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Sobre Técnica e Humanismo1

Theodor W. Adorno

Antes que os senhores expusessem as questões referentes ao seu campo


de conhecimento, gostaria de dizer, antes de mais nada, algumas palavras para
poder facilitar a nossa comunicação. Os senhores são, majoritariamente,
pessoas práticas. Mesmo que sintam a insuficiência da existência prática
diante das operações heterônomas, da mesma forma como nós teóricos
sentimos a impotência de nosso pensamento, podem, no entanto, permanecer
quase que intocados na base e na estrutura de seus pensamentos em relação à
práxis. Os senhores estão acostumados a que lhes proponham problemas para
os quais sejam esperadas respostas concisas. Mas, a atual discussão não dá
conta destes problemas, pois eles não provêm de um objeto bem definido e
fechado em si, com o qual se pode prever as mais específicas e típicas
possibilidades de solução para tudo que possa surgir. O nosso poder para
determinar o significado do humanismo é, ou deveria ser, incomparavelmente
menor do que a força que o engenheiro, o arquiteto ou o químico tem para
poder construir algo. É um sintoma da crise da formação o fato de que,
frequentemente, somos tentados a desconhecer esta diferença e a considerar
todas as questões como técnicas, principalmente aquelas que nos são postas.
Os senhores devem atentar para a opinião que, tal como nós aqui discutimos,
não pertence ao seu campo de conhecimento mas sim à esfera dos filósofos e
das ciências humanas, opinião esta que poderia fornecer as respostas que lhes
são exigidas, as quais procuraram adjudicar ao seu próprio ramo de
conhecimento. Porém, quem teria ainda hoje o direito de se nomear, com toda
seriedade, um filósofo? Antes de mais nada, nos colocamos, atualmente,
diante do complexo do humanismo da mesma forma como os senhores, a
saber: totalmente desamparados. E creio que, face a uma demanda de
sinceridade, deve-se expressar este sentimento com indisfarçável modéstia. É
um sintoma do consternado estado de alienação dos homens diante dos outros,
e de si próprio, o fato de que as questões fundamentais, às quais se aferra a
configuração de toda a vida, são entregues a diferentes áreas de conhecimento.

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Palestra feita para os acadêmicos da universidade técnica Kalrsruhe em 10 de novembro
de 1953. Suas referências originais são: “Über Technik und Humanismus”. In Gesammelte
Schriften 20, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986. Tradução de Antônio Álvaro
Soares Zuin, professor-adjunto do departamento de educação da UFSCar e membro do
grupo de pesquisa Teoria Crítica e educação - UFSCar/UNIMEP/ UNESP-Araraquara.
Revisão técnica de Bruno Pucci, Newton Ramos-de-Oliveira e Renato Franco.
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Por isso, desde o início, advirto aos senhores quanto à confiança ingênua na
divisão de trabalho, além de se esperar o esclarecimento sobre a formação e o
humanismo por parte dos que lidam profissionalmente com este domínio. O
fato da formação e o humanismo serem associados automaticamente a
determinadas profissões e conhecimentos especiais indica que algo está
errado. Portanto, os senhores não devem esperar obter, por meio de suas
questões precisamente formuladas, teses precisas e inequívocas. Se eu, na
maior parte dos casos, não responder suas dúvidas com rígidos “sim” e “não”
isto não expressa frouxidão ou nervosismo. Muitas vezes as questões se
relacionam a uma realidade de tal forma enredada que estas não se deixam
resolver simplesmente com um “sim” ou um “não”. O próprio conceito de
resolução é inconveniente em relação a tais questões.
Antes de mais nada, pergunta-se se a técnica atual pode ser
compreendida como um processo autônomo ou se ela possui sua própria
legalidade. Sim e não. Por um lado, os problemas técnicos prescrevem
processos em si fechados e rigorosos, organizados de acordo com regras das
ciências naturais matemáticas e, por fim, processos subjetivos e objetivos.
Utiliza-se da estática para que uma casa construída não desmorone. A estática
se fundamenta num contexto tecnologicamente fechado, cuja autonomia
dificilmente pode ser contestada. Caso os senhores começassem a falar em tais
contextos com um sociólogo, que desejasse atentar contra suas fórmulas, então
os senhores, com razão, o afastariam mais do que depressa de seus postos de
trabalho.
Por outro lado, tais processos também não se realizam no vácuo. Não há
nenhuma atividade tecnológica que não se realize na sociedade. As atividades
dos senhores lhes são atribuídas na forma de solicitações da sociedade.
Se os senhores se sentem como se fossem os chefes de uma casa são,
por outro lado, confrontados com exigências sociais, tal como quando lhes são
solicitadas soluções que devem permanecer no quadro das possibilidades
financeiras, sendo que tais soluções devem se revelar rentáveis e serem
freqüentemente esperadas em um tempo determinado. Contudo, muito além
deste fato, o desenvolvimento geral da tecnologia é determinado socialmente.
Sociedade e técnica se encontram entrelaças desde o início da nova era,
de tal modo que perguntar sobre a prioridade da economia em relação à
técnica ou vice-versa significa o mesmo que questionar quem nasceu primeiro:
o ovo ou a galinha. E, se eu não me engano, a composição interna do trabalho
técnico também é afetada por conta deste fato. Os objetivos sociais não são
nada alheios àquilo que teriam que considerar. Não estou me referindo ao fato
de que, particularmente, os desenvolvimentos tecnológicos mais decisivos de
nosso tempo foram imediatamente criados através de uma paradoxal
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necessidade social, ou seja, a destruição dos meios de vida. Parece-me que a


