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A PRESUNÇÃO DE CERTEZA E A PROVA INEQUÍVOCA DO ARTIGO 204,

PARÁGRAFO ÚNICO DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL: UMA


INTERPETAÇÃO À LUZ DE UM RACIOCÍNIO PROBATÓRIO

Maria Eduarda Arnau Rodrigues1

RESUMO: A presente pesquisa tem como objetivo perquirir o raciocínio probatório


especificamente em relação à inferência probatória no que diz respeito ao artigo 204, parágrafo
único do Código Tributário Nacional. A finalidade última é verificar, de um lado, a
problemática das provas no âmbito tributário e, de outro, a aplicação do modelo da inferência
probatória para as questões que dizem respeito aos fatos, especialmente na execução fiscal. Será
averiguado, em primeiro lugar a inexistência da separação entre fato e norma e, em segundo
lugar, a formação de um raciocínio judicial baseado na inferência probatória. Ao final, a
pesquisa pretende demonstrar a (des) necessidade de um raciocínio probatório especialmente
na formação da certidão de dívida ativa e a (im) possibilidade de apresentação de forma
inequívoca, nos termos do parágrafo único do artigo 204 do Código Tributário Nacional.

PALAVRAS-CHAVE: Inferência probatória. Raciocínio probatório. Norma. Presunção de


certeza.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende averiguar preliminarmente a problemática da prova no


âmbito tributário. Há muito que se defende que nesta seara das ciências sociais não há uma
vinculação dos fatos, versando apenas sobre questões de direito. Por tal razão, será explorada a
demonstração da inexistente separação entre fato e norma a fim de defender uma volta às
premissas fáticas como filtro aos problemas de hermenêutica.

Ainda em torno de problemas fáticos e normativos, em um segundo momento, será


explorado o raciocínio probatório especialmente no método da inferência probatória como
ferramenta segura e eficaz na averiguação dos fatos. Por fim, será estudada a máxima da (im)
possibilidade de sujeitar a previsão do parágrafo único do artigo 204 do Código Tributário
Nacional ao modelo da inferência probatória.

O estudo da problemática proposta apresenta notória relevância para o meio social, uma

1
Mestranda em Jurisdição e Processo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Endereço eletrônico: arnau.eduarda@gmail.com.
1
vez que se propõe a analisar, de um lado, o estorvo dos fatos no âmbito tributário e, de outro,
uma solução que garanta aos contribuintes – especialmente enquanto executados no processo
tributário – a adequada defesa perante a autoridade fiscal. Por tal razão que se buscará
demonstrar que inexiste uma separação entre fato e norma e que, por tanto, o direito tributário
não versa apenas sobre questões jurídicas. Ignorar os fatos somente produz um processo injusto
e situações jurídicas precárias, tornado impossível apurar com um grau de probabilidade as
conjunturas que formam a dívida tributária.
E é justamente nesse sentido a relevância da presente pesquisa para o meio jurídico, pois,
embora exista uma grande estabilização na teoria geral da prova, em que pese ainda vivenciar
óbices, na área tributária trata-se com indiferença as problemáticas fáticas e, portanto, se
empobrece o estudo o que, consequentemente, piora as situações jurídicas. Desse modo,
levando em consideração que não há como ainda defender uma absoluta separação entre fato e
direito, as interpretações ao parágrafo único do artigo 204 do Código Tributário Nacional que
prevê uma necessária prova absoluta em desfavor do contribuinte precisa se adequar a um
modelo possível de raciocínio probatório.
Por fim, a relevância da pesquisa para o meio acadêmico refere-se ao fomento da
discussão acerca da análise entre fato e normal, da formação do raciocínio judicial e da ausência
de estudos sobre prova no âmbito tributário. O estudo possui como objetivo central analisar se
é possível aplicar as regras gerais de um raciocínio probatório, em primeiro lugar, à previsão
legislativa de uma presunção de certeza da certidão de dívida formada pela autoridade fiscal e,
em segundo lugar, a obrigatoriedade de uma prova inequívoca para a relativização dessa
presunção.

