uma deturpação
radical. A ideia religioso-cultural e nacional de Moscovo enquanto herdeira
do Reino de Bizâncio e, por isso, concentração real do mundo cristão,
enquanto base do Cristianismo na luta contra o paganismo e contra a cultura
europeia ocidental, perdeu precisamente o seu sentido religioso e o seu
fundamento religioso, isto é, absoluto. O seu lugar foi ocupado pela ideia
europeia positivo-política de império e de imperialismo; a tarefa cultural foi
formulada de forma pobre e puramente empírica, como o crescimento do
território estatal e do poder estatal. Isso aconteceu no momento em que a
luta contra o Oriente foi substituída pelo alargamento imparável e
relativamente pacífico da Rússia para o Oriente e quando na sua defesa em
relação ao Islão, que ainda era activo, mas já tinha perdido o seu fervor
religioso, o Império Russo se tornou num inesperado aliado do inimigo de
ontem: da Europa. A anterior linha divisória entre as culturas russa e
asiático-pagã deixou de se sentir porque simplesmente desapareceu; as
fronteiras do Estado russo, de forma indolor e despercebida, quase
coincidiam com o Império Mongol e deixou de ser preciso defender-se de
quem quer que seja desse lado. Devido ao declínio religioso da Turquia e
sob a influência da Europa, a luta contra os Turcos era vista de forma nova:
nas categorias da política europeia e no sistema dessa política. Por outro
lado, a viragem triunfante da Rússia para a Europa e calmaria por ela
provocada na ofensiva da Europa contra a Rússia, tal como o processo da
própria europeização, encobriram o antagonismo original e contribuíram
para a opacidade da consciência nacional. Perdia-se a consciência também
da fronteira ocidental. E assim o problema da consciência nacional russa foi
colocado em toda a sua amplitude, em toda a sua diversidade, que era
estranha a qualquer um dos povos europeus que se destacavam com
fronteiras próximas e definidas. Não dando conta do seu alargamento fácil,
mas orgânico na Ásia, não se aprofundando na sua própria essência, a
Rússia, na pessoa da sua classe dirigente europeizada, começou a
considerar-se parte da Europa. Os Russos orgulhavam-se não do que eram,
mas por se quererem tornar um posto avançado da Europa e da cultura
europeia na luta contra outras culturas, incluindo contra a sua própria.
Passaram a ter vergonha do que é seu como se fosse algo bárbaro. É
verdade que não podiam negar o facto do poderio russo, bem como não
podiam recalcar dentro de si próprios a força da consciência nacional; além
disso, a consciência nacional estava também entre as categorias da cultura
europeia. E em substituição da velha ideologia de Moscovo, cria-se,
segundo o modelo europeu, uma genealogia nova, falsamente clássica e
romântica da cultura russa, para o que contribuem os restos da velha visão
do mundo religioso e o facto da Igreja Ortodoxa. Constata-se que a base da
cultura russa – a cultura grã-russa – está ligada com o eslavismo (da palavra
slava – glória), a favor do que testemunha, claro está, a língua (embora
ninguém, por exemplo, considere os Judeus aramaicos, alemães ou
espanhóis), mas o que é totalmente injusto em relação ao sangue finlandês e
turano em geral. A falta de clareza era tão grande que até o despertar da
consciência nacional russa arrastou parte para caminhos errados e recebeu o
nome de «eslavofilismo». Apenas K. Leontiev ousou formular as
conclusões da sua rica e não tendenciosa experiência e manifestar-se
corajosamente contra a diluição da cultura russa no pan-eslavismo abstracto
e romântico. Mas ninguém prestou atenção às suas palavras, bem como às
impressões, frequentemente até superficiais, mas não tendenciosas, dos
estrangeiros. Estes não misturam a cultura russa nem com a europeia, nem
como o eslavismo. Eles olham para Moscovo, para a vida russa, a arte
russa, o modo psíquico russo como para a «Ásia», embora, claro, distingam
esta «Ásia» da Índia ou da China. Para os Iranianos, os Russos são os
herdeiros do Turan…
Os eslavófilos têm razão quando ligam o problema da cultura com a
religião e a cultura russa com os destinos da Ortodoxia. Mas, precisamente
deste ponto de vista, é preciso englobar na cultura europeia não só os
Polacos, mas também os Checos e toda a heterodoxia eslava. Mais, deve
colocar-se a pergunta: até que ponto é que a Ortodoxia dos eslavos
meridionais é a essência e a força motriz da sua cultura e até que ponto o
seu passado morreu? Finalmente, em todo o caso, não há razões para se
falar de um mundo eslavo-russo enquanto um todo cultural, mas, no
máximo, de ilhas de cultura eslava, nossa parente no mar da cultura
europeia. Os eslavófilos combinavam com a ideia religiosa – e de forma um
tanto externa – a ideia do parentesco étnico. Esse parentesco não era tão
grande como lhes parecia a eles e aos seus antecessores pseudo-clássicos.
No que respeita ao sangue e tipo étnico, são-nos mais próximos os Búlgaros
do que os Sérvios, e nós próprios, ou seja, os nossos povos dominantes, que
fazem parte etnologicamente dos Eslavos com grande esforço. É preciso ter
consciência do facto: nós não somos eslavos e não somos turanos (embora
entre os nossos antepassados biológicos haja uns e outros), mas russos. Se
compararmos etnologicamente os povos que habitam o território da Rússia,
poderemos fazer uma fila, no meio da qual estarão os Grão-russos e entre os
dois membros seguintes a transição será imperceptível. Devemos constatar
um tipo étnico particular, que na periferia se aproxima tanto do asiático
como do europeu e, nomeadamente, claro está, é mais eslavo, mas
distingue-se deles de forma mais marcada do que se distinguem entre si
alguns representantes seus «vizinhos» na nossa fila. A unidade étnica do
território russo torna-se ainda mais evidente quando nos concentramos nas
formas de vida, nas tendências fundamentais da arte popular e
particularmente no modo psíquico típico. Mas é visível mesmo nos dados
de linguística comparativa, que permite captar uma certa potência comum
na estrutura de línguas da Rússia que se encontram distantes umas das
outras quanto à sua origem.
Seria muito mau se tentássemos contrapor à identificação unilateral da
cultura russa com a eslava ou a eslavo-grega a identificação tão unilateral
dela com a turana. Então, ficaríamos ao mesmo nível dos nossos
adversários: em baixo. Apenas como crítica e para mostrar a sua
unilateralidade faz sentido falar do «elemento turano» na literatura russa,
mas não pela sua interpretação substancial. O mesmo se pode dizer sobre o
elemento eslavo, iraniano, até sobre o elemento europeu, embora seja, na
prática, mais necessário falar do turano. A cultura da Rússia não é nem uma
cultura europeia, nem uma cultura asiática, nem a soma ou a combinação
mecânica de elementos de uma e de outras. Ela é completamente especial,
uma cultura específica que não possui menos valor próprio ou importância
histórica do que a europeia e asiáticas. É preciso contrapô-la às culturas da
Europa e da Ásia, como cultura do meio, euroasiática. Este termo não nega
ao povo russo a importância primordial nela, mas liberta de uma série de
associações falsas, revelando, ao mesmo tempo, a semente da verdade
contida no eslavofilismo inicial e sufocada pelo seu posterior
desenvolvimento. Nós devemos ter consciência de que somos euroasiáticos
para ter consciência de que somos russos. Tendo derrubado o jugo tártaro,
devemos derrubar também o jugo europeu…
Nós temos consciência e proclamamos a existência de uma cultura
euroasiática-russa particular e do seu sujeito particular, como de uma
personalidade sinfónica. Já não nos basta a auto-consciência cultural
confusa dos eslavófilos, embora os veneremos como sendo os mais
próximos de nós quanto ao espírito. Mas decididamente recusamos a
essência do ocidentalismo, isto é, a negação da individualidade e, no fim de
contas, da própria existência da nossa cultura. Temos vergonha pelos
russos que passam a saber da existência da cultura russa através do alemão
Spengler. Pondo de lado as pérfidas tentativas do espírito ocidentalista, que
infectou também os eslavófilos, de diluir o problema da cultura
euroasiática-russa numa doutrina superficial sobre o parentesco tribal, nós
sublinhamos polemicamente os «elementos turânicos» e, ao negar a
abordagem mecânica pseudo-científica face à questão, avançamos a
unidade e a orgânica, a integridade da cultura, a sua qualidade individual…
A integridade e a definição da cultura russo-euroasiática está ligada à sua
denominação – euroasiática –, tendo-se já há muito afirmado na ciência e
que significa a Europa e a Ásia como um continente; o termo adquire um
significado mais estreito e preciso. No velho sentido da palavra, a Eurásia já
não se divide em Europa e Ásia, mas em 1) continente do meio ou
propriamente a Eurásia e dois mundos periféricos; 2) o asiático (China,
Índia e Irão) e 3) o europeu que faz fronteira com a Eurásia
aproximadamente pela linha dos rios Neman/Bug Ocidental/San/Foz do
Danúbio. Esta última fronteira é também a linha divisória de duas ondas
colonizadoras, que vão uma para o Oriente, outra para o Ocidente e
chocam-se nas costas do mar de Bering. Desse modo, em geral, com
desvios em ambos os sentidos, as fronteiras da Eurásia coincidem com as
fronteiras do Império Russo, cuja «naturalidade» foi recentemente
testemunhada pelo facto de elas se terem mais ou menos restabelecido, não
obstante nos abalos terríveis da guerra e das revoluções. Sendo uma parte
especial da Terra, um continente particular, a Eurásia caracteriza-se como
algum todo fechado e típico, tanto do ponto de vista do clima, como do
ponto de vista de outras condições geográficas. Limitada a Norte por uma
faixa de tundra, no Sul é cercada por cadeias montanhosas e apenas entra
um pouco em contacto com o oceano, que lhe dá acesso livre aos mares.
Isso e a sua grandeza determinam também as suas possibilidades
económicas. Para a Eurásia está excluída a participação activa na economia
oceânica, característica da Europa. Porém, as riquezas naturais da Eurásia e
a sua distribuição abrem-lhe caminho para a auto-suficiência económica e
transformam-na numa espécie de continente-oceano. A unidade deste
continente-oceano distingue-se por numerosos traços originais que
correspondem ao tipo étnico do euroasiática e claramente exerceram
influência na história da Eurásia. Enquanto quase todos os seus rios correm
meridionalmente, uma faixa contínua de estepes, não transponível devido a
obstáculos naturais que só podem ser superados com dificuldades, corta e
une-a do Ocidente para Oriente. A faixa de estepes é a coluna vertebral da
sua história. O unificador da Eurásia não podia ser um Estado nascido e
situado numa ou noutra margem das bacias dos seus rios, embora fossem
precisamente as vias fluviais que contribuíram para que nelas a cultura da
Eurásia atingisse o seu mais alto nível de desenvolvimento. Qualquer
Estado raro encontrava-se sempre sob a ameaça por parte da estepe que o
separava. Pelo contrário, o que dominava a estepe tornava-se facilmente o
unificador político de toda a Eurásia. E ligado com a estepe está o facto de a
unidade da Eurásia possuir uma força incomparavelmente maior e, por
conseguinte, um maior desejo de se revelar exteriormente do que a unidade
de outros continentes. Claro que a estepe como tal faz-se mais sentir no
passado da Eurásia. Mas, primeiro, o presente é determinado pelo passado
e, segundo, aqui o império mostrou-se à altura da tarefa histórica russa: ao
construir a grande via siberiana, ele transpôs a ideia da estepe para as
condições da actual vida política e económica. A natureza da Eurásia
encontrou e exprimiu-se numa situação completamente nova.
As condições naturais da Eurásia plana, o seu solo e principalmente a sua
faixa de estepes, através da qual se disseminou o povo russo, determinam os
processos económico-sociais da cultura euroasiática e, nomeadamente, os
movimentos colonizadores dela característicos, onde o elemento nómada
original ganha forma. Tudo isso nos faz voltar aos traços fundamentais do
modo psíquico euroasiática: à criação da orgânica da vida sócio-política e
da sua ligação com a natureza, à dimensão «continental», à «amplitude
russa» e a um certo convencionalismo de formas historicamente
estabelecidas, a uma autoconsciência nacional «continental»no infinito, que
para o ponto de vista europeizado parece frequentemente falta de
patriotismo, isto é, de patriotismo europeu. O tradicionalismo euroasiático é
completamente especial. Ele é fiel ao seu elemento e a tendência
fundamentais, à fé indestrutível na sua força e na vitória final. Permite as
mais arriscadas experiências e explosões tempestuosas do elemento, onde
por detrás do paleio vazio da fraseologia revolucionária se sentem velhos
instintos nómadas, e não se liga, como no Ocidente, não se identifica com a
sua forma externa. Para ele tem valor só a forma viva e absolutamente
significativa. Existirão semelhantes formas fora da verdadeira religião? E
não sabe o euroasiático, por experiência do seu continente sem limites, que
a variedade é o verdadeiramente valioso nas suas formas e que, por detrás
de qualquer forma viva se esconde algo verdadeiro e importante? O
euroasiático também dá valor à tradição, como o seu parente turano,
determinado e primitivo, sente agudamente a sua relatividade e odeia as
suas fronteiras despóticas como outro seu parente próprio: o iraniano…
Desse modo, a Eurásia apresenta-se perante nós como um mundo cultural
especial dirigido pela Rússia, uno interna e fortemente no infinito e,
frequentemente, pelos vistos, contraditório na variedade das suas
manifestações. A Eurásia-Rússia é uma cultura-individualidade diversa em
desenvolvimento. Esta, tal como outras unidades culturais multifacetadas,
individualiza a humanidade, sendo a sua unidade na inter-relação com elas
e, por isso, ao realizar-se, concretiza a sua missão «histórica» universal.
Mas pretende ainda que – e acredita nisso – a ela, na nossa época, lhe
pertence o papel dirigente e primeiro entre as culturas humanas. Acredita
nisso, manifestando, a despeito das aparências, a sua fé em sonhos ingénuos
e ainda infantis sobre si como sobre uma «terceira Roma» e na algaravia
abstracta da «terceira internacional». Mas a mesma só pode fundamentar a
sua fé religiosamente. Como individuação da cultura universal, que como
abstracta e obrigatoriamente comum não existe, a cultura euroasiática está
ligada, claro, a outras. Mas são-lhe mais próximas e parentes as culturas
asiáticas. Ela sente-se em casa na Ásia. E para o seu futuro é necessário
completar e terminar a obra iniciada por Pedro, isto é, depois de uma
viragem tacticamente necessária para a Europa, realizar uma viragem
orgânica para a Ásia.
As acusações e auto-acusações aos Russos de não-Estado, isto é, de
fraqueza da sua unidade estatal, não só contradizem os factos – toda a
história anterior da Rússia e a solidez do seu Estado – como deixaram
passar ao lado a incomensurabilidade total das envergaduras do russo e do
europeu. Elas baseiam-se na confusão de dois conceitos diferentes: da
unidade cultural-continental e da unidade nacional-estatal. Não se pode
comparar a Rússia-Eurásia com a França, a Alemanha ou com outros
Estados europeus. É preciso fazer uma analogia entre a Rússia e o império
de Napoleão e, neste caso, detecta-se imediatamente a grande solidez, a
orgânica e a realidade da unidade da Eurásia. Algo semelhante à Rússia é
o império colonial de Inglaterra, mas esse império abrange apenas parte do
mundo anglo-saxónico. A Ásia está unida ainda menos do que a Europa,
dividida em três centros de atracção: chinês e budisto-confuciano, indiano e
budisto-brahmanista e iraniano ou islâmico.
A Europa é uma unidade cultural forte e longa apenas como Europa
católico-romana. Mas ao universalismo românico contrapõe-se, desde
tempos imemoriais, o elemento germano-protestante, que o romanismo não
soube digerir e diluir em si até ao fim, embora tenha distorcido e limitado o
seu desenvolvimento. Depois da queda do Ocidente na heresia e na cisão, e,
devido a isso, ele passou para a fase da decomposição primeira e potencial
da unidade da sua cultura, o que, claro está, não a impediu de revelar,
embora em declínio, a sua natureza. Ao afastar-se lentamente da base
absoluta, religiosa da sua cultura, isto é, ao secularizar-se, o Ocidente
compreendeu cada vez mais a sua unidade como «laica» ou cultura sem
religião. Da tentativa de união na monarquia semi-religiosa de Carlos
Magno, ele passou para a cisão na Igreja Católica leiga e para o pseudo-
religioso Santo Império do Povo Germano, que imperceptivelmente
terminou a sua vida com a morte da Áustria. A última explosão
espasmódico-encantadora, o império de Napoleão, conduziu à comédia da
Santa Aliança e à farsa da Liga das Nações. E é bastante sintomático que a
unidade do mundo europeu é pensada por ele de forma positivisto-
racionalista, como algo abstracto e que não contém em si a plenitude da
diversidade nacional (porque não separar os alemães austríacos dos
imperiais e não pulverizar os Polacos com os mesmos alemães ou russos?),
que não exclui os povos de outras culturas (porque não deixar na Sociedade
das Nações um lugar para a Turquia e não incluir nela o Japão?). No
Ocidente, o universalismo abstracto é igualmente próprio da concepção
religiosa do Catolicismo e da concepção positivista da Internacional
Socialista. Para ambas, a existência e a cultura nacionais parecem apenas
obstáculos, algo baixos e, no melhor dos casos, toleráveis. Mas isso
significa que a unidade da cultura ocidental em formas concretas não é
realizável e que, no Ocidente, existem a França, a Alemanha, a Itália, mas a
Europa perdeu-se.
Historicamente, os primeiros indícios da unidade cultural euroasiática
devem ser procurados não na Rus de Kiev, que foi apenas o berço do futuro
povo dirigente da Eurásia e o lugar onde nasceu a Ortodoxia russa, nem no
Reino de Khazar, claro, e nem mesmo na Rus de Nordeste. Pela primeira
vez, o mundo cultural euroasiático apresentou-se como um todo no império
de Gengis Khan, sendo verdade que rapidamente transbordou para além dos
limites geográficos da Eurásia. Os Mongóis formularam a tarefa histórica
da Eurásia, tendo dado início à sua unidade política e às bases da sua
organização política. Eles orientaram para essa tarefa os Estados nacionais
euroasiáticos, antes de tudo e principalmente, o Estado de Moscovo. Este
Estado, que organicamente nasceu da Rus de Nordeste e que, ainda antes da
sua formação definitiva, decidiu, na pessoa de Alexandre Nevski, à custa do
jugo tártaro, preferir a fidelidade à sua original Ortodoxia do que a
catolização, passou a ocupar o lugar dos Mongóis e chamou a si a herança
cultural-política deles. Transformando-se num Estado de Moscovo
nacional, reunindo as terras russas e tornando-se russa, Moscovo era a nova
unificadora do mundo euroasiático. Moscovo canalizou as suas forças para
o seu verdadeiro centro, para o qual era conscientemente atraído e onde
encontrou a sua expressão ideológica clara e indubitável, ou seja, a
justificação religiosa. A Eurásia viu-se perante a sua auto-revelação e
perante a sua missão histórica.
Porém, o desenvolvimento foi mais vagaroso e doloroso do que o que se
esperava. Formalmente, o império continuava a causa de Moscovo em
algumas direcções fulcrais. O império quase terminou a união estatal do
continente euroasiático e, depois de o defender das incursões da Europa,
criou fortes tradições políticas. Mas a essência da ideia russo-eurasista
continuou no inconsciente e foi até deturpada; verdade seja dita, na camada
dirigente que foi chamada a realizá-la.
A camada dirigente (Governo e intelectualidade) pagou caro pela ciência
que aprendeu com a Europa, indispensável para a própria existência da
Rússia, porque a Europa ia tecnicamente à sua frente e ameaçava-a. Esta
camada europeizou-se de tal modo que quase perdeu a sua alma russa, sem
adquirir também a europeia. Conservou qualidades russas e até parte dos
talentos russos frequentemente específicos, mas sem a ideia russa que os
organizasse. Enquanto princípio da cultura russo-euroasiática, a Ortodoxia
foi substituída por uma religião ineficiente, cinzenta e alegadamente cristã
universal, e até por uma religião universal, ou pela indiferença religiosa
europeia, ou mesmo pelo sectarismo racionalista europeu, por uma religião
da humanidade e do socialismo. Em semelhantes condições, a classe
dirigente nem sequer teve forças para justificar a ideia euroasiático-russa
para si. E também não soube compreendê-la devidamente: via a Rússia-
Eurásia como uma parte culturalmente atrasada da Europa e, tendo
dolorosamente vergonha e duvidando eternamente, tentava de todas as
formas provar a si e aos Europeus a sua «cultura» e propunha à Europa os
seus serviços prejudiciais ou desnecessários para a Rússia. Claro que entre a
classe dirigente e as massas populares criou-se, inicialmente, uma
incompreensão mútua, mas, depois, abriu-se um precipício intransponível.
Ela afastou-se do povo que a criou, passou a ter uma atitude hostil para com
ele, embora a intelectualidade se tivesse considerado durante muito tempo
amiga do povo, e, tendo deixado de se alimentar das seivas populares
saudáveis, começou a secar ou a decompor-se. Mas também aqui se
manifestou a força impressionante da unidade política. Esta manteve-se a
despeito da incompetência total dos dirigentes. Não foi destruída nem pela
guerra, nem pelas experiências criminosas realizadas pelos descendentes do
grande Pedro, inicialmente por intelectuais cobardes e fracos, depois por
voluntariosos intelectuais fanáticos e ultra-europeus. A Rússia-Eurásia não
sai das incríveis convulsões nem abalada e sem forças, nem cansada, mas
renovada e cheia de forças que vêm à superfície. Isto significa alguma
coisa.

Manifesto do Eurasismo (Tentativa de exposição sistemática). 1926,


p. 18-23, 26-39
Nome: Vernadski, Gueorgui

Data e local de nascimento e de morte: 20 de Agosto de 1887, São


Petersburgo, Império Russo-12 de Junho de 1973, EUA

Breve resenha biográfica: Historiador, filho do célebre académico na


área das Ciências Naturais, Vladimir Vernadski, fez os seus estudos em
Moscovo até 1905, altura em que emigrou para a Alemanha. Em 1906,
regressa à pátria e, em 1910, termina os estudos na Faculdade de Filologia e
História da Universidade de Moscovo. Terminado o ensino superior e
continuando a sua formação académica, Gueorgui Vernadski leccionou em
diversas instituições de ensino superior russos e soviéticos. Em 1920, volta
a deixar a URSS, passando a dar aulas em diversas cidades europeias, como
Constantinopla, Atenas e Praga. Por fim, fixou residência nos EUA, onde
leccionou em universidades como Yale, Harvard ou Columbia, sendo
reconhecido, no Ocidente, enquanto reputado especialista da História da
Rússia.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: No que
concerne à formação nacional, sobretudo à história russa, Gueorgui
Vernadski colocou na base a interação de factores naturais e sociais. Na
óptica deste historiador, a particularidade do desenvolvimento do povo
russo pode ser explicada por dois grupos de questões, nomeadamente a
influência externa dos factores naturais e geográficos sobre a sociedade e o
desenvolvimento interno do organismo social.
Gueorgui Vernadski defendeu que o processo de nascimento da Rússia
euroasiática é a história do aparecimento da tipologia histórico-cultural
eurasista. Assim, a Rússia nasce da luta entre as raízes euroasiáticas, «a
estepe», que é cercada pelos elementos europeus estranhos «da floresta».
Durante a ocupação mongol, a «estepe» ganhou à «floresta», mas no século
XV, a Moscóvia vingou-se e este segundo elemento terá conquistado a sua
supremacia e traçado o caminho da europeização da Rússia. No âmbito da
doutrina eurasista, Vernadski sublinhou a influência oriental sobre a cultura
russa, conferindo especial destaque à ocupação mongol, nomeadamente
devido à criação do sentido de Estado, da identidade nacional, da limitação
da influência ocidental e da formação da tradição cultural própria. Assim,
de acordo com Vernadski, tanto as raízes espirituais como bizantinas e
históricas da Rússia são externas, uma miscelânea sociocultural do mundo
eslavo e tártaro-mongol.
Será de referir que, para Vernadski, o conceito de Eurásia não conciliava
a complexidade da Europa e da Ásia, mas referia-se exactamente ao espaço
continental do centro, um mundo que se distinguia tanto da Europa como da
Ásia. Só neste contexto é compreensível toda a particularidade da história
russa.
Ensaio sobre a história da Eurásia (1934)