interdependência social vai mais além: a centralização do poder econômico
forçou a própria técnica a tomar, de modo unilateral, o rumo de um sentido
centralizado, de tal forma que a racionalização dos procedimentos técnicos é
mais benéfica à produtividade do trabalho do que aos próprios trabalhadores.
Em contrapartida, os desenvolvimentos psicossociais mais recentes tornaram-
se mais dependentes das atuais formas de produção técnica, tal como foi
enfatizado pelo sociólogo francês Georges Friedmann. A este fato pertencem
os mais funestos aspectos da divisão econômica do trabalho que eu mencionei
e cujas relações não foram até hoje ainda suficientemente analisadas.
Especialmente nota-se a ausência de estudos sociais relativos aos fenômenos
da produção técnica, ou seja, da forma e do modo como as motivações
econômicas e sociais encontram-se presentes na conformação concreta das
operações técnicas. Nós sociólogos compreendemos muito pouco a técnica e
os senhores técnicos, premidos pelas exigências cotidianas, raramente refletem
sobre tais coisas.
Talvez eu, na condição de um técnico leigo, possa esclarecer algo sobre
a questão relativa à autonomia da técnica na área que eu me sinto mais
próximo: a da música. Observa-se que, concernentes às obras dos
compositores mais célebres e seguidos, permaneceram problemas que foram
posteriormente encontrados, pois não tinham sido resolvidos ou teriam sido
desprezados. Ora, tais problemas foram retomados e solucionados pelos seus
seguidores. A história da música é, tal como Max Weber demonstrou, a
história de uma racionalização progressiva; portanto de uma dominação
progressiva do material e, se os senhores desejarem, da natureza. No sentido
desta tendência, a música representa, perfeitamente, uma esfera autônoma e
fechada em si. Quem compõe sabe o quão pouca autoridade tem sobre o que é
composto ou até mesmo sobre as instâncias externas, ao mesmo tempo que
tem que enfrentar as dificuldades que o material lhe apresenta e que tem que
dar conta. Ao se observar a história da música, ou o trabalho dos próprios
compositores, de certo modo à distância, descobre-se, nesta autonomia, seu
aspecto social. Sua racionalização progressiva aparece como manifestação
sublimada do processo de trabalho, o qual, desde o crescente período
manufatureiro, afirmou-se de modo contínuo. As obras dos próprios
compositores, assim como o fato deles se dedicarem às soluções técnicas,
respiram o espírito da sociedade de sua época. Quem poderia suprimir, em
Beethoven, as idéias de uma burguesia revolucionária? Ou junto a Wagner as
idéias de um imperialismo expansivo? Ou em Strauss as idéias de um
liberalismo tardio mas já há muito relacionadas com os chamados bens
culturais? As passagens de um estilo para o outro são, ao mesmo tempo, as
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passagens da estrutura social. Naturalmente, as leis imanentes na técnica são