2 OBJETIVOS

O objetivo geral da pesquisa consiste em apurar, de um lado, a necessária análise


preliminar dos fatos para a interpretação do direito e, de outro, a existência de um raciocínio
probatório possível a ser aplicado na valoração dos fatos na seara tributária. Ainda, o estudo
tem como objetivos específicos (i) verificar as deficiências probatória especificas na área
tributária e na relação processual tributária e (ii) verificar a manutenção da presunção de certeza
da prova constituída pela autoridade fiscal e a ideia de prova inequívoca imposta ao contribuinte
perante a desconstituição de fatos juridicamente relevantes na seara fiscal-processual.

3 METODOLOGIA

A pesquisa, de caráter teórico e bibliográfico, busca analisar o entendimento doutrinário


2
acerca da problemática. Outrossim, o estudo utiliza-se do método de procedimento
estruturalista, dado que parte da investigação de um fenômeno concreto para, após atingir o
nível do abstrato, retornar como uma realidade estruturada2.

4 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Ciências sociais aplicadas. Assim que se denominam as ciências jurídicas, isto é, o Direito.
Não somente teoria tampouco somente prática, o Direito visa buscar um equilíbrio entre o ser o
dever ser para uma simbiose entre o que ocorre no mundo fático com o que deveria ocorrer –
hipótese normativa. As normas jurídicas são comandos que pretendem induzir a um
comportamento determinado a partir daquilo que a sociedade requer.

O grande teórico Hans Kelsen aduziu que parte da essência do direito está ligado ao âmbito
da natureza e continua a abordagem demonstrando que é o direito que dá aos fatos o seu sentido
jurídico:
Quando se analisa qualquer conjunto de fatos abordados como direito, por
exemplo uma decisão parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial,
um negócio jurídico ou um delito, pode-se distinguir dois elementos: o primeiro
é o ato perceptível sensorialmente que ocorre no tempo e no espaço, um evento
exterior, na maioria das vezes um comportamento humano; o outro é um sentido
inerente ou implícito nesse ato ou evento, um sentido específico. Em um salão
se encontram seres humanos que discursam, alguns deles se levantam de seus
lugares, outros permanecem sentados; esse é o evento exterior. Seu sentido é: foi
aprovada uma lei.3

Não há direito sem fatos e não há fato juridicamente relevante sem o direito. E essa
qualificação é a atividade de “(...) subsumir o fato individual a uma categoria prevista em uma
norma jurídica”4 e, portanto, os problemas de hermenêuticos se traduzirão em problemas de
“qualificação fática”5.

E, voltando-se ao escopo essencial do presente estudo, destaca-se que na área tributária,


por exemplo, a norma de incidência da hipótese tributária somente nasce após a realização do fato
descrito por ela6, mas ainda que assim seja, há uma grande desvantagem no contexto probatório
ao contribuinte perante o fisco.

Essa desvantagem na posição probatória é explicada, em grande parte, pela influência e

2
GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 20.
3
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 1 ed. São Paulo: Forense Universitária, 2021, p. 13.
4
LAGIER, Daniel González. Tradução Luis Felipe Kircher. Quaestio Facti: ensaios sobre prova, causalidade e
ação. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 46.
5
Ibidem, p. 46.
6
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 53.
3
herança do direito administrativo ao direito tributário principalmente na ideia da presunção de
legitimidade do ato administrativo. Em razão disso, o ônus da prova é, na maioria das vezes, em
desfavor do contribuinte.7

A origem dessa presunção também reside ainda na doutrina processualista clássica,


presente nos estudos de Chiovenda e Carnelutti, que inaugurou os estudos na seara probatória e,
especificamente, no que diz respeito à prova documental8. Contudo, a partir dos avanços e
mudanças naquilo que se compreende como documento em cotejo com outras fontes que também
fornecem informações, se percebeu algumas insuficiências no que se compreendia e do modo pelo
qual se valorava os documentos em geral9.

Em se tratando de matéria tributária, que envolve majoritariamente a qualificação dos fatos


por meio de provas documentais, há ainda uma grande ausência de valoração daqueles
documentos suficientemente a alcançar uma interpretação de acordo com a norma, sendo em
alguns casos impossíveis ao cidadão produzir qualquer prova ao contrário daquilo que consta no
documento.