No longo processo do seu desenvolvimento histórico, o povo russo


explorou e uniu o território da Eurásia no sentido político, económico e
cultural, inicialmente sob a forma do Império Russo e, depois, sob a forma
de União Soviética. Por conseguinte, os destinos da Eurásia estão agora
estreitamente ligados ao destino da tribo russa. Não obstante, também agora
o conceito de história da Eurásia não coincide completamente com o
conceito de história russa, porque, actualmente, além do povo russo, na
Eurásia vivem outros povos cujo desenvolvimento está estreitamente ligado
ao desenvolvimento do povo russo, mas alguns não são idênticos ao povo
russo. Ainda mais evidente foi assim nos séculos passados, quando as
correlações culturais e políticas mútuas dos povos da Eurásia se
diferenciavam do presente; quando o povo russo ocupava apenas parte do
território da Eurásia, enquanto a primazia política na Eurásia pertencia aos
povos turco-mongóis.
A história russa é a história do povo russo no quadro da Eurásia, que o
povo russo explora gradualmente.
A história da Eurásia é a história de uma comunidade de diferentes povos
com base na topogénese eurasista21, nas atracções e afastamentos entre eles
e nas suas relações separadas com os povos e as culturas externas (fora da
Eurásia).
A história russa e a história da Eurásia devem completar-se mutuamente,
mas ambas têm o mesmo direito de existir. É indispensável falar disto
porque há uma significativa confusão de conceitos sobre esta questão. Por
um lado, alguns representantes da historiografia russa estrangeira (A.A.
Kizevetter) receberam de forma extremamente hostil o próprio termo
Eurásia. Por outro lado, a historiografia marxista na Rússia nega ao objecto
da história russa o direito à existência. «O termo história russa é um termo
contra-revolucionário, uma edição com bandeira tricolor» (M.N.
Pokrovski). A Primeira Conferência Nacional de Historiadores Marxistas da
Rússia (finais de Dezembro de 1928-início de Janeiro de 1929) recusou
determinadamente o termo «história russa» e propôs a sua substituição pelo
termo «história dos povos da URSS».
O conteúdo concreto do termo «história dos povos da URSS» não pode
ser considerado suficientemente elaborado na historiografia marxista.
Segundo os próprios historiadores soviéticos, diferentes representantes da
historiografia marxista utilizam esse termo de forma diversa; por vezes,
substituem-no mecanicamente pelo conceito de «história russa», às vezes
subentendem por ele apenas a histórias das «minorias nacionais», ou seja,
dos antigos inororodtsi.22
Porém, a historiografia soviética, na pessoa dos seus dirigentes, começa a
tomar consciência de que nem uma nem outra concepção englobada no
termo «História dos povos da URSS» corresponde à necessidade premente
de revisão dos anteriores pontos de vista face ao processo histórico.
Gradualmente, na historiografia soviética ganha terreno a consciência de
que a «história dos povos da URSS» deve ser vista como algo complexo,
unido pela projecção da futura unidade cultural-histórica.
A história dos povos da URSS, analisada do ponto de vista dessa unidade
cultural-histórica como a história de uma complexa biocenose de
sociedades humanas com base na unidade de uma topogénese una, é
precisamente aquilo a que chamamos história da Eurásia.
O termo História da Eurásia parece-nos preferível ao termo história dos
povos da URSS porque sublinha a unidade e a concentração do processo
histórico, enquanto o termo história dos povos pressupõe o estudo da
história de cada povo local e separadamente.
Deve-se também ter em conta que a história do todo não exclui a história
das partes desse todo. Do nosso ponto de vista, há e pode haver a história da
Eurásia (como conjunto dos povos euroasiáticos ou povos da URSS), mas,
paralelamente, há e pode haver a história dos vários povos da Eurásia, ou
dos povos da URSS.
A fim de evitar mal-entendidos, nós preferimos empregar o termo
«história da Eurásia» ao falar da história do todo, isto é, de toda a biocenose
dos povos euroasiáticos, o que, claro está, não nega a possibilidade de
estudo dos vários povos da Eurásia – ou da URSS –, sejam «minorias
nacionais» ou povo predominante. Deste ponto de vista, é estranho negar o
direito de existência à ciência da história do povo russo, como faz a actual
historiografia marxista.
Façamos agora um balanço deste estudo prévio dos conceitos.
A história da Eurásia é a história do conjunto de povos da Eurásia.
A história russa é uma parte da história dos vários povos eurásios – ou
dos povos da URSS –, sendo que a história russa, quisesse ou não, devia
incluir no seu campo de visão uma região geopoliticamente cada vez maior
à medida que o povo russo, no seu desenvolvimento histórico, abarcava
uma parte cada vez maior da topogénese eurásia…
A população da Eurásia no conjunto dos povos que a constituem e na sua
biocenose é o criador e o principal actor da história da Eurásia.
A topogénese histórica dos povos e da Eurásia no seu conjunto é a mesma
da do povo russo. Mas se, para o povo russo, a Eurásia em geral é, na Idade
Média, uma topogénese apenas potencial, e se praticamente a história dita
russa até meados do século XVI desenrola-se principalmente no quadro da
Eurásia Ocidental («Europa do Leste»), aquando do estudo da história da
Eurásia desde os tempos mais antigos, toda a Eurásia em geral é a base
geográfica.
Na história da Eurásia, o estudo da correlação do povo e do território é
uma tarefa bem mais complexa do que no estudo da História da Rússia.
Deve ter-se em consideração a pressão e a resistência que os vários povos
da Eurásia exerceram uns sobre os outros, bem como o nível de
envolvimento de cada um deles na rotação complexa da vida cultural,
política e económica euroasiática, existindo, por um lado, contradições
complexas de classes e de grupos e, por outro lado, forças centrípetas e
formadoras de culturas.
No que respeita à topogénese da história euroasiática, isto é, da Eurásia
como conceito geográfico, aqui encaminhamos o leitor para a introdução do
livro O Traçado da História Russa, bem como para os livros de P.N.
Savitski, onde o conceito de Eurásia foi multilateralmente fundamentado.
No que respeita à população da Eurásia, antes de se falar dos seus povos
como um todo, é necessário olhar para os mesmos individualmente,
dividindo o todo em partes.
Aqui é mais confortável partir da actual situação, tomando como base a
constituição étnica da União Soviética. Claro que não é necessário
enumerar todas as várias nacionalidades (que na União Soviética são 185).
Limitamo-nos apenas aos grandes grupos.
O grupo maior é o povo russo (ou a família russa de povos: Grão-russos,
Ucranianos, Bielorrussos). De toda a população da União Soviética, com
147 milhões de pessoas (segundo o censo de 1926), cerca de 114 milhões de
pessoas pertencem à tribo russa (nomeadamente os Russos propriamente
dito, ou Grão-russos: 78 milhões; Ucranianos: 31 milhões; Bielorrussos: até
cinco milhões). Além disso, deve acrescentar-se mais de oito milhões de
ucranianos que vivem fora da União Soviética (na Polónia, na Roménia, na
Checoslováquia), mais de três milhões de bielorrussos no território da
Polónia e cerca de 300 000 grão-russos na Letónia e na Estónia. O total da
família russa no território da União Soviética e adjacentes é, por
conseguinte, de mais de 125 milhões.
Os povos turcos ocupam o segundo lugar depois dos russos: mais de 15
milhões no território da União Soviética. Entre eles, os grupos mais
significativos são os seguintes: Cazaques (Quirguizes) juntamente com os
Karaquirguizes são até cinco milhões de pessoas; Tártaros (do Volga e da
Crimeia): 3 milhões; Bachquires: menos de um milhão; turcos azeris: até
dois milhões; turcomanos: menos de um milhão; uzbeques: quatro milhões;
iakutes: um quarto de milhão; chuvaches: mais de um milhão.
O grupo mongol no interior da União Soviética (buriatas e kalmiques)
não é particularmente numeroso, constituindo menos de meio milhão. No
território da Mongólia Exterior, adjacente à URSS, vive cerca de um milhão
de mongóis.
Entre o grupo ugro-fínico estão os careles (um quarto de milhão),
mordvinos (1,5 milhões), maris ou tcheremissis (meio milhão), votiatki
(meio milhão), komis ou zyriani (um quarto de milhão) e outros, cerca de
3,5 milhões.
No total, o número de povos do chamado grupo dos Urais-Altai (turcos,
mongóis, finlandeses) é de cerca de 20 milhões na União Soviética.
Recordamos aqui também o grupo tungusso-manchure. Os tungus,
actualmente, são apenas 40 000. Porém, não nos devemos esquecer de que
se trata do resto de um povo que, outrora, desempenhou um papel bastante
significativo na Eurásia.
Dos povos indo-iranianos devem assinalar-se os tadjiques (até um
milhão) e os ossetas (mais de um quarto de milhão).
No que respeita aos povos do grupo ocidental da família indo-europeia
dos povos, entre os Eslavos (além dos russos) os mais numerosos são os
polacos (três quartos de milhão). Os Alemães, cuja massa principal emigrou
para a Rússia nos séculos XVII-XIX, constituem cerca de 1,25 milhões.
Colocamos à parte os jafetitas caucasianos (os arménios são mais do que
1,5 milhões, os georgianos são cerca de 1,5 milhões), onde incluiremos
também a maioria dos montanheses do Cáucaso (cherquesses, cabardinos:
140 000; chechenos: 320 000; avaros: 160 000, e muitas outras tribos e
povos do Cáucaso montanhoso).
Finalmente, deve ter-se em conta que, na União Soviética, vivem mais de
2,5 milhões de judeus.
De todos os povos, os turco-mongóis, inicialmente, e os russos, depois,
desempenharam o papel dirigente. No Médio Oriente (no Turquestão), os
Indo-iranianos tiveram grande importância. No Cáucaso Montanhoso e na
Transcaucásia, os Jafetitas eram a população autóctone.
Actualmente, os Russos espalharam-se praticamente por quase todo o
território da Eurásia, predominando numericamente entre os povos
euroasiáticos. Na Idade Média, a situação era diferente. A maioria dos
territórios da Eurásia era povoada por povos turco-mongóis. Segundo
cálculos aproximados, pode pensar-se que, nos séculos XIII-XIV, o número
de tribos turco-mongóis no território da Eurásia (cerca de dez milhões de
pessoas) correspondia, mais ou menos, ao número do povo russo, que então
ocupava apenas parte da Eurásia Ocidental.
A diversidade da população da Eurásia quanto à constituição étnica e à
língua aumentou durante o processo histórico, também pela grande
variedade de culturas dos diferentes povos ou grupos de povos da Eurásia.
Em relação à economia, uns povos da Eurásia dedicavam-se
principalmente à criação de gado (turco-mongóis), outros à caça florestal
(ugro-fínicos) e os terceiros à agricultura e comércio (russos, indo-
iranianos). Quanto ao sistema social e político, também desde a Idade
Média havia uma diversidade significativa. Podemos recordar diferentes
formas de vida tribal e patrimonial («feudal») entre os nómadas turco-
mongóis, sistema de património fundiário nas organizações estatais russas e
indo-iranianas; o regime democrático das repúblicas russas antigas e das
tropas cossacas; Estados esclavagistas do Médio Oriente; formas estatais de
servidão fundiária, que predominaram durante muito tempo na Rússia.
Também em relação às crenças religiosas, desde tempos antigos, os povos
distinguem-se muito entre si. Desde a revolução russa que não há dados
precisos sobre a pertença dos vários grupos da população da Eurásia a uma
ou a outra igreja. Segundo dados do início do século XIX, a maioria do povo
russo era cristã, a religião normal das tribos turcas era o Islão e o Budismo
dos mongóis. Semelhante delimitação das religiões consoante a constituição
étnica da população não teve origem na Eurásia, mas foi o resultado de um
longo processo histórico. Em todo o caso, é claro que a pertença a
diferentes religiões aumentou ainda mais as discórdias entre os povos da
Eurásia.
No que respeita à arte, à ciência, à literatura – tudo aquilo que juntamente
com a fé religiosa normalmente é abrangido pelo nome de cultura espiritual
–, havia igualmente uma diversidade significativa entre os povos da
Eurásia.
Não obstante todos os afastamentos mútuos dos povos da Eurásia, agiam
também forças de atracção mútua entre eles.
A criação de alguns traços comuns aos povos da Eurásia foi o resultado
de uma longa simbiose histórica…
Graças à unidade do rosto geográfico da Eurásia e à existência de factores
económicos unificadores, na história das formações políticas no território
da Eurásia manifestou-se constantemente o desejo, da parte dos povos
euroasiáticos, de criação de um Estado uno que unisse toda a Eurásia ou
parcela significativa dela.
Logo que essa união era conseguida, tinha de enfrentar a influência
desintegradora das forças centrífugas: políticas, étnicas, psicológicas.
Frequentemente, o factor unificador económico não era suficientemente
forte e, em relação ao factor geográfico, faziam-se sentir as particularidades
locais do relevo, das zonas de vegetação ou da hidrografia, que serviam de
fundo à unidade geográfica geral da Eurásia.
Graças à predominância ora de forças centrífugas, ora de forças
centrípetas, o processo de criação e de vida das formações estatais no
território da Eurásia adquiriu um carácter de ritmo periódico…
Tal como na história russa, as influências variadas culturais-políticas do
exterior desempenharam um papel significativo, também na história da
Eurásia essas influências devem ser levadas em conta e, claro, são muito
mais variadas do que na história propriamente russa.
As influências culturais mútuas dos diversos países e povos ocorrem
normalmente através do comércio internacional. Atrás do mercador e do
guerreiro entram, nos países estrangeiros, o monge e o artista.
Também pelas vias comerciais chegaram aos povos da Eurásia pregadores
das grandes religiões, que nasceram quase todas no canto oriental do mar
Mediterrâneo. As novas crenças religiosas ocupavam o lugar da religião
primitiva ou formavam camadas nela, com diferentes níveis e diversas
combinações…
A história da difusão gradual das grandes religiões entre os vários povos
da Eurásia e a interacção dessas religiões no seu terreno estão estreitamente
ligadas à sua história política e cultural, sendo um capítulo importante da
história euroasiática.
O processo de desenvolvimento natural das crenças religiosas dos povos
da Eurásia foi suspenso desde a altura da revolução russa de 1917, através
da propaganda do ateísmo e do materialismo. Claro que ainda não se pode
dizer qual o resultado do choque dos fundamentos religiosos seculares com
as novas doutrinas. Em todo o caso, é inevitável uma enorme
movimentação psíquica na vida espiritual dos povos da Eurásia…
Na diversidade de pormenores da constituição geográfica das várias
partes da Eurásia estiveram também as premissas do aparecimento de
grupos políticos particulares nas várias partes da Eurásia nos períodos da
sua desintegração.
Devido à sua situação geográfica, as partes periféricas da Eurásia
vizinhavam com regiões extra-euroasiáticas. Essas particularidades
geográficas condicionaram as ligações comerciais e culturais de algumas
partes e povos da Eurásia com mundos extra-europeus. Na mesma base
foram abertas também algumas linhas fundamentais das relações externas
da Eurásia em geral ou de algumas das suas partes.
No Extremo Noroeste da Eurásia havia as questões da Lapónia e do
Báltico: guerra secular do povo russo pelo acesso às costas do oceano
Glaciar Ártico (Murmansk) e do mar Báltico, sendo que, a dada altura, o
apoio mongol teve grande papel na expansão russa. Aqui deve-se também
recordar a luta pelas ilhas do oceano Glaciar Ártico que se encontram entre
o extremo noroeste da Eurásia e o Pólo Norte, nomeadamente por Siptzberg
(Grumant).
Na fronteira ocidental da Eurásia ocorreu a luta pela integridade do povo
russo. E novamente, a certa altura, forças mongóis apoiaram o elemento
russo no Dniepre e a ocidente dele. De tempos a tempos, a luta do povo
russo contra os ataques dos seus vizinhos ocidentais polacos, lituanos,
alemães, baixava de intensidade. De quando em vez, chegava-se a um
compromisso: uma formação estatal mista com elementos tanto da cultura
ocidental-latina (católica romana), como da cultura ortodoxa russa.
Semelhante compromisso foi o Estado lituano-russo dos séculos XIV-XVII.
No canto sudoeste da Eurásia havia a questão do mar Negro-Balcãs, ou
mais precisamente de forma mais ampla, a questão das ligações da Eurásia
com o Mediterrâneo Oriental em geral, o que normalmente se chamou e se
chama, na ciência europeia, Próximo Oriente (termo também assimilado
neste caso pela ciência russa). Esta questão era recíproca: por um lado,
tratava-se da inclinação dos povos da Eurásia para o Médio Oriente, por
outro lado, da influência política e cultural do Médio Oriente na Eurásia. Na
Idade Média, o Império Bizantino foi uma das forças culturais e políticas
fundamentais no Médio Oriente. Daí chegou aos Russos o Cristianismo sob
a forma de Ortodoxia, que deu, durante séculos, colorido à cultura russa e
determinou a sua particularidade em relação ao Ocidente. Os Árabes, que
trouxeram o Islão aos povos turcos da Eurásia, foram outra força do Médio
Oriente. A um dos povos turcos que se afastaram do solo da Eurásia, os
Turcos-osmanos, foi destinado, sob a bandeira do Islão, destruir o Império
Bizantino.
A queda de Bizâncio não altera o esquema geopolítico fundamental das
relações no Médio Oriente da Eurásia…
Os governos da Eurásia, como união política integral, tiveram e têm de
levar em linha de conta a herança (no seu conjunto) dos problemas
internacionais que anteriormente diziam respeito a certas partes separadas
da Eurásia.
A base geográfica garante à Eurásia a possibilidade de auto-suficiência
política e económica. Mas, em todas as relações internacionais, há duas
partes e, por vezes, mais. O desenvolvimento real da política internacional
euroasiática depende não só dos povos da Eurásia, mas também dos povos
de fora.
Devido ao facto de alguns dos povos da Eurásia estarem ligados por laços
étnicos ou religioso-culturais com alguns outros povos de fora da Eurásia,
são possibilidades lógicas para a actuação separada na arena internacional
de povos ou grupos de povos separados da Eurásia não só no passado, mas
também no presente.
Assim surgem os problemas do pan-eslavismo, do pan-turquismo, do pan-
islamismo. O último pode ser resolvido fora do quadro político se for
abordado não do ponto de vista político, mas apenas cultural-religioso.
O pan-eslavismo foi sempre mais uma utopia do que uma arma de
política prática devido ao facto de o grupo de eslavos ocidentais (polacos,
checos) estar geopolítica e cultural-historicamente mais próximos da
Europa do que da Rússia.
O pan-turquismo foi especialmente forte enquanto pôde estar
praticamente ligado ao pan-islamismo e se ter inspirado nas suas ideias.
Graças ao enfraquecimento do papel político das religiões no nosso tempo e
à ruptura, na Turquia Osmana, entre o pan-turquismo e o pan-islamismo, a
posição política do pan-islamismo está bastante enfraquecida. No que diz
respeito ao pan-turquismo, dado que o seu objectivo é o afastamento dos
povos turcos da Eurásia da união política com esta última, semelhante
desintegração da Eurásia (se ela fosse possível) seria, em primeiro lugar,
extremamente desfavorável para os povos turcos que actualmente fazem
parte da Eurásia.
As correntes do pan-eslavismo e do pan-turquismo poderiam tornar-se
numa grande força e desempenhar um grande papel político no caso de se
reconciliarem e de acordarem acções entre si. Neste caso, estas correntes
poderiam contribuir para a aproximação e a união entre a Eurásia, por um
lado, e os povos eslavos e turcos estrangeiros, por outro.
É preciso citar mais um ismo: o pan-asiatismo, teoria hoje avançada
intensamente na imprensa nipónica em apoio e fundamentação do
imperialismo asiático. «Ásia para os Asiáticos», claro que se subentende o
domínio japonês dos Asiáticos.
Como resposta a essa palavra de ordem, pode avançar-se a ideia «Eurásia
para os Euroasiáticos». Se os povos da Eurásia tiverem consciência
suficiente da sua mútua ligação e da invisibilidade do seu destino histórico,
qualquer palavra de ordem baseada em outras bases geopolíticas é
claramente apenas uma arma do imperialismo estranho na tentativa de
destruir a unidade da Eurásia…
Independentemente do programa socioeconómico dos dirigentes da
Revolução Soviética, o seu programa sobre a questão nacional soube tocar
nas cordas da alma dos povos da Eurásia, que eram atraídos por Moscovo e
não afastados dela.
Independentemente da posição face à ideologia e à política soviética, não
se pode deixar de reconhecer que, pelo menos temporariamente, Moscovo
se tornou um farol para os povos oprimidos não só na própria Eurásia,
como muito além das suas fronteiras. Não se tratava do comunismo, mas
precisamente da ideia da igualdade e da liberdade dos povos do Oriente,
que há muito tempo estiveram sujeitos ao despotismo, a partir de dentro, e
ao canibalismo imperialista, a partir de fora. O relâmpago da revolução
russa provocou um incêndio em todo o Oriente e actualmente ainda é difícil
prever todos os seus efeitos…
O resultado da economia planificada, da nova divisão territorial da
indústria e de zonas de culturas agrícolas especiais, bem como a construção
de novas linhas férreas, foi uma ligação significativamente mais estreita de
diferentes regiões da Eurásia no campo económico do que antes. Além
disso, é evidente que, se o processo continuar no mesmo sentido, essa
ligação irá aumentar. Desse modo se atingirá uma unidade da Eurásia que
antes não podia existir.

Vernadskii, G.V., Experiência da História da Eurásia. Berlim, 1934,


p. 5-12, 14, 17, 20-25, 166, 179.
21 Termo criado pela corrente Eurasista para designar um território em que
algo nasce e se desenvolve.
22 Na Rússia czarista, na sua maioria, um natural da periferia oriental da
Rússia que pertencia a uma das minorias nacionais.
Nome: Ilin, Ivan

Data e local de nascimento e de morte: 09 de Abril de 1883, Moscovo,


Império Russo-21 de Dezembro de 1954, Zollikon, Suíça

Breve resenha biográfica: Filósofo, editor e escritor. Filho do sacerdote


Aleksander Ilin, personalidade próxima do imperador Alexandre II. A
formação inicial de Ivan Ilin decorreu em Moscovo, seguindo o método
clássico, com destaque para o estudo de Latim, de Grego, de Francês, de
Alemão e de Teologia. Em 1906, Ivan Ilin formou-se em Direito na
Universidade de Moscovo e começou a leccionar no ensino superior. Ao
longo do seu percurso académico, Ilin foi-se interessando pela Filosofia,
aprofundando os seus conhecimentos durante uma viagem à França e à
Alemanha que realizou em 1910. Devido à sua visão crítica da Revolução é
expulso da URSS, em 1922, num grupo de 160 filósofos, historiadores e
economistas, instalando-se seguidamente na Alemanha, onde leccionou até
1934. Em 1938, Ivan Ilin, mudou-se para a Suíça, onde viveu até ao final
dos seus dias.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: A
filosofia política de Ivan Ilin tinha por base o pressuposto de que o princípio
essencial do poder era a «força de vontade». Aquilo que distinguia o poder
político das outras formas de poder era o facto de se tratar de uma «força
legal», ou seja, socialmente focada e juridicamente organizada. Ilin
considerava ainda que a democracia, enquanto forma de governo, está
enraizada no espírito do povo, no seu sentido de justiça, na sua forma de
organização social. Perante a ausência dessas bases, a democracia degenera
numa oclocracia ou numa tirania. Apesar de ser um defensor do sistema
monárquico, enquanto sistema que tinha por base o sentido de justiça da
população, considerava que não se tratava de uma solução ideal para todos
os países e povos. No que concerne à Rússia, Ivan Ilin considerava que era
necessário encontrar uma solução para o país, para quando caísse o
comunismo, que conjugasse os princípios monárquicos e os republicanos,
bem como a aristocracia com a camada dirigente da «Ditadura Nacional».
Ivan Ilin considerava assim que, atendendo às suas particularidades, a
democracia não seria a forma de governo mais adequada para a Rússia e
que o significado da Ortodoxia é definidor da história e da cultura do país.
Não obstante a cristandade ter revolucionado a humanidade, a Ortodoxia é
diferente das outras formas, o que torna, consequentemente, a Rússia
distinta de toda a Europa. É esta particularidade que molda o espírito do
povo russo, causando um sentimento de alienação nos seus cidadãos que se
apartam do solo pátrio. Esta alma foi moldada por quatro factores,
nomeadamente a natureza, a alma eslava, as particularidades da religião e
os acontecimentos históricos.
Por uma Rússia nacional (1938)

A unidade espiritual da Rússia foi provada pela grande cultura, original e


profunda, que foi criada pelo povo russo unido, na mais complexa das
combinações das suas nacionalidades. Esta cultura foi criada durante todo
um milénio, num território uno cada vez maior, numa natureza plana una e
comum, num único clima continental extremo, sob um poder estatal e um
sistema de direcção uno, com uma única língua e cultura estatal, num único
destino das guerras internacionais e da cooperação social e de classe,
económico-comercial. Tudo isso criou nos povos da Rússia uma
semelhança da forma espiritual, uma parecença de caracteres, uma
proximidade nos costumes e, finalmente, a união fundamental na visão do
mundo, das pessoas e do Estado, pela qual os povos russos sem distinção
diferem dos povos europeus-ocidentais.
Deste «material» uno e geral da vida e da existência, a tribo eslavo-russa,
que seguia a fé cristã ortodoxa, criou e portou o acto espiritual-criativo
original em que se criou e se formou a cultura nacional russa.
A tribo eslavo-russa conduziu historicamente e construiu estatalmente a
Rússia. Ela nunca oprimiu outras tribos menos numerosas, mas viu-se na
necessidade de derrubar a sua opressão (jugo tártaro) ou de se defender com
todas as forças das invasões dos conquistadores (tártaros da Crimeia,
lituanos, polacos, suecos). O povo russo não é cruel e não é agressivo; ele é,
por natureza, bondoso, hospitaleiro e contemplador. Mas as estepes russas
foram, desde os tempos mais remotos, não defendidas e abertas de todos os
lados e todos os povos ficavam contentes em os atacar impunemente. E por
isso a Rússia teve de combater exactamente dois terços da sua vida.
Antigamente, o camponês russo morria sem espada, mas o combatente
russo alimentava-se do arado e da foice. A pacificação e a colonização
andaram lado a lado durante mil anos.
A tribo eslavo-russa, que conduziu a Rússia através de todas essas provas,
não se isolava das tribos por ela pacificadas e anexadas mesmo quando
eram completamente estranhas do ponto de vista racial, mas assimilava-as
gradualmente – de forma cívica, sanguínea, cultural e governamental – no
seu seio. As diferenças não desapareceram, mas a igualdade de direitos e o
contacto cordial quotidiano despertava a união espiritual-irmã. Devido a
este acto espiritual-criativo, a tribo eslavo-russa, sem mudar a sua
natureza, adquiria novos horizontes e tarefas: para conduzir a Rússia, ela
teve de se tornar cada vez mais livre, maleável, aberta e profunda. Ela era
conduzida pelo dom eslavo e pela respiração universal da Ortodoxia russa.
E quando ela se reforçou e desenvolveu a sua actividade, viu-se que a
Rússia não é uma palavra oca nem apenas um Estado uno, mas um sistema
de unidade espiritual criado por um único acto espiritual russo-nacional.
Essa unidade espiritual-cultural da Rússia termina hoje, tal como no
passado remoto, na sua unidade político-territorial, no seu destino
internacional-militar comum e na sua pertença económico-produtiva e
comercial. A Rússia não foi pensada por ousado conquistador, tal como o
império de Napoleão; ela não é uma federação recente e apressadamente
construída como os Estados da América do Norte. Ela é um organismo
vivo, espiritual e historicamente constituído que, a qualquer tentativa de
divisão e de qualquer desintegração, é novamente reconstruída pela força
antiga, misteriosa, da sua existência espiritual.

Jornal Slovo, 1991, n.º 4, p. 53

Ao falar das causas da revolução russa, é preciso ter em conta as causas


externo-europeias e interno-russas. Comecemos pelas primeiras.
1. A revolução russa é consequência e manifestação da profunda crise
mundial que atravessa todos os países, cada um à sua maneira. Esta crise
ameaça todos os povos. Ela amadureceu há muito, mas a maioria não a viu
e não a compreendeu. A sua essência reside na preponderância da matéria
e na impotência do espírito.
O homem é chamado por Deus para o poder espiritual: sobre a sua alma e
sobre o mundo da matéria. A humanidade europeia ocidental perdeu
gradualmente esse poder.
Ela perdeu o poder sobre a alma porque deixa de acreditar na sua
existência autónoma e despreza as suas profundas raízes inconscientes. Na
Antiguidade, o homem dominava a alma com a ajuda da magia. Na época
cristã, ele aprendeu a dominá-la através da revelação divina e da fé.
Actualmente, o homem rejeita tanto a magia como a religião, porque rejeita
também a própria alma: ele considera-se um ser material e vive de
superstições. O espírito morre nele, a alma foi rejeitada e abandonada, é
conduzida por interesses, paixões e arbitrariedades. No homem reinam a
matéria e o instinto dos sentidos.
Mas precisamente por isso, a humanidade actual perde também o poder
sobre a matéria. As ciências técnicas abrem perante ela possibilidades
exageradas, sobre as quais o homem não tem tempo para pensar, nem para
as submeter aos objectivos supremos da sua vida. O homem material actual
pode demasiado; mentalmente, demasiado pouco; espiritualmente, quase
nada. Ele é semelhante a uma criança que brinca com o fogo, ou a um
macaco que faz malabarismos com bombas. A matéria transforma-se numa
força letal e conduz o homem para um precipício.
Assim, a humanidade actual desencadeou a guerra de 1914, que estava
acima das suas forças. Assim se aproxima agora de uma nova guerra. As
provas e tentações aumentam; para um espírito fraco, o fardo da vida torna-
se insuportável; a tecnologia inventa meios impressionantes de destruição;
as bases e os travões enfraquecem…
A revolução russa surgiu precisamente dessa desproporção: provas,
tentações e abalos nervosos, por um lado, e impreparação espiritual, por
outro. Esta desproporção foi criada na Europa Ocidental e imposta por ela a
nós sob a forma de guerra. A revolução russa chegou à Rússia em forma de
derrota militar.
2. A revolução russa é uma manifestação da crise religiosa actual: é uma
tentativa de criar um regime estatal e social anti-cristão, pensado, no
campo moral, por Friedrich Nietzsche e, no campo económico e político,
por Karl Marx. Esta peste anti-cristã foi levada para a Rússia do Ocidente.
O europeu ocidental perde gradualmente a fé em Deus e em Cristo. As
fontes dessa descrença estão na época do Renascimento (séculos XIII-XV) e
na época da Reforma (século XVI). Os «enciclopedistas» franceses (meados
do século XVIII) fizeram uma espécie de balanço das anteriores «conquistas»
do ateísmo e do materialismo. A revolução francesa foi a primeira
manifestação prática da sua doutrina. As guerras napoleónicas espalharam
esse espírito por toda a Europa. O «Iluminismo» tornou-se igual ao
materialismo, a um pensamento abstracto-cerebral, à falta de fé e ao
ateísmo. Os grandes sistemas da filosofia idealista alemã (Kant, Fichte,
Schelling e Hegel) tentaram combater esse espírito ateu e encontrar a via
filosófica para Deus. Mas as suas teorias eram incompreensíveis mesmo
para a intelectualidade da época e ao povo quase nada podiam dar. Além
disso, foram rapidamente deturpadas no sentido do ateísmo definitivo,
materialismo e niilismo puro (Bauer, Feuerbach, Strauss, Stirner, Marx). Na
segunda metade do século XIX, essa atmosfera conquistou amplos círculos
da sociedade ocidental e tornou-se cada vez mais pesada; por toda a parte
reinavam a experiência sentimental, o pensamento vulgar, o materialismo e
o ateísmo. A nova teologia protestante alimenta o espírito da dúvida e
estreita cada vez mais a esfera da fé cristã. O Ocidente perde Cristo,
Friedrich Nietzsche começa uma revolta directa contra o Cristianismo em
nome do «bárbaro» «desenvergonhado», em nome [sic] do homem
«selvagem», «mau», «criminoso». Ao mesmo tempo, este novo inimigo do
Cristianismo recebe de Karl Marx um programa político, económico e
social, bem como uma organização. O veneno estava pronto. Ele precisa de
pousar, fermentar e encontrar um grande número de seguidores. Vai ser
empregue no ponto de menor resistência. Esse ponto mostrou ser a Rússia
cansada da guerra, que não produziu esse veneno, mas precisamente por
isso não criou os antídotos necessários contra o mesmo.
3. Sendo assim, a revolução russa é a primeira tentativa de emprego do
programa europeu-ocidental de materialismo economista e de comunismo
internacionalista. A Rússia transformou-se numa espécie de campo
experimental, onde se implanta vivamente a quimera ateia e anti-natural
criada no Ocidente para resolver a crise social e económica europeia. São
espantosas a prontidão e a irresponsabilidade, a falta de patriotismo e de
dignidade com que a intelectualidade russa revolucionária entregou a
Rússia aos experimentadores e carrascos europeus ocidentais…
As descobertas da ciência (vapor, electricidade, etc.) e o seu emprego
provocam no século XIX uma grande viragem na indústria e na organização
da sociedade. A indústria passa a ser máquinas e fábricas, a máquina
oprime o trabalho manual; forma-se o capital industrial e comercial, de um
lado, e uma cada vez mais numerosa classe de operários assalariados, do
outro. Desenvolve-se o comércio mundial, forma-se o capital financeiro
com todas as suas tentações e abusos. A população da Europa cresce e
torna-se mais compacta. Começa a corrida pelos mercados e colónias.
Surgem duas forças adversárias: o capital mundial e o proletariado
mundial. Cada Estado vê-se armado com empresas económicas e concorre
– económica, nacional, política e militarmente – com outros Estados. Ao
mesmo tempo, cada Estado é dilacerado por contradições internas:
económicas (luta do capital e do proletariado, luta da indústria e da
agricultura, luta do comerciante e do consumidor), nacionais (luta das
nacionalidades e das «minorias nacionais»), políticas (republicanos contra
monárquicos, democratas contra conservadores, socialistas contra partidos
burgueses, clérigos contra partidos laicos) e religiosos.
Nesta atmosfera de revolução social em amadurecimento foi avançado o
programa socialista. Ora, o comunismo não é mais do que o socialismo
realizado de forma consequente e imprudente. Assim, a Rússia torna-se
vítima do capitalismo mundial e do socialismo mundial…
4. Porém, a revolução russa não começou em nome do comunismo, mas
em nome da democracia e da república: ela foi preparada como uma
revolução política que devia trazer à Rússia «liberdade», «igualdade» e
«poder popular». Abalaram e destruíram a Rússia Imperial para impor nela
formas europeias-ocidentais de vida que já tinham conduzido a Europa a
um beco sem saída e a uma crise.
A crise política europeia consiste, primeiro, em que nas pessoas ocorre a
degeneração da noção de justiça: esta afastou-se das suas raízes religiosas
e do espírito cristão e, por isso, cai cada vez mais na falta de princípios e no
formalismo; e isto conduz à depravação do direito, à desmoralização geral e
à pulverização social. A noção de justiça afasta-se, progressivamente, do
amor pela pátria: nos nossos dias, o mundo está cheio de pessoas que, ou
realmente não consideram nenhum país a sua pátria, ou tentam convencer-
se de que são «internacionalistas».
A crise política europeia consiste, em segundo lugar, em que o regime
democrático-parlamentar desintegra, de forma vagarosa, mas certa, a
máquina do Estado, enfraquece o poder estatal, faz descer o nível da elite
dirigente e mina a unidade do Estado através das divergências partidárias.
Todas essas manifestações e consequências do regime democrático-
parlamentar só podiam ser prejudiciais para a Rússia; elas só podiam
libertar as forças centrífugas no país, enfraquecer o poder de Estado,
despertar uma demagogia nunca vista, agudizar a luta de classes, criar a
ameaça de guerra civil e abalar e enfraquecer a Rússia em todos os campos:
nacional, económico e militar.
Na realidade, a Rússia precisava de paz, religiosa e civil, de educação das
massas populares, de reforço e aprofundamento da reforma de Stolipin e no
desenvolvimento das forças produtivas. Os principais perigos para ela
foram a guerra e a revolução.
5. A crise europeia foi um caso alheio à Rússia. A guerra europeia era
uma coisa extremamente perigosa para nós. Tínhamos outras tarefas,
lutávamos contra outras dificuldades.
O «iluminismo» materialista, frio, ainda não penetrara no povo russo; ele
infectara apenas a intelectualidade russa, e não toda nem até ao fim,
assistindo-se já a uma superação dessa peste. A Rússia escondia em si
grandes reservas de fé religiosa, que mostrou durante as perseguições
comunistas contra a Igreja. Perante a intelectualidade russa apresentava-se
uma grande tarefa: encontrar a combinação exacta da fé e do conhecimento
e evitar o ateísmo que corrompera a cultura europeia. No início do século
XX, essa viragem do pensamento frio para o pensamento crente já se
começava a notar na intelectualidade russa.
A crise económica tinha na Rússia uma natureza completamente diferente
da que possuía na Europa. O capitalismo na Rússia acabara de nascer e as
dimensões do «capital» russo, em comparação com os países europeus, e
sobretudo com os Estados Unidos, eram simplesmente infantis. A Rússia
era um país agrícola e o proletariado industrial nela era, comparativamente,
insignificante. A Rússia não precisava de «colónias»: ela ainda não tinha
explorado os próprios espaços e riquezas internos. As suas exportações e
importações, nos últimos 14 anos antes da guerra, quase duplicaram; o
problema dos mercados de escoamento pouco a preocupavam. Ela não
precisava nada de conquistas territoriais. A questão dos estreitos do mar
Negro era um assunto para um futuro longínquo. A participação na guerra
europeia, onde, no essencial, a Inglaterra e a Alemanha lutavam pela
hegemonia mundial, não lhe prometia nada de bom.
A crise política na Rússia tornou-se mais branda na véspera da guerra;
perdeu a sua agudeza depois de ter começado o trabalho criativo, graças a
Stolipin, da Duma de Estado. A Rússia necessitava, acima de tudo, de uma
longa paz, do desenvolvimento das suas forças produtivas, da instauração
de uma ordem sólida e do apogeu da sua criatividade espiritual. Enquanto
país tecnologicamente atrasado, economicamente extensivo, que não
esgotara ainda nem as suas possibilidades espirituais, nem económicas, a
Rússia não podia participar na luta dos países europeus que, em parte,
precisamente por isso, se apressaram e aceleraram essa guerra.
6. Ao entrar na Grande Guerra, em 1914, a Rússia tinha um único amigo
verdadeiro: a pequena, mas heróica Sérvia. Só a Sérvia via as grandes
tarefas da Rússia, só ela simpatiza com eles; só para ela a Rússia não era
«simplesmente um meio» e não era simplesmente um objecto ou vítima.
O Ocidente nunca conheceu a Rússia e nunca a compreendeu. Não a
conhecendo a ela e à sua língua, não sentindo o seu espírito, acreditou em
todo o tipo de absurdo sobre ela e elaborou e difundiu esse absurdo. A
Europa tinha medo da Rússia, não gostava dela e desprezava-a. Nos últimos
cem anos, o Ocidente esteve sempre pronto a prejudicá-la, a enfraquecê-la e
a caluniá-la. O Ocidente interessava-se pela Rússia apenas no campo
comercial e militar; e também no sentido da sua possível desintegração ou
da sua submissão a ele. Seguindo as orientações secretas dos centros
políticos europeus, que mais tarde serão descobertos e revelados pela
ciência histórica, a Rússia foi enfraquecida com calúnias perante todo o
mundo, como o «baluarte da reacção», como o ninho do despotismo e da
escravidão, como o viveiro do anti-semitismo, como um colosso com pés de
barro. Movimentada por intenções inimigas, a Europa estava interessada na
derrota militar e revolucionária da Rússia e ajudou os revolucionários
russos com esconderijos, conselhos e dinheiro. A Europa não escondia isso.
Fez todos os possíveis para que isso se tornasse realidade. E quando isso
aconteceu, a Europa, sob todos os pretextos e formas, fez tudo para ajudar o
principal inimigo da Rússia, o poder soviético, apresentando-o e aceitando-
o como representante legítimo dos direitos e interesses estatais russos.
Desse modo, a revolução comunista russa foi uma prenda mortal da
Europa ao Ocidente e, depois, a todo o mundo. Aquela é um fruto da
desintegração espiritual europeia; produto da crise económica e social
europeia; resultado do «iluminismo» político europeu; consequência da
guerra europeia pelos mercados e pela hegemonia mundial, é filha do
ateísmo europeu, da desintegração europeia e do imperialismo europeu.