mais evidentes e obrigatórias do que na música ou em qualquer arte e, então, a
analogia encontra aqui o seu limite. Contudo, creio que também as
necessidades técnicas, no afã do quão gostariam de ser inflexíveis, sempre, e
concomitantemente, representam fenômenos das necessidades sociais, assim
como as mônadas de Leibniz “representam” o todo.
É uma situação social, em si mesma anárquica, desorientada e irracional
que atesta o fato de que a técnica e a sociedade são, ao mesmo tempo,
idênticas e separadas por um abismo. Numa sociedade concomitantemente
poderosa e realmente racional, a técnica poderia se transformar naquela
essência social que lhe é imanente, possibilitando, na sociedade, a
interdependência da chamada cultura com os progressos técnicos. A
concepção de uma cultura do espírito que se oculta da técnica nasce do
desconhecimento da sociedade sobre sua própria essência. Todo espírito
possui elementos técnicos e apenas quem somente observa o espírito, apenas
quem o conhece como consumidor, deixa-se enganar com a idéia de que os
produtos espirituais teriam caído do céu. Consequentemente, em virtude
destas considerações, não se pode ignorar a antítese observada entre
humanismo e técnica. Ela pertence à uma falsa consciência. Na sociedade
cindida, os diferentes setores não sabem o que são e o que não são, assim
como não sabem o que são os outros. A própria fratura entre a técnica e o
humanismo, tal como me parece de forma irremediável, é uma parte da
aparência produzida socialmente.
Portanto, também eu não posso responder claramente a questão se a
essência da máquina ou da fábrica pode ser decidida apenas através de um
posto que está bem distante do estirador, do engenheiro, do pavilhão da
fábrica. Dever-se-ia, ao mesmo tempo, estar no posto e no lugar mas também
se afastar, sendo que para isto exige-se muito da fantasia. Aquilo que nós
filósofos dizemos sobre tais assuntos, e isto é válido também para as minhas
próprias palavras, certamente vai mais além e tem um momento de
descompromisso. Em contrapartida, aquilo que o senhores pensam sobre tal
situação, de forma semelhante ao modo como os artistas opinam sobre suas
obras, freqüentemente o fazem de modo parcial e irrefletido. Bem, não existe
uma receita, além de que as melhores propostas se deparam com seus limites,
tal como no caso dos limitados especialistas que, se por um lado, simpatizam
com o humanismo, por outro lado, em relação ao tempo ocioso, (mangelnden
Zeit), frequentemente também conservam conhecidas indignação e
desconfiança, pois também são técnicos. Eles tenderam a permanecer vagos e
verbosos, pois o pensar não passa pelo crivo das normas obrigatórias, mas sim
pela consciência obrigatória de se colocar à disposição da crítica. Parece-me
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que isto facilita ainda mais a autoconsciência do técnico quanto ao seu


trabalho, pois a contribuição que podemos dar não é aquela que há muito
oferecemos à distância por meio da filosofia da técnica. Sobre tal
contribuição, os senhores frequentemente riem, e com razão. Porém, com
nosso recursos conceituais, podemos tentar estimular a autoconsciência. Os
senhores também sabem que várias dificuldades fazem-se presentes nesta
empreitada. Menciono apenas uma, assim como poderia ser outra: por um
lado, o seu trabalho é de um caráter extremamente rigoroso e racional; por
outro lado, os senhores sofrem, em grande medida, o momento da
parcialidade, da frieza e da inumanidade desta racionalidade. É por isso que,
para os senhores, é muito grande a tentação de se livrar do peso morto da
razão e da crítica em todas as áreas que não são imediatas à maneira do
trabalho técnico. Contudo, não deveríamos nos satisfazer com a cisão da nossa
existência através de uma metade racional, relativa à nossa profissão, e outra
metade irresponsável, concernente ao nosso tempo livre. Faz parte do
problema da relação entre técnica e cultura o fato de que os técnicos têm
dificuldades cada vez maiores de escolher a cultura, pois eles não a
consideram como algo que propicie o relaxamento; algo que não se deixaria
ostentar como se fosse um estoque de mercadorias, tal como aquelas que nos
são fornecidas pela indústria cultural, para a qual o filme é apenas um simples
exemplo, enquanto estamos na iminência de nos depararmos com o horror da
televisão.
Eu conheci cientistas da área das ciências naturais, engenheiros e
empresários da maior capacidade, os quais, quando estavam em seu tempo
livre, liam obras de Löns ou Gandhofer. Creio que estariam mais próximos da
cultura se, ao invés de se contentar com os sucedâneos de um romantismo
decadente, eles tivessem se preocupado com o lugar, o sentido e o objetivo
relativos ao que fazem ou deixam de fazer. Nos atuais predominantes
consumidores da cultura, muito se ganha para se poder liquidar, sendo que
estes teriam então todo o direito de liquidar a técnica. A reivindicação da
existência do humanismo não deve se transformar numa desculpa para o bolor
de um atraso cultural. Justamente os mais avançados pensadores e artistas (me
lembro no momento do caso da Bauhaus) se separaram, da forma mais
enérgica, de cada presunçoso lixo cultural do passado e do presente que
frequentemente nos alimenta (e muito) em nome da técnica. Os próprios
técnicos não deveriam ansiar por permanecer atrás da vanguarda, a qual foi
por muito tempo invejada, pois deveriam ajudá-la.
Gostaria ainda de falar um pouco sobre a questão da responsabilidade
dos técnicos. Se se deseja contribuir mais além do que a elaboração de
algumas frases, então deve-se sair da atual situação. No nosso trabalho somos,
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em grande medida, alheios a nós mesmos, pois somos portadores de funções,


