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É espantosa a semelhança, muitas vezes adjetivada como coincidência, que permeia a história

entre os milênios e entre ocidente e oriente.

Fazemos parte da categoria de seres humanos e únicos anatomicamente não existindo um


exemplar idêntico a nós, mesmo em casos gemelares, não somos apartados da natureza dos
ciclos e somos parte do todo.

Considerando como referência a reportagem de Zaria Gorvett sobre o estudo e pesquisa de


Roger Ekirch é possível encontrar uma consonância profunda com alguns aspectos mencionados
em sua pesquisa e a racionalidade médica oriental.

Sendo praticante de medicina tradicional chinesa e japonesa me permite viver algumas


experiências com mais profundidade e até curiosidade. Uma de minhas experiências e
curiosidades pessoais é justamente sobre o sono.

Num modesto e despretensioso paralelo em relação ao estudo de Ekirch na medicina tradicional


chinesa (MTC) um dos princípios é céu/homem/terra o que significa que o homem é um canal
de recepção, troca e influência entre céu e terra. Assim como céu influência terra com a
mudança das estações a terra influência o céu com a emissão de fumaça de queimadas, por
exemplo. Assim também os homens tanto recebem quanto emitem influencias para céu e terra.
O que existe é uma simbiose em níveis sutis porém evidentes.

Dentro do princípio céu/homem/terra uma das referências é o ciclo circadiano. Para a MTC o
relógio biológico do homem é de 12 horas, sendo que, cada hora das 12 é composta por duas
horas. Assim essas 12 horas da MTC estão dentro das 24 horas que compões o dia e a noite.

As 12 horas do nosso relógio biológico são divididas segundo a influência energética celestial
que incide a cada duas horas sobre cada um dos 12 meridianos do corpo humano. A influência
terrestre incide sobre os meridianos a cada hora sendo assim são 12 influências terrestres e
estão relacionadas aos 12 animais do zodíaco chinês. O conceito de meridiano energético no
corpo é o mesmo de meridiano terrestre, no planeta terra são traçados meridianos e trópicos
imaginários e através deles tem sido possível verificar e medir a influência das estações e
desenvolver o cultivo e plantio assim como manejar a criação de animais em seus ciclos de
procriação e desenvolvimento, entre outras inúmeras possibilidades e utilidades atuais como a
navegação e orientação no espaço aéreo.

Cada meridiano energético do corpo humano corresponde a um órgão do corpo e também


corresponde a uma hora do relógio biológico na MTC. Assim temos: Pulmão das 03 às 05h;
Intestino Grosso das 05 às 07h; Estômago das 07 às 09h; Baço/Pâncreas das 09 às h; Coração
das 11 às 13h; Intestino Delgado das 13 às 15h; Bexiga das 15 às 17h; Rim das 17 às 19h;
Pericárdio das 19 às 21h; Triplo Aquecedor das 21 às 23h; Vesícula Biliar das 23 às 01h e Fígado
da 01 às 03h. Aqui vamos nos ater a observação apenas das influências celestes porém podemos
expandir a análise para as influências terrestres em outro momento.

O estudo de Ekirch aponta para um comportamento onde num horário entre 23 e 01 hora havia
uma vigília e que neste período eram comuns algumas atividades e comportamentos.
Utilizando-nos do relógio biológico da MTC esse período está relacionado a influência energética
celestial no meridiano da vesícula biliar e logo em seguida do fígado. Esse par, vesícula biliar e
fígado pertencem ao elemento Madeira, Energia Celestial do Vento, Vesícula pertence ao Yang
e fígado pertence ao Yin, segundo as fazes da vida vegetal Vesícula está relacionada a semente
enterrada e fígado a semente fendida.
A partir dessa visão para nós praticantes de medicina oriental é bastante natural e esperado que
o corpo humano tenha o movimento de despertar nesse período e além de despertar ter a
capacidade de realizar tarefas com grande vitalidade. O Elemento Madeira e a Energia do Vento
são os indicadores dessa potência pois ambos são “movimento” e nos incitam ao movimento e
crescimento. Também nos é natural que esse período seja o mais apropriado para o sexo e a
procriação visto que o fígado, na MTC, é um dos dois órgãos mais diretamente ligados a
fertilidade e virilidade, assim após um descanso preliminar no horário do Triplo Aquecedor - que
compreende a reunião do que podemos relacionar aos três trópicos terrestres (câncer, equador
e capricórnio) que no corpo humano são denominados de aquecedor superior (coração e
pulmão); aquecedor médio (fígado, baço, pâncreas) e aquecedor inferior (rim e vísceras
extraordinárias como os órgãos reprodutores) - é possível “plantar e brotar” novamente. Nossas
sementes podem ser fecundadas pois o ciclo se cumpriu e como numa pequena primavera é
tempo de renovar a vida.