Jornal Slovo. 1991. n.º 5, p. 82-84

A intelectualidade russa não viu e não alcançou a profunda originalidade


da Rússia. Ela não compreendeu que a Rússia só pode ser edificada como
uma criação original, e não uma cópia cega do Ocidente. Ela não entendeu
que o acto nacional espiritual russo é diferente do europeu ocidental e que,
por isso, o russo deve ter outra fé, outra ciência, outra arte, outro sentido de
justiça, outro Estado, outro modo de vida. Pedro, o Grande, nunca sujeitou
a alma russa à ocidental. Não foi por acaso que Osterman lhe atribuiu as
seguintes palavras: «Precisamos da Europa durante umas dezenas de anos,
depois viramo-nos para ela de traseiro.» O criador não tem medo de
nenhuma cópia; aquele que apenas sabe copiar matará a sua obra.
Normalmente, a intelectualidade russa olhava para o povo simples com
«piedade» e com o sentimento escondido de «culpa» («o senhor
arrependido»). Mas ela não conhecia o seu povo, não via a sua força
criadora, acreditava mal na sua capacidade organizativa e até chegou a crer
na teoria, que lhe foi atirada pelos estrangeiros, de que a ordem e a cultura
foram traduzidas pelos «Normandos» para os russos semi-selvagens.

Jornal Slovo, 1991, n.º 6, p. 80


Nome: Losski, Nikolai

Data e local de nascimento e de morte: 06 de Dezembro de 1870,


Vitebsk, Império Russo-24 de Janeiro de 1965, Paris, França

Breve resenha biográfica: Filósofo religioso, filho de pai ortodoxo e de


mãe católica, estudou, até 1887, em Vitebsk, até ser expulso da escola por
defender ideias ateístas. Nikolai Losski prossegue os estudos em Berna,
Alemanha, mas devido a dificuldades financeiras, vê-se obrigado a integrar
a Legião Estrangeira francesa na Argélia. Em 1889, Nikolai Losski regressa
à pátria, onde termina a formação em História e Filologia na Universidade
de São Petersburgo e recupera a sua vocação religiosa. Após concluir os
estudos, passa a leccionar e, em 1922, é expulso da URSS. Entre 1922 e
1942, Nikolai Losski lecciona em Praga, mudando-se posteriormente para
Bratislava, depois para Paris e, por fim, para os EUA, em 1947. Em 1953,
Losski regressa a Paris onde vive até 1965, ano da sua morte.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: De


acordo com a mundividência de Losski, o mundo era uma «unidade
orgânica», sendo que as relações que se formam entre as substâncias que
compõem o mundo podem dar origem ao «Reino da Harmonia», ou seja ao
Reino do Espírito, ou então ao «Reino do conflito», ou seja, ao Reino
espírito-material. No Reino do Espírito, ou no reino ideal, existe apenas a
multiplicidade de elementos, não existindo a oposição entre os elementos.
Os elementos criados pelo absoluto, que escolheram a vida em Deus,
formam, segundo Losski, o «Reino do Espírito», ou seja, «a sabedoria
viva». Já aqueles que «invocam a sua autonomia» ficam fora do «Reino do
Espírito» e entre eles surge a propensão para a luta e para a expulsão mútua.
A luta leva à existência material e, consequentemente, a existência material
acaba por encerrar em si o princípio da mentira.
No que concerne ao papel do Estado, Losski considerou que a luta do
povo contra a pequena burguesia tem na vanguarda a intelectualidade russa,
em nome da dignidade individual e em nome da liberdade. Na Rússia, o
acesso ao ensino superior não era um privilégio reservado aos mais
abastados e, por isso, a intelectualidade russa não tinha uma classe social.
Não fosse a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique e a
Rússia, graças à democracia económica e política, acabaria por optar por
um regime que respeitasse o Estado de Direito, até com cidadãos com mais
direitos do que os dos países da Europa Ocidental. Não obstante o
resultado, o facto de a Revolução ter sucedido é uma prova de que o povo
russo, graças à sua força de vontade, é capaz de procurar novas formas de
vida e de que a Rússia é um país onde se apresentam oportunidades sem
limites.
História da filosofia russa (1951)

A cultura russa do século XIX e início do século XX tem importância


universal. Deve assinalar-se que a cultura nacional se torna conhecida em
todo mundo apenas quando os valores nela desenvolvidos se tornam
património de toda a humanidade. Anteriormente, tiveram importância
mundial as culturas da Grécia Antiga e da Roma Antiga. Presentemente,
semelhante importância tem a cultura da Inglaterra, da França, da
Alemanha e da América. A cultura russa, da forma como existiu até à
revolução bolchevique, tinha também indubitavelmente importância
universal. Para ficar convencido da justeza destas palavras, basta citar os
nomes de Pushkin, Gogol, Turgueniev, Tolstoi, Dostoievski ou Glinka,
Tchaikovski, Mussorgski, Rimski-Korsakov, bem como estudar os êxitos da
arte teatral russa no campo do drama, ópera e bailado.
No campo da ciência, é suficiente citar os nomes de Lobatchevski,
Mendeleev e Metchnikov. A beleza, a riqueza e a expressão da língua russa
dão-lhe o direito indiscutível de ser uma das línguas internacionais. No
campo da cultura política (por exemplo, autogestão rural e citadina,
legislação e poder executivo), a Rússia imperial criou valores que
adquirirão fama universal quando forem suficientemente estudados e
reconhecidos, e principalmente aquando do seu renascimento no processo
de desenvolvimento pós-revolucionário do Estado russo. As pessoas que
reconhecem a experiência religiosa não irão contestar o facto de que a
Ortodoxia, na sua forma russa, contém valores exclusivamente
elevados. Não é difícil descobrir esses méritos na parte estética do culto da
Igreja Ortodoxa russa. Seria estranho se semelhante cultura alta não
originasse nada de original no campo da filosofia. É verdade que a nota
azeda de Hegel de que a coruja de Minerva não voa enquanto não cai a
noite diz respeito também ao desenvolvimento do pensamento russo. A
filosofia russa começou a desenvolver-se apenas no século XIX, quando o
Estado russo já tinha uma história milenar.
O povo russo converteu-se ao Cristianismo em 988. Recebeu a primeira
noção de filosofia quando foram traduzidas as obras dos padres da igreja
para o eslavónico eclesiástico. No século XII, na Rus, já existia a tradução
do sistema teológico de João Damasceno, a terceira parte do seu livro
conhecido com o título Uma Composição Exacta da Fé Ortodoxa. Embora
a tradução filosófica deste livro tenha sido feita apenas no século XV, alguns
trechos foram publicados na Colectânea de Sviatoslav, ainda em 1073. No
século XIV, foram traduzidas as obras de Dionísio Areopagita com os
comentários de São Máximo, o Confessor. Este livro, ao lado de obras de
outros padres da Igreja oriental, existia em muitos mosteiros russos.
Com a ajuda de semelhantes obras, alguns representantes do clero russo
tentaram dar continuidade às obras teológicas e filosóficas dos Bizantinos.
Entre eles, podemos citar o metropolita Piotr Moguila, no século XVII, e o
bispo Feofan Prokopovitch, no início do século XVIII. Entre os amantes da
filosofia dessa época, é preciso citar particularmente o nome de Gregori
Skovoroda (1722-1794), moralista que se baseou principalmente na Bíblia,
mas que recorreu a algumas teorias neo-platónicas de Fílon (por exemplo,
na questão da interpretação da matéria), aos padres da Igreja e aos místicos
alemães (na teoria do homem externo e interno, na profundeza do espírito
humano e da divindade, na «centelha» no coração do homem, comparação
preferida dos místicos alemães).
A era do domínio tártaro e, como consequência, o isolamento do Estado
de Moscovo impediram o povo russo de ter acesso à filosofia europeia
ocidental. A sociedade russa não conhecia suficientemente bem a cultura
ocidental enquanto Pedro, o Grande, «não abriu a janela para a Europa». A
influência do Ocidente reflectiu-se imediatamente na relação para com a
Igreja. Entre a nobreza russa, por um lado, difundiu-se amplamente o
voltairianismo com a sua liberdade de pensamento, por outro lado, surgiu o
desejo de mergulhar nas profundezas secretas da religião, encontrar a
essência do «verdadeiro Cristianismo» e levá-lo à prática. A Maçonaria
apareceu na Rússia na primeira metade do século XVIII e conheceu uma
ampla difusão na sua segunda metade.
As principais correntes filosóficas, sob cuja influência se encontrava a
Maçonaria russa, estiveram ligadas ao nome do místico francês Saint-
Martin (1743-1803) e do místico alemão Jakob Böhme (1575-1624). O
livro de Saint-Martin, Dos erros e da verdade, foi publicado em russo em
1785. Foram traduzidos para russo a obra de Tomás de Kempis, Imitação de
Cristo, e o livro do teólogo luterano Johann Arndt (1555-1621), «O
verdadeiro Cristianismo. Muitas traduções das obras de Jakob Böhme eram
difundidas em manuscrito, outras foram impressas.
Por verdadeiro Cristianismo, os maçons compreendiam o
desenvolvimento da vida espiritual, o aperfeiçoamento moral pessoal e a
manifestação de um amor real para com o próximo. N.I. Novikov (1744-
1818) foi um participante particularmente activo da ideia do verdadeiro
Cristianismo. Ele editou numerosos livros, publicou edições periódicas
maçónicas e organizou bibliotecas. Além de Novikov, é necessário assinalar
o alemão J.G. Schwarz (1751-1784), professor de Filosofia da Universidade
de Moscovo. Entre 1779 e 1782, Schwarz acreditava na doutrina dos rosa-
cruz. Nas aulas leccionadas na sua própria casa, ele interpretava os lugares
obscuros nas obras de Saint-Martin, apoiando-se no livro de Jakob Böhme,
Misterium Magnum. Schwarz afirmava que Deus não criou o mundo a
partir do nada, mas da sua essência interior. Ele pregava a necessidade do
aperfeiçoamento moral e espiritual do homem, condenava os abusos no
campo da vida laica e espiritual, os vícios no seio do clero. Só a morte
prematura salvou Schwarz das perseguições do Governo. Novikov também
condenava a injustiça da vida estatal e religiosa russa. Em 1792, por ordem
de Catarina II, foi encarcerado na fortaleza de Shlisselburg e só quatro anos
e meio depois, após a morte da imperatriz, foi libertado por Paulo I. A
reclusão abalou as capacidades físicas e intelectuais de Novikov. Em 1790,
Catarina, a Grande, desterrou para a Sibéria Radichev, outro famoso crítico
da injustiça da vida russa. Depois da sua morte, Radichev foi libertado por
Paulo I. Radichev (1749-1802) era um homem altamente culto. A
imperatriz Catarina enviou-o, juntamente com mais 11 jovens, para estudar
Direito e Ciências Mistas na Universidade de Leipzig. Radichev passou seis
anos nessa universidade. Conhecia as teorias sociais e filosóficas de
Rousseau, Locke, Montesquieu, Helvétius, Leibntiz e Herder. Radichev
manifestava-se contra a autocracia e a servidão da gleba provocava a sua
indignação. Ele manifestou de forma particularmente clara as suas ideias no
livro Viagem de Petersburgo a Moscovo, pelo qual foi exilado para a
Sibéria.
O livro de Radichev, Do Homem, da Sua Morte e Imortalidade, tem
importância filosófica, sendo composto por quatro partes. Nas primeiras
duas partes, o autor expõe os seus pontos de vista materialistas sobre a
imortalidade, tentando provar que as bases materiais estão para o processo
espiritual como a vida espiritual depende do corpo. Daí ele concluía que a
destruição do corpo deve implicar a destruição da vida espiritual. Na
terceira e quarta partes da sua obra, Radichev, ao refutar essas afirmações,
escreve que não se pode «…duvidar mais que a alma no homem não é um
ser por si só, diferente do corpo… A alma é realmente assim: simples,
inextensa, indivisível de todos os sentimentos e ideias…» Se não existir
essa unidade, «… o homem deste instante não vai fazer o que fez um
instante antes. Ele não será agora igual ao que era ontem». Ele não poderia
«… nem recordar, nem comparar, nem pensar…»
Radichev afirma que Helvécio não tinha razão ao reduzir todo o
conhecimento à experiência sensorial, «…porque quando um objecto
qualquer está perante os meus olhos, cada olho vê-o de forma particular;
porque se se fechar um olho, vê-se com o outro todo o objecto inteiramente;
se se abrir o outro e se fechar, ver-se-á o mesmo objecto e também
inteiramente. Por conseguinte, cada olho recebe uma sensação especial de
um objecto. Mas quando olho para o objecto com ambos os olhos, embora
os sentidos dos meus olhos sejam dois, o sentido na minha alma é um; por
conseguinte, o sentido dos olhos não é o sentimento da alma: pois nos olhos
há dois, mas na alma há um». O mesmo se passa quando «… eu vejo um
sino, ouço o seu som; eu apreendo dois conceitos: a imagem e o som, eu
sinto que o sino é um corpo sólido e comprido». Por isso, eu tenho três
diferentes «sentidos». Não obstante, eu «constituo um conceito e afirmo: o
sino, todos os três sentidos estão nele incluídos».
Assim, Radichev tinha consciência clara da diferença entre a experiência
sensorial e o pensamento não sensorial relativamente ao objecto. Depois de
concluir que a alma é simples e indivisível, Radichev concluiu da sua
imortalidade. Ele raciocina da seguinte forma: o objectivo da vida consiste
no desejo de perfeição e felicidade. Deus Todo Misericordioso não nos
criou para que considerássemos esse objectivo um sonho vão. Por isso, é
sensato pensar: 1) depois da morte do corpo, o homem adquire outro, mais
perfeito, em conformidade com o nível de desenvolvimento por ele
atingido; 2) o homem continua ininterruptamente o seu aperfeiçoamento.
Ao interpretar a doutrina da reencarnação, Radichev cita Leibniz, que
comparava a passagem de uma encarnação para outra com a transformação
da larva asquerosa numa crisálida e com a saída de uma adorável borboleta.
Radichev manifestava-se contra o misticismo e, por isso, não aderiu à
Maçonaria. M.M. Speranski (1772-1839), conhecido estadista, foi maçon
entre 1810 e 1822, quando a Maçonaria foi proibida na Rússia. Ele
conhecia as obras de místicos europeus ocidentais como Tauler,
Ruysbroeck, Jacob Böhme, Dag, São João Baptista, Molinos, Madame
Guyon, Fénelon, e traduziu para russo a obra de Tomás Kempis, Imitação
de Cristo, bem como trechos das obras de Tauler. Ele considerava a alma,
infinita e com uma liberdade ilimitada de vontade, uma realidade primeira.
A Trindade Divina, na sua essência mais profunda é o caos primário, o
«silêncio eterno». O princípio da feminidade – Sofia ou Sabedoria – é o
conteúdo do conhecimento divino, mãe de tudo o que existe fora de Deus.
O pecado original dos anjos e do homem dá início a uma matéria
impermeável e à sua forma espacial. Speranski acreditava na teoria da
reencarnação. Ele dizia que, embora essa teoria fosse condenada pela Igreja,
podia ser encontrada nas obras de muitos padres da Igreja (por exemplo,
Origen, São Metódio, Panfílio, Sinésio e outros). No campo da vida
espiritual, Speranski condenava a prática da substituição do jejum interno
pelo exterior e da oração espiritual pela repetição inútil de palavras.
Speranski considerava mais pseudo-cristã a adoração à letra da Bíblia do
que a palavra viva de Deus.
O início do consequente desenvolvimento do pensamento filosófico russo
tem lugar no período do século XIX, em que a sociedade russa já tinha
ultrapassado o período de entusiasmo com o idealismo alemão de Kant,
Fichte, Schelling e Hegel. A filosofia da natureza e da estética de Schelling
foi exposta por M.G. Pavlov, D.M. Vellanski, A.I. Galitch e N.I. Nadejdin.
Pavlov (1773-1840) foi professor de Física, de Mineralogia e de Agricultura
na Universidade de Moscovo. Afirmava que as bases fundamentais da
organização da natureza são descobertas com a ajuda da intuição intelectual
e a experiência apenas confirma a primeira. Pavlov interpretava a intuição
intelectual como auto-contemplação do absoluto. Nadejdin (1804-1856),
professor de Estética da Universidade de Moscovo, pôs os seus estudantes
em contacto com a teoria de Shelling sobre a criação orgânica inconsciente
do génio. Vellanski (1774-1847) foi professor de Anatomia e Fisiologia na
Academia Médico-Cirúrgica de Petersburgo e Galitch (1783-1848) e foi, a
partir de 1805, professor no Instituto Pedagógico de Petersburgo, depois
transformado em universidade (1819). Em 1821, Galitch foi obrigado a
abandonar a universidade porque «preferia o ateu Kant a Cristo e Shelling
ao Espírito Santo».
O início do pensamento filosófico independente na Rússia do século XIX
está ligado aos eslavófilos Ivan Kireevski e Khomiakov. A sua filosofia foi
uma tentativa de desmentir o género filosófico alemão com base na
interpretação russa do Cristianismo, que se fundamentava nas obras dos
padres da Igreja oriental e que nascera como resultado da originalidade
nacional da vida espiritual russa. Nem Kireevski, nem Khomiakov criaram
qualquer sistema filosófico, mas expuseram um certo programa e deram
alma ao movimento filosófico que foi o mais original e valioso êxito do
pensamento russo. Refiro-me à tentativa de os pensadores russos
desenvolverem sistematicamente a visão cristã do mundo. Vladimir
Soloviov foi o primeiro que teve a honra de criar um sistema de filosofia
cristã no espírito das ideias de Kireevski e Khomiakov. Os seus discípulos
constituíram toda uma plêiade de filósofos. Entre eles estão os filósofos-
teólogos: o príncipe S. N. Trubetskoi, o seu irmão, o príncipe E. N.
Trubetskoi, N. F. Fiodorov, o sacerdote Pavel Florenski, Ern, N. A.
Berdiaev, N. O. Losski, L. P. Karsavin, S. L. Frank, I. A. Ilin, o sacerdote
Vassili Zenkovski, o sacerdote Gueorgui Florovski, B. P. Vycheslavtzev, N.
Arseniev, P. I. Novgorodtsev, E. V. Spektorski. Este movimento continua a
desenvolver-se e a crescer até hoje. O início foi lançado por I. Kireevski e
A. Khomiakov…
Qualquer sistema social realiza apenas melhoramentos parciais e, ao
mesmo tempo, tem novas insuficiências e possibilidades para abusos. A
experiência triste da História mostra que todo o processo histórico se reduz
apenas à preparação da humanidade para a transição da história para a
meta-história, isto é, a «vida futura» no reino de Deus. Condição
substancial do aperfeiçoamento nesse reino é a transformação da alma e do
corpo e a aquisição da misericórdia de Deus.
Os que não simpatizam com a metafísica e a religião declaram que, na
História russa, não houve período semelhante ao período da escolástica
medieval, quando toda a energia mental das pessoas estava concentrada na
elaboração de um sistema de filosofia cristã. Eles consideram que, nos
finais do século XIX e início do século XX, a sociedade russa entrou, pela
primeira vez, na fase de desenvolvimento espiritual, que a Europa
atravessara ainda na Idade Média. Por isso, consideram que a sociedade
russa se atrasou no seu desenvolvimento. Essas pessoas não têm em conta o
facto de a cultura não se desenvolver em linha recta ascendente, mas em
espiral. A parte superior da espiral contém processos paralelos e
semelhantes aos que ocorrem na sua parte inferior, mas, devido à influência
do desenvolvimento anterior, são mais perfeitos. A filosofia religiosa russa
não é a repetição da escolástica, pois ela utiliza todos os êxitos da ciência e
da filosofia moderna, principalmente a moderna gnosiologia altamente
desenvolvida. Por isso deve dizer-se que a filosofia religiosa russa é um
êxito progressista e é capaz de dar um novo impulso ao pensamento
ocidental.
Os ortodoxos russos acostumaram-se a resolver as questões religiosas da
forma tradicional, que era amplamente utilizada nas velhas academias
teológicas. Por isso, eles olharão com desconfiança para diferentes obras
filosóficas que introduzem no pensamento religioso muitos traços da
literatura laica. Porém, o ortodoxo deve ter em conta que, actualmente,
muitas pessoas de todas as classes e de todos os países se afastaram da
Igreja. Elas consideram que a visão do mundo cristã é incompatível com a
ciência e a filosofia. Por conseguinte, a literatura religiosa e filosófica deve
incluir obras que possam satisfazer as exigências de diferentes camadas
sociais. Essas obras devem provocar o sentimento de simpatia e despertar o
interesse para com o Cristianismo no meio das pessoas altamente cultas,
que se tornaram indiferentes face à religião sob a influência dos ventos da
civilização moderna.
Na vida social qualquer movimento ideológico se desenvolve na luta com
o seu contrário. Actualmente, na URSS, toda a filosofia religiosa está
sujeita a ataques raivosos da parte dos adeptos do materialismo dialéctico.
Todos os filósofos soviéticos, cujas obras são publicadas, pertencem a essa
escola. Porém, não se deve exagerar a importância desse facto para a
história da cultura russa. O materialismo histórico é a única filosofia
autorizada na URSS. Se o filósofo tenta escrever um livro ou artigo noutro
espírito, a sua obra não só não será publicada, mas o próprio autor arrisca-se
a ser preso num campo de concentração. Logo que a Rússia se libertar da
ditadura comunista e receber a liberdade de pensamento nela, tal como
acontece em qualquer outro país livre e civilizado, surgirão numerosas
escolas filosóficas diversas. A filosofia russa contém muitas ideias valiosas
não só no campo da religião, mas também no campo da gnosiologia, da
metafísica e da ética. Conhecer essas ideias será útil para o
desenvolvimento da cultura universal.

Losski, N.O. História da Filosofia Russa. M., 1991,


p. 4-10, 475-476.
CAPÍTULO IX

CONVERGÊNCIA DE SISTEMAS
OU NOVAS DIVERGÊNCIAS?

Numerosos adversários do comunismo bolchevique viram nos


cataclismos revolucionários na Rússia parte da crise que nela tomou formas
mais agudas, precisamente graças à originalidade das condições russas.
Alguns deles descobriam na política do bolchevismo tendências
objectivamente eurasistas. Gueorgui Fedotov, por exemplo, considerava que
a URSS era uma verdadeira fortaleza para os povos da Ásia no seu combate
contra a política de pilhagem dos países ocidentais. Alguns dos adversários
do comunismo bolchevique também consideravam que as mudanças no
interior da União Soviética deviam ter lugar com o renascimento das
«forças sociais sãs» e não graças ao apoio do «Ocidente podre». Esta ideia
encontrou mais tarde reflexo nas obras de Aleksandr Soljenitsin que olhava
de forma negativa para as ideias ocidentais que conseguiam entrar na URSS
através do Muro de Berlim.
No início dos anos de 1960, no Ocidente ganha terreno a «teoria da
convergência do capitalismo e do socialismo» que, na União Soviética, foi
defendida pelo académico dissidente Andrei Sakharov e, depois, por
Mikhail Gorbatchov, primeiro e último Presidente soviético. Segundo essa
teoria, o capitalismo e o socialismo deviam livrar-se dos aspectos negativos
dos sistemas políticos e sociais e trocarem o que de melhor tinham
conseguido fazer. O Ocidente devia prestar mais atenção às questões
sociais, enquanto os «países socialistas» necessitavam de democratizar-se;
ambos dever-se-iam desmilitarizar. Porém, esta teoria não foi aceite nem
pelos actuais ocidentalistas, nem pelos neo-eurasistas.
Após a queda da União Soviética, políticos e especialistas tentaram
procurar um rumo novo para dar ao seu país, mas nada conseguiram criar
de novo. As forças que tomaram o poder na Rússia identificaram-se com o
mais radical liberalismo ocidental, enquanto os seus opositores foram
desenterrar as facetas mais retrógradas do eslavofilismo, do eurasismo e do
nacionalismo russo.
Nome: Chafarevich, Igor

Data e local de nascimento e de morte: 3 de Junho de 1923, Jitomir,


Ucrânia-9 de Fevereiro de 2017, Moscovo, Rússia

Breve resenha biográfica: Matemático e físico. Após o nascimento de


Igor Chafarevich, os seus pais, ele professor universitário de Física e
Matemática, e ela professora de Filologia, mudaram-se para Moscovo, onde
o cientista recebeu a sua formação escolar. Ao terminar a escola, fez os
exames de admissão à Faculdade Mecânico-Matemática da Universidade de
Moscovo, tendo entrado directamente para o último ano do curso, que
concluiu aos 17 anos. A par da sua destacada actividade científica, tanto nas
áreas do ensino como da investigação, a partir dos anos 1960 dedicou-se à
contestação do regime soviético, em defesa da Igreja Ortodoxa,
condenando, por exemplo, o uso da Psiquiatria para a repressão dos
opositores políticos. Igor Chafarevich foi uma figura próxima de dissidentes
como o escritor Soljenitsin ou o cientista Sakharov.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: A obra
de Igor Chafarevich está marcada pela crítica ao socialismo, pela xenofobia
e pelo anti-semitismo. Na história da Rússia do século XX, Chafarevich
destaca o fenómeno de «pequeno povo», ou seja, uma camada da população
que se opõe a todo o restante povo, desprezando as suas tradições e desta
forma afirmando o seu direito de comandar a maioria da população em prol
dos seus próprios interesses. Na Rússia, o núcleo do «pequeno povo» era
composto por judeus. Este «pequeno povo» encetou esforços no sentido de
destruir os «mecanismos integrantes» que permitiam ao «grande povo» ter
noção de si mesmo e agir enquanto entidade unitária. O processo de
destruição passava pela ridicularização e difamação da História, da religião,
do poder tradicional e das Forças Armadas russas. Assim, cria-se uma
miríade de mitos anti-russos que se vão entranhando na consciência da
população. Em consequência, o povo é assolado por uma espécie de
paralisia, tornando-se uma vítima indefesa de pequenos grupos agressivos.
Igor Chafarevich considerava que o «pequeno povo» não poderia ser
culpado pelas suas acções, que se assemelhavam mais à progressão de uma
doença do que a um crime.
No que concerne ao socialismo, o autor considerava que toda a
humanidade tinha propensão para a morte (concepção freudiana) e que,
neste quadro, o socialismo era uma via de autodestruição e é por isso que
leva à repressão da individualidade e à destruição da religião e da cultura. A
tomada de poder por parte dos comunistas na Rússia une, assim, a ideia de
um pequeno grupo tomar conta de um grande, conduzindo-o à destruição.
Lutas de retaguarda do marxismo (1978)

Já Heródoto via na luta e na influência mútua do Oriente e do Ocidente o


eixo central da história da humanidade. Parecia que todas as possíveis
opiniões sobre o papel do Oriente e do Ocidente já tinham sido tidas e
discutidas desde então. Mas o nosso século trouxe um ângulo de visão
completamente novo sobre este velho problema. Precisamente agora
tornou-se claro o papel universal-histórico decisivo de um fenómeno que,
de forma completamente nova, liga e divide, simultaneamente, o Oriente e
o Ocidente – o socialismo. Enquanto teoria, o socialismo é uma criação do
Ocidente. Esta não tinha quaisquer raízes na Rússia e foi completamente
importada, de tal forma que os dois principais dirigentes do movimento
socialista – Herzen e Bakunin – tiveram de emigrar para o Ocidente para
mergulhar nessa teoria. Mas, depois, aí foi criada uma tecnologia
incomparável de manipulação da psique humana com a ajuda dos meios de
informação, da publicidade e do engodo da abundância material. Também
na Rússia pré-revolucionária grassava o terrorismo, mas não a um nível tal
como existe agora no Ocidente; pelo menos, o Governo não começava
conversações, nem fazia acordos com os terroristas. As palavras de Stolipin,
«Não assustam!», dificilmente poderiam ser repetidas por algum dos actuais
políticos ocidentais. O grau de negação de toda a sociedade existente, da
sua cultura e moral, do qual dependem as dimensões e o radicalismo da
revolução, não é actualmente menor no Ocidente do que na Rússia pré-
revolucionária. O pensamento de Jean-Paul Sartre de que não teria pena de
queimar Gioconda não podia ter sido pronunciado por um conjurador
procurado pela polícia como Bakunin (e falava de forma muito semelhante),
mas seria impossível ouvi-lo da boca de um venerável filósofo. A revolução
sexual ou «psicológica», o swing ou as Comunas de Berlim chocariam os
niilistas russos mais do que os actuais burgueses bem-intencionados.
Não me parece já tão fantástica a hipótese de que uma série de factores,
nomeadamente um maior peso do campesinato conservador e a influência
do Cristianismo na visão do mundo do povo e na cultura intelectual,
amaciaram muito o carácter da revolução na Rússia, por isso ela não é uma
variante agravada, mas mais branda do que pode acontecer no Ocidente.

Duas vias para um precipício (1989)

A concepção da exclusividade da civilização ocidental torna a ideologia


liberal-progressista ocidental completamente surda às tragédias que
ocorrem noutras civilizações; estas civilizações, do seu ponto de vista,
existem de forma algo «ilegal», são um obstáculo na via da humanidade
rumo ao progresso. Por isso, o Ocidente é capaz de juntar o supremo
humanismo no seu seio com a mais extrema das crueldades para com tudo o
que se encontra fora dele. Um dos numerosos exemplos é o extermínio dos
índios norte-americanos pelos colonos puritanos. Estes lançavam-nos uns
contra os outros, comprando escalpes, forneciam-lhes farinha envenenada,
atacavam-nos com cães, organizavam ciladas, matavam a tiro. Um
agricultor, que participou na chacina em massa no vale de Morgan, recorda,
por exemplo, que não ousavam disparar com carabinas de grande calibre
contra as crianças porque seriam desfeitas em pedaços, matavam-nas com
revólveres Smith & Wesson. E o meio mais radical era arar as pradarias que
serviam para os nómadas (algumas dezenas de anos depois, o solo das
pradarias, delicado e impróprio para a agricultura, transformava-se em pó
que era levado em nuvens para o oceano). Por fim, a civilização destruída
era morta mais uma vez, espiritualmente, riscando-se da História ou
entrando nela como um beco sem saída, uma linha de desenvolvimento
condenada à morte. Se prestarmos atenção a esta faceta do «progresso»,
constataremos, por exemplo, que foram mais humanos os Estados da África
Central, onde, anualmente, se sacrificavam apenas algumas centenas de
pessoas aos deuses da fertilidade! E não provoca espanto algum o facto de
os liberais ocidentais ignorarem completamente todas as barbaridades do
regime estalinista, que foi para eles apenas uma «experiência histórica
brilhante».
Já foi assinalado que a civilização tecnológica não traz dentro de si a
noção das suas fronteiras, ela alastra-se ilimitada e agressivamente por toda
a Terra. Ela penetrou também na Rússia, inicialmente na sua forma
ocidental padronizada, através da retirada das terras aos camponeses, da
estratificação segundo a propriedade no campo, do aumento do número de
operários industriais, da construção de caminhos-de-ferro, do aumento das
exportações e da integração no mercado mundial. Porém, esse progresso
esbarrou no profundo enraizamento, na estabilidade da civilização
camponesa… Como resultado, a submissão da Rússia aos padrões da
civilização tecnológica foi travada e, em resposta, essa civilização criou
uma imagem da Rússia: «obstáculo na via do progresso da humanidade». A
pressão da civilização tecnológica: a ruína de parte significativa de
camponeses e destruição da comunidade rural, a formação de explorações
agrícolas individuais, o êxodo de grande parte da população para a cidade,
tudo isso constituiu uma pesada convulsão para a civilização camponesa. O
aparecimento do sentimento de ameaça aos valores vitais fundamentais por
parte de um inimigo mal compreendido, invisível, aumentou o nível de
agressividade. Isto criou premissas para o êxito da segunda variante, de
comando, da utopia tecnológica, pelos vistos diametralmente oposta à
primeira, que se apoia no stress que surge na psique popular… Na
civilização ocidental, além da corrente técnico-utópica que, actualmente, já
salta aos olhos, estão contidas enormes forças vitais. A nossa história criou
outras, muito diferentes, e a nossa via deve apoiar-se precisamente nelas…
A tentativa de repetir a obra alheia (e a História é um processo criativo)
conduz, normalmente, não a uma cópia exacta mas a um produto de
segunda qualidade. Só encontrando uma via nossa é possível, normalmente,
atingir um ou outro nível alto… Claro que a experiência ocidental deve ser
utilizada, mas com grande cuidado, não como modelo que é preciso
alcançar. É preciso mobilizar a experiência de todas as formas mais
orgânicas de vida: do capitalismo primitivo, do «terceiro mundo» e até das
sociedades primitivas.