as quais nos são indicadas. Apenas nos romances grosseiros são feitas grandes
invenções medicinais que produzem o amor para com os homens, ou grandes
técnicas de guerra que enformam o patriotismo. Nossos motivos pessoais (e de
cada área que trata da ética) dirigem-se àquilo que produzimos como
profissionais apenas, e antes de tudo, para mediar. Seria um retrocesso usar
máquinas, do nível mais avançado, se alguém se comportasse como se fosse o
cientista nuclear e, imediatamente, o indivíduo doutor X (que faz pesquisa),
cujas convicções privadas exerceriam um tipo de controle sobre seu trabalho
científico. Um ethos que restringe o conhecimento seria extremamente
duvidoso. A divisão da razão social e da razão técnica não se deixa superar
quando ela própria é negada. Por outro lado, convém que o técnico se previna
diante do imprevisível, ou seja, diante do fato de que suas invenções de hoje
ameacem a humanidade. Sua autoridade, ou seja, a realidade que ele sabe
avaliar tal potencial ameaçador bem melhor do que o leigo, concederá um
grande peso ao seu alerta em relação ao que possa vir de fora. Porém, não
creio que decidam sobre tais advertências. Se a moderna técnica da
humanidade alcançou, finalmente, a prosperidade ou a ruína, isto não se limita
à ação do técnico ou da própria técnica em si, mas sim no uso que a sociedade
faz dela. Este uso não é algo restrito à aplicação do desejo bom ou ruim, mas
depende das estruturas sociais objetivas. A técnica em si não poderia libertar,
mas ela poderia voltar-se para si numa sociedade verdadeiramente civilizada.
Quando hoje o horror assalta algumas vezes o técnico diante do que gostaria
de realizar com seus inventos, então a melhor reação diante deste horror seria
tentar contribuir para a construção de uma sociedade mais civilizada.
Os senhores questionam sobre o alcance (Heraufkunft) de um ideal
formativo. A maioria dos senhores têm poucas dúvidas sobre o fracasso do
ideal formativo humano, sendo esta uma idéia que eu também compartilho.
Este fracasso, que se refere ao fato da cultura não ter conseguido cultivar sua
própria humanidade, não é culpa apenas dos homens, mas sim também da
cultura que tem um momento de mentira e de aparência, ao se separar do
pensamento da humanidade realizada, e que paga na mesma moeda o fato da
humanidade afastá-la de si. Por isso não posso, radiante, postular um novo
ideal formativo. Apenas a adaptação à técnica não poderia conformar tal ideal.
A formação não é adaptação, embora ela possa ser pensada muito pouco sem
este momento de adaptação, ou seja, sem este momento não se compreende
como se conserva uma substância que se transforma. Mas isso não significa
que a cultura seria algo mais elevado e belo do que a técnica. Isto é válido
apenas lá onde a cultura já se perdeu. Contudo, a técnica não é a essência
social primária, não é a coisa em si e nem a humanidade, mas sim apenas algo
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que é derivado, ou seja, uma forma de organização do trabalho humano.


Imaginar um novo ideal formativo, no sentido de uma síntese do homem
técnico e humano, acho que seria pouco proveitoso, assim como toda síntese
cultural. É um lugar-comum, o qual obriga a repetir a superstição junto à toda-
poderosa providência, o fato de que a formação não se deixa decretar. Ela
deve resultar de condições sociais objetivas. As questões junto às quais nos
sentimos incomodados alcançam as entranhas da sociedade, sendo que seria
totalmente ilusório desejar solucioná-las pedagogicamente ou através de um
tipo de controle social, pois elas são engendradas em virtude da supremacia
cega da técnica. Eu mentiria caso desejasse lhes dizer que poderia observar a
existência, ou mesmo a tendência para tal, de uma substancial e nova
formação cristalizada em si mesma. Creio que não nos resta mais nada além
do que, no despertar extremamente crítico e na total consciência da formação,
promover um certa hibernação (Überwintern). Portanto, devemos nos agarrar
o tanto quanto nos seja possível à formação, sem que com isso imaginemos
que tenha acontecido algo de decisivo para a organização do mundo. Hoje
persiste apenas na crítica da formação e na consciência crítica que a técnica
tem de si própria, bem como na compreensão dos contextos sociais nos quais
nos envolvemos, a esperança de que se anuncie a feição de uma formação, a
qual não é mais aquela outrora destacada por Humboldt, e que há muito se
coloca como tarefa o tratamento vago da personalidade. A forma pela qual
podemos hoje, eventualmente, experimentar o real humanismo reside na
integridade moral do pensamento e na intrepidez diante da desumanidade que
não resulta da técnica e nem dos próprios homens, mas sim da fatalidade na
qual todos nós, cada um de nós, em todas as partes do mundo, estamos presos.

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