Outro fator, não relacionado a pesquisa de Ekirch porém de grande influência para uma vida
longa e praticado por um cem número de culturas ao longo da história da humanidade é a siesta
ou o soninho da tarde. A prática de se repousar e dormir entre 11 e 15h é ainda bastante comum
e de certa forma uma lei em alguns países da Europa e também da América do Sul. Voltamos
para nosso relógio biológico da MTC e verificamos que o período das 11 às 15h está relacionado
a influência celestial no meridiano do coração e intestino delgado. Esse par, coração e intestino
delgado, pertencem ao Elemento Fogo, a Energia do Calor, o Intestino delgado ao Yang e o
coração ao yin, o coração corresponde ao tronco segundo o desenvolvimento vegetal. O tronco
de uma árvore é o seu pilar, é o veículo pelo qual ela se desenvolverá e a levará em direção ao
céu sempre alimentada pelas forças terrestres, ou seja, o tronco é o caminho, a sustentação e a
ligação entre céu e terra. Assim como o tronco de uma árvore é o coração do homem esse canal
pelo qual se comunica com céu e terra. Esse coração, esse tronco, precisa de repouso e de tempo
para seu desenvolvimento. O tronco de uma árvore pode levar décadas até chegar a sua
plenitude assim é necessário um movimento constante e respeitoso diante da variação das
estações, caso contrário a árvore morrerá ou será frágil e terá seus frutos comprometidos.
Aquietar o coração nesse horário é alimentá-lo energeticamente. Quem o faz relata que
experimenta de uma certa alegria e renovada vitalidade para seguir o dia.

Após essa breve e resumida explanação é possível avaliar e concordar, ainda que em parte, com
as pesquisas de Ekirch que apresenta a necessidade que ainda temos de manifestar nossa
natureza mesmo após a influência da luz artificial e da revolução industrial que nos tirou do
movimento natural do ciclo circadiano. Ainda com base no estudo de Ekirch a MTC entende a
grande capacidade de adaptação do ser humano para a preservação de sua espécie e segundo
o pensamento oriental dessa racionalidade médica entende-se que apesar de adaptar-se para a
autopreservação e deturpar o ciclo natural da vida o ser humano nunca deixará de fazer parte
do movimento natural que a tudo rege, caso contrário estaríamos apartados das leis da vida, da
dualidade, e seria a extinção da humanidade.

Ainda uma consideração sobre a atividade e o descanso, a vigília e o sono, a vida e a morte o
bambu em seu crescimento é vazio e em sua pausa gera o nó que permite a força para a
continuidade. Nesse equilíbrio entre atividade e descanso do bambu é vivida a dualidade e é
onde podemos aprender que é necessário parar, que é na pausa que se fortalece e é no vazio
que se sustenta.

Assim, poderemos sempre observar que ao menor esforço em seguir a natureza o corpo
responde de forma surpreendente, desde que as estruturas físicas ainda não tenham sido
alteradas de forma irreversível. Vimos e entendemos da mesma forma apresentada no estudo
de Ekirch que a sanidade mental também depende de seguir um fluxo há muito esquecido.

Faz aproximadamente 6 anos mudei de profissão. Depois de 25 anos atuando no segmento


comercial e de marketing fiz uma formação em Shiatsu Japonês e desde então me dedico a
medicina oriental.

Durante 25 anos vivi a própria “vida loka”, workhollic num nível intenso. Reuniões e viagens e
eventos e clientes e mais clientes eram meu dia a dia. Turnos de até 18 horas consecutivas de
atividade não eram raros. Isso tudo foi bom e fui feliz com minha vida durante todo esse tempo.
Porém, alguma coisa mudou dentro de mim, e mesmo sendo muito alertada por amigos de que
poderia estar louca em mudar de profissão aos 42 anos de idade para um segmento muito difícil
onde as pessoas ganham mal e não são bem sucedidas ou demoram demais até chegarem a ter
uma vida digna com o fruto de seu “trabalho alternativo” fui em frente. A verdade é que sempre
fui feliz e grata pela vida que tive, não foi por infortúnio ou por desagrado que mudei, na verdade
nem sei muito bem ainda porque mudei mas sei que nunca tive dúvida de que era hora de virar
a chave da vida e rodar o lado B do LP.

Com essa nova atividade passei a ter outras necessidades por exemplo: precisei voltar a comer
carne, depois de seis anos sendo vegetariana meu corpo não aguentava mais, precisava da
energia animal. Algumas vezes, antes de voltar comer carne, sentia como se fosse desmaiar em
cima do paciente que estava a receber o Shiatsu então baseei-me na MTC que vê cada ser como
único em sua formação e necessidades e que também avalia o momento da vida para assim
entender o que lhe cabe ou não para seguir com uma vida longa e voltei a comer carne sem
nenhum drama.

Outra experiência natural que tive foi justamente em relação ao sono. Passei a dormir muito
cedo, para quem não tinha horários antes disso foi muito estranho porém não era mais possível
permanecer acordada depois das 21h. Durante um certo tempo o sono era pesado e direto até
amanhecer. Porém algo começo a mudar e à medida que me adaptava a nova atividade comecei
a acordar naturalmente sempre antes da meia noite. Muitas vezes peguei um livro para ler ou
simplesmente me sentia muito bem naquele momento acordada e me punha a respirar de
forma consciente. Nessa época ainda não conhecia o zazen.

Acompanhar pacientes que relatam insônia nesse horário é muito comum. Os relatos são de
angústia e ansiedade por uma vigília fora do padrão como relata o estudo de Ekirch,.

É necessário ter ciência do contexto de cada paciente e de cada caso. Em alguns casos é possível
orientar para leituras, desde que não sejam as leituras de redes sociais e telas que prejudicariam
a continuidade do sono por vários motivos, mas de uma leitura de livro físico, de uma criação
artística ou de atividades prazerosas inclusive o sexo. Porém a maior parte da realidade de vida
é de que nesse horário as pessoas estão acomodando-se para deitar, elas ainda não fizeram o
primeiro sono.

O recente contato com o Budismo tem-me feito possível relacionar ainda mais a natureza
humana a uma necessidade de viver na dualidade e a partir dela voltar a essência.

Obrigada pela oportunidade de reflexão.

Debora

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