Chafarevitch, I. Saída de debaixo das rochas. M., 199,


p. 41., 119-121, 155-159.
Nome: Soljenitsin, Aleksandr

Data e local de nascimento e de morte: 11 de Dezembro de 1918,


Kislovodsk, URSS-3 de Agosto de 2008, Moscovo, Rússia

Breve resenha biográfica: Escritor, poeta, dramaturgo, editor e activista


político. O pai de Aleksandr Soljenitsin morreu antes do nascimento do
filho, na sequência de um acidente de caça, e a mãe perdeu grande parte dos
seus bens materiais após a Revolução de Outubro, obrigando-a a mudar-se
para Rostov-no-Don após o nascimento do filho. Em criança, o escritor era
maltratado pelos colegas de escola por frequentar a Igreja e por se recusar a
aderir aos Pioneiros. Contudo, sob influência da escola, em 1936,
Soljenitsin adere ao Komsomol e, no mesmo ano, entra na Faculdade de
Matemática e Física da Universidade de Moscovo. Soljenitsin alistou-se
voluntariamente nas Forças Armadas e combateu na Segunda Guerra
Mundial. Foi nessa altura que se tornou mais crítico face a Estaline, o que
levou à sua prisão em 1945. Após a libertação do autor, em 1953, o mesmo
foi condenado ao exílio, tendo sido reabilitado em 1956. Soljenitsin
publicou algumas das suas obras na URSS, mas as principais só chegaram
aos leitores ocidentais, tendo-lhe, em 1970, sido atribuído o Prémio Nobel
da Literatura. Permaneceu na URSS até 1974, quando foi condenado por
traição à Pátria e lhe foi retirada a cidadania, sendo consequentemente
expulso do país. Durante a Perestroika, em 1990, é restituída a
nacionalidade a Soljenitsin, o que permite o seu regresso à pátria, sendo
posteriormente condecorado e reconhecido pelas autoridades, e onde
continuou a trabalhar até à sua morte, em 2008.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Anti-


comunista convicto, Aleksandr Soljenitsin era um acérrimo patriota russo.
No que concerne aos costumes, o escritor considerava-se um conservador e
crítico da perda de moralidade que, não raras vezes, atribuía ao Ocidente.
Desde o seu regresso à Rússia, em 1994, a imagem pública de Soljenitsin
passou de «traidor» – devido ao seu anti-sovietismo – para «guia espiritual»
do putinismo, defendendo uma Rússia forte e, por vezes, tomando posições
algo radicais, como a defesa da anexação da Ucrânia enquanto parte
integrante da Rússia.
Nesse âmbito, o escritor considerou também que o alargamento da NATO
para o Oriente da Europa representa um ataque continental à Rússia. As
«revoluções coloridas» são também, neste contexto, vistas por Soljenitsin
como criações ideológicas do Tratado do Atlântico Norte e enquanto
estratégia de penetração dos seus interesses na Ásia Central. Todas essas
acções teriam como objectivo final o cerco da Rússia e, por fim, a sua perda
de soberania.
Como devemos organizar a Rússia. Ideias realizáveis (1990)

A Cortina de Ferro Histórica defendia de forma excelente o nosso país de


tudo o que de bom há no Ocidente: da inquietação civil, do respeito pelo
indivíduo, da diversidade da actividade individual, do bem-estar geral, dos
movimentos de beneficência, mas essa cortina não chegou até baixo e para
ele escorreu o estrume da depravação da «cultura pop de massas»
decadente, das modas vulgaríssimas e dos custos da exposição pública, e
esses detritos foram avidamente absorvidos pela nossa juventude
desfavorecida: a ocidental andava louca de saciedade, mas a nossa, na
miséria, absorvia sem pensar as diversões dela. (As objeções contra tudo
isso são consideradas no nosso país conservadorismo primitivo. Mas é
instrutivo assinalar que, em Israel, se ouvem vozes preocupadas sobre
fenómeno semelhante: «A revolução cultural hebraica não foi realizada para
que o nosso país capitulasse perante o imperialismo cultural americano e os
seus subprodutos», «o lixo intelectual ocidental».)…
Iremos reorganizar gradualmente o organismo do Estado. É preciso
começar não de todo o lado ao mesmo tempo, mas de um dos extremos. E
claro que é preciso começar de baixo, dos locais. Alargar de forma paciente
e insistente os direitos da vida local mantendo um forte poder central.
Claro que iremos aceitar alguma forma política definida; devido à nossa
total inexperiência política, talvez não seja logo bem-sucedida, não se
adapte da melhor forma às necessidades do nosso país. É preciso procurar o
nosso caminho. Hoje convencemo-nos de que não é preciso procurar
qualquer caminho nosso, de que não é preciso pensar em nada, mas apenas
assimilar o mais rapidamente possível «como se faz no Ocidente».
Mas no Ocidente faz-se de forma mesmo diferente! Cada país tem a sua
tradição. Só nós não precisamos de olhar para o lado, nem dar ouvidos ao
que disseram as nossas pessoas inteligentes ainda antes do nosso
nascimento.
Digamos assim: a organização estatal é secundária em relação ao próprio
ar das relações humanas. Quando as pessoas são nobres – imaginemos
qualquer regime digno com pessoas exasperadas e covardes –, até a mais
brilhante democracia é insuportável. Se na nossa gente não há justiça e
honestidade, isso revela-se em qualquer sistema.
A vida política está longe de ser a principal forma de vida do homem, a
política está longe de ser a ocupação desejada pela maioria. Quanto mais
desajeitada é a vida política no país, tanto mais se perde a vida espiritual. A
política não deve devorar as forças espirituais e o lazer criativo do povo.
Além dos direitos humanos, o homem necessita de defender também a
alma, libertá-la para a vida do intelecto e dos sentidos…
Quando, em 1937, Estaline introduziu as nossas «eleições» burlescas, foi
obrigado a dar-lhe um aspecto de sufrágio universal-igual-directo-secreto
(«quatro hífens»), ordem que, no mundo actual, parece indubitável como
uma lei universal da natureza. Porém, depois da primeira da Revolução
Francesa (Constituição de 1791), a votação ainda não era assim: havia
limitações e desigualdade em diferentes censos. A ideia do direito eleitoral
universal venceu em França apenas na revolução de 1848. Na Inglaterra,
durante todo o século XIX, encontramos conhecidos combatentes pela
«ordem constitucional» que garantiam que nenhuma maioria se tornaria um
tirano para com a minoria, que no parlamento estaria representada toda a
diversidade de estratos da sociedade, que gozaria de respeito e teria
consciência perante o país. Isso visava conservar as bases do país em que
este cresceu. A partir de 1918, também a Inglaterra deslizou para a eleição
universal.
Dostoievski considerava que o sufrágio universal e igual é «a invenção
mais absurda do século XIX». Em todo o caso, ela não é a lei de Newton e é
permitido duvidar das suas propriedades. «Universal e igual» onde existe
uma desigualdade extrema de indivíduos, das suas capacidades, do seu
contributo para a vida social, idades diferentes, várias experiências de vida,
vário nível de enraizamento nesse local e nesse país? Ou seja, o triunfo da
quantidade oca sobre a qualidade rica. Mais, semelhantes eleições
(«gerais») pressupõem uma nação não estruturada, que ela não é um
organismo vivo, mas um conjunto mecânico de unidades dispersas.
«Secreto» também não é um embelezamento, isso permite facilitar a falta
de sinceridade ou responde, infelizmente, às necessidades do medo. Mas
ainda hoje na Terra há lugares onde elegem abertamente.
«Directo» (ou seja, os deputados de qualquer nível são eleitos
directamente em urnas eleitorais inferiores) é particularmente discutível
num país tão grande como o nosso. Ela condena os eleitores a não conhecer
os seus deputados, ficando com vantagem os mais hábeis de língua ou que
têm forte apoio nos bastidores.
Todas as particularidades do sistema eleitoral e as formas de contagem de
votos foram pormenorizadamente discutidas na Rússia por comissões,
comités partidários na Primavera e no Verão de 1917, pelo que a
Assembleia Constituinte perdeu tempo. E todos os partidos democráticos
manifestaram-se contra as eleições de quarto, terceiro e até segundo níveis
porque, com esse sistema eleitoral, estendia-se a cadeia do conhecimento
pessoal dos candidatos, os representantes eleitos estavam estreitamente
ligados ao seu local de origem, «à sua terriola», mas isso impedia todos os
partidos da possibilidade de apresentar os seus candidatos do centro. P. N.
Miliukov, dirigente dos democratas constitucionais, insistia que só as
eleições directas por grandes círculos «garantirão a eleição de
representantes intelectuais e politicamente preparados»…
E depois da eleição, o candidato torna-se representante do povo.
A democracia ateniense rejeitava qualquer «representação» como tipo de
oligarquia. Mas ela podia dar-se a esse luxo porque era pequena.
Ao contrário, os Estados Gerais de França de 1789, mal se reuniram,
aprovaram uma lei que estipulava que, a partir desse momento, cada
deputado era apenas parte dessa assembleia colectiva, que é a vontade do
povo. Dessa forma, cada deputado era afastado dos seus eleitores e da
responsabilidade pessoal perante eles.
As nossas quatro legislaturas seguidas da Duma Estatal reflectiram pouco
as profundezas e espaços da Rússia, apenas as camadas estreitas de algumas
cidades, a maioria da população, na realidade, não entendia o sentido das
eleições e dos partidos. E o nosso brilhante deputado V. Maklakov
reconheceu que a «vontade do povo» também pode ser ficção na
democracia: por ela apenas se entende a decisão da maioria do
parlamento…
A maioria está longe de se exprimir até nos sufrágios universais.
Frequentemente, a votação é muito fraca. Numa série de países ocidentais,
por vezes mais de metade dos eleitores e até 2/3 não votam, o que priva
esse acto de sentido. E por vezes o número de votantes é tal que uma
miserável vantagem é conseguida com o contrapeso de um minúsculo
partido pouco importante, este praticamente decide o destino do país ou a
sua política.
Enquanto princípio, isso foi há muito tempo previsto também por S. L.
Frank: e na democracia domina a minoria. Bem como V. V. Rozanov: «A
democracia é uma forma com a ajuda da qual a minoria organizada dirige a
maioria desorganizada.»
Na realidade, uma democracia ágil, bem oleada, sabe privar as pessoas
simples das forças de protesto, não lhes permitir falar. Também na
democracia há injustiças e os vigaristas escapam à responsabilidade. Esses
métodos estão espalhados pelas instituições da burocracia democrática e
tornam-se imperceptíveis. Hoje, até da democracia mais antiga do mundo, a
Suíça, nos chega um aviso preocupante (Hanz Staub): que as decisões
importantes são tomadas em lugares anónimos e não controlados, algures
nos bastidores, sob a influência de «grupos de pressão», de «lobistas».
Mesmo quando há igualdade jurídica universal, continua a existir
desigualdade de facto entre ricos e pobres, por conseguinte, entre mais
fortes e mais fracos. (Embora o nível da «pobreza», como é hoje
compreendido no Ocidente, seja muito, muito superior às nossas noções.) O
nosso jurista B. N. Tchitcherin assinalou ainda no século XIX que das
aristocracias de todos os tipos, uma emerge também na democracia: a
monetária. É inútil negar que, em democracia, o dinheiro garante o poder
real. Torna-se inevitável a concentração do poder nas mãos das pessoas com
muito dinheiro. Nos anos do socialismo podre, também no nosso país se
acumulou muito dinheiro na «economia paralela» e misturou-se com os
ases do funcionalismo público, e até nos anos da Perestroika estes últimos
enriqueceram-se na confusão das leis não claras e, agora, na linha da
partida, correm abertamente. Por isso é tanto mais importante travar no
início qualquer tipo de monopólio, para não permitir o seu poder absoluto.
Desencoraja também o facto de a pseudo-elite, originada pela moderna
publicidade competitiva, escarnecer do valor absoluto dos conceitos de
Bem e de Mal, escondendo a indiferença para com eles atrás do «pluralismo
de ideias» e dos actos.
A democracia europeia inicial estava repleta do sentimento de
responsabilidade, auto-disciplina cristã. Porém, essas bases espirituais
foram corroídas gradualmente. A independência espiritual é oprimida,
curva-se perante a ditadura da vulgaridade, da moda e de interesses dos
grupos.
Nós entramos na democracia no período em que ela não goza da melhor
saúde…
Das observações críticas acima escritas sobre a democracia moderna não
se deve concluir que a União da Rússia não necessita de democracia. É
muito necessária. Mas como o nosso povo está completamente impreparado
para a complexa vida democrática, ela deve ser construída gradualmente,
com paciência e solidez a partir de baixo, e não simplesmente proclamar a
alta voz e impetuosamente a partir de cima, logo em toda a sua dimensão e
amplitude.
Todas as insuficiências apontadas quase não dizem respeito à democracia
dos pequenos espaços: de uma pequena cidade, de uma vila, de uma aldeia,
de uma freguesia (grupo de aldeias) e de um distrito. Só em espaços destes
é que as pessoas poderão certamente determinar os seus eleitos, bem
conhecidos delas pelas capacidades empresariais, pelas qualidades
espirituais. Aqui não resistem reputações falsas, aqui não ajudam a
eloquência enganadora ou as recomendações dos partidos.
Esta é precisamente a dimensão em que pode crescer, reforçar-se e tomar
consciência a democracia russa. E isto é o mais vital e o mais certo para
nós, pois acontece na nossa localidade: ar e água não contaminados, as
nossas casas, apartamentos, os nossos hospitais, infantários, lojas,
fornecimento local, e irá contribuir vivamente para o aumento da iniciativa
económica local sem entraves.
Sem uma autogestão local correctamente organizada não pode haver vida
digna, o próprio conceito de «liberdade civil» perde sentido.
A democracia dos pequenos espaços é eficaz porque é directa. A
democracia é verdadeiramente eficaz onde existem assembleias populares, e
não representativas. Tais existiam já em Atenas e até antes. Tais funcionam
solidamente nos Estados Unidos e dirigem a vida local. Tive a felicidade de
ver isso na Suíça, no cantão de Appenzel…
A democracia dos pequenos espaços existiu durante séculos também na
Rússia. Foi, através de todos os séculos, o mundo rural russo e, nalgumas
épocas, as assembleias citadinas, a autogestão cossaca. No final do século
passado começou a crescer e percorreu um longo caminho mais uma forma
dela: zemstvo (autogestão local), infelizmente a nível de distrito e região,
sem raiz na autogestão municipal e sem o invólucro russo. O golpe de
Estado de Outubro destruiu violentamente toda a zemstvo, substituindo-a
por sovietes (conselhos), desde o início esmagados pelo partido comunista.
Esses sovietes foram maculados durante toda a História, desde 1918; estes
nunca foram uma autogestão real a qualquer nível. As envergonhadas
mudanças eleitorais hoje introduzidas também não podem salvar essa
forma, ela não garante os interesses locais com a sua influência através de
toda a estrutura de baixo a cima. Considero que é preciso substituir, passo-
a-passo, de baixo a cima, os «sovietes de deputados» pelo sistema de
zemstvo.

Soljenitsin, A. Como devemos organizar a Rússia. Ideias realizáveis.


L., 1990, p. 25-28, 38-39, 42, 44-45, 47-49.
Nome: Gumilov, Lev

Data e local de nascimento e de morte: 1 de Outubro de 1912, São


Petersburgo, Império Russo-15 de Junho de 1992, São Petersburgo, Rússia

Breve resenha biográfica: Historiador, etnólogo, arqueólogo,


orientalista, escritor e tradutor. Filho dos célebres poetas Anna Ahmatova e
Nikolai Gumilov. Os primeiros anos de Lev Gumilov foram passados em
Tsarskoe Selo, que abandonaram em 1917, perante a ameaça de pogroms.
No ano seguinte, os seus pais divorciaram-se e Lev foi criado praticamente
pela sua avó paterna, Anna Gumilova, que sempre tentou afastar-se e
proteger o neto do modo de vida soviético, mantendo, por exemplo, as
amizades que tinha com personalidades do meio religioso. Em 1930, Lev
Gumilov tentou entrar no ensino superior, mas não foi aceite, tendo
seguidamente começado a trabalhar como operário e a participar em
diversas expedições científicas. Em 1934, Gumilov entrou na Faculdade de
História da Universidade de Leninegrado, mantendo a participação em
expedições e aprendendo as línguas francesa, alemã e inglesa. Em 1935,
Lev Gumilov foi detido pela primeira vez devido ao seu anti-sovietismo,
tendo sido libertado graças à intervenção da mãe junto de Estaline, o que
não evitou a sua expulsão da universidade. Seguiram-se anos de prisão e
campos de trabalho forçado, bem como o serviço militar entre 1944 e 1945,
ano em que voltou aos estudos, que concluiu em 1949. Seguidamente, foi
novamente detido, continuando o trabalho académico até à sua libertação
em 1956. Após esta libertação continuou os trabalhos científicos na área da
História e Arqueologia, leccionando, desde 1967 até à sua morte, em
universidades.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Lev


Gumilov propôs um modelo universal de etnogénese, que se baseava em
dados não só da História, mas também da Geografia e da Biologia. De
acordo com essa tese, a «linha da liberdade» não liberta o indivíduo da
acção da natureza e o livre arbítrio é um grande peso moral que pode ser
medido através da consciência, uma dívida do homem perante a natureza.
Nos seus estudos, Gumilov focou-se na forma como o meio-ambiente e o
clima influenciam no modelo económico, e através deste na organização
social e política dos mesmos.
No que concerne à posição da Rússia no mundo, Lev Gumilov estudou a
complementaridade positiva dos povos euroasiáticos com a Rus e a Grande
Estepe, pois todos se viam enquanto pares. Graças ao princípio da amizade
dos povos, os Russos sobreviveram à guerra secular, incluindo no super-
etnos dos eslavos orientais, oriundos da Rus de Kiev, os eslavos ocidentais
e os Turcos.
O fim e novamente o princípio (finais dos anos 1970-1990)

Depois da reforma na Europa começou uma luta entre a união protestante


e a liga católica, que se prolongou por 30 anos: a Guerra dos Trinta Anos,
que envolveu toda a Europa; a Rússia não podia ficar neutra. De que lado
devia ficar a Rússia Ortodoxa, para quem a disputa entre Lutero e o Papa
era indiferente? Os Russos não reconheciam nem um, nem outro, eles
tinham a sua crença sacro-nacional, recebida de Bizâncio. Mas não
obstante… Embora a dogmática e o culto ortodoxo e da Igreja Católica
coincidissem muito claramente, os Russos viram-se do lado da união
protestante; imediatamente, eles lançaram as suas tropas, nos arredores de
Smolensk, contra a Polónia, que se manifestou categoricamente pelo
Catolicismo, esmagando cruelmente a própria reforma. A reforma atingiu a
Polónia, os próprios Polacos chamavam arianos aos polacos protestantes.
Então, os Polacos derrotaram-nos nos arredores de Smolensk, obrigaram o
exército russo a capitular, a entregar a artilharia e a baixar os estandartes.
Mas os Russos são um povo esperto: «Pois bem – dizem eles –, se nós não
conseguimos combater directamente com os Polacos, porque estes nos
derrotam, então vamos derrotá-los de outra forma.» E então começaram a
oferecer cereais ao rei sueco. A Suécia era um país pobre, com uma
população de dois milhões de habitantes e sem quaisquer recursos
materiais. E nessa altura, na Europa em guerra, claro que os cereais eram
muito caros. Não havia braços nem tempo para trabalhar a terra e era
perigoso pois era necessário esconder-se dos soldados, dos alheios e dos
seus. Por isso, os cereais russos revelaram-se um poderoso factor de luta.
Depois de receber algumas caravanas de navios com cereais em Estocolmo,
o rei sueco armou imediatamente um exército de 20 000 homens e derrotou
as tropas austríacas em todo o território da Alemanha, o que trouxe a vitória
aos protestantes, embora não definitiva.
Como todos se recordam, os Russos começaram, nessa altura, no século
XVII, a chamar do Ocidente peritos em todas as áreas da arte militar, da
tecnologia e da indústria, mas só de países protestantes. Aceitavam ingleses,
aceitavam suecos, aceitavam alemães setentrionais (estes vieram em grande
quantidade), holandeses. É verdade que os ingleses ocupavam a posição
intermédia entre protestantes e católicos e os holandeses a extrema. Mas,
em 1650, em Inglaterra, teve lugar uma revolução e, na mesma altura,
terminou o prazo de vigência do acordo comercial entre a Rússia e a
Inglaterra. O comércio era feito através de Arkhanguelsk. Quando o
governo de Cromwell pediu o prolongamento da vigência do tratado, o
governo de Aleksei Mikhailovitch respondeu: «Porque os Ingleses
assassinaram o seu rei Carlos, o Grande Senhor de Moscovo e de Toda a
Rússia ordenou não permitir a entrada de ingleses em terra russa», e assinou
um acordo com os Holandeses. Desse modo, o comércio tinha lugar
exclusivamente com países puramente protestantes, a absorção de
conhecimentos ocorreu pela via dos contactos com a Europa protestante.
É verdade que, na Rus, não havia uma opinião apenas. Muitos propunham
que se evitasse os contactos com a Europa Ocidental, mas não tiveram
êxito. Havia um partido que tentava estabelecer contactos com a Áustria e a
França: o boiardo V. V. Golitzyn e a czarina Sofia. Embora tivessem
conseguido êxitos temporários, venceu o partido protestante, dirigido pelo
príncipe Romodonovski, pela família dos Narychkin e pelo representante
dessa camarilha, o jovem czar Pedro, que preferia o contacto com os
protestantes.
Há aqui ligação? Existe aqui alguma correspondência no clima entre a
Rússia e a Europa protestante? Verifiquemos. Se a Europa protestante não
se harmonizou com os Índios, como é que a Rússia devia relacionar-se com
os Índios e estes com os Russos? Vejamos, não vamos adivinhar…
Os exploradores russos chegaram à Chukotka quase sem encontrar
resistência. É verdade que com os Chukchas as coisas não correram bem;:
os chukchas americanóides rechaçaram os cossacos e não os deixaram
entrar nas suas terras. Penetraram na América através das ilhas Aleutas. As
ilhas Aleutas eram um território riquíssimo em animais marinhos com peles
preciosas. Os missionários russos converteram os Aleútes à Ortodoxia.
Hoje, os Aleútes continuam a ser ortodoxos, até têm o seu bispo ortodoxo.
Os Russos tiveram de enfrentar os Aleútes, chegaram à costa da América,
encontraram os Esquimós e estabeleceram com eles também um contacto
total. Encontraram-se com os Índios! E aqui começou! Os primeiros
marinheiros russos que desembarcaram para estabelecer contacto com a
população local foram todos assassinados pelos Índios. Posteriormente, não
foi possível submeter os Tlinquites, que viviam ao longo da costa do oceano
Pacífico, a sul do Alasca, embora o território fosse considerado América
russa. Para além dos Tlinquites, na bacia do Iucão, viviam os Atapacas, dos
quais, a propósito, faziam parte as famosas tribos dos Apaches e dos
Navajos, expulsos do Norte para a fronteira com o México. Este povo é
muito corajoso e guerreiro. Os Russos não se metiam muito com ele, mas,
seja como for, com os Atapacas não havia paz. Éramos apoiados apenas
pelos Aleútes e Esquimós e, por conseguinte, precisamente nas costas do
mar e do Estreio de Bering havia povoações russas, onde o russo podia
viver em segurança. Os Russos penetraram na Califórnia, até São Francisco,
quando aí ainda não existiam quaisquer povoações europeias, nem anglo-
saxónicas, nem espanholas. Mais tarde, os Espanhóis fizeram avançar
várias unidades para travar o movimento russo, mas não se registou
qualquer confronto, simplesmente os oficiais espanhóis ficaram aí como
fazendeiros: criaram manadas de gado e ficaram a viver sem fazer nada.
Mas os Russos não ficaram nesses lugares porque os Índios não os
apoiaram, não houve contactos com os Índios. Porquê? É claro que pela
mesma razão pela qual não houve contacto entre Índios e Ingleses, mas
estes, ao contrário dos Russos, lançaram enormes forças e exterminaram
quase todos os índios, tendo sido os restantes encerrados em reservas. Esta
foi uma operação crudelíssima, pela qual todo o grupo étnico anglo-
saxónico é responsável perante a História. Os nossos antepassados não
optaram por esse genocídio; preferiram retirar-se para os lugares onde havia
contacto com a população e limitaram-se à Sibéria, às ilhas Aleutas e ao
Alasca. Depois, o Alasca foi vendido à América e, na Sibéria, o contacto
com a população foi total.
Outro exemplo. Os Russos estabeleceram contacto com os Mongóis no
século XIII, mas os Chineses nunca souberam estabelecer contacto com os
Mongóis. Mas também os católicos europeus não conseguiram fazer isso.
Por conseguinte, eles tiveram de saber estabelecer contacto com os
Chineses? E assim foi! No início do século XX havia 30 milhões de
católicos chineses. A mensagem católica teve um êxito muito grande na
China. As missões ortodoxas não conseguiram semelhante êxito e, se
souberam converter alguém, só aconteceu na Manchúria do Norte, onde
viviam povos não-chineses. Embora lhes chamemos chineses, não são
chineses, mas manchus. Eles encontraram facilmente formas de
coexistência com os Russos e, em alguns lugares, teve lugar uma
mestiçagem com resultados bastante positivos. Os cossacos de Transbaikal
são uma mistura de mongóis e russos, e não só de homens russos com
mulheres mongóis, mas também de homens mongóis com mulheres russas;
as mulheres russas siberianas casavam-se de boa vontade com os Mongóis:
eram bons maridos, honestos, fortes, em quem se pode acreditar.

Gumilov, L.N. O fim e novamente o princípio. M., 1994, p. 275-278


Nome: Sakharov, Andrei

Data e local de nascimento e de morte: 21 de Maio de 1921, Moscovo,


URSS-14 de Dezembro de 1989, Moscovo, URSS

Breve resenha biográfica: Físico. Filho de um físico e de uma


doméstica, Andrei Sakharov recebeu a sua formação inicial em casa, tendo
entrado para a escola no sétimo ano. Ao terminar os estudos, em 1938,
Andrei Sakharov ingressou na Faculdade de Física da Universidade de
Moscovo. Após concluir os estudos, em 1944, Sakharov passou a trabalhar
no Instituto de Física Lebedev, junto da Academia de Ciências da Rússia.
Não obstante ter sido um dos criadores da bomba de hidrogénio, a partir da
década de 1950 tornou-se activista contra o desenvolvimento de armas
nucleares. Desde a década de 1960 foi um acérrimo defensor dos Direitos
Humanos na URSS, sendo que, em 1972, casou em segundas núpcias com
Elena Bonner, também ela activista. Em 1980, Sakharov e Bonner foram
exilados em Gorki, na sequência do seu ativismo, tendo sido autorizado o
seu regresso a Moscovo apenas em 1986, já com a Perestroika. Em 1988, o
físico desloca-se pela primeira vez ao estrangeiro, nomeadamente aos EUA,
onde se encontra com alguns dos líderes políticos mundiais. Em 1989, foi
eleito deputado e participava na escrita da Constituição quando, faleceu, de
forma repentina, de ataque cardíaco.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: De
acordo com a mundividência de Sakharov, a maioria das pessoas do mundo,
não obstante as suas diferenças e experiências históricas, deseja, sobretudo,
a paz. A paz é a possibilidade de felicidade pessoal, o objectivo da vida
humana, já a guerra representa o sofrimento e a morte. Os governantes não
conseguem ignorar o ardente desejo de paz dos seus súbditos.
Porém, a vida é complexa e cheia de contradições, e, infelizmente, repleta
de factores que não são controláveis e que objetivamente empurram as
lideranças de diferentes países para acções perigosas e, consequentemente,
todo o mundo, para o limiar da catástrofe. Essa falsa lógica apenas serve
para manter o poder e evitar os compromissos e reformas necessários. A
necessidade de expansão, a luta pela esfera de influência deve-se, por vezes,
à percepção errónea da necessidade de garantir a paz – tanto por parte da
URSS como dos EUA no âmbito da Guerra Fria –, mas é, sobretudo, fruto
de um falso e perigoso messianismo, como no caso da URSS. As acções
perigosas destruíam as bases do equilíbrio internacional, sendo fruto do
medo e da desconfiança internacional e reforçadas pelo isolacionismo e
pela lógica do armamento, contribuíram para que pequenos conflitos locais
degenerassem em grandes confrontos globais.
Posfácio ao memorando (1972)

Continuo a não poder deixar de valorizar as mudanças salutares (sociais,


culturais, económicas) que ocorreram no nosso país nos últimos 50 anos,
tendo, porém, presente que mudanças análogas tiveram lugar noutros países
e que elas são uma manifestação do progresso universal.
Continuo a considerar que a superação das contradições e perigos trágicos
da nossa época só é possível na via da aproximação e da transformação
simultânea do capitalismo e do regime socialista.
Nos países capitalistas, esse processo deve ser acompanhado do posterior
reforço dos elementos de segurança social dos direitos dos trabalhadores, do
enfraquecimento do militarismo e da sua influência na vida política. Nos
países socialistas também é necessário o enfraquecimento das
manifestações extremas de centralismo e do monopólio burocrático do
Partido e do Estado, tanto no campo económico da produção e consumo
como na área da ideologia e da cultura.
Continuo a atribuir primordial importância à democratização da
sociedade, ao desenvolvimento da transparência, da legalidade, à garantia
dos direitos fundamentais do homem.
Continuo a ter esperança na evolução da sociedade nessas direcções sob a
acção do progresso técnico-científico, embora os meus prognósticos se
tenham tornado mais contidos.
Hoje, mais do que antes, parece-me que a liberdade das convicções do
homem, o seu anseio espiritual de bem são a única garantia verdadeira da
conservação dos valores humanos no caos das mudanças incontroláveis e de
convulsões trágicas…
A militarização da economia deixa uma profunda marca na política
externa e interna, conduz a violações da democracia, da transparência e da
legalidade, cria uma ameaça ao mundo. Está bem estudado o papel do
complexo militar-industrial na política dos EUA. Está menos estudado o
papel análogo desses factores na URSS e noutros países socialistas. Porém,
é necessário assinalar que em país nenhum a fatia das despesas militares,
em comparação com o rendimento nacional, atingiu dimensões como na
URSS (mais de 40 por cento).

Mundo, progresso, direitos humanos (1975)

Todas as principais facetas do progresso estão estreitamente ligadas entre


si, não se pode anular nenhuma delas sem se correr o risco de destruir todo
o edifício da civilização, pois o progresso é indivisível. Mas os factores
intelectuais, espirituais desempenham especial papel no mecanismo do
progresso. A subestimação destes factores, principalmente difundida nos
países socialistas, talvez sob a influência dos dogmas ideológicos vulgares
da filosofia oficial, pode conduzir à deturpação das vias de progresso ou até
ao seu fim, à estagnação. O progresso só é possível e seguro se estiver sob o
controlo da Razão. O problema importantíssimo da protecção do meio
ambiente é um dos exemplos onde é particularmente claro o papel da
transparência, da abertura da sociedade, da liberdade de convicções. Só a
liberalização parcial, que ocorreu no nosso país após a morte de Estaline,
tornou possível as discussões públicas por todos nós recordadas da primeira
metade dos anos 60 sobre esse problema, mas a sua solução eficaz exige o
posterior reforço do controlo social e internacional. O emprego militar dos
êxitos da ciência, o desarmamento e o controlo deste são outra área crítica
onde a confiança internacional depende da transparência e da abertura da
sociedade. Hoje, o citado exemplo de direcção do comportamento massivo
das pessoas, não obstante o seu exotismo externo, também é bem actual.
A liberdade de convicções, a existência de uma opinião pública culta, o
carácter pluralista do sistema de educação, a liberdade de imprensa e de
outros meios de informação fazem-se sentir fortemente nos países
socialistas devido ao monismo económico, político e ideológico que lhe é
inerente. Todavia, estas condições são vitalmente importantes não só para
evitar os abusos do progresso, conscientemente ou por ignorância, mas
também para a sua manutenção. É particularmente importante que só numa
atmosfera de liberdade intelectual é possível um sistema eficaz de ensino e
de continuidade criativa das gerações. Pelo contrário, a clausura intelectual,
o poder da burocracia aborrecida, o conformismo, derrotando, inicialmente,
as áreas humanitárias do conhecimento, a literatura e a arte, conduzem
irreversivelmente a um declínio intelectual geral, à burocratização e à
formalização de todo o sistema de ensino, ao declínio das investigações
científicas, ao desaparecimento da atmosfera de investigação criativa, à
estagnação e desintegração.
Actualmente, num mundo polarizado, os países totalitários, graças ao
desanuviamento, passaram a ter a possibilidade de um parasitismo
intelectual particular e parece que, se não ocorrerem essas movimentações
internas sobre cuja necessidade todos nós pensamos, eles, dentro em breve,
terão de enveredar por essa via. Um dos possíveis resultados do
desanuviamento é precisamente esse. Se isso ocorrer, o perigo de explosão
da situação mundial poderá apenas aumentar. O mundo precisa vitalmente
da cooperação multilateral entre os países do Ocidente, os países socialistas
e em desenvolvimento, incluindo o intercâmbio de conhecimentos, de
tecnologias, a ajuda mútua comercial, económica, nomeadamente alimentar.
Mas esta cooperação deve ter lugar na base da confiança de sociedades
livres, como dizem, com alma aberta, na base da verdadeira igualdade, e
não na base do medo das forças democráticas perante os vizinhos
totalitários. Neste último caso, a cooperação significaria simplesmente uma
tentativa de prendar, adular o vizinho terrível. Mas semelhante política
apenas adia sempre a desgraça, que, pouco tempo depois, entra por outra
porta com forças decuplicadas, isso é simplesmente uma nova forma da
política de Munique. O êxito estável do desanuviamento só é possível se
desde o início for acompanhado de uma preocupação constante com a
abertura de todos os países, com o aumento do nível da transparência, com
a troca livre de informação, com o respeito obrigatório em todos os países
dos direitos civis e políticos; resumindo, completando o desanuviamento na
esfera material do desarmamento e do comércio com o desanuviamento na
esfera espiritual e ideológica.