Por isso, há de se repensar o modelo pelo qual – e se existe – as provas no direito tributário
são valoradas. Nesse sentido, há um modelo de raciocínio em que se milita que todos os
argumentos partem de uma pretensão, baseados naquilo que se sustenta ou naquilo que se quer
fundamentar10, denominado como inferência probatória.

A estrutura da inferência probatória passa pelo respaldo, pela garantia, pela razão e, por
fim, ao objetivo da pretensão. A defesa por uma estrutura baseada em um tipo de raciocínio é para
que seja fornecida uma justifica epistemológica e segura para assegurar que a realidade fática
esteja correspondente ao conteúdo probatório, no sentido de grau de probabilidade11 e não certeza.

A veracidade do documento não pode ser baseada no fato de que foi produzido por uma
autoridade que possui poderes conferidos pela lei. Como defende Vitor de Paula Ramos:

(...) o conteúdo do documento depende, necessariamente, de interpretação (...).


A duas porque, sem conhecer a forma de criação, os materiais de base, os

7
MEDAUAR, Odete. As prerrogativas do ato administrativo. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado
do Rio de Janeiro. Edição Especial Administração Públcia, Risco e Segurança Jurídica, p. 304-310, 2014, p. 306.
8
DE PAULA RAMOS, Vitor. Prova Documental: do documento aos documentos – do suporte à informação. 3 ed.,
rev., e atual. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 30.
9
Ibidem, p. 35.
10
LAGIER, Daniel González. Tradução Luis Felipe Kircher. Quaestio Facti: ensaios sobre prova, causalidade e ação.
São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 64.
11
CARPES, Artur Thompsen. Verdade, verossimilhança e probabilidade: a construção do juízo sobre os fatos no
processo civil. Revista de Processo. vol. 290/2019, p. 73-94, Abr/2019, p. 2.
4
contextos etc., qualquer tentativa de valoração do conteúdo será nada mais do
que um exercício de adivinhação.12

O direito tributário lida com as liberdades e com a propriedade. Se assim o é, a constituição


dos fatos não pode depender de um mero exercício de adivinhação ou de uma absoluta certeza
baseada em um poder legal. O raciocínio probatório não garante a verdade, nem assim o quer,
mas garante caminhos suficientes para se atingir um grau provável daquilo que ocorreu na
realidade, sem deixar de lado métodos metodológicos que buscam apurar sem vieses particulares
e puramente subjetivos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Disso se conclui, em primeiro lugar, que não há uma separação entre questões de fatos e
de direito, e, ainda, que para se alcançar a hermenêutica que melhor corresponda à norma, é
necessário se voltar aos fatos e, em segundo lugar, a deficiência probatória no direito tributário
requer a aplicação de um raciocínio suficiente para a comprovação das premissas que
fundamentam a relação jurídico-tributária, sem permanecer uma desvantagem entre o cidadão
contribuinte e a autoridade fiscal.

A manutenção da ideia de presunção de certeza dos documentos formados pela autoridade


fiscal não é compatível com as novas premissas para averiguação dos fatos. Há a necessidade de
uma aplicação de um conteúdo minimamente epistemológico e racional para se atingir,
realmente, aquilo que ocorreu na realidade com aquilo que a prevê a norma.

O desequilíbrio na relação entre autoridade fiscal e o contribuinte em decorrência de uma


herança probatória falha, não poderia ainda fundamentar um prejuízo no processo tributário. A
presunção de certeza do artigo 204 do Código Tributário Nacional reside ainda em um ideal
ultrapassado de legitimidade e veracidade de atos administrativos que não garante qualquer
conhecimento aos fatos. E, ainda, a prova inequívoca prevista em seu parágrafo único também
não possui qualquer conteúdo que garantia uma inferência probatória e tampouco um método
metodológico possível. Na verdade, há um descompasso entre o que hoje se conhece por
raciocínio para o conhecimento dos fatos e a previsão legislativa para o conhecimento dos fatos
tributários.

6 REFERÊNCIAS
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2018.

12DE PAULA RAMOS, Vitor. Prova Documental: do documento aos documentos – do suporte à informação. 3 ed.,
rev., e atual. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023, p. 303.
5
ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
CARPES, Artur Thompsen. Verdade, verossimilhança e probabilidade: a construção do
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