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Hoje em dia, difunde-se cada vez mais a ideia de que a técnica é um fator
exógeno, ou seja um fator que impacta o "mundo em que vivemos" a
,
e5Cailstão definitiva. Acredito que essa seja uma versão muito simplista.
Nõ caminho que vai da sociedade até a técnica, não se encontra jamais
Um final de percurso, não se alcança jamais tini fim de linha. O que hoje
puxa, amanhã pode empurrar. E vice-versa, em contínuo refluxo. .
Nos últimos anos tenta-se comprovar, com exemplos concretos,
que foi sempre a sociedade que estimulou, condicionou e direcionou as
inovações tecnológicas, devido às suas exigências econômicas, sociais e
culturais. Ou seja, a sociedade empurra, obrigando a técnica a puxar.
Com poucas exceções, esses casos estudados recaem na órbita
dos macrossistemas técnicos. Estão nessa categoria, por exemplo, os
trabalhos de Th. P. Hughes (1979) sobre a eletrificação dos EUA e o de
E Canon (1988) sobre as ferrovias francesas. Sob essa mesma óptica,
Robert Pool escolheu o desenvolvimento das tecnologias nucleares, entre
muitos outros exemplos contidos no seu livro com o significativo título
Beyond Engineering: How Society Shapes Technology (1977).
Naturalmente, os macrossistemas técnicos são, simultaneamente,
ótimos e péssimos exemplos para sustentar as teses em questão. São
ótimos, por um lado, enquanto o seu nexo com a sociedade parecer
óbvio. Nessa condição, torna-se difícil questionar a ligação da sociedade
com os macrossistemas técnicos. Pensando bem, esses macrossistemas
técnicos são, no fundo, verdadeiros macrossistemas de gestão (e de con-
trole) social.
Por outro lado, são péssimos exemplos, pois, diante de sua obvie-
dade, fica difícil fazer uma avaliação mais detalhada dos aspectos menos
evidentes, mas não menos importantes, da relação sociedade—técnica.
Para verificar a possibilidade de estudar essa relação de uma ma-
neira não simplista, gostaria de examinar o caso do nascimento e do
desenvolvimento de um objeto técnico. Apesar (ou por causa) de sua
reduzida dimensão e de sua pouca complexidade, esse objeto pode nos
ajudar a analisar aqueles aspectos que geralmente são desprezados no
caso dos macrossistemas.
178 Cultura, Sociedade e Técnica
e homens míopes terminasse seus dias nos asilos. Na pior das hipóteses,
alguns deles poderiam ser considerados indesejáveis e, portanto, obrigados
a viver fora dos muros e das fortificações, passando a fazer parte de uma
variada malta de inúteis.
Isso certamente acontecia com os míopes da classe popular, pois os
míopes das classes superiores recebiam outro tratamento. Na cultura da
corte, o ritual do olhar era fundamental nas relações interpessoais. Os
míopes, por motivos óbvios, eram excluídos desse ritual, pois não
eram capazes de respeitar o respectivo código de etiqueta e de boas
maneiras. O comportamento do míope parecia indiferente, sombrio,
frio, enigmático, desligado. Em outras vezes, soberbo e arrogante, por •
`ignorar' as pessoas.
De qualquer forma, a despeito da origem social, os míopes eram
motivo da intolerância geral. E mais: a aversão e a hostilidade que suscitavam
poderiam transformar-se — como de fato acontecia — em suspeitas infundadas
e julgamentos pesados, com graves consequências para eles. Havia a
tendência de se atribuir ao míope — e ao cego — poderes maléficos. O fato de
um míope ser capaz de enxergar tão bem de perto e tão mal de longe não
era interpretado como uma patologia ótico-fisiológica, mas como prova de
um presumível fingimento. Em outras palavras, o míope era visto corno
um impostor que, por motivos secretos, simulava ser cego sem sê-lo
verdadeiramente.
No caso dos míopes, mais ainda que no dos cegos, a tese demoníaca
era definitivamente reforçada. Não é de se espantar que, nessa lógica per-
versa, algumas mulheres consideradas 'simuladoras de cegueira' tenham
sido torturadas e condenadas à fogueira pela prática da bruxaria.
É preciso admitir, porém, que os fatos evocados, embora verídicos,
fornecem uma imagem bem incompleta dos míopes e do seu destino
na Baixa Idade Média. Devemos relembrar o outro lado da moeda. Os
míopes, por sua peculiar anomalia, estão presentes em todas as profissões
onde se exige uma boa visão de perto: amanuenses, copistas, calígrafos,
incisores, miniaturistas, professores, mercantes, escribas, contadores,
tabeliões, juízes, ourives, fiandeiros, tecelões, bordadeiras, entalhadores,
carpinteiros, sapateiros e costureiros, entre outros.
Os presbitas, também por sua particular anomalia, optavam obri-
gatoriamente pelas atividades que exigiam boa visão de média e longa
distância: caçadores, agricultores, pastores, criadores, pescadores, ma-
teiros, pedreiros, mineiros, marinheiros e soldados.
Utilizando as palavras de Lucien Febvre (194z), os primeiros eram
"homens de clausura", trancados em espaços limitados e protegidos.
Os segundos eram os "homens de céu aberta", vinculados à terra e à
vida rural.
Essa divisão de trabalho é bem esclarecedora sobre o papel de
ambos os tipos de ametropia. Enquanto os presbitas estavam mais li-
gados às áreas produtivas tradicionais, ou seja, produção de alimentos,
extração e transporte de materiais e construção civil, o campo de ativi-
dade dos míopes é muito mais articulado e variado.
É claro que os míopes estavam também vinculados às áreas pro-
5. Os iSCUI05 levados a Sério 181
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lentes biconvexas no século XIIT. Pela lógica, a conclusão seria a seguinte; o
desenvolvimento dos óculos para os míopes só ocorreu quando os doutos
elaboraram uma teoria sobre as lentes bicôncavas, subsidiando o trabalho dos
práticos.
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