Sakharov, A., Paz, Progresso, Direitos Humanos. L., 1990,


p.32-33, 54-56.
CAPÍTULO X

PROPOSTAS PARA O FUTURO?

Após a desintegração da União Soviética em 1991, os 15 países que dela


nasceram optaram por várias vias de desenvolvimento. A Rússia viu-se num
vácuo ideológico onde políticos e pensadores tentaram procurar um rumo
novo para dar ao seu país. As forças que tomaram o poder na Rússia,
chefiadas pelo presidente Boris Ieltsin, identificavam-se, pelo menos no
plano da palavra, com o mais radical liberalismo ocidental, realizando, na
prática, uma política económica e social desastrosa. A reacção dos
opositores, salvo raras excepções, foi desenterrar as facetas mais
retrógradas do eslavofilismo, do eurasismo, do nacionalismo russo e do
estalinismo. Guennadi Ziuganov, presidente do Partido Comunista da
Federação da Rússia, apresentou um programa político onde se mistura a
defesa do estalinismo e do tradicionalismo da Igreja Ortodoxa russa, dando
origem a uma espécie de nacional-comunismo. Alexandre Duguin
recauchuta a ideia de «Moscovo – Terceira Roma», envolvendo-a de uma
terminologia mais moderna e atraente, mas, no fundo, aproximando-se do
mais cavernoso nacionalismo.
Tendo em conta o papel do presidente Vladimir Putin na sociedade russa,
é importante analisar o seu percurso ideológico desde a chegada ao
Kremlin, em 2000, e até à actualidade. Defensor da aproximação à Europa e
ao Ocidente no início do seu primeiro mandato, pelo menos nas palavras, o
seu discurso evoluiu no sentido do nacionalismo, do militarismo e da
autocracia. Isto deve-se, em primeiro lugar, ao facto de a comunidade
mundial não receber a Rússia como uma superpotência, mas apenas como
uma potência regional. Segundo, torna-se cada vez mais evidente que o país
perde o «comboio da modernização», não tendo os seus dirigentes sabido
aproveitar a «chuva de dólares», proveniente do aumento do preço dos
combustíveis no mercado internacional, para renovar ou criar novas
infraestruturas, mas tão só para enriquecimento próprio. Neste contexto,
Putin tenta apresentar, com a bênção e o apoio da Igreja Ortodoxa russa, o
seu país – o «portador do bem, da Ortodoxia» – como alternativa ao
«Ocidente decadente e depravado»; e realizar uma política militarista de
mobilização para desviar as atenções dos cidadãos russos da situação real
no país. Normalmente, este tipo de política conduz a um beco sem saída, ou
melhor, a uma situação social e política explosiva. Nesse sentido, o
Presidente russo não tem em conta a história do seu próprio país.
Nome: Duguin, Aleksandr

Data e local de nascimento: 7 de Janeiro de 1962, Moscovo, URSS

Breve resenha biográfica: Filósofo, sociólogo, politólogo, tradutor e


activista político. O pai de Aleksandr era o general Geli Duguin e a mãe a
médica Galina Duguina, tendo o pensador nascido e crescido em Moscovo.
Não tendo concluído os estudos no Instituto de Aviação de Moscovo, de
onde foi excluído no segundo ano, formou-se posteriormente em Sociologia
e Filosofia, onde obteve o grau de Doutor. Entre 2009 e 2014, Duguin
dirigiu a cátedra de Relações Internacionais da Faculdade de Sociologia da
Universidade de Moscovo, tendo sido, por fim, demitido devido à excessiva
politização das matérias que leccionava. Na década de 1980 começou a
fundar associações de inspiração mística e de extrema-direita. A partir dos
anos 1990, Aleksandr Duguin dirigiu diversas publicações políticas,
filosóficas e geopolíticas. Em 2015, passou a integrar a lista de sanções
ocidentais contra a Rússia devido ao seu apoio aberto à anexação da
Crimeia.
Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Na
década de 1980, Aleksandr Duguin era um convicto anti-comunista e crítico
do regime soviético. Contudo, com a Perestroika e a queda da URSS, o
pensador alterou a forma como encarava tanto a ideologia comunista como
a URSS, considerando que a sua derrota na Guerra Fria representa, do
ponto de vista geopolítico, a vitória das «civilizações do mar» sobre as
«civilizações continentais». A partir dos anos 2000, Duguin autoproclama-
se líder do eurasismo na Rússia e defensor do conservadorismo,
considerando que estes dois princípios deveriam criar a base ideológica do
poder russo que, na sua opinião, naquela altura, padecia de ausência de
qualquer base ideológica. Segundo Aleksandr Duguin, o paradigma da
modernidade nasceu na Europa Ocidental e não foi capaz de se enraizar em
solo russo – nem sequer na sua elite dirigente de âmbito político,
económico e cultural –, sendo que a maioria da população russa ainda vive
o paradigma arcaico, causando assim um conflito no seio da sociedade.
Com base nesses preceitos, Duguin desenvolve a quarta teoria política, que
se deverá tornar no passo evolutivo após a concretização das primeiras três
teorias, nomeadamente o liberalismo, o socialismo e o fascismo. Assim, a
acção política deste pensador está dirigida no sentido da criação de uma
superpotência euroasiática através da integração da Rússia com ex-Estados-
membros da URSS numa nova União Euroasiática. Sendo um convicto
apoiante de Vladimir Putin, Aleksandr Duguin defende que, aproveitando-
se da heterogeneidade da elite política russa, os países ocidentais
infiltraram-na de espiões que tentam, constantemente, sabotar as acções
positivas do topo da hierarquia política. Assim, Duguin considera-se um
opositor tanto dos liberais ocidentalistas, como dos nacionalistas.
Quarta teoria política

Final do século XX: fim da época do Moderno


O século XX terminou, mas apenas agora começamos a tomar realmente
consciência disso. O século XX foi o século das ideologias. Se, nos séculos
anteriores, as religiões, as dinastias, os estratos sociais, os Estados-nações
desempenharam um enorme papel na vida dos povos, no século XX a
política passou para um campo puramente ideológico, redesenhando o mapa
do mundo, das etnias e das civilizações num novo sentido. Em parte, as
ideologias políticas encarnavam tendências civilizacionais anteriores, mais
profundas. Em parte, eram completamente inovadoras.
Todas as ideologias políticas que atingiram o cume da sua expansão e
influência no século XX foram originadas na Idade Contemporânea e
encarnavam, embora de forma diferente e até com sinal diferente, o espírito
do Moderno. Hoje abandonamos impetuosamente essa época. Por isso, cada
vez mais frequentemente se fala da «crise das ideologias» e até do «fim das
ideologias»23 (por exemplo, na Constituição da Federação da Rússia nega-se
directamente a existência de uma ideologia de Estado. Chegou o momento
de nos debruçarmos mais atentamente sobre essa questão).
Três principais ideologias e seus destinos no século XX
As três ideologias fundamentais do século XX foram:
• O liberalismo (de direita e de esquerda);
• O comunismo (incluindo tanto o marxismo, como o socialismo e a
social-democracia);
• O fascismo (incluindo o nacional-socialismo e outras diversidades de
«terceira via»: o nacional-sindicalismo de Franco, o «justicialismo» de
Perón, o regime de Salazar, etc.).
Elas lutaram entre si num combate de morte, formando, no fundo, toda a
história política dramática e sanguinária do século XX. É lógico dar um
número de ordem a estas ideologias (teorias políticas), tanto quanto à sua
importância, como quanto à ordem de aparecimento, o que foi feito acima.
O liberalismo é a primeira teoria política. Este surgiu primeiro (ainda no
século XVIII) e mostrou ser o mais sólido e bem-sucedido, vencendo, no fim
de contas, os seus adversários na aposta histórica. Com esta vitória, provou,
entre outras coisas, a solidez da sua pretensão à totalidade da herança da
época do Renascimento. Hoje é evidente, foi precisamente o liberalismo
que correspondeu de forma mais precisa à época do Moderno. Embora,
antes, isso fosse posto em causa (de forma dramática, activa e, por vezes,
convincente) por outra teoria política, o comunismo.
É justo chamar ao comunismo (tal como ao socialismo em todas as suas
variantes) a segunda teoria política. Este apareceu depois do liberalismo,
como reacção crítica ao estabelecimento do sistema burguês-capitalista,
cuja expressão ideológica foi o liberalismo.
E, finalmente, o fascismo é a terceira teoria política. Reivindicando sua
interpretação do espírito do Moderno (numerosos estudiosos, incluindo
Hannah Arendt24, consideram justamente o totalitarismo como uma das
formas políticas do Moderno), o fascismo, ao mesmo tempo, foi buscar
ideias e símbolos da sociedade tradicional. Nuns casos deu origem a um
ecleticismo, noutros a um desejo dos conservadores dirigirem a revolução,
no lugar de resistir a esta e conduzir a sociedade no sentido contrário
(Arthur Moeller van den Bruck, D. Merejkovski, etc.).
O fascismo surgiu mais tarde do que as outras teorias políticas e
desapareceu antes delas. A aliança da Primeira Teoria Política e da Segunda
Teoria Política e os erros geopolíticos suicidas de Hitler derrubaram-no
quando levantava voo. A Terceira Teoria Política morreu de «morte
violenta», sem conhecer a velhice e a decomposição natural (contrariamente
à URSS). Por isso, esse vampírico fantasma sangrento, matizado pela aura
do «mal universal», é tão atraente para os gostos decadentes do pós-
modernismo e continua a assustar a humanidade.
Ao desaparecer, o fascismo abriu lugar para um combate entre a Primeira
Teoria Política e a Segunda. Ele decorreu sob a forma de «guerra fria» e
originou uma geometria estratégica do «mundo bipolar» que existiu durante
quase meio século. Em 1991, a Primeira Teoria Política (o liberalismo)
venceu a Segunda (socialismo). Foi o declínio do comunismo mundial.
Sendo assim, no final do século XX, das três teorias políticas capazes de
mobilizar massas de muitos milhões em todo o planeta, restou apenas uma:
a liberal. Mas quando aquela ficou sozinha, todos falaram em coro sobre o
«fim das ideologias». Porquê?

Fim do liberalismo e do pós-liberalismo

Aconteceu que a vitória do liberalismo (da primeira teoria política)


coincidiu com o seu fim. Mas este é apenas um paradoxo aparente.
Inicialmente, o liberalismo era uma ideologia. Não tão dogmática como o
marxismo, mas não menos filosófica, organizada e refinada.
Ideologicamente, o liberalismo opunha-se ao marxismo e ao fascismo,
conduzindo contra aqueles não apenas uma guerra tecnológica pela
sobrevivência, mas defendendo o direito à formação monopolista da
imagem do futuro. Enquanto as outras ideologias concorrentes estavam
vivas, o liberalismo reforçava-se e tornou-se forte precisamente como
ideologia, isto é, como um conjunto de ideias, opiniões e projectos próprios
do sujeito histórico. Cada uma destas três teorias políticas tem o seu sujeito.
A classe era o sujeito do comunismo. O sujeito do fascismo era o Estado
(no fascismo italiano de Mussolini) ou a raça (no nacional-socialismo de
Hitler). No liberalismo, o sujeito é o indivíduo libertado de todas as formas
de identidade colectiva, de toda a «pertença» (l’appartenance).
Enquanto a luta ideológica tinha adversários formais, povos e sociedades
inteiras (pelo menos teoricamente) podiam escolher que sujeito apoiar: o de
classe, o de raça (estatal) ou o individual. A vitória do liberalismo resolveu
essa questão, o indivíduo tornou-se o sujeito normativo dentro de toda a
humanidade.
É aqui que surge o fenómeno da globalização, que se faz sentir o modelo
de sociedade pós-industrial e que começa a época do pós-modernismo. A
partir daí, o sujeito individual não é resultado de eleição, mas sim de uma
realidade universalmente válida. O homem é libertado da «pertença», a
ideologia dos direitos humanos torna-se universal (pelo menos em teoria) e,
de facto, obrigatória para todos.
A humanidade, constituída por indivíduos, inclina-se naturalmente para a
universalidade, torna-se global e una. Assim nasce o projecto do «Estado
mundial» e do «governo mundial» (globalismo).
O novo nível de desenvolvimento tecnológico permite atingir a
independência da estruturação por classes das sociedades industriais (pós-
industrialismo).
Os valores do racionalismo, da ciência e do positivismo são reconhecidos
como «formas disfarçadas de estratégias repressivas totalitárias» (grandes
narrativas) e são sujeitos a crítica, com a glorificação paralela da liberdade
total e da independência do princípio individual de quaisquer factores de
contenção, nomeadamente da razão, da moral, da identidade (social, étnica,
até de género), da disciplina, etc. (pós-modernismo).
Nesta etapa, o liberalismo deixa de ser a Primeira Teoria Política, mas
torna-se a única prática pós-política. Chega o «fim da história», a política é
substituída pela economia (pelo mercado mundial), os Estados e as nações
são lançados para o caminho da globalização mundial.
Depois de vencer, o liberalismo desaparece, transformando-se numa coisa
diferente: no pós-liberalismo. Este não tem mais dimensão política, não é
mais assunto da liberdade de escolha, mas torna-se uma espécie de
«destino» (daí a tese da sociedade pós-industrial: «a economia é o
destino»).
Por isso, o início do século XXI coincide com o momento do fim das
ideologias, de todas as três. Elas têm um final diferente: a Terceira Teoria
Política foi destruída no período da «mocidade», a Segunda morreu de
podre, a Primeira degenerou noutra coisa, no pós-liberalismo, numa
«sociedade de mercado global». Mas, em todo o caso, todas as teorias
políticas que existiram no século XX, sob a forma em que existiram, não
servem para mais nada, não são eficazes, não são relevantes. Elas nada
explicam e não nos ajudam a compreender o que se passa nem a responder
aos desafios globais. Desta constatação advém a necessidade de uma Quarta
Teoria Política.

Quarta Teoria Política como oposição ao status quo

A Quarta Teoria Política não nos pode ser dada por si só. Ela pode surgir
ou pode não surgir. A discordância é a premissa do seu aparecimento. A
discordância com o pós-liberalismo enquanto prática universal, com a
globalização, com o pós-modernismo, com o «fim da história», com o
status quo, com o desenvolvimento inerte dos princípios civilizacionais
fundamentais no início do século XXI.
O status quo e a inércia não pressupõem quaisquer teorias políticas. O
mundo global deve ser dirigido só por leis económicas e pela moral
universal dos «direitos humanos». Todas as soluções políticas são
substituídas por técnicas. A técnica e a tecnologia substituem todo o resto (o
filósofo francês Alain de Benoist chama a isso la gouvernance). O lugar dos
políticos que tomam decisões históricas é ocupado por gestores e
tecnólogos, que optimizam a logística da gestão. A massa das pessoas é
equiparada a uma massa única de objectos individuais. Por isso, a realidade
pós-liberal (mais precisamente, a virtualidade, que põe cada vez mais de
lado a realidade) conduz directamente ao desaparecimento total da política.
Podem retorquir: os liberais «mentem» quando falam do «fim da
ideologia» (nisto consistiu a minha polémica com o filósofo A. Zinoviev);
«na realidade», eles continuam fiéis à sua ideologia e apenas negam o
direito à existência a todas as restantes. Isso não é bem assim. Quando o
liberalismo se transforma de princípio ideológico em único conteúdo da
existência social e tecnológica existente, isso já não é «ideologia», isso é
um facto da vida, uma ordem «objectiva» das coisas que não é
simplesmente difícil de contestar, mas é absurda. Na época do pós-
modernismo, o liberalismo passa da esfera do sujeito para a esfera do
objecto. Numa perspectiva futura, isso levará à substituição completa da
realidade pela virtualidade.
A Quarta Teoria Política é pensada como alternativa ao pós-liberalismo,
não como uma construção ideológica em relação a outra construção
ideológica, mas sim como uma ideia que se contrapõe à matéria; como uma
possibilidade que entra em conflito com a realidade; como um ataque não
existente lançado contra um já existente.
Além disso, a Quarta Teoria Política não pode ser uma continuação nem
da Segunda Teoria Política, nem da Terceira. O fim do fascismo, tal como o
fim do comunismo, não foi simplesmente um equívoco ocasional, mas uma
expressão totalmente clara da lógica da História. Aqueles lançaram um
desafio ao espírito do Modernismo (o fascismo quase abertamente, o
comunismo de forma disfarçada – ver análise do período soviético como
uma edição «escatológica» da sociedade tradicional em M. Agurski25 ou S.
Kara-Murza26 e perderam.
Significa que a luta contra a metamorfose pós-modernista do liberalismo
sob a forma de pós-modernismo e de globalismo deve ser qualitativamente
diferente, baseando-se em novos princípios e propondo novas estratégicas.
Não obstante, o ponto de partida desta ideologia – possível, mas não
garantido, não fatal, não predeterminado, mas decorrente da vontade livre
do homem, do seu espírito, e não de processos históricos impessoais – é
precisamente a negação da própria essência do pós-modernismo.
Todavia, esta essência (tal como a descoberta do fundo antes pouco claro
do próprio modernismo, que realizou de forma tão completa o seu conteúdo
que esgotou as possibilidades internas e passou ao regime de reciclagem
irónica de etapas anteriores) é algo completamente novo, antes
desconhecida e apenas intuitiva e fragmentariamente adivinhada nas etapas
anteriores da história ideológica e da luta ideológica.

A Quarta Teoria Política é um projeto de «cruzada» contra:


• O pós-modernismo;
• A sociedade pós-industrial;
• A realização na prática da concepção liberal;
• O globalismo e as suas bases logísticas e tecnológicas.

Se a Terceira Teoria Política criticava o capitalismo a partir da direita, a


Segunda fazia-o a partir da esquerda, mas, na nova etapa, essa anterior
topografia política já não existe: em relação ao pós-liberalismo é impossível
determinar onde está a direita e a esquerda. Há apenas duas posições: a
concórdia (centro) e a discórdia (periferia), sendo que uma e outra são
globais.
A Quarta Teoria Política é a concentração num projeto único e num
impulso único de tudo o que foi atirado para o lado, submetido, humilhado
durante a construção da «sociedade dos espetáculos» (pós-modernismo). «A
pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular» (Evangelho
de S. Marcos, 12:10). O filósofo Alexandre Sekatzki sublinhou justamente a
importância dos «marginais» na formação de um novo éon filosófico,
repondo na qualidade de metáfora a expressão «metafísica do lixo».

A luta pelo pós-modernismo

A Quarta Teoria Política tem que ver com uma nova degeneração do
velho inimigo. Ela contesta o liberalismo, tal como a Segunda e Terceira
teorias políticas do passado, mas contesta-o numa nova situação. A
novidade fundamental dessa situação consiste em que só o liberalismo, das
três grandes ideologias políticas, venceu o direito à herança do espírito do
modernismo e recebeu o direito de formar o «fim da história» na base das
suas premissas.
Teoricamente, o fim da história poderia ter sido outro: o «reich
planetário» (no caso da vitória dos nazis), o «comunismo mundial» (se os
comunistas tivessem tido razão). Mas o «fim da história» mostrou ser
precisamente liberal (o filósofo A. Kojev27 foi um dos primeiros a adivinhar
e, depois, a sua ideia foi reproduzida por F. Fukuyama28). Mas sendo assim,
quaisquer apelos ao modernismo e às suas premissas, como fizeram, em
maior ou menor grau representantes da Segunda (em maior medida) e da
Terceira Teorias Políticas, perdem a sua relevância. Eles perderam (os
liberais ganharam) a luta pelo modernismo. Por isso, o tema do modernismo
(tal como o da modernização) pode ser retirado da ordem do dia. Começa o
combate pelo pós-modernismo.
E aqui, à Quarta Teoria Política, abrem-se novas perspectivas. O pós-
modernismo, que está hoje a ser realizado na prática (pós-modernismo pós-
liberal), anula a lógica rígida do modernismo: depois de o objectivo ter sido
alcançado, as etapas de aproximação a ele perdem o seu significado. A
pressão do corpo ideológico torna-se menos rígida. A ditadura das ideias é
substituída pela ditadura das coisas, dos códigos de acesso (login-
password), dos códigos de barras. No tecido da realidade pós-modernista
aparecem novos buracos.
Tal como, a dada altura, a Terceira e a Segunda Teorias Políticas
(compreendidas como versão escatológica do tradicionalismo) tentaram
«domar o modernismo» na sua luta contra o liberalismo (Primeira Teoria
Política), hoje há a possibilidade de fazer algo análogo com o pós-
modernismo, utilizando precisamente esses «novos buracos».
Contra alternativas ideológicas directas, o liberalismo elaborou meios
perfeitamente actuantes em que está baseada a sua vitória. Mas é
precisamente aquela que acarreta o maior risco para o liberalismo.
É preciso apenas calcular esses novos pontos de perigo para o sistema
global mundial, decifrar os códigos de acesso para arrombar o sistema. Pelo
menos, tentar. Os acontecimentos de 11 de Setembro em Nova Iorque
demonstraram que isso é possível também tecnologicamente. A sociedade
em rede pode dar algo também aos seus adversários convictos. Em qualquer
dos casos, é necessário, em primeiro lugar, compreender o pós-modernismo
e a nova situação não menos profundamente do que Marx compreendeu a
estrutura do capitalismo industrial.
A Quarta Teoria Política deve, no pós-modernismo, ir beber a sua
«inspiração negra» na liquidação do programa do Iluminismo e no avanço
da sociedade dos simulacros, vendo nisso um estímulo para a luta e não
uma realidade fatal. Daqui podem tirar-se algumas conclusões práticas
relativamente à estrutura da Quarta Teoria Política.

Repensar o passado e os que perderam

Se a Segunda e Terceira Teorias Políticas são inaceitáveis como pontos de


partida para contrapor ao liberalismo, principalmente no que respeita a
como elas se compreendiam a si mesmas, ao que apelavam e como agiam,
nada impede de repensar o próprio facto da sua derrota como algo positivo.
Se a lógica da história da Idade Contemporânea conduziu ao pós-
modernismo, este constitui a essência secreta da Idade Contemporânea, que
se revelou apenas no seu fim.
A Segunda e a Terceira Teorias Políticas consideravam-se pretendentes à
expressão do espírito do modernismo. E essas pretensões falharam
redondamente. Tudo o que está ligado com as intenções injustificadas nas
ideologias anteriores é o menos interessante para os criadores da Quarta
Teoria Política. Mas o próprio facto de elas terem perdido deve ser mais
depressa considerado uma vantagem do que uma insuficiência. Se elas
perderam, mostraram desse modo que não pertencem ao espírito do
modernismo que, por sua vez, conduziu à matriz pós-liberal. E nisto
residem os seus aspectos positivos. Mais, isso significa que os
representantes da Segunda e da Terceira Teorias Políticas, consciente ou
inconscientemente, estavam do lado da tradição, embora não tivessem
tirado daí as conclusões necessárias ou não reconhecessem em geral.
É preciso repensar a Segunda e a Terceira Teorias Políticas, destacando
nelas o que se deve pôr de lado e o que tem valor. Enquanto ideologias
acabadas, que insistem literalmente no seu, elas são completamente inúteis,
tanto teórica como praticamente, mas alguns elementos marginais, regra
geral que não se realizaram e ficaram na periferia ou à sombra (recordamos
novamente a «metafísica do lixo»), podem ser, inesperadamente, de
extremo valor, com sentido e intuições plenas. Mas em qualquer dos casos é
necessário repensar estas teorias sob um novo ponto de vista, a partir de
novas posições e só depois de se recusar a confiança a essas construções
ideológicas em que se baseava a sua «ortodoxia». A sua ortodoxia é o que
há de menos interessante e de menos útil nelas. Muito mais produtiva seria
a sua leitura cruzada: «Marx através do olhar positivo da direita» ou Evola
através do olhar positivo da esquerda. Mas semelhante iniciativa «nacional-
bolchevique» atraente (no espírito de N. Ustrialov ou de Ernst Niekisch) é,
por si só, insuficiente, porque a soma mecânica da Segunda e da Terceira
Teorias Políticas não nos conduz, por si só, a lado algum. Apenas
retrospectivamente podemos traçar o campo comum a ambas, que era
rigorosamente a contraposição ao liberalismo. Esta acção é
metodologicamente útil como treino perante a verdadeira elaboração da
Quarta Teoria Política.
Uma leitura verdadeiramente importante e decisiva da Segunda e da
Terceira Teorias Políticas só é possível com base na Quarta Teoria Política
já formada, onde o principal objecto – embora radicalmente negado como
valor! – é o pós-modernismo e as suas condições: o mundo global, o
governo (gouvernance), a economia de mercado, o universalismo dos
direitos humanos, o «domínio real do capital», etc.

Regresso da tradição e da teologia

A tradição (religião, hierarquia, família) e os seus valores foram


derrubados na aurora do modernismo. Correctamente falando, todas as três
teorias políticas eram concebidas como construções ideológicas artificiais
de pessoas que concebiam (de forma diferente) a «morte de Deus» (F.
Nietzsche), o «desencantamento do mundo» (M. Weber), o «fim do sacro».
Nisto consistia o nervo da Idade Contemporânea: o homem ocupou o lugar
de Deus; a filosofia e a ciência ocuparam o lugar da religião; as construções
racionais, volitivas e tecnológicas ocuparam o lugar da Revelação.
Mas se o modernismo se esgota no pós-modernismo, juntamente com isso
terminou também o período de «antideus» directo. As pessoas do pós-
modernismo não são hostis à religião, mas indiferentes. Mais, determinados
aspectos da religião, regra geral respeitantes às regiões do inferno («textura
diabólica» dos filósofos pós-modernistas), são bastante atraentes. Em
qualquer dos casos, a época da perseguição da tradição terminou, embora,
seguindo a própria lógica do pós-liberalismo, isso levará, mais
provavelmente, à criação de uma nova pseudo-religião mundial, baseada em
pedaços de cultos sincréticos heterogéneos, num ecumenismo caótico
desenfreado e na «tolerância». E embora esta viragem dos acontecimentos
seja, de certo modo, mais terrível do que o ateísmo directo e simples e do
que o materialismo dogmático, o enfraquecimento das perseguições contra
a fé pode tornar-se numa oportunidade se os portadores da Quarta Teoria
Política forem consequentes e inflexíveis na defesa dos ideais e dos valores
da tradição.
Hoje, o que foi posto fora da lei pela época do modernismo pode
ousadamente afirmar-se como programa político. E isto já não parece tão
absurdo e fracassado como antes. No mínimo porque, em geral, tudo no
pós-modernismo parece absurdo e fracassado, incluindo os aspectos mais
glamorosos – não é por acaso que os heróis do pós-modernismo são os
freaks e «anormais», «travestis» e «degenerados»; trata-se da lei do estilo.
Tendo como pano de fundo os palhaços mundiais, ninguém e nada parecerá
«demasiado arcaico», mesmo as pessoas da tradição que ignoram os
imperativos da Idade Contemporânea. A justeza desta afirmação é provada
não só pelos êxitos sérios do fundamentalismo islâmico, mas também pelo
renascimento de seitas protestantes extremamente arcaicas (os
dispensacionalistas, os mórmons, etc.) na política dos EUA (Bush começou
a guerra no Iraque porque, segundo ele, «Deus disse-me: ataca o Iraque!»,
verdadeiramente no espírito dos seus mestres metodistas protestantes).
Assim sendo, a Quarta Teoria Política pode calmamente recorrer ao que
procedeu a contemporaneidade e beber aí a sua inspiração. O
reconhecimento da «morte de Deus» deixa de ser um «imperativo
categórico» para os que querem continuar na onda da actualidade. As
pessoas do pós-modernismo já se resignaram de tal forma a esse
acontecimento que já não podem compreender: «Quem, quem dizem que
morreu?». Mas os elaboradores da Quarta Teoria Política também se podem
esquecer desse «acontecimento»: «Acreditamos em Deus, mas ignoramos
os que falam da Sua morte como ignoramos discursos de loucos.»
Assim regressa a teologia. E torna-se um elemento importantíssimo da
Quarta Teoria Política. E quando ela regressar, será fácil reconhecer o pós-
modernismo (globalização, pós-liberalismo, sociedade pós-industrial) como
o «Reino do Anticristo (ou os seus análogos noutras religiões: o Dajjal,
entre os Muçulmanos, os erev rav, entre os Judeus, o kali yuga entre os
Hindus, etc.). E agora isso não é simplesmente uma metáfora que mobiliza
as massas, é um facto religioso, um facto do Apocalipse.

O mito e o arcaico na Quarta Teoria Política

Se para a Quarta Teoria Política o ateísmo da Idade Contemporânea deixa


de ser algo obrigatório, a teologia das religiões monoteístas, que substituiu,
em dada altura, outras culturas sacras, também não será uma verdade em
última instância (mais exactamente, pode ser, mas pode não ser).
Teoricamente, já nada limita a profundeza do apelo aos valores arcaicos,
que, correctamente reconhecidos e significativos, podem perfeitamente
ocupar um lugar definido na nova construção ideológica. Libertando-se da
necessidade de adaptar a teologia ao racionalismo do modernismo, os
portadores da Quarta Teoria Política podem perfeitamente desprezar os
elementos teológicos e dogmáticos, que nas sociedades monoteístas
(principalmente nas últimas etapas) foram afectados pelo racionalismo, o
que, a propósito, levou, nas ruínas da cultura cristã da Europa, ao
aparecimento, inicialmente, do deísmo, depois do ateísmo e do
materialismo durante o desenvolvimento faseado do programa da Idade
Contemporânea.
Não só os supremos símbolos super-racionais da fé podem ser novamente
utilizados enquanto escudos, como também o podem ser os momentos
irracionais de cultos, de ritos e de lendas, que embaraçavam os teólogos nas
etapas anteriores. Se rejeitamos o progresso como ideia própria da época do
modernismo (e esta, como já vimos, terminou), tudo o que é antigo adquire
para nós valor e credibilidade só porque é antigo. O antigo significa bom. E
quanto mais antigo, melhor.
O paraíso é a mais antiga das criações. Os portadores da Quarta Teoria
Política devem, no futuro, descobri-lo de novo.

Heidegger e o «acontecimento»

E, finalmente, pode traçar-se a base mais profunda – ontológica! – da


Quarta Teoria Política. Aqui deve recorrer-se não a teologias e a mitologias,
mas à experiência filosófica profunda do pensador que fez uma tentativa
única de construir a ontologia fundamental: a teoria sobre a existência mais
generalizante, paradoxal, profunda e aguda. Trata-se de Martin Heidegger.
Em resumo, a concepção de Heidegger é a seguinte: na aurora do
pensamento filosófico, as pessoas (mais precisamente os Europeus e, ainda
mais precisamente, os Gregos) colocavam a questão da existência no centro
da sua atenção. Mas ao tematizarem-na, arriscam a perder-se nos
pormenores da relação complexíssima entre a existência e o pensamento,
entre a pura existência (Sein) e a sua expressão na existência (Seiende),
entre a existência humana (Dasein) e a existência por si mesma (Sein). Esta
falha ocorreu já na teoria de Heraclito sobre o fyuzis e o logos, depois é
claramente evidente em Parménides e, finalmente, em Platão, que colocou a
ideia entre o homem e a existência e que definiu a verdade como a
conformidade (a teoria referencial do conhecimento), atinge a culminação.
Daí nasce a alienação que, gradualmente, conduz ao aparecimento da
«razão quantificável» e, depois, ao desenvolvimento da técnica.
Progressivamente, o homem perde de vista a pura existência e envereda
pela via do niilismo. A essência da técnica (baseada na relação técnica para
com o mundo) expressa esse niilismo que se acumula permanentemente. Na
Idade Contemporânea, essa tendência atinge o seu apogeu: o
desenvolvimento técnico (Gestell) afasta definitivamente a existência e
eleva ao trono o «nada». Heidegger odiava ferozmente o liberalismo,
considerando-o a expressão do «início calculado», que está na base do
«niilismo ocidental».
O pós-modernismo, até ao qual Heidegger não sobreviveu, é, em todos os
sentidos, o esquecimento definitivo da existência, a «meia-noite», onde o
nada (niilismo) começa a entrar por todas as frinchas. Mas a sua filosofia
não era irremediavelmente pessimista. Ele considerava que o nada é a outra
face da própria existência pura que – desse modo paradoxal! – se faz
lembrar à humanidade. E se decifrar correctamente a lógica do
desdobramento da existência, a humanidade pensante pode salvar-se e
instantaneamente, no momento em que o risco for máximo. «Onde está o
maior risco, aí está a salvação», cita Heidegger os versos de Hölderlin29.
Heidegger definiu o regresso súbito da existência com um termo especial:
Ereignis, «acontecimento». Ele tem precisamente lugar à meia-noite
mundial, no ponto mais negro da História. O próprio Heidegger hesitava
constantemente sobre se já tinha sido atingido esse ponto ou «ainda não». O
eterno «ainda não»…
Para a Quarta Teoria Política, a filosofia de Heidegger pode ser o
principal eixo, ao qual está amarrado todo o restante: do repensar da
Segunda e da Terceira Teorias Políticas até ao regresso da teologia e da
mitologia.
Desse modo, no centro da Quarta Teoria Política, como seu centro
magnético, está situado o vector de aproximação do Ereignis
(«acontecimento»), no qual se encarna o regresso triunfal da existência
precisamente no momento em que a humanidade se esquecer, definitiva e
irrevogavelmente, dele, de tal forma que se evaporarão os últimos rastos.

A Quarta Teoria Política e a Rússia

Hoje, muitos adivinham intuitivamente que não há lugar para a Rússia no


«maravilhoso mundo novo» do globalismo mundial, do pós-modernismo e
do pós-liberalismo. Tanto mais que o Estado mundial e o Governo mundial
liquidam gradualmente todos os Estados nacionais em geral. É que também
toda a história russa é uma discussão dialéctica com o Ocidente e a cultura
ocidental, uma luta pela defesa (por vezes compreendida apenas
intuitivamente) da verdade russa, da sua ideia messiânica, da sua versão do
«fim da história», independentemente de como isso se manifesta: através da
Ortodoxia de Moscovo, do império laico de Pedro ou da revolução
comunista mundial. Os melhores cérebros russos viram claramente que o
Ocidente avança para o precipício e hoje, ao olhar para onde levou o mundo
a economia neo-liberal e a cultura do pós-modernismo, podemos
convencer-nos completamente de que esta intuição, que empurrou gerações
de russos à procura de uma alternativa, estava completamente
fundamentada.
A crise económica mundial actual é apenas o início. O pior está para vir.
A inércia dos processos pós-liberais é tal que a mudança de rumo é
impossível – a «técnica libertada» (O. Spengler) irá procurar para a
salvação do Ocidente meios tecnológicos cada vez mais eficazes, mas
puramente técnicos. É a nova etapa do avanço Gestell, o alargamento a todo
o espaço do planeta da nódoa niilista do mercado mundial. Indo de crise em
crise, de bolha em bolha (nos dias de crise, milhares de americanos
manifestam-se com a palavra de ordem: «Dêem-nos uma nova bolha!».
Poderá ser mais evidente!), a economia globalista e as estruturas da
sociedade pós-industrial tornam a noite da humanidade cada vez mais
negra, tão negra que gradualmente esquecemos que se trata da noite. «O
que é a luz?», perguntam as pessoas que nunca a viram.
Claro que a Rússia precisa de avançar por outra via, pela sua. Mas aqui
coloca-se uma questão. Não será fácil desviar-se da lógica do pós-
modernismo num «país tomado separadamente». O modelo soviético ruiu.
Depois disso, a situação ideológica mudou irreversivelmente, tal como o
equilíbrio de forças estratégico. Para que a Rússia possa salvar-se a si
própria e salvar os outros, não basta inventar um meio técnico ou uma
jogada enganosa. A história mundial tem a sua lógica. E o «fim das
ideologias» não é uma falha ocasional, mas o início de uma nova etapa.
Pelos vistos, a última.
Nesta situação, o futuro da Rússia depende directamente dos nossos
esforços na elaboração da Quarta Teoria Política. Se escolhermos
localmente as opções que nos colocam a globalização no regime de apenas
correcção superficial do status quo, não iremos longe, apenas iremos perder
tempo. O desafio do pós-modernismo é extremamente sério: tem raiz na
lógica de esquecimento da existência, de afastamento da humanidade das
suas fontes existenciais (ontológicas) e espirituais (teológicas). É
impossível responder a ele com inovações «presunçosas» ou subprodutos
propagandísticos. Por conseguinte, para resolver os problemas prementes: a
crise económica global, a resistência ao mundo unipolar, a conservação e o
reforço da soberania, etc., é necessário olhar para as bases filosóficas da
História, fazer um esforço metafísico.
É difícil prever como se irá desenvolver o processo de criação desta
teoria. Apenas uma coisa é evidente: isso não pode ser uma questão
individual ou tarefa de um círculo limitado de pessoas. O esforço deve ser
conjunto, colectivo. E nesta questão poderão ajudar-nos representantes de
outras culturas e povos (tanto da Europa, como da Ásia), que também
sentem de forma aguda a tensão escatológica do momento actual e
procuram também desesperadamente uma saída do beco sem saída mundial.
Mas desde já se pode afirmar que a Quarta Teoria Política, baseada na
recusa do actual status quo na sua dimensão prática e teórica, irá, na sua
edição russa, orientar-se pelo «Ereignis russo». Pelo «acontecimento»,
único e irrepetível, pelo qual viveram e esperaram muitas gerações de
russos, desde as raízes do nosso povo até à chegada dos últimos tempos.
23 Daniel Bell, The End of Ideology, Harvard University Press, 1960.
24 Arendt H. As Origens do Totalitarismo, M. ЦентрКом, 1996.
25 Agurskii, M.S., Ideologia do Nacional-Bolchevismo, M., Алгоритм,
2003.
26 Kara-Murza, Serguei. Civilização Soviética: do início até aos nossos
dias. M., Алгоритм, 2008.
27 Kojev, A.V. Introdução à Leitura de Hegel: Lições de Fenomenologia
do Espírito. – SPB.: Nauka, 2003.
28 Fukuyama, F. O Fim da História e o Último Homem. M.,
«Издательство АСТ», 2004.
29 Haydegger, M. Conversa num Caminho Secundário: Artigos Escolhidos
do Último Período de Criação — M. Escola Superior, 1991.
Duguin, A. O. A Quarta Teoria Política. M., 2009, pp. 2-24.
Nome: Putin, Vladimir

Data e local de nascimento: 7 de Outubro de 1952, Leninegrado, URSS

Breve resenha biográfica: Político. Vladimir Putin é originário de uma


família operária, que o próprio descreve ser humilde. Os anos de escola de
Vladimir Putin foram passados em Leninegrado e, quando terminados, foi
estudar Direito na sua cidade natal. No final da década de 1980, o político
terminou a Escola Superior do KGB de Moscovo. Entre 1985 e 1990,
trabalhou nos Serviços de Informações soviéticos na então RDA. Quando
regressou à Rússia, em 1990, Vladimir Putin trabalhou na Universidade e
no Município de São Petersburgo, mudando-se em 1996 para Moscovo,
onde começou a sua carreira política, então enquanto Vice-Chefe da
Administração Presidencial. Em 1999, Vladimir Putin foi convidado por
Boris Ieltsin a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro, onde se manteve até
2000, quando passou a Presidente interino. A 26 de Março de 2000,
Vladimir Putin foi eleito para o cargo de Chefe de Estado, onde se manteve
durante dois mandatos até, em 2008, ser nomeado Primeiro-Ministro. A 4
de Março de 2012, Vladimir Putin voltou a ser eleito para o cargo de
Presidente.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Na


história política recente da Rússia, a anexação da Crimeia por Moscovo, em
2014, e as acções militares no Donbass, trouxeram à luz do dia o facto de o
país se encontrar em «estado de guerra», pelo menos latente, contra o
Ocidente. O objectivo deste conflito, promovido por Vladimir Putin, passa
pela afirmação da Rússia enquanto grande potência mundial e participante
de facto no processo de decisão quanto às principais questões mundiais.
Para que tal seja possível, torna-se imperativa a limitação do poder do
Ocidente. Por ora, trata-se, no entanto, de uma «guerra» que não é levada a
cabo sobretudo pelos meios militares, mas sim com recurso à propaganda, à
intimidação, ao reforço da capacidade de influência e à espionagem. Trata-
se de algumas estratégias recuperadas da Guerra Fria, às quais agora se
aliam novos meios de um mundo global.
Na óptica de Vladimir Putin, a Rússia, leva a cabo, no momento político
actual, uma luta pela sobrevivência contra inúmeros inimigos guiados pelos
EUA – que manipulam habilmente a UE e a NATO – e que concertam
esforços tendo por objectivo humilhar e rebaixar Moscovo. No que
concerne ao relacionamento com os países europeus, quanto mais alinhada
a sua relação com Washington, mais são encarados por Moscovo enquanto
meros representantes dos seus interesses. Vladimir Putin advoga assim a
criação de um mundo multipolar, não mais dominado pelos EUA, que a
todo o custo tentam enfraquecer a Rússia – tendo-se aproveitado sobretudo
da fragilidade dos anos pós-queda da URSS – no sentido de obstarem a este
intento.
Discurso e respostas de Vladimir Putin a perguntas, num encontro
com cientistas, activistas sociais e empresários da Escócia

25 de Junho de 2003
… Penso que precisamente esta sala histórica é o melhor lugar para uma
conversa sobre os problemas do mundo actual, sobre o sistema da sua
segurança e sobre a importância do Direito Internacional.
Actualmente, estas questões passam para primeiro plano. A página da
«guerra fria» está fechada, mas enfrentamos novas dificuldades,
contradições e novas ameaças. Trata-se de conflitos inter-étnicos,
terrorismo internacional, tráfico de droga, ameaças ecológicas, epidemias
em massa, ameaça de difusão de armas de destruição massiva.
A sua dimensão aumenta ano após ano. Hoje, a globalização concentra
tudo: capitais, informação, política, mas também ameaças. E nós devemos
reagir adequadamente a esses desafios. Estou convencido de que a nossa
solidariedade é o mecanismo mais eficaz de reacção. Só a nossa coesão,
respeito e confiança mútuos nos poderão ajudar…
Estamos de acordo que, actualmente, é de primordial importância
defender não só as normas do Direito Internacional, mas também os
princípios ético-morais criados por numerosas comunidades mundiais antes
de nós.
É importante reforçar o prestígio e o papel da ONU, que continua a ser
um instrumento universal de direcção dos processos internacionais. Pode-se
afirmar sem exagero: o rosto futuro do nosso planeta irá depender da via de
manutenção da nossa segurança…
Como já afirmei, estive há vários anos na hospitaleira e maravilhosa
Escócia. Desde então, tenho as melhores recordações do carácter directo e
aberto dos Escoceses. E devo dizer que nisso há muita semelhança com o
povo do meu próprio país, com o povo da Rússia.
Talvez por isso seja fácil para nós estabelecer compreensão mútua com o
Primeiro-Ministro e com mais um conhecido escocês, que hoje ocupa um
cargo relevante nas estruturas internacionais, principalmente ligadas às
questões da segurança. Tenho em vista, antes de tudo, o senhor Robertson,
Secretário-Geral da NATO, com quem temos boas relações. Penso que, nos
últimos tempos, fizemos muito do ponto de vista do reforço dos institutos
de segurança, tendo em conta a integração da Rússia nessas estruturas.
Como sabem, criámos uma boa ponte de interacção com o Bloco do
Atlântico Norte…
Estou absolutamente de acordo consigo [resposta à necessidade de
reforçar as relações entre as igrejas do Oriente e do Ocidente]. No mundo
actual, isso é uma das direcções fundamentais da nossa interacção, porque
um dos problemas que eu referi e que nós conhecemos muito bem – refiro-
me ao terrorismo – adquire cada vez mais um carácter religioso.
Na realidade, o terrorismo não tem nada de comum com as religiões
mundiais e com as religiões em geral. Os terroristas apenas se escondem
por detrás de palavras de ordem religiosas, mas estabelecer o diálogo entre
religiões significa estabelecer o diálogo entre civilizações.
Sem dúvida que a nossa civilização europeia tem as suas raízes no
Cristianismo. A Europa deve estar aberta a todos os povos, de qualquer
crença, de qualquer cor de pele, de qualquer cultura. Mas estou
profundamente convencido de que a cultura europeia está
significativamente baseada nos valores do Cristianismo. Este é muito
diverso e tem no seu seio problemas. Conhecemo-los bem. Penso que no
Reino Unido sabem disso não menos do que eu. A nossa tarefa consiste em
unir as religiões em geral e as correntes no Cristianismo em particular.
Compreendi perfeitamente a sua alusão respeitante à aproximação de
posições da Igreja Ortodoxa russa e da Santa Sé. Garanto-lhe que as
autoridades laicas da Rússia fazem tudo para aproximar posições sobre as
questões discutíveis que restam. Conheço as intenções do Patriarca de
Moscovo e de Toda a Rússia, Alexis II, ele tem muito boas intenções e
esperamos que as relações entre a Santa Sé-Igreja Católica Romana e a
Igreja Ortodoxa russa se desenvolvam positivamente…
A Rússia não coloca perante si o objectivo de aderir à União Europeia de
forma completa. A Rússia é um país grande. Não obstante a desintegração
da União Soviética, quanto ao território, é o maior país do mundo. Uma
população de 145 milhões de pessoas.
A nossa economia encontra-se na fase de formação. Precisamos de fazer
muito para criar uma sociedade democrática moderna. Nós, no fundo,
apenas iniciámos a construção do sistema multipartidário. Este é um
processo bastante longo. Há também dificuldades meramente formais, que
vemos perante nós. Refiro-me ao reforço das fronteiras externas. Temos
perfeita consciência de que semelhante condição é indispensável numa série
de direcções da integração económica. Tudo isso exige recursos financeiros
significativos e tempo. Ao mesmo tempo, a Rússia, como eu já disse, é
parte da cultura europeia. Estou convencido de que nesta sala não há
ninguém que tenha dúvidas a este respeito. Mais, sem a Rússia, a cultura
europeia não estaria completa e, se assim é, a Rússia constitui, sem
qualquer dúvida, parte da Europa. Esta continua para lá dos Montes Urais
porque, se pegarmos nas pessoas que vivem no Extremo Oriente, elas pouco
se distinguem dos cidadãos da Rússia que vivem na parte europeia.
Em princípio, isso é um potencial muito bom do desenvolvimento futuro
da Europa, mas hoje devemos colocar perante nós objectivos reais.
Devemos, no mínimo, fazer com que na Europa não surjam novas linhas
divisórias para que as pessoas tenham possibilidade de comunicar umas
com as outras, para que as regras de Schengen não sejam interpretadas
como algo semelhante ao Muro de Berlim, que dividia a Europa ainda há
alguns anos.
Devemos fazer tudo para que a Rússia e a Europa se ajudem a
desenvolver de forma harmoniosa e estável. Existe interesse mútuo porque,
mesmo no que respeita à estrutura da economia, a Rússia e a Europa
completam-se bem. (...)
Em relação à aproximação da Europa e dos EUA. Como é que se podem
aproximar mais? A Europa e os EUA são aliados muito próximos, espero
que assim continuem. Isso é um dos elementos importantíssimos da
estabilidade no mundo actual. É verdade que existiram problemas ligados à
crise iraquiana. Temos divergências sobre algumas questões sérias, no seio
da Europa também. Mas não é isso que permitiria ou levaria o mundo ao
limiar do confronto, tal como aconteceu na Crise das Caraíbas. Graças a
Deus, esses tempos já passaram…
Todos conhecem a posição da Rússia sobre o problema iraquiano. Ela não
mudou. A meu ver, o desenrolar dos acontecimentos mostrou a sua solidez.
Hoje, é preciso falar apenas de uma coisa: é necessário superar as
divergências, pensar como sair eficazmente da situação criada, agir
coordenadamente no campo da organização das Nações Unidas. Porque,
independentemente da direcção iraquiana que seja criada no futuro, ela só
poderá apresentar-se ao mundo, exigir a sua legitimidade, o apoio da parte
da comunidade internacional, se esse processo passar através da ONU.
Outras opções colocariam em causa a confiança face à futura liderança.
Temos um bom exemplo disso, o Afeganistão. Os especialistas conhecem
bem como aí decorreu e decorre o processo de normalização da situação, de
formação dos órgãos de poder. Penso que este é um bom exemplo que pode
ser colocado na base do trabalho também na liderança iraquiana…
A Rússia não é simplesmente membro da ONU. A Rússia é um dos
fundadores dessa organização. Hoje, ela é membro permanente do Conselho
de Segurança da ONU…
O nosso país desenvolve activamente relações com a Europa, com os
países asiáticos. Isto é natural porque parte significativa da Rússia encontra-
se na Ásia. Como sabem, a Federação da Rússia tornou-se, muito
recentemente, pleno membro do G8 e eu falei-vos dos ritmos de
desenvolvimento da economia russa, de como se reforça o Estado russo,
mas compreendemos bem as nossas fraquezas.
Somos o maior país quanto ao território, muito rico em recursos minerais.
Temos outras vantagens, que consistem num nível de instrução muito alto,
que em nada fica atrás do europeu. Pode afirmar-se que esta é também uma
grande vantagem natural da Rússia. Mas também há aspectos negativos.
Não obstante os grandes ritmos, trata-se de um baixo desenvolvimento
económico, de más infraestruturas, de um baixo nível de rendimentos da
população. Há ainda outros problemas. Por isso, nós, apesar de conscientes
das nossas vantagens, não nos daremos ares de importantes nem iremos
dormir sobre as nossas riquezas naturais. Temos perfeita consciência de
que, por si só, encontrando-se no subsolo russo, eles nada significam. São
precisos recursos, capitais, uma gestão moderna. E para que o país disponha
disso, é necessário criar condições. Claro que isso exige tempo, mas iremos
avançar insistentemente por essa via, e quanto mais estável for o país, mais
sólida será a democracia na Rússia, maiores serão os seus êxitos na esfera
da economia e na esfera da integração no espaço humanitário e económico
internacional. Estamos convencidos de que um país como a Rússia ocupará
o seu lugar digno…

http://kremlin.ru/events/president/transcripts/22037

Discurso de Vladimir Putin na Conferência de Munique (2007)

Sobre o mundo unipolar


O mundo unipolar proposto após a «guerra fria» também não se
concretizou.
Claro que a história da humanidade conhece também períodos de estado
unilateral e de desejo de domínio mundial. Mas o que é que ainda não
aconteceu na história da humanidade?
Mas o que é um mundo unipolar? Por muito que enfeitem este termo, ele,
no fim de contas, significa uma só coisa na prática: um centro de poder, um
centro de força, um centro de tomada de decisões.
Trata-se do mundo de um dono, de um soberano. E, no fim de contas, é
fatal não só para todos os que se encontram no quadro desse sistema, mas
também para o soberano, porque isso destrói-o a partir de dentro. E claro
que isso nada tem de comum com a democracia. Porque, como é sabido, a
democracia é o poder da maioria, tendo em conta os interesses e opiniões
das minorias.
A propósito, ensinam permanentemente democracia à Rússia, a nós, mas
os que nos ensinam não querem muito aprender.
Considero que, para o mundo actual, o modelo unipolar não só é
inaceitável, como também impossível em geral. E não apenas porque uma
liderança única não terá, no mundo contemporâneo – precisamente
contemporâneo –, recursos suficientes nem político-militares, nem
económicos. Mas o mais importante é que o próprio modelo não funciona,
porque não é e não pode ser a base moral da civilização moderna.
Por outro lado, o que acontece hoje no mundo, e só agora começamos a
discutir isso, é uma consequência de tentativas de introdução precisamente
dessa concepção dos assuntos mundiais: a concepção do mundo unipolar.
E qual foi o resultado?
As acções unilaterais, frequentemente ilegítimas, não resolveram
qualquer problema. Mais, tornaram-se um gerador de novas tragédias
humanas e de focos de tensão. Vejamos, não diminuiu o número de guerras,
de conflitos regionais. O senhor Teltschik abordou muito de leve essa
questão. E não morrem menos pessoas nesses conflitos, mas mais do que
antes. Significativamente mais, significativamente mais!
Hoje, assistimos ao emprego da força quase descontrolado, hipertrofiado,
nas relações internacionais, força militar que atira o mundo para as
profundezas de conflitos permanentes. O resultado é não haver força
suficiente para a solução complexa de nenhum deles. Torna-se também
impossível a sua solução política.
Observamos um desprezo cada vez maior pelos princípios fundamentais
do Direito Internacional. Mais do que isso, algumas normas, no fundo,
quase todo o sistema jurídico de um Estado, antes de tudo, claro está, dos
Estados Unidos, saltou as suas fronteiras nacionais em todas as esferas e é
imposto aos outros Estados na economia, na política, na esfera humanitária.
Mas isto agrada a alguém? A quem agrada?
Nos assuntos internacionais, encontra-se cada vez mais o desejo de
resolver esta ou aquela questão a partir da chamada conveniência política,
baseada na conjuntura política corrente. E claro que isto é extremamente
perigoso. Resulta em que já ninguém se sinta em segurança. Eu quero
sublinhar isto: ninguém se sente em segurança! Porque ninguém se pode
esconder por detrás do Direito Internacional como atrás de um muro de
pedra. Claro que semelhante política é um catalisador da corrida aos
armamentos.
O domínio do factor da força alimenta a tentação de uma série de países a
ter armas de destruição em massa. Além disso, surgiram ameaças
radicalmente novas, que antes já eram conhecidas, mas hoje adquirem um
carácter global, tais como o terrorismo. Estou convencido de que chegamos
a um momento fulcral, quando devemos pensar seriamente em toda a
arquitectura global de segurança.
E aqui é necessário ter por ponto de partida a busca de um equilíbrio
sensato entre os interesses de todos os sujeitos da comunidade
internacional. Tanto mais agora, quando a «paisagem internacional» muda
de forma tão percepcionável e tão rápida, à custa do desenvolvimento
dinâmico de uma série de Estados e regiões. A senhora chanceler federal já
lembrou isso. Por exemplo, o PIB conjunto da Índia e da China, pela
paridade do poder de compra é superior ao dos Estados Unidos da América.
E, calculado segundo o mesmo princípio, o PIB dos países do grupo BRIC:
Brasil, Rússia, Índia e China, ultrapassa o PIB conjunto da União Europeia.
E, segundo os peritos, essa diferença continuará a aumentar numa
perspectiva histórica visível.
Não vale a pena ter dúvidas de que o potencial económico dos novos
centros de crescimento mundial irá inevitavelmente converter-se em
influência política e reforçar a multipolaridade.
Por isso, aumenta seriamente o papel da diplomacia multilateral. A
abertura, a transparência e a previsibilidade na política não têm alternativa e
o emprego da força deve ser uma medida realmente extrema, tal como o
emprego da pena de morte nos sistemas jurídicos de alguns Estados.
Hoje, pelo contrário, observamos uma situação em que países onde o
emprego da pena de morte é proibido mesmo em relação aos assassinos e
outros criminosos perigosos; não obstante isso, esses países participam
facilmente em operações militares que é difícil considerar legítimas. Mas
nesses conflitos morrem pessoas: centenas, milhares de civis!
Porém, simultaneamente, coloca-se a questão: será que devemos
contemplar, passiva e impotentemente, os diversos conflitos internos nos
vários países, os actos dos regimes totalitários, dos tiranos, a difusão de
armas de extermínio massivo? Claro que não.
Mas temos meios para contrapor a essas ameaças? Claro que sim. Basta
recordar a História recente. Não teve lugar uma transição para a democracia
no nosso país? Ocorreu uma transformação pacífica do regime soviético:
uma transformação pacífica! E de que regime! Com uma enorme
quantidade de armas, incluindo atómicas! Então porque é que, hoje, se deve
bombardear e abrir fogo por tudo e por nada? Será que, num momento em
que existe o perigo de destruição mútua, temos falta de cultura política, de
respeito pelos valores da democracia e do direito?
Estou convencido de que a Carta da ONU deve ser o único mecanismo de
tomada de decisões quando ao emprego da força militar como último
argumento. E a este propósito, eu ou não compreendi o que foi dito há
pouco pelo nosso colega, pelo Ministro da Defesa de Itália, ou ele
expressou de forma imprecisa. Em todo o caso, eu ouvi que só pode ser
considerado emprego legítimo da força se a decisão for tomada na NATO
ou na União Europeia, ou na ONU. Se ele realmente pensa assim, então
temos diferentes pontos de vista. Ou eu ouvi mal. Só pode ser considerado
legítimo o emprego da força se a decisão for tomada na base e no quadro da
ONU. E não é preciso substituir a Organização das Nações Unidas nem pela
NATO, nem pela União Europeia. E quando a ONU realmente unir as
forças da comunidade internacional, que realmente podem reagir aos
acontecimentos nos vários países, quando nos libertarmos do desprezo pelo
Direito Internacional, a situação poderá mudar. Caso contrário, a situação
entrará num beco sem saída e multiplicará a quantidade de erros graves.
Claro que, além disso, é preciso conseguir que o Direito Internacional tenha
um carácter universal tanto na compreensão, como no emprego das normas.
E não se pode esquecer que o modo democrático de agir na política
pressupõe obrigatoriamente discussão e uma elaboração aturada de
decisões.

http://kremlin.ru/events/president/transcripts/24034

Discurso do Presidente da Federação da Rússia (18 de Março de


2014)

Bom dia, estimados membros do Conselho da Federação, estimados


deputados da Duma Estatal! Estimados representantes da República da
Crimeia e de Sebastopol: eles estão aqui, entre nós, cidadãos da Rússia, os
cidadãos da Crimeia e de Sebastopol!
Estimados amigos, hoje, reunimo-nos para resolver uma questão que tem
vital importância, significado histórico para todos nós. No dia 16, na
Crimeia, realizou-se um referendo; ele decorreu em conformidade total com
os processos democráticos e as normas jurídicas internacionais. No
escrutínio participaram mais de 82 por cento dos eleitores. Mais de 96 por
cento manifestaram-se a favor da reunificação com a Rússia. Os números
são extremamente convincentes.
Para se compreender porque é que foi feita precisamente essa escolha,
basta conhecer a história da Crimeia, o que significou e significa a Rússia
para a Crimeia e a Crimeia para a Rússia.
A Crimeia está literalmente repleta da nossa história e orgulho comuns.
Aí encontra-se a antiga Kherson, onde se baptizou o Santo Príncipe
Vladimir. O seu feito espiritual, a conversão à Ortodoxia, predeterminou a
base cultural, de valores, civilizacional comum, que une os povos da
Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia.
Na Crimeia estão as campas dos soldados russos, com a coragem dos
quais a Crimeia entrou na Potência Russa em 1783. A Crimeia é
Sebastopol, cidade-lenda, cidade de um grande destino, cidade-fortaleza e
pátria da Armada de Guerra russa no mar Negro. A Crimeia é Balaklava e
Kertch, a colina Malakhov e o monte Sapun. Cada um destes lugares é
sagrado para nós, são símbolos da glória militar russa e de uma coragem
nunca vista.
A Crimeia é igualmente uma liga única de culturas e de tradições de
diferentes povos. E nisso é muito semelhante à grande Rússia, onde,
durante séculos, não desapareceu, não se dissolveu uma só etnia. Russos e
Ucranianos, Tártaros da Crimeia e representantes de outros povos viveram e
trabalharam lado a lado na terra da Crimeia, conservando a sua
originalidade, tradições, língua e crença.
A propósito, hoje, dos dois milhões e 200 000 habitantes da Península da
Crimeia quase um milhão e meio são russos, 350 000 Ucranianos que,
predominantemente, consideram o russo como sua língua natal e cerca de
300 000 Tártaros da Crimeia, parte significativa dos quais, como mostrou o
referendo, também se orientam para a Rússia.
É verdade que existe um período em que foi revelada uma injustiça cruel
para com os Tártaros da Crimeia, bem como para com outros povos da
URSS. Quero dizer apenas uma coisa: então, sofreram com as repressões
muitos milhões de pessoas de diferentes nacionalidades e claro que, antes
de tudo, Russos. Os Tártaros da Crimeia regressaram à sua terra. Considero
que devem ser tomadas todas as decisões políticas e legislativas
indispensáveis para concluir o processo de reabilitação do povo tártaro da
Crimeia, para restabelecer completamente os seus direitos, o seu bom nome.
Olhamos com respeito para os representantes de todas as nacionalidades
que vivem na Crimeia. Essa é a sua casa comum, a sua pequena pátria, e
será correcto se na Crimeia – eu sei que os seus habitantes apoiam isso –
existirem três línguas oficiais: russo, ucraniano e tártaro da Crimeia.
Estimados colegas! A Crimeia foi sempre e continua a fazer parte
inseparável da Rússia no coração, na consciência das pessoas. Esta
convicção, baseada na verdade e na justiça, era inabalável, transmitia-se de
geração em geração, perante ela mostram ser impotentes o tempo e as
circunstâncias, todas as mudanças dramáticas que vivemos, que o nosso
país viveu durante todo o século XX.
Depois da revolução, os bolcheviques, por diversas considerações, que
Deus os julgue, incluíram territórios significativos do histórico Sul da
Rússia, na República Soviética da Ucrânia. Isso foi feito sem levar em
conta a constituição nacional dos habitantes e, actualmente, é o Sudeste da
Ucrânia. E, em 1954, seguiu-se a decisão de integrar nela a Região da
Crimeia, entregando, ao mesmo tempo, Sebastopol, embora essa cidade
dependesse, então, do centro. Pessoalmente, Khruschov, dirigente do
Partido Comunista da União Soviética, foi o iniciador. Os historiadores que
expliquem o que o levou a fazer isso: o desejo de ganhar o apoio da
nomenclatura ucraniana ou de expiar a sua culpa pela organização das
repressões em massa na Ucrânia dos anos (19)30.
Para nós é importante outro aspecto. Essa decisão foi tomada com
violações evidentes das normas constitucionais então vigentes. A questão
foi decidida nos bastidores, entre os seus. Claro que, num Estado totalitário,
nada foi perguntado aos habitantes da Crimeia e de Sebastopol. Foram
simplesmente colocados perante um facto. Obviamente, naquela altura, as
pessoas interrogavam-se: porque é que, de súbito, a Crimeia passou a fazer
parte da Ucrânia. Mas, grosso modo, é preciso falar directamente disto,
todos nós compreendemos isso, grosso modo, essa decisão foi recebida
como uma formalidade, pois os territórios eram entregues no quadro de um
grande país. Naquela altura, simplesmente era impossível imaginar que a
Ucrânia e a Rússia podiam não estar juntas, que podiam ser Estados
diferentes. Mas isso aconteceu.
Infelizmente, o que parecia improvável tornou-se realidade. A URSS
desintegrou-se. Os acontecimentos desenvolveram-se de forma tão
impetuosa que poucos foram os cidadãos que compreenderam todo o
dramatismo dos acontecimentos que então ocorreram e as suas
consequências. Muitas pessoas na Rússia, na Ucrânia e noutras repúblicas
esperavam que a então nascida Comunidade de Estados Independentes se
tornasse numa nova forma de Estado comum. Tinham-lhes prometido uma
moeda comum, um espaço económico único, forças armadas conjuntas, mas
tudo isso não passou de promessas, e um grande país desapareceu. E
quando a Crimeia se viu inesperadamente noutro Estado, então a Rússia
sentiu que não tinha sido simplesmente roubada, mas pilhada.
Por outro lado, é também preciso reconhecer que a própria Rússia, ao
lançar o desfile de soberanias, contribuiu para a desintegração da União
Soviética e, aquando da formalização da desintegração da URSS,
esqueceram-se da Crimeia e da principal base da Armada do mar Negro:
Sebastopol. Milhões de russos deitaram-se num país, mas acordaram no
estrangeiro; viram-se, de súbito, minorias nacionais nas antigas repúblicas
da URSS, enquanto o povo russo se tornou um dos maiores, para não dizer
o maior povo dividido no mundo.
Hoje, muitos anos depois, eu ouvi como os habitantes da Crimeia diziam
que então, em 1991, passaram de mão em mão simplesmente como um saco
de batatas. É difícil não concordar com isso. Estado Russo, mas o que é
isso? E a Rússia? Baixou a cabeça e resignou-se, engoliu essa ofensa.
Naquela altura, o nosso país encontrava-se num estado tão difícil que
simplesmente não podia defender realmente os seus interesses. Mas as
pessoas não se podiam resignar com a gritante injustiça histórica. Durante
todos estes anos, cidadãos, numerosos activistas sociais levantaram por
mais de uma vez esse tema, diziam que a Crimeia é uma terra originalmente
russa e que Sebastopol é uma cidade russa. Sim, todos nós compreendíamos
bem, sentíamos com o coração e alma, mas era necessário partir das
realidades existentes e, já numa nova base, construir relações de boa
vizinhança com a Ucrânia independente. E as relações com a Ucrânia, com
o povo ucraniano irmão foram e continuarão sempre a ser para nós, sem
qualquer exagero, importantíssimas, fulcrais.
Hoje, pode falar-se disto abertamente, eu quero compartilhar pormenores
das conversações que tiveram lugar no início dos anos 2000. Na altura, o
Presidente da Ucrânia, Kutchma, pediu-me para acelerar o processo de
desmilitarização da fronteira russo-ucraniana. Até então, esse processo
praticamente não avançara. Era como se a Rússia reconhecesse que a
Crimeia era parte da Ucrânia, mas sem se realizarem conversações sobre a
delimitação da fronteira. Compreendendo toda a complexidade desse
processo, eu, não obstante, dei orientações às instituições russas para activar
o trabalho de organização da fronteira a fim de que todos compreendessem:
ao concordar com a desmilitarização, nós, de facto e de jure, reconhecíamos
a Crimeia território ucraniano, fechando assim essa questão.
Fomos ao encontro da Ucrânia não só no que respeita à Crimeia, mas
também a um dos temas tão complexos como a delimitação de águas no
mar de Azov e no estreito de Kertch. Qual era o nosso ponto de partida? Era
de que as boas relações com a Ucrânia seriam o principal para nós e não
deviam ser reféns de disputas territoriais sem saída. Por outro lado,
esperávamos que a Ucrânia fosse um bom vizinho, que os cidadãos russos e
russófonos na Ucrânia, principalmente no seu sudeste e na Crimeia, iriam
viver num Estado amigo, democrático, civilizado, que os seus interesses
legítimos estivessem em conformidade com as normas do Direito
Internacional.
A Crimeia é um património comum e um factor importantíssimo de
estabilidade na região. E hoje esse território estratégico deve encontrar-se
sob uma soberania forte, sólida que, de facto, só pode ser russa.
Porém, a situação passou a desenvolver-se de outra forma. Uma atrás da
outra, foram feitas tentativas de privar os Russos da memória histórica e,
por vezes, da língua materna, fazendo deles objecto de assimilação forçada.
E tanto os Russos como outros cidadãos da Ucrânia sofriam devido à
permanente crise política e estatal que abala a Ucrânia há mais de 20 anos.
Compreendo a razão que levava as pessoas na Ucrânia a quererem
mudanças. Durante os anos da «independência», o poder, como se costuma
dizer, «chateou-as», tornando-se simplesmente odioso. Mudaram
presidentes, primeiros-ministros, deputados da Rada, mas não mudou a
atitude deles face ao seu país e ao seu povo. Eles «ordenharam» a Ucrânia,
lutaram entre si pelo poder, dinheiro e correntes financeiras. Ao mesmo
tempo, o poder pouco se interessava em saber com que meios e como
vivem as pessoas simples, incluindo os milhões de cidadãos da Ucrânia que
não vêem perspectivas para si na pátria e são obrigados a partir para o
estrangeiro por salários a dias noutros países. Quero assinalar que não é
num Silicon Valley, mas precisamente a salários a dias. Só na Rússia, no
ano passado, trabalharam quase três milhões de pessoas. Segundo alguns
cálculos, o total dos seus salários na Rússia foi de mais de 20 000 milhões
de dólares, isto é cerca de 12 por cento do PIB da Ucrânia.
Repito, compreendo bem os que saíram para a Maidan com palavras de
ordem pacíficas, manifestando-se contra a corrupção, a gestão ineficaz, a
pobreza. O direito ao protesto pacífico, os processos democráticos, as
eleições existem precisamente para mudar o poder que não agrada às
pessoas. Mas os que estiveram por detrás dos últimos acontecimentos na
Ucrânia perseguiam outros objectivos, eles planearam mais um golpe de
Estado, planearam tomar o poder, não olhando a meios. Foram empregues o
terror, assassinatos e pilhagens. Os principais executores do golpe foram os
nacionalistas, neonazis, russófobos e anti-semitas. Em grande parte, são eles
que definem ainda hoje a vida na Ucrânia.
A primeira coisa que as chamadas «autoridades» fizeram foi apresentar o
projecto-lei escandaloso que prejudica os direitos nacionais das minorias. É
verdade que os patrocinadores destes actuais «políticos», curadores das
actuais «autoridades» puxaram imediatamente as orelhas aos iniciadores
dessa iniciativa. São pessoas independentes, é preciso reconhecê-lo,
compreendem a que conduzirão as tentativas de construir um Estado
ucraniano etnicamente puro. O projecto-lei foi adiado, posto de parte, mas
claramente como reserva. Pelos vistos, hoje esconde-se o próprio facto da
sua existência porque se espera que a memória humana seja curta. Mas
tornou-se extremamente claro para todos o que tencionavam fazer
posteriormente os herdeiros ideológicos ucranianos de Bandera, cúmplice
de Hitler na Segunda Guerra Mundial.
É claro também que até agora não existe poder executivo legítimo, não há
com quem falar. Muitos órgãos de Estado foram usurpados por impostores,
mas, ao mesmo tempo, nada controlam no país; eles próprios, quero
sublinhar isto, encontram-se sob o controlo dos radicais. Até para falar com
alguns ministros do actual governo só se pode com a autorização dos
combatentes da Maidan. Isto não é uma brincadeira, é uma realidade da
vida actual.
Começaram imediatamente a ameaçar com repressões e operações
punitivas os que resistiram ao golpe. E claro que, em primeiro lugar, estava
a Crimeia, a Crimeia russófona. Por isso, os habitantes da Crimeia e de
Sebastopol lançaram à Rússia o pedido de defender os seus direitos e a
própria vida, não permitir o que aconteceu e hoje ainda acontece em Kiev,
Donetsk, Kharkov, noutras cidades da Ucrânia. Claro que nós não podíamos
deixar de responder a esse pedido, não podíamos abandonar a Crimeia e os
seus habitantes na desgraça, de outro modo seria simplesmente uma traição.
Era necessário, antes de tudo, criar condições para uma expressão de
vontade pacífica e livre, para que os habitantes da Crimeia pudessem definir
o seu destino pela primeira vez na História. E o que ouvimos, hoje, dos
nossos colegas da Europa Ocidental, da América do Norte? Dizem-nos que
violamos as normas do Direito Internacional. Primeiro, ainda bem que eles
se lembraram de que o Direito Internacional existe; fico-lhes grato por isso,
mais vale tarde do que nunca.
Na Ucrânia vivem e irão viver milhões de russos, de cidadãos russófonos
e a Rússia irá defender sempre os seus interesses através de meios políticos,
diplomáticos e jurídicos.
E, segundo, o principal, o que é que nós supostamente violámos? É
verdade que o Presidente da Federação da Rússia recebeu da Câmara Alta
do Parlamento o direito de utilizar as Forças Armadas na Ucrânia. Mas esse
direito, rigorosamente falando, não foi utilizado por enquanto. As Forças
Armadas da Rússia não entraram na Crimeia, elas já lá se encontravam em
conformidade com um tratado internacional. É verdade que reforçámos o
nosso contingente, mas mesmo assim, quero sublinhar isto para que todos
saibam e ouçam, não ultrapassámos sequer o número máximo das nossas
Forças Armadas na Crimeia, que era da ordem dos 25 000 homens,
simplesmente isso não foi preciso.
Mais, ao declarar a sua independência, ao convocar o referendo, o
Conselho Supremo da Crimeia baseou-se na Carta da Organização das
Nações Unidas, onde se fala do direito das nações à autodeterminação. A
propósito, a própria Ucrânia, quero recordar isso, ao declarar a saída da
URSS, fez o mesmo, quase textualmente o mesmo. Na Ucrânia utilizaram
esse direito e negam-no aos habitantes da Crimeia? Porquê?
Além do mais, as autoridades da Crimeia basearam-se também no
conhecido precedente do Kosovo, precedente criado pelos nossos parceiros
ocidentais, ou seja, com as suas próprias mãos, numa situação
absolutamente análoga à da Crimeia, reconheceram a separação do Kosovo
da Sérvia legítima, provando a todos que não é necessária qualquer
autorização das autoridades centrais do país para a declaração unilateral da
independência. O Tribunal Internacional da ONU, na base do parágrafo 2
do artigo 1 da Carta da Organização das Nações Unidas, concordou com
isso e, na sua decisão de 22 de Julho de 2010, assinalou o seguinte. Cito na
íntegra: «Nenhuma proibição geral da proclamação unilateral da
independência advém da prática do Conselho de Segurança da ONU», e
continua, «o Direito Internacional universal não contém qualquer proibição
aplicável à proclamação da independência». Como se diz, é tudo
extremamente claro.
Não gosto de recorrer a citações, mas não consigo resistir e aqui fica mais
uma citação de mais um documento oficial, desta vez o Memorando Escrito
dos Estados Unidos de 17 de Abril de 2009, apresentado a esse mesmo
Tribunal Internacional a propósito das audiências sobre o Kosovo. Volto a
citar: «As declarações sobre a independência poderão, e frequentemente
assim acontece, violar a legislação interna. Porém, isso não significa que se
dá a violação do Direito Internacional.» Fim de citação. Escreveram,
anunciaram perante todo o mundo, vergaram todos, e agora ficam
indignados? Com o quê? As acções dos habitantes da Crimeia inscrevem-se
claramente nesta instrução. Porque é que o que os albaneses do Kosovo
podem fazer (e nós olhamos para eles com respeito) é proibido aos russos,
ucranianos e tártaros na Crimeia. Coloca-se novamente a pergunta: porquê?
Ouvimos dos mesmos Estados Unidos e da Europa que o Kosovo é,
supostamente, um outro caso especial. Em que consiste, na opinião dos
nossos colegas, a sua exclusividade? No facto de terem ocorrido numerosas
vítimas humanas durante o conflito no Kosovo? Mas isto é um argumento
jurídico? Na decisão do Tribunal Internacional nada se escreve sobre esta
questão. E depois, sabem que mais, isto já não são padrões duplos. É um
cinismo impressionantemente primitivo e directo. Mas não se pode
desenhar tão rudemente em conformidade com os seus interesses, chamar
um mesmo objecto branco hoje e, amanhã, preto. Significa que é preciso
levar um conflito até vítimas mortais?
Digo directamente: se as forças de autodefesa local da Crimeia não
tivessem controlado a situação, lá também teria havido vítimas. Mas, graças
a Deus, isso não aconteceu! Na Crimeia não teve lugar qualquer confronto
armado e não houve vítimas humanas. Mas porque será? A resposta é
simples: porque contra o povo e a sua vontade é difícil ou praticamente
impossível combater. E por isso quero agradecer aos militares ucranianos,
que não eram um contingente pequeno: 22 000 homens completamente
equipados. Quero agradecer aos militares da Ucrânia que não provocaram
derrame de sangue e não mancharam as mãos.
Queremos que ao território da Ucrânia cheguem a paz e a concórdia e,
juntamente com outros países, estamos prontos a dar um contributo e apoio
multilaterais. Mas só os cidadãos da Ucrânia estão em condições de impor a
ordem na sua própria casa.
Claro que surgem outras ideias a este propósito. Falam-nos de uma
qualquer intervenção russa na Crimeia, de agressão. É estranho ouvir isso.
Não me lembro de nenhum caso da História em que uma intervenção
ocorresse sem um único tiro e sem vítimas humanas.
Estimados colegas! Na situação em torno da Ucrânia reflecte-se como
num espelho o que acontece hoje no mundo e aconteceu durante as últimas
décadas no mundo. Depois do desaparecimento do sistema bipolar, a
estabilidade não aumentou no planeta. Os institutos internacionais e fulcrais
não se reforçam, mas, frequentemente, degradam-se. Os nossos parceiros
ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça, preferem, na sua prática
política, orientar-se não pelo Direito Internacional, mas pelo direito do
forte. Eles acreditaram na sua eleição e exclusividade, em que lhes foi
permitido resolver os destinos do mundo, que só e sempre eles podem ter
razão. Agem como lhes dá na cabeça: ora aqui, ora ali empregam a força
contra Estados soberanos, organizam coligações segundo o princípio de
«quem não está connosco, está contra nós». Para dar à agressão um aspecto
de legalidade, escolhem as resoluções necessárias das organizações
internacionais, mas, se por algumas razões não der resultado, ignoram
totalmente o Conselho de Segurança da ONU, a ONU em geral.
Assim aconteceu na Jugoslávia, nós lembramo-nos disso muito bem, em
1999. Era difícil acreditar nisso, não acreditei nos meus próprios olhos,
mas, nos finais do século XX, uma das capitais europeias, Belgrado, foi alvo
de ataques de mísseis e de bombas durante várias semanas e, depois, teve
lugar uma verdadeira intervenção. Mas será que houve alguma resolução do
Conselho de Segurança da ONU que permitisse semelhantes acções? Nada
disso. Depois vieram o Afeganistão e o Iraque, verdadeiras violações da
resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a Líbia, quando
também começaram os bombardeamentos no lugar da garantia da zona
aérea fechada.
Houve também uma fila inteira de revoluções «coloridas» controladas. É
compreensível que as pessoas nesses países, onde aconteceram esses
eventos, estivessem cansadas da tirania, da miséria, da falta de perspectivas,
mas esses sentimentos foram apenas cinicamente utilizados. A esses países
impuseram padrões que em nada correspondiam nem ao modo das suas
vidas, nem às tradições, nem à cultura desses povos. Como resultado, em
vez da democracia e da liberdade, vieram o caos, uma explosão de
violência, uma série de golpes. A «Primavera Árabe» foi substituída pelo
«Inverno Árabe».
Semelhante guião foi realizado também na Ucrânia. Em 2004, a fim de
impor o candidato necessário nas eleições presidenciais, inventaram uma
terceira volta. Que não estava prevista na lei. Simplesmente um absurdo e o
escárnio em relação à Constituição. E agora puseram em acção um exército
de bandidos, previamente treinado e bem equipado.
Compreendemos o que acontece, compreendemos que estas acções foram
também dirigidas contra a Ucrânia, contra a Rússia e contra a integração no
espaço euroasiático. Isso numa altura em que a Rússia tentava sinceramente
dialogar com os nossos colegas no Ocidente. Propomos constantemente
cooperação sobre todas as questões fulcrais, queremos reforçar o nível de
confiança, queremos que as nossas relações sejam iguais, abertas e
honestas. Mas não vimos passos ao encontro.
Pelo contrário, enganavam-nos uma vez a seguir à outra, tomaram
decisões nas nossas costas, colocaram-nos perante factos consumados.
Assim aconteceu com o alargamento da NATO para Leste, com a instalação
de infraestrutura militar nas nossas fronteiras. Repetem-nos a todo o
momento: «Mas isso não vos diz respeito.» É fácil dizer que não diz
respeito.
O mesmo aconteceu com a instalação de sistemas de defesa antimíssil.
Não obstante todos os nossos receios, a máquina funciona, move-se. O
mesmo aconteceu com o arrastamento infindável das conversações sobre os
problemas dos vistos, com promessas de concorrência honesta e de acesso
livre aos mercados globais.
Nós nunca iremos aspirar ao confronto com os nossos parceiros nem no
Oriente, nem no Ocidente. Pelo contrário, queremos fazer tudo o que é
necessário para construir relações civilizadas de boa vizinhança, como é
devido no mundo moderno.
Hoje, ameaçam-nos com sanções, mas nós já vivemos numa situação de
uma série de limitações, bastante substanciais para nós, para a nossa
economia, para o nosso país. Por exemplo, no período da «guerra fria», os
EUA, e depois outros países, proibiram a venda à URSS de uma longa lista
de tecnologias e de equipamentos, criando as chamadas listas do COCOM.
Hoje, elas foram formalmente revogadas, mas apenas formalmente porque,
na realidade, muitas continuam em vigor.
Resumindo, temos todas as razões para considerar que a famigerada
política de contenção da Rússia, que foi realizada nos séculos XVIII, XIX e
XX, continua hoje. Tentam permanentemente encurralar-nos por termos uma
posição independente, por a defendermos, por chamar as coisas pelos seus
nomes e por não sermos hipócritas. Mas tudo tem os seus limites. E, no
caso da Ucrânia, os nossos parceiros ocidentais atravessaram o risco,
comportaram-se de forma grosseira, irresponsável e amadora.
Mas eles sabiam bem que tanto na Ucrânia como na Crimeia vivem
milhões de russos. Até que ponto é preciso perder o faro político e o sentido
de medida para não prever todas as consequências das suas acções. A
Rússia viu-se numa situação da qual já não podia recuar. Se se comprimir
ao máximo uma mola, ela acaba por saltar com força. É preciso ter isto
sempre presente.
Hoje é preciso pôr fim à histeria, renunciar à retórica da «guerra fria» e
reconhecer uma coisa evidente: a Rússia é um participante autónomo,
activo da vida internacional; ela, tal como os outros países, tem interesses
nacionais, que devem ser levados em conta e respeitados.
Por outro lado, agradecemos a todos os que manifestaram compreensão
face aos nossos passos na Crimeia, estamos reconhecidos ao povo da China,
cuja liderança analisou e analisa a situação em torno da Ucrânia e da
Crimeia em toda a sua dimensão histórica e política; avaliamos altamente a
contenção e a objectividade da Índia.
Hoje, quero dirigir-me também ao povo dos Estados Unidos da América,
às pessoas que, desde a fundação desse país, da aprovação da Declaração da
Independência, se orgulham do facto de a liberdade para elas estar acima de
tudo. Será que o desejo dos habitantes da Crimeia, no sentido de
escolherem livremente o seu destino, não é, também, um valor em si?
Compreendam-nos.
Acredito que serei compreendido pelos Europeus e, sobretudo, pelos
Alemães. Recordo que, durante as consultas políticas sobre a unificação da
RFA com a RDA, aqueles que poderíamos, de forma polida, denominar
«peritos», mas que estavam a um nível muito alto de representação nesta
qualidade, não apoiaram a ideia da sua unificação mesmo tendo sido, e
sendo presentemente, aliados da Alemanha. Mas o nosso país, pelo
contrário, apoiou, de forma inequívoca e sincera, o desejo indomável dos
Alemães de unidade nacional. Estou convencido de que vocês não se
esqueceram disso e espero que os habitantes da Alemanha também apoiem
o desejo do mundo russo, da Rússia histórica de restabelecer a unidade.
Dirijo-me igualmente ao povo da Ucrânia. Quero sinceramente que vocês
nos compreendam: não queremos de forma alguma prejudicar, ofender os
vossos interesses nacionais. Nós sempre respeitámos a integridade
territorial da Ucrânia, ao contrário daqueles que sacrificaram a unidade do
país em nome das suas ambições políticas. Eles exibem palavras de ordem
sobre a grande Ucrânia, mas foram precisamente aqueles que fizeram tudo
para dividir o país. Só esses são os culpados do actual confronto civil.
Quero que vocês me ouçam, caros amigos. Não acreditem em quem vos
assusta com a Rússia, que gritam que à Crimeia se seguirão outras regiões.
Nós não queremos a divisão da Ucrânia, não precisamos disso. No que
respeita à Crimeia, ela foi e continua a ser russa, ucraniana e tártara.
A firmeza de posições na política externa da Rússia baseou-se na vontade
de milhões de pessoas, na unidade nacional, no apoio das mais importantes
forças políticas e sociais. Para nós é importante conservar a mesma
consolidação a fim de resolver as tarefas que se colocam perante a Rússia.
Repito, a Crimeia será, como foi durante séculos, a casa paterna para os
representantes de todos os povos que aí vivem. Mas nunca será de Bandera!
A Crimeia é nosso património como é factor importantíssimo de
estabilidade na região. E esse território estratégico deve encontrar-se sob
uma soberania forte, sólida, que, de facto, hoje, só pode ser russa. Por
outras palavras, queridos amigos (dirijo-me tanto à Ucrânia como à Rússia),
nós – russos e ucranianos – poderíamos perder definitivamente a Crimeia,
aliás num futuro não muito distante. Por favor, pensem nestas palavras.
Recordo também que em Kiev já soaram declarações sobre a adesão
rápida da Ucrânia à NATO. O que significaria essa perspectiva para a
Crimeia e Sebastopol? O aparecimento da marinha da NATO na cidade da
glória militar russa, uma ameaça para todo o sul da Rússia, não efémera,
mas totalmente concreta. Tudo isso poderia ter realmente acontecido, tudo
poderia ter acontecido se não fosse a opção dos habitantes da Crimeia.
Estou-lhes grato por isso.
A propósito, nós não estamos contra a cooperação com a NATO, nada
disso. Estamos contra que uma aliança militar – e a NATO continua a ser
uma organização militar não obstante todos os processos internos – faça o
que quiser ao lado do nosso muro, ao lado da nossa casa ou nos nossos
territórios históricos. Vocês sabem que eu simplesmente não posso
imaginar-nos a ir a Sebastopol visitar marinheiros da NATO. A propósito,
são, na sua maioria, excelentes rapazes, mas é melhor que eles venham
como nossos hóspedes a Sebastopol do que nós a ir ter com eles.
Digo directamente que nos dói a alma por tudo o que acontece agora na
Ucrânia, pelo facto de as pessoas sofrerem, de não saberem como viver hoje
e o que esperar amanhã. E a nossa preocupação é compreensível, porque
não somos simplesmente vizinhos próximos, mas, de facto, como já disse
muitas vezes, um povo. Kiev é a mãe das cidades russas. A Rus Antiga é a
nossa origem comum, não poderemos viver um sem o outro.
E digo ainda mais uma coisa. Na Ucrânia vivem e irão viver milhões de
russos, de russófonos, e a Rússia irá defender sempre os seus interesses
através de meios políticos, diplomáticos, jurídicos. Porém, antes de tudo a
própria Ucrânia deve estar interessada em que os direitos e os interesses
dessas pessoas sejam garantidos. Aqui reside a garantia da estabilidade do
Estado ucraniano e da integridade territorial do país.
Nós queremos amizade com a Ucrânia, queremos que ela seja um Estado
forte, soberano, auto-suficiente. Pois, para nós, a Ucrânia é um dos
importantes parceiros, temos numerosos projectos conjuntos e, não obstante
tudo, acredito no seu êxito. E o principal, queremos que na terra da Ucrânia
haja paz e concórdia e, juntamente com outros países, estamos prontos a
prestar assistência e apoio multilateral. Mas repito, só os próprios cidadãos
da Ucrânia estão em condições de impor ordem na própria casa.
Estimados habitantes da Crimeia e da cidade de Sebastopol! Toda a
Rússia admira a vossa coragem, dignidade e ousadia; foram precisamente
vocês que resolveram o destino da Crimeia. Nesses dias, estivemos mais
próximos de vós do que nunca, apoiámo-nos uns aos outros. Foram
sentimentos sinceros de solidariedade. É precisamente em momentos
históricos fulcrais que se põe à prova a maturidade e a força de espírito da
nação. E o povo da Rússia mostrou essa maturidade e essa força, apoiou os
concidadãos com a sua coesão…
Iremos enfrentar claramente resistência externa, mas devemos decidir se
estamos prontos para defender consequentemente os nossos interesses
nacionais ou se iremos cedê-los eternamente, recuar sabe-se lá até onde.
Alguns políticos ocidentais já nos assustam não só com sanções, mas com a
perspectiva da agudização dos problemas internos. Gostaria de saber o que
é que eles têm em vista: acções de uma quinta coluna, de diverso tipo de
«nacional-traidores», ou esperam poder deteriorar a situação
socioeconómica da Rússia e, desse modo, provocar o descontentamento das
pessoas? Vemos semelhantes declarações como irresponsáveis e claramente
agressivas e iremos reagir em conformidade a elas. No entanto, nós próprios
nunca quereremos o confronto com os nossos parceiros nem no Oriente
nem no Ocidente; pelo contrário, faremos tudo o que for necessário para
construir relações civilizadas de boa vizinhança, tal como é devido no
mundo actual. (…)
Nome: Gorbatchov, Mikhail

Data e local de nascimento: 2 de Março de 1931, Privolnoe, URSS

Breve resenha biográfica: Político. Mikhail Gorbatchov nasceu numa


família russo-ucraniana, sendo ambos os pais operários. Tendo feito o
percurso escolar na sua terra natal, em 1950, Mikhail Gorbatchov ingressou
na Faculdade de Direito da Universidade de Moscovo. Ainda na escola,
Mikhail aderiu ao Partido Comunista da URSS. Após terminar o ensino
superior com distinção, o político começou a trabalhar nas estruturas locais
do partido em Stavropol. Em 1978, Mikhail Gorbatchov é eleito Secretário
do Partido Comunista da URSS, assumindo o posto de Secretário-Geral do
partido em 1985. A sua ascensão ao mais elevado cargo da nação deu início
ao processo de democratização da URSS, a Perestroika, que culminou com
a sua eleição para o cargo de primeiro (e acabaria por ser último) Presidente
da URSS, em 1990, e pela qual mereceu o Prémio Nobel da Paz no mesmo
ano. Em 25 de Dezembro de 1991, Mikhail Gorbatchov abandonou o cargo
de Chefe de Estado e, desde então, tem-se dedicado à sua fundação. Mikhail
Gorbatchov foi casado com Raissa Gorbatchova, entre 1953 e a sua morte,
em 1999.

Contributo da sua obra para o pensamento geopolítico russo: Mikhail


Gorbatchov representa a dicotomia de visões acerca da política russa do
final do século XX e início do século XXI. Se, no Ocidente, esta
personalidade política encarada de forma sobretudo positiva, enquanto
promotor, entre outros feitos, da democratização da Rússia, da queda do
Muro de Berlim, da retirada das tropas soviéticas do Afeganistão e do
término pacífico da Guerra Fria, na Rússia é, não raras vezes, encarado
enquanto figura responsável pelo desmoronamento da URSS com a pesada
herança de uma Rússia fraca e instável dos anos 1990.
No que concerne à política externa actual do Kremlin, Mikhail
Gorbatchov considera que a anexação da Crimeia, em 2014, é mais uma
consequência do fim abrupto da Perestroika e do processo pouco pensado e
irresponsável da dissolução da URSS. Por ocasião do referendo da
anexação da Crimeia, o político afirmou tratar-se de um acto de reposição
da justiça histórica, considerando que as sanções do Ocidente contra
Moscovo constituem um erro histórico. O ex-Presidente da URSS afirma
ainda que a tensão entra a Rússia e a Europa por causa da crise ucraniana
pode levar a um conflito de grandes dimensões, culminando até numa
guerra nuclear.
Preocupações do mundo global (2016)

Para onde se dirige o mundo global no século XXI? Hoje, esta pergunta é
feita pelas pessoas com uma preocupação crescente, e eu estou entre elas.
Com o meu amigo Hans-Dietrich Genscher, que nos deixou há pouco
tempo, analisámos por mais de uma vez a questão: o que é que não correu
como era devido? A nossa geração, a geração de políticos que conseguiu
com esforços conjuntos pôr fim à «guerra fria», fez o seu trabalho. Mas
porque é que o mundo de hoje não está calmo, é injusto e militarizado?
Parecia que o fim do confronto global e as possibilidades inéditas das
novas tecnologias, antes de tudo das da informação, deveriam dar ao mundo
um novo fôlego, melhorar a vida literalmente de cada pessoa. Mas a
realidade mostrou ser outra.
Não existe uma explicação fácil para isso. Disse-o por mais de uma vez
que os políticos não estiveram à altura. Aqueles que anunciaram a «vitória
do Ocidente na “guerra fria”», os que se recusaram a construir um sistema
de segurança novo, justo, têm grandes responsabilidades na actual situação
no mundo. O triunfalismo é um mau conselheiro nos assuntos
internacionais.
Mas não se trata apenas disso. Até hoje, o novo mundo global não foi
verdadeiramente compreendido e pensado. Ele exige novas regras de
comportamento, outra moral. Contudo, os dirigentes mundiais parecem não
ter tempo para isso.
Penso que esta é a principal causa da actual «convulsão global».
Quem ganhou e quem perdeu no mundo global?
As pessoas estão preocupadas com a tensão nos assuntos internacionais,
mas estão ainda mais preocupadas com a sua situação, com as suas
perspectivas. Isso está interligado.
Até nos países mais desenvolvidos, a maioria – a classe média, que é a
base de qualquer sociedade que se desenvolve com êxito – manifesta
descontentamento com a sua vida. Os eleitores apoiam cada vez mais
frequentemente os políticos populistas, que propõem, à primeira vista,
soluções simples, mas, na realidade, perigosas.
Ao mesmo tempo, as estruturas financeiras, que não são controladas por
ninguém, rapidamente se adaptaram à globalização e tiraram vantagens
dela, criando «bolas de sabão» umas após outras e fazendo milhares de
milhões literalmente a partir do ar. Esses milhares de milhões ficam à
disposição de um grupo cada vez mais reduzido de pessoas que fogem ao
pagamento de impostos. Nos últimos dias, vimos novos exemplos disso,
mas trata-se apenas do cume do icebergue.
Para já não falar de que, num mundo global, se sentem confiantes as
estruturas do crime organizado, os traficantes de drogas e armas, os
grupelhos que enriquecem à custa de grandes correntes migratórias e,
principalmente, os terroristas.

A crise da política e a crise das lideranças

A política mundial não encontrou, por enquanto, uma resposta eficaz para
nenhum desses problemas. Ao mesmo tempo começou uma nova etapa da
corrida aos armamentos, agrava-se a crise ecológica, aumenta a diferença
entre os países ricos e pobres, e entre os ricos e pobres no interior dos
países. São precisamente estes problemas que devem ocupar os primeiros
lugares na ordem do dia mundial. Mas não são resolvidos. Becos sem saída
em toda a parte.
Parecia haver possibilidades e mecanismos para a sua superação, tanto
aqueles que já existem há muito – antes de tudo, as organizações do sistema
da ONU –, como os novos, como por exemplo o G20, criado para a luta
contra novos desafios. É difícil encontrar alguém que considere a sua
actividade bem-sucedida. Atrasam-se sempre, ficam para trás.
É evidente a crise de liderança, tanto no âmbito internacional, como
nacional. Os políticos estão envolvidos no «apagamento de fogos», na
solução dos problemas correntes, de crises e de conflitos actuais. Não há
dúvida de que é preciso resolvê-los e, nas últimas semanas, notaram-se
alguns avanços positivos.
Tem lugar o diálogo sobre a Síria. É verdade que, por enquanto, nele
participam mais partes externas, antes de tudo os Estados Unidos e a
Rússia. Mas isso já contribuiu para um certo enfraquecimento da tensão nas
relações entre a Rússia e o Ocidente. Se esta tendência for desenvolvida,
será necessário alargá-la também a outras esferas das relações. Mas esse
será um processo longo e difícil. A confiança sofreu prejuízos
demasiadamente altos.
Não se registam progressos na solução da crise em torno da Ucrânia. Os
actuais mecanismos de regularização trabalham mal. Fica-se com a
impressão de que eles são transformados em rotina. Não se pode renunciar a
estes mecanismos (Acordos de Minsk, Quarteto da Normandia). Mas parece
ser necessário completá-los e estimular o seu trabalho. Talvez através da
discussão no Conselho de Segurança da ONU ou de outros mecanismos
com a participação da Rússia e dos Estados Unidos. Não se pode deixar a
crise ucraniana transformar-se num abcesso que prejudica a saúde da
Europa e do mundo. A Europa não pode suportar mais um «conflito
congelado». Dirijo-me directamente aos presidentes Obama e Putin (fiz isso
pela primeira vez em 2014) com o apelo de se encontrarem e discutirem
esta crise que continua.

Olhar para mais além


Mas mesmo que se consiga superar as actuais crises agudas, isso será
importante, mas apenas o primeiro passo rumo a uma tarefa mais difícil:
aprender a viver no mundo global. Sem o contexto global é impossível
compreender as causas e as consequências dos actuais conflitos e elaborar
uma ordem de trabalhos renovada e meios de solução dos problemas que
inevitavelmente irão surgir no mundo. Na ordem de trabalhos da política
mundial, o principal é definir correctamente as prioridades. O manifesto
Russel-Einstein, a ideia de Olof Palme sobre a segurança colectiva, o
discurso de John Kennedy sobre o «mundo para todos», a Declaração de
Genebra da URSS e dos Estados Unidos de 1985 (confirmada em
Reiquejavique e através dos acordos sobre o fim da corrida aos armamentos
nucleares), tudo isso foram «propostas» para essa ordem de trabalhos, onde
os principais problemas da humanidade foram realmente colocados no
primeiro plano. Hoje são:
• o problema existente de armas de destruição massiva, a corrida aos
armamentos, a militarização da política mundial;
• o problema da pobreza e do subdesenvolvimento de uma enorme parte
da humanidade;
• o desafio ecológico, a mudança climática;
• o terrorismo.
Outros problemas agudos são a migração em massa, a xenofobia e a
intolerância da coexistência de diferentes civilizações. O denominador
comum de todos estes problemas é que não podem ser resolvidos pela via
militar, da força. A necessidade de unir esforços parece ser um axioma,
mas, por enquanto, prevalecem a divisão e a incapacidade de agir em
conjunto. Os Estados e os seus dirigentes são os principais responsáveis por
essa situação. Num mundo global, apareceram também outros participantes
dos processos mundiais: organizações da sociedade civil, homens de
negócios, sociedade científica, associações religiosas. Mas o papel e a
responsabilidade dos Estados, dos seus líderes, das organizações inter-
estatais devem continuar a ser decisivos.

A política e a moral. Regras de comportamento


A necessidade de unir a política e a moral é outro imperativo do mundo
global actual. Trata-se de um problema grande e difícil. Não se pode
resolvê-lo de um golpe. Mas se este problema não for colocado, se não se
trabalhar afincadamente na sua resolução, o mundo estará condenado a
novos conflitos e contradições insolúveis.
No mundo global, são particularmente perigosos os «padrões duplos». É
preciso excluir qualquer possibilidade de apoio pelos Estados (partindo dos
seus «interesses») a grupos terroristas, extremistas, a quaisquer movimentos
que defendem a «luta armada», o derrube de governos legítimos através da
força. As relações dos Estados no mundo global devem ser reguladas não só
pelas normas do Direito Internacional, mas também por determinadas
regras de comportamento baseadas nos princípios da moral universal. Essas
«regras de comportamento» devem prever a contenção, a tomada em conta
dos interesses de todas as partes, consultas e intermediação por ocasião do
agravamento da situação e da ameaça de crise. Estou convencido de que se
poderia ter evitado as crises ucraniana e síria se os seus participantes
directos e principalmente as partes do conflito se orientassem por
semelhantes regras de comportamento. Penso que as regras de
comportamento, de uma espécie de código ético são necessárias para os
meios de informação em massa. Diria que eles não são imaculados.
Frequentemente, atiçam paixões, poluem o meio informativo. Em vez de
ajudarem na prevenção e no fim de conflitos, participam de facto no seu
atiçamento. Eis o principal que quero dizer: os problemas da renovação da
ordem de trabalhos mundiais, da combinação da moral e da política, as
regras de comportamento no mundo global devem ser colocados no centro
das atenções dos Estados e da sociedade civil mundial.

O papel da Rússia

Estou convencido de que o papel da Rússia na superação da crise da


política mundial pode e deve ser importante e positivo. Chegou a hora de o
Ocidente renunciar às tentativas de isolá-la. Isso nunca deu resultado. Muito
menos darão resultado as «sanções pessoais». Deve-se renunciar a estas em
primeiro lugar. De outro modo, não haverá diálogo, não haverá hipóteses de
restabelecer a confiança. Ninguém deve esperar que, ao enfrentar
dificuldades económicas, a Rússia aceite um papel secundário no mundo.
Se isso acontecer, ninguém irá ganhar com isso. Mais, todos poderão apenas
perder com uma nova «guerra fria».
Recentemente, durante a «linha directa» na televisão, Vladimir Putin
revelou o desejo de normalização das relações com o Ocidente. Poderão os
nossos parceiros sintonizar-se numa onda mais construtiva? Isso por
enquanto não está claro, mas apelo a isso. Hoje vivemos um momento
responsável. É preciso pôr de lado as emoções e os excessos
propagandísticos. Pode-se apresentar sérias pretensões à actual geração de
dirigentes dos grandes Estados. Mas ela continua a ter a possibilidade de
ocupar um lugar digno na História. E seria um grande erro não utilizar essa
possibilidade.

Rossiskaia Gazeta, 20.04.2016


NOTAS BIOGRÁFICAS

Agurski, Mikhail (1933-1991) – Dissidente soviético, editor, historiador,


politólogo e escritor.
Aksakov, Konstantin (1817-1860) – Historiador, linguista, editor, poeta e
crítico literário.
Alexandre I (1777-1825) – Imperador da Rússia.
Alexandre II (1818-1881) – Imperador de toda a Rússia, Czar da Polónia
e Grão-duque da Finlândia.
Alexandre III (1845-1894) – Imperador da Rússia entre 1881 e 1894.
Era conservador e reverteu várias reformas liberais implementadas por seu
pai.
Alexei Petrovich (1690-1718) – Filho de Pedro I, o Grande, condenado
por traição à pátria.
Alexis II (1929-2008) – Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia, entre
1990 e 2008.
Ana Porfirogénita (Anna) (963-1011) – Princesa bizantina, irmã de
Basílio II Bulgaróctone e de Constantino VIII, casou-se com Vladimir I de
Kiev quando este se converteu ao Cristianismo. Ao desposar Vladimir, Ana
torna-se a «grande princesa de Kiev». Participou na cristianização dos Rus
de Kiev.
Anders, Wladyslaw (1892-1970) – General polaco.
Arakcheev, Aleksei (1769-1834) – General e estadista russo.
Arendt, Hannah (1906-1975) – Filósofa política alemã, de origem
judaica.
Areopagita, Dionísio (Pseudo-Dionísio) (finais do século V-inícios do
século VI); Teólogo e filósofo cristão, de provável origem síria.
Arndt, Johann (Arnd) (1555-1621) – Teólogo luterano alemão.
Arseniev, Nikolai (1888-1977) – Filósofo, historiador e poeta russo.
Bakunine, Mikhail (1814-1876) – Pensador, revolucionário e anarquista
russo.
Bandera, Stepan (1909-1959) – Político ucraniano, líder do movimento
nacionalista e independentista da Ucrânia.
Basílio II (958-1025) – Imperador bizantino em 963 e entre 976 e 1025.
Devido à sua luta contra os Búlgaros recebeu o nome de Bulgaróctone,
«assassino de búlgaros».
Bauer, Bruno (1809-1882) – Historiador, filósofo, teólogo e editor
alemão.
Belinski, Vissarion (1811-1848) – Crítico literário russo.
Benoist, Alain de (1870-1960) – Pintor, histórico de arte, crítico de arte e
realizador russo.
Berdiaev, Nikolai (1874-1948) – Filósofo religioso russo e editor.
Bestujev-Riumin, Mikhail (1803-1826) – Dezembrista russo.
Biron, Ernesto João de (1690-1772) – Duque da Curlândia e Regente do
Império russo durante 20 dias.
Bismarck, Otto von (1815-1898) – Estadista prussiano.
Bobrinski – Condes, latifundiários e produtores de açúcar na Rússia.
Descendem de A. A. Bobrinski, filho ilegítimo de Catarina II e G. Orlov.
Böhme, Jakob (Boehme) (1575-1624) – Filósofo e místico luterano
alemão.
Bonaparte, Napoleão (Napoleão I) (1769-1821) – Líder político e militar
durante os últimos estágios da Revolução Francesa. Sob o nome Napoleão
I, foi imperador dos Franceses. A reforma legal que empreendeu teve uma
grande influência na legislação de vários países.
Boris Godunov (1552-1605) – Czar russo. Suspeito de ter assassinado
Ivan IV, o Terrível e seu filho, o príncipe Dmitri, para ocupar o trono.
Bruck, Arthur Moeller van den (1876-1925) – Historiador e escritor
alemão.
Buckle, Henry Thomas (1821-1862) – Historiador britânico.
Búrtsev, Vladimir (1862-1942) – Editor e ativista político russo.
Bush, George Herbert Walker (1924-) – Político republicano norte-
americano. 41.º Presidente dos EUA.
Carlos V (1500-1558) – Imperador Romano-Germânico como Carlos V a
partir de 1519 e Rei da Espanha, como Carlos I, desde 1516.
Catarina II, a Grande (1729-1796) – Imperatriz da Rússia.
Chaadaev, Piotr (1794-1856) – Filósofo russo.
Chafarevich, Igor (1923-) – Matemático e físico.
Chernichevskii, Nikolai (1828-1889) – Filósofo, enciclopedista, escritor,
crítico literário, editor e revolucionário russo.
Churchill, Winston (1874-1965) – Estadista britânico.
Cobden, Richard (1804-1865) – Industrial, economista e político
britânico, membro radical do Partido Liberal.
Colbert, Jean-Baptiste (1619-1683) – Ministro do Estado e da Economia
do Rei Luís XIV de França.
Constantino VIII (960-1028) – Imperador bizantino, irmão de Basílio II,
que faleceu sem deixar filhos e deixou o governo do Império Bizantino nas
suas mãos.
Constantino, o Grande (272-337) – Imperador romano.
Dal, Vladimir (1801-1872) – Etnógrafo e escritor russo.
Danilevski, Nikolai (1822-1885) – Sociólogo, cientista cultural, escritor,
estudioso da geopolítica e naturalista russo.
Diderot, Denis (1713-1784) – Escritor e filósofo francês.
Dolgorúkov – Família nobre russa cujos vários membros se
celebrizaram, no século XVIII, pelas diversas tentativas, sem sucesso, de
limitar o poder real.
Dostoievski, Fiodor (1821-1881) – Escritor e filósofo russo.
Duguin, Aleksandr (1962-) – Filósofo, sociólogo, politólogo, tradutor e
activista político russo.
Elizabete Petrovna (1709-1761) – Imperatriz da Rússia, filha de Pedro I
e Catarina I.
Engels, Friedrich (1820-1895) – Pensador político alemão.
Estaline, José (1878-1953) – Líder político soviético.
Ewers, Gustav von (1779-1830) – Historiador de origem alemã, fundou
na Rússia a disciplina da História do Direito.
Fedotov, Gueorgui (1886-1951) – Historiador, filósofo, editor e pensador
religioso russo.
Fénelon, François de Salignac de La Mothe (1651-1715) – Teólogo
católico, poeta e escritor francês.
Fernando II (1578-1637) – Imperador Romano-Germânico e
Arquiduque da Áustria, de 1619 até sua morte; Rei da Hungria, da Croácia
e da Boémia.
Feuerbach, Ludwig Andreas (1804-1872) – Filósofo alemão. Defensor
do ateísmo humanista e influenciador do pensamento de Karl Marx.
Fichte, Johann (1762-1814) – Filósofo alemão.
Figner, Vera (1852-1942) – Revolucionária russa.
Filipe II (1527-1598) – Rei da Espanha de 1556 até sua morte e também
Rei de Portugal, como Filipe I, a partir de 1581.
Filofei de Pskov (1465-1542) – Monge no Mosteiro de Elizarovo, em
Pskov; foi pensador, escritor e um dos fundadores da ideologia de Estado da
monarquia russa.
Fílon de Alexandria (20 a. C.-ca. 50 a. C.) – Filósofo judeo-helenista que
viveu durante o período do helenismo.
Fiodorov, Nikolai (1829-1903) – Pensador religioso e filósofo russo.
Florenski, Pavel (1882-1937) – Sacerdote, filósofo religioso e poeta
russo.
Florovski, Gueorgui (1893-1979) – Teólogo, filósofo e historiador russo.
Formoso, Papa (ca. 816-896) – Responsável pela conversão dos Búlgaros.
Franco, Francisco (1892-1975) – Militar e estadista espanhol.
Frederico II (Frederico, o Grande) (1712-1786) – Rei da Prússia de 1740
até 1786.
Fukuyama, Yoshihiro Francis (1952-) – Filósofo e economista político
norte-americano. Importante figura do conservadorismo. Autor do livro O
Fim da História e o Último Homem (1992).
Gagarin, Ivan (1814-1822) – Conde e diplomata russo. Após ter deixado
a sua pátria, em 1843, passou a residir em Paris, onde se converteu ao
Catolicismo e tornou-se monge jesuíta.
Galitch, Aleksandr (1783-1848) – Filósofo e esteta russo.
Genscher, Hans-Dietrich (1927-2016) – Político alemão, ex-Ministro dos
Negócios Estrangeiros da República Federal da Alemanha (1974-1992).
Gershenzon, Mikhail (1869-1925) – Filósofo russo e especialista em
literatura.
Gilferding, Aleksandr Fedorovich (1831-1872) – Historiador da cultura e
da tradição eslava.
Girs, Nikolai (1820-1895) – Ministro dos Negócios Estrangeiros do
Império Russo (1882-1895).
Glinka, Mikhail (1804-1857) – Compositor russo.
Gmelin, Johann (1709-1755) – Cientista alemão da área das Ciências
Naturais.
Gogol, Nikolai Vasilievich (1809-1852) – Escritor russo cuja obra
literária é fundada no realismo pré-surrealista.
Golitzyn, Vassili (1643-1714) – Conde e político russo.
Gorbatchov, Mikhail (1931-) – Político e estadista russo.
Gortchakov, Alexandre (1798-1883) – Responsável pela pasta da
Política Externa durante o reinado de Alexandre II.
Granovski, Timofei (1813-1855) – Historiador russo e um dos ideólogos
do ocidentalismo.
Grigoriev, Apollon (1822-1864) – Poeta, crítico literário e de teatro,
tradutor e letrista. Desenvolveu a ideologia de pochvennichestvo, segundo a
qual a missão do povo passava por salvar toda a humanidade.
Grot, Jakob (1812-1893) – Historiador de literatura, cultura e
pensamento coletivo russo.
Guilherme I (1028-1087) – Rei de Inglaterra.
Guilherme II (1859-1941) – Último imperador alemão e Rei da Prússia,
entre 1888 e 1918, ano da sua abdicação.
Guizot, François Pierre Guillaume (1787-1874) – Historiador e político
francês; ministro durante a monarquia de Julho; Presidente do Conselho em
1847.
Gumilov, Lev (1912-1992) – Historiador, etnólogo, arqueólogo,
orientalista, escritor e tradutor russo.
Gutchkov, Aleksandr (1862-1936) – Grande industrial e proprietário
imobiliário moscovita, fundador do Partido Outubrista.
Harvey, William (1578-1657) – Médico britânico que descreveu, pela
primeira vez, de forma correta o sistema de circulação de sangue no corpo
humano.
Hegel, Georg (1770-1831) – Filósofo alemão.
Heidegger, Martin (1889-1976) – Filósofo alemão.
Helvétius, Claude Adrien (1715-1771) – Filósofo e literato francês.
Henrique VIII (1491-1547) – Rei de Inglaterra.
Herder, Johann Gottfried von (1744-1803) – Filósofo e escritor alemão.
Herzen, Alexandre (1812-1870) – Escritor e filósofo russo.
Hipólito de Roma (Santo Hipólito) (ca. 170-ca. 236) – Entrou em
conflito com alguns papas, sendo considerado como o primeiro Antipapa.
Estaria reconciliado com a Igreja quando morreu como mártir.
Hitler, Adolf (1889-1945) – Estadista alemão.
Khmelnitski, Bogdan (1595-1657) – Militar e estadista russo.
Iaroslav, o Grande (978-1054) – Grão-príncipe de Novgorod e Kiev.
Filho de Vladimir I de Kiev, o Grande.
Ieltsin, Boris (1931-2007) – Primeiro Presidente da República da Rússia
pós-soviético.
Ilin, Ivan (1883-1954) – Filósofo, editor e escritor russo.
Ioakhim (1621-1690) – Patriarca de Moscovo (1674-1690).
Isidoro de Kiev (1380/1390-1463) – Cardeal bizantino, Metropolita de
Kiev, foi um proeminente teólogo e um dos principais defensores da
reunião da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa durante o Concílio de
Florença (1431-1445).
Ivan III, o Grande (1440-1505) – Grão-Príncipe de Moscovo e Senhor
de Toda a Rússia. Unificou uma parte significativa das terras russas em
torno de Moscovo, transformando a cidade no centro do Estado russo.
Ivan IV, o Terrível (1530-1584) – Primeiro monarca a ser coroado Czar
de Toda a Rússia. Filho de Vassili III.
Kant, Immanuel (1724-1804) – Filósofo prussiano.
Kapodístrias, Ioánnis (1776-1831) – Político grego.
Kara-Murza, Serguei (1939-) – Químico, historiador, cientista político e
sociólogo russo.
Karsavin, Lev (1882-1952) – Filósofo religioso, historiador e poeta russo
Kempis, Tomás de (Thomas von Kempen) (ca. 1380-1471) – Monge e
escritor alemão.
Kennedy, John Fitzgerald (1917-1963) – Político democrata norte-
americano, 35.º Presidente dos E.U.A.
Khan, Gengis (ca. 1162-1227) – Conquistador e imperador mongol.
Khomiakov, Aleksei (1804-1860) – Poeta, pintor, teólogo e filósofo
russo.
Khruschov, Nikita (1894-1971) – Estadista soviético.
Kireevski, Ivan (1806-1856) – Filósofo religioso russo, crítico literário e
editor. Um dos principais teóricos eslavófilos.
Kireevski, Piotr (1808-1856) – Escritor e tradutor russo.
Kizevetter, Aleksandr Aleksandrovich (1866-1933) – Historiador russo.
Kliuchevski, Vassili (1841-1911) – Historiador russo, chegou a presidir à
Sociedade Imperial de História e Antiguidades Russas, na Universidade de
Moscovo.
Kojev, Aleksandr (1902-1968) – Filósofo russo-francês.
Kokochkin, Fiodor (1871-1918) – Advogado e político russo.
Kóllar, Ján (1793-1852) – Poeta, arqueólogo, cientista e político
eslovaco.
Kotzebue, August von (1761-1819) – Dramaturgo alemão, assassinado
alegadamente devido ao seu posicionamento político pró-russo.
Krestóvnikov, Grigori (1855-1918) – Industrial ativista político e social
russo.
Kropotkin, Piotr (1842-1921) – Geógrafo, historiador e revolucionário
russo.
Kútler, Nikolai (1859-1924) – Político russo.
Kutusov, Mikhail Illarionovich Golenishchev (1745-1813) – Marechal de
Campo russo, reconhecido pelo seu papel na resistência militar russa
perante a invasão napoleónica.
Land, Frank Sherman (1890-1959) – Norte-americano fundador da
organização para-maçónica Ordem DeMolay.
Leibniz, Gottfried Wilhelm (1646-1716) – Filósofo, cientista,
matemático, diplomata e bibliotecário alemão.
Lenine, Vladimir (1870-1924) – Revolucionário e activista político russo.
Leontiev, Konstantin (1831-1891) – Diplomata, filósofo, escritor, cítico
literário, editor e sociólogo russo.
Levesque, Pierre-Charles (1736-1812) – Historiador francês, serviu na
corte da Catarina II.
List, Georg Friedrich (1789-1846) – Economista alemão, partidário do
proteccionismo.
Lobatchevski, Nikolai (1792-1856) – Matemático russo.
Locke, John (1632-1704) – Filósofo inglês e ideólogo do liberalismo.
Lomonossov, Mikhail (1711-1765) – Cientista nas áreas da História
Natural, Física e Química, enciclopedista, astrónomo, geógrafo, geólogo,
poeta, filólogo, pintor e historiador russo.
Losski, Nikolai (1870-1965) – Filósofo religioso russo.
Luís XIV (o Rei Sol) (1638-1715) – Rei de França.
Lutero, Martinho (1483-1546) – Monge e teólogo de origem germânica,
impulsionador do movimento protestante e fundador do luteranismo.
Madame Guyon (Jeanne-Marie Bouvier de La Motte) (1648-1717) –
Mística de nacionalidade francesa.
Magnitski, Mihail (1778-1844) – Governador da província de Simbir e
escritor russo.
Magno, Carlos (742-814) – Soberano do Império Romano do Ocidente,
Rei dos Lombardos e Rei dos Francos.
Maklakov, Vassili (1870-1957) – Jurista, ativista político e diplomata
russo.
Manstein, Christoph (1711-1757) – Militar russo.
Maomé II (1432-1481) – Sultão do Império Otomano.
Marat, Jean-Paul (1743-1793) – Médico, filósofo, político e
revolucionário francês.
Martinov, Ivan (1821-1894) – Arqueólogo russo. Na década de 50 do
século XIX, converteu-se ao Catolicismo, mudou-se para França e passou a
ser monge jesuíta.
Marx, Karl (1818-1883) – Filósofo, economista, sociólogo, jornalista e
revolucionário.
Máslov, Piotr (1867-1946) – Agrónomo e economista russo.
Maximiliano I (1459-1519) – Imperador do Sacro Império Romano-
Germânico.
Mazzini, Giuseppe (1805-1872) – Político, maçon e revolucionário
italiano.
Ménchikov, Aleksandr (1673-1729) – Político e militar russo.
Mendeleev, Dmitri Ivanovic (1834-1907) – Químico e físico russo,
criador da tabela periódica dos elementos químicos.
Merejkovski, Dmitri (1886-1941) – Escritor, poeta, crítico literário,
pensador religioso russo.
Metchnikov, Ilia (1845-1916) – Biólogo e patologista russo.
Metternich, Klemens Wenzel von (1773-1859) – Diplomata e estadista
do Império Austro-Húngaro.
Mickiewicz, Adam (1798-1855) – Poeta e escritor polaco.
Mihailovic, Draza (1893-1946) – General sérvio, Ministro da Guerra do
Governo jugoslavo no exílio.
Mikhailovitch, Aleksei (1629-1676) – Segundo Czar russo da dinastia de
Romanov.
Miliukov, Pavel (1859-1943) – Historiador, editor e ativista político
russo.
Miller, Gerard (1705-1783) – Historiador e arquiteto russo de origem
alemã.
Minin, Kuzma (?-1616) – Herói russo que combateu a ingerência polaca
e sueca.
Moguila, Piotr (1596-1674) – Ativista político e religioso ucraniano.
Molinos, Miguel (1628-1696) – Místico e sacerdote católico espanhol.
Montesquieu, Charles-Louis de Secondat (1689-1755) – Barão de
Montesquieu, escritor, político e filósofo francês.
Munehin, Mikhail Grigorievitch (ca.1450-1528) – Alto funcionário
público durante o reino de Vassili III.
Münnich, Conde Burkhard Christoph von (1683-1767) – Militar alemão
de engenharia que se tornou Marechal de Campo e figura política
proeminente do Império Russo.
Müntzer, Thomas (1490-1525) – Teólogo, um dos ideólogos do
Reformismo.
Muraviov-Apostol, Serguei (1796-1826) – Tenente-coronel, um dos
organizadores do movimento Dezembrista russo.
Mussorgski, Modest Petrovitch (1839-1881) – Compositor russo.
Nadejdin, Nikolai (1804-1856) – Filósofo, teólogo, jornalista e crítico
literário.
Narychkin – Família nobre russa, célebre desde o século XVI.
Nesselrode, Karl (1780-1862) – Ministro dos Negócios Estrangeiros do
Império Russo (18221856).
Nestor, o Cronista (1056-1114) – Monge no Mosteiro de Kiev-Petchersk,
é considerado um dos primeiros cronistas russos, foi canonizado pela Igreja
Ortodoxa.
Nicolau I (17961855) – Imperador de toda a Rússia, Czar da Polónia e
Grão-duque da Finlândia.
Nicolau II (Nicolau Romanov) (1868-1918) – Último Imperador da
Rússia.
Niekisch, Ernst (1889-1967) – Político alemão, principal ideólogo do
nacional-bolchevismo.
Nietzsche, Friedrich Wilhelm (1844-1900) – Filósofo, filólogo, crítico
cultural, poeta e compositor alemão.
Novgorodtsev, Pavel (1886-1924) – Jurista e filósofo russo.
Novikov, Nikolai (1744-1818) – Escritor, jornalista e editor russo.
Obama, Barack Hussein (1961-) – Político democrata norte-americano,
44.º Presidente dos EUA.
Osterman-Tolstoi, Alexander Ivanovich (1770-1857) – Nobre e militar
russo durante as guerras da Revolução Francesa.
Paleóloga, Sofia (Zoia) (1455-1503) – Filha de Foma Paleólogo, irmão
do último imperador bizantino, Constantino XI Paleólogo.
Pallas, Peter (1741-1811) – Zoologo alemão que se celebrizou na Rússia.
Palme, Sven Olof Joachim (1927-1986) – Político sueco. Foi Primeiro-
Ministro da Suécia entre 1969 e 1976 e entre 1982 e 1986, ano em que foi
assassinado.
Pasteur, Louis (1822-1895) – Químico e microbiólogo francês que
descobriu os princípios da vacinação e da pasteurização.
Paulo I (1754-1801) – Imperador da Rússia de 1796 até 1801.
Pavelic, Ante (1889-1959) – Fundador do movimento fascista croata
Ustase.
Pavlov, Mikhail (1793-1840) – Filósofo, físico e biólogo agrícola russo.
Pechorin, Vladimir (1807-1885) – Filólogo russo e historiador da
literatura.
Pedro I, o Grande (1672-1725) – Último Czar de Toda a Rússia e
primeiro Imperador de toda a Rússia.
Pedro III (1728-1762) – Imperador da Rússia entre Janeiro e Julho de
1762.
Perón, Juan Domingo (1895-1974) – Militar e político argentino. Foi
presidente da Argentina entre 1946 e 1955 e entre 1973 e 1974.
Pestel, Pavel (1793-1826) – Revolucionário russo e ideólogo do
Dezembrismo.
Plekhanov, Gueorgui (1856-1918) – Filósofo e editor russo, considerado
por Lenine o mais relevante estudioso do marxismo.
Pokrovski, Mikhail (1868-1932) – Historiador, ativista político e social
russo.
Prokopovitch, Feofan (1681-1736) – Ativista religioso e político russo,
escritor e historiador russo.
Proudhon, Pierre-Joseph (1809-1865) – Filósofo francês.
Pugatchov, Emilian (1742-1775) – Líder de um levantamento de
cossacos e de camponeses (1773-1775) contra a servidão da gleba.
Purichkévitch, Vladimir (1870-1920) – Ativista político russo.
Pushkin, Alexandre (1799-1837) – Poeta, escritor e dramaturgo russo.
Putin, Vladimir (1952-) – Político e estadista russo.
Radescu, Nicolae (1876-1953) – Primeiro-Ministro romeno entre 1944 e
1945.
Radishev, Aleksandr (1749-1802) – Escritor e pensador revolucionário
russo.
Rimski-Korsakov, Nikolai (1844-1908) – Compositor russo.
Robertson, George (1946) – Político britânico e Secretário-Geral da
NATO entre 1999 e 2004.
Róditchev, Fiodor (1853-1932) – Político russo.
Romodonovski, Fiodor (1640-1717) – Príncipe e político russo.
Rotteck, Karl von (1775-1840) – Activista, historiador alemão.
Rousseau, Jean-Jacques (1712-1778) – Filósofo, teórico político, escritor
e compositor suíço.
Rozanov, Vassili (1856-1919) – Filósofo religioso russo, editor, crítico
literário, tradutor e jornalista.
Rubanóvitch, Ilia (1859-1922) – Editor e revolucionário russo.
Rurique de Kiev (Rurik, Riurik) (830879) – Fundador varegue (viking)
da monarquia russa, dando o nome à dinastia ruríquida.
Ruysbroeck, John van (ca. 1294-1381) – Místico alemão.
Sabler, Vladimir Karlovich (1845-1929) – Activista político e religioso
russo.
Saint-Martin, Louis Claude de (1743-1803) – Filósofo e místico francês.
Sakharov, Andrei (1921-1989) – Físico e ativista político russo.
Salazar, António de Oliveira (1889-1970) – Estadista nacionalista
português.
Samarin, Iúri (1819-1876) – Editor e filósofo russo.
São Máximo, o Confessor (Máximo de Constantinopla) (ca. 580-662) –
Monge e teólogo cristão. Considerado um dos pais da Igreja grega (oriental)
e cristã.
Sartre, Jean-Paul (1905-1980) – Filósofo e escritor francês.
Savitski, Piotr (1895-1968) – Economista, geógrafo e sociólogo russo.
Schelling, Friedrich Wilhelm Joseph (1775-1854) – Filósofo idealista
alemão
Schlosser, Friedrich (1776-1861) – Historiador alemão.
Schwarz, Johann (1751-1784) – Professor de Filosofia de origem alemã.
Sekatzki, Alexandre (1958-) – Filósofo, editor e escritor russo.
Shafarik, Pavel (1795-1861) – Filólogo e poeta eslovaco.
Shein, Pavel (1826-1900) – Folclorista e etnógrafo russo e bielorusso.
Shiskov, Alexander (1754-1841) – Escritor, político e Almirante do
Império Russo.
Skovoroda, Gregori (1722-1794) – Poeta, filósofo e pedagogo ucraniano.
Smirnov, Ivan (1881-1936) – Revolucionário e ativista político russo,
opositor de Lenine.
Sofia (1657-1704) – Czarina, irmã mais velha de Pedro I, tendo sido sua
regente.
Soljenitsin, Aleksandr (1918-2008) – Escritor, poeta, dramaturgo, editor
e activista político.
Soloviov, Serguei (1820-1879) – Historiador e professor universitário.
Soloviov, Vladimir (1853-1900) – Editor, poeta, tradutor, crítico literário
e pensador místico. Filho do historiador Serguei Soloviov.
Sosnkowski, Kazimierz (1885-1969) – General e político polaco.
Spektorski, Evgueni (1875-1951) – Filósofo russo, jurista e especialista
em teoria da cultura.
Spencer, Herbert (1820-1903) – Filósofo inglês e um dos representantes
do liberalismo clássico.
Spengler, Oswald (1880-1936) – Historiador e filósofo alemão.
Speranski, Mikhail (1772-1839) – Ativista político e social, legislador
russo.
Stirbei, Alexander (1836-1895) – Político romeno, chegou a ocupar os
cargos de Ministro dos Trabalhos Públicos e de Ministro das Finanças.
Stirner, Max (Johann Kaspar Schmidt) (1806-1856) – Escritor e filósofo
alemão.
Stolipin, Piotr (1862-1911) – Político russo, foi Ministro do Interior
durante o reinado do czar Nicolau II, entre 1906 e 1911.
Strauss, Leo (1899-1973) – Filósofo político teuto-americano ateu, de
origem judaica. Especialista no estudo da Filosofia Política Clássica.
Suslov, Mikhail (1902-1982) – Político soviético.
Suvorov, Alexander (1730-1800) – Generalíssimo das Forças Armadas
do Império Russo.
Sviatoslav Igorevitch (?-ca. 973) – Grande Príncipe de Kiev entre 945 e
973.
Talleyrand, Charles (1754-1838) – Bispo e estadista francês.
Tauler, Johannes (1300-1361) – Místico alemão e monge dominicano.
Tchaikovski, Piotr (1840-1893) – Compositor russo.
Tchicherin, Boris (1828-1904) – Filósofo, historiador, editor e pedagogo
russo.
Teltschik, Holst (1940-) – Político checo.
Thierry, Jacques Nicolas Augustin (1795-1856) – Historiador francês.
Thiers, Adolphe (1797-1877) – Advogado, jornalista e historiador;
Presidente da República Francesa entre 1871 e 1873.
Tolstoi, Lev (1828-1910) – Escritor e pensador russo.
Trotski, Lev (1879-1940) – Revolucionário e activista político.
Trubetskoi, Evgueni (1863-1920) – Nobre russo, filósofo religioso,
editor, ativista social. Irmão de Serguei Trubetskoi.
Trubetskoi, Nikolai (1890-1938) – Linguista, editor e filósofo russo.
Trubetskoi, Serguei (1862-1905) – Nobre russo, filósofo religioso,
editor, ativista social. Irmão de Evgueni Trubetskoi.
Turgot, Anne Robert Jacques (1727-1781) – Economista e ativista
político francês.
Turgueniev, Aleksandr (1784-1845) – Editor e ativista social russo.
Ustrialov, Nikolai (1805-1870) – Historiador russo.
Vassili II, o Cego (1415-1462) – Grão-Príncipe de Moscovo. Pai de Ivan
III, o Grande.
Vassili III (1479-1533) – Senhor de toda a Rússia. Filho de Ivan III, o
Grande e pai de Ivan IV, o Terrível.
Vellanski, Danilo (1774-1847) – Filósofo e fisiólogo ucraniano.
Vernadski, Gueorgui (1887-1973) – Historiador russo.
Vladimir I de Kiev, o Grande, (c. 958-1015) – Vladimir Sviatoslavich,
nobre eslavo, Grão-duque de Kiev.
Volkonski, Aleksandr (1866-1934) – Sacerdote católico, editor e
diplomata militar russo.
Voltaire, François (1694-1778) – Escritor, editor, historiador e filósofo
francês.
Vostokov, Aleksandr (1781-1864) – Filólogo e poeta russo.
Vycheslavtzev, Boris (1877-1954) – Filósofo e pensador religioso russo.
Weber, Max (Karl Emil Maximilian Weber) (1864-1920) – Intelectual,
jurista e economista alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia.
Weinberg, Pavel (1846-1904) – Escritor e humorista russo.
Zenkovski, Vassili (1881-1962) – Filósofo religioso e pedagogo russo.
Zinoviev, Aleksandr (1922-2006) – Sociólogo, filósofo e escritor russo.
Ziuganov, Guennadi (1944-) – Político russo.
Zossima, o Barbudo (?-1496) – Metropolita de Moscovo e de Toda a
Rússia, entre 1490 e 1494.
EXTRATEXTO

Você também pode